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– Herrrrrf – Chester Rawls gemeu baixinho. A boca estava tão seca que precisou de alguns minutos para poder falar. – Ai, mãe, me deixa, vai – ele enfim conseguiu dizer, mas não estava aborrecido.
Algo fazia cócegas em seu tornozelo, exatamente como sua mãe costumava fazer quando ele não reagia ao toque do despertador e não saía da cama. E Chester sabia que não haveria trégua nas cócegas se não jogasse o cobertor de lado e começasse a se arrumar para a escola.
– Por favor, mãe, só mais cinco minutos – pediu, de olhos ainda bem fechados.
Estava tão confortável que só queria ficar deitado ali pelo tempo que fosse possível, saboreando cada segundo. Na realidade, costumava fingir que não ouvira o despertador porque sabia que a mãe acabaria aparecendo para ver se estava acordado.
Valorizava os momentos em que abria os olhos e ela estava sentada ali, empoleirada na ponta da cama. Ele adorava sua vivacidade e seu sorriso luminoso como o sol. E ela era assim toda manhã, por mais cedo que fosse. “Sou uma pessoa matinal”, sua mãe proclamava alegremente, “mas o seu velho pai amuado precisa de várias xícaras de café antes de cair em si”. Depois ela fazia cara de má, jogava os ombros para frente e soltava rosnados como um urso ferido. Chester fazia o mesmo e os dois riam.
Ele sorriu, mas seu olfato protestou furiosamente e o sorriso sumiu de seu rosto.
– Ai, mãe, o que é isso? Que nojo! – ofegou, incapaz de explicar o fedor. Como se alguém tivesse desligado a TV, a imagem de sua mãe desaparecera. Então ele se sentiu ansioso e abriu os olhos.
Escuridão.
– O quê? – murmurou. Caía inteiramente sobre ele, impenetrável e ininterrupta. Depois ele captou algo pelo canto do olho – um brilho fraco. Por que está tão escuro aqui?, perguntou-se Chester. Embora não conseguisse enxergar a menor pista que confirmasse que estava em seu quarto, sua mente trabalhava a mil para convencê-lo de que realmente estava lá. Será que essa luz vem da janela, e o cheiro… Tem alguma coisa queimando no fogão, lá embaixo? O que está havendo?
O odor era intenso. Era sulfuroso, mas ao mesmo tempo havia algo por baixo dele… O fedor acre de decomposição. A combinação encheu suas narinas e fez seu sangue gelar. Ele tentou levantar a cabeça para olhar em volta. Não conseguiu – estava preso em alguma coisa, como, aliás, seus braços e pernas; todo o corpo parecia grudado. O primeiro pensamento que lhe passou pela cabeça foi o de que estava paralítico. Não gritou, mas respirou fundo para tentar vencer o terror. Disse a si mesmo que não tinha perdido as sensações do tato, mesmo nas extremidades, de forma que provavelmente não devia estar paralítico. Ficou também mais animado por conseguir mexer os dedos das mãos e dos pés, ainda que só um pouco. Era como estar preso em algo firme e inabalável.
As cócegas em seu tornozelo voltaram, como se sua mãe fantasma ainda estivesse ali, e a imagem tênue dela voltou a sua mente.
– Mãe? – chamou ele, inseguro.
As cócegas pararam e ele ouviu um ruído baixo e pesaroso. Não parecia muito humano.
– Quem está aí? Quem está aí? – ele desafiava a escuridão.
Depois ouviu o que era inconfundivelmente um miado.
– Bartleby? – gritou. – É você, Bartleby?
Enquanto pronunciava o nome do felino, os acontecimentos no Poro lhe voltaram em um turbilhão. Arquejou ao se lembrar de que ele, Will, Cal e Elliott, à frente de um imenso buraco chamado Poro, haviam sido encurralados pelos Limitadores.
– Ah, meu Deus – ele gemeu.
Haviam praticamente enfrentado a morte certa nas mãos dos soldados Styx. Parecia uma cena de pesadelo, um sonho ruim que se recusava a esmorecer, mesmo depois de acordar. E tudo tinha um ar muito recente, como se tivesse acontecido minutos antes.
E outras lembranças lhe voltaram.
– Ah, meu Deus! – murmurou, recordando o momento em que Rebecca, a menina Styx que fora implantada na família de Will, revelara que o tempo todo tivera uma gêmea idêntica. Ele se lembrou das gêmeas zombando impiedosamente de Will, com um prazer cruel na revelação dos planos de eliminar hordas do povo da Crosta usando o vírus letal, Dominion. As gêmeas diziam a Will para desistir, depois o irmão de Will, Cal, apareceu na abertura, reclamando que queria ir para casa.
E ele se lembrou da saraivada de balas que derrubou o menino.
Cal estava morto.
Chester estremeceu, mas se obrigou a recordar o que acontecera em seguida. A imagem de Will, seu amigo, voltou-lhe – ele e Chester estendiam as mãos um para o outro e Elliott gritava, e todos estavam unidos por uma corda. Nesse instante Chester entendeu que ainda havia esperança… Mas por quê? Por que havia esperança?… Ele não conseguia se lembrar. Eles estavam empacados numa situação desesperadora, não havia saída. Chester estava tão desnorteado que precisou de vários segundos para organizar os pensamentos.
Isso! Foi isso! Elliott estava tentando tirá-los de dentro do Poro… Ainda havia tempo… Eles iam escapar.
Mas deu tudo tão errado. Ele cerrou os olhos como se suas retinas ainda ardessem dos clarões abrasadores e da brancura cáustica das explosões, quando foram bombardeados pelas poderosas armas da Divisão Styx. Chester reviveu o tremor no chão, e outra lembrança veio à tona – a imagem nebulosa de Will sendo lançado no ar, bem acima de sua cabeça, pela beira do Poro.
Chester se recordou do pânico cego que lhe acometeu quando ele e Elliott tentaram evitar que fossem arrastados pelo peso combinado dos corpos de Will e Cal. Mas havia sido em vão, porque estavam amarrados juntos, e a última coisa de que ele se lembrava era que haviam sido atirados, os quatro, no vazio escuro do Poro.
Ele conseguia se lembrar, agora, da investida do vento incessante, que arrancou seu fôlego… e clarões vermelhos, um calor incrivelmente forte… mas agora…
… mas agora…
… agora ele devia estar morto.
Então, o que era isso? Onde, diabos, ele estava?
Bartleby miou de novo e Chester sentiu o hálito quente do gato em sua cara.
– Bartleby, é você, não é? – perguntou Chester, hesitante.
A imensa cabeça circular do animal estava a centímetros dele. É claro que tinha de ser Bartleby. Ele se esquecera de que o gato também caíra junto com os outros… e agora estava aqui.
Depois Chester sentiu uma língua áspera raspar seu rosto.
– Sai! – berrou. – Para com isso!
Bartleby o lambeu com um vigor ainda maior, claramente deliciado por obter uma reação de Chester.
– Sai de cima de mim, seu gato idiota! – gritou Chester num alarme crescente. Não só porque não tinha a menor condição de deter o animal, mas porque a língua de Bartleby era áspera como uma lixa, e ser lambido por ele era muito doloroso. Renovando seus esforços para se libertar, Chester lutou furiosamente, gritando a plenos pulmões.
Os gritos não pareciam refrear nem um pouco o animal, e Chester não teve alternativa a não ser sibilar e cuspir com a maior selvageria que pôde. Acabou dando certo, e Bartleby recuou.
E vieram novamente o silêncio e a escuridão.
Ele tentou chamar Elliott, depois Will, embora não estivesse certo de que algum deles sobrevivera à queda. Tinha a horrível sensação na boca do estômago de que podia ser o único sobrevivente, além do gato, é claro. Isso quase lhe pareceu pior – a ideia de que estava sozinho com o animal gigantesco e babão.
Uma sugestão lhe bateu como uma bola de críquete na cabeça… Será que, por milagre, ele havia caído no fundo do Poro? Lembrou-se do que Elliott lhes dissera – não só a abertura tinha mais de um quilômetro de largura, como era tão funda que só um homem, segundo as histórias, conseguira subir de volta. Dentro do que lhe permitia a substância invisível grudada nele, Chester tremeu incontrolavelmente. Vivia seu pior pesadelo.
Fora enterrado vivo!
Estava espremido numa espécie de cova rasa no formato de um corpo, encalhado nas entranhas da Terra. Como é que ia sair do Poro e voltar à superfície? Ele descera ainda mais do que as Profundezas – o que ele já teria achado bem ruim. A perspectiva de voltar para seus pais e para sua ótima vida estável era cada vez mais distante.
– Por favor, eu só quero ir para casa – balbuciava consigo mesmo. Assaltado por ondas alternadas de claustrofobia e pavor, começou a suar frio.
Foi então, deitado ali, que uma vozinha em sua cabeça lhe disse que não podia ceder ao medo. Ele parou de balbuciar. Sabia que tinha de se libertar do que o mantinha preso como um bloco de cimento e achar os outros. Eles podiam precisar de ajuda.
Retesando o corpo, relaxando e se retorcendo, ele precisou de dez minutos para soltar parcialmente a cabeça e recuperar parte do movimento de um dos ombros. Em seguida, ao contrair os músculos dos braços, ouviu o ruído repugnante de sucção e o ombro de repente estava livre do material esponjoso e pegajoso.
– Isso! – exclamou. Embora o movimento de seu braço fosse limitado, ele levou um momento para tatear o rosto e o peito. Achou as alças da mochila e soltou as duas fivelas, pensando que isso o ajudaria em sua luta pela liberdade. Depois, concentrando-se em soltar o restante do corpo, erguendo-se e rosnando, ele ficava cada vez mais aquecido pelo esforço desses micromovimentos. Era como se tentasse se libertar de um molde. Mesmo assim, aos poucos seus esforços pareciam dar resultado.
Muitos quilômetros acima de Chester, o velho Styx espiava o interior do Poro enquanto um chuvisco constante caía a sua volta, e em algum lugar ao longe uma matilha de cães uivou.
Embora seu rosto fosse muito vincado e o cabelo pontilhado de prata, a idade não lhe trouxera fragilidade. Seu corpo alto e magro era teso como um arco sob o longo casaco de couro abotoado até o pescoço. Quando iluminados, seus pequenos olhos brilhavam como duas contas de um preto muito polido, e um senso de poder emanava de todo seu ser e parecia penetrar a escuridão, dominando-a.
Ele gesticulou com uma das mãos e outro homem apareceu a seu lado, e ambos ficaram ombro a ombro na beira do precipício. Este segundo homem era estranhamente parecido com o velho, embora seu rosto ainda não tivesse rugas e o cabelo fosse tão preto e penteado para trás que podia tranquilamente ser confundido com um capuz.
Membros de uma raça secreta de nome Styx, estes homens investigavam um incidente que ocorrera pouco tempo antes. Um incidente em que o velho Styx perdera as netas gêmeas, que haviam sido arrastadas para dentro do vazio.
Embora soubesse que havia pouca possibilidade de uma das meninas ainda estar viva, a face do velho Styx não revelava nenhuma tristeza ou angústia pela perda enquanto ele dava ordens num ladrar em staccato.
Houve uma nova agitação quando os Limitadores em torno do Poro começaram a obedecer a suas ordens. Esses soldados, um destacamento especializado que treinava nas Profundezas e realizava operações clandestinas na superfície, vestiam fardas pardas – casacos pesados e calças volumosas – apesar da alta temperatura que prevalecia naquela profundidade da Terra. Seus rostos magros estavam impassíveis e decididos enquanto alguns usavam as miras instaladas nos rifles, que captavam a luz, para sondar as profundezas do Poro, e outros baixavam globos luminosos em cabos para verificar sua parte superior. Era improvável que as gêmeas tivessem conseguido interromper sua queda para a morte, mas o velho Styx precisava ter certeza.
– Alguma coisa? – ladrou ele em sua própria língua, um idioma nasalado e áspero. As palavras ecoaram pelo Poro e subiram o aclive atrás dele, onde outros soldados, com a eficiência de costume, já desmontavam os canhões de campanha que tinham causado tanta destruição no local em que se encontravam.
– Elas obviamente pereceram – sussurrou o velho Styx a seu jovem assistente, então recomeçou de imediato a gritar ordens a todo volume. – Concentrem todos os esforços na localização dos frascos! – Ele contava com o fato de que uma ou as duas gêmeas tivessem tido tempo de soltar os pequenos frascos que traziam pendurados no pescoço antes de caírem pelo precipício. – Precisamos desses frascos!
Seu olhar inflexível caiu nos Limitadores que engatinhavam em volta dele, passando um pente fino em cada centímetro do chão. Verificavam minuciosamente sob cada pedaço de pedra lascada e peneiravam a terra calcinada que ainda ardia de resíduos do explosivo das bombas que haviam sido detonadas ali. De vez em quando esses resíduos se inflamavam, pequenas chamas se reacendiam e brotavam do chão, para então desaparecerem com igual rapidez.
Soaram gritos de alarme e vários Limitadores se jogaram ao chão enquanto uma faixa de terra mais além do Poro se soltava com um baque surdo. Toneladas de pedra e terra que haviam se despregado com o bombardeio deslizaram pelo abismo. Embora tivessem escapado por um triz, os soldados simplesmente se reergueram e reassumiram seus deveres, aparentemente sem se deixar abalar pelo acontecimento.
O velho Styx virou-se para contemplar a escuridão no alto do aclive.
– Não há dúvida de que foi ela – disse o jovem assistente, olhando na mesma direção. – Sarah Jerome levou as gêmeas.
– Quem mais poderia ser? – vociferou o velho Styx, meneando a cabeça. – E o extraordinário é que tenha conseguido, embora estivesse mortalmente ferida. – Ele se voltou para o jovem assistente. – Estávamos brincando com fogo quando a colocamos contra seus filhos e, muito simplesmente, queimamos os dedos. Nada jamais é óbvio quando se trata do filho de Burrows – disse, mas corrigiu-se rapidamente, porque também supunha que Will estivesse morto. – … quando se tratava do filho de Burrows. – Calou-se com uma carranca, respirando fundo antes de voltar a falar. – Mas diga-me… Como Sarah Jerome desceu até aqui? Quem era o responsável por esta área? – Ele apontou um dedo para o alto do aclive. – Quero que eles respondam por isso.
O jovem assistente baixou a cabeça para mostrar que entendera a ordem e saiu.
Logo outra figura apareceu em seu lugar. Era tão distorcida e recurvada que ficava difícil saber, à primeira vista, se era realmente humana. Por baixo de um manto duro de sujeira, um par de mãos nodosas se retorcia em direção à luz. Com movimentos de pássaro, as mãos ergueram o manto e revelaram uma cabeça horrivelmente deformada com tumores bulbosos tão numerosos que em certos lugares pareciam crescer um por cima de outro. Tufos moles de cabelo úmido emolduravam um rosto em que se viam dois olhos inteiramente brancos. Sem íris ou pupilas, giravam como se pudessem enxergar.
– Meus pêsames pela perda das… – A figura arquejou, caindo em um silêncio respeitoso.
– Eu agradeço, Cox – respondeu o velho Styx, agora falando em inglês. – Todo homem é arquiteto de sua fortuna, e coisas infelizes acontecem.
Em um movimento súbito, Cox limpou com as costas do punho o fio de saliva leitosa que pendia de seus lábios escurecidos, espalhando-a em sua pele cinzenta. Ergueu o braço fino e, com um solavanco, levou-o ao rosto e bateu com um dedo em garra no tumor do tamanho de um melão que tinha na testa.
– Pelo menos suas meninas deram cabo de Will Burrows e de Elliott, aquela porca – disse ele. – Mas ainda vais expurgar o restante das Profundezas dos últimos renegados, não é?
– Expurgaremos cada um deles, usando as informações que você nos deu – disse o velho Styx, depois lhe lançou um olhar astuto. – De qualquer forma, Cox, por que pergunta?
– Por nada – respondeu a massa disforme, rápido como um raio.
– Ah, creio que… esteja preocupado porque Drake até agora escapou de nós. E você sabe que cedo ou tarde ele irá atrás de você para um acerto de contas.
– Ele que venha, estarei pronto – proclamou Cox confiante, mas uma veia azul sinuosa que pulsava sob um de seus olhos dizia o contrário. – Drake pode vir com tudo que…
O velho Styx ergueu a mão para silenciá-lo quando o jovem assistente voltou trazendo três Limitadores. O trio de soldados formou uma fila e parou rigidamente em posição de sentido, com os olhos fixos à frente e os longos rifles ao lado do corpo. Dois eram jovens subalternos e um era oficial, um veterano grisalho de muitos anos de serviço.
De punhos cerrados, o velho Styx andou lentamente pela fila, parando ao chegar ao último homem, que por acaso era o veterano. Virou-se inteiramente para ele e sustentou seu olhar por vários segundos, a centímetros de seu rosto, antes de baixar os olhos para o traje de batalha do homem. Três fios de algodão curtos, de diferentes cores, projetavam-se do tecido, pouco acima do bolso, no peito do veterano. Aqueles fios coloridos eram condecorações por atos de bravura – o equivalente Styx das medalhas da Crosta. O velho Styx fechou os dedos enluvados ali, arrancando-os e jogando-os na cara do homem. O veterano não piscou, nem mostrou a mais leve reação.
O velho Styx recuou, depois gesticulou para o Poro com tal despreocupação que parecia estar enxotando uma mosca irritante. Os três soldados entraram em formação. Encostaram os rifles um no outro, formando uma pirâmide. Depois desafivelaram os volumosos cintos de equipamentos e os depositaram numa pilha organizada ao lado dos rifles. Sem nenhuma ordem a mais do velho Styx, marcharam em fila para a beira do Poro e, um depois do outro, jogaram-se nele. Não soltaram um grito que fosse. E nenhum de seus camaradas na área parou o que fazia para olhar enquanto os três soldados se lançavam no abismo.
– Justiça severa – disse Cox.
– Não exigimos nada menos do que a excelência – respondeu o velho Styx. – Eles falharam. Não nos são mais úteis.
– Sabeis bem que as meninas podem ter sobrevivido – arriscou-se Cox.
O velho Styx se voltou para dar toda a sua atenção a Cox.
– É verdade… Seu povo realmente acredita que um homem caiu ali e sobreviveu, não é mesmo?
– Eles não são meu povo – grunhiu Cox, pouco à vontade.
– Um mito sobre um glorioso Jardim do Éden esperando no fundo – disse o velho Styx em tom jocoso.
– Conversa fiada – murmurou Cox, começando a tossir.
– Nunca pensou em experimentar você mesmo? – O velho Styx não esperou pela resposta, batendo as mãos enluvadas ao se virar para o jovem assistente. – Envie um destacamento ao Bunker para extrair amostras do vírus Dominion dos cadáveres que estão lá. Se pudermos refazer a cultura, manteremos o plano em andamento. – Ele tombou a cabeça de lado e sorriu cruelmente para Cox. – Ora, não queremos que o povo da Crosta perca seu dia do Juízo, não é verdade?
Cox cacarejou uma gargalhada, espirrando a saliva leitosa no ar.
Chester não se permitiu um segundo que fosse de descanso. O que quer que o matinha agarrado era oleoso no contato com a pele e, em sua luta, tinha uma certeza cada vez maior de que era a origem do fedor que sentia. Enquanto se esforçava para soltar o segundo braço, o outro ombro ficou livre, e então, de repente, toda a metade superior do tronco estava desimpedida. Com um ruído alto de sucção, ele finalmente se sentou e rugiu de triunfo.
Tateou pelo breu, completamente mergulhado na substância pegajosa. Esticando-se ao máximo, alcançava por pouco a superfície, que parecia nivelada. Chester arrancou pequenas tiras da substância que o envolvia – era fibrosa e gordurosa ao toque e ele não tinha a mais remota ideia do que se tratava. Mas, o que quer que fosse, parecia ter absorvido o impacto de sua queda no Poro. Por mais loucura que isso lhe parecesse, era o provável motivo para ele estar vivo.
– De jeito nenhum! – disse ele, desprezando a ideia. Era forçada demais, devia haver outra explicação.
Ele não via em lugar nenhum a lanterna que prendera em seu casaco, então procurou em todos os bolsos por globos luminescentes de reserva.
– Mas que droga! – exclamou ao descobrir que o bolso do quadril estava rasgado e que todo o conteúdo sumira, incluindo os globos. Falava consigo mesmo para manter o moral elevado, e tentou colocar-se de pé. – Ah, dá um tempo! – Gemeu ao descobrir que as pernas ainda estavam entaladas no material esponjoso e por isso não conseguia se levantar.
Mas essa não era a única coisa que o mantinha preso ali.
– O que é isso? – disse, descobrindo uma corda amarrada a sua cintura. Era a corda de Elliott, que eles haviam usado para se unir numa corrente no alto do Poro. Agora restringia seus movimentos – à esquerda e à direita estava firmemente presa no material esponjoso. Sem uma faca, só o que podia fazer era tentar desatar o nó. Era mais fácil falar do que fazer, porque suas mãos estavam ensopadas do fluido oleoso e escorregavam na corda.
De forma atrapalhada e com alguns palavrões, por fim ele conseguiu desatar o nó, afrouxando-o a seu redor.
– Até que enfim! – berrou. Soltou as pernas e isso provocou um som forte de sucção. Uma das botas ficou para trás, presa no material. Chester precisou usar as duas mãos para puxá-la, calçando-a antes de se levantar, trôpego.
Foi a essa altura que percebeu o quanto doía cada parte de seu corpo – como se tivesse acabado de jogar a partida de rugby mais pesada de sua vida, talvez contra um esquadrão de gorilas particularmente beligerantes.
– Ai! – reclamou ao esfregar braços e pernas, descobrindo também que tinha queimaduras de cordas no pescoço e nas mãos. Com um gemido alto, Chester esticou as costas, olhando para cima, tentando distinguir de onde tinha caído. O mais estranho era que depois do começo da queda, quando o ar passara disparando por seu rosto com tanta intensidade que mal conseguia respirar, ele não se lembrava de muita coisa até Bartleby o acordar, focinhando em seu tornozelo.
– Mas onde é que eu estou? – disse repetidas vezes, sem sair do fosso. Percebeu algumas áreas de iluminação muito fraca – embora não soubesse o que as provocava, o alívio da escuridão o fez se sentir um pouco melhor. E, à medida que os olhos se adaptavam, distinguiu vagamente a silhueta fugaz do gato que rondava em volta dele como um jaguar à espreita.
– Elliott! – chamou. – Você está aí, Elliott?
Ele percebeu um eco distinto à esquerda quando gritava, mas nada a sua direita. Gritou várias outras vezes, sempre esperando uma resposta.
– Elliott, está me ouvindo? Will! Ei, Will! Você está aí? – mas ninguém respondia.
Chester disse a si mesmo que não podia ficar ali o dia todo, simplesmente gritando. Percebeu que um dos pontos de iluminação na realidade vinha bem de perto e criou coragem para tentar alcançá-lo. Usou as unhas para sair do poço. Como estava ensopado no fluido escorregadio, não se arriscava a ficar de pé, mas mantinha-se de quatro, avançando pela superfície flexível. Percebeu outra coisa ao prosseguir: sentia-se estranhamente leve, como se flutuasse na água. Perguntando-se se isto era devido às pancadas na cabeça, que o haviam deixado meio tonto, disse a si mesmo para se concentrar na tarefa que precisava realizar.
Chester avançou pouco a pouco, com movimentos curtos e estudados, esticando os dedos para a luz. Depois a luz pareceu tocar a parte de baixo da palma estendida – e ele percebeu que vinha de algo incrustado no fundo do material elástico. Ele enrolou a manga e meteu o braço no buraco para pegá-lo.
– Eca! – disse, ao retirar a luz com o braço coberto do líquido oleoso. Era uma lanterna Styx. Não sabia se tinha sido dele ou se pertencia a um dos outros, mas agora isso não importava. Ele ergueu a lanterna para avaliar as cercanias, sua confiança crescendo a tal ponto que decidiu ficar de pé.
Descobriu que estava numa superfície acinzentada – não era nada lisa, mas estriada e encaroçada, de textura um tanto parecida com a da pele de um elefante. A luz revelou que havia outros objetos presos ali, variando de pequenos seixos a pedaços substanciais de pedra. Evidentemente tinha batido no material com alguma força e penetrado nele, como o próprio Chester.
Ele levantou ainda mais a lanterna e viu que o chão se estendia para todos os lados em um platô de ondulação suave. Andando com cuidado para não perder o equilíbrio, Chester voltou a seu buraco para examinar mais atentamente. Nem acreditava no que via e riu de assombro. O contorno perfeito de seu corpo havia se delineado na superfície do material. Isso lhe trouxe à mente o desenho animado das manhãs de sábado com o infeliz coiote que sempre parecia terminar caindo de grandes altitudes, deixando o formato de seu corpo impresso no chão do cânion. E ali estava uma versão real da forma de Chester! O desenho não parecia mais tão engraçado.
Murmurando de incredulidade, deu um pulo no buraco para pegar a mochila, o que lhe exigiu certo esforço. Depois de soltá-la, pendurou-a nas costas e saiu do buraco. Em seguida, curvou-se para levantar a corda.
– Direita ou esquerda? – perguntou-se ele, olhando para as duas extremidades que desapareciam no escuro. Escolhendo uma direção ao acaso e preparando-se para o que podia encontrar, começou a seguir a corda, arrancando-a da superfície elástica ao prosseguir.
Tinha percorrido dez metros quando a corda de repente saiu de suas mãos e ele caiu de costas, sentado. Agradecido pelo tapete subterrâneo e flexível que tinha absorvido sua queda, Chester se levantou e examinou a ponta. Estava puída, como se tivesse sido cortada. Apesar disso, conseguiu seguir o fio que restara e logo chegou a uma impressão funda no chão. Contornou a forma, iluminando-a com a lanterna.
Certamente parecia que alguém estivera ali; o contorno não era tão perfeito quanto o dele, como se seu autor tivesse caído de lado.
– Will! Elliott! – gritou de novo. Ainda não obtivera resposta, mas Bartleby de repente reapareceu, fixando os olhos grandes e imóveis em Chester. – O que foi? O que você quer? – grunhiu ele com impaciência. O gato lentamente se virou para a direção contrária e, com o corpo arriado no chão, começou a se esgueirar para frente. – Quer que eu vá com você… É isso? – perguntou Chester ao notar que Bartleby se comportava precisamente como se caçasse alguma coisa.
Seguiu o felino até que chegaram a uma superfície vertical – uma parede de material flexível e cinzento, de onde água corria em riachos.
– E agora, para onde? – quis saber, começando a pensar que o gato o estaria levando a uma caçada inútil. Chester relutava em vagar para muito longe e se perder, mas sabia que mais cedo ou mais tarde teria de criar coragem e explorar toda a área.
Com o rabo esquelético empinado, Bartleby apontava o focinho para o que parecia um espaço na parede. A água descia pela abertura numa chuva contínua.
– Aí dentro? – perguntou Chester ao tentar iluminar através da água com a lanterna Styx. Em resposta, Bartleby passou pelo manto de água, e Chester o seguiu.
Ele descobriu que estava numa espécie de caverna. Bartleby não era o único dentro dela. Alguém mais parecia estar sentado ali, recurvado e cercado de folhas de papel.
– Will! – exclamou Chester, ofegante, quase incapaz de falar, de tão aliviado que estava por seu amigo ter sobrevivido.
Will levantou a cabeça, relaxando os dedos que haviam estado fortemente cerrados em torno de um globo luminoso, e deixou que a luz banhasse seu rosto. Não disse nada, olhando taciturno para Chester.
– Will? – repetiu Chester. Alarmado com o silêncio do amigo, ele se agachou ao lado dele. – Está machucado?
Will simplesmente o encarava. Depois passou a mão no cabelo branco, pegajoso de óleo, fez uma careta e piscou um olho como se falar exigisse esforço demais.
– O que foi? Fale comigo, Will!
– Tá, eu estou bem. Apesar dos pesares – respondeu por fim Will numa voz monótona. – Estou com uma dor de cabeça de matar e minhas pernas doem pra caramba. E meus ouvidos não param de estalar. – Ele engoliu em seco várias vezes. – Deve ser a diferença de pressão.
– Os meus também – disse Chester, depois percebeu que para ele isso não tinha a menor importância no momento. – Mas, Will, há quanto tempo está aqui?
– Sei lá. – O amigo deu de ombros.
– Mas por que… O que… Você… – Chester gaguejou, as palavras se atropelando. – Will, nós conseguimos! – ele soltou, rindo. – Nós conseguimos, puxa vida!
– É o que parece – respondeu o amigo numa voz monótona, com os lábios apertados.
– O que há de errado com você? – indagou Chester.
– Não sei – murmurou Will. – Não sei o que há de errado, ou de certo, não sei de mais nada.
– Como assim? – disse Chester.
– Pensei que ia ver meu pai de novo – explicou Will, de cabeça baixa. – O tempo todo, enquanto coisas horríveis aconteciam com a gente, uma esperança me fazia continuar… Eu realmente acreditava que voltaria com meu pai. – Ele ergueu uma escova de dentes suja do Mickey Mouse. – Mas agora o sonho acabou. Ele está morto e só deixou para trás esta escova de dentes idiota que roubou de mim… E as maluquices que escreveu no diário.
Will escolheu uma folha de papel molhada e leu uma frase rabiscada ali.
– Um “segundo sol”… no centro da Terra? Mas o que isso quer dizer? – Ele respirou fundo. – Não faz sentido algum.
Depois ele praticamente sussurrou.
– E Cal… – Will tremeu com um soluço involuntário. – Foi culpa minha ele ter morrido. Eu devia ter feito alguma coisa para salvá-lo. Devia ter me entregado a Rebecca… – Estalou a língua nos dentes, corrigindo-se – … às Rebeccas.
Levantou a cabeça, pousando o olhar opaco em Chester.
– Sempre que fecho os olhos, só o que vejo é a cara das duas… Como se elas estivessem impressas em minhas pálpebras, na própria escuridão… Duas caras cruéis e sórdidas, brigando e gritando comigo. Parece que não posso tirá-las daqui – disse, dando um tapa na testa com alguma força. – Ai, que dor – gemeu ele. – Por que eu fiz isso?
– Mas… – Chester começou.
– A gente pode simplesmente desistir. Que sentido tem? – Will o interrompeu. – Lembra o que as Rebeccas disseram sobre a trama do Dominion? Não podemos fazer nada para impedir que elas espalhem o vírus na superfície, não daqui de baixo. – Com grande cerimônia, largou a escova do Mickey Mouse numa poça de aparência gordurosa, como se estivesse afogando o animal mal pintado que compunha seu cabo. – Que sentido tem? – repetiu ele.
Chester estava perdendo a calma rapidamente.
– O sentido é que estamos aqui, estamos juntos e já mostramos praquelas vacas do mal. É como se… Como se… – Ele se atrapalhou por um segundo, tentando se expressar – … É como um videogame, quando você ganha outra chance… Sabe como é, quando consegue mais uma vida. Ganhamos uma segunda chance para tentar impedir as gêmeas Rebecca e salvar a vida de todas aquelas pessoas na superfície. – Ele tirou a escova da poça e, sacudindo a água, devolveu-a a Will. – O sentido é que conseguimos, ainda estamos vivos, pelo amor de Deus.
– Grande coisa – murmurou Will.
– É claro que é grande coisa! – Chester sacudiu o amigo pelo ombro. – Vamos lá, Will, sempre foi você que nos manteve andando, nos arrastando junto de você; era você o maluco que… – Chester parou para respirar em sua agitação – … que sempre tinha de ver o que podia encontrar depois. Lembra?
– E não foi isso que nos meteu nesta confusão, afinal? – respondeu Will.
Chester fez um ruído entre o “hum” e o “é”, depois meneou vigorosamente a cabeça.
– Eu quero que você saiba… – A voz de Chester tremeu e sumiu enquanto ele evitava os olhos de Will e mexia numa pedra perto da bota. – Will… Eu fui um imbecil.
– Agora isso não importa – respondeu Will.
– Importa, sim. Eu agi como um mimadinho… Fiquei tão cheio de tudo… de você. – E a voz de Chester se firmou de novo. – Eu falei muita coisa que não queria. E agora estou pedindo a você para fazer suas explorações, e prometo que nunca mais vou reclamar. Me desculpe.
– Está tudo bem – murmurou Will, meio sem graça.
– Faça o que você sabe fazer melhor… Achar um jeito de nos tirar daqui – Chester insistiu.
– Vou tentar – disse Will.
Chester o olhou fixamente.
– Estou contando com isso, Will. As pessoas da superfície também. Não se esqueça, minha mãe e meu pai estão lá em cima. Não quero que eles peguem o vírus e morram.
– Não, claro que não – respondeu Will de pronto, porque a menção dos pais de Chester recolocou a situação em foco. Will sabia o quanto o amigo os amava e o destino deles, como de centenas de milhares de pessoas – se não milhões delas – podia estar selado se a trama dos Styx seguisse adiante.
– Então vamos lá, parceiro – Chester instou, oferecendo a mão a Will para ajudá-lo a se levantar. Juntos, eles passaram pela cascata e chegaram à superfície elástica.
– Chester – disse Will, voltando um pouco a ser ele mesmo –, tem uma coisa que você precisa saber.
– O que é?
– Notou algo de estranho neste lugar? – perguntou Will, olhando inquisitivamente para o amigo.
Perguntando-se por onde começar, Chester meneou a cabeça, chicoteando no rosto a cabeleira cacheada e ensopada de óleo e prendendo uma mecha na boca. Ele a tirou imediatamente com um olhar de nojo e cuspiu várias vezes.
– Nada além dessa coisa em que caímos, que tem um cheiro e um gosto horrorosos.
– Acho que estamos num grande fungo subterrâneo – Will continuou. – Terminamos numa espécie de plataforma dessa coisa… Deve se projetar do Poro. Uma vez, vi algo assim na televisão… Havia um fungo monstruoso na América que se estendia por milhares de quilômetros no subsolo.
– Era isso que você queria…
– Não – Will o interrompeu. – Esta é a parte interessante. Olhe com atenção. – O globo luminescente estava na palma de sua mão e ele o atirou despreocupadamente a cinco metros no ar. Assombrado, Chester viu o globo flutuar de volta à mão de Will. Era como se testemunhasse a cena em câmera lenta.
– Ei, como você fez isso?
– Precisa tentar – disse Will, passando o globo a Chester. – Mas não jogue com muita força, ou vai perdê-lo.
Chester fez como Will sugeriu, atirando-o para cima. Mas aplicou força demais e o globo se lançou por vinte metros, iluminando o que parecia ser outro afloramento de fungo acima deles, antes de flutuar sinistramente para baixo, a luz brincando em seus rostos voltados para cima.
– Mas como…? – Chester ofegou com os olhos arregalados de pasmo.
– Não sente que está, hum, sem peso? – disse Will, procurando a palavra certa. – É baixa gravidade. Acho que tem um terço do que estamos acostumados na superfície – Will lhe informou, apontando o dedo para cima. – Isso… E o solo macio que temos neste fungo… pode explicar por que não estamos achatados feito panquecas. Mas cuidado quando se mexer, ou pode escorregar para fora da plataforma e cair no Poro de novo.
– Baixa gravidade – repetiu Chester, tentando absorver o que o amigo dizia. – O que isso significa exatamente?
– Significa que a gente deve ter caído muito.
Chester o olhou sem compreender.
– Nunca se perguntou o que existe no centro da Terra? – disse Will.
Capítulo Dois
Andando furtivamente pelo túnel de lava, Drake pensou ter ouvido um ruído e ficou paralisado, escutando atentamente.
– Nada – disse ele a si mesmo depois de um instante, desenganchando o cantil do cinto para beber. Tomou um gole demorado enquanto os olhos percorriam a escuridão do túnel, refletindo sobre o que tinha acontecido no Poro.
Ele saiu antes que o velho Styx ordenasse que os Limitadores pulassem para a morte, mas testemunhou os horríveis acontecimentos que haviam levado a isso. Escondido no aclive acima do Poro, não pudera evitar que Cal encontrasse um fim repentino e violento. O irmão mais novo de Will fora brutalmente baleado pelos soldados Styx depois de ter entrado em pânico e cruzado a linha de fogo. E minutos depois, quando veio o pandemônio, Drake foi igualmente incapaz de salvar Will e os outros. Só pôde olhar enquanto as armas de grosso calibre da Divisão Styx abriam fogo e Elliott, Will e Chester eram atirados pela beira do Poro pelas explosões.
Drake passara por tanta coisa com Elliott nas Profundezas que em geral podia imaginar como ela agiria em cada situação. Por piores que as coisas parecessem, ele ainda tinha um pouco de esperança de que ela houvesse conseguido ancorar a si e aos meninos na lateral da abertura colossal e de que eles não houvessem realmente caído até o fundo. Então Drake continuou onde estava, em vez de fazer o que seus instintos lhe diziam e sair da área, que estava tomada pelos Styx e por seus selvagens cães de ataque.
Enquanto os Limitadores davam uma busca pelo perímetro do Poro, ele apurou os ouvidos, na esperança de pegar os relatórios da localização e captura de Elliott e os meninos. Pelo menos, se fossem capturados, ele teria a oportunidade de tentar libertá-los mais tarde.
Mas o tempo passava, a busca pelo Poro continuava e seu desânimo era cada vez maior. Tinha de aceitar que Elliott e os meninos estavam perdidos para sempre, que haviam morrido na queda. É claro que havia a antiga história de um homem que, décadas antes, caíra no Poro e por milagre reaparecera na Estação dos Mineradores tagarelando sobre terras fantásticas, mas Drake jamais acreditara em uma só palavra disso. Sempre considerou que não passava de um boato fabricado pelos Styx para dar o que pensar aos colonistas. Não, no entender dele ninguém sobrevivia ao Poro.
Também tinha um receio cada vez maior de ser detectado pelos cães dos Styx, que eram incríveis farejadores – feras cruéis cujo nível de selvageria só perdia para a perícia que tinham no rastreamento. Eles ainda não haviam pegado seu rastro graças às nuvens de fumaça que tinham subido por causa do recente tiroteio ocorrido ali. Mas o vento dispersava rapidamente a fumaça, e ela não o protegeria dos cães por muito mais tempo.
Drake estava considerando ir embora quando ouviu uma comoção. Chegando à conclusão precipitada de que Elliott e os garotos tinham sido localizados, imediatamente se apoiou nos cotovelos e espiou em volta do menir onde se escondia. As várias lanternas acesas dos soldados deram-lhe uma visão clara do motivo de tanta agitação.
No Poro, ele teve o mais leve vislumbre de algo em plena fuga, de braços estendidos dos dois lados.
– Sarah? – disse a meia-voz.
Certamente parecia a mãe de Will, Sarah Jerome, mas não entendia como a mulher teria conseguido se colocar de pé, e muito menos como era capaz de correr. Seus ferimentos haviam sido tão graves que ele realmente pensara que a essa altura ela estaria morta.
Mas, pelo pouco que viu, ela parecia bem viva enquanto disparava pelo chão irregular. Drake viu os Styx reagirem, correndo atrás dela e apontando os rifles. Mas não dispararam nenhum tiro quando Sarah empurrou consigo duas pequenas figuras para a beira do Poro. Ela e as figuras simplesmente sumiram de vista.
– Maldição – murmurou ao ouvir gritos agudos, pressupondo de imediato que um deles tinha de ser de Sarah.
Outros gritos – os gritos dos soldados Styx – soaram por todo o aclive e, ouvindo passos a metros de onde se escondia, Drake rapidamente se enfiou atrás do menir. Mas não resistiu a uma segunda olhada.
Todos os soldados na área se reuniram perto do local onde Sarah pulara. Um único Styx subiu em um pedaço de alvenaria e gritou ordens rápidas aos soldados que se agrupavam a sua volta. Parecia ser mais velho do que a tropa e vestia o habitual casaco preto e camisa branca, e não o traje de combate dos Limitadores. Drake já o havia visto pela Colônia antes – estava claramente no alto da hierarquia, era alguém muito importante. E com a tranquilidade de quem está acostumado a dar ordens, rápida e eficientemente organizou os soldados em dois grupos – um para verificar o Poro, outro para dar uma busca detalhada no aclive com os farejadores.
Drake percebeu que estava na hora de sair dali.
Não foi difícil chegar ao topo do aclive sem ser detectado, então ele saiu da caverna. Ao chegar aos tubos de lava, ele se movimentava com cautela, em especial porque só tinha granadas de implosão – armas de fogo muito rudimentares.
Mas agora, ao dar um último gole no cantil e recolocar a tampa, sua mente processava o que testemunhara no Poro.
– Sarah – disse, pensando que ela havia levado dois Styx para o túmulo.
E então teve um estalo.
Os gritos agudos que ouvira não eram de Sarah.
Os gritos eram daquelas meninas. As gêmeas! Sarah conseguira se vingar das gêmeas Rebecca! Sabendo que só devia ter alguns minutos de vida e que os dois filhos já haviam encontrado seu destino, Sarah achara o alvo perfeito para sua desforra.
Era isso!
Ela se sacrificara para eliminar as gêmeas. E ele sabia que as gêmeas estavam com o vírus letal Dominion, pois tinham desfilado com o frasco e implicado com Will. Haviam contado ao garoto de seu plano de soltá-lo na Crosta e deram a entender que só precisavam de um único frasco de Dominion. Segundo Sarah, uma das gêmeas recebera o vírus recém-replicado ao chegar às Profundezas. Drake podia apostar que o frasco era o único espécime que os Styx tinham em seu poder. Assim, era possível que, sem saber, Sarah tivesse infligido sua vingança sobre o que era mais caro aos Styx e frustrara a trama contra o povo da Crosta.
Era perfeito!
Ela realizara precisamente o que Drake considerava quase impossível.
Meneando a cabeça, ele deu um único passo, parando de forma repentina, como se atingido por uma corrente elétrica.
– Meu Deus! Como sou idiota! – exclamou. Tinha deixado passar um detalhe. Não era a solução perfeita que ele pensara de início. Sarah começara o trabalho, mas ainda não estava terminado.
– O Bunker – murmurou, ao perceber que traços do vírus talvez ainda estivessem presentes nas celas de teste lacradas no meio do imenso complexo de concreto. Os Styx haviam testado a eficácia da cepa virulenta em alguns colonistas e infelizes renegados, e seus cadáveres ainda podiam conter o vírus ativo. Drake percebeu que os Styx também saberiam disto, e que teria de chegar lá primeiro para destruir o que restava.
Ele disparou numa corrida enquanto formulava um plano de ação. Podia pegar alguns explosivos num esconderijo no caminho para o Bunker. Era provável que ainda houvesse Styx patrulhando a Grande Planície, mas ele precisava chegar às celas o mais rápido possível. Teria de tomar alguns atalhos – não havia tempo para sutilezas.
Havia muita coisa em risco para isso.
No corredor da Humphrey House, sra. Burrows hesitou, incapaz de se decidir. Naquela tarde de sábado, a parte dela que ansiava pela televisão não parecia arder com a intensidade habitual. Sabia que havia algo que queria assistir, mas não conseguia se lembrar do que era. Achou isso vagamente inquietante – não era típico dela esquecer.
Balançando a cabeça, ela se arrastou alguns passos pelo linóleo verde e encerado demais na direção da sala de estar, onde ficava o único televisor do lugar.
– Não – disse, parando.
Ouvindo vozes e agitação vindo de diferentes partes do prédio em ecos indefinidos como os sons que se ouvia nas piscinas públicas, ela de repente se sentiu muito só. Ali estava nesse prédio impessoal, com sua equipe de funcionários e um sortimento de gente problemática, mas ninguém realmente gostava dela. É claro que os funcionários tinham um interesse clínico por seu bem-estar, mas lhe eram estranhos, como a própria sra. Burrows era estranha a eles. Ela era apenas outra paciente a ser enviada para casa quando decidissem que estava recuperada, outro leito a ser liberado para a próxima interna.
– Não! – socou o ar com o punho cerrado. – Eu sou melhor do que isso! – proclamou em voz alta enquanto um servente passava animadamente por ali. Ele nem a olhou duas vezes; era comum as pessoas falarem sozinhas neste lugar.
Ela girou e se arrastou pelo corredor, para longe da sala de estar, pegando no bolso do roupão o cartão que recebera do policial. Fazia três dias desde o último encontro entre os dois, e já estava na hora de ele aparecer com alguma coisa mais definida. Ao chegar à cabine telefônica, dobrou o cartão fino de impressão barata.
– Inspetor detetive Rob Blakemore – murmurou ela.
Por um segundo pensou na mulher não identificada que viera procurá-la meses antes. A mulher fingira ser assistente social, mas Celia Burrows percebera o disfarce e deduzira quem era. A mulher era a mãe biológica de Will e o acusava de assassinar o irmão dela. Mas essa alegação absurda, fosse ou não verdadeira, não era a principal preocupação da sra. Burrows. Estava mais preocupada com outras duas questões. Não entendia por que a mulher esperara até então para aparecer – esperara até depois de Will ter sumido. E a segunda questão era que sra. Burrows não conseguira deixar de ficar impressionada com a paixão que a mulher demonstrara. Descrevê-la como compulsiva seria subestimar a realidade.
No fim das contas, fora isso que abalara sra. Burrows de seu mundo seguro e indolente, como uma lufada de vento frio de um país desconhecido. Naqueles breves momentos com a mãe biológica de Will, ela tivera o vislumbre de algo muito distante da vida de segunda mão que a televisão lhe proporcionava… algo demasiado real, próximo e irresistível.
Ela colocou o cartão de crédito no telefone e discou o número.
Como era fim de semana, era previsível que o inspetor Blakemore não estivesse em sua sala. Apesar disso, sra. Burrows deixou um recado longo e desconexo com a pobre coitada que teve o azar de atender ao telefonema.
– Delegacia de Highfield. Como posso ajud…
– Sim, aqui é Celia Burrows e o inspetor Blakemore disse que viria me ver na sexta e não veio, então quero que ele me ligue sem falta na segunda, porque ele disse que ia analisar a gravação de circuito interno que levou com ele e tentar conseguir uma imagem decente da cara da mulher, e a partir disso ele vai obter uma representação artística, que ele pode distribuir pela rede interna da polícia na esperança de que alguém consiga identificá-la, e ele também queria pensar em uma cobertura da mídia e como isso poderia ser útil e, aliás, se não entendeu quando eu disse da primeira vez, meu nome é Celia Burrows. Adeus.
Sem nem respirar direito ou dar à mulher o tempo de dizer uma palavra que fosse, sra. Burrows bateu o fone no gancho.
– Que bom – ela se parabenizou, e ia retirar o cartão de crédito. Mas parou para pensar por um segundo, depois discou o número da irmã.
– Está tocando! – disse Celia Burrows. Isto em si era uma novidade, porque a linha ficara muda por vários meses, o que provavelmente queria dizer que a irmã mais uma vez se esquecera de pagar a conta.
O telefone ainda tocava, mas ninguém atendia.
– Atenda, Jean, atenda! – gritou sra. Burrows no fone. – Onde você est…
– Alô – atendeu uma voz enfadada. – Quem é?
– Jean? – perguntou sra. Burrows.
– Não conheço nenhuma Jane. Deve ter discado o número errado – disse tia Jean. Sra. Burrows ouviu um mastigar, como se a irmã estivesse comendo uma torrada.
– Escute, aqui é a C…
– Não sei o que está vendendo, mas não preciso de nada!
– Nãããão! – gritou Celia Burrows quando a irmã desligou na cara dela. Ela afastou o telefone da cabeça e olhou para ele, furiosa. – Jean, sua vaca idiota! – Ela estava a ponto de rediscar quando viu a forma magra como uma vara da enfermeira-chefe andando agitada pelo corredor.
Sra. Burrows colocou o fone no gancho, tirou o cartão da fenda, depois postou-se na frente da mulher grisalha. Num impulso momentâneo, decidiu o que tinha de fazer.
– Estou indo embora.
– Ah, sim? E por quê? – perguntou a enfermeira-chefe. – Por causa da morte da sra. L?
Apesar de ser pouco característico da sra. Burrows, ela pareceu ficar sem palavras. Abriu a boca, mas não falou nada ao se lembrar da paciente que contraíra o Ultramicróbio, um vírus misterioso que espalhara-se pelo país e pelo resto do mundo. Embora a maioria das pessoas ficasse de cama por uma ou duas semanas com conjuntivite e infecções na boca, o vírus de algum modo entrara no cérebro da sra. L e a matara.
– Sim, acho que pode ser parte do motivo – admitiu. – Quando ela morreu tão de repente, percebi que a vida é valiosa e o quanto sinto falta dela – disse por fim.
A enfermeira-chefe inclinou a cabeça solidariamente.
– E depois de todos esses meses sem nenhuma notícia de meu marido e de meu filho, acabei me esquecendo de que ainda me resta um membro da família… minha filha, Rebecca – disse sra. Burrows. – Ela está na casa de minha irmã, sabe, e há meses não falo com ela. Sinto que devo ficar com minha filha. Ela deve estar precisando de mim.
– Compreendo, Celia. – Assentindo, a enfermeira-chefe sorriu, ajeitando o cabelo grisalho e crespo que se juntava em um coque imaculado.
Sra. Burrows também sorriu. O que a enfermeira-chefe não precisava saber era que de jeito nenhum ia deixar inteiramente a cargo da polícia encontrar seu marido e filho desaparecidos. Estava convencida de que a mulher não identificada que a procurara era a chave para o que estava acontecendo, e podia até ser a sequestradora de Will. A polícia insistia em dizer-lhe que estavam “no caso” e “fazendo tudo o que podiam”, mas sra. Burrows estava decidida a dar início às próprias investigações. E não podia fazer isso ali, apenas com um telefone público a sua disposição.
– Sabe que é meu trabalho aconselhá-la a falar com seu terapeuta antes de ir embora, mas… – disse a enfermeira-chefe, olhando o relógio de pulso –, só poderia ser na segunda-feira e vejo que você já se decidiu. Vou pegar os formulários de alta em minha sala agora para você assinar. – Ela se virou para o corredor e parou. – Devo dizer que vou sentir falta de nossos papinhos, Celia.
– Eu também – respondeu sra. Burrows. – Talvez eu volte um dia desses.
– Espero que não, para seu próprio bem – disse a enfermeira-chefe, seguindo seu caminho.
– Temos de achar Elliott – disse Chester, dando alguns passos relutantes.
– Espere um minuto. – Will começou a erguer um braço, depois gemeu como se sentisse muita dor.
– O que foi? – perguntou Chester.
– Meus braços, ombros, mãos – Will se queixou. – Tudo dói pra diabo.
– Nem me fale – disse Chester, enquanto o amigo tentava erguer o braço até o pescoço com outro gemido reprimido.
– Quero ver se isso ainda funciona. – Will começou a desembaraçar o dispositivo de visão noturna que fora empurrado para baixo de seu pescoço durante a queda.
– A lente de Drake? – disse Chester.
– Drake! – Will ofegou, parando de pronto o que fazia. – Lembra do que as Rebeccas disseram… Acha que, pela primeira vez na vida, elas falaram a verdade?
– O que… Que não foi nele que você atirou? – perguntou Chester, hesitante. Era a primeira vez que falava com Will sobre o tiro na Grande Planície e ficou nitidamente apreensivo com isso.
– Chester, não sei quem os Limitadores estavam torturando, mas acho sinceramente que errei o tiro por mais de um quilômetro.
– Ah – murmurou Chester, enquanto Will ficava pensativo.
– Se eles tivessem apanhado ou matado Drake, as Rebeccas teriam esfregado isso na minha cara – raciocinou Will.
Chester deu de ombros.
– Talvez ele não tenha escapado e tenha sido capturado em algum lugar. Talvez seja apenas outra mentirinha nojenta das duas.
– Não, não é o que eu acho – disse Will com os olhos brilhando de esperança. – O que elas ganhariam mentindo sobre isso? – Ele olhou para Chester. – Então, se Drake sobreviveu à emboscada… e de algum modo fugiu dos Limitadores… onde será que está agora?
– Quem sabe esteja entocado em algum lugar da Grande Planície? – sugeriu Chester.
– Ou foi à Crosta. Não me pergunte por quê, mas tenho a sensação de que ele pode ir à superfície sempre que quiser.
– Bom, onde quer que esteja, com a ajuda dele, agora podemos conseguir. – Chester suspirou, olhando a escuridão. – Eu queria que ele estivesse aqui com a gente.
– Eu não desejaria isso a ninguém – declarou Will com seriedade, resmungando ao colocar o dispositivo no rosto. Posicionou a alça sobre a testa e apertou, depois ajeitou a lente articulada para que ficasse bem sobre o olho direito. Descobriu que o cabo tinha se desconectado da pequena unidade retangular no bolso da calça e conectou-o novamente antes de ligar o dispositivo. – Até agora, tudo bem – suspirou enquanto a lente começava a brilhar com uma iridescência laranja e branda.
Fechando o olho esquerdo, olhou através do dispositivo, esperando que a imagem se estabilizasse depois de um chiado de estática.
– Acho que está bom… Sim, está bom… funciona – disse a Chester ao se colocar de pé. O dispositivo revelava toda a extensão da plataforma de fungo, como se estivesse banhada em uma luz cítrica.
– Meu Deus, Chester, você está muito esquisito – ele riu enquanto avaliava o amigo alaranjado pela lente. – Parece um pouco com uma laranja meio podre… com um cabelo afro!
– Não se preocupe comigo… – disse Chester com impaciência. – Só me diz o que está vendo aí.
– Bom, este lugar é plano e bem grande – observou Will. – Parece um pouco com… Bom… – Ele hesitou, procurando por uma comparação. – Como se estivéssemos numa praia logo depois do recuo da maré. Meio liso, mas com umas dunas.
Eles estavam em um platô suave que talvez tivesse o tamanho de dois campos de futebol, embora fosse difícil saber precisamente até onde se estendia.
Will localizou uma grande seção de pedra a pouca distância e, com vários passos largos, saltou para lá. Com a força gravitacional reduzida, isso não lhe exigiu nenhum esforço.
– É, acho que estou vendo a beira bem ali… a mais ou menos trinta metros. – Dessa posição elevada, ele só conseguia distinguir onde terminava a formação de fungo. Mas a lente lhe dava a capacidade de ver muito além, até o vazio titânico do próprio Poro. Ele até conseguia distinguir sua parede mais distante, que parecia escarpada e brilhava como se corresse água por ela. – Meu Deus, Chester, a gente caiu num tremendo buraco! – cochichou Will, enquanto a visão lhe proporcionava a escala do Poro. Ocorreu-lhe que ver a face do monte Everest pela janela de um avião devia ser assim.
Depois Will voltou sua atenção para o que estava no alto.
– Acho que temos outra elevação bem aqui em cima. – Chester semicerrava os olhos para o que o amigo olhava, mas não conseguia enxergar nada pelo denso manto de trevas que envolvia a tudo. – Não é grande como esta em que estamos – Will informou. – E tem buracos. – Enquanto a examinava, ele se perguntou se seriam o resultado da queda de rochedos e pedras.
– Mais alguma coisa? – perguntou Chester.
– Peraí – disse Will ao mover a cabeça para ter uma visão melhor.
– Sim? – pressionou Chester. – O que você está…?
– Fica quieto por um segundo, por favor? – disse Will distraidamente, quando uma série de objetos atraiu sua atenção. Eram regulares e ficava óbvio que não haviam se formado naturalmente, nem mesmo pelas estranhas forças da natureza subterrânea que nunca parava de surpreendê-lo. Simplesmente não batia. – Tem alguma coisa muito esquisita ali em cima – disse ele, apontando. – Ali, bem na borda da plataforma.
– Onde? – perguntou Chester.
Vários segundos se passaram enquanto a visão que Will tinha através da lente chiava de estática e voltava a clarear.
– É, tem um monte dessas coisas. Parecem… – ele se interrompeu, inseguro de si mesmo.
– E então? – Chester o incitou.
– Pelo que posso ver, podem ser redes, numa espécie de moldura – disse Will. – O que significa que talvez a gente não esteja sozinho aqui embaixo – acrescentou ele –, por mais longe que tenhamos caído.
Chester absorveu a informação e falou sem pensar.
– Acha que são os Styx? – De repente apavorou-se com a possibilidade de que eles pudessem estar em perigo de novo.
– Não sei, mas tem… – começou Will, depois sua voz murchou.
– O quê? – perguntou Chester.
Quando Will finalmente voltou a falar, Chester teve dificuldade de ouvir.
– Acho que tem um corpo numa delas – murmurou ele.
Imaginando o que viria depois e vendo que Will começava a tremer, Chester não disse nada.
– Ah, meu Deus. Acho que é o Cal ali em cima – disse Will, encarando apavorado o corpo esparramado na rede que Chester não tinha como enxergar.
– Hum, Will – disse Chester, hesitante.
– Hein?
– Pode não ser o Cal… Talvez seja a Elliott.
– Pode ser, mas parece o Cal – disse Will com dificuldade.
– Quem quer que seja, ainda precisaremos procurar pelo ouro. Se não é Elliott, ela ainda pode estar… – Chester engoliu a última palavra, mas Will estava consciente demais do que ele pretendia dizer.
– Viva – disse ele. Ele girou para olhar para Chester, respirando acelerado de emoção. – Meu Deus, olha só a gente! Estamos falando de vivos e mortos como se discutíssemos o resultado de uma porcaria de prova. Tudo isso está virando nossa cabeça.
Chester tentou interromper, mas Will não seria detido.
– Meu irmão deve estar lá em cima, e está morto. E meu pai, o tio Tam, a vovó Macaulay… Todos também estão mortos. Todo mundo morre a nossa volta. E nós continuamos como se isso fosse muito normal. No que nos transformamos?
Para Chester, era o bastante. Ele gritou com Will.
– Não há nada que possamos fazer por qualquer um deles agora! Se as gêmeas tivessem colocado aquelas mãos fedorentas em nós, todos estaríamos mortos e não teríamos essa conversa idiota! – Sua voz elevada ressoou no lugar enquanto Will o olhava, assustado com a raiva súbita do amigo. – Agora desce daí e me ajuda a achar a única pessoa que pode nos levar para casa!
Will olhou o amigo em silêncio e pulou.
– É, tem razão – disse ele. Depois, acrescentou: – Como sempre.
Enquanto eles andavam pelo fungo, a perspectiva de realmente achar Elliott os enchia de um pavor incessante.
– Foi aqui que eu caí – disse Chester, apontando o lugar onde tinha acordado. Agachando-se, ele começou a puxar a corda que, a não ser que tivesse sido cortada, levaria a Elliott. Ao puxar, ela rompeu uma linha na superfície do fungo e os dois a seguiram, com relutância. Antes que dessem por si, encontraram Elliott. Tinha caído de lado, como Will, e sua forma leve penetrara profundamente no fungo.
– Ah, não. Acho que a cara dela está enterrada na coisa – disse Chester. Ele se abaixou e tentou puxar a cabeça para que o nariz e a boca não ficassem obstruídos pelo fungo. – Rápido! Talvez ela não consiga respirar!
– Ela está…? – perguntou Will, do outro lado do corpo.
– Não sei – respondeu Chester. – Me ajuda a tirá-la daqui!
Chester começou a puxá-la e Will a segurou por uma das pernas. Com um estalo alto, ela se soltou.
– Meu Deus do céu! – gritou Chester ao ver o estado do braço de Elliott. Estava claro que ela se recusara a soltar o rifle, e as consequências haviam sido nefastas quando bateu no fungo. A alça do rifle se enrolara no antebraço, que estava terrivelmente torcido. – O braço está um horror.
– Sem dúvida quebrou – concordou Will, limpando a gosma de fungo de seu rosto e tirando as fibras restantes da boca e das narinas. – Mas ela está viva. Ainda respira – disse a Chester, que não parecia capaz de tirar os olhos do braço deformado.
Will foi para o outro lado de Elliott e, afastando o amigo, delicadamente tirou a alça do rifle do braço dela.
– Cuidado – Chester o alertou num grasnado.
Will lhe entregou o rifle, depois desamarrou a corda na cintura de Elliott e extraiu a mochila de suas costas, retirando primeiro o braço intacto das alças.
– Vamos levá-la para um abrigo – disse ele, levantando a menina e carregando-a para a caverna.
Eles a deitaram em algumas roupas de reserva. Ela respirava regularmente, mas estava fria.
– O que vamos fazer? – perguntou Chester, ainda olhando o braço torcido.
– Não sei. Esperar que ela acorde, eu acho – respondeu Will com um dar de ombros, depois suspirou. – Vou procurar o Cal – disse abruptamente.
– Will, por que não o deixa em paz? – sugeriu Chester. – Agora não faria nenhuma diferença.
– Não posso fazer isso… Ele é meu irmão – disse Will, saindo da caverna.
Will andou por ali por um tempo, examinando a saliência diretamente acima até localizar um dos buracos maiores. Depois se preparou e pulou. Em qualquer outra ocasião, o fato de disparar pelo ar como uma bala de canhão humana o teria enchido de assombro. Mas agora ele não deu a isso nada além de uma atenção passageira – o que estava prestes a fazer tomava todo o resto de sua mente.
Ao disparar pelo buraco na plataforma, ele percebeu que tinha exagerado e que seu impulso o levava para muito longe. Estava numa trajetória que o colocava muito acima da saliência.
– Aaaaaaaah! – gritou, alarmado, e girou os braços numa tentativa de descer novamente.
E então sua trajetória mudou de direção e ele começou a descer. Viu que seguia para um trecho que tinha estruturas parecidas com mastros que se erguiam, altivas, da superfície do fungo. Eram caules grossos de uns três a quatro metros de altura, com o que pareciam bolas de basquete nas pontas. Uma voz de uma parte remota de seu cérebro lhe informou prestativamente que aqueles eram “corpos de frutificação” – ele parecia se lembrar de que eram os órgãos reprodutores dos fungos. Mas não era hora de se demorar em lembranças de suas aulas de biologia. Ao voar diretamente para o meio deles, Will se segurou com desespero nos caules elásticos. Embora se quebrassem em sua base ou as bolas de basquete das pontas se soltassem e zunissem para todo lado, pelo menos ajudaram a desacelerar seu progresso.
Quando o último caule saiu de suas mãos e ele desobstruiu o trecho, finalmente tocou no chão. Mas não foi melhor – estava esquiando de joelhos pela superfície gordurosa num rumo que o levava para a beirada. Não havia mais corpos de frutificação no caminho para ajudá-lo, então ele se atirou de peito, cravando os dedos e a ponta das botas na pele do fungo. Berrou, imaginando que estava prestes a disparar pela beirada de curva suave da plataforma e cair no Poro, mas conseguiu parar no último minuto.
– Jesus, essa foi por pouco – Will bufou e ficou imóvel. Foi por pouco mesmo – sua cabeça tinha passado tanto da beirada que ele via claramente a outra saliência mais abaixo, de onde tinha saído.
Recuou e ficou deitado ali por um tempo.
– Vamos lá – disse por fim, levantando-se. Caminhou de forma muito cautelosa e controlada até as molduras. De maneira nenhuma ia fazer algum movimento precipitado depois desse último passeio.
As molduras eram estruturas retangulares, mais ou menos do tamanho das traves de um gol, feitas do que pareciam troncos de árvores novas, com uns dez centímetros de diâmetro, unidos em cada canto. Se eram feitas de madeira – e ele não tinha certeza disso – era uma madeira escurecida e carbonizada, que dava a impressão de ter sido incendiada. Uma trama de fios grossos, tecidos com folga, formavam a rede presa entre as molduras. Eram ásperos e fibrosos ao toque, e ele desconfiava de que eram da casca de alguma planta, possivelmente até do próprio fungo gigante. Ao andar pela fila de redes, ele via que muitas estavam rasgadas, mas aquela onde Cal estava pendurado parecia num estado razoável.
Parando diante do corpo do irmão, ele se obrigou a olhar, mas virou o rosto rapidamente. Mordeu o lábio, agitado, perguntando-se se devia voltar até Chester. Afinal, nada que fizesse mudaria alguma coisa. Ele poderia simplesmente deixar o corpo onde estava.
Will ouviu a voz de trovão de Tam com tanta clareza que parecia que o homem enorme estava bem ao lado dele. “Irmãos, ah, irmãos, meus sobrinhos.” Tam pronunciara essas palavras quando Will e Cal, depois de tantos anos separados, haviam se reencontrado na casa da família Jerome na Colônia.
E, pouco antes de Tam sacrificar a vida para que Will e Cal pudessem escapar, Will lhe prometera cuidar de Cal.
– Eu sinto tanto, Tam – disse Will em voz alta. – Não consegui cumprir minha promessa. Eu… Eu o decepcionei.
“Você fez o melhor que pôde, meu garoto. Não podia ter feito mais nada”, veio a voz grave de Tam. Embora Will soubesse que não passava de sua imaginação desenfreada, a voz lhe deu algum conforto.
Ainda assim, ele não se aproximou do corpo de Cal, e considerou deixá-lo onde estava.
– Não, não posso fazer isso. Não seria direito – disse a si mesmo. Com um suspiro, deu alguns passos para a rede e começou a testar se a moldura aguentaria seu peso. Ela rachou um pouco enquanto ele a pisava, mas parecia firmemente presa ao fungo. Will ficou de quatro e se moveu com cuidado pela rede. Cal estava em um dos cantos mais distantes. As tiras de fibra se deslocavam sob o peso de Will e ele seguiu com um cuidado ainda maior. Era assustador porque a moldura se projetava bem acima do completo vazio. Tentou se tranquilizar raciocinando que, mesmo que a rede cedesse, ele simplesmente cairia na plataforma de baixo. Se tivesse sorte.
Aproximou-se mais do corpo do irmão. Cal estava caído de frente – Will ficou muito agradecido por ser poupado da visão de seu rosto. A corda ainda estava amarrada em sua cintura e Will a segurou, girando a ponta solta. Um exame rápido revelou que tinha sido cortada. Para se distrair da monstruosidade da visão do cadáver de seu irmão a apenas centímetros de distância, Will reconstituiu o que poderia ter acontecido. O corpo de Cal evidentemente fora apanhado na rede e os outros, ele, Chester e Elliott, haviam girado feito uma corrente humana para a saliência de baixo. Cal agira como âncora, e podia muito bem ter salvado a vida de todos, evitando que caíssem ainda mais.
Will segurava a ponta esfarrapada da corda sem ter a menor ideia do que fazer. Com a cabeça e uma perna em ângulos tão estranhos, o irmão parecia pequeno e alquebrado. Will estendeu a mão e tocou cautelosamente a pele do braço do menino com a ponta de um dos dedos, depois rapidamente retirou a mão. Estava frio e duro, não se parecia nada com Cal.
A cabeça de Will estava cheia de imagens nítidas de incontáveis momentos, como várias cenas de um filme cortadas ao acaso. Lembrava-se da risada de Cal, olhando o Vento Negro pela janela do quarto. Uma enxurrada de lembranças dos meses que tinham passado juntos na Colônia seguiu esta, inclusive as do comecinho, quando Cal pegara Will no Cárcere para levá-lo para casa e conhecer a família que ele nem sabia que existia.
– Eu decepcionei todo mundo – disse Will num grunhido tenso e abafado, pelos dentes cerrados. – O tio Tam, a vovó Macaulay, até minha mãe verdadeira – disse, lembrando-se de que haviam tido de deixar Sarah, mortalmente ferida, no túnel ventoso. – E agora você, Cal – disse ele ao corpo, que balançava muito levemente na brisa que vinha em pequenas lufadas. Will estava tão fora de si de tristeza que as lágrimas jorravam em torrentes.
– Me perdoa, Cal – ele soluçava sem parar. Ouviu um uivo baixo e, piscando para se livrar das lágrimas, espiou a saliência logo abaixo. Os olhos de Bartleby brilharam como dois pratos de cobre polidos, fixos em Will. Ele não estava sozinho ao prantear a morte do menino.
E agora, o que vou fazer?, pensou consigo mesmo, depois fez a pergunta em voz alta.
– Me diga o que fazer, Tam! – Desta vez sua imaginação não lhe deu nenhuma resposta, mas ele sabia, por instinto, o que o tio teria feito na mesma situação. E Will precisava ser prático como ele, mesmo que fosse a última coisa que fizesse. – Veja se há algo de que precisamos – murmurou e, sem perturbar o corpo de Cal, começou a procurar. Encontrou o canivete do garoto, um saco de amendoins e alguns globos. Em um dos bolsos, achou uma barra de Caramac fechada, mas amassada. Estava claro, pelo modo como tinha derretido, que o garoto a carregara por algum tempo.
– O meu preferido! Cal, você guardou para mim! – disse Will, sorrindo em seu pesar.
Enfiou a barra no bolso do casaco e, sem querer virar o corpo, cortou a alça do cantil que estava no ombro de Cal e a amarrou de novo para poder carregar. Depois desafivelou as alças da mochila do irmão e a retirou. Ao erguê-la de um lado, percebeu que havia buracos nela. Muitos buracos pequenos haviam sido perfurados na lona e, ao tocar um deles, Will notou sobressaltado que suas mãos estavam cobertas de uma coisa escura e pegajosa. Era o sangue de Cal. Ele limpou-as rapidamente nas calças. Foi o fim – de jeito nenhum ia continuar uma busca pelo corpo.
Permaneceu com Cal por um tempo, simplesmente olhando para ele. De vez em quando, pedaços de pedra passavam assoviando pelo meio do Poro em uma saraivada, ou um turbilhão repentino de água em jatos variados disparava por ali, cintilando como estrelas cadentes. A não ser por essas interrupções ocasionais, tudo era muito silencioso e quieto na beirada do fungo.
Então veio o baque súbito de algum lugar na plataforma atrás dele. Toda a saliência pareceu entortar e vibrar, e a rede balançou.
– Mas o que foi isso? Uma pedra? – exclamou Will, olhando em volta, nervoso. Rapidamente concluiu que um objeto grande devia ter batido na superfície do fungo e o choque do impacto ondulara por toda a plataforma. Foi o bastante para obrigá-lo a se mexer de novo – ali não era lugar para se ficar por muito tempo. Imediatamente, decidiu o que faria. Ele se preparou, segurando a rede com as duas mãos, e usou o pé para manobrar Cal para a beirada da moldura.
Olhando o Poro, Will tremeu ao imaginar a si mesmo caindo nele. Depois olhou para o corpo de Cal.
– Você jamais gostou de altura, não é? – sussurrou.
Ele respirou fundo e gritou “Adeus, Cal!”. Empurrando com os dois pés, impeliu o corpo do irmão pelo precipício. Observou quando o corpo disparou pelo Poro, sem qualquer peso ao cair. Como um enterro no espaço, ele rolou lentamente e sem parar pela gravidade baixa, seguido pela corda. Só começou a virar de ponta-cabeça quando já estava a certa distância. Depois sua trajetória desceu e ele caiu e caiu, e Will viu que se tornava um pontinho mínimo, finalmente tragado pela melancólica escuridão abaixo.
– Adeus, Cal – gritou Will mais uma vez, a voz também se perdendo na imensidão do Poro, com um eco muito fraco do outro lado. Bartleby soltou um gemido agudo e compadecido, como se soubesse que seu dono rumava para o lugar de descanso final.
Tomado das sensações mais desoladoras de desespero e perda, Will se virou e começou a subir a rede para voltar à saliência do fungo, puxando a mochila consigo. De repente, ficou completamente imóvel.
Fechou os olhos e comprimiu a mão na testa, como se tivesse sentido uma dor penetrante. Mas não era esse tipo de dor.
– Não, cala a boca – ele arquejou. – Não!
Algo em sua cabeça lhe dizia que ele devia ter ido atrás do irmão, dizia que ele também devia saltar. No início pensou que era sua forte sensação de culpa pela morte prematura de Cal – sua culpa por não ter salvado o irmão, por não ter agido de outra forma. Também lhe ocorreu que ele de repente desenvolvera um medo de altura, como Cal. Mas logo ficou evidente que não era nenhuma dessas coisas. Era algo inteiramente diferente. A voz em sua cabeça tornara-se um impulso tão dominador que Will mal conseguia resistir.
Como se estivesse fora de seu corpo e olhasse calmamente, Will tinha a imagem nítida de si mesmo pulando. Da perspectiva dessa terceira pessoa, sem qualquer sentimento, sem qualquer emoção, fazia muito sentido atirar-se pela beirada. Seria a resposta a tudo, um final perfeito para tanta infelicidade e incerteza. Ainda paralisado na rede, Will refreava o impulso, tentando freneticamente se opor a ele.
– Pare com isso, idiota! – pediu ele por entre os lábios apertados. Não sabia o que acontecia com ele. A disputa propagava-se em sua cabeça e todo seu corpo tremia. O impulso assumia o controle de seus membros, fazendo-os se mexer, e ele se virava, lenta mas firmemente, para o abismo. Porém, Will ainda parecia ter alguma autoridade e manteve as mãos cerradas – elas se agarravam à rede com tanta força que doíam, mas pelo menos o ancoravam ali. Pelo menos ainda era capaz de fazer alguma coisa para impedir essa loucura.
– Pelo amor de Deus! – gritou consigo mesmo, tremendo mais do que nunca. De repente pensou em Chester, esperando por ele. Não sabia se fora por isso ou porque vencera a batalha feroz em sua cabeça, mas descobriu que seus membros estavam sob controle e reagiam a ele novamente. Soltou a rede e recuou da saliência, engatinhando numa pressa frenética, com medo de que sua vitória fosse só temporária.
Continuou recuando e ganhando distância antes de se permitir se colocar cautelosamente de pé. Estava ensopado de um suor frio e morto de medo. Não conseguia entender o que lhe dera – nunca fora submetido a um impulso tão irracional, um impulso para tirar a própria vida.
Embaixo, Chester estivera limpando o rosto de Elliott com uma das camisas de reserva. Depois, enquanto umedecia seus lábios com um pouco de água, ela murmurou alguma coisa. Ele quase deixou cair o cantil. Os olhos de Elliott se entreabriram e ela tentou falar.
– Elliott – disse Chester, segurando sua mão.
Ela ainda tentava dizer alguma coisa, mas sua voz era tão fraca que mal podia ser ouvida.
– Não tente falar. Está tudo bem… Você só precisa descansar – disse ele no tom mais tranquilizador que pôde, mas ela torceu a boca como se estivesse com raiva. – Que foi? – perguntou ele.
Seus olhos se fecharam e ela perdeu novamente a consciência.
Neste momento, Will entrou na caverna, passando pela cortina de água.
– Elliott acordou por um segundo… Disse algumas palavras – contou-lhe Chester.
– Que bom – respondeu Will sem nenhum interesse.
– Mas ela apagou de novo – disse Chester. Ele percebeu a alteração que se dera no amigo. – Will, você não parece muito bem. Foi muito ruim… com Cal?
Will se mexia como se estivesse completamente esgotado e prestes a cair.
– Elliott vai ficar bem, Chester. Ela é dura na queda – respondeu Will, fugindo da pergunta do amigo. – Vamos dar um jeito no braço dela – falou, enquanto mexia na mochila de Cal. Jogou um cantil de água para Chester, depois um pacote de amendoins. – É melhor colocar isso em nossa provisão de comida – disse, depois cambaleou para a parede e escorregou por ela.
Bartleby passou pela cascata e observou cada um dos meninos com seus olhos sombrios, como se quisesse ter certeza de que nenhum deles era Cal. Sacudiu as gotas de água de sua pele arriada, depois foi diretamente para Will, enroscando-se ao lado dele com a cabeça imensa pousada em sua coxa. Will afagou distraidamente a imensa testa do felino – era a primeira vez que Chester o via mostrar algum afeto real pelo animal.
– Você não me respondeu – disse Chester. – E Cal?
– Eu o vi – respondeu o amigo inexpressivamente, antes de fechar os olhos com um longo suspiro, deixando Chester ainda acordado.
Capítulo Três
Ao virar num canto e entrar numa caverna, Drake parou ao ver um único soldado.
– Maldição! – resmungou, voltando em silêncio para o túnel.
Drake reconheceu que o soldado de uniforme verde-acinzentado era da Divisão Styx. Não era rotina estes homens serem posicionados nas Profundezas; seu principal papel era o de patrulhar as fronteiras da Colônia e vigiar a Cidade Eterna. Mas no último mês, ele disse a si mesmo, nada fora rotina. Não só chegavam carregamentos dos temíveis Limitadores na Estação dos Mineradores, como alguns regimentos da Divisão também tinham sido destacados para dar apoio a eles. Drake nunca vira tanta atividade.
Agachando-se bem, Drake espiou pelo canto para dar mais uma olhada no soldado. O homem estava de costas para Drake e pousava a coronha do rifle no chão. O soldado não estava nada atento, mas ainda assim seria arriscado demais atacá-lo. Drake fez uma careta. Isto era uma verdadeira chateação. Custaria a ele pelo menos mais uma hora se fosse obrigado a voltar e pegar outro túnel de lava para chegar à Grande Planície.
De repente, o som de um motor encheu a caverna com um estrondo. Drake se arrastou um pouco mais para ver o que estava acontecendo. Havia uma das imensas máquinas de escavação dos Coprólitos logo depois do soldado, jorrando dos vários escapamentos na traseira uma fumaça que formava uma cortina negra em que Drake só conseguia distinguir algumas formas bulbosas. Eram Coprólitos. Então o soldado supervisionava uma operação de mineração.
Drake sabia que era fundamental destruir as celas de teste do Bunker antes que os Styx chegassem lá, e com a maior rapidez que pudesse. Não tinha alternativa, precisava livrar-se do soldado.
Levantou-se devagar e, mantendo-se junto da parede da caverna, esgueirou-se até o homem. Ajudado pelo ronco do motor e pelo fato de que a atenção do soldado estava num Coprólito que saía da escavadeira, Drake conseguiu chegar ao homem sem ser detectado. Derrubou-o com um único golpe na nuca. Drake de imediato agarrou o rifle do soldado. Puxando o ferrolho para saber se a arma estava carregada, ele se permitiu sorrir. Sentia-se melhor, agora que tinha uma arma decente nas mãos e não precisava depender de suas granadas de implosão básicas.
Enquanto passava o rifle para o ombro, ele se virou para os quatro Coprólitos parados em grupo, não muito longe de onde o soldado Styx tinha caído. Como era esperado, não mostraram a menor reação ao que Drake acabara de fazer. Estavam completamente imóveis, com a exceção daquele que fazia sim com a cabeça em um ritmo lento, muito parecido com a copa de uma árvore pega pela brisa. Drake sempre se maravilhava com a passividade e o distanciamento daqueles seres gentis. Eram mestres da mineração, labutando para abastecer a Colônia de carvão, ferro e matérias-primas vitais, e em troca os Styx os tratavam como escravos, jogando-lhes uma ou outra carga de frutas e vegetais e fornecendo-lhes globos luminosos em número apenas suficiente para que ficassem vivos. Esses globos eram encaixados em volta das aberturas dos olhos em seus empoeirados trajes cor de cogumelo, e assim era possível saber precisamente para onde eles olhavam. E nesse momento olhavam simplesmente para o Limitador inconsciente, Drake ou a imensa máquina em que aparentemente estavam prestes a embarcar.
– Fujam daqui, rapazes – gritou Drake acima do barulho da máquina. – Voltem a sua vila. Os Styx saberão que um renegado fez isso, então não haverá represália contra vocês – disse, agitando a mão para o soldado inconsciente. – Vão para casa!
Drake se voltou para o veículo a vapor. Era uma fera imensa com uma carroceria cilíndrica construída com placas grossas de aço blindado. Impelida pelos três imensos cilindros que tinha abaixo, na frente havia uma enorme roda de corte medindo cerca de dez metros de diâmetro, com pontas de diamante que permitiam à máquina abrir um túnel nas rochas mais duras.
A porta traseira estava aberta. Drake a olhava pensativo, e uma ideia começou a se formar. Precisava chegar com urgência ao Bunker, onde sabia que ficavam as celas de teste, e levaria algum tempo para completar o trajeto a pé.
– Será? – disse em voz alta. Embora nunca houvesse pilotado um desses veículos, já o vira várias vezes por dentro e os controles não pareciam muito complexos. E este estava ligado e pronto para andar – a equipe de quatro Coprólitos claramente estava prestes a partir quando ele nocauteou o supervisor Styx.
Foi até a porta e, entrando, olhou o interior. Era todo feito de metal nu e batido, escuro de sujeira exceto pelas áreas usadas com regularidade, que brilhavam como aço escovado. Seus olhos caíram nas alavancas de controle e nos vários mostradores ao lado delas.
– Vale a pena tentar – disse, e estava prestes a fechar a porta quando dedos bulbosos seguraram a beira. A porta foi puxada para trás. Um Coprólito estava ali, seus fachos oculares brilhando diretamente para Drake.
– Mas o quê! – exclamou Drake.
Isso era muito incomum. Embora a figura diante dele fosse sinistra, com seus membros alongados e olhos cintilantes, Drake não se sentia ameaçado. Nem passava por sua cabeça que um Coprólito pudesse se voltar contra ele. Drake os conhecia muito bem – eram incapazes de machucar alguém. De qualquer forma, ele fizera o que pôde para ajudá-los nesses anos todos, passando-lhes quaisquer globos luminosos com que topasse em troca de comida. Ele e os Coprólitos sabiam que esta era uma troca simbólica, porque ele não queria a comida deles, enquanto eles definitivamente precisavam de globos a mais.
Enquanto o Coprólito estava parado ali, com a mão ainda na porta, mais um dos seres estranhos se juntou a ele, depois os outros dois, de forma que toda a equipe estava presente. Como um grupo de autômatos que obedecia a um comando silencioso, todos começaram a avançar ao mesmo tempo.
– O que estão fazendo? Não é seguro para vocês aqui! – gritou Drake, mas chegou para o lado porque pareciam decididos a entrar no veículo.
Depois que o último Coprólito fechou e trancou a porta traseira, Drake viu que eles assumiam suas posições. Dois se sentaram de cada lado da porta e afivelaram os cintos de segurança. Os outros dois foram à frente do veículo e um deles se virou para Drake. Ele reconheceu o Coprólito que estava balançando a cabeça afirmativamente – era alguns centímetros mais alto do que os outros.
– Não deve ficar aqui. É arriscado demais – disse Drake, mas o Coprólito colocou a mão bulbosa no assento da direção e o girou, como se oferecesse a Drake.
Drake meneou a cabeça. Isso não tinha precedentes. Eles sempre se fechavam em seu grupo, mantendo uma neutralidade quase religiosa, e sabiam muito bem que as consequências de cooperar com um renegado seriam a morte certa e possivelmente uma retaliação contra todo seu assentamento. Esses quatro arriscavam a vida de suas mulheres e crianças. E no entanto pareciam ter decidido, em silêncio, a ajudá-lo!
Dando de ombros, Drake se sentou à direção e se ajeitou nela enquanto o Coprólito maior assumia o banco do copiloto ao lado. O segundo Coprólito se sentou atrás do que parecia, por causa do estranho mapa aberto numa prateleira diante dele e da fila de bússolas organizadas à altura da cabeça, um console de navegador.
Drake hesitou ao olhar a gama de controles, depois empurrou o maior dos pedais a seus pés. O motor acelerou, mas nada aconteceu. O Coprólito a seu lado curvou-se para empurrar e girar uma barra no painel e o veículo começou a avançar.
– Muito bem! – gritou Drake com o barulho do motor, pisando um pouco no acelerador enquanto baixava a alavanca esquerda da direção. O veículo se virava pesadamente. Com os refletores do veículo iluminando um trecho de caverna à frente, Drake o apontou para o tubo de lava que os levaria para a Grande Planície. Mal conseguia enxergar para onde ia, de olhos semicerrados para os vários centímetros de uma tela de cristal puro. A dificuldade era dupla, não só porque a tela estava muito arranhada e coberta de poeira, mas também porque sua visão era limitada pela imensa roda de diamante instalada na frente do veículo. Por várias vezes ele raspou a máquina na lateral do tubo de lava, sacudindo a si e aos Coprólitos em seus assentos.
Ao sair do tubo de lava e entrar na Grande Planície, ele pisou fundo no acelerador. O veículo arremeteu para frente – ele ficou surpreso com a velocidade com que podia atravessar o terreno lunar da planície. Mesmo com o ronco do motor, Drake ouvia pedras sendo pulverizadas pelos três cilindros sob o veículo. E pelas ondas de calor intenso em sua nuca, ele sabia que os dois Coprólitos na traseira abriam continuamente as portas da caldeira para abastecê-la de carvão.
Depois de vários quilômetros, houve um estalo agudo. Algo tinha batido na tela de cristal. Depois ele ouviu o som de novo, mas desta vez a carroceria externa foi atingida, fazendo-a soar como um sino amortecido. Drake percebeu que eles estavam sendo baleados.
À luz dos faróis, Drake via um Limitador com seu rifle de alta potência erguido. Drake riu – era como um mosquito tentando levar a melhor sobre um elefante. Puxou uma das alavancas para alterar o curso para o Limitador, que abriu fogo novamente. O adversário não pareceu mais tão confiante ao perceber que a imensa máquina vinha em sua direção e que era hora de correr. E ele correu, mudando desesperadamente de rumo, como uma lebre tentando escapar de seu predador.
Mas Drake não ia deixar que ele fugisse com tanta facilidade. Dominava as alavancas de direção e não foi difícil perseguir o Limitador que, cada vez mais frenético, tropeçou e caiu. Drake dirigiu diretamente para ele, mas no último minuto o Limitador rolou para fora do caminho do veículo. Seu rifle não teve a mesma sorte e foi esmagado contra o leito de pedra.
– Seu dia de sorte, amigo! – gritou Drake, afastando-se acelerado do Limitador ao acionar uma alavanca de direção para voltar ao rumo do Bunker.
Dois quilômetros depois, Drake teve o primeiro vislumbre da parede do Bunker e logo era tudo o que ele via pela tela – uma faixa grossa e cinza se estendendo pela planície. Ele soltou o acelerador, parando pouco antes da parede. Sem saber o que devia fazer, olhou para o Coprólito a seu lado. O homem se curvou para frente e empurrou outra barra. Todo o veículo se sacudiu enquanto a roda de corte montada em sua frente começou a girar lentamente.
As vibrações cresciam cada vez mais, tanto que a visão de Drake se turvou. Quando a roda chegava a sua rotação máxima, o Coprólito apontou para o acelerador. Drake apertou gentilmente e o veículo avançou. A roda tocou a parede de concreto, seus dentes de ponta de diamante começando a morder e cuspir imensas torrentes de pó. Fascinado, Drake observou a roda atravessar a parede como uma faca quente na manteiga. Quando os dentes encontraram o reforço de ferro por dentro do concreto, o incrível poder da roda foi plenamente revelado – pedaços imensos da parede eram simplesmente rasgados.
Precisaram de cinco minutos para penetrar a parede mais externa do Bunker, depois a roda de corte trabalhou rapidamente nas divisórias internas, cortando-as como se fossem de papel. Quando pensou que já havia avançado o suficiente, Drake conduziu o veículo para um corredor e desligou o motor. Desafivelou o cinto e foi para a porta traseira. Ao abri-la, pôde avaliar toda a extensão da devastação que o veículo tinha deixado em sua esteira. As colunas de suporte do teto foram demolidas e grandes lajes de concreto tinham caído. Pelo menos não havia como os Styx o seguirem com facilidade. Ele se virou para os Coprólitos.
– Não sei como agradecer a vocês – disse ele.
Um deles, perto da caldeira, assentiu. Drake não conseguiu reprimir um sorriso. Para um Coprólito, isso era tagarelice. Ele os saudou e desembarcou.
Não levou muito tempo para localizar o corredor das celas de teste que Cal e Elliott tinham encontrado. As fortes luzes o fizeram piscar. Em completo contraste com o restante do Bunker, que ruíra por negligência depois de décadas sem uso, a sala era limpa e incrivelmente branca. Ao passar pela área central, de cerca de vinte metros por dez, Drake podia ver que havia filas de portas pelas laterais. Uma rápida olhada pelas janelas de inspeção nestas portas revelou que não restara ninguém vivo nas celas. Cadáveres em decomposição estavam jogados em poças de seu próprio fluido. Drake balançou a cabeça. Os Styx certamente descobriram o que estavam procurando – a julgar por essas cobaias, o vírus Dominion era letal e uma ameaça verdadeira para a população da Crosta.
Ocorreu a Drake que ele podia tentar extrair de um dos cadáveres um espécime viável do vírus – armado desta amostra, seria possível preparar uma vacina, e a trama Styx seria frustrada. Mas cada uma das portas das celas estava fortemente soldada nas bordas e, a não ser que as explodisse, ele não via como poderia entrar. E se tentasse fazer isso, além do fato de que ele mesmo se infectaria, seria responsável pela liberação do vírus na atmosfera. E havia ainda o risco de que as correntes de ar o carregassem para a Crosta. Ele meneou a cabeça, abandonando apressadamente a ideia, investigando o equipamento de laboratório em uma bancada encostada na parede mais distante da sala. Não havia nada ali que se parecesse com amostras virais.
– Não há tempo – disse Drake a si mesmo, consciente de que os Styx podiam aparecer a qualquer hora. Ele usou todos os explosivos que tinha na bolsa, plantando cargas na base da porta de cada cela. Não ia se arriscar – o calor da explosão mataria quaisquer vírus que restassem e esterilizaria a área, além do fato de que as celas ficariam soterradas sob milhares de toneladas de concreto e rochas.
Ele acendeu os pavios e correu. Estava bem longe da área quando as cargas explodiram, mas ainda perto o bastante para ter o ar arrancado dos pulmões e ser derrubado no chão. Não se importava – estava aliviado por ter alcançado seu objetivo. Supondo que Sarah Jerome tivesse dado conta da única amostra restante de Dominion quando arrastara as gêmeas Rebecca para o Poro em seu ato final, agora a ameaça estava neutralizada. Isto é, neutralizada até que os Styx localizassem amostras mais letais na Cidade Eterna ou desenvolvessem uma alternativa em seus laboratórios subterrâneos.
Drake atravessou a planície a pé, levando pouco menos de dois dias para chegar à Estação dos Mineradores, onde embarcou clandestinamente em um dos vagões vazios no meio do trem. Não teve de esperar muito para partir – alguns soldados da Divisão embarcaram no vagão da guarda e o trem saiu da estação. Ele estava preparado, trazia consigo o rifle do Limitador, no caso de algum deles decidir fazer uma inspeção rápida no restante do trem, mas eles não apareceram. Era um estranho desleixo da parte dos soldados.
Quando o trem entrou na estação da Colônia, Drake nem acreditou em sua sorte. Ao sair do imenso vagão e cair junto ao trilho, ficou assombrado ao ver que o portal estava completamente desguarnecido. Foi brincadeira de criança entrar nas ruas da Colônia, mas, chegando lá, descobriu que uma grossa fumaça preta permeava o ar. Ao entrar no amplo trecho da Caverna Sul, teve uma estranha visão. Colunas largas de fumaça subiam pelo meio, brilhando com um vermelho feroz que iluminava o dossel de pedra no alto.
– Os Cortiços – disse Drake consigo mesmo. Estava claro que acontecia algo devastador, e ele precisava ver com os próprios olhos. Aproximou-se sorrateiramente da área até chegar à periferia. Ali viu legiões de soldados da Divisão Styx brandindo tochas acesas. Viu figuras lutando freneticamente para sair dos Cortiços e passar pelo sólido cordão de soldados e ouviu os gritos dos que eram abatidos. Repetidas vezes os desesperados moradores dos Cortiços, com as roupas em chamas e os rostos escurecidos de fumaça, tentavam passar. Mas a cada vez que um deles saía de uma viela, era brutalmente abatido por um soldado, que brandia a foice como um lavrador numa antiga colheita de milho.
Outros Styx com seus mantos pretos e grossos e golas brancas andavam imperiosamente atrás das linhas de soldados, gritando ordens. A destruição sistemática dos Cortiços estava em andamento – durante séculos, os Styx tinham permitido que os rebeldes e descontentes da população da Colônia permanecessem em seu gueto fechado, mas agora evidentemente haviam tomado a decisão de erradicar esta mancha. Drake viu um prédio de quatro andares desmoronar e, na avalanche de alvenaria antiga, vislumbrou formas humanas… E, o pior de tudo, crianças. Pernas e braços pequenos agitando-se inutilmente enquanto eram esmagados pela cascata de blocos de calcário.
Ali, oculto nas sombras, este homem resistente, que sobrevivera a anos de provações nas mãos dos Styx e nas Profundezas, desmoronou e chorou. Não suportou a desumanidade do que testemunhava. E não havia absolutamente nada que um só homem contra tantos Styx pudesse fazer para deter a atrocidade.
Com o rádio berrando em uma emissora turca e o aquecedor escaldando seu interior, o táxi disparava pelas ruas. Como se o motorista soubesse a sincronização de cada sinal de trânsito, repetidas vezes conseguia se espremer pelo sinal amarelo ou mesmo assim que ficava vermelho. E ele nem pareceu perceber os vários quebra-molas das ruas, motivo pelo qual sra. Burrows quicava em seu banco como se estivesse em um camelo desembestado.
Caía uma forte chuva, mas ela abriu inteiramente a janela e meteu a cabeça pelo vão para pegar ar fresco. Enquanto saboreava a brisa e a chuva no rosto, deixou que seu olhar distraído percorresse as calçadas molhadas. Perdeu-se nas linhas e trechos de luz ali refletidas das fachadas das lojas, sem pensar em nada em particular, mas sentindo uma libertação depois do período que passou na Humphrey House.
Ela levantou a cabeça, vendo com certa surpresa onde eles estavam.
– Highfield?
– Sim, as ruas hoje estão desimpedidas – comentou o motorista.
– Eu morava aqui – respondeu ela, enquanto passavam rapidamente pelo retorno que a teria levado à Broadlands Avenue.
– Morava? – perguntou o taxista. – Não mora mais?
– Não – disse.
Ela vendera a casa em uma alta do mercado e isso lhe proporcionara uma boa soma para viver. Embora não fosse mais dona da propriedade, sentiu uma vontade inesperada de vê-la, de voltar e olhar o antigo lar pela última vez. Embora este capítulo de sua vida tivesse se encerrado, muita coisa ficou sem solução.
– Não moro mais – sussurrou sra. Burrows, dizendo a si mesma que não era hora de se permitir uma visita. Tinha problemas mais urgentes a resolver.
Eles desciam a High Street, onde ficavam as lojas que ela conhecia tão bem. Viu a lavanderia e a banca em que comprava seus jornais. Depois viu que a vitrine do Clarke’s estava coberta de tapumes, como se a loja não funcionasse mais. A antiquada loja de frutas e legumes era a favorita de Rebecca, algo que sra. Burrows sempre estranhou, quando havia um supermercado perfeito que fazia entregas em domicílio. Por fim, passaram pelo museu em que o marido tinha trabalhado, mas sra. Burrows olhou para o outro lado. Para ela, era um lugar de fracasso, um monumento a suas expectativas frustradas.
Depois saíram de Highfield e logo tinham chegado à junção com a North Circular. Um carro branco e batido, com o som num volume impossível, parou ao lado deles no sinal. Estava lotado de passageiros e por uma janela aberta uma menina fixou os olhos insolentes na sra. Burrows. Devia ter apenas dois ou três anos a mais do que Rebecca, mas a menina parecia cansada, tinha olheiras e o cabelo na altura do ombro era sem vida, como se precisasse muito de um banho. Seus olhos frios ainda estavam fixos de forma agressiva na sra. Burrows quando ela cuspiu um chiclete mascado, que bateu na porta do táxi.
– Olha o que você fez, sua porca! – exclamou o taxista em voz alta, gesticulando para a menina. Ele acelerou o motor furiosamente. – Eu não deixaria minha filhinha fazer uma coisa dessas.
A menina ainda tentava sem sucesso intimidar sra. Burrows com o olhar.
– Nem eu. Sempre sei exatamente onde minha filha está… Em casa, sã e salva – declarou ela.
– Eu também, mas essa gente não tem nenhum respeito – disse o motorista, curvando-se para o volante para fitar o outro carro. – Nenhum respeito – repetiu, enquanto pisava no acelerador e dava uma fechada no carro branco com uma buzinada.
Quarenta minutos depois, eles atravessaram o rio e estavam a várias quadras do conjunto habitacional, onde três prédios imensos dominavam a paisagem. Celia Burrows pensou que podia identificar em qual dos três morava a tia Jean, mas cada rua por que passavam só parecia afastá-los mais dali. O motorista desistira de usar seu mapa e dependia inteiramente da sra. Burrows para se lembrar do caminho.
– Isso me é vagamente familiar – disse ela.
– South London. É tudo igual – o motorista riu, balançando a cabeça com desprezo. – Dá para ficar perdido por horas.
– Espere um minuto… Eu me lembro deste lugar… Entre à esquerda aqui – instrui sra. Burrows. – Sim, tenho certeza de que é por aqui – disse ao ver o prédio que era de fato o Mandela Heights. Então eles entraram num beco sem saída e o táxi parou cantando pneu.
– Chegamos – anunciou ele.
Sra. Burrows saiu do táxi e pegou as bolsas no porta-malas. Depois deu ao motorista uma gorjeta tremendamente generosa.
– Deus abençoe a senhora e toda a sua família – disse ele depois que ela carregou as bolsas para a entrada. Ela olhou a série de botões dos elevadores que levavam aos apartamentos, a maioria deles vandalizada, mas viu que as portas principais estavam abertas. Entrou e descobriu, por milagre, que o elevador funcionava, mas não era menos fedorento do que se lembrava. Ele subiu sacolejando até o décimo terceiro andar e as portas se abriram de supetão.
– Pelo amor de Deus! – resmungou sra. Burrows ao pisar numa poça de vômito bem na frente do elevador.
Ela apertou a campainha e esperou. Depois tentou de novo, tocando por mais tempo. Após uns minutos, ouviu um farfalhar atrás da porta e percebeu que alguém a observava pelo olho mágico.
– Abra, por favor, Jean! – disse sra. Burrows ao olho mágico. A porta ainda permanecia fechada, então sra. Burrows simplesmente deixou o dedo na campainha. Levou vários minutos até que a irmã finalmente abrisse a porta.
– Quem diabos você pensa que é? – gritou ela, bufando de fúria, com o eterno cigarro preso no canto da boca. Estava com seu casaco velho e o cabelo grisalho apontava para um lado, como se tivesse dormido por cima dele.
– Olá, Jean – disse sra. Burrows.
Tia Jean semicerrou os olhos para ela, depois recuou um passo, como se fosse a única maneira de focalizar na pessoa parada ali.
– Celia! É você! – exclamou, escancarando tanto a boca que o cigarro rodou dos lábios e caiu no carpete gasto com um pequeno espetáculo de faíscas vermelhas.
– Ora, posso entrar, então?
– Claro, claro que pode. – Primeiro a irmã teve de apagar a ponta de cigarro, que abria um buraco no carpete. – Como sabia que eu estava em casa?
– Quando é que você sai, Jean? – disse sra. Burrows ao pegar suas bolsas. O corredor estava atulhado de pilhas de jornais velhos, como sempre, e o ar tinha um cheiro azedo.
– Devia telefonar primeiro, só para garantir – disse a irmã, depois tossiu alto.
– Eu telefonei. Você desligou na minha cara.
Tia Jean pareceu não ouvir.
– Quer um chazinho? – ela ofereceu enquanto as duas entravam na cozinha. – Mas você não estava naquela Herbert House, com todos aqueles médicos? Então, eles te deixaram sair?
– Eu decidi que era hora de ir embora – respondeu sra. Burrows, avaliando o estado pavoroso da cozinha. Depois, de um fôlego só, ela disse: – Pensei que a essa altura Rebecca teria dado um jeito neste lugar. Aliás, onde ela está? No quarto?
Tia Jean se virou e piscou para a irmã.
– Não – disse, só que mais pareceu a combinação de um “não” com um “oh” de surpresa.
– O que foi?
– Ela foi embora.
– Como assim, foi embora? – Sra. Burrows empalideceu. Avançou um passo súbito para a irmã, derrubando da mesa uma tigela de madeira polida com bananas meio podres e um cinzeiro que transbordava.
– Ela sumiu faz séculos. Arrumou as malas e saiu, foi o que fez. – Tia Jean não conseguia olhar na cara da irmã, como se soubesse que tinha feito alguma coisa errada. – Desculpe, Celia, mas não quero nada com ela. Essa pivete estragou todos os meus cigarros e derramava minha bebida…
– Mas Jean! – Sra. Burrows segurou a irmã e a sacudiu. – Você prometeu que cuidaria dela para mim. Pelo amor de Deus, ela só tem 12 anos! Quando ela foi embora e para onde foi?
Tia Jean demorou a responder.
– Eu já falei… Faz meses. E não sei pra onde foi. Deixei um recado com a mulher da assistência social, mas ela nunca me ligou.
Celia Burrows soltou a irmã e puxou uma das cadeiras da mesa, jogando outros objetos no chão. Sentou-se pesadamente, de boca aberta, formando palavras, mas sem dizer nada.
Recostada na pia, tia Jean agitava as mãos e balbuciava quando parou e disse:
– E depois Will apareceu com o primo dele.
Sra. Burrows virou lentamente a cabeça para a irmã.
– Como, você disse Will? Meu filho Will?
– É, veio com o primo dele. E eles trouxeram aquele gatinho lindo e grande, Bartleby…
– Mas o Will está desaparecido há seis meses. Você sabia disso. A polícia procura por ele por todo o país, e pelo Chester, amigo dele.
– Não sei de Chester nenhum, só o que posso dizer é que Will apareceu há uns dois meses. Ele não tava bem quando veio pra cá, mas aquele Cal… um menino ótimo… cuidou de Will até ele ficar bom. E Bartleby! Nunca pus os olhos num gato tão grande como aquele, só no zoológico.
– Gato grande? – disse sra. Burrows, sem ênfase nenhuma. – Gato grande? – Ela escolheu uma das muitas garrafas vazias de vodca na mesa e a pegou. Não disse nada por um tempo, simplesmente encarando o rótulo prata e vermelho. No silêncio, só o que se ouviu na pequena cozinha foi um estalo alto, seguido de um zumbido baixo do sistema de resfriamento da geladeira se armando.
– É engraçado, mas nossa Bessie também tá com problemas com a mais velha dela. Teve uma crise e… – tia Jean se interrompeu, percebendo que seu esforço para distrair sra. Burrows com fofocas de família não estava dando resultado.
De olhos ainda fixos no rótulo vermelho e prateado, sra. Burrows balançou levemente a cabeça, mas continuou em silêncio. Tia Jean ficou cada vez mais agitada, até que de repente soltou:
– Celia, fale comigo. Como eu podia saber que ele ainda estava desaparecido? Por que não diz nada?
Sra. Burrows recolocou com cuidado a garrafa vazia na mesa, empurrando-a para a beira, como se fosse um enfeite valioso. Respirou fundo e soltou o ar lentamente, depois ergueu os olhos à irmã.
– Porque, Jean, neste exato momento eu não sei se devo chamar a polícia ou… Ou se preciso internar você em algum lugar, já que você obviamente perdeu o juízo. Ou talvez as duas coisas.
Após os recados frenéticos que sra. Burrows deixou na delegacia de Highfield, alguém finalmente conseguira localizar o investigador Blakemore. Ele telefonou e sra. Burrows teve uma longa conversa com ele, explicando o que acabara de saber. Em exatos trinta minutos, ele apareceu com um segundo investigador da delegacia do bairro e uma equipe de peritos.
– Parece que alguém já começou a revirar este apartamento – foram suas primeiras palavras ao entrar no corredor e avaliar as cartas e jornais espalhados no carpete.
– Ah, mas que ótimo – murmurou um dos peritos atrás dele, contrariado. – Temos uma acumuladora aqui, amigos – disse ele aos colegas. – É melhor ligar para casa e dizer a suas mulheres que vão trabalhar até tarde.
Em segundos, a polícia dava uma busca por toda parte, e sra. Burrows e a irmã foram levadas de carro até a delegacia, onde foram interrogadas separadamente e tiveram que dar depoimentos.
Foi apenas no final da manhã de domingo que as levaram de volta ao apartamento numa viatura policial. Algumas posses da tia Jean tinham sido ensacadas e retiradas. O apartamento, embora ainda uma bagunça, estava consideravelmente mais arrumado. Pelo menos os policiais tinham organizado todos os jornais e cartas velhas em pilhas, e retirado os sacos de lixo da cozinha para verificar seu conteúdo. Ficou pó para digitais na maior parte das superfícies por todo o apartamento, mas ninguém poderia dizer que aquela poeira já não estava ali antes.
Sem se incomodarem em tirar os casacos, as duas irmãs jogaram-se nas poltronas da sala. Estavam exaustas.
– Estou morrendo de vontade de dar um pito – anunciou a tia Jean, e, achando um maço fechado ali perto, tirou um cigarro e o acendeu. – Ah, assim está melhor – disse depois de algumas baforadas. Com o cigarro preso entre os lábios, tateou até achar o controle remoto da TV. – Toma aqui – disse ao entregá-lo a sra. Burrows, que o pegou automaticamente. – Pode ver o que quiser.
O dedo da sra. Burrows se retorcia sobre os botões, mas não apertou nenhum deles.
– Agora perdi não só meu marido, mas meus dois filhos. E a polícia acha que sou a responsável. Eles acham que fui eu.
Tia Jean empinou o queixo com uma nuvem de fumaça escondendo seu rosto.
– Eles não podem pensar…
– Ah, eles podem sim, Jean – interrompeu Celia Burrows em voz alta. – Me pediram uma confissão completa. Um deles até usou a palavra “desembucha”. Eles têm uma teoria biruta de que meus “cúmplices” sequestraram Will, mas que ele veio aqui quando conseguiu fugir deles. E não me pergunte o que eles acham que fiz com Roger e Rebecca, ou com Chester. Imagino que me consideram a primeira serial killer de Highfield!
Tia Jean tentou grunhir de indignação, mas isso incitou um acesso de tosse desagradável.
– Tem certeza de que Will não falou nada sobre onde eles estiveram? – indagou sra. Burrows depois que a irmã conseguiu parar de tossir.
– Não, nem uma dica. Mas onde quer que fosse, tenho a sensação de que ia voltar pra lá – disse tia Jean. – E ele levou aquele camaradinha, o primo Cal.
– Eu já te falei… Não tem ninguém do lado da família de Roger que se chame Cal.
Tia Jean piscou, cansada.
– Diga o que quiser – murmurou ela. – Eu lembro que Cal não gostava muito daqui… Ele queria descer pro sul de novo.
– Descer para o sul? – repetiu sra. Burrows, pensativa. – E você disse que esse menino mais novo era Will cuspido e escarrado?
Tia Jean assentiu.
– Cara de um, focinho de outro.
Sra. Burrows olhou a tela apagada da TV enquanto sua mente era tomada de várias explicações.
– Então, se a mulher misteriosa que apareceu na Humphrey House era a verdadeira mãe de Will, será que esse outro menino era o irmão dele?
A tia Jean ergueu uma sobrancelha.
– Irmão?
– Sim, por que não? – respondeu sra. Burrows. – Não está fora de cogitação. E você disse que o Will estava furioso com a Rebecca?
– Ah, estava sim – disse tia Jean, soltando uma nuvem de fumaça. – Parecia que ele a odiava e também tinha um pouco de medo dela.
Sra. Burrows balançou a cabeça com perplexidade.
– Preciso chegar ao fundo disso. Parece que perdi o início de um filme e tenho de deduzir o que já aconteceu.
Tia Jean murmurou alguma coisa sobre precisar de uma bebida, depois bocejou alto.
– E para desvendar esta história em particular, preciso voltar aonde tudo começou – anunciou sra. Burrows ao se levantar. Ela contemplou o controle da TV ainda em sua mão. – E certamente não vou precisar disto – disse enquanto o jogava no colo da irmã, saindo em seguida às pressas da sala.
– Fica à vontade – grunhiu tia Jean, acendendo outro cigarro com o que ainda não tinha terminado.
Capítulo Quatro
– Um cavalo mal usado na estrada – disse o velho Styx ao se curvar para examinar a trilha larga que a escavadora dos Coprólitos tinha deixado. Ele seguiu o rastro com os olhos até a abertura quase perfeitamente circular na parede do Bunker. Pisou nos pedaços de concreto espalhados pelo chão até estar perto o bastante para tocar com a mão enluvada o interior da passagem recém-aberta. Afastando-a, esfregou a poeira entre os dedos.
Uma sombra deslizou de dentro da passagem.
– Os Coprólitos nunca fariam isso por vontade própria – declarou o velho Styx. – Fariam, Cox?
– Nem em um milhão de anos – concordou a forma recurvada ao entrar meio de má vontade no facho de luz lançado pela lanterna do velho Styx.
Um Limitador marchou decidido pela passagem. Parou e ficou em posição de sentido.
– Qual é a situação? – perguntou-lhe o velho Styx, passando à linguagem nasalada dos Styx.
– Uma forte explosão provocou um grande colapso no teto por cima das celas e nos corredores ao redor. Podemos levar várias semanas para escavar. Mas…
– Mas o quê? – ladrou o velho Styx com impaciência.
O Limitador continuou, agora falando numa velocidade ainda maior.
– A explosão teve origem perto das celas de teste, então é muito provável que a temperatura atingida tenha desnaturado quaisquer germes restantes de Dominion – informou.
O velho Styx respirou fundo, tragando o ar pelos dentes cerrados.
– Então é uma perda de tempo. Não acharemos nenhum vírus Dominion aqui. Deixe estar – ordenou.
Sem compreender o diálogo, mas sensível à reação do velho Styx, os olhos sem pupila de Cox reviraram sob a bainha sebenta de seu capuz.
– Más noticias? – perguntou.
O velho Styx respirou fundo de novo e voltou ao inglês.
– Sim. E acho que nós dois sabemos quem fez isso.
– Drake – respondeu Cox. – Precisamos cuidar dele de uma vez por todas.
– Não diga – grunhiu o velho Styx.
– Temos de dar uma última olhada por aqui – sugeriu Will, enquanto eles se demoravam do lado de fora da caverna. – Para saber se não deixamos passar nada.
– Claro – disse Chester. Erguendo o rifle de Elliott, pôs o olho na mira e varreu a plataforma do fungo. – Pelo menos agora estou enxergando – acrescentou, deliciado por ter algo que fizesse frente ao dispositivo de Will e não dependesse dos globos e de sua iluminação limitada.
Os dois tomaram caminhos distintos no afloramento, procurando qualquer outro pertence do grupo que tivesse se espalhado quando caíram. Ao passar pela superfície flexível, Will percebeu que o gato estava constantemente a seu lado. Com a morte de Cal, Bartleby parecia ter transferido sua lealdade a ele e Will se sentiu inesperadamente reconfortado com sua presença constante.
– Achei outro rifle aqui! – contou Chester a Will.
– Legal – gritou Will ao olhar o amigo puxando alguma coisa do fungo.
Depois de um momento, Chester acrescentou:
– A mira está quebrada, mas, tirando isso, tudo bem.
Will continuou a procurar, pegando uma garrafa de água vazia, um pedaço de corda e um globo luminoso que demorou um pouco para se soltar. Depois olhou em volta para saber aonde Chester tinha ido. O amigo estava na outra extremidade da saliência, dando saltos estranhos, testando o efeito da gravidade reduzida. Era ridículo vê-lo ali, subindo e descendo feito uma mola.
– Ei, cadete espacial! – gritou Will com certa irritação. – Acho que já terminamos aqui!
– Tá! – gritou Chester, e veio disparando até Will. Auxiliado pela falta de peso, Chester movimentava-se entre o voo e a corrida, cobrindo a distância com toda a graça de um avestruz sem coordenação motora. Rindo, ele parou depois de um último salto imenso. – Isso é tão legal. Você tem toda razão… Parece mesmo que estamos na superfície da Lua!
– Parece mais o planeta Zog – sugeriu Will.
– Mas pense só nisso, Will. É como se tivéssemos poderes especiais, como os super-heróis ou coisa assim. Podemos pular sobre prédios e todas essas coisas.
– Claro, se houvesse algum – murmurou Will, revirando os olhos para o amigo enquanto os dois voltavam à caverna.
Com muito cuidado, Will usou um pedaço de corda que tinha achado para prender o braço de Elliott ao peito, imobilizando-o o melhor que pôde. Ela não se mexeu nem soltou nenhum ruído durante o processo.
– Isso deve ajudar – disse ele. – Agora vamos guardar tudo e dar o fora daqui. – Ele amarrava a aba de um bolso lateral da mochila quando Chester falou.
– Will – disse ele –, eu estava arrumando as coisas de Elliott e encontrei um monte de explosivos e granadas de implosão.
– Sim, e daí? – respondeu Will, sem saber aonde Chester queria chegar.
– Bom, isso me fez pensar… Será que ainda tem um daqueles fogos de artifício?
– As velas romanas?
– Não, os foguetes.
Will assentiu.
– Sim, tem dois. Por quê?
– Só estava pensando… Se a gente acender, talvez alguém no topo do Poro veja e mande ajuda.
Will pensou no assunto por um momento.
– Acho que não faz mal nenhum tentar. Não sei se eles estão bons… A umidade pode tê-los estragado. – Ele tateou o fundo da mochila e pegou dois foguetes, depois os cheirou. – Estes parecem estar bons – disse. – Só espero que as varetas não tenham quebrado. – Ele as pescou, descobrindo que uma delas tinha se quebrado na ponta e estava meio curta. – Que pena – Will deu um muxoxo, mas ainda assim prendeu as duas ao corpo dos foguetes.
Enquanto ele e Chester andavam juntos para a beira da plataforma, Will novamente sentiu o impulso irracional que teve quando foi impelido a se atirar no Poro. Reduziu o passo a um arrastar. Por mais que quisesse contar a Chester o que sentia, decidiu que não queria preocupá-lo sem necessidade. Além disso, o amigo pensaria que ele estava enlouquecendo, o que Will acreditava ser exatamente a verdade. Mais do que qualquer coisa, ele queria se virar e voltar para a caverna. Em vez disso, ajoelhou-se e começou a engatinhar. Fazia com que se sentisse um pouco mais seguro e controlado, como se o impulso tivesse mais dificuldade para levá-lo para a beira e obrigá-lo a saltar de cabeça.
– O que está fazendo abaixado aí? – perguntou Chester, vendo o amigo no chão.
– É preciso ter cuidado… Tem uns ventos muito fortes na beira – Will mentiu. – Se eu fosse você, não ficaria de pé.
Chester olhou em volta, sem sentir nada além da leve brisa ocasional, e deu de ombros.
– Tudo bem, se é o que você quer – respondeu ele, colocando-se também de quatro.
Assim que ultrapassaram a beirada da plataforma de cima, Will sugeriu que parassem. Era o mais próximo que ele queria chegar do vazio. Usando o canivete, furou a pele do fungo duas vezes.
– Não temos nenhuma garrafa de leite, então isso deve servir – disse ele. Will enfiou os foguetes nos buracos, endireitando as varetas para que as duas ficassem na vertical.
– Coloque no ângulo certo – aconselhou Chester.
– Obrigado, professor Hawking – respondeu Will de bom humor. Ele fez uns últimos ajustes no foguete da vareta mais curta, que parecia um pouco deficiente ao lado da outra. Satisfeito com a posição das duas, que miravam para o meio do Poro, acendeu a mais curta, girando a rodinha do isqueiro.
– Tempo menos cinco – anunciou ele com um sotaque americano.
– Imagina só se alguém vê e desce para nos pegar – disse Chester num tom cheio de otimismo.
Will voltou a sua voz normal.
– Hum, Chester, só duas coisinhas. A primeira é que provavelmente estamos a quilômetros de distância, então mesmo que por acaso vejam os foguetes, teriam de descer muito para chegar aqui – disse ele, olhando o buraco gargantuesco diante deles antes de retomar seus esforços com o isqueiro. – A segunda é que podemos arranjar mais do que queremos. Pode ser que os Styx os vejam.
Chester se aproximou de Will como se fosse impedi-lo de acender o foguete.
– Bom, nesse caso, talvez a gente não deva…
– Mas eu quero ver até onde essas coisas vão – disse Will com um entusiasmo juvenil.
– É, que inferno, vamos logo com isso – concordou Chester.
– Mas não sabemos se vai funcionar – Will informou a Chester quando o papel azul com salitre se recusava a acender. – Ah, consegui – anunciou ao ver que a chama finalmente tinha pegado.
Ele e Chester afastaram-se devagar do foguete, olhando, em expectativa.
O foguete disparou com um silvo, mas antes que ganhasse alguma distância, desviou-se fortemente para a lateral do Poro. A plataforma sobre a cabeça dos dois impossibilitava que vissem até onde ele foi. Houve uma explosão, depois a mais leve sugestão de um brilho vermelho pelo Poro.
– Inútil! – exclamou Will. – Espero que o outro esteja melhor.
Ele conseguiu acender quase na mesma hora e o foguete disparou para a escuridão, subindo cada vez mais, até que os meninos tiveram de entortar o pescoço para seguir seu progresso.
Era como ver um foguete decolar no céu noturno na superfície da Terra. Percorreu centenas de metros quando parou com um estalo de trovão e cores nítidas cortaram o breu. Estrelas vermelhas, brancas e azuis apareceram uma depois da outra, proporcionando aos meninos breves lampejos da lateral do Poro, os clarões de luz revelando que podia haver muitos outros afloramentos de fungo se projetando das paredes. Enquanto o véu de escuridão voltava a tomar tudo, os ecos da explosão duraram vários segundos e só o que os meninos ouviram em seguida foi o uivo ocasional do vento e o bater suave da água.
Will baixou a lente do dispositivo e se virou para Chester. O menino parecia deprimido, como se o instante luminoso de empolgação o lembrasse do quanto eles tinham penetrado na Terra e de como sua situação era grave. Will lhe deu um tapinha no ombro.
– Vamos lá, nunca se sabe… Alguém lá em cima pode ter visto.
Alertadas pelo primeiro foguete, as gêmeas Rebecca seguiam lentamente para a beira da pequena plataforma de fungo em que tinham caído. Vestidas com idênticos casacos de camuflagem pardo dos Limitadores, a única coisa que as distinguia era que uma delas mancava e era ajudada pela outra.
– Fogos de artifício? – disse a gêmea que mancava, e as duas pararam na beira da saliência. Espiaram o escuro, tentando ver melhor. Um minuto depois explodiu um segundo foguete não muito acima de suas cabeças. – Sim, fogos de artifício – concluiu. Por alguns segundos as duas escutaram, olhando o Poro, procurando alguma atividade. Não houve nada. – Só há um idiota que faria uma coisa dessas.
– Chim, chutil… Muito chutil – concordou a outra gêmea.
– Nocho querido irmão nos mandou um convite e vai viver para che arrepender dicho.
As duas riram, mas a gêmea que mancava girou para a irmã, todo vestígio de alegria desaparecendo de seu rosto.
– Você está tão ridícula! Qual é o seu problema? – disse ela, sem a menor simpatia na voz. – Está chiando.
A irmã de imediato tocou a boca.
– Acho que quebrei unch dentech.
– Tire a mão daí e me deixe ver – ordenou a irmã que mancava, lançando a lanterna na cara da gêmea. – Sim, seus incisivos superiores estão quebrados – observou, impassível.
A irmã passou o dedos nos dois cotos.
– Devo ter batido na queda – disse ela, irritada. – Vou ter de ver isso quando voltarmos à Crochta.
– Se voltarmos – disse rudemente a gêmea que mancava. – E seu braço?
– Acho que foi dechlocado. Você prechisa colocar no lugar.
– Tudo bem. Primeiro deixa eu me livrar disso – disse ela, pegando a foice da irmã, que sustentava o braço inerte ao lado do corpo. Por um momento a gêmea que mancava olhou a arma de aparência cruel; com uns quinze centímetros de extensão, sua superfície muito polida estava ensebada com óleo de fungo, e por isso refletia a luz em um tom cinzento. Inesperadamente, colocou a lâmina nos lábios e a beijou.
– Minha queridinha – disse ela afetuosamente, mostrando sua gratidão à arma, a única razão para ela e a irmã ainda não estarem despencando pelo Poro. A gêmea que chiava conseguira batê-la e pegar a borda mais externa de um afloramento de fungo enquanto as duas caíam. Embora ambas estivessem em uma velocidade tão alta que a foice ultrapassara o fungo, fora o bastante para desviar o curso para o afloramento abaixo.
A manobra rápida as salvara, mas tivera seu custo – o braço da menina que chiava fora obrigado a suportar não só seu peso, mas também o da irmã, então a pressão nele fora considerável.
Mas a demonstração de afeto da gêmea que mancava durou bem pouco.
– Ai! Que nojo! – exclamou, cuspindo porque a gosma do fungo ficara em seus lábios. Ela inverteu a foice e a jogou com um giro habilidoso do pulso. A mais ou menos dez metros, um pequeno grupo de corpos de frutificação brotava do chão da plataforma de fungo. A foice virou uma vez durante o voo, depois afundou na bola da ponta do caule. Não deve ter sido coincidência que a bola tivesse mais ou menos a altura que teria a cara de Will se ele estivesse parado ali.
– Bom lanchamento – a gêmea que chiava parabenizou a irmã quando o corpo de frutificação balançou com o impacto.
– Mas não exichte nenhum che. Vamoch achar um jeito de chair dechte lugar – acrescentou.
– Eu sei disso – disse a gêmea que mancava. – Agora, pelo amor de Deus, vê se para de chiar e me deixe ver seu braço. – Ela ajudou a irmã a tirar o sobretudo, depois sondou delicadamente o ombro. – Sim, foi deslocado mesmo. Agora você sabe o que vai acontecer. – Ela entregou a lanterna Styx à irmã, que a enfiou sob a axila. Depois a gêmea que mancava se colocou de lado e posicionou as mãos para que segurassem firmemente a parte superior do braço deslocado, no úmero. Respirou fundo. – Pronta?
– Chim. – A gêmea que chiava balançou afirmativamente a cabeça e franziu a testa, concentrada. – Desculpe, eu quis dizer sim.
Com um único movimento rápido, a gêmea que mancava bateu o braço contra o corpo da menina. O úmero girou sobre a lanterna cilíndrica e o braço voltou a encaixar com um pequeno estalo, como se um ramo tivesse sido quebrado. Apesar da dor imensa que deve ter sentido, a menina não soltou nem um gemido.
– Pronto – disse a gêmea que mancava. – Agora deve estar bem.
– Quer que eu dê uma olhada em sua perna? – propôs a gêmea que chiava, enxugando gotas de suor da testa.
– Não, é só um estir… – ela parou no meio da frase ao ver algo no escuro acima delas. Inclinou a cabeça para cima. – Olhe!
A gêmea que chiava afastou o cabelo preto e brilhante da cara, semicerrando os olhos.
– Sim, eu vi. Uma luz.
– Não podem ser restos daquele foguete. Deve ser…
– Um globo luminoso…
– Ou talvez… Uma lanterna… Uma de nossas lanternas?
Sem falar, as duas se concentraram enquanto a gravidade trazia o ponto de luz. Quando estava mais ou menos no mesmo nível, viram que era mesmo uma luz e que havia um homem preso a ela.
Nenhuma das duas precisou consultar a outra; ambas pensavam precisamente o mesmo enquanto ladravam ordens em uníssono, em sua linguagem Styx nasalada.
Embora estivesse a certa distância, o Limitador as ouviu. Ouviu-as muito bem, assim como compreendeu quando o velho Styx ordenara que saltasse para a morte. E, em queda livre pouco acima dele, um segundo Limitador também ouviu as ordens das gêmeas. Infelizmente o terceiro Limitador, o oficial, havia tirado a própria vida com sua foice vários quilômetros antes. Os dois Limitadores sobreviventes vinham considerando fazer a mesma coisa, pois não havia motivo para continuarem vivos. Mas agora tinham uma nova diretiva e um motivo verdadeiro para sobreviverem. Com a habilidade de um par de paraquedistas, eles apontaram braços e pernas na intenção de guiarem-se para o afloramento de fungo abaixo do ponto de observação das gêmeas.
A gêmea que chiava sorriu para a irmã.
– A chorte favoreche och juchtoch – disse ela.
– É verdade, é mesmo verdade – disse a gêmea que mancava, tocando o frasco de Dominion no pescoço. A gêmea que chiava também colocou a mão em seu frasco, mas este era diferente – continha a vacina do vírus.
Não havia necessidade de outra comunicação entre as gêmeas Rebecca; elas se viraram no momento exato e foram para o fundo da plataforma do fungo. As duas tinham sorrisos idênticos. Agora que havia dois soldados à disposição, elas sabiam que suas chances de encontrar uma saída do Poro com sua carga mortal aumentara consideravelmente. As coisas estavam melhorando.
Capítulo Cinco
Era de manhã cedo e havia pouquíssimo trânsito nas ruas de Hampstead quando Drake passou de carro pelo St. Edmund’s Hospital e subiu a Rosslyn Hill. Ele girou o Range Rover para a Pilgrim’s Lane, descendo a rua toda, e reduziu muito a velocidade quando chegou ao final. Estacionou ao lado de uma faixa do Heath conhecida como Preacher’s Hill, onde a relva alta e as poucas árvores estavam cobertas de geada, dando a impressão de que foram polvilhadas com açúcar de confeiteiro.
Ele ia tirar a chave da ignição, mas parou ao ouvir um relato sobre o Ultramicróbio no rádio. O apresentador falava do custo de milhões de libras para a economia dos dias de trabalho perdidos.
– Rá! Sempre preocupados com dinheiro! – zombou Drake, com os olhos se fechando ao recostar no apoio de cabeça. – Eles não entendem nada. – Drake bocejou. Não dormia direito há dias, cochilando vez ou outra no carro quando tinha a oportunidade, e o sono o pegava. Deixou que a cabeça deslizasse até tocar a janela e de repente caiu num sono leve.
Drake foi trazido de volta à vigília quando um celular começou a vibrar na bolsa do banco do carona. Ensopado de suor frio, precisou de alguns segundos para entender onde estava. O motor do carro ainda roncava e, ouvindo, percebeu que tinha perdido o restante da reportagem sobre o Ultramicróbio.
– Componha-se – grunhiu, furioso consigo mesmo. Ainda estava xingando quando verificou os telefones dentro da bolsa até achar o que tocava. Pegou-o e atendeu, desligando a ignição com a outra mão para silenciar o rádio.
– Alô – disse ele, esfregando o rosto rudemente para acordar.
Uma mulher falou, embora não se identificasse.
– Alô?
– Sim – disse Drake.
– Estou ligando em nome de…
– Nada de nomes – interrompeu Drake bruscamente. – Sei quem você é. Por que ele mesmo não me telefonou?
A voz era triste e oca.
– Ele está… Está indisponível.
– Ah, meu bom Senhor – exclamou Drake, sabendo exatamente o que aquelas palavras significavam. Seu contato ou estava morto, ou desaparecido. Até agora, nem uma única pessoa com quem tivera contato em sua antiga célula se mostrara ativa. Sua rede fora desmantelada.
A voz da mulher endureceu e ficou mais enfática.
– E não vá à Hill Station.
– Por quê? – perguntou Drake, apertando o telefone com tanta força que o envoltório de plástico estalou.
– Está desativada – disse ela, e desligou.
Drake olhou para o celular por vários segundos, para as pequenas barras no visor que oscilavam com a intensidade do sinal. Depois fechou o telefone e abriu sua tampa traseira, retirando o chip. Ao sair do carro, largou-o na calçada e pisou nele com o calcanhar da bota. Deu uma olhada pela rua e na área de parque aberto ao ir até a traseira do carro e abrir o porta-malas. Pegou um revólver numa bolsa de viagem, enfiando-o rapidamente no cós das calças, a suas costas. Depois trancou o carro e andou até a Preacher’s Hill. Ao subir a ladeira, mantendo-se atrás de uns arbustos esparsos, suas botas deixavam pegadas na relva gelada.
Chegando ao terreno mais alto, parou para avaliar mais uma vez a região e seus olhos finalmente caíram em seu destino. A Hill Station, como era conhecida dos integrantes de sua rede, era uma grande casa eduardiana no final de uma fila de propriedades semelhantes. Drake deixou a ladeira escorregadia e voltou à rua. Embora tivesse acabado de receber um recado inequívoco de sua interlocutora, precisava ver com os próprios olhos. Mas tinha de ter cuidado – eles podiam estar vigiando. Então, ele passou diretamente pela casa, aparentando olhá-la despreocupadamente. Foi o suficiente para ver a barreira do outro lado da entrada de carros e a placa que dizia Mantenha Distância – Estrutura Comprometida, e ver que todas as janelas do primeiro andar tinham sido cobertas de tábuas. Ele continuou pela rua por várias casas, olhou o relógio de pulso como se estivesse atrasado para alguma coisa e deu meia-volta.
Ao chegar à entrada de carros, saltou facilmente a barreira listrada de vermelho e branco. Manteve-se perto de uma sebe maltratada junto do caminho de cascalho, indo para a lateral da casa. Ao chegar à entrada do porão, viu que não havia mais porta – só um batente calcinado. Abriu seu sobretudo e pegou o revólver.
Passou cautelosamente pela soleira, cobrindo todos os ângulos com a arma. Só o que restava do porão eram esqueletos metálicos de mesas e pequenas poças de plástico derretido das filas de computadores que tinham estado ali. Todo o resto foi reduzido a cinzas. As paredes estavam pretas de fumaça e o teto tinha desabado em vários pontos, onde as vigas queimaram completamente. Toda a área parecia ter sido engolfada por uma espécie de incêndio localizado.
Ele sabia que era perda de tempo verificar se algum equipamento ou registro tinha se salvado. Saiu do porão e voltou ao carro.
Os Styx haviam sido meticulosos, o que lhes era característico; enquanto ele estava nas Profundezas, toda a rede fora desmantelada. Drake sentiu uma impotência esmagadora. O único caminho que lhe restava era tentar entrar em contato com uma das outras células que operavam de forma independente no país, mas havia o risco de prejudicá-la com isso.
Mas ele estava desesperado.
– Não tem outro jeito – disse, cansado, e ligou o motor.
– Se quiser, eu posso levá-la – ofereceu-se Chester enquanto Will levantava Elliott.
Will meneou a cabeça.
– Não faz muita diferença, não é? Até parece que ela pesa alguma coisa aqui embaixo.
Chester colocou as três mochilas nos ombros. Na superfície, teria sido impensável carregar um fardo desses, mas agora, enquanto pulava várias vezes, mal tinha consciência de que elas estavam ali. Ele parou para pegar o rifle entre seu polegar e indicador e o estendeu.
– É, isso é incrível. Leve como um lápis. Você tem razão… Nada pesa muito aqui!
Sem ter ideia de seu destino, sabendo apenas que a caverna parecia penetrar ainda mais na parede do Poro, eles começaram a seguir por ela.
Depois de vários quilômetros, descobriram que ainda andavam na superfície flexível do fungo, que cobria cada centímetro do túnel em volta deles.
Viraram uma quina e se viram diante de uma parede vertical de fungos.
– Um beco sem saída… Um fungo com fundo – Chester brincou.
– Muito engraçado. Mas não é sem saída – murmurou Will, apontando a abertura acima de suas cabeças. – Diminua a luz por um segundo – disse ao colocar Elliott no chão. Ele virou a lente sobre o olho para investigar. – Parece que tem um caminho – informou a Chester –, mas não consigo ver o que está no topo.
– Bom, então acabou mesmo – respondeu Chester, desanimado.
– Está se esquecendo de uma coisa. – Will disparou numa corrida curta e pulou na parede. Ele subiu, desaparecendo de vista. Bartleby não ia ficar longe de seu novo dono e disparou atrás dele.
– Ah, que ótimo, me deixaram sozinho aqui – murmurou Chester, espiando o negro de breu. Ele aumentou a lanterna e começou a assoviar para se reconfortar. Depois de um tempo, ainda não havia sinal de Will e ele estava ansioso. – Ei! – gritou. – O que tem aí em cima? Não me deixe sozinho aqui!
Will flutuou de volta e pousou de leve ao lado de Chester.
– Tem várias passagens que podemos tentar. Vamos!
– Então agora podemos voar – disse Chester. – Pelo visto não é nada de especial.
Eles encontraram mais dessas frestas verticais e Will começou a reconhecer um padrão, apesar da colônia de fungo que cobria quase tudo. Pareciam estar organizadas numa série de círculos concêntricos que irradiavam para fora, em volta do Poro. Ele as imaginou como o equivalente geológico de um seixo jogado na água, as ondulações se espalhado para fora, e se perguntou se um resfriamento rápido do leito de rocha tinha criado essas fraturas circulares.
– Então a Terra não é nada maciça – disse Will a Chester enquanto eles andavam. – Mais parece um queijo suíço gigantesco… cheio de buracos.
– Precisa mesmo falar de comida? – foi a resposta de Chester.
Mas Will começava a desconfiar de que podia haver muito mais dessas frestas ocultas e que com o passar dos séculos elas haviam sido invadidas pelo crescimento voraz do fungo. Encheu-o de assombro pensar que aquele provavelmente fosse um organismo imenso, estendendo-se por centenas de quilômetros, tanto no manto dentro do Poro como na pedra circundante.
– Sabe de uma coisa, a gente pode mesmo estar dentro do maior ser vivo do mundo – ele refletiu um pouco mais tarde, mas Chester não respondeu nada.
Por fim chegaram a um lugar onde o túnel diante deles se dividia em três. Eles pararam para decidir que rumo tomar.
– Bom, desta vez temos opções demais – dizia Will.
O amigo murmurou sua aquiescência.
– Olha, Chester, sinceramente, eu não me importo com o caminho que pegarmos – disse Will. – Não faz diferença para mim… Não há muita coisa entre eles, há? – Ele examinou os túneis de novo – eram todos de dimensões semelhantes e cada um parecia continuar horizontalmente, embora não fosse possível saber o que havia logo depois de uma curva. Os meninos já tinham sido obrigados a voltar várias vezes, quando o caminho tornara-se intransitável devido a excesso de fungo ou porque se reduzia a canais estreitos demais para a passagem até da formiga mais determinada.
– Da última vez, eu escolhi. É sua vez – rebateu Chester.
– Na verdade não, não escolheu. Foi Bartleby que escolheu da última vez – Will lembrou.
– Bom, ele que decida de novo – sugeriu Chester.
Os dois se viraram para Bartleby, cuja cabeça estava empinada enquanto farejava, abanando o rabo animadamente.
– Vamos lá, Bart, escolha um – instigou Will.
– Bart? – perguntou Chester. – De onde veio isso?
– Cal – disse Will em voz baixa.
– Ah, sim, sim. – Chester olhou disfarçadamente para Will, perguntando-se como ele estava lidando com a morte do irmão. Mas Will parecia inteiramente concentrado em se deslocar pela rede de túneis, como se tivesse algum plano em mente. Se estava tão preocupado quanto Chester com sua situação atual, não aparentava. Pelo menos eles sabiam que outras pessoas já haviam descido ali, pela descoberta das redes no afloramento de fungo, mesmo que essas pessoas não estivessem mais vivas. Mas não havia como escapar do fato de que ele e Will vagavam sem rumo. Porém, Chester não ia implicar com o amigo por isso, porque eles precisavam fazer alguma coisa.
– Se não consegue escolher, eu tomo a decisão – disse Will ao gato, que parecia não ter pressa, provando sem parar o ar. Depois, Bartleby partiu para um dos túneis. Tinha andado um pouco por ele quando parou subitamente. Bem atrás de Bartleby, os meninos tiveram de parar da mesma maneira súbita.
– Meu Deus! – Will arquejou ao sentir o cheiro de decomposição. – Morreu alguma coisa bem grande aqui!
E Chester percebeu o som que suas botas faziam quando ele atravessava o túnel.
– Tem uma coisa grudenta no chão. E é muito fedorento.
– Olha ali – sussurrou Will, ao ver várias estruturas na parede.
Havia quatro bancos de madeira em fila junto à lateral do túnel. Semelhantes a bancos de açougue, eram construídos rudemente, as pernas e tampos feitos de pedaços grossos de troncos. Essa impressão ficava ainda mais forte pelo fato de que estavam sujos de sangue e cobertos pelo que pareciam tiras de carne velha e seca, em alguns lugares com vários centímetros de espessura. Um cutelo imenso estava enterrado no alto de um dos bancos, como se seu dono o tivesse cravado com força e pretendesse voltar para usá-lo novamente mais tarde.
– Ah, não! – Chester engoliu em seco assim que pôs as vistas no cutelo. Olhou apavorado para Will.
A primeira coisa que Will pensou foi que eles tinham encontrado uma tribo de canibais subterrâneos, mas não ia dizer isso ao amigo já petrificado. Enquanto recuava um passo dos bancos, tropeçou nos restos que cobriam o chão. Caiu de joelhos, mesmo assim conseguindo segurar Elliott. Isso lhe deu a oportunidade de ver mais de perto no que estavam pisando.
Parecia uma massa de partes corporais decepadas, mas não havia nada que Will conseguisse identificar de pronto.
– Pedaços de animais? – disse, ao perceber um imenso olho composto e seções de pernas articuladas, pretas e reluzentes, cobertas de cerdas quase do tamanho de seu dedo mínimo. – Não, insetos… Insetos gigantes? – Ele resmungou, incrédulo. O maior pedaço intacto que ele via consistia em mais ou menos dez segmentos insetoides e pretos, todos com pernas brotando dos dois lados. Podia ter vindo de uma centopeia colossal, mas cada segmento tinha meio metro e ele se perguntou que tamanho teria a criatura inteira.
– Estamos saindo daqui agora mesmo – disse Chester, com muita convicção, enquanto ajudava Will a se levantar. – E vamos o mais longe possível.
Eles voltaram para o cruzamento.
Chester apontava um dos outros túneis quando um guincho penetrante quase os matou de susto.
– Mas que diabos foi isso? – cochichou ele no silêncio que se seguiu.
Os três, os meninos e o felino, de imediato olharam para o alto, percebendo pela primeira vez que havia uma fissura larga bem acima de suas cabeças. Os guinchos recomeçaram, parecendo unhas sendo arrastadas em um quadro-negro muito grande. Além do fato de que os meninos não sabiam de onde vinham, os sons em si eram dolorosos, de dilacerar os nervos. E então os ecos esmoreceram.
No silêncio que se seguiu, Chester falou num tom muito baixo.
– Não são pedras rachando nem nada disso, são?
Will não respondeu de imediato, observando como Bartleby ficara agitado.
Os guinchos enervantes recomeçaram, mais altos do que antes.
– Não – sussurrou Will –, não é geológico. Talvez tenha algo a ver com todos aqueles pedaços de insetos. – Ele falava com urgência. – Chester, prepare o rifle. E as granadas de implosão. – Começou a levar Elliott para o túnel da esquerda. Bartleby estava agachado no chão e tão perto dos pés de Will que ele quase tropeçou no gato.
Ao virar as costas para o cruzamento, Chester se atrapalhou com o rifle, tentando puxar o ferrolho. Por fim conseguiu engatilhar a arma, carregando-a. Ainda andando de costas, abriu a aba do estojo do quadril, onde guardava duas granadas de implosão.
O segundo seguinte os pegou de surpresa.
A primeira coisa que Will percebeu foi o som de uma corda batendo no ar. O mundo ficou de cabeça para baixo enquanto ele era arrancado do chão. Ele se segurava em Elliott, tentando desesperadamente evitar que ela caísse. Gritou por Chester quando algo se fechou em volta dele, de todos os lados. Teve um vislumbre do que era – uma rede parecida com aquelas que vira na beira do afloramento de fungo. Ele fora apanhado numa rede.
Bartleby sibilava e esperneava ao ser espremido contra Will. Ainda gritando, o garoto descobriu que quanto mais se debatia, mas apertada ficava a rede, até que ele mal era capaz de movimentar-se. Junto de seus próprios gritos e os estalos da rede, tinha certeza de ter ouvido um ruído metálico, como se latas vazias estivessem sendo chocalhadas. Com o ombro de Elliott apertando sua cara e Bartleby se retorcendo contra suas pernas, não estava em condições de saber se Chester tinha sido o responsável pelo barulho. Tentou ver onde estava o amigo e se ele tinha sido apanhado em outra armadilha, mas a rede o girava com tal rapidez que tudo era um borrão.
No momento em que Chester percebeu que Will estava com problemas, seu primeiro impulso foi o de ir ajudá-lo. Mas sabia que o amigo estava bem vivo pelos gritos que ouvia, e Chester estava mais preocupado com o que acontecia na fissura no teto do túnel. Pedras e terra caíam dali, como se tivessem sido desalojadas e algo estivesse vindo. E os guinchos eram cada vez mais altos e mais numerosos do que antes. Ele baixou as mochilas dos ombros, recuou mais alguns passos até Will, depois apontou o rifle para a abertura no teto.
Foi uma sorte que tivesse feito isso.
Pela mira do rifle, viu algo cair da fissura. Desceu sem ruído nenhum, como uma sombra esvoaçando pela parede. Rapidamente mirou no ponto onde achava que a coisa tinha pousado.
– Mas o que…! – gaguejou Chester ao tentar entender o que via.
Tinha aproximadamente três metros, com mais pernas do que Chester podia ver. Aquelas pernas coriáceas se estendiam do disco circular e grosso de seu corpo. Na área do corpo de frente para ele, havia três manchas que cintilavam, como se estivessem ornadas com olhos de gato. Mas o que mais impressionava era um talo comprido que se projetava acima dos “olhos” com uma ponta brilhante de luz amarela e fraca.
Enquanto ele olhava, a criatura pareceu arriar no chão, balançando delicadamente o apêndice brilhante. Depois, aos poucos, começou a se erguer em suas múltiplas pernas.
Chester se agarrava ao rifle. Mesmo em seus melhores momentos, não suportava nada que se arrastasse, mas esta monstruosidade parecia uma manifestação física de seus piores pesadelos de infância. Ele estremeceu, dominado por onda após onda de espasmos.
– Você está morta – grunhiu ele. – Eu odeio… – Suas palavras ficaram paralisadas nos lábios quando de repente a criatura baixou o corpo ao chão – como um prelúdio, pensou Chester, para se atirar nele.
Nada na Terra o impediria de puxar o gatilho.
– ARANHA DESGRAÇADA! – gritou Chester, disparando no corpo circular. O tiro atravessou a criatura, dividindo-a em duas.
Ele viu as metades tombarem dos dois lados, as pernas entrando numa convulsão louca de movimentos. Com toda a adrenalina que corria por suas veias, Chester soltou uma gargalhada histérica que não era nada típica dele.
E então não ouviu mais guinchos, só os gritos de Will na rede.
Chester se endireitou quando outra criatura pousou com um baque suave precisamente onde a primeira tinha estado. Seus instintos assumiram de novo e Chester preparou o rifle, depois puxou o gatilho.
Foi recebido por um som que fez seu coração parar.
Um estalo oco evidenciara a falha no disparo. Ele tentou desesperadamente puxar o ferrolho de novo, mas não conseguiu deslocá-lo – parecia estar emperrado. A fera se levantava lentamente sobre as pernas segmentadas. Sabendo que era perda de tempo, Chester tentou disparar o rifle de novo. Mais um estalo seco.
Em completo desespero, Chester fez o que pôde naquela situação. Jogou o rifle na fera com toda a força. O animal ergueu uma pata dianteira e aparou o golpe com um único movimento habilidoso. O garoto viu de relance o rifle girar para longe e ouviu o baque surdo da arma caindo no chão coberto de fungo, fora de vista.
Agora eram só ele e a criatura. O olhar impressionado de Chester se fixou nos olhos dela, esferas de cristal malignas que cintilavam sob o feixe da lanterna como grandes gotas de água. Ouviu um silvo muito fraco quando ela abriu a boca, revelando uma fileira de presas brancas e malévolas, grossas como seu polegar.
– Ah, não! – Ele engoliu em seco, caindo de costas e lutando para tirar uma granada do estojo no quadril. Ainda olhava a criatura quando conseguiu puxar uma delas, mas deixou cair a segunda. Xingou ao tentar se lembrar do que Drake lhes ensinara sobre o uso dessas armas. “Segure na palma da mão”, disse Chester a si mesmo, primeiro se certificando de que estava do lado certo. Estava passando o dedo pela alça de disparo quando a criatura investiu.
Enquanto a enorme aranha se atirava contra ele, Chester forçou a alça para trás e liberou o mecanismo de disparo. A granada de implosão saltou em sua mão e a explosão pegou o monstro em pleno ar. Chester não poderia ter errado, uma vez que seu alvo estava apenas a alguns metros. Em tal proximidade, o corpo da aranha explodiu em pedacinhos, encharcando Chester com sangue.
– Deus Todo-poderoso – resmungou, enxugando o rosto e olhando os pedaços da criatura morta. Alguns membros estavam grudados nele – e ainda se mexiam. Pareciam as pernas finas de uma galinha gigante, mas cobertas de uma pele calosa e escura, pontilhada aqui e ali de cerdas pretas e ásperas. Chester achou que ia vomitar enquanto as tirava. Depois recuou, pedalando pelo chão, tentando se afastar da cena de carnificina.
A essa altura ele balbuciava incoerentemente consigo mesmo e não estava em condições de responder aos gritos abafados e frenéticos de Will. Era quase demais para ele; estava chegando rapidamente ao ponto em que só queria enroscar os braços ao redor cabeça e apagar tudo. A única coisa que o mantinha no presente era a ideia de que precisava resgatar Will e Elliott da armadilha.
E então ele ouviu outro baque.
– NÃO! OUTRA NÃO! – gritou. Não precisou olhar para saber o que o esperava. Num instante Chester tateava o chão, num esforço enlouquecido para localizar a segunda granada. Mas com todos os restos mortais do monstro e com a irregularidade do chão de fungo, não a encontrava em lugar algum.
Ele se obrigou a olhar. O corpo da criatura tremia ligeiramente ao se erguer nas pernas. Está prestes a atacar, disse Chester a si mesmo.
E então ela saltou, vindo diretamente para ele.
Houve um silvo e algo brilhante bateu na criatura. Com uma velocidade impressionante, toda a fera foi consumida por chamas. Ela se debatia, guinchando num tom agudo insuportável.
Sem ter a mais leve noção do que tinha acontecido, Chester se levantou. Cambaleou até onde Will e os outros tinham sido apanhados na rede, e outro daqueles monstros apareceu. O ar chiou quando um segundo projétil em chamas atravessou o corpo da criatura. Passou tão perto da cabeça de Chester que o garoto chegou a pensar que era ele o alvo, e se atirou no chão. Mas, no instante seguinte, viu que a aranha tinha sido atingida e que de imediato fora engolfada pelo fogo, caindo ao lado dos restos retorcidos da primeira.
Chester ficou tão inteiramente espantado pela visão dos dois animais estalando nas chamas que não conseguiu se mexer.
Uma forma escura andou pela fumaça.
– Styx? – disse Chester simplesmente, olhado a figura diante dele. Apontava o que parecia ser uma espécie de besta, com outra flecha em chamas já instalada. Mas desta vez estava apontada diretamente para Chester.
A figura avançava para ele.
– Mas… Mas você é só um menino – veio a voz feminina, assombrada mas rude. Estava com um sobretudo esfarrapado e um cachecol de tecido mais leve cobria a metade inferior do rosto.
– Você é uma Styx? – soltou Chester.
– Que coisa horrível de se dizer – foi a resposta incisiva.
Com um riso alto, a mulher desenrolou o cachecol. Soprou a ponta da flecha e baixou a besta.
Chester viu seu cabelo ondulado e ruivo, o rosto redondo e generoso. Era um rosto gentil, as bochechas enrugavam num sorriso. Chester não sabia que idade tinha, mas a colocava na casa dos quarenta. Exceto as roupas, ela podia facilmente passar por uma das amigas da mãe dele, que de vez em quando lhe faziam uma visita depois dos vários cursos noturnos que ela frequentava.
– Tem sorte por ser meu dia de ver as armadilhas, ou a essa altura você seria comida de aranha-macaco – disse a mulher, estendendo a mão para Chester. – Levante-se, meu bem.
– Então você não é Styx? – perguntou ele hesitante, olhando-a nos olhos.
Os gritos abafados de Will surgiram quando ela respondeu.
– Não, não sou Styx. Além disso, não era eu que tentava estourar aranhas-macaco com um rifle de Limitador. – Sua voz era meio rouca, como se não a usasse com muita frequência.
– Não é meu… Quero dizer… – ele gaguejou ao tentar explicar.
– Não se preocupe, meu bem, estou vendo que você não é um Pescoço Branco. – Ela o olhou nos olhos. – Ah, você não sabe como isso é bom – disse.
– Isso o quê? – perguntou ele, segurando sua mão e deixando que ela o ajudasse a se levantar.
– Pôr os olhos em outra pessoa! – a mulher respondeu, como se a resposta a sua pergunta fosse óbvia. Ainda segurava a mão dele quando Will gritou novamente.
– Er… Meu amigo precisa de ajuda – Chester lembrou-lhe, tirando a mão.
Enquanto o garoto continuava a encará-la completamente pasmo, a mulher pendurou a besta no ombro. Tirando do cinto grosso em sua larga cintura alguns galhos do que pareciam ser plantas secas, ela as jogou no alto da pilha de criaturas em chamas. Um cheiro forte, mas não desagradável, permeou o ar.
– Isso vai impedir que outros desses parasitas apareçam – informou ela, enquanto ia pelo túnel onde a rede estava pendurada. Soltando uma corda em algum lugar no escuro, ela baixou gentilmente para o chão o fardo retorcido de Will, Elliott e o gato.
– Não se preocupe… Vamos tirar vocês daí em dois tempos – disse ela, puxando o alto da rede para soltar um laço.
Bartleby foi o primeiro a sair, grunhindo e arreganhando os dentes para a mulher.
– Um Caçador – disse ela, largando a rede e batendo palmas, deliciada. – Ora, nunca pensei que veria um Caçador de novo!
Bartleby concluiu que ela não representava risco e passou furtivamente por ela, dando-lhe uma farejada cautelosa. Estava muito mais interessado nas aranhas-macaco, como a mulher as chamara, circulando cautelosamente os restos.
Sem qualquer ajuda da mulher, Will tinha se soltado da rede. Levantou-se com dificuldade, depois esfregou a coxa.
– Esse gato idiota me mordeu! Chester, o que acont… – ele parou quando seus olhos encontraram a mulher. – Mas quem é você?
– Martha – respondeu ela. – Mas as pessoas me chamam de Ma.
– Martha? – disse Will, meneando a cabeça, sem acreditar. – Ma?
– Sim, Ma. Era assim que costumavam me chamar – disse ela, examinando Will. – Ora, veja só você. Cabelo branco e esses lindos olhos claros. Sem dúvida nenhuma nasceu sob a relva.
– O que isso quer dizer? – perguntou Chester, estarrecido.
– Quer dizer que eu nasci na Colônia – disse-lhe Will. – Você sabe… sob a relva… da Terra.
– Ah, sim, entendi – disse Chester.
Martha percebeu a forma imóvel de Elliott na rede.
– Tem mais um de vocês. O que houve com ele? – perguntou, com a testa vincada de preocupação. – Espero que não tenha se machucado com minha armadilha.
Will saiu de seu assombro e de imediato curvou-se para desemaranhar a rede em volta de Elliott. Depois a levantou.
– Ora essa, é uma jovem! – exclamou Martha ao ver o rosto de Elliott. – Qual é o problema dela?
– Bom, er, senhorita, er, Ma… Martha – começou Will, lançando-se em uma explicação de como eles foram caçados pelos Limitadores, depois jogados no Poro graças à artilharia deles.
De braços cruzados, ela ouviu atentamente por um minuto, depois ergueu uma das mãos pequenas para silenciá-lo.
– Desculpe, meu bem, preciso lhe dizer que não estou entendendo nada – admitiu, meneando a cabeça. – Sabe quando foi a última vez que ouvi outra voz? – De repente ela descruzou os braços e, colocando a mão por dentro do casaco, coçou vigorosamente uma axila de maneira nada refinada.
– Há muito tempo? – disse Will, olhando de viés Martha terminar de se coçar, colocar os dedos na boca e chupar.
– Você entendeu direito, meu bem – disse ela. – É melhor vocês todos virem comigo, mas preciso recolher toda essa comida. Parece que vamos precisar de cada pedacinho. Mais bocas para alimentar agora.
Will e Chester trocaram olhares enquanto ela despregava um saco do cinto, murmurando alguma coisa sobre não ter tempo nenhum para cortar a carne.
– Então isso é seu? – perguntou Will, apontando na direção dos bancos horríveis.
Mas a mulher não respondeu, inclinando a cabeça e olhando afetuosamente para Chester.
– Você é um garoto grande e forte. Lembra muito meu filho. – Ela suspirou fundo. – Poderia manter isso aberto para mim, amorzinho? – perguntou ao passar o saco para Chester. Depois começou a recolher todos os pedaços de aranha-macaco que queimavam, colocando-os no saco.
Chester murmurou “comida?” para Will, segurando o saco com o braço esticado e torcendo a boca como se fosse vomitar.
Mas Will não respondeu, sua curiosidade era evidente enquanto ele passava os olhos pelo que restava das criaturas.
– É estranho. Parecem insetos ou… Ou talvez aracnídeos, mas essas coisinhas brancas e brilhantes são dentes?
– Sim, são as presas – respondeu a mulher ao andar pelo lugar, pegando os restos medonhos. – Junto com essa luz que elas têm num talo, usam-nas como isca para pegar sua vítima.
– Fascinante – murmurou Will, metendo sem nenhuma hesitação a cabeça pelo saco que o amigo achava tão repugnante.
– Lá vamos nós de novo – grunhiu Chester consigo mesmo.
Capítulo Seis
– O detalhe está no pó… O detalhe está no pó – repetia dr. Burrows sem parar, ajoelhado diante de um esqueleto humano semienterrado.
Ele descascava o fungo, cavava o sedimento e revelava mais ossos, mas parou ao ouvir um baque distante e muito fraco. Não sabia o que poderia tê-lo causado, mas levantou-se e gritou a plenos pulmões:
– Olá! Olá! Alguém aí?
Embora tivesse percorrido muitos quilômetros, certificou-se de que sempre descia, para continuar perto do Poro. A última coisa que queria era se perder.
E então ele achou ouro. Viu o esqueleto e começou a escavar.
Agora, ao tentar ouvir qualquer som distante, só encontrou o silêncio e disse a si mesmo que deve ter sido imaginação. Dando de ombros, voltou a sua descoberta. Ao puxar mais do fungo e soprar uma fina camada de areia em volta dos velhos ossos, seu rosto se iluminou.
– O que temos aqui? – disse ele ao dar com um objeto na mão do esqueleto. Com cuidado, afastando as falanges – os ossos pequenos que antes formavam os dedos – ele ergueu o objeto. Era um pedaço de cerâmica não muito diferente da lanterna de um gênio, com um bico e uma tampa que parecia estar presa. Ele futucou a ponta do bico com a unha suja. – O pavio deveria estar aqui – disse em voz alta. – Então vocês, fenícios, ou o que quer que fossem, usavam lâmpadas a óleo como fonte de luz.
Colocando cuidadosamente a lâmpada de lado, continuou a limpar mais o solo solto, as mãos tremendo de expectativa e ânsia. No brilho de seu globo luminoso, dr. Burrows formava uma figura muito triste, recurvada sobre o esqueleto, assobiando fraquinho consigo mesmo. Seus óculos estavam meio tortos – bateram durante a queda no Poro – e as partes de seu rosto que não estavam cobertas pela barba desigual eram esfoladas e machucadas. A camisa estava esfarrapada nas costas e uma das mangas quase rasgadas pendia por fiapos. E embora ele sempre fosse de constituição leve, tinha perdido muito peso e começava a se assemelhar ao esqueleto em que trabalhava.
– Bingo! – exclamou ao encontrar o que parecia uma caixa de madeira. Puxou-a da terra com entusiasmo demais e ela se esfacelou. Mas, em meio aos restos da caixa, havia uma série de tabuletas de pedra, pequenas e achatadas, do tamanho de cartas de baralho, com bordas arredondadas.
– Ardósia, e obviamente trabalhadas – observou, esfregando a tabuleta de cima na camisa para limpá-la. Depois começou a examinar mais atentamente, descobrindo que havia algumas letrinhas entalhadas ali, letras que ele reconheceu. Eram idênticas aos caracteres que encontrara nas Profundezas, caracteres que, usando sua Pedra de Burrows, como batizou, poderia traduzir. Apesar de ter perdido o diário ao tombar no Poro, imaginou que se lembraria do suficiente para lhe dar uma compreensão rudimentar do que havia nas tabuletas.
Por mais que se concentrasse, porém, as letrinhas mínimas pareciam dançar diante de seus olhos, e ele levou séculos para identificar apenas algumas palavras. Ele retirou os óculos e os limpou, com o cuidado de não desalojar as lentes da armação retorcida. Mas isso não pareceu ajudar a enxergar melhor, e ele desistiu depois de algum tempo.
– O que há de errado comigo? – grunhia ao inspecionar as outras tabuletas, descobrindo que nelas havia diagramas minúsculos, além da escrita. – Orientações… Poderia ser… um mapa? – disse, virando-as de um lado para outro. – Ah, não sei – suspirou, frustrado em seus esforços para encontrar algum sentido nelas. Embrulhou as tabuletas num lenço e as colocou com cuidado no bolso, depois voltou a escavar o esqueleto. Além de um par de sandálias de couro muito apodrecidas, não havia mais nada digno de nota.
Levantando-se, dr. Burrows retomou seu caminho. Tropeçando por trechos alternados de fungo, pedras nuas e correntes de sedimentos finos, ele se perguntou se haveria outros artefatos ali embaixo – talvez descobrisse algo que tivesse relação com o mapa nas tabuletas, se é que era mesmo um mapa dali. Mantendo os olhos abertos para qualquer ponto de referência, ele percebeu que o fungo talvez os estivesse cobrindo. Dependendo do quanto crescera ao longo dos milênios, podia estar escondendo toda sorte de coisas. E ele se perguntou se talvez a pobre alma cujo esqueleto encontrou estava ali porque ele ou ela caíra no nível errado do Poro e se perdera. Se fosse assim, dr. Burrows também estava no lugar errado, e portanto o mapa seria inútil.
Ele se empertigou ao se lembrar de quando estava caindo no Poro e do completo e absoluto pavor da escuridão se abrindo diante dele, parecendo continuar eternamente, até que ele bateu de barriga num afloramento de fungo. Não se feriu gravemente, mas o pior era que estava muito despreparado para qualquer exploração; sua mochila, com toda a comida e água, seu equipamento e o diário em que trabalhou tanto por tanto tempo tinham ficado para trás.
Recomeçou a andar pelo túnel com o estômago roncando impiedosamente. Se não fosse pela gravidade baixa, sabia que não teria forças suficientes nem para impelir o próprio corpo. Estivera bebendo de regatos que fluíam pelas paredes do túnel, mas precisava comer alguma coisa, e logo.
Chegando a uma fissura larga, ele a olhou com pavor.
– Sempre descendo… Sempre descendo – lembrou-se, segurando o globo luminoso à frente numa tentativa de enxergar a profundidade.
Depois de ter viajado tão longe na Terra, de jeito nenhum ia desistir agora. Estava decidido a procurar mais evidências da raça antiga e, a julgar pelo esqueleto, talvez não estivesse longe do objetivo de sua busca. Às vezes ele se perguntava se por fim encontraria toda uma pilha de esqueletos, o lugar de descanso final de almas perdidas que pereceram em sua busca pelo “Jardim do Segundo Sol” de que tomara conhecimento no templo em ruínas.
– Vamos a um pouso suave – falou, preparando-se para pular. Ele se compôs e saltou no meio da fissura, tendo vislumbres de fibras de fungo nas paredes e das diferentes camadas de rocha ao descer. Pousou espirrando água de uma pequena poça, dobrando os joelhos para absorver o impacto e rolando de lado. – Consegui – disse, embora não parecesse particularmente aliviado.
Agora ensopado, ele se levantou. Então foi acometido de uma onda de vertigem e caiu no chão de novo, inconsciente.
– Pai! Pai! – Dr. Burrows ouviu enquanto alguém o arrastava da poça. Quem quer que fosse, puxava sua cabeça para cima e averiguava se seus óculos estavam no lugar.
Ele abriu os olhos e uma imagem entrou em foco, tornando-se nebulosa de novo.
– Rebecca – sussurrou ele, fraco. – Sonhando… Eu devo estar sonhando.
– Não, não está, pai. Sou eu.
Dr. Burrows obrigou os olhos a se abrirem inteiramente, fazendo o maior esforço para olhar a pessoa diante dele.
– Devo estar delirando.
– Não, não está. Sou eu – dizia a gêmea Rebecca. Ela apertou sua mão com força. – Olha, está vendo, eu sou real.
– Rebecca? O que… O que está fazendo aqui? – disse ele, ainda sem acreditar em seus olhos.
– Ouvi você gritar – respondeu ela.
Depois dr. Burrows viu o que ela vestia.
– Roupas de Limitador… De Styx? – Ele esfregou a testa, confuso.
– Sim, pai, eu sou uma Styx – disse ela sem hesitar. – E parece que você precisa comer alguma coisa. – Ela estalou os dedos e dr. Burrows viu uma figura sair das sombras.
– Um soldado? – grasnou dr. Burrows.
A face encovada do homem não trazia emoção enquanto seus olhos penetrantes encontraram os do confuso dr. Burrows. O Limitador entregou algo a Rebecca.
– Tome, coma um pouco dessa carne. Não vai querer saber de onde veio, mas pelo menos o gosto é razoável quando cozida – disse ela, rasgando um pedaço e enfiando na boca do dr. Burrows.
Ele mastigou, agradecido, examinando a gêmea Rebecca e o Limitador.
A comida surtiu efeito e ele se empertigou de imediato.
– Mas como você…?
– Mais? – perguntou ela, enfiando outro naco da carne de aranha-macaco na boca dele antes que pudesse responder.
– Não entendo o que está fazendo aqui. Devia estar em casa – ele a repreendeu, embora o ato tenha perdido parte do efeito, porque sua boca estava cheia. – Sua mãe sabe onde você está? – exigiu saber.
A gêmea não conseguiu reprimir uma risadinha.
Sra. Burrows estava sentada atrás do microfone em que estivera falando. Luzes fortes brilhavam em seus olhos e o calor a fazia transpirar. Nunca imaginou que seria assim, sua primeira vez na telinha. Este era o desejo de toda uma vida – estava mesmo aparecendo na televisão! Mas o mais importante para ela era que seu caso finalmente recebia a atenção que merecia.
O apelo público por informações sobre sua família desaparecida foi o último item do programa da polícia, e ela estava em um grande estúdio com pessoas com pranchetas e fones de ouvido, tudo zumbindo tão caoticamente que parecia que nenhum deles sabia realmente o que devia fazer. Sra. Burrows vira que vários policiais do “Caso da Família de Highfield”, como era chamado, se reuniam nos bastidores. Quando os olhou nos olhos, todos foram evasivos. Estava claro que ainda era a principal suspeita do caso, embora não houvesse uma prova sequer contra ela. Mas se eles não acreditavam no que ela contou, por que permitiam que fizesse um apelo público?, perguntou-se. Será que esperavam que se deixasse enganar por um falso senso de segurança e revelasse alguma coisa? Ela não entendia por que chegariam a esse ponto.
Concentre-se, disse a si mesma enquanto lia o último parágrafo da declaração que o psicólogo da polícia a ajudara a escrever.
– … porque alguém deve saber para onde eles foram ou o que aconteceu com eles – disse sra. Burrows, soltando um suspiro trêmulo. Ela olhou a lente da câmera, como se estivesse perturbada demais para continuar. – Então, por favor, se vocês souberem de alguma coisa, qualquer coisa, entrem em contato com a polícia. Eu só quero minha família de volta.
A luz vermelha no alto da câmera se apagou e outra piscou enquanto o inspetor Blakemore assumia. Vestia seu melhor terno e tinha um novo corte de cabelo especialmente para a ocasião. E, ao falar gravemente para a câmera, ergueu uma sobrancelha, como se pensasse que era James Bond. Celia Burrows nunca o vira fazer isso.
– Agora estamos tratando das circunstâncias que cercam o desaparecimento do dr. Roger Burrows e de Will e Rebecca, e do colega de escola de Will, Chester Rawls, como altamente suspeitas.
Sra. Burrows viu o monitor da TV ao lado da câmera que mostrava o que realmente estava sendo transmitido enquanto o inspetor Blakemore falava. Apareciam várias fotos que ela dera de sua família, seguidas por uma foto recente de Chester com o uniforme da Highfield High School. Depois o inspetor Blakemore apareceu na tela de novo. Antes de falar, fez uma pausa dramática, a sobrancelha subindo ainda mais na testa, como se pudesse se desprender do corpo.
– Esta é uma imagem aprimorada, extraída de uma gravação de circuito de segurança. – Uma imagem granulada em preto e branco apareceu na tela. – Mostra uma mulher com quem gostaríamos de conversar sobre o caso. Ela tem cerca de um metro e setenta de altura, é magra e possivelmente tem o cabelo tingido de castanho, embora sua cor natural possa ser o louro ou mesmo o branco. Tem mais de trinta anos e é possível que ainda esteja na região de Londres. E aqui temos uma representação artística para dar uma ideia mais clara de sua aparência. – Apareceu outra imagem no monitor. – Se tiverem qualquer informação sobre seu paradeiro, o número de emergência é…
Sra. Burrows parou de ouvir quando, pelo brilho das luzes do estúdio, viu os pais de Chester na beira do palco. Sr. Rawls amparava sra. Rawls – ela parecia estar chorando e não conseguia se manter de pé.
Celia Burrows se despediu do inspetor Blakemore e dos outros policiais. Seguia na direção do sr. e da sra. Rawls quando sr. Rawls, com o braço ainda nos ombros da mulher, simplesmente se virou e a olhou feio, meneando a cabeça. Sra. Burrows parou de pronto. Tinha se encontrado com ele uma ou duas vezes na delegacia de Highfield, mas sua expressão fora pétrea e ele fora pouco comunicativo com ela em cada ocasião. Um dos policiais do caso mais tarde lhe contou que os pais de Chester tinham ficado furiosos ao saberem que ela estava desmaiada por ter tomado comprimidos para dormir na noite em que se descobriu que os meninos tinham desaparecido. Culpavam-na por não ter cuidado direito dos garotos. Sra. Burrows não aceitava que era sua culpa – Will sempre saía para fazer o que quisesse. Pelo menos era escavação e não causava problemas na High Street com as outras crianças.
Mas agora ela ficou abalada com a reação do sr. Rawls. Ao lado do palco, viu um bebedouro de água e foi se servir. Enquanto bebia a água, ouviu vozes vindo de trás de uma prateleira de equipamentos.
– Então acha que foi ela? – perguntou uma voz.
– Claro. Ela tem toda a culpa do mundo – respondeu outra voz com sotaque escocês. – Em nove entre dez casos, alguém da família é o assassino… Você sabe disso. Quantas histórias de parentes malucos já tivemos neste estúdio e um mês depois não dava outra, eles piravam completamente?
– É, isso lá é verdade.
– Já deu uma boa olhada nela? Essa Burrows é uma velha amargurada, não tenho dúvida nenhuma. Ela é tão típica dos subúrbios… Cheia de raiva reprimida, de saco cheio de sua vida falsa e sem sentido. Deve ter pulado a cerca e o marido descobriu, então ela acabou com ele. E os filhos sabiam demais, então ela fez o mesmo com eles, já que estava com a mão na massa. O melhor amigo do filho, Charley ou sei lá como se chama, bom… Coitadinho… Acabou apanhado nisso também.
Sra. Burrows contornou o equipamento para ver quem estava falando. Um homem atarracado e corpulento, de cabeça raspada e barba cheia, enrolava um fio elétrico ao falar; o outro, um sujeito magricela com uma camiseta branca, batia na coxa com um microfone enquanto ouvia. Eram só dois técnicos do estúdio.
– É, ela pode ser um dragão velho – disse o magricela, coçando a cabeça com a ponta do microfone.
O barbudo viu sra. Burrows e deu um pigarro alto.
– É melhor ver o que eles querem no estúdio 13, Billy – disse ele.
O magricela baixou devagar o microfone ao lado do corpo, com uma expressão confusa.
– Mas não temos um estúdio 13… – disse ele. Ao ver sra. Burrows parada ali, percebeu o que o colega tentava lhe dizer. – Estou indo, Dave. Agora mesmo – murmurou enquanto eles se esbarravam ao tentar sair rapidamente dali. Celia Burrows continuou onde estava, vendo-os partir, com o copo de plástico amassado na mão.
PARTE DOIS
A Cabana de Martha
Capítulo Sete
Era assombroso ver como Martha se movia, adentrando os túneis como uma bala disparada por um cano de esgoto. Contrariando sua aparência, ela podia se movimentar com a rapidez de um leopardo; era evidente que estava morando naquele ambiente de baixa gravidade já havia algum tempo e estava completamente sintonizada com ele.
Bartleby a olhava em silêncio e tentava seguir seu exemplo enquanto ela ricocheteava de um lado a outro do túnel. Por várias vezes ele avaliou mal o impulso necessário e se chocou descontrolado com o teto ou a parede oposta. Will e Chester se acostumaram ao espetáculo do infeliz gato dando cambalhotas pelo ar, soltando seus miados de surpresa.
Os meninos faziam todo esforço do mundo para acompanhar Martha, mas Will se recusava a ir rápido demais porque estava preocupado em não sacudir Elliott. Quando sua inesperada salvadora parou novamente para que a alcançassem, eles a ouviram balbuciando consigo mesma. Era difícil entender o que dizia e Will percebeu que talvez ela nem estivesse ciente do que fazia.
– O que podemos fazer pela menina? – murmurou ela na direção deles, depois se virou.
– Bom, como eu disse, ela quebrou o… – começou Chester.
– O quê? – Martha o interrompeu, virando-se para olhá-lo.
– Você perguntou pela Elliott. Ela quebrou o braço.
– Não perguntei nada e você já me disse isso – disse Martha, franzindo o cenho para Chester, como se fosse ele que agisse de forma estranha. – Hora de outro – disse. Puxou um dos pequenos ramos de seu cinto e o segurou sobre o archote aceso até que queimasse, depois o agitou no chão. O cheiro pungente rapidamente encheu o espaço fechado.
– Eita! – disse Will, torcendo o nariz. – Isso é muito forte. Me lembra alcaçuz ou coisa assim!
– Sim, lembra, não é? Chama-se fogo-anisado. – Martha lhe lançou um olhar sagaz. – Tem o faro dos colonistas, não tem, meu bem? Sente cheiro como um cão de caça?
– Bom, sim, acho que sim – respondeu Will. – Mas por que você está queimando essa coisa? O que ela faz? – perguntou.
– Se não tiver cuidado, as aranhas-macaco se reúnem nas aberturas do teto e de repente caem em cima de você. A fumaça do fogo-anisado as mantém afastadas. Eu cultivo anis no meu jardim, sabe? – disse ela, lançando-se novamente pelo túnel.
– Jardim? Seu jardim? – disse Chester às costas de Martha enquanto ela prosseguia. A palavra soava cotidiana e reconfortante naquele lugar estranhíssimo. – Ela disse mesmo jardim? – perguntou a Will.
– Quem sabe? – cochichou Will, envesgando os olhos para Chester, caso o amigo não tivesse percebido que a mulher obviamente tinha vários parafusos frouxos.
– Fiquem atentos por aqui – alertou ela assim que Will e Chester a alcançaram de novo. – A cabana é estreita e o vento é forte.
– Cabana? – disse Chester.
– Sim, é estreita.
– Acho que ela quis dizer plataforma – sugeriu Will a Chester em um sussurro.
Eles deram em uma saliência de fungo que mal passava de um metro de largura, além da qual Will novamente distinguia o vazio escancarado.
– O Poro? – perguntou ele a si mesmo num sussurro. Mas algo parecia diferente ali. O ar era incrivelmente úmido e em vez da cascata de chuva que vira antes, havia nuvens de vapor subindo no ar. E, ao olhar o outro lado, tudo ficou saturado de um brilho vermelho e forte – depois ele sentiu o calor no rosto e entendeu que não podia ser o Poro.
Chester escolheu este momento para falar, interrompendo os pensamentos de Will.
– Não foi daqui que viemos? – perguntou ele. – Esse não é o Poro de novo, é?
Martha riu.
– Não, não é o Poro… É outra das Sete Irmãs. Chamamos esta de Bafo de Mary. – Ela virou a cabeça e os meninos a ouviram murmurar. – Não chamamos, Nat?
Nesse instante, Chester lançou um olhar de urgência a Will, que sabia exatamente o que o amigo pensava. Não havia dúvida de que eles estavam nas mãos de uma velha muito confusa, que nem parecia capaz de entender os nomes dos dois direito.
Mantendo-se junto à parede, seguiram com muito cuidado pela saliência escorregadia de água. A iluminação limitada lançada pelo globo de Chester e o archote aceso de Martha dava a Will a impressão de que este vazio tinha a mesma escala do Poro. Ele manteve os olhos longe da escuridão depois da beira do caminho, mas se sentiu sendo tragado por ela. O impulso voltara, o ímpeto inexplicável de saltar da plataforma que o assaltara antes. A voz que não era realmente uma voz, mas algo muito mais poderoso e profundo, como um desejo irresistível, tentava assumir o controle, obrigá-lo a agir.
– Não – murmurou Will entre os dentes trincados. – Controle-se. – Precisava pensar em Elliott. O que estava fazendo? Qual era o problema dele?
Depois de vinte minutos de caminhada lenta pela plataforma, Will ficou tremendamente aliviado quando o caminho fez uma curva para outra abertura na parede. Deixando o vazio para trás, Will cambaleou alguns passos, batendo no amigo.
– Você está bem? – perguntou Chester.
– Estou… Só tropecei – disse-lhe Will enquanto ele e Chester seguiam Martha por uma galeria extensa, onde a cultura onipresente de fungos tornava-se cada vez mais rala até que Will podia ver claramente áreas de pedra escura em volta. Depois de mais alguns minutos, parecia não haver mais fungo nenhum. Era uma novidade sentir os pés esmagando lascas enquanto eles subiam uma ladeira suave.
– Chegamos – declarou Martha quando uma grande caverna se abriu diante deles. Do chão ao teto, uma espécie de barricada curva ou baluarte se estendia por trinta metros por toda a lateral. Martha levou os meninos a meio caminho da barricada. Will via que era formada de muitas estacas de metal verticais, sobrepostas e soldadas. E as estacas de metal em si eram variadas; algumas eram opacas, outras muito polidas, e muitas eram perfuradas, com grades de círculos ou quadrados recortados por toda sua extensão. Algumas se destacavam das demais porque traziam vestígios de tinta azul ou verde.
Perto do que parecia ser um portão, havia um pesado sino de bronze, pendurado em um suporte mais ou menos na altura da cabeça. Martha tocou o sino duas vezes. Os meninos ficaram em expectativa enquanto os últimos ecos do chamado sumiam, mas ninguém apareceu.
– Velhos hábitos – Martha lhes informou ao abrir o portão.
– Você o deixa destrancado? – perguntou Will, enquanto Bartleby saltitava pelo portão.
– Sim, os filhotes do pó não são tão inteligentes – respondeu ela.
– Filhotes do quê? – disse Will, mas Martha já havia entrado. Will e Chester a seguiram e tiveram uma visão fantástica. A ladeira continuava, a altura do teto da caverna também aumentava e a alguns metros havia uma espécie de cabana térrea. Uma trilha levava à construção e dos dois lados havia canteiros das plantas mais maravilhosas. Como se elas fossem luminosas, os diferentes canteiros emitiam um brilho quase cintilante de amarelos, roxos, azuis e vermelhos, formando luz suficiente para que toda a área fosse saturada de sua sublime e linda radiância.
– Meu jardim – anunciou Martha com orgulho.
– Caramba! – Chester arquejou.
– Gostou? – perguntou-lhe ela.
– Gostei, é muito legal! – respondeu ele.
Ao se virar para Chester, ela mesma parecia estar brilhando por conta do elogio que ouviu.
– Essas plantas não estão aqui só para vocês olharem.
– Como aquelas que você queimou? – perguntou Chester.
– Sim, se eu não tivesse encontrado o fogo-anisado, não estaria viva para contar essa história.
– Mas de onde você tirou todas elas? – perguntou Chester.
– Nathaniel coletava espécimes para mim sempre que saía em expedições. Ainda tenho muito o que aprender sobre suas propriedades, mas tempo é uma coisa que não me falta.
– Quem é Nathaniel? – interrompeu Will, incapaz de se conter.
– Meu filho. Ele está na colina – respondeu Martha com um olhar para o alto da ladeira perto da cabana. Will tentou ver para onde ela olhava, cheio de esperança de que pudesse haver alguém um pouco menos peculiar no lugar, alguém que pudesse ajudar os três.
– Nós vamos conhecer…?
– Vamos colocar a menina para dentro, sim? – Martha interrompeu-o bruscamente, fechando a porta e passando uma única tranca por dentro.
Chester atraiu a atenção de Will, fazendo-o olhar para a lateral da porta, onde havia uma solda e um par de cilindros de gás em um carrinho, ambos cobertos de uma espécie de trepadeira. Era evidente, pelas plantas que se espalhavam pelo equipamento e a ferrugem matizando os tanques, que nada disso era tocado havia um bom tempo. E não havia dúvida de que era equipamento de solda da Crosta.
– Nathaniel… Ele fez essa barreira? – pergunto Chester, inseguro.
Assentindo, Martha virou-se para levá-los para a trilha banhada de brilho etéreo.
No meio da subida, Bartleby parou de repente, os grandes olhos fixos em alguma coisa. Will parou atrás dele e ouviu o som de água corrente.
– Um riacho? – disse ele.
Martha parou ao lado da trilha.
– Corre uma fonte de água fresca atrás da cabana – explicou ela enquanto Will localizava o pequeno córrego cristalino, sua corrente banhada na luz roxa de cachos pendentes de flores pequenas. Parecia de outro mundo.
– Esse lugar é demais – disse Will.
– Obrigada – respondeu Martha. – É meu pequeno santuário. E eu imagino que tenha sido este o motivo para eles escolherem este lugar para a cabana.
– Quem? Quem escolheu? – perguntou Will, animado.
– Eles eram marinheiros.
– Marinheiros?
– Sim. Verá quando chegar lá – respondeu ela.
Na frente da cabana, havia uns degraus que levavam a uma varanda. Chegando no alto, Will parou para inspecionar uma das grossas vigas que escoravam o telhado da varanda.
– Carvalho – disse ele, passando o dedo na madeira, tão antiga que tinha escurecido até quase ficar preta, com sua superfície coberta de numerosos canais de larvas. – Carvalho muito antigo – concluiu, ao examinar a cabana mais atentamente e ver que sua estrutura também era feita dessas vigas e que as paredes haviam sido construídas com tábuas igualmente antigas em encaixes.
– Mas de onde veio tudo isso? – perguntou Will, empurrando umas das tábuas com o pé e fazendo-a ranger. Ele se virou para Martha.
– Acreditamos que os marinheiros recuperaram do barco. Mas não sobrou nenhum para perguntar quando chegamos aqui.
Em uma extremidade da varanda, vários barris e grandes baús estavam empilhados e na frente de uma janela de persianas fechadas havia um banco e algumas cadeiras.
A porta da frente da cabana estava entreaberta e Martha a abriu com o cotovelo, entrando. Will e Chester não esperaram ser convidados, seguindo-a para dentro. No início, só o que conseguiram ver no escuro foi um centro de pedra em que brilhavam brasas e uma espécie de fogão construído ao lado.
– Coloque lenha no fogo, querido – pediu Martha a Chester. – Podem se secar perto dele, que vou nos preparar um caldo em um minuto – acrescentou, acendendo duas lamparinas penduradas do teto. Sua luz amarela revelou o resto do ambiente.
– Sim, claro – respondeu Chester, mas ele não se mexeu, cativado pelo interior do aposento, que era enganosamente grande.
– Vou preparar uma cama para a menina – disse Martha a Will, andando por um corredor. Os meninos ouviram uma cacofonia de estrondos e grunhidos, acompanhada por uma salva de tagarelice, como se Martha falasse com alguém. Ela claramente estava ocupada lá dentro.
– Olha só esse lugar! – exclamou Chester, quando ele e Will puderam avaliar o que havia em volta deles.
– Cômodas – Will observou ao ver três armários baixos com cantoneiras de bronze encostados numa parede. Em cima dos armários havia uma fila de objetos entalhados – Will distinguia uma figura com um rifle e ao lado dela uma vaca das cavernas – um dos grandes aracnídeos que viviam nas Profundezas. Seus olhos percorreram o restante da sala e ele podia ver, suspensa nos cantos, toda sorte de parafernália náutica – arpões, cabos e polias, uma rede pequena, até um sextante náutico de bronze escurecido.
Depois Will localizou várias espadas com lâminas largas e um tanto curvas, também instaladas na parede.
– Sabres! Só pode ser brincadeira! – exclamou ele. – Então ela tem razão. Tudo isso parece ter vindo de um navio, e um antigo. Um galeão, quem sabe? – disse a Chester. – Está vendo essas vigas aqui? – Ele apontou o teto. – São muito antigas, podem até ter vindo do Mary Rose.
– Mas um navio… Aqui embaixo? – perguntou Chester. – Como é possível?
– Não sei. E como Martha chegou aqui? – perguntou Will assim que ela apareceu deslizando pela sala.
– Ainda não colocou a lenha, querido? – ela incitou Chester. Não havia nada de desagradável no modo como perguntava, como se fosse uma mãe lembrando o filho de cumprir seus deveres.
– Desculpe, Martha – disse Chester, com um sorriso. – Vou colocar agora mesmo.
– Bom garoto – disse ela, depois se virou para Will. – Então está curioso sobre como eu vim parar aqui em baixo?
Will ficou constrangido por ter sido ouvido e seu rosto corou enquanto ele olhava sem jeito para os pés.
– Fui empurrada no Poro por meu marido – disse ela abruptamente.
– Oh… – Will se atrapalhou, assombrado com a franqueza dela.
– Fomos banidos da Colônia e moramos nas Profundezas como renegados durante anos. Não foi fácil, posso lhe dizer, criar um filho pequeno naquele buraco do inferno. Mas então, um dia, creio que meu marido simplesmente decidiu que já estava farto de nós – disse ela enquanto abria a tampa de um cesto e pegava uns cobertores. – Pode-se dizer que foi uma espécie de divórcio.
Martha falava nisso de forma tão trivial que Will começou a perder o constrangimento.
– Você conhecia algum outro renegado? – perguntou ele. – Elliott era um deles… Ela andava com um homem chamado Drake. Quem sabe você o conheceu?
Martha endireitou o corpo com os cobertores nos braços e olhou pensativamente para Will.
– Drake… Não, não conheço o nome. Talvez tenha vindo depois de mim.
– E Tom Cox? – tentou Will. – Ele era algo como o arqui-inimigo de Drake.
Martha apertou os cobertores nos braços, seu rosto se endurecendo em uma máscara de puro ódio.
– Ah, essa escória eu conheci. Sempre imaginei que meu marido cairia sob o feitiço dele… E foi Cox que disse a ele para… para se livrar de nós – ela sibilou, as palavras saindo com dificuldade, como se de repente tivesse perdido o fôlego. Depois sua expressão passou ao desânimo e ela relaxou os braços. Fungou alto e assoou o nariz na manga. – Traga a menina para eu dar uma boa olhada nela.
Will carregou Elliott para o pequeno quarto lateral. Embora no meio tivesse uma cama de bom tamanho com dois travesseiros finos, o cômodo claramente fora usado como uma espécie de depósito. Uma pilha de curiosidades estava encostada numa parede, como se Martha tivesse jogado tudo ali de qualquer jeito. Will viu um monte de malas de couro e um velho baú de estanho com uma escrita rebuscada em sua tampa, e muitos rolos de tecido. Havia um leve cheiro de óleo no quarto enquanto a lanterna sibilava suavemente, lançando sua luz.
– Aqui – disse Martha ao terminar de abrir os cobertores na cama. Depois que Will baixou Elliott, Martha se sentou ao lado da menina. Desamarrou a corda que prendia o braço quebrado ao peito e o estendeu com muito cuidado.
– Ela bateu com força – disse ao examinar a cabeça de Elliott. Voltando sua atenção para o braço quebrado, Martha murmurava consigo mesma o tempo todo e Will só entendia uma ou outra coisa do que dizia. – Não, não é bonito de se ver – comentou Martha, depois examinou a mão de Elliott, vendo de perto as pontas dos dedos. – Mas ainda tem circulação. Que bom.
– Sabe como curar o braço dela? – disse Will. – Pode colocar uma tala nele ou coisa assim?
Martha murmurou, mas não levantou a cabeça ao colocar a mão na testa de Elliott, depois assentiu, como se aliviada.
– Não tem febre.
Ela se certificou de que Elliott ficasse numa posição confortável, arrumando os travesseiros sob sua cabeça, depois foi até a janela. Olhou para algo por vários segundos antes de falar.
– Preciso de uma xícara de chá.
– Chá? – disse Will, incrédulo.
Voltando à sala, onde a chaleira fervia, Martha realmente fez uma coisa que parecia chá, que tirou de uma lata amassada e colocou às colheradas numa chaleira escurecida. Também tinha açúcar, café e uma gama impressionante de temperos em caixas de madeira quadradas, num armário da lareira.
Eles tomaram chá em xícaras de porcelana lascadas sobre uma mesa e sentaram-se nas cadeiras de espaldar redondo, arrumadas em volta dela. No meio da mesa havia um busto em tamanho natural de um menino, que parecia ter sido entalhado em um pedaço de uma das vigas antigas. O menino sorria serenamente ao olhar para o céu. E junto do busto havia uma pequena maquete com duas figuras, um adulto e uma criança pequena de mãos dadas. Não tinha sido finalizada e havia alguns cinzéis e um montinho de lascas na mesa. Ao examiná-los, Will percebeu que a figura maior podia ser Martha.
A nova acha de lenha no fogo começou a queimar, longas chamas vermelhas lambendo de baixo. O brilho se misturou à luz amarela das lanternas a óleo na sala.
– É bonito aqui – disse Chester enquanto os três olhavam Bartleby ir para o tapete puído na frente do fogo. Esticando as garras, ele colocou uma pata e depois a outra no tapete, sem parar, tateando e amassando enquanto suas omoplatas imensas subiam e desciam sob a pele sem pelos. Depois, ronronando num volume incrivelmente alto, ele finalmente arriou no tapete. Rolou de costas e se esticou todo, com um bocejo gigantesco.
– Bart está feliz. Achou um lugar para ele – disse Will, sorrindo.
Lembrava tanto a primeira vez em que Will vira o felino colossal na casa dos Jerome na Colônia que ele ficou estranhamente comovido. Quase parecia a Will que ele estava em casa de novo. Ao olhar para Chester, viu que o amigo também se esquecera momentaneamente de todas as preocupações. Havia algo tão doméstico e familiar na situação em que se encontravam que eles pareciam visitar uma tia, particularmente porque sentiam o gosto de chá açucarado – mesmo que faltasse leite.
– De onde vêm todas as coisas nesta sala? – arriscou-se Will. – Era mesmo de um navio?
Martha confirmou.
– A maior parte já estava aqui, mas Nathaniel recuperou outras de um galeão em uma das Sete Irmãs – respondeu ela.
– Bem que eu achei que era um galeão – disse Will, assentindo. – Mas sabe como foi parar lá?
Martha balançou a cabeça, sem olhar para nenhum dos dois. Deu um pigarro tão alto que fez Chester se retesar na cadeira, depois assoou o nariz na manga de novo.
– Pode nos levar lá? – disse Will, decidido a descobrir o máximo que pudesse sobre o que havia ali embaixo.
– Nathaniel descobriu outros barcos também. Saía por semanas a fio e voltava com todo tipo de objetos, depois trabalhava neles aqui. Ele era tão habilidoso com as mãos. Todos os materiais para nossa barricada foram recuperados de um barco de metal.
Will franziu a testa para Chester, murmurando as palavras “barco de metal?”, mas agora não parecia a hora certa de se aprofundar na questão – havia algo mais premente que precisava saber.
– E Nathaniel – perguntou Will. – Onde ele está?
Martha gemeu com o esforço de sair da cadeira. Andou até uma lamparina a óleo e tirou-a do gancho, depois acenou para que os meninos a seguissem. Parou na varanda para olhar os vários canteiros de flores e, inclinando a cabeça para trás, respirou fundo pelo nariz. Will farejou também, sentindo não só o cheiro de fogo-anisado, mas uma abundância de outros aromas mais doces.
– Glorioso – declarou ela, levando os meninos por um caminho sinuoso para o terreno mais alto no fundo da caverna.
Eles passaram por um canteiro do que pareciam tremoços em chamas, as pontas emitindo um brilho que alternava entre um vermelho vivo e um laranja mais suave.
– Tratem de não chegar perto dos chapéus-de-cuspe – falou ela. – Eles podem ser irritantes e desagradáveis.
Nenhum dos meninos sabia o que ela pretendia dizer com aquilo, mas não iam se arriscar, então os dois continuaram no lado mais afastado da trilha de cinzas. Aparecendo do nada, Bartleby ficou atrás dos meninos, evidentemente sem querer perder a excursão.
Segundos depois, descobriram que estavam diante de um anjo entalhado em madeira. Tinha a altura de um homem, com uma expressão tranquila e longas mechas desgrenhadas que caíam sobre os ombros e suas asas de cisne, dobradas às costas.
– Nat… Nathaniel – sussurrou ela. – Foi aqui que o coloquei para descansar. – Ela baixou os olhos para as pedras cuidadosamente arrumadas abaixo do anjo.
– Então… então ele… er… está morto – disse Will com a voz fraca.
– Sim, morreu há dois anos – respondeu Martha com um tom rouco e os olhos ainda baixos, enquanto Bartleby se aproximava do anjo. Ele começou a erguer a perna traseira. Will e Chester o olharam, ambos mortificados com o que o felino obviamente pensava em fazer. Ele ficou consciente do intenso interesse e pareceu hesitar. Depois bufou e ergueu ainda mais a perna, e Will sabia que tinha de fazer alguma coisa para evitar o inevitável.
– Bart! Não! – sussurrou ele, fazendo gestos curtos e frenéticos, indicando que o gato devia sair dali.
Bartleby entendeu o recado. Olhando com raiva para Will, baixou a perna e seguiu lentamente para o fundo da cabana. Martha não pareceu perceber e Will, sentindo que devia dizer alguma coisa para preencher o longo silêncio, falou com ela.
– Você fez o anjo para ele?
– Não, veio do barco… da proa… Mas eu entalhei seu rosto… O rosto de meu menino – disse ela, distante, coçando a nuca. – Escolhi esse local porque era onde Nathaniel gostava de vir e se sentar. Era o lugar dele. E perto da parede, ali – disse, apontando a lamparina para que a luz caísse no chão depois do anjo –, há outros túmulos. Nathaniel sempre imaginou que os homens que construíram a cabana estavam enterrados aqui.
Ela virou-se como se tivesse falado tudo o que queria e estava prestes a voltar à cabana quando parou.
– Há uma coisa que vocês precisam saber. Nathaniel estava em uma de suas explorações quando caiu numa fenda. Quebrou várias costelas. As aranhas vieram… Parece que elas são capazes de sentir quando alguma coisa se fere ou está fraca e se amontoaram em cima dele, um monte delas.
Ela olhou para Will e Chester, um de cada vez.
– Nathaniel não tinha levado muito fogo-anisado, mas ainda conseguiu escapar delas e chegar em casa. – Ela ficou em silêncio por vários segundos. – Eu posso cuidar da maioria das coisas… Doenças e ferimentos. É preciso aprender rápido nas Profundezas. – Ela franziu o cenho. – As costelas de Nathaniel se curavam e ele estava indo bem quando… Quando de repente teve uma febre. Uma bem ruim. Fiz tudo o que pude por ele. – Ela soltou um suspiro trêmulo e roçou na frente da saia os dedos com crostas de terra. – É tudo que tenho a dizer. Ele tinha dezenove anos e era meu único filho. Simplesmente foi sumindo.
– Eu sinto muito – murmurou Chester.
A boca de Martha se fechou como se reprimisse lágrimas, e o silêncio se estendeu. Embora Will quisesse lhe dizer algumas palavras de pêsames, não conseguia pensar em nada. Depois Martha voltou a falar, com a voz mais firme.
– Nathaniel era mais velho do que sua amiga e forte como um touro, mas há alguma coisa ruim no ar deste lugar. Como as aranhas, a coisa espera até que você esteja ferido, depois se mete dentro de você. Ela o pegou, e espero que não aconteça a mesma coisa com sua amiga.
– Então deixa eu ver se entendi… Está dizendo que você foi uma Styx o tempo todo – disse dr. Burrows ao se sentar de frente para a gêmea Rebecca.
– Sou Styx de nascimento. Ninguém che torna uma Chtyx de repente – respondeu Rebecca, perdendo a paciência.
– Está chiando de novo. Tem alguma coisa errad…? – dr. Burrows começou a perguntar.
– Quebrei uns dentes quando caí no Poro – Rebecca o interrompeu, agora pronunciando com muita precisão enquanto fazia o máximo para controlar o chiado. – E eu pulei porque queria ajudar você.
Ele ficou em silêncio por um ou dois segundos, olhando-a com ceticismo antes de continuar.
– Então você era uma Styx de nascimento, e Will era um colonista… – Tirando os óculos, dr. Burrows massageou a ponte do nariz. – Mas você… Ele… Você é… Ele era… – disse ele, as palavras tropeçando uma na outra. Por fim, ao recolocar os óculos, era como se seus variados pensamentos entrassem em foco de novo. – Então, como acabamos adotando vocês dois?
– Por um golpe de sorte. Você e a mamãe levaram Will, e a Panóplia Styx decretou que eu também devia estar lá, para ficar de olho nele – disse a gêmea Rebecca, abrindo um meio sorriso ao dr. Burrows. – Por quê, vochê reprova ou coisa achim?
– Bom, francamente, sim… Acho que deviam ter nos informado – dr. Burrows bufou.
A gêmea Rebecca riu com desdém.
– Mas você não contou a mim ou ao Will que éramos adotados – rebateu ela, jogando com ele. – Não acha que nós tínhamos o direito de saber disso?
– Não é a mesma coisa. Parece que você sabia o tempo todo que era adotada… Mas, além disso, sua mãe e eu íamos contar quando chegasse a hora certa – disse dr. Burrows. Ele franziu a testa e inspecionou uma unha quebrada enquanto tentava lidar com o que acabara de saber.
Rebecca contou a maior parte da história que lhe era conveniente, mas não a história toda. E ela certamente não ia revelar que tinha uma gêmea idêntica.
– Tudo isso parece meio irregular – disse ele por fim, semicerrando os olhos pelos óculos tortos para um Limitador taciturno, que pairava atrás do ombro da menina Styx. – Passamos pelos canais corretos de adoção, então eu não entendo como também ficamos com você.
– Fala de mim como se estivesse comprando um segundo carro.
– Não seja tola, Rebecca. Não é nada parecido com isso – disse dr. Burrows num tom exasperado. – Eu só não entendo como pôde acontecer.
– E eu sinceramente não dou a mínima para como aconteceu – respondeu a gêmea Rebecca, começando a parecer um tanto entediada. – Tínhamos amigos na agência de adoção. Temos amigos em toda parte.
– Mas me parece que fomos enganados… Como se sua mãe e eu tivéssemos sido horrivelmente ludibriados – disse dr. Burrows. – E não gosto disso – acrescentou categoricamente.
– E imagino que não goste de meu povo também? – disse a gêmea Rebecca.
– Seu povo…? – começou dr. Burrows, sem deixar de perceber a tensão na voz dela.
– Sim, meu povo. Eles não o trataram mal na Colônia, trataram? Está dizendo que reprova os métodos deles? – A gêmea Rebecca agora estava eriçada e o Limitador se agitava atrás dela.
Dr. Burrows ergueu as mãos, alarmado.
– Não, eu não quis dizer nada disso. Não cabe a mim julgar. Meu papel é observar e registrar… Eu não me envolvo.
A gêmea Rebecca bocejou ao se colocar de pé, espreguiçando-se.
– Então você é meu padrasto, mas está dizendo que não está envolvido. Como isso pode funcionar? – Seu estado de espírito parecia ter mudado de repente, como se a raiva tivesse sido manifestada só para dar efeito.
Dr. Burrows, de boca aberta mas sem saber como responder, sentia-se num completo caos. Para completar sua confusão crônica, a pessoa que estava diante dele – que achava que era sua garotinha – era alguém formidável, e, embora não confessasse isso a si mesmo, ela o intimidava muito. Em particular porque o soldado Styx o encarava das sombras com seus olhos fixos, os olhos de um assassino.
– E então, papai – disse a gêmea Rebecca, destacando o papai como se não tivesse nenhum respeito pelo título –, eu cuidei para que fosse alimentado, como nos velhos tempos, e vejo que se sente melhor. Então me fale sobre isto – quis saber, pegando as pequenas tabuletas de pedra de dentro do bolso do casaco. Dr. Burrows de imediato tocou o bolso da calça, descobrindo que estava vazio. – Parecem uma espécie de mapa e é exatamente disso que precisamos agora – disse ela. – Você vai descobrir uma saída deste lugar para nós e vamos ajudá-lo.
– Ah, que ótimo – respondeu dr. Burrows desanimado, pegando as tabuletas que ela lhe estendia.
Capítulo Oito
– Olá, Jean – sra. Burrows bafejava ao atender a um telefonema da irmã no celular. Estava nervosa, andando rapidamente pela High Street de Highfield. – Sem fôlego? Sim, acabo de sair da academia – disse ela, erguendo um ombro para impedir que a alça da bolsa escorregasse. Afastou o telefone da orelha em resposta a uma explosão de risos da tia Jean, alta o bastante para ser ouvida por um homem que passava na direção contrária. – Sim, não sabe como isso me faz bem. Já marquei um mês de sessões com meu personal trainer. Devia experimentar.
Isto suscitou outra explosão penetrante, que fez com que um pombo próximo fugisse voando.
Se visse sra. Burrows andando pela calçada, Will ficaria maravilhado com a mudança na atitude da mãe adotiva. Havia uma leveza em seus passos que ele não teria considerado possível. Ela já parecia anos mais nova.
Enquanto a irmã tagarelava, sra. Burrows olhou o relógio.
– Olha, não tenho novidades da polícia e eu não posso falar agora. Estou esperando uma entrega no apartamento – disse, encerrando a ligação antes que a irmã tivesse a oportunidade de responder.
Ao virar a esquina, ela viu que o caminhão de mudança já estava ali.
– Ah, meu Deus, desculpe pelo atraso. Fiquei presa – gritou enquanto disparava a correr para um homem de macacão azul, prestes a voltar ao caminhão. Depois que ela abriu a casa, ele carregou toda uma série de caixas de papelão para dentro. Ela não perdeu tempo em cortar a fita de uma das caixas para examinar o conteúdo.
– De mudança? – perguntou ele, erguendo outra caixa para o alto de uma pilha.
– Sim, coloquei tudo isso no depósito até achar um lugar para morar – respondeu Celia Burrows distraidamente ao pegar várias fitas antigas de vídeo e jogar em um saco de lixo. – Hora de fazer uma faxina. Uma faxina de verdade.
Depois que o homem levou-lhe as últimas caixas, ela passou a tarde toda examinando-as. Havia tantas que mal tinha espaço para andar por elas, mas por fim chegou a um lote onde havia Quarto 3 escrito com caneta atômica.
– De Will – disse ao abrir a primeira delas. Desembrulhou o papel branco dos preciosos achados que tinham estado nas prateleiras do quarto dele – seu “museu”, com ele chamava. Havia tantos pratos de patê vitorianos, cachimbos quebrados, frascos de perfume e quinquilharias que seu colo logo estava cheio de objetos, e ela precisou achar espaço no chão.
Depois passou a uma caixa com os livros dele, grunhindo com seu peso, carregando-a para a mesa perto da janela. No início tirou cada livro para olhar por dentro, sacudindo-o pela lombada para ver se havia alguma coisa escondida entre suas páginas. Sem achar nada e se cansando do processo, começou a retirar os livros restantes da caixa e empilhá-los na mesa, sem olhar seu conteúdo. Perto do fundo da caixa estava o que a sobrecapa alegava ser um Guia geológico para as Ilhas Britânicas, datado dos anos 1960 ou 1970 a julgar pelo estilo antiquado da capa. Sra. Burrows não prestou nenhuma atenção nele, mas ao encontrar outro livro no fundo da caixa, franziu a testa. Este não tinha sobrecapa, mas letras douradas e desbotadas no tecido da encadernação traziam o título Guia geológico para as Ilhas Britânicas.
– Dois exemplares do mesmo livro? – disse a si mesma ao pegar aquele com a sobrecapa. Ela o abriu. As páginas não eram impressas – em vez disso, havia uma escrita à mão. – Olá – disse, sabendo de pronto de quem era a letra. De seu marido, dr. Burrows. Ela retirou a sobrecapa para ver o que havia por baixo. Era um caderno com capa imitando o mármore, com manchas roxas e marrons. Tinha colada na frente uma etiqueta com Ex Libris em caracteres rebuscados e o desenho de uma coruja de óculos redondos. E nesta etiqueta alguém tinha escrito Diário. Ela reconheceu a letra torta do marido de novo. – Então é isso. Finalmente vou descobrir o que realmente aconteceu – anunciou às muitas pilhas de caixas na sala. E ela não saiu da mesa nem uma vez enquanto lia o livro por inteiro, virando as páginas que com frequência traziam digitais de lama. – Will – disse, sorrindo com afeto, porque sabia que tinham de ser dele.
Avançando pelo diário, ela ficou sem fôlego de empolgação. Enfim tomava conhecimento do que Will e Chester tinham descoberto antes de desaparecerem. Embora não soubesse nada do túnel que os meninos haviam reescavado embaixo de sua antiga casa na Broadlands Avenue, ou da ligação entre o desaparecimento deles e as observações do marido, ela ainda sentia que fazia progressos. Sra. Burrows leu avidamente as ideias do marido sobre o estranho povo que identificou em Highfield, o globo luminoso que apareceu na casa da sra. Tantrumi e sobre um rico homem de negócios do século XVIII na cidade chamado Sir Gabriel Martineau. Ao chegar à parte sobre os prédios que este homem construiu na velha cidade de Highfield, inclusive a praça que trazia seu nome, ela parou para olhar por uns momentos pela janela antes de mergulhar novamente no diário. Depois chegou às últimas entradas, percebendo a data de uma delas.
– Foi naquela noite… A noite antes de Roger sumir – disse, a voz tensa. Seus olhos se fixaram nas palavras Preciso descer lá. Lendo até o final da entrada, a última do diário, voltou a essas palavras. – O que ele quis dizer com descer lá? Descer lá?
Verificou as páginas em branco do finalzinho do diário para ter certeza de não ter deixado passar nada. Na terceira capa, viu um nome e número de telefone escritos a lápis. Sr. Ashmi – Arquivos Municipais, ela leu.
Will e Chester passaram a noite na sala – Will numa pilha de tapetes que Martha tinha aberto no chão perto das cômodas, Chester em um móvel que ela chamava de “chaise long”. Os olhos de Chester se iluminaram quando ela falou disso na primeira vez, imaginando que dormiria em algo que se aproximasse de uma cama de verdade. Ele ficou dolorosamente decepcionado. Depois que a chaise longue foi limpa, descobriu que era curta e seus pés ficaram pendurados, e também que o antigo estofamento era duro como pregos. Apesar disso, o som tranquilizador do fogo e o cansaço dos dois os levaram a cair no sono em segundos.
Foram despertados por Martha batendo a chaleira na lareira.
– Bom dia! – trinou ela numa voz alegre enquanto os dois levavam os corpos doloridos à mesa.
– Chá – disse ela ao lhes entregar as xícaras. Depois colocou uma tábua de corte na mesa, em que havia um monte de caules verdes de plantas e uma seleção de raízes brancas de diferentes tamanhos e formatos. – Que tal um café da manhã? Aposto que os dois estão famintos – disse ela, cortando os caules e as raízes.
Chester olhou a massa nada apetitosa de vegetais enquanto ela trabalhava e gemeu.
– Er, não, obrigado, sério mesmo, Martha. Estou meio enjoado.
– Eu também – disse Will.
Martha franziu o cenho.
– Pode ser porque vocês são novos neste lugar – sugeriu ela. – Leva algum tempo para se adaptar. – Enquanto cortava, a faca escorregou de sua mão e voou no ar, realizando algumas cambalhotas. – Diabos! – disse ela ao pegá-la de novo, e terminou a tarefa. – Lembro que Nathaniel e eu passávamos pela mesma coisa.
– Baixa gravidade – disse Will. Observou o que tinha acontecido com a faca e assentiu para si mesmo. – Sim! Martha tem razão. Pode ser a baixa gravidade que nos deixa com essa sensação. Acho que precisamos nos acostumar com ela.
– Ora, os dois vão comer, quer queiram, quer não. Precisam conservar suas forças – disse Martha, saindo da cadeira e voltando à lareira, onde raspou os vegetais cortados em uma panela de água fervente. – Só precisam de uma boa tigela de minha sopa – disse com firmeza.
– E Elliott? – perguntou Will de repente. – Como ela está?
– Não se preocupe – disse Martha. – Dei uma olhada nela durante a noite e ela ainda estava apagada esta manhã.
– Pode fazer alguma coisa pelo braço dela? – Chester se arriscou.
– O primeiro item de minha lista hoje – disse Martha, futucando um molar com a unha do dedo mínimo. Depois de examinar o que tinha raspado do dente, ela o chupou na boca e mastigou com uma expressão pensativa. Chester, que observara isso, afastou o chá. Se antes estava pálido, agora ficou verde. Ele engoliu em seco, e alto.
– É sério, nada de sopa… Não quero nada, Martha.
– Acho que deve tomar um pouco – aconselhou Will. – Não comemos direito há séculos e, além disso, pode colocar tudo em funcionamento de novo. – Ele olhou em direção ao próprio estômago.
– É mais informação do que eu preciso – disse Chester.
Uma hora depois, foram todos ao quarto de Elliott. Will e Chester ficaram na soleira da porta enquanto Martha examinava Elliott detalhadamente.
– Então por que ela ainda está inconsciente? – perguntou Chester.
Martha passou as mãos no couro cabeludo e na nuca da menina, depois usou o polegar para erguer uma pálpebra e examinar a pupila.
– Ela teve uma concussão. Bateu forte com a cabeça. De qualquer forma, melhor para ela estar desmaiada enquanto dou um jeito no braço. Podem vir me ajudar?
Os meninos se arrastaram até Martha. Ela colocou duas talas prontas de cada lado do braço de Elliott.
– Segure isto – disse ela a Chester, passando alguns rolos de ataduras de linho que tirou do bolso do avental. – Muito bem, Will, vá para o outro lado da cama. Preciso que a segure firme.
Will obedeceu. Martha depois segurou o pulso de Elliott e o puxou várias vezes. Os meninos ouviram os estalos dos ossos quebrados raspando um no outro.
– Aaaah – disse Chester. – Que horrível…
Atrás de Will, houve um baque surdo.
– O que foi isso? – perguntou Will, ainda segurando Elliott pelos ombros.
– Seu amigo acaba de desmaiar. Deixe-o ali… Preciso que mantenha a menina parada – disse Martha a Will. – Tenho que fazer isso direito. – Puxou o braço de Elliott de novo, aplicando tensão enquanto o manipulava. Gotas de suor se formaram na testa e Martha murmurava consigo mesma o tempo todo.
– Parece melhor – disse Will.
Martha assentiu.
– Está tão inchado que é difícil de saber, mas acho que os ossos voltaram para o lugar – disse ela. Passou mais alguns minutos verificando o braço, depois pareceu se satisfazer. Com cuidado, colocou as talas de cada lado do braço e as enfaixou com as tiras de linho, amarrando cada rolo.
Martha se levantou e suspirou, enquanto Will também se erguia da cama. Ele se virou para ver Chester num amontoado no chão.
– É melhor levar Chester para a sala ao lado – Martha riu.
– The Highfield Bugle, 19 de junho de 1895 – Celia Burrows observou, curvada para o antigo jornal aberto na mesa diante dela. – Então, sr. Ashmi, o que exatamente estou procurando? – chamou.
Sra. Burrows estava na sala do arquivo histórico de Highfield, onde eram guardados documentos que datavam até do século X. Como não veio nenhuma resposta do sr. Ashmi, passou os olhos pelo jornal, percebendo o título desbotado na metade da página.
– Os Fantasmas da Terra. Ora, aí está uma manchete que prende a atenção!
– Certamente, e é essa reportagem que deve ler – veio a resposta abafada do outro lado do porão, depois de filas e mais filas de estantes em que havia um número surpreendente de fardos e caixas de documentos. Sr. Ashmi, o arquivista, parou de mexer na caixa diante dele e meteu a cabeça pela beira da estante para olhar sra. Burrows. Os óculos de aro grosso captaram a nauseante iluminação amarela das luzes do teto enquanto ele falava. – É típico dos incidentes.
– Tudo bem – concordou sra. Burrows. – Mas espero que vá me dizer por que preciso ler isso, quando eu terminar. – Ela se voltou para o jornal e começou.
– Os trabalhos em um túnel para a nova estação Highfield & Crossly North foram abandonados depois de um incidente nas primeiras horas da manhã da última quarta-feira. Os irmãos Harris, celebrados engenheiros de túneis do Canadá, auxiliados por uma equipe de quatro trabalhadores, perfuraram e instalaram explosivos em um depósito de arenito. Soou o alarme e a área foi evacuada.
– Na parte seguinte, chega ao que interessa – grunhiu sr. Ashmi ao erguer uma caixa de papéis de uma prateleira e empurrar pelo corredor central, disparando para outra parte do porão.
Sra. Burrows pigarreou.
– Depois das detonações, os irmãos Harris e a equipe de operários, agora acompanhados pelo sr. Wallace, o supervisor assistente da Northern & Counties Railways, entraram novamente nas escavações. Enquanto esperavam que a poeira assentasse para fazer uma avaliação dos trabalhos, ouviram um rangido sob os pés. De pronto suspeitaram que era um afundamento e começaram a se retirar do túnel. Porém, os rangidos tornaram-se cada vez mais altos, anunciando uma cena terrível, enquanto luzes fortes brilharam repentinamente no túnel, vindas do próprio chão. Todos os presentes disseram que se abriram alçapões no leito rochoso, das quais um exército de aparições fantasmagóricas marchou para fora. – Ela parou de ler. – Isso aconteceu mesmo? – perguntou.
– The Times levou a sério a ponto de publicar no dia seguinte – respondeu o sr. Ashmi de trás de uma estante. – Continue.
– Se é o que você quer – disse sra. Burrows com um dar de ombros, depois leu: – Sr. Wallace declarou que as figuras vestiam casacos de gabardine ou fustão preto, e que tinham golas brancas. Nas mãos, portavam esferas que emitiam uma luz verde. Quando as figuras ameaçadoras começaram a avançar, ele e os operários se atemorizaram e fugiram para salvar a vida. Segundo sr. Wallace, os irmãos Harris não correram, mantendo posição corajosamente. Thomas Harris armou-se com uma barra de ferro de três metros, enquanto o irmão mais novo, Joshua, brandia uma picareta.
– E adivinha o que foi feito dos irmãos Harris? – disse sr. Ashmi a sra. Burrows, dando a impressão de que agora estava mais perto.
– Nunca mais foram vistos? – disse sra. Burrows, espiando as prateleiras mais próximas.
– A senhora entendeu! – Sr. Ashmi a parabenizou.
Sra. Burrows desistiu de tentar localizar o esquivo sr. Ashmi e voltou ao artigo.
– Policiais do regimento de Highfield foram convocados e logo em seguida acompanharam o sr. Wallace de volta ao túnel. O teto acima das obras desmoronara e eles não viram sinal dos irmãos Harris, nem do exército de fantasmas. Apesar de escavações posteriores, os corpos dos irmãos não foram localizados.
– E nunca foram mesmo – acrescentou o sr. Ashmi. – Estranho, não acha?
– Sim, muito estranho – concordou sra. Burrows.
– Bom, tente este. Também é do Highfield Bugle, depois de uma incursão da Luftwaffe, a força aérea alemã, no verão de 1943. – Sr. Ashmi apareceu rapidamente à mesa, depositando outro jornal antigo na frente da sra. Burrows.
– Por quê? – disse ela a suas costas, que se afastavam.
– Dê um olhada nos últimos parágrafos – respondeu ele, acenando ao andar.
Sra. Burrows suspirou.
– Informes sobre a incursão de ontem – ela leu, depois passou os olhos pelo artigo. – Incendiários agem na Vincent Square… O teto da igreja de St. Joseph desabou… Ah, acho que encontrei… Ao meio-dia, um mina terrestre explodiu na casa de esquina do Lyons, matando dez pessoas; na chapelaria, matando três; e destruiu também inteiramente a residência particular no número 46, em que sr. e sra. Smith e seus dois filhos, de quatro e sete anos, pereceram.
“Porém, quando os corpos da família Smith foram retirados dos escombros, também foram encontrados os cadáveres de cinco homens não identificados. Os homens evidentemente estavam no porão e foram descritos como extraordinariamente semelhantes, com rostos pálidos e constituição atarracada. Estavam vestidos em roupas civis que não pareciam de origem britânica, levantando suspeitas imediatas de que fossem espiões nazistas. A Polícia Militar foi chamada para investigar e os cinco cadáveres removidos para o necrotério St. Pancras, para exames adicionais, mas aparentemente foram perdidos no caminho para lá. A empregada da família Smith, Daisy Heir, teve a sorte de não estar na área de serviço na hora da incursão, porque recolhia as rações alimentares semanais da família nos açougues da Disraeli Street. Quando interrogada pela Polícia Militar, afirmou que não havia hóspedes na casa e que não tinha conhecimento de nenhum dos cinco homens nem de como foram parar lá. Só pôde sugerir que eles eram saqueadores, que de algum modo conseguiram entrar na casa e se esconderam no porão durante a incursão.
Sra. Burrows levantou a cabeça do jornal e encontrou o sr. Ashmi parado ali.
– Tudo isso é muito interessante – disse ela. – Mas pode me dizer por que meu marido escreveu seu nome e número no diário?
– Por causa dessas reportagens – respondeu sr. Ashmi, sentando-se em uma cadeira de frente para ela. – Desde o início dos anos 1800, apareceram relatos destes homens atarracados de aparência estranha e também dos “fantasmas” mais altos com trajes pretos e golas brancas. Não são incidentes isolados… Ocorreram com uma regularidade surpreendente ao longo dos séculos e até os dias de hoje.
– E daí? – disse sra. Burrows.
Sr. Ashmi colocou algumas páginas datilografas na frente dela.
– Nos meses que antecederam o desaparecimento, seu marido Roger pesquisou estes incidentes comigo. Trabalhamos por muitos dias, mas ele compilou esta lista.
Celia Burrows virou as páginas; tinha de concordar que o número de casos era extraordinário.
– Uma coisa estranha – começou sr. Ashmi, curvando-se como se estivesse com medo de que alguém mais ouvisse.
– O quê? – perguntou sra. Burrows, também curvando-se para frente, mas não inteiramente convencida de que lidava com uma pessoa de posse de suas faculdades mentais.
– Tranquei uma destas listas em minha sala – disse. Ele lançou as mãos para o alto como se estivesse prestes a fazer um truque de mágica. – Mas desapareceu. – Curvou-se ainda mais e baixou o tom. – E vários registros saíram de minhas estantes também. Se eu não usasse meu próprio sistema idiossincrático de arquivamento… Que ninguém mais conhece… Era de se esperar que outros sumissem.
– Oh – respondeu sra. Burrows, sem saber o que mais poderia dizer. Ao voltar a atenção à lista datilografada, viu que havia notas rabiscadas ao lado de alguns informes e que não era a letra de seu marido. – Isto é seu? – perguntou, apontando as anotações.
– Não, são de Ben Wilbrahams, o americano. Ele também está investigando os incidentes, para um filme ou coisa assim. Na verdade, devia dar uma palavrinha com ele… Está sempre lá em cima. – Sr. Ashmi apontou para o teto, indicando a biblioteca da cidade, que ficava no andar acima.
– Sim, eu irei – disse sra. Burrows, sem pretender fazer nada disso.
Agarrada às fotocópias dos artigos de jornal que sr. Ashmi insistira que ela levasse, sra. Burrows ficou feliz por sair dos arquivos empoeirados. Podia muito bem imaginar o marido ali embaixo, estudando ansiosamente os artigos obscuros de jornal. Trouxe-lhe muitas lembranças dos velhos tempos e de sua infelicidade crônica com o correr da vida. Só o que o marido parecia querer era se esconder em um mundo antiquado e fantasioso onde pudesse fingir para si mesmo que era um acadêmico sério fazendo algo importante. Subindo a escada para o térreo, ela resmungava de frustração. Estava frustrada porque sabia que o marido era capaz de muito mais do que seu emprego de curador do museu local, mas simplesmente não tivera energia para encontrar uma coisa melhor e – o mais importante para ela – com um salário razoável.
Ela dobrou as fotocópias e as meteu na bolsa. Apesar da óbvia convicção do sr. Ashmi de que havia ocorrências estranhas em Highfield, era tudo irreal demais para ela levar a sério. Cogitou se o marido fora atraído pelo entusiasmo contagiante do sr. Ashmi, e se isso o levou a fazer as declarações loucas que ela lera no diário.
Para sair do prédio, sra. Burrows precisava passar pela biblioteca e ali pensou ter visto o homem a que sr. Ashmi se referiu. Embora tivesse uma barba bem aparada, seu cabelo – preto e muito comprido – dava a impressão de que tinha acabado de sair da cama. Sentado sozinho com vários livros abertos na mesa, girava habilidosamente uma caneta com uma das mãos, rodando-a em círculos intermináveis. Ele levantou a cabeça e, semicerrando os olhos através dos óculos de aro de metal, abriu um largo sorriso para sra. Burrows. Ao perceber que fora flagrada encarando, ela de imediato virou a cara e se apressou para a porta principal.
Capítulo Nove
– Pare, seu rodilhão! – Will desafiou Chester no momento em que o amigo chegava à varanda. Will avançava pelo jardim com uma das mãos no quadril, dando estocadas no ar com o sabre.
Chester sorriu, depois sua expressão ficou vaga.
– Não sei o que é isso.
– Não sabe o que é o quê?
– Rodilhão. O que é um rodilhão? Uma rodinha grande?
– Não, acho que costumava significar algo muito desagradável, então é melhor defender sua honra, seu molusco poltrão!
Will parou de brandir a espada para admirá-la por um momento.
– Considerando que deve ter séculos de idade, está em ótimo estado. Dá para ver figurinhas gravadas de uma cruz e um ramo, e algumas palavras no que parece ser latim – disse ele, olhando o pedaço de metal em forma de concha que se curvava da guarda à parte inferior do punho, servindo para proteger a mão do espadachim em combate. Depois tentou ler a inscrição, atrapalhando-se com as palavras. – Soli Deo Gloria. – Ele olhou para Chester, dando de ombros.
– Só lhe deu a Glória? – sugeriu Chester, sem realmente prestar atenção ao ver o sortimento de outras armas que Will tinha espalhado no chão da varanda. – Se é um duelo que você quer… – declarou ao escolher uma adaga de lâmina longa e experimentá-la, golpeando o ar à frente. – Não, não serve para mim – murmurou, deitando os olhos na maior das armas, uma vara de metal de quase dois metros com um ferrão que parecia letal e uma cabeça de machado na ponta. – Essa tem mais a minha cara – disse ele. – O que é isso, aliás?
– É uma alabarda – respondeu Will.
– Uma lambada – Chester riu ao sentir o peso nas mãos. – Isso! Em guarda! – Gritou ao se atirar pela escada da frente, pousando bem diante de Will. – Chegou sua hora, Barba Branca! – disse ele.
Will investiu várias vezes com o sabre, Chester bloqueando com a alabarda, o choque de aço soando pelo jardim luminoso. Depois Chester partiu para a ofensiva, girando a alabarda para Will, embora sem muita força. Tirando vantagem da gravidade baixa, Will facilmente evitou a arma, saltando alto no ar.
Chester continuou a brandir a alabarda para Will, que a cada vez disparava para cima. Depois de um tempo, Chester começou a rir e teve de parar.
– Parece um daquele filmes de kung fu malucos, onde todo mundo salta como se tivesse molas nos pés.
Will tentava ao máximo sustentar sua melhor cara de pirata assassino, mas não conseguiu reprimir o riso.
– É mesmo. Como se chamava o filme mesmo… O pato e o dragão ou coisa assim?
– Preparai-vos, Barba Branca – disse Chester. – Preparai-vos para enfrentar o maior abridor de latas do mundo – e brandiu a alabarda de novo.
Para evitar o ataque, Will executou uma cambalhota perfeita para trás, caindo de pé na trilha mais adiante.
– Arrá! – exclamou ele, deliciado com sua acrobacia. – Não é tão fácil me matar, hein, Ninja Rawls?
– Exibidinho – murmurou Chester.
Eles continuaram a brincar, pulando por outros caminhos que descobriram entre os canteiros, aos poucos transferindo a batalha para o fundo da cabana, onde se lançaram entre os telhados de pequenos anexos.
– Vamos parar um pouquinho… Preciso recuperar o fôlego. – Chester bufava, pousando ao lado de Will.
– Tá, tudo bem – respondeu Will, desenhando um oito com o sabre. – É demais, né? – disse, sorrindo para o amigo.
Chester também sorriu, assentindo. Com o passar dos dias, eles se adaptavam à gravidade reduzida e a náusea que experimentaram no começo tinha cedido. Martha cuidava bem dos dois e, sem a ameaça constante dos Styx pairando sobre eles, pela primeira vez em muito tempo podiam verdadeiramente relaxar e se divertir.
Para preencher as horas, imaginaram novas atividades que os mantivessem ocupados. Will encontrou um jogo de xadrez de marfim decorado em um dos baús e eles brincavam até tarde, bebendo xícaras intermináveis de chá. E Martha sempre ficava muito feliz em ensinar as diferentes propriedades das plantas do jardim e diverti-los com histórias da Colônia e das Profundezas. Ela relutava em deixar que eles usassem a besta, mas por fim cedeu às solicitações constantes. Embora levassem algum tempo para dominar a arma, por fim pegaram o jeito e estabeleceram alguns alvos perto da barricada, no final do jardim. Acharam incrível como a trajetória dos projéteis era reta, viajando numa linha quase perfeita, com pouco ou nenhum desvio – outra característica da baixa gravidade.
– Muito bem, Capitão Neve, vamos nessa – disse Chester, agora recuperado.
– Só se conseguir me pegar primeiro – Will desafiou o amigo, saltando sobre o teto da cabana principal e caindo no terreno adiante. Ali ele se refugiou atrás de uns arbustos que, diferente do restante do jardim, não pareciam emitir nenhuma luz. Chester andou furtivamente pela lateral da cabana, depois olhou o jardim. Adivinhando exatamente onde Will se escondia, impeliu-se até lá, soltando seu melhor grito de batalha.
Will escapuliu dos arbustos e foi para a trilha, com a espada em riste e pronta para repelir o ataque. Chester avançou. Num piscar de olhos, algo caiu diante dele no caminho.
– Mas o q…?! – Chester ofegou.
Era Bartleby. O felino arqueava as costas e Will percebeu que todos os músculos estavam inchados sob a pele sem pelos, como se estivesse prestes a dar o bote. Bartleby avançou um pouco e sibilou para Chester com tal veemência que ele largou a alabarda. Ao recuar apressadamente, ele tropeçou e caiu em uma borda de plantas delicadas que emitiam um tom rosado. O gato, ainda agachado como uma pantera, continuava se esgueirando para o menino apavorado.
– Meu Deus! Faça alguma coisa, Will! – guinchou Chester. – Chame esse seu vira-lata!
– Bart! Pare! – gritou Will.
Bartleby olhou o novo dono, procurando confirmação, depois se abaixou ao chão. Mas ainda vigiava Chester atentamente, como se não confiasse inteiramente nele.
– Gato velho e bobo – disse Will, acariciando sua cabeça. – O que deu em você? Achou realmente que Chester estava me atacando, né?
Chester ficou bastante irritado que o amigo levasse o incidente com tanta despreocupação.
– Will, eu juro, ele estava a ponto de cair em cima de mim. As porcarias das garras estavam de fora.
– Sei que ele não iria tão longe – disse Will.
– Mas me enganou direitinho – grunhiu Chester enquanto se levantava e pegava a alabarda. Olhou com raiva para Bartleby, que começara a ronronar, enquanto Will continuava a esfregar suas têmporas. – Sabe de uma coisa? – acrescentou Chester.
– O quê? – perguntou Will.
– Acabo de perceber o quanto vocês dois parecem o Salsicha e o Scooby Doo.
Will estava preparando uma resposta grosseira à altura quando Martha os chamou da porta da frente.
– É melhor vocês entrarem.
Os meninos subiram à cabana e seguiram Martha para dentro. Ela parou junto à mesa com uma ansiedade patente.
– Martha? – perguntou Chester. – O que foi?
– Creio que pode ter começado – disse ela numa voz monótona. – Foi a primeira coisa que verifiquei e não tenho certeza, mas acho que sim.
Will largou com estrondo o sabre na mesa e deu alguns passos na direção de Martha.
– Está falando de Elliott, não é? O que houve?
– Lembra quando falei sobre Nathaniel e o germe que ele pegou? – disse Martha.
– Elliott está com a febre? – disse Chester, aflito. – Ah, não, Will, ela pegou também.
– Calma, deixem eu terminar – disse Martha, erguendo-lhes as mãos sujas. – Ainda não é nada definido… Pode não ser a mesma coisa, mas ela piorou um pouco e não me parece bem.
Em silêncio, eles foram para o quarto de Elliott.
– Ah, Jesus – cochichou Chester.
Logo viram que se dera uma alteração na menina inconsciente. Seu rosto brilhava e estava corado demais, e a blusa comprida estava ensopada de suor, assim como os cobertores em volta dela. Martha se aproximou de Elliott e ergueu gentilmente a flanela da testa. Mergulhou em uma bacia de água ao lado da cama e espremeu antes de recolocar na testa da menina.
– Você disse que o braço estava indo bem – disse Will, procurando alguma coisa positiva para dizer.
– Sim, é muito estranho, mas seus ossos emendaram muito rapidamente. É como se… – Martha começou, depois se interrompeu.
Will e Chester a olharam inquisitivamente.
– Na Colônia, diriam que ela foi abençoada pelo toque do pregador – disse Martha.
– O pregador? Mas pensei que eram todos Styx, não são? – perguntou Will, confuso, ao se lembrar das cerimônias religiosas a que fora obrigado a comparecer durante seus meses na Colônia. – Isso não pode ser bom.
– Ah, sim, é bom… Veja bem, os Styx não são como os outros – respondeu Martha. – Eles se curam na metade do tempo que você e eu precisamos. Os ossos da menina se uniram tão rapidamente que até pude tirar as talas.
Os meninos ficaram tão preocupados com a notícia alarmante sobre a febre que nem perceberam que o braço ferido de Elliott só estava enfaixado com uma atadura leve.
– Mas a febre – disse Chester, virando-se para Martha. – Eu me sinto tão culpado… Deixamos você fazer tudo sozinha enquanto ficamos brincando… enquanto Elliott ficava desse jeito. Me diz como podemos ajudar.
– Para começar, temos de manter a temperatura baixa… O emplastro em sua testa deve ser umedecido mais ou menos a cada dez minutos – disse Martha.
– Tudo bem… Vá descansar, Martha – disse Will. – Vamos nos revezar para cuidar dela.
Numa cadeira ao lado da cama, Will estava em seu segundo turno de três horas, tendo recentemente liberado Chester, que cambaleou cansado para sua chaise longue. Depois de um tempo, Will se pegou cochilando enquanto arriava cada vez mais em sua cadeira.
– Vamos lá – grunhiu, depois deu vários tapas no rosto para acordar. Tentando se manter ocupado, examinou os diagramas que tinha desenhado de como achava que o Poro e as outras imensas aberturas semelhantes podiam ter se fendido para a superfície, ficando depois selados. Para tanto, procurou lembrar tudo o que pôde sobre placas tectônicas e o que acontece quando há movimento entre duas placas. – Margem destrutiva, construtiva e conservativa – murmurou consigo mesmo.
E, em uma pequena imagem na base da página, sua imaginação voou longe e ele desenhou um galeão tombando na beira de um imenso redemoinho no mar. Fechou um olho enquanto o contemplava e descobriu que estava assoviando entre os dentes. Parou de pronto.
– Meu Deus, estou virando meu pai – murmurou Will ao abrir numa página em branco. Queria escrever suas observações da semana anterior. O problema era que não tinha nada de novo, nem particularmente interessante para registrar e seus esforços logo degeneraram em uma série de rabiscos circulares e sobrepostos na margem, que quase combinavam com o número de vezes em que ele bocejava.
Uma hora depois, abandonou o diário e se curvou sobre uma Bíblia com uma grossa capa de couro, descoberta mais cedo em um baú. As páginas secas estalavam como folhas velhas quando as virava, e de tempos em tempos ele semicerrava os olhos para uma frase que achava ser capaz de traduzir, piscando de decepção quando descobria que não conseguia chegar a lugar algum.
– Por que não aprendi espanhol na escola? – perguntou a si mesmo enquanto fechava a Bíblia. Ele girou na cadeira para contemplar o tabuleiro de xadrez montado em uma pequena mesa lateral ao lado. Depois de alguns minutos, deslizou a rainha para uma nova posição, mas não a largou.
– Não, esse é um movimento idiota – grunhiu ele, movendo a peça de volta à posição original. Lançou um olhar ao adversário imaginário. – Desculpe, não estava raciocinando direito.
Elliott se agitou e disse alguma coisa. Will imediatamente se colocou a seu lado.
– Sou eu, Elliott… É o Will. Está me ouvindo?
Ele pegou a mão dela e a segurou. Os olhos de Elliott se moviam rapidamente sob as pálpebras fechadas e a pele normalmente pálida de seu rosto era de uma cor inquietante, como se tivesse sido mergulhada em um pó carmim que se acumulasse em suas feições, em particular nos lábios rachados.
– Está tudo bem – disse Will num tom tranquilizador.
A boca de Elliott se retorceu como se tentasse falar, mas não teve forças para tomar fôlego. Ela franziu a testa como se houvesse algum conflito íntimo, algo em seus sonhos febris que tentava resolver. Em seguida murmurou algumas palavras que Will mal conseguiu pescar. A primeira parecia “Drake” e uns minutos depois disse algo que pode ter sido “Limitador”.
– Você está segura, Elliott. Estamos todos bem – disse Will baixinho, percebendo que ela podia estar revivendo os acontecimentos no Poro.
Depois ela disse o nome de Drake de novo, desta vez com mais clareza, e parecia que suas pálpebras realmente podiam se abrir.
– E Drake está bem – Will lhe asseverou, embora não tivesse certeza.
Elliott começou a balbuciar – aos ouvidos de Will, parecia uma série de números. Ela os dizia sem parar, em um volume que mal era audível. Ele pegou o lápis e os escreveu ao lado dos rabiscos. Ela parecia repetir uma sequência dos mesmos números, mas Will não tinha certeza se entendera todos corretamente.
Nessa hora Chester entrou cambaleando.
– Não pode ser seu turno agora – disse-lhe Will.
– Não é – respondeu ele com azedume. – Só não consegui dormir lá.
– E por que não?
– Aquele seu vira-lata desgraçado está roncando tão alto que juro que acordo pensando que estamos prestes a ser atropelados por uma moto.
– Bom, é só acordar o Bartleby – disse Will, incapaz de reprimir um sorriso maldoso. – Por que não cochicha a palavra “cão” no ouvido dele? Talvez dê certo.
– Ah, tá, e levar uma dentada na cara – grunhiu Chester. Ele olhou para Elliott. – Como está ela?
– Muito quente, e apesar disso tentou falar. Mencionou Drake, mas acho que também pode ser tudo um pesadelo, porque disse Limitador. E ela ficou repetindo uns números… Não sei o que são, mas escrevi todos que pude ouvir.
– Como esses aqui? – interrompeu Chester, pegando um pedaço de papel no bolso.
Will o tirou dele e comparou a sequência com a que tinha no diário – a de Chester era mais completa.
– Ei, que legal. Mas acha que são todos eles? – perguntou Will.
– Acho que sim. Ela os falou muitas vezes. Acho que devem ser importantes para ela, de alguma forma.
– Onze dígitos – refletiu Will. – Quem sabe é um código?
– Me diga você, Sherlock – respondeu Chester, depois bocejou ao afundar no chão ao pé da cama, fora de vista de Will.
– Oh… Boa noite, então – disse Will num tom decepcionado. Tinha esperanças de que Chester lhe fizesse companhia em sua vigília. A única resposta que recebeu do amigo foi um ronco alto, que continuou inabalável enquanto ele tentava desvendar a série numérica, querendo entender se havia algum padrão ali.
Sra. Burrows saiu da agência de empregos, parando na calçada para colocar as anotações na bolsa.
– Burrows – ela entreouviu alguém dizer, e depois, “mau negócio”, mas não pegou o resto.
Virou-se e viu duas jovens com um bando de crianças em volta. As mulheres claramente a reconheceram, a julgar pelo modo como a olhavam. Uma delas imediatamente virou a cara e começou a se afastar, puxando os filhos. A outra continuou a encará-la, o lábio superior retorcido em um esgar cruel, agarrada ao carrinho de bebê. Vestia uma camiseta de manga curta que exibia todo o efeito do coração vermelho que tinha tatuado no braço com o nome Kev abaixo dele.
– Assassina de crianças. – Ela olhou enviesado para sra. Burrows antes de fazer a volta com o carrinho e ir atrás da companheira.
Sra. Burrows ficou estarrecida.
Depois do apelo na TV, houve algumas menções nos tabloides, mas foi tudo muito discreto. Porém, os jornalecos locais se aproveitaram da história, publicando uma série de artigos sobre sra. Burrows e sua família desaparecida, e houve também uma matéria de duas páginas sobre os pais de Chester, em que eles fizeram vários comentários muito ambíguos sobre a conduta da sra. Burrows como mãe. Inevitavelmente, sra. Burrows angariou alguma fama com isto.
Tentando desprezar o incidente, ela andou lentamente pela High Street, depois apertou o passo. Não queria chegar atrasada para sua primeira entrevista de emprego.
Capítulo Dez
Martha cortava um feixe de plantas secas que tinha apanhado num dos anexos. Com as duas mãos, levantou um fungo do tamanho de uma bola de futebol do cesto e o colocou na mesa.
– Parece meio duvidoso – comentou Will, torcendo o nariz.
– São raros como pés de cobra por aqui – disse Martha, dando tapinhas na lateral do cogumelo, muito parecida com uma padeira trabalhando num monte de massa crua. Depois começou a descascar a pele dura, como se fosse uma laranja muito grande. – Você deve conhecer este.
Will assentiu. Era um porcini, mas em comparação com os que vira na Colônia, este era um espécime lamentável. Tinha uma crosta dura que se rompia em alguns lugares, afundando como se tivesse perdido parte do recheio.
– Ele está podre? – perguntou Will.
– Não, é um porcini ressecado.
– Ressecado? – disse Will.
– Sim, eu o pendurei por alguns meses. Acentua o sabor – respondeu Martha. Ela começou a cortar em pedaços pequenos, colocando-os em uma panela.
– Para mim, parece podre – disse Will, cutucando a ponta de um dos cinzéis de Martha para girá-lo na mesa. Ele o viu parar, depois o rodou de novo.
– Escute, não tem nada melhor para fazer? – perguntou-lhe Martha gentilmente.
– Na verdade, não – disse Will com indiferença.
– Está entediado porque você e Chester não podem brincar juntos como costumavam fazer? – disse ela.
– Nós não brincamos… Isso é coisa de criança. Nós nos distraímos – disse ele meio rispidamente, depois se corrigiu, respondendo com mais civilidade. – Bom, realmente não podemos, não com a Elliott do jeito que está. Não parece certo.
– É mais do que isso não é, amigo? Você tem os olhos impacientes, como Nathaniel antes de sair em suas expedições. Os pés estão coçando – ela pronunciou, dirigindo-lhe um olhar sagaz enquanto cortava o porcini.
– É, acho que… um pouco – respondeu Will, depois se endireitou na cadeira. – Martha, você sabe que a gente… Chester e eu… não podemos ficar para sempre. Temos de voltar à Crosta de algum jeito… e logo. Se os Styx levarem adiante a trama Dominion… – ele se interrompeu.
– Eu sei, eu sei – disse Martha, solidariamente. – Will, detesto ter que lhe dizer isso, mas pode ser que esteja perdendo seu tempo. Talvez já seja tarde demais.
– Não importa – disse Will, tenso. – Ainda precisamos voltar… Talvez possamos fazer alguma coisa para impedi-los.
– E quanto a voltar para lá… Nunca aconteceu e jamais acontecerá. Não há como voltar – disse ela, com um golpe da faca num naco da carne do cogumelo. – Não pode escalar o interior do Poro, nem de nenhuma das outras Sete Irmãs. São quilômetros. Nunca vão conseguir. – Ela parou para olhar nos olhos de Will. – Não pense que não tentamos.
– E aquele homem, como se chama mesmo? De Jaybo? – perguntou Will, enquanto Martha voltava a trabalhar no porcini. – Ele conseguiu, não foi?
– Ah – começou Martha, parando por um momento para futucar o nariz. Will revirou os olhos. – Você obviamente ouviu a história. Ele disse que caiu no Poro e que continuou descendo até um lugar escondido, onde viu todo tipo de coisas estranhas e esquisitas… Coisas horríveis. Disse que viu outro mundo onde havia luz do dia.
– É, eu soube de tudo isso.
– Outro mundo, com seu próprio sol? – disse Martha, meneando a cabeça. – Alguns na Colônia diziam que ele não distinguia o pé da cabeça e que foi parar por engano em algum lugar da Crosta, e todas as coisas que disse ter visto eram um monte de…
– Sandices – interrompeu Will, lembrando-se das palavras exatas que Tam usou ao descrever a história.
– Sim, sandices… Ou talvez fosse só um embuste – concordou Martha. – Alguns acreditavam que toda a lorota tinha sido inventada pelos Styx, para encher as pessoas de medo do Interior.
– Meu pai achava que podia haver algo lá embaixo – disse Will, tristonho. – Nas páginas que peguei do diário dele, tinha anotações sobre entalhes em um templo que descobriu, sobre um Jardim do Segundo Sol. – Will não conseguiu reprimir o tremor na voz ao pensar nele. – Meu pai deve ter ficado tão animado… Aposto que estava assoviando pra caramba. – Tombou a cabeça como se golpeado por uma pontada súbita de tristeza.
Martha esfregou as mãos para livrá-las do fungo e contornou a mesa até Will. Acariciou-lhe as costas.
– Agora você tem uma nova família – disse ela com ternura. – Estamos juntos e é isso que conta.
Ele levantou a cabeça e a olhou com gratidão.
– Talvez você queira espairecer um pouco longe daqui, e assim podemos arrumar alguma carne fresca. Estive dando caldo a Elliott, mas meu estoque está ficando baixo. Então por que não pega seu kit e diz a Chester que vamos sair por algumas horas?
Chester não ficou muito feliz em ser deixado sozinho com Elliott.
– E se vocês não voltarem ou coisa assim? – preocupara-se ele. – O que é que eu vou fazer?
Mas Will ficou aliviado por sair da paliçada, mesmo que por pouco tempo. Enquanto Martha o levava por um dos túneis, com alguns ramos de fogo-anisado enfiados no cinto e a besta erguida, ele esticou as pernas, saboreando o exercício.
– Procure não fazer barulho – ela o avisou quando eles desciam em uma nova parte do túnel. – Esta é a terra das aranhas.
E então, um pouco mais adiante, ela ergueu a besta e reduziu o passo, quase deslizando. Will ficou bem atrás, tentando distinguir o que havia ali.
– Cuidado – ela cochichou, levando os dois a uma bifurcação. Martha não parecia preocupada que Will usasse uma lanterna, então não tentou diminuir sua luz.
Depois ele viu que uma armadilha tinha sido disparada – era uma rede igual àquela que o havia apanhado. Estava numa trouxa e pendia do teto, suspensa por um único fio. Ao se aproximarem, Will pôde ver as múltiplas pernas se projetando pela malha.
– Pegamos uma – cochichou Martha.
E havia mesmo uma aranha-macaco dentro dela. Sentindo a aproximação dos dois, ela começou a debater as pernas, levando a rede a subir e descer.
– Caramba… Que nojo. Como fede! – disse Will, colocando a mão em concha sobre o nariz.
– Elas fazem isso. É o último recurso quando estão encurraladas – disse Martha, sacando a faca. Ela contornou o animal agitado, escolheu um ponto e esfaqueou. A aranha ficou imóvel de imediato.
– Que catinga! – disse Will, apertando o nariz e se perguntando se um dia conseguiria se obrigar a comer a carne de novo. Em seguida, enquanto Martha desamarrava a rede, ele ficou intrigado com a criatura e soltou o nariz. – Os olhos são incríveis – disse, curvando-se para a aranha-macaco a fim de examinar as três manchas circulares e reflexivas em seu corpo discoide.
– Não são olhos… São orelhas – Martha o informou.
– É mesmo?
– Sim… Está vendo os dois pequenos espinhos ali, acima das presas? – disse ela, indicando um par do que Will tomara por cerdas muito grossas na ponta da faca de Martha. – Eles enviam os guinchos, que as orelhas pegam.
– É mesmo? – disse Will de novo. – Então é como um morcego?
– Igualzinha a um morcego – confirmou Martha –, mas Nathaniel disse que elas também os usam para farejar criaturas feridas ou à morte. – Afastando a faca, ela rolou a aranha morta para um saco. Entregou-o a Will para carregar, depois os levou para o que era claramente um circuito habitual, verificando outras armadilhas pelo caminho. Logo Will carregava três feras mortas nas costas.
Depois eles foram aos bancos de madeira com as pilhas de carne velha e pedaços de corpo.
– Ei. Eu reconheço esse lugar – disse Will.
– Mas é claro que sim – respondeu Martha ao tirar o saco dele e esvaziar as aranhas-macaco mortas. Depois pegou no cinto um ramo grande de fogo-anisado, acendeu e entregou a Will. – Agite por aí. Até agora tivemos sorte, mas não vou me arriscar com você. Elas podem aparecer e sentir o cheiro de sangue quando eu começar a cortar.
Will obedeceu, passando o galho pela frente, criando com o movimento arcos de brasa com um forte brilho enquanto o cheiro de alcaçuz enchia a caverna.
– Hora do Sweeney Todd – disse Martha à meia voz, virando as aranhas mortas para o banco mais próximo e pegando o cutelo que parecia homicida. – Talvez seja melhor recuar alguns passos – avisou, erguendo o braço. – Pode fazer uma sujeira e tanto.
Na jornada de volta, ela anunciou que eles iam fazer um pequeno desvio.
– Porque é a época do filhote de pó – informou-lhe Martha.
Will não perguntou do que ela estava falando, imaginou que logo descobriria. Ela o levou a um morro de terra que subia contra a parede do túnel. O garoto pegou um pouco e rolou entre as pontas dos dedos – era fértil e argilosa, o sonho de qualquer jardineiro. Ele assistiu enquanto Martha parecia procurar alguma coisa, encontrando uma pequena abertura. Ela começou a abrir mais o buraco, cavando a terra com as mãos.
Havia cavado meio metro quando de repente soltou um grito de triunfo e sacou da terra algo que se retorcia, do tamanho e cor de um porco recém-nascido. Ergueu-o pela nuca para Will ver com clareza. Tinha um corpinho roliço, com quatro membros curtos, sem olhos discerníveis, e suas orelhas mínimas voltadas para trás da cabeça eram de um branco rosado. Parecia um hamster careca e superalimentado. Contorcia-se e se debatia enquanto ela continuava a erguê-lo, mexendo os bigodes pálidos e abrindo a boca, mas sem emitir nenhum som.
– Então isso é um filhote do pó – disse Will, maravilhado. – É um bebê?
– Não, este é adulto.
– É meio parecido com o Bartleby. Um filhotinho de Bartleby! – Ele riu e piscou várias vezes quando ela o levou para mais perto dele. Will recuou. – Meu Deus… Ele também fede… Tem cheiro de…
– Urina – disse Martha. – Sim, a toca é ensopada dela. Não sei como conseguem conviver com isso.
– É tão forte que meus olhos estão lacrimejando – disse Will. – Mas será que tudo fede tanto por aqui?
– Por isso os filhotes de pó vivem em paz… O cheiro os protege. Mas a carne é boa… Tem gosto de fígado – disse ela.
– Detesto fígado e esse cheiro me dá náuseas – respondeu ele, o que o fez pensar que Martha também não era nada limpa. Ele certamente nunca vira nenhuma prova de que ela se lavava.
Ao voltarem à cabana, Will começou a rir.
– O que foi? – perguntou Martha.
– Eu estava pensando que é melhor que Chester não veja nada disso antes de você cozinhar – disse Will, enquanto erguia o saco ensanguentado que carregava. – Ele vomitaria por semanas!
Dr. Burrows começava a se desesperar.
– Não está bom… Preciso de meu desenho da Pedra de Burrows para entender o que significa tudo isso – disse ele, com as pequenas tabuletas de pedra espalhadas a sua frente.
– E onde disse que estava mesmo? – perguntou a gêmea Rebecca enquanto andava lentamente em volta dele.
– Já lhe falei… Meu diário ficou no alto do Poro – respondeu dr. Burrows com certa estridência, indignado com a inquisição constante da menina.
– Como você é descuidado – disse ela, batendo o pé de impaciência. – Mas disse que podia se lembrar do suficiente para se virar – ela o repreendeu.
– Eu disse que esperava poder fazer isso – ele contra-atacou. Tirou os óculos e esfregou os olhos, antes de recolocá-los. – Mas parece que não sou capaz. E suas interrupções constantes não estão…
Rebecca avançou para dr. Burrows como se fosse bater nele, mas ficou paralisada quando um guincho agudo encheu o ar quente.
– Parece outra daquelas aranhas absurdas. – Ela estalou os dedos para o Limitador. – Cuide disso – ordenou à figura espectral que pairava atrás dela. O soldado sacou a lança – uma arma improvisada que ele produzira curvando a foice na ponta de um caule de fungo – e desapareceu sem fazer ruído.
– Não entendo… Como pode falar com ele desse jeito? – Dr. Burrows se atreveu a perguntar, agora que estavam a sós. – Ele é um soldado.
– Ah, ele é muito mais do que um soldado. É um Limitador… É do Esquadrão de Hobb – declarou ela com orgulho ao dr. Burrows, agachando-se diante dele. – Melhor ainda, os combatentes mais destemidos e mais brutais do mundo. E você adora história, não é? Deve pensar que os espartanos eram os garotos mais durões do pedaço?
– Bom… – ele começou a responder, dando de ombros.
– Não, eram uns escoteiros – disse ela com desprezo. – Me dê um batalhão de Limitadores e Londres será minha em uma semana.
– Não seja boba, Rebecca. – A voz do dr. Burrows vacilou. – Por que diz coisas assim?
– Concentre-se no mapa, papai, para podermos ir para casa logo – disse ela. – Porque sinto falta de minha casinha – acrescentou numa voz enjoativa de garotinha.
– Você não escuta, não é? Acho que essas pedras podem ser um guia para baixo, em vez de nos mostrar um caminho de volta – disse dr. Burrows.
– Não me importa… Qualquer lugar é melhor do que aqui – ela ladrou num tom de aço.
– E também preciso ligar o mapa a alguma coisa no terreno… Preciso achar uma referência daqui que corresponda a um ícone no mapa. – Ele engoliu ruidosamente. – Minha garganta está totalmente seca. Pode me dar algo para beber?
Rebecca meneou a cabeça.
– Primeiro vamos tentar progredir um pouco, que tal?
– Mas estou com sede – ele se queixou.
Houve um whump e dr. Burrows tomou um susto quando duas aranhas-macaco mortas caíram a seu lado.
– Oh… meu… Deus – disse ele. – O que é isso? Uma espécie de aranha? Aracnídeos?
– Estava a velha a fiar, veio a mosca lhe fazer mal, a mosca na velha, a velha a fiar – cantarolou a gêmea Rebecca. – Mas é claro que você nunca teve tempo para cantar musiquinhas infantis. Sempre estava ocupado demais se escondendo em seu porão idiota com seus livros idiotas. – Havia um ressentimento genuíno na voz da gêmea Rebecca e ela olhou o Limitador, quase envergonhada por ter baixado a guarda e revelado suas emoções, emoções humanas.
Mas dr. Burrows não ouvira o que ela disse, fitando nervosamente as pernas retorcidas das aranhas. Ele se retraiu quando o sangue vazou do corpo das criaturas, fluindo em regatos carmim pela poeira perto de sua perna.
– Se está com sede, sirva-se de um pouco disto – propôs Rebecca, sem se deixar afetar pela visão das criaturas grotescas. – Se não, podemos tomar um pouco de água com nossa refeição da noite – completou em uma voz de diretora de escola. – Mas primeiro precisamos nos apressar com nosso dever de casa.
Capítulo Onze
– E aí – disse Chester ao sair da cabana e ver Will recostado numa das cadeiras da varanda. – Martha me tocou pra fora. Está dando um banho em Elliott.
– E como Elliott está? – perguntou-lhe Will.
Bocejando, Chester espreguiçou-se.
– Conseguimos que ela comesse um pouco mais de caldo – disse ele, depois afundou na cadeira ao lado de Will. – Martha está fazendo o que pode para ela recuperar as forças.
– Que bom. Mas ela não está melhorando, está? – disse Will. Chester se remexeu, pouco à vontade. Nenhum dos dois verbalizava seu receio de Elliott realmente morrer, como acontecera a Nathaniel. O assunto era quase um tabu entre eles.
– Não – disse ele por fim.
Por um tempo, os meninos nada falaram, olhando o jardim, tão imersos em pensamentos que mal apreendiam um espetáculo de cores que fluía e pulsava no ar, como uma versão reduzida da aurora boreal. Will pigarreou.
– Hum, Chester, tem uma coisa me incomodando – disse ele.
Havia preocupação nos olhos de Chester.
– O que é, Will?
Will baixou a voz e olhou para a porta.
– Martha não pode ouvir, pode?
– Ela ainda está com Elliott – confirmou Chester. – Me diz, qual é o problema?
– Bom – começou Will, inseguro. – Sei que Martha tem sido demais, e ela está fazendo tudo o que pode por Elliott, mas não poderíamos fazer mais?
Chester deu de ombros.
– Tipo o quê?
– Já estamos aqui há semanas e ficamos tão dependentes de Martha que nem pensamos que pode haver outra pessoa por aqui que pode ajudar Elliott… Ajudá-la de verdade – disse Will.
– Mas a Martha disse… – começou Chester.
– Sei o que a Martha disse – Will o interrompeu. – Mas não a conhecemos realmente, não é? E se houver outras pessoas por aqui, com remédios, ou alguém como Imago, que pode ajudar Elliott?
Chester o olhou inexpressivamente.
– Mas por que Martha esconderia isso da gente? – perguntou ele.
– Porque ela é basicamente uma velha solitária que de repente conseguiu substitutos para o filho morto – disse Will.
– Isso é grosseria sua.
– Sim, mas é a verdade – respondeu Will. – Não tem nem mesmo a sensação de que somos prisioneiros aqui? Martha nos diz que não há mais ninguém por essas bandas, que não devemos nos arriscar lá fora sozinhos por causa das aranhas, que é perigoso demais nos levar para ver os barcos que o filho encontrou, que não há jeito de voltar para as Profundezas, que não tem mais nada embaixo… – Ele parou para tomar fôlego. – Acho que ela está fazendo tudo o que pode para nos segurar aqui. – Ele bateu o indicador no braço da cadeira para enfatizar este argumento.
Will ainda olhava atentamente para Chester, tentando ver se parte do que ele disse suscitava alguma dúvida na mente do amigo.
Chester assentiu brevemente.
– Então, se o que está dizendo é verdade, o que vamos fazer? – perguntou ele. – Largamos Martha e perambulamos no escuro? Arrastamos uma garota doente para fora de sua cama na esperança de esbarrar com alguém?
Will soltou o ar pelos lábios.
– Talvez eu esteja inteiramente enganado e seria tudo um erro terrível, mas acho que nós dois sabemos como isso vai terminar.
Chester não respondeu.
– Tenha dó, Chester, se não fizermos alguma coisa, vai acontecer com nossa amiga o mesmo que aconteceu com o filho da Martha. Ela vai morrer. Não podemos nos iludir quanto a isso – disse Will. – E talvez… Talvez… possamos levar Elliott e conseguir alguma ajuda. Talvez a gente ache um jeito de sair do Poro e entrar em contato com Drake ou coisa assim, ou com um dos outros renegados.
Chester bateu a cabeça nas costas da cadeira.
– Meu Deus, sei lá, Will – murmurou.
– Não temos nada a perder, temos? Ou melhor, Elliott não tem nada a perder, tem? – disse Will desesperadamente.
A semana passou e Elliott não mostrou sinais de melhora. Will, Chester e Martha cuidavam dela, alimentavam-na e tentavam manter sua temperatura baixa, e nenhum dos meninos, quando ficavam sozinhos, tocava novamente no assunto da partida.
Era como se uma pressão esmagadora tivesse caído sobre a cabana, uma pressão em que era um erro rir ou se permitir alguma diversão, porque o futuro da amiga estava na balança e só isso importava. Os garotos falavam em tons abafados mesmo quando estavam longe da cabana, como se pudessem perturbar Elliott de alguma maneira. O clima até parecia afetar Bartleby, que passava a maior parte do dia dormindo diante da lareira ou cavando pelo terreno dos fundos, às vezes tomando banhos de poeira.
Quando não estava “de serviço com Elliott”, como ele e Chester chamavam, Will jogava xadrez sozinho. Também determinou para si a tarefa de organizar as páginas do diário de seu pai o melhor possível. Era importante para Will, porque eram o legado do pai e era seu dever preservá-las para o caso de ele um dia voltar à superfície.
Muitas páginas estavam vincadas, mas Will as aplainou, prensando-as para que ficassem lisas. Onde a escrita ou os desenhos do dr. Burrows estavam fracos por terem sido imersos em água, Will refez meticulosamente os traços para torná-los mais legíveis. Quando terminou, dispôs os papéis no chão, vendo se havia alguma coisa que pudesse tirar deles. Por mais que tentasse, porém, não conseguia descobrir o significado das letras e hieroglifos estranhos registrados pelo pai, e não podia tirar dali nada de útil.
Enquanto fazia um inventário do kit que restava em sua mochila, ele encontrou a câmera. Maravilhado ao descobrir que ainda funcionava, colocou-a em uso, tirando alguns instantâneos das páginas do diário antes de guardá-las cuidadosamente em uma das cômodas. Ele deduziu que ali ficariam longe da umidade, e de Martha, que tinha o hábito de jogar tudo que fosse vagamente combustível para alimentar o fogo.
Depois ele foi a um de seus cantos preferidos – um pequeno anexo onde era abrigada uma multiplicidade de objetos que o filho de Martha trouxera de suas expedições. A choupana era apinhada de baús de quinquilharias náuticas, e Will ficava completamente à vontade ao abri-los e vasculhar seu conteúdo. Tentou não apressar a tarefa, limitando-se a um ou dois baús por vez, para ter o que olhar todo dia. Grande parte era só ferro-velho, como suportes de ferro, pinos grossos que pareciam ter sido feitos por um ferreiro, polias e até algumas balas de canhão.
Mas em meio a tudo isso, Will encontrou uma imensa bússola de navio. E no mesmo baú havia uma caixa de couro surrada, contendo o que descobriu ser um telescópio de bronze maravilhoso. Will nem acreditava em sua sorte. De imediato levou para a frente da cabana, para experimentar. Embora não fosse muito bom nem no escuro, nem nos confins limitados do jardim de cores estranhas, Will não se importou. Ao manipulá-lo, sua imaginação estava cheia de pensamentos dos marinheiros que o usaram e que também podem ter sido os responsáveis pela construção da cabana.
No fundo de outro baú, também achou um estetoscópio. Era feito de um metal prateado e opaco, e de plástico ou borracha preta, os quais não mostravam o mais leve sinal de deterioração. Aos olhos de Will, parecia muito moderno. Ele usou para auscultar o próprio coração, depois o recolocou no baú, sem pensar mais nele ao continuar sua busca por outros objetos exóticos.
Capítulo Doze
Sra. Burrows passou na banca de jornais do bairro para comprar a edição vespertina quando voltava do trabalho. Arranjara um emprego de meio expediente em uma firma de advocacia, onde fazia algum trabalho de recepcionista, digitação e arquivamento. Não precisava do dinheiro, uma vez que a venda da casa da família lhe rendera muito mais do que previra, mas o emprego lhe dava um propósito e ela gostava da companhia dos colegas de escritório. E como só trabalhava alguns dias na semana, tinha tempo para continuar suas investigações e pressionar a polícia a obter resultados.
Ao pagar pelo jornal, percebeu que o jornaleiro a encarava.
– Espero que não se importe por eu estar perguntando, mas não é a esposa do dr. Burrows? – ele se arriscou.
A sra. Burrows não respondeu de imediato, analisando o rosto do homem para ver se algo ali sugeria hostilidade. Depois do incidente em frente à agência de empregos, ela ficou mais cautelosa com os moradores. Estava consciente demais dos olhares que recebia ao sair para fazer compras ou a caminho da academia.
– Sim – respondeu ela por fim. – Sou Celia Burrows.
– Ah, bom. Então isto aqui é dele – disse o jornaleiro, abaixando-se sob balcão e pegando uma boa pilha de revistas. Ele começou a folhear. – Curators’s Month… Uma, duas… Hum, três edições – disse, colocando-os diante da sra. Burrows. Sem olhar para ela, continuou a falar. – Tomei a liberdade de cancelar os pedidos dele depois de alguns meses… Mas também tenho aqui três edições da Excavation Today e um…
– Sabe que ele se foi… Ele está desaparecido – soltou sra. Burrows.
A expressão do homem passou ao constrangimento e ele teve dificuldades para olhar nos olhos da sra. Burrows ao mexer nas revistas restantes.
– Eu sei, mas pensei que a senhora gostaria de levá-las para… – ele se interrompeu.
– Para quando ele voltar? – sra. Burrows concluiu por ele. Estava prestes a acrescentar, “Acho que isso não vai acontecer”, mas concluiu que não seria sensato. Pelo jeito como a opinião pública estava contra ela, podia ser mal interpretada e este homem chegaria rápido demais à conclusão de que ela sabia mais do que revelava. Assim, ela tirou algumas notas da bolsa e as entregou ao jornaleiro. – Olha, está tudo bem, basta me entregar. Eu pago por elas agora. – O jornaleiro pegou o troco no silêncio desconfortável que se seguiu. Sem esperar que ele colocasse as revistas numa sacola, ela as pegou no balcão e deixou a banca.
Ao sair, estalou um clarão de raio, seguido de um trovão.
– Que ótima hora – resmungou sra. Burrows enquanto uma chuva pesada começava a cair. Ela usou uma das revistas para proteger a cabeça do aguaceiro. No esforço para andar pela High Street, as capas acetinadas das outras revistas ficavam cada vez mais escorregadias e deslizavam de sob seu braço. Tinha deixado cair pela segunda vez quando viu uma lixeira próxima. – Desculpe, Roger – disse ao colocar todas as revistas ali.
Correndo, ela xingava enquanto a chuva não dava sinais de que ia diminuir. Parou no meio-fio para verificar o trânsito antes de atravessar a rua, quando por acaso olhou para trás, na direção de onde tinha vindo.
– Mas que coisa! – exclamou.
De costas para ela, dois homens estavam parados junto à lixeira em que jogara as revistas. Sra. Burrows viu que eles pegaram cuidadosamente as publicações e examinaram atentamente as capas antes de colocá-las, uma a uma, em uma mala. Os homens eram atarracados e vestiam casacos de cor escura com um curioso capote sobre os ombros – pareciam vir de uma época diferente.
Por algum motivo, possivelmente porque ficou aborrecida com o incidente na banca, ela foi tomada de uma raiva repentina.
Não sabia quem eram os homens. Bem-vestidos demais para serem mendigos, pensou sra. Burrows. Sua primeira hipótese era de que eles eram caminhoneiros – não da Inglaterra, mas da Europa continental, por causa dos trajes incomuns. Por impulso, começou a gritar, disparando a correr para eles.
– O que estão fazendo? Deixem isso aí!
Apesar de ter jogado fora as revistas, elas faziam de tal forma parte da vida do marido nos velhos tempos e eram tão importantes para ele que parecia errado que outra pessoa se servisse delas. Sra. Burrows sabia que estava sendo irracional – nem precisava de mais lixo do dr. Burrows, com o apartamento já atulhado das posses dele. Mas, se ele não estava ali para ler as revistas, então ela não queria que ninguém mais ficasse com elas. E certamente não queria vê-las afanadas por pessoas que não teriam o apreço que o marido tinha por elas.
– Deixem onde estão, droga! São de Roger! Comprem suas próprias revistas! – gritou ela. Pela chuva, viu que os dois homens tinham bonés com abas laterais e, enquanto um deles reagia a seus gritos e se virava lentamente, ela distinguiu que ele estava de óculos escuros. Isso não fazia sentido a essa hora do dia, quase sem luz natural. Graças a outro raio, ela viu seu rosto com clareza. A pele era incrivelmente branca. Ela parou de repente. – Aqueles homens pálidos – cochichou, de imediato se lembrando da descrição que o marido fizera no diário.
Agora os dois homens a olhavam. Ela estava perto o bastante para ver seus queixos largos e as bocas cerradas. O que segurava a mala a fechou de repente e eles partiram numa marcha decidida para ela, com os passos em inteira sincronia. A raiva da sra. Burrows de pronto se transformou em medo. Não havia dúvida de que vinham para ela.
Olhou rapidamente a High Street para ver se havia alguém que pudesse ajudar, mas a chuva parecia ter esvaziado as ruas. Virou-se e correu, escorregando com os sapatos na calçada molhada. Procurou nas lojas por um lugar onde se refugiar, mas é claro que o Clarke’s estava fechado e era tarde demais para a cafeteria Golden Spoon ainda estar aberta. Só o que podia fazer era seguir pela rua na direção de seu apartamento. Ela estaria segura lá.
Ao correr, os passos na calçada a suas costas ficava cada vez mais alto e parecia que o medo abria um canto remoto de sua mente. De repente se lembrou do incidente no ano anterior, quando três homens haviam forçado a tranca de uma janela da sala de estar e invadido a casa. Acontecera numa época em que sra. Burrows estava nas garras de uma depressão crônica, passando quase todo o dia dormindo em sua poltrona preferida, na frente da televisão.
Ela surpreendera os invasores e eles a haviam arrastado para o corredor. Depois ela os surpreendera outra vez. Com a força quase sobre-humana de quem não está em seu juízo perfeito, ela batera na cabeça dos invasores com uma frigideira. Eles tinham ficado com medo. Os policiais acharam que os ladrões deviam ter observado a casa do terreno baldio e estavam atrás do que sempre procuravam – televisores, celulares e qualquer dinheiro que estivesse no local.
Mas agora, enquanto esses homens a perseguiam, algo no modo como se comportavam lembrou-lhe dos invasores daquela noite.
Ao chegar à Jekyll Street, houve um estalo alto de trovão e ela disparou pela rua até a calçada oposta. Só viu o carro que se aproximava quando era tarde demais. Ouviu o guincho de freios e pneus derrapando no asfalto molhado quando o carro parou repentinamente. Ofuscada pelos faróis, ela lançou os braços à cabeça. O para-choque dianteiro a pegou e ela caiu.
Num instante o motorista estava fora do carro, a seu lado.
– Meu Deus, eu não vi a senhora! A senhora apareceu do nada! – disse ele. – Está machucada?
Sra. Burrows agora se sentava, com o cabelo molhado na cara, olhando por sobre o ombro à procura dos estranhos.
– Para onde eles foram? – murmurou ela.
– Não se machucou? Acha que pode andar? – perguntou o motorista com a voz cheia de preocupação.
Ela empurrou o cabelo para trás, vendo o motorista claramente pela primeira vez. Era o americano barbudo da biblioteca.
– Eu conheço você – disse ela.
O homem entortou um canto da boca e se agachou ao lado dela, investigando seu rosto com os olhos escuros.
– Conhece? – perguntou ele.
– Ben… alguma coisa.
– É – disse ele, com um ar curioso. – Ben Wilbrahams.
– Sim. Sr. Ashmi, do arquivo municipal, disse que eu devia conversar com você. Meu nome é Celia Burrows – disse-lhe ela.
Ele franziu a testa, depois suas sobrancelhas se ergueram em um arco acima dos óculos de aro de metal.
– Então isso faz de você a mulher do dr. Burrows – disse enquanto a sra. Burrows se levantava, estremecendo ao tentar colocar o peso na perna esquerda.
– Acho que torci o tornozelo – disse ela.
– Olha, você está ensopada e eu moro logo ali… No final da Jekyll Street. O mínimo que posso fazer é me certificar de que esteja bem.
Ben Wilbrahams morava em uma imponente casa vitoriana de fachada larga. Conduziu sra. Burrows para dentro do saguão e dali até a sala de estar. Sentou-a no sofá e acendeu a lareira. Pegando uma toalha para que ela se enxugasse, ele foi preparar um café. Sra. Burrows mancou até a lareira de mármore larga, vendo as antigas pinturas na sala – principalmente paisagens no estilo inglês clássico. Com o teto alto, a sala era impressionante de tão grande, correndo por toda a extensão da casa. Ainda secando o cabelo, ela mancou alguns passos para o fundo da sala. Embora estivesse escuro, distinguia várias pranchas largas em cavaletes.
Encontrou um interruptor e o acendeu. Havia seis pranchas no total, em que estavam presos mapas e incontáveis cartões cobertos de anotações com uma letra elegante. Mas a prancha mais distante só continha fotografias, e uma das fotos a fez olhar mais atentamente. Ela mancou até ali. Era uma pequena foto em preto e branco do dr. Burrows.
– Isso é do website do museu de Highfield – disse Ben ao entrar na sala, trazendo uma bandeja com xícaras e uma garrafa térmica com café fresco. – Ainda não o atualizaram.
– Você o conheceu? – perguntou sra. Burrows. – O meu marido, Roger?
– Não, nunca tive esse prazer – respondeu Ben Wilbrahams, percebendo o interesse da sra. Burrows pelas outras fotos fixadas em volta do marido. Havia uma foto em cores de uma família sorridente em que estava escrito Família Watkins. – Todas as pessoas destas outras fotos também estão desaparecidas – disse Ben Wilbrahams, baixando a bandeja.
– Mas o que significa tudo isso? O que exatamente está havendo aqui? – perguntou sra. Burrows, desconfiada, enquanto mancava para outra prancha. Apoiou-se nas costas de uma cadeira e examinou um mapa de Highfield, pontilhado de alfinetes vermelhos.
– Você não é jornalista, nem escritora, nem nada disso, é? – perguntou ele, semicerrando os olhos de um jeito nada sério.
– Ainda não – respondeu sra. Burrows.
– Que bom, porque não quero ninguém roubando minhas ideias – disse ele. – Vim para a Inglaterra há cinco anos para escrever e dirigir um episódio de uma nova série de TV a cabo intitulada Victorian Gothic. Meu episódio era sobre os cemitérios de Londres e, quando terminei, não voltei para casa. É isso que faço… Filmes e documentários.
– É mesmo? – disse sra. Burrows, impressionada. Ela pensou em sua extinta carreira na televisão e do quanto abrira mão quando ela e dr. Burrows adotaram Will.
Ben Wilbrahams empurrou o botão da garrafa térmica.
– No momento estou fazendo uma pesquisa geral sobre Highfield e toda a loucura… talvez não tão louca… das histórias que também fascinaram seu marido.
– Por que não me fala delas? – disse sra. Burrows.
Will se sentou e esfregou os olhos, convencido de ter ouvido um sino tocar. Se realmente ouviu, só podia pensar que era o sino da barricada.
Da chaise longue, onde estivera dormindo, viu Bartleby, que parecia ter sido acordado também. O gato estava enroscado em seu lugar favorito perto do fogo, mas agora olhava preguiçosamente o jardim. Deixou a cabeça arriar lentamente no tapete e imediatamente voltou a dormir. Como Bartleby parecia tão relaxado, Will disse a si mesmo que deve ter sonhado. Deitou-se novamente, também pretendendo voltar a dormir.
Nessa hora Chester, muito agitado, irrompeu do quarto a lado, onde estivera vigiando Elliott.
– Ei, não fique deitado aí! – gritou ele.
– Hein? – disse Will, sonolento.
– O sino! Você deve ter ouvido.
Will saiu da chaise longue para se juntar a Chester na porta da frente.
– Tem certeza de que foi o sino? – perguntou Will, enquanto os dois olhavam a trilha para a barricada.
– Absoluta.
– Pode ser a Martha – sugeriu Will. – Talvez ela tenha saído para ver as armadilhas.
Chester não precisou dizer nada – a pergunta de Will foi respondida quando, em silêncio, Martha passou entre eles num rompante e se atirou nos degraus da frente. Ainda estava com o vestido branco e encardido na altura do tornozelo com que costumava dormir, claramente se levantara com pressa. Mas também portava a besta e, ao descer correndo a trilha, ergueu-o e tirou uma flecha da aljava.
– Parece que ela espera problemas – observou Chester.
Chegando à barricada, ela verificou pelo visor do portão. Com um rápido olhar para os meninos, destrancou o portão e o abriu. Ao dar um passo pela abertura, apontou a besta para algo, parecendo tensa.
– O que pode ter tocado o sino desse jeito? – refletiu Will. – Aranhas-macaco?
– Shhhh! – Chester sibilou. – Acho que ela está falando com alguém.
– Martha nunca para de falar – respondeu Will. – Mesmo quando não tem ninguém.
– Will! – gritou Martha de repente. – Desça aqui! Alguém está perguntando por você.
Os meninos trocaram um olhar confuso.
– Ela diz que é sua irmã – acrescentou Martha.
– Meu Deus do céu! Não acredito nisso! – Chester explodiu, socando o batente da porta. – A desgraçada da sua irmã! Aquelas vacas homicidas e loucas nos seguiram até aqui! – Ele se virou e disparou para dentro da cabana, mas Will já descia a trilha para o portão principal, tomado de curiosidade e medo.
Martha não tirava os olhos da besta, com os lábios tensos ao falar.
– Você a conhece?
Will colocou a cabeça com cautela pela porta.
Era Rebecca!
Uma das gêmeas estava parada ali, com as mãos cruzadas na frente do corpo e os dedos entrelaçados. Seu rosto estava manchado de sujeira e brilhava de lágrimas.
– Ah, Will – grasnou ela assim que o viu. – Me ajude. Por favor… Por favor, me ajude.
Will ficou sem fala.
– Ela está com o uniforme dos Limitadores – cuspiu Martha, com os dedos tão apertados na besta que as articulações ficaram brancas. – É uma Styx.
Will achou sua voz.
– Sim… Uma Styx. Eu te disse que ela era uma Styx – disse ele a Martha. Depois falou com a gêmea Rebecca. – O que significa isso? Por que veio aqui?
– Ah, Will – pediu a gêmea que mancava. – Você precisa me ajudar. Ela me jogou no Poro.
– Está sozinha? Tem algum outro Styx com você? – perguntou Will, enquanto seu cérebro entrava em marcha acelerada. Olhou a escuridão atrás da menina. – Sua irmã pode estar aqui, ou outros Styx. Isso pode ser uma armadilha – disse rapidamente para Martha.
Com a besta ainda apontada para a menina, Martha avançou. Parou, depois olhou rapidamente para os dois lados do túnel.
– Parece vazio – sussurrou ela.
A gêmea Rebecca recuara alguns passos com a aproximação de Martha e Will percebeu, pelo modo como se movia, que havia algum problema com sua perna. Ela também parecia absolutamente petrificada com Martha. Começou a balbuciar com Will.
– Estou sozinha… Ela não está aqui… Minha irmã… Ela me jogou no Poro.
– De joelhos, e coloque as mãos na cabeça – ladrou Martha.
– Minha irmã… Ela… Ela me empurrou no Poro – a gêmea Rebecca continuava a balbuciar ao obedecer às ordens de Martha.
– Por que ela faria isso? – perguntou Will.
– Eu não queria mais ficar com ela. Ela é louca… Eu disse que não faria mais parte daquilo. – Agora Rebecca chorava abertamente, os ombros magros tremendo. – Ela é doente, Will. Me obrigou a fazer coisas. Me obrigou a fazer tudo. Tive de fazer… Ela ameaçou me matar, tantas vezes. – Com as mãos no alto da cabeça, Rebecca olhou para Will, o cabelo preto espalhado pelo rosto.
– Deve achar que somos completos idiotas! – gritou Chester. Will nem tinha visto que ele estava ali. – Sua vaca mentirosa! – Ele estava tão ensandecido de fúria que a saliva voava de sua boca ao falar. Depois ergueu o rifle e apontou diretamente para a garota ajoelhada.
– Não! Chester! – gritou Will, estendendo a mão para ele. Will conseguiu bater no rifle assim que foi disparado. A bala estourou numa pedra em algum lugar atrás de Rebecca. Gemendo, ela se jogou de lado, com a cara enterrada no chão.
Chester estava trabalhando no ferrolho do rifle para dar um segundo tiro. No calor do momento, Will o empurrou com força no peito. Chester ficou tão surpreso com a intervenção de Will que relaxou a mão no rifle, permitindo que Will o tirasse dele.
– O que está fazendo? Devolva! – exigiu Chester. Ele curvou os ombros como um jogador de rugby prestes a atacar.
– Calma, Chester – disse Will, segurando o rifle junto ao corpo, pronto para se defender do garoto, se fosse necessário.
– Ela é uma Styx – Will ouviu Martha grunhir. Will girou a cabeça bem a tempo de ver o que ela pretendia fazer. Agindo por puro instinto, ele bateu no arco com a coronha do rifle. Foi o bastante para desviar a flecha, que zuniu nas pedras. O disparo errou o corpo trêmulo da menina prostrada por um triz.
– Meu Deus! Vocês dois… Parem com isso! – gritou Will. – Parem agora!
Chester e Martha o olhavam e, a julgar por suas expressões, ele pensou de verdade que poderiam atacá-lo para pegar a menina Styx.
– Qual é o problema de vocês? Quase atiraram nela! – ele exclamou.
A voz de Chester era fria e baixa. – É, é verdade. É isso mesmo.
– Mas… – começou Will.
– Mas o quê? Você não esteve no Cárcere. Não passou pelo que eu passei – disse ele. Chester apontou o dedo para a gêmea Rebecca. – Essa vagabundinha estava lá quando me espancaram! E ela também me bateu. Ela ria como se tudo fosse uma grande brincadeira. – Ele fuzilava a menina com os olhos. – Bom, eu tenho uma brincadeirinha que gostaria muito de tentar com ela!
Will se empertigou em toda sua altura.
– Não podemos matá-la, não aqui, e não desse jeito. Ela pode estar dizendo a…
– A verdade? Que não foi ela, foi a irmã? – Chester o interrompeu. – Tenha dó, Will, cai na real. As duas são idênticas, as duas são más. E Cal, Tam, sua avó? Está se esquecendo de que essas psicopatas os assassinaram? E todas as outras pessoas que elas mataram? Ela tem de morrer.
– Não vou deixar que você faça isso – disse Will. Soltando o pente do rifle e trabalhando no ferrolho para se certificar de que a agulha estivesse vazia, ele atirou a arma para Chester. – Não a sangue frio.
– E por que não? – Chester se irritou. – Você está comigo nessa, não está, Martha?
Martha assentiu.
– Completamente. Você precisa acabar com ela – insistiu a mulher com Will.
– Não – disse Will, a voz entrecortada da tensão do confronto. – Não. Não somos iguais a elas. Matá-la nos torna iguaizinhos a elas.
Chester fixou um olhar de pedra em Will, depois cuspiu na menina Styx antes de voltar para dentro da barricada a passos pesados.
Martha ficou imóvel, segurando a besta como se estivesse pensando em armá-la novamente.
– Então – disse ela a Will –, deixe eu entender isso direito. Esta é uma das gêmeas de que você falou, uma das falsas que fingiu ser sua irmã e fez tudo o que pôde para transformar sua vida num inferno… para caçar você e o matar. E está preparado para deixar que ela se safe?
Will passou a mão várias vezes no cabelo branco e comprido, como se estivesse totalmente perdido e não soubesse como responder.
– Eu… Eu realmente não sei, mas… Mas precisamos ouvir o que ela tem a dizer.
Martha balançou a cabeça e abriu um sorriso acre.
– Me prometa uma coisa, Will.
– O quê?
– Vamos deixar que ela fale um pouco… E depois de você ouvir todas as mentiras dela… vai tirá-la daqui e dar cabo dela você mesmo?
– Eu… Eu… – gaguejava Will.
– É assim que começa – Martha de repente parecia muito cansada, a cabeça tombando. – Os Cabeças Pretas se metem de mansinho para dentro e antes que você perceba, vai acordar com um dos cretinos parado na sua cara com uma faca. – Ela respirou fundo e olhou firme nos olhos de Will. – Espero que saiba o que está fazendo, meu bem.
Will estava confuso.
– Não, não sei, não sei mesmo – admitiu. Ele ouviu o choro da menina Styx e se virou para ela. – Levante-se, Rebecca, ou seja lá qual for seu nome. Você vem conosco.
A menina não se mexeu.
– Eu disse levante-se!
Ela se colocou de pé com dificuldade, tremendo de medo, postando os olhos grandes e assustados em Will.
– Martha? – disse Will.
– Sim – respondeu ela, o olhar de desprezo ardendo sobre a menina Styx.
– Achei uns ferros de masmorra nas coisas que Nathaniel trouxe do galeão.
– Agora você fala minha língua – Martha rosnou, segurando o braço de Rebecca e torcendo-o às costas. Depois a empurrou rudemente para a porta, na direção da cabana.
Will parou por um momento para examinar a escuridão do lado de fora antes de fechar e trancar o portão da barricada.
Sem ser visto por ele, um Limitador esgueirou-se dali. Sua missão fora realizada. Balançava a lança improvisada diante dele, pronto para despachar qualquer aranha que tivesse o azar de atravessar seu caminho.
– Brincadeira de criança – disse ele numa voz grave ao descer acelerado o túnel até o ponto de encontro com seu camarada. Pode ter sido assim porque ele conhecia aquele terreno tão bem quanto a teia de cicatrizes que tinha no dorso da mão, ou porque fosse tão fácil lidar com as aranhas e a fauna que encontrara até agora, ou simplesmente não era verdade.
Capítulo Treze
Chester foi para a varanda segurando uma caneca. Baixou na cadeira vaga ao lado de Will e soltou um longo hunff ao cruzar as pernas.
– Tudo bem? – perguntou Will, inseguro.
– Tá – murmurou ele em resposta, sem olhar o amigo. – Will… É… – começou, lançando-lhe um breve olhar antes de tomar um longo gole da caneca.
– O que foi? – respondeu Will, sabendo muito bem o que vinha pela frente.
A bebida de Chester estava muito mais quente do que ele esperava e ele teve de soprar algumas vezes para esfriá-la antes de responder. Quando conseguiu, sua fala era entrecortada de raiva.
– Essa gêmea fez a gente passar um inferno… E você simplesmente a deixou escapar, como se isso não fosse nada.
– Eu não a deixei escapar – retrucou Will. – É só que…
– Só que o quê? – disse Chester, cada vez mais exaltado. – Me poupe, Will! Você está agindo como um… Sei lá… Como um débil total!
– Não estou, não – Will objetou, fazendo o máximo para manter a voz equilibrada.
– Bom, acho que está cometendo o maior erro de sua vida. – Chester ficou pensativo por um momento. – Bom, um deles, quero dizer.
– Olha, Chester, é o seguinte – disse Will, massageando a testa, tentando aliviar a dor de cabeça latejante que aparecera depois do incidente. – Teria sido a coisa mais fácil do mundo deixar que você e Martha a matassem.
– Tá, então por que não deixou? – Chester o desafiou.
– Porque depois disso você teria se arrependido. Não está cheio de tantas mortes? Se déssemos cabo da gêmea, não seríamos diferentes dela e de todos os outros Styx. Não podemos nos rebaixar tanto assim.
– Não se atreva a nos comparar com eles – disse Chester, ofendido. – Nós somos os mocinhos.
– Não se atirarmos na cara de meninas de 12 anos – disse Will.
Chester estalou a língua nos dentes.
– Não está se esquecendo de que ela é perigosa pra caramba? E se a irmã dela estiver fora da barricada, com uma droga de exército de Limitadores? E se eles estiverem esperando um sinal dela para invadir esse lugar e matar a todos nós? E aí? – Chester bufou pelas narinas como um touro furioso, embora agora falasse sem gritar.
– Por que esperar? Eles podiam fazer isso a hora que quisessem – arrazoou Will.
Chester gesticulou como se enxotasse a resposta de Will, depois mudou de tática.
– E quanto a poupar a gêmea Rebecca, como é mesmo o ditado? Quem vive pela espada…
– … morre pela espada – Martha interferiu ao chegar à varanda e depositar um prato de metal no chão perto de Will. – Aqui está a comida de sua prisioneira. – Ao voltar prontamente para dentro, Will percebeu que ela estava com a besta pendurada às costas. Claramente ela estava tão nervosa quanto Chester com o possível aparecimento de outros Styx.
Will olhou o prato, mas não se mexeu.
– Não acha que quero vingança também, Chester? Pelo amor de Deus, olha o que eles fizeram com Cal, com o tio Tam, com minha mãe verdadeira e com a vovó Macaulay. E podem ter ido atrás de meu pai, talvez ele ainda esteja vivo. Mas atirar na gêmea… não é a resposta. – Ele bateu no braço da cadeira de Chester. – Você não está me ouvindo. Olha pra mim, pode ser?
– O que foi? – perguntou Chester, fitando os olhos resolutos de Will.
– Você tem que acreditar em mim quando eu digo isso… Eu não a perdoei. Nem por um segundo.
Chester meneou a cabeça brevemente, assentindo.
Will se levantou e pegou o prato de comida.
– E nunca se sabe… Talvez ela possa nos ajudar. Talvez ela conheça uma saída do Poro… Assim podemos arranjar um remédio para Elliott. Se tivéssemos matado a gêmea, ela não poderia nos dizer nada.
– Nisso você tem razão – Chester aquiesceu. – Então peça a ela três passagens no trem expresso para Highfield também, por que não? – Ele esfregou o nariz com as costas da mão, enquanto acrescentava: – E de primeira classe.
– Vou fazer isso. – Will ficou tão aliviado por ele e Chester não terem discutido ainda mais. A última coisa que queria era que os dois brigassem de novo. Já tivera o suficiente disso nas Profundezas para uma vida inteira. – E Chester, desculpe por ter empurrado você daquele jeito e tirado o rifle de sua mão.
– Tudo bem – disse Chester.
Will olhou a escada da frente, depois se virou para o amigo.
– Aliás, não queimou a boca nesse chá? – disse ele, abrindo um sorriso.
– Dá o fora daqui! – Chester riu.
Rebecca era mantida no depósito de lenha, o mais sólido dos anexos nos fundos da cabana. Martha não queria correr risco algum e tinha supervisionado Will enquanto ele revistava a gêmea, procurando alguma arma, e depois colocava algemas em seus tornozelos, cada uma delas trancada por um imenso cadeado. Como se não bastasse, Martha passou uma corrente pesada pelas algemas e numa das vigas imensas nos quatro cantos da cabana – de maneira nenhuma a menina ia a algum lugar.
– Gêmeas – disse Will baixinho ao carregar o prato para o barraco. Embora tivesse visto com os próprios olhos no alto do Poro, tinha de se lembrar constantemente de que eram duas Rebeccas. Elas se revezaram para espioná-lo, uma entrava, a outra saía, durante todos aqueles anos em Highfield. Não importava realmente qual delas era, as duas pareciam indistinguíveis.
Ao entrar, viu que Rebecca estava sentada de pernas cruzadas no chão de terra, de cabeça baixa. Levantou a cabeça para olhá-lo. Seu cabelo – que ele antes só vira perfeitamente arrumado – estava todo espalhado, e o rosto, borrado de sujeira. Will ficou bem alarmado com seu desalinho – em todos aqueles anos em Highfield, ela nunca permitira que seu padrão caísse.
Na Colônia, elas usavam o uniforme Styx, um vestido preto encimado por uma gola branca, um uniforme que lhes dava uma aura de poder e autoridade imensos. Vendo a criatura lamentável diante dele, com seus trajes rasgados de Limitador, ela não parecia mais tão poderosa ou autoritária. Qualquer que fosse a Pequena Miss Perfeita, tinha decaído muito.
Cautelosamente, como se estivesse se aproximando de um animal muito perigoso, ele colocou o prato no chão diante dela, depois recuou.
– Obrigada, Will – disse ela mansamente. – E obrigada por fazer o que fez lá fora. Você salvou minha vida. Eu sabia que podia contar com você.
– Não! – vociferou Will, levantando a mão. – Não quero sua gratidão.
– Tudo bem – disse Rebecca em voz baixa, futucando a comida no prato. – Mas espero que acredite em mim, Will. Eu fui obrigada a fazer o que minha irmã e os Styx mandavam. Se me recusasse, eles teriam me torturado ou me executado, ou as duas coisas. Não sabe o que é viver com medo por tanto tempo.
– Ah, não sei não… Você e seu povo me deram uma boa ideia disso – disse Will com o rosto inexpressivo.
– Não foi culpa minha, Will.
– Para com isso! – Ele se inflamou, ruborizando ao perder a calma. – O que é, hein? Espera que eu aceite sua palavra para tudo? Eu não sou tão burro!
– Eu estava seguindo ordens – disse ela, curvando-se à explosão dele. – Precisa acreditar em mim, Will.
– Ah, tá legal, vamos ser irmão e irmã de novo. Podemos brincar de família feliz, como antigamente – ele resmungou com escárnio. – Pode falar o que quiser, está desperdiçando seu fôlego. – Ao falar, passaram por sua mente lembranças nítidas da vida em Highfield. Repetidas vezes, de um jeito que só uma irmã caçula é capaz, Rebecca o alfinetava até que ele perdia as estribeiras – exatamente como ela queria que ele agisse. E agora, enquanto seu coração batia acelerado e ele ofegava, era como se nada tivesse mudado, apesar de todos os terríveis acontecimentos por que ele passou desde aqueles dias.
Bartleby entrou, abanando o rabo. Foi diretamente a Rebecca e se sentou espertamente ao lado dela. Ela pegou uma parte da carne escura no prato e ofereceu a ele. A raiva de Will deu lugar à surpresa enquanto o gato pegava a carne sem nenhuma hesitação, como se a conhecesse e confiasse nela. Rebecca percebeu a testa franzida de Will.
– Eu cuidei dele na Colônia – explicou Rebecca. – Bartleby estava péssimo quando o levamos para casa. – Ela deu ao gato outro punhado da carne, pingando o molho sem a menor preocupação no casaco esfarrapado de Limitador.
Tão anti-Rebecca, pensou Will consigo mesmo.
Bartleby ronronou ao engolir a comida.
– Amor interesseiro – pronunciou Rebecca, olhando para Will.
– Tenho umas perguntas para você – disse ele. – E se eu achar que está mentindo, vou te entregar a Chester e Martha. Entendeu?
Ela assentiu brevemente.
– Você veio aqui para baixo sozinha?
– Sim – respondeu ela inequivocamente.
– Então sua irmã não está com você? Nem nenhum outro Styx?
– Estou inteiramente sozinha – confirmou ela.
– E você caiu no Poro, como nós?
– Eu fui empurrada nele – disse ela.
Will não teve certeza, mas pensou ter visto o lábio inferior de Rebecca tremer, como se ela estivesse a ponto de chorar, mas ela se serviu de comida.
– Temos de descobrir um jeito de sair do Poro. Elliott está péssima… Ela precisa de um médico – disse ele.
– Lamento saber disso, mas não sei como voltar – respondeu ela de imediato.
– E a história de De Jaybo? – rebateu Will. – Ele realmente subiu de volta?
– Sim, subiu, mas ninguém sabe como conseguiu isso – respondeu ela. – Eu soube que papai pediu para ver os desenhos dele, mas não deram permissão.
Will se eriçou. Até onde sabia, ela perdera qualquer direito de chamar dr. Burrows de pai. Rebecca sentiu sua irritação, todo o corpo parecendo arriar como se de repente estivesse tomada de tristeza.
– Eu também sinto falta dele, sabia? – murmurou ela. – Fiz o que pude para que ele ficasse em paz quando estava na Colônia.
– Você o viu lá?
– Não tive permissão. Ah, Will, queria poder ter feito mais por ele.
Fechando os olhos, Will apertou as pálpebras com a ponta dos dedos. Sua dor de cabeça não parecia melhorar. Estava ansioso para voltar à cabana e se enterrar no esquecimento do sono, em algum lugar em que pudesse se desligar de tudo isso.
– Tem de acreditar em mim, Will… Eu fui obrigada a fazer todas aquelas coisas, todas aquelas coisas horríveis. Não tive alternativa.
Will finalmente abriu os olhos.
– Como posso convencer você de que estou dizendo a verdade? – perguntou ela.
Will deu de ombros.
– E se eu lhe der isso? – disse ela. Ela puxou a gola da blusa com os dedos sujos de molho e ergueu um cordão fino em que pendiam dois pequenos frascos de vidro. – E se eu lhe desse o Dominion e a vacina, como gesto de boa fé? – Com um giro do pulso, soltou o cordão e ofereceu os frascos a Will. – Tome, pegue. São os únicos espécimes que temos e… E agora são seus.
Sem dizer nada, ele estendeu a mão para pegar os frascos e os levou para a luz, onde poderia examinar seu fluido claro.
– Como vou saber se é realmente o Dominion? – perguntou ele por fim.
– Mas é – disse ela com um dar de ombros. Os ferros nas pernas chacoalharam quando ela mudou de posição para ver Will sem precisar esticar o pescoço.
– Mas por que você e sua irmã estão com essas coisas? Por que vocês?
– Porque somos importantes – disse ela despreocupadamente.
– O que quer dizer com isso?
– Sei que você soube na Colônia que não temos unidades familiares, não como o povo da Crosta. Quando meu pai perdeu a vida nas mãos de seu tio Tam…
– O Mosca? – interrompeu Will. – Então ele era mesmo seu pai!
Por um instante os olhos de Rebecca foram tomados de um brilho feroz, como se estivesse prestes a soltar uma fúria incandescente em Will. Ele sabia que insultava seu pai morto ao falar no apelido desagradável que tio Tam e sua turma haviam dado a ele. Mas ela piscou e virou o rosto rapidamente. Estava calma e composta quando voltou a falar.
– Foram deixados comigo e com minha irmã para dar prosseguimento ao expurgo com nosso avô. Por isso ficamos com os frascos.
– Expurgo? Como assim? – perguntou Will.
– Nosso plano para liberar o Dominion na Crosta, para cumprir a palavra do Livro das Catástrofes.
Enquanto Will quebrava a cabeça para lembrar se tinha visto o avô da gêmea ou ouvido alguma coisa sobre ele durante o tempo em que esteve na Colônia, ocorreu-lhe uma pergunta.
– No Poro, você e sua irmã tinham cada uma um frasco. Como conseguiu ficar com os dois agora? – ele a interrogou.
– Ela me deu o dela, por segurança. O que tem a cera preta na tampa é o vírus. O outro, com a cera branca, é o antídoto.
– Espere aí – disse ele. – Isso não faz sentido. Se você estava com os dois frascos, por que ela a empurrou no Poro? Por que faria uma coisa tão idiota? – perguntou ele, pensando que tinha apanhado a gêmea.
– Porque perdemos a cabeça. Nós brigamos e ela deve ter ficado tão irritada comigo que não parou para pensar nos frascos – disse Rebecca, sem um segundo de hesitação.
– Por que estavam brigando?
– Eu já lhe falei… Depois que você e os outros foram jogados no abismo, eu fiquei aborrecida. Disse a ela que não podia continuar mais com os planos. Que eu já estava farta de todas aquelas mortes. Ela enlouqueceu.
– Como vou saber se está me dizendo a verdade… E se sua irmã e seu avô ainda têm o vírus e vão seguir com a trama enquanto estamos presos aqui embaixo?
– Não vão. Nesse frasco está o que resta do vírus, o necessário para criar uma pandemia completa.
– Mas por que eles não fizeram mais? – perguntou Will, olhando atentamente o frasco de tampa preta.
– Não é assim tão simples. Eles podem tentar reformular, mas vai levar tempo para produzir a mesma cepa… Meses, talvez anos. De qualquer maneira, acredite em mim ou não, eu juro que esse frasco é o único que existe. – Ela parou, enxugando o rosto com a mão suja. – E agora você tem a chave.
– Tenho? – disse Will.
– Claro. – Os olhos pretos de Rebecca estavam extremamente confiantes ao responder. – Entregue esses espécimes às pessoas certas na superfície e elas poderão vacinar a população da Crosta. E se, por algum milagre, mais vírus forem fabricados e o expurgo for reencenado, não terá efeito nenhum… Nenhum mesmo. Você tem o poder de deter o Dominion.
– Tá, tudo isso é ótimo, mas como é que vou levar isso à superfície? – perguntou Will.
– Você vai descobrir, Will. Sempre foi muito inteligente. E quando descobrir, vai me levar com você – disse Rebecca –, porque eu posso lhe ser útil. Posso contar toda a história às pessoas. – Ela então soltou um suspiro fundo, olhando para Bartleby, que cochilava a seu lado. – E eu sei que não há como você acreditar em mim, mas sinto muita falta do papai. Ele também era meu pai.
– Rápido, seu velho idiota – disse a gêmea Rebecca num sussurro.
– Disse alguma coisa? – perguntou dr. Burrows, com um olhar nervoso para o Limitador que zanzava em círculos estreitos em volta dele, enquanto tentava trabalhar em uma tradução das tabuletas.
– Não, nada – respondeu ela, cheia de inocência. – Como está indo… Já está terminando?
– Rá! – exclamou ele. – Está me pedindo o impossível. Só o que entendi até agora nessas inscrições é algo sobre sete…
– Sete o quê? – ela o interrompeu.
– Não sei. Posso ler a palavra sete ou sétima, mas não sei com o que se relaciona. Isto é muito complicado… Entendo algumas palavras, mas me perco depois. – Ele ajeitou os óculos, espiando-a enquanto ela se empoleirava num monte de fungo.
– Ah, francamente… Não pode ser tão complicado – ela instou.
– Estou dizendo isso o tempo todo e você não me ouve. Preciso do desenho da Pedra de Burrows de meu diário – disse ele com desânimo. – São muitas variáveis para que eu faça isso rapidamente. Juntar os pedaços vai me consumir séculos… A não ser que, por acaso, você tenha um criptoanalista com um supercomputador escondido em algum lugar por aqui.
O Limitador disse algo na linguagem Styx nasalada para a gêmea Rebecca e ela assentiu.
– Tudo bem – anunciou ela, descendo do fungo. – Quais são nossas opções? Temos um mapa básico… Mesmo que não possamos entender as palavras, talvez possamos usar o mapa de alguma maneira.
– Bom – começou dr. Burrows, parecendo mais animado.
– Então vamos, trate de falar – insistiu ela, batendo palmas. – O que podemos fazer?
– Explorar até localizarmos algo que tenha ligação com os ícones do mapa. Depois podemos nos colocar na trilha certa.
A gêmea Rebecca pensou nisso por um segundo.
– Então… Deixe ver se eu entendi… Está esperando que nós nos arrastemos por centenas de quilômetros por esses túneis pegajosos na hipótese improvável de vermos alguma coisa familiar… talvez com um “Sete” escrito? É o melhor em que pode pensar? – perguntou ela com sarcasmo.
– Tem uma sugestão melhor? – disse dr. Burrows. – Podemos partir de onde encontramos o esqueleto com essas tabuletas. Dali, seguimos em um raio de busca cada vez maior e vasculhamos cada centímetro dos túneis… Exploramos completamente, procurando por qualquer coisa que possa nos ajudar.
A gêmea Rebecca não parecia muito convencida.
– Para mim, parece um tiro no escuro – disse ela.
A expressão do dr. Burrows era de confusão.
– Rebecca, por que é que de repente você está tão disposta a me ajudar? Não estava nem um pouco interessada em meu trabalho em todos aqueles anos em Highfield.
– Eu só quero voltar para meu povo, pai – disse a gêmea Rebecca, toda doçura e leveza. – Ou pelo menos sair deste lugar abominável. Muito bem – disse, olhando o Limitador –, vamos tentar o plano B, mas não quero que vaguemos longe demais.
– Excelente – disse dr. Burrows, embrulhando com cuidado as tabuletas no lenço de novo. – E enquanto andamos, quero saber mais de seu povo. Sei muito pouco sobre eles.
– Você e o resto do mundo – disse a gêmea Rebeca. Na língua dos Styx, ela acrescentou: – Assim foi e assim será.
Ao voltar à cabana, Will não viu sinal de Chester na sala. Supôs que ele estivesse vigiando Elliott. Will ficou muito aliviado – precisava de tempo para pensar bem nas coisas. Bartleby passou por ele e foi direito para o tapete da lareira, onde se esticou daquele jeito suntuoso que só os felinos conseguem ter.
– O bom e velho Bart – disse Will, sentando-se no tapete ao lado dele.
Will pegou os frascos, deu outro nó no cordão que a gêmea Rebecca arrebentara e os estendeu diante dele, perguntando-se se realmente continham o Dominion. Depois de um tempo, o crepitar do fogo lhe deu uma ideia. Ele pensou que seria muito fácil atirar os frascos ali. Sabia que o calor destruiria o vírus e, na pior das hipóteses, se parte dele escapasse, seria muito improvável que chegasse à população da Crosta e a infectasse.
Pensando melhor, não seria muito inteligente – ele e os outros não se dariam nada bem se parte do vírus escapasse das chamas. Não queria morrer como Cal lhe contara que acontecia com os homens das celas de teste. Talvez, raciocinou ele, fosse melhor que Martha montasse uma fogueira a uma distância segura da cabana e queimasse os frascos ali – por segurança.
Mas ele não devia desprezar o que Rebecca dissera sobre entregar o Dominion às pessoas certas da Crosta, sabotando assim qualquer tentativa posterior dos Styx de criar uma pandemia. Neste caso, pensou consigo mesmo, seria extremamente imprudente da parte dele destruir os frascos.
Também percebeu que agora era imperativo que voltasse à superfície com a carga letal, o mais rápido que pudesse. Não sabia como conseguiria, ou o que faria quando chegasse lá, mas precisava tentar.
Bartleby bocejou.
– Por que minha vida não pode ser como a sua, Bart? Boa e simples – disse Will ao coçar o queixo penugento do gato. – Quer trocar?
O felino cheirou sua mão e começou a soltar um ronronar alto. O rabo esquelético abanava lentamente de um lado a outro, idêntico a uma cobra desnutrida realizando um número de levitação.
– Bom garoto – disse Will, e o gato abriu um pouco os olhos de pires, fitando-o com afeto.
– E o que vou fazer? – Will perguntou à sala vazia enquanto balançava os frascos no ar, as chamas do fogo visíveis pelos vidros claros, como se estivessem dentro dele.
Bartleby deve ter pensado que Will queria brincar e bateu uma das imensas patas dianteiras numa tentativa infantil de acertar os frascos.
– Ei! Não! – Will rapidamente os afastou. – Meu Deus, essa foi por pouco! – balbuciou, imaginando o tinido de vidro quando os frascos se espatifassem no chão e inundassem a cabana com o patógeno letal. Bartleby parara de ronronar e olhava Will com decepção, claramente irritado por seu novo dono ser tão estraga-prazeres.
Will logo foi até a cômoda mais próxima e abriu a primeira gaveta.
– Aqui está – disse ao encontrar um saquinho de couro para tabaco que tinha visto ali. Embrulhou com cuidado os frascos em uma tira de estopa e colocou o fardo pequeno no saco. – Perfeito. Isso deve proteger de qualquer choque… E de gatos – disse a Bartleby, sentindo o peso do saquinho na mão. Depois franziu o cenho, refletindo por um momento. – Chester precisa saber disso – decidiu, indo para o quarto de Elliott.
Quando Will entrou, Chester estava bem acordado na cadeira ao lado de Elliott. Ele mergulhou um pano numa tigela, espremeu o excesso de água e passou na testa da menina.
– Ela está muito desidratada – disse Chester. – E olhe para ela. Está emagrecendo tanto. Quer dizer, pra começo de conversa, ela já nem era tão bem-nutrida.
– Sumindo – disse Will, lembrando-se da exata palavra que Martha usara para descrever o que acontecera com o filho.
– Sim – Chester assentiu. – Talvez você tenha razão. Talvez a gente deva ir embora e nos arriscar lá fora. Vamos ficar bem se levarmos bastante fogo-anisado para afugentar as aranhas. E se não der em nada e fracassarmos completamente, talvez Martha nos aceite de volta.
– Duvido – disse Will. – Em especial se roubarmos as plantas sagradas dela.
– Ah, eu não sei o que a gente deve fazer – disse Chester com um suspiro.
– Nem eu – concordou Will.
– Conseguiu alguma coisa de útil com a gêmea Styx? – perguntou Chester, mudando de assunto.
– Só isso – respondeu Will, abrindo o saco de couro e desembrulhando os frascos da estopa.
Chester piscou de assombro ao focalizar o que estava ali.
– O Dominion? Ela te deu o Dominion? – disse ele em voz alta, depois torceu o rosto. – Não. Não acredito. Não é verdadeiro.
– Quer ver? – disse Will, estendendo a mão com os frascos por sobre a forma imóvel de Elliott.
– Er… Não – Chester declinou. – Não quero nem chegar perto dessa coisa maldita. E não quero nada com aquela vaca do mal. – Ele recolocou o pano na tigela e enxugou as mãos na frente antes de voltar a falar. – Acredita mesmo que ela te deu o vírus verdadeiro?
– Não tenho como saber. Acho que podemos experimentar – respondeu Will. – Sabe como é, um de nós pode servir de cobaia.
Chester o olhou rapidamente, tentando saber se o amigo falava sério ou não.
– E podemos decidir qual de nós será num jogo de xadrez – disse Will, incapaz de manter a expressão séria.
Chester sorriu.
– Acho que não. Você anda treinando muito. Eu teria mais chances com “pedra, tesoura, papel” – disse. Depois o sorriso desapareceu de seu rosto e ele levou a cadeira para o lado que Will ocupava. – Tudo bem, então me conta exatamente o que a gêmea Rebecca disse. Estou curioso.
– Bom… Pra começar, ela jura que a irmã é responsável por tudo e que foi obrigada a obedecer. – Will ergueu a mão com os frascos. – Ela também disse que este é todo o Dominion que os Styx têm. Então eles não podem levar o plano adiante.
Chester ergueu as sobrancelhas ao ouvir isso.
– E qual é a probabilidade disso?
– Ela disse que mesmo que não acreditemos nela, e os Styx tenham mais, devíamos levar isso às pessoas certas na superfície. Elas vão poder produzir a vacina.
– Tirando o fato de que não podemos chegar à superfície, tudo isso parece um monte de besteira. Não acredito numa palavra do que ela disse a você – disse Chester, inflexível.
– Espere aí – insistiu Will. – Pense nisso com a lógica. Talvez esse Dominion seja real, mas ela sabe que não podemos chegar à Crosta, então não importa realmente se temos o vírus ou não. Ou ela realmente acredita que podemos achar um jeito de voltar e está tentando se aproveitar disso, porque quer ir para casa. Ou talvez ela tenha sido sincera e foi mesmo obrigada a fazer tudo o que a irmã mandou, e esse é seu jeito de nos provar isso.
Chester meneou a cabeça.
– Hum… Repete essa última parte.
– Olha, é simples. Se houver a menor chance de salvarmos dezenas de milhões de vidas na superfície, e a de Elliott por tabela, então não é melhor tentarmos o que for possível para sair do Poro?
– Colocando desse jeito, sim, é claro – concordou Chester. – E a gêmea? Vamos deixá-la aqui, com Martha?
– Não, nós a levamos quando formos embora. Ela prometeu que vai revelar os Styx e seus planos – disse Will.
Chester esfregou o queixo, pensativo.
– Então, precisamos fazer as malas e sair.
Da porta, uma voz fez os dois pularem de susto.
– Eu avisei aos dois sobre deixar aquela garota Styx entrar – disse Martha. – É isso que acontece. É assim que sempre começa. – Ela deu meia volta e saiu.
Capítulo Catorze
Martha nunca disse uma só palavra a nenhum dos dois sobre o que tinha entreouvido, e ambos tentaram ficar longe dela por alguns dias, tão longe quanto podiam nos confins apertados da cabana. Will continuou com sua rotina de cuidar de Elliott, jogar xadrez sozinho e vasculhar os objetos do anexo, mas agora ainda havia a responsabilidade por Rebecca.
Mas a maior preocupação dele e de Chester ainda era Elliott e seu declínio constante. Era uma agonia vê-la deitada na cama, vertendo suor, ouvindo seus surtos de balbuciar febril. Ela sempre dizia o nome de Drake e recitava a sequência de números que nada significavam para os meninos.
Will ficava cada vez mais deprimido, a ponto de não pensar em nada que não fosse o sofrimento de Elliott. Mesmo quando não era turno dele, frequentemente fazia companhia a Chester, os dois sentados em silêncio. Em uma ocasião dessas, Chester lhe falou.
– Will, você não para de bocejar e está arrasado. Por que não vai dormir um pouco?
– Tudo bem – murmurou Will, levantando-se com outro bocejo e se arrastando para a sala ao lado.
– Mas o quê?
Will não sabia quanto tempo dormira, mas acordou alarmado, como se alguém o tivesse chamado com urgência. Ele se sentou reto e olhou nervoso a sala escurecida. Nada parecia estar fora do normal, então procurou ouvir mais alguma coisa, mas só havia a respiração profunda de Chester, que dormia sonoramente na pilha de carpetes no chão.
Will retirou o cobertor leve e foi dar uma olhada em Elliott no quarto ao lado. Imersa na febre, ela girava a cabeça no travesseiro manchado de suor e seus braços se debatiam ocasionalmente, como se lutasse com alguém ou alguma coisa. Enquanto ele se curvava e sentia sua testa, ela murmurava, mas nada fazia sentido para ele.
– Quente demais – disse ele num sussurro. – Vamos, Elliott, você pode vencer essa.
Por alguns minutos ele a olhou, desejando que houvesse um jeito de atenuar seu sofrimento. Depois voltou à sala e saiu da cabana. Parou na varanda, sentando-se no primeiro degrau. Estava agradecido pela brisa suave que soprava da ladeira e fechou os olhos, desfrutando-a no rosto.
Quando abriu os olhos, o brilho do jardim parecia mais forte do que nunca, banhando a caverna em uma gama gloriosa de radiância multicolorida. Lembrou-lhe as noites de verão, quando o parque de diversões se instalava em Highfield – visto de longe, as luzes que erravam no céu não eram diferentes da fantasmagoria que testemunhava agora.
Correndo os olhos pelos canteiros dos dois lados da trilha, ele podia jurar que um deles estava ficando mais intenso enquanto os outros enfraqueciam, como se passassem o bastão de um para outro. As mudanças eram suficientes para alterar a luz na varanda, perseguindo sua sombra pela madeira de convés atrás dele.
Ele desceu ao último degrau e ergueu a mão na frente do corpo para admirar os tons coloridos que caíam nela, dissolvendo-se do amarelo ao laranja e depois a uma paleta de vermelhos e azuis, tudo em constante rotação. Pensou no parque de diversões de novo. Não era preciso muito para imaginar a confusão de música de órgão e as antigas canções de rock, e os risos e gritos de crianças animadas rolando pelos campos verdes.
– Saudade de casa? – disse uma voz grave.
Will apertou os olhos, distinguindo alguém sentado a poucos passos dele.
Era um homem, um homem grande, e seu perfil era familiar.
– Tio Tam! – disse Will em voz alta, perguntando-se por que não estava mais surpreso ou mais assustado com o que via. – Mas você está… Er… Você está morto!
– Ah, isso explica por que ando me sentindo meio indisposto ultimamente – respondeu Tam com ironia.
– Isso é um sonho? Estou sonhando? – perguntou-lhe Will.
– É bem possível – respondeu Tam, passando a mão no rosto e depois no alto da cabeça, onde começou a coçar vigorosamente. – Imagino que peguei piolho de novo. – Ele riu. – Esses sanguessugas.
– Eu estou sonhando – concluiu Will, girando no degrau para ficar de frente para a aparição.
– Diga o que eu devo fazer, tio Tam. Você precisa me dizer.
– Você se meteu em apuros, não foi, filho? – disse Tam.
Will franziu o cenho, lembrando-se de que havia algo de vital importância que precisava dizer ao tio.
– Cal… Eu lamento muito por Cal… Eu…
– Você não podia ter feito nada – Tam o interrompeu enquanto pegava o cachimbo e o enchia de tabaco. – Eu sei disso, Will, eu sei. Você mesmo só escapou por um triz.
– Mas o que posso fazer por Elliott? – perguntou Will ao homem que riscava um fósforo no polegar e o acendia, iluminando seu rosto por um instante. – Ela está muito doente e eu me sinto tão inútil. O que devo fazer?
– Queria ser de alguma ajuda, Will, mas não conheço este lugar. – Tam levou um momento para avaliar a caverna enquanto mascava o cachimbo. – Não tenho nenhum mapa que possa lhe mostrar o caminho. Escolha um curso de ação… Vai saber se for o certo… E prenda-se a ele.
– Por favor, Tam – Will implorou à silhueta sombria. – Eu preciso de mais do que isso.
Tam soltou uma nuvem de fumaça que pareceu se demorar uma eternidade no ar, imbuída do ciclo constante de cores diferentes emitidas pelas plantas.
– Ouça seu coração – disse ele, enquanto a nuvem finalmente se dispersava.
– O que quer dizer? – perguntou Will, profundamente decepcionado com a resposta. – Isso não me ajuda em nada!
Tam meramente expirou uma nuvem ainda maior de fumaça, que o envolveu inteiramente.
– O que está fazendo aqui fora? – perguntou Martha.
– Hein? – Will arquejou, girando a cabeça de repente.
– Eu ouvi vozes – disse ela, olhando o jardim do alto da varanda.
– Eu não conseguia dormir, então dei uma olhada em Elliott, depois vim aqui fora para tomar ar fresco – explicou Will.
– Você não olhou Elliott. Eu estava com ela… Teria visto você entrar. Você está bem, Will? – perguntou, preocupada.
Will não respondeu, virando-se para onde Tam estivera sentado. Ficou surpreso ao ver Bartleby ali, olhando-o atentamente.
– Devo ter cochilado – murmurou, subindo e passando por Martha ao entrar na cabana, balançando a cabeça.
Mais tarde, quando Will começou seu turno com Elliott, ela parecia ainda mais inquieta do que o de costume, jogando a cabeça de um lado a outro enquanto retesava braços e pernas. Às vezes seus olhos se abriam por alguns segundos. Isso assustava Will – ele não sabia o que significava, ou o que devia fazer. Ao tentar acalmá-la falando com ela, seus olhos pareceram fitá-lo, mas ele sabia que ela não o via – não tinham vida e estavam vermelhos, e em nada lembravam os olhos dela.
Ela começou a balbuciar e espumar pela boca, e os movimentos tornaram-se mais frenéticos. Depois gritou e todo seu corpo entrou em convulsão, travado como se uma corrente elétrica tivesse passado por ele. Pedindo ajuda aos gritos, Will tentou endireitá-la na cama, mas ela estava rígida, as costas arqueadas e as pernas tão tensas que ela se jogava do colchão. Ele pôde ver rapidamente seu rosto. Não estava mais corado, como estivera desde que a febre começara; tinha perdido completamente a cor. Era de um branco cadavérico.
– Pelo amor de Deus! Venham aqui logo! – gritou ele.
Chester e Martha entraram correndo ao mesmo tempo – claramente os dois estavam dormindo.
Martha reagiu à situação imediatamente. Pegou a tigela de água e a jogou em Elliott, depois atirou a tigela vazia para Chester, dizendo-lhe para encher. Enquanto Chester corria dali, ela se juntou a Will, tentando endireitar o corpo da menina na cama.
– O que é isso? Por que ela está assim? – disse Will, tão descontrolado de preocupação que sua voz tremia.
– É por causa da temperatura. Deve passar – disse Martha. Ela examinava a boca de Elliott – os dentes da menina estavam cerrados. – Preciso ver se ela não mordeu a língua.
– Ah, meu Deus… Olha… Veja os olhos dela. – Will ofegou. Eles rolavam para cima de tal forma que só aparecia o branco.
– Vai passar – Martha lhe garantiu novamente.
Chester voltou num rompante com mais água e Martha ensopou a menina uma segunda vez. O corpo de Elliott relaxou as poucos, até que ela ficou completamente imóvel e a cor voltou a seu rosto.
– Coitada da Elliott – murmurou Will. – Isso foi medonho.
– Ela teve um espasmo. É porque ficou quente demais por muito tempo – disse Martha. – Está afetando seu cérebro.
Will e Chester trocaram olhares.
– Não há nada que possamos fazer para impedir? – perguntou Chester.
– Receio que não. E é provável que vá piorar – respondeu Martha. – Exatamente como aconteceu com Nathaniel.
A sra. Burrows tinha acabado de sair do apartamento quando percebeu dois jovens de aparência rude encostados nas grades no meio da praça.
Os dois estavam de capuz e usavam bonés de camuflagem azul idênticos e com palas enormes, de forma que era difícil ver os rostos. Mas depois um deles, o mais alto, que tinha um cigarro na mão em concha, levou-o à boca para dar um trago e a sra. Burrows teve um vislumbre de suas feições.
Ela reduziu o passo e atravessou a rua até eles.
– Eu conheço você, não conheço? – disse ela, a testa franzida.
– Acho que não, dona – respondeu o maior, seus modos grosseiros ao jogar o cigarro na sarjeta. Baixando a cabeça, ele começou a se afastar com arrogância, levando seu confederado a reboque.
– Eu conheço você sim. Você e Will tiveram uma briga no quarto ano, quando Will usou a pá dele. Eu tive de entrar e falar com o diretor e vocês estavam lá com seus pais. Você é Spike, Spider ou coisa assim, não é?
O menino parou de pronto, virando a cabeça para olhar a sra. Burrows.
– Spider? Mas que nome é esse? – cuspiu. Ele torceu a lateral da boca no que provavelmente pretendia ser um esgar insolente, porém mais parecia que estava prestes a espirrar. – O nome é Speed, dona, Speed. – Depois, registrando o que sra. Burrows dissera, franziu a testa e começou a examiná-la com mais interesse. – Will… Will Burrows. É a mãe do Will?
– Isso mesmo – confirmou ela.
Speed trocou um olhar com o companheiro, Bloggsy, depois andou para ela.
– Pensei que estivesse internada em algum lugar – disse ele insensivelmente.
– Eu estava. Passei por maus bocados, mas agora estou bem.
– Meu padrasto ficou todo doidão também… Sabe do que estou falando? Depressões e esses troços, só que minha mãe tocou o cara pra fora. Ele tava se enchendo de intimidade comigo e meu mano – disse Speed, cerrando e abrindo o punho.
– Lamento saber disso – disse sra. Burrows.
Speed passou os olhos de novo pela sra. Burrows, demorando-se em seus tênis novos.
– Demais – disse ele, obviamente impressionado com eles. – A senhora tá sarada. Anda malhando, sra. B?
Ela assentiu.
– Voltou aqui por causa do Will, né? – perguntou ele. – Procurando por ele?
– Sim, estou indo para outra reunião com a polícia. Eles não têm novidade nenhuma para contar… Só as desculpas de sempre. É como lidar com um bando de paspalhos.
Speed balançou a cabeça enfaticamente.
– O que eles vão te dizer? Ninguém fala com eles. São os últimos a saber o que tá rolando.
Speed parecia a ponto de dizer mais alguma coisa, mas fechou a boca.
– Você não o viu, não é? – perguntou sra. Burrows. – Alguns disseram tê-lo visto por aqui antes do Natal.
– Eu… – ele começou, depois pareceu mudar de ideia. – Fuma? – ofereceu. Em um átimo, Bloggsy estava ali com um maço aberto de Marlboro. Sra. Burrows pegou um, e Speed acendeu-o antes de acender o dele.
A sra. Burrows deu um bom trago no cigarro.
– Escute, o que você me disser vai ficar entre mim e você – prometeu ela. – Nada de polícia.
– Nada de polícia – repetiu Speed. Ele olhou para os dois lados da rua, depois se curvou para ela, baixando a voz a um sussurro confidencial. – Em novembro, ele voltou aqui em Highfield com um garoto mais novo…
– O Mini-Me… E aquele pit bull monstro – intrometeu-se Bloggsy.
Speed o olhou severamente e ele se calou de pronto.
– … Um garoto mais novo que era igualzinho a ele, e ele também tinha um cachorrão. Eles iam pro metrô quando eu e Bloggsy esbarramos neles. Will e eu nunca fomos parceiros, sabe qual é, então não conversamos exatamente.
– Então você só o viu uma vez?
– É – confirmou Speed. – Dizem por aí que ele topou com uns velhos barra-pesada e teve de se entocar, mas vai voltar logo pra resolver a parada. E a gente respeita ele por isso.
– Respeita – Bloggsy fez eco.
– E se achar o Will, diga a ele por mim – disse Speed, dando estocadas no ar com o cigarro para enfatizar o que dizia – que nem sempre nos entendemos, mas que passou. Se ele quiser ajuda, sabe onde me achar.
– Vou fazer isso. Obrigada – disse sra. Burrows, olhando os dois se afastarem com as mãos nos bolsos.
E pela janela da porta traseira de um furgão velho e amassado na praça, a própria sra. Burrows era vigiada. Drake aumentou a ampliação de sua luneta, dando um zoom para ver o rosto dela com mais clareza.
– Cuidado com quem você fala, Celia. Nunca se sabe – disse ele baixinho. – Só quando é tarde demais.
Sra. Burrows olhou pensativamente o cigarro, depois o examinou na mão.
– Não vai terminar isso – Drake previu. – Lembra demais de sua irmã Jean. Você não é igual a ela.
Celia Burrows levou o cigarro à boca, mas pareceu pensar melhor. Com um balançar de cabeça, ela o jogou cuidadosamente num bueiro, depois recomeçou a andar.
– Boa garota – disse Drake. Ele baixou a luneta e se preparou para segui-la.
Para Will, tudo tinha perdido o significado. Jogar xadrez estava fora de questão – ele não conseguia se concentrar e percebeu que também não abria seu diário há semanas. Mal conseguia se obrigar a comer o que Martha lhe servia. Tinha dificuldade para dormir – sempre que se deitava, sentia que sua cabeça estava a ponto de explodir. E sempre que estava com Chester, a pergunta muda pairava entre eles. Devemos ir? Devemos ir?
Quanto a Elliott, ele se perguntou quando viria o limite, o ponto em que ela estaria doente demais para se mexer. Vendo-a naquele estado, parecia ter chegado à gota d’água. Ele se sentiu impotente demais para ajudar em alguma coisa.
Will começou a se perguntar se ele e Chester deviam deixar Elliott na cabana com Martha e partir sozinhos, mas não via como isso daria certo. E se eles tivessem sucesso e encontrassem alguma coisa ou alguém, mas não achassem o caminho de volta à cabana? Ou se encontrassem socorro, mas estivessem longe demais e não chegassem a tempo de ajudá-la? Ou se, por um golpe de sorte, achassem uma saída do Poro – eles a pegariam, depois desceriam de novo? Não, concluiu Will, só poderia dar certo levando Elliott com eles.
Mas ele não conseguia se decidir a dizer a Chester que estava na hora – e nem tinha certeza de como Chester reagiria, se dissesse.
A única parte de sua antiga rotina a que se prendia era vasculhar os baús de itens recuperados.
Agora, enquanto vagava pelos fundos da cabana com Bartleby saltitando a seu lado, Rebecca o chamou.
– Como está Elliott? Está melhor?
Ele olhou a cabana de Rebecca, vendo seu rosto pela porta aberta.
– Não, ela está… – ele começou a responder, depois se reprimiu. Estava tão imerso em suas preocupações que quase esqueceu a quem se dirigia. – Não fale comigo. – Ele fechou a carranca. – Não é da sua conta!
Entrando no anexo, ele parou diante dos baús e arcas em um dos cantos que ainda não tinha investigado. Suspirou, pensando que não restavam muitos para que terminasse todo o lote. Subindo em alguns baús para chegar ao topo da pilha do canto, ele se esticou e pegou uma caixa de madeira. Levou-a para baixo, colocando no pequeno trecho de chão no meio do anexo que limpou para arrumar os objetos. Ao se ajoelhar diante da caixa e abrir a tampa, Rebecca se dignou a falar com ele de novo.
– Procurando alguma coisa, Will? – disse ela.
Will parou o que fazia e se levantou, perguntando-se se Rebecca podia ver através das frestas na parede lateral de sua cabana. O depósito de lenha em que Martha colocara a gêmea era igual aos outros anexos; tábuas de madeira antiga tinham sido pregadas em viga grossas, mas estavam tão empenadas e roídas que ele imaginava que ela podia observá-lo através de alguma rachadura. É típico da Rebecca. Sempre xeretando. Seu ressentimento aumentou. Este era o único lugar onde ele podia fugir de tudo, perder-se na tarefa de vasculhar os baús. A última coisa que queria era ter uma conversa com a menina Styx.
– Me deixa em paz, tá legal? – rebateu ele.
Ao se ajoelhar diante da caixa de novo e afastar algumas partituras, deu com um pequeno recipiente de plástico. Dentro dele, parecia haver um conjunto de canetas relativamente modernas, do tipo usado por desenhistas ou cartógrafos. Havia cinco no recipiente, todas com pontas de diferentes tamanhos. Ele abriu a tampa de uma delas e experimentou na palma da mão. A tinta tinha secado há muito tempo e ele de imediato se perguntou se Martha tinha alguma coisa que ele pudesse usar em vez delas.
– Achado não é roubado – disse ele ao colocar o conjunto de lado. Foi quando Rebecca voltou a falar.
– Não sei o que está procurando, mas deve ser importante, se você e Martha estão atrás disso.
– Eu te disse para cala… – ele começou, mas não terminou a frase. Levantando-se, deixou o anexo e foi até Rebecca. – O que você disse? – perguntou ele bruscamente.
– Bom, Martha também esteve aí, fuçando. Pensei…
– Não – disse Will, balançando a cabeça. – Martha não está interessada nessas velharias… Estão aqui há séculos. – Ele começou a se afastar. – Está enganada.
– Não, Will, não estou – Rebecca insistiu. – Juro que ela esteve aí… ah, três ou quatro vezes… mexendo nas coisas e até jogou algumas fora.
Will hesitou, virando a cabeça para a gêmea.
– Jogou fora? – repetiu ele. – Que tipo de coisas?
– Não deu para ver bem o que era, mas eu ouvi um tilintar.
– É mesmo? – disse Will, pensando que era estranho Martha não ter mencionado nada disso a ele. Deu de ombros brevemente, dizendo a si mesmo que tudo pertencia a Martha, então ela podia fazer o que quisesse, mas sua curiosidade levou a melhor. – Onde ela colocou essas coisas que tilintam?
– Logo depois do Bartleby. Eu tenho certeza de que a vi cavando ali e ela jogou alguma coisa no buraco.
Will olhou para onde Bartleby rolava de costas, soltando uma série de grunhidos satisfeitos de porco. Ele tomava tantos banhos de poeira neste mesmo lugar que havia uma grande marca na terra.
– Depois do Bartleby – disse ele pensativamente.
– Sim. Imaginei que ela estava ajudando no que você está fazendo.
– Claro, é isso mesmo… Ela estava me ajudando – murmurou Will, tentando fingir a Rebecca que o que ela dizia não era novidade para ele. Mas ao voltar para seu anexo, ele sabia que tinha de ver com os próprios olhos. Continuou direto até o gato que se retorcia, tentando ser o mais despreocupado possível, porque desconfiava de que os olhos enxeridos de Rebecca estavam fixos nele.
– Continue… Um pouco depois daí – gritou Rebecca prestativamente, confirmando suas desconfianças.
– Mas que droga, o que eu estou fazendo? – resmungou Will, irritado por se permitir dar alguma atenção ao que ela dizia. De qualquer modo, Will continuou, passando por Bartleby, cuja cabeça se ergueu ao vê-lo.
Chegando à área que Rebecca tinha indicado, Will contornou lentamente o chão, examinando a superfície. Parecia firme sob os pés, mas então seu calcanhar afundou num trecho solto. Ele logo se agachou e começou a afastar a terra. Fora cavada há pouco e não era difícil reescavar o buraco.
Will percebeu que Bartleby o olhava atentamente, com a cabeça tombada de lado.
– Só procurando meu osso favorito – brincou Will com o gato. Não era improvável que o próprio Bartleby tivesse cavado o buraco, e Will estava preparado para descobrir um roedor meio comido ou algo igualmente repulsivo no fundo.
Ele chegou a meio metro e estava se curvando para o buraco quando viu na terra o que pareciam contas pequenas e de cores claras. No início só imaginou que eram ovos de insetos ou sementes, mas ao olhar mais atentamente descobriu que eram, na verdade, comprimidos. Pegou-os com cuidado da terra, identificando três tipos distintos. Dois eram brancos, mas de tamanhos diferentes, e o terceiro era rosa. Cada um dos três tipos tinha a impressão de letras diferentes, embora não contivessem palavras inteiras.
E então, enquanto cavava mais fundo, ouviu algo bater.
– O que temos aqui? – disse ele a Bartleby ao dar com frascos de vidro. Tinham mais ou menos quatro centímetros de comprimento e as tampas, de metal atarraxado, foram retiradas, mas ele também as encontrou no fundo do buraco. Esvaziou a terra de um dos frascos e, localizando a tampa certa, recolocou-a. Lembrou-o do tipo de frasco que os pais guardavam no armário do banheiro – remédios prescritos que ninguém se dava o trabalho de jogar fora.
Farejando ruidosamente, Bartleby metia o focinho no buraco, enquanto Will tentava ler o rótulo impresso no frasco. Viu uma palavra comprida no rótulo, com várias letras que não eram do alfabeto ocidental. Apesar de não entender o que significavam, ele teve a forte sensação de que o frasco provinha da superfície. Depois percebeu uma data na base do rótulo.
– Tem dois anos! – ofegou, e de imediato verificou os outros rótulos. Descobriu que tinham mais ou menos as mesmas datas, com diferença de alguns meses.
Ele se sentou no chão, estupefato, enquanto vários pensamentos ricocheteavam por sua cabeça ao mesmo tempo. Sentiu uma onda de esperança, porque a própria existência desses frascos demonstrava que até aqui embaixo havia remédios (e modernos), que podiam ajudar Elliott a se recuperar da febre.
Mas também ficou profundamente perturbado com a descoberta. Se Martha sabia desses remédios, por que não disse nada a eles? Pior ainda, por que ela andou agindo pelas costas e os escondeu dele? Will não entendia por que ela tinha agido assim.
Ele pegou outros comprimidos soltos e os colocou em outros frascos, depois fechou as tampas. Imerso em pensamentos, meteu os três frascos no bolso da calça.
– Vamos lá, garoto, hora de voltar – disse a Bartleby. Para evitar outra conversa com Rebecca, passou rapidamente por ela.
– Achou alguma coisa? – ela chamou.
– Não, nada – ele grunhiu, mantendo os olhos fixos no caminho que tinha à frente.
– Chegou bem na hora do jantar. Fiz um caldo para nós – disse Martha enquanto Will entrava na cabana. Ela estava de costas para a sala e mexia numa panela na lareira, enquanto Chester já estava sentado à mesa, atacando sua comida.
– A cobra Styx disse mais alguma coisa? – perguntou ele, sem olhar para Will ao secar a tigela de caldo.
– Sim, disse – respondeu Will. – Algo muito estranho. – Ele não se sentou, tirando os frascos do bolso e os colocando em fila na mesa.
– Ela é uma nojenta mentirosa, como todos eles – disse Chester com desdém, levando a colher à boca, mas parando no meio do caminho ao pôr os olhos nos frascos.
– Ela não é a única nojenta mentirosa – disse Will em voz baixa.
Martha estava a meio caminho da mesa com uma tigela de caldo para Will. Houve um estrondo quando ela simplesmente a deixou cair, esparramando o caldo no chão.
A não ser pelo estalo ocasional da lareira, o silêncio era absoluto na sala.
Chester olhou de Will para Martha, que estava imóvel, de cabeça baixa.
– Mas o que diabos está acontecendo aqui? – Ele apontou os frascos com a colher. – E o que é isso, Will?
– Remédios, imagino. Olhe a data – disse Will, rolando um dos frascos pela mesa para Chester.
Chester o pegou e examinou o rótulo.
– Tem dois anos – disse ele. – E o rótulo está em russo.
– Russo – disse Will. – É mesmo?
– Claro. Minha avó era da Ucrânia. Ela me ensinou algumas palavras – disse Chester num completo pasmo. – Mas o que está havendo? De onde tirou isso?
Will pegou outro frasco e o sacudiu para que chacoalhasse.
– Contêm comprimidos. Pelo menos continham, até Martha tirar escondido os comprimidos dos baús e enterrá-los perto da parede da caverna. Ela os enterrou para que eu não os encontrasse. – Ele olhou furioso para Martha, que continuava fitando os pés, então de repente bateu a mão na testa. – É claro, o estetoscópio! – exclamou. – É recente também, como os comprimidos! Tam estava tentando me dizer! Ele me disse para ouvir meu coração. Ele queria dizer o estetoscópio!
Chester agora estava de pé, olhando o amigo, alarmado.
– Meu Deus, o que está dizendo, Will? Ficou totalmente maluco? Como Tam pode ter falado com você? Ele está morto há meses.
– Esquece… Isso não é importante – disse Will num tom mais controlado, embora rouco de raiva. – O que importa é que Martha sabia onde havia remédios. Talvez alguns antibióticos que poderíamos ter usado com Elliott. E ela escondeu de nós, Chester – disse Will, de frente para a mulher. – Por que fez isso, Martha?
Ela ainda estava calada, de cabeça baixa.
– Martha? – murmurou Chester. – É verdade?
Martha se arrastou desequilibrada até a cadeira à cabeceira da mesa e afundou ali. Não disse nada por um tempo, passando o polegar sem parar na palma da outra mão. Quando falou, sua voz mal era audível.
– Quando Nathaniel voltou… com as costelas quebradas… e a febre apareceu, ele foi piorando cada vez mais…
– Tá, já sabemos disso – interrompeu Will, sem conseguir ter muita simpatia pela mulher.
– Eu lhe disse que ele achou um barco de metal. Fica a uns oito dias daqui, na mais distante das Sete Irmãs. Enquanto ele… – disse ela, mas sua voz falhou.
– Sim – Will a pressionou.
– Enquanto ele ainda podia falar, me ensinou como chegar lá e eu pude pegar alguns suprimentos de botica de lá.
Will e Chester trocaram olhares.
– Quer dizer remédios – disse Will.
– Sim, remédios – ela confirmou timidamente. – Mas é uma longa jornada e eu me perdi. Também perdi alguns remédios quando os Faróis atacaram. Eles têm ninho perto do barco e por pouco não consigo sair de lá.
– Faróis? – Chester murmurou para Will, que só balançou a cabeça.
– Continue – Will a instou.
– Nathaniel estava morto quando voltei. – Martha suspirou. – Mas mesmo que eu chegasse a tempo, não saberia o que os remédios fazem, nem como usá-los.
– Tá, mas talvez Chester e eu saibamos – disse Will incisivamente. – E você ainda não explicou por que mentiu para nós, Martha.
– Porque… Porque não quero que vocês se machuquem. Eu não posso perder nenhum de vocês, não como perdi Nathaniel. Não vou suportar passar por isso de novo – Martha grasnou, à beira das lágrimas.
Will apontou para o quarto de Elliott.
– Lá dentro, nossa amiga está lutando pela vida, e as suas mentiras podem muito bem tê-la matado – disse ele, depois se voltou para Chester. – Tudo bem, é isso que vamos fazer… Vamos agora mesmo até o barco de metal. – Ele foi até onde Martha deixara a besta e a pegou.
Martha vira o que ele fez pelo canto do olho. O ato em si já era bastante significativo – ele não precisava acrescentar nada. Ela suspirou.
– Desculpe, Will – disse ela. – Não vou decepcionar você de novo.
– Chester, por que não prepara Elliott? – sugeriu Will. – Martha, quero que embrulhe toda a comida que tiver neste lugar.
– Preciso pegar um pouco de fogo-anisado no meu jardim – disse ela, levantando-se lentamente, depois indo para a porta da frente. Os meninos a observaram descer para o jardim e colher as plantas. Enquanto ela arrancava os caules, o brilho forte e azul emitido pelo fogo-anisado de imediato esmorecia, sumindo lentamente.
– Isso foi horrível – disse Chester. – Mas nem acredito que ela mentiu pra gente.
Eles ainda observavam a figura solitária e desamparada curvada sobre as plantas, vestida com seu avental puído e o cabelo ruivo e embaraçado caindo no rosto.
– É só uma velha triste – murmurou Will. Empinou os ombros como se tentasse deixar todo o episódio para trás. – Por que não tenta ler o que está nos rótulos? – disse. – Vou preparar nosso kit, depois vamos pegar a estrada.
– E Rebecca? – perguntou Chester. – O que vamos fazer com ela?
– Pode contar comigo, eu adoraria ajudar – disse Rebecca enquanto subia a escada da varanda e entrava na sala. Will de imediato olhou seus tornozelos e viu que ela havia removido os ferros. – Sabe que sou muito boa para organizar coisas, não é, Will? – acrescentou ela gentilmente.
Meneando a cabeça de incredulidade, Will levou um momento para responder.
– Então… Então você podia ter fugido quando bem quisesse. Mas não fugiu.
– Por que eu faria uma coisa dessas? – respondeu ela. – Não tenho para onde ir.
Will percebeu que Chester tinha cerrado o punho e receou o que ele pudesse fazer. Nesse instante, uma forte lufada de vento varreu o jardim, farfalhando as plantas em seus canteiros.
– Parece um golpe do levante – disse Rebecca.
Com o bater de uma persiana em algum lugar da cabana, Will falou em voz baixa.
– Sempre que um desses ventos sopra, acontece uma coisa horrível.
– Ah, que ótimo – resmungou Chester.
O vento esbravejava em volta do dr. Burrows e da gêmea Rebecca. Pegos num local exposto no meio de um túnel largo, não havia para onde pudessem escapar enquanto o vento ficava cada vez mais feroz. A pequena fogueira entre eles estava quase extinta pelas lufadas violentas, mas de qualquer modo mal conseguiram enxergar quando a tempestade de poeira preta de repente os envolveu.
Dr. Burrows rolou e ficou de bruços, passando os braços pela cabeça para proteger o rosto da poeira. Deitado ali, cuspindo terra, ele finalmente admitiu a si mesmo que esgotara toda a paciência com a menina Styx. A pressão dela por resultados era implacável. Ele não podia simplesmente estalar os dedos e de algum jeito descobrir um atributo que se relacionasse com o mapa das tabuletas de pedra. Isso o deixou revoltado. Ele era arqueólogo, não um escoteiro.
E, para completar, dr. Burrows se sentia completamente intimidado pelo soldado Styx. Sob a superfície de tudo o que a menina dizia, havia a ameaça velada de que o soldado repulsivo o machucaria. Dizer que dr. Burrows sentia-se extremamente inquieto era atenuar a realidade.
Era uma completa inversão da relação pai-filha. Agora era Rebecca quem mandava – a palavra dele não valia nada. Não. Era demais para dr. Burrows. Não admirava que ele estivesse disposto a se arriscar sozinho. E o mais importante, Rebecca se esquecera de tirar as tabuletas dele por “segurança”, como a própria dizia. Ele deu um tapinha no bolso para se asseverar de que estavam ali e sorriu.
Sabendo que a nuvem impenetrável mascararia seus movimentos, começou a engatinhar lentamente pelo chão, afastando-se do fogo. Certificou-se de que tinha enganchado o cantil de água ao prosseguir – precisaria dele para continuar suas buscas.
Depois de pouco tempo, parou de engatinhar. Ainda não enxergava muito à frente e o vento enchia seus ouvidos quando ele tentava escutar. Concluindo que não havia como sua fuga ser descoberta, levantou-se e começou a andar. Quase curvado em dois pela força do vento, seguiu em linha reta para o que parecia um homem parado ali.
Ao lado do homem, havia um borrão de luz, e nesta luz ele vislumbrou um rosto entre os redemoinhos densos de poeira. Percebeu que tinha esbarrado no Limitador Styx e que Rebecca estava ao lado dele.
– Se perdeu? – gritou ela por sobre a ventania. Pegando seu braço, girou-o na direção de onde ele viera. – Não é inteligente andar por aí com isso – acrescentou. Depois de alguns passos ela se sentou, puxando-o. – Não vai querer se machucar, não é, papai? – disse.
Capítulo Quinze
Will terminava de preparar o kit quando Chester chegou à varanda.
– Que coisa mais esquisita… – começou Will, perplexo.
– O quê?
– Bom – disse Will enquanto tirava o dispositivo de visão de um bolso lateral da mochila e o olhava. – Eu testei para saber se está ativado… E está completamente morto.
– Tem certeza? – perguntou Chester.
– Absoluta. Nem um brilhozinho – respondeu Will.
– Talvez você tenha deixado ligado ou coisa assim e o elemento queimou – sugeriu Chester.
– Não, eu cuidei muito bem dele – respondeu Will. – Espero que a mira do seu rifle esteja boa…. Pelo menos um de nós precisa ter visão noturna.
Chester pegou o rifle e apontou para o jardim.
– Mas que droga! – exclamou, baixando a arma para examinar a mira. – Também não está funcionando. – Ele girou a catraca de foco da mira e tentou de novo. – Nada. Porcaria! – Com uma carranca, olhou rapidamente para Will. – Não acha que a gêmea Rebecca… – ele se interrompeu.
Will pensou nisso por um momento.
– Não, não pode ter sido ela. Eu sei que ela se desamarrou, mas meu dispositivo estava no quarto de Elliott e sempre havia um de nós lá.
– Bom, se não foi ela – disse Chester, sacudindo o rifle como se pudesse fazer a mira voltar a funcionar –, essas coisas não são alimentadas por globos de luz e feitas para durar anos? Não foi o que Drake disse?
– Acho que sim – Will suspirou, fechando os olhos por um segundo. – É típico… Justo quando precisamos delas. – Ele abriu os olhos. – Só espero que a gente não tope com nenhum problema pelo caminho. – Ao voltar para dentro, ele olhou os frascos de comprimido na mesa. – Teve alguma sorte com esses aqui?
Chester se aproximou e pegou um deles.
– Sim, este tem aspirinas – disse ele sem a menor hesitação.
– Caramba! Que máximo! – exclamou Will. – Você lê mesmo em russo! Estou impressionado! – Depois percebeu que Chester sorria para ele.
– Will – disse ele, orientando o amigo para a base do rótulo –, se olhar bem aqui embaixo… entre as palavras em russo… está escrito Aspirina. Na nossa língua.
– Ah, é… Eu não tinha visto – murmurou Will, sentindo-se um pouco tolo.
Pelas letras nos comprimidos, eles logo identificaram quais eram de aspirina. Depois Will e Chester debateram se seria arriscado demais medicar Elliott, em particular porque os comprimidos passaram uma boa semana na terra e alguns que até começavam a ficar meio inchados de umidade.
No fim, decidiram que as aspirinas podiam fazer mais bem do que mal e ajudariam a baixar a febre. E se queriam evitar outra crise, eles sabiam que não tinham opção, precisavam arriscar. Dissolveram alguns comprimidos em um cantil de água e a fizeram beber.
O vento do levante já quase cessava quando eles passaram pela barricada, com uma ou outra lufada soprando em suas costas. Por várias horas, os túneis eram largos e relativamente planos. Will rezou para que toda a viagem fosse igualmente tranquila.
Como conhecia o caminho, Martha assumiu a dianteira. Em seguida vinham Chester e Will, carregando Elliott entre eles em uma maca improvisada. Elliott estava embrulhada num cobertor e bem presa à maca para ser erguida verticalmente se a situação exigisse, mas por ora os meninos tentavam mantê-la na horizontal para amenizar o trauma de ser carregada.
Will olhou para Rebecca, que vinha atrás deles, Bartleby ao lado da menina com seu andar de passos largos e soltos. Por insistência dela, Rebecca carregava uma proporção imensa das provisões e água em duas mochilas, uma em cada ombro. Dada sua magreza, teria sido uma provação e tanto na superfície, mas ela podia fazer isso sem muita dificuldade graças à ausência de gravidade. Todavia, Will não podia deixar de perceber que ela parecia estar mancando ainda mais.
– Não sei como ela está lidando com isso – disse em voz baixa a Chester.
– Tão bem como esperamos, eu acho – respondeu Chester ao olhar para Elliott.
– Eu quis dizer a Rebecca – Will o corrigiu.
– Ah, ela – respondeu Chester com raiva, todas as suas maneiras se transformando num piscar de olhos. Era evidente que ele não dava a mínima. – Will, não se deixe levar por ela. Eu já te falei, tudo isso não passa de teatro.
Will pensou por um segundo.
– Se for mesmo um truque, o que ela pode querer de nós?
– Não faço ideia – disse Chester. Ele estava agitado – não o agradava que Will desse rédea solta à garota. Will sabia que, se dependesse de Chester, ela estaria acorrentada de novo – desta vez, acorrentada direito – e ficaria para trás, apodrecendo no depósito de lenha.
– Não acho que ela esteja aprontando alguma coisa – disse Will depois de alguns passos. Embora não sonhasse em dizer uma palavra disso a Chester, ele estava tremendamente confuso com seus sentimentos. Desde que apareceu na cabana, Rebecca não mostrou nenhuma das características brutais de seu povo. Na realidade, ela parecia ser distintamente vulnerável e estar a um mundo de distância dos Styx e de sua crueldade de insetos.
Ele queria tanto acreditar em tudo que ela lhe contara – que fora obrigada a seguir ordens por medo de morrer. Talvez ele quisesse acreditar um pouco demais. Rebecca fora imprescindível antes de eles saírem da cabana, ajudando-o a planejar o que precisavam levar e organizando as mochilas milimetricamente, daquele jeito eficiente que só Rebecca tinha. Era como se ele tivesse retrocedido para antes de todas as coisas atrozes que vivera nas mãos dos Styx na Colônia e nas Profundezas, e de algum modo a irmã lhe fosse devolvida, a irmã que ele conhecia dos bons tempos de Highfield. É verdade que estes foram poucos e espaçados – e talvez as lembranças desses momentos fossem mais intensas exatamente por isso. E talvez Will também quisesse acreditar nela porque, com o pai desaparecido, ele sentia que ela era tudo o que restava de sua família em Highfield. Além da sra. Burrows, é claro, que era uma figura vaga e distante em sua memória.
– Neste momento, estou mais preocupado com Martha – disse Chester, interrompendo os pensamentos de Will. Os dois olharam sua silhueta roliça à frente. – Ela está meio estranha – continuou Chester. – Mal disse uma palavra desde que saímos da cabana. Sei que foi errado ela mentir pra gente, mas posso entender um pouco os motivos dela.
Will soltou um “sim” meio articulado. Não ia perdoar a mulher tão rapidamente.
– O que ela fez foi egoísta. Ela escolheu nossa vida em detrimento da de Elliott. Como isso pode ser o certo? – disse ele.
– Não é – respondeu Chester lentamente, como se ainda refletisse se continuaria com raiva de Martha ou não.
– E por falar em Elliott – disse Will –, não está na hora de outra dose da aspirina?
– Acho que todos nós podemos fazer um pit stop – concordou Chester.
Depois de gritar para Martha voltar, Will tirou a mochila dos ombros e pegou o cantil que continha a solução de aspirina. Passou a Chester, que o sacudiu bem, retirou a tampa e verteu algumas gotas na boca de Elliott.
– Está funcionando mesmo – disse Chester, colocando a mão na testa de Elliott ao servir um pouco mais do líquido entre seus lábios rachados. – Ela está bem mais fria.
Todos ficaram paralisados ao ouvir um guincho ao longe – o chamado das aranhas-macaco.
– Era só o que faltava – disse Will, enquanto seus olhos encontravam os de Martha.
– É ela – cochichou a mulher, apontando para Elliott. – Eu lhe falei… Eles podem sentir a fraqueza. Ela os está atraindo como um ímã.
– Vamos simplesmente ter que usar o fogo-anisado e continuar – disse Will, inexpressivo.
– Quero meu arco de volta – exigiu Martha abruptamente, olhando a arma e o tubo de flechas pendurados no ombro de Chester, junto com o rifle.
Levantando-se, Chester olhou para Will, procurando orientação, mas o garoto continuava em silêncio. Ele não era favorável à ideia.
– Er… – disse Rebecca suavemente, depois fechou a boca.
– Você ia dizer alguma coisa – Will a incitou.
– Bom… É só que Martha é a única que está familiarizada com o terreno e os perigos que podemos enfrentar pelo caminho. Ela realmente devia estar armada, porque se vocês a perderem, perdem sua guia e nunca vão encontrar o barco.
Will ficou indeciso.
– Ei, o show é seu, Will, mas é assim que eu vejo as coisas – disse Rebecca, quase se desculpando.
– Não, bom argumento – Will admitiu. Ele se virou para Martha. – Então… Tenho sua palavra de que podemos confiar em você?
Martha assentiu severamente.
– Então pode ter o arco de volta – disse Will.
– Ei! Peraí um minutinho – Chester explodiu furiosamente. – Vai dar ouvidos à Styx desgraçada, mas não quer minha opinião. – Ele lançou um olhar ressentido a Rebecca.
– Chester, me desculpe – disse Will. – Pode falar… Me diz o que você acha.
Chester hesitou por um momento.
– Sim… Ela deve ter a arma de volta.
Will deu de ombros.
– Então você concorda com a “Styx desgraçada”. Por que fez esse estardalhaço todo?
Chester se virou, resmungando.
– Minha opinião tem que valer também… É só isso.
– Primeiro você fica toda animadinha para dar uma busca pelo Poro, depois… Deus nos acuda… Tudo muda e nós seguimos este aí – disse dr. Burrows, apontando para o Limitador à frente. – Mas então, onde diabos ele pensa que vai? Não estamos ficando totalmente perdidos?
– Não enquanto ele estiver achando as indicações – respondeu Rebecca.
Tinham acabado de entrar em um novo trecho de túnel e ela varria o chão procurando uma dessas “indicações” de que falara.
Ela olhou os três pequenos pedaços de fungo em uma fila a sua direita, contando dez passos à frente, depois colocou a luz sobre o outro lado do chão do túnel, passando por onde dr. Burrows andava. Ali, na base da parede oposta e facilmente despercebidos – a não ser que por acaso conheça os procedimentos operacionais dos Limitadores –, mais três objetos, desta vez pedrinhas. Esses marcadores eram a série de confirmação que o primeiro Limitador deixara para que seguissem seu rastro.
Dr. Burrows, claramente, não estava consciente de que havia um segundo Limitador trabalhando nos bastidores e ficou totalmente confuso.
– Indicações? Não vi indicação nenhuma – disse ele.
– Confie em mim – respondeu a gêmea Rebecca.
Martha os fazia parar a intervalos regulares para comer e descansar. Ela armou pequenas fogueiras com o material que coletava pelo caminho, usando-as para aquecer as provisões, e mantendo-as acesas enquanto ela e os meninos se revezavam para dormir. E sempre espalhava alguns ramos de fogo-anisado pelas bordas da fogueira, para que queimassem devagar e enchessem o ar com seu odor pungente.
No quarto dia, quando andavam, Will percebeu que de repente o chão estava muito diferente – não era o esmagar de cascalho ou a flexibilidade de fungo, mas algo mais mole.
– Parece adubo… Como folhas velhas – disse ele ao inspirar profundamente, tentando identificar os diferentes cheiros. Depois percebeu algo mais – um movimento na parede ao lado. No início pressupôs que seus olhos lhe pregavam peças porque ele estava cansado demais. Depois viu que os movimentos eram reais e vinham de todo lado – não só das paredes, mas do teto e do chão do túnel.
– Espera! – gritou ele, parando e obrigando Chester a fazer o mesmo na outra ponta da maca de Elliott. De olhos semicerrados, Will viu muitas coisinhas que pareciam umas minhocas por toda a superfície. Depois uma delas cruzou o chão bem na frente de suas botas. Com uns dez centímetros de extensão, parecia uma cobra fina e inteiramente branca, e não parecia ter olhos. Com uma espécie de ventosa em cada extremidade, movia-se às cambalhotas.
– Eca! – exclamou Chester. – Umas porcarias de larvas gigantes!
Bartleby pisou em uma, prendendo-a em suas patas. Fechando os dentes na minhoca, conseguiu mordiscar uma ponta. Sua outra ponta começou a espiralar rapidamente, cada vez mais veloz, como se tentasse se livrar do predador desconhecido. Os olhos de Bartleby rolaram nas órbitas, tentando acompanhar aquelas revoluções de helicóptero, e ele logo ficou tonto do esforço. Então a criatura parou de girar e plantou a ventosa de sua extremidade livre bem no nariz de Bartleby. Com um guincho de choque, o gato balançou a cabeça freneticamente e a soltou da boca. Foi o bastante para Bartleby – ele parecia decididamente indócil ao ver quantas minhocas davam cambalhotas em volta dele, e saltitava para evitá-las, como um pônei pulando cercas.
Martha ouviu a comoção e voltou até os meninos.
– Cobras de laçada. Não vão machucar vocês – ela lhes informou, pegando-as nas paredes e enfiando num saco.
– Desculpe, Martha, mas se a ideia é comer essas coisas, não conte comigo. E de jeito nenhum vou ficar muito tempo por aqui – disse Chester decisivamente, andando de lado para evitar uma cobra que tentava grudar sua ventosa na biqueira da bota. Ele soltou um ronco gutural de pavor para demonstrar seu nojo completo das criaturas e afastou-se um passo, puxando a maca e Will junto. – Vem, Will, vamos nessa!
Will relutou em seguir, impedindo a rápida escapada de Chester enquanto olhava o chão, fascinado.
– Anda logo, Will! – gritou Chester, puxando a maca. – Não estou com humor pra aulinha de natureza!
Quando eles saíram, Will olhou para trás e viu Rebecca baixar as mochilas. Ela começou a ajudar Martha a coletar as cobras de laçada. Depois viu Martha dizer algo a Rebecca, que se afastou rapidamente da mulher. Rebecca recolocou as mochilas nos ombros e desceu o túnel correndo.
Will não viu mais nada porque Chester partiu numa corrida leve, obrigando-o a se mover na mesma velocidade. Não era difícil entender por que Chester estava com tanta pressa. O número de cobras de laçada aumentara a tal ponto, que era como se eles estivessem passando por um tapete ininterrupto de dedos brancos e ondulantes. Estavam em toda parte – algumas até caíam do teto e pousavam em Elliott e na maca. Os meninos não conseguiam deixar de pisar nas cobras com o solado das botas. Elas explodiam com um som perturbador, e um fluido luminoso vazava dos corpos, de forma que os meninos deixavam trechos levemente brilhantes em seu caminho.
Por fim, eles chegaram a uma parte do túnel que não tinha cobras de laçada e esperaram que Martha e Rebecca os alcançassem.
Rebecca foi a primeira a chegar.
– O que aconteceu lá atrás… com Martha? – Will estava esbaforido, ainda sem fôlego.
– Nada – murmurou ela, sem olhar nos olhos dele.
– Deixa de besteira – disse Will. – Eu vi. Vi que ela te disse alguma coisa.
– Eu quis ajudar com as cobras…
– Sim… E? – Will insistiu.
– Ela me disse para sair dali e que ia me matar – disse Rebecca, mantendo a voz baixa.
– Então ela disse isso – grunhiu Will. – Não se preocupe, Rebecca… Se ela tentar alguma coisa, vai ter de se ver comigo.
– Por que ainda a chama assim? – Chester se intrometeu. – Não é o nome dela.
– Não começa – alertou Will.
– Não, é sério, queria saber qual é o nome dela. Rebecca foi dado a ela pelo povo da Crosta, então não pode ser seu nome verdadeiro. Além disso, não pode haver duas Rebeccas, pode? E aí, qual é seu nome? – ele quis saber da menina.
– Não teria sentido para você – respondeu Rebecca. – É na minha língua.
– Experimenta – insistiu Chester.
Rebecca pronunciou uma palavra curta na língua nasalada dos Styx, que estranhamente parecia um latido de hiena.
– É, tem razão – disse Chester, balançando a cabeça. – Não espere que eu a chame de…
Ele caiu em silêncio quando Elliott começou a se retorcer contra suas amarras na maca.
– Acho que ninguém deve falar Styx perto de Elliott – observou Chester. – Parece incomodá-la.
No sétimo dia de jornada, os meninos sentiam o cansaço de carregar a maca, apesar da ajuda da gravidade reduzida. Will não sabia quantos quilômetros de túnel tinham percorrido, nem quantas descidas verticais tiveram de fazer, mas se atinha à palavra de Martha, que disse que chegariam ao barco em algum momento durante o dia seguinte. Isso se ela conseguisse se lembrar corretamente do restante do caminho.
Eles tiveram de retroceder em várias ocasiões, quando Martha percebia que pegara uma via errada, mas isso lhes custou no máximo algumas horas. Ela não usava mapa nem bússola (e Will não sabia se um desses dois funcionaria ali, de qualquer forma), mas parecia saber todo o caminho de cor.
Os momentos mais difíceis e perigosos foram quando eles desciam por imensas fendas, particularmente porque precisavam ter muito cuidado com Elliott. Mas, com os quatro ligados por cordas, eles conseguiram levar Elliott e a maca para baixo repetidas vezes sem atropelos. E nessas ocasiões, qualquer hostilidade entre Martha e Rebecca foi deixada de lado, porque cada um tinha um papel a desempenhar.
Houve outras vezes em que eles tiveram de avançar por centenas de metros de passagens terrivelmente claustrofóbicas, arrastando o kit às costas porque o teto era baixo demais. Foi preciso muito empurrar e puxar para passar Elliott por esses trechos.
De repente chegaram a uma área onde o ar era tão seco que todos ofegavam e afrouxavam as roupas. Ao descerem uma ladeira íngreme, o calor ficou insuportável. Will olhava o caminho à frente quando percebeu que ele brilhava com um vermelho opaco. Parecia nefasto, e ele não ficou nada surpreso quando Martha anunciou uma parada.
– O que foi? – perguntou Chester.
Martha não respondeu, pegando duas bexigas cheias de água. Depois acenou para Rebecca se aproximar.
– Styx, vá pegar mais água – ordenou ela com aspereza.
Enquanto Rebecca obedecia, Martha explicou.
– Por aqui, a lava corre perto da pedra. É muito quente e muito perigosa.
– E o que vamos fazer? – perguntou Will.
– Não podemos pegar um caminho diferente? – perguntou Chester ao mesmo tempo.
Martha meneou a cabeça.
– Não tem outro. Não parem para nada… Entenderam? Se pararem, vão morrer.
Chester sorriu.
– Morto por churrasco – comentou ele, depois parou de sorrir porque percebeu que não era nada engraçado.
Martha ajudou Will a enrolar uns trapos nas patas de Bartleby e amarrá-los com barbante. O gato parecia gostar da atenção de Will e ronronava alegremente até que Martha jogou água em suas pernas e nas novas botinas de tecido. Ele rosnou indignado para ela e Will teve de mantê-lo parado para Martha terminar o trabalho. Chester teve a tarefa de molhar tanto a maca de Elliott quanto ela própria, e estava na metade quando de repente parou.
– Will – disse ele.
– O que foi?
– Sabe se isto é da Elliott? – Ele indicava a mochila amarrada na maca, pouco abaixo dos pés da menina, que ele tinha insistido que trouxessem.
Os olhos de Will se arregalaram.
– Explosivos! E tem munição em nossos rifles! Martha, e se ficar tão quente que vá explodir tudo?
– Os rifles não são problema… É só cuidar para que a mochila esteja ensopada – aconselhou ela, virando o cantil e jogando água em si mesma, dirigindo a maior parte dela para as pernas e os pés. Quando os meninos e Elliott também estavam encharcados, Martha os reuniu de novo.
– Lembrem-se… Aconteça o que acontecer, não parem. Por nada. Senão o calor vai pegar vocês – disse ela.
E então eles partiram, disparando o resto da ladeira abaixo e entrando no ar escaldante. Tudo tinha um brilho vermelho. Will teve um vislumbre da névoa de calor pouco antes de chegar lá – parecia quase sólida, como se eles estivessem prestes a se chocar num espelho, ou numa camada transparente de mercúrio. Os meninos tinham a sensação de que as chamas lambiam seus rostos.
– Parece um crisol! – grasnou Will, mal se atrevendo a respirar. Lembrou-se do interior dos potinhos de cerâmica que eles aqueciam com bicos de Bunsen nas aulas de química da escola.
A pedra em volta deles e sob os seus pés parecia tomada de veias que emitiam um brilho carmim. Por instinto, Will e Chester procuravam não pisar nas veias ao correrem – era como um jogo infantil e diabólico de evitar as rachaduras da calçada. Will sentiu cheiro de queimado e imediatamente se perguntou se as solas das botas estariam suportando essas temperaturas.
Também sentiu as roupas secarem e viu que o mesmo aconteceu com Chester, que deixava um rio de vapor em sua esteira. Bartleby andava obedientemente ao lado de Will, mas assim que as botinas começaram a chiar, decidiu que não ia acompanhar os humanos. Disparou para longe como um cavalo assustado.
– Meu Deus! Falta muito? – exclamou Chester, enquanto ele e Will se esbaforiam, achando difícil segurar a maca com as palmas das mãos ficando escorregadias de suor.
Depois eles passaram a uma parte mais fria do túnel, onde Martha e Bartleby esperavam, e arriaram no chão.
– Ai! – Will suspirou. – Mas que sauna. Devo ter perdido alguns quilos. – Ele pegou o rifle e soltou o cutelo do cinto. – Por que eu trouxe tudo isso? Estou carregando peso demais – ele ofegava.
– Nunca se sabe quando pode ser útil – comentou Chester, depois tomou um longo gole do cantil.
– Você é igualzinho a meu pai. Ele nunca jogava nada fora… Isso deixava Rebecca maluca. – Will deu uma risadinha enquanto Chester lhe passava o cantil. Começou a beber, mas depois cuspiu parte da água, que espirrou no amigo. – Meu Deus! Cadê a Rebeca? – disse Will, atabalhoado, ao perceber que ela ainda não aparecera. – Ela não estava bem atrás da gente?
– Acho que sim – Chester confirmou.
Eles voltaram alguns passos até a ladeira e esperaram, mas ela não vinha.
– Talvez tenha sido demais para ela e ela tenha voltado – disse Chester.
Will de repente virou o cantil na cabeça.
– O que acha que vai…? – gritou Chester, mas não terminou a frase porque Will jogou o cantil vazio para ele. – Will? – gritou Chester enquanto o amigo partia de volta para o calor.
Will não precisou ir muito longe quando, no ar de mercúrio, distinguiu algo amontoado no meio do túnel. Filetes de fumaça subiam dali. Ao parar, viu Rebecca arriada sobre as mochilas, que começavam a pegar fogo. Ele a sacudiu, gritando seu nome. Ela levantou a cabeça fraca e tentou estender a mão para ele.
Erguendo-a, ele a atirou nas costas, depois hesitou por um instante.
– Não! Não posso deixar aqui! – ele ofegou, mal sendo capaz de ver o que fazia ao tentar pegar as mochilas pelas alças. Xingou quando sua mão entrou em contato com o chão cintilante, mas ainda conseguiu pegar as duas mochilas. Depois correu o mais rápido que suas pernas podiam aguentar, movimentando se com tal velocidade que quase voava. O calor era impiedoso – ele respirava em golpes mínimos no ar que tostava seus pulmões.
Chester avançou pelo calor o máximo que se atreveu e esperava por Will. Quando Will disparou na direção dele, ele gritou, “dá aqui!”, e pegou as mochilas.
Alcançando Martha, Will rapidamente deitou Rebecca ao lado de Elliott. Pegou uma das bexigas e despejou água na menina, cuja cabeça rolava inebriada nos ombros. Depois a fez se sentar e beber um pouco. Logo a água pareceu reanimá-la, embora ela ainda estivesse bem grogue.
– O que houve? – perguntou ele.
– Eu tropecei. Não consegui me levantar – respondeu ela, com a mão na testa, tendo um acesso de tosse. Depois levantou os olhos para ele. – Obrigada, Will – disse.
– Por nada – respondeu Will sem jeito, levantando-se. Tocando a mão onde tinha queimado, ele se virou para ver o que Chester e Martha faziam. Chester meneava a cabeça lentamente enquanto ele e Martha olhavam Will com uma expressão idêntica de reprovação. Os olhos de Will passaram por eles e deram onde Chester deixara as mochilas.
– Ei! Seus idiotas! Estão pegando fogo! – gritou ao ver que as duas mochilas queimavam sem que percebessem. – Rápido!
Chester e Martha de imediato jogaram punhados de terra nas mochilas em chamas.
– Está tudo bem? Perdemos alguma coisa? – perguntou Will, preocupado que o conteúdo pudesse ter sido danificado.
– Não, acho que não – respondeu Chester, abrindo uma para verificar. Ele levantou a cabeça para Will. – Não devia ter voltado. Não sozinho.
– Precisei voltar – disse Will.
Chester não estava convencido.
– Foi uma atitude irresponsável – disse ele.
Martha fuzilava Rebecca com os olhos.
– E por causa dessa Styx e de sua palhaçada, vamos ficar sem água antes da próxima fonte. – Ela se virou para o túnel. – Precisamos ir.
Vários quilômetros depois, Martha pareceu reduzir o passo. Aproximou-se da parede do túnel, mexeu em alguma coisa e abriu uma porta de madeira irregular.
– O que é esse lugar? – perguntou Chester ao vê-la parar.
– Chamam de Caverna dos Lobos… É uma toca que Nathaniel descobriu. Ele guardava umas armadilhas de aranha extras aí dentro.
Com Elliott entre eles na maca, Will e Chester seguiram Martha adentro e descobriram que era um espaço de tamanho razoável, com um chão de areia macia. O túnel parecia se estender para diante, mas Martha não o seguiu, baixando o kit no chão arenoso. Rebecca e Bartleby também entraram, embora Rebecca, ainda não plenamente recuperada de sua provação, simplesmente tivesse se deitado no chão.
– Por que Caverna dos Lobos? – perguntou Chester enquanto ele e Will achavam uma parte plana do chão onde colocar a maca.
– Por causa dos lobos – disse Martha com muita simplicidade.
– Lobos? – balbuciou Chester, nervoso. – Não ouvi nada.
– Nem ouviria. – Martha averiguou se a porta estava bem fechada e continuou a falar, começando a preparar alguma comida para o grupo. – Eles se movem como espectros, caçando em bandos de três ou quatro. Em geral escolhem os desgarrados e evitam grupos grandes de pessoas. – Sentando-se no chão com as pernas esticadas, ela cortava as pontas das cobras de laçada, e tirava sua pele branca. – Escapei por pouco deles da última vez em que estive aqui. Então, se vocês se separarem, lembrem-se de onde fica essa caverna.
Depois de pedir que os meninos acendessem o fogo, Martha suspendeu as cobras sem pele sobre ele. Quando estavam cozidas, distribuiu pratos de estanho a todos, e Chester pareceu se esquecer de sua promessa anterior de que nunca as comeria.
– E aí, gostou? – perguntou Will enquanto Chester mordiscava uma longa tira de carne amarelada.
– É meio parecido com geleia de enguia – refletiu Chester, mastigando. – Mas não tem gosto de enguia e não é geleia.
– Ajudou muito – respondeu Will, dando a primeira dentada.
PARTE TRÊS
O Barco de Metal
Capítulo Dezesseis
Eles saíram da Caverna dos Lobos depois de algumas horas, retomando a jornada. Will não sabia mais há quanto tempo estavam andando quando Martha indicou que havia algo à frente.
– Agora estamos perto – disse-lhes ela ao chegarem a uma ponte de cordas.
Chester assobiou.
– Nem dá para ver o outro lado. É muito comprida? – perguntou ele.
– Talvez… Uns vinte e cinco… ou trinta metros – Will estimou ao olhar a estrutura precária que cobria o abismo diante deles.
– Você fez isso? – perguntou Chester a Martha enquanto ele e Will baixavam Elliott. Martha deu um passo para a ponte e ela oscilou e rangeu ameaçadoramente. Ela deu vários outros passos, testando com cautela cada ripa de madeira ao prosseguir. – Ou foi Nathaniel? – perguntou Chester, depois de não obter resposta nenhuma.
– O pessoal do barco – respondeu Martha, espiando ansiosamente a escuridão sobre eles. – Posso senti-los. Eles estão lá em cima.
– Quem? – perguntou Will.
– Estamos perto dos ninhos… Onde moram os Faróis. – Apesar do calor, ela tremeu. – Eu os sinto lá em cima… Prontos para atacar. – Seus olhos encontraram os de Will. – Este é um lugar infeliz. Não devíamos estar aqui. É o lugar deles. – Seu olhar se perdeu de Will como se ela visse algo atrás dele, mas não havia nada ali.
Will percebeu que ela devia estar esgotada. Ele e Chester tiraram um ou outro cochilo no terreno inclemente pelo caminho, mas apesar disso eles achavam a jornada bastante cansativa. Martha raras vezes parecia se permitir um descanso. Ela ficou num estado quase permanente de vigilância desde que eles saíram da cabana, procurando perigos e conduzindo os dois pelos túneis labirínticos com uma precisão fenomenal.
Suas roupas, jamais limpas mesmo em momentos de tranquilidade, estavam sujas e manchadas, e seu rosto estava enrugado de fadiga. Will viu que os olhos de Martha se fechavam.
– Ei, Martha – disse ele com gentileza.
Seus olhos se abriram e ela se virou para a ponte.
– Vamos cruzar um de cada vez. E nada de conversa… Temos de ficar em silêncio daqui em diante. – Ela pegou um pouco de fogo-anisado, mas não fez nenhum gesto para acendê-lo. – Guarde – disse ela, como se lembrasse a si mesma do que fazer. Depois avançou, fazendo a ponte balançar ao atravessar.
Chester iria depois que ela estivesse segura do outro lado. Os meninos concluíram que Chester, que pesava mais, não devia tentar atravessar com Elliott. Em vez disso, levaria uma das mochilas mais leves.
– Não estou gostando disso – grunhiu ele ao começar a travessia. – Não estou gostando nada disso.
– É segura como uma casa – disse-lhe Will com confiança.
– Ah, sensacional, esse é o beijo da morte. Agora que disse isso, estou condenado – ele gemeu, erguendo as sobrancelhas para Will, que lhe acenou para desejar sorte.
De onde estava parado, Will via que o peso de Chester fazia a ponte arriar. E embora Chester a percorresse lentamente, ela oscilava de um jeito alarmante e soltava rangidos altos, levando Will a pensar que a coisa toda podia desabar a qualquer momento. Mas o menino parava com frequência, permitindo que a ponte se reacomodasse antes de continuar, e por fim chegou em segurança ao outro lado.
Então foi a vez de Will. Pegando Elliott e a padiola, ele se aventurou para a frente. Tinha dado vinte passos quando precisou parar. Ficou rígido como uma estátua. Havia duas cordas guia de cada lado da ponte, na altura da cintura, e Will queria segurar uma delas, mas não podia, porque seus braços estavam ocupados com Elliott.
“É uma longa descida”, trovejou uma voz em sua cabeça, tão alta que ele se encolheu e acabou acontecendo o que ele não queria. O impulso irracional voltara e era como se ele de repente estivesse sob o controle de um mestre das marionetes. Podia imaginar-se com muita nitidez jogando-se por cima de uma das cordas guia e tombando na escuridão aveludada e acolhedora. De algum modo, fazia todo sentido do mundo. Por vários segundos Will não teve consciência de mais nada, só da atração dominadora do vazio abaixo, que tentava sugá-lo. Não pensou nem um segundo em Elliott, que estava a sua mercê, ou em Chester e Martha do outro lado da fissura; só havia ele e o impulso irresistível. Depois, naquela pequena parte de seu cérebro que ainda era racional, ele se obrigou a pensar em Elliott e o erro que seria levá-la com ele. Mas não foi o bastante – a compulsão era forte demais.
– Por favor – ele gemeu. – Por favor, não.
Então alguma coisa o cutucou por trás e ele girou a cabeça rigidamente para ver o que era. A cara de Bartleby estava ali, fitando-o sem compreender com seus olhos grandes. O gato obviamente decidira que estava na hora de atravessar e não entendia por que Will estava parado e bloqueava o caminho. Quando Will fixou os olhos no gato, o animal soltou um miado baixo – com uma entonação que o tornava quase humano; ele podia estar dizendo, “Por quê?”
Will piscou e o impulso bruxuleou como uma chama de vela ao vento que por fim se extinguia. Ele girou e viu Chester postado na outra extremidade da ponte. Will recomeçou a avançar, com o gato andando suavemente atrás dele, cutucando o menino quando achava que ele seguia devagar demais.
Como Martha lhes tivesse dito para não falarem, Chester não disse nada quando Will voltou a terra firma, mas a preocupação aparecia em seus olhos. Will cambaleou um pouco pelo túnel, onde baixou Elliott, depois arriou no chão ao lado dela, com a cabeça entre as mãos.
Assim que Rebecca se juntou ao grupo, eles estavam prontos para continuar. Não tinham ido muito longe quando perceberam que andavam em fungos de novo, e quase imediatamente ficaram diante da perspectiva de três descidas verticais sucessivas. Will ainda se sentia esgotado depois do incidente na ponte e a ideia de baixar cuidadosamente Elliott e a maca por cada uma das descidas era quase demais para ele. Não era outro surto do impulso que o perturbava – por algum motivo, ele não reaparecera – era o nível de planejamento associado com cada manobra. E a superfície escorregadia do fungo só agravava a dificuldade. Quando terminaram a terceira e última descida, Will queria desabar, mas os gestos frenéticos de Martha não lhe permitiram um segundo sequer de descanso.
Meia hora depois eles entraram numa caverna de bom tamanho. Will tinha detectado o som distante de queda-d’água quando Martha reduziu o ritmo a um arrastar. Will entendeu por que quando a luz de Martha caiu em alguma coisa. Projetando-se em ângulo da colônia do fungo, parecia haver uma pequena torre, talvez com trinta metros de altura. Só a metade superior era visível – sua superfície escura era lisa e tinha um brilho metálico – enquanto o restante estava envolvido em montes de fungo.
– O barco de metal – sussurrou Will, com a cara se abrindo num sorriso.
Finalmente tinham chegado a seu destino. Ele queria gritar de alegria, mas sabia que não podia. Chester apontava o dedo freneticamente para chamar a atenção de Will para a área abaixo da torre, e à esquerda e à direita dela. Suas luzes não penetravam muito no escuro e Will precisou de alguns segundos para ver o que empolgava tanto Chester. A forma do fungo sugeria haver mais ali do que a torre que estava vendo e, seja lá o que fosse, era grande. Parecia ser cilíndrico e Will de pronto tentou deduzir que barco seria. Nunca se interessou muito por embarcações, a não ser as de importância histórica, como o veleiro britânico Cutty Sark.
Martha os conduziu apressadamente para a base da torre. Os meninos tiveram de proteger o rosto quando fortes jatos jogaram uma chuva de água neles. Água salgada, pensou Will consigo mesmo ao senti-la nos lábios.
Nada era visível para além da torre, só uma escuridão escancarada. Will logo supôs que o barco estava na beirinha de outra das Sete Irmãs. À primeira vista, podia ser o próprio Poro, mas era diferenciada pelo rugido interminável de água caindo, como um trovão distante.
Eles subiram a superfície curva do barco com certa dificuldade, escorregando e deslizando, e se reuniram na base da torre. Martha usava uma faca para futucar o fungo, evidentemente procurando alguma coisa. A faca raspou em metal e Martha meteu a mão pelo fungo, puxando com força, grunhindo e se retesando, até que ficaram visíveis alguns elos de corrente enferrujada. O fungo claramente envolvera a corrente, como fizera com tudo na vizinhança.
Com um último esforço de Martha, a corrente subitamente se soltou, rasgando uma linha por todo o manto de fungo. Ao bater no metal exposto do alto da torre, Will percebeu que estava presa a algo. Segurando-se firme na corrente, Martha não perdeu tempo em se impelir para cima. Ocorreu a Will que eles não tentariam saltar para o topo, devido ao risco de errar e cair no vazio.
Chester subiu em seguida e depois baixou uma corda para puxar Elliott e a padiola. Depois de Rebecca subir com as mochilas, foi a vez de Bartleby. Ele não ficou nada satisfeito quando Will o amarrou com uma corda para que Martha o içasse. Terminado isto, Will se impeliu para o topo e descobriu que só Martha estava ali.
Ele não teve tempo de procurar saber onde estava, ou aonde os outros foram, porque o ar foi cortado por um gemido agudo.
– Os Faróis – disse Martha, a voz não muito mais do que um sussurro. Em um segundo, sua besta estava nas mãos, preparada. Will esticou o pescoço para olhar o alto, vislumbrando luzes fracas, mas eram tão indistintas e indefinidas que era como se ele olhasse vagalumes por uma tela.
Ele não tinha certeza se tinha piscado ou não, mas de repente havia um grande objeto nos limites da luz de Martha. Parecia vir do nada e Will teve dificuldade para apreender o que realmente via.
Sua primeira impressão foi a cor – era de um branco quase puro. Suas asas, com uns dez metros de uma ponta a outra, estavam bem estendidas. Entre elas, o corpo era do tamanho de um homem adulto, mas não havia nada de remotamente humano naquilo. Will reconheceu logo que era uma espécie de inseto, pelo arranjo da cabeça e do tórax, e de seu estranho abdome que parecia ser dividido, como se realmente tivesse pernas. Mas ele viu que aquelas varetas idênticas de seu abdome não eram membros e eram cobertas de penas felpudas, ou talvez escamas, como uma mariposa. E agarrados a seu abdome fendido havia muitos seres pretos e pequenos – aracnídeos – versões mínimas das aranhas-macaco, imaginou ele por impulso.
Havia algo muito parecido com um morcego no contorno anguloso das asas da criatura, e esta impressão aumentou ainda mais quando o animal as agitou uma vez e Will ouviu a batida coriácea.
Ouviu-se um silvo quando Martha disparou uma flecha diretamente para a ela. Embora não estivesse a mais de dez metros acima da torre, a flecha só encontrou o ar. A criatura simplesmente desaparecera.
– Como é? – exclamou Will. Ele não sabia se tinha piscado – e mesmo que tivesse, essas criaturas eram espantosamente velozes.
Ele ouviu outra batida de suas asas. Ela reapareceu, desta vez à esquerda da torre, e mais perto. E agora Will por acaso estava com a lanterna erguida, apanhando a criatura em pleno facho de luz.
Em tamanho e forma, a cabeça não era diferente de uma bola de rúgbi, com uma pequena tromba enrolada no meio, abaixo da qual havia uma boca repleta de fileiras de dentes perolados que pareciam selvagens. E logo acima da tromba havia um par de discos prateados – Will sabia que não deviam ser olhos, mas algo parecido com as “orelhas” que Martha lhe mostrara na aranha-macaco morta.
Desta vez Will estava tão surpreso que piscou, mas a criatura ainda estava lá quando ele abriu os olhos. O mais estranho era que suas feições sugeriam fortemente um rosto. E ainda mais estranho, no alto da cabeça havia algo parecido com um disco oscilante – uma estrutura circular que emitia uma luz que parecia pulsar de intensidade. Will por instinto sabia que devia ser uma espécie de isca, para atrair a presa no escuro.
Com este vislumbre, Will também viu que tinha as asas recolhidas para um mergulho.
Um mergulho que vinha na direção dele e de Martha.
Will ficou estático com a aparição, mas Martha de novo disparou o arco. A criatura simplesmente desapareceu pela segunda vez, deixando Will encarando o ar. Foi preciso um grito frenético de Martha para que ele voltasse à realidade.
– Entre! – gritou ela, empurrando-o para a abertura perto de seus pés. A lanterna de Will escorregou de sua mão, caindo com um ruído. Will também teria caído, se não tivesse a sorte de por acaso segurar uma escada de metal. Conseguiu descer alguns degraus antes que Martha, descendo com a delicadeza de um hipopótamo, pisasse em seus dedos.
– Ai! – exclamou ele, soltando a mão enquanto ela batia a escotilha acima e a trancava, girando o mecanismo circular da trava.
– Mas o que era aquela coisa lá fora? – exclamou Will, flexionando os dedos para atenuar a dor e sondando o espaço confinado em que estavam. – Não era de jeito nenhum uma aranha-macaco! – acrescentou ao perceber que agora estava dentro da “torre” do barco. Era ovalada e vários canos e conduítes corriam pelas laterais.
– Era um Farol – disse ela sem fôlego. – Eu lhe falei que eles têm ninho aqui. São muito diferentes das aranhas… Eles voam.
– Não diga – murmurou Will consigo mesmo ao descer ao pé da escada, passando por outra escotilha no caminho. Ao descer mais, percebeu que o ar era estagnado e sentiu traços de umidade e mofo. Seus pés bateram em um piso de metal gradeado. Era inclinado e ele supôs que isso se devia ao modo como o barco parou quando caiu no vazio. Ao se deter para pegar a lanterna, Chester correu até ele.
Will tentou contar sobre a criatura voadora.
– Você nem vai…
– Will! Will! – interrompeu Chester, agarrando-o, animado. – Não é nenhum barco antigo! É um submarino, caramba. E é novo! – Ele ergueu a luz para que Will visse o que havia em volta.
– Que loucura! – disse Will, rindo da estranheza daquilo tudo. Fez com que se lembrasse de uma cena de filme. Olhou os painéis de equipamento eletrônico, tudo completamente escuro e coberto de poeira. E embora parecesse muito moderno e complexo, havia cotos de velas queimadas em algumas superfícies planas. Em volta, ele viu poças de cera derretida que formavam longas faixas em seu gotejamento pelo chão. – Eles não tinham eletricidade nenhuma – observou Will, depois foi ao meio do espaço, em que havia uma coluna que deve ter sido o periscópio e uma pequena mesa acima, que uma folha de Perspex suspendia em uma moldura. Tinha contornos desenhados como um mapa, embora a folha estivesse despedaçada e faltasse parte do papel.
– Um submarino – disse ele, sem realmente captar o que dizia. – Então acabamos de entrar no que deve ser a torre de comando. E esta é a sala de controle ou… Ou a ponte, ou algo parecido. Não é isso?
– Acho que sim. – Chester deu de ombros.
– Mas como um submarino veio parar aqui embaixo? Como pode ser?
– E aquelas coisas que você me contou sobre movimento de pratos? – sugeriu Chester.
– Movimento de placas – Will o corrigiu. Ele andou lentamente por ali, examinando os sofisticados equipamentos. – Sim, placas tectônicas. Uma espécie de abalo sísmico no leito oceânico… Talvez o submarino tenha sido sugado. – Depois ele chegou onde Chester deixara Elliott, ainda na maca. Vê-la trouxe de volta o motivo por que tinham ido até ali. – Precisamos daqueles suprimentos médicos. Martha, onde estão?
– Por aqui – disse ela, já a caminho de uma porta arredondada com uma soleira elevada, depois seguindo um passadiço do outro lado. Ao passarem por uma cabine com a porta aberta, Will viu objetos flutuando na água suja. Devido à inclinação do casco, a água subiu acima do chão gradeado em um lado do barco. Ele viu roupas, um único sapato e algumas caixas de papelão ensopadas parcialmente imersas na água, com tiras brancas de mofo crescendo por cima.
– Espere um segundo… Tem alguma coisa aqui – disse ele, enquanto entrava para pegar.
– Um jornal – sugeriu Chester quando Will o abriu. Metade virara uma polpa ensopada de água, mas o restante ainda era legível. Will viu a foto de um homem com um bigode grande junto de textos impressos em russo.
Enquanto Chester olhava por sobre seu ombro, Will apontou o alto da página.
– Você tem razão… Pode ser um jornal russo… Mas dá para ler o que diz? É uma data? – perguntou.
– ФеBpaΛь – disse Chester, esforçando-se para ler. – Hum… Vou tentar lembrar o que significa… deve ser o mês… Mas olhe aqui o ano. Tem menos de um ano! – Depois franziu a testa. – Nem sei em que data estamos agora.
– Eu também não tenho ideia – disse Will. Ele mordeu o lábio quando lhe ocorreu uma coisa. – Sabe, acho que agora eu posso ter quinze anos. Pode até ser meu aniversário. – Depois jogou o jornal de lado. – Mas nada disso vai ajudar Elliott. Vamos.
Eles seguiram pelo passadiço e por várias anteparas até que Martha chegou a uma cabine. Ela pareceu relutar em entrar. Chester a olhou inquisitivamente.
– Lembranças ruins demais – sussurrou ela.
Will já metia a cabeça para dentro da cabine.
– Isso aqui está uma bagunça.
Martha assentiu.
– Estava assim quando encontrei – disse ela.
– Mas e as pessoas… A tripulação? Não havia nenhum sinal dela quando Nathaniel descobriu isso aqui? – perguntou Chester.
– Nenhum. E pelo jeito eles saíram com pressa. Agora, se não se importa, vou me arrastar para algum lugar e dormir um pouco – disse ela, cambaleando cansada pelo passadiço.
Will e Chester começaram a busca pela cabine, em que havia uma mesa de exames e uma luz em um suporte móvel. Também havia vários cartazes médicos do corpo humano nas paredes. Muitas cadeiras de metal foram empilhadas num canto, como se tivessem sido jogadas ali, e uma boa quantidade de vidro quebrado e instrumentos médicos estava espalhada pelo chão. Mas o que chamou a atenção imediata dos meninos foi que todo um lado da cabine era tomado de armários altos. Eles rapidamente os abriram, descobrindo que havia numerosas gavetas dentro, todas forradas de espuma. Will resmungou quando descobriu que só havia impressões vazias na espuma das gavetas que vasculhava, mas Chester teve mais sorte. Deu com um grande número de frascos de comprimidos e líquidos.
Os meninos trabalharam juntos, tirando tudo e colocando na mesa de exames. Ao fazerem isso, Chester observou manchas escuras por toda a superfície de melamina da mesa.
– O que acha que é? – perguntou ele, tocando cautelosamente uma delas.
– Pode ser sangue – disse Will, franzindo a cara.
Inquieto, Chester olhou a mancha por vários segundos.
– Então o que aconteceu com a tripulação?
– Quem sabe? Talvez todos tenham sido levados por aqueles troços voadores que eu vi – respondeu Will. – Por que mais eles deixariam tanta coisa para trás? – Ele fungou uma vez, depois outra. – Sente esse cheiro? Tem alguma coisa azeda aqui.
– Tomara que não seja eu – disse Chester com seriedade, levantando um braço para cheirar a axila.
Will sorriu.
– Não. Eu não quis dizer a gente. É um cheiro de química. Parece clorofórmio ou coisa assim.
Chester esfregou a testa, expressando preocupação.
– Eu andei pensando… E se a coisa que precisamos… o antibiótico… já foi usada pela tripulação, ou até levada por Martha quando ela veio aqui antes? Ela disse que perdeu uma carga ao voltar para Nathaniel. – Ele refletiu por um segundo. – E sabe que antibiótico estraga se ficar quente demais, né? Quando tomei uns comprimidos para uma infecção de ouvido, minha mãe os guardava na geladeira.
Will não se deixou abalar.
– Olha, deve ter alguma coisa aqui… qualquer coisa… que possa ajudar Elliott. Não fizemos essa viagem toda para nada.
Com todos os remédios que conseguiram encontrar espalhados na mesa de exames, Chester começou o árduo processo de tentar decifrar os rótulos enquanto Will segurava a lanterna. Eles ficavam cada vez mais desanimados; ou as palavras estavam além da compreensão limitada de Chester do idioma russo ou, mesmo que estivessem em inglês, nada significavam para nenhum dos dois.
Enervando-se, Chester verificou todos os frascos uma segunda vez enquanto Will explorava cada centímetro da cabine para ver se tinham deixado passar alguma coisa. Quando puxou as cadeiras do canto, ele viu algo.
– Opa! – exclamou ele, pegando o achado rapidamente e colocando na mesa.
Era uma caixa de plástico laranja. Ele abriu os fechos e levantou a tampa. Havia alguns remédios empilhados ali, que ele e Chester logo começaram a analisar.
– Amoxilina! – exclamou Chester, erguendo um vidro de comprimidos. – Esse eu reconheço! O médico me deu quando cortei o joelho e ficou com pus.
– Amoxicilina? Tem certeza? – perguntou-lhe Will.
– Completa. E a data de validade não deve ser antiga. Aposto que ainda é seguro usar – disse Chester. De repente ele segurou Will pelo braço. – Deus Todo-Poderoso, Will! Rebecca! Deixamos a Elliott com ela!
Will tentou acalmá-lo.
– Fica frio… Vamos voltar agorinha mesmo. Tenho certeza de que está tudo bem.
– Pouco me importa o que você pensa! Ela está sozinha com Elliott! E eu deixei meu rifle lá também! – exclamou Chester, atirando-se porta afora. No passadiço, ele se movia com tal rapidez que bateu a testa em uma lanterna a óleo pendurada em um dos canos do alto, mas nem assim reduziu o passo.
Com Will seguindo-o de perto, eles entraram de rompante na ponte do submarino. Chester foi diretamente ao rifle e o pegou. Elliott ainda estava deitada na padiola onde a deixara, mas as amarras e o cobertor foram retirados.
– O que você fez com ela? – perguntou Chester furiosamente, apontando para Elliott.
Rebecca recuou alarmada com a explosão de Chester. O fato de que ele tinha o rifle nas mãos o tornava muito mais ameaçador.
Ajoelhando-se ao lado de Elliott, Chester colocou o ouvido em seu rosto. Depois segurou o pulso da menina.
– Ela ainda tem pulsação – disse ele a Will.
– Eu a limpei. Foi só isso. Achei um tanque de água lá na frente. E um vidro de iodo para esterilizar – explicou Rebecca. – Não dá para beber, mas pode ser usada na limpeza.
– Acho que Elliott está bem – disse Chester a Will, como se não tivesse ouvido uma palavra do que Rebecca dizia.
– Chester – disse Will. – Ela está com roupas limpas. O rosto foi lavado. Olhe para ela!
– Eu não fiz nada com ela – insistiu Rebecca, quase às lágrimas. – Só estava tentando ajudar.
Chester viu um pequeno fogo ardendo no canto da ponte.
– E que droga é essa, então? O que está aprontando?
– Estou esquentando um pouco de caldo para Elliott – respondeu Rebecca em voz baixa. – Achei que vocês também iam querer.
Chester prendeu a respiração, sem jeito ao perceber que Rebecca não estava fazendo nada de sinistro.
– Tudo bem… Ótimo – disse ele, acrescentando num grunhido, a se colocar de pé: – Obrigado.
– Foi um prazer – disse Rebecca, ao perceber o vidro na mão de Chester. – Vocês acharam alguma coisa! – Ela se virou para Will. – Posso ver? – perguntou com ansiedade.
– Não, não pode – respondeu Chester automaticamente.
– Ah, sem essa. Deixe-a ver – disse Will. – Quero dizer, que mal pode fazer?
Chester relutantemente estendeu o frasco a Rebecca, que o pegou e examinou o rótulo.
– Amoxilina… Sim, um antibiótico geral excelente. São comprimidos de 250 miligramas, então dê a ela uma dose maior para começar… Digamos, três ou quatro por dia. Deve funcionar se a febre foi causada por infecção bacteriana, mas é claro que não vai fazer diferença se for viral.
– Como sabe de tudo isso? – perguntou Chester, espantado.
Meneando a cabeça, Will soltou uma risada seca.
– Se você quer matar centenas de milhões de pessoas na Crosta, acho que precisa saber um pouco dos remédios que eles usam, não é, Chester?
– É, foi uma pergunta boba – concordou o amigo.
Capítulo Dezessete
Elliott reagiu de imediato aos antibióticos e foi um acontecimento quando ela abriu os olhos três dias depois e pôde conversar com os meninos. Eles a colocaram no que tinha de ser a cabine do capitão, a julgar pelo beliche um pouco mais largo, a mesa e a cadeira de carvalho e as fotos emolduradas de submarinos e navios de guerra que enfeitavam as paredes.
Embora ela ainda estivesse muito grogue, os meninos a apoiaram em cobertores enrolados, e foi um pequeno milagre vê-la beber um pouco de água sem ajuda. Os espíritos dos dois se animaram com sua recuperação; Will e Chester começaram a lhe contar tudo o que tinha acontecido desde o momento em que caíram no Poro, mas era demais para Elliott absorver em sua fraqueza. Sua atenção parecia escapar enquanto ela olhava a cabine, e assim eles concluíram que ela teve agitação suficiente por ora e devia descansar.
Um dia depois, ela estava acordada e Chester sentado com ela quando Rebecca passou rapidamente pela porta ao andar pelo passadiço.
– Mas quem era aquela? – perguntou Elliott.
– A gêmea Rebecca – disse Chester. – Não lembra que te contamos que ela apareceu na…?
– Ela é uma Styx! – gritou Elliott. – Não! Não, não aqui! Não a deixe aqui conosco!
Da ponte, Will ouviu a gritaria e veio correndo. Quando chegou, Elliott estava ofegante e fora de si. Chester a segurava, tentando acalmá-la.
– O que houve? – perguntou Will. – Por que ela está assim?
– Ela viu a Rebecca e simplesmente enlouqueceu. Não parece se lembrar de nada que contamos a ela ontem – disse Chester, enquanto Elliott simplesmente arriava em seus braços, caindo em sono profundo.
Rebecca apareceu na porta.
– Já não fez o bastante? – Chester ralhou com ela.
– Era de se esperar – declarou Rebecca. – Porque a temperatura dela ficou alta por muito tempo, é como se o cérebro estivesse cozinhando a fogo lento… É natural que ela esteja meio estranha.
– Então não temos com que nos preocupar? – retrucou Will.
– Não, eu não diria isso, mas ainda não sabemos se a febre provocou algum dano permanente. Mas verifiquei as pupilas dela e a reação de dilatação é normal, e as glândulas estão desinchadas.
– Você verificou? – perguntou Will.
Rebecca assentiu.
– E pelo que posso saber, não há inflamação residual em nenhum dos órgãos principais. Precisamos manter uma dose constante de antibiótico e deixar que ela se recupere por mais uma semana.
– Você parece uma porcaria de médica – disse Chester, mas Will sabia que ele estava agradecido por Rebecca aparentemente saber do que falava.
– Não podemos esperar mais uma semana – disse Martha, aparecendo de trás de Rebecca. – Temos a questão menor da comida e da água. Posso manter nosso suprimento de água pegando lá fora, mas precisamos de mais comida.
Isso não foi uma verdadeira surpresa. A não ser por Elliott, todos já viviam de rações reduzidas. Martha fazia o que podia para esticar o estoque e eles não acharam nada no submarino, a não ser alguns doces enfiados em um par de tênis em um dos armários.
E como os Faróis representavam um perigo tão grande, Martha não deixaria que nenhum deles colocasse o pé para fora do submarino, por nenhum motivo. De vez em quando ela pedia a Will ou Chester para manejar a escotilha enquanto ela ia à fonte mais próxima encher os cantis com água fresca, protegendo-se dos Faróis com a queima de ramos de fogo-anisado. E por uma hora, todo dia, ela deixava a escotilha aberta para que circulasse ar fresco no submarino, mas sempre montava guarda com a besta. Em todas as outras ocasiões ela insistia que ficasse fechada, virando a roda para que estivesse bem travada.
Ninguém disse nada, procurando uma decisão nos olhos dos outros, até que Martha voltou a falar.
– Sempre temos o gato.
– Não podemos deixar que ele saia para caçar para nós… Os Faróis não o pegariam? – foi a pergunta imediata de Will.
Chester tombou a cabeça um pouco ao falar.
– Will, acho que não foi isso que ela quis dizer.
– A única maneira de conseguirmos passar por mais uma semana é comermos o gato – confirmou Martha.
– Comer o Bartleby? – Will sufocou, embora não tivesse certeza se ela falava sério. – Mas de jeito nenhum!
– Então não temos alternativa a não ser voltar à Caverna dos Lobos… Ou à cabana – disse Martha.
Will esfregou o queixo ao pensar na situação.
– Bom… Podemos carregar Elliott na maca como fizemos ao vir para cá. Isso não seria problema. Depois de chegarmos à Caverna dos Lobos, nós decidimos o quer fazer. Está bem para você, Chester?
– Claro – Chester concordou. – Não podemos ficar aqui tanto tempo que a gente acabe comendo caixa de papelão para sobreviver. Se temos de ir, vamos logo.
Eles resolveram partir para as cavernas em 24 horas.
Deixando Chester cuidando de Elliott, Will foi verificar o kit nas mochilas, preparando-se para a jornada. Quando terminou, vagou sem rumo pelo submarino, indo por fim para o último e de longe o maior compartimento da embarcação. Era ocupado pelas duas unidades de propulsão do submarino, motores imensos em estojos de aço polido. Não era fácil andar por esse compartimento porque a maior parte da grade de metal que compunha os passadiços tinha sido retirada. Estava claro que fora ali que o filho de Martha obtivera as folhas de metal que levara para a cabana.
Imediatamente antes dos motores havia duas áreas lacradas que, pelos sistemas de tranca complicados, pareciam cofres. Will descobriu que as portas exigiam chaves especiais. Porém, ele não tinha a intenção de tentar, em razão das placas de alerta de radioatividade coladas em todas as portas.
Ao ir para o outro lado do submarino, ele passou por Martha, que parecia dormir, com a mão na besta a seu lado no colchão.
Will tinha acabado de passar pela cabine de Elliott quando ouviu um ruído e se virou, vendo que Rebecca o seguia em silêncio.
– Como está indo? – perguntou ele, meio surpreso por ela estar ali e se perguntando o que ela queria.
– Bem – respondeu ela com doçura.
Com Rebecca ainda em seus calcanhares, Will chegou à porta que levava à proa do submarino. Olhou pela grossa vigia de vidro a massa de metal retorcido ali dentro. Parecia ter suportado a maior parte do impacto do submarino ao cair no vazio.
– Aposto que tem torpedos aí dentro – disse Rebecca despreocupadamente, na ponta dos pés para ver por sobre o ombro de Will. – Provavelmente com ogivas nucleares.
– É mesmo – respondeu Will, limpando o vidro com a manga para ver melhor. – O tipo de coisa que seu povo adoraria ter nas mãos – acrescentou ele, pensando melhor.
Ela riu, mas seus olhos eram frios, como se Will a tivesse ofendido.
– Não, não faz nosso estilo – disse ela, encrespada, ao se recostar na parede inclinada. – Queremos corrigir o planeta, e não transformá-lo num deserto onde só os ratos e baratas podem viver. Mas seu povo da Crosta parece inclinado a fazer exatamente isso. Não se importa de poluir e estragar tudo, pouco a pouco, dia após dia. Não se tiverem suas três refeições, sua TV e suas boas caminhas quentes. – Ela falava com a segurança desdenhosa que ele conhecia da antiga Rebecca, com a severidade que ele tanto detestava, e isso o irritou.
– Não me culpe pelo que está acontecendo – ele se opôs. – Se dependesse de mim, eu faria alguma coisa para parar com toda a poluição e o aquecimento global.
– Ah, faria mesmo? E como? Você é tão culpado quanto qualquer uma das outras sete bilhões de pessoas que se arrastam pela Crosta como besouros gananciosos – disse ela, olhando para o alto. – Não vê o que vocês fizeram? Tentaram tornar o mundo um lugar “melhor” para vocês mesmos… Tentaram controlar tudo o que não devia ser controlado. E agora que tudo saiu terrivelmente mal, vocês são obrigados a tentar controlar ainda mais. Mas não podem, e não conseguirão. Se tentarem curvar a natureza para sua satisfação, a natureza os curvará à vontade dela. Você e o resto do povo da Crosta estão se aproximando rapidamente do final da estrada… Como previu o Livro das Catástrofes.
Will não se importou muito com o sermão que ela lhe dava e isso bastou para controlar sua irritação. Ele não acreditava na transformação que fora operada na menina, como se ela transparecesse sua verdadeira face. Então, do mesmo jeito súbito, todo seu comportamento mudou, e ela sorriu. Descruzando os braços, agitou alguma coisa na frente dele.
– Achei que ficaria interessado nisso. Encontrei enfiado na lateral de um beliche – disse ela num tom simpático. Ela lhe estendeu o que pareciam umas fotos, todas do tamanho de cartões postais.
Meio desarmado pela alteração em Rebecca, ele pegou as fotografias e as olhou. Eram dez, todas em preto e branco, e tinham manchas de umidade ou talvez óleo. As imagens eram meio indistintas e o lembravam de instantâneos antigos – polaroides, pensou ele – que o pai lhe mostrara, fotografados muito antes de Will nascer, quando dr. Burrows escalara uma parte da Muralha de Adriano.
Mas estes eram de grupos de homens bem apessoados de suéteres escuros, alguns com quepes militares. As fotos tinham o que pareciam palavras em russo, escritas na superfície acetinada com uma esferográfica azul.
– A tripulação? – disse Will, olhando para Rebecca.
Ela assentiu.
Nas primeiras fotos, os homens estavam no convés superior do submarino, tendo o mar aberto por trás. Todos sorriam e os olhos eram brilhantes como o céu no alto. Depois, ao continuar a ver o pacote, Will deu com algumas em que o contraste era mais acentuado – claramente foram tiradas com flash, ou no submarino, ou no subterrâneo. Mas os homens ainda estavam em boa forma.
Entretanto, as últimas fotos contavam uma história bem diferente. Havia menos homens e pareciam a um mundo de distância dos jovens marinheiros dos instantâneos anteriores: seus rostos barbudos agora eram descarnados e amargurados, e os olhos assombrados.
– Coitados. Dá pra ver que passaram por tempos difíceis – comentou Will.
Rebecca não respondeu de pronto. Afastando-se da parede como se estivesse prestes a ir embora, ela baixou a voz.
– Will… Tem uma coisa… – ela começou, depois hesitou.
– O que é? – perguntou ele, tirando os olhos das fotografias.
– Já parou para se perguntar o que foi feito desses homens… O que realmente aconteceu com a tripulação deste submarino?
Will deu de ombros.
– Ou foram para algum lugar, ou os Faróis os pegaram?
Rebecca o fitou, sem piscar.
– O filho de Martha retirou uma tonelada de coisas daqui antes de aparecer com febre.
– E daí?
– Daí, será que ele realmente carregou todo aquele metal para a cabana sozinho? Ou alguns homens foram com ele? Será que o ajudaram a chegar lá? E, se for assim, o que houve com eles?
Will a olhou com desconfiança.
– Está dizendo que ele… ou Martha… fez alguma coisa com os sobreviventes?
Ela deu de ombros.
– Está dizendo que eles os mataram? – perguntou Will. Por acaso ele olhou a foto seguinte e ela desviou sua atenção do que Rebecca dizia. Os homens estavam ao lado de um rochedo alto com um símbolo. Will aproximou a cabeça da foto, tentando distinguir que símbolo era. Viu três linhas que se abriam, como a ponta de um tridente. Imediatamente tocou seu peito, sentindo por baixo da camisa o pingente que tio Tam lhe dera, que tinha exatamente o mesmo símbolo.
– O que tem nesta aqui? – perguntou ele, erguendo a foto. – Eu conheço esse sinal.
Rebecca foi indiferente em sua resposta, talvez meio irritada por Will ter se distraído do que ela falava.
– Ah, claro, ele está entalhado nas pedras das Profundezas.
– Mas nenhuma das pessoas deste submarino pode ter ido para as Profundezas – raciocinou Will –, então eles devem ter encontrado isso em algum lugar por aqui.
– Como eu estava dizendo, Will, fique de olhos abertos – disse Rebecca.
– Martha não é como o… – começou Will, prestes a defender a mulher.
Rebecca soltou uma gargalhada áspera.
– Martha e seu pirralho eram renegados. Eram capazes de fazer qualquer coisa. E você não investigou os túmulos atrás da cabana, não foi? Não viu se alguns eram recentes?
– Não… Você viu?
Ignorando a pergunta, Rebecca continuou.
– Você sabe que ela pode mentir quando lhe é consciente. Você a pegou na mentira com os remédios. Ela não vai se esquecer tão cedo do que você fez. O único de nós a quem ela leva em conta é Chester.
– É, mas… – ele começou a falar.
– Fique com as fotos… São suas – disse Rebecca. Ela virou-se e se afastou dele, rebolando ao andar. Não havia mais sinal de sua coxeadura. Ela se demorou um instante na soleira do compartimento seguinte.
– Tenha muito cuidado, Will – disse Rebecca num tom sinistro, depois deu uma risadinha desagradável. – Porque se ficarmos com pouca carne, ela pode simplesmente comer. É só o que estou dizendo. – Depois ela se foi, deixando Will com as fotos na mão e sérias dúvidas na mente.
Will teve dificuldade para dormir depois da conversa que teve com Rebecca. Sempre que fechava os olhos, via os rostos emaciados e desesperados da tripulação do submarino. Mas pior ainda, sua imaginação não parava de trabalhar quando ele pensava em Martha abrindo novas covas atrás da cabana e rolando corpos para dentro delas. Tentou se livrar da imagem. Grande parte de sua fé em Martha fora restaurada quando ela os ajudou a encontrar o submarino, mas agora estava sendo solapada.
Rebecca tinha razão – Will se colocou contra a mulher quando a flagrou. Será que ela um dia se livraria dele, mantendo Chester como filho substituto? Will podia ver muito bem isso acontecendo. E Martha cuidara de Elliott, mas ele tinha certeza de que só fizera isso porque a menina era importante para Chester – ele tinha a sensação de que Martha não dava a mínima para ela. Será que ela de algum modo está tramando o desaparecimento de Elliott, ou sua morte também? E quanto a Rebecca, seu fim já estava decidido – Martha não pensaria duas vezes antes de usá-la para praticar tiro ao alvo com a besta.
Se Martha era realmente tão impiedosa, Will precisava estar preparado para a eventualidade de ela o atacar, ou a qualquer um dos outros. Tinha de tentar prever seus movimentos e sua mente fervilhava com todas as consequências.
Will se revirava no colchão estreito do alojamento dos marinheiros, onde havia três beliches encostados na parede. Estava no beliche de cima, enquanto Bartleby, enroscado no de baixo, roncava como um javali furioso, as pernas se contorcendo como se estivesse num de seus sonhos felinos. Ainda assim, novamente Will desejou trocar de lugar com o animal e ter uma vida simples, sem complicações.
Capítulo Dezoito
Enquanto todos subiam a escada da torre de comando, Martha acendeu um feixe grande de fogo-anisado. Ela levantou a escotilha externa, agitou as plantas em combustão do lado de fora e fechou a escotilha de novo.
– Temos de esperar alguns minutos – disse ela.
Esperando pela autorização de Martha, parecia a Will que Chester a analisava, como se ponderasse o que pensava dela. Talvez fosse tudo fruto da imaginação de Will, porque contara a Chester o que Rebecca havia falado sobre a mulher. Will esperava que Chester desprezasse a questão – no mínimo porque não confiava em Rebecca, já que quase havia atirado nela –, mas não teve uma réplica imediata do amigo. Em vez disso, Chester só ficou confuso e murmurou “Não sei” várias vezes.
Os segundos se passavam na torre de comando e Chester rompeu o silêncio com uma tosse, remexendo-se na escada. Era evidente que queria sair, mas estava igualmente nervoso com o que esperava por eles do lado de fora.
– Esses Faróis… Eles são mesmo tão perigosos? – perguntou ele a Martha.
– Sim – Martha confirmou. – São muito perigosos.
– Você não viu, Chester – Will se intrometeu. – A aparência era medonha.
– Mas o fogo-anisado vai nos proteger, não vai? – perguntou Chester.
– É melhor do que nada – respondeu Martha.
– Mas funciona com as aranhas-macaco – disse Will.
– Os Faróis são outra história. Depois que pegam seu cheiro, são como caçadores obsessivos… Não desistem. – Seus olhos ficaram desfocados, como se ela se lembrasse de alguma coisa. – De vez em quando um Farol aparece nas Profundezas, mas eles ficam mais pesados lá, então são mais lentos. Um deles nos seguiu feito uma sombra por quilômetros quando andamos pela Grande Planície, e sabíamos que tínhamos de derrubá-lo antes que nos pegasse. Por fim consegui derrubar a coisa com um tiro de sorte. Vou lhe contar, mesmo quando estava caído, com o corpo todo quebrado, ele se recusava a morrer. Ficou se arrastando e batendo os dentes para nós até que a última gota de sangue saiu dele. – Ela meneou a cabeça. – Não sei de nenhum outro animal com uma fome igual.
– Que horror – disse Chester, tremendo.
Martha tocou a ponta da flecha armada na besta.
– Alguns dizem que eles são antigos como as colinas… que governavam os céus muito antes de haver alguém na Crosta.
Elliott gemeu, agitando a cabeça, a única parte do corpo que podia mexer, agora que estava de novo presa em um cobertor e amarrada na maca.
– Já deve ter passado tempo suficiente – Martha decidiu, colocando a mão na face inferior da escotilha. – Todos prontos?
Os meninos responderam, mas Rebecca continuava em silêncio.
– Depois que sairmos do barco, vamos andar em grupo. E lembrem-se… Sem fazer barulho.
Ela abriu a escotilha e eles subiram para a plataforma de observação, depois desceram de rapel a lateral da torre de comando, usando a corrente.
– Calma, garoto – cochichou Will ao soltar Bartleby. Em vez de fugir a galope como costumava fazer, Will percebeu que o felino não parecia querer se mexer. As grandes orelhas se torciam como antenas de satélite animadas, como se estivessem se orientando por alguma coisa. Martha verificava a escuridão acima do submarino, procurando algum sinal dos Faróis, e virou-se de frente para a caverna. Levantando a mão para indicar que todos deviam ficar parados, ela continuou o exame, tombando a cabeça de lado como se tentasse ouvir alguma coisa. Will não entendia o que Martha estava fazendo. Os Faróis não são a maior ameaça agora? Por que ela não está afastando a todos do submarino, como disse que ia fazer?
Will e Chester se entreolharam, perguntando-se o que havia de errado, quando os dois ouviram um murmúrio de vozes distantes.
Uma luz tremeluziu da boca do túnel, na extremidade da caverna, e duas figuras saíram dali. Will não conseguia enxergar com clareza. Uma das figuras era mais alta do que a outra e ele ouviu uma voz – parecia furiosa.
Martha continuou imóvel feito uma estátua. Mal movendo os lábios, ela falou com eles.
– Quando eu disser para correr, disparem naquela direção. Tem uma passagem ali – disse ela, olhando brevemente para a esquerda deles. – E não esperem por mim. – Ela ergueu a besta.
As duas figuras não faziam esforço algum para se esconder, aproximando-se, e Will conseguiu ouvir o que a voz dizia.
– Mas por que todo esse negócio de anda-para, afinal? – inquiriu. – Nós vagamos por quilômetros, e agora… por nenhum motivo aparente… você diz que temos de esperar. Estamos perdendo dias com esse tédio. Podíamos ter usado todo esse tempo em alguma coisa construtiva.
– Pai? – Will ofegou, alto o bastante para que os outros perto dele ouvissem. – É meu pai?
– Não pode ser – disse Chester, balançando a cabeça, incrédulo.
Por instinto, Will sabia que era dr. Burrows e seu impulso natural foi correr para ele, mas por motivos que não conseguia explicar a si mesmo, descobriu que verificava se o rifle estava carregado. Talvez fosse porque vira Rebecca baixando as mochilas e avançando furtivamente, como se estivesse prestes a disparar para o meio da caverna. Ou talvez porque ele também soubesse por instinto quem era a figura menor que acompanhava o pai. Um alarme tocava em sua cabeça e ficava mais alto a cada segundo.
A mais alta das duas figuras parou. Will viu o brilho de seus óculos.
– Pai? – gritou ele. – É você mesmo?
A figura se assustou.
– WILL! – gritou, começando a andar rapidamente para ele. – JESUS CRISTO! WILL!
– Ah, não – cochichou Martha, girando a cabeça de um lado a outro.
Em cada ponta do submarino havia um homem. Com os corpos altos e magros, eram inconfundíveis. Eram Limitadores. Saindo das sombras, estavam em posição de sentido como soldados da Crosta, com as lanças em riste.
– Temos um problemão – disse Will.
Erguendo o rifle, Chester gemeu.
– Estamos lascados – murmurou ele.
Dr. Burrows estava a alguns metros de distância do submarino quando a figura menor a seu lado gritou.
– Já está bom aí! – ordenou-lhe ela. Will agora via que era a segunda gêmea Rebecca que acompanhava o pai. A gêmea pegou dr. Burrows pelo braço, fazendo-o parar abruptamente, depois mirou um chute que o atingiu atrás do joelho. A perna se dobrou e ele caiu ajoelhado. Antes que tivesse tempo de reagir, ela torceu seu braço no alto da cabeça e colocou uma foice em seu pescoço.
– O que está fazendo? Pare com esse absurdo, Rebecca! – exclamou ele. – Pare agora mesmo!
Will ainda não dera um passo sequer, mas quando viu a gêmea Rebecca atrás dele avançando de mansinho mais uma vez, agiu de imediato.
– Não tenha tanta pressa – disse ele. Ela gritou quando ele a pegou pelo cabelo e a sacudiu diante dele, forçando a boca do rifle sob seu queixo.
– Will! Não! Por favor, me solte! – implorou ela. – É ela que você quer… não eu!
– Ah, tá… Até parece que acredito em você! Você me disse que estava sozinha aqui embaixo – rosnou Will. – O Chester tinha razão… Era tudo uma grande encenação.
Todo o comportamento da gêmea mudou num instante.
– Precisa admitir que eu fui muito boa, não fui? Fiz você comer na palma da minha mão – disse ela com presunção. – O teatro era minha matéria preferida na escola.
O fato de que a gêmea parara de fingir não fez com que Will se sentisse melhor com a situação já horrenda. Estava claro que as gêmeas pensavam ter outra vantagem, e que podiam fazer o que quisessem.
– Outra Rebecca? – balbuciou dr. Burrows, depois de ver a segunda menina Styx ao lado de Will. – Mas como…?
– Coitadinho do dr. Burro – zombou a gêmea a suas costas. – Sempre meio lerdo para entender as coisas.
– Mas como? – Ele tentou se levantar, mas ela apertou a foice em seu pescoço.
– Fique quieto – ela ordenou. – Seu bode velho idiota, estávamos jogando com você desde o começo, desde o dia em que mandamos Oscar Embers ao museu com o globo luminoso. Queríamos fisgar você, sabíamos no que isso ia dar. Sabíamos que, assim, cedo ou tarde Sarah Jerome sairia da toca.
– Sarah Jerome? – disse ele, sem saber de quem a gêmea falava.
– Nós não damos a mínima para o resto de vocês. Vocês todos são descartáveis – disse a gêmea, depois voltou sua atenção a Will. – Mas isso não é ótimo? – ela escarneceu numa voz que pingava insinceridade. – A turma está toda aqui. E o papai com seu filhinho… Todos juntos de novo.
As gêmeas começaram a falar na língua Styx.
– Cala a boca! – gritou Will, apertando o cano do rifle com força no pescoço da gêmea que estava com ele. – Ou vou atirar em você.
– Como é, vai meter uma bala na minha cabeça? Acho que não – disse ela numa voz estrangulada. Num completo desafio, recomeçou a falar em Styx.
– Eu falei sério – disse Will. – Vou atirar!
– Não vai, não – gritou a outra gêmea atrás do dr. Burrows. – Você é um frouxo. Não tem coragem nenhuma.
– Will, o que você está fazendo? – exclamou dr. Burrows. – Não pode…
– Fica fora disso, pai – Will o interrompeu. – Não sabe o que está havendo aqui. – Will depois se voltou para a gêmea atrás do pai. – Como vou chamar você? Não podem ser duas Rebeccas.
– Tanto faz – respondeu ela rispidamente.
– Tudo bem, er… Rebecca Dois, parece que estamos num impasse. O que você quer fazer?
– Para começar, pode nos devolver os frascos. E também vamos ficar com a velha – anunciou a Rebecca Dois.
– Por que ela? – disse Will, perguntando-se como essa Rebecca sabia que ele tinha os frascos de Dominion.
– Porque é ela que conhece esses caminhos.
Will olhou nos olhos de Martha. Ela estava com a mão em um feixe de fogo-anisado preso no cinto. Olhou indagativamente para Will. Will lhe meneou a cabeça e ela tirou a mão das plantas secas. Depois ela lançou os olhos rapidamente para cima, indicando a área no alto. Will assentiu. Ele entendeu perfeitamente o que ela lhe dizia. Todo esse barulho ia atrair os Faróis até eles. E neste momento talvez não seja má ideia.
– Vamos lá, faremos a troca com você… Trocaremos seu pai por Martha e os frascos – continuou a Rebecca Dois. – Os outros podem ir. E só ela que queremos.
– Está se esquecendo de que estou com sua irmã aqui também – contra-atacou Will. – Esse não me parece um acordo justo.
Pelo canto do olho, Will viu Martha sacar muito lentamente a faca. Ela passou a lâmina pelo braço, produzindo um corte fundo. Depois baixou o braço, pingando sangue no chão.
– Minha irmã não faz parte da equação. Faça o que quiser com ela – continuou a Rebecca Dois, jogando a cabeça com impaciência. – Por que não ouve o que estou dizendo? Vamos trocar seu pai por Martha e os frascos. Depois vocês podem ir embora.
– Rá! Deve achar que sou um idiota – Will cuspiu.
– Idiota, não… Só um fraco – rebateu a menina. Com os olhos, ela fez um sinal aos Limitadores e eles de imediato começaram a avançar. – As cartas estão contra você, Will, então sugiro que concordemos em concordar com alguma coisa. – Ela riu, mas era uma risada desagradável e gutural.
A Rebecca Um de repente começou a falar em Styx.
– Não faça isso! Eu já te avisei! – gritou Will, puxando o cabelo da menina. Ele ouviu um rosnado ao lado. Ofegou de surpresa. Bartleby estava a vários metros dele, agachado, como se estivesse prestes a atacar. – Bartleby! – gritou. – O que está fazendo?
– O que eu ensinei a ele – disse a Rebecca Um.
As narinas do gato inflaram e suas garras estavam estendidas.
– Ele só está tentando me proteger – disse Will, embora não parecesse tão confiante.
– Quer apostar nisso? – grasnou a Rebecca Um. – Lembra quando eu disse que cuidei dele na Colônia? Bom, fiz um treinamento especial com ele. E ele não foi o único – disse ela com uma risadinha. Voltou a falar em Styx e o gato se aproximou ainda mais de Will.
– Seu… Seu traidor! – Will gritou para o gato, quase sem saber o que dizer. Era como se Bartleby não o reconhecesse mais. Como uma mola prestes a disparar, o gato se agachou ainda mais e chiou para ele. Os olhos de Bartleby estavam enlouquecidos e arregalados, como se estivessem cheios de sede de sangue.
– Você não tem muitos amigos, tem? – disse Rebecca Um. – Uma única palavra minha e o gatinho bonito vai avançar no seu pescoço.
– Se ele fizer isso, Deus me ajude, você está morta – disse Will num tom cruel, manobrando a gêmea para que o protegesse do gato.
Houve um grito súbito à esquerda de Will e ele viu o Limitador entrar em ação.
– Um anjo! – exclamou dr. Burrows.
Algo grande e branco se debatia no chão diante do Limitador. Com as duas mãos na lança, o Limitador repetidamente impelia a ponta no Farol até que seus movimentos cessaram.
Will olhou de novo nos olhos de Martha. Seu plano estava funcionando – o cheiro do sangue fresco tinha atraído os Faróis como mariposas pelo fogo. Houve outro guincho e ela girou, disparando a besta. A flecha cortou a escuridão, mas o Farol sumira. Não era um plano perfeito – os Faróis eram tanto uma ameaça para ela e os meninos quanto eram para os Styx.
Ouviram-se outros guinchos sinistros da escuridão e luzes fracas raiavam ao redor como estrelas cadentes.
– Está começando – disse Martha num sussurro.
– Bichinhos de estimação interessantes vocês têm aqui embaixo. Gostaria de ter um desses – disse Rebecca Dois, mas agora não parecia muito segura de si. – Talvez devamos concluir nossa troca rapidamente, Will, e sair desse espaço aberto.
Houve uma agitação do outro Limitador, mas desta vez o Farol saiu-se vitorioso. Todos viram o soldado ser arrebanhado pela criatura, que envolvia a cabeça do homem com as pernas farpadas. A criatura e o homem simplesmente desapareceram num borrão. O Limitador nem teve tempo de gritar. A única prova de que estivera ali era sua lança, caída no chão.
Houve alguns segundos de um silêncio pasmo, depois só a voz de Chester foi ouvida.
– Isso iguala um pouco os times – disse ele.
– Muito engraçado, gorducho – rosnou Rebecca Dois pela boca escancarada. – Quando eu voltar à Crosta, farei uma visitinha a seu pai e sua mãe… Pessoalmente.
– Er… Eu… Não… – Chester engoliu em seco e o sangue sumiu de seu rosto.
– Não temos tempo para isso – Martha alertou enquanto olhava para cima com a expressão ansiosa. – Faça, Will. Faça a troca – ela o encorajou.
– Tem certeza? – perguntou-lhe Will.
– Sim – confirmou ela. – As Styx precisam de mim viva. Eu ficarei bem.
Will sabia que nenhum deles teria muita chance se continuassem ali, não com os Faróis naquele alvoroço.
– Tudo bem, Rebecca Dois – gritou ele. – Deixe meu pai vir até aqui e Martha irá até você.
– De jeito nenhum. Martha fica exatamente onde está. Eu irei até ela – ladrou Rebecca Dois. – Você pode pegar dr. Burro aqui mesmo. Entendeu?
– E como vou saber que você não vai abrir fogo contra nós? – perguntou Will.
– Porque não temos dois rifles e uma besta, como vocês, miolo mole – zombou a Rebecca Dois.
Vendo que o Limitador restante estava suficientemente longe e não podia emboscá-los, Will assentiu.
– Muito bem – anunciou a Rebeca Dois. – Dança das cadeiras. Vamos todos andar agora… Devagar e com calma.
Relutando muito, Will aliviou o aperto na Rebecca Um, que meneou a cabeça para endireitar o cabelo e depois olhou furiosa para Will.
Ele retribuiu o olhar.
– Eu não devia ter me incomodado em salvar sua vida – ele fervilhava.
Sabendo que teria de levar Elliott, Chester se virava para pegar a maca quando algo passou girando entre suas pernas. Uma lata preta rolou pelo chão na direção do dr. Burrows e da Rebecca Dois, mas parou no meio da caverna. Will logo reconheceu do que se tratava. Era um dos explosivos que Drake e Elliott tinham usado nas Profundezas. Mas era dos grandes, do tamanho de uma lata de tinta.
– É uma carga de dez quilos… Com estopim de vinte segundos. E já que estou falando nisso, eu armei todos os outros – disse Elliott com muita calma, jogando a mochila no chão a seu lado. Ela estava sentada na maca e parecia muito a Elliott de antigamente. Durante a negociação, enquanto todos estavam preocupados demais para perceber, ela se soltara das amarras e pegara a mochila cheia de munição na ponta da maca.
Abismados, Will e Chester a olharam.
– Dezesseis segundos… BANG! – disse-lhes ela, jogando os braços para cima, numa demonstração.
– Não! – gritou Will, pensando que a febre devia ter soltado alguns parafusos de Elliott. – Por que fez isso?
– Porque elas pretendem matar todo mundo, de qualquer forma. Eu as ouvi dizer isso – respondeu Elliott.
Will trocou olhares com Chester e estava prestes a abrir a boca para falar, quando o outro menino se manifestou primeiro.
– Mas… Como sabia do que elas estavam falando?
– Eu falo a língua delas, porque sou meio Styx. Meu pai era um Limitador – disse Elliott. Para provar, ela pronunciou algumas palavras nasaladas e inteiramente ininteligíveis.
– Treze… Quase 12 segundos – traduziu a Rebecca Um.
Elliott agora tinha toda a atenção das gêmeas Rebecca.
– Onze segundos – anunciou Elliott com um bocejo.
– Você armou mesmo os explosivos? – perguntou-lhe Will, ainda incapaz de acreditar no que acontecia ali.
Elliott assentiu.
– Dez segundos – disse ela. E de repente todos ficaram eletrizados.
Chester arrebanhou Elliott e Martha puxou os dois, não para a caverna, mas para a esquerda do submarino, na direção da passagem alternativa que havia indicado.
Embora estivesse com a mochila nas costas, Will hesitou por uma fração de segundo, perguntando-se se deveria pegar as outras duas que a Rebecca Um tinha descartado atrás dele. Ainda era dolorosamente fresca em sua mente a lembrança de ter vagado, sem comida nem equipamento, pelos tubos de lava nas Profundezas, e de maneira nenhuma queria que a experiência se repetisse. Mas não havia tempo, então ele baixou a cabeça e arremeteu para o pai com toda a força. Ele viu Bartleby avançar para ele.
– Cai fora! – berrou Will, batendo nele com a coronha do rifle. Possivelmente porque estava confuso e não entendia por que todos estavam correndo para lados diferentes, o ataque de Bartleby não teve sua intensidade habitual. O rifle o pegou no ombro e ele ganiu, enroscando-se em uma bola e rolando para longe dali.
Will continuou correndo. Ia direto para a Rebecca Dois quando ela corria na direção contrária, para o submarino. A Rebecca Um já estava na base da torre de comando com o Limitador, que repelia o ataque de outro Farol.
Por ora, dr. Burrows estava de pé e gritava.
– Will, pare essa Rebecca! Pegue minhas tabuletas com ela!
A urgência dos gritos do pai impressionou Will, que mirou diretamente na Rebecca Dois, derrubando-a no chão.
– No bolso esquerdo do casaco! Pegue minhas tabuletas de pedra! – gritou dr. Burrows enquanto Will assomava sobre a menina Styx zonza. Ele de imediato colocou a mão no bolso e achou um pequeno fardo embrulhado num lenço sujo. Como ela recuperava os sentidos e tentava bater nele, Will decidiu não procurar mais. Não havia tempo.
– SAIA JÁ DAQUI! – gritou para o pai, que não mostrava intenção de se mexer para a segurança ao responder também gritando:
– Pegou? Você as pegou?
Partindo na direção do dr. Burrows, Will imprimiu tanta velocidade que praticamente voava quando alcançou o pai. Seu ímpeto foi suficiente para carregar os dois não para o túnel principal, mas para uma pequena passagem na lateral. Tudo acontecia com tal rapidez que dr. Burrows nem teve como opinar enquanto o filho o arrebatava e saía da caverna.
Will não parou. A contagem em sua mente chegava a zero, depois passou dele, mas ainda não acontecia nada. Começava a se perguntar se Elliott realmente tinha acendido os estopins ou se tudo não passara de um blefe quando houve uma explosão tremenda.
O chão tremeu sob seus pés, como se estivesse no meio de um terremoto.
Ele e dr. Burrows voaram para frente, atingidos por uma saraivada de pedaços de fungo.
Embora os tremores tivessem uma vida relativamente curta e o chão se aquietasse de novo, o som da explosão parecia continuar para sempre. Ecos reverberavam das paredes do vazio para além do submarino. Quando o último estampido finalmente sumiu, Will gemeu e começou a se mexer. Empurrando nacos de fungo para os lados, ele rolou o corpo e se sentou. Seus ouvidos tiniam e ele engoliu em seco algumas vezes até que parecessem mais normais.
– Pai – chamou ele, a voz parecendo pequena e distante. Will se levantou aos tropeços, piscando para limpar os olhos, que ardiam e lacrimejavam. Soltou a mochila, procurou a lanterna e a encontrou, depois começou a procura pelo pai.
Não havia sinal dele e Will ficava cada vez mais preocupado até que viu uma bota se projetando de sob um monte de fungo. Dr. Burrows estava quase inteiramente enterrado, mas Will rapidamente o retirou dali. Viu que o pai não estava muito ferido quando ele começou a cuspir uma pasta marrom, soltando ao mesmo tempo uma torrente de palavrões. Seus óculos tinham sumido, mas ele não parecia ter a menor preocupação com eles.
– Onde estão minhas tabuletas? Me dê as tabuletas! – ele exigiu, piscando de forma míope para o filho.
– Quer dizer isto? – perguntou Will, indagando-se o que havia de tão importante no embrulho que tirou do bolso e entregou ao pai.
Dr. Burrows as abriu, atrapalhado, e sentiu os pedaços achatados de pedra, um por um.
– Graças a Deus, estão todas inteiras. Nenhuma se quebrou nem se perdeu. Muito bem, Will. Muito bem mesmo!
– Tá, obrigado, pai – disse Will, ainda sem saber por que o pai parecia se importar mais com uns pedaços de pedra do que com qualquer outra coisa. Mais até do que com o próprio filho.
– Agora, onde estão meus óculos? – disse dr. Burrows e logo começou a engatinhar para localizá-los.
– Mas pai, nem acredito nisso! – desabafou Will, quando lhe ocorreu que eles se reencontraram, apesar de todas as probabilidades contra. – Estamos juntos de novo! É tão bom ver você quando…
– Sim, mas eu não consigo ver nada! – rebateu dr. Burrows de mau humor, ainda procurando os óculos.
Will ficou em pé ao lado do pai por um momento, dividido entre permanecer com ele ou descobrir se Chester e os outros tinham escapado da explosão.
– Pai, eu volto daqui a um minuto. Vou ajudar a procurar depois – disse ele ao pai, sem esperar por uma resposta, correndo de volta pelo túnel.
Embora não estivesse muito longe da entrada, os pedaços de fungo tornavam a travessia espinhosa. Devido ao fluido oleoso e escorregadio na base do túnel, os nacos maiores de fungo deslizavam sob seus pés quando Will subia neles. E a certa altura o túnel estava completamente obstruído e ele foi obrigado a limpar os destroços antes de continuar. Ao jogar de lado uns pedaços de bom tamanho do fungo, Will percebeu que isso deve ter salvado a vida dos dois – ele não só tinha absorvido o impacto da explosão, como também amorteceu sua queda.
Quando finalmente chegou à boca do túnel, ele foi tomado por uma estranha calma. Tinha dado um passo para fora quando aconteceu de olhar para baixo. Ele ofegou, parando de imediato. Diante dele não havia nada, só um imenso buraco. Todo o chão da caverna desaparecera inteiramente. Embora ele não conseguisse ver o fundo, as paredes da caverna eram iluminadas pelas pequenas chamas que ainda ardiam ali, como velas nos nichos de uma gruta de igreja.
Tendo encontrado os óculos, dr. Burrows apareceu ao lado do filho. Por um tempo eles simplesmente olharam a caverna, vendo rochas e pedaços de fungo soltos do teto caírem na escuridão. Depois ouviram um rangido baixo.
– O submarino – sussurrou Will, vendo-o vibrar e depois se acomodar de novo.
– Submarino? – perguntou o pai, como se não tivesse percebido que a embarcação estava ali antes.
Era uma visão e tanto; o fogo ardia por toda a nave e a cobertura de fungo tinha sido explodida, deixando o casco aerodinâmico claramente visível. Mas algo parecia estar acontecendo ali.
Houve um estalo tremendo que fez Will e o pai se encolherem, depois mais rangidos. O submarino se balançou e caiu um pouco, e em seguida, aos olhos dos dois, pareceu tombar de lado, mas em câmera lenta.
– Vai cair! Está caindo! – exclamou Will. A explosão evidentemente destruíra o fungo ou o leito rochoso em que o casco estivera alojado – ou as duas coisas – e agora não havia nada que impedisse sua queda.
Com um último e tremendo gemido, a embarcação virou de cabeça para baixo, desaparecendo completamente da vista e deixando apenas a escuridão do vazio. Will e o pai ouviram sons distantes de metal se chocando quando o submarino colidiu com os lados enquanto caía.
– Será que as gêmeas Rebecca estão lá dentro? – disse Will em voz baixa. – Bem que poderiam.
Dr. Burrows fixou os olhos no filho.
– Você me deve algumas explicações, meu rapaz – declarou ele solenemente.
– Hein?
– Só espero que saiba o que fez – disse dr. Burrows num tom grave enquanto acenava para a cratera. Ele meneou a cabeça, o cabelo todo irregular, ensopado em suco de fungo, espigado como se ele fosse um punk de meia-idade. Estava ridículo.
– Você o quê? – precipitou-se Will. – Não sei como conseguimos, mas acabamos de escapar dessa vivos… E está agindo como uma porcaria de professor de escola. Só pode estar brincando!
– É claro que não estou brincando – retorquiu dr. Burrows asperamente. – Está numa enrascada danada por ter feito parte disso.
Essa foi demais para Will – ele começou a bufar, depois explodiu numa gargalhada.
– Enrascada danada – repetiu, a voz guinchando de incredulidade. Recuperando o fôlego, Will olhou o pai para ter absoluta certeza de que ele falava sério.
– É isso mesmo – confirmou dr. Burrows. Para sua surpresa, o filho se dissolveu em uivos de gargalhadas ainda mais ruidosas.
– Eu estou numa enrascada danada! – Incapaz de reprimir o riso e com os joelhos fracos, Will procurou um lugar para se sentar antes que caísse. Mas as lágrimas em seus olhos dificultavam sua visão. Escolheu um pedaço particularmente oleoso de fungo e escorregou nele. Mas isso ainda não o deteve; rolando no chão, ele ria tanto que teve de se segurar.
Capítulo Dezenove
Depois de algum tempo, o riso de Will esmoreceu e ele caiu num silêncio taciturno. Perguntando a si mesmo o que tinha achado tão engraçado, ele ignorou o pai e tentou várias vezes descer a boca do túnel. O fungo danificado pela explosão simplesmente esfarelava em suas mãos quando ele tentava agarrá-lo. E mesmo com a retirada do fungo, a pedra por baixo era escorregadia e traiçoeira devido à cobertura de gordura.
– É inútil – murmurou Will, olhando o espaço onde estivera o submarino. Ele respirou fundo ao ter um vislumbre de um Farol riscando o vazio, pensando consigo mesmo o quanto se parecia com uma estrela cadente. – Faça um pedido – disse com tristeza. Parecia que tudo conspirava contra ele.
Will se inclinou o máximo que pôde na nova cratera, com a lanterna em sua mão estendida. Se conseguisse localizar um afloramento ou saliência em que pular, podia tirar proveito da baixa gravidade e se arriscar. Mas a cratera parecia ser tão funda que seria o mesmo que saltar no vazio.
– E agora? – perguntou-se. Precisava de um jeito de chegar a Martha e aos outros. Contava com que eles tivessem conseguido alcançar a passagem lateral que ela indicara. Isso se o caminho deles não fora bloqueado por um Farol. – Plano B… Eu preciso de um Plano B – pensou em voz alta, inclinando-se para fora e espiando pela parede da caverna à esquerda. Se conseguisse de algum modo atravessar o túnel principal por que tinham entrado na caverna, ele poderia encontrar o caminho de volta à Caverna dos Lobos. Mas este plano parecia igualmente impossível – além do fato de que não havia como escalar a parede para chegar lá, ele nem via onde estava a entrada. A explosão escondera tudo. E no fundo de sua mente Will também se preocupava com a possibilidade de ter outro de seus estranhos episódios. Empoleirado na beirada, perto de uma queda acentuada, não era exatamente o melhor lugar para estar agora.
Ele deu de ombros.
– Acho que um Plano C – murmurou. Pelo menos precisava tentar se comunicar com Martha e Chester. Will chamou por eles, parando de vez em quando para escutar.
Dr. Burrows não ofereceu nenhuma ajuda, parado na entrada da caverna, olhando o filho. Na realidade, dr. Burrows nem falava com ele. Como Will não obtinha resposta dos amigos e sua voz ficava rouca, ele desistiu, parecendo-lhe uma causa perdida. Deixando o pai, virou-se e voltou pela passagem, subindo no fungo até chegar ao lugar onde deixara a mochila. Pegando-a, entrou ainda mais na passagem e se viu numa área limpa. Ali, começou a desfazer a mochila quando de repente parou.
– O vírus! – disse ele. Com tudo o que aconteceu, tinha se esquecido completamente de que os frascos estavam com ele durante toda a confusão com as gêmeas Rebecca e a explosão subsequente. – Ah, meu Deus, por favor, que não tenham se quebrado – disse ele baixinho ao tirar o pacote de estopa da bolsa de couro. Soltou um enorme suspiro de alívio quando viu que os frascos estavam intactos. Guardando-os novamente, continuou a desfazer a mochila, inventariando o que tinha ali. Havia uma pequena quantidade de comida, mas não era suficiente para duas pessoas por mais de alguns dias, no máximo. Numa bolsa lateral, encontrou a barra de Caramac que tinha retirado do corpo de Cal. Embora a tivesse escondido de Chester, Will pretendia dividir com o amigo quando tivessem algum motivo para comemorar.
– Hoje não – disse ele, desconsolado, jogando a barra na pilha de comida.
Quanto à água, ele tinha um cantil cheio no cinto. Àquela temperatura, não duraria muito, mas ele também não estava preocupado, porque Martha sempre parecia achar fontes de água doce aonde quer que fossem. Ao afastar a mão do cantil, encontrou o sabre ainda preso no cinto. Ele o sacou e baixou no chão, batendo a parte plana da lâmina em sua palma enquanto avaliava a situação.
Não parecia muito promissora.
Pode ter sido por isso, ou porque a adrenalina se esgotava, mas Will se viu dominado por uma desesperança e uma sensação de inutilidade intensas. Mesmo que fosse possível retornar ao túnel principal, não se sentia muito confiante de que seria capaz de achar o caminho de volta à Caverna dos Lobos. Sabia que era para lá que Martha esperava que ele fosse. Depois ele pensou na cabana. Will meneou a cabeça. Não, nunca conseguiria se lembrar do caminho e de qualquer forma a comida acabaria antes que chegassem lá.
Então, pensou em Chester. Devia ter dado ouvidos ao amigo e não se deixar convencer pela Rebecca Um. Will se xingou por ter sido enganado por ela. Talvez a Rebecca Dois tivesse razão quando disse que ele era fraco – talvez as gêmeas fossem sempre triunfar sobre ele.
O novelo de recriminações pessoais de Will não terminava ali; não devia ter duvidado de Martha como duvidara. Sim, ela escondera informações deles, informações que se mostraram vitais para salvar Elliott, mas foi por um desejo enviesado de proteger Will e Chester. E quanto a Bartleby… Até o fiel companheiro de Will se voltara contra ele.
E havia Elliott. Ela era meio Styx! Ele devia ter percebido isso – a menina tinha todas as habilidades e a dissimulação de um Limitador. Ela jamais contara por que saíra da Colônia e, embora falasse da mãe, o pai nunca fora mencionado. E Elliott tinha uma semelhança física impressionante com os Styx. Ela era esguia e no entanto muito forte. É claro que tinha sangue Styx.
De algum modo esses logros e revelações não o tinham comovido como deveria. Talvez nada pudesse comovê-lo mais – não depois de todas as coisas que suportara.
Mas, ao refletir melhor, havia algo que o tinha abalado profundamente, levando-o a sentir que simplesmente precisava desistir. O dia com que tanto sonhara, e que passara a acreditar que jamais viria, finalmente tinha chegado.
Ele se reencontrara com o pai… E tudo não passara de um anticlímax.
O pai era outro idiota, um adulto trapalhão que não tinha ideia do que acontecia a sua volta, como todos os outros.
– Mas que sentido tem, droga? – resmungou Will, reprimindo as lágrimas enquanto afundava ainda mais em seu desânimo.
Dr. Burrows pigarreou para informar Will de sua presença.
– Eu tenho isto – disse ele, tirando um pequeno pacote embrulhado em papel sujo de gordura do bolso. – É carne. Consegui esconder um pouco quando ninguém estava olhando… Para uma emergência. – Ele a colocou na pilha de comida com muita pompa, mas Will não disse nada. No silêncio que se seguiu, dr. Burrows ficou parado ali, estalando a língua. – Aquilo era mesmo um submarino? – perguntou por fim.
Will respondeu sem levantar a cabeça.
– Um submarino moderno… Russo e nuclear, mas não havia sinal da tripulação.
Dr. Burrows assobiou.
– Mas como…?
– Deve ter sido sugado por um dos vazios… Talvez tenha sido puxado para baixo quando uma placa se deslocou em algum lugar no leito marinho. Quem pode saber?
– Vazios?
– São sete… Chamados de as Sete Irmãs. Caímos em um conhecido como Poro – Will o informou monotonamente. – Martha nos levou a outro que ela chamava de Bafo de Mary.
– Bafo de Mary – repetiu dr. Burrows, assentindo. – E aquelas criaturas voadoras?
– Os Faróis. São insetos ou aracnídeos, ou coisa assim – disse Will, de cabeça ainda baixa enquanto futucava uma placa de fungo com a ponta do sabre.
– Sabe de uma coisa – começou dr. Burrows, hesitante, depois respirou fundo. – Quando a coisa simplesmente apareceu do nada daquele jeito, eu pensei que fosse mesmo um anjo – ele admitiu, rindo de constrangimento. – A sugestão simplesmente apareceu na minha cabeça… E eu que me julgava instruído.
– Um anjo? – murmurou Will.
– Sim, acho que devido à coloração branca e às asas, e principalmente porque a luz no alto da cabeça estranhamente parecia um halo.
Will assentiu, puxando do fungo a lâmina do sabre com um ruído de sucção.
– Martha disse que eles voavam pela superfície muito antes da existência da espécie humana.
– Que interessante – disse dr. Burrows ao encontrar um pequeno rochedo onde se empoleirar. – Imagine… Imagine se tudo que associamos com a imagem arquetípica de um anjo deriva de um inseto pré-histórico… E se a lembrança remota dessas criaturas foi assimilada em nossa iconografia religiosa e continuou arraigada em nossa cultura. – Ele riu. – Então Gabriel e Pedro, do outro lado dos Portões do Paraíso, podem ter sido inspirados por insetos carnívoros gigantes.
– Ou aracnídeos – disse Will.
– Ou aracnídeos – concordou dr. Burrows, depois ficou em silêncio por uns minutos. – Olha, Will, eu não sei de muita coisa do que está havendo. Quero dizer que me caiu como um raio quando descobri que sua irmã era Styx. E também que você era um colonista. Eu realmente não sabia. Depois, que Rebecca tinha uma gêmea idêntica… Ai, meu bom Senhor! – Ele soprou pelos lábios. – E talvez eu não esteja raciocinando bem porque você está aqui… Porque você me seguiu para o subsolo quando devia estar em casa com sua mãe.
– Só que ela não é minha mãe – murmurou Will, mas dr. Burrows ou não ouviu o comentário, ou preferiu ignorá-lo e continuou a falar.
– Exatamente como você desceu até aqui com Chester… Bom, eu não tenho a mais remota ideia de como conseguiram. Nunca em um milhão de anos eu queria que você se colocasse num perigo desses. Você deve ter passado por maus bocados, como eu, e eu estava errado quando falei daquele jeito. Foi imprudência minha… Fiz um julgamento precipitado, sem estar de posse de todos os fatos.
Will levantou a cabeça para olhar o pai, depois assentiu ligeiramente, reconhecendo. Era o mais perto que Will obteria de um pedido de desculpas, a não ser que o pai tivesse mudado drasticamente nos últimos seis meses. De qualquer forma, Will não ia guardar rancor, não quando havia questões mais prementes com que lidar, como tentar permanecer vivo.
– As coisas não estão boas, pai – disse ele. – Estamos quase sem comida e água, e eu não tenho a menor ideia se este túnel leva a algum lugar e, mesmo que leve, que caminho devemos seguir.
– Acho que não serei de muita ajuda nisso – disse dr. Burrows. – Fui trazido até aqui por quilômetros de túneis por Reb… pela menina Styx que você chamou de Rebecca Dois e pelo soldado. Não acharia o caminho de volta ao Poro nem em mil anos.
– Então estamos empacados – concluiu Will.
– Totalmente – concordou dr. Burrows, mas ele não parecia nem um pouco desanimado. – E assim vamos tratar de nos desempacar. Levante-se, Will, não tem sentido ficar aqui. – Ele se aproximou de Will e apertou seu ombro. A família Burrows nunca fora de manifestar fisicamente suas emoções, então esse pequeno gesto foi importante para Will.
– Claro, pai – disse ele, de repente cheio de otimismo. Era assim que imaginava que seria com o pai – os dois enfrentando situações impossíveis e trabalhando juntos para superá-las. Imediatamente guardou os suprimentos na mochila e eles partiram pelo túnel.
Logo descobriram que não era tanto um túnel, mas uma fenda inclinada, com uns quarenta metros em seu ponto mais largo. Depois, ao chegarem a uma pequena ramificação à esquerda, Will insistiu que a explorassem. Tinha esperanças de encontrar a passagem por onde Martha e os outros haviam entrado. Will não tinha andado nem dois metros quando viu movimento. Formas escuras se esgueiravam pelas paredes e pelo teto, e uns fios do que podiam ser pedaços de teias de aranha oscilavam levemente na brisa.
– Aranhas-macaco – Will alertou o pai em um sussurro. Estas eram versões menores e evidentemente muito mais jovens, mas Will não ia se arriscar. Pegou alguns ramos de fogo-anisado e o isqueiro que tinha preparado no bolso. Como era tudo o que tinha, não acendeu o fogo-anisado e as criaturas não pareciam segui-los enquanto Will e o pai voltavam pela passagem.
– Acho que esses eram bebês… Deve ser por isso que não vieram atrás de nós – disse Will. Quando retornavam à fenda inclinada, ele contou ao pai que vira essas aranhas menores grudadas no abdome do Farol quando ele e Martha tinham sido atacados na torre de comando.
– Então ou essas aranhas menores são uma subespécie das maiores, e podem ser parasitas dos Faróis… Ou talvez sejam só bebês e um dia sofram uma metamorfose e se tornem essas criaturas voadoras – especulou dr. Burrows. – Como lagartas em borboletas.
– Sim – disse Will, entendendo o que o pai dizia. – E essas passagens podem ser onde os bebês aranha são criados? – Ele olhou em volta, preocupado. – Quem sabe não estamos no berçário?
– É bem possível – confirmou dr. Burrows. – Pode muito bem ser aqui que todos os aracnídeos nascem… sua Área de Reprodução… Depois eles se espalham pelo resto do sistema de túneis quando procuram por comida.
Vinte minutos de caminhada os levaram a outra passagem lateral, mas de novo eles descobriram que era ocupada pelas aranhas menores.
– Como é que vamos encontrar os outros? – perguntou Will.
– Não sei. Acho que temos de continuar pelo caminho principal – disse dr. Burrows, tentando parecer otimista com a situação.
– Mas uma dessas vias pode nos levar a Martha e Chester – respondeu Will, perguntando-se que risco representavam as aranhas-macaco menores. No fim concluiu que não valia a pena se arriscar com uma das crescidas ou, pior ainda, um Farol, então eles se ativeram à própria fenda, subindo cada vez mais.
Eles trocaram histórias pelo caminho. Will contou ao pai como ele e Chester descobriram o túnel dele no porão e como, reescavando-o, por fim entraram na Colônia e foram presos. Falou da reunião com o pai e o irmão biológicos, quando soube que ele mesmo tinha nascido na Colônia.
– Rebeca me contou isso – disse dr. Burrows. Às vezes Will achava doloroso contar o que tinha acontecido, ocasionalmente caindo em silêncio até se sentir capaz de voltar ao relato. Ele falou dos Styx e de como eram brutais. – Eu nunca vi esse lado deles – dr. Burrows foi categórico. – Eles não me trataram mal. Deixaram que eu fosse aonde quisesse. Na realidade, tive as piores experiências nas mãos dos colonistas, em particular nos Cortiços, onde levei uma surra dos bandidos que moram lá. Se às vezes os Styx são severos, deve ser pelo bem da Colônia, com todos aqueles rebeldes por lá.
– Severos? Ah, cai na real, pai! – disse Will, elevando a voz, exasperado. – Os Styx são cruéis… São assassinos e torturadores! Não viu o que eles faziam com os Coprólitos e os renegados nas Profundezas? Eles os matavam às dezenas.
– Não, não vi. Como sabe que eram Styx e não simplesmente um bando dissidente de renegados? Pelo que dizem, eles são uma gangue de foras da lei.
Will se limitou a balançar a cabeça.
– Precisamos respeitar outras culturas e jamais julgá-las segundo nossos próprios valores – disse dr. Burrows. – E não se esqueça de que você é um forasteiro… Foi o mundo deles que você invadiu, sem ser convidado. Se eles o trataram mal, só o que posso dizer é que você deve ter feito alguma coisa para ofendê-los.
As declarações do dr. Burrows deixaram Will sem fala por um momento. Ele soltou uma serie de “pfuuu”, como se cuspisse penas.
– OFENDÊ-LOS? – Conseguiu soltar, num grasnado furioso, quando finalmente pôde falar. – OFENDÊ-LOS? – Will respirou fundo para se acalmar. – Está sendo um completo imbecil, pai. Não ouviu uma palavra do que acabei de contar?
– Acalme-se, Will – instou dr. Burrows. – Seu comportamento é típico de todas as vezes em que você brigava com sua irmã e você de repente perdia as estribeiras.
– Ela não era minha irmã – contra-atacou Will com raiva.
Mas dr. Burrows queria vencer a discussão.
– Vocês sempre voavam no pescoço um do outro, viviam brigando. Nada mudou, não é?
Will percebeu que era inútil tentar arrazoar com o pai e concluiu que a única maneira de convencê-lo era contar o restante da história. Relatou todos os acontecimentos nas Profundezas enquanto o pai ouvia atentamente.
– Vírus letais, tiroteios e uma mãe que você nunca conheceu. Isso dá uma história e tanto – disse, supondo que o filho tivesse acabado. Mas Will ainda não terminara.
– Pai, tem uma coisa me incomodando desde que você foi embora.
– O que é? – disse dr. Burrows.
– Naquela noite em Highfield, quando você saiu afobado da sala… O que estava discutindo com a mamãe? – perguntou ele.
– Eu tentei dizer a ela o que pretendia fazer, mas ela não quis me ouvir… Estava grudada em alguma coisa na televisão. Nem nos melhores momentos sua mãe é uma pessoa fácil e tenho de confessar que minha paciência estava se esgotando.
– E o que houve? Você contou a ela para onde ia? – perguntou Will.
– Sim, contei, até onde eu mesmo sabia na época. A única maneira de conseguir a atenção dela era desligando a televisão, então ela me ouviria. Depois ela avançou pra cima de mim.
– Você desligou a TV – disse Will e assobiou longamente. Era uma coisa que nunca se fazia com sra. Burrows. Assemelhava-se a infringir o primeiro mandamento da casa dos Burrows: Não interromperás meus programas de TV.
– Eu só queria explicar a sua mãe o que eu pretendia fazer – disse dr. Burrows numa voz fraca, como se tentasse ao máximo justificar o que fizera.
– Pai, tem outra coisa… Você ficava dizendo que ela era minha mãe. Ela não é minha mãe de verdade e você não é meu pai verdadeiro, é? Por que nunca me contou que fui adotado?
Dr. Burrows continuou em silêncio por vários passos. Andando ao lado, Will sentiu a tensão entre os dois e se perguntou se o pai ia responder. Finalmente ele falou.
– Quando eu era garoto, meus pais tinham um amigo que costumava nos visitar – disse dr. Burrows. – Ele se chamava Jeff Stokes, mas para mim era o tio Stokes. Era casado com uma mulher que tinha um haras nos arredores de Londres e ele tinha alguns filhos, mas nunca os levava lá em casa. – Dr. Burrows sorriu. – Ele era uma figura fascinante, e minha mãe e meu pai adoravam a companhia dele. Havia uma onda de empolgação na casa quando ele aparecia, sempre com um carro esporte do último tipo ou uma moto imensa. E para mim, era superespecial, parecia Natal ou aniversário, porque ele nunca chegava de mãos abanando… Sempre me levava os presentes mais maravilhosos. Um jogo de mágica ou carrinhos Matchbox… Até me deu o meu primeiro microscópio e uma caixinha de madeira com lâminas com cristais e asas de borboleta. Nem imagina o quanto esses presentes significaram para mim, em particular porque meus pais nunca tinham muito dinheiro para essas coisas.
– Legal – disse Will, distraído, sem saber aonde o pai queria chegar.
– Eu devia ter uns nove anos quando ele me levou dois camundongos brancos numa gaiola. Meus pais não deixavam que eu tivesse nenhum bicho de estimação, então eu fiquei nas nuvens. Fiquei acordado até tarde, só olhando meus camundongos, até que meu pai me obrigou a ir para a cama. Quando acordei de manhã, a primeira coisa que fiz foi correr para onde tinha deixado a gaiola. E não estava lá. Não entendi nada. Procurei pela casa toda, mas não achei em lugar nenhum. Meu pai desceu porque eu estava aborrecido e chorava muito. Ele me disse que eu devia ter sonhado, porque nunca houvera dois camundongos numa gaiola. Ele disse que eu sonhei a coisa toda. E minha mãe me contou a mesmíssima história.
– Então eles mentiram para você – opinou Will.
– Sim, mentiram para mim. Minha mãe tinha um medo crônico de camundongos e meus bichos tiveram de ir embora. Mas eu realmente acreditei no que me contaram e só anos depois somei dois e dois e entendi o que eles fizeram. Mas não guardei ressentimento. Era mais generoso me deixar pensar que tudo fora um sonho, em vez de me obrigar a entregar meus amados camundongos. – Dr. Burrows deu um pigarro. – Will, sua mãe e eu íamos contar a você. Mas queríamos que você tivesse idade suficiente para lidar com isso, para entender o que significava. Eu lhe garanto que foi assim. – Ele olhou nos olhos do filho. – E agora que você sabe, faz realmente alguma diferença?
Will não respondeu de imediato.
– Sim, acho que faz – disse ele por fim. – No fundo, eu sempre tive a sensação de que não combinava com você e a mamãe, e certamente nunca com Rebecca… Quer dizer, as Rebeccas. Tentei me adaptar… Tentei sentir que aquele era o meu lugar… Acho que eu me obriguei a acreditar que consegui… Mas não é verdade, é? Mesmo que não tivesse acontecido tudo isso com minha família da Colônia e os Styx, eu ainda viveria uma mentira, não é? Mesmo que a mentira fosse minha? – Will respirou fundo para tentar equilibrar a voz. – E isso não era certo, era?
– Não, não era, Will. Devíamos ter contado a você antes – concordou dr. Burrows. Depois mudou inteiramente de assunto. – Parece que estamos subindo há muito tempo.
– Bem, a explosão obstruiu tudo – disse Martha para Chester e Elliott ao voltar pela passagem. Ela olhou a menina sentada de pernas cruzadas na maca, mascando um pedaço de carne de aranha-macaco seca e bebericando de um cantil.
– Desculpe – disse Elliott, erguendo as sobrancelhas com ar de culpa. – Não vi outra saída.
– Não, você agiu bem – Martha lhe garantiu. – Se fosse para apostar entre quem nos pegaria primeiro… os Faróis ou o Limitador… eu colocaria meu dinheiro no Limitador. Ele não ia deixar que saíssemos de lá vivos.
– Aquela maldita gêmea Rebecca que estava com a gente – Chester resmungou, depois soltou um pááá. – Eu sabia que ela estava mentindo o tempo todo, mas Will não quis me ouvir. Os Styx são todos mentirosos, sem exceção!
Martha pigarreou e Chester se virou devagar para Elliott ao se lembrar do que ela revelara na caverna. Chester se remexeu, sem graça.
– Hum… Eu não quis ofender – murmurou ele a Elliott.
Elliott tinha parado de mastigar e olhava o menino.
– Lixo da Crosta – disse ela entre os lábios apertados. Os olhos de Chester se arregalaram de surpresa, até que ela de repente deu uma gargalhada. – Só estou brincando, Chester! Meu pai pode ter sido um deles, mas eu os odeio tanto quanto você.
Chester engoliu em seco, tentando invocar um sorriso, mas ainda estava meio abalado.
– Minha mãe serviu na Guarnição do complexo dos Styx, onde eles se conheceram – explicou Elliott. – Quando ela descobriu que estava grávida, mudou-se o mais longe que pôde para a Caverna Oeste. Dizer que era uma situação complicada seria pouco… Ela teria sido banida e ele executado se alguém descobrisse o segredo dos dois. Então ele não teve muito contato comigo nem com minha criação, mas aparecia para nos visitar sempre que podia. Depois, quando eu tinha nove anos, as visitas de repente pararam. Diziam que ele tinha desaparecido em ação… em uma operação na Crosta.
– Mas não se sente nem um pouco estranha com isso? – arriscou-se Chester. – Quer dizer, você fala Styx, é meio Styx e ainda assim lutou e… e os matou, não foi?
– Não, olha, eu sou uma colonista completa, como minha mãe. Ela me criou sozinha e eu vi como os Styx tratavam meu povo. Eu os odeio tanto quanto qualquer um – respondeu ela.
– Então por que saiu da Colônia? – perguntou Martha.
– De algum modo, alguém descobriu quem era meu pai e tentou usar isso contra minha mãe. Não sei quem… Ela não contou, mas estava enlouquecendo de preocupação. Então achei que aquilo pararia se eu fosse embora.
– Parou? – perguntou Martha.
– Não sei – respondeu Elliott com a voz triste. – Não tive nenhum contato com ela desde que parti.
Fez-se um silêncio que foi interrompido por Martha.
– Não podemos ficar aqui. Estamos bem dentro da terra das aranhas.
– Mas e Will? – perguntou Chester, de cenho franzido. – Quando o vi, ele voava como o vento. Acha que ele está bem?
Martha respirou fundo.
– Mesmo que tenha se safado, não vai conseguir nos seguir até aqui. Precisamos tentar chegar à Caverna dos Lobos – disse ela, olhando os túneis atrás deles. – Se chegarmos lá, podemos esperar por ele.
– Como assim, se? – disse Chester.
PARTE UM
A Fase
Capítulo Vinte
Três dias depois e quase sem comida nenhuma, Will e dr. Burrows precisavam desesperadamente de descanso. A fenda inclinada era interrompida por várias falhas verticais, o que significava que eles tinham de atravessar desfiladeiros terrivelmente fundos para continuar a jornada. Se esses desfiladeiros estivessem na superfície, eles não teriam a menor chance de cruzá-los, mas no ambiente de baixa gravidade podiam simplesmente saltar de um lado a outro.
Tinham acabado de atravessar outro desfiladeiro quando dr. Burrows começou a assobiar ao acaso entre os dentes. Vagava com o queixo empinado, exatamente como se estivesse num passeio de domingo. Irritava Will que o pai estivesse tão relaxado com a situação. Mas em menos de um quilômetro eles chegaram ao alto da fenda e se viram espremidos por uma passagem extremamente estreita, um corredor rochoso com laterais irregulares e pontiagudas.
Dr. Burrows parou de assobiar e soltou uma série de grunhidos enquanto lutava para passar pelo espaço claustrofóbico.
Já era muito ruim aturar os assobios, mas os grunhidos iam além do que Will podia suportar. De repente ele parou, obrigando o pai e estacar atrás dele no corredor.
– O que estou fazendo! – ele soltou, chutando uma pedra desprendida. – Por que estou aqui com você?
– Tem alguma coisa te preocupando? – perguntou dr. Burrows.
– Tem. Além de estar arrasado e morto de fome, cometi um erro terrível. Devia ter achado um caminho de volta a Chester e aos outros. Não me esforcei o bastante. Só sei que eles estarão esperando por mim na Caverna dos Lobos.
– Nós tentamos – respondeu dr. Burrows tranquilamente. – Não havia uma passagem segura.
Will meneou a cabeça.
– Devíamos ter entrado na primeira passagem que encontramos, aquela com as aranhas novas, e nos arriscado por lá. Aposto que ficaria tudo bem. E nem exploramos realmente se havia passagens do outro lado da fenda. E se existisse uma que levasse diretamente à Caverna dos Lobos? – Ele chutou outra pedra, que quicou nas paredes do corredor. – Idiota, idiota, idiota!
– Will, nós procuramos passagens à direita e não achamos nada, não foi? Acalme-se – insistiu dr. Burrows.
– Não, não vou me acalmar! E se eles se feriram na explosão? Chester pode precisar de minha ajuda.
– Sei que ele está bem. A renegada vai cuidar dele e aquela menina com todos os explosivos… Ela não era nem um pouco ingênua. Aposto que ela entende das coisas por aqui – disse dr. Burrows.
– O nome dela é Elliott. – Will fervilhava, lançando um olhar de irritação ao pai. – E ela está tão perdida neste lugar como nós. E nesse ritmo, nós vamos ficar duplamente perdidos.
– Acho que não – o pai rebateu.
Will estava prestes a dar mais vazão a sua frustração, quando se deteve.
– Por que diz isso?
– Porque se você tivesse prestado atenção nos últimos quilômetros, teria observado isto. – Dr. Burrows jogou a luz de seu globo luminoso em uma área mais alta da parede. Embora a tinta descascasse e desbotasse em alguns lugares, havia um triângulo vermelho imediatamente acima de Will, com um dos vértices apontando a direção que eles tomavam. – No início eram poucos, mas agora aparecem a intervalos de quinhentos metros.
Will ficou imediatamente curioso.
– Acha que a tripulação do submarino deixou essas marcas?
– É possível – disse dr. Burrows. – Mas vamos descobrir nós mesmos o que está no final dos rastros.
– De jeito nenhum… Tenho que voltar para os outros – insistiu Will, mas suas palavras tinham perdido parte da convicção. Os olhos se arregalaram enquanto sua insaciável sede de descoberta assumia o controle. – Mas… Acho que não faria mal nenhum seguir mais um pouco os sinais.
Sem mais estardalhaço, ele seguiu pela brecha estreita.
– Esse é o meu garoto – disse dr. Burrows em voz baixa.
Eles lutaram pelo corredor claustrofóbico por vários outros quilômetros. De repente o ruído de seus passos parecia ter um caráter diferente, os ecos indicavam que chegavam a um espaço maior.
– Luz… Mais luz – ordenou dr. Burrows enquanto eles saíam do corredor e descobriam, para sua surpresa, que estavam numa espécie de plataforma nivelada. Will aumentou o alcance da lanterna. – Isso é concreto! – disse dr. Burrows, raspando o calcanhar na superfície. Depois se ajoelhou sobre uma perna para examinar mais de perto, o tempo todo resmungando consigo mesmo. – Concreto… Provavelmente despejado a frio.
Mas Will estava tão empolgado que nem ouvia.
– Olha! Tem uma linha! – gritou ele ao dirigir a lanterna para a frente. Revelou-se uma linha branca e grossa, correndo reta. E logo após a linha, algo cintilava no escuro, dando a impressão de movimento.
Pai e filho avançaram, tentando distinguir o que seria.
– Cuidado – dr. Burrows alertou-o.
– Está tudo bem, é só água – disse Will ao chegarem à linha e pararem. A linha marcava a beira da plataforma, de onde os dois espiaram, vendo que havia uma queda de vários metros até onde começava o trecho de água. Embora parecesse bem funda, era clara o bastante para que aparecessem rochas no leito.
– Sim, uma espécie de lago subterrâneo – confirmou dr. Burrows. – Mas o que mais haverá aqui?
Will de imediato lançou o facho de luz para a superfície que ondulava suavemente. Ao fazer isso, crescentes oscilantes eram lançados na parede mais distante, à esquerda da caverna. Os dois semicerraram os olhos pela escuridão turva.
– Este lugar é enorme – disse Will, sem nenhuma necessidade. Ajustou a lanterna no nível máximo para enxergar mais pela parede da caverna.
– É – murmurou dr. Burrows, embora ainda parecesse mais interessado na plataforma sob seus pés, voltando sua atenção a ela de novo. – Mas que laje de concreto danada de grande tem aqui! Para que isso serve, ora? – perguntou a si mesmo ao raspar a bota lentamente pela superfície.
– Vou dar uma olhada ali – disse Will, seguindo a linha branca que corria para a esquerda. Descobrindo que a plataforma terminava na parede da caverna, ele gritou: – Não dá em nada… Um beco sem saída! – Ele voltou para onde o pai estava, mas não parou, passando por trás dele. Pensou que tinha chegado à outra ponta da plataforma quando deu com uma grande pilha de entulho, mas ao subir ali descobriu que a plataforma de concreto se estendia bem além na escuridão e sua superfície nivelada era interrompida apenas por uma ou outra rachadura e por pedaços de pedra espalhados aqui e ali.
– Tem mais para lá! – ele contou ao pai, depois descobriu que a plataforma, ainda margeada pela linha branca, fazia uma curva.
– Rápido, pai! Vem ver isso! – gritou. Dr. Burrows o alcançou e, lado a lado, eles seguiram por esse novo trecho.
Depois Will apontou a lanterna para o que havia à frente. Era um trecho mais claro e eles viram uma forma definida quando se aproximaram.
Will manteve o círculo de luz parado.
– O que é isso? – perguntou dr. Burrows, sem fôlego. Ele e Will ficaram paralisados. Havia uma sugestão de algo regular pela parede – evidentemente alguma construção. Dr. Burrows logo partiu para lá.
A estrutura assomava no escuro, mas Will não o seguiu com tanta rapidez. De repente teve a ideia de que topar com algo assim poderia não ser boa notícia.
– Ei, pai – gritou Will, meio fraco, ao se lembrar da descrição que Cal fez do Bunker nas Profundezas. Embora não tenha visto com os próprios olhos, Will se lembrava de que também era feito de concreto e lhe ocorreu que este lugar também poderia ter alguma relação com os Styx. Talvez fosse um de seus postos avançados. No mesmo instante percebeu como isso era improvável. Martha dissera enfaticamente que a presença dos Styx não se estendia a tanto. Will meneou a cabeça, desprezando a preocupação. Não, isto não é algo que os Styx colocaram aqui.
– O que foi, Will? – respondeu por fim dr. Burrows.
– Nada – disse o garoto, correndo para alcançá-lo. Aproximado-se do prédio, ele viu que consistia em um único andar em que havia uma fileira de janelas quadradas, dez no total, e depois delas uma porta.
Will chegou à porta num instante. Era pintada de cinza azulado, com a ocasional mancha marrom onde a ferrugem começara a cavar a superfície. E no meio da porta havia uma roda, claramente uma espécie de mecanismo de abertura. Dr. Burrows pendurou o globo luminoso no pescoço e tentou girar a roda. Xingou quando ela se recusou a se mexer.
– Terá de me ajudar – murmurou, e Will prendeu a lanterna no casaco e se juntou ao pai no esforço de girar o mecanismo.
Depois de várias tentativas, desistiram.
– Mas que droga! – exclamou dr. Burrows, metendo o calcanhar na roda várias vezes, tentando soltá-la.
– Espere aí – disse Will ao ver um tubo de metal ao pé da parede. Ele o pegou e meteu entre os raios da roda.
– Uma alavanca! Boa ideia! – Então, eles jogaram todo o peso no cano. A roda girou e o cano escorregou dela e caiu no chão, enchendo a caverna com os ecos. Will fez menção de pegá-lo.
– Não se incomode com isso – disse dr. Burrows. – Acho que agora nós conseguimos. – Ele grunhiu ao girar a roda. Houve um estalo forte quando chegou ao limite de sua rotação. – Abre-te, Sésamo – anunciou ele e puxou a porta. Ela se abriu um pouco, até que sua base raspou alto na plataforma de concreto. – Essa é uma porta dos diabos… Tem quase meio metro de espessura! – Embora continuasse a puxar, a porta não se movia mais. – Vamos tirar tudo isso do caminho – sugeriu, chutando os pedaços de pedra de sob a beira da porta.
Will o ajudou, chutando para o lado os destroços maiores com a bota e se ajoelhando para espanar o cascalho com as mãos.
– Agora deve dar certo. Vamos tentar de novo – propôs dr. Burrows. Havia uma abertura suficiente para que metesse os dedos por dentro da porta e a segurasse. – Pronto… Firme… Já! – gritou, usando toda sua força para puxar a porta. Will puxava junto com ele pela trava, e a porta se abriu um pouco mais, dando espaço suficiente para que eles se espremessem por ali, o que fizeram sem fôlego e com expectativa. Entraram e encontraram uma câmara retangular com cerca de dez por vinte metros. Havia uma pequena mesa de campanha cercada de cadeiras dobráveis.
– Pai, dá uma olhada nisso! – gritou Will, animado. Na parede de frente para a porta havia um painel complicado com mostradores e comutadores. – Mas o que é isso?
– Não tenho a menor ideia, mas essa porta certamente cumpriu sua função e evitou a entrada de umidade. Não há nenhum sinal de corrosão – observou dr. Burrows enquanto ele e o filho olhavam ao mesmo tempo o canto inferior do painel, onde havia cinco chaves grandes de disjuntores. As palavras Console de Força Principal estavam escritas abaixo.
Dr. Burrows começou a assobiar de seu jeito atonal costumeiro, o que em geral significava que estava imerso em pensamentos, mas em seguida falou.
– Todas essas chaves estão para cima, o que quer dizer que não está sendo feita nenhuma conexão… Então estão na posição desligado. – Era como se um convite silencioso e irresistível os estivesse tentando. Will assentiu, fascinado para ver o que o pai ia fazer.
Dr. Burrows estendia a mão para a primeira chave quando Will viu algumas palavras em estêncil vermelho na parede ao lado do painel.
– Ei, pai… A ser operado somente por pessoal autorizado – ele leu rapidamente. Isso fez dr. Burrows hesitar, mantendo a mão a centímetros da chave. Ele cantarolou indeciso ao esfregar o polegar nos outros dedos.
– Bom, vamos experimentar ou não? – disse Will.
Dr. Burrows respirou fundo, soltando o ar num murmúrio contemplativo.
– Tudo isso parece ser do arco da velha – disse ele. – Nem deve funcionar mesmo… Então não vejo por que não experimentarmos.
– Falou, vai nessa, pai – Will o estimulou.
– Falou – dr. Burrows lhe fez eco, embora normalmente nunca usasse essa palavra. Segurou a primeira chave e a baixou até que ela estalasse no lugar. Eles olharam a sala, a luz da lanterna de Will cortava o escuro, mas nada parecia ter acontecido. Ouviam a água pingando lá fora, mas, de resto, só havia silêncio.
– Acha mesmo que…? – disse Will, ao se perguntar se deviam descobrir para que serviam os comutadores antes de continuarem.
Mas dr. Burrows já segurava a segunda chave e a baixava. Quando o contato foi feito, houve um forte clarão azulado e um chiado. Pai e filho pularam de surpresa. O espaço foi imediatamente inundado pela iluminação de uma série de lâmpadas de anteparo instaladas nas paredes.
– Que luz forte! – exclamou Will, cobrindo os olhos.
Embora precisassem de algum tempo para se acostumar com o brilho, agora tinham uma visão clara do que os cercava. Dr. Burrows experimentou as outras chaves e descobriu que duas das três restantes funcionavam, porque emitiram as faíscas azuladas. No painel acima, os ponteiros de mostradores redondos se agitaram e estalaram sob o vidro embaçado. Bem no meio do painel, um ponteiro subia lentamente por um medidor retangular.
– Esse deve ser o nível de força geral – disse dr. Burrows, limpando a poeira dele.
– Como sabe disso? – perguntou Will, plenamente consciente de que o pai considerava um desafio qualquer aparelho mais complicado do que uma torradeira.
– Só uma suposição fundamentada – disse dr. Burrows com um sorriso. Ele indicou a fila de números sob o ponteiro. – Esta escala parece estar em megawatts, então eu devo ter razão.
Will assentiu ao examinar a sala mais atentamente. Tinha um teto baixo e paredes de concreto sem pintura e, além da mesa e das cadeiras de metal, estava inteiramente vazia.
– Por ali – disse Will, apontando. Na extremidade da sala, havia uma porta que era tranquilamente duas vezes mais larga do que aquela que tinham usado para entrar.
– Deixe-a de lado por um momento – disse-lhe dr. Burrows, ainda examinando os ponteiros vacilantes nos mostradores menores. – Este painel deve ter décadas, então a força não pode vir de baterias, nem de nenhum tipo de carga armazenada. O estado deste lugar… tão bom assim… não nos leva a acreditar que recebeu manutenção, e a essa altura as baterias teriam se esgotado. Isso nos leva a pensar em uma conexão com a rede de cima, o que também é impossível porq…
– Porque estamos muito embaixo? – Will o interrompeu.
– Exatamente – continuou dr. Burrows, coçando o queixo barbado. – Então é energia geotérmica ou hidrelétrica. Considerando a água lá fora, eu apostaria em hidrelétrica.
– De uma coisa eu tenho certeza, isto não tem nada a ver com a Colônia, não é? – perguntou Will.
– Não, é coisa nossa. É tecnologia da superfície – disse dr. Burrows, limpando com o polegar mais poeira dos mostradores. – Mas de séculos atrás, pela aparência. – Sua mão pairou acima de uma série de interruptores bojudos sob o cabeçalho “exterior”, cada um deles rotulado com letras de A a K. – Agora vamos até o fim – declarou ele antes de ligar todos. O largo mostrador do medidor central se agitou por um momento para a esquerda, depois voltou ao meio, onde pareceu se estabilizar. Dr. Burrows se voltou para as janelas cobertas de pó. – Sim, acho que fez o truque – murmurou quando os dois foram às janelas e viram a luz do lado de fora.
Eles saíram apressadamente da construção pela porta parcialmente aberta. Luzes fortes pendiam de trilhos que corriam pelo teto da caverna, revelando toda a extensão da plataforma e que um píer – também de concreto e com aproximadamente quinze metros de extensão – se ramificava dali e entrava no lago. Dos dois lados, este píer tinha postes de ferro enferrujado para amarração, vários dos quais com correntes penduradas, embora não fosse evidente para que serviam ao vê-las entrar pela água. Will correu para o lado para ter uma visão de mais de perto.
– Pai, o que são essas coisas aqui? Barcos? – perguntou ele, vendo várias embarcações parecidas com botes presas às correntes, mas no fundo do lago. Eram de plástico ou fibra de vidro, e todas em variadas fases de desintegração. Outras estavam inteiramente quebradas e agora a caverna era tão iluminada que Will podia ver seus restos espalhados pela margem em meio às pedras irregulares.
– Sem dúvida nenhuma. E veja ali, Will! – gritou dr. Burrows. – É uma barcaça!
Quando olharam a extremidade da caverna, Will localizou uma longa embarcação na água com as laterais mosqueadas de uma pátina de ferrugem. Parecia ter se soltado de seu ancoradouro e vagado para a posição atual, com a proa tocando a parede da caverna. No leme havia uma pequena cabine, e o restante da embarcação era aberto e tinha pilhas de caixotes de metal.
– Meu Deus, Will, isto é uma espécie de porto subterrâneo! – disse dr. Burrows, suas palavras entrecortadas pela empolgação. Ele logo começou a avaliar o que havia no restante do cais, que continuava por várias centenas de metros de onde estavam os dois. Ele e Will viram outras construções pela base da parede da caverna e eles dispararam a correr para a mais próxima delas. A primeira tinha uma porta com outra fechadura giratória no meio e dr. Burrows não perdeu tempo, foi logo abri-la.
– Quer que eu tente? – ofereceu Will ao pai, que lutava com a roda.
– Não, deixe comigo – respondeu dr. Burrows enquanto cuspia na palma das mãos e voltava a tentar. Após muito esforço, a maçaneta finalmente se moveu e ele abriu a porta. Houve um silvo quando o ar foi liberado de dentro do prédio.
– Ai, eca! – Will ofegou, torcendo o nariz enquanto os dois se arriscavam a entrar. – Não foi você, foi, pai?
– Mas é claro que não! – Dr. Burrows bufou, indignado. – Tem cheiro de gás de pântano… Como o metano. Deve ter havido um acúmulo dele aqui.
– Desculpe – murmurou o filho, examinando o interior para disfarçar o constrangimento. Com as paredes de um metro de espessura, a cabine de concreto tinha as mesmas dimensões da primeira construção, mas não possuía janelas. As luzes não pareciam funcionar, então Will usou a lanterna para explorar. Três motores de bom tamanho estavam encaixados em fossas no chão, cercados por poças de fluido que formavam um arco-íris.
– Geradores? – perguntou-se dr. Burrows, dando ele mesmo a resposta: – Sim. Está vendo os tubos de combustível entrando por eles e os conduítes de eletricidade e disjuntores na parede ali?
– Er… Acho que descobri o que cheira tão mal – anunciou Will de um canto da cabine. Sua lanterna revelava uma garrafa térmica com um padrão xadrez desbotado e, ao lado dela, uma caixa de plástico aberta, em cujo interior havia algo preto e podre.
– Alguém esqueceu o almoço. – Dr. Burrows sorriu forçado.
– É um pouco mais do que isso, pai – disse Will ao espiar a caixa. – Tem um rato aqui também… E está morto há muito tempo.
– Deve ter ficado trancado e só tinha isso para comer – sugeriu dr. Burrows ao sair da cabine para ver a construção seguinte.
Nesta eles descobriram que as paredes eram cobertas por prateleiras de metal maciço, onde ficavam vários caixotes de madeira. Dr. Burrows puxou um deles. Descobriu que era tão pesado que não conseguia escorá-lo e deslizou-o da prateleira.
– Droga! – gritou, pulando para trás, enquanto o caixote caía no chão e abria ao quebrar. Ajudado por Will, ele afastou os pedaços da caixa. Os dois viram que havia algo grande, embrulhado em tecido sujo de óleo, que se rasgou quando o puxaram.
– O que é isso? – perguntou Will.
– Um motor de popa, creio – disse dr. Burrows, ao passar o dedo pela hélice. Retirada a graxa, o metal brilhou. – Sim. E em bom estado também! – Ele se virou para o filho e sorriu. – Tudo isso é inacreditável. Vamos ver o que mais tem aqui – disse ele, e os dois voltaram para fora.
Andando pelo cais, chegaram à construção seguinte, mas dr. Burrows não parou, passando às pressas por esta e várias outras. Parecia estar numa pressa danada, como se tivesse visto algo pouco além deles. Havia dois tanques cilíndricos de bom tamanho montados junto à parede da caverna, com cerca de trinta metros de altura, encanamento e torneiras na base. Dr. Burrows testou uma delas, deixando sair um pouco do fluido.
– Gasolina – disse Will, identificando o cheiro de pronto.
Dr. Burrows fechou cuidadosamente a torneira.
– E neste – declarou ele enquanto batia no segundo tanque com os nós dos dedos e provocava um tinido abafado – tem diesel. Para os geradores, talvez.
– Dá para sentir o cheiro? – perguntou Will, impressionado.
– Não, veja só o D grande pintado aqui. Venha comigo! – gritou dr. Burrows. Ele agitava os braços freneticamente enquanto as palavras saíam aos tropeços de sua boca. Will não o via tão animado há muitos anos. Mas quando voltaram a andar pelo cais, dr. Burrows foi ficando mais coerente. – Quem construiu isso… Deve ter sido um empreendimento dos diabos…
Ele parou ao lado de um pequeno guindaste rebitado à superfície do cais, com seu único braço estendido para a água. Como todo o resto no cais, estava muito enferrujado e tinha um halo de tinta cinza azulada espalhada pela base.
– Sim… Uma lança de guindaste… Para levantar matérias-primas embarcadas aqui nas barcaças… – dr. Burrows balbuciava – e, claro, uma ponte rolante para deslocar os produtos pelo cais – disse ele, apontando para cima. Will levantou a cabeça e viu que no alto havia um trilho grosso fixado ali. – Sim, mas… Tudo isso… E eles não concluíram! – gritou dr. Burrows sem fôlego, lançando a mão a um prédio parcialmente construído ao passarem por ele. – Por que será?
Will viu uma betoneira enferrujada, montes de areia e sacos de cimento havia muito endurecido, os sacos de papel em farrapos em volta deles.
– Unidades de filtro de ar, aposto – disse dr. Burrows ao passarem voando por pilhas de caixas de madeira. Algumas caixas estavam tão apodrecidas que as máquinas corroídas de seu conteúdo tinham caído e estavam numa pilha desordenada na plataforma. – Para a central hidrelétrica…
– Sim? – Will ofegava, tentando acompanhar.
– Você precisa de turbinas e…
– Sim? – gritou Will, louco para saber mais.
Dr. Burrows parou de repente.
– Ouviu isso, Will?
– Sim! – disse Will, escutando um rumor.
– Água corrente! – gritou dr. Burrows, voltando a correr. Eles chegaram ao final do cais e passaram por baixo de um arco reforçado na boca do porto. Diante deles havia um canal de pelo menos trinta metros de largura, em que corria um rio de forte correnteza. Lâmpadas de anteparo pontilhavam aqui e ali, e assim tudo na área era visível.
Will olhou à esquerda, onde corria o rio e onde foram parar os olhos do dr. Burrows. Inclinada e quase tomando toda a largura do canal, havia uma grade de metal em uma construção reforçada. Havia muita espuma e destroços presos na grade, mas nenhuma pista do que estava por trás dela, além do zumbido constante. Era alto o suficiente para ser ouvido junto com o ronco da água.
– Voilà! As turbinas! – gritou dr. Burrows, acenando vigorosamente. O rio produzia uma quantidade considerável de borrifos e ele ficou em silêncio enquanto tirava os óculos para enxugá-los.
Will foi na direção contrária, depois andou um pouco pelo passadiço ao tentar ver de onde vinha o rio. Mas as luzes não chegavam a esse ponto do canal e a escuridão ali era impenetrável.
– Para que tudo isso? – perguntou, gritando para se fazer ouvir. – Quem construiu, pai?
– Não se preocupe com isso agora – rebateu dr. Burrows. – Não vê o que temos aqui?
– O quê? – perguntou Will, franzindo o cenho de concentração.
– Se, e eu disse se acharmos uma embarcação intacta… Algo que ainda flutue… E se conseguirmos colocar um motor de popa para funcionar – disse dr. Burrows, virando-se para olhar a correnteza, com as mãos nos quadris –, estamos feitos.
Will olhou a água correndo. Já havia desistido de tentar entender do que o pai estava falando.
– Bom… – gritou dr. Burrows, enquanto se virava de frente para o filho –, quer ir para casa, ou não?
Capítulo Vinte e Um
– Achei que estaria aqui – disse sra. Burrows ao encontrar Ben Wilbrahams em seu lugar de sempre, a uma das mesas de leitura da biblioteca de Highfield.
– Sim, tenho distrações demais em casa – respondeu ele. – Vejo que seu tornozelo melhorou.
Assentindo, sra. Burrows entregou a Ben Wilbrahams uma sacola, que ele pegou mas não abriu, olhando-a inquisitivamente.
– Outra noite – disse ela –, quando estava me contando sobre todos os estranhos incidentes em Highfield, você me perguntou sobre Roger e o que eu pensava que ele estava fazendo. Desculpe, mas eu não fui exatamente sincera.
– Sobre o quê? – perguntou Ben Wilbrahams, testando o peso da sacola nas mãos.
– Estive pensando muito e decidi que você deve saber de tudo. Nesta sacola está o diário de meu marido. Cobre os dias pouco antes de ele desaparecer e gostaria que você…
Ouvindo um chiado, ela parou de repente. Girou o corpo e viu um velho com uma camisa grande demais para ele e uma gravata-borboleta igualmente grande. Meneava a cabeça, reprovando-a. Colocando o dedo nos lábios, ele chiou de novo, como uma tartaruga asmática pedindo silêncio.
Sra. Burrows puxou a cadeira ao lado de Ben Wilbrahams.
– Ande… Pode ver – ela o estimulou.
Ele abriu a sacola e pegou o diário, lendo alguns trechos enquanto sra. Burrows o observava.
– Material fascinante – disse ele ao fechar o volume.
– Sabe de uma coisa… Quando me meti na frente de seu carro, eu acredito… – O velho do outro lado chiou de novo, mas ela o ignorou deliberadamente – … que alguns daqueles homens pálidos… ou homens-de-chapéu, como Roger também se referia a eles… estavam atrás de mim.
– Tem certeza? – perguntou Ben Wilbrahams.
– Absoluta… Eu dei uma boa olhada neles. Mas não pode usar este incidente e o que está neste diário como material para um de seus programas de TV?
Ben Wilbrahams esfregou as têmporas, pensativamente.
– Olha, Celia, uma coisa é cavar matérias bizarras de jornais de anos atrás, mas acho que eu estaria forçando muito se incluíssemos qualquer coisa sobre você… Ou sobre essas coisas que seu marido escreveu – disse ele, erguendo o diário. – Como ele é objeto de uma investigação policial, também posso me queimar se fizer alguma alegação sem fundamento. – Ben Wilbrahams ficou pensativo por uns momentos, olhando a etiqueta na capa do diário. – Mas ainda gostaria de ficar com isso e refletir bem. Algum problema por você?
– Claro que não. E agora eu tenho que ir para o trabalho… Estão sem pessoal esta tarde. – Sra. Burrows se levantou da cadeira e, ao passar pelo velho, curvou-se e pegou o lápis que ele usava. Ela o quebrou em dois, enchendo a biblioteca com o som do alto, depois largou os pedaços em seu colo.
– Shhhhh para você! – disse ela, e prontamente saiu.
– Mas que atrevimento – reclamou o velho em voz alta, enquanto Ben Wilbrahams escondia o sorriso atrás do livro.
Will e o pai investigaram cada centímetro do porto. Em outra construção quadrada, encontraram num suporte uma lancha de fibra de vidro que parecia aproveitável.
– Então, talvez possamos mesmo colocar o pé na estrada – proclamou dr. Burrows, esfregando as mãos. Assoviava como louco enquanto eles desciam pelo cais para voltar ao prédio do painel de comutadores. Depois de entrar, os dois olharam a agulha oscilando no mostrador principal antes de irem para a porta maior no final da sala.
Dr. Burrows pensou por um momento.
– Eu me arriscaria a conjeturar que esta é uma porta de pressão.
– Porta de pressão? – repetiu Will. – O qu…?
– Vamos ver o que tem dentro, sim? – dr. Burrows o interrompeu.
– Tudo bem – disse Will meio irritado, olhando duro para o pai. – É minha vez de abrir, então? – perguntou ele enquanto punha a mão no mecanismo de roda.
– À vontade – respondeu dr. Burrows, tocando a parte superior de três dobradiças imensas. Ele olhou o filho girar a roda sem parar, até que ela estalou e Will descobriu que não rodava mais.
– Pesada – observou Will enquanto puxava a porta larga e ela não se mexeu nem um milímetro.
– Porta de pressão – disse dr. Burrows novamente, como se estivesse implicando com o filho. – Vou lhe dar uma mãozinha.
Eles puxaram juntos e ela aos poucos se abriu, soltando um gemido baixo. Houve um silvo de ar, como se a pressão dentro dela fosse maior.
Os dois Burrows assentiram e entraram. A primeira surpresa foi um corredor que se estendia diante deles, seu teto curvo com cerca de quinze metros de altura.
– Um túnel em galeria? – murmurou Will consigo mesmo.
Era revestido com o que pareciam placas de ferro oblongas e muito pesadas, cada uma delas soldada à seguinte e com algo parecido com alcatrão preto selando os espaços. A passagem era fortemente iluminada por uma fila de luzes contínuas instaladas no centro. De cada lado das luzes havia uma variedade de cabos e canos, o mais grosso deles tinha ramificações que terminavam em grades, por onde parecia entrar o ar fresco. Will sentia a corrente de ar no rosto coberto de suor quando se colocava abaixo de um deles. E considerando que a imensa porta deve ter sido hermeticamente fechada, o ar nem lhe parecia viciado.
– Linóleo – disse dr. Burrows ao dar alguns passos no piso cinza e brilhante. – E olhe… Mal tem uma poeira neste lugar todo. – Ele desceu um pouco a passagem e parou, olhando o filho por sobre o ombro. – Se pensar bem, agora estamos indo além da beira da própria parede da caverna. – Ele se virou e ergueu as mãos, com as palmas para fora, indicando onde achava que a parede devia estar. – Então, enquanto a caverna lá fora pode ser natural, eu diria que esta passagem foi escavada na própria pedra.
– É – disse Will –, mas o que será isso? – De um lado da passagem havia uma série de pequenas cabines com portas de metal. Dr. Burrows e Will exploraram a primeira. As paredes eram pintadas de um cinza escuro e acetinado até a altura da cintura, acima da qual as paredes e o teto eram de uma cor de marfim sujo, mas a cabine estava inteiramente vazia.
Eles voltaram à passagem.
– Operador de Rádio – disse Will, lendo as letras gravadas na porta da cabine seguinte. Quando a abriram, descobriram que havia um gráfico nas costas da porta, com vários meses mapeados em uma grade e nomes atribuídos a horas específicas de cada dia. Nem Will nem o pai fizeram algum comentário ao entrarem na sala. Tinha aproximadamente o dobro do tamanho da primeira cabine, com uma bancada junto da parede maior, coberta de todo tipo de equipamento eletrônico. Caixas de metal cinza escuro com vários mostradores soltavam fios por baixo da bancada, onde se uniam em feixe numa serpente grossa de cabos que entravam por um duto no chão.
– O que são essas coisas? – perguntou Will, apontando bulbos complicados de vidro que se projetavam do alto de algumas caixas.
– Válvulas de rádio. É tecnologia pré-transistor – disse dr. Burrows. – E para completar, aqui tem um microfone – acrescentou ele, empurrando de lado um par de cadeiras de lona com armação de metal para pegar o objeto preto e volumoso na frente da bancada. Ele o pesou na mão, depois pegou fones de ouvido que estavam ao lado do microfone. Will abriu um fichário na bancada e folheou as páginas laminadas, nas quais havia matrizes de números e letras. – Será que são códigos? – sugeriu dr. Burrows.
Mas Will estava mais interessado em um antigo monitor de TV instalado na parede a sua esquerda. Testou vários botões, mas nada aconteceu.
– O que isso quer dizer? – perguntou Will ao ver a palavra ROTOR impressa num mapa ao lado da tela. O mapa era um perfil das Ilhas Britânicas, sobre as quais vários círculos sobrepostos tinham sido desenhados.
Dr. Burrows deu de ombros.
– Não me lembra nada. Quem sabe é um acrônimo?
– Não… Aposto que as letras significam alguma coisa – sugeriu Will, sem ver o sorriso fugaz do pai. – Telefones! – exclamou Will ao perceber telefones vermelhos e pretos instalados na parede oposta, ao lado de um antigo quadro de distribuição com um emaranhado de fios. – Vamos tentar ligar para alguém? – propôs.
– Não perca seu tempo… Duvido que funcionem há anos – disse dr. Burrows. – Vamos – ele riu, acenando para Will sair da sala.
A cabine seguinte tinha as mesmas dimensões, mas era uma caverna de Aladim de equipamento militar.
– Um arsenal! – exclamou dr. Burrows assim que entrou. Todo o espaço da parede era tomado por uma estante de madeira rústica. Ele se curvou para ver uma arma de aparência compacta na prateleira mais próxima dele. Estava coberta por uma espessa gosma de graxa suja, mas isso não pareceu apresentar nenhuma dificuldade para dr. Burrows. – É uma Sten Gun – decretou ele ao tirá-la da prateleira. – Uma submetralhadora lançada para as tropas britânicas nos anos 1940. Eram feitas em Enfield e conhecidas como Pesadelo do Encanador. Pode-se entender por quê. A coisa é feia, não é?
– É mesmo muito feia – disse Will, mas sua voz estava pasma.
O resto da sala era apinhado de equipamento militar, organizado nas prateleiras ou em caixas de metal empilhadas em torres contra as paredes. Cada caixa tinha em estêncil números e letras, e de vez em quando o nome do que havia ali dentro.
Will se ocupou abrindo as tampas de algumas caixas. A primeira revelou mais armas, enlaçada com estopa ensopada de graxa, lado a lado com pacotes de munição. Ele abriu a estopa de uma das armas e a passou ao pai.
– Outra Sten Gun. Todas em perfeitas condições – disse dr. Burrows, limpando a graxa do cano com a manga e revelando o brilho perfeito e azulado da arma. – Nova em folha.
– Podíamos pegar algumas – propôs Will.
– Acho que não – respondeu dr. Burrows, lançando ao filho um olhar severo e devolvendo-lhe a Sten. – Coloque exatamente onde você a encontrou.
A caixa seguinte revelou armas igualmente conservadas com a estampa Browning e muitas caixas de papelão ensopadas de óleo com munição e pentes de balas.
– Browning Hi-Powers – falou dr. Burrows, olhando as armas. – Companheiras… São da mesma época das Stens.
– Morteiros de Duas Polegadas – Will leu, olhando as caixas maiores no canto da sala. Ele foi até uma pilha de caixas. Muitas eram estreitas e continham munição, mas ele também encontrou umas caixas largas. Ao abrir a tampa de uma delas e retirar a camada de estopa que estava por cima, encontrou filas e mais filas de granadas de mão. Assobiou de surpresa e estava estendendo a mão para pegar uma quando o pai o impediu.
– Não, Will – alertou dr. Burrows. – É melhor não mexer nessas coisas.
– Hein? – Will franziu a testa.
– Sei que é seco aqui, mas os explosivos podem ficar instáveis com o tempo. E não sabemos a quem pertence tudo isso, embora certamente pareça que simplesmente deixaram aqui.
– Mas quem? E por quê?
– Ainda não sei – respondeu dr. Burrows –, mas tem o suficiente aqui para começar uma pequena guerra. – Ele esfregou a testa, deixando manchas de graxa preta. – Está vendo o pequeno símbolo em spray em todas as caixas… A seta com a linha por cima?
Will assentiu.
– Significa que pertenceram ao Ministério da Defesa… ou ao exército, então essa pode ter sido uma instalação militar, ou pode ter sido outra coisa totalmente diferente.
Will deu de ombros.
– O quê, o covil secreto do Dr. Evil?
Dr. Burrows meneou a cabeça como se o filho estivesse sendo ridículo.
– Não. Anarquistas… A extrema esquerda… Ou a extrema direita… O que você quiser. – Ele franziu o cenho. – Mas quem quer que fosse, tudo isso me parece muito oficial. Custou muito esforço e dinheiro. – Ele soprou pelos lábios de um jeito exagerado. – Quer dizer… Só a construção de uma hidrelétrica a esta profundidade já é uma proeza inacreditável de engenharia. E tudo o que vi…. Toda a instalação… Foi feita para durar. Eu apostaria que era…
– Sim? – Will o pressionou, ficando impaciente com as reflexões do pai.
– … um abrigo militar subterrâneo… Um abrigo nuclear… Talvez datando da Guerra Fria.
– Da Guerra Fria? – perguntou Will.
– Sim… Antes de sua época, Will, nos anos 1950 e 1960. Não foi bem uma guerra, como se pode pensar… Só um monte de ações absurdas entre os Estados Unidos e a União Soviética. Mas as pessoas realmente pensavam que o mundo ia se acabar numa guerra nuclear. Então cada país tinha seus planos de contingência, que incluíam a construção de abrigos nucleares… Até aqui, na Inglaterra – disse ele, depois se virou para sair pela porta. Will o seguiu, ainda segurando a pistola Browning Hi-Power. Dr. Burrows estava agitado com sua teoria, tagarelando a mil. – E se isto for um abrigo nuclear… Quer dizer que seria autossuficiente, com o próprio abastecimento de água, e deve haver alojamentos em algum lugar aqui embaixo.
Eles ignoraram as cabines restantes e abriram a porta no final do corredor. Foram recebidos por outra lufada de ar. Estava escuro ali dentro, até dr. Burrows localizar uma fila de interruptores ao lado da porta. Ele acendeu todos com a lateral da mão.
Uma série de luzes bruxuleou em sequência.
– Deus do céu – dr. Burrows arquejou.
Embora o teto fosse mais baixo do que a passagem, a área era imensa. E fila após fila de beliches estavam arrumadas a intervalos regulares no espaço.
– Aposto que cem homens podiam ser alojados aqui! – disse dr. Burrows.
Will correu ao primeiro beliche e tocou o travesseiro. Como todos os outros, era arrumado com lençóis brancos e cobertores marrons e ásperos.
– Uma cama de verdade! – Ele jogou a cabeça para trás e soltou um uivo que ecoou pelo chão. – Hoje posso dormir numa cama de verdade! – Depois correu entre os beliches para chegar às salas que ficavam do outro lado, cada uma delas com uma porta pintada de cinza e um número.
– Chuveiros! – gritou ele, curvando-se para dentro da primeira sala. Depois, quando examinava a seguinte: – Banheiros! – Vários aposentos depois ele gritou: – Comida! Tem comida aqui! – enquanto desaparecia dentro dela.
Dr. Burrows correu para se juntar ao filho.
Era a área da cozinha, com uma fila de fornos e uma chapa comprida, parecendo uma cozinha que se pode encontrar num restaurante grande. Mas o que mais interessou Will foi o grande número de latas nas prateleiras e em armários.
Will pegou uma lata retangular e grande. Não tinha rótulo, mas o conteúdo estava impresso na parte externa em pequenos caracteres azuis.
– Carne em conserva – ele leu. – Acha que isso ainda está bom?
– Pode ser – respondeu dr. Burrows, pegando a lata do filho para ver se tinha algum sinal de ferrugem ou vazamento. – Will, pode procurar um abridor de latas, por favor?
Capítulo Vinte e Dois
– Cuidado! – falou Chester, precipitado, gesticulando freneticamente para as sombras atrás de Martha quando ela entrava na parte da Caverna dos Lobos onde ele e Elliott esperavam. Ouviu-se um bufar e Bartleby apareceu plenamente à vista, de cabeça baixa, como se estivesse envergonhado. – É aquele maldito gato!
– Está tudo bem – disse Martha, acenando para o gato se aproximar. Ele se sentou a seus pés, olhando para ela. – Eu não podia ter deixado o gato lá fora, à mercê das aranhas e dos lobos.
– Mas ele quase atacou o Will. Ele ia atacá-lo – disse Chester, com o rifle pronto nas mãos. – Não podemos confiar nele.
– Você ouviu o que disse a gêmea Rebecca. Foi a Styx – disse Elliott despreocupadamente ao comer outro pedaço de carne de aranha.
– O que quer dizer? – perguntou Chester.
– Usaram a Luz Negra nele – respondeu Elliott. – Ele não teve alternativa, precisava fazer o que a gêmea Rebecca ordenou. Com a Luz Negra, os Styx podem vencer a mente dos homens mais fortes e torná-los seus escravos, e Bartleby é só um animal estúpido. De qualquer modo, ele pode ser útil – acrescentou ela.
– Eu é que devo ser o animal estúpido – grunhiu Chester, baixando o rifle, ainda olhando o felino com temor. – Devíamos ter feito hambúrguer de Bartleby no submarino.
Martha afagou a cabeça careca do gato, que ainda estava suja de suco de fungo.
– Não, Elliott tem razão… Ele é um caçador. Ainda pode vir a calhar – disse ela.
Enquanto o pai entrava na cabine de operação de rádio, Will se recostava numa das cadeiras de lona, com os pés na bancada. Meteu um garfo na lata grande de pedaços de abacaxi que tinha na mão e, pegando vários deles, espremeu na boca.
– Hum… Muito bom. Isso é que é vida, né, pai? – disse ele, mastigando.
– Não exagere nessa fruta… Seu corpo não está acostumado com isso – dr. Burrows o aconselhou, colocando uma marmita militar na bancada. Do bolso, retirou alguns pacotes pequenos embrulhados em papel alumínio. Will se sentou reto, imediatamente interessado.
– Trouxe uns biscoitos para você – disse dr. Burrows.
– Ótimo. E o que tem nisso? – perguntou Will ao ver o vapor subindo da marmita.
– Chá – respondeu dr. Burrows. – Prove um pouco.
– Tem cor de chá mesmo – observou Will, depois tomou um golinho. Ele franziu a cara. – Eca… Está ruim! É doce demais!
– É o leite condensado. Eu adorava quando era jovem… Costumávamos colocar em pêssegos…
Puxando a cadeira para o lado de Will, dr. Burrows começou a se recordar de uma tia-avó que Will não conheceu, ao mesmo tempo que mexia nos comutadores de vários aparelhos na bancada. Por fim, enquanto dr. Burrows expressava seus calorosos sentimentos pelo pudim de carne e rins que a tia-avó fazia especialmente para ele, empurrou um botão no dispositivo maior, e um mostrador no meio logo se acendeu com uma luz amarelo-clara. Várias válvulas no alto da unidade também se ativaram, emitindo um brilho rosado. De um pequeno alto-falante instalado no alto da parede, veio uma explosão repentina de estática, que deu lugar a um som que parecia ir e vir. Não era diferente do som de ondas se quebrando numa praia distante. Agora dr. Burrows havia caído num silêncio absoluto.
– Graças a Deus – murmurou Will, aliviado pelo pai ter interrompido suas reminiscências incessantes.
– Ah, eu sei… Isso pode ser nossa salvação – disse dr. Burrows, sem perceber o verdadeiro motivo para a observação do filho ao girar o botão do meio da unidade principal. Mas só teve o efeito de produzir mais explosões de estática e depois de vários minutos ele parou, meneando a cabeça. – Creio que parte das válvulas deve ter se queimado – disse ele, apontando os tubos de vidro que continuavam apagados no alto da unidade.
– Será que dá pra gente consertar? – sugeriu Will.
– Vi algumas sobressalentes em um dos depósitos, mas não saberia por onde começar. Tudo está um pouco fora de minha compreensão – resmungou dr. Burrows, como se estivesse irritado consigo mesmo. Ele suspirou e afundou na cadeira, brincando com um pacote de bolachas. – De qualquer modo, não tenho ideia do que significam todos esses ajustes ou o quanto desse equipamento funciona – disse num tom pesaroso. Ele se levantou e estalou a língua nos dentes várias vezes. – Pode ser uma perda de tempo, mas enquanto você está aqui, pode experimentar todos os comprimentos de onda, Will. Este equipamento devia ser usado só para comunicações pelo porto e, como não tem mais ninguém aqui, além de nós… – disse ele, mas não se incomodou em concluir a frase, saindo da sala.
Will assumiu, girando o botão principal lentamente e experimentando diferentes combinações de chaves. Ao fazer isso, repetia ao microfone, “Olá, olá, alguém aí?”, embora mal fosse inteligível, porque ele ainda se empanturrava de pedaços de abacaxi. Como seus esforços só pareciam resultar no estalo ocasional de estática do alto-falante e como ele também já estava farto da fruta, Will desistiu depois de um tempo.
– Não – disse a si mesmo, desconsolado. – É mesmo uma perda de tempo. – Abrindo o pacote, mordiscou um dos biscoitos secos enquanto olhava o resto da sala. Seu olhar caiu no par de telefones na parede. Ele se levantou e ergueu o fone do mais próximo, o vermelho, e o colocou na orelha para ver se tinha tom de discagem. Não ouvia nada, então empurrou o gancho no alto do telefone e discou números ao acaso para descobrir se fazia alguma diferença.
– O Batfone está com defeito – grunhiu ele quando não ouviu nada, recolocando por fim o fone no gancho. Riu consigo mesmo quando, por impulso, pegou o fone do aparelho preto ao lado e começou a discar o número de sua casa em Highfield. Metendo o dedo no disco, ele o girava. – Como é que alguém aguentava isso? – disse ao levar séculos para o disco girar de volta e ele poder discar o número seguinte. Pensou o quanto seria estranho se sua mãe atendesse. Seria uma conversa singular.
Will fechou os olhos e imaginou como poderia ser.
Click!
Oi, mãe, é o Will.
Ela sem dúvida ficaria furiosa com ele e o pai. Mas onde, em nome de Deus, vocês se meteram por todo esse tempo? Não tem ideia do que me fizeram passar! Vocês dois são uns pedantes egoístas – VENHAM PARA CASA AGORA MESMO!, ela gritaria a plenos pulmões.
Hum, mãe, não é assim tão fácil. Estamos a milhares de quilômetros abaixo da superfície, em alguma instalação secreta do governo…
Ele abandonou a conversa imaginária enquanto o silêncio continuava a reinar no fone.
– Ninguém em casa, ninguém em casa – murmurou, e estava prestes a recolocar o fone no gancho quando decidiu tentar de novo.
Lembrou-se do número do celular da mãe, embora ela raramente o deixasse ligado. Will terminou de discar e escutou. Houve uma explosão de ruídos que o deixou sobressaltado.
Na firma de advocacia onde trabalhava, sra. Burrows estava à mesa, digitando furiosamente. Usando fones, ela ouvia o ditafone e transcrevia uma carta de um dos sócios. Tinha a ver com um casal em processo de divórcio que brigava pela custódia da filha de cinco anos. A sra. Burrows imaginava a mágoa e revolta que se escondiam por trás da linguagem seca e jurídica da carta e achou tudo muito perturbador.
Pensando ter ouvido o celular tocar, ela tirou os fones e abriu a bolsa. O telefone ainda tocava quando o pegou. Atendendo, colocou-o no ouvido e escutou um estalo alto.
– Alô – disse ela, justo quando a linha ficava muda. Ela olhou o número. Não o reconheceu; certamente não era um número de Londres. – Mais uma porcaria de vendedor – disse, recolocando o telefone na bolsa e voltando a digitar.
Ao ouvir outra explosão muito mais alta de ruídos, Will afastou rapidamente o aparelho e encerrou a chamada.
– O que estou fazendo? – perguntou-se ele, mas se resolveu assim mesmo por uma última tentativa. No calor do momento, sua mente deu um branco e ele não conseguiu pensar em um número sequer para tentar. Não sabia o número da casa dos pais de Chester ou do apartamento da tia Jean, e como último recurso pensou em só tentar o serviço de emergência.
Mas, num átimo, lembrou-se do número que Elliott estivera balbuciando sem parar em seu estado febril e, conhecendo-o de cor, ele o discou de pronto. Novamente não parecia conseguir nenhuma ligação – na verdade desta vez nem mesmo houve o menor estalo no fone, então ele anunciou: “Aqui é Will Burrows. Estou ligando do fundo da Terra e eu vou voltar logo. Obrigado… Adeus!”, antes de bater o fone no gancho. Mastigando um dos biscoitos secos, ele foi descobrir o que o pai estava fazendo.
– Não sei como você consegue beber esse troço – disse Will ao se aproximar. Dando golinhos ocasionais de sua marmita, dr. Burrows estava recurvado sobre uma mesa que tinha montado na área principal de alojamentos. Em volta das pernas de sua cadeira, havia um sortimento de pastas, caixas e maços de papéis – ele claramente pegara tudo o que julgara útil e agora examinava.
Havia uma espécie de planta aberta na mesa, tão grande que cobria todo o tampo. Era de papel acinzentado, com uma ou outra área em tom pastel. Dr. Burrows terminava o chá e colocava a marmita em cima da planta quando uma área perto da marmita chamou a atenção de Will. Destacava-se porque era muito hachurada. Pelo formato, Will de imediato entendeu que devia ser o porto e o complexo onde eles estavam. Além do rio que parecia uma tira azul clara pela superfície da planta, pequenas linhas amarelas irradiavam da caverna do porto, de vez em quando cravejadas por triângulos vermelhos. Will supôs que eram marcadores de distância e correspondiam aos triângulos que viram pintados nas paredes da fenda, os marcos que os tinham levado ao porto.
– Alguma coisa interessante? – perguntou Will, voltando a cabeça para a planta.
– Na verdade, não – respondeu dr. Burrows num tom distante. – Só que eles investigaram a área circundante em busca de fonte de água doce.
Foi quando Will viu as tabuletas de pedra aninhadas em um lenço sujo e logo se interessou, porque antes só teve um breve vislumbre delas. Dr. Burrows tinha uma tabuleta na mão e a examinava atentamente.
– Posso dar uma olhada? – disse Will.
– Mas não deixe cair – murmurou dr. Burrows enquanto rabiscava alguma coisa ilegível num bloco.
Will estendeu a mão para o lenço e pegou uma tabuleta.
– Caramba! Você disse que o entalhe era mínimo, mas não pensei que fosse tão pequeno! – Ele ficou maravilhado, semicerrando os olhos para as inscrições complexas e os diagramas minúsculos.
– Por mais que eu me dedique a elas, não consigo entender nada da inscrição. Estou completamente empacado. – Dr. Burrows suspirou, recostando-se na cadeira com uma expressão resignada. – Lembro algumas palavras, mas não o suficiente. Preciso de alguém treinado em decodificação para me ajudar a decifrar tudo.
– Quer que eu tente? – ofereceu-se Will com entusiasmo.
– Não, é complexo demais – disse dr. Burrows. – Seria uma perda de tempo para você.
– O que acha que é este mapa? – perguntou Will ao pegar uma segunda tabuleta no lenço e comparar com a primeira.
Dr. Burrows virou para uma folha em branco do bloco onde começou a escrever loucamente. Depois se virou para que Will pudesse ver. Tinha desenhado um círculo com homenzinhos mínimos andando por dentro de sua circunferência e um sol estilizado bem no meio, de onde partiam raios irregulares.
– Este foi um mural que encontrei em um templo antigo nas Profundezas. Descreve um mundo dentro de um mundo – disse ele, depois suspirou.
– É, eu vi seu desenho disso – lembrou-se Will.
– Como? – gritou dr. Burrows, derrubando a cadeira para trás ao se colocar de pé. – Como pode ter visto?
– Eu já te falei, pai… Achamos umas folhas suas perto do Poro – disse Will.
– Sim, mas pensei que fossem ilegíveis. Pensei que estivessem estragadas pela água! – exclamou dr. Burrows.
Will ficou inteiramente confuso.
– Eu não disse isso. Algumas ficaram ensopadas, mas a maioria das que eu consegui pegar não estava tão ruim. Eu consegui ler, de qualquer forma.
Dr. Burrows cambaleou um pouco, como se estivesse sendo atingido na nuca. Tentou se sentar, refreando-se a tempo, ao perceber que a cadeira não estava onde deveria. Ele a levantou com impaciência e a endireitou, depois se sentou e começou a rabiscar em uma folha em branco como um maníaco. Quando terminou, segundos depois, empurrou o bloco para Will.
– Havia um desenho assim nelas?
Will olhou o esboço do pai e os três parágrafos dentro dele. As letras apressadamente compostas assemelhavam-se a mosquitos pelo modo como dr. Burrows as reproduzira.
– Sim, tinha uma folha dessas, com essas três áreas de escrita – disse ele.
– E pelo amor de Deus, onde está agora? – perguntou dr. Burrows.
– Coloquei num lugar seguro, na cabana de Martha.
– Na… cabana… de Martha – repetiu dr. Burrows lentamente, destacando cada palavra. Seu rosto já estava branco pelos meses em que morara nos subterrâneos, mas parecia a Will que agora tinha perdido todo o sangue.
– Por que… É importante? – perguntou Will, inseguro.
– Preciso desta página com a Pedra de Burrows para traduzir as tabuletas. Sim, é importante.
Will franziu a testa à menção da Pedra de Burrows, depois lançou um breve olhar ao pai para ver se ele falava a sério. Voltando a atenção às tabuletas, Will pegou outra no lenço.
– A Pedra de Burrows é como a Pedra de Rosetta – explicou dr. Burrows. – Tem três áreas distintas de escrita, todas dizendo a mesma coisa, mas uma está em fenício. Isso me permite traduzir as outras duas línguas, e não creio ter visto nenhuma das duas na superfície. Se eu a tivesse agora, poderia traduzir essas tabuletas e… – ele se interrompeu.
– E o quê? – disse Will, olhando de uma tabuleta a outra.
– Acho que pode ser o mapa deste mundo interior em que acreditava a antiga civilização. O Jardim do Segundo Sol.
– O Segundo Sol – repetiu Will, distraidamente.
Dr. Burrows ficou surpreso com a falta de reação de Will, mas a atenção do filho estava em outra parte. Ele deslocava as tabuletas pela mesa e pegava outras no lenço até que estivessem todas dispostas ali, com a exceção daquela em que o pai estava trabalhando.
– Posso pegar isso? – perguntou ao pai, indicando a tabuleta em sua mão. Dr. Burrows lhe entregou e Will a virou como as outras ao examinar as bordas, colocando-a cuidadosamente junto das demais. – Dominós – disse Will –, são como dominós. As bordas estão muito gastas, mas não percebe essas ranhuras pequenas? Olhe – disse ele, escolhendo uma para mostrar ao pai. – Esta tem quatro ranhuras na ponta e assim combina com a seguinte, que tem as mesmas quatro ranhuras. – Ele a recolocou no lugar e endireitou o corpo.
– Genial! – gritou dr. Burrows, examinando o arranjo atentamente, mas seus ombros caíram de novo. – Então agora eu tenho a sequência certa, mas não faz diferença nenhuma. Ainda preciso da Pedra de Burrows para decifrar as inscrições. E também não sabemos ainda onde o caminho começa.
Will ergueu as mãos.
– Tenho mais uma coisa para você! Espere aqui! – exclamou ele, correndo até seu beliche, onde pegou a mochila.
– Não tenho exatamente outro lugar para ir – disse dr. Burrows, intrigado.
Will correu de volta ao pai com algo na mão. Mas antes que mostrasse o que era, chamou a atenção para a tabuleta que aparecia primeiro em seu novo arranjo.
– Olhe isto aqui, pai. Vê o sinal… Bem aqui? – Ele apontou o símbolo de tridente entalhado minimamente no canto superior esquerdo da tabuleta.
– Claro – Dr. Burrows deu de ombros, como se não fosse nada de excepcional. – Encontrei algumas ocorrências deste símbolo nas Profundezas – acrescentou ele enquanto o filho mexia no maço de fotos que a Rebecca Um lhe dera.
– Isto pertenceu a um marinheiro do submarino. Veja a última delas. – Will baixou a foto diante do pai. – O mesmo símbolo – anunciou. – O marinheiro deve ter tirado a foto em algum lugar perto do submarino, perto o bastante para conseguir chegar lá sem ser apanhado pelos Faróis.
– Não! – gritou dr. Burrows. – Então, sem saber, eu podia estar no lugar certo o tempo todo!
– Então… Então precisamos ir pra lá agora! – exclamou Will, acompanhando o entusiasmo do pai.
Mas dr. Burrows meneou a cabeça.
– Não, Will, não podemos.
– E por que não? – perguntou Will.
– Porque é importante estabelecermos um caminho que possamos usar para voltar à superfície. Porque não quero que nos desliguemos da civilização novamente, se houver alguma emergência. Se pudermos navegar rio acima, teremos um meio seguro de descer aqui de novo. Podemos deixar que o rio nos leve. – Ele estava prestes a dizer mais alguma coisa, mas esfregou a testa. Quando finalmente voltou a falar, sua voz era quase um sussurro. – E eu preciso ver se sua mãe está bem. A essa altura, ela deve estar morta de preocupação… Afinal, não fui o único a desaparecer… Você e Rebecca também sumiram. Ela está totalmente só lá em cima.
Dr. Burrows não conseguiu olhar o filho nos olhos, o que o tornou suspeito de imediato. O pai nunca demonstrou preocupação com a mãe e Will se perguntou por que começaria agora.
– Além disso – soltou dr. Burrows, como se tivesse acabado de lhe ocorrer –, pensei que você tivesse um vírus para alguém na superfície. Você disse que era vital, não disse?
– Acho que sim – disse Will, sentindo-se arrastado de volta à realidade. Ele ficara tão emocionado com a perspectiva de novas aventuras com o pai que tinha empurrado a trama Styx para o fundo da mente. O pai viu a perturbação em seu rosto.
– Qual é o problema? – perguntou dr. Burrows.
– É que pode não ser realmente o vírus Dominion – respondeu Will. – Pode ser tudo uma perda de tempo.
– Por que diz isso?
Will franziu ainda mais a testa.
– Porque quase tudo o que as gêmeas Rebecca disseram ou fizeram era um truque ou uma mentira, e eu ainda acho que é estranho que a Rebecca Um tenha me dado o vírus. É ainda mais estranho que a Rebecca Dois soubesse do que ela fez… Lembra que ela me perguntou sobre isso no submarino?
Dr. Burrows pensou por um segundo.
– Apesar disso, tê-lo de volta parecia importante para elas, então talvez esse seja o vírus verdadeiro. E se você realmente acredita que é tão perigoso, precisa entregar às autoridades e deixar que cuidem do assunto.
Will assentiu, resignado. O pai tinha toda razão. Enquanto houvesse uma possibilidade de haver o vírus Dominion no frasco, por menor que fosse, era responsabilidade dele se certificar de que chegasse às mãos certas para que o plano dos Styx fosse frustrado.
– Tudo bem… Mas depois que chegarmos à Crosta e eu tiver cuidado dos frascos, eu vou voltar com você, não vou? Quero ajudar nessa busca, pai – pediu com a voz um tanto vacilante.
– Claro, claro – respondeu dr. Burrows, ainda evitando o olhar de Will ao se curvar para pegar uma pasta preta a seus pés. – Mas agora tenho mais uma coisa para você fazer.
Will pegou a pasta e examinou a capa de plástico, rachada onde se dobrava. A frente não trazia nada, a não ser algumas letras e números, então ele a abriu. Foi recebido por um esquema ampliado de uma peça de máquina.
– O que é isso? – perguntou, e depois, ao folhear as primeiras páginas, leu: – Manual de Operação de Motor de Popa? Espera que eu leia isso ou coisa assim?
– Sabe que eu não me entendo com nada mecânico. Talvez você possa estudá-lo enquanto eu preparo o barco. Se for o manual errado para o motor que achamos, tem outros numa estante no cubículo 23, junto com todo um monte de romances de Alistair MacLean… E alguns manuais de armas.
As orelhas de Will se empertigaram à menção de manuais de armas.
– Falou com o homem certo – disse ele.
Will passou as 48 horas seguintes lendo sobre como dar a partida e operar o motor de popa, de vez em quando dando um pulo no cais, para onde ele e o pai o haviam arrastado. Sem o conhecimento do dr. Burrows, Will também entrou furtivamente no arsenal para pegar uma seleção de armas, que ele aprendeu a manejar, desmontar e lubrificar em um cobertor aberto no chão de uma das salas laterais do abrigo nuclear.
Ao mesmo tempo, dr. Burrows fazia sua parte. Usou um reboque enferrujado para levar a lancha de fibra de vidro para o cais e a colocou na água. Certificando-se de que estivesse bem amarrada ao píer, carregou-a de provisões. Estava voltando aos depósitos quando esbarrou em Will na porta principal.
– A água quente está ligada – anunciou Will. Seu cabelo estava molhado e penteado para trás e o rosto, pela primeira vez em muito tempo, estava limpo do banho que tinha tomado. Também estava com uma muda nova de roupas, uma camisa verde-oliva e calças da mesma cor.
Dr. Burrows o fitou, boquiaberto.
– Pode usar o cubículo 31, do depósito do intendente para pegar as roupas, e o cubículo 27 para o banho. Deixei um pouco de xampu e sabonete ali para você – falou Will casualmente continuando a sair. Enquanto dr. Burrows o olhava partir, viu a Browning Hi-Power enfiada atrás da calça do filho.
– Will! Eu lhe falei para não…
– Não está carregada – respondeu Will sem vacilar um passo. Ele sorriu consigo mesmo depois de ficar fora da vista do pai, jogou o pacote de balas no ar e o pegou. Sabia que era improvável que dr. Burrows ouvisse os tiros de dentro do abrigo nuclear. – A prática faz a perfeição – disse consigo mesmo.
No dia seguinte, eles levaram o motor de popa para a lancha e Will conseguiu instalá-lo. Dar a partida é que foi mais problemático. O motor pegava e funcionava por vários segundos, depois morria. Will tentou ligar tantas vezes com o cabo de partida manual que não tinha mais força nos braços, e dr. Burrows teve de assumir. Transpirando e cobertos de graxa e sujeira, eles por fim conseguiram, e o motor vomitou uma fumaça preta por vários minutos em seu funcionamento irregular. Depois parou de falhar e permaneceu numa pulsação constante. O pai mostrou o polegar para cima, seu riso perdido no barulho do motor. Will virou o motor para que a hélice tocasse levemente a água, depois o acelerou. Uma torrente espirrou atrás da lancha.
– Tarefa cumprida – concluiu Will enquanto desligava o motor e os últimos ruídos de seu ronco ensurdecedor soavam na caverna.
– Excelente! – dr. Burrows o parabenizou. – Lembre-me de colocar a bordo algum combustível a mais antes de partirmos. – Depois que saíram do barco e pisaram no píer, ele olhou o filho.– Trabalho em equipe – disse, dando-lhe um tapinha gentil no ombro, e juntos voltaram ao alojamento.
Depois de um bom sono e um café da manhã, os dois saíram do abrigo e andaram pelo píer até onde a lancha estava atracada.
– Casaco legal, pai – disse Will, admirando o antigo casaco acolchoado que dr. Burrows encontrara. Com um capuz e fechado na frente por um cordão, era de um tecido muito pesado e castanho claro que parecia poder ficar em pé sozinho.
– É um Montgomery clássico, feito do tecido do cobertor Fearnought. Meu pai tinha um igual, que comprou numa loja de excedentes do exército. Lembro dele usando o casaco quando eu era garoto – disse dr. Burrows afetuosamente. Quando terminou de admirar o casaco novo, ele levantou a cabeça e percebeu as duas bolsas de viagem volumosas na cor cáqui que o filho carregava. – Pegou o bastante?
– Peguei alguns sacos de dormir e outros apetrechos que podem ser úteis – respondeu Will imediatamente, tentando ao máximo não deixar que o pai visse como as bolsas eram pesadas.
– Acho boa ideia ter algum lastro no fundo da lancha… As coisas podem se complicar – disse dr. Burrows.
Will olhou o bolso do casaco de combate que tinha requisitado.
– Só o que me preocupa mesmo são os frascos de Dominion. Não podemos perdê-los. De maneira nenhuma.
Eles andaram um pouco mais pelo cais e Will voltou a falar.
– Pai, sabe que os frascos são o único motivo para eu ir com você? Senão eu teria voltado direto para Chester e Elliott. E vou voltar para eles depois que entregar o vírus a alguém.
Dr. Burrows parou subitamente.
– Will, você deixou isso inteiramente claro. E não pense que também terminei aqui embaixo, entendeu? Eu só arranhei a superfície. – Ele meneou a cabeça. – Não, eu vou voltar, definitivamente, para continuar tudo o que comecei.
Ao andarem a distância restante até a lancha, o pai de Will murmurou bem baixinho:
– Se chegarmos em casa.
Eles guardaram o equipamento na lancha, e dr. Burrows se virou para Will.
– Quase me esqueci. – Ele tirou dois gorros de lã pretos do bolso do casaco e os dois os vestiram. – Para ajudar a espantar o frio.
– Boa ideia, pai – disse Will, sorrindo com ironia para o pai. Com o gorro baixo na cabeça e a barba rala, dr. Burrows parecia um velho capitão curtido pelo mar.
– Para o alto e avante! – proclamou dr. Burrows enquanto Will dava a partida no motor. Eles deram algumas voltas com a lancha pelo porto. Depois de pegar o jeito, Will fez o que o pai sugeriu e aumentou a velocidade antes de passar sob o arco e entrar no canal. A sugestão do dr. Burrows era certíssima – e Will descobriu que tinha de imprimir mais velocidade ainda para avançar contra toda a água que descia.
Deixaram a parte iluminada do canal para trás, com dr. Burrows postado na proa com a luz para iluminar o caminho. Ele agia como piloto, gritando para Will se houvesse afloramentos rochosos a evitar ou guinadas repentinas no canal. O percurso era mais complicado do que Will esperava. A lancha arremetia e logo ele e o pai ficaram ensopados até a pele dos borrifos do rio gelado e o manto ocasional de água que subia pela proa. Will ficou agradecido pelo gorro de lã e as camadas a mais de roupas que tinha vestido para a jornada.
O rio parecia continuar para sempre, subindo sinuoso pelas entranhas da Terra um quilômetro após o outro. O único sinal de que a raça humana já estivera ali aparecia nos grandes círculos brancos grosseiramente desenhados nas paredes ásperas – eram marcas para mostrar que direção tomar quando o rio se bifurcava, o que acontecia muitas vezes. Assim, enquanto dr. Burrows ficava de olho nelas, Will pilotava a lancha, sempre rio acima, até sua nascente.
Quando Will estava tão cansado que tinha dificuldades para controlar o motor de popa, o pai trocava de lugar com ele no leme. Embora o garoto quisesse dormir um pouco, era impossível, porque alguém precisava ficar na proa com a luz, ou eles viajariam cegos por toda aquela água que erguia-se em borrifos. Não havia nenhum aquecimento ali, mas pelo menos isso lhe dava uma oportunidade de descansar os braços doloridos.
Eles prosseguiram constantemente porque não havia onde parar, nada que lhes desse proteção da correnteza contínua. Deve ter se passado quase um dia, tempo em que dr. Burrows repetidamente conseguiu reabastecer o motor com combustível enquanto ele ainda estava ligado, quando Will localizou um sinal diferente – um círculo branco, mas desta vez com um quadrado preto no meio. Ele gesticulou para o pai avançar até o sinal. Ao seguirem mais desses sinais por uma curva, descobriram que o canal se alargava consideravelmente e tinha pelo menos cem metros de uma margem a outra.
Nessas águas menos turbulentas, eles perceberam algo claro ao longe e dr. Burrows seguiu para lá. Revelou-se um pontão de metal, que deve ter sido pintado de branco, embora agora estivesse muito descolorido pela ferrugem. Pouco além dele, viram um píer se projetando na água e um cais pequeno. Dr. Burrows desligou o motor e eles vagaram para a margem.
– Peguei! – gritou Will ao segurar uma grade de metal e fazer a lancha parar. Depois amarrou a corda da proa e eles desembarcaram.
– É bom voltar à terra firme – disse dr. Burrows, batendo os pés com prazer no terreno sólido. Tirou o gorro de lã e o torceu, enquanto Will dava uma olhada nos arredores. O cais era uma fração do tamanho daquele de onde partiram e ele voltou poucos minutos depois.
– Não tem muita coisa para lá, pai. Apenas uns tanques de combustível e uma construção pequena que está totalmente vazia, só tem um telefone.
– Não me surpreende – disse dr. Burrows. – Deve ser um posto de reabastecimento… Uma espécie de parada, onde a barcaça e os barcos podem pegar mais combustível. O que é danado de bom, porque já gastamos algumas latas de reserva. Eu começava a me perguntar se teríamos o suficiente para chegar à cabeceira.
– Então é melhor ver se ainda tem combustível nos tanques – disse Will, afastando-se, quando parou e se virou. – Pai, estamos quase chegando?
Dr. Burrows riu, metendo o dedo na orelha para se livrar da água.
– Você me perguntava isso quando íamos em nossas excursões de carro para procurar fósseis. Você não aguentava a espera. Lembra?
Will sorriu.
– Bom, estamos quase chegando?
– É difícil dizer, mas estimo que ainda não passamos de um terço da distância – disse dr. Burrows. – Talvez menos. – Ele bateu os braços várias vezes, depois deu uns pulos.
– Por que está fazendo isso? – perguntou Will, intrigado.
– Não notou que quando você se mexe parece meio lento? – Ele pegou a mochila que tinha trazido da lancha e a levantou devagar. – Cada vez parece mais pesada. Quando chegarmos à superfície, vamos sentir que somos de chumbo.
– É, de volta à gravidade total. Eu não tinha pensado nisso – disse Will, depois suspirou. – Não vamos mais ter superpoderes.
Eles montaram acampamento no prédio, acendendo um fogão de gasolina na porta para se aquecerem e secar as roupas e botas encharcadas. Depois de comer um pouco, enroscaram-se nos sacos de dormir e estavam profundamente adormecidos em minutos.
Will foi despertado pelo pai passando uma marmita de líquido quente e fumegante por seu nariz.
– Eca! Chega desse seu chá – disse Will, depois gemeu. – Não posso dormir mais uma horinha…? Estou acabado.
– Mexa-se, preguiçoso. Vamos terminar essa viagem – disse dr. Burrows, sentando-se nos calcanhares.
Apesar dos protestos de Will, ele se levantou e os dois voltaram à lancha, encontrando várias outras estações de reabastecimento antes de finalmente, um dia e meio depois, chegarem a um lugar muito maior.
– Acho que pode ser ali – gritou dr. Burrows do leme.
Capítulo Vinte e Três
Nos arredores de Cardiff, um homem destrancou a porta da frente para entrar. A casa estava inteiramente às escuras, mas ele deixou as luzes apagadas ao colocar o guarda-chuva na mesa do hall e ir para a cozinha. Ainda sem iluminação nenhuma, ele foi até a cafeteira e, vendo se tinha água, ligou-a. Parecia olhar a luz vermelha na base da cafeteira enquanto a água aquecia e soltava borbulhos, até que ele foi a um armário da cozinha para pegar uma caneca.
– Sam – disse Drake do escuro.
O homem ofegou de surpresa, deixando cair a caneca, que se espatifou no chão.
– Meu Deus… Drake! É você, Drake?
– Oi, Sam – disse Drake. – Desculpe por te dar um susto desses, mas se você deixar as luzes apagadas…
– Pensei que você estivesse morto – disse o homem, mal tendo respirado direito antes de sua voz ficar furiosa. – O que está fazendo aqui? Não devia chegar perto de mim. Eles podem estar vigiando.
– Não, eu verifiquei se era seguro.
– Nunca é seguro – rebateu Sam.
– Você sempre foi meio nervoso – disse Drake, meneando a cabeça. – Aliás, como está a família?
– Não sei… Me diga você. Não posso mais vê-los… Tive de me afastar deles, para que não corressem riscos. – Sam foi até a pia, pisando na caneca quebrada. – Só espero que você não tenha sido visto vindo aqui – disse, ainda claramente muito nervoso. – Sabe que eles desmantelaram a rede, não sabe? E que a maior parte das antigas equipes está morta, ou enterrada tão fundo que pode muito bem estar morta?
– Aham – respondeu Drake despreocupadamente, o que pareceu enfurecer ainda mais o homem.
– Ah, desculpe. Não tinha percebido que era uma visita social. Eu lhe ofereceria um café, mas acabo de quebrar minha única caneca.
– Preciso de ajuda – disse Drake.
– Como vou saber se eles não o pegaram? – perguntou Sam. – Você esteve fora… Quanto tempo mesmo?… Quatro anos. Eles podem ter mandado você aqui. Como vou saber se posso confiar em você?
– Eu posso lhe fazer a mesma pergunta. Como vou saber se posso confiar em você? – retorquiu Drake.
– Não precisa… Meus dias de tocaia acabaram. Não sou mais aquela pessoa e você está por conta própria, companheiro – disse Sam, depois suspirou fundo. – Nem sei como um dia pensamos que podíamos vencer. Eles são inteligentes demais e muito bem estabelecidos. É uma disputa impossível.
– Pelo amor de Deus, homem, não pode chamá-los pelo nome? Estamos falando dos Styx – resmungou Drake.
O homem não falou ao dar mais um passo para a janela e se encostar na pia. A luz de fora era forte o suficiente para Drake ver seu perfil, e ele usava óculos escuros.
– Tem alguma coisa errada com você? – perguntou Drake.
– Eles me cegaram, Drake. Não enxergo nada.
– Como? Como diabos isso aconteceu?
– Acho que usaram ondas subsônicas… Parecidas com a tecnologia de luz negra, mas numa escala muito maior – respondeu Sam. – Eu estava indo de carro a um ponto de encontro ao norte de Highfield quando parei num cruzamento. Ouvi um ruído baixo e grave, como se eu estivesse debaixo da água… Parecia que havia uma vibração dentro da minha cabeça. Não consegui me mexer, nem um músculo. Não sei o que aconteceu em seguida, mas alguns dias depois eu estava no hospital, com uma atadura nos olhos. Os Styx me tiraram a visão – disse ele, usando o nome pela primeira vez, cuspindo-o como se fosse veneno. – Ainda me espanta que não tenham me matado.
– Talvez tenham mandado um sinal para o resto de nós – disse Drake com brandura. – Um aviso.
– Talvez – Sam repetiu. – Mas não posso voltar à ativa, não como estou agora, Drake, mesmo que eu quisesse.
– Acabo de chegar das Profundezas. Lamento não ter tomado conhecimento disso antes.
– Não, como poderia? – disse Sam numa voz oca.
– Quem será que eles pegaram na Crosta para ajudar a desenvolver a tecnologia subsônica? – refletiu Drake.
– Talvez seja feita lá… Talvez os cientistas da Colônia tenham feito sozinhos.
Drake pigarreou.
– Preciso ir – disse ele.
– Uma coisa antes de ir embora… Imagino que se lembre da instalação que montei num servidor remoto da universidade quando formamos uma rede, lembra? A troca de mensagens seguras de que ninguém podia saber?
– Claro – confirmou Drake.
– Bom, alguém soube – disse Sam.
– O que quer dizer?
Sam esfregou a testa.
– Não sei por que eu nunca desativei o servidor quando tudo desmoronou, mas ainda checo de vez em quando. Alguns dias atrás havia uma mensagem para você. Tinha muito ruído, mas parecia vir de alguém chamado Will Burrows. Esse nome significa algo para você?
– Will Burrows… – Drake repetiu em voz baixa, sem reagir à informação, embora seu coração praticamente tivesse parado.
– Não, não me lembra nada, mas obrigado mesmo assim. Vou discar para o servidor e ouvir – disse Drake. – E desculpe por ter invadido sua casa desse jeito. Boa sorte, Sam.
– Antes de ir, posso fazer alguma coisa por você? Quer comer alguma coisa? – Sam ofereceu, mas Drake já havia partido.
– Mas o rio continua para lá – Will apontou para o pai enquanto eles andavam pelo cais comprido, com as roupas ensopadas pingando e as botas chapinhando. – Não temos que seguir o rio?
– Talvez nunca chegue à superfície – disse dr. Burrows, dando de ombros. – Além disso, olhe só todos esses prédios… e o guindaste. – Ele e Will pararam e contemplaram as estruturas à frente. – Este lugar tem de ser uma área de carregamento para a viagem de descida. Em especial por isso – acrescentou ele, apontando um grande arco no final do cais, com as bordas pintadas de branco.
Eles se aproximaram do arco.
– Grande o bastante para passar um caminhão – observou o dr. Burrows.
– Agora não – disse Will enquanto chutava a parede de tijolos que a lacrava completamente.
Mas dr. Burrows já andava decidido para as sombras. Will foi atrás dele e encontrou o pai perto de uma porta larga. Como o arco, o batente de concreto tinha sido pintado de branco.
– Entrada de pessoal, muito provavelmente – sugeriu dr. Burrows. Também tinha sido bloqueada e ele colocou a palma da mão na superfície. – Blocos de cimento – disse. Ele testou várias partes da argamassa que escapava das junções entre os blocos cinza e parecia um pouco com pasta de dente seca, puxando um pedaço dela até sair em seus dedos. – Trabalho porco. Foi feito com pressa.
– E agora? – perguntou Will.
– Se não acharmos uma saída alternativa, não deve ser muito difícil derrubar isso aqui.
Depois de uma rápida busca pelas construções e o restante do cais, eles perceberam que aquela era a única saída possível.
Dr. Burrows bateu palmas.
– Pegue as ferramentas, por favor?
Will voltou à lancha e subiu a bordo. Considerou suas duas bolsas de equipamento. Se o pai queria derrubar uma parede, ele podia pensar num jeito mais rápido de fazer isso. Mais sujo, porém mais rápido.
– As ferramentas! – gritou dr. Burrows com impaciência e Will disse a si mesmo que podia ser mais sensato guardar segredo sobre os explosivos que tinha escondido. Saindo da lancha, ele correu com o velho saco de lona com as ferramentas que dr. Burrows pegou da intendência no abrigo nuclear.
Dr. Burrows fuçou o saco até achar um pé de cabra comprido. De imediato começou a trabalhar na parede, usando a ponta mais fina da ferramenta para romper a argamassa das junções entre os blocos.
– Mole como glacê de bolo – murmurou consigo mesmo, deslocando o material sem dificuldade. Depois de limpar argamassa suficiente em volta de um dos blocos, meteu o pé de cabra por baixo dele e começou a alavancá-lo. – Lá vamos nós – disse quando o bloco finalmente se soltava, caindo a seus pés. – Conseguimos! E só tem uma camada de espessura!
Com Will a seu lado, ele ergueu o globo luminoso para a abertura. Só o que conseguiam ver era a escuridão do outro lado.
– Precisamos alargar isso – declarou dr. Burrows, colocando o pé de cabra nas mãos de Will. Antes que o garoto tivesse a oportunidade de responder, o pai murmurou: – Preciso de algum silêncio para pensar – e se virou abruptamente, afastando-se.
– Pensar no quê? – disse Will às costas do pai, mas este fingiu não ter ouvido. Enquanto ele chapinhava na escuridão, Will sabia que o pai ia tirar uma soneca e que ele ficaria ali para fazer o trabalho pesado sozinho.
– Nada muda – queixou-se Will ao começar a trabalhar no bloco seguinte. – Nada nunca muda.
Will abriu um buraco com largura suficiente para que os dois passassem, depois foi chamar o pai. Encontrou-o esticado ao lado do fogão a gasolina, meio adormecido.
– Como andam as reflexões? – perguntou Will.
– Hum… Bem – disse dr. Burrows, sonolento. – E a parede?
– Acabei. Tem uma sala do outro lado.
Por insistência do dr. Burrows, eles descarregaram tudo da lancha e a retiraram da água, deixando-a no cais. Depois de organizarem o que precisavam levar, aproximaram-se da abertura que Will fizera.
– Depois de você – disse dr. Burrows.
Seguido pelo pai, Will subiu no que se mostrou um corredor cheio de tambores vazios e algumas tábuas velhas. Logo deram numa porta sólida de metal, com duas maçanetas de um lado. Com uma combinação de puxar, chutar e xingar, conseguiram colocá-las na posição de abertura, depois empurraram a porta.
– Chega de água! – exclamou Will ao sentir um fluido grosso e muito fedorento inundando em volta deles. Arquejando por causa do fedor, eles entraram numa sala que tinha cerca de vinte metros de largura, com filas de armários de cada lado. Na extremidade havia outra porta, mas estava tão enferrujada que desistiram de abri-la. Também começavam a se sentir meio tontos do fedor.
– Pai! – disse Will com a voz abafada, porque tapava o nariz. Ele descobrira que o que parecia ser um armário era na verdade uma entrada alternativa. A sala lateral tinha cerca de dois metros quadrados e havia degraus largos instalados nas paredes. Will os subiu correndo e abriu caminho por umas tábuas podres no alto.
– Cuidado! – gritou o pai quando pedaços de madeira caíram nele, mas Will não se importou, queria sair dali.
Forçou a entrada por um arbusto espinhoso, depois se colocou de pé.
Estava a céu aberto.
– A Crosta – ele disse, ofegante. Cambaleou um pouco ao virar a cabeça e ver o céu amplo. Por algum motivo teve vontade de voltar a descer – era demais para ele.
– Mas que horas serão agora? O anoitecer? – ponderou dr. Burrows enquanto se endireitava ao lado de Will. – Ou o amanhecer? – acrescentou, com a voz melancólica ao espiar o céu escuro e sem nuvens. Will se virou para ele.
– Pai! Nós saímos! Conseguimos! – ele exclamou. Nem acreditava que o pai não estivesse eufórico. – Voltamos para casa!
Dr. Burrows não respondeu de pronto e quando falou sua voz destilava decepção.
– Não é exatamente o grand retour que eu tinha em mente, Will. Depois de tudo o que vi e todo o trabalho que fiz lá embaixo… – Ele apertou o calcanhar na relva comprida diante dele – … eu queria voltar com algo que embasbacasse o mundo… Queria abalar a comunidade da arqueologia. – Respirando fundo, ele prendeu o ar por uns segundos. – Em vez disso, só o que tenho para mostrar é um saco de ferramentas da Guerra Fria… – disse, deixando-o cair no chão com estrondo – … e um dos piores penteados da história. Não, meus estimados colegas terão apenas minha palavra para acreditar em tudo o que vi… e… bom… isso não vai acontecer, vai?
Will assentiu, agora entendendo o motivo da depressão do pai. Ele se perguntou se devia levantar de novo a questão dos Styx. O pai teria uma decepção se pensava que teria liberdade para publicar todos os seus segredos, porque muitos eram também segredos dos Styx. Eles nunca o deixariam fazer isso. Mas Will sabia que mencionar o assunto provavelmente resultaria em outra discussão com o pai, e ele não estava com humor para isso. Estava morto de cansaço para entrar nessa questão agora.
Em vez disso, puxou a folha de uma plantinha e a esfarelou na mão, sentindo seu cheiro, sentindo o cheiro de seu verdor. Já fazia algum tempo desde que encontrara alguma coisa remotamente parecida com isso.
– Onde acha que estamos? – perguntou.
– Bom, uma coisa é certa… Não é um vulcão extinto na Islândia. – Dr. Burrows sorriu enquanto lançava a luz da lanterna em volta, pegando com o facho a folhagem das árvores maduras que pareciam estar em toda parte.
Will deu alguns passos.
– Talvez nem seja a Inglaterra. Nós andamos muito.
– Sinceramente, duvido de que tenhamos ido tão longe.
Na luz que esmorecia, eles começaram a explorar, abrindo caminho pelo matagal.
Parecia haver muitas construções abandonadas concentradas em uma área relativamente pequena. E o que podia ter sido uma estrada corria entre elas, embora tanto mato tivesse invadido o asfalto que era difícil diferenciá-la da vegetação circundante.
As construções eram de tijolos, de um ou dois andares de altura, e quase todas tinham as janelas quebradas. Não foi problema para Will e o pai entrarem, porque as portas estavam abertas ou fora de suas dobradiças. Em seu interior, o piso era salpicado da tinta que descascara do teto, dando a impressão de ser coberto de neve. Will e dr. Burrows exploravam o primeiro andar dessa construções quando, ao longe, viram os faróis de um veículo cortando a escuridão que aumentava rapidamente.
– Não sei quem são – sussurrou dr. Burrows –, mas não quero me misturar com eles. Acho que temos de nos esconder por algumas horas e dar uma olhada no lugar de manhã cedo.
– Claro – concordou Will, na esperança de que o pai sugerisse isso mesmo, pois estava caindo de cansaço. Eles encontraram um canto seco em um dos cômodos do primeiro andar e entraram nos sacos de dormir.
Deixaram o globo luminoso no chão entre os dois, meio coberto para que a luz não alertasse ninguém de sua presença. Com os olhos cansados, Will viu o galho de uma árvore que tinha crescido por uma das janelas quebradas. Quando finalmente não conseguia mais manter os olhos abertos, ele os deixou fechar e encheu os pulmões de ar frio. Podia ter alguma relação com suas origens na Colônia, de onde viera sua verdadeira família, ou porque ficou muito tempo nos subterrâneos, mas ele descobriu que tinha uma sensibilidade incrível aos ritmos da superfície. E não eram os insetos cricrilando ou o ocasional canto de um pássaro, mas os ritmos do silêncio, os ritmos da natureza. Will quase podia sentir a vegetação crescer em volta dele.
Mais do que isso, porém, ele sentia falta dos ritmos que tanto haviam feito parte de sua vida nas profundezas da Terra – a acomodação quase imperceptível de pedra e solo, e os odores que de algum modo interagiam com a base do nariz, que pareciam primitivos, básicos e seguros. Embora ele não dissesse nada ao pai, já sentia falta de sua existência subterrânea. E com esse pensamento desbotando em sua mente, ele caiu num sono profundo.
Will rolou de costas e abriu os olhos.
Soltou um grito quando a luz forte do amanhecer queimou suas retinas e rapidamente virou a cabeça para as sombras, protegendo os olhos. Depois de muito piscar, aos poucos se voltou para a luz, ainda protegendo o rosto. Ao sair do saco de dormir e calçar as botas, ele sentia que cada movimento que fazia era incrivelmente pesado, depois percebeu que eram os efeitos da gravidade. A gravidade normal.
– Bom dia – disse o pai animadamente, pisando em cacos de vidro ao entrar na sala.
– Bom dia – respondeu Will, abrindo um bocejo cavernoso.
Dr. Burrows o olhou.
– Sente-se mal?
– É – disse Will, dando outro bocejo.
– Pode estar sofrendo de uma forma de jet lag. Lag do subterrâneo – disse dr. Burrows com uma risada ao acender o fogão e colocar uma panela de água para ferver. Ele olhou para o relógio e depois para Will. – Você nem sabe quanto tempo dormiu ou que horas são, não é? – Ele não esperou que o filho respondesse. – Percebe que provavelmente esteve vivendo em dias de mais de vinte e quatro horas? Seu relógio biológico está uma bagunça.
– Como assim? – perguntou Will, não porque estivesse interessado, mas porque era o que o pai esperava dele.
– Na ausência de luz do dia, o nível de melatonina no cérebro não segue os padrões normais. Deve aumentar quando o sol se põe, e assim você fica sonolento. – Dr. Burrows pegou o globo luminoso, examinando como o fluido dentro dele tinha se tornado preto feito breu na presença da luz natural. – No subterrâneo, só o que temos é isto. A luz que emite se aproxima da luz do sol, mas está sempre acesa, e não segue a sequência de noite e dia a que estamos acostumados…
– Ah, pai, não pode me falar disso em outra hora? – Will pediu. – Não estou apreendendo muita coisa.
O pai caiu num silêncio aborrecido, que continuou enquanto bebiam o chá superadoçado.
– Muito bem – começou dr. Burrows –, se estiver pronto para me ouvir agora.
Will murmurou que sim.
– Estamos num campo de pouso abandonado… Não sei bem onde fica, mas sem dúvida é a Inglaterra… E parece haver uma patrulha de segurança, mas não são soldados. Talvez seguranças particulares. Assim, vamos, guarde o que precisamos levar e esconda o resto aqui.
– Por quê? Por que tanta pressa? – perguntou Will.
– Porque vamos para Londres – disse dr. Burrows.
Eles deram uma rápida olhada na base enquanto dr. Burrows tagarelava o que pensava ser cada prédio. Descobriram que um deles tinha terra acumulada pelas paredes e também uma parede grossa na frente da entrada – dr. Burrows disse que era para proteger de bombardeios. O interior fora esvaziado, a não ser por um sistema de condicionamento de ar antiquado e metros e mais metros de cabo de eletricidade correndo para todo lado. Dr. Burrows disse que achava que era o centro de controle. No lado oposto do prédio, havia outra entrada, mas este lugar mostrou um propósito mais macabro. Eles se viram em uma sala comprida, com uma série de estantes de metal encostadas numa parede. Cada estante tinha três prateleiras, e na ponta de cada prateleira havia um número em estêncil na parede caiada.
– Desinfetante – anunciou Will, farejando o ar. – Isto era um hospital ou coisa assim?
– Provavelmente um necrotério – disse dr. Burrows.
– Como é?… Para cadáveres? – perguntou Will.
O pai assentiu enquanto eles saíam de novo para a luz. Ele apontou um pináculo de igreja ao longe.
– Vamos para lá… Deve haver uma estrada por perto.
Eles deram num trecho imenso de asfalto, rachado e coberto de pilhas de concreto quebrado.
– Será que isto era a pista? – perguntou Will, olhando para os dois lados e semicerrando os olhos para as grandes estruturas que pareciam depósitos ao lado.
– Chamavam de hangares classe C – disse dr. Burrows, percebendo para onde Will olhava. – Tudo isso é do pós-guerra, como o abrigo subterrâneo que construíram abaixo.
Atravessando um campo, Will e o dr. Burrows passaram por uma sebe, desceram pela beira e se viram numa estrada de uma pista, que eles seguiram. Levou-os a um vilarejo e dr. Burrows foi diretamente para a única loja do lugar, uma combinação de agência postal com loja de conveniência.
Antes de entrarem, Will fechou a mão no braço do pai.
– Dinheiro! Não temos dinheiro algum!
– Ah, não temos? – respondeu dr. Burrows. Com muita cerimônia, desafivelou o cinto e o tirou. Havia um fecho por dentro do cinto que ele abriu, depois pegou um saco de polietileno preso por um elástico. Dentro dele havia um rolo de cédulas, que ele contou e enfiou no bolso. – Precisamos do suficiente para cobrir qualquer despesa de viagem, então não enlouqueça aí dentro, Will. – disse ele.
Um sino tocou acima da porta quando eles entraram e um homem corpulento saiu aos tropeços de uma sala dos fundos. Will pegou algumas batatas chips e uma lata de refrigerante na geladeira, enquanto dr. Burrows só tinha olhos para a prateleira de chocolates, acrescentando um jornal após pensar melhor.
– Parece que será um lindo dia – disse o homem com simpatia, ofegando um pouco ao falar. Estava com uma camisa marrom xadrez e uma gravata de tricô, que parecia ter sido feita de um material mais adequado para um par de meias.
– É verdade – concordou dr. Burrows. Ele limpou a garganta e disse: – Posso perguntar exatamente onde estamos?
– Onde estamos? – O homem somava o valor dos produtos, mas parou para pôr os olhos no dr. Burrows.
– O nome do vilarejo?
– West Raynham – respondeu o homem, meio desnorteado.
– West Raynham – repetiu dr. Burrows várias vezes, como se tentasse se lembrar se já tinha ouvido o nome. – E que condado é?
– Norfolk… norte de Norfolk – respondeu o homem, agora olhando com curiosidade para Will.
– Estamos na estrada há muito tempo – explicou dr. Burrows.
– Ah – o homem assentiu, abrindo a caixa registradora.
– E se quisermos ir para Londres, qual seria o melhor caminho? – perguntou dr. Burrows enquanto lhe entregava uma nota amassada de vinte libras.
– Pela estrada? – disse o homem, alisando a nota entre os dedos troncudos e estendendo-a na luz para verificar a marca d’água. Ele pareceu satisfeito e colocou o dinheiro na bandeja da caixa.
– Não, de ônibus ou trem.
– Então vai querer ir à cidade mais próxima… Fakenham… A uns dez quilômetros daqui. – O homem apontou a direção, depois pôs a mão na boca enquanto tossia. Respirou como um asmático vária vezes antes de continuar. – Pode pegar um ônibus especial de lá para Norwich e depois o trem. Tem também um ônibus especial duas vezes por dia de Fakenham a Londres… É lento, mas é mais barato.
– Então será o ônibus especial – decidiu dr. Burrows. – Muito obrigado – disse ele ao pegar o troco.
Will segurava a porta aberta para o pai que de repente parou, franzindo a testa como se tivesse esquecido alguma coisa. Virou-se para o homem que ainda estava atrás do balcão.
– A propósito, não houve nenhuma epidemia aqui na Inglaterra nos últimos meses, houve?
– Epidemia? – Will ouviu o homem perguntar.
– Um surto de alguma doença, com gente morrendo? – esclareceu dr. Burrows.
– Não, nada desse tipo – respondeu o homem num tom reflexivo. – Um vírus estomacal meio chato, só isso.
– Foi o que pensei. Obrigado novamente – disse dr. Burrows. Enquanto a porta se fechava a suas costas, ele se curvou para Will. – Lá se foi a praga Styx varrendo a população – cochichou ele teatralmente, como se tivesse a ousadia de mencionar um segredo terrível.
– Eu não disse que já aconteceu – Will se defendeu. – Nem vai acontecer, se eu puder interferir, e eu posso, com os frascos que tenho.
– Não, tem razão – disse dr. Burrows, sem nenhuma convicção. – Ainda há tempo de salvar o mundo.
Will ignorou os comentários do pai enquanto eles se sentavam num muro na frente da loja, desfrutando de suas compras. Saboreando cada porção da batata chips que comia com uma Coca-Cola Diet, Will fechou os olhos, em êxtase.
– Nunca pensei que sentiria tanta falta dessas coisinhas – disse ele.
Dr. Burrows estava em silêncio e comia suas barras de chocolate.
– Nem me fale – disse ele ao engolir a última delas. Depois ele pulou do muro. – Chocalha, camaradinha! – anunciou ele com exuberância, lançando o braço pelo ar. Quando Will o olhou, ele sorriu feito um idiota e acrescentou: – Estou brincando, Will… Não entendeu? Chocalha… Estamos num campo de pouso… É o que faziam com os aviões antigos… Davam uma chocalhada para girar a hélice e acabo de comer chocolate! É uma piada.
– Está se sentindo bem, pai? – perguntou Will. O pai se comportava de um jeito estranho e não era costume dele fazer piadas.
Dr. Burrows franziu o cenho.
– Acho que estou com um pico de açúcar – admitiu. – Posso ter exagerado.
– Pode mesmo – disse Will, saindo do muro.
Mas dr. Burrows ainda estava empolgado e se recusava teimosamente a investigar se havia um ônibus que pudessem pegar para a cidade próxima.
– A caminhada vai nos fazer bem. Rumo a Fakenham – declarou ele dramaticamente, andando pelo resto do vilarejo.
Quando finalmente chegaram a Fakenham, com calor e cansados, eles descobriam que era dia de feira. Os comerciantes colocavam os produtos nas barracas e bebiam chá em copos de isopor. Dr. Burrows encontrou o ponto de onde partiam os ônibus e procurou o próximo para Londres no quadro de horários. Tinham algumas horas sobrando e andaram pela praça principal enquanto cada vez mais gente chegava para a feira. Como a área ficava cada vez mais apinhada, Will se sentiu decididamente pouco à vontade. Ficava olhando por sobre o ombro, tentando ver cada um deles. Mas era muita gente.
– Pai – disse ele, apontando o polegar para um café na rua.
– E por que não? Eu mataria por uma xícara de café – concordou dr. Burrows. Ele hesitou. – Will, cuidado com o que come. Você viu o que aconteceu comigo – aconselhou ele seriamente. – Precisamos evitar açúcar ou gordura demais porque simplesmente não estamos acostumados com isso. – E apesar dos apelos de Will para ter um café da manhã inglês completo, eles pediram torradas e alguma coisa para beber, e depois pegaram uma mesa no canto.
As pessoas das outras mesas os olhavam com cautela, não por causa dos uniformes do exército verde oliva, que não ficavam tão deslocados na cidade, mas porque, Will supôs, o cabelo dos dois estava muito sujo e estranho. Will virou uma das trancinhas brancas entre os dedos e examinou o cabelo espigado do pai. Dr. Burrows parecia um punk velho sentado ali, envolvido em seu jornal. Will se curvou para ele.
– Não acha que precisamos dar um jeito em nossos cabelos? Imagino que a gente esteja chamando atenção demais e não queremos a polícia nas nossas costas, não é? Não se esqueça de que estamos desaparecidos, pelo que sei.
Dr. Burrows pensou na sugestão do filho, depois assentiu.
– Não é má ideia, Will – concluiu. Ele foi perguntar à mulher do balcão onde ficava o barbeiro mais próximo e os dois foram para lá.
Will não ficou muito seguro quando o pai pediu ao barbeiro um corte atrás e nas laterais para os dois, e ainda menos quando viu pelo espelho seu cabelo comprido ser cortado. Porém, quando os dois terminaram, tinham um corte de cabelo novo e certinho que combinava muito com os trajes militares. O ônibus especial estava no horário e eles embarcaram. Mas a viagem foi incrivelmente lenta; o ônibus parecia parar em cada cidade no caminho, embora Will e dr. Burrows aproveitassem a oportunidade para colocar o sono em dia. Quando ficaram presos no trânsito perto de Londres, Will entreabriu um olho e avaliou as filas de carros e caminhões nas outras pistas, e a silhueta da cidade ao longe.
– Gente demais – murmurou sonolento, depois voltou a dormir.
Na metade da tarde, o ônibus finalmente parou e a porta se abriu com um silvo pneumático.
– Euston Station! Todos devem desembarcar! – gritou o motorista.
– Nunca vou me acostumar com isso – murmurou Will enquanto eles iam para o saguão da estação, onde andava uma grande multidão e eles ouviam o constante ronco do trânsito da Euston Road, perto dali. Dr. Burrows não parecia nem um pouco preocupado com isso.
– Rápido… Aquele ônibus! Vai nos levar a Highfield! – exclamou ele, apontando. Depois ele ficou confuso. – Mas onde estão os de dois andares?
PARTE CINCO
Highfield, Outra Vez
Capítulo Vinte e Quatro
Depois de desembarcarem do ônibus em Highfield, dr. Burrows inesperadamente desceu a High Street em vez de subi-la.
– Só quero dar uma olhada no museu, Will – disse ele.
– Pai… Não é seguro. Acho que a gente não… – Will começou a protestar, mas pelo modo decidido como o pai andava, com o queixo empinado, ele sabia que estava desperdiçando seu fôlego.
Chegando ao museu, dr. Burrows subiu a escada e empurrou a porta, com Will um pouco atrás.
Will achou que o hall principal estava mais iluminado do que se lembrava quando o pai deu alguns passos e estacou. Dr. Burrows avaliou a cena como se fosse dono do lugar, até que seu olhar caiu num canto distante.
– O que é aquilo ali? – exclamou ele, voltando a andar de imediato.
Suas botas guincharam no piso de taco encerado ao parar inesperadamente na frente de um mostruário alto de vidro. Nele um manequim exibia uma farda de sapador da infantaria da Segunda Guerra Mundial, postado em toda sua glória. – Mas o que fizeram com meu mostruário militar? – murmurou, lançando-se para o par de mostruários gastos em que arrumou uma mescla desorganizada de botões enegrecidos, distintivos de regimento e espadas cerimoniais enferrujadas.
Will foi até uma fila de novos mostruários atrás do manequim.
– Recordando o melhor de Highfield – leu em voz alta enquanto o pai se unia a ele. Juntos, eles se curvaram sobre o tampo reclinado das caixas de vidro para examinar a ração e os livros de identidade, as máscaras de gás e outros objetos da guerra, todos belamente rotulados com nomes e explicações de seus usos.
Respirando fundo, dr. Burrows virou-se para ver uma tela de TV instalada em um reluzente console de melamina branco ao lado dos novos mostruários de vidro.
– Aperte para ligar – murmurou ao ler as instruções na tela e meter um dedo nela. De imediato começou a ser exibida uma sequência de filmes em preto e branco que pareciam trechos de antigos curtas de cinema. As primeiras cenas eram noturnas e mostravam bombeiros com mangueiras combatendo incêndios em casas. “Lembro muito bem desses dias, é como se fosse ontem”, começou uma voz vacilante e idosa. “Meu pai foi um dos primeiros em Highfield a ser voluntário como sentinela de um ataque aéreo.”
Will assistiu às cenas pós-ataque entrarem. Na luz enevoada da tarde, homens fardados e empoeirados reviravam freneticamente o entulho espalhado pelas calçadas e nos jardins das casas. O comentário continuava: “O bombardeio mais pesado aconteceu em fevereiro de 1942, quando uma bomba caiu nos Salões de Chá do Lyons no South Parede. Lembro que estava apinhado de gente almoçando quando os alemães largaram uma mina. Foi medonho… Gente ferida e morta para todo lado. E houve outro ataque naquela noite, ainda pior do que o primeiro.”
Depois Will assistiu a um clipe de dois velhos sentados em cadeiras no que sobrara do térreo de uma casa, olhando vagamente para a câmera e fumando. Pareciam exaustos e derrotados. Ele tentou imaginar o sofrimento dos dois – não só tinham perdido a casa e todos os seus pertences, como muito provavelmente as esposas e filhos tinham perecido no bombardeio. De repente o sofrimento daqueles homens emocionou Will – ele achou muito comovente e percebeu que podia passar pelo que fosse, mas não seria pior do que aqueles homens e muitos milhares de outros haviam enfrentado na guerra. Ele se concentrou no comentário de novo.
“Meu pai trabalhou por dois dias e noites inteiros para encontrar…”
Dr. Burrows interrompeu o filme com um soco na tela.
– Eu estava vendo, pai – disse Will. O pai deu um muxoxo e lhe lançou um olhar gélido antes de ir para a porta na extremidade do hall, a caminho dos arquivos e de seu antigo escritório.
Mas, ao chegar à soleira, apareceu um jovem que bloqueou sua passagem.
– Desculpe, senhor, não pode entrar aqui. É proibido ao público – disse o homem com simpatia, mas firmeza. – Somente para funcionários do museu. – Ele vestia uma camisa azul com um crachá que dizia Curador. Parecia muito jovem, mesmo aos olhos de Will.
– Eu sou… – começou dr. Burrows, e logo se interrompeu porque, sem ser visto pelo homem, Will cutucou as costas do pai.
Dr. Burrows grunhiu e o homem recuou um passo. Will percebeu que o pai devia lhe parecer esquisito, com o antigo casaco acolchoado da marinha fechado até o pescoço e o gorro de lã puxado na testa.
– Posso ser de alguma ajuda, senhor? Vi que admirava nosso novo display interativo… Seria um prazer guiá-lo por nossas outras exposições. – O jovem olhou o piso do museu e baixou a voz como se contasse um segredo vital a dr. Burrows. – Receio que muitas não são nada excepcionais. Deve ter percebido que este museu é um tanto, hum… como devo dizer… precisa de modernização. Foi muito negligenciado pela administração anterior. – Ele respirou fundo como se estivesse se preparando para uma tarefa descomunal. – Mas agora que estou no leme, pretendo renovar todo o lugar com a ajuda de um financiamento muiiiiito substancial que obtive.
O homem sorriu, esperando uma resposta entusiasmada do dr. Burrows, mas seu sorriso evaporou quando recebeu algo muito diferente.
– Eu gosto exatamente do jeito que é – disse dr. Burrows como se alguém o estivesse estrangulando.
O coração de Will se condoeu pelo pai. Todo o trabalho do dr. Burrows no museu tinha sido desdenhado em poucas frases indiferentes. Will via que a cabeça do dr. Burrows se abaixava e ele parecia murchar. Queria dizer alguma coisa, mas não conseguia pensar nas palavras certas. A ironia era que o pai não tinha motivo nenhum para se envergonhar.
Com as inumeráveis e importantes descobertas que fizera na Colônia e nas Profundezas, dr. Burrows um dia seria louvado como um grande explorador e cientista, talvez o maior do século. Mas nada disso parecia importar a ele agora, parado ali, com os ombros recurvados de decepção. Will não entendia por que o pai ainda parecia se importar tanto com aquele lugar de terceira classe, que não tinha esperanças de competir com os museus mais ricos do centro de Londres.
– Muito tempo e esforço foram dedicados a todos esses mostruários, compreende? – disse dr. Burrows. – Acho que são muito eficazes.
– Ora, cada um na sua – respondeu o jovem, na defensiva. – Hoje em dia é completamente diferente. Tudo é interatividade e envolvimento da comunidade. O truque é dar à garotada alguma nova tecnologia chamativa para atrair sua atenção, e também atrair os moradores, convidando-os a participar em cápsulas do tempo e semelhantes. Sim, Interação e Inclusão significam Interesse e Investimento. O princípio dos quatro “Is”.
Will olhava o salão, perguntando-se se a visão do novo curador teria sucesso em Highfield. Talvez este museu empoeirado e esquecido fosse um verdadeiro reflexo do coração do bairro.
– E então, mora por aqui? – perguntou o curador, rompendo o silêncio.
– Mais ou menos – respondeu dr. Burrows.
– Bem, se estiver interessado, estou sempre procurando pessoal para me ajudar na administração do museu, entende, para ajudar nos…
– Fins de semana – dr. Burrows cortou-o. – Ah, sim, o pelotão de sábado.
O humor do curador mudou e ele sorriu, imaginando que tinha encontrado um novo recruta.
– Imagino que conseguiu que o major Joe se inscrevesse, e depois virão Pat Robbins, Jamie Dodd… – disse dr. Burrows – … e, posso apostar, Franny Bartok.
O curador assentiu a cada nome que dr. Burrows dava. Will se colocara ao lado do pai e via o brilho em seus olhos quando ele falava. Sem dúvida estava aprontando alguma.
– E como posso me esquecer do grande e único Oscar Embers? – disse dr. Burrows.
– Oscar Embers? – O curador parou de assentir. – Não, não conheço ninguém com esse nome.
– Não? Tem certeza… Ele era ator aposentado e sempre o mais apaixonado e comprometido do grupo.
O curador não deixou de perceber o olhar que foi trocado entre dr. Burrows e Will.
– Não, não o conheci – disse o curador categoricamente, depois seus olhos se estreitaram como se ele ficasse desconfiado. – E posso lhe perguntar, senhor, como tem tanto conhecimento de meus voluntários quando eu nunca vi o senhor?
– Eu era… – começou dr. Burrows, mas foi interrompido por Will, que tossiu alto para alertar o pai para não falar mais nada – … ajudava seu predecessor quando ele estava aqui e, er, eu o conhecia muito bem.
– Ah, o doutor… – disse o curador, depois franziu a testa procurando lembrar o nome – Bellows, Bustows ou algo assim.
– Burrows, dr. Burrows – rebateu dr. Burrows.
– Sim, isso. Deve saber que o pobre camarada está desaparecido… Foi antes de eu assumir as rédeas daqui, então não sei como ele era.
– Um homem muito impressionante – disse dr. Burrows concisamente. – E agora, lamento dizer, temos que seguir nosso caminho.
– Tem certeza de que não pode dar um giro rápido pelas novas exposições?
– Talvez outra hora. Mas obrigado de qualquer forma e boa sorte com seus planos – disse dr. Burrows ao se virar rapidamente. Ele resmungava consigo mesmo e só quando estava fora do museu foi que se permitiu desabafar. – Interativo! Bah! Esse novato recém-saído da universidade vai torrar milhões de libras, e tudo a troco de nada. Depois o museu vai ficar sem fundos e provavelmente será fechado, e minha coleção será roída pelas traças por toda a eternidade. – Ele bateu o pé na calçada com tanta força que fez eco na rua.
– Pai, calma, por favor? – Will insistia com ele, preocupado que o comportamento do pai atraísse atenção indevida. – Sei por que estava perguntando por Oscar Embers – disse ele, tentando distrair o pai, levando-o a um novo rumo. – É mesmo estanho que o curador não tenha ouvido falar dele. Ele sempre estava por aqui, não é?
– Sim – concordou dr. Burrows –, é muito estranho.
– Então aquela gêmea deve ter falado a verdade sobre ele ser agente Styx e a gente precisa dar o fora daqui. Estou dizendo… Não estamos seguros em Highfield.
Dr. Burrows franziu os lábios pensativamente e de repente apontou o dedo no ar.
– Já sei! Oscar deve ter morrido antes que o sujeito novo assumisse – declarou, animado. – Afinal, Oscar não era nenhum jovenzinho! E há um jeito de descobrir se foi o que aconteceu.
– Como? – Will tentou perguntar, mas o pai se afastava a toda velocidade de novo.
Eles subiram a High Street, parando na frente de uma loja esvaziada por uma turma de operários. Dr. Burrows inspecionou as prateleiras pintadas de verde, que tinham sido arrancadas e empilhadas na calçada na frente da loja.
– Lá se foi a Clarke’s. Será que nada é sagrado? – disse ele, referindo-se ao antigo hortifrúti que estivera ali desde que se podia lembrar. – São esses malditos supermercados! – irritou-se. Will de imediato deduziu que havia mais no fechamento da loja do que isso. Estava a ponto de falar com o pai sobre a relação especial dos irmãos Clarke com a Colônia, mas decidiu se calar. Dr. Burrows já tinha muita dificuldade para lidar com o que já sabia e Will não queria que as coisas se complicassem ainda mais para ele.
Saindo da High Street, eles passaram pelo antigo convento e logo chegaram à Gladstone Street, onde dr. Burrows parou na frente de uma fila de casas pequenas.
– O que estamos fazendo aqui, pai? – perguntou Will.
– Verificando os fatos – respondeu dr. Burrows, avançando para um beco estreito entre duas das casinhas. Parecia saber exatamente aonde ia ao desaparecer na escuridão. Will seguia alguns passos atrás, nervoso porque não conseguia enxergar nada em volta. Reduziu o ritmo por um segundo quando seu pé bateu numa garrafa de leite vazia, jogando-a ruidosamente sobre os paralelepípedos.
Ao saírem novamente na luz, Will observou que a viela era ladeada por muros de jardim e que terminava numa antiga fábrica de janelas altas. Parecia não haver outra maneira de entrar ou sair da viela, a não ser por onde os dois vieram. De jeito nenhum Will conseguia entender por que o pai estava interessado neste lugar. Depois dr. Burrows subiu no muro à direita e espiou por cima dele.
– Quem mora aqui? – perguntou Will, juntando-se ao pai no muro e olhando o jardim descuidado. Um gato gorducho andava pela grama desigual, evitando cautelosamente as várias tigelas de plástico com água suja que pareciam estar em toda parte. Então Will se lembrou do que tinha lido no diário do pai, encontrado por ele e Chester meses antes. – Foi aqui que o globo luminoso foi descoberto, não foi?
– Sim… É a casa da sra. Tantrumi.
Will deu de ombros.
– E o que vamos fazer aqui?
– Ela era amiga de Oscar – disse-lhe dr. Burrows.
– Então vai perguntar a ela o que houve com ele?
– Sim, minha intenção era essa – confirmou dr. Burrows decididamente. – E havia mais do que apenas o globo luminoso aqui.
Will olhou indagativamente para o pai.
– Como assim?
– O globo foi encontrado no porão logo depois daquela escada ali – disse dr. Burrows, olhando a soleira escura. – Também havia um guarda-roupas cheio de casacos dos colonistas.
– Casacos de colonistas – repetiu Will, depois percebeu do que o pai falava. – Meu Deus do céu, pai! – ele soltou. – Você deve ter ficado maluco! – Ele agora olhava em volta, nervoso. – Esta deve ser uma rota de descida para a Colônia… Pode haver Styx na casa.
– Não, só uma senhorinha meiga – disse dr. Burrows.
– Mas pai… – gemeu Will, batendo o pé. Estava tão frustrado porque o pai não lhe dava ouvidos que de repente se sentiu como se voltasse a ser uma criança de cinco anos, quando não conseguia o que queria. Segurou dr. Burrows pelo braço como se estivesse prestes a arrastá-lo para longe do muro. – … isso é loucura. Temos que sair daqui – pediu. – Temos que sair!
Dr. Burrows se voltou para lhe lançar um olhar severo.
– Solte-me, Will.
Will obedeceu e soltou o braço do pai. Reconheceu a decisão na voz do dr. Burrows.
– Passei muito tempo da minha vida deixando de fazer o que devia ter feito. É fácil demais achar uma desculpa para deixar as coisas para depois. Deus sabe, eu devia saber. Mas, neste exato momento, preciso investigar o que sua irmã… – ele se interrompeu por um segundo – … o que a gêmea disse. Preciso descobrir se Oscar realmente era uma espécie de agente Styx. Tenho de verificar os fatos com meus próprios olhos.
– Acho que tem razão, pai – concordou Will com relutância.
– Que bom – disse dr. Burrows, logo subindo no alto do muro, depois pulando do outro lado. Ao cair na lama, seu pé escorregou e ele se sentou em uma das numerosas tigelas. O estalo agudo de plástico se quebrando ressoou pelo jardim e no silêncio que se seguiu dr. Burrows xingou e se colocou de pé, limpando as algas do casaco. – De novo, não – murmurou ele consigo mesmo.
Cheio de apreensão, Will continuou onde estava, vendo o pai ir até a porta dos fundos e bater com gentileza.
– Sra. Tantrumi – chamou dr. Burrows. – Está em casa? Sou eu… Roger Burrows.
A porta se abriu um pouco e uma bola enorme de pelos pretos e brancos disparou para fora. Passou em disparada entre as pernas do dr. Burrows, indo para o quintal. Assustado, dr. Burrows murmurou “Gato?” ao recuar alguns passos.
Uma cara enrugada espiou brevemente pela abertura da porta.
– Olá? Quem está aí?
– Sra. Tantrumi, está tudo bem. Sou eu, Roger Burrows.
– Quem?
– Dr. Burrows. Eu… Hum… Estive aqui no ano passado para ver a senhora, sobre o globo luminoso que Oscar Embers me levou. Lembra?
A porta se abriu inteiramente. A idosa tinha cabelo branco e ralo e vestia um avental que não estava bem amarrado, e assim grandes flores amarelas e brancas entortavam-se num ângulo muito estranho por seu corpo. Ela também parecia muito instável de pé e se segurava no batente da porta como se precisasse se escorar. Ajeitou os óculos, claramente com dificuldades de focalizar dr. Burrows.
– Sim, claro que me lembro do senhor – respondeu ela por fim. – O senhor é do museu. Me escreveu uma carta adorável.
– Sim, é verdade – disse dr. Burrows num tom aliviado.
– Muito amável de sua parte vir me ver novamente. – Ela sorriu, iluminando o rosto idoso. – Precisa tomar uma xícara de chá comigo.
– Seria muito bom – respondeu dr. Burrows calorosamente enquanto a idosa voltava capengando para a cozinha.
Dr. Burrows continuou na porta aberta, curvando-se para afagar um gato avermelhado, velho e dolorosamente magro. Para sua surpresa, o gato sibilou e o atacou com a garra.
– Orlando! Controle suas maneiras, seu menino levado! Eu peço desculpas, dr. Burrows. Ele não está acostumado com estranhos. Espero que não o tenha arranhado.
– Não muito – disse dr. Burrows, esfregando o dedo onde uma garra tinha apanhado a pele. Ele apertou os olhos com raiva para o gato, que ainda estava parado ali, de pelo eriçado, como um cão de guarda felino. – Sra. Tantrumi, na verdade vim aqui para lhe perguntar sobre Oscar Embers. Ele está bem?
Sra. Tantrumi estava junto à pia, com a torneira totalmente aberta, enquanto segurava a alça da chaleira com tanta força que o dr. Burrows podia ver os nós dos dedos perderem a circulação.
– Não, não está. O pobre homem tropeçou na calçada e quebrou o braço. – Ela fitou a água girando pelo ralo ao falar. – Depois ele pegou uma infecção horrível no Highfield General e ficou muito doente. Ele melhorou, mas disseram que não podia se cuidar sozinho e o colocaram num asilo, e não o vejo mais.
– Sabe para qual asilo ele foi? – perguntou dr. Burrows.
– Não, não sei, e não posso visitá-lo de qualquer forma, não com meus quadris do jeito que estão – disse ela com tristeza. – Sinto tanta falta dele. Era um bom amigo.
– Eu lamento muito – disse dr. Burrows, mas foi pouco convincente. – Mas deve ter alguma ideia do lar em que ele está.
– Não, querido, não tenho – respondeu sra. Tantrumi, terminando a tarefa de encher a chaleira. Depois gingou até o fogão com uma série de “ooohs” e “aaahs”, como se cada passo lhe provocasse um desconforto considerável.
– O pobre velho Oscar – disse dr. Burrows num tom distante, virando-se para olhar a porta do porão. – Importa-se se eu der outra olhada ali embaixo, onde foi encontrado o globo luminoso?
– O globo jocoso, querido? O que é isso? – perguntou ela, semicerrando os olhos para ele.
– O objeto que a senhora muito gentilmente doou ao museu. Não se lembra?
Sra. Tantrumi pensou por um segundo, com as frágeis mãos tremendo.
– Ah, claro, eu sei… A bola de vidro. Sim, pode dar uma olhada, se quiser. – Ela pegou uma lata grande na bancada da cozinha. – Não gostaria de um biscoito primeiro? – ofereceu, esforçando-se para abrir a tampa.
Pegando seu biscoito Garibaldi, dr. Burrows olhou para Will, cuja cabeça era visível ao espiar pelo muro do quintal, na viela. Dr. Burrows ergueu as sobrancelhas para Will, depois desceu a escada de tijolos musguentos para o porão. Ao chegar lá, foi diretamente à área que dava para a frente da casa. Tudo era silêncio no porão escuro, a não ser pelo som que seus pés produziam ao pisar na terra.
Quando seus olhos se adaptaram à pouca luz, ele viu que o guarda-roupa não estava mais lá. Na realidade, não havia sinal dele em lugar nenhum.
– Diabos! – murmurou ele. – Alguém o roubou!
Ainda resmungando consigo mesmo, ele levou um momento para fazer outra inspeção rápida no velho piano. Apodrecendo contra uma parede úmida, parecia em pior estado ainda do que da última vez em que o vira; uma lateral se desprendera e o instrumento tombava de lado, como se estivesse a ponto de desabar completamente. Levantando a tampa, dr. Burrows descobriu que muitas teclas agora não produziam som nenhum quando as tocava. Batendo os pés no chão perto da base das paredes, ele descreveu uma volta completa pelo porão, certo de que em algum lugar ia achar um alçapão. Mas o chão parecia bem sólido e ele decidiu verificar as paredes quando ouviu um barulho a suas costas.
Ele girou o corpo.
Contra a luz que vinha do quintal, viu a silhueta de alguém avançar para ele. Também viu que brandia alguma coisa, algo que brilhava, parecido com aço polido.
– VOCÊ É ENXERIDO DEMAIS! – gritou a figura.
– Sra. Tantrumi! – exclamou dr. Burrows ao reconhecer quem era.
A velocidade com que a idosa se movia o pegou completamente de surpresa. Seu rosto se retorcia num esgar cruel e ela investia para ele com a faca, sem mostrar nenhum vestígio da fragilidade que exibira antes.
De repente ouviu-se um estrondo e voaram biscoitos Garibaldi para todo lado. Sra. Tantrumi parou, a faca de aparência maligna caiu de sua mão e ela tombou.
– Will! – ofegou dr. Burrows ao ver que o filho estava ali. Evidentemente estava bem atrás da velha maluca.
Dr. Burrows era a imagem da confusão ao tentar entender o que acabara de acontecer.
– Ela… Ela ia me esfaquear. – Ele olhou agradecido para o filho. – Obrigado, Will.
– Tudo bem. Não conseguia me decidir se usava isso – disse Will, erguendo a lata de biscoito amassada e agora vazia – ou um vaso de flores para dar uma pancada nela.
Os dois olharam sra. Tantrumi, caída de lado. Embora tivesse ficado atordoada com o golpe, parecia se recuperar rapidamente. Ela esfregou o crânio com uma expressão aflita, depois imediatamente tentou pegar a faca de novo.
– O que vamos fazer agora? – perguntou dr. Burrows, enquanto via a mão da velha se esgueirar para a arma.
– Impedir que ela nos mate? – sugeriu Will. Ele deu um passo para ela e, sem pressionar muito, colocou um pé em seu pulso para prendê-lo no chão.
– Sai! – Ela parecia ter recuperado todas as suas forças e, como um de seus gatos ferozes, passou a sibilar e cuspir para Will e o pai. – Sua hora está chegando! – ela esbravejava. – Ninguém escapa da Colônia!
– Só uma senhorinha meiga, hein? – disse Will.
Meneando a cabeça, dr. Burrows olhou a velha com um fascínio apavorado enquanto ela lutava para tirar a mão de sob o pé de Will.
– Não acredito – murmurou ele.
– É melhor acreditar – disse-lhe o filho.
– Mas…
– Não, agora escute aqui, pai, eles têm gente em toda parte. A vovó Pavorosa aqui evidentemente é uma de seus agentes, e Oscar Embers também era, como disse a gêmea Rebecca. Os Styx até têm gente na polícia e no governo, então não podemos confiar em ninguém. A partir de agora, vamos andar com muito cuidado. Entendeu?
– MORTOS! OS DOIS ESTÃO MORTOS! – gritava sra. Tantrumi, enquanto Will se abaixava para pegar a faca, ainda sem soltar a mão debaixo de seu pé.
– Acho que não – Will desdenhou dela. – E vamos deter você e seus amigos nojentos, nem que seja a última coisa que a gente faça.
– E SERÁ! – guinchou ela. – NÓS SOMOS MUITOS!
– Vamos, pai, vamos para longe dessa bruxa velha e fedida. – Torcendo a cara de nojo, Will jogou a faca pela porta atrás dele. Ouviu um miado assustado vindo do quintal.
– Epa, acho que peguei um – disse Will, enquanto sra. Tantrumi explodia em tal linguagem e tal volume que dr. Burrows tapou as orelhas.
Will tirou o pé de cima do pulso da sra. Tantrumi e recuou rapidamente, seguido de perto pelo dr. Burrows, que não tinha a intenção de ficar sozinho com a mulher frenética. Ao subirem a escada para o quintal, semicerrando os olhos para a luz, uma figura saltou do alto do muro e caiu no gramado lamacento, evitando habilidosamente as muitas tigelas de plástico com água choca.
– O que houve aqui? – perguntou ele num sussurro urgente.
Will nem acreditou no que via.
– Drake! – exclamou.
– Drake? – repetiu dr. Burrows.
– Digam o que aconteceu – perguntou Drake de novo, apontando a cabeça para o porão. – Quem está ali?
– Uma agente Styx – respondeu Will. – Eu não posso… Eu tenho… Você tem de… O vírus… Como você…? – ele balbuciava, tudo o que queria dizer a Drake saía numa torrente sem coerência.
– Agora não – Drake o interrompeu rispidamente. Ele sacou uma arma e a ofereceu a Will. – Fique com isso. Está travada.
– Está tudo bem… Eu tenho a minha – disse Will, puxando o casaco de lado e mostrando a Drake a Browning Hi-Power enfiada nas calças.
Dr. Burrows deu um muxoxo de reprovação para o filho, mas Drake lhe abriu um breve sorriso.
– Legal. A propósito, adorei o visual novo – disse ele, olhando o cabelo curto de Will e seus trajes de combate. Depois Drake entrou em ação, passando rapidamente pelo dr. Burrows e descendo cautelosamente a escada.
– Ela é velha, mas é má – Will tentou avisar a Drake, mas ele já desaparecera no escuro do porão.
– O que ele vai fazer? Meter uma bala nela? – disse dr. Burrows.
– Eu faria isso se pudesse, mas ela fugiu – trovejou Drake, entreouvindo a observação ao sair num rompante do porão. – Então agora os Pescoços Brancos vão saber que vocês voltaram a circular e as coisas vão esquentar por aqui.
Will ficou perplexo.
– Ela sumiu? Mas não pode ser!
– Não há como sair dali – acrescentou dr. Burrows, olhando com ceticismo para Drake. – Eu mesmo verifiquei. – Ele agia como se fosse voltar ao porão, mas Drake o pegou pelo cotovelo e o fez girar.
– Não, não faça isso. É perda de tempo… Nunca vai encontrar – Drake rosnou para ele. – Soube que havia um portal em algum lugar por aqui. – Ele olhou rapidamente para Will. – Alguém me contou sobre isso.
Isso não passou despercebido por Will, que o olhou indagativamente.
– Precisamos dar o fora daqui e já – disse Drake a dr. Burrows, depois deu um passo para Will e seu rosto se enrugou num sorriso. – Nem imagina como é bom te ver de novo, Will. Na verdade, eu diria que é um milagre! Então vocês fizeram o impossível… Conseguiram sair do Poro?
– Sim…. não, nós… – começou Will, mas ofegou quando Drake se ajoelhou num piscar de olhos e sacou a arma, apontando para a porta da cozinha. Will também sacou a Browning Hi-Power, embora tivesse menos prática do que Drake e levasse mais tempo nisso. A porta da cozinha, que sra. Tantrumi deixara entreaberta, mexeu-se um pouco. Will estava prendendo a respiração quando um gato preto e sarnento colocou a cabeça para fora e os olhou com indiferença antes de entrar de novo.
– Sim, é preciso ter cuidado com os gatinhos dela… Eles são feras cruéis. Um deles me arranhou feio – declarou dr. Burrows secamente enquanto olhava o filho e Drake a postos com as armas.
– Todo cuidado é pouco. Este lugar está infestado de Styx – disse Drake, levantando-se de novo. Olhou dr. Burrows com muita frieza antes de se dirigir a Will. – Imagino que este seja o seu pai… O intrépido explorador?
Will concordou com a cabeça.
– E vocês voltaram a Highfield para ver sua mãe – disse Drake.
– Minha esposa… Sim, claro que sim – dr. Burrows se intrometeu antes que Will pudesse responder.
Drake guardou a arma.
– Bom, se pensa que vai encontrá-la na sua antiga casa, está perdendo tempo. Ela a vendeu.
– Ela fez o quê? – disse dr. Burrows, perplexo.
A mente de Will começava a funcionar depois do choque de rever Drake, e algo não batia.
– Mas como soube que viríamos para cá? Como soube que eu ainda estava vivo? – perguntou ele.
– Quando você ligou para aquele número, sua mensagem caiu num servidor seguro em Gales.
– Número? Mensagem? – disse Will, depois a ficha caiu: tinha sido uma das ligações que ele fizera do antigo telefone no abrigo nuclear. – Então a linha não estava muda! E era seu número o tempo todo! – disse Will, balançando a cabeça. – Eu não sabia para que servia.
– Você só pode ter conseguido com Elliott, então suponho que ela ainda esteja viva. Ela está bem?
Will assentiu.
– Espero que sim. Nós fomos separados depois que ela detonou uma explosão enorme.
– Típico. – Drake riu. – E Chester?
– Deve estar com Elliott, mas Cal… Uma coisa horrível…
– Eu sei de Cal – Drake o interrompeu com brandura. – Eu estava lá. Vi tudo.
– Você estava lá? – disse Will precipitadamente. – No Poro?
– Sim. Com Sarah… Em seus últimos momentos…
– Não – disse Will. – Ela também morreu?
Drake desviou os olhos de Will, como se soubesse o quanto era doloroso o que estava prestes a dizer ao garoto.
– Will, ela se atirou da beira, levando as gêmeas. Imagino que fez isso porque agiu muito mal com você e era tudo o que podia fazer.
– Ah, meu Deus – Will arquejava. Ele se prendia à esperança de que de algum modo ela tivesse sobrevivido, mas agora essa esperança era frustrada pelo que Drake lhe contava. Will tentou falar, perguntar mais sobre o que aconteceu, mas sua garganta estava tão apertada que Drake não conseguia ouvi-lo.
Dr. Burrows não fazia qualquer ideia dos sentimentos de Will e do quanto o abalava a morte de Cal e agora este relato do último ato de sacrifício pessoal de Sarah. Ainda irritado por ter sido destratado por Drake, e ainda mais por descobrir que agora era um sem-teto, dr. Burrows falou com uma ousadia pouco característica.
– Ei, atirador… Seja lá qual for seu nome… Você não disse que não devíamos ficar por aqui?
Drake não desviou os olhos de Will ao responder, mas um leve movimento de seus olhos traiu sua irritação.
– É Drake e sim, eu disse isso, não foi? Vou levar os dois para um lugar onde vão ficar por um tempo e talvez também tenha uma chance de ver sua esposa.
– Sabe onde ela está? – perguntou dr. Burrows de pronto.
– Vamos, Will – disse Drake suavemente, colocando a mão no ombro do menino extenuado e conduzindo-o para o muro do quintal. – Temos muito o que colocar em dia, mas não aqui. Vamos.
– Excelente – declarou dr. Burrows às costas dos dois enquanto eles se afastavam. Mesmo que não admitisse isso a si mesmo, ele estava muito ressentido por ter aparentemente sido suplantado no afeto do filho por esse estranho imponente, que, era evidente, tinha um vínculo forte com Will.
Capítulo Vinte e Cinco
Drake foi na frente para saber se o caminho estava livre, depois acenou para que Will e dr. Burrows o seguissem. Enquanto ele os acompanhava ao saírem da casa da sra. Tantrumi, Will pensou em como era bom estar novamente com Drake. Will não sabia como o pai ia se entender com ele, em particular porque dr. Burrows relutava tanto em aceitar que os Styx eram uma verdadeira ameaça. Só esperava que o incidente com sra. Tantrumi abrisse os olhos do pai para isso.
Drake usou um aceno para dizer a Will que ficasse parado enquanto ele chegava ao final da rua. Espiou pela esquina e depois desapareceu de vista. Era tão cauteloso ali como nas Profundezas.
– Toda essa história de abaixa-esconde é mesmo necessária? – grunhiu dr. Burrows para o filho. – O que alguém pode nos fazer aqui? Esta é Highfield, pelo amor de Deus!
– Eles tentaram raptar a mim e Chester quando íamos da escola para casa, e eram só dois colonistas. Se os Limitadores vierem atrás de nós… – disse Will, mas não terminou a frase.
Dr. Burrows murmurou um “bah!” silencioso enquanto ele e Will corriam para alcançar Drake, que os fez passar por um portão de ferro, levando-os a uma viela estreita.
– Martineau Square. É para lá que está nos levando, não é? – perguntou dr. Burrows ao ver que a viela se estendia atrás de uma fila de casas georgianas de varanda.
– É, mas não pela frente – respondeu Drake.
A viela era limitada por muros altos de tijolinhos e pavimentada com paralelepípedos gastos, entre os quais o mato crescia em abundância. Grupos de lixeiras velhas e pilhas de caixas de papelão vazias impediam o progresso dos três, em particular quando o dr. Burrows escorregou numa caixa de pizza encharcada e caiu.
– Ande – insistiu Drake, enquanto dr. Burrows se levantava.
Drake parou diante de uma porta de madeira coberta por uma tinta preta e lascada, cuja base havia apodrecido. Passaram por ela, descobrindo que estavam em um pequeno quintal, uma área de concreto com o que parecia um banheiro numa casinha externa imperturbada num canto. Drake usou uma chave para abrir a porta dos fundos de uma casa e entrar num corredor, de uma cor marrom escura funesta. Pelo estado, Will imaginou que não era decorado há muitas décadas.
Eles subiram vários lances de escada com corrimão de ferro batido, rangendo os degraus a cada passo, e no alto Drake os conduziu por uma porta tão baixa que tiveram de se recurvar para passar por ela. Viram-se numa sala mínima, cuja única luz entrava por uma janela coberta de teias de aranha. Will sabia que eles deviam estar no sótão de uma das casas avarandadas que ladeavam a Martineau Square.
Drake fechou a pequena porta e passou dois ferrolhos, imediatamente cruzando o piso de madeira até a janela. Ele parou pouco antes de chegar nela, espiando pelas vidraças empoeiradas.
– O que tem aí? – perguntou dr. Burrows, indo diretamente à janela e colocando a cara nela. Num piscar de olhos, Drake o puxou pelas costas.
– Pelo amor de Deus, homem, não se mostre assim! – grunhiu ele.
Dr. Burrows fez um movimento repentino, afastando a mão de Drake, e o encarou.
– Não se atreva a tocar em mim! – ele chiou. – Não sei qual é seu jogo, mas se fizer isso de novo, vai se arrepender.
Will nunca vira o pai assim – ele sempre fez de tudo para evitar o mais leve confronto. Dr. Burrows era vários centímetros mais baixo do que Drake e era difícil imaginá-lo se dando bem numa briga com alguém, que dirá com este homem que costumava enfrentar e vencer Limitadores. Entretanto, todo o corpo do dr. Burrows tremia como um galo de briga prestes a atacar.
Dr. Burrows e Drake se olhavam fixamente e os dois irradiavam uma calma colérica que parecia encher a salinha. Will teve a sensação estranhíssima de que estava com Cal e Chester de novo. Por várias vezes eles tiveram conflitos e Will era obrigado a aparar as arestas. Will não estava gostando do rumo que isso tomava e sentiu que precisava intervir.
– Pai, precisa ter cuidado. Lembra o que acaba de acontecer com aquela velha? Ela ia te esfaquear.
Com o lábio superior torcido de raiva, dr. Burrows olhou rigidamente de Drake para o filho.
– Você não sabe realmente quem é essa pessoa, ou o que ele fez. Lembre-se do que eu lhe falei sobre os estranhos… Nunca deve…
– Ele não é um estranho! Salvou minha vida nas Profundezas! – explodiu Will. – Cuidou de nós lá. Ele sabe o que está acontecendo.
– Dr. Burrows, o que precisamos fazer para convencê-lo de que estamos em perigo? – perguntou Drake numa voz tranquila.
Dr. Burrows bufou, depois se retirou para um canto do sótão, onde se sentou pesadamente em um baú velho.
Drake não pareceu nem um pouco abalado pelo confronto e se virou para Will, sorrindo.
– Muito bem, me coloque a par de tudo.
– Tudo bem – respondeu o garoto, lançando um olhar às sombras, onde o pai estava sentado num silêncio taciturno. – Tenho uma coisa para você.
– Primeiro fique à vontade. Temos muito o que conversar – disse Drake, abaixando-se no chão, onde se sentou de pernas cruzadas. Will fez o mesmo, depois tirou do bolso do casaco o saco de couro que continha os dois frascos. Ele os desembrulhou da estopa.
– São o que penso que são? – disse Drake assombrado ao ver os frascos.
– Certamente. Este – disse Will, sorrindo ao erguer o frasco de tampa preta – é o vírus.
Drake o pegou com muito cuidado.
– Dominion – disse ele mansamente, erguendo o frasco para pegar a luz fraca que entrava pela janela pequena. – Então o outro deve ser a vacina.
Will assentiu e também lhe passou o frasco de tampa branca, e Drake o colocou delicadamente no chão.
Dr. Burrows soltou um pigarro alto, assustando Will.
– E então, Drake, imagino que você acredite que toda essa trama vil é verdadeira, não é? Você realmente acha que os Styx pretendem eliminar a todos nós com um vírus letal?
– Não, nem todos nós – respondeu Drake. – Eles só querem despovoar a superfície, depois se mudar para o que sobrar.
– Nunca ouvi tanta besteira na vida – contra-atacou o dr. Burrows das sombras. – Diga que não acredita realmente nisso.
– Enquanto o senhor estava no subterrâneo, perdeu todo o episódio do Ultramicróbio. Eram os Styx se preparando para algo mais desagradável e muito mais sério. Para isto, para o Dominion. E é um plano muito inteligente. Usando um reagente biológico, eles podem exterminar o povo da Crosta, mas deixar a infraestrutura intacta. Veja só, todos os prédios, estradas, ferrovias… tudo de que precisam… ficará aqui, para eles usarem. E quando vier a invasão, não restarão muitos de nós para impor alguma resistência.
– Mas por que eles estão fazendo isso agora? – perguntou Will. – Eles estão nos subterrâneos há séculos, não?
– Tenho duas teorias sobre isso. Ou a população deles cresceu tanto que está na hora de se mudarem para pastos mais verdes… – respondeu Drake.
– Ou? – Will o estimulou.
– Ou porque… e esta é a explicação mais provável… com todos os empreendimentos imobiliários acontecendo em Highfield, a Colônia está perdendo canais de ar às dezenas com a demolição dos antigos prédios. E ao mesmo tempo que isso acontece, aumenta o risco de alguém acabar descobrindo o que tem lá embaixo… A Revelação, como chamam os colonistas.
– Sim, a Revelação – murmurou Will, lembrando-se da primeira vez que ouvira sobre isso com a vovó Macaulay.
– Mas espalhando um vírus letal, como terroristas? – disse o dr. Burrows, meneando a cabeça. – Eles têm capacidade para tanto?
– Claro. Não é novidade nenhuma… Os Styx já fizeram essa proeza algumas vezes na história – disse Drake. – Sabia que todas as principais epidemias… os surtos de gripe asiática e espanhola, e a Grande Praga de Londres de 1665… todas foram obra dos Pescoços Brancos?
– Gosto de homens com imaginação. – Dr. Burrows riu cinicamente. – Mas não demais!
– De certo modo, os Styx não são diferentes do vírus. – Drake estava pensativo ao continuar a balançar o frasco cintilante diante dele. – O que sabe sobre vírus, doutor? Sabe como funcionam?
– Não posso afirmar que sim – disse dr. Burrows com desprezo.
– Bom, são organismos mínimos, tão pequenos que é preciso um filtro especial para pegá-los. Não há nada parecido com eles na Terra. Na realidade, parecem foguetes espaciais em miniatura e podem até ser cristalizados… É discutível se são vivos, no sentido que você e eu damos à palavra. E dá um trabalho dos diabos identificar um novo vírus quando ele aparece.
– Então como exatamente eles são parecidos com os Styx? – perguntou dr. Burrows.
Drake continuou como se não o tivesse ouvido.
– Eles atacam uma célula hospedeira ancorando-se em sua membrana. Depois injetam seu material genético e sequestram a célula. Usam a maquinaria interna para se reproduzirem às pencas, até que são tantos que a célula explode. Depois milhões de vírus idênticos saem, em busca de novos hospedeiros para infectar. – O frasco de Dominion balançava-se ligeiramente enquanto Drake o tocava com o dedo. – Os ratos afundam o navio.
– Mas está falando de organismos que matam gente – disse o dr. Burrows, num tom ultrajado. – Parece que você realmente os admira.
– Admiro seu propósito simples e organizado de sobrevivência. Seu objetivo não é matar… Na realidade, não é bom para eles quando o hospedeiro perde a vida. Os vírus mais espertos mantêm o hospedeiro vivo… Porque dependem dele.
– O que está tentando dizer… é que os Styx são como vírus porque usam as pessoas… Usam as pessoas para seus próprios fins? – perguntou dr. Burrows, erguendo as sobrancelhas como se não estivesse engolindo nada disso. – Conceito interessante, suponho, mas nada crível.
Drake evidentemente se cansou da conversa com dr. Burrows e se voltou para Will.
– Só o que posso dizer é que estou impressionado – disse ele ao garoto, depois franziu muito a testa, como se de repente estivesse perturbado com alguma coisa. – Espere… Você só pode ter conseguido esses frascos com…
– Com uma das gêmeas – Will concluiu a frase por ele. – Tem razão.
– Então… Então você o pegou do corpo dela, morta?
– Não, ela me deu – disse Will, com a voz começando a vacilar. – As gêmeas Rebecca tentaram pegá-los de volta no submarino, mas eu não ia deixar que isso acontecesse.
– Mas você está falando daquelas Styx e tudo isso está fácil demais. Tem certeza absoluta de que esses frascos contêm o vírus Dominion genuíno?
– Bom, espero que sim – respondeu Will com gravidade.
– Precisa me contar tudo, desde o momento em que vocês caíram no Poro – disse Drake. – E fique à vontade… Não temos nenhuma pressa.
Capítulo Vinte e Seis
Will e Drake conversaram por várias horas, até que Drake finalmente se levantou e esticou as pernas.
– Então você não viu o que aconteceu com as gêmeas Rebecca, ou com o Limitador – disse ele fazendo uma careta. – Não gosto disso. Tem pontas soltas demais.
Will ficou incomodado com a reação dele.
– Bom, ou eles foram estraçalhados pela explosão ou, se conseguiram entrar no submarino, fizeram uma longa viagem para baixo – disse ele. – Só espero que Martha tenha levado Chester e Elliott ao outro…
– Ah, vamos lá, já basta. Você ia me mostrar onde está minha esposa – o dr. Burrows exigiu de mau humor. Não tinha saído do baú desde o embate com Drake, mas agora se levantava.
– Sim, eu ia, não é mesmo? – respondeu Drake. Ele pegou uma escada na parede e a colocou no meio da sala. Subindo nela, abriu um alçapão, depois passou. Dr. Burrows e Will o seguiram até uma área de telhado de chumbo, com o céu escurecendo sobre suas cabeças.
Dr. Burrows ignorou a vista da praça abaixo, aparentemente mais interessado na grossa chaminé ao lado do telhado. Ele ficou na ponta dos pés para tocar um dos grandes capelos de terracota.
– Eu estava trabalhando numa teoria de que existem dutos construídos nestas chaminés, para o abastecimento de ar da Colônia – disse ele, como se falasse consigo mesmo.
– Então acertou na mosca – confirmou Drake. – As Estações de Ventilação sopram o ar estagnado para fora de algumas delas, enquanto outras são entradas de ar fresco. Na verdade toda a praça e muitos outros prédios nas antigas partes da cidade foram erguidos por homens de Martineau e disfarçam todo tipo de coisa. Mas esta praça… A Martineau Square… É a Central dos Styx.
– Se isso é verdade, então por que, em nome de Deus, você nos trouxe para cá? – perguntou dr. Burrows.
– Além de ser o último lugar em que eles pensariam em nos procurar, o motivo para trazê-los aqui é… – Drake se interrompeu. Ergueu a mão para apontar, mas então a baixou ao olhar Will atentamente. – Não chegue muito perto da beira… Você pode ser visto – ele alertou o garoto.
Assim que pôs os olhos na beira do telhado, Will foi tomado pelo desejo dominador de ir para lá. Aquele outro eu, que era forte e autoritário, assumia o controle dele de novo. Impeliu Will a dar alguns passos, mas ele conseguiu se deter.
– Me ajude – sussurrou enquanto, tomado de um suor frio, arriava de repente nas chapas de chumbo.
– O que foi? – perguntou Drake, aproximando-se rapidamente de Will. – Não sabia que tinha problemas com altura.
– Não tenho – resmungou Will. – Ou não tinha. – Ele olhou suplicante para Drake, procurando não berrar que estava muito assustado. – Isso é diferente. Tenho uma sensação, como se quisesse… Como se eu tivesse de pular. Não sei o que há de errado comigo.
Drake se agachou ao lado dele com os olhos cheios de preocupação.
– Quando isso começou?
– Não faz muito tempo. É como se eu quisesse me matar! Será que eu enlouqueci?
– O que foi, Will? – disse dr. Burrows, agora impotente ao lado do filho. – Qual é o problema?
– Talvez eu saiba – disse Drake enquanto segurava gentilmente o garoto. – Eles usaram a Luz Negra em você, não foi?
– Sim – respondeu Will, com o corpo tremendo violentamente e ainda reprimindo o impulso de se levantar e se atirar do telhado. Era como se houvesse uma batalha acontecendo em cada um de seus membros, os grupos musculares lutando numa espécie de prova para vencer sua contraparte. – No Cárcere. Algumas vezes – ele disse, ofegante.
– Então não é você. Os Styx fizeram isso com você – disse Drake.
– Eles fizeram o quê? – gritou dr. Burrows.
– Fique fora disso e baixe o tom! – Drake rebateu. – Will, eles implantaram isso em você. Você foi condicionado… Levou uma lavagem cerebral, se preferir chamar assim. Quando eles o interrogaram, provavelmente deixaram algo em seu subconsciente, como uma pílula de veneno que se ativaria se você saísse da Colônia.
Will encarou Drake, incapaz de apreender o que ele lhe dizia.
– Não é você… Lembre-se disso. Eles fizeram isso. E você pode combater. Venha comigo. – Ele ajudou Will a se levantar e, passando um braço em torno de seu peito, segurou-o na beirinha do telhado. Drake o segurava de modo que ficassem ali juntos, com uma queda de três andares diante deles.
– Mas isso é uma boa…? – dr. Burrows começou a protestar.
– Eu disse para ficar fora disso, doutor – Drake rosnou para ele. – Will, olhe para baixo, para a rua. Você tem uma imagem em sua mente, não tem? Uma imagem nítida?
Will assentiu, incapaz de conter as lágrimas.
– Imagino que seja a imagem de você todo arrebentado no asfalto. E parece certo, como se fosse a resposta para tudo.
– Sim – respondeu Will com a voz rouca. – Mas como sabe disso?
– Não importa. Will… Você precisa ficar comigo e ouvir o que estou dizendo. – Drake colocou a palma da mão na testa de Will por um momento. – Precisa perceber que há algo de intrinsecamente errado com a imagem que eles meteram em sua cabeça. Não consegue sentir a dor… Você não sente nada… Não sente nenhuma perda, sente?
Will balançou a cabeça.
– Não, nada.
– Os Styx reprogramaram sua mente… Eles o fizeram pensar desse jeito. Está errado. Resista, resista à visão. É falsa. Pense em vez disso em como ficaríamos seu pai e eu se você realmente pulasse. Coloque-se em nosso lugar e sinta o que nós sentimos. Está fazendo isso?
– Estou tentando – resmungou Will.
Drake soltou o garoto e se afastou um passo.
– Você agora está por conta própria, mas o controle é seu, e não dos Styx. Como você se sente?
– Melhor… Sim, parece que estou voltando a mim… Que a voz não é tão forte – disse Will ao enxugar os olhos. – Posso olhar para baixo e a imagem não é tão clara. Ah, isso tudo é tão idiota.
– Não, não é nada idiota – disse Drake, segurando o menino de novo. – Vamos fazer isso muitas vezes, até que não reste nada do condicionamento. Eu posso te ajudar a superá-lo.
– Mas não era assim nas Profundezas. Por que agora? – perguntou Will, com a cabeça tombando como se estivesse completamente exausto.
– É o que eles querem – Drake deu de ombros. – Provavelmente é a política de segurança Styx para o caso de você fugir. Uma medida à prova de falhas.
O dr. Burrows resmungou em reprovação.
– Mas que monte de conversa fiada! – disse ele. – Eu acho que você precisa de ajuda, Drake. Você delira tanto que chega a dar medo.
Drake se voltou para ele.
– Não, é você que não quer admitir o que está acontecendo, embora tenha visto com seus próprios olhos. Aquela velha ia matá-lo. Como explica isso?
– Ela… – começou dr. Burrows, mas se interrompeu.
– Sra. Tantrumi pode ser uma agente Styx ou ter sofrido lavagem cerebral. E se ela sofreu lavagem cerebral, é uma entre muitos. Eles devem ter milhares de pessoas em todo o país com variados graus de condicionamento e alguns estão em cargos influentes… Empresários, membros do Parlamento, autoridades na polícia e no exército. Só é preciso uma palavra-chave ou um sinal dos Pescoços Brancos e essas pessoas não terão alternativa, a não ser fazer o que querem delas.
– Bartleby – disse Will. – No submarino, a gêmea Rebecca falou com ele. Ele agiu como se fosse meu pior inimigo ou coisa assim. Então também funciona com os animais?
Drake assentiu.
– Parece que sim.
– E Sarah… Sarah Jerome… E ela? – perguntou Will quando a ideia lhe ocorreu. – Eles usaram nela para vir atrás de mim?
– Não tive essa impressão no curto tempo em que a vi. Acho que os Styx reconheceram que ela era vulnerável e a enganaram, pura e simplesmente – respondeu Drake.
– A enganaram? – Will lhe fez eco.
– Sim. Se eles não conseguem coagir as pessoas a fazer o que eles querem usando ameaças, suborno ou mentiras requintadas, então recorrem ao controle da mente. Mas na maioria das pessoas leva semanas, se não anos de sessões com a Luz Negra, para induzir a algo além de atos impulsivos.
Will franziu o cenho, sem compreender o que ele queria dizer.
– Mais do que algumas explosões curtas de mudança de comportamento… Induzir uma pessoa a fazer algo em resposta a uma palavra-chave ou, no seu caso, Will, quando fica diante de uma queda íngreme.
Will ainda não sabia do que ele falava.
– Mas eu posso mesmo acabar com isso?
– Claro que pode. Parece que você só teve algumas semanas de condicionamento, então com alguma sorte eu conseguirei reverter. Outros podem não ser tão afortunados e sua programação é tão arraigada que nada pode ser feito por eles. – Ele respirou fundo. – Vamos ficar em pé aqui um tempo – disse ele. – Pode lidar com isso?
– Acho que sim – respondeu o garoto.
Eles esperaram meia hora, Drake empoleirado na beira do telhado e de vez em quando olhando o relógio enquanto a escuridão aumentava no céu.
De repente, acenou para dr. Burrows se aproximar.
– Lá está sua esposa – disse Drake, apontando para uma rua que dava na esquina da praça.
– Celia? – disse dr. Burrows, levantando-se apressadamente do telhado de chumbo.
– O que ela está fazendo ali? – perguntou Will, ao lado de Drake.
– Está vendo aquela casa de três andares ali na ponta? – disse Drake, olhando a varanda do outro lado da praça.
– Sim – confirmou Will.
– Sua mãe alugou um apartamento no primeiro andar. Ela arranjou um emprego temporário para pagar o aluguel.
– Emprego? – Will soltou como se tivesse levado uma alfinetada, seu rosto a imagem da incredulidade. – Está me dizendo que minha mãe arrumou um emprego?
– Sim – respondeu Drake. – E ela vai à academia toda manhã… Uma personalidade reformada, como se tentasse virar a página. Ela também está pesquisando a história de Martineau e de Highfield no arquivo municipal, para ver se tem alguma ligação com o desaparecimento de vocês. Ela é meticulosa, posso lhe dizer. Por isso a Colônia está de olho nela.
– Ah, então está dizendo que agora os Styx estão atrás dela – bufou dr. Burrows. Ele e Will a viram chegar mais perto, percebendo que não estava sozinha ao entrar na praça. – Mas ela está com alguém! Um homem! – disse dr. Burrows, ficando muito agitado.
– Sim, e ele não é de confiança – Drake informou.
Dr. Burrows ficou frenético.
– Preciso falar com ela! Tenho de ir até lá!
– Desculpe, doutor, mas não pode fazer isso. Agora não – disse-lhe Drake em termos que não deixavam dúvida.
Mas dr. Burrows tinha aberto a boca e gritado “Celia” antes que Drake, num piscar de olhos, o atirasse para longe da beira do telhado. Enquanto dr. Burrows tentava se livrar de Drake, este o virou de costas em um único movimento, prendendo a cabeça dele numa chave para ele não soltar nenhum ruído.
– Seu idiota! – Drake fechou a carranca e deu uma ordem a Will. – Veja se alguém ouviu! E se você fizer alguma tolice como pular, eu mesmo te mato!
– Ouviu isso?
Sra. Burrows estava prestes a destrancar a porta, mas agora observava a rua da praça e o jardim descuidado no meio.
– Ouvi o quê? – perguntou Ben Wilbrahams.
– Pensei ter ouvido… Pensei ter ouvido alguém gritar meu nome – disse ela, com uma expressão perplexa. – Parecia…
– Bom, eu não ouvi nada – disse Ben Wilbrahams com segurança. – Nada além do vento.
Sra. Burrows deu de ombros e meteu a chave na fechadura para que eles entrassem. Enquanto Ben Wilbrahams a seguia, ela não viu os homens altos e magros que entravam na praça, nem a atividade no telhado do outro lado da rua.
Quaisquer problemas que Will tivesse com altura foram postos de lado quando ele viu o que acontecia abaixo.
– Encrenca – Will chamou Drake. – Parece que pelo menos quatro Styx estão vindo para cá e rápido.
– É melhor se comportar, doutor – Drake alertou ao soltar o dr. Burrows e se juntar a Will na frente do telhado.
Ao esticar o pescoço para ver as esquinas da praça, Will sentiu mais do que ouviu algo cair perto de seu pé. Olhou para baixo. Onde o ângulo do telhado se inclinava quarenta e cinco graus para a calha na beiradinha, havia um belo buraco na superfície da chapa. A mesma coisa aconteceu novamente, mas desta vez ele estava olhando o telhado quando outro buraco apareceu ao lado do primeiro.
– Er, Drake – disse ele, apontando.
Drake reagiu prontamente.
– Atirador! – ele sibilou, rapidamente puxando Will.
Bufando de ressentimento, dr. Burrows se levantou e estava prestes a discutir com Drake quando ouviu um som agudo que o fez se encolher. A centímetros de seu rosto, um dos capelos da chaminé simplesmente explodiu, e pedaços caíram em cima dele.
– Mas que diabos? – dr. Burrows gaguejou e se abaixou rapidamente com os braços protegendo a cabeça. Não ficou muito tempo abaixado, logo voltou aos tropeços pelo telhado, espalhando fragmentos do capelo vermelho pelo caminho.
Drake correu para a parte de trás, onde verificou a viela.
– Fiquem abaixados e perto de mim – ordenou a Will e seu pai enquanto subia o parapeito de tijolos para chegar ao telhado vizinho.
– Está me dizendo que estão atirando em nós? – perguntou o dr. Burrows, limpando a poeira do rosto.
– Sim, você entregou nossa posição. Não dá para fazer o que lhe dizem, pai? – disse Will num tom exasperado, seguindo Drake.
Agachados e em fila única, eles continuaram a atravessar de um telhado a outro, seguindo pela fileira de casas.
– Mas eu não ouvi nenhum disparo – cochichou dr. Burrows.
– Estão usando silenciadores ou algum tipo de supressor, e talvez munição de baixa velocidade – disse Will.
– É o primeiro da turma, Will. Você realmente estudou seus manuais militares, não foi? – Drake sorriu. Ao se aproximarem da última casa com varanda, Drake se arrastou de peito e abriu um alçapão no telhado. Girou pela abertura, caindo em algumas caixas de papelão velhas no sótão abaixo. Will e dr. Burrows caíram atrás dele.
– E o que vamos fazer agora? Toda a quadra estará cercada – perguntou Will, olhando rapidamente o sótão vazio, idêntico àquele em que estiveram, enquanto imaginava um exército de Styx e colonistas tomando posição do lado de fora.
Drake acendeu uma pequena lanterna. Prendendo-a nos dentes, foi aonde a chaminé sobe pela parede e começou a bater nos tijolos.
– Nunca se meta em nenhuma situação se não tiver pelo menos duas estratégias de fuga – disse ele pelo canto da boca enquanto trabalhava na parede. Embora não houvesse diferença na aparência da alvenaria, o som mudou – ficou oco, como se a parede fosse feita de metal. Ele empurrou e um pequeno alçapão girou para dentro. Will e dr. Burrows estavam atrás dele num instante, olhando o duto. Dentro dele, havia uma escada de metal enferrujada soldada à parede.
Will ficou aliviado por terem uma saída.
– Que estratégia de fuga legal!
– Sim. Graças a Martineau – disse Drake.
– Sir Gabriel Martineau? – perguntou dr. Burrows.
– Claro. Ele adorava suas passagens secretas e fez com que seus homens as construíssem por capricho. E em geral tinha tanta pressa que não costumava parar para fazer registros.
– Então os Styx não sabem desta? – perguntou Will.
– Eu sinceramente espero que não. – Drake se virou para o dr. Burrows. – E doutor, precisa de algo mais convincente do que isso para entender que os Styx são uma ameaça? – disse severamente. – Do que uma bala na sua cabeça?
Dr. Burrows franziu o cenho, mas não disse nada.
– Que bom. Agora peguem as mochilas e desçam a escada… E entrem à esquerda no térreo – disse-lhes Drake.
Will e o pai desceram a velha escada, depois seguiram por uma passagem revestida de pedra, que tinha altura suficiente para os dois ficarem de pé. Um pequeno curso de água amarronzada corria no meio da passagem, e suas laterais e o teto eram cobertos de limo preto e cintilante. Ao andarem, a luz do globo luminoso do dr. Burrows revelou que havia mais nas paredes do que eles notaram no início.
– Olha! Um mural! – Will exclamou. – Um homem num barco!
– Noé e a Arca, eu diria – proclamou dr. Burrows, examinando a imagem sob as guirlandas de algas negras e manchas claras de oxidação. – Mas não são murais, são entalhados em relevo, cortados na pedra.
– E aqui tem um homem e uma mulher – disse Will, apertando os olhos para o outro lado da passagem.
– Adão e Eva, provavelmente – disse dr. Burrows. – São todas cenas bíblicas, esculpidas no calcário com muita habilidade. O trabalho artístico é impressionante. Extraordinário!
Drake parecia não ter pressa nenhuma de fechar o alçapão, mas desceu a escada deslizando e alcançou pai e filho, descobrindo que ambos estavam tão cativados pelos murais que não tinham avançado quase nada.
– Eu disse aos dois para andarem! – ele rosnou.
– Mas esta é uma descoberta importante – insistiu dr. Burrows. – Por que alguém teria isso aqui embaixo?
Cauteloso, Drake olhou a passagem atrás deles.
– Três séculos atrás, esta via levava à casa de Martineau, assim ele podia ir a pé à igreja sem se molhar quando estava chovendo. – Drake pegou dr. Burrows pelo braço, guiando-o. – E agora, se não se importarem, por favor, podemos encerrar a visita guiada por hoje, cavalheiros.
Eles seguiram num ritmo acelerado, descobrindo que a passagem começava a subir. Depois se dividia e eles entraram à esquerda, mas, após várias centenas de metros, pareciam ter dado num beco sem saída. Drake foi até a frente e, entregando a lanterna a Will, tateou até localizar dois blocos de pedra que estavam meio recuados.
– Aposto que tem uma alavanca oculta ou alguma coisa para outra porta secreta – cochichou Will ao pai.
Mas, para surpresa de Will, Drake se preparou e mirou um forte chute na pedra recuada.
– Alavanca oculta, hein? – cochichou dr. Burrows em resposta, enquanto Drake dava vários outros chutes, impelindo o calcanhar da bota nas pedras com toda sua força.
Toda uma parte da parede desmoronou com um estrondo. Drake pegou a lanterna com Will e a passou pela abertura. Enquanto a poeira assentava, a primeira coisa que Will e dr. Burrows viram foi um crânio. Depois viram um monte de ossos no chão, onde o antigo caixão de chumbo que Drake desalojara tinha caído e se quebrado.
– Onde estamos? – perguntou Will num sussurro, entrando atrás de Drake.
– Está tudo bem, você não vai acordar o sujeito – disse-lhe Drake, sem fazer nenhum esforço para baixar o tom.
Enquanto adentravam esta nova área, algo foi esmagado sob seus pés.
– Com todos os deuses! – ofegou dr. Burrows, examinando a massa de restos humanos espalhados pelo chão. Depois ergueu a luz e localizou outros caixões intactos em nichos de pedra pelas paredes. Ele e Will viram que estavam num espaço com cerca de dez metros quadrados, mas o teto ficava muito acima, como se estivessem numa espécie de poço. – Estamos numa câmara mortuária! – percebeu.
– Você entendeu, doutor. Depois que Martineau decidiu que não precisava de seu metrô pessoal, deu a um amigo industrial para usar como mausoléu da família. Parece que estão todos aqui. – Drake foi à parede oposta e escalou os nichos até chegar ao mais alto deles. – Me dê alguma luz aqui – disse ele ao andar pelo que Will pensou ser um trecho de parede de pedra. Ele localizou uma barra curta de metal enferrujado presa ali, que girou para a vertical.
– Isso é uma porta? – perguntou Will, lançando a luz da lanterna.
– Claro que sim. Para nossa sorte, pode ser aberta por dentro – disse Drake. – Acho que era para o caso de um desses sujeitos querer sair!
Encostando o ombro na pesada porta de pedra, Drake colocou seu peso nela. Com um rangido baixo, ela aos poucos se afastou.
– Bom, o que os dois estão esperando? – disse ele a Will e a dr. Burrows, passando pela porta aberta. Will ficou um pouco sem saber onde pôr as mãos enquanto escalava os nichos. Alguns caixões pareciam ter se desintegrado e seu conteúdo se derramava, e ele não queria tocar os ossos cobertos de limo.
Chegando ao topo, Will saiu do mausoléu. Respirou o ar da noite e se situou. Diante dele, viu uma fila após outra de lápides, pouco iluminadas pela luz de rua que se derramava por cima do muro do cemitério. Uma construção assomava diante dele.
– A Igreja de Highfield – murmurou ele.
– Por aqui – disse Drake. Eles andaram pelas moitas de arbustos e emaranhados de cavalinha na altura do joelho até outra parte do pátio da igreja. – Fiquem à vontade, cavalheiros… Vamos parar aqui por um segundo – disse-lhes Drake. Empoleirando-se em uma laje de pedra grande coberta de musgo, Will e o dr. Burrows ficaram agradecidos pela oportunidade de descansar – sentiam-se particularmente esgotados, agora que viviam na gravidade normal da Terra.
– Sabia que este é o túmulo da família Martineau? – informou dr. Burrows a Will, apontando uma tumba com pequenas estatuetas de pedra de dois homens segurando uma picareta e uma pá no ápice. Will já havia explorado o cemitério, mas nunca depois do anoitecer. Mas agora que olhava onde o pai lhe indicava e sentia a pedra úmida e fria sob suas mãos, percebia algo de estranhamente familiar no local. Agitando-se no fundo havia uma lembrança, tão distante que quando se esforçava para recordar, era como se estivesse tentando pegar um fio de fumaça com as mãos. Dando de ombros, ele começou a cantarolar enquanto arranhava o musgo com a unha.
– E o que você fez com o diário? – perguntou sra. Burrows a Ben Wilbrahams, que tirava duas pilhas de livros da poltrona e colocava na mesa para ter onde se sentar. – Desculpe, são do meu marido – ela disse enquanto Ben Wilbrahams examinava a lombada de um que era obviamente um livro de autoajuda, a julgar pela capa.
– O Poder da Excelência Mental – Exercícios de Autoconfiança – ele leu, erguendo as sobrancelhas inquisitivamente.
– Bom, alguns são meus – dizia sra. Burrows, quando houve um clarão na sala, embora as cortinas estivessem fechadas. Depois veio uma explosão inacreditável. Uma das cortinas soprou como se apanhada pelo vento, seguida pelo tilintar de vidro.
– Mas o que foi isso? – gritou sra. Burrows, correndo para a janela e puxando as cortinas para que ela e Ben Wilbrahams pudessem olhar. O telhado na ponta da varanda do outro lado da rua estava completamente destruído e chamas saltavam das vigas restantes. Alarmes de carro soaram enquanto pedaços do telhado choviam pelo resto da quadra.
– Alguém pode estar precisando de ajuda – disse Ben Wilbrahams. – Vou descer lá.
Sra. Burrows olhava a calçada na frente da casa.
– Acho que ninguém se feriu. Mas o que, em nome de Deus, pode ter causado isso? – perguntou ela, percebendo que a explosão tinha espatifado uma de suas vidraças.
– Não sei. Talvez um vazamento de gás – respondeu Ben Wilbrahams, vestindo o casaco enquanto sirenes de polícia e de ambulâncias soavam ao longe.
– Não entendi – dizia dr. Burrows a Drake. – Com o que você sabe sobre os Styx e a Colônia, pode acabar com eles. Por que não procura as autoridades?
– Você realmente não entende a escala disso, não é, doutor? O lobo está dentro de casa e é assim há séculos – respondeu Drake. – Eles colocaram as patas no povo em todos os níveis da polícia e do governo.
– Então procure diretamente os jornais e faça com que publiquem a história – sugeriu dr. Burrows. – Torne-a pública.
– Já se tentou isso. Qualquer prova misteriosamente desaparece e acaba morrendo gente – disse Drake. – Gente boa.
Neste momento houve uma explosão tremenda. Will e o dr. Burrows se colocaram de pé num salto. Podiam ver que uma parte do céu noturno se cobrira de luz.
– Está vindo da Martineau Square? – perguntou dr. Burrows.
– Sim, eu armei uma granada na porta do duto – disse Drake.
Enquanto a luz esmorecia e o céu voltava a escurecer, ouviu-se um tremor na voz do dr. Burrows.
– Mas… Você não pode andar por aí explodindo as coisas… Isto é Highfield… Isto é Londres… Não uma zona de guerra.
– Não, isto é uma zona de guerra – disse Drake.
Capítulo Vinte e Sete
Drake levou Will e dr. Burrows a uma casa pardacenta e semigeminada em um bairro vizinho. Embora a viagem fosse curta, Will e o pai estavam tão exauridos que o movimento do carro os ninou. Acordaram quando Drake estacionava atrás de uma cerca-viva alta. Não havia luzes na propriedade quando ele os conduziu para dentro. O interior estava sujo e tinha apenas um carpete manchado e alguns móveis em mau estado.
– Você não mora aqui, mora? – perguntou dr. Burrows, meio confuso ao se arrastar letargicamente para a sala desmazelada e largar sua mochila no chão.
– Não moro em lugar algum – disse Drake, já indo para a porta. – É só um lugar para passar a noite. Temos cobertores e um saco de dormir no sofá, e vocês vão encontrar comida na geladeira.
– Quer uma ajuda? – Will se ofereceu, dando um bocejo imenso.
– Não, está tudo bem, obrigado. Vou cobrar um velho favor e mandar verificar o conteúdo desses frascos – disse Drake, dando um tapinha no bolso do casaco.
– Mas depois de tudo o que aconteceu, este lugar é seguro? – Dr. Burrows suspirou, afundando no sofá.
Drake assentiu.
– Sim, por enquanto está tudo bem. Mas não abram as cortinas – disse ele. Estava prestes a sair quando estalou os dedos. – Will, pensando bem, me dê um pouco daquela planta… Como se chama mesmo…? Anis…
– Fogo-anisado – Will lembrou-lhe.
– Fogo-anisado – repetiu Drake. – Vou mandar analisar também.
– Tudo bem – disse Will, franzindo a testa, pois não sabia por que Drake acharia isso importante. Começou a desfazer a mochila, com o cuidado de colocar a caixa de munição da pistola fora de vista do pai. Depois pegou o dispositivo de visão noturna.
Drake sorriu.
– Ah, aí está um velho amigo meu… Meu visor sobressalente. Elliott deu a você?
– Sim, mas ele parou de funcionar.
– O elemento foi exposto a luz forte?
Will balançou a cabeça.
– Não, não foi nada disso. Fiquei sem usar por umas semanas e quando tentei de novo, estava completamente morto – disse ele enquanto desembaraçava o fio em volta do suporte em que estava presa a lente dobrável.
– Deixa eu dar uma olhada – disse Drake, e Will o entregou a ele antes de voltar à mochila. Tinha acabado de retirar alguns ramos de fogo-anisado quando viu uma coisa no fundo. – Mas como eu sou idiota! – exclamou ele.
Ele pegou a câmera e girou para o pai.
– Esqueci totalmente da minha câmera!
Dr. Burrows ergueu lentamente a cabeça.
– Sua o quê?
– Minha câmera! Tirei umas fotos da Colônia e das Profundezas, mas o mais importante… algumas são de páginas de seu diário. Terminei o último rolo na cabana de Martha e tenho certeza de que o desenho da Pedra de Burrows está aqui.
Dr. Burrows levou um segundo para entender o que Will dizia, depois deu um salto.
– Will – ele quase não conseguia falar, de tão alegre –, você é mesmo um gênio! – Riu. – Bom, meio cabeça de vento por só se lembrar agora, mas mesmo assim um gênio.
– Pode mandar revelar? – perguntou Will a Drake. – E ampliar?
– Acho que sim – respondeu Drake. – Mais alguma coisa que eu possa fazer por vocês? Querem a farda passada e os sapatos engraxados? – Ele sorriu.
Depois que Drake saiu, Will foi até a geladeira e se serviu de alguns sanduíches, bebendo leite direto da caixa. Voltou à sala e encontrou o pai refestelado no sofá, com um cobertor aberto nas pernas, examinando as tabuletas de pedra no colo.
– Ainda posso entender o que tem aqui, Will – disse ele.
– Boa noite então, pai – murmurou Will, olhando o chão.
Will e dr. Burrows dormiram até a manhã seguinte e foram acordados quando Drake retornou.
– Rolinhos de bacon – disse ele, colocando um saco de papel e três copos de isopor na mesa.
– Legal – disse Will, saindo do saco de dormir. Enquanto andava descalço até a mesa, ele de repente se lembrou do motivo para Drake ter saído na noite anterior. – Conseguiu testar os frascos?
Drake parecia sonolento ao soprar o chá e Will se perguntou se ele teria dormido alguma coisa.
– Não, leva alguns dias – respondeu.
O dr. Burrows apareceu ao lado de Will, pegando um rolinho no saco de papel, que imediatamente começou a devorar.
– Alguma novidade com as fotografias? – perguntou ele.
Drake lhe entregou um pacote.
– Vinte e cinco por vinte… Espero que baste para vocês.
Numa pressa louca, dr. Burrows rasgou a embalagem e vasculhou as fotos, separando as que eram de seu diário. Parou de repente, tombando a cabeça para examinar uma delas mais de perto.
– Sim – murmurou ele, aproximando mais ainda a cabeça da foto. – Sim! – disse ele de novo, erguendo a fotografia da Pedra de Burrows para que Will visse. Sem uma palavra de gratidão a Drake, ele se retirou para o sofá com a foto e o que restava do rolinho de bacon. – Com uma lente de aumento, isto deve servir – murmurou ele.
– Imagino que queira que eu saia e compre uma dessas também? – perguntou Drake.
– Sim, assim que puder – respondeu dr. Burrows, inteiramente envolvido na fotografia. – E alguns lápis e mais papel.
– Seu desejo é uma ordem – disse Drake com sarcasmo.
Will olhou as fotos que o pai tinha descartado na mesa. A primeira na pilha fora tirada na casa dos Jerome – era de Cal sentado na cama, com um sorriso enorme na cara. Era difícil ver a foto e Will rapidamente passou à seguinte. Era da rua no Quartel naquele dia, havia tanto tempo, quando ele e Chester tinham descido pela primeira vez no túnel sob sua casa. A foto seguinte parecia estar tomada por um único olho gigante. Will riu, depois se deteve.
– Eu não devia rir – disse ele.
– O que é tão engraçado? – perguntou Drake, curvando-se para ver a fotografia.
– O Segundo Oficial. Usei o flash da câmera para cegá-lo quando tirei Chester do Cárcere.
– Não, eu realmente preciso de uma lente de aumento – falou de repente dr. Burrows do sofá. – E que dia é hoje? – perguntou ele.
– Sexta-feira – respondeu Drake.
– Celia estará no trabalho?
– Sim – respondeu Drake.
– Então eu vou vê-la amanhã, quando ela estiver em casa, e dessa vez você não vai me atrapalhar – anunciou ele em desafio.
– Nem sonharia com isso, doutor – disse Drake. – Mas pensei que quisesse ir esta noite.
– Não, pode ser amanhã – respondeu dr. Burrows, assobiando entre dentes e já começando a tomar notas enquanto olhava da fotografia para uma das tabuletas, e de volta à foto. Era evidente quais eram suas prioridades.
– Ocupado, ocupado, ocupado – disse Drake, abrindo um jornal e lendo.
– Terminei – berrou dr. Burrows na manhã seguinte. Will tirava um cochilo no chão quando o pai correu até ele. Estava agarrado a um maço de papéis, que agitava na cara de Will. – Consegui minha rota… Agora só preciso achar o ponto de partida.
– Minha rota? – perguntou Will. – Você disse minha rota.
– Eu… É claro, eu quis dizer nossa rota – disse dr. Burrows na evasiva. – Ei, Drake! – chamou. – Quero ver minha mulher agora.
Drake veio do cômodo ao lado, sacudindo a chave do carro.
– Então vamos – disse ele.
Ao saírem da casa, o sol da manhã era tão forte que Will e o pai foram obrigados a proteger os olhos.
– Leva algum tempo para se acostumar novamente – comentou Drake enquanto destrancava o carro e eles entravam.
– Nunca me acostumei com isso – reclamou Will.
Drake deu um telefonema do celular.
– Tudo bem – disse ele, desligando. Virou-se para dr. Burrows, sentado ao lado. – Ela está na casa de Wilbrahams.
– Ela o quê? – explodiu dr. Burrows. – Tem de me levar lá! Agora!
– Claro, doutor – respondeu Drake, depois pegou o óculos de sol no porta-luvas. – Coloque isto. Não se esqueça de que a polícia ficaria muito interessada se alguém o reconhecesse. E se a polícia te pegar, os Pescoços Brancos também te pegam. – Ele ajeitou o retrovisor para ver Will. – E fique abaixado aí atrás.
Mesmo antes de o carro parar na frente da casa vitoriana, o dr. Burrows saltou dele e correu para a escada da frente. Bateu na porta até que um Ben Wilbrahams perplexo a abriu. Dr. Burrows o empurrou de lado e entrou.
– Acha que esta é uma boa ideia? – perguntou Will a Drake do banco de trás.
– Além de nocautear seu pai, não sei o que eu podia ter feito para impedir – respondeu Drake, inspecionando a rua à frente.
Menos de um minuto depois dr. Burrows saiu num rompante, com sra. Burrows nos calcanhares.
– É a mamãe! – disse Will a Drake numa voz animada, deslizando pelo banco para vê-la melhor. – Caramba… A nova mamãe otimizada! Ela está bem diferente mesmo… Está ótima! – Will conseguia ouvir a bronca da mãe pela janela aberta de Drake. – Mas ela não parece muito feliz.
– Acha que pode simplesmente aparecer, depois sumir de novo? Onde esteve esse tempo todo? Onde estão as crianças?… Onde estão Will e Rebecca? O que você fez com eles, desgraçado? – Ela gritava furiosamente para dr. Burrows, seguindo-o enquanto ele voltava esbravejando para o carro. Ben Wilbrahams apareceu na porta da frente, mas não foi atrás dela.
Will saiu do carro.
– Mãe! Mãe! – gritou ele.
Sra. Burrows parou onde estava e calou-se imediatamente. Parecia assombrada. Depois disparou para Will e atirou os braços nele.
– Meu Jesus! Eu não acreditei! Você está mesmo aqui! – gritou ela.
Will ficou pasmo com a extravagante demonstração de afeto enquanto ela o apertava com força. A velha sra. Burrows era distante e desinteressada. Não só a mãe parecia totalmente diferente, como também se comportava como outra pessoa.
Dr. Burrows já estava no banco da frente e Drake se inclinava na janela para falar com Will e a mãe.
– Não podemos ficar aqui.
– Quem é esse? – sra. Burrows quis saber, olhando Drake com desconfiança. – Foi este homem que sequestrou…?
– Não, ele salvou minha vida, mãe – disse Will, interrompendo-a.
– Entrem, os dois! – vociferou Drake. – Isso não é lugar para reencontros de família.
Drake os levou para fora de Londres, bem para a área rural. O sol forte oscilava pelas janelas do carro, fazendo Will piscar enquanto falava sem parar com a mãe. A não ser pelo ofegar ocasional, ela ouvia atentamente sem interromper. Mas não conseguiu ficar calada quando Will lhe falou de Rebecca e da crueldade Styx, e contou que no Poro foi revelado que o tempo todo eram duas Rebeccas.
– A minha Rebecca… Duas delas… Mentirosas… Assassinas? Não! Como pode ser? – disse ela numa voz tensa, vacilando entre a incredulidade e a aceitação.
Finalmente, quando Will parou para beber água, sra. Burrows soltou um longo suspiro e olhou o marido no banco da frente, que se mantinha num silêncio de pedra, com os braços cruzados beligerantemente.
– Se vocês não ficaram completamente loucos e essa história absurda não for algum sonho que tiveram, eu devo supor que seja tudo verdade – disse ela, depois franziu a testa. – Não é nenhuma pegadinha maluca que estão tentando me fazer, é?
– Ah, meu pai, ela está lendo nosso pensamento, Will – declarou dr. Burrows, com a voz pingando sarcasmo.
– O que você disse? – perguntou sra. Burrows, embora de maneira nenhuma pudesse ter deixado de ouvir.
– Sim, é uma completa ficção. Eu fui à Disneylândia por cinco meses enquanto você punha minha casa no prego e fazia um novo amigo – disse ele.
Will percebeu que os olhos da sra. Burrows tinham se estreitado a uma linha e sabia que não era um bom sinal. Ele tinha razão. Ela cerrou o punho e, de repente, inclinou-se para frente e deu um soco na cabeça do dr. Burrows, quase arrancando seus óculos da cara.
– Seu velho idiota! – gritou ela. Ela o socou de novo, desta vez precisamente no pequeno trecho careca no alto da cabeça.
– Ei, vocês dois, parem com isso! – disse Drake, perdendo um pouco o controle do carro enquanto tentava proteger dr. Burrows de mais algum golpe. – No carro, não, e não na frente de Will.
– Por que isso? – disse surpreso dr. Burrows, esfregando a cabeça.
– Por que isso? – repetiu rapidamente sra. Burrows. – Seu egoísta, seu maldito egoísta! Você saiu para alguma brincadeira idiota sem se despedir de ninguém e meteu meu filho e o amigo dele no meio de tudo isso! Eles podiam ter sido mortos!
– Mãe, por favor – Will apelou a ela. – Ele não sabia o que ia acontecer.
– É verdade – murmurou ela, sem se convencer. Ninguém falou nada após isso, olhando para o campo que passava pelas janelas. Drake por fim entrou em uma via de mão única, ladeada de sebes. Eles seguiram por uma passagem e vários quilômetros depois Drake reduziu, levando o carro para um campo. Will viu que eles estavam ao pé de um morro coberto de uma relva verdejante.
Enquanto todos saíam do carro, sra. Burrows agarrou o marido pela gola.
– Você… Você vem comigo! – ela ordenou, pegando-o com tanta ferocidade que ele se encolheu. Will quis ir com eles, mas Drake o segurou.
– Deixe que conversem – sugeriu ele.
Will olhou sra. Burrows arrastar o pai pelo morro. Parecia um homem sendo conduzido para sua execução. Embora Will não conseguisse ouvir o que a mãe dizia, a cabeça dela se movia como quem está a todo vapor.
– Sinto pena dele – disse Will. – Da última vez em que estiveram juntos em Highfield, antes de tudo isso começar, eles tiveram uma briga feia. Papai tentava contar aonde ia, mas ela não se interessou… Estava grudada demais no que passava na TV. Era só isso que ela fazia… Ver TV.
Drake e Will foram para a sombra de um carvalho grande e Drake se sentou na sua base, usando o tronco grosso como encosto.
– Meus pais nunca discutiram em todo o tempo que ficaram juntos. Nem uma vez – disse ele. – Eles engoliam tudo e eu sempre achei que foi por isso que meu pai morreu tão novo. – Ele inclinou a cabeça para o dr. e a sra. Burrows, que gesticulavam loucamente um para o outro no alto do morro. – Pelo menos os seus ainda têm alguma vida. – Escolhendo alguns galhos caídos, ele pegou a faca e começou a descascar, depois afiou as pontas. Will se recostou em um galho baixo e o observou. Quando Drake terminou, afastou a faca e examinou a madeira branca e limpa que tinha exposto. – O que acontece se você esfregar dois Styx? – perguntou, batendo dois galhos menores um contra o outro.
– E eu sei? – perguntou Will.
– Sai fogo e enxofre – respondeu Drake. – Era uma coisa que costumavam dizer nos Cortiços… E acabou sendo a verdade. Eles tiveram seu fogo. Coitados. – Will viu os olhos sem foco de Drake enquanto ele fitava o chão para além dos galhos.
– Essas varetas me lembram de quando estávamos na ilha – disse Will. – Elliott fez um churrasco de Anomolocaris para a gente… Ela chamava de Caranguejo Noturno… E algumas Garras do Diabo.
– Meus preferidos – disse Drake, distante.
– Estávamos comendo fósseis vivos – refletiu Will. Ele riu da estranheza de tudo, depois também ficou pensativo. – É bom ficar longe da escuridão e da umidade…. Mesmo que por pouco tempo. Engraçado, agora parece que já faz séculos. – Deixando as pálpebras se fecharem, ele inclinou o rosto para pegar os raios quentes que entravam pela copa folhosa e encheu os pulmões de ar fresco. – Eu sonhei com um lugar assim quando estive nas Profundezas. Havia uma relva comprida, nuvens finas no céu e o sol brilhava como o de agora… E era estranho, porque havia alguém comigo no sonho… Uma menina… Mas não sei quem era. Não vi seu rosto.
– Elliott? – perguntou Drake com gentileza.
– Ah! – exclamou Will. – Não é nada provável.
– Eu não diria isso. Elliott gosta de você, sabia?
Will riu.
– Bom, ela tem um jeito estranho de demonstrar isso.
– Essas são as meninas… as mulheres… para você – disse Drake, rindo com Will. – Sei que vocês se desentenderam muito depois daquela patrulha na Grande Planície, mas ela respeitava você por ficar ao lado dela.
Nessa hora, Will e Drake ouviram vozes elevadas atrás deles.
Sra. Burrows marchava para a árvore, e dr. Burrows a seguia. Ela gritava num tom estridente.
– Will! Will, venha cá! Precisamos falar com você.
Antes de ir ao encontro dos dois, Will cochichou para Drake.
– Parece que me querem por perto.
– É bom quando te querem por perto – respondeu Drake com um aceno de cabeça.
Os pais dele tinham parado do outro lado da árvore. A cara da sra. Burrows estava vermelha e furiosa, enquanto dr. Burrows simplesmente fitava os pés, abatido.
– Seu pai e eu discutimos as coisas e decidimos que não será mais como era antes – declarou sra. Burrows.
– Não, não será – disse dr. Burrows enfaticamente, ainda examinando os pés.
– Tudo bem – disse Will, perguntando-se aonde isso ia levar.
– Seu pai acha que tem assuntos inacabados no subterrâneo e vai voltar lá assim que puder… Mas sozinho.
– Não…! – Will começou, mas a mãe não o deixou falar.
– E decidimos que você vai ficar comigo – anunciou ela.
– Pode esquecer – Will rosnou. – Vou voltar para buscar Chester e Elliott. Não pode me dizer o que fazer, não pode mais! Você não tem ideia do que…
– Podemos achar um lugar bem longe dessa gente Styx. Talvez no litoral… Brighton pode ser…
– De jeito nenhum! – Will gritou. – Brighton? Está drogada ou coisa assim? Eles vão nos achar em dois segundos.
Sra. Burrows se eriçou.
– Não se atreva a falar…!
Desta vez foi a vez de Drake interromper.
– Não é tão simples assim, sra. Burrows. – Ele tocou o alto da cabeça no que claramente era uma espécie de sinal e um homem saiu de trás da sebe, ao pé do morro. Avançou para eles em passos rápidos e tranquilos.
– Quem é ele? E o que está fazendo, xeretando aqui? – perguntou sra. Burrows.
– Ele esteve conosco o tempo todo. Pode chamá-lo de Homem de Couro – disse Drake.
– Não ligo se ele é o Rei das Fadas – ela bufou. – De onde ele é?
– Ele é de Fiji. Esteve em minha unidade por um tempo.
– O quê… Uma unidade do exército ou coisa assim? – a sra. Burrows chiou, torcendo o lábio cruelmente enquanto sua raiva aumentava. Will se afastou um pouco dela, preocupado de ela estar prestes a distribuir socos de novo.
Drake meneou a cabeça.
– Acho que pode-se dizer que trabalhamos para o governo, numa espécie de função oficial extraoficial, até que a relação foi rompida por nossos caros amigos, os Styx. É só o que precisa saber – disse ele monotonamente.
O homem se colocou ao lado de Drake, como se esperasse por uma ordem. Uma cabeça mais alto do que Drake, parecia sólido como o tronco do carvalho. O cabelo à escovinha era preto e ele tinha um bigode bem aparado. A pele era queimada, como se ele tivesse passado a vida a céu aberto, e enquanto Will pensava consigo mesmo o quanto parecia um couro velho e curtido, ocorreu-lhe a ideia de que seu nome era muito apropriado. O homem vestia um casaco Barbour até a altura do joelho e jeans, e, quando abriu o casaco em resposta a um aceno de Drake, Will vislumbrou uma arma de aparência troncuda suspensa ao lado do corpo.
– Rifle de assalto? – perguntou o menino.
O homem parou para abrir um sorriso simpático para Will.
– Cano serrado, calibre 12 – disse, tirando alguma coisa de um bolso interno. Era uma espécie de câmera.
– Você estava dizendo – sra. Burrows vociferou a Drake, claramente nem um pouco impressionada com o aparecimento repentino do recém-chegado, ou com o fato de ele estar armado.
Drake pegou a câmera do Homem de Couro e abriu a telinha lateral.
– Então, diga, por que não posso levar Will para algum lugar, longe de todo esse absurdo? – perguntou sra. Burrows, com impaciência.
– Por causa disto – disse Drake, segurando a tela para ela ver.
– Ben? É Ben? – perguntou ela. Pegando a câmera de Drake, ela viu na tela um filme esverdeado. – Mas… Você andou espionando Ben! Não tem o direito de fazer isso!
Will conseguiu ver a tela, embora as mãos da mãe tremessem ao segurar a câmera. Não havia só o amigo da sra. Burrows na imagem – ele estava com dois homens atarracados, de chapéu de aba e óculos escuros. Depois a tela ficou branca por um instante e começou outro filme, em que Will via Ben Wilbrahams com um único Styx.
– Então, não há dúvida de que ele é um agente? – disse ele.
– Nenhuma. E peço desculpas pela má qualidade das imagens – disse o Homem de Couro, como se isso importasse. – As reuniões aconteciam à noite e eu não podia me arriscar a chegar mais perto.
Sra. Burrows deu de ombros para Drake.
– Então algumas pessoas abordaram Ben. O que isso prova? Pode ter sido um encontro ao acaso… Isso pode acontecer com qualquer um – tagarelava ela.
– Em seis ocasiões diferentes? Em locais isolados? – disse o Homem de Couro com energia. – Acho que não, irmã.
– Eu não sou sua irmã, sr. Sola de Couro ou sei lá qual é seu nome – cuspiu sra. Burrows, depois olhou novamente a tela, meneando a cabeça. Era evidente que não se convencera com os filmes. – Me diga uma coisa… Precisamente quando isso foi filmado? – perguntou ela.
– Já lhe falei… Em seis ocasiões diferentes e todas à noite. A primeira vigilância foi logo depois de você voltar à casa de Wilbrahams… Na noite em que os colonistas a perseguiram.
– Mãe? – Will lançou um olhar de preocupação.
– Você voltou à casa dele? – disse dr. Burrows. – À noite?
Sra. Burrows olhou com frieza para o marido, depois fechou a telinha e jogou a câmera para Drake com força desnecessária. Ele a pegou com uma só mão.
– Então, se tudo isso é verdade, você sabe de Ben há algum tempo, não é? – ela acusou Drake.
– Tínhamos nossas suspeitas – disse ele.
– E ainda assim deixou que ele visse meu marido e meu filho. Você deixou Roger me procurar, assim Ben saberia que ele e Will estavam de volta a Highfield.
Drake assentiu.
– Os Styx já sabiam disso, mas sim, eu assumi um risco calculado ao permitir que o doutor aparecesse, porque preciso que os Styx se mostrem.
– Mas por quê? – perguntou Will.
O Homem de Couro assumiu. Levantou a mão, os dois frascos pendurados nos dedos pelos cordões.
– Porque isto aqui não deu em nada. Você foi enganado, Will. Um está cheio do Ultramicróbio, o outro com a vacina para ele. Lamento dizer que não há nenhum vestígio do novo vírus em nenhum dos dois frascos.
– Ah, meu Deus… Não tem o vírus Dominion – Will arquejou. – Então era uma mentira desde o começo, e ainda a sustentaram quando disseram que queriam os frascos de volta no submarino. Mas será que aquelas vaquinhas malditas nunca vão parar de fazer seus joguinhos idiotas?
O Homem de Couro se voltou para sra. Burrows.
– Não faz muita diferença se os Styx sabem que seu marido está na Crosta ou não, seus dias já estão contados.
– Hein? – disse ela, agora sem muita segurança de si.
– Você teria desaparecido muito antes… Andou cavando muito fundo… Com o perdão pelo trocadilho – disse ele sem humor nenhum. – Mas agora que teve contato com o doutor e Will, eles vão achar que sabe de tudo o que eles sabem, então está marcada. Não tem opção… Terá que fugir. Mas não tem o know-how para se manter à frente dos Styx e, acredite, eles são bons. Vão alcançá-la e matá-la. É só uma questão de tempo. – Ele pegou a câmera com Drake e a recolocou no bolso. – É nesse pé que estão as coisas, irmã.
– Então podem muito bem se arriscar nos subterrâneos, os três – disse Drake bruscamente.
– Nos subterrâneos? – Sra. Burrows fez eco, com uma expressão de pavor se espalhando pela cara. – Eu?
– Que ótimo – disse Will num tom estridente, olhando o pai. – É justo o que queremos, não é, pai…? Voltar.
– Cala a boca, Will – murmurou sra. Burrows, em evidente aflição, pelo modo como tremia.
– Não, Will tem razão – disse Drake. – Se ele e o doutor conseguiram sair do Poro, então é inteiramente possível que as gêmeas Rebecca tenham feito o mesmo. É claro que é possível que elas estejam mortas, mas alguém precisa se certificar disto. Se sobreviveram à explosão de Elliott, ainda têm o vírus Dominion verdadeiro. E não podemos correr esse risco. – Ele olhou a meia distância, como se tivesse acabado de lhe ocorrer uma ideia. – Mas pode haver algo que você possa fazer por mim aqui, Celia.
– O quê? – resmungou ela.
– Bom, você não é exatamente feita para escavar os subterrâneos, não é? – perguntou ele.
Sra. Burrows ficou pálida e, quando as pernas dela vacilaram, Will achou que a mãe estava a ponto de desmaiar.
PARTE SEIS
A Partida
Capítulo Vinte e Oito
No Little Chef, Will e o pai se sentaram de um lado da mesa, Drake e sra. Burrows do outro. A comida tinha chegado, mas sra. Burrows não tocou na dela. Afastou o prato e olhou a via expressa pela janela, vendo o fluxo interminável de carros.
Drake disse a eles que quando terminassem de comer ia levar Will e dr. Burrows de volta a Norfolk, e o Homem de Couro – embora não estivesse à vista – levaria sra. Burrows para Londres. Então era ali que seus caminhos se separavam, a última refeição antes de tomarem rumos distintos.
Às outras mesas, caminhoneiros comiam em silêncio e sozinhos, e num canto havia um casal jovem com seu bebê barulhento numa cadeirinha. Ouviu-se um estrondo quando uma das garçonetes deixou cair uma pilha de pratos, e sra. Burrows se encolheu. Não era preciso muito para ver que seus nervos estavam à flor da pele. Ela bebeu apressadamente um gole de água, e a mão tremia ao recolocar o copo na mesa.
– Você teve que se meter em coisas que não entendia, não é? Se tivesse deixado tudo quieto, nada disso teria acontecido – disse ela muito baixo.
– Quem… Eu? – perguntou dr. Burrows, com o garfo postado diante dele.
– Quem mais seria? – respondeu ela com amargura.
– Por favor, não comecem a brigar de novo – disse Will, olhando preocupado enquanto puxava a tigela de fritas.
Sra. Burrows pousou a cabeça entre as mãos e suspirou.
– Não, Will, eu não tenho mais energia para isso. – Ela o olhou. – E o que importa realmente não é seu pai, nem eu. Já tivemos nossa vida e fizemos dela um inferno. Mas você é jovem. Tem toda a vida pela frente. Desculpe, Will. – Ela estendeu a mão e apertou seu braço. – Desculpe por você ter sido arrastado no meio disso tudo.
Will limpou ketchup do canto da boca.
– Mãe, eu estou no meio disso tudo. Sempre houve uma chance de minha verdadeira… – ele se interrompeu.
– Sua verdadeira mãe – sra. Burrows o ajudou.
– Sim… Uma chance de essa Sarah Jerome aparecer de novo. Era o que os Styx queriam que acontecesse. – Ele pegou uma batata com os dedos e a mastigou lentamente. – E eu era problema para eles também. Em algum momento eu seria pego ou morto, de qualquer forma. – Will olhou de lado para Drake. – Não é verdade?
Drake baixou a xícara de café e assentiu.
– Eles jogam pesado. Teriam dado um jeito em tudo mais cedo ou mais tarde – concordou ele.
O bebê começou a urrar, os gritos penetrantes fazendo os caminhoneiros se remexeram nas cadeiras e resmungarem como se tivessem sido despertados de um sono muito profundo.
– Não suporto isso – disse sra. Burrows de repente, levantando-se. – Vou sair.
– Quando estiver lá fora, vá para o posto de gasolina. O Homem de Couro vai parar a seu lado num furgão branco. Entre nele – disse-lhe Drake.
– Que seja – disse sra. Burrows.
Dr. Burrows e Will se levantaram também.
Sra. Burrows estendeu a mão e depois de uma fração de segundo de hesitação, dr. Burrows a apertou.
– Boa sorte – disse sra. Burrows.
– Boa sorte para você também – respondeu dr. Burrows, depois prontamente voltou a se sentar.
Foi um gesto tão formal, como se dois estranhos estivessem se despedindo, que Will não soube o que fazer.
Ficou parado na frente de sua cadeira, e sra. Burrows contornou a mesa até ele.
– Venha cá – disse ela, pegando-o nos braços. Ela chorava e Will mal conseguiu conter as próprias lágrimas. Ela continuou abraçando-o, como se não quisesse soltá-lo. – Cuidado, Will. Lembre sempre que eu te amo – disse ela por fim no que não passava de um murmúrio e foi para a saída, enxugando os olhos.
– Eu te amo também, mãe – disse Will, mas ela já havia passado pela porta e estava no estacionamento, afastando-se rapidamente.
Will se sentou pesadamente na cadeira. Olhou as batatas fritas que restavam e desviou os olhos. Não se lembrava da última vez em que a mãe falara com ele com tanto carinho, ou lhe dissera que o amava. Sabia que ela provavelmente havia feito isso quando era mais novo, mas não conseguia se lembrar de uma ocasião que fosse. Enquanto o bebê no canto do salão gritava de novo, ele percebeu que fora preciso passar por todo aquele pesadelo para consertar a porcaria que tinha sido a vida deles na Crosta e revelar o que sua mãe realmente sentia por ele. E o que ele sentia por ela.
Ele estava dominado ao mesmo tempo por um senso de gravidade e uma perda dolorosa.
A garçonete apareceu com seu pedido de sorvete, três bolas de chocolate, morango e baunilha, e ele meteu uma colherada na boca, mais para se distrair do que por qualquer outro motivo, porque não queria que o pai e Drake vissem que reprimia sua emoção. Mas o gosto do sorvete só piorou tudo – um gosto distante da infância, dos anos perdidos. Ele se levantou da mesa e foi para a porta, querendo falar com a mãe uma última vez antes de ela partir.
Mas não a viu ao sair, nem o furgão que Drake disse que a pegaria. Ele correu para o posto de gasolina para ver se a mãe estava lá, depois voltou ao Little Chef, onde procurou desesperadamente pelo estacionamento. Mas de novo não havia sinal dela. Ele chegou tarde demais.
Drake e o pai ficaram esperando por ele no restaurante, mas Will estava perturbado demais para enfrentá-los. Num canto do estacionamento, ele se abaixou atrás de uma lixeira sobre rodas, onde ninguém poderia vê-lo. Olhou o céu e chorou sem parar.
No final da tarde, eles chegaram ao perímetro do antigo campo de pouso. Drake conduziu o Range Rover para um desvio e parou. Will estava na frente com Drake, enquanto dr. Burrows se esticava no banco traseiro. Will e Drake ouviam a respiração regular, indicando que ele dormia.
– Está tudo bem para você, Will? – perguntou Drake numa voz baixa.
– Acho que sim.
– Depois que descerem, sua prioridade é entrar em contato com Elliott – disse Drake.
– Eu faria isso de qualquer jeito – Will se interpôs. – E com Chester.
– Sim, claro que faria. Mas quando a encontrar, informe a ela o que eu quero que façam. Precisamos ter certeza de que as gêmeas Rebecca e o Limitador que sobreviveu estão inoperantes e de que foi neutralizado qualquer risco de o vírus Dominion reaparecer. Você, Elliott e Chester devem fazer o que for necessário. Não deixe que nada os atrapalhe. – Ele parou de falar quando o dr. Burrows se agitou dormindo e soltou alguns roncos. – Ou alguém – disse Drake a Will, olhando dr. Burrows no banco traseiro para enfatizar a quem se referia. Depois suspirou. – Eu iria com você, mas tenho algumas coisas para resolver aqui em cima.
Will assentiu enquanto Drake continuava.
– Depois disso, se você, Chester e Elliott decidirem voltar à Crosta, sei que podemos planejar alguma coisa. Não posso dizer que será fácil para nenhum de vocês, mas…
– Obrigado – disse Will, sem precisar ouvir o resto. – Mas e meu pai? – perguntou ele.
– Tenho a sensação de que ele prefere ficar o mais longe possível da superfície, depois do que houve com sua mãe. Acho que ele não pretende voltar por algum tempo. – Drake olhou o relógio. – Muito bem, é melhor acordar a Bela Adormecida para prepararmos o equipamento e te colocar em seu caminho de novo.
No porta-malas aberto do Range Rover, Drake verificou se eles tinham tudo o que precisavam para a viagem. Trouxe grandes mochilas militares para Will e o pai, as quais Drake chamava de Bergens, cada uma consideravelmente maior do que a que Will usava.
– E agora chegamos ao que interessa – anunciou Drake. Ele pegou uma bolsa de viagem na mala e a abriu. – Aqui está o dispositivo de visão, Will. Funciona perfeitamente de novo.
– Qual era o problema? – perguntou Will.
Drake lhe mostrou um anel de plástico soldado em volta do fio, emendando-o.
– Alguém fez uma incisão mínima para cortar o circuito. Não foi pelo uso, nem rasgou… Foi sabotado.
– A Rebecca Um – disse Will devagar. – Desgraçada! Ela deve ter estragado meu visor e a mira do rifle. Chester tinha toda razão em suspeitar que foi ela. A gêmea obviamente não queria que a gente visse que um Limitador nos seguia!
– Você entendeu bem – disse Drake, depois pegou uma caixa que parecia conter latas de aerossol, embora fossem cinza e não tivessem marca nenhuma. – Fizemos uns testes com a amostra de fogo-anisado e descobrimos que uma oxidação libera uma grande quantidade de N-dietil-meta-toluamida.
– Essa é fácil de pronunciar! – Will riu.
– DEET, para resumir. É um repelente de insetos de jardim, mas o material nos aerossóis tem potência industrial. Muito útil se você estiver sofrendo ataque. Também pode borrifar em suas roupas e na mochila. Deve manter as aranhas a alguma distância, e seus amigos também. Mas evite o contato com a pele. Entendeu?
– Entendi – disse Will.
– E o combustível para o motor de popa? – disse dr. Burrows num tom esganiçado.
– Tudo em seu tempo, doutor… Ainda não terminei. – Drake manteve a bolsa de viagem aberta para Will ver o que mais havia ali. – Estou te dando algumas cordas de alpinismo. E como você gosta tanto de fogos de artifício, meti uns sinalizadores de emergência aqui também, junto com outras belezinhas. – Drake empurrou uma terceira Bergen para eles e a abriu.
– Explosivos – disse Will, reconhecendo os tambores que Drake e Elliott tinham usado nas Profundezas.
– Com uma diferença… Desta vez não têm minha mistura caseira, mas C4… Explosivo plástico. Este lote é para Elliott, mas pode dizer a ela para ter cuidado ao acender essas crianças, porque são muito mais potentes do que qualquer coisa que ela tenha usado na vida. E por fim, mas não menos importante – anunciou, erguendo uma caixa de plástico preto brilhante de um bolso lateral da terceira Bergen. Tinha o tamanho de um baralho e dela saía um pedaço de fio. – Isto é um radiofarol – disse, depois ergueu o fio para que Will e dr. Burrows pudessem ver. – Emite um sinal de rádio chamado VLF, que significa Very Low Frequency. A tecnologia ainda é incipiente e ninguém sabe até que ponto vai o alcance, mas deixe em pontos estratégicos de sua rota e vai te ajudar a achar o caminho.
– Como João e Maria deixando uma trilha de farelos de pão na floresta – comentou dr. Burrows com ironia.
– Algo parecido, mas estes são farelos digitais com baterias de vinte anos. Estou dando a vocês quinze faróis e alguns rastreadores – disse Drake, girando para ficar de frente para dr. Burrows. – E seu combustível já está esperando por você, doutor. Pedi ao Homem de Couro para entrar à noite e colocá-lo perto do cais, ao lado do kit que deixou lá.
– Ele soube como chegar lá, assim tão fácil? – perguntou dr. Burrows, maravilhado.
Drake amarrou de novo a Bergen e a empurrou para Will.
– Não somos amadores, sabia? – disse ele.
– Não, é claro que não – Dr. Burrows fungou, incomodado. – Vocês têm acesso a armas, laboratórios para análise de vírus, equipamento de visão noturna de última geração e outras tecnologias que nunca vi na vida. Mas quem diabos são vocês? – ele perguntou. – Não nos contou isso.
– Já ouviu falar dos Illuminati? – disse Drake.
– Claro que sim… A sociedade secreta alemã do século XVIII – respondeu dr. Burrows com muita autoridade, lançando um olhar de esguelha ao filho para ver se ele tinha ficado impressionado.
– Isso mesmo… Os Illuminati foram criados por Adam Weishaupt em 1776 na Baviera – disse Drake, depois respirou fundo. – Bom, acho que pode dizer que temos vagos paralelos com eles. Somos uma rede clandestina de cientistas, militares e algumas autoridades de governo. Mas, ao contrário dos Illuminati, não nos reunimos para propósitos sinistros… Longe disso… Temos uma única meta: tentar combater os Styx do jeito que pudermos.
– Isso não me ajuda muito.
Drake piscou para dr. Burrows e baixou a voz a um sussurro teatral.
– Não era minha intenção ajudar.
Capítulo Vinte e Nove
Alancha seguia com alguma velocidade pelo rio, precisando de pouca assistência do motor de popa, a não ser quando Will acelerava para mantê-la no meio do canal. E embora dr. Burrows tivesse assumido posição na proa, Will agora tinha o dispositivo de visão noturna e não precisava de nenhuma orientação sobre o que havia à frente.
Eles passaram direto pela primeira estação de reabastecimento, mas pararam na segunda para se secar e descansar um pouco. Comeram alguma coisa, escolhendo um curry da impressionante seleção de rações leves que Drake lhes providenciara.
Enquanto se recostavam depois da refeição, aquecendo as mãos no fogão a gasolina, Will se voltou para o pai.
– Depois que chegamos na Crosta, você não tinha nenhuma intenção de me trazer de volta para cá, não é? – acusou ele. – Você ia me largar com a mamãe, assim eu não ficaria no seu pé. Na verdade, esse era o único motivo para você querer ir para casa, não é? Você queria se livrar de mim. Você mentiu para mim, pura e simplesmente. É aquela história do camundongo branco de novo?
Dr. Burrows fechou os olhos por um momento e voltou a abri-los.
– Era para seu bem, Will. Eu estava tentando fazer o que era melhor para você.
Will lançou ao pai um olhar seco.
– E ontem você estava mais interessado em trabalhar nas suas preciosas tabuletas do que ver a coitada da mamãe. Você não dá mais a mínima para ela, não é?
– Como posso dizer, Will? – A voz do dr. Burrows estava tensa quando ele tentou se explicar. – É meio parecido com meu emprego no museu. Eu precisava dele porque tinha de ganhar dinheiro para nos sustentar, mas nunca era eu. O tempo todo sabia que podia fazer algo melhor… Algo excepcional. E às vezes os relacionamentos… os casamentos… são a mesma coisa. As pessoas ficam com o que conseguem, embora, no fundo, não estejam realmente felizes. Eu lamento dizer que sua mãe e eu nos separamos. Você deve ter visto.
– Mas não precisava ser assim – rebateu Will, ficando muito aborrecido. – Você não precisava desistir. Nem se esforçou muito!
– Estou me esforçando agora mesmo – respondeu o dr. Burrows. – Estou tentando fazer algo que faça as pessoas se orgulharem de mim. Estou tentando fazer com que você tenha orgulho de mim.
– Não se incomode com isso – Will resmungou com desdém, puxando a gola do casaco para cima e cruzando os braços.
Os dois dormiram e mal se falaram ao voltarem à lancha para continuar a jornada. Novamente passaram sem parar por um posto de reabastecimento, sabendo que se insistissem e continuassem, chegariam ao porto subterrâneo em menos de vinte e quatro horas.
E assim, depois de um dia e meio de viagem, a barreira que atravessava o canal e abrigava as turbinas hidrelétricas assomaram diante deles. Will estava na proa, mas, devido ao cansaço, não estava atento como deveria. Só viu tudo no último minuto, gritando um alerta ao pai. Não deu muito tempo para o dr. Burrows manobrar. Ele teve de acelerar a toda para impelir os dois na curva para o porto. Bateu na parede do arco ao passar, lascando o alto do casco. Mas o dano não foi sério e, agora em águas calmas, ele finalmente desligou o motor e os dois costearam lentamente para o píer.
Com a intensidade das luzes fazendo-os piscar, Will se segurou no poste de amarração e depois saltou do barco para o píer num só movimento, sem nenhum esforço.
– Aposto que está mais feliz, agora que tem seus superpoderes de volta. – Dr. Burrows riu, tentando ao máximo aliviar a tensão entre eles. – Vamos descarregar tudo, depois podemos nos secar.
– Pai – começou Will, enquanto se agachava na lateral do píer. Ele ainda podia estar com raiva do pai, mas sabia que tinha de se entender com ele se quisessem chegar a algum lugar. – Estamos de volta, mas não temos realmente nenhum plano, temos?
– Claro que sim. Eu tenho algumas orientações, que estão quase completas – contrapôs dr. Burrows.
– Mas você ainda não sabe onde começa o mapa.
– As tabuletas dizem que a rota começa no lugar com o mar caindo e perto da pedra solitária, se minha tradução estiver correta. E deve ser algum lugar perto do submarino, porque creio que a “pedra solitária” seja aquela que aparece na foto do submarino. E você também pensou que a salmoura… a água do mar… estava caindo dentro do vazio. Para mim, é promissor.
– Tudo bem, mas o submarino não está mais lá, agora que Elliott explodiu grande parte do vazio em pedacinhos, e antes que eu faça qualquer outra coisa vou procurar meus amigos. Depois preciso ter certeza de que as gêmeas Rebecca e o Limitador estão fora de ação.
Dr. Burrows olhou para Will no píer e respirou fundo.
– Então temos muito o que fazer mesmo – disse ele.
Drake ficou ao pé da escada enquanto sra. Burrows batia na porta de Ben Wilbrahams. Ele atendeu, de roupão de seda e chinelos.
– Celia! – disse ele com surpresa. Tirou os óculos pousados no alto da cabeça e os colocou corretamente. – Eu não esperava… ver… – Sua voz definhou quando seus olhos caíram em Drake, que o encarava friamente da calçada.
– Vamos deixar as amabilidades de lado – disse sra. Burrows num tom firme. Ela meteu as mãos no casaco de couro e virou a cabeça para olhar a rua, torcendo os lábios com desdém. Não olhou para Ben Wilbrahams enquanto falava, como se sua simples visão lhe fosse repulsiva. – Diga a seus amigos que temos uma coisa que eles querem. Temos informações sobre as gêmeas e o vírus que estava com elas.
– Meus amigos? O vírus? – perguntou Ben Wilbrahams.
– Não estou com humor para brincar com você! – ladrou sra. Burrows, só agora se virando para ele. – Então não desperdice meu tempo. Você sabe exatamente do que estou falando. Estou preparada para fazer um trato com os Styx. Diga a eles que podem ter o Dominion e as gêmeas, mas em troca deixarão minha família e eu em paz. E só farei o acordo com alguém que possa me dar garantias, então quero negociar com o sr. Mandachuva.
Ben Wilbrahams piscou, mas não disse nada.
– Sei exatamente como é o Styx grisalho, então diga a eles que não tentem nos enganar com algum impostor – acrescentou Drake. Era uma mentira deslavada, porque ele só vira o velho Styx de muito longe, quando ele dava ordens perto da beira do Poro. – E eles precisam se apressar. Em quarenta e oito horas daremos um fim ao sofrimento das gêmeas e incineraremos o vírus.
Drake ergueu os dois frascos para que Ben Wilbrahams os visse, depois os colocou no bolso.
– Se a resposta for sim – disse sra. Burrows, apontando para a maçaneta da porta dele –, amarre sua peruca aqui. Vamos ver e entrar em contato com você para marcar onde e quando.
Ben Wilbrahams automaticamente colocou a mão na cabeça.
– Como você soub…?
– Ah, tenha dó, já vi perucas melhores no brechó. – Ela o olhou com desprezo, depois deu meia-volta e desceu a escada. Enquanto se afastava com Drake, ela gritou: – Lembre-se… Eles têm quarenta e oito horas para agir.
Drake olhou sra. Burrows enquanto eles iam de carro para o esconderijo.
– Não ensaiamos nem a metade do que você disse a Wilbrahams, mas foi perfeito. Eu mesmo não teria feito melhor – ele a parabenizou. – Onde aprendeu a se virar desse jeito?
– Ah, aqui e ali – ela deu de ombros, olhando uma vitrine cheia de televisores ao passarem rapidamente. – Mas não acha que isto está arriscado demais? Agora que mexemos no ninho de vespas, elas não vão cair em cima de nós com tudo?
– Claro que vão, mas se conseguirmos atrair o sr. Mandachuva… como você o chamou… para fora da toca e o pegarmos, teremos um trunfo. No momento estamos jogando sem cartas na mão… Não temos nem o vírus Dominion, nem as gêmeas, mas…
– Mas eles não sabem disso – interrompeu sra. Burrows. – E o que vai acontecer se eles não quiserem se encontrar conosco?
– Vamos saber então que eles já têm o vírus e não precisam de nós. E o verdadeiro motivo da ação é este, porque assim saberemos se estamos com problemas, e problemas graves.
– Estou com você – disse sra. Burrows –, mas nesse meio tempo eu sou a isca do tubarão, ou devo dizer isca de Styx?
Capítulo Trinta
– Drake, sou eu. Só quero que saiba que chegamos ao abrigo subterrâneo – disse Will no telefone preto da cabine de operação de rádio. Quando parou de falar, ouviu um estalo no fone, mas além disso só havia o silêncio. – E por favor, diga a minha mãe… – A voz de Will ficou instável e ele engoliu em seco. – Diga a minha mãe que eu a amo mais do que tudo no mundo e que a verei logo. – Assim que colocou o fone no gancho, dr. Burrows meteu a cabeça pela porta.
– Pensei ter ouvido você falando com alguém – disse ele. – O que foi?
– Deixei um recado para Drake – respondeu Will.
Dr. Burrows ficou decepcionado.
– Não percebe que este homem está nos usando… a todos nós… não é? Ele o colocou para correr atrás das gêmeas e dos frascos de Dominion, e Deus sabe o que ele vai obrigar Celia a fazer. Ele só usa as pessoas para seus fins questionáveis.
– Drake é meu amigo. E se não fosse por ele, você agora estaria morto – rebateu Will, encerrando a conversa.
Eles passaram as doze horas seguintes arrumando o equipamento e dormindo um pouco. Quando finalmente estavam prontos para partir, Will e dr. Burrows fecharam a imensa porta a suas costas e pararam junto ao painel de eletricidade.
Will olhou o vacilar mínimo do ponteiro no mostrador principal quando o pai segurou a primeira chave e a empurrou para cima. Ele fez o mesmo com as outras, e o porto mais uma vez voltou à escuridão.
– Precisamos mesmo desligar a força? – perguntou Will.
– Sempre deixe um lugar como gostaria de encontrá-lo – respondeu o dr. Burrows. – Nunca se sabe quando pode precisar dele de novo.
Ao andarem lado a lado na escuridão, o globo luminoso da lanterna Styx de Will ganhou vida, aumentando seu brilho até que a sublime luz verde vertia da lente.
– Lá vamos nós de novo – disse Will num sussurro enquanto lançava o facho de luz nas costas de sua mão.
Eles saíram da construção de concreto e andaram pelo cais, os dois com grandes Bergens nas costas, que levavam muito mais equipamento do que as mochilas civis que usaram antes. E apesar do fato de que Will carregava duas dessas mochilas, uma enganchada na outra, e também uma bolsa de viagem de bom tamanho, seu rifle e a Sten Gun, graças à baixa gravidade parecia que ele não levava nada além de um saco de plumas.
Ao pensar nisso, ele se virou para o pai.
– Estou com aquele enjoo de novo.
– Sim, percebi que você estava meio verde. Eu também senti, quando desci ao Poro na primeira vez. Não há por que se preocupar… É que seu intestino depende do auxílio da gravidade normal no peristaltismo, o mecanismo pelo qual os músculos do duodeno ondulam e movem a comida mastigada por seu…
– Pai, por favor, eu disse que estou enjoado! – gemeu Will, colocando a mão na boca.
Ao seguirem pela fenda estreita, Will plantou o primeiro dos radiofaróis de Drake, alojando-o em uma fresta no alto da parede.
– Farelo número um – disse ele.
Era o final da manhã e a luz se derramava na sala vazia. Sra. Burrows estava no meio de sua rotina de ioga quando ouviu Drake chamando do térreo. Ela sentia falta de suas idas quase diárias à academia e isso era o melhor que podia fazer, exercitar-se no chão de um dos quartos do hotel que por ora Drake usava como esconderijo. Levando uma toalha e uma garrafa de água, ela foi para o corredor e desceu correndo o lance de escada até onde Drake e o Homem de Couro esperavam. O saguão do hotel ainda estava intacto, com a recepção e algumas mesas e cadeiras arrumadas por ali. Drake e o Homem de Couro estavam logo na entrada da porta principal.
– Oi, meninos – sra. Burrows os cumprimentou. – E aí?
– O Careca Wilbrahams acaba de botar o cabelinho na maçaneta – disse o Homem de Couro com seriedade.
– Não brinca! – disse sra. Burrows sem acreditar, depois soltou uma gargalhada áspera, e Drake e o Homem de Couro se juntaram a ela.
Drake lhe estendeu o celular.
– Então está tudo em andamento. Você precisa ligar para ele, marcando hora e lugar – disse ele em voz baixa.
Sra. Burrows parou de rir ao pegar o telefone.
Enquanto Martha batia na porta da barricada da Caverna dos Lobos, Chester se agitava no trecho macio de terreno onde estava cochilando. Ele gemeu e se levantou, depois esfregou as costas e gemeu de novo. Enxugando a face que esteve encostada na terra e jogando o cabelo comprido para trás, ele murmurou consigo mesmo “Sou um homem das cavernas” ao seguir para a entrada. Ali deslizou a trave da porta para Martha entrar. A primeira coisa que viu foi Bartleby andando lentamente atrás dela.
– Mantenha esse gato desgraçado longe de mim – disse ele numa voz rabugenta.
Depois ele percebeu que Martha sorria de orelha a orelha.
– Tiramos a sorte grande – anunciou ela alegremente.
Ele viu o que estava no chão ao lado dela e recuou um passo.
– Urrhhhh!
Subia vapor de um pelo escuro e embaraçado. Era difícil distinguir precisamente o que seria – mais parecia que alguém tinha jogado um tapete velho e felpudo ali, até que ele viu o focinho grosso se projetando da coisa.
– Isso é um lobo?
– Mas é claro – disse Martha. – Apanhado em uma de minhas armadilhas. Uma fera de verdade… Precisou de três tiros na nuca para morrer.
– Três tiros – repetiu Chester, sem realmente perceber o que falava enquanto Martha se abaixava para pegar uma perna traseira e arrastar o lobo morto, passando por ele.
Chester a observava, meneando a cabeça.
– Eu sou mesmo um homem das cavernas. – Ele suspirou numa aquiescência muda e estava prestes a fechar e trancar a porta quando se lembrou de que Bartleby ainda estava lá fora. Os olhos grandes de pires do gato se fixaram nervosos em Chester – o animal sabia que não era lá muito popular.
Com um grunhido de ressentimento, Chester acenou para o gato entrar. Bartleby entendeu o recado, passando cautelosamente por ele, depois saltando para as cavernas atrás de Martha.
Chester também foi atrás dela e descobriu que não estava onde ele esperava, na área com o chão de terra macia que eles costumavam ocupar. Quando finalmente a alcançou mais para dentro do complexo, ela já estava preparando a carcaça e Elliott a olhava, extasiada.
Martha cortou um dos globos oculares para fora da órbita do lobo, fez uma pequena incisão, depois o colocou na boca. Espremeu com força e o fluido do globo ocular escorreu por seu queixo peludo enquanto ela bebia.
– Meu Deus – disse Chester.
Martha passou a cortar o segundo olho. Também deu uma estocada nele com a faca, mas desta vez o passou a Elliott.
– Uma boa fonte de fluido – Martha aconselhou Elliott enquanto a menina bebia o dela.
– Oooohhh! – gemeu Chester, sentando-se de repente.
– Isso é bom – disse Elliott, depois olhou para Chester. – Devia experimentar da próxima vez.
Chester soltou um gorgolejo e Elliott riu. Ele levou alguns segundos, mas também acabou achando graça. Balançou a cabeça enquanto Elliott voltava toda sua atenção a Martha, vendo como estripava a fera grande.
A recuperação de Elliott fora como um milagre. Os antibióticos tinham feito seu trabalho e ela quase parecia ser a Elliott de antigamente. Mas não era exatamente como antes. Havia algo de diferente nela – comparada com a Elliott taciturna das Profundezas, Chester tinha percebido que ela agora era mais sociável e às vezes até alegre.
Talvez, como a Rebecca Um avisara que podia acontecer, a febre tivesse “cozinhado seu cérebro”. Mas Chester preferia pensar que era porque Elliott estava grata por ele, Will e Martha terem feito de tudo para salvar sua vida. Qualquer que fosse o motivo, ela tornava suportáveis para Chester os longos dias engaiolados na Caverna dos Lobos, conversando com ele e jogando o jogo da velha com riscos de gravetos na terra.
Elliott também conversava com Martha por horas, evidentemente tentando obter o máximo de conhecimento local que pudesse. A garota insistira para que Martha lhe mostrasse como preparar aranhas-macaco para o cozimento e se tornara tão perita nisso que assumia a tarefa sempre que Martha voltava de uma de suas caçadas. E agora ela estava aprendendo a preparar um lobo das cavernas.
Houve um som terrível de algo rasgando quando Martha arrancou uma perna da fera morta e o sangue jorrou em jatos pequenos de seu tronco.
– Martha, por que você desceu até aqui? – perguntou Chester enquanto virava a cara e olhava a parte desconhecida da caverna.
– Porque o cheiro pode atrair outros lobos… e aranhas – respondeu Elliott, pegando o membro decepado com Martha e colocando numa pedra achatada. – E se você quiser ser de alguma utilidade, por que não acende um fogo para nós?
– Claro – disse Chester.
O lobo estava delicioso e foi uma alteração bem-vinda na dieta de carne de aranha que eles comiam havia dias. Depois de se alimentarem, eles ficaram sentados num silêncio satisfeito. Mas Chester tinha dificuldade para relaxar. A cada dia que passavam sem sinal de Will, ele ficava cada vez mais impaciente para voltar e procurar por ele. Escolheu esse momento para abordar Martha de novo sobre isso.
– E o que vamos fazer? – perguntou, enquanto ela se sentava encostada na parede, com Bartleby a seu lado. – Não podemos ficar aqui para sempre.
– Agora que Elliott está mais forte – começou Martha, como se estivesse esperando a pergunta –, podemos voltar para a cabana. Estamos ficando sem fogo-anisado, mas se o usarmos com cuidado, deve ser suficiente para a viagem para casa.
Chester meneou a cabeça.
– Pode ser que Will já esteja lá – acrescentou Martha rapidamente. – Não vejo como ele sobreviveria por tanto tempo se ainda estivesse no vazio.
– Ele sobreviveu na completa escuridão por mais de um dia, sem comida nem água, quando nos separamos nas Profundezas. Desta vez ele tem a mochila e o pai. Will não é de se entregar fácil – disse Chester.
– Bom, então podemos voltar ao vazio e dar uma boa olhada na área. Nunca se sabe, se Bartleby pegar o cheiro dele, talvez possamos rastreá-lo. Mas será arriscado se o encontrarmos, estaremos nos expondo ao perigo o tempo todo. Se Will sobreviveu à explosão, talvez os Styx também tenham conseguido, e não se esqueça dos Faróis. Eu não…
– Eu vou procurar por ele, mesmo que tenha de fazer isso sozinho – Chester a interrompeu.
Elliott tinha se aproximado para ouvir a conversa.
– O que você acha? – Chester perguntou a ela.
– Estou com você. Nunca deixamos um dos nossos para trás – disse ela de forma resoluta. Nesse instante, Chester percebeu o quanto ela parecia com Drake, e o animou que ela estivesse tão decidida a procurar Will. – Enquanto houver a menor chance de ele ainda estar lá fora e vivo, vamos continuar procurando – acrescentou ela. – Ele faria o mesmo por nós.
– Sim, faria – concordou Chester. – O bom e velho Will.
– Trate de andar, ou vou deixar você para trás! – Will ameaçou o pai, que de novo tinha ficado para examinar algo que atraíra sua atenção. Desta vez era uma formação mineral do lado da fenda.
– Esses depósitos amarelados que sempre vemos… Eu realmente acredito que seja eletro – disse dr. Burrows, virando-se um pouco para Will. – Sabe o que é?
– Um mineral? – chutou Will, sem mostrar um grama que fosse de entusiasmo.
– Não é um mineral antigo qualquer, meu filho. É uma liga de ouro e prata… E numa proporção muito alta de ouro, pode apostar!
– Não temos tempo para isso – Will o repreendeu. – Vamos, ande logo!
O dr. Burrows se endireitou.
– Mas por que essa pressa toda de repente? Já estamos viajando há mais de uma semana. Seus amigos já terão ido embora há muito tempo quando chegarmos lá.
Estava muito claro que dr. Burrows não dava a mínima para Chester, Elliott ou Martha. Will não respondeu e expressou sua frustração empunhando a Sten Gun, que ele decidira usar como principal arma de fogo porque era mais curta e muito mais fácil de manejar do que o rifle pendurado nas costas. E ele também pensara que combinava com seu traje militar.
– Não há pressa – disse dr. Burrows de novo. Ele voltou a atenção para o depósito mineral e começava a assobiar daquele jeito irritante, de forma que Will mal conseguia controlar o mau humor.
– Divirta-se com o eletro – disse ele entre os dentes cerrados, pisando com violência enquanto disparava fenda abaixo. Percebendo que estava passando pela boca escura de um túnel lateral, ele verificou o aerossol de repelente de inseto que tinha preso no antebraço com fita adesiva. Com isto, o dispositivo de visão de Drake e a submetralhadora, ele se sentia pronto para qualquer coisa, com ou sem o pai a seu lado.
– Ei, Will! Espere por mim! – gritou dr. Burrows, correndo para alcançar o filho.
Capítulo Trinta e Um
– H á anos e anos que não venho aqui – observou sra. Burrows quando ela e Drake passavam sob o arco de metal da entrada do Highfield Common.
Uma adição recente ao parque, o arco era extremamente moderno – um tubo de aço inox escovado em forma de arco-íris, sobre o qual a hera fora estimulada a crescer. A combinação da hera com o aço funcionava até certo ponto, embora o efeito fosse estragado pelos numerosos pares de tênis surrados, com os cadarços amarrados, que tinham sido jogados sobre o topo. E as calcinhas exibidas ao lado dos tênis só aumentavam a impressão geral de abandono.
Mas a sra. Burrows não percebia nada disso. Sua mente estava em outro lugar, enquanto lembranças distantes eram reacesas.
– Eu costumava trazer meus filhos aqui nos carrinhos quando eles eram pequenos – disse ela. Quando caiu em si, sua cabeça se levantou de repente e ela olhou para Drake. – Eu costumava passear com uma criança Styx… Não, pior ainda, eu passeava com duas delas. E EU NÃO TINHA A MAIS REMOTA IDEIA! – exclamou ela.
– Calma, Celia – Drake a alertou. – Não queremos chamar atenção. – Ele indicou o caminho de cascalho que levava ao alto da colina e os dois subiram num ritmo descontraído, passando por dois meninos que tentavam desembaraçar uma pipa. – Não tem vento suficiente para isso – comentou Drake, e ele e sra. Burrows por instinto olharam as nuvens que pareciam estar fixas no céu azul claro.
– É engraçado como a gente só dá valor às coisas – disse a sra. Burrows, baixando os olhos do céu e tragando a exuberância da relva e das árvores – quando acha que vai perdê-las. – Ela voltou a cabeça para a Broadlands Avenue, onde os telhados das casas eram visíveis depois da curva da colina e das árvores. – Ou já as perdeu.
No alto da colina, havia uma área mal asfaltada, no meio da qual ficava um bebedouro vitoriano de granito. Drake foi até lá e apertou o botão de bronze escurecido, que deveria produzir um jato de água cintilante da bica no meio da cuba rebaixada. Mas agora nada aconteceu; não caiu nenhuma água na cuba, onde havia apenas um tapete escuro de folhas podres e uma lata de Coca-Cola amassada.
– E então, a essa hora amanhã, eu estarei aqui esperando pelos Styx – disse a sra. Burrows ao olhar o relógio. Ela franziu muito a testa ao fitar a área ao pé da colina. – E estamos mesmo seguros aqui, agora? Eles não estariam nos observando, decidindo nos pegar ou coisa assim?
– É improvável – disse Drake. – Testemunhas demais.
– Mas ainda assim… – sra. Burrows começou.
– Relaxa. Eles sabem que não seríamos tão idiotas a ponto de estar com os frascos, então não vão tentar nada. Pelo menos, hoje não. E é importante que você conheça o terreno, para se sentir preparada. – Cruzando os braços, ele se recostou no bebedouro. – Não reaja ao que vou lhe dizer agora, mas o Homem de Couro já posicionou seu pessoal. Estão nas moitas perto do pé desta colina.
– Estão, é? – disse sra. Burrows, na dúvida.
– Sim, dez deles – confirmou Drake.
A sra. Burrows olhou casualmente para os arbustos.
– Tem homens ali? Agora? Como pode ser? Não estou vendo nenhum.
– Eles estão em trincheiras, provavelmente com as miras em nós neste exato momento. E teremos mais gente cuidadosamente posicionada em pontos estratégicos pelo perímetro. Quero que você saiba que estamos fazendo de tudo para protegê-la.
– Posso lhe fazer uma pergunta óbvia? – disse ela.
– Manda – respondeu Drake.
– Os Styx têm túneis aqui embaixo? Pelo que você me disse, eles têm um aglomerado deles em toda parte.
– Fizemos um levantamento geofísico e descobrimos algumas sombras vagas. Provavelmente significa que antigamente havia algumas câmaras subterrâneas, mas desabaram ou foram preenchidas.
A sra. Burrows sorriu.
– Mas isso é tão National Geographic – disse ela.
Drake se deslocou da fonte e eles desceram a colina, ainda conversando.
– Olha, mesmo que os Styx tentem jogar sujo, estaremos preparados – Drake lhe asseverou, esfregando as mãos como se isso lhe desse prazer. – Vamos nos divertir depois que virarmos a mesa e pegarmos quem vier à reunião.
– Mas você não espera realmente que o sr. Mandachuva apareça, não é? – perguntou sra. Burrows.
– Não o conheço o bastante para confirmar sua identidade, mesmo que ele faça uma entrada grandiosa. Mas não importa quem enviem, vamos interrogá-lo. Ele vai acrescentar alguma coisa a nosso serviço de inteligência sobre suas operações. Mas não é este o sentido de tudo… O fato de que concordaram com uma reunião nos diz o que queremos saber… Nos diz que eles não têm o vírus.
Sra. Burrows deu de ombros.
– Talvez seja outro blefe duplo. Talvez eles já tenham o vírus e só queiram descobrir o quanto nós sabemos, ou nos silenciar.
Drake não respondeu enquanto os dois chegavam ao pé da colina.
Capítulo Trinta e Dois
Havia um aperto no peito da sra. Burrows ao subir a colina no dia seguinte. Ela respirou fundo uma série de vezes para acalmar a crescente ansiedade. Você vai ficar bem. Isso vai acabar logo, ela tentou se tranquilizar. É, de um jeito ou de outro, veio a resposta indesejada de outra parte de sua mente.
Sra. Burrows não disse nada a Drake, mas estava morta de medo. Pelo que tinha ouvido falar dos Styx, ela sabia que se colocava contra um adversário capaz dos atos mais selvagens que se pode imaginar. Um adversário que não pensaria duas vezes antes de matar qualquer um que se colocasse em seu caminho. E ela se sentia totalmente despreparada, como se tivesse sido jogada no meio de uma guerra em um país estrangeiro e não tivesse a menor ideia de onde o inimigo espreitava.
Pelo menos era um consolo que estivesse fazendo sua parte para ajudar Will. Ele já devia estar nas entranhas da Terra, onde talvez estivesse enfrentando de novo as gêmeas megalomaníacas. Essa ideia não ajudou muito a aquietar o espírito da sra. Burrows. Ela devia ter lutado com unhas e dentes para impedi-lo de voltar. Mas não lutou, e seu remorso era tão forte que parecia uma dor física em suas vísceras. Era um crime pedir tanto a alguém tão novo, e ela achava difícil conviver com isso.
O latido de um cachorrinho chamou a atenção da sra. Burrows e ela olhou para o pé da colina. Procurou o animal, depois localizou seu dono, que jogava uma bola para ele. Ao continuar a subir rapidamente o caminho de cascalho, ela passou os olhos pelo ambiente, examinando com atenção os demais presentes naquela tarde.
A cerca de trinta metros, duas adolescentes estavam sentadas lado a lado na encosta da colina, sobre uma manta de piquenique aberta. Não demonstraram nenhum interesse na sra. Burrows nem em mais ninguém, com a cara enterrada nos livros. Depois ela pegou vozes altas e localizou um trio de mendigos em um banco no lado leste da colina, que só agora, enquanto ela continuava a subir, entravam em seu campo de visão. Passavam entre eles uma meia garrafa de algo e fumavam. Drake lhe dissera que os Styx às vezes se fingiam de vagabundos, então ela ficou de olho neles por vários segundos. Lembrou-se das imagens dos Styx magros e colonistas atarracados captadas nos filmes de vigilância do Homem de Couro. Não, os mendigos pareciam autênticos. Na realidade ninguém parecia deslocado, nem suspeito.
Ela olhou a hora.
Duas e cinquenta e cinco.
Faltavam cinco minutos.
Talvez ela estivesse se enervando à toa. Talvez o Styx importante que Drake esperava agarrar tivesse descoberto o que ele e o Homem de Couro estavam aprontando e não aparecesse. Que assim seja, disse ela a si mesma. Se esta operação era uma completa perda de tempo, então ela devia apenas desfrutar de uma tarde agradável no ambiente do Common o melhor que pudesse. Mas ao fechar a mão nos frascos que tinha no bolso, sra. Burrows achou impossível relaxar.
A situação era fantástica demais para isso.
Era como se sua vida tivesse engrenado em alguma hiper-realidade nos últimos seis meses. Primeiro sua existência tranquila virara de pernas para o ar quando o marido partira em sua brincadeira maluca. Depois, na Humphrey House, quando sentia que acordava de um sono profundo e tivera a chance de recuperar algum controle de seu destino, Will e a filha falsa – ou as filhas falsas – desapareceram. Ela fora lançada numa situação tão louca e improvável quanto aquelas dos filmes que costumava alugar em DVD e abandonava antes de assisti-los até o final.
Duas e cinquenta e oito.
– Está tudo bem? – A voz de Drake soou no transmissor mínimo em sua orelha, clara como se ele estivesse bem ao lado dela.
– Sim – respondeu ela ao chegar ao trecho de asfalto no topo da colina. Andando despreocupadamente pelo bebedouro, ela verificou de novo o terreno mais baixo a partir deste ponto de vista elevado. Ao olhar para o lado norte da colina, um homem de camiseta curta e short de corrida passou disparado pelo coreto dilapidado, ao lado do qual havia um casal de idosos. Tudo parecia completamente inocente. Ela levou a mão à boca como se fosse tocar o queixo e falou no microfone preso na manga. – Parece que está tudo liberado – contou ela a Drake. – Nada. Nadica de nada.
Três horas.
– A hora é agora – acrescentou ela.
– Fique de olhos abertos – disse ele.
Perto da entrada do Common, Drake estava em um furgão amassado com o Homem de Couro e dois mercenários – ex-soldados do antigo regimento do Homem de Couro. No piso do furgão havia monitores de TV em preto e branco com imagens transmitidas remotamente de câmeras instaladas em árvores pela colina. O Homem de Couro e seus companheiros as olhavam atentamente.
– Estamos perdendo a corrida no outro canal – murmurou um dos soldados num falso pesar, mas seus olhos estavam colados na imagem granulada da sra. Burrows na tela mais próxima.
Drake olhou o relógio.
– Três e dois. Parece que levamos bolo – disse ele, decepcionado.
– Dê um pouco mais de tempo – sugeriu o Homem de Couro. – Devagar se vai ao longe.
Drake assentiu.
– Vamos informar às equipes que vamos prosseguir – disse. O Homem de Couro sintonizou o rádio numa frequência diferente e se comunicou com os outros soldados nas trincheiras, enquanto Drake voltava a olhar pelo vidro traseiro do furgão com o binóculo.
Sra. Burrows andava muito devagar em volta do bebedouro. Ouviu um zumbido distante, bem acima dela. Um jato de passageiros avançava lentamente pelo céu, deixando uma esteira de crayon branco. Eu daria tudo para estar num desses, pensou ela com tristeza.
Três e cinco.
Um homem de agasalho vermelho berrante disparou por um dos caminhos mais baixos em uma bicicleta de corrida. O casal de idosos se movimentou, indo para a colina a passos pesados, na direção da sra. Burrows. Ela começou a prestar mais atenção neles. A velha empurrava um cesto sobre rodas enquanto o homem titubeava muito. Ele se pendurava no braço da velha e se curvava sobre a bengala na outra mão. O progresso do casal era tão laborioso que sra. Burrows torceu a lateral da boca. Não podiam ser típicos assassinos Styx.
– Tem dois idosos vindo para cá. Tirando isso, está calmo como… como… como um lugar muito calmo – disse a sra. Burrows no microfone, fingindo ajeitar o cabelo.
Ela ouviu o riso de Drake no fone.
– Essa é do Roger – disse ele.
– Deixe meu marido fora disso – respondeu sra. Burrows imediatamente, soltando uma risada escandalosa enquanto aliviava parte da tensão.
Três e oito.
Uma mosca insistente pousou em sua testa e ela automaticamente a enxotou.
Foi para o outro lado do bebedouro e olhou o lado sul da colina. O homem e seu cachorro tinham saído da trilha mais baixa e em seu lugar ela viu outra pessoa, que se afastava da colina. Depois viu o furgão de Drake. Só conseguia distinguir os vidros escurecidos onde sabia que ele estava observando. Em seguida andou de lado para o leste e olhou as duas adolescentes, que ainda estavam concentradas em seus livros. A mosca zumbiu em seu ouvido e ela a enxotou. Andou mais um pouco em volta do bebedouro. O casal de idosos se aproximava de forma lenta mas segura, o homem parecendo extremamente frágil, como se fosse cair, caso a companheira não lhe desse apoio.
Três e dez.
Ela ouviu gritos e xingamentos. Cruzou para o lado leste. Dois dos mendigos estavam saindo. O terceiro ainda estava no banco. De repente ele ficou de pé e agitou os punhos para os outros, ameaçando-os. Ele os seguiu a passos trôpegos. Ela ficou de olho no grupo enquanto eles passavam pelo furgão de Drake. Não são Styx, disse sra. Burrows a si mesma de novo.
Viu uma mulher na trilha mais baixa com dois afghan hounds de bom tamanho – cães magrelas, de pernas compridas, que pareciam estar usando calças de peles.
A mosca zumbiu perto de seu olho, fazendo-a piscar.
– Maldita! – xingou ela.
– O que foi? – perguntou Drake, num tom preocupado.
– Só uma mosca – disse ela.
Ela ouviu um squiic squiic.
Vinha das rodas do cesto da velha. Sra. Burrows cruzou para o lado norte do bebedouro. O casal de idosos estava a dez metros e se aproximava, mas a um ritmo de lesma.
Sra. Burrows andou com indiferença pelo bebedouro, investigando a encosta de novo.
Três e onze.
– Tenho companhia…. Os velhinhos estão aqui em cima comigo – disse a Drake.
– Sim, estamos vendo de uma câmera na árvore, e duas equipes estão com a mira neles – disse Drake. – Eles estão de um lado do bebedouro que não me permite ver.
– Não se preocupe… Acho que posso lidar com eles – disse a sra. Burrows com confiança ao microfone. Ela baixou o braço enquanto o casal de velhos aparecia pelo lado do bebedouro – não queria que eles a vissem conversando com a própria manga.
Squiic, squiic. As rodas do carrinho. E também a batida constante da bengala do velho no asfalto.
Sra. Burrows levou os ombros para trás e respirou fundo, tentando ao máximo dar a impressão de que estava ali para desfrutar do ar fresco. Soltou a respiração devagar, olhando de lado para o casal de idosos, depois virou a cara apressadamente. A velha a fitava. Através das lentes dos óculos, tinha olhos pequenos e duros.
A mosca voou na cara da sra. Burrows de novo, mas desta vez não se incomodou em enxotá-la.
Seus sentidos se aceleraram.
Ela voltou a olhar para a velha.
O cabelo branco da velha era um emaranhado de cachos pequenos, como se ela tivesse feito um permanente pouco tempo antes. Tinha uma boca pequena, com um lábio superior esticado demais pelos dentes postiços. Tornava sua aparência cruel e furiosa. A sra. Burrows desviou os olhos, depois os ergueu de novo, mas desta vez sua atenção estava no velho. Ele podia ter uns setenta anos e parecia ter alguma coisa – sra. Burrows supôs que fossem aparelhos auditivos – presos nas duas orelhas. Ele encontrou em cheio os olhos da sra. Burrows. Semicerrou os próprios como se estivesse ressentido do exame. Ela logo virou a cara, depois deu vários passos sem pressa nenhuma ao tentar manter a fachada de indiferença.
Disse a si mesma que estava sendo tola – que eles eram apenas um casal de velhos no Common para sua caminhada saudável. Ou iam para o bingo, ou iam fazer compras. Mas algo a importunava e ela se virou devagar para eles.
O velho estava recurvado sobre o carrinho. Agora que podia ver com clareza, era maior do que esperava – muito maior do que o cesto de compras médio que se via rodando pelas calçadas de qualquer rua. Era retangular e em vez do xadrez de cores vivas ou o tecido florido de costume, era coberto por um tecido pardo. Também tinha rodas mais fortes do que ela vira em carrinhos de feira semelhantes.
A mosca pousou no rosto da sra. Burrows, mas ela nem percebeu.
Olhava diretamente a velha, que parecia colocar aparelhos nas duas orelhas, como o parceiro.
Enquanto terminava, a velha encarou novamente sra. Burrows nos olhos.
– Boa tarde – disse sra. Burrows num tom simpático, meio constrangida por ter sido apanhada encarando tão obviamente a mulher.
– Você se acha muito inteligente, não é? – resmungou a velha. Sra. Burrows não respondeu. Por uma fração de segundo, perguntou-se se a velha estava dirigindo o comentário ao parceiro – era o tipo de observação amarga que pode haver entre um casal de idade tão avançada.
Mas depois ela viu que o velho, ainda recurvado sobre o carrinho, mas com a cara voltada para ela, tinha um dedo postado como se estivesse prestes a apertar um botão.
Seria uma bomba?
Neste momento, sra. Burrows o reconheceu.
– Oscar Embers! – disse, ofegante. Ele era um dos auxiliares de sábado do marido no museu. E Will dissera que ele era agente Styx. Isso significava que a velha devia ser…
– Tant… Tant… Tantrum! – Sra. Burrows sufocou, lutando para se lembrar do nome.
– Repita – Drake estalou em seu ouvido. – O que foi que você…?
Três e treze.
– Con… CONTATO! – Sra. Burrows conseguiu gritar a plenos pulmões.
Soldados de preto saltaram de suas posições em volta da colina.
– Vamos, homem! – gritou Drake enquanto um dos soldados se atrapalhava para abrir a porta traseira do furgão. O Homem de Couro se intrometeu. Puxou o soldado de lado para abrir ele mesmo, mas com isso perderam segundos preciosos.
– Tolos! – exclamou Oscar Embers enquanto apertava um botão no alto do carrinho, sorrindo.
Um tom baixo cortou o ar, aumentando rapidamente de volume.
Com a voz frenética de Drake em seu ouvido, sra. Burrows firmou as pernas. A primeira coisa que pensou foi que haveria uma explosão – tinha de ser uma espécie de bomba no carrinho. A segunda, foi que ela estava perto demais para escapar.
Ela estava acabada.
Depois de aumentar tanto de volume que os dentes da sra. Burrows vibravam, o tom caiu uma oitava, depois outra, em seguida várias outras, até que mal se ouvia o rumor. Os olhos rolaram para cima e sra. Burrows teve a sensação de que uma faca era cravada em sua coluna, fazendo com que braços e pernas se contorcessem incontrolavelmente. O som, além dos limites da audição humana, era insuportável.
E então Oscar Embers apertou outro botão.
Os painéis de tecido nos lados do carrinho voaram longe, revelando uma máquina por baixo. As laterais eram pretas e brilhantes, embora tivesse concavidades como pratos de variados tamanhos que pareciam prateadas, feito mercúrio líquido.
Houve uma explosão, mas nenhuma que Drake ou os soldados teriam reconhecido.
A sra. Burrows foi lançada inconsciente ao chão. Uma onda concussiva fora emitida pelo dispositivo, uma parede invisível de som subaudível que só afetava os seres vivos.
Todos os soldados que saíram das trincheiras caíram onde estavam. A mulher e seus afghan hounds foram nocauteados. As duas adolescente que liam seus livros simplesmente tombaram na manta. Um pequeno bando de estorninhos caiu em volta delas, apanhados pela pulsação do som que se irradiava para cima.
Alguns ocupantes das casas da Broadlands Avenue nessa hora do dia também foram afetados, desmaiando no chão. E vários carros no raio da explosão ou pararam, ou vagaram contra os veículos estacionados na rua enquanto seus motoristas apagavam.
Incapaz de conseguir que as portas se abrissem a tempo, Drake, o Homem de Couro e os dois soldados jaziam num emaranhado de pernas e braços na traseira do furgão.
– Já basta – ordenou o velho Styx ao aparecer no alto da colina ao lado de Oscar Embers e da sra. Tantrumi. Oscar Embers desligou o dispositivo. – Limpem tudo antes da chegada da polícia da Crosta – ordenou o velho Styx, tirando os tampões do ouvido. Não havia mais necessidades deles.
Seu casaco de couro preto na altura do tornozelo estalava enquanto ele ia até onde estava sra. Burrows, num monturo amarfanhado no chão. Mas ele não prestou atenção nela, olhando os Limitadores Styx correndo pela área abaixo como um enxame de baratas. Depois, enquanto dois Limitadores subiam a colina, ele acenou para que fossem até sra. Burrows. Ela estava inconsciente e sua cabeça pendia no peito quando a levantaram.
– Esperem – ladrou ele. – Revistem-na.
Um dos Limitadores encontrou os dois frascos no bolso da sra. Burrows e os ergueu para que o velho Styx visse. Ele assentiu.
– Ótimo. Mande para teste e leve-a para o Cárcere. – Depois ele contornou o bebedouro, monitorando o progresso de seus homens, que arrastavam os soldados inconscientes. Outros Limitadores chutaram a terra em volta das trincheiras onde os soldados tinham estado escondidos e removeram as câmeras de vigilância das árvores. Quando terminaram, não restava nenhum vestígio da operação.
Voltando ao lado sul da colina, o velho Styx olhou para o furgão perto da entrada do Common – os Limitadores ainda não tinham chegado lá, mas as portas traseiras pareciam abertas. Ele tinha certeza de que estavam fechadas antes da arma ser desligada.
Havia alguma coisa errada.
E, enquanto olhava, podia jurar ter tido o vislumbre fugaz de uma figura alta e magra perto do furgão – parecia ser certamente de seu povo, mas estava de preto. Ele franziu o cenho.
Não podia ser.
Ele era o único Styx ali, naquela tarde, que não estava de traje de combate.
Começou a correr pela trilha de cascalho para investigar com os próprios olhos.
O Homem de Couro tinha acabado de abrir as portas traseiras quando a onda de som engolfou o furgão. Depois que sra. Burrows usou a senha, ele e Drake não tiveram dúvida de que estavam sendo atacados.
O furgão não proporcionou nenhuma proteção contra a onda subsônica. No mínimo, concentrou o efeito em seus ocupantes. Menos de um segundo depois de Oscar Embers ativar o dispositivo, Drake desmaiou, com o Homem de Couro e os dois soldados caindo ao lado dele.
Então Drake não viu o homem com os tampões de ouvido que a sra. Burrows confundiu com aparelhos auditivos quando ele abriu as portas e entrou no furgão. E ele não sentiu nada quando esse homem, que ele teria identificado imediatamente como Styx, localizou seu corpo flácido em meio aos do Homem de Couro e os dois soldados, e o carregou para um carro que aguardava.
E Drake só mais tarde soube da sorte que teve. Ele e sra. Burrows seriam os únicos a sobreviver àquele dia.
Arquivo Municipal de Highfield
Omar Ashmi
Ext. 2213
Liberados do hospital os Vinte do Highfield Common. Divulgada a declaração das autoridades
T. K. Martin, da equipe de reportagem
O Departamento de Saúde emitiu uma breve declaração após o incidente ainda inexplicado da última segunda-feira no Highfield Common e em duas ruas adjacentes, em que vinte pessoas foram encontradas inconscientes.
Aproximadamente às 15h45 de segunda-feira, o serviço de emergência recebeu as primeiras chamadas para a área. Onze pessoas foram encontradas desmaiadas no Common e imediatamente levadas ao Highfield General. Depois de as equipes de resgate terem batido de casa em casa da Broadlands Avenue e da Denewood Road, duas ruas que ladeiam o Highfield Common, outras nove vítimas foram levadas ao hospital. Além disso, vários animais, inclusive estorninhos e pombos, e os afghan hounds premiados Tippy e Toppy, foram similarmente afetados. Sabe-se também que pessoas que andavam por ruas próximas da High Street tiveram uma crise de vertigem e visão dupla. Não houve vítimas fatais, com exceção de um peixe de aquário em uma casa particular da Denewood Road, que parece ter se afogado.
Os Vinte do Highfield Common, como foram chamados, recuperaram a consciência horas depois de serem admitidos no hospital, embora alguns se queixassem de fortes dores de cabeça, que persistiram por vários dias. Eles foram colocados em quarentena no Highfield General, onde se submeteram a exames para determinar se a causa fora alguma forma de radiação, contaminação de água ou alimento, agora descartados como possíveis motivos. Três dos Vinte também necessitaram de tratamento para hematomas e ferimentos menores quando os carros que dirigiam sofreram colisões com veículos estacionados.
Os moradores retirados das casas vizinhas ao Common receberam permissão para voltar a seus lares três dias depois do incidente. Porém, a presença de cientistas do Departamento de Saúde com trajes de segurança, que se tornou uma visão cotidiana no Common, deve continuar por várias semanas, enquanto o parque não for reaberto ao público. Um porta-voz da polícia declarou que, independente de qual seja a causa do fenômeno, ele teve origem no Common, mas não pôde dar maiores detalhes que comprovassem esta alegação.
O Departamento de Saúde descartou firmemente a sugestão de que a culpa seria de uma nova antena de celular no telhado do Corpo de Bombeiros da Pin Street. Um grupo de pressão local chamado Sem Antenas em Highfield estivera em campanha para retirá-la desde que fora instalada no ano passado. A sra. Ruth Cook, porta-voz do grupo, disse, “Não foram feitas pesquisas suficientes sobre as emissões de onda curtas que estas antenas lançam em nós e nossos filhos. O que as empresas de telefonia móvel estão fazendo é ultrajante. É criminoso e seus diretores devem ser levados a julgamento”.
Os afghan hounds Tippy e Toppy se recuperaram completamente e estarão na exposição de cães Crufts em março próximo.
Capítulo Trinta e Três
– Halley foi o primeiro a falar na teoria da Terra Oca – anunciou dr. Burrows inteiramente do nada. – E isso foi em 1692.
– Do que está falando? – perguntou Will, enxugando o suor da testa enquanto aproveitava a inclinação para manter um ritmo acelerado na descida da fenda.
– Edmond Halley, sabe quem é… O astrônomo que descobriu o cometa Halley. Sua premissa era de que existem quatro esferas concêntricas, uma dentro da outra, como aquelas bonecas russas que se encaixam. Depois, no século XVIII, outro camarada chamado Symmes ressuscitou a ideia. Ele… OPA! – gritou dr. Burrows quando seu pé escorregou. Ele patinou por uma distância na argila solta que cobria a ladeira, depois conseguiu se equilibrar. – Quase perdi o pé aqui.
– Acho que perdeu – murmurou Will.
– Onde eu estava mesmo? Ah, sim, a contribuição de Symmes para a teoria foi que havia dois buracos grandes se abrindo em cada um dos Polos e que o gás que escapava dali era a causa da aurora boreal… As Luzes do Norte, como chamavam… Ou talvez Halley tenha proposto isso.
– Pai, eu já ouvi isso antes, então por que está falando tudo de novo? – perguntou Will, meio irritado.
– Porque aquele povo antigo que eu estava pesquisando na Grande Planície deve ter ido para algum lugar. Não podem simplesmente ter saltado para a morte no Poro ou em outro vazio. Isso não foi uma aberração repentina que acontece um dia, quando uma raça inteira decide cometer suicídio em massa como um bando de lemingues.
– Mas essa besteira sobre os lemingues… Eles não cometeram suicídio nenhum – observou Will. – É um mito.
Dr. Burrows continuou, sem lhe dar atenção.
– Não, com essas pessoas, deve ter havido mais do que isso… Quero dizer, eles até construíram um templo em louvor do outro mundo que acreditavam estar no fundo do planeta, chamando-o de Jardim do Segundo Sol. O tríptico que vi no templo claramente demonstra que eles pensavam que era um lugar idílico, uma espécie de Utopia.
– Quem sabe as aranhas engoliram todos? – sugeriu Will com malícia.
– Isso não faz sentido… Eles não se dariam o trabalho de fazer o mapa nas tabuletas de pedra, nem entalhar o símbolo do tridente perto do submarino, ou onde quer que esteja. Não, eles foram muito sérios com isso… Estavam a caminho de algum lugar… Mas onde?
Como Will não deu opinião nenhuma, eles andaram em silêncio até que dr. Burrows voltou a falar.
– Nos anos 1960, um professor excêntrico alegou que uma raça tecnologicamente avançada habitou o mundo interior e que tinham discos voadores.
Will já ouvira o bastante.
– Tá legal, então Symmes e os outros caras eram todos professores birutas com teorias malucas. E você quer chegar aonde mesmo? – disse ele bruscamente.
– É possível que eles não fossem tão malucos – respondeu dr. Burrows.
– Espera aí – disse Will, parando de repente.
Dr. Burrows olhou com expectativa para Will, pensando que ele acabara de ter uma inspiração, que estava prestes a fazer uma revelação que lançaria uma luz sobre o destino da raça antiga.
Era como se houvesse uma batalha de ideologias acontecendo na mente do dr. Burrows, como um cabo de guerra entre duas equipes adversárias. A equipe mais forte, capitaneada por um Charles Darwin barbudo, era composta de todos os cientistas, historiadores e outros grandes pensadores que o dr. Burrows respeitava e tentara imitar em toda sua vida profissional e acadêmica. A equipe adversária consistia em figuras mais excêntricas, como Halley e Symmes, e seu capitão era Lucrécio, que no século I a.C. convenceu a todos de que o mundo era plano feito uma panqueca.
Obviamente, o normal do dr. Burrows seria torcer pela equipe de Charles Darwin, mas agora, enquanto a corda rangia e as duas equipes puxavam, ele se viu estranhamente atraído para a equipe pouco convencional. Era como se começasse a levar a sério as teorias da Terra Oca.
– O que foi, Will? Teve alguma ideia? – perguntou dr. Burrows com a respiração ofegante.
Mas em vez de lançar luz sobre o destino do povo antigo, a única luz que o garoto lançava era de sua lanterna, que dirigia para uma passagem próxima. Partia da direita da trilha principal e Will andava lentamente para lá.
– Se estamos perto de onde estava o submarino, este pode ser um dos túneis que tentamos, mas não pegamos por causa das aranhas adolescentes? – Apagando a lanterna, ele baixou o dispositivo de visão noturna sobre o olho para ver mais além na passagem. – Pai, isso lhe parece familiar? – perguntou ele por fim.
– Eu… acho… que… sim – disse o dr. Burrows lentamente, esfregando o queixo.
Will ficou impressionado.
– É mesmo?
– É algo naquele pedaço de pedra ali em cima… O modo como está pendurado.
– Incrível! Você se lembra disso? – perguntou Will.
– Sim, porque na hora notei que era incomum. Evidentemente é da classe Ignorâmica… E imagino que seja estupidita.
– Quer dizer a classe Ígnea? – Will girou a cabeça para o pai. – Estupidita? Isso não existe.
– Rá! – o pai soltou. Tinha ficado muito decepcionado porque o filho não levou a teoria da Terra Oca mais a sério e decidiu ter sua vingança.
– Estupidita – repetiu Will, meneando a cabeça.
– Olha, Will, eu andei por quilômetros de túneis, mais do que posso me lembrar, e todos parecem iguais. Espera mesmo que eu reconheça este em particular, de todos os milhares de outros?
Mas Will interrompeu o que o pai dizia. Virando-se para o túnel, farejou o ar.
– Aranhas. Sinto cheiro de aranhas. – Tirando uma das Bergens do ombro, ele a baixou, desamarrou o topo e pegou um radiofarol. Ligou-o e o posicionou em uma saliência.
– É assim que seu amigo vai achar o caminho? – perguntou o dr. Burrows com desprezo.
– Drake?
– E quem mais te deu esses faróis? Assim ele pode nos seguir quando lhe der na telha. – De repente dr. Burrows se curvou para a Bergen de Will e pegou outro radiofarol, escondendo-o no bolso do casaco.
– Para que quer isso? – perguntou Will, fechando a Bergen e pendurando no ombro.
– Só quero um – respondeu dr. Burrows como uma criança.
– Por quê?
– Para o caso de nos separarmos. Assim você pode me achar.
De cenho franzido, Will ergueu a Sten Gun e avançou lentamente pela passagem.
– Aranhas, é o que diz? Não sinto cheiro de nada – disse dr. Burrows enquanto seguia relutante o filho e farejava com estardalhaço.
Tinham percorrido algumas centenas de metros quando algo fugiu no escuro.
– Sim, aranhas – cochichou Will. – Eu tinha razão. E mantenha o globo luminoso coberto ou vai estragar meu dispositivo.
– Vamos voltar para a fenda principal e tentar a ramificação seguinte – reclamou o dr. Burrows. Ignorando o que Will tinha dito sobre cobrir sua luz, ele a segurava no alto e olhava as aberturas no teto da passagem, todas com o sinistro tamanho das aranhas. – Não queremos ser decepados aqui.
A essa altura algo assomou no escuro, na direção de Will. A primeira coisa que ele viu foi a isca luminosa na ponta do talo da cabeça da aranha. Num piscar de olhos, disparou para Will, caindo nos limites da luz lançada pelo globo do dr. Burrows.
– Deus do céu! – exclamou dr. Burrows enquanto Will abria fogo com a Sten. A aranha foi retalhada pelo disparo rápido. O único problema foi que as balas ricochetearam de um jeito alarmante nas laterais do túnel. – Will! Chega! – gritou dr. Burrows, e Will soltou o gatilho.
Ao avançarem para examinar o que restara da criatura, Will estava rindo.
– Tome isso, aranha! – disse ele enquanto colocava um novo pente na Sten.
– Foi meio violento – comentou dr. Burrows, cutucando parte de seu corpo peludo com a ponta da bota. – Tiros demais para matar essa coisa. Nesse ritmo, você terá usado toda a munição antes de chegarmos a algum lugar – refletiu ele.
Will assentiu.
– Sim, foi quase um pente inteiro… Uns trinta e dois tiros. É melhor descobrir se posso usar o repelente nelas, então.
– E como vai fazer isso? – perguntou dr. Burrows.
– Porque, se conheço minhas aranhas – disse Will –, o sangue desta vai atrair um enxame desses troços pra gente.
– Hum… E adianta alguma coisa…? – dr. Burrows começou, nervoso, mas não terminou a frase quando Will sacou a Browning Hi-Power e puxou o slide para armá-la.
– Está destravada – disse Will ao pai enquanto a metia nas mãos dele, parecendo-se muito com Drake.
– Não estamos lidando com gatinhos aqui – murmurou o dr. Burrows.
Will pegou o aerossol no braço, onde estava preso com uma fita adesiva, e o estendeu ao lado da Sten Gun. Depois eles esperaram, olhando o escuro.
Dr. Burrows estava visivelmente apreensivo.
– Esta é uma péssima ideia – ele se queixou.
– Shhhh! – fez Will enquanto eles ouviam pedras sendo desalojadas, depois gritou “CUIDADO!” e várias iscas brilhantes dispararam do escuro na direção dos dois. Will tinha razão – o cheiro do sangue da aranha morta era irresistível para elas.
Gritando “COMA ISSO!”, Will apontou a lata diretamente para as aranhas e apertou freneticamente o botão. As aranhas foram atingidas por uma nuvem de vapor e o efeito foi imediato. Elas não conseguiram fugir a tempo, embolando as pernas umas nas outras ao baterem em retirada.
Quando todo sinal delas desapareceu, Will sacudiu a lata e a olhou com um sorriso pregado na cara.
– Funciona que é uma beleza – disse ele. – Essa foi boa, Drake.
A porta de ferro da cela bateu na parede com um estrondo de abalar o crânio. Um homem estava ali, seu tamanho gargantuesco quase enchendo a soleira.
– Levante-se e ande, querida – disse ele. – Não adianta fingir que você ainda está nocauteada.
Embora estivesse consciente havia algumas horas, sra. Burrows suspeitava de que alguém a estava vigiando e não se mexeu na prateleira de chumbo úmida.
O tom do homem endureceu.
– De pé, mulher da Crosta. Não me obrigue a arrastá-la daí! – berrou ele.
Quando voltou a si, sra. Burrows se sentiu incrivelmente mal, como se todas as suas entranhas estivessem amassadas. Ela se perguntou o que o dispositivo no carrinho lhe fizera. Não conseguia se lembrar de muita coisa depois de ele começar a emitir sons cada vez mais graves e as laterais de repente se abrirem, mas de uma coisa tinha certeza, dera-lhe a maior dor de cabeça de todas. Com a dor martelando nas têmporas e sentindo um gosto horrível, ela ficou deitada na escuridão absoluta da cela tentando avaliar sua situação. Quanto mais pensava nisso, mais sombria lhe parecia sua perspectiva – se é que tinha alguma.
A julgar pelo ar viciado, havia pouca dúvida de que os Styx a levaram abaixo da superfície e isso significava que qualquer chance de escapar era improvável. E os Styx não iam mandá-la de volta para casa só com um tapinha nas costas. Não depois da cilada que ela e Drake tentaram.
Apesar de sua situação desanimadora, sra. Burrows não estava tão apavorada quanto deveria. Era meio tarde para se arrepender. Concordou em agir como o queijo na ratoeira sabendo que podia perder a vida – como os Styx estavam lá fora para pegá-la mesmo, talvez isso só antecipasse o dia do acerto de contas. Deitada na prateleira e respirando fundo, ela sabia que sua única alternativa era aceitar o que o destino lhe reservara. Não adiantava nada esbravejar contra o inevitável. Ao menos, respirar fundo por fim pareceu livrá-la da dor de cabeça.
– Então é assim – o homem monstruoso grunhiu e começou a avançar até sra. Burrows, de mãos estendidas.
Ela se sentou rapidamente.
– Bom dia – disse, apertando a mão dele. – Meu nome é Celia Burrows. Qual é o seu?
Desnorteado com o comportamento da prisioneira, o homem retribuiu o aperto de mão.
– Eu… Er… Sou o Segundo Oficial – gaguejou ele.
– Achei mesmo que era policial – disse ela, olhando a estrela dourada opaca presa no casaco dele. – Por seu uniforme muito elegante.
– Ora, obrigado – respondeu ele, soltando a mão dela e estufando tanto o peito que se assemelhava a um balão cheio demais.
Depois ele se lembrou por que estava ali.
– Vamos. Levante-se – rosnou.
– Não precisa ser tão grosseiro – retorquiu sra. Burrows. – As maneiras fazem o homem.
– Eu disse…
– Eu ouvi o que você disse. – Sem pressa nenhuma, ela se levantou, ajeitou as roupas, depois passou por ele e saiu pela porta para o corredor. Viu o brilho fraco de um globo luminoso acima da mesa de madeira na extremidade do corredor e a porta aberta na outra ponta.
– Onde estamos? – perguntou, enquanto o Segundo Oficial se juntava a ela.
– Na prisão.
– Sim, disso eu tinha certeza – disse ela, sorrindo para ele. – Mas estamos na Colônia?
– A Colônia fica a vários quilômetros daqui. Este é o Quartel – respondeu ele.
– O Quartel – ela repetiu. – Acho que meu filho me falou alguma coisa sobre isso.
– Seu filho! – sibilou o Segundo Oficial, a pele branca de seu rosto de repente se ruborizando. – Deixe-me falar de seu filho, Seth Jerome ou… Ou seja lá qual for seu nome na Crosta.
– Will – disse sra. Burrows. – Will Burrows.
– Sim, o maldito Will Burrows – disse o Segundo Oficial com a voz cheia de desdém. – O molequinho me bateu com uma pá, foi o que ele fez – acrescentou indignado o homem, passando a mão na cabeça quase careca como se o ferimento ainda lhe provocasse dor.
– Por quê? Você também foi um porco grosseirão com ele? – perguntou ela, num tom todo doçura e leveza.
– Eu… – ele começou, depois sua cara imensa passou por uma mudança sísmica e ele rosnou: – Não fale comigo desse…
– Se você é o Segundo Oficial, onde está o Primeiro? – ela o interrompeu. – Tirando folga na jaula dos primatas?
O homem não sabia o que fazer diante disso, mas respondeu assim mesmo.
– Está de serviço na recepção. Mas o que é uma jaula dos primatas? Nunca ouvi falar nisso.
– Não, não deve ter ouvido, mas você se daria muito bem lá. É um local na superfície onde espécimes impressionantes como você vão para comer bananas. E é muito popular… Pessoas do mundo todo vão lá para ver.
– Eu gosto de banana – disse o Segundo Oficial, com o humor mais leve enquanto estalava os lábios.
– Foi o que eu pensei – murmurou ela bem baixo.
Eles chegaram à soleira do final do corredor e ela se demorou por um segundo para olhar as outras celas.
– Tem mais alguém aqui… Drake ou talvez o Homem de Couro?
– Não, no momento você é a única – disse o Segundo Oficial.
Desanimada com essa resposta e pensando no pior, ela se permitiu ser levada do Cárcere para o corredor caiado. Embora seus olhos ainda estivessem se adaptando à luz forte depois da escuridão da cela, ela teve um vislumbre rápido da entrada principal da delegacia. Viu que havia outro policial na recepção, uma versão mais nova do Segundo Oficial, esticando o pescoço para dar uma olhada nela. Mas o Segundo Oficial a conduziu apressadamente para a direita, onde havia um corredor com uma série de portas fechadas.
– Minha boca está muito seca… Eu gostaria muito de água – disse sra. Burrows.
– É melhor ficar de estômago vazio – aconselhou o Segundo Oficial, assentindo devagar –, antes da Luz Negra.
A sra. Burrows não gostou de como isso soava. Tentou se lembrar de tudo o que Will dissera sobre a Luz Negra e seu interrogatório enquanto eles passavam por outros corredores, o som de seus passos no piso de lajota polida formando um delicado contraponto aos passos pesados do Segundo Oficial.
Depois ela viu uma porta aberta à frente. Saía luz da sala. Ela endireitou os ombros e se preparou enquanto o Segundo Oficial a conduzia para dentro.
Seus olhos caíram primeiro numa única cadeira – um móvel massudo, feito de madeira maciça e escurecida. Estava de frente para uma mesa, onde ficava uma espécie de dispositivo que ela de imediato supôs ser a própria Luz Negra. Mas não se demorou nisso, porque havia dois Styx, em toda sua glória apavorante, atrás da mesa. Ela os vira no filme de vigilância do Homem de Couro, mas nunca estivera tão perto dessa gente que, segundo Will e Drake contavam, era a personificação do mal. Além das duas Rebeccas, ela precisava se lembrar constantemente disso. Mas estes eram Styx adultos e ela não conseguiu deixar de encará-los. Viu sua gola branca engomada por cima dos casacos do preto mais escuro. Viu o brilho de seu cabelo preto e as caras cor de massa de vidraceiro, tão secas e severas. Viu os olhos que pareciam arder com uma intensidade sobrenatural e gelavam seu sangue.
O Segundo Oficial a ajudara a se sentar e agora passava tiras por seus pulsos, prendendo-os nos braços da cadeira. Ela ficou tão hipnotizada pelos seres estranhos que só teve consciência do que o Segundo Oficial fazia quando ele começou a prender suas pernas. Ela retesou os braços nas amarras de couro grosso, percebendo que estava verdadeiramente em poder deles. Depois o Segundo Oficial passou uma faixa por sua testa, empurrando a cabeça de encontro ao apoio. Devido ao desenho do apoio, com dois grampos acolchoados de cada lado, ela nada podia fazer além de olhar para a frente, onde os dois Styx esperavam do outro lado da mesa.
Ela ouviu o Segundo Oficial sair e a porta se fechar. E então estava sozinha com os Styx, e o silêncio mais ruidoso que já experimentara na vida permeou a sala. Os homens bizarros simplesmente a encaravam, com suas pupilas concentradas cintilando como diamantes negros muito polidos. Ela de repente teve a sensação de que a qualquer momento alguém ia gritar “Corta!” e ela veria as câmeras e a equipe de produção… Veria que nada disso estava acontecendo realmente, era apenas uma cena de filme. Ela se reprimiu. Não! A velha Celia Burrows tentava vir à tona – era precisamente assim que teria lidado com a questão. Precisava enfrentar a realidade fria da sua situação. Tinha de encarar seus demônios. Estes demônios.
De repente eles se mexeram, girando para que seus corpos magros como varas ficassem arqueados um para o outro. Gesticulando convulsivamente, eles desandaram a falar numa língua que a sra. Burrows nunca tinha ouvido igual. A comparação mais próxima que achou foi com folhas de papel sendo rasgadas. Era feia e deixou seus nervos ainda mais tensos.
– Por que não acabam logo com isso? – declarou ela, num tom de desafio. – Façam o pior que puderem, seus espantalhos cadavéricos.
Eles cessaram o diálogo e se viraram para ela.
– Como quiser – disse o da esquerda numa voz nasalada e imediatamente estendeu a mão para o dispositivo na mesa. Seu movimento era veloz, quase reptiliano. Os dedos pálidos viraram um interruptor numa pequena caixa preta, da qual saía um cabo marrom e retorcido para um dispositivo de aparência estranha que ela supôs ser a Luz Negra. Embora se assemelhasse vagamente a uma luminária de mesa, a lâmpada não era nada parecida com nenhuma outra – era roxa, mas de tão escura era praticamente preta.
Com um barulho, a caixa na mesa começou a vibrar, depois se aquietou. O Styx ajustou alguns controles atrás da luz. Enquanto ele retirava a mão, sra. Burrows tinha certeza de que uma sugestão de sorriso aparecia em seus lábios apertados. Ela viu a lâmpada emitir um laranja escuro, depois se apagar de novo.
Abruptamente, sem que qualquer um dos Styx tivesse movido um músculo, a sala pareceu mergulhar nas trevas. Sra. Burrows se retesou quando seus ouvidos estalaram – parecia que estava descendo em um elevador expresso. Lá vamos nós de novo, pensou ela quando seus dentes bateram. Lembrou-se das sensações que havia tido quando a máquina no carrinho da sra. Tantrumi fora ligada no Highfield Common.
Embora os Styx estivessem invisíveis no escuro, ela os ouviu conversar. Depois ouviu um estalo, como se um comutador tivesse sido acionado, e diante dela apareceu uma cena em que milhões de faíscas mínimas lhe mostravam o que parecia um mar noturno e calmo. Será que eles tentavam assustá-la com esses efeitos especiais? Isso não é tão ruim, disse ela a si mesma.
Mas ficou ruim depois.
Era como se alguma coisa tentasse entrar em sua cabeça, como uma larva faminta abrindo caminho pela casca de um pêssego muito maduro. Mas o que quer que fosse, era maior do que uma larva – mais parecia um porco-espinho, entretanto a um mundo de distância da variedade fofinha que se vê em amontoados de folhas no fundo do quintal. Não, este tinha espinhos de aço superafiados e não tinha escrúpulos em causar dor. E a causava. Sra. Burrows gritou de agonia quando de repente a coisa afundou em seu crânio, quicando de um hemisfério a outro do cérebro. Depois avançou de modo a se colocar bem atrás de seu olho esquerdo, fazendo-a piscar involuntariamente enquanto sua pálpebra entrava num espasmo acelerado. Em seguida retornou ao meio do crânio. Sra. Burrows fez uma careta quando a dor de cabeça voltou, pior do que nunca, e ela teve certeza de que ia vomitar.
Os dois Styx começaram a lhe disparar perguntas.
– Qual é seu nome?
– Qual é seu objetivo?
– Está com o homem chamado Drake?
– Qual é seu objetivo?
– Onde está Will Burrows?
– Onde está seu marido, dr. Burrows?
– Onde estão as meninas que conhecia como Rebecca?
– Onde estão os frascos de Dominion?
– Nome? Objetivo?
– Onde estão os frascos de Dominion?
De maneira nenhuma ela ia responder, mas cada pergunta parecia ser lançada de longe, como se visse um cometa mergulhar para ela de um céu sem estrelas. E quando o cometa finalmente a atingiu, ela foi tomada pela dor mais torturante. Todo seu corpo ficou rígido e se retesou nas amarras, e ela pingava suor.
Os Styx continuaram com as perguntas, repetindo-as em um ciclo contínuo, de vez em quando lançando uma nova. E quando vinham as novas, era como se lhe atirassem um cometa ainda maior e mais feroz, um raio quente e branco de puro plasma, disparado à queima-roupa nela.
E o tempo todo o porco-espinho cruel em seu crânio cavoucava e ia aonde bem lhe aprouvesse. Lembranças de vários acontecimentos de sua vida piscavam diante dela; primeiro o dia em que ela e dr. Burrows se mudaram para seu novo apartamento em Highfield, depois a refeição em um restaurante indiano do bairro para comemorar a nomeação dele como curador do Museu de Highfield. Ela se lembrou da tarde em que tinham levado Will para casa – quando ele não passava de um bebê que ainda engatinhava – e o colocaram em seu cercadinho novo em folha.
Como um baralho que se abria em leque, essa lembranças apareciam e desapareciam com tal velocidade que ela mal conseguia acompanhá-las. Ela se perguntou se era sua vida passando diante de seus olhos porque achava que ia morrer. Mas não, percebeu que era a coisa em sua cabeça. Ela se servia do que queria e sra. Burrows não podia fazer nada para impedir. Ela se sentia violada.
Sra. Burrows tentou se prender à ideia de que pelo menos tentara ajudar Drake, tentara ajudá-lo em sua luta contra essa gente e, com isso, ajudar seu filho Will. Ela fracassara. Mas pelo menos havia tentado. Tinha orgulho disso, mesmo que estivesse mesmo prestes a morrer.
Capítulo Trinta e Quatro
Will e o pai viajaram ainda mais pela passagem e chegaram a uma parte coberta de fungo.
– Nunca pensei que ficaria feliz por voltar à terra dos cogumelos – disse Will, sabendo que isso significava que eles se aproximavam de onde estivera o submarino. Depois, ouvindo o som de água caindo, finalmente chegaram ao final da passagem. – O vazio – disse Will.
Por um tempo os dois olharam a escuridão, tentando recuperar o fôlego. Baixando as Bergens, Will se inclinou o máximo que pôde na boca da passagem para investigar o que havia embaixo.
– Viu alguma coisa? – perguntou dr. Burrows quando o garoto voltou para dentro.
– Não… Estamos numa espécie de ressalto, então não consigo enxergar muita coisa.
– Mas que maravilha – reclamou dr. Burrows. – Acha que vamos ter de refazer nossos passos e tentar a ramificação seguinte?
Will já estava pegando uma corda de alpinismo em uma das Bergens.
– Isso será mais rápido – disse, olhando em volta à procura de algo que a prendesse. Ele voltou lentamente do vazio e foi mais para dentro do túnel, até localizar um rochedo. Passando a corda pela pedra, a amarrou. Depois retornou ao vazio e estendeu a corda. – Precisa usar isto – falou, entregando ao pai uma das latas de aerossol. Borrifou o repelente em si mesmo e prendeu a lata novamente no braço. – Ainda está com minha Browning? – perguntou.
Dr. Burrows assentiu.
– Ótimo. Espere por mim aqui – disse Will, indo para a beira.
– Não vai haver mais daquela tolice com… Sabe o quê… Aquele seu problema com altura, vai? – perguntou-lhe o pai.
– Seria melhor não ter me lembrado disso – respondeu Will –, mas não, acho que agora estou bem.
E ele não teve o mínimo problema com o impulso irracional que o atormentara antes. E devido à gravidade reduzida, mal era preciso algum esforço para descer a parede vertical do vazio, mas o interminável dilúvio contra seu rosto tornava difícil ver o que havia ao redor. Ele olhava constantemente por sobre o ombro para o caso de alguma aranha ou Farol decidir aparecer. Estimava que estava a três quartos da corda quando viu a entrada de uma passagem na lateral. Estava no mesmo nível dele, mas a trinta ou quarenta metros de distância no vazio, e ele não conseguia tração suficiente na parede coberta de fungo para chegar a ela sem escorregar. Teve que se balançar como um pêndulo para chegar lá. Assim, finalmente conseguiu abrir distância suficiente para cair na entrada.
Ele empunhou a Sten e a lata de repelente. A passagem parecia liberada, mas ele estava só soltando alguns borrifos para ter certeza absoluta, quando ouviu um ruído a suas costas. Era um bater de asas no ar.
Will se virou.
Era um Farol.
A poucos metros de distância, suas asas se estendiam e as pernas se esticavam para ele.
– MEU DEUS! – ele gritou. Agindo por puro instinto, Will lhe aplicou em cheio um jato de aerossol.
Esperava que a criatura fugisse às pressas, mas não foi o que aconteceu. Ficou pendendo ali pelo que pareceram segundos. Depois aconteceu uma coisa muito estranha. Will só podia comparar a quando se joga sal em uma lesma de jardim e o coitado do bicho espuma e por fim explode numa sujeirada. Da mesma maneira, porém muito mais rápido, um fluido viscoso escapou das articulações de todo o corpo do Farol, que se debateu freneticamente.
E então, pedaço por pedaço, simplesmente se desintegrou. Seu abdome seccionado foi o primeiro a se soltar com uma sucção molhada. Depois a cabeça tombou de lado e rolou para fora do corpo. O tórax, com as asas ainda presas, caiu num mergulho, virando-se de ponta-cabeça enquanto Will o via desaparecer no vazio.
Ele precisou de um instante para se recuperar do susto, depois começou a rir de alívio.
– Bom, Drake, nota dez para esse troço! – gritou.
Como uma vozinha gritando pela névoa caótica em seu cérebro, sra. Burrows teve uma ideia. Parecia ainda ter algum controle sobre sua respiração e começou a aprofundar cada inspiração, prendendo o ar por um tempo cada vez maior antes de soltá-lo. Parte de sua mente clareou por um instante, como se uma máquina de vento soprasse a névoa para longe, e ela se agarrou à lembrança do que o instrutor de ioga lhe ensinara. No início era evasiva, mas depois, ao se concentrar com cada fibra de seu corpo, ela conseguiu.
“Que eu não permita que estraguem minha paz de espírito”, ela começou a pensar ou dizer – não sabia o que – repetidas vezes, sem parar.
Seu corpo ainda parecia um pedaço de madeira curvada quase ao ponto da ruptura, mas o porco-espinho maligno não parecia mais ser tão vigoroso ou eficaz.
“Que eu não permita que estraguem minha paz de espírito.” Enquanto ela repetia este mantra e mantinha o ritmo da respiração, aconteceu uma coisa estranhíssima.
Onde antes havia trevas, agora havia luz.
Era como se tivesse sido atirada numa realidade inteiramente diferente, aquela que deixara para trás quando os Styx ativaram a Luz Negra. Para começar, podia ver o que havia em volta, ver que estava na sala fortemente iluminada de novo. Ela observou os Styx. Um deles lhe repetia o ciclo constante de perguntas enquanto seu companheiro lhe indagava sobre questões inteiramente diferentes. E, para seu assombro, ela descobriu que respondia voluntariamente a essas perguntas, e em detalhes. Voluntariamente, mas involuntariamente.
Ele lhe perguntava tudo o que ela sabia sobre Drake; o que ele disse quando ela estava na Crosta, aonde ele a levou e se ela conheceu alguém da rede de Drake.
Chega disso, decidiu a parte de sua mente que estava na sala iluminada, e sra. Burrows parou o que dizia sobre Drake no meio de uma frase. De cenho franzido e desconfiado, o Styx a olhou.
– Continue – ladrou ele.
– Vão se danar! Já têm o máximo que vão arrancar de mim! – gritou ela, depois fechou a boca.
O outro Styx cessou abruptamente o ciclo de perguntas repetitivas e os dois se entreolharam. Depois o Styx atrás da luz fez um ajuste e a lâmpada emitiu um brilho laranja mais forte. O porco-espinho maligno inchou até o tamanho de um gato, e ficou mais poderoso, seus espinhos chiando de pura energia. Mantendo o exercício de meditação em sua mente, sra. Burrows sentiu a presença do porco-espinho rondando sua cabeça. Mas ele não pareceu encontrar um meio de entrar.
O Styx ajustou a luz de novo e assim a luz laranja emitida pela lâmpada ficou ainda mais forte. O porco-espinho cresceu até ficar do tamanho de um cachorro, mas a sra. Burrows descobriu que ainda podia repeli-lo e ficar na sala iluminada ao mesmo tempo. Tinha uma imagem de si mesma simultaneamente pedalando uma bicicleta e correndo. Se há uma coisa que uma mulher sabe fazer, é realizar várias tarefas juntas, pensou ela em júbilo.
O Styx aumentou a Luz Negra várias vezes, até que a sra. Burrows não suportou mais.
– Que eu não permita que estraguem minha paz de espírito – enunciou ela com muita clareza, certa de que desta vez pronunciava as palavras em voz alta, e depois desmaiou. Cada grama de energia tinha sido esgotada.
Num instante o Segundo Oficial, agora acompanhado do Primeiro Oficial um pouco mais novo, entrou na sala. O Segundo Oficial começou a soltar as amarras da sra. Burrows.
– Então, conseguiram o que queriam? – perguntou o Primeiro Oficial, sentindo que nem tudo estava bem.
– Ela estava nos bloqueando – disse um dos Styx, e o Segundo oficial parou o que fazia enquanto ele e seu colega olharam o homem sombrio.
– Mas ninguém jamais fez isso – o Segundo Oficial ofegou, assombrado.
Os Styx ficaram em silêncio.
– Então ainda não terminaram com ela? – arriscou-se o Primeiro Oficial.
– Não, daqui a algumas horas ela recuperará a consciência e nós recomeçaremos. Faremos quantas vezes forem necessárias – disse o Styx atrás da Luz Negra.
– Nós vamos quebrá-la – concordou o outro Styx.
– Mesmo que isso a mate? – perguntou o Segundo Oficial.
Os dois Styx deram de ombros com indiferença.
– Que assim seja – disseram eles, quase em uníssono.
Depois de subir de volta aonde o pai esperava, Will levou algum tempo para convencê-lo de que deviam experimentar a nova passagem. Reclamando ruidosamente, dr. Burrows por fim concordou e desceu pela corda. Will repetiu a viagem várias vezes para pegar todo o equipamento, depois plantou um radiofarol antes de partirem pela passagem, descobrindo que estavam numa bifurcação. Escolheram ao acaso que caminho pegar e quase de imediato ficaram diante de outra interseção, em seguida mais uma, de modo que logo não faziam a menor ideia de que direção tomavam.
O mais importante, porém, foi que eles descobriram que vinham encontrando alguns declives muito íngremes.
– Imagino que agora descemos bem abaixo da fenda – observou Will enquanto pulava ladeira abaixo.
Dr. Burrows não estava satisfeito. Não era favorável a sair da fenda tão cedo.
– Não sabemos aonde estamos indo, não sabemos aonde estamos indo – ele cantarolava de um jeito amargurado.
– Nunca sabemos aonde estamos… – respondia Will quando os dois ouviram um ruído baixo, como um murmúrio, vindo de algum lugar no alto.
Numa fração de segundo, Will estava com a lata de aerossol na mão, enquanto dr. Burrows se atrapalhava para tirar a Browning Hi-Power do bolso e apontar nervosamente para o escuro.
– Segura aí, pai, não estou vendo nenhum bicho nojento – cochichou Will enquanto usava o dispositivo para varrer o trecho diante deles.
Os dois escutaram.
E veio de novo. Não era só um murmúrio, era uma voz, uma voz humana, e Will de imediato reconheceu de quem era.
– Parece o Chester! – disse ele ao pai.
– Cuidado. Pode ser aquele Limitador – alertou dr. Burrows aos sussurros. – Pode ser uma armadilha.
– Não, é o Chester mesmo – concluiu Will, mal conseguindo conter a empolgação. Ele baixou a voz várias oitavas, tornando-a o mais áspera e máscula que pôde. – Chester Rawls, é você? – gritou.
Silêncio. E então Chester respondeu.
– Will?
– Chester! – Will explodiu no tom de voz normal, superfeliz. – Claro que sou eu! Estou aqui com papai, e nós dois estamos bem.
– Graças a Deus! Eu sabia que você estaria bem! Elliott e Martha estão comigo, e estamos todos bem também. Mas que voz boba era aquela e onde é que você está? Não estou te vendo, mas você parece estar perto.
– Você também! Meu dispositivo está funcionando de novo, então nós vamos até você – propôs Will. – Continue falando para eu poder te achar.
– Entendido, em alto e bom som – confirmou Chester. – “E, há muito tempo atrás, aqueles pés peregrinaram sobre as montanhas verdejantes da Inglaterra”[*] – ele começou a cantar, embora fosse tão desafinado que era doloroso ouvir.
Depois aconteceu uma coisa muito estranha. Enquanto Will e dr. Burrows avançavam pela rede labiríntica de passagens diante deles, a voz de Chester pareceu sumir, e não havia nenhum sinal dele e dos outros. Confusos, Will e dr. Burrows voltaram ao ponto de onde partiram e puderam ouvir Chester de novo.
– “Avante, soldados cristãos, marchando para a guerra…”[**] – o menino cantava.
– Chester, está me ouvindo? Pare com essa barulheira horrível por um segundo – disse Will.
– Claro que estou te ouvindo. Por onde você andou? Ficamos esperando aqui como uns patetas e minha garganta já está doendo!
Dr. Burrows falou de repente.
– Chester, é dr. Burrows. Acho que sei o motivo disso. Pode ser parecido com as galerias sussurrantes que às vezes encontramos em grandes igrejas ou catedrais. Tem uma na St. Paul. O que está acontecendo é que o desenho dos túneis está refletindo nossas vozes, talvez ajudado pela cobertura de fungo. Talvez estejamos mais distantes do que pensamos… Talvez até quilômetros… Mas nossas vozes são transmitidas pela acústica.
Martha agora se juntou à conversa, com o tom de voz muito tenso.
– Agora vocês fiquem parados aí… É nossa vez de encontrá-los.
Passaram-se bons dez minutos antes que Chester, Elliott e Martha saíssem de um canto e se revelassem.
– Chester! – exclamou Will, dando um salto ao ver claramente o trio pelo dispositivo.
– Isso foi muito esquisito. Rádio movido a cogumelo! Agora eu já ouvi de tudo na vida – exclamou Chester. Mas quando estava perto o suficiente para ver os trajes militares de Will e dr. Burrows e suas novas armas, ele ficou sem fala e simplesmente os encarou.
– Chester, você nem vai acreditar em onde estivemos. Achamos um abrigo nuclear e um rio que nos levou à superfície – respondeu Will. – Voltamos a Highfield. Fomos para casa.
– Para casa? – Chester sufocou, quase incapaz de entender o que Will dizia.
– É, e Elliott, aquele número que você ficava repetindo quando teve febre…? Descobri o que era – disse Will.
– Número? – ela repetiu, tentando entender do que ele falava. Depois teve um estalo. – O número de emergência! Então você o viu! Drake está vivo!
Will assentiu.
– Mas é claro que está. Ele estava esperando por nós em Highfield.
Quando algo se despregou das sombras atrás de Chester, chegando com seu corpo peludo pelo chão, Will gritou, “Cuidado!” Ele lançou na coisa um jato total de aerossol.
Bartleby parou de pronto, num caos de pernas raspando o chão de fungo, depois disparou de volta pelo túnel, uivando.
– Pensei que fosse uma aranha – disse Will, mas sem se desculpar. – Então vocês trouxeram o traidor de volta.
– Ele pode ser um traidor, mas nos trouxe até você – respondeu Chester. – Além disso, quem é você para falar? Foi você que trouxe aquela gêmea de volta.
Eles se olharam com uma expressão impassível, depois Will disse “Touché” e os dois riram.
Chester deu dois passos imensos até o amigo e o abraçou.
– Will, é tão bom te ver – disse ele. – Mas não sei se um dia vou te perdoar por tirar férias rápidas na Crosta sem mim.
– Vai me perdoar quando vir a comida que trouxemos. Quer um curry? – disse Will.
– O macaco quer banana? – Chester riu.
Martha acendeu o fogo para aquecer a comida e Elliott mergulhou na Bergen cheia do equipamento de Drake. Enquanto dr. Burrows se sentava rabiscando furiosamente em seu diário, Will contou tudo a Chester sobre o porto subterrâneo e sua volta à superfície.
– Então, a gente segue esses radiofaróis e pode voltar para casa de novo. É assim tão simples? – disse Chester. – E não temos que nos meter nas Profundezas ou na Colônia. – Ele deu um soco no ar. – É isso aí! – rugiu.
– É, mas não se esqueça do que Drake disse… Primeiro temos de cuidar do Dominion – lembrou Will.
Chester arqueou as sobrancelhas.
– E como exatamente vamos fazer isso? Se os Styx não chegaram ao submarino a tempo e de algum modo sobreviveram à explosão, então ou foram devorados pelas aranhas ou Faróis, ou…
– Ou ainda estão por aqui em algum lugar – interrompeu Will.
Chester tinha suas dúvidas.
– Agora eles podem estar a quilômetros de distância. E se conseguiram chegar ao submarino, podem estar quilômetros abaixo. Tenha dó, Will, é mais provável que eles estejam fora do páreo, né?
– Drake quer que a gente tenha certeza – disse Will.
– E é o que vamos fazer – Elliott se intrometeu num tom resoluto. Estivera ouvindo a conversa dos meninos enquanto empunhava com reverência as duas Sten Guns que Will trouxe. – Podemos dar uma busca e ver se Bartleby pega algum rastro de cheiro. E se o submarino ficou preso em algum lugar pelo vazio, talvez não estejamos tão longe para ir verificar.
– Mas e se estiver bem no fundo? – perguntou Chester.
Ele não recebeu uma resposta a essa pergunta e não se importou muito, porque naquele momento Martha anunciou que a comida estava pronta.
Com Martha conduzindo Bartleby, que estava em pleno modo de caça, esticando a trela e farejando pelo chão de fungo, eles exploraram as passagens. Desciam cada vez mais, até que chegaram à imensa caverna que a explosão de Elliott tinha entalhado na lateral do vazio. Lá, as cordas de alpinismo de Drake lhes deram os meios de chegar ao outro lado da caverna, passando por onde estivera o submarino e entrando num dos túneis que havia ali.
Eles andaram por este túnel e, quando Martha dizia que deviam estar perto do vazio de novo, Will e Chester fizeram uma descoberta que mudaria tudo.
– Pai, você precisa ver isso – Will o chamou.
– O que é agora? – respondeu ele com raiva. Estivera perambulando na retaguarda do grupo, supostamente para protegê-los de algum ataque de aranhas por trás. Mas certamente não estava sendo muito vigilante, com a lata de repelente enfiada no bolso do casaco. E também ficara peculiarmente pouco comunicativo pelas horas anteriores.
Ao se juntar ao filho, dr. Burrows viu que um rochedo alto se projetava do fungo e que havia o símbolo do tridente nele.
– Sim! – gritou ele, e apressadamente retirou sua Bergen. Cavoucou e pegou a foto em preto e branco que o marinheiro tinha tirado.
– Bingo! É a mesma – ele confirmou ao erguer a foto para comparar com o rochedo.
– E Martha, você tem razão… Estamos na beira do vazio de novo – disse Will. Ele olhou a escuridão em que a água caía como chuva, perguntando-se onde estaria o submarino. Depois girou para o pai. – Mas o que esse sinal significa, pai? Que só estamos no começo do mapa de suas tabuletas? Isso não faz sentido, porque é uma caminhada danada do Poro até aqui.
O dr. Burrows não respondeu ao passar os dedos pelos três entalhes fundos no rochedo.
– Pai, pense bem, como este pode ser o início do mapa?
Dr. Burrows levantou a cabeça, com os lábios meio curvados num sorriso, assentindo sua aprovação.
– Bom garoto, Will, você também entendeu. Depois de descobrir como colocar as tabuletas na ordem certa, eu supus que elas descreviam a rota da esquerda para a direita. Foi um erro meu usar nossas convenções ocidentais, quando eu devia ter pensado mais lateralmente. O fato é que elas descrevem a rota da direita para a esquerda. Assim, minha premissa de que este símbolo devia ser o começo não pode estar mais equivocada. Não, ela marca o fim.
– Se vamos parar aqui, posso preparar um chá? – ofereceu-se Martha, mas ninguém lhe deu atenção e menos ainda o dr. Burrows, que pendurava a Bergen de novo como se fosse a algum lugar.
– Não entendi. Se este é fim da trilha, onde pode estar o restante dela? – perguntou Will. – Para onde foi o antigo povo a partir daqui?
– Fé – respondeu meramente dr. Burrows.
– Hein?
– Considere a física, por exemplo… A gravidade mais baixa que estamos experimentando aqui é o motivo de estarmos vivos para contar essa história depois de cairmos por milhares de quilômetros – disse dr. Burrows, jogando seu globo luminoso para cima e pegando-o no ar pelo cordão quando ele vagava para o chão. Depois meteu a mão pelo cordão, torcendo-o no pulso para que ficasse firme em sua mão. – E se continuarmos a viajar para o centro de qualquer corpo de grande massa… Este planeta, por exemplo… Segue-se que a gravidade diminuirá ainda mais. Talvez até virar nada. Talvez a gravidade zero.
– Desculpe, pai, não entend… – tentou dizer Will.
– Mas não estou falando da fé nas leis da ciência. Estou falando da fé nas convicções pessoais, nas crenças de alguém. Por muito tempo eu perdi minha fé e a fé pode mover montanhas, a fé pode abrir seus olhos para territórios inteiramente novos.
– Bom, vamos fazer uma parada aqui ou não? – perguntou Martha novamente.
O dr. Burrows olhava apenas para o filho ao falar.
– Você acha que tenho sido insensível e egoísta, Will, mas algumas ideias são grandes e importantes demais para que as pessoas atrapalhem. Lamento se pensa que fui um mau pai para você, mas um dia você vai entender. – Ao se aproximar lentamente de Will, ele tateou o radiofarol no casaco e, pegando-o, agitou na cara do filho. – Você poderá me encontrar, se quiser. A decisão é sua.
– O que quer dizer com isso? – disse Will.
Dr. Burrows continuou, passando por Will e, quando estava na saliência, tendo apenas o vazio diante dele, atirou-se.
– Pai! – gritou Will, lançando-se para o pai numa tentativa de pegá-lo, mas não havia como alcançá-lo. Dr. Burrows se fora.
– Não! – sussurrou Chester. Martha e Elliott correram para ver dr. Burrows espiralar no vácuo, o globo luminoso na mão ficando cada vez mais fraco, até que não havia mais sinal nenhum dele.
– Ele acaba de se matar – murmurou Martha, incrédula. – Ele é louco?
Após o choque inicial, todos simplesmente fitavam o escuro infinito. E então Will começou a assobiar entre os dentes, do jeito casual que o pai adotava quando estava imerso em pensamentos.
– Ele pode ser meio biruta, mas não é louco – respondeu Will por fim, com um olhar para Martha. – O que ele estava dizendo sobre a gravidade faz sentido.
– Will, você está bem? – perguntou Chester. Ele colocou a mão no ombro do amigo, preocupado com o modo desligado com que ele falava do salto do dr. Burrows. Não era a reação que Chester teria esperado.
– Pela lógica, a gravidade deve ser ainda menor perto do centro do planeta, não é? – ponderou Will em voz alta.
– E daí? – Chester balbuciou. – Nós não vamos colocar isso à prova, vamos?
Will assentiu, não em resposta à pergunta de Chester, mas como se de repente se lembrasse de uma coisa.
– Martha, você nunca nos disse como este vazio se chama. As Sete Irmãs não têm todas um nome, como Bafo de Mary ou o Poro? – perguntou ele enquanto tirava a Bergen do ombro e começava a vasculhá-la.
Martha meneou a cabeça.
– Nathaniel e eu nunca descobrimos e eu não quis nada com o lugar depois que ele morreu – disse ela.
Will sorriu consigo mesmo.
– Mas deve ter um nome. Tudo tem um nome. Por que não chamamos de Jean Fumarenta, em homenagem a minha tia Jean, porque o apartamento dela também parece um buraco negro? – perguntou ele. Pegou na Bergen vários radiofaróis e um par de dispositivos maiores, os rastreadores. Depois girou para Chester, Elliott e Martha.
– Fala comigo, Will. O que está fazendo com essas coisas? – perguntou Chester de testa franzida.
Will ergueu um dos rastreadores. Com um punho de pistola, parecia uma espécie de revólver troncudo, mas tinha um pequeno disco na frente e um mostrador no alto. Ele o ligou e mirou no vazio, onde o sinal do pai levou o ponteiro a vacilar e provocou um tique-taque lento no aparelho.
– Este é meu pai – disse. Depois ele virou-se e o ponteiro mostrou um sinal mais fraco e o toque ficou mais lento. – E este é o caminho para o abrigo nuclear.
Ele foi até o rochedo alto do entalhe.
– Vamos marcar o local, está bem? – disse Will, ativando um novo radiofarol e colocando-o numa rachadura da pedra. – E um para cada um de vocês – acrescentou, dando os outros três faróis a Chester, Elliott e Martha. Fez isso com tal rapidez que ninguém teve tempo de rejeitar.
– Por que eu preciso disso? – perguntou Elliott, erguendo seu transmissor.
– Will? – disse Chester, perto de perder a paciência.
– Ah, sim, quase me esqueci… Vai precisar disso também – acrescentou Will, colocando um rastreador na mão de Chester. – Siga os farelos de pão e vai chegar em casa.
– Não seja idiota. Eu não vou a lugar nenhum sem você – grunhiu Chester, agora com muita raiva. Enquanto tentava sem sucesso devolver o dispositivo a Will, ele pegou o sinal do rochedo e o aparelho soltou uma série de estalos altos. – Eu não quero isso!
Mas Will parecia estar num mundo só dele e não ouvia nada do que lhe diziam.
– Acho que as gêmeas conseguiram entrar no submarino e estão lá embaixo da Jean Fumarenta, em algum lugar. – Ele riu consigo mesmo. – Não é engraçado? Os Styx fizeram uma lavagem cerebral em mim com a Luz Negra para eu pular e me matar, mas Drake me ajudou a acabar com isso. E agora que venci isso, é exatamente o que eu vou…
Chester percebeu que havia um brilho nos olhos do amigo e que isso significava problema.
– Então me ajude, Will, se você… – disse ele, interrompendo-o, mas não completou a frase.
Will ligou o segundo rastreador e, seguindo os passos do pai, disparou a correr para o vazio.
E se atirou da beira.
– Nãããão! Seu doido varrido! – gritou Chester, mas Will não o escutou, com os ouvidos cheios do ar que passava em disparada.
Em toda sua vida na delegacia, o Segundo Oficial tinha visto e ouvido coisas com as quais uma pessoa normal teria dificuldade de lidar. Era como se ele tivesse ficado entorpecido, como se houvesse erguido uma barreira em torno de si para filtrar todo o horror.
Agora, esperando no corredor do lado de fora da porta fechada, essa barreira não parecia funcionar. Os gritos eram de arrepiar – o som de uma alma humana sendo dilacerada. E ele não entendia como os gritos se sustentavam por tanto tempo, mal parando para respirar.
Depois, de repente, caiu um silêncio, que foi ainda mais assustador do que os gritos.
Ele ouviu os passos do Primeiro Oficial nas lajotas úmidas ao se aproximar. Mas o homem estava no meio do corredor quando parou e olhou rapidamente para uma porta fechada. Fez uma careta, insatisfeito porque o interrogatório demorava tanto, depois girou devagar nos calcanhares e se afastou, mais provavelmente voltando à recepção. Para o caso de mais algum Styx decidir aparecer na delegacia.
Agradecido por ficar sozinho, o Segundo Oficial enxugou o suor da testa. Por um instante seu rosto se contorceu, como se ele estivesse prestes a chorar. Não sabia por que se sentia assim, mas talvez estivesse farto de todo a infelicidade e sofrimento que ocorriam neste lugar. Ele recuperou a compostura, bem a tempo também de pegar o rumor baixo de vozes e a porta se abrir.
O velho Styx saiu imperiosamente, acompanhado de seu jovem assistente.
– Terminado? – disse o Segundo Oficial.
O velho Styx o olhou um tanto surpreso com o interesse dele.
– Conseguimos o que precisávamos – respondeu ele rispidamente. – Sempre conseguimos.
– Er… Ela… Está… Quer dizer… Ela ainda está…? – perguntou o Segundo Oficial.
Arqueando as sobrancelhas, o velho Styx interrompeu o falatório incoerente.
– Se está perguntando se a Burrows está viva, seu coração parece bater e ela de certo modo respira – disse ele, depois passou para o lado da porta. – Veja você mesmo.
O Segundo Oficial pôs o pé para dentro da sala iluminada. Pôde ver as costas da cadeira em que a sra. Burrows ainda estava amarrada. Um dos Styx tinha soltado a faixa de sua cabeça e ela tombava para frente, imóvel. Depois dela o Segundo Oficial viu três Styx, que guardavam toda uma série de Luzes Negras. Devia haver seis ou sete dessas lâmpadas na mesa, mas no momento o Segundo Oficial estava tão extenuado que nem as contou.
– Ela é dura de rachar – comentou o jovem assistente. Isto foi dito com o ar distante de um médico discutindo o prontuário de um paciente. – Uma das mais duras.
– Sim – concordou o velho Styx. – Estranhamente resistente. – Ele agitou a mão na direção do corpo imóvel da sra. Burrows. – O que você vê é meramente uma casca. Receio que não reste muito ali… Tivemos de quebrar tudo. É uma pena, porque eu tinha esperanças de usá-la novamente no futuro.
– Ela não deve passar desta noite – disse o jovem assistente.
– Eu estava pensando… – começou o Segundo Oficial, mas a voz falhou ao ver os olhos duros do velho Styx se fixarem nele.
– Sim? – disse o velho Styx.
– Se ela não tem tanto tempo, eu podia cuidar dela – soltou o Segundo Oficial.
O velho Styx baixou a cabeça, com se convidasse a uma explicação. Dizer que o pedido do Segundo Oficial era incomum teria sido atenuar a verdade.
– Quer dizer, é melhor do que deixá-la morrer no Cárcere. Embora ela seja da Crosta, ela… parecia do tipo bom para mim – balbuciou o Segundo Oficial, depois calou a boca e olhou para os pés.
Por um momento ninguém falou, e então um dos outros Styx saiu da sala, carregando a Luz Negra nos braços, e desceu o corredor.
O velho Styx sorriu, mas não era um sorriso agradável. Era o sorriso de alguém que tinha aprendido algo que podia usar, e usaria, no futuro.
– Há mais alguém em sua casa, oficial? – perguntou o velho Styx. – Ela vai precisar de cuidados quando você estiver de serviço.
– Minha mãe e minha irmã – respondeu ele.
– Leve-a, então, mas talvez seja mais generoso deixar que feneça no Cárcere – disse o velho Styx, e começou a se afastar com o jovem assistente vários passos atrás, como uma sombra. – Todos os cavalos e homens do rei não conseguiram montar Humpty outra vez – recitou ele sem olhar para trás.
O Segundo Oficial esperou até que eles estivessem fora de vista, depois passou um dedo por dentro da gola engomada. Estava pegajosa de suor. Não sabia o que dera nele. Nunca devia ter falado sem permissão desse jeito. Mas sentia que precisava fazer isso.
Ele respirou fundo para criar coragem antes de entrar na sala iluminada.
* And did those feet in ancient times,/ walk upon England’fs mountains green, dois primeiros versos do poema homônimo de William Blake, cuja letra hoje integra o hino “Jerusalem”, de 1916, de autoria de Sir Hubert Parry.
** Onward Christian soldiers,/ marching as to war…, dois primeiros versos do hino americano “Whit-Mounday”, de autoria de Baring-Gould.
Capítulo Trinta e Cinco
Desta vez Will estava inteiramente consciente.
Enquanto era arremessado pelo ar, ele entrou num giro descontrolado e saiu dele só para voltar a rodar. A força da gravidade era tão intensa que sua cabeça flutuava e ele achou que ia vomitar. Mas rapidamente descobriu que se abrisse os braços e pernas como um paraquedista podia sair dos giros, o que tornou sua passagem para baixo mais suave. E colocando braços e pernas em ângulo, ele podia dirigir precisamente seu voo, apesar do estorvo da Bergen volumosa e das armas que carregava, e assim evitar qualquer colisão com as laterais.
Ele caiu e caiu e caiu, e teve muita oportunidade de perguntar a si mesmo se um dia isso teria um fim, um final feliz.
– O que foi que eu fiz? – gritou ele para a chuva que caía, lambendo os lábios e sentindo o gosto de sal. Tentou limpar a umidade da frente do dispositivo para enxergar com mais clareza, mas isso provocou um desequilíbrio e sua trajetória ficou errática. Rapidamente ergueu os braços de novo. Sua velocidade era tanta que tudo passava disparado num borrão, mas ele estava fazendo o que podia para procurar o submarino. Assumira com Drake o compromisso de cuidar das gêmeas Rebecca e do Limitador e não ia decepcioná-lo.
Ele via o ponteiro vacilando no rastreador em sua mão e praticamente ouvia os estalos que emitia. O pai estava em algum lugar ali embaixo.
O pai…
E se o dr. Burrows estivesse redondamente enganado? E se a gravidade não mostrasse nenhuma outra redução ou, o que era mais provável, se o vazio não fosse fundo o bastante para ele chegar às áreas onde havia gravidade mais baixa?
Ah, meu Deus, ele não tinha pensado nisso!
Parecia a atitude certa quando se atirara no vazio… Ele dera ouvido às palavras do pai sobre fé, e na hora elas tinham feito sentido para Will. Pela primeira vez em muito tempo, Will realmente entendera por que dr. Burrows agia de um modo tão incrivelmente egoísta. E Will queria demonstrar que ele também tinha fé, fé em seu pai.
Mas agora… Bom, devia ter perdido o juízo para pular daquele jeito. Talvez este fosse um gesto grandioso demais.
Então ele percebeu que a lufada de ar no rosto era menos intensa. Não arrancava mais sua respiração. E embora lhe fosse difícil ter certeza porque a mudança era demasiado gradual, podia jurar que não caía com a mesma rapidez.
O rastreador continuava a estalar alegremente, mas ainda não havia sinal de nada abaixo – só o brilho carmim da pedra incandescente nas laterais do vazio, pelo qual ele passava em disparada. Ele sentiu o calor intenso em sua pele exposta pelos milissegundos em que voou por essas rochas ardentes e ouviu o silvo de algumas cascatas de água salgada transformadas instantaneamente em vapor.
E então ele teve certeza absoluta de que não caía com tanta velocidade.
Conseguia limpar a umidade da lente do dispositivo sem entrar em um tombo precipitado. E podia examinar as laterais do vazio por onde passava, apreendendo as formas criadas pelas gotas de água que o acompanhavam na descida.
Algum tempo depois, começou a sentir que realmente flutuava, mas percebeu que podia ser seu cérebro lhe pregando peças, porque estava caindo havia muito tempo. Também mais ou menos nessa hora ele começou a ouvir um ronco baixo. Talvez sempre estivesse presente, mas ele estivera preocupado demais para perceber.
O som pareceu ficar mais alto, mais alto ainda do que o tumulto do ar em seus ouvidos. Ele tentou ver o que havia abaixo.
O que pode estar provocando isso?
Uma imagem bizarra de dentes e engrenagens monstruosamente grandes apareceu em sua mente – talvez fosse uma vaga lembrança de alguma história infantil que ele lera quando era mais novo. Tentou rir disso, mas a imagem persistiu. Talvez estivesse mesmo indo para a sala de motores da Terra, cheia de gigantes que operavam máquinas igualmente gigantescas.
Ele balançou a cabeça, como se tentasse se livrar de um sonho ridículo.
Devido ao ronco, não conseguia ouvir os estalos do rastreador, mas via que o ponteiro enlouquecia.
Ele olhou para baixo.
Ali!
Pelo canto do olho, viu um pontinho mínimo de luz muito abaixo.
Quando uma lufada de vento o soprou e o girou em pleno voo, ele o perdeu de vista e não conseguiu localizá-lo novamente. Será que foi mesmo uma luz o que ele viu? Não era lava – disso ele tinha certeza –, a cor era outra.
E então ele localizou a luz de novo. E o rastreador pareceu mostrar um sinal mais alto quando Will apontou na direção da luz. Ele inclinou os membros e manobrou o voo para lá.
À medida que a luz aumentava, ele teve menos certeza. Seria uma boa ideia? Embora o rastreador indicasse que o radiofarol do pai estava em algum lugar perto da luz, Will também não podia desprezar a possibilidade de ser um Styx.
Agora sua velocidade tinha diminuído ao ponto de mal sentir que caía, mais parecia uma bolha de sabão sendo levada pelo vento.
A luz aumentava. Emitia um brilho azulado, mas ele não podia julgar a essa distância.
Certificando-se de que tinha a Sten preparada, ele continuou a deslizar para a luz.
Mal tinha distinguido uma forma longa e lisa mais abaixo, quando ela apareceu mais rápido do que ele esperava e Will se chocou nela. Não foi um impacto forte, mas ele bateu a cabeça e ficou meio tonto.
Alguém o ajudou a se levantar.
– Me larga! – gritou ele, imediatamente supondo que era o Styx. Tentou lutar com quem fosse, depois viu o brilho de um par de óculos.
Era seu pai. Will viu o brilho azul intenso saindo de trás dele; dr. Burrows evidentemente tinha acendido um dos sinalizadores de Drake. E Will precisou de alguns segundos para entender que ele estava de pé no submarino. Não o havia reconhecido de pronto porque estava virado de lado. Will pousou perto de uma ponta do casco, embora não soubesse se era a proa ou a popa.
Sem saber se estava tão eufórico por ainda estar vivo, ou porque agora não estava mais sozinho nesse lugar isolado e remoto no fundo do planeta, Will atirou os braços no dr. Burrows. Mesmo esse pequeno movimento lançou os dois uma boa distância pelo casco do submarino. Mas isso é que era não ter peso nenhum!
Colocando-se de pé, Will quase podia se sentir vagar para fora da superfície do casco. Viu que o pai agitava o dedo para ele, depois uniu polegar e indicador, formando um círculo. Gravidade zero – era o que dr. Burrows tentava lhe dizer. Não era exatamente zero, mas Will teria de ser muito cuidadoso com qualquer movimento que fizesse, a não ser que quisesse flutuar no vazio, como se caminhasse pelo espaço. Will assentiu para o pai para mostrar que tinha entendido e tentou falar com ele, mas sua voz se perdeu no barulho, cuja violência só então ele percebeu.
Ainda meio tonto, Will deixou que dr. Burrows o levasse para a torre de comando que se projetava para o vazio, devido ao fato de a nave ter caído de lado. Depois o pai apontou algo bem abaixo deles. Will se inclinou. Ao longe, luzes iam e vinham, como raios no horizonte durante uma tempestade.
Dr. Burrows tentava lhe dizer alguma coisa, falando diretamente em seu ouvido.
Will deu de ombros – o barulho era muito grande para ele ouvir.
Dr. Burrows pegou uma folha de papel e escreveu. Mostrou o papel a Will. Havia uma única palavra.
– Triboluminescência? – murmurou Will para dr. Burrows, que assentiu, animado. Will sabia o que era – o pai lhe demonstrara uma vez, usando dois pedaços de quartzo de rocha que ele esfregou. No porão escuro de sua casa em Highfield, Will ficou maravilhado com os clarões sinistros de luz que se difundiam pelos cristais leitosos. Embora na época tenha lhe parecido mágica, tinha algo a ver com a liberação de energia quando as ligações de um cristal são rompidas. Assim, abaixo dele, pedaços incrivelmente grandes de algum tipo de cristal deviam estar roçando uns nos outros. Isso explicava o barulho.
Will se perguntou se era isto… Era ali realmente o centro da Terra?
O espetáculo de luzes que ondulava para todo lado – algo como algodão eletrificado – era hipnótico, e pai e filho simplesmente o olharam, cheios de assombro. Mas havia outras questões na mente de Will e ele por fim desviou os olhos das luzes e fitou o casco de metal grosso sob seus pés. Contemplando os riachos que escorriam por sua superfície de metal opaco, ele ficou atento ao fato de que três Styx podiam estar ali dentro neste exato momento. Dentro do submarino, com o vírus Dominion. Talvez não importasse agora – talvez não houvesse como ele, dr. Burrows ou qualquer dos Styx voltassem ao vazio, e assim a ameaça tivesse sido efetivamente neutralizada. Mas ele estava ali agora e precisava ter certeza.
Pegou a corda de alpinismo da Bergen e amarrou uma ponta num gancho de metal que achou na lateral da torre de comando. Melhor prevenir do que remediar – o menor escorregão no casco molhado podia fazê-lo adernar para os imensos cristais abaixo. Apertando bem a corda, ele andou com muito cuidado para o que seria o alto da torre de comando, se o submarino estivesse na posição correta.
Sob o olhar do dr. Burrows, Will desceu para a torre de comando. Só precisava de um esforço mínimo para fazer qualquer movimento – a gravidade quase não existia.
Mas assim que chegou à plataforma de observação, ele ficou paralisado.
A menos de um metro, havia algo indescritível preso ao passadiço do convés, que claramente agora estava na vertical, e não na horizontal, dada a orientação do submarino. Duas asas vincadas agitavam-se lentamente nas correntes de ar.
– Um Farol! – disse Will entre os dentes cerrados. Mas ao olhar melhor, viu que sua cabeça e a maior parte do abdome estavam ausentes. As farpas na ponta das pernas articuladas se agarravam ao piso e era por esse motivo que não tinha caído.
Will não tinha uma lata de repelente, que estava na Bergen, deixada com dr. Burrows no casco. Assim, ele estendeu a Sten e cutucou o Farol com a ponta do cano. Nada. Ele tinha certeza de que estava morto – pela aparência do Farol, deduziu que o Limitador tinha dado cabo dele, decepando a criatura. Will cutucou com mais força, mas ainda não havia sinal de que estava viva, então ele foi até a escotilha principal e tentou abri-la. Estava bem fechada.
Ainda lançando olhares cautelosos ao Farol morto, ele começou a girar a roda do meio da escotilha. Como a roda chegava à posição de abertura, ele olhou a Sten para ter certeza de que estava destravada. Desta vez estava preparado para as gêmeas. Desta vez não haveria hesitação – ia abrir fogo no momento em que uma delas, ou seu bicho de estimação, o Limitador, colocasse a cabeça para fora. Ele fechou os olhos por um instante, criando coragem.
E então, quando estava prestes a abrir a escotilha, uma mão pequena segurou seu pulso, impedindo-o.
Ele levantou a cabeça rapidamente.
Era Elliott.
Will nem acreditou. Ela o seguira por causa das ordens de Drake? Nem imaginava outro motivo para ela ter saltado no vazio atrás dele. Will olhou atrás dela para ver se Chester estaria ali, ou Martha, mas nenhum dos dois estava à vista.
Indicando a Will que ele devia se afastar, ela abriu uma fração da escotilha, depois passou os dedos por dentro dela. De repente ficou imóvel e lançou um olhar tenso a Will. Ela vasculhou o bolso e pegou uma corda, que prendeu cuidadosamente a algo pouco abaixo da beira da escotilha. Sem dar nenhuma atenção ao Farol morto, amarrou a outra ponta da corda em uma das ripas do passadiço ao lado. Certificando-se de que a corda estava bem esticada, ela pegou uma tesoura que parecia enferrujada e fincou sob a escotilha, depois usou as duas mãos para operar. Foi só então que a tensão deixou seu rosto e ela se permitiu relaxar.
Will ergueu a Sten, enquanto Elliott muito lentamente abria a escotilha. Ela chamou sua atenção para algo ali dentro, um pacote do tamanho de um tijolo, com um fio que se estendia dali. Ou pelo menos era o que restara do fio depois que Elliott prendeu a corda a ele e o cortou, tornando-o inofensivo. Will não precisava ser informado de que o pacote era um explosivo. O Limitador tinha preparado uma armadilha, provavelmente composta de substâncias químicas que encontrara no submarino. Não havia outra explicação.
Will seguiu Elliott para dentro da torre de comando, onde ela murmurou as palavras “Espere aqui”, depois saiu do submarino novamente. Agarrado à escada, Will ficou de guarda, atento para a presença dos Styx. Elliott sumiu por menos de um minuto, reaparecendo com dr. Burrows e Bartleby, que puxava por uma trela. Ela fechou a escotilha principal e todos se esgueiraram pela escada para a ponte do submarino. Agora que estavam em seu interior, o barulho foi consideravelmente reduzido, dando-lhes a oportunidade de falar.
– Essa foi por pouco – disse Will, meneando a cabeça. – Mais um segundo e eu teria detonado a bomba. Obrigado.
Elliott colocou um dedo nos lábios.
– Não tão alto – sussurrou ela, olhando cautelosamente os passadiços dos dois lados da ponte. – E não toque em nada! – ela sibilou ao dr. Burrows, que tinha começado a examinar as fileiras de equipamento. – Pode haver uma segunda armadilha por aqui em algum lugar.
– Chester? E Martha? – perguntou Will. – Eles não vieram com você?
Elliott meneou a cabeça.
– Só eu e o caçador.
Ela usou Bartleby para dar uma busca completa em todos os compartimentos, procurando por armadilhas de fios. Will ia atrás, dando-lhe cobertura com a Sten. Não importavam a orientação do submarino e o fato de que eles não podiam usar os passadiços, porque eles conseguiam flutuar no ar, como mergulhadores nadando por um navio naufragado. Como não havia sinal das gêmeas ou do Limitador, eles voltaram à ponte, onde dr. Burrows esperava.
– Nunca pensei que você viria atrás de mim – disse Will a Elliott, mais ou menos perguntando. – Não precisava ter feito isso.
– Sorte sua que fiz – respondeu Elliott, mas não deu nenhuma explicação.
– E Chester… Sabe o que ele vai fazer? – perguntou Will.
– Não, ele não disse, embora eu ache que talvez ele tente voltar para a Crosta. Mas ele disse que da próxima vez que visse você, ia lhe dar uma sova. Disse que você devia pelo menos ter discutido com ele antes de saltar daquele jeito.
– Eu tinha receio de ele tentar me impedir – murmurou Will.
Mas Elliott já pensava à frente.
– Então os Styx não estão aqui, mas como eles armaram o explosivo na escotilha principal, sabemos que pelo menos um deles sobreviveu. Assim, ou eles esconderam o vírus em algum lugar do submarino, ou…
– Levaram com eles – Will a interrompeu.
– Correto – disse ela. – Então nosso trabalho ainda não terminou.
– Aposto que era um dos submarinos da nova geração com navegação furtiva que os russos e americanos estavam desenvolvendo – o dr. Burrows de repente se intrometeu. – Talvez os russos estivessem usando para nos espionar no mar do Norte e ele foi sugado para este vazio quando uma placa submarina se deslocou.
– Jean Fumarenta… Eu chamei esse vazio de Jean Fumarenta – disse Will.
– Por causa da irmã de Celia… Muito apropriado. – Dr. Burrows sorriu momentaneamente, depois de novo se distraiu com sua teoria. – E talvez ninguém saiba que este submarino se perdeu porque o governo russo não divulgaria o…
– Foco – Elliott o interrompeu rispidamente. – Precisamos de foco. Não tem sentido nenhum continuarmos aqui. Vou armar uma carga para explodir tudo dentro deste submarino, caso eles tenham deixado o vírus. Depois precisamos descobrir para onde eles foram.
– Mas como? Neste lugar? – perguntou-lhe Will, depois olhou para Bartleby, que limpava as partes baixas. – Usar Bartleby, o traidor, para farejá-los?
Ela assentiu.
– Vamos dar uma busca completa pelo submarino – propôs ela. – Será mais rápido se nos dividirmos… Eu fico com a área abaixo do submarino. Will, você pode pegar a prateleira e as áreas nas laterais, e…
– De jeito nenhum – argumentou Will de pronto.
– Por que não?
– Porque sempre que fazem isso nos filmes, acontece alguma coisa terrível. Vamos ficar juntos. E vamos nos certificar de que Bartleby fique conosco, porque quando o gato foge e alguém tem de ir buscá-lo, também é mau presságio.
– Você é bem filho de sua mãe – comentou o dr. Burrows com ironia.
Elliott olhou de Will para dr. Burrows.
– Não sei do que estão falando, mas se vai se sentir melhor assim, podemos ficar juntos. – Ela suspirou. – Agora fiquem afastados enquanto eu armo os explosivos.
Depois de voltar para dentro, Elliott os prendeu a todos com uma corda de alpinismo. Will a olhou fazer isso. Embora ela tenha arriscado tudo para chegar a essa profundidade fenomenal na Terra e talvez não houvesse retorno, havia nela uma severa determinação. Ela ia cumprir seu dever e encontrar os Styx. Will retirava forças disto. Talvez tivesse agido por impulso quando saltou atrás do pai, mas tinha orgulho de também ter arriscado a vida para fazer o que precisava ser feito. Exatamente o que Drake esperava dele.
Eles deram uma busca completa pela plataforma de fungo em volta do submarino. Bartleby não pegou nenhum rastro ali, então eles começaram a descer a lateral inclinada do vazio sob a plataforma, de olho em qualquer caverna ou abertura, ou qualquer prova de que os Styx usaram o mesmo caminho. Ao chegarem a outra plataforma de fungo mais abaixo, Bartleby ficou mais agitado. Will não sabia se era o ronco constante que o desnorteava, mas o que quer que fosse, ele não parecia achar nenhum rastro dos Styx.
Ao descerem ainda mais no vazio, descobriram que não havia mais saliências de fungo abaixo deles e foram obrigados a se agarrar à superfície rochosa. O maior risco ainda era o de um deles fazer um movimento súbito, jogando a todos no vazio.
Quando as cargas de Elliott no submarino finalmente foram detonadas, eles tinham coberto uma boa distância e não ouviram a explosão com aquele ronco incessante. Todavia, enquanto todos paravam para olhar o breve clarão de luz no alto, Will se sentia meio estranho, porque eles agora não tinham para onde voltar, com o submarino destruído. Estavam completamente sozinhos neste ambiente estranho, onde tentar achar três Styx equivalia a procurar por três agulhas no maior palheiro que se podia imaginar e na mais escura das noites.
Depois de um tempo, Elliott os fez parar e indicou que eles deviam dar meia-volta e subir. Ela evidentemente pensou que tinham ido longe o bastante e que era hora de procurar mais no alto.
Foi neste exato momento que alguém do grupo fez um movimento entusiasmado demais.
Antes que se dessem conta, eles estavam voando para longe da parede a certa velocidade e entravam no meio do vazio. Will via a cara de pânico de Elliott e sua boca aberta enquanto ela gritava, depois percebeu que fazia o mesmo. Mas ele não ouvia nada, apenas o ronco de tremer o queixo, e não havia nada que ele ou qualquer um dos outros pudesse fazer além de se agarrarem, e Bartleby vinha ansioso vários metros atrás deles, arrastado em sua trela.
Por fim, foram perdendo força pela resistência do ar, que os fez parar.
Mas não foi bem uma parada. Ainda vagavam pelo nada no meio do vazio, como acontece quando falha o motor de um barco e ele fica ao sabor da corrente.
Bartleby estava inteiramente confuso e não parava de agitar as pernas numa tentativa de voltar para a lateral. Agora Will e Elliott se juntaram a ele, remando com as mãos e esperneando, qualquer coisa para se colocar em movimento de novo, mas em vão. As horas se passavam e os três tentavam se comunicar, mas o que podiam fazer? Não havia plataformas de fungo para onde apontar e, mesmo que houvesse, eles não tinham meios de chegar a elas. E enquanto Will e Elliott continuavam em pânico, o dr. Burrows parecia estranhamente sereno.
Eles gravitaram para um rochedo grande, que girava lentamente sobre seu eixo, e por fim conseguiram se segurar ali. Sua superfície era esburacada e enferrujada, como a de um asteroide. Eles se seguraram ali por um tempo e depois, por sugestão do dr. Burrows, usaram-no para se impelir, precisamente como três mergulhadores saltando numa piscina. Forças iguais em sentido contrário, pensou Will enquanto iam para um lado e o rochedo para outro. Embora não os levasse a parte alguma, Will usou seu dispositivo para verificar o espaço em volta, na esperança e rezando para que houvesse alguma coisa a mais que os ajudasse. Eles se chocaram com pedaços de pedra e às vezes encontravam pequenas formações de cascalho parecidas com nuvens, mas nada de substancial. Will ainda olhava em volta quando, com um sobressalto, percebeu que não conseguia mais ver as laterais do vazio. Pareciam ter desaparecido completamente. Olhando por sobre o ombro, viu que estavam a alguma distância atrás deles e ficavam menores a cada segundo.
Will sabia que tinham ido além do vazio.
Ele apontou freneticamente numa tentativa de contar ao pai, mas o dr. Burrows se limitou a dar de ombros. Devagar, mas constantemente, eles pareciam ter flutuado para uma área totalmente nova. Para a área onde os clarões de triboluminescência iam e vinham.
Will suou frio quando viu que à frente havia uma escuridão infinita. Era como se tivessem sido lançados na estratosfera e no espaço exterior, mas este era um tipo de espaço interior, no centro da Terra.
Só o que eles podiam fazer era olhar a triboluminescência enquanto gradualmente se aproximavam de um cinturão contínuo do que pareciam montanhas de cristal flutuantes. Esses cristais se chocavam fortemente, as explosões luminosas e passageiras, mas regulares, cortavam o cinturão, permitindo que Will distinguisse sua extensão até onde a vista alcançava, à direita e à esquerda. A coisa mais próxima com que podia compará-lo eram as fotos de satélite que vira dos anéis de Saturno. Havia um caráter onírico nas luzes e, olhando-as, ele descobriu que ficava quase hipnotizado. Esta deve ser uma das maravilhas do planeta, pensou ele, sabendo que podia não viver o bastante para contar sobre isso a alguém.
E era impossível avaliar as distâncias. Onda após onda de náusea tomavam Will e não se deviam unicamente ao efeito da gravidade zero em seu estômago. Era porque ele tinha a impressão de que caía para as luzes de uma altura incrível. E em outras ocasiões sua mente lhe pregava peças; ele realmente acreditava que as luzes estavam ao alcance de seu braço e tentava tocar nelas. Elas se tornavam uma série de lanternas chinesas acendendo-se e apagando. Mas ao recuperar o senso de perspectiva, ele sabia que devia haver uma vasta distância entre ele e o cinturão de montanhas de cristal. Will se perguntou se eles podiam simplesmente morrer de fome enquanto vagavam por ali, abandonados na escuridão da noite absoluta, ou se chegariam tão longe que os cristais rotativos talvez os esmagassem entre eles.
E então dr. Burrows os reuniu e tentava explicar alguma coisa escrevendo numa folha de papel e gesticulando. No fim, desistiu e simplesmente pegou a Sten Gun de Will. Destravou a arma e, sem aviso, deu um tiro. Era como se um retrofoguete tivesse sido disparado. Bartleby ficou assustado com o clarão no cano da arma e Elliott teve um trabalho danado para contê-lo, mas eles estavam em movimento de novo. O coice da Sten os impeliu a uma velocidade considerável, embora não de volta ao vazio, mas para o fundo, no lugar onde giravam lentamente as montanhas de cristal.
Por mais que tentasse, Will não entendia o que o pai esperava alcançar, mas ele não tentou impedi-lo. Pelo menos parecia ter um plano. O dr. Burrows ainda disparava a Sten, e Will e Elliott recarregaram os pentes para ele sempre que descarregava a arma. Às vezes os tiros faziam com que eles girassem vertiginosamente, mas quase sempre o dr. Burrows corrigia sua trajetória e eles aceleravam.
Will descobriu que tinha perdido inteiramente a noção de tempo. Não comiam nada nem dormiam há o que pareciam séculos, mas a escala do lugar era tão perturbadora e tão apavorante que nenhum deles pensava muito no assunto.
E palavras como para cima e para baixo, esquerda ou direita não tinham muito sentido neste lugar – só o cinturão de cristal servia de orientação.
Pode ter levado um dia inteiro – Will não sabia dizer –, mas entraram em uma área onde partículas de poeira e gotas de água pendiam no ar, tornando tudo nebuloso. Muitas horas depois, ou assim pareceu a Will, passaram por esta área e se afastavam do cinturão de cristal. Quando estava se perguntando se a poeira que atravessaram era a beira do cinturão, ele pensou ter tido um vislumbre do que era o objetivo de seu pai.
Pouco visível ao longe, ele localizou um facho de luz. Era diferente da triboluminescência; era constante. E lhes deu esperanças.
A cada tiro da Sten, o facho de luz ficava um pouco mais próximo. E quando Will olhou para trás, viu que eles definitivamente pareciam estar deixando o cinturão de cristal. Mas à medida que o dr. Burrows disparava a arma repetidas vezes, Will começou a se preocupar com a possibilidade de ficarem sem munição. Depois descobriu que eles estavam realmente no facho de luz. Tinha certo caráter, um calor que o incitou a pensar que podia ser a luz do sol, mas essa noção não fazia muito sentido para ele.
A certa altura, o dr. Burrows parou de usar a Sten e ficou tremendamente animado, apontando um dedo para o cinturão de cristal. A coluna de luz penetrava nele como um farol, permitindo que vissem que não era apenas composto dos imensos cristais rotativos. Não, entre eles estavam suspensos vastos corpos de água, como imensas gotas de chuva, mas estas sugeriam o tamanho de lagos, mares ou talvez até oceanos. E nesses corpos de água parecia haver objetos em movimento. Podia ser um truque da luz, mas todos juraram mais tarde que tinham visto imensas criaturas parecidas com cobras e peixes grandes como baleias.
O dr. Burrows continuou a usar o coice da Sten para impelir a todos para a fonte da luz, que ficara tão intensa que Will precisou desligar o dispositivo de visão noturna. Ele viu que Elliott sorria, depois percebeu por quê. Eles pareciam ter deixado a área imensa e entravam num novo vazio. A iluminação permitia que vissem suas paredes. Eles ainda se moviam para onde a luz se originava, cada vez mais fundo no vazio. E pouco a pouco a gravidade voltava. E o barulho também diminuía.
Era difícil de saber devido a sua escala, mas este novo vazio parecia ser cônico, com laterais muito íngremes. O dr. Burrows os impeliu para mais perto de uma das laterais, onde eles não viam sinal do fungo onipresente, mas algo muito mais surpreendente. Começaram a perceber pequenos pontos de verde em meio às pedras. Havia plantas alpinas crescendo juntas na base da escarpa. Esses pontos de verde tornaram-se mais numerosos quanto mais eles viajavam, até que por fim foram recebidos por árvores que pareciam nodosas, espécimes lamentáveis com troncos retorcidos e muito pouca folhagem, que davam a impressão de estarem penduradas nas laterais íngremes para fugir da morte. E quando finalmente Elliott viu um sulco na parede, o dr. Burrows os levou para lá.
Como sobreviventes de um naufrágio, eles engatinharam um pouco, depois se deitaram ali, arfando e mais agradecidos do que era possível expressar por voltarem à terra firme. Elliott teve a presença de espírito de amarrá-los a uma das árvores – a última coisa que queriam era ficar à deriva novamente.
Eles passaram um cantil de água de um a outro e embora o nível de ruído fosse mais suportável e eles pudessem se ouvir, mal trocaram uma palavra, porque nenhum deles sabia bem o que dizer. Mas estavam vivos e, ao perceberem isso, o cansaço os dominou e todos dormiram.
– E os príncipes desaparecem da terra, sem o testemunho das almas dos homens – declamou o velho Styx, na beira do Poro, nas Profundezas.
No perímetro a pouca distância, soldados em formação faziam fila e saltavam da beira. Abrindo seus paraquedas, esses Limitadores se assemelhavam a sementes vagando suavemente na ampla extensão de trevas. Cada soldado levava equipamento e vários tinham grandes fardos pendurados abaixo dos pés, que se retorciam e rosnavam.
– Levando os cães também? – disse uma voz perturbada. – Por que tantos dos teus soldados neste mergulho? Ou esta é uma missão suicida, ou você sabe de alguma coisa que eu não sei.
– Mas o que você não vê é a forma da terra angelical – continuou o velho Styx. Ele se virou lentamente para olhar a forma humana distorcida, com a cabeça coberta por um pano sujo, que tinha se materializado ao lado dele. – Eu me perguntava quanto tempo levaria para você aparecer, Cox – disse o velho Styx.
Cox ficou em silêncio por vários segundos e quando falou a voz era indignada.
– Ninguém me contou sobre isso. O que teus Limitadores estão aprontando? E por que os cachorros… Por que precisam dos rastreadores com eles?
– Recentemente soubemos que as gêmeas ainda estão vivas.
– No fundo do Poro? – Cox arquejou. – Não, não pode ser.
– Pode ser… Nossa informação é inquestionável, então existem todas as chances de recuperarmos os frascos de Dominion.
– Ah, que bom. Então… – Cox se arrebatou, mas o velho Styx o silenciou com um clarão dos olhos de obsidiana.
– Deixe-me concluir. Não só as gêmeas sobreviveram, mas também a criança Burrows e, pelo que dizem, Elliott.
– Burrows? Elliott? – Cox engoliu em seco. Ao ouvir isso, sua cabeça se torceu como de uma ave e ele se afastou um passo do velho Styx, apressadamente. Por mais nebuloso que fosse seu corpo, pelo modo como se comportava não havia dúvida de que esta informação o deixava verdadeiramente nervoso.
– Sim, estão lá embaixo em algum lugar – disse o velho Styx, esfregando o queixo distraidamente. – E se bem me recordo, seu lado do trato era entregar Will Burrows e qualquer um que tivesse contato com ele, e nisto você nos decepcionou singularmente. E para piorar, Drake está solto na Crosta e ele é um incômodo menor, mas verdadeiro. – O velho Styx ergueu a mão enluvada de preto e dois Limitadores imediatamente apareceram de cada lado de Cox, levantando-o no ar.
– Mas não sou desprovido de compaixão. – O velho Styx sorriu, mostrando demais seus dentes. – Estou disposto a lhe dar a oportunidade de honrar seus compromissos – disse ele.
– Não, por favor, não, não – Cox balbuciava ao entender o que o velho Styx estava dizendo.
– Isaías, capítulo 28, versículo 15… “Fizemos aliança com a morte, e com o inferno fizemos acordo” – disse o velho Styx.
– Não quer fazer isso, não com teu velho amigo Coxy.
– Negócios são negócios – disse o velho Styx simplesmente. E dessa forma, os Limitadores jogaram Cox no Poro. Enquanto ele caía espiralando, seu cachecol preto e sujo batia ao vento atrás dele, fazendo-o parecer um bruxo particularmente horrendo, mas sem a vassoura.
– Justiça severa… Não foi o que você disse, Cox? Justiça severa? – gritou o velho Styx, a voz ecoando no Poro.
Capítulo Trinta e Seis
Will abriu os olhos. Descobriu que estava deitado de bruços, a cabeça pousada nas pedras, e a centímetros de seu nariz havia uma visão muito curiosa. Era uma criatura de movimentos lentos, que para todos os fins podia ser uma lesma bem nutrida. Mas o que a distinguia da variedade comum de jardim era que alternava faixas de verde claro e escuro no dorso, que pareciam pulsar com uma leve iridescência.
Como estava ficando vesgo, Will recuou para ver a lesma com mais clareza. Ela sentiu o movimento dele e de imediato paralisou.
– Olá – disse Will. A lesma continuava imóvel e ele soprou de leve nela.
De repente, a lesma pareceu se desenrolar de dentro para fora, de modo que os verdes nítidos foram substituídos por um cinza opaco, quase indistinguível da pedra por onde rastejava. Ao mesmo tempo, contraiu-se numa bola. Se não a tivessem visto antes, poderiam supor que era apenas um seixo redondo.
Como a lesma insistisse em se fingir de morta – ou de pedra inanimada –, Will soprou de novo. Desta vez não houve reação alguma, então ele soprou com mais força.
Ouviu um estalo e a lesma disparou verticalmente no ar como uma mosca, e se foi.
– Mas o que…? – exclamou Will, sentando-se rapidamente.
Olhando em volta, viu Elliott e Bartleby ainda dormindo. Mas o pai estava bem acordado, recostado numa pequena árvore.
– Viu isso? – disse-lhe Will.
O pai assentiu, mas seus olhos ardiam com uma intensidade que não tinha nada a ver com a descoberta da lesma voadora.
– Nunca vi nada parecido… Deve ser uma espécie totalmente nova – disse Will.
Dr. Burrows ergueu a mão.
– Will, isso não é importante… Não agora.
– Como assim?
– Olhe a sua volta. Não percebeu onde estamos? Nós conseguimos… Estamos no interior do planeta. Estamos dentro do planeta Terra!
Will não respondeu de pronto, tombando a cabeça de lado para pegar a luz dourada que se infiltrava do alto.
– Mas… Não… Tem um sol aqui – disse ele com hesitação.
– Sim, Will, tem um sol, mas não é o nosso sol – disse dr. Burrows. – Aquela raça antiga sabia de umas coisinhas… Descobriram um jeito de chegar aqui e nós seguimos seus passos. Nós conseguimos, como eles. Nós conseguimos, caramba!
Will franziu muito o cenho ao perceber uma coisa.
– Pai… Quando escorregamos da lateral e caímos no meio do vazio, eu pensei que fosse Bartleby… Pensei que ele tivesse nos puxado. – Dr. Burrows sustentou o olhar do filho, que ainda falava. – Mas não foi ele, né? Foi você.
Elliott murmurou dormindo e dr. Burrows colocou o dedo nos lábios.
– Shhh… Não tão alto, Will.
Mas Will não seria silenciado.
– Você fez o que pôde para que nós não voltássemos. E quando estava disparando minha Sten, você não sabia aonde nos levava, sabia? Não tinha ideia se íamos chegar aqui, ou se só íamos morrer em algum ponto desse lugar horrível?
– Não, não fazia ideia nenhuma – admitiu o pai. – Foi um tiro no escuro. – Ele ficou muito satisfeito com o próprio trocadilho involuntário e o repetiu. – Um completo tiro no escuro.
– Você…! – Will rosnou, horrorizado porque o pai estivera tão disposto a arriscar a vida de todos, e depois se mostrasse tão despreocupado com isso.
– Tem toda razão de se sentir assim, Will, mas olhe só aonde chegamos – disse dr. Burrows com brandura, olhando novamente para Elliott. – E aconselho a guardar segredo disso, porque agora é a hora em que precisamos nos unir e conseguir chegar ao topo. Se você balançar o barco com a jovem Ellie nele, não vai nos ajudar em nada.
– Ela se chama Elliott e você é uma droga de um biruta. Podia ter nos matado com suas ideias malucas – Will o acusou.
– Ora, mas não matei, não é? – retorquiu dr. Burrows. – E se ficássemos vagando no fundo do vazio, quanto tempo acha que teríamos durado? – Ele ergueu os olhos para a luz. – Olha, Will, quando chegarmos ao topo e não houver nada lá além de um deserto árido e batido pelo sol, você pode se parabenizar por ter razão… Já que vamos todos morrer de fome e de um câncer de pele letal. – Ele assentiu consigo mesmo. – Como Ícaro, teremos voado para perto demais do sol.
O garoto não soube responder a isso. Dr. Burrows distorcera tudo em sua cabeça e agora, se Will tinha razão, então parecia que todos estavam condenados. Will se deitou nas pedras e, quando Elliott finalmente acordou, ele não contou o que o pai havia confessado. Além disso, que diferença ia fazer agora?
Ainda ligados por uma corda, eles subiram ainda mais pelo interior da cratera gigantesca e o ar ficou mais quente e a luz mais intensa. A parede da cratera tinha uma inclinação aproximada de quarenta graus, mas apesar disso a subida não era tão árdua no início, porque ainda estavam relativamente sem peso. Porém, à medida que subiam, o aumento da gravidade os empurrava para baixo, fazendo-os sentir que se arrastavam por melado. A vegetação também ficou mais abundante, o que também não ajudava. Ele foram obrigados a dispensar a corda de alpinismo porque ela ficava se prendendo nas árvores maiores, mas houve ocasiões frequentes e assustadoras em que um deles perdia o pé e começava a tombar desordenadamente pelo interior da parede da cratera. O truque era abrir bem os braços e as pernas e se agarrar ao arbusto ou árvore mais próxima para não cair ainda mais.
A intensidade da luz aumentava e Elliott claramente tinha problemas ao subir pela ladeira. Era muito diferente da agilidade de gato que ela costumava exibir, mas Will não ficou muito surpreso. Elliott nunca experimentara esse nível de iluminação na vida e ele esperava que ela conseguisse se adaptar.
Depois eles encontraram um trecho onde nada crescia e a encosta era coberta por um resíduo marrom escuro que recobria todas as pedras e saturava o solo.
– Algum tipo de mancha de óleo? – perguntou Will ao pai. Ele olhou à frente, tentando entender de onde vinha.
Dr. Burrows esfregou a substância escura e pegajosa entre os dedos, depois cheirou.
– Sim, de certo modo. Acho que é betume – concluiu ele.
– O que… Aquilo que usam nas estradas? – disse Will, sem gostar de como isso soava.
– Sim, mas este é de ocorrência natural… Deve estar fluindo dos estratos. Uma teoria é de que é derivado de colônias imensas de organismos microscópicos primordiais que, com o passar dos séculos, as bactérias quebraram e deixaram apenas esta fração. – Dr. Burrows limpou os dedos nas calças. – Aliás, procure não sujar muito a pele com isso… Não se sabe se tem arsênico ou coisas tóxicas.
– Tarde demais – murmurou Will, examinando as mãos enquanto eles voltavam a avançar.
Depois do que pareceram vários dias se impelindo pela vegetação cada vez mais abundante e por outros depósitos de betume, eles finalmente saíram da cratera e chegaram a um terreno plano.
– Inacreditável! – exclamou dr. Burrows. – Estamos aqui!
– Seja lá o que for – disse Will em voz baixa –, pensei que nunca chegaríamos ao topo. – Ele esticou as costas, curtindo poder ficar em pé de novo.
Dr. Burrows tirou a Bergen do ombro.
– Acho que não vou precisar disto. Não neste clima – disse ele, retirando o casaco. Ele pegou o binóculo. – Dê uma olhada nesse lugar! – exclamou. – É lindo.
Semicerrando os olhos, Will examinou a gama de colinas que formavam o horizonte para qualquer direção que se virasse, depois o solo vermelho-escuro sob seus pés.
Elliott cambaleou alguns passos e levantou a mão para se proteger da bola de luz feroz no céu.
– Queima muito – ela ofegou.
– Isso porque o sol está sempre a pino – informou-lhe dr. Burrows. – Aqui é sempre meio-dia.
– Do que está falando? – soltou Will.
Dr. Burrows olhou a bússola, depois levantou a cabeça.
– A Terra não orbita em torno deste sol… Este segundo sol fica no céu dia e noite… Na verdade, só existe dia… Não há noite nenhuma aqui.
– Só o dia – Elliott fez eco, encontrando os olhos de Will.
Se o que dr. Burrows dizia era verdade, Will percebia o quanto este conceito era estranho para ela. Toda a sua vida fora passada nos subterrâneos e só o que ela conhecia a essa altura era a escuridão permanente das terras do subsolo. Isso é que era passar de um extremo a outro.
– O Jardim do Segundo Sol – proclamou dr. Burrows enquanto continuava a examinar as cercanias. – Eu o chamarei de Terra de Roger Burrows!
A essa altura, foi demais para Will.
– Pai, sinto muito, mas não vou engolir essa história de segundo sol – disse ele, meneando a cabeça. Ele apontou para a cena diante deles. – Olhe a mata, ou floresta, ou sei lá o que tem ali nas encostas dos morros. – Ele deu de ombros. – Tudo perfeitamente normal. Como pode dizer que estamos no interior do planeta quando tudo parece tão normal? E me diga uma coisa… Se você tiver razão, por que não consigo ver a terra se curvar para cima?
– Bom, mesmo que esses morros não estivessem bloqueando nossa visão – explicou dr. Burrows pacientemente –, a imensa escala deste segundo mundo, conjugada com a névoa de calor, deve dificultar para que enxerguemos muito longe. Mas com as condições microclimáticas favoráveis, talvez possamos observar um pouco mais dos outros lados da esfera.
Will meneou a cabeça de novo.
– Então essa coisa grande e ardente no céu é o quê, exatamente?
– Eu já lhe falei… É o segundo sol. Deve estar ali desde o início dos tempos, quando nosso planeta foi criado depois do Big Bang. E aqui permaneceu por todo esse tempo, sem que nenhum de nós soubesse, girando em sua existência secreta.
– Está dizendo que é como uma estrela? – Will se arriscou, de cenho franzido.
– Sim. Uma estrela oculta. Desconfio de que não seja um caso isolado e que existam outras no universo, mas é claro que não temos como vê-las – sugeriu dr. Burrows. – E o bom-senso dita que é muito menor do que o sol no meio de nosso sistema… Tem que ser, para caber dentro de nosso planeta.
– Ah, sem essa – rebateu Will rapidamente. – De algum modo, não sei como, conseguimos subir por outro dos poros… Que tem abertura no alto… E estamos na superfície de novo. Sei que as plantas são meio esquisitas… – Hesitou enquanto seu olhar caía em uma flor azul e grande, do tamanho de uma bola de praia –, mas talvez tenhamos dado na África ou coisa assim. Ouça só esses grilos… Eles não existem na África?
Ninguém falou nada, ouvindo o cricrilar ritmado que vinha de toda parte.
– Cigarras – concluiu dr. Burrows. – Parecem cigarras, que se encontram em áreas tropicais como…
– Eu te falei – Will o interrompeu. – Voltamos à superfície.
– É mesmo? – disse dr. Burrows. – Se é assim, e a gravidade? Ande… Experimente.
– Tá legal, vou mesmo – respondeu Will, aceitando o desafio. Ele pulou várias vezes, chegando a uma altura inviável do chão a cada salto. Quando parou de pular, ficou indeciso.
– Parece mais baixa do que o normal.
– Obrigado – disse dr. Burrows com certo escárnio. – Na realidade, é muito mais baixa. E isso principalmente porque é a força centrífuga que o mantém na lateral desta esfera giratória, uma força menor do que a da gravidade a que estamos acostumados na superfície. – Dr. Burrows parou de falar e ouviu um piado e um bando de aves vermelhas passarem. Tinham o tamanho de pombos, mas de aparência muito mais refinada, com plumas longas na cauda e, mais notadamente, dois pares de asas, e bicos finos e curvos com quase dez centímetros de extensão. Uma da aves mergulhou na flor azul com forma de bola de praia e, pairando ali como um beija-flor, meteu o bico no fundo para coletar o néctar.
– Já viu isso na vida? – perguntou dr. Burrows ao filho.
– Não posso dizer que sim – concordou Will com relutância.
Enquanto eles se viravam para começar a jornada para as montanhas, Bartleby disparou e pegou a ave vermelha na boca.
– Bartleby! Não! – gritou Will, mas era tarde demais.
Elliott os levou para um vale que localizou nas montanhas, o que se revelou a decisão certa, porque havia uma passagem ali. Embora isso significasse que eles não tinham de subir mais, a “mata ou floresta” a que Will se referia era a selva mais densa imaginável e eles precisaram de muitas horas para abrir caminho pelo emaranhado de vegetação e avançar uma curta distância. Mas quando finalmente saíram dela, descobriram que estavam na beira de uma área de vegetação rasteira, talvez de um quilômetro quadrado. Era margeada por mais selva, que crescia a uma altura inacreditável e parecia ainda mais densa do que o trecho que acabaram de atravessar.
– Por que será que esta área não cresceu tanto? – ponderou dr. Burrows, ao se colocar de joelhos e começar a futucar a relva, murmurando algo sobre “colônias pioneiras” de plantas.
– Ei – disse Will ao pai, vendo vários rebanhos de animais pastando nos recantos distantes da clareira.
Num instante dr. Burrows estava de pé, olhando pelo binóculo.
– Búfalos – disse ele. – Mas veja ali. – Ele apontou para um canto distante do relvado.
– Zebras? – sugeriu Will, capaz de distinguir apenas marcas pretas e brancas.
– São parecidas com zebras, mas as listras param atrás das pernas traseiras.. Will… Acredito que sejam quagas! – exclamou o dr. Burrows, depois soltou uma risada um tanto histérica.
– Não. Os quagas estão extintos, pai – desconsiderou Will. – O último morreu num zoológico em…
– Eu sei, eu sei… No fim do século XIX… Num zoológico de Amsterdã. – Dr. Burrows baixou o binóculo. – Mas eles não foram caçados até a extinção aqui. É como se tivessem tido uma segunda chance!
– Quer dizer que nós tivemos uma segunda chance – Will o contradisse.
Dr. Burrows ficou em silêncio enquanto algo atraía seus olhos e ele passava o binóculo ao filho.
– Pouco acima da linha das árvores… Diga o que você vê.
– Parece fumaça… Uma nuvem grande – respondeu Will.
– Sim, eu vi isso – disse dr. Burrows. – Um incêndio florestal, eu diria. A folhagem deve ter ficado tão quente que o fogo surgiu espontaneamente. Por um exame rápido do solo em volta daqui, parece que há uma camada grossa de cinzas por baixo da vegetação nova. – Ele fez uma pausa teatral. – Mas eu não estava falando da fumaça. Dê outra olhada, Will.
Will ajeitou o binóculo. Não disse nada, mas depois o baixou e olhou o pai nos olhos.
– Pirâmides… Duas delas.
– Sim – disse dr. Burrows – E elas…
– … parecem com as pirâmides maias – Will o interrompeu. – O cume é achatado.
– Sim… Pirâmides maias – concordou dr. Burrows. – Mas eu contei três. Precisamos ir para a mais próxima – decidiu dr. Burrows no ato.
Eles andaram pela clareira e os rebanhos de ruminantes não pareceram dar pela presença deles, como se não tivessem medo de seres humanos. Mas Will ficava cada vez mais indócil. Estendeu o braço e o examinou.
– Qual é o problema? – perguntou-lhe dr. Burrows.
– É o sol… Não posso ficar nele por muito tempo. Está me queimando demais – disse Will.
Felizmente eles estavam perto do perímetro do relvado e Will logo pôde se abrigar sob o denso dossel de árvores.
– Mais feliz agora? – disse-lhe dr. Burrows quando eles pararam para beber água.
Depois eles apertaram o passo, batalhando para passar pela selva, que era quase impenetrável. Dr. Burrows comparou-a à floresta amazônica, dizendo a Will e Elliott que as árvores eram várias vezes mais altas do que as que se via nas florestas tropicais da Crosta. Depois eles tiveram uma trégua ao chegarem a vários trechos onde era mais fácil avançar. A cobertura de folhagem era tão densa nesses trechos que ficava muito escuro no chão da selva, e muito mais frio. Aqui havia poucos obstáculos a seu progresso, exceto os troncos tremendamente grossos e alguns arbustos menores, dos quais pendiam frutas exóticas. Agora que estava longe da luz do sol, Elliott parecia estar em seu elemento ao assumir a liderança e apressar o passo.
Eles também tiveram breves vislumbres do que pareciam ser antílopes e gazelas. Elliott viu uma cobra grande enroscada num galho alto e, embora estivesse parada, eles tiveram o cuidado de não passar por baixo dela. No chão, escondidos nos detritos de folhas, havia répteis menores – lagartos de cores vivas – e anfíbios parecidos com sapos, que deliciaram Bartleby enquanto os farejava inquisitivamente e eles fugiam ou saltavam freneticamente para longe.
Dr. Burrows estivera assobiando de seu jeito aleatório e atonal, vendo a fauna variada, mas de repente ficou em silêncio e passou por Elliott com um ar presunçoso. Claramente decidiu que cabia a ele liderar o grupo. No entanto, depois de quase cair numa corredeira inteiramente escondida por um tapete grosso de vegetação, ele voltou para a retaguarda e deixou que Elliott liderasse. E todos tiveram mais cuidado com onde pisavam.
Seguindo a orientação da bússola do dr. Burrows, eles finamente deram na beira da selva. Entraram numa clareira. A uns cinquenta metros, ficava a mais próxima das pirâmides.
Will e o dr. Burrows ficaram paralisados. Dr. Burrows examinava-a pelo binóculo, absorvendo avidamente os detalhes de cada camada, em direção ao topo.
– Deus Todo-Poderoso, olhe só para isso! Está vendo todos esses entalhes? É impressionante! – exclamou ele. – E Will, olhe a escala deste lugar! O ápice fica acima das árvores!
– O que é aquilo? – disse Elliott, semicerrando os olhos para o céu. Nuvens imensas assomavam no alto, cobrindo tão completamente o sol que era como se o anoitecer caísse de repente sobre eles. Ao mesmo tempo, o canto das cigarras e das aves cessou, deixando um silêncio sinistro.
– Não se preocupe… São só nuvens. Temos destas na Crosta também – disse-lhe Will ao estourar um clarão ofuscante de raio. No instante seguinte, eles foram atingidos por uma chuva torrencial.
– É uma monção. – Dr. Burrows riu.
Will estendia os braços, deixando a chuva banhá-lo.
– Aaahhh, era disso que eu precisava! – gritou ele por sobre o ruído da tempestade. Mas alguns segundos depois, o aguaceiro tinha ficado tão forte que os derrubava. – Ai! Isso dói! – gritou Will enquanto os três batiam numa retirada rápida para a selva. – Era um pouco mais do que eu precisava – reclamou.
Da beira da selva, o trio olhou o dilúvio e ouviu o estrondo de algo que parecia estar desabando pelas árvores. Logo descobriram o que tinha provocado – vinte metros atrás deles, um galho caíra no chão.
– As árvores estão levando uma surra – disse dr. Burrows enquanto Will e Elliott iam inspecionar o galho caído. Will franziu a testa, depois se curvou e, usando as duas mãos, tirou alguma coisa dela.
– Uma maçã… Do tamanho de uma cabeça? – disse ele, erguendo a fruta imensa para que o pai visse.
Era mesmo semelhante a uma maçã gigante, com lindos trechos rosados em sua impecável casca verde. Usando o canivete de Cal, Will cortou uma fatia como se fosse um melão.
– Deixe-me ver – pediu Elliott e Will lhe passou. No início ela simplesmente cheirou, depois deu uma mordida. – É boa. Tome um pouco – disse e devolveu a Will, que também provou.
– Boa? É deliciosa! – exclamou ele, oferecendo ao pai.
– Não, precisamos dar um passo de cada vez – disse dr. Burrows. – Se comermos a mesma coisa e não nos dermos bem com ela, todo mundo pode ficar fora de ação. Afinal, não é nosso habitat natural.
– O gosto é muito natural para mim – disse Will, dando outra grande dentada.
A chuva se afastava e eles saíram da selva, maravilhando-se com as gotas de água que pendiam das pontas das folhas e cintilavam como diamantes no sol forte.
– Mas que lugar verdadeiramente maravilhoso. É totalmente virgem. – Dr. Burrows se entusiasmou. – Parece um Éden secreto.
– Foi uma tempestade de matar – disse Will, enxugando o rosto. Seus passos no tapete verde e exuberante produziam um chapinhar quando eles prosseguiram, mas mesmo agora a terra começava a se secar de novo sob o sol intenso.
– Sim… Qualquer incêndio seria imediatamente apagado por uma precipitação tão pesada. Talvez seja assim que funcione – disse dr. Burrows pensativamente.
– Como assim? – perguntou Will.
– Talvez seja um ciclo interminável de fogo e água, morte e renascimento, o que deve fazer sentido, já que tecnicamente não existem estações neste mundo. E a única “noite” aqui acontece quando a cobertura de nuvens tapa o sol, como acabamos de testemunhar. – Ele olhou fixamente o filho. – Então, Will, agora acredita que não estamos na superfície?
– Agora tenho que acreditar – Will concordou.
– Bom garoto. – Dr. Burrows sorriu, colocando a mão no ombro do filho. Ele se virou para a pirâmide. – Vamos dar uma olhada no que conseguimos aqui, então? – sugeriu, e eles se aproximaram da base da pirâmide. – O símbolo do tridente! – disse o dr. Burrows abruptamente.
– É, ele aparece em cada andar – disse Will ao passar os olhos pelas camadas da pirâmide, localizando o desenho do tridente entalhado na face das pedras. Eram tão grandes que ele nem precisava do binóculo para vê-los. Ele pensou novamente no pingente com o mesmo símbolo que o tio Tam lhe dera, que mesmo agora estava em seu pescoço. Perguntou-se como Tam o conseguira e se ele sabia deste segredo do centro da Terra o tempo todo. Will certamente não se surpreenderia nem um pouco com isso.
– Então meu povo esquecido… Que precedeu os egípcios e os fenícios… Pode ter sido responsável por esta pirâmide. – Dr. Burrows pensava em voz alta. – Talvez em algum lugar por aqui exista a cidade perdida da Atlânt… – Ele se interrompeu quando Elliott soltou um assobio de passarinho. Os dois giraram para onde ela estava, perto de um dos cantos da pirâmide. – O que ela está tentando nos dizer? – perguntou dr. Burrows.
– Sei lá – respondeu Will. Logo ele pegou sua Sten no ombro, sacudiu a água e a armou. Depois ele e dr. Burrows foram investigar.
Ao se aproximarem de Elliott, viram que diante dela havia três crânios em estacas de madeira. Os crânios estavam descarnados e haviam sido descorados pelo sol, muito brancos.
– Humanos? – perguntou Will.
– Sim, mas não são recentes – observou dr. Burrows, como se servisse de algum consolo.
– Este tem um ferimento na têmpora – disse Elliott, apontando o crânio do meio.
Dr. Burrows e Will os contornaram, examinando o buraco irregular na lateral do crânio.
– Não se pode ter certeza disso – argumentou dr. Burrows, meneando a cabeça. – Pode ter sido causado por um acidente… Uma queda ou coisa assim. E este pode ser algum ritual de sepultamento.
– É um buraco de bala – disse Elliott inequivocamente. – Tem uma saída do outro lado.
Will olhou inquieto por sobre o ombro, considerando a selva densa em volta deles sob uma luz diferente.
– Por que os crânios foram deixados aqui? – disse ele.
– É um sinal… Um aviso – respondeu Elliott.
Will logo girou a cabeça para ela e seus olhos se encontraram. Ela usara exatamente a mesma frase quando, nos confins claustrofóbicos das Profundezas, eles deram com uma exibição horrenda de Coprólitos e renegados mortos, massacrados pelos Styx e presos a estacas. A reação de Will depois do incidente fora ofensiva para Elliott e as coisas nunca mais tinham sido as mesmas entre os dois. Mas agora era diferente, como se ele tivesse a chance de recomeçar com ela.
Desviando devagar os olhos de Elliott, Will se voltou para o pai.
– Não importa quem tenha matado essas pessoas, pai, agora sabemos que não somos os únicos aqui – disse ele em voz baixa. – Pode haver mais alguém conosco… Os homens do submarino, piratas do antigo galeão, ou talvez algo muito, mas muito pior.
Dr. Burrows arqueou as sobrancelhas.
– Talvez este lugar não seja virgem, afinal – disse-lhe Will.
Capítulo Trinta e Sete
– Will disse que isso gastou uma tonelada de gasolina para levar os dois para casa – gritou Chester enquanto desligava o motor e o silêncio voltava ao porto.
– Não se alarme, meu tesouro, vou pegar mais algumas latas para você – ofereceu-se Martha de pé no cais, olhando amorosamente Chester, que continuava sentado na lancha.
Ele viu a mulher rechonchuda andar para os tanques de combustível. “Tesouro?”, murmurou ele consigo mesmo, balançando a cabeça. Ela estava ficando assustadora. Sem Will por perto, Martha parecia concentrar todo seu afeto nele e Chester não gostava nem um pouco disso. Ela estava sempre babando para ele, com aqueles olhos de corça, e isso o enchia de uma inquietação crescente.
O pior momento foi quando eles tiveram de subir a fenda usando os sinais dos radiofaróis para orientá-los até o porto subterrâneo. Quando pararam para descansar, Martha se oferecera para ficar de vigia enquanto Chester baixava a cabeça por algumas horas. Mas ele acordara sobressaltado, certo de que alguém afagava seu cabelo. Pelos olhos entreabertos, viu Martha retirando a mão repentinamente. Ele ficou muito constrangido e, francamente, perturbado demais com todo o incidente para confrontá-la sobre isso. E ao pensar no assunto de novo, sentiu-se arrepiar.
Ele certamente não teria tentado a jornada ao abrigo nuclear sozinho e havia pouca dúvida de que precisava de mais alguém com ele na próxima etapa pelo rio. Mas nem em mil anos teria escolhido Martha como sua única companhia de viagem, não com o modo como a mulher agia agora.
Com a lancha balançando-se sob seus pés, ele se levantou devagar para ver o píer. Viu o progresso de Martha pelo cais. Assim que ela desapareceu em um dos prédios, ele agiu.
– É agora – disse ele, saltando do barco. Correu para o lado contrário do cais e entrou no abrigo nuclear. Ali ele foi diretamente à cabine do operador de rádio e fechou a porta depois de entrar.
– O telefone preto… O telefone preto… Will falou do telefone preto – tagarelava Chester meio histericamente ao pegar o fone. Ele escutou. – Não tem sinal… Mas Will disse que não tinha sinal – lembrou-se Chester e apressadamente discou o número que Elliott tinha repetido durante sua febre.
Na pressa, ele discou mal, colocando o dedo no buraco errado. Entrando em pânico, viu um pequeno cartaz na parede. Em letras simples e bem definidas, pretas sobre um fundo branco, proclamava MANTENHA A CALMA E CONTINUE. Algum engraçadinho acrescentara a palavra MORRENDO no final em caneta azul, mas a mensagem original não passara despercebida a Chester. Ele respirou fundo e rediscou.
– Funcione, funcione…
Esperou alguns segundos, só por garantia, para que a ligação se completasse. Ouvindo o estalo no fone, falou no receptor, as palavras saindo num jorro.
– Drake, é o Chester. Estou prestes a começar a subir o rio e eu… Hum… Você precisa me encontrar no topo – pediu ele numa voz tensa. – Você precisa – acrescentou, e parou por um momento ao pensar ter ouvido um barulho no corredor. Baixou a voz a uma súplica urgente: – Estou contando com você lá, Drake. Não posso lidar…
Agora era certo que alguém andava no corredor, e Chester rapidamente recolocou o fone no gancho, arriando numa das cadeiras. Colocando os pés na bancada, ele tombou a cabeça no peito, como se tivesse caído no sono.
A porta se abriu lentamente atrás dele.
– Meu tesouro, você esta aí… Ah, está mesmo aí – disse Martha, meio surpresa.
Chester esticou os braços e bocejou de um jeito muito teatral.
– Acho que cochilei – mentiu.
Martha correu os olhos pelo equipamento na bancada, sem nenhum interesse.
– Já vi o combustível e estava pensando se você agora está pronto para comer – disse ela, coçando o traseiro por baixo de suas volumosas saias.
– Eu… Não… Está tudo bem, Martha – respondeu Chester. – Pensei em dar eu mesmo uma olhada nos suprimentos daqui a pouco. É sério, pode ir comer alguma coisa, não se preocupe comigo.
– Perfeitamente, meu amor – disse ela, sem esconder sua decepção ao se arrastar para fora.
Chester continuou na cabine, perguntando-se novamente se havia algum jeito de completar o restante da jornada sozinho. A ideia de fugir do porto sem Martha na lancha era muito tentadora, mas pelo que Will lhe disse, duas pessoas eram necessárias para se revezar no motor de popa. Chester xingou em silêncio – não, não via como conseguiria sozinho.
Também não via como tudo ia se desenrolar quando ele realmente chegasse à Crosta. Haveria o eterno risco dos Styx para combater, mas apesar disso ele estava decidido a procurar os pais. Precisava dizer a eles que ainda estava vivo. Mas com Martha a reboque, como isso daria certo? Era como se ele tivesse de algum modo arrumado um terceiro genitor, outra mãe idólatra e muito perturbada. De repente uma imagem terrível abriu caminho à força em sua mente. Martha, tomada de ciúmes e espumando pela boca, estava prestes a usar a besta em sua mãe e seu pai.
– Ah, meu Deus, não. – Ele esfregou a testa com força. – Will, onde quer que esteja, você tem muito o que explicar – disse Chester e depois, por algum motivo, começou a rir. – Will, Will, Will – disse, balançando a cabeça e ainda rindo.
Capítulo Trinta e Oito
Will tinha de concordar com o pai – eles se viam numa espécie de Éden. Embora a descoberta dos crânios empalados tivesse sido numa nota dissonante em um idílio que poderia ser perfeito, eles deixaram todo esse pensamento para trás e mergulharam em sua nova vida. Mais do que qualquer outra coisa, porém, essa existência simples era uma chance de todos tivessem o descanso de que tanto precisavam e se recuperassem.
Em uma das primeiras excursões na selva, Will e o pai deram com vestígios de uma cidade. Embora a terra há muito tenha sido reclamada pelo prodigioso crescimento das árvores, as numerosas ruínas sugeriam que a cidade fora construída numa escala imensa, cobrindo vários quilômetros quadrados. Dr. Burrows estava convencido de que tinha encontrado onde seu povo itinerante – os Antigos, como ele chamava – se estabeleceu e fundou uma grande metrópole. E os frisos e escritos em suas pirâmides demonstravam que eles foram mais avançados em muitos séculos do que as culturas da Crosta, se estivesse correta a estimativa da idade das ruínas feita pelo dr. Burrows. Suas realizações em filosofia, matemática, medicina e muitas outras disciplinas eram simplesmente impressionantes.
A teoria do dr. Burrows era que os Antigos foram a base da lenda de Atlântida. Ele estava certo que de algum modo Platão ouvira relatos desta civilização oculta no século II a.C. e escrevera sobre isso em seus diálogos, mas nunca soube de sua verdadeira localização. E assim, todos os séculos de conjectura que se seguiram – de que a cidade fora uma ilha ou ilhas no Atlântico ou no mar Mediterrâneo que foram tragadas pelas ondas – foram completamente equivocados. Dr. Burrows estava convencido de que estivera escondida aqui, no centro da Terra, por todo esse tempo. Will não se preocupava com essas questões, muito feliz por passar seus dias trabalhando junto do pai enquanto eles registravam suas descobertas. Era como se o sonho de Will finalmente se tornasse realidade.
Elliott aprendeu a viver com o sol, logo ficando morena como um fruto silvestre – algo que Will atribuía a sua herança Styx, pois as gêmeas Rebecca também tinham se adaptado tranquilamente às condições da Crosta.
Não muito longe da pirâmide, ela construiu um abrigo no alto dos galhos de uma das árvores gigantescas para acomodar a todos. E armada de arco e flecha, saía em excursões de caça com Bartleby a seu lado. Ele provou seu valor rastreando as presas depois de ser convencido a não se limitar a farejar pequenos roedores e répteis. A menina e o felino em geral se ausentavam do acampamento por dias a fio, entrando fundo na selva para caçar gazelas e antílopes. Estes se mostraram um amplo suprimento de carne e peles, que Elliott sabia como preparar, graças às habilidades que adquirira nas Profundezas. Ela também descobriu que vários rios largos serpenteavam pela selva e Will às vezes a acompanhava e ajudava a lançar redes para pegar uma ampla variedade de peixes grandes.
Foi numa dessas saídas que aconteceu o inesperado.
Levando Bartleby porque dr. Burrows se recusava terminantemente a cuidar do gato, sustentando que estava ocupado demais com seu trabalho e que isso equivalia a servir de babá, Will e Elliott tinham ido pescar no mais largo dos rios. Ficava a um dia de caminhada do acampamento, mas Will aproveitou a oportunidade para ficar com Elliott e mudar um pouco de ambiente.
Seus pés mal produziam som enquanto eles andavam pelo grosso tapete de restos de folhas no chão da selva, e Elliott pouco falava com Will. Era como se ela fosse incapaz de abandonar as habilidades de campo que eram tão essenciais à sobrevivência nas Profundezas. Will não via necessidade desse constante estado de vigilância, satisfeito por andar e observar a vida selvagem ou se perder em pensamentos.
Várias horas depois, Elliott ergueu um punho fechado – o sinal de que deviam parar de pronto. Por alguns passos, Will não o viu, fazendo com que Elliott sibilasse para chamar sua atenção. De cenho franzido, ele se virou para ela.
– O que foi?
Tirando o rifle do ombro, ela gesticulou para Bartleby.
Will olhou o felino, que tinha arriado no chão, esticando a cauda fina. Como fora treinado na Colônia, o gato parecia estar apontando, como se tivesse farejado alguma coisa.
Will assentiu.
– Deve ser algum bicho que ele não conhece. Um ursinho Pooh ou um Tigrão – brincou ele.
Mas Elliott estava muito séria.
– Não quero que ele saia correndo… Vou colocá-lo na trela – cochichou ela a Will. Retirando a Bergen, ela pegou um pedaço de corda, que passou pelo pescoço de Bartleby e deu um nó. – E prepare sua Sten – ordenou.
Will observou o chão da selva à frente. Tão densa era a folhagem no alto, que só um dedo de sol conseguia atravessar. Em meio aos troncos gargantuescos, esses feixes de luz como laser se estendiam até onde a vista alcançava, alterando-se um pouco e às vezes se apagando completamente quando o vento soprava forte e os galhos se uniam. Tudo parecia muito inofensivo e inocente. Mas de novo Elliott tinha visto algum grande felino predador, o que deixou dr. Burrows tremendamente animado porque, pela descrição que a menina dera, ele pensava ser um tigre-dentes-de-sabre. E Will sabia que ele podia estar ficando meio complacente demais num mundo onde tudo era possível. Assim, com um suspiro relutante, tirou a Sten do ombro, verificou o pente e a armou.
– Por aqui – cochichou Elliott, deixando que Bartleby a puxasse para frente.
– Ei, espere um minuto – Will protestou. – Quer dizer que vai mesmo seguir o rastro? Por que não esquece isso e continuamos para o rio?
Mas Elliott foi inflexível.
– Não, temos de ver o que é. Precisamos descobrir tudo o que pudermos sobre este lugar, se não quisermos ter nenhuma surpresa.
– Tudo bem, como quiser – respondeu Will, torcendo os lábios, infeliz. A sensação da arma carregada em suas mãos já parecia pertencer a outra época, uma época que ele estava aliviado por deixar para trás. E nada na Terra – nem dentro dela, pensou ironicamente – o induziria a voltar àqueles dias cheios de medo.
Bartleby farejava pelas folhas e o rastro parecia evitar os feixes verticais de luz, enquanto moscas e insetos zumbiam languidamente. Logo eles perceberam que a sinfonia de cantos de pássaros e cigarras também ficava mais alta.
– Conhece essa área? – perguntou Will a Elliott.
Ela se assustou porque ele não se incomodou em falar baixo e meneou a cabeça em resposta, descontente. Se isso significava que ela não estivera ali antes ou se estava irritada por ele não fazer silêncio, ele não sabia, mas desconfiava de que era a última opção.
Tá legal, se quer brincar de soldado… pensou Will. Modo furtivo, então. Agachando-se bem, ele começou a imitar o jeito como Elliott pisava de leve nas folhas secas.
Logo viram trechos do sol no chão mais à frente, o que significava que deviam estar chegando ao final da cobertura densa de árvores. Isso se confirmou quando chegaram à área mais iluminada. Ali as árvores eram acácias, cobertas de grandes espinhos e com vagens inchadas penduradas de seus galhos. Estas árvores eram muito mais baixas do que as gigantes da selva e suas copas eram menos desenvolvidas – não eram muito diferentes do que se encontrava nas matas da Crosta.
Will olhou o céu ofuscante de branco e depois, ao baixar os olhos, eles caíram em uma face de penhasco à frente.
– Não vamos escalar isso, vamos? – resmungou ele para Elliott.
Os dois pararam para ver a escarpa, que era de pedra branca e tinha uns quarenta metros de altura. No topo do penhasco, a selva parecia voltar a seu desenvolvimento prolífico.
Elliott avaliava a escarpa pelas árvores.
– Parece que continua por um trecho – observou ela, olhando para a esquerda e depois à direita.
Will de imediato entendeu que eles deviam estar numa espécie de linha de falha, onde havia uma fratura na crosta. Ele ainda não estava acostumado com a ideia de que a Terra tinha duas crostas – a externa, onde ele passara a maior parte de sua vida, e a interna, como a polpa branca de um coco. Ele e o pai haviam conversado por horas sobre o que mais poderiam descobrir neste novo mundo, como cadeias montanhosas imensas e vastos mares e oceanos sem embarcações. Assim, concluiu ele, o penhasco pode ter sido formado por uma linha de falha; ou a terra em que ele e Elliott estavam tinha arriado, ou a terra do outro lado da escarpa tinha subido, ou as duas coisas. Ele foi arrancado abruptamente de suas reflexões quando Elliott chamou-o aos sussurros.
Estava agachada e examinava um trecho de lama e folhas podres. Parecia ansiosa. De maneira nenhuma Will conseguia entender o que a deixava tão agitada.
Ela acompanhou uma forma com o indicador, depois andou como um caranguejo pelo chão, colocando a face quase na lama para examinar uma área adjacente. Bartleby puxava a trela, mas ela o ignorou, engatinhando por mais alguns metros, ainda examinando o chão. De repente olhou para Will. Ergueu três dedos, depois apontou à frente.
Era outro dos sinais que ela e Drake usavam nas Profundezas.
Will sabia muito bem o que significava.
Ele sentiu uma onda de adrenalina, o coração batendo com força no peito. Não reagiu e permaneceu parado ali, mas Elliott se colocou de pé num salto e veio até ele.
– Gente. São três pares de pegadas… Um de adulto, outras duas menores – confirmou ela.
Ele balançou a cabeça, sem querer ouvir mais nada, sem querer registrar o que ela dizia. De olhos arregalados, ele a encarava, com as mãos agarradas na Sten.
– Gente? – perguntou ele num torpor. – Ou Styx? Está me dizendo que são as duas gêmeas e o Limitador?
Elliott se virou para onde levava o rastro.
– Um par certamente tem o tamanho de um homem, e seu rastro é leve… De alguém com treinamento militar.
– Sobre o calcanhar – murmurou Will, lembrando-se de como Elliott tentara lhe ensinar a se movimentar pela Grande Planície.
– Sim, isso mesmo – disse ela. – Mas os outros dois pares são muito menores e de tamanho idêntico – continuou ela.
– Ai, meu Deus – disse-lhe Will – O que vamos fazer?
– O que Drake nos pediu. Temos de nos certificar de que as gêmeas Rebecca e o Limitador fiquem inoperantes e que o risco do Dominion seja neutralizado – respondeu ela sucintamente.
– Inoperantes… Neutralizado – murmurou Will consigo mesmo. Tudo isso seria ótimo se ele só se concentrasse nas palavras – aquelas duas palavras certinhas e distantes que pareciam algo que se lê num livro ou no jornal. Mas isso era diferente, era real, e para alcançar os objetivos de Drake, ele e Elliott teriam de fazer coisas que não eram nada certinhas. O próprio Will teria de fazer coisas que nem tinha certeza de ser capaz, não agora. Coisas que provavelmente o mudariam para sempre. É claro que Elliott tinha razão. Era responsabilidade deles se certificar – como pudessem – de que o vírus não fosse para a Crosta. Mas ao olhar para Elliott, via como a garota estava imediatamente pronta para a tarefa, parecia decidida, como se não tivesse reserva nenhuma, enquanto a cabeça de Will nadava na dúvida.
Olhando na direção que estavam prestes a tomar, ele admitiu a si mesmo, sentindo-se culpado, que desejava que os três Styx tivessem ido embora há muito tempo e que Elliott não fosse capaz de encontrá-los. Mas ao pensar nisso, viu que não poderia ser verdade – os rastros tinham de ser relativamente frescos, caso contrário as monções frequentes os teriam lavado.
Elliott prendeu Bartleby a uma árvore, depois pegou a rede de pesca enrolada da Bergen e a arrumou sob alguns galhos. Will sabia que ela se preparava para a batalha, verificando o equipamento no fundo da Bergen e o recolocando no lugar.
– Fila única, quatro passos de distância – disse ela a Will, lendo os rastros e avançando lentamente.
Will olhou os arredores com um pavor crescente. As árvores e a folhagem não eram mais benévolas – cada arbusto abrigava um Limitador e cada tronco de árvore escondia uma das meninas cruéis que tentaram matá-lo em todas as oportunidades que tiveram. A mente de Will martelava vários pensamentos, altos como gritos. Não posso mais fazer isso. Não estou preparado. Agora não. Ele sentia que sua cabeça podia se romper.
Eles chegaram no pé da escarpa e olharam para cima. Muito pouca coisa crescia em sua face – o mato ou arbusto errático que conseguira se ancorar nas rachaduras e, mais acima, pendiam longas raízes de árvores e uma vegetação seca, como uma franja verde clara.
Ela o levou para baixo de um ressalto na escarpa.
– Eles pararam um tempo aqui, talvez para sair do sol – cochichou Elliott no ouvido de Will, examinando o terreno. Depois Will e Elliott avançaram furtivamente pelo pé da escarpa, de vez em quando subindo em rochas caídas, onde a face tinha se esfarelado. Ocasionalmente davam em passagens que penetravam na escarpa, mas não passavam de corredores estreitos, tomados por um emaranhado de mato grosso. Elliott não se incomodou em descer para investigar porque via que os rastros continuavam, passando por esses corredores.
Por fim deram em outra abertura na escarpa. Era mais larga do que as demais, uma passagem de uns vinte metros, com laterais verticais de pedra branca. Até Will podia dizer que alguém tinha andado por ali, abrindo caminho pela vegetação densa e deixando pegadas em seu rastro.
– Fique perto de mim – disse Elliott a Will antes de eles avançarem. Ele não pretendia fazer nada além disso.
Os rastros continuavam pela passagem e Elliott interpretava o chão, descobrindo folhas quebradas de relva e o arbusto ocasional que tinha sido pisoteado.
Seguiram por uma curva suave na passagem, depois Elliott acenou para Will se abaixar. Os dois deitaram-se de peito. Ela tocou o lóbulo da orelha – uma instrução para Will escutar. De início, ele não tinha certeza, mas pensou ouvir uma voz.
Uma voz de menina.
Elliott começou a se esgueirar muito lentamente, asseverando-se de não haver nada em seu caminho. Um galho que se quebrasse podia entregar a presença dos dois.
Parando de repente, ela ficou imóvel por vários segundos e virou a cabeça para Will. Apontou para o próprio olho, em seguida deu um tapinha no chão ao lado dela. Ao chegar ao mesmo patamar que Elliott, Will procurou o que ela havia visto.
A passagem se alargava mais, num espaço aproximadamente circular, de uns quarenta metros de diâmetro. Suas laterais eram igualmente íngremes e da mesma altura do resto da escarpa. Pelo que Will podia ver, assemelhava-se a uma caverna num penhasco litorâneo e a passagem que ele e Elliott tinham percorrido parecia ser a única maneira de entrar ou sair. Havia uma massa de vegetação seca pendendo das paredes e tudo na área circular também parecia ressecado e marrom. Will deduziu que devia ser porque o espaço, com suas paredes brancas, agia como uma armadilha para o sol. Certamente era mais quente ali do que no bosque de acácias.
Depois Will viu uma coisa, mas estava completamente deslocada. Perto do meio da área circular, havia uma espécie de estrutura – uma pequena cabana com um teto plano – suas laterais de um marrom avermelhado escuro e com vários buracos, como se tivessem sofrido a ação da ferrugem.
Metal corrugado, pensou Will consigo mesmo. Mas que diabos isso está fazendo ali?
E acima das cigarras Will ouviu, com muita clareza, uma das gêmeas Rebecca. Era nasalada – ela falava na língua dos Styx.
Se o coração de Will estava acelerado antes, agora batia com tanta rapidez que sua pulsação nos ouvidos era alta como repetidas salvas de tiros.
Depois, ao mover a cabeça para ter uma visão melhor através da vegetação, ele localizou de onde vinha a voz. Viu o perfil da gêmea Rebecca sentada em algo ligeiramente erguido, talvez uma rocha, não muito distante da cabana.
Enquanto ele olhava, ela balançou a perna e ele ouviu um som suave, como algo caindo na água. Depois houve um chapinhar maior e a segunda gêmea entrou em seu campo de visão, bem na frente da primeira Rebecca. Ela pingava, o cabelo preto e comprido solto, caindo no rosto. Jogou-o para trás com a mão, espalhando gotas de água que cintilaram no sol forte. Estariam elas nadando ou tomando banho numa espécie de lago? Will nem acreditava em como estavam relaxadas – mas elas não tinham a menor ideia de que ele também havia chegado a esse mundo interior. Estavam de guarda baixa porque acreditavam que não havia ameaça ali. Mas onde estava o Limitador?
Ele ainda olhava quando a segunda Rebecca sumiu e, supôs ele, afundou na água. Embora ela estivesse fora de vista, as duas ainda conversavam. Ele ouviu algumas palavras vagas. Falavam em inglês. Enquanto os raios do sol banhavam a cena diante dele e um ou outro pássaro piava, ele foi transportado de volta a verões passados em Highfield. Seu quarto dava para o pequeno quintal onde Rebecca costumava abrir uma toalha no gramado e tomar banho de sol, enquanto ele tinha de se esconder dos raios devido à falta de pigmentação. Nesses dias, quando ele não saía para escavar em algum lugar e ficava deitado na cama lendo, a voz dela vagava pela janela quando ela cantava junto com o rádio.
Com uma cotovelada, Elliott trouxe Will de volta ao presente. Ela apontava alguma coisa. Era difícil ver porque a camuflagem se fundia muito bem com o metal enferrujado, mas estavam ali… Dois trajes de combate de Limitador… Pendurados em algo perto do canto traseiro da cabana.
Os casacos das gêmeas Rebecca.
Will nem acreditava nisso.
Seus olhos encontraram os de Elliott. Ele sabia que ela pensava a mesma coisa – podia apostar que se as gêmeas estavam dando um mergulho no lago ou coisa assim, teriam deixado os frascos em um lugar seguro. E que lugar melhor do que seus casacos? Ele se conteve… Talvez elas tivessem deixado com o Limitador. Mas onde está o Limitador?, perguntou-se novamente.
Elliott deu o sinal para se retirarem e Will ficou tremendamente grato por não ter de continuar tão perto das gêmeas Styx ou do Limitador até então desaparecido. Ao recuar, sentiu como se tivesse acabado de colocar a cabeça na boca de um leão faminto e rabugento, e se safado dessa.
Depois que ele e Elliott estavam de volta à curva na passagem e longe o bastante da caverna, ela rapidamente tirou a Bergen e começou a remexer nela. Pegou dois explosivos grandes com temporizadores – eram do lote que Drake tinha pedido a Will para entregar a ela.
Ela se aproximou de Will e cochichou em seu ouvido.
– Vou armar estes por aqui. Volte para o início da passagem e fique atento. Se uma dessas cargas for detonada, ou se ouvir tiros, dê o fora… E rápido. Bartleby sabe o caminho para casa.
Will assentiu, depois engatinhou para fora da passagem. Ao voltar à escarpa, ele encontrou um local protegido atrás de uma árvore e vigiou a passagem, esperando por Elliott.
Enquanto esperava, ele ficava cada vez mais inquieto. As palavras de Elliott ressoavam em sua cabeça. Era evidente que ela estava tomando toda a responsabilidade nos ombros para Will não ter de se meter em nenhum perigo. Na realidade, parecia que ela estava disposta a se sacrificar para lidar com os Styx. Will remoía isso e não ia deixar que ela agisse assim. Era sua batalha também e era direito dele fazer parte dela.
Ficou incrivelmente aliviado quando ela reapareceu na boca da passagem. Tinha começado a se perguntar se um dia a veria viva de novo.
Ela falou em seu ouvido.
– Duas cargas armadas com estopins de vinte minutos, no alto, para que eu possa atirar nelas, se precisar. Vou ver se consigo subir no penhasco e ter uma visão apropriada do que está havendo.
– Por que eu não… – ele começou a perguntar.
– Não, é melhor eu tentar. Sei usar isso aqui – ela o interrompeu, dando um tapinha no rifle de Limitador com a mira telescópica. – Só preciso que você dê cobertura nesta área.
– E se elas saírem? – perguntou ele rapidamente.
– Abra fogo com a Sten. Ou faça o que quiser, mas mantenha os três presos no interior da passagem. Retenha os três ali – disse ela, olhando a abertura da escarpa. – Vou ver se consigo pegá-los, começando pelo Limitador. Depois que ele for derrubado, deve ser mais fácil lidar com as gêmeas.
Will assentiu seriamente e Elliott de imediato avançou para a escarpa, procurando onde subir.
Encontrando um ponto de observação melhor atrás do tronco de uma acácia, Will se deitou. As palmas das mãos deixavam manchas de suor no aço azulado de sua Sten enquanto ele ajeitava a pegada na arma. “Retenha os três dentro da passagem”, ele repetia, olhando tão atentamente a abertura que ela parecia se tornar algo surreal, como uma ilustração.
Ele tentou ficar menos tenso rotacionando os ombros, mas não deu certo. Não conseguia parar de se sobressaltar com o menor movimento, ao ponto de quase atirar numa folha que caiu de um galho. Sentia o sol aquecendo sua camisa nas costas. De repente percebeu que este era um daqueles momentos decisivos de sua vida, um daqueles momentos em que ele podia assumir sua responsabilidade e se provar. Se não agisse e tudo saísse terrivelmente mal, ele teria de conviver com isso. E ele sentia que já trazia remorsos demais em sua curta vida. Não ia ficar sentado ali, deixando que tudo acontecesse em volta dele, como um passageiro num carro. Precisava fazer alguma coisa. Ele ia fazer alguma coisa.
– Vamos lá – disse Will a si mesmo. Não sabia exatamente o que faria, mas começou a formular um plano rudimentar enquanto deixava sua posição e entrava na passagem. Vinte minutos, ele se lembrou ao ver os explosivos que Elliott fixara nos galhos mais altos das árvores dos dois lados da passagem. Foi inteligente – quando os dois explodissem, a passagem seria fechada e as Styx ficariam presas em sua caverna circular – isto é, a não ser que de algum modo conseguissem escalar as paredes escarpadas.
Esgueirando-se lentamente, ele chegou ao ponto onde esteve com Elliott. Via as gêmeas agora sentadas lado a lado. Ele se sentiu incrivelmente exposto e teve uma náusea porque sabia que não podia parar ali.
Exatamente o que vou fazer agora?, perguntou-se Will. Ele supôs que Elliott ainda não tinha chegado ao topo da escarpa e os explosivos tinham uns bons quinze minutos pela frente antes de serem detonados.
Então ele decidiu o que fazer.
Engolindo em seco, esgueirou-se para a direita. Pouco a pouco, avançava para uma rota que o levaria para a parte de trás da cabana. Imaginou que podia chegar lá sem que as gêmeas Rebecca o vissem, porque elas estavam do outro lado da cabana, e também o ajudava que elas estivessem distraídas, conversando.
Tirando do caminho qualquer folha ou graveto, continuou a engatinhar, parando de dois em dois metros para avaliar o que havia à frente. Não tirava os olhos dos dois casacos. Fixou em sua mente a imagem dele mesmo alcançando-os – era seu objetivo, sua recompensa.
Mas onde está o Limitador?, pensou mais uma vez.
O suor escorria para dentro de seus olhos mas ele não os enxugou, tentando afastá-los às piscadelas, porque cada movimento que fazia era crucial. E cada segundo podia significar a diferença entre o sucesso e o fracasso. Mantinha todo o corpo baixo no chão, o tempo todo verificando se tomava a melhor rota entre os arbustos, uma rota que lhe desse cobertura, caso uma das gêmeas Rebecca decidisse dar uma volta até o fundo da cabana. Ou caso o Limitador fizesse isso.
Ele se arrastava, aproximando-se da cabana corrugada. Não faltava muito, mas a vegetação era particularmente seca ali, as paredes de pedra branca concentravam toda a força do sol no lugar. Ele teve um cuidado ainda maior em verificar os gravetos – se fizesse um ruído, o jogo estava encerrado.
E então os casacos estavam a metros de distância dele.
Ele conseguira chegar ali!
Deu uma olhada rápida e a barra parecia limpa. As gêmeas ainda estavam do outro lado da cabana e não havia sinal nenhum do Limitador.
Will se levantou um pouco, mas continuou meio agachado enquanto avançava lentamente para os casacos e erguia um deles de um prego enferrujado, onde estavam pendurados.
Ele se perguntou se Elliott tinha conseguido chegar ao alto da escarpa e o observava pela mira telescópica. Se fosse assim, o que ela estaria pensando? Provavelmente xingando loucamente.
Ele baixou os casacos na relva seca e, ajoelhando-se ao lado deles, rapidamente vasculhou os bolsos, tirando todo seu conteúdo. Pedaços de papel, globos luminosos, alguns objetos em caixinhas de couro que ele decidiu levar, porque podiam conter os frascos. Não tinha tempo para abri-las, não naquele momento.
Em seguida, em um bolso interno, achou o que procurava. O bolso tinha uma aba com um fecho de pressão. Soltou um estalo mínimo quando ele o abriu. Will prendeu a respiração, esperando e tentando ouvir alguma coisa, mas só o que escutou foi o murmúrio de conversa ocasional entre as gêmeas Rebecca chegando até ele. Tateou o interior do bolso e seus dedos deram com dois objetos pequenos. Ele os pegou. Embrulhados em um quadrado de tecido camuflado, lá estavam os frascos, os dois. Nem acreditou. Ouviu o riso das Rebeccas. Não ririam mais quando descobrissem o que ele fizera. Colocou os frascos com cuidado no bolso e vasculhou o que faltava dos casacos para o caso de haver mais algum frasco. Não queria passar por tudo isso para no fim terminar com mais frascos falsos, sem os espécimes do Ultramicróbio.
Ele tinha terminado. Sentia-se zonzo e em seu rosto escorria suor quando ele começou a rastejar de volta.
Tinha percorrido uns vinte metros, com o cuidado de pegar a rota original pelos arbustos quando ouviu o grito de uma das gêmeas. Ele girou a cabeça.
O medo explodiu em sua mente.
A gêmea Rebecca estava de pé onde ele deixara os casacos no chão. Pingando água, seu rosto estava repuxado numa máscara perversa e furiosa, e ela olhava diretamente para Will.
– Seu nojentinho! – gritou ela, erguendo a foice no ar como se fosse atirá-la. – Acabou para você!
Will girou de costas, pegando a Sten. Seu dedo estava no gatilho. Ele não hesitou. Era como se visse tudo em monocromo. Precisava fazer isso. Não tinha certeza se pegara os frascos de Dominion genuínos, então nenhuma das Styx podia escapar. Se uma só delas fugisse, seu trabalho não estaria terminado.
Em pânico, Will começou a disparar a Sten antes de ter o alvo na mira. Os disparos se espalhavam loucamente, batendo no metal corrugado da cabana, abrindo buracos ali. Enquanto ele girava, a gêmea pareceu se abaixar.
Já bastava para Will.
Ele se colocou de pé e correu para a passagem.
Tinha ouvido outro grito.
Dessa vez era um homem.
Will virou a cabeça.
Com a lança posicionada no alto, o Limitador corria como uma espécie de máquina, avançando para ele em passadas pesadas e imensas. O soldado gritou de novo, suas palavras como o chamado de uma ave de rapina, tão ásperas que era como se cortassem o ar quente em volta do Limitador, deixando suas marcas.
Will não sabia o quanto da passagem tinha percorrido, mas não conseguia mais ver a boca. E ainda não tinha terminado seu trabalho.
Ele parou, virando-se para mirar o Limitador.
Tudo acontecia rápido como um borrão.
E então vieram dois sons que Will não entendeu. Ouviu um estalo agudo e, ao mesmo tempo, um silvo. No alto da cabeça, o cabelo preto do Limitador pareceu virar para cima. Ele foi lançado de cara para o chão, com as pernas ainda correndo, como se a máquina não pudesse parar.
E quanto ao silvo… Will sentiu uma dor repentina no braço. Sua mão se contorceu e ele largou a Sten.
Então houve uma clarão, seguido rapidamente por outro, e Will foi erguido do chão. Talvez fosse a baixa gravidade, mas ele parecia ter sido arremessado a uma distância incrível pelo ar, esbarrando nuns arbustos grossos e rolando várias vezes antes de finalmente parar.
Ele tentou se levantar, mas o braço doía demais. Olhou o braço e viu que estava coberto de sangue. De repente, sentiu muito frio – não compreendia por que, pois o sol ainda brilhava. O sol sempre brilha aqui, lembrou a si mesmo rapidamente.
Depois tentou se levantar de novo e desta vez conseguiu se impelir com o braço são. Olhou onde achava que estava a passagem.
A vinte metros dali, só o que podia ver eram mantos imensos e espiralados de fogo e uma grossa fumaça preta, de cores nítidas demais contra as pedras brancas da escarpa.
– Legal – disse ele antes de perder a consciência.
Voltou a si pouco tempo depois. Levantou a cabeça, percebendo que havia uma atadura em seu braço.
– Seu idiota. Só um amador teria tentado isso e se safado – disse Elliott, movendo-se para seu campo de visão. – Da próxima vez, será que podemos nos ater ao plano?
Will a olhou com a visão baça.
– Ah, meu Deus, eu não aborreci você de novo, foi? Parece que eu sempre faço isso com as meninas, sempre digo ou faço alguma co…
– Cale a boca – disse Elliott.
Ele tentou mexer o braço de novo, mas era doloroso demais.
– O que houve? – perguntou ele.
– O Limitador cortou você com a lança antes de eu dar conta dele. Desculpe, não consegui pegá-lo em minha mira rápido o bastante – ela respondeu, ajoelhando-se ao lado de Will e ajeitando a atadura em seu braço.
– As gêmeas Rebeccas?
– Acho que você cuidou de uma delas e a outra não teve a menor chance. Veja você mesmo.
Elliott o ajudou a se sentar. Ele se lembrava de ver fumaça e fogo antes de desmaiar, mas perto da escarpa grassava um incêndio descomunal. Havia uma nuvem de fumaça acima dele, como aquela que ele e o dr. Burrows viam pelo binóculo de tempos em tempos nas outras partes da selva.
– Depois que detonei as cargas com um tiro, a passagem desabou sobre si mesma e a gêmea que faltava ficou presa lá dentro. Com toda aquela coisa seca em volta, o lugar todo pegou fogo como um isqueiro. E mesmo que você só tenha atingido de raspão a outra gêmea, ela também estava lá dentro – disse Elliott. – De jeito nenhum elas podiam sair.
– Então nós conseguimos?
Elliott assentiu.
– E você não está com raiva de mim? – perguntou Will, piscando para ela.
Elliott ergueu os dois frascos.
– Como eu poderia estar? – respondeu ela, com um largo sorriso. Curvando-se, ela lhe deu um beijo no rosto.
Will sorriu, esquecendo-se por ora da dor no braço.
Capítulo Trinta e Nove
Em uma pequena casa avarandada na Colônia, sra. Burrows estava recostada numa cadeira, com as pernas cobertas por uma grossa manta cinza. Seus olhos estavam fechados e almofadas haviam sido colocadas de cada lado de sua cabeça porque ela era incapaz de se escorar. Na realidade, não tinha controle sobre nenhuma parte do corpo.
Em uma cadeira mais perto da lareira onde ardia um fogo, uma idosa cerzia uma meia e falava baixinho consigo mesma.
– É um crime o que pagam a um policial hoje em dia, principalmente quando ele tem uma mãe velha, a irmã e agora… Agora ele tem uma inválida nas costas também. – A idosa parou de trabalhar com a agulha e olhou sra. Burrows. Não era um olhar hostil, mas a velha apertou os lábios pálidos com preocupação. – Eu falei pra ele, eu falei, tá tudo muito bem em bancar o bom samaritano, mas é como ter um bebezinho pra cuidar, um bebê grande que não cresce nunca. Mas ele não me ouve… Acho que ficou mole com a idade. – A idosa voltou a seu trabalho. – Não sei onde isso tudo vai dar. Não sei como a gente vai pagar as contas, não sei, não com o salário dele.
Devido ao crepitar do fogo na sala e ao fato de que ela ainda resmungava sozinha, a idosa não ouviu que a respiração da sra. Burrows tinha se alterado. Tornou-se profunda e forçada, como se ela estivesse prestes a tentar alguma coisa que, em seu estado, seria uma proeza hercúlea e quase impossível. Ela manteve a respiração por vários minutos, preparando-se para a tarefa. Depois parou inteiramente, prendendo a respiração enquanto se retesava.
Como um animal selvagem numa caverna escura de inverno, ela estava isolada do mundo. Ali a escuridão só era rompida por uma ou outra faísca enquanto um pensamento, desejo ou uma lembrança se amalgamava pelo mais fugaz dos momentos, desaparecendo quase no instante em que surgia.
Mas agora tinha algo que estava decidida a fazer. De algum lugar surgira a vontade de vencer, de sobreviver.
Ela fez o maior esforço possível.
Retesou-se ainda mais, ainda prendendo a respiração. Conseguiu erguer a pálpebra direita num grau mínimo e mantê-la erguida. A fresta de seu olho exposto cintilou e a luz do fogo foi registrada por sua retina, ativando as células dali. Estas geraram impulsos elétricos mínimos que foram transportados por seu nervo ótico ao cérebro, que se esforçou para processá-los. Parte dos sinais chegou ao córtex e ela sentiu vagamente o brilho rosado da sala, mas não o viu.
Mas para ela era tudo, era algo de fora de sua caverna. Ela se prendeu à sensação com um instinto animal e isso lhe deu esperanças.
Em seguida, porque o esforço lhe foi demasiado e esgotou o último grama de energia de seu corpo, a pálpebra se fechou novamente. Soltando o ar, voltou a afundar num sono profundo enquanto a idosa, sem ter a menor noção do milagre que tinha acabado de acontecer, ainda falava sozinha.
Will e Elliott conversaram bastante sobre o que deviam fazer com os frascos. Até chegaram ao ponto de considerar que deviam tentar a jornada de volta ao cinturão de cristais, para chegar à Crosta e entregar os frascos a Drake. Mas nenhum dos dois levou essa sugestão a sério, já que acreditavam que as chances de conseguir voltar eram muito pequenas. E o pior que poderia acontecer seria acabarem, por algum infortúnio no meio do caminho, com os frascos danificados e o vírus liberado. Dr. Burrows os avisou sobre o sistema global de correntes de ar, dizendo que a probabilidade podia ser de uma em um milhão, embora existisse, e que o vírus poderia ser carregado para o mundo exterior.
Eles não podiam correr esse risco, então Will tomou para si a tarefa de procurar um lugar onde enterrá-los, onde ele pensasse que ficariam seguros. Seu braço ainda estava numa tipoia, mas se curava bem. Ele deixou o acampamento sozinho e estava explorando um trecho próximo de selva quando, pelo canto do olho, pensou ter visto alguém nas sombras lançadas por um grupo de árvores. Os pelos de sua nuca se eriçaram, não só porque ele sabia que não podia ser seu o pai ou Elliott, mas também porque a figura era muito parecida com o tio Tam.
Ao se esgueirar para as árvores, ele percebeu que o que vira devia ser um nó de trepadeiras penduradas de um galho baixo e que não havia ninguém ali. Dizendo a si mesmo que deve ter sido porque Tam recentemente esteve muito em seus pensamentos, ele investigou o que havia por trás das árvores e encontrou uma pequena fonte borbulhando em meio a algumas pedras cinzentas.
Havia um anel de relva curta que cercava completamente a fonte. Era um local tão tranquilo e retirado que foi ali que ele decidiu enterrar os frascos. Ele colocou um pouco de relva dentro de um dos vidros de remédio que tinha tirado da enfermaria do submarino e baixou com cuidado os frascos dentro dele, colocando mais relva por cima. Depois de cavar um buraco na terra fértil, Will se certificou de que a tampa do vidro estivesse bem fechada antes de enterrá-lo. Em seguida colocou algumas pedras redondas por cima para marcar o local e proteger os frascos de animais curiosos.
Com a descoberta da fonte, ele se sentiu atraído a voltar lá. Mal se passava um dia sem que não fosse visitá-la. A água fresca parecia atrair as borboletas e libélulas mais extraordinárias, que pousavam nas pedras pontilhadas de líquen para se refrescar e beber. Era um paradoxo, porque ele sabia que o vírus Dominion, uma arma biológica letal, estava enterrado ali, o que devia fazer do lugar um terreno de morte e destruição, mas ele achava que a fonte o enchia de tranquilidade – era um lugar onde podia baixar as defesas e se permitir se lembrar dos terríveis acontecimentos do passado. E começar a se curar.
Do outro lado da fonte do vírus Dominion e seus pequenos marcos de pedras, ele formou três pilhas maiores de rochas. Em cada uma delas, ergueu uma cruz. Embora seus corpos não estivessem ali, ele entalhou nas cruzes os nomes de tio Tam, Sarah Jerome e Cal. Encontrou um grande conforto em se sentar na relva perto delas, com a exibição gloriosa de cores das borboletas adejando em volta dele. As gêmeas Rebecca finalmente foram obrigadas a pagar e este parecia o final de um capítulo para Will, uma solução. Ele não viveria mais sob a sombra das duas e não seria mais impelido pela necessidade de vingança. Sentia-se libertado. Tinha feito as pazes com o passado e se deixou recordar dos familiares que perdera nas mãos dos Styx.
Um dia, quando estava ali, imerso em pensamentos, alguém soltou um pigarro atrás dele e o fez pular.
– Espero que não se importe de eu estar aqui – disse Elliott. – Queria ver onde você tinha colocado os frascos.
Will mostrou, mas ela ficou mais interessada nos três memoriais que ele ergueu para sua família.
– Não sabia que tinha feito tudo isso – disse ela em voz baixa. – Eu… Hum… É uma… ótima ideia.
Will assentiu e eles nada disseram por vários segundos enquanto, juntos, olhavam as cruzes. Pela primeira vez, Elliott parecia incrivelmente insegura. Em um gesto nervoso, tirou o cabelo da cara – desde que tinha deixado as Profundezas, os piolhos não eram mais um problema e ela parara de cortar o cabelo. Agora estava quase na altura do ombro e Will mal conseguia se lembrar de como Elliott era com o cabelo curto.
– Eu não sei se ela está morta ou viva, mas será que posso construir uma dessas para minha mãe? – perguntou Elliott.
– Mas é claro – disse Will, genuinamente encantado. De repente ele pensou em sua própria mãe, a mãe adotiva, sra. Burrows, e torceu para que ela não tivesse sofrido nada. Mas lembrou a si mesmo que pelo menos Drake estava lá para cuidar dela.
No dia seguinte, quando ele chegou na fonte, descobriu que Elliott já havia erigido uma cruz a pouca distância das dele. A menina veio se sentar ao lado de Will. Enquanto Bartleby tomava banho de sol num trecho em que a luz se infiltrava das árvores e pegava um punhado de relva, Elliott começou a se abrir para o garoto. Havia uma sensação de camaradagem entre os dois depois do incidente com os Styx, mas isto era diferente. Ela falou da infância na Colônia e de como fora obrigada a partir quando a mãe fora chantageada. E depois mencionou o pai – o Limitador –, dizendo que sabia muito pouco sobre ele.
De repente, Elliott se virou para Will.
– Você se sente culpado pelo que fizemos com as gêmeas Rebecca? Não fica perturbado quando pensa nisso?
A pergunta era inteiramente inesperada e Will a olhou, confuso.
– Sim, fico. Sei que o que fizemos foi o certo, mas não é algo que se consiga tirar da cabeça, é?
– Não – respondeu ela. – Nunca deixa você.
Elliott escolheu duas pedras achatadas ao lado da fonte, que tinham sido alisadas pela água. Pegando uma em cada mão, ela as pesou como se tentasse deduzir qual das duas era a mais pesada.
– Posso te fazer uma pergunta? – Will se arriscou.
– Claro – Elliott deu de ombros.
– Foi num Limitador que você atirou, como seu pai – disse Will.
Ele olhou Elliott puxar uma terceira pedra polida da terra. Como as suas mãos já estavam cheias das outras pedras, ela por fim atirou-a no poço da fonte. O respingo fez Bartleby rolar e se sentar, como se tivesse deixado escapar um peixe que saltou da água, ou outro anfíbio infeliz para mastigar.
– E se fosse seu pai? Você teria sido capaz de atirar nele? – perguntou Will.
– Nunca pensei nisso – respondeu Elliott rapidamente. – Meu pai está morto mesmo, então nunca vai acontecer.
Num pub apinhado no centro do Soho, um homem de sobretudo pesado estava recurvado e sozinho numa mesa de canto. Seu cabelo era despenteado e a cara, vermelha. Obviamente mau bebedor, ele examinou desajeitado o copo, descobrindo que estava vazio. Murmurou alguma coisa e bateu o punho na mesa, o que fez o copo rodar e cair no chão, onde se espatifou. Depois ergueu a cabeça.
– Os Styx! – ele cuspiu e começou a gritar, em palavras arrastadas e pouco inteligíveis. – Ao inferno com eles!
O zumbido baixo das conversas no pub continuava inabalável – ninguém pareceu dar a mais leve atenção a ele. O homem fitou com os olhos turvos a multidão que o cercava, gente que tomava um drinque rápido depois do trabalho, antes de ir para casa.
Alterado, ele os desprezou.
– E ao inferno com todos vocês! Todos são cegos para o que está havendo!
Novamente ninguém pareceu dar nenhuma atenção a ele, ninguém, a não ser um homem magro, de rosto encovado e seco, que de repente estava em sua mesa.
– Controle-se, Drake. Se continuar assim, vai acabar preso. E você sabe o que significa uma noite na cadeia – o homem alto avisou num grunhido baixo. Ele se curvou para mais perto de Drake para não ser ouvido por quem estivesse por perto. – Eu o ajudei porque tinha uma dívida de honra por você ter salvado minha filha, mas não sou sua fada-madrinha. Talvez não possa fazer nada numa segunda vez.
Drake limpou a saliva dos lábios com a mão.
– Às vezes eu acho que Elliott me salvou – falou ele lentamente, os olhos de pálpebras pesadas ao espiar o ex-Limitador, que o havia retirado do furgão naquele dia no Highfield Common.
De uma hora para outra a beligerância de Drake se transformou em desalento e sua cabeça arriou nos ombros.
– Os Pescoços Brancos sempre me derrotam. Eu decepcionei Celia. Decepcionei o Homem de Couro. Eu decepcionei todos eles. E, pelo que sei, os Styx ainda têm o vírus. Eu podia muito bem jogar a toalha. Estou acabado… Estamos todos acabados. – Ele olhou com desespero para o homem magro. – O que me resta? O que posso fazer agora?
– Ah, vamos pensar em alguma coisa – disse o homem magro com confiança, ajudando Drake a se levantar. – Agora, vou levar você para casa.
Capítulo Quarenta
– Já chega por hoje – decidiu Will.
– É mesmo? Tão cedo assim? – murmurou dr. Burrows, enquanto continuava a trabalhar em um esboço.
– Meu braço está me incomodando um pouco – acrescentou Will, embora a lesão da lança do Limitador há muito tivesse se curado.
– Vai voltar para ver a Elliott? – perguntou dr. Burrows num tom malicioso.
Will o ignorou, erguendo os olhos para o sol que sempre ardia.
– Só não quero exagerar de novo – disse ele, ajeitando o chapéu de aba larga que Elliott lhe fez com uma pele animal.
Ele e o pai estavam na lateral da pirâmide, e embora o chapéu garantisse a seu rosto alguma proteção contra o sol, ele ainda precisava ter cuidado com os raios refletidos no local exposto em que estavam.
– Não, está certo – respondeu finalmente dr. Burrows, levantando a cabeça de seu trabalho.
Will esfregou os olhos e piscou várias vezes.
– De todos os lugares em que poderíamos terminar, este é o pior pesadelo de um albino. Pai, acha que da próxima vez pode encontrar um mundo com mais nuvens? – perguntou ele com um sorriso.
– Verei o que posso fazer. Pode ir, se quiser – respondeu o dr. Burrows, rabugento. Ele dependia do apoio do filho para a tarefa imensa de registrar as inscrições e as cenas retratadas em cada uma das camadas da pirâmide. Tudo estava escrito numa das línguas da Pedra de Burrows e pouco a pouco ele decifrava. Ele e Will começaram na base da pirâmide e metodicamente trabalhavam para o topo, sabendo que tinham mais duas pirâmides para atacar, que ainda nem tinham visitado.
– Vejo você no acampamento, pai – disse Will.
– Sim… – murmurou dr. Burrows. Ele viu o filho descer os sucessivos andares até o chão, saltando distâncias que seriam impensáveis no mundo da Crosta. Depois dr. Burrows voltou a seu trabalho numa sequência numérica que não fazia sentido nenhum para ele.
Depois de um tempo, sua concentração foi interrompida por um zumbido distante. Logo ele achou que era o vento, dizendo a si mesmo que era outra das tempestades violentas, das quais havia muitas. Parecia distante demais para ser motivo de preocupação, então não havia necessidade de procurar um abrigo. Mas então ele ouviu o barulho de novo, desta vez mais alto, e não era nada parecido com o vento. Ele enxugou a testa e se levantou para examinar o céu.
Não via nada fora do comum, mas percebeu que não estava na melhor posição, então subiu as camadas até chegar ao topo da pirâmide. Ali ele andou pelo platô de pedra, passando pelo radiofarol que Will tinha deixado na primeira vez em que subiram.
– Mas que vista – dr. Burrows suspirou, sem jamais deixar de se impressionar, por mais que a contemplasse. Desta posição elevada, ele tinha uma visão considerável do dossel da floresta tropical, que se estendia diante dele como um mar verde e ondulante, interrompido apenas pelo cume das outras pirâmides.
– Onde está a tempestade? – disse ele, sem ver nenhuma nuvem ao varrer com os olhos cada lado do horizonte.
Em vez disso, localizou algo ao longe.
Andando devagar para o outro lado da pirâmide, ele protegeu os olhos com a mão e tentou distinguir o que era.
– Mas o que diabos é isso?
Algo se movia pelo céu claro e branco.
Algo que quanto mais ele olhava, mas lhe parecia familiar.
Ele cambaleou, quase escorregando na beira da pirâmide.
E enquanto a coisa mudava de direção e começava a vir para a pirâmide, dr. Burrows pôde claramente ouvir o gemido de seu único motor de propulsão.
– Um aeroplano? Aqui? – disse ele, sem som.
Tentando enxergar melhor, ele desejou ter seu binóculo por perto.
Mas não havia dúvida nenhuma.
Era um aeroplano.
E sim, era estranhamente familiar.
Ele reconheceu a forma em W das asas. Ainda estava a certa distância, mas enquanto tombava em um mergulho, ouvia o uivo da sirene no avião, emitindo um dos sons mais característicos e mais temidos da Segunda Guerra Mundial.
– Um bombardeiro alemão – dr. Burrows disse, ofegante, quase se desequilibrando de novo. – Um Stuka!
Roderick Gordon & Brian Williams
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