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VIAGEM A INDIA / Magalhães & Alçada
VIAGEM A INDIA / Magalhães & Alçada

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblio VT

 

 

 

 

Orlando é um cientista que tem uma máquina especial para viajar no tempo. Quando parte para outras épocas, leva consigo os amigos Ana e João, de quem gosta como se fossem seus netos. A Ana é uma rapariga simpática e sensata.

O João, alegre e impulsivo, envolve-se nas maiores trapalhadas e por vezes arrasta os outros para situações difíceis. No entanto, como é um rapaz criativo, inventa mil estratagemas e ajuda a resolver tudo da melhor maneira.

Nesta viagem à índia os três enfrentaram tempestades, incêndios, conflitos, traições, perigos de toda a ordem ao lado dos marinheiros ousados que acompanharam Vasco da Gama. E com eles saborearam também o prazer das grandes descobertas.

 

 

 

 

- Despacha-te, Ana! O Orlando está à nossa espera! João saltitava ora num pé, ora no outro, impaciente

porque a irmã ainda não estava pronta e ele queria ir o mais depressa possível para o novo laboratório de Orlando. O velho cientista tinha mudado há pouco e telefonara na véspera a convidá-los para experimentarem o último modelo da máquina de viajar no tempo. Ambos tinham aceitado o convite com entusiasmo mas agora a Ana nunca mais acabava de secar o cabelo! Diante do espelho e de escova em punho, repuxava madeixas húmidas fazendo-as atravessar pelo sopro de ar quente emitido pelo secador. Depois ia-as deixando cair sobre os ombros já fofas e brilhantes com visível agrado. Após uma secadela final abanou a cabeça como um cavalo a espanejar a crina.

- Pronto. Vamos, antes que o Orlando mude de ideias!

Radiantes, saíram porta fora direitos ao laboratório secreto mais bem equipado do país.

Orlando recebeu-os de braços abertos. Nos seus olhos azuis dançava um brilho especialíssimo de alegria e de expectativa.

- Sabem qual é o meu plano?

- Não. Ainda não nos disse.

- Pois bem - declarou o velho cientista com uma das suas inconfundíveis gargalhadas roucas. - Depois de muito pensar, resolvi experimentar a máquina com um mergulho radical. Vamos atravessar cinco séculos, quinhentos anos, estão a ver? Tenciono aterrar no palácio real a tempo de ouvir o rei D. Manuel a dar ordem de partida aos navios que fizeram a viagem mais fantástica, mais importante e mais decisiva da nossa História.

- Qual foi? - perguntou o João meio baralhado.

- Foi a viagem com que muitos reis e muitos navegadores sonharam. Chegou-se a pensar que era uma missão impossível. Mas quando Vasco da Gama conseguiu chegar à índia por mar, o mundo deu uma cambalhota.

- Uma cambalhota?

- Estou a falar em sentido figurado. O mundo entrou numa nova etapa. E Portugal tornou-se um dos países mais ricos e mais importantes daquele tempo. Fantástico, não acham?

- Claro! Mas por que é que só podemos assistir à partida? Não podemos ir nos barcos?

- Podemos, claro. Mas começamos por ver o palácio, o rei, os preparativos, a cidade, tudo o que houver para ver em terra. E depois tenciono embarcar com vocês dois. Vamos na nau que se chama São Gabriel porque é onde viaja o capitão Vasco da Gama.

Orlando fez deslizar uma parede que dava acesso ao laboratório. Bem ao centro encontrava-se uma máquina de viajar no tempo que se abriu para os receber. Ana e João não precisaram que ele os mandasse entrar para se enfiarem lá dentro e se instalarem nos assentos de plástico azul que tinham cinto de segurança. Apertaram as fivelas e olharam para o Orlando como quem diz: «estamos prontos, vamos a isso». O cientista aproximou-se de um painel de comandos cheio de luzinhas e botões. De expressão muito concentrada e atenta foi carregando no teclado. Ao mesmo tempo ia informando os dois irmãos sobre o que estava a fazer:

- Vou escolher a data certa. Hum... Dia, 15. Mês, Junho. Ano, 1497.

Passou a mão pela testa a fim de enxugar umas gotículas de suor e continuou:

- Agora o local. Quero ir para o palácio real que existia no castelo de São Jorge. Preparem-se, que só falta eu dar a última instrução - preveniu o Orlando.

A luz do ecrã piscou durante um segundo, a seguir surgiram duas letras garrafais a verde: O.K. Logo a seguir sentiram uma pressão nos ouvidos e uma espécie de vento frio a girar a grande velocidade mas que não lhes levantava nem um cabelo. Poucos minutos depois pestanejaram espantados porque através das paredes da máquina viam perfeitamente o exterior. Tinham aterrado numa sala pouco iluminada com tapetes grossos no chão e um reposteiro de veludo com enfeites dourados. Orlando sorria-lhes já vestido à moda da corte do rei D. Manuel.

- Que tal? Fizeram boa viagem?

João ergueu-se para admirar a sua indumentária, pois também ele mudara de roupa sem dar por isso.

Tinha meias azuis de seda até ao joelho, um calção tufado às riscas e casaco de veludo com enfeites nos ombros.

- Estás um príncipe perfeito - disse-lhe a irmã, essa encantada com o seu vestido de seda amarela até aos pés e com a touca de fitas e pérolas a apanhar-lhe o cabelo.

- Agora o que é que fazemos? - perguntou o João. - Os guardas não nos conhecem, podem implicar connosco, não?

- Não - disse o Orlando. - Para não haver problemas à porta é que eu disparei directamente para o interior do palácio. Deixamos a máquina invisível neste canto e seguimos pelos corredores com o ar mais natural deste mundo. Com estas roupas riquíssimas toda a gente vai pensar que pertencemos à corte ou que somos parentes de algum desses nobres que andam sempre atrás do rei.

- Nesse caso, se nos cruzarmos com alguém podemos falar e dizer umas tretas, não é?

Os olhos do João mostravam bem que estava pronto para inventar uma data de fantasias.

- Calma. Enquanto não estivermos ambientados, o melhor é falar pouco. Se virem pessoas, façam uma vénia e continuem em frente. Finjam que estão cheios de pressa.

- E depois?

- Depois, logo se vê. Só lhes peço que não se afastem de mim. Como de costume eu sou o avô, vocês os meus netos. Entendido? Nada de precipitações.

- Fique descansado, não vai haver deslizes. Preparavam-se para levantar o reposteiro de veludo e

avançar à descoberta do palácio, quando ouviram vozes no aposento contíguo.

- Está ali alguém.

- Pschiu! Caluda!

Orlando afastara o reposteiro com a ponta do dedo para poderem espreitar sem serem vistos.

A sala do lado tinha uns janelões enormes com vidros aos losangos. O chão era de pedra, móveis quase que não havia. Só uma mesa rectangular coberta por um tapete de lã muito colorido e duas banquetas às tiras de madeira.

Um dos homens que tinha acabado de entrar, sentara-se. Era alto, magro e bonito. Usava cabelos compridos e os seus olhos esverdeados podiam classificar-se de risonhos.

- É o rei - sussurrou o Orlando.

- Como é que sabe?

- Conheço a figura.

- Mas ele não tem coroa... Orlando abanou a cabeça divertido:

- Os reis só usam a coroa em ocasiões especiais, não andam a passear uma coroa de ouro pesadíssima dentro de casa.

- Que pena - comentou a Ana. - Assim não parece rei.

- E o outro, quem é? - perguntou o João.

- Não sei. Calem-se e ouçam. Pela conversa talvez seja possível descobrir.

Muito quietos, de olhos arregalados e no mais completo silêncio procuraram captar as palavras que o rei trocava com o visitante em voz baixa.

- Não me parece boa ideia, Vasco. Tenho medo que não resulte.

Dito isto, o rei olhou para a janela e ficou um instante a meditar. O outro não o interrompeu. Manteve-se em pé numa atitude de respeito.

- O rei chamou-lhe Vasco - ciciou Orlando entre-dentes. - Talvez seja o próprio Vasco da Gama. Prestem atenção, que a gente já descobre se é ou não é.

Os dois irmãos pregaram os olhos na figura robusta e morena que envergava um traje quase tão rico como o do rei. Não era preciso ser um génio para perceber que se tratava de um homem cheio de personalidade. A cara, o queixo, a barba, a expressão do olhar, a posição do corpo, tudo indicava claramente que sabia o que queria, que era um lutador. Acabava de pedir qualquer coisa, que pelos vistos não agradara muito ao rei. Mas com certeza ia tentar convencê-lo. Aguardaram a continuação da conversa mortos de curiosidade.

- O que é que achas que ele quer? - perguntou o João ao ouvido da irmã.

- Não faço ideia.

Nesse momento o rei inclinou-se sobre o tampo da mesa apoiado no braço esquerdo. Continuava com ar pensativo e coçou a cabeça com a mão direita. Finalmente explicou-se.

- Olha, Vasco, eu pensei muito antes de resolver. Tu és o homem indicado para esta missão. Conheço-te bem, sei que és capaz de levar os navios à índia.

- Espero que sim, Alteza - respondeu Vasco. - Mas na verdade nunca ninguém lá foi por mar.

- Vais tu. Serás o primeiro.

  1. Manuel ergueu-se com ar de felicidade estampado no rosto.

- O teu nome e o meu nunca mais se apagarão da História Universal. Tu, Vasco da Gama, o grande navegador que deste a conhecer ao mundo o caminho que todos queriam encontrar, já pensaste? O caminho marítimo para chegar a essa terra fabulosa cheia de riquezas. Ouro, especiarias, pérolas, pedras preciosas...

A perspectiva encantava-o de tal maneira que encheu o peito de ar e lambeu os lábios como se falasse de petiscos e se preparasse para os comer. Os olhos luziam-lhe de cobiça.

- Tu, tornas-te famoso como navegador. E eu, como o rei que te lá mandou. Vou ficar não só famoso mas também riquíssimo. E os outros reis a morrer de inveja. Ah, que alegria!

- Senhor - atalhou Vasco da Gama com medo de que tanta confiança atraísse azar -, eu ainda não fiz a viagem e há mil perigos à espreita. Inimigos, tempestades, incêndios a bordo, sei lá!

- Cala-te, homem. Não comeces a chamar desgraças. Vais conseguir, tenho a certeza.

Por detrás do reposteiro Ana, João e Orlando trocaram uma mirada rápida e contente. Agradava-lhes conhecer o futuro, saber que o rei tinha razão em tudo o que estava a dizer. Só uma coisa continuavam sem perceber. Qual seria o pedido de Vasco da Gama? Se o rei precisava tanto dele, por que não lhe fazia todas as vontades? Não tiveram que esperar muito para que o assunto se esclarecesse, pois Vasco da Gama voltou à carga. Primeiro tossiu, aclarou a voz, pediu desculpa por insistir e lá disse alto e bom som o que pretendia.

- Senhor, estou muito honrado por ter sido eu o escolhido para esta missão. Tudo farei para que corra bem. Mas gostava de levar comigo o meu irmão Paulo. Ele é a pessoa indicada para comandar a nau São Rafael.

Mais uma vez o rei torceu o nariz.

- Vasco, Vasco! Lembra-te que o teu irmão é mais velho do que tu, pode sentir-se humilhado por navegar debaixo das tuas ordens e surgirem conflitos.

- Nunca! - interrompeu Vasco da Gama corado de emoção. - Nós damo-nos muito bem. Mesmo quando éramos pequenos raramente brigávamos. Ele é mais velho, mas eu sempre fui mais alto e mais forte. O Paulo aceitou isso desde criança, como coisa natural. Somos muito unidos, compreende? Ele está ansioso por navegar ao serviço do rei. E para mim era um descanso. Se me acontecer alguma coisa pelo caminho, ele pode substituir-me e assim seria na mesma um Gama a abrir o caminho marítimo para a índia.

O rei encolheu os ombros.

- Bom, se pões as coisas nesses termos, seja.

- Então posso dizer ao Paulo que Vossa Alteza o escolheu para comandar a nau São Rafael?

Nessa altura o rei soltou uma gargalhada.

- Escolhi? Quem o escolheu foste tu, que és teimoso que nem uma mula. Mas está bem, diz-lhe que a decisão foi minha para ele partir descansado. Venham cá amanhã os dois, para conversarmos.

Levantou-se e dirigiu-se à porta anunciando.

- Vou dar uma volta a cavalo que o dia está lindo. Acompanhas-me? Ou preferes ir a casa dar a notícia?

Vasco da Gama acenou que sim, que preferia a segunda hipótese. Via-se que estava radiante. Mal saíram, Ana e João viraram-se para o Orlando. Curiosamente, acharam-no triste.

- Que é que tem, Orlando?

- Nada.

- Está triste?

- Não.

- Hum... não me diga que o rei muda de ideias e o Paulo da Gama afinal não vai. É isso?

O velho cientista abanou a cabeça numa negativa firme.

- Não me façam perguntas. A partir de agora não lhes digo mais nada sobre a viagem. Algumas coisas vocês já sabem...

- Eu não sei quase nada - confessou o João. Ana fez coro.

- Para falar com franqueza eu também só sei o essencial. Vasco da Gama partiu, navegou, conseguiu chegar à índia e voltou. A partir daí, stop!

- Melhor ainda. Assim, tudo será surpresa, experiências novas. E a primeira começa já, porque temos de atravessar o palácio e sair para a rua sem despertar suspeitas. Temos de atravessar os corredores como se vivêssemos aqui, combinado?

- Combinadíssimo.

- Então vá. Toca a andar.

Afastou o reposteiro de veludo e avançou a passos largos. Ana e João seguiram-no tentando aparentar a mesma calma.

 

No palácio não havia corredores, passava-se directamente de uns compartimentos para os outros através de porta ou de arco com reposteiro. Aqui e ali janelas em bico, ora com vidros, ora sem vidros, deixavam entrar a luz esplêndida do mês de Junho e uma aragem suave que refrescava o ambiente. A vista era deslumbrante. Ana e João não resistiram a debruçar-se por uns segundos sobre os telhados da cidade, que pareciam encaixados nas colinas e se estendiam até ao rio Tejo que naquele dia estava azul, azulíssimo com reflexos prateados. E sobre as águas, tantos navios! Uns ancorados no porto com as velas recolhidas e mastros de vários tamanhos lembrando dedos finos e longos a apontar para o céu. Outros deslizando com velas brancas desfraldadas, ligeiramente tufadas pelo vento, lindo, lindo! Também circulavam pequenos botes a remos entre os navios numa grande azáfama. O sentimento que tudo aquilo despertava era alegria, e vontade, muita vontade de navegar.

- Venham - chamou o Orlando, também ele encantado com a Lisboa antiga. - É melhor irmos andando.

O chão do palácio, que era feito de tábuas grossas, rangeu e logo ouviram passos. Viraram-se os três e deram de caras com uma rapariga baixa, gorducha, que vestia roupas grosseiras em tons de castanho e usava por cima um avental verde-seco que lhe cobria a saia até aos pés. Trazia na mão uma vassoura de palha, quase igual à vassoura das bruxas. Os seus olhinhos piscos sorriram quando os cumprimentou à maneira daquele tempo.

- Saúde, meus senhores. Que Deus vos dê saúde. Dobrando os joelhos numa vénia rápida, perguntou amavelmente:

- Estão à procura da saída?

Como não perceberam por que fazia aquela pergunta, não responderam logo. Mas não houve problema porque a rapariga era comunicativa e já tinha opinião formada a respeito deles.

- Vieram a acompanhar o senhor Vasco da Gama, não foi?

Baixando a voz, confidenciou:

- Ele esteve ali fechado a falar com o rei, mas já saiu.

- Ah! - disse o João, sempre pronto a reagir às situações com uma invenção da cabeça dele. - Nós aqui à espera e o tio Vasco foi-se embora. Nunca mais se lembrou que viemos com ele.

Antes que disparatasse, Orlando cortou-lhe a palavra:

- Não importa, vamos procurá-lo. Indique-nos a saída, por favor.

A rapariga pousou a vassoura, segurou as saias para não tropeçar e avançou num passinho acelerado que fazia dançar as ancas gorduchas.

- Por aqui, por aqui.

Assim passaram por vários aposentos, cruzaram-se com pessoas ricamente vestidas e com criados, sem despertarem a menor suspeita. Ela levou-os até junto dos guardas e só então se despediu.

- Obrigada - disse a Ana divertida por pensar que aquela criadinha nunca adivinharia o verdadeiro motivo por que lhe agradeciam.

João, esse, quis fixar o nome da pessoa que fora a primeira a ajudá-los naquela viagem.

- Como é que te chamas? - perguntou antes de sair.

- Leonoreta, meu senhor.

Os olhinhos piscos sorriram de novo, tornou a fazer aquela vénia curta e rápida como se tivesse molas nos joelhos e desandou. Aliás, desandaram, ela para dentro do palácio e eles para fora. Caminhando um pouco à toa, foram descendo pelas ruas da cidade que eram estreitinhas e cheiravam a campo pois, junto com homens, mulheres e crianças, havia imensos animais à solta. Tiveram mesmo que se afastar para dar passagem a um miúdo pequeno que conduzia um bando de patos com uma vara. Os patos, de asas semiabertas, grasnavam, enchendo a rua com o seu coro um pouco irritante de «cuá...cuá...cuá...». Cavalos e burros transitavam sem regras. E num pequeno largo uma carroça com pipas de vinho atravancava o espaço junto à porta de uma taberna. Um rapaz novo esforçava-se para erguer uma pipa e pô-la ao ombro sem auxílio de ninguém. Mas da taberna saiu uma mulher aos gritos:

- Ah, grande estúpido! Isso é muito peso para ti. Ainda espetas com a pipa no chão!

O rapaz, quase roxo por causa daquele peso bruto, respondeu-lhe com voz sumida:

- Ó mãe, saia da frente, não me atrapalhe... Orlando, Ana e João detiveram-se com receio de apanhar com a pipa em cima. E a mulher continuou a gritar:

- Olha lá, malandro! Se o vinho se entorna quem paga sou eu...

Os vizinhos, certamente habituados às discussões entre mãe e filho, vieram à janela com cara de quem quer gozar o espectáculo. E a taberneira não os desiludiu. Entre insultos, gritaria e falsas ajudas que funcionavam mais como encontrões, acabou por provocar o desastre que temia. O rapaz perdeu o equilíbrio, a pipa rolou-lhe dos ombros e estatelou-se nas pedras da calçada com estrondo. Da janela soaram gritinhos parvos e algumas risadas. A mãe fez um berreiro e o rapaz, coitado, foi atrás da pipa que rebolava na direcção da Ana. Ela recuou para evitar o embate, mas o rapaz, de um salto, chegou a tempo de imobilizar a pipa e segurou-a com as duas mãos.

- Desculpe, senhora. Desculpe - balbuciou ainda agachado e bastante envergonhado.

-Não faz mal - disse a Ana. - Não se preocupe.

Os olhos de ambos cruzaram-se com simpatia. E ele, talvez por encontrar assim de repente entre porcos e galinhas uma menina linda e vestida como as mais ricas da cidade, que ainda por cima lhe sorria docemente, ficou uns segundos imóvel, pasmado, a observá-la como se se tratasse de uma visão celestial. A voz estridente da mãe chamou-o à realidade:

- Mexe-te, Rui, que te dou uma coça...

Ana estranhou que um indivíduo daquela idade não reagisse aos maus tratos. Antes de seguir caminho, tanto ela como o irmão lançaram-lhe uma última mirada e concluíram que já devia ter levado muita pancada porque tinha nódoas negras e até lhe faltava meia sobrancelha, se calhar devido a algum corte profundo.

- Precisava de comer qualquer coisa - disse o Orlando.

- Mas aqui não.

- Claro. Vamos procurar uma hospedaria que tenha bom aspecto.

Desceram em direcção ao rio espreitando aqui e ali. Perto de um chafariz, onde várias mulheres enchiam cântaros de água, viram um sítio que lhes agradou. Era uma espécie de venda onde serviam comidas e bebidas. Estava bastante gente à porta a conversar e a comer. Do interior vinha um cheiro a fritos que lhes fez crescer água na boca.

- Entramos?

- É para já.

Ninguém lhes prestou grande atenção porque se tinham formado vários grupos, uns em pé, outros sentados à volta de mesas compridas. Todos falavam animadamente da grande viagem que se preparava. Orlando encaminhou-os para o fundo do aposento onde havia bancos livres, sentou-se e fez sinal a uma rapariga de tranças que andava a servir. Ela chegou-se e pôs-lhes logo na frente um cesto com pão, canecas de vinho, queijo e uma faca. Era bonita e despachada. Orlando encomendou almoço, mas nem a Ana nem o João o ouviram porque a figura de um homem que só tinha um braço lhes chamara a atenção. E o que dizia, deixou-os assombrados.

- Vou partir outra vez. Fui contratado para barbeiro e dentista de bordo. E tinha mesmo que ser, não é? Nem os navios chegavam à índia sem os dois Álvaros mais famosos do Barreiro.

O meu tio Álvaro Velho há-de escrever tudo o que se passar na viagem lá à maneira dele para ficar uma obra asseada. E cá o Álvaro Novo...

Bateu com a única mão no peito três vezes mostrando-se satisfeitíssimo.

- E eu, Álvaro Novo, hei-de arrancar dentes com fartura. E mais. Como a viagem é longa, esta mãozinha jeitosa que o tubarão não quis comer há-de cortar muitas vezes o cabelo e aparar a barba ao capitão Vasco da Gama. Ouçam o que lhes digo, porque não estou a mentir.

Os companheiros riram e curiosamente não pareceram duvidar, nem sequer achar estranho que tivesse sido escolhido para barbeiro e dentista aquele homem a quem faltava um braço.

A criadinha percebeu o espanto da Ana e do João quando lhes pôs na frente uma travessa com costeletas de borrego brilhantes de gordura e ainda a fumegar. E como ambos a fitaram com ar interrogativo, perguntou:

- Os senhores não conhecem o Álvaro Novo? É um pândego, está sempre na brincadeira.

- Ah! Quer dizer que não é dentista, nem barbeiro?

- É, sim. Dantes era marinheiro, e andou embarcado uma data de anos nos navios que vão para a África. Um dia aconteceu-lhe aquilo...

Fez um trejeito de tristeza e eles aguardaram em silêncio que contasse o resto, mas era evidente que «aquilo» se referia à perda do braço.

- Foi horrível - comentou abanando a cabeça. - Não merecia, coitado. Um homem tão trabalhador.

Como voltou a calar-se, o João não resistiu a fazer a pergunta que lhe queimava a língua.

- Foi mesmo um tubarão que lhe comeu o braço?

- Sim - disse a rapariga. - Numa viagem lá para as bandas da Guiné. Houve um incêndio no barco onde ele ia, no meio da aflição caiu ao mar e um tubarão comeu-lhe o braço esquerdo até acima do cotovelo.

- E como conseguiu ele escapar?

A rapariga encolheu os ombros e riu:

- Isso não sei, porque já o ouvi contar a história de muitas maneiras. Umas vezes diz que se agarrou a uma tábua e conseguiu nadar até à praia. Outras vezes diz que foi um companheiro que o salvou. Enfim, é o que lhe vem à cabeça. Mas salvou-se. E sabem uma coisa? Pouco tempo depois de a ferida sarar, já fazia quase tudo como dantes só com o braço direito. Mas como para marinheiro agora não dá, aprendeu o ofício de barbeiro-dentista.

- Fantástico!

- Pois é. Tem muita coragem e muita alegria natural. Ele anima sempre a mesa onde se senta. Inventa cada uma...

Suspendeu a frase para olhar Álvaro Novo, que continuava a falar agora ao pé da porta fazendo gestos largos com o braço que lhe restava. Dali não ouviam o que ele estava a dizer mas devia ser divertido pois arrancava gargalhadas sonoras aos que o rodeavam.

- É uma família especial - disse a rapariga.

- Vivem aqui perto?

- Não. São gente do Barreiro mas aparecem muito por cá. A este chamam-lhe Álvaro Novo para o distinguirem do tio que é o Álvaro Velho. Esse escreve que é uma maravilha. Às vezes fica connosco até tarde e, quando os clientes saem, lê para mim. Gosto tanto que ele até já tentou ensinar-me as letras, mas assim a correr não dá. Só aprendi a ler e a escrever as primeiras cinco letras.

Abriu a mão e contou pelos dedos com visível agrado:

- A, B, C, D, E... cinco letras. Ainda tenho esperança de aprender as outras e saber juntá-las. Deve ser tão bom poder ler sozinha o que me apetecer e escrever cartas sem ter de pedir a ninguém...

- Ó Inocência! - gritou alguém da cozinha. - O que é que estás aí a fazer? Mexe-te, que o serviço não falta!

- Tenho que ir. Isto é uma vida de trabalho...

- Que engraçado! - murmurou Orlando com um sorriso em que se misturava a ternura pela rapariga que sonhava com o alfabeto, e a gordura das costeletas de borrego que lhe inundava os lábios.

- Se conseguirmos ir para a índia no mesmo navio em que for o Álvaro Novo, hei-de pedir-lhe que me conte tudo a respeito da luta com os tubarões - disse o João.

Ana franziu-se, horrorizada:

- Para quê?

- Quero saber pormenores. Achas que lhe doeu muito? Ou o susto foi tanto que nem sentiu a dentada?

- Não sei, nem quero saber - declarou a Ana engolindo em seco.

- Pois eu quero. E garanto-te que acabo por tirar a história a limpo. Se me contar e tornar a contar, acaba por dizer a verdade. Estou curioso...

 

Depois daquele almoço inesquecível na venda dos comes e bebes, tiveram a sensação de que o tempo passava cada vez mais depressa. Aproximava-se o dia da partida, em Lisboa toda a gente falava da grande viagem, foi necessário tratarem dos preparativos e pensarem na melhor maneira de serem aceites a bordo. Orlando decidira apresentar-se como médico e oferecer-se para embarcar na nau do capitão Vasco da Gama.

- Estou convencido de que me aceitam - explicara. - Quem costuma tratar dos doentes é o barbeiro. Álvaro Novo parece um homem despachado, em todo o caso deve dar jeito poderem contar com mais uma pessoa...

- E nós?

- Para vocês só há uma hipótese.

- Qual?

- Serem contratados como grumetes, porque não têm idade para marinheiros.

- O que é que fazem os grumetes?

- Tudo o que for preciso. Os grumetes são adolescentes que vão aprender a profissão de marinheiro trabalhando no duro. Há um mestre encarregue de distribuir tarefas e nunca facilita. Pode, por exemplo, mandá-los lavar as tábuas do convés com água, sabão e uma escova de pêlos rijos para ficarem bem limpas. Ou subir aos mastros para ajudarem os marinheiros a recolherem as velas. Pensem bem se querem ou não querem ir, para depois não se queixarem.

- Eu já pensei. Quero ir e estou pronto para deslumbrar o mestre com a minha energia. Prometo que não me queixo, nem que fique com os dedos em sangue de tanto puxar cordas e carregar baldes - disse o João com os olhos brilhantes de entusiasmo. - E tu, Ana?

A irmã não fraquejou:

- Eu também quero ir. Só há um problema em que não tinha pensado. Aceitam raparigas?

- Claro que não. É absolutamente proibido levar mulheres a bordo. Se estás realmente interessada em vir connosco, tens de te disfarçar de rapaz. E a primeira coisa a fazer é cortar o cabelo.

- Ah... pois...

Ana levara a mão à nuca para afagar a bela cabeleira que tanto gostava de sentir dançar sobre os ombros.

- Paciência. Corta-se.

- Bom, então só falta arranjar fatos apropriados. Não podemos aparecer com estas roupas luxuosas porque não há médicos ricos e os filhos dos nobres não se candidatam nem a grumetes, nem a marinheiros. Temos de «empobrecer».

O empobrecimento foi fácil. Quando desceram até à Ribeira das Naus para se oferecerem à pessoa que estava a contratar a tripulação, já iam vestidos à moda do povo, com roupas de pano grosso. Para melhor se disfarçar, Ana enfiara até às orelhas o barretinho vermelho que fazia parte do traje.

À beira-rio o movimento era estonteante. Pessoas, animais, carroças, pipas, sacas, tudo a circular na maior balbúrdia. Vendedores ambulantes apregoavam em altos berros o que tinham para vender.

- Fruta fresca!

- Quem quer figos secos do Algarve?

O burburinho em volta crescia porque, como todos gritavam, quem desejasse ser ouvido tinha que gritar ainda mais alto. Aqui e além ladravam cães enervados com a agitação e as rodas das carroças faziam um ruído irritante.

O homem que procuravam estava a afiar penas de pato, que ia mergulhando num tinteiro para poder tomar nota dos nomes dos candidatos a marinheiros e grumetes. A todos os que se aproximavam prevenia:

- Eu faço a lista, mas quem escolhe os marinheiros e os grumetes que vão na viagem é o mestre Julião.

Mesmo ao lado, uma mulherzinha repetia com voz esganiçada.

- Comprem pedras da sorte... não vão para o mar sem pedras da sorte.

As ditas pedras encontravam-se alinhadas em cima de um pano preto, arrumadas por tamanhos e cores, muito bem lavadinhas.

Orlando, Ana e João encaminharam-se para ali mas, antes de chegarem perto, o homem das penas de pato acenou a um rapaz que descarregara um bote cheio de legumes frescos e acabava de os empilhar numa carroça:

- Rui! Ó Rui!

O rapaz parou, virou-se e saudou o velho amigo:

- Olá, tio Jeremias!

- Anda cá, anda cá. Preciso de falar contigo.

Ele hesitou apenas um instante. Depois abandonou a carroça e chegou-se muito sorridente. Ana e João reconheceram-no quando viram que lhe faltava meia sobrancelha. Era aquele Rui da taberna que tinha uma mãe chatíssima. O contratador falou-lhe como a um velho amigo:

- Já inscrevi muita gente mas falta-me um rapaz de confiança para despenseiro. Tu é que vinhas mesmo a calhar. Estás habituado a organizar a despensa da taberna da tua mãe e ela é toda exigente...

- Se é. Está cada vez pior. Os meus irmãos foram todos para o mar só para não a aturarem mais.

- Pois então chegou a tua vez. Não queres ir, Rui? Como tenho toda a confiança em ti, digo ao mestre que encontrei a pessoa indicada para tratar dos mantimentos e da água da nau São Gabriel, que é onde vai o capitão Vasco da Gama.

- Eu, por mim, gostava - disse o Rui. - Mas quem é que cala a minha mãe?

- Quem ficar em terra a ouvi-la, porque tu, se estiveres no mar não a ouves.

Rui desatou à gargalhada:

- O tio Jeremias! Com essa quase me convenceu.

- Então?

- Então, olhe! Vou levar a carroça e logo à noite apareço para lhe dizer se sim ou não.

Tio Jeremias sacou de uma pena de pato novinha em folha, afiou-lhe a ponta, mergulhou-a no tinteiro e escreveu em letras gordas o nome do rapaz seguido do cargo: «Rui de Alfama - despenseiro.»

- Pronto. Já te registei. Agora vê lá se falhas.

O rapaz foi-se embora risonho mas sem dar mostras de ter decidido. Nessa altura Orlando empurrou o João e a Ana na direcção do tio Jeremias e perguntou:

- Ainda há vaga para dois grumetes?

- Há, sim senhor.

- Então inscreva-os para a nau São Gabriel.

- Aqui não há escolhas - disse o tio Jeremias. - Os grumetes têm de ir para onde o mestre os mandar.

- Pois, eu sei - disse o Orlando. - Mas eu fui contratado para físico do capitão Vasco da Gama. Estes dois rapazes costumam trabalhar comigo. Se for preciso fazer alguma operação ou preparar remédios e poções, eles fazem-me falta. Se não for preciso, ocupam-se só dos serviços de grumete.

Tio Jeremias considerou o argumento válido.

- Bom, se é para benefício do capitão-mor, seja. No entanto convinha irem amanhã logo de manhã falar ao mestre, que está na praia do Restelo a preparar o embarque.

- Está bem. Fique descansado que lá iremos. Orlando cumpriu a promessa. No dia seguinte, bem

cedo, meteram-se ao caminho. Como não havia transportes, seguiram para Belém a pé. O dia estava lindo, à beira-rio corria uma aragem fresca, havia hortas bem regadas e rebanhos a pastar pelas colinas. Apesar de ser longe, gostaram do passeio.

Quando avistaram a praia do Restelo, avistaram também as três grandes naus ancoradas no Tejo, e ao lado um navio mais pequeno para onde se dirigiam vários botes carregados de mantimentos.

- Ali têm a armada que nos há-de levar à índia. - disse o Orlando.

Ana não prestou atenção porque se fixara num grupo de rapazes que conversavam e riam animadamente. Eram todos loiros, de um loiro quase branco. No meio da algazarra, atiraram ao ar um miúdo pequeno, tão loiro como eles e que devia estar habituado à brincadeira, pois não parecia assustado.

- Ei! Ei! Ei! - gritaram em coro, miúdo inclusive. - Viva a união, irmão nunca deixa irmão!

João também lhes achara graça e foi o primeiro a meter conversa. Pouco depois estavam íntimos. Os rapazes eram sete e tão parecidos que bastava olhar para eles para se perceber que só podiam ser irmãos. Além do cabelo louro, quase branco, tinham grandes olhos verdes muito pestanudos. O nariz arrebitado e largo dava-lhes um ar alegre e até um pouco cómico. Tinham vindo de Vila Nova de Gaia para se inscreverem. Pertenciam a uma família de pescadores e os mais velhos, como andavam há anos no mar, foram logo aceites. Quanto aos mais novos, conseguiram ser admitidos como grumetes. O mestre devia ter engraçado com aquele grupo pois acedera ao pedido de se manterem juntos na mesma nau.

- Vão na São Gabriel - decidira.

O motivo da alegre gritaria era o irmão mais novo.

- Estávamos com medo que não o aceitassem por causa da idade - explicara um deles. - Mas o mestre diz que quanto mais cedo se começa a aprender a arte de marinharia, melhor. E que nos navios que vão para África andam muitos como ele.

- Vamos ser companheiros de viagem - disse o João.

E virando-se para a irmã:

- Não é, A...

Felizmente conseguiu travar a língua a tempo.

- Safa! Por pouco não lhe chamava Ana - pensou numa aflição. - Isto vai ser difícil. Preciso de treinar, senão ainda descobrem que é rapariga.

Orlando, que percebera tudo, fez uma pergunta para disfarçar:

- Ainda embarcamos hoje?

- Sim. Ao fim da tarde quero tudo a bordo para se irem acomodando e para receberem ordens - disse o mestre.

- Ordens do capitão Vasco da Gama?

- Não. Ordens minhas. O capitão Vasco da Gama só embarca no dia da partida. Mas vocês estejam aqui hoje à tarde sem falta e com tudo o que quiserem levar porque não voltam a terra.

- Está bem. Até logo!

- Até logo! - responderam os sete irmãos de Gaia em coro.

 

À tarde a praia do Restelo ficou apinhada de gente. Homens que iam embarcar, mulheres e crianças para se despedir, famílias completas a ajudar no transporte das sacas de pano onde cada um levava a sua roupa e os objectos pessoais. Ana e João, sabendo que a viagem demoraria dois anos, espantavam-se por verem tão pouca bagagem. Mas Orlando fez-lhes notar que os costumes eram outros, que as pessoas viviam com pouco mesmo em terra e que os hábitos de higiene se reduziam ao mínimo.

- A ideia de banho e roupa lavada é moderna. A maior parte desta gente nunca tomou banho.

- Nem de mar?

- Não. Quase ninguém sabe nadar.

- Que horror! Os marinheiros pelo menos deviam aprender...

- Pois é. Mas não aprenderam - disse Orlando com certa tristeza na voz.

Ana e João não ouviram a resposta porque os chamaram para um dos botes a remos. Avançaram com o Orlando e, como não tinham de quem se despedir, foram dos primeiros a instalar-se. No areal as pessoas abraçavam-se, alguns choravam e voltavam a abraçar quem partia. Também havia crianças que se agarravam aos pais e berravam como possessas quando tentavam arrancá-los do colo. Um velho animava os vizinhos com palavras de encorajamento:

- Pena tenho eu de não poder ir. Andei no mar tantos anos e sempre me dei bem. Agora que há esperança de chegar à índia, fico em casa.

Mas outro velho, rabugento e maldisposto, vociferava:

- Estás-te a esquecer do perigo. Dos navios que se perdem, dos homens que não voltam. Já vem tanta riqueza de África, para quê ir à índia? Cobiça! É só cobiça!

A discussão estalou, mas ele não se deu por vencido:

- Muitos destes rapazes, que vão partir com a cabeça cheia de sonhos, não voltam nunca mais! Hão-de morrer de doença, hão-de morrer afogados...

Mestre Julião aproximou-se dele furibundo:

- Pára com isso, ave agoirenta. Se continuas a desanimar, mando a guarda expulsar-te daqui para fora.

Não foi preciso repetir a ameaça, nem chamar a guarda. O velho afastou-se cabisbaixo e ficou a resmungar de parte. A pouco e pouco os botes foram-se enchendo. Últimos acenos, braços no ar, barretinhos vermelhos agitados freneticamente pela rapaziada que sentia vibrar o desejo de aventura.

- Adeus, até ao meu regresso!

- Hei-de voltar rico!

Ana e João também acenaram à toa. Depois voltaram-se para as naus. Vistas de baixo para cima, metiam respeito. Os cascos de madeira escura erguiam-se abaulados, sólidos, imponentes. As aberturas por onde espreitavam bocas de canhão faziam pensar em batalhas navais e ataques de piratas. Os mastros provocavam arrepios. Eram altíssimos, com escadas de corda penduradas e um cesto redondo lá em cima, o cesto da gávea. Quem fosse encarregue de soltar ou prender as velas, teria de subir e descer muitas vezes aquelas escadas balançantes. E quem fosse mandado para o cesto da gávea a fim de gritar «terra à vista», também.

Ana sentiu um formigueiro de medo. Se a mandassem a ela, seria capaz de trepar sem cair? Preferiu pensar que talvez só os marinheiros experientes fossem autorizados a circular nas cordas e nos mastros.

- Qual é a nossa nau? - perguntou para desanuviar. Foi um remador que lhe respondeu:

- É a que tem a bandeira branca com a cruz vermelha, a cruz de Cristo. Estás a ver ali? Aquela é a São Gabriel.

- E as outras também têm nome?

- Sim, claro. Adiante está a São Rafael. E aquela era para ser São Miguel mas acabou por ficar com o nome do primeiro dono, chama-se Bérrio.

- Mas são quatro.

- Pois. A mais pequena não me lembro como se chama. E não importa, porque não é uma nau, é uma naveta para levar mantimentos.

O bote que transportava os sete irmãos de Gaia ultrapassou-os naquele momento.

- Ei! - berraram em uníssono. - Olá! Vamos chegar primeiro!

- Isso é o que vocês julgam - ripostou o remador esforçando-se por acelerar o ritmo. - Macacos me mordam se me passam à frente.

E vá de dar aos braços, tchap... tchap... com toda a força. Os outros remadores seguiram-lhe o exemplo. Cada grupo gritava a incentivar os do seu bote, o embarque transformara-se numa corrida de botes.

- Estamos quase!

- Força, tio TÁ...

- Nós primeiro... ei!

Os homens que já se encontravam a bordo debruçaram-se na amurada, tomaram partido e puseram-se a gritar também.

- Hei... Hei...

- Força, força!

O despique foi renhido porque os botes estavam muito próximos e ora se destacava um ora se destacava outro. Mas a vitória coube mesmo aos remadores que transportavam os sete irmãos de Gaia. E eles faziam tal chinfrim de alegria que o mais pequeno deixou cair o barrete à água e ia caindo atrás ao tentar recuperá-lo.

- Cuidado!

- Ainda é cedo para naufrágios!

O irmão mais velho pescou-o pela roupa utilizando apenas a mão direita. E como o bote da Ana e do João estava ali ao lado, puderam ver o que ele segurava entre os dedos da mão esquerda.

- Compraste uma pedra da sorte?

- Comprei. E pelos vistos vale a pena, já nos deu sorte na corrida. - Amavelmente acrescentou: - Há-de dar sorte a todos os que viajarem perto de mim. O efeito não é só para mim, é para a nau São Gabriel.

Foi portanto num ambiente de galhofa e camaradagem que subiram para o convés. Mal puseram o pé nas tábuas, Ana e João arregalaram-se de espanto porque ouviram «bééé».

- Olha! Uma cabra!

A cabra era branquinha com pintas castanhas. Presa por um cordel, balia de pescoço esticado como se quisesse protestar por a terem levado dos campos para um local onde não havia o menor sinal de pastagem: - «Bééé...»

Ao lado grunhia uma porca enorme com uma data de leitõezinhos pequeninos ainda de pele cor-de-rosa. E atrás, dentro de gaiolas de cana, amontoavam-se galinhas, patos, coelhos e pombos.

- Isto parece a arca de Noé! - exclamou o João. - Para que é tanta bicharada?

- Para se comer carne fresca - disse-lhe o Orlando em voz baixa. -- Lembra-te que não há frigoríficos...

- Ah! Claro...

Ana chegara-se ao pé do mastro e, de cabeça erguida, fitava o cesto da gávea. João apercebeu-se de que devia estar com receio de ser obrigada a subir até lá acima e resolveu brincar com ela.

- Ó A...

Felizmente tornou a dobrar a língua a tempo. À sua maneira expedita, emendou o som.

- A... anda cá! Chega aqui!

A irmã lançou-lhe olhares lancinantes que significavam «tem cuidado, não me denuncies». E como lhe pareceu que um dos sete rapazes de Gaia franzira as sobrancelhas como se tivesse captado a hesitação do João, resolveu afastar-se dali.

- Vamos para baixo - disse. - É melhor irmos pôr as nossas coisas no porão.

No interior do casco do navio havia vários andares, ou melhor, vários porões ligados entre si por escadas de madeira. As únicas aberturas para o exterior eram buracos onde se enfiavam canhões. Por isso, à medida que desciam, o ambiente tornava-se mais escuro e o cheiro mais intenso e enjoativo.

- Que cheiro esquisito.

- De que será?

- É uma mistura - explicou Orlando -, óleo, resina, cordas, azeite, comidas...

- E vinho do bom - disse uma voz que lhes soou familiar.

Voltando-se, deram de caras com o Rui. Apesar da obscuridade, reconheceram-no de imediato porque vários fios de luz vindos do convés lhe iluminaram a cara e eles viram perfeitamente a meia sobrancelha. Estava agachado entre pipas, e os seus olhos cruzaram-se com os de Ana numa mirada rápida, como da primeira vez que se tinham encontrado à porta da taberna. Ele sorriu e Ana sentiu o sangue gelar-se-lhe nas veias. Se o rapaz percebesse quem era, estava perdida porque não a deixavam seguir viagem. E com certeza expulsavam o Orlando e o João por a terem encoberto. Expulsavam-nos e provavelmente castigavam-nos.

- Tenho que ter cuidado, muito cuidado - pensou,

com o coração em alvoroço.

Rui ergueu-se, sacudiu as mãos uma na outra e perguntou:

- Já nos conhecemos?

- Não - responderam João e Orlando prontamente.

- Não? Que engraçado, ia jurar que nos vimos em algum sítio.

- Talvez na Ribeira das Naus, de passagem - disse Orlando. - Estava muita gente a inscrever-se.

Rui ainda voltou a olhar para a Ana mas distraiu-se porque vinham lá os sete irmãos de Gaia. Desceram em fila com os sacos de roupa às costas e avançaram para as prateleiras de madeira que serviam de cama a marinheiros e grumetes. Conforme seria de esperar, queriam ficar juntos. Encontraram um canto disponível, lançaram mantas sobre a palha que ali fazia as vezes de colchão e experimentaram logo a ver se era confortável.

- Ficamos perfeitamente.

- Perfeitamente, se chegares para lá os pés que eu não consigo dormir com o pivete!

O mais pequeno reagiu atirando o saco da roupa à cabeça do irmão que riu e lhe atirou por sua vez uma mão cheia de palha à cara.

Aparentemente Rui achara piada ao miúdo e deu-lhe um figo seco:

- Toma lá um presente do despenseiro. E trata de ficar meu amigo desde já, porque quem guarda as comidas sou eu. Vai tudo ali naquela despensa fechada à chave. E a chave tenho-a ao pescoço.

Mostrou-lhe uma chave de ferro tão grossa que parecia de portão e perguntou:

- Como é que te chamas?

- Gaspar José - disse o miúdo já a chupar o figo seco. - Sou irmão deles.

- Isso vê-se à légua.

- Pois vê. Saímos todos loiros de olhos verdes como o pai - acrescentou um -, por isso ficámos todos com o nome dele. Somos todos José.

- Que trapalhada!

- Trapalhada nenhuma porque cada um tem o seu nome. José vem em segundo lugar. Eu sou Abel José, o mais velho.

- Então ajuda-me a guardar as pipas do líquido mais precioso que levamos a bordo.

- É o tal vinho muito bom? - perguntou o João.

- Não. É água. Vinho temos pouco, só servimos ao capitão, ao piloto e a gente importante. Mas se faltar não vem mal ao mundo. Agora água, se nos falta, morremos de sede...

- Não há-de faltar - declarou Abel José, fazendo rebolar a pedra da sorte na palma da mão. - Eu preveni-me com um talismã. Vai correr tudo bem. Estou ansioso por partir.

- Nós também.

 

No dia seguinte, dia 8 de Julho de 1497, a praia do Restelo encheu-se ainda mais do que na véspera. Tinham montado na areia uma espécie de palco, um palanque para o rei D. Manuel assistir à largada dos navios. E com o rei tinha vindo gente da corte ricamente vestida com roupas de seda, chapéus, capas ao vento. Os guardas alinharam-se de modo a impedir que os homens e as mulheres do povo se chegassem demasiado ao palanque real. Muitos padres e monges faziam orações pedindo a Deus e a Nossa Senhora do Restelo que abençoassem os navegadores. Quando o capitão Vasco da Gama fez uma vénia diante do rei e avançou para um bote que estava enfeitado com bandeirinhas encarnadas e brancas, a multidão calou-se. Chegara o momento que todos desejavam e temiam. Seria desta vez que os portugueses conseguiam finalmente descobrir o caminho por mar até à índia? Havia quem achasse que sim e quem receasse que não.

Vasco da Gama, muito sério e compenetrado do seu papel, não deixou que os sentimentos lhe viessem à cara. Só quando o irmão Paulo da Gama se meteu no bote que o ia levar à nau São Rafael é que sorriu, um sorriso breve de cumplicidade. Depois fez um aceno de cabeça ao capitão da terceira nau, a Bérrio. E murmurou em voz baixa

- Que Deus te acompanhe também a ti, Nicolau Coelho!

Antes de alçar a perna para dentro do bote, ergueu o braço direito num gesto largo de despedida. Em resposta ouviu-se um burburinho amistoso e comovido, logo abafado pelos acordes das trombetas e pelo rufar dos tambores que anunciaram solenemente o início da grande viagem. Um frémito de emoção percorreu a assistência. Todos os que já se encontravam a bordo estremeceram orgulhosos por serem as figuras principais daquela fantástica aventura e ao mesmo tempo saudosos de tudo o que deixavam para trás. Debruçados na amurada ou pendurados nos mastros viam ao fundo o casario de Lisboa, em frente as colinas do Restelo com a sua capelinha caiada de branco, ao longe o recorte da fresca serra de Sintra e interrogavam-se. Quando tornariam a pôr os olhos naquela paisagem? Muita gente decidira assistir ao levantar das âncoras e dizer adeus de perto aos navegadores. Para isso tinham tomado pequenos barcos à vela ou a remos e giravam em torno das naus a esbracejar e a acenar para as caras conhecidas.

Vasco da Gama já estava na São Gabriel e todos o olhavam com respeito. Quando mandou recolher as âncoras ressoaram tiros de canhão, salvas acompanhadas de fumo branco. Estava dado o sinal de partida. As naus deslizaram suavemente em direcção ao mar.

E o vento que soprava de norte pronto a enfunar as velas espalhou pensamentos, sonhos e desejos pelas duas margens do rio.

Rui, para quem a largada representava uma libertação, resolveu brincar:

- Estão a ver aquele barquinho minúsculo com três pessoas? Aposto que a do meio é a minha mãe.

- Porquê?

- Porque esbraceja, esbraceja. Com certeza está furiosa por eu me ter posto a andar. Desta vez troquei-lhe as voltas.

Tirou o barrete da cabeça e agitou-o enquanto gritava:

- Adeus, mãe! Quando precisar que lhe levem pipas, lembre-se de pagar o serviço e de pedir por favor!

A brincadeira foi interrompida pelo mestre, que chamou para distribuir tarefas. Nessa altura, marinheiros e grumetes alinharam-se no convés e, enquanto esperavam, as ideias dispararam. Ideias vagas, dispersas, variando conforme a maneira de ser de cada um. Rui, que nunca navegara no mar alto e nunca tinha tido namoradas, acalentava a esperança de avistar uma daquelas mulheres com rabo de peixe de que falavam os velhos marinheiros.

- Sei que aparecem pouco, mas numa viagem tão longa há-de aparecer pelo menos uma sereia... a cantar para mim.

João, ansioso por aventuras, deitava olhares lancinantes ao cesto da gávea. Enquanto não aconteciam coisas extraordinárias, podiam pelo menos mandá-lo subir às escadas de corda. Adorava amarinhar por ali acima e balançar. Devia ser possível manter-se firme enfiando apenas um braço e uma perna nas cordas e deixando o resto do corpo livre para equilibrismo.

Quando o mestre começou a falar, foi necessário esquecer essas e outras fantasias e concentrarem-se no que lhes dizia.

- Todos sabem quais são as regras a bordo, não sabem?

Os marinheiros responderam «sim» e os grumetes balbuciaram qualquer coisa porque não se atreveram a dizer «não».

Orlando assistia a tudo mas de parte. Ana fitou-o de sobrancelhas erguidas. Valeria a pena confessar que nada sabia de regras a bordo? Se confessasse, evitava com certeza muita trapalhada. No entanto, tomar a palavra no meio de tantos homens talvez fosse perigoso, a voz fininha podia denunciá-la. Orlando percebeu a dúvida e com um sinal discreto deu-lhe a entender que era melhor ficar calada.

O mestre continuava a dar ordens. A certa altura, por trás de um monte de cordas apareceu uma mão empunhando uma tesoura que abria e fechava repetidamente com seu ruído próprio de «tchec.tchec». Depois, atrás da mão, surgiu a figura inconfundível de Álvaro Novo a fazer caretas. Impossível não rir. Só não houve problema porque o mestre achava graça àquele homem com quem já viajara e admirava-lhe a coragem. Aceitou a interrupção sem se zangar. Quando terminou, ordenou que se mantivessem juntos no convés porque o capitão-mor vinha saudá-los. A perspectiva aguçou-lhes a curiosidade. Vasco da Gama acenara-lhes no momento do embarque mas ainda não chegara perto nem falara com eles. Que tipo de pessoa seria? Por ordem do mestre, viraram-se para o castelo da popa e aguardaram em sentido. Poucos segundos depois, Vasco da Gama saiu dos seus aposentos privativos e avançou até ao corrimão do varandim de madeira.

Daquele sítio mais alto podia abarcar de uma só vez todos os homens que se encontravam no convés. E foi isso que fez. Curiosamente parecia olhá-los no conjunto e a cada um em particular. Falou-lhes e impressionou-os não só pelas palavras que disse mas sobretudo pelo ar sereno e firme de um verdadeiro chefe. Irradiava autoridade, a sua expressão era a de um homem recto e bondoso, a sua presença transmitia segurança. Ficaram todos a adorá-lo.

A armada seguiu para o mar alto. De início a São Gabriel ia à frente, a São Rafael e a Bérrio quase lado a lado, atrás a naveta de mantimentos. Rumo à índia.

Durante os primeiros dias de viagem não houve novidade de maior, só viam mar e céu, céu e mar. Mas como para os grumetes era tudo novidade, até se divertiam com as tarefas mais difíceis e cansativas. João tornara-se um ídolo para Gaspar José, o mais novo dos irmãos de Vila Nova de Gaia. E protegia-o como se pertencesse à família. Ana esforçava-se ao máximo por evitar o convívio com Rui porque ele lhe lançava olhares de mocho, directos e duvidosos como se perguntasse a toda a hora «de onde é que eu conheço esta cara»?

Ao largo das ilhas Canárias abateu-se sobre os navios um nevoeiro tão espesso que não se via um palmo diante do nariz.

- Se não fosse a bússola, perdíamo-nos - explicava João ao pequeno Gaspar José. - Mas assim não há problema. O piloto orienta-se na mesma, não te assustes.

- Eu não me assusto - mentia o rapaz para não dar parte de fraco. - Estou a tremer por causa do frio.

- Não está muito frio.

- Mas está húmido.

Debruçados na amurada procuravam insistentemente sinais dos outros navios. Aquela névoa porém deixara-os tão isolados como se navegassem sozinhos no mundo.

- Não se preocupem - dizia Álvaro Novo. - Isto faz parte de qualquer viagem. O meu tio Álvaro Velho até deve estar contente porque até aqui não deve ter tido grande coisa para registar no diário que adora fazer. Mas a esta hora deve estar a escrever assim: «nevoeiro ao largo das Canárias, tão forte que o dia parecia noite».

- Como é que sabe?

- Sei porque o conheço a ele e lhe conheço o estilo. E mais. O capitão Vasco da Gama já tinha previsto que nos pudéssemos perder uns dos outros e combinou encontrar-mo-nos todos em Cabo Verde.

- Tem a certeza?

- Absoluta. Acreditem em mim. Eu sei tudo!

João mantinha conversas do género com Álvaro Novo desde o início da viagem e sentia por ele aquilo a que se poderia chamar um fascínio temperado de antipatia. Irritava-se porque ele tinha sempre resposta para tudo, ficava sempre com a última palavra e ria de uma forma que lhe complicava com os nervos. Mas não podia deixar de o admirar porque, usando um só braço, fazia exactamente o mesmo que os outros sem dar sinais de fraqueza ou inferioridade.

- É um tipo estranho, é um tipo especial...

Nessa noite, quando desceram aos porões para se deitarem, Álvaro Novo chamou para um canto o João, o Rui e o Gaspar José e propôs jogarem aos dados. João aceitou, pensando que seria só para passar o tempo. Mas não, Álvaro Novo quis fazer apostas a sério.

- Se não apostarmos não tem graça. Vamos jogar a ração de amanhã.

- Assim não quero - disse Gaspar José. - Porque se perder fico cheio de fome.

- Está bem, miúdo, vai-te lá deitar, isto é coisa de homens.

Lançou os dados e em poucas rodadas ganhou as rações dos parceiros. Com o seu risinho enervante ainda lhes perguntou em voz baixa:

- Querem pedir desforra?

De súbito, porém, fez desaparecer os dados e, sem dizer palavra, atirou-se para debaixo das mantas e pôs-se a ressonar como se estivesse a dormir há imenso tempo. Os rapazes entreolharam-se admirados. Mas não tardaram a perceber o motivo daquela teatrada. O mestre tinha descido ao porão com pezinhos de lã para inspeccionar, ouvira o rolar dos dados sobre a madeira e aproximou-se deles com ar severíssimo.

- Vocês não sabem que é proibido jogar a bordo?

- Na-ão - responderam os dois em coro.

- Pois ficam a saber. Quem é que trouxe os dados? Não querendo denunciar Álvaro Novo, baixaram os

olhos.

- Não lhes serve de nada fechar a boca - continuou o mestre sem desmanchar a expressão de zanga. - Aqui todos têm que obedecer cegamente às regras e às minhas ordens. Levantem-se.

Eles puseram-se em pé, o mestre revistou-os e, para espanto dos dois rapazes, encontrou os dados no bolso do João.

- Como vês, depressa se apanha um mentiroso. João abriu e fechou a boca sem saber o que dizer.

A atrapalhação fazia-o parecer culpado. E a atitude aparvalhada do Rui também não ajudava muito.

- Os dados ficam confiscados até ao fim da viagem. E tu amanhã vais ter comigo ao romper da aurora para saberes qual o castigo que te reservei. Agora deitem-se.

Assim que o mestre desapareceu escada acima, João teve ganas de arrancar Álvaro Novo da cama e dar-lhe uma tareia. Mas Rui deteve-o.

- Não te enterres mais. Ele é o barbeiro do capitão, é mais velho do que tu, o mestre gosta dele. Se o agrides, tramas-te.

João reconheceu que assim era, mas custou-lhe a engolir aquela partida.

- Ele é que teve a ideia, os dados eram dele, não nos disse nada sobre a proibição de jogar e ainda teve a lata de me enfiar os dados no bolso? Que estupor!

Álvaro Novo, se ouvia, fazia que não ouvia. Virou-se na palha e ressonou mais forte. Então Rui, vendo João transtornado e incapaz de dormir, sugeriu-lhe que subissem ao convés para respirar ar puro. Ele aceitou. Quando puseram a cabeça de fora, tiveram a grata surpresa de ver estrelas. O nevoeiro dissipara. Ao fim de seis dias de atmosfera pesada e húmida, o céu voltava a estar descoberto. No dia seguinte o sol brilharia de novo, que bom!

João encostou-se à amurada um pouco mais calmo. Rui debruçou-se ao seu lado e desatou a falar sobre a estranha personagem que era Álvaro Novo.

- Eu conheço-o há muitos anos. Ele passa a vida na taberna da minha mãe e nas vendas ali à volta. É um homem estranho, sabes? Encanta as pessoas com as histórias que conta e toda a gente lhe admira a coragem. Não é qualquer um que experimenta na carne os dentes de um tubarão, fica sem um braço e continua a fazer a sua vida normal. Coragem não lhe falta.

- Faltou-lhe - resmungou o João. - Faltou-lhe para confessar a verdade ao mestre. E sobrou-lhe para meter os dados no meu bolso.

- Isso é falta de carácter - atalhou o Rui. - E ele, carácter posso garantir-te que não tem. Aldraba tudo e todos. Até estou convencido de que faz batota quando joga às cartas e aos dados e não tem pena nenhuma de depenar um desgraçado por muito pobre e infeliz que seja. Ri-se, com aquele riso parvo.

- Não percebo como é que me deixei iludir - lamentou-se o João.

- Deixaste-te tu, como deixam os outros. A coragem que ele tem é como uma espécie de farol. É uma qualidade que brilha e lança sombra nos defeitos. Mesmo eu, que o conheço de gingeira, às vezes admiro-o. Mas temos que ter cuidado.

- Cuidado e não só - declarou o João. - Eu ainda não sei como mas hei-de vingar-me. Ele paga-mas.

 

A primeira vingança do João foi contar aos amigos a patifaria de que tinha sido vítima. Nem esperou pelo nascer do Sol. Procurou a irmã, depois os rapazes de Vila Nova de Gaia e relatou o caso em pormenor deixando-os boquiabertos e indignados. Assim, quando Álvaro Novo se levantou, só viu expressões negativas à volta dele. Calculando que já sabiam a história do jogo, tomou a decisão que sempre tomava quando alguém lhe virava as costas:

- Vou deixar correr o tempo. Com tempo tudo se resolve...

A inconfidência teve ainda outro efeito. Quando João se apresentou ao mestre para ser castigado, consolou-se por se sentir rodeado de olhares solidários. Mas o castigo afinal acabou por ser bizarro.

- Vais matar uma galinha com as tuas próprias mãos - ordenara o mestre muito sério. - E depois tens de a depenar e preparar para o cozinheiro fazer uma canja para o almoço do capitão.

Ana ouviu e deitou mãos à cabeça. Nenhum deles sabia matar galinhas e muito menos depená-las e prepará-las para serem cozinhadas. Se pudesse ia ajudá-lo, mas não podia porque se tratava de um castigo. No entanto o João não se mostrou particularmente aflito. Ou se estava, disfarçou bem. Dirigiu-se às gaiolas de cana com tal descontracção que parecia estar habituadíssimo àquele género de serviços. Abriu a portinhola, meteu a mão lá dentro e agarrou uma galinha pelas asas sem se importar com as bicadas que as outras lhe davam. Depois apresentou a escolhida perguntando quase num desafio:

- Esta serve?

O mestre aproximou-se e soprou nâs penas para ver se estava bem gordinha.

- Serve, sim. Podes matá-la.

Estendeu-lhe um facalhão bem afiado e ficou a ver. João torceu o nariz, indeciso. Qual seria a zona do corpo mais adequada para uma morte instantânea? Fazia-lhe impressão ouvi-la cacarejar e sentir o calor da carne por baixo das penas.

- Talvez o pescoço - pensou. - Se lhe cortar o pescoço com uma única facada, nem sente a dor.

Pousou-lhe então a cabeça num tronco e zás! Com uma facada certeira decapitou-a. A cabeça caiu nas tábuas do convés, o sangue espirrou num esguicho que lhe atingiu a cara. João largou as asas imediatamente e ficou atónito porque a galinha, sem cabeça, desatou a correr em volta! Aquilo fez-lhe tal aflição que só lhe apeteceu pegar no bicho e atirá-lo ao mar. Mas como os marinheiros e os grumetes que assistiam desataram a rir, dominou-se.

A galinha acabou por tombar; só que, quando lhe pegou, ainda estremeceu. Tocando-lhe, sentiu um vómito. E raiva contra Álvaro Novo, o grande culpado daquela situação. De qualquer forma, com ou sem nojo, teve que concluir o trabalho. Por sorte o mestre desapareceu e então os amigos puderam ajudá-lo. Rui, habituadíssimo às lidas da cozinha, explicou-lhe que um golpe seco no pescoço às vezes produz aquela dança macabra.

- O bicho já está morto e não sente nada. Os músculos é que mexem sozinhos.

- Safa! Que impressão! Parece coisa do outro mundo.

Via-se perfeitamente que lhe estava a custar imenso arrancar as penas. Ana chegou-se, os sete irmãos também e, mesmo sem combinarem, fizeram uma roda para ninguém perceber que em vez do João, era Rui que depenava e preparava a galinha.

O resto do dia correu normalmente. Cada um ocupou-se das tarefas que lhe competiam, mas era óbvio que à conta do castigo e da maldita galinha, a amizade entre o grupo crescera. Sempre que se cruzavam sorriam, piscavam o olho, entreajudavam-se no que pudessem. Orlando de nada sabia porque tinha sido chamado à presença do capitão e os dois conversaram longamente. Vasco da Gama ficara encantadíssimo com a inteligência e a sabedoria daquele médico velho e experiente. E como Orlando tomou a iniciativa de se oferecer para ir às outras naus sempre que fosse preciso tratar doentes, Vasco da Gama exultou:

- É bom poder contar consigo, sabe? O meu irmão Paulo da Gama tem uma saúde mais fraca do que a minha. Às vezes passa dias seguidos com febres altas.

Orlando desviou os olhos e limitou-se a responder:

- Eu farei tudo o que estiver ao meu alcance, mas não posso fazer milagres.

- Claro, claro. No entanto é bom poder contar consigo. Para falar com franqueza, este Álvaro Novo para barbas e cabelos vai servindo. O que já é extraordinário porque só tem um braço. Mas para tratar doenças, não me convence. Parece-me pouco sabedor. Fala muito, ri muito, um verdadeiro médico tem outra postura.

Continuaram juntos até à hora do almoço, partilharam a canja e ambos foram de opinião que não estava grande coisa.

- Este cozinheiro é fraco artista. Mas enfim, foi o que apareceu.

Terminada a refeição, Vasco da Gama ordenou que acomodassem Orlando num compartimento do castelo da popa para ir bem instalado. Orlando agradeceu, foi buscar as coisas e ficou satisfeito por ver a Ana e o João a conversar tão animadamente com outros grumetes que nem lhe deram atenção.

- Integraram-se, ainda bem.

Realmente estavam integradíssimos. Quando à noite desceram para o porão até tinham combinado dar uma desanda colectiva no Álvaro Novo e obrigá-lo a pedir desculpa. Só que ele não apareceu. Devia ter ficado lá por cima, à espera que adormecessem para não ter de os enfrentar. Rui também não fez serão com eles porque teve de se ocupar com o seu trabalho de despenseiro. Era preciso separar as rações para o dia seguinte, ver se havia ratos à espreita e caçá-los para impedir que se enfiassem nas pipas onde ia o biscoito de que tanto gostavam e o queijo que adoravam. Resolvera também fazer uma escolha nos cestos da fruta para deitar fora as peças podres e evitar que apodrecesse o resto.

Ana e João instalaram-se na prateleira que servia de cama colectiva aos sete irmãos de Vila Nova de Gaia. Apesar do cansaço, nenhum deles tinha sono. Puseram-se a falar de coisas várias e os rapazes, talvez por sentirem saudades, lembraram a mãe

- É uma mulher de armas - disse Abel José com orgulho. - Lá em casa acaba por se fazer sempre aquilo que ela quer.

- Porquê? Grita e berra com vocês?

- Não! - responderam as sete vozes em coro. - Ela leva-nos com falinhas mansas. E também leva o meu pai com estratagemas variados. Esta história dos nossos nomes, por exemplo, é muito engraçada. Começou por lhe dizer que todos os rapazes que nascessem haviam de ter José como segundo nome, em honra dele. Assim ele ficou todo contente e não se discutiu mais.

- E então?

- Então acabou por nos chamar como queria.

Nas sete caras bailava o mesmo sorriso terno e divertido. O irmão seguinte tomou a palavra.

- Lá no bairro onde a gente mora, a minha mãe é a única pessoa que sabe ler.

- Ela diz que aprendeu sozinha - explicou o outro -, mas nós achamos que foi com a ajuda do padre que é padrinho dela, lê muito bem e tem muitos livros.

- E o que é que isso tem a ver com os vossos nomes?

- Ideias cómicas da nossa mãe, que é brincalhona. Resolveu que havia de dar aos filhos nomes da Bíblia seguindo as letras do alfabeto do princípio para o fim.

A, Abel que sou eu. B, Baltazar e Belchior, os gémeos que vêm a seguir a mim.

- Que engraçado - interrompeu o João -, esses são os nomes dos reis magos!

- São. Por isso é que quando chegou ao G, pôs Gaspar. Gaspar José.

- E os outros?

- Os outros são David, Elói, Filipe. Todos José, em honra do meu pai. E por ordem alfabética...

- Em honra do alfabeto! Ah! Ah! Ah! Riram em coro.

O riso soou forte mas comovido, porque a conversa trouxera até ali a presença da mãe, que estava tão longe.

- Esperem lá - interrompeu o João. - A vossa mãe esqueceu-se da letra C. Nenhum dos vossos nomes começa por C.

Aquela observação causou um profundo mal-estar. Fez-se silêncio, houve uma troca de olhares discretos, Abel remexeu na palha, tomou balanço e depois esclareceu o assunto.

- Não há, mas houve. Tínhamos um irmão chamado Cristóvão.

- Morreu? - perguntou o João com voz sumida.

- Sim. Foi assassinado. Mas se não te importas, preferimos não falar nisso.

- Claro que não me importo. E compreendo muito bem - respondeu logo o João atrapalhadíssimo.

- Também já são boas horas para dormir - respondeu o David José com a sua voz particularmente agradável. - Amanhã temos de levantar cedo e trabalhar no duro.

Ana sentiu o coração disparar quando ele falou. Não confessara a ninguém, nem tencionava fazê-lo, mas desde o primeiro contacto com os sete irmãos sentira uma atracção fortíssima pelo número quatro, aquele David José, que era parecidíssimo com os outros mas que ela achava muito mais bonito. Observando bem e à luz do Sol, concluíra ser ele o mais loiro. E os olhos? Os maiores, sem dúvida. E talvez mais verdes. A boca, sempre risonha, encantava-a. E a pele, que tinha um aspecto macio, também. Mas ali em baixo, à noite, não podendo vê-lo com clareza, era a voz dele que lhe fazia saltar o coração.

- Não sei se estou apaixonada mas penso que sim - concluiu estendendo-se ao comprido na palha. - Pena ser obrigada a fazer a viagem disfarçada de rapaz. Se pudesse vestir-me de rapariga, divertia-me bastante mais, porque de certeza arranjava namoro!

Se Ana soubesse que durante a viagem havia de ter namoros a dobrar, adormecia satisfeita. Mas como não sabia, adormeceu rabugenta.

Ao seu lado, João revolvia-se entre as mantas sem conseguir conciliar o sono devido à sua eterna curiosidade. Depois da história dos dados desistira de fazer perguntas a Álvaro Novo sobre a luta com o tubarão. Mas na sua cabeça pairava agora outro mistério que gostaria de desvendar. Quem teria assassinado o irmão número quatro de Vila Nova de Gaia? E porquê?

- Com jeito hei-de descobrir mais coisas a respeito do tal Cristóvão.

 

Eram dez da manhã de uma quarta-feira luminosa quando o marinheiro que viajava no cesto da gávea gritou:

- Naus à vista!

Toda a gente correu para a amurada numa excitação. Desde que se tinham perdido por causa do nevoeiro não faziam a mínima ideia do que acontecera às outras naus. Agora ali estavam, navegando de velas desfraldadas. O encontro alegrou igualmente as tripulações dos vários navios que se saudaram com gritos, acenos, toque frenético de trombetas e tiros para o ar. Vasco da Gama também se mostrava contentíssimo. Nunca manifestara receios ou pensamentos negativos mas, ao ver a armada reunida, que alívio! De braço esticado mostrou ao Orlando uma figura alta e esguia que se encontrava na proa da São Rafael.

- É o meu irmão Paulo. Está com um aspecto esplêndido.

A alegria redobrou na manhã seguinte quando avistaram a ilha de Santiago, em Cabo Verde. Fim da primeira etapa.

Iam sair em terra, comer legumes e frutos, beber água da fonte e não a das pipas que já sabia tão mal.

O mestre escolheu um grupo precisamente para isso, ir buscar água e mantimentos frescos. Rui, como despenseiro, encabeçava o grupo e pediu para levar com ele dois grumetes que já o tinham ajudado em várias tarefas, a Ana e o João. Como o mestre aceitou, partiram delirantes no mesmo bote em que ia o David José, esse encarregue de arranjar lenha para a cozinha de bordo. João enfiou as mãos na água e suspirou.

- Que maravilha! Está morna!

O bote deslizava em direcção a uma pequena praia onde se tinha juntado bastante gente para os receber. David olhava para terra ansioso por pôr os pés na areia. Ana olhava para o David com vontade de lhe dar um beijo. Rui olhava as pipas com medo de as ver escorregar borda fora. João olhava o mar, louco por se atirar de mergulho. E quando já estavam perto não resistiu, saltou vestido e tudo! Por um momento os outros recearam que estivesse aflito. Mas ele emergiu sorrindo de satisfação.

- Caíste? - perguntou o Rui.

- Não. Foi de propósito. Eu sei nadar, estou cheio de calor, a roupa depois seca. E assim ajudo a puxar o bote para a praia.

Com água pela cintura, foi empurrando a irmã e os amigos na direcção do areal. Nenhum deles reparou num rapaz gorducho, com pouco cabelo, sem um dente da frente e com a barba por fazer que, ao dar com os olhos neles, se escondeu atrás de uns caixotes como se desejasse não ser reconhecido.

As pessoas da ilha de Santiago estavam habituadas às visitas de navegadores porque Cabo Verde era ponto de passagem obrigatório nas rotas do Atlântico. Quando os navios vinham de Portugal geralmente traziam a bordo cartas e encomendas para entregar. Assim, quando alguém via ao longe uma vela branca, dava logo sinal e ficava tudo alerta e em ânsias.

- Oxalá tragam notícias da minha mulher e dos meus filhos - suspirou Diogo de Alcochete. - Estou cheio de saudades deles!

Diogo de Alcochete tinha sido enviado para Cabo Verde dois anos antes e era uma espécie de chefe da povoação. Queixava-se de saudades da família mas já tinha arranjado outra mulher, a linda Zulmira, natural da ilha e muito mais nova do que ele. Viviam numa das casinhas de pedra com telhado de palha que fazia parte da povoação e tinham um filho de meses. Descalços na areia, esperavam ansiosamente o desembarque, ele porque queria carta da primeira mulher, ela porque os navegadores costumavam trazer lembranças para a esposa do chefe.

- Oxalá me ofereçam um pente. E uns metros de tecido para eu fazer roupa nova.

Olhando para o bote onde viajavam a Ana e o João, não se detinha nas caras, fixava-se nos volumes.

- Parece que estes só transportam pipas - concluiu desiludida. - Tenho de esperar.

Não perdeu pela espera. Nessa tarde foi uma animação de botes a ir e a vir. Os marinheiros e os grumetes desembarcaram por turnos, felizes por sentirem o chão firme debaixo dos pés. Traziam ainda mais presentes e mais notícias do que era costume. Zulmira recebeu não só o pente e tecidos de várias cores, mas também um colar de contas de vidro azuis que ela adorou e pôs imediatamente ao pescoço. Quanto a Diogo de Alcochete, recebeu uma visita com que não contava.

- O meu sobrinho Manuel! Ó rapaz, dá cá um abraço!

Pancadas nas costas, grande estardalhaço, notícias ao vivo, tudo muito amigável. O rapaz era esperto, não fez comentários ao facto de encontrar o tio com uma segunda mulher, quando a primeira estava viva e de boa saúde. Mas lançou olhares de soslaio para a Zulmira. De soslaio e de inveja. Que bonita!

A única maneira de se aproximar dela sem despertar suspeitas era fazer festas ao filho que ela tinha ao colo. Foi isso que fez.

- Olá! Que lindo menino! Como é que te chamas? Como a criança não podia responder devido à pouca

idade, respondeu a mãe toda risonha, mostrando uns dentes brancos e brilhantes que dava gosto vê-los.

- É Manuel, como o rei de Portugal.

- Também eu, que coincidência. Agora em Alcochete há muitos Manueis!

Diogo não assistiu à conversa porque recebera recado de que o capitão-mor Vasco da Gama e os outros capitães vinham a terra e queriam tomar uma refeição. Para os receber convenientemente, mandou matar cabritos bem tenros para assar num braseiro aceso de propósito na areia. E chamou o rapaz desdentado e barbudo para se ocupar dos temperos e dos grelhados. Ele não teve outro remédio senão obedecer, mas espiava pelo rabo do olho todos os movimentos dos irmãos de Vila Nova de Gaia. Se eles por acaso se aproximavam, virava-lhes as costas. Quando o pequeno Gaspar José resolveu ir cheirar a carne assada, o barbudo pôs um chapéu de palha na cabeça e enterrou-o até às orelhas. E quando Álvaro Novo se aproximou de navalha em punho oferecendo-se para lhe rapar a barba, respondeu torto e afastou-se. Ninguém lhe ligou muita importância porque já lá vinha o capitão-mor.

Um grupo começou a tocar pequenos tambores e pífaros, música simples mas tão boa para dançar! Zulmira não resistiu e ensaiou alguns passos sempre com o filho ao colo. E o primo Manuel à coca, cobiçoso:

- Que linda mulher! E que bem que ela se mexe! Isto de viver nas ilhas não é nada mau...

De súbito, ao lado dela, surgiu outra rapariga igualmente bonita, igualmente ágil, só que um pouco mais alta e mais nova. Manuel esfregou os olhos julgando sonhar, mas o mistério depressa se esclareceu. Era uma irmã de Zulmira, a lindíssima e solteiríssima Zuleida! Manuel foi-se chegando. Acabou a dançar com ela trocando os pés com a atrapalhação.

Ana assistiu ao baile, desesperada. Estava farta de andar vestida de rapaz, de fingir que pertencia ao sexo oposto. Apetecia-lhe gritar a verdade aos quatro ventos, ir em busca do David José, convidá-lo para um passinho de dança. Muito abraçados haviam de seguir o ritmo daquela música fantástica. E merecer palmas até do capitão-mor! De olhos tristes, viu desembarcar Vasco da Gama, acompanhado pelo irmão Paulo da Gama e por Orlando. Atrás, Nicolau Coelho, todos esfregando as mãos e afinando a dentuça para os belos nacos de carne assada que cheiravam divinalmente.

A festa ao ar livre prolongou-se toda a tarde, toda a noite e continuou nos dias em que ali permaneceram. Vasco da Gama ia dormir a bordo mas voltava sempre para comer em terra porque adorou os cozinhados que lhe ofereciam.

O rapaz barbudo não tinha mãos a medir. Trabalhava imenso, mas continuava a não conviver com ninguém. De roda das fogueiras, sempre com o chapéu de palha enfiado na cabeça, respondia por monossílabos se algum dos marinheiros ou dos grumetes lhe dirigia a palavra. Quando se aproximava o dia da partida, Vasco da Gama chamou-o para lhe gabar os petiscos. Ele continuou tão cabisbaixo que o capitão-mor estranhou:

- Olha lá, tu estás aqui na ilha de Santiago de livre vontade?

Ele olhou em volta antes de responder. Vendo Abel José nas proximidades, falou baixinho:

- Vim degredado por causa de um crime. O juiz condenou-me à morte mas o rei mudou a pena para dez anos de serviço aqui em Cabo Verde, na ilha de Santiago.

Com um suspiro profundo acrescentou:

- Se calhar mais valia ter morrido.

Vasco da Gama e Paulo da Gama trocaram um olhar de entendimento.

- Quer dizer que não gostas de estar aqui.

O homem ergueu ligeiramente a cabeça, deu um pontapé na areia e confessou:

- Odeio. Dava a vida inteira para voltar um dia que fosse à minha terra.

- Qual é a tua terra?

- Gaia. Vila Nova de Gaia - disse num sussurro. - A minha casa fica à beirinha do rio Douro. Conhece o rio Douro, capitão? Para mim é o mais bonito do mundo inteiro.

As saudades que a voz transmitia entraram pelos ouvidos do capitão-mor e foram-se juntar ao sabor delicioso dos cozinhados que aquele homem confeccionava como ninguém. A mistura fez nascer uma ideia que Vasco da Gama pôs imediatamente em prática como era seu hábito.

- Se assim é, vens connosco para a índia. E se prestares bons serviços a bordo, peço ao rei que te perdoe a pena e te deixe voltar a Gaia.

O homem arregalou-se com uma expressão estranhíssima:

- Não te agrada?

- A... agrada sim, meu senhor. Fiquei atarantado... a... em que nau é que vou...

- Na nau capitaina - disse Paulo da Gama risonho. - Tenho pena que não vás comigo. Mas o capitão-mor quer-te para cozinheiro de bordo na São Gabriel. Ainda não percebeste?

Ele limitou-se a acenar que sim.

- Vai buscar as tuas coisas - ordenou Vasco da Gama. - E segue no primeiro bote.

O homem recuou uns passos sem se atrever a virar as costas, fez uma vénia e ia a rodar nos calcanhares quando o capitão lhe perguntou:

- Como é que te chamas?

Não estando ali mais ninguém naquele momento, respondeu num tom audível:

- Januário, meu senhor.

Depois desandou para o casinhoto onde vivia a fim de juntar os seus poucos haveres.

A notícia de que o capitão ia levar um homem de Santiago para cozinheiro espalhou-se com a rapidez do vento. Orlando, que tinha ido recolher umas plantas para fazer chás destinados a dores de barriga, exultou. Também ele odiava as comidas de bordo, passariam a alimentar-se melhor.

Quanto a Manuel de Alcochete, entrou em transe. Se ia mais um homem, talvez ele pudesse ficar em terra a viver com a bela Zuleida. Tinha gostado tanto da ilha, da praia, da vida simples ao ar livre e sobretudo tinha gostado tanto da rapariga! E ela dele. Namoravam desde o primeiro dia, ambos apaixonadíssimos. Apesar disso não tinha coragem para pedir ao capitão que o deixasse ali. Circulando de um lado para o outro entre as casinhas de pedra, não encontrava palavras para expor o caso. Naquelas andanças viu o pequeno grumete Gaspar José a sair de uma cabana com ar furtivo. Trazia qualquer coisa escondida numa saca.

- Ó miúdo, que é isso? Roubaste alguma coisa? Gaspar José indignou-se

- Não senhor. Nunca roubei nada na minha vida.

- Então o que levas na saca?

- Um presente que me deu a Zulmira, a mulher do chefe.

- Nesse caso por que é que o escondes?

- Porque se o mostro não mo deixam levar.

A saca tinha um formato esquisito e pareceu a Manuel que remexia sozinha, mas depois pensou que tinha sido ilusão. Com certeza tratava-se de um brinquedo qualquer feito de cana ou assim.

- Não seria melhor pedires autorização?

- Nem pensar.

Afastando-se pela praia, acrescentou:

- Quando virem a minha saca, já havemos de estar no mar alto e não há remédio...

Aquela frase funcionou como um clique na cabeça do Manuel.

- É isso! - exclamou deslumbrado. - Ah grande miúdo que me ensinaste a solução!

Decidira de imediato esconder-se e não embarcar. Quando dessem pela falta dele já haviam de ir longe e com certeza não voltavam atrás para o buscar.

Delirante da vida, correu para a última casinha de pedra a gritar:

- Zuleida! Zuleiiiiida!

Ela apareceu à porta admiradíssima e ele então abraçou-a com força e disse-lhe ao ouvido:

- Fico cá na ilha a viver contigo. Esconde-me. Ou melhor, escondemo-nos os dois. Anda!

 

Os planos de Manuel de Alcochete resultaram em cheio e até se viram facilitados porque na altura do último embarque houve uma série de trocas resolvidas à pressa. Paulo da Gama sentiu-se maldisposto do estômago e o irmão resolveu dispensar-lhe Orlando. Paulo não queria, mas Vasco da Gama insistiu:

- Agora faz-te mais falta a ti do que a mim. Quando te sentires melhor, manda-o de volta num batel.

Orlando não ficou lá muito satisfeito por se separar da Ana e do João mas teve de obedecer.

- Não se rale, Orlando. Nós estamos óptimos e damo-nos bem com toda a gente - disse o João, contentíssimo porque acabava de saber que Álvaro Novo também mudava, o barbeiro ia para a Bérrio a pedido de Nicolau Coelho.

- Os meus marinheiros foram atacados por uma verdadeira praga de piolhos e não param de coçar-se - explicara.

- Quero que o Álvaro Novo lhes rape o cabelo e a barba para ver se aquilo passa.

- Ainda bem - remoera o João entredentes. - Assim não torna a pregar-nos partidas!

Por troca, Álvaro Velho foi convidado a instalar-se no quarto do Orlando.

- Vocês vão gostar dele - garantiu o Rui. - É muito calmo, simpático e passa a vida a escrever. Já me disse que anda a fazer dois diários. Um, sobre tudo o que acontece na viagem para depois mostrar. Outro, com notas pessoais e histórias inventadas, que não mostra a ninguém. Talvez nos deixe ler a nós. As histórias dele são muito giras.

Durante os primeiros dias da segunda etapa não houve novidade de maior. Corria o mês de Agosto, não fazia calor nem frio, os únicos entretenimentos foram uma baleia que passou ao largo lançando repuxos do seu corpanzil, aves com penas brancas voando em bando e outros espectáculos do género. Marinheiros e grumetes cantavam em coro e confraternizavam alegremente. A única excepção era o novo cozinheiro que se mantinha de parte, evitava conversas e só tirava o chapéu de palha para dormir. Em todo o caso contribuía para o bem-estar geral pois transformava feijão, favas secas, toucinho e azeite ou qualquer outro produto que o despenseiro lhe entregasse em pratos de comer e chorar por mais. Vários marinheiros tentaram falar com ele, gabá-lo, perguntar-lhe onde tinha aprendido a cozinhar assim, mas ele não dava troco.

- Deixem-no - aconselhava a Ana, convencida de que o pobre Januário talvez estivesse ali a pagar um crime que não cometera. Ou talvez transportasse no coração um grande desgosto de amor. - Não o macem. Ele quer estar sozinho, deixem-no sozinho.

A verdade é que, quanto mais Januário se isolava, mais curiosidade despertava. Sem percalços, vendo só mar e céu, a vida a bordo foi-se tornando monótona. Não podendo entreter-se a jogar às cartas, nem às damas, nem aos dados porque era proibido, vários marinheiros tinham resolvido apostar a dinheiro quem descobria o segredo que atormentava o espírito de Januário.

Um dia, depois de se deliciarem com uma feijoada particularmente saborosa, decidiram que chegara a altura de agir. E um tal Fernão Veloso, sempre pronto para o disparate, propôs que o agarrassem de surpresa para o levarem em ombros para o convés como herói, o herói dos petiscos.

A ideia agradou. Rui foi à despensa buscar ramos de louro para fazer uma coroa.

- Tiramos-lhe o chapéu de palha e enfiamos-lhe a coroa na cabeça.

- Boa - disse Abel José. - Eu preparo um pau para lhe pôr nas mãos como se fosse um ceptro.

- Além de herói, vamos chamar-lhe rei dos cozinheiros.

Ana não quis ser desmancha-prazeres mas pareceu-lhe que a brincadeira ia dar péssimo resultado. Aproveitou para se chegar ao David José e falou-lhe em privado:

- Talvez fosse melhor desistirem da brincadeira. O Januário anda tão macambúzio que não vai achar graça.

- Paciência - respondeu o David com um encolher de ombros. - Se ele não se divertir, divertimo-nos nós.

Ela ficou um pouco desiludida com aquela falta de sensibilidade e afastou-se decidida a não participar.

Januário acabava de arrumar os panelões quando se sentiu agarrado e levantado no ar. Aflitíssimo, pôs-se aos berros tentando segurar o chapéu com as duas mãos:

- Larguem-me! Soltem-me!

Escusado será dizer que em vez de o largarem, carregaram-no em ombros gritando:

- És o nosso herói!

- O príncipe da feijoada!

- Rei da comida! Vamos coroar-te!

Rui e Abel aguardavam com a coroa e o ceptro. Quando os outros sentaram o pobre do Januário em cima de um rolo de cordas, David arrancou-lhe o chapéu. Vendo-o de cara destapada arregalou-se de espanto, e logo a seguir atirou-se a ele ao murro e ao pontapé.

- Malandro! Malandro!

Os irmãos seguiram-lhe o exemplo e rebolaram todos pelo convés em grande pancadaria. Sozinho contra sete, Januário não se podia defender.

- O que é que vos deu? - perguntava o Rui atónito.

Fernão Veloso, que tivera a triste ideia de provocar o cozinheiro, achou-se na obrigação de tentar apartá-los, mas bastou aproximar-se para apanhar também. Então a Ana correu a chamar o mestre. Assim que ele apareceu e berrou «Parem já com isso» cessou a luta. Januário ficou prostrado, com a roupa em desalinho, a cara amassada de tanto murro, um olho prestes a inchar. O pequeno Gaspar chorava copiosamente. David, ainda a espumar de raiva, cuspiu para o lado pêlos da barba que lhe tinha arrancado com os dentes.

- O que vem a ser isto? - perguntou o mestre com uma voz fininha e cortante como metal. - Quero explicações e é já!

Abel, assumindo o seu papel de irmão mais velho, adiantou-se. Tremiam-lhe as mãos. Via-se que estava transtornado.

Antes de falar passou a língua pelos lábios e recolheu uma gota de sangue que rebentara na pele crestada do sol. Um silêncio pesado tomara conta da assistência.

- Este homem é um assassino. Matou o nosso irmão Cristóvão numa rixa na feira. Não o reconhecemos até hoje porque está diferente e andava com a cara tapada por aquele chapéu de abas. Mas foi ele quem matou o nosso irmão.

Januário ergueu-se visivelmente dorido. Sacudiu a roupa. Endireitou-se. Depois apresentou a sua versão dos factos.

- Foi uma briga. Ele podia-me ter morto a mim, fui eu que o matei a ele. Uma briga de morte porque o Cristóvão roubou-me a noiva nas vésperas do casamento. Estragou a minha vida, que não tem conserto.

Talvez a presença do mestre não chegasse para impedir que voltassem a envolver-se à pancada. Mas Vasco da Gama, alertado pelo burburinho, subira ao castelo da proa com Álvaro Velho a tempo de ouvir a conversa. E diante do capitão-mor nenhum se atreveria a levantar um dedo para agredir fosse quem fosse.

- Questão de saias - comentou Vasco da Gama. - Era só o que me faltava aqui. Ainda bem que não é permitido trazer mulheres a bordo.

Ana corou violentamente. Ninguém notou porque se encontravam suspensos à espera de uma decisão. Todos sabiam que brigas a bordo geralmente valiam castigos terríveis. Mas o motivo para se envolverem era forte. Que iria o capitão decidir?

Ele falou como um juiz:

- Este homem cometeu um crime e está a cumprir a pena. Compreendo o sofrimento de quem perde um irmão, mas não podem fazer justiça pelas próprias mãos em lado nenhum e muito menos aqui, estamos entendidos?

Os homens baixaram a cabeça. Vasco da Gama não se contentou com isso. Chamou o padre capelão, mandou-o erguer a cruz e ordenou que todos se ajoelhassem incluindo

o criminoso.

- Quero que jurem perante Deus que não se tornam a envolver em brigas. Nesta viagem precisamos de todos para chegar a bom fim.

Embora lhe obedecessem, percebia-se que a agressividade continuava no ar. Então, porque era inteligente e tinha verdadeiro talento para comandar homens, Vasco da Gama entendeu por bem despachar o cozinheiro para a nau São Rafael.

- Evito barafundas e o Paulo passa a comer melhor - comentou depois com Álvaro Velho, que já se encontrava de pena de pato a jeito para registar o incidente no seu caderninho de notas pessoais.

O mestre mandara dispersar. Havia tarefas urgentes que deviam realizar sem demora e, para os que estavam em período de descanso, inventou logo uma ocupação capaz de os deixar exaustos, de músculos doridos, sem vontade de arranjar trapalhadas.

- Quero que esfreguem o convés de uma ponta à outra com as escovas mais duras. Só param quando as tábuas ficarem sem o menor vestígio de sujidade.

João escapou ao martírio porque segundos antes se escapulira com o pequeno Gaspar para o porão onde dormiam. Tinha ficado cheio de pena dele e queria distraí-lo. Era um dos poucos a bordo que partilhava o segredo da misteriosa saca trazida da ilha de Santiago. Lá dentro viajara uma cadela pachorrenta e gordíssima com pêlo sedoso cor de areia e duas manchinhas castanhas, uma no focinho e outra na pata. Quase nunca ladrava, comia bastante e dormia imenso.

- Vamos ver como está a Salpica - propusera em voz baixa. - Anda, Gaspar. Temos de lhe dar água.

O rapaz seguira pela escada abaixo sempre a limpar os olhos. As lágrimas continuavam a escorrer-lhe pela cara num desgosto sem fim. Aproveitando encontrar-se a sós com o João, falou do Cristóvão e do dia terrível em que o vira caído no chão a sangrar por causa de uma mulher estúpida e má. Depois falou-lhe do pai, da mãe, do melro que deixara aos seus cuidados numa gaiola de arame e que tão bem cantava logo de manhã.

- Eu não devia ter vindo - soluçou. - Não gosto de andar embarcado. Quando voltar para Gaia digo logo ao meu pai que quero ser pastor. Quero andar no campo atrás das ovelhas!

As lágrimas escorriam agora a quatro e quatro. João não sabia o que havia de fazer, mas um latido suave veio ajudá-lo.

- Olha a Salpica. Está a chamar-nos!

Quando se agacharam para a retirar do esconderijo que lhe tinham arranjado entre sacas e trapos debaixo da prateleira que lhes servia de cama, tiveram uma surpresa. Salpica encontrava-se rodeada por uma ninhada de cachorrinhos. Tinha tido filhotes nessa manhã!

- Por isso é que estava tão gorda.

- E comia tanto.

Gaspar pegou num cachorrinho, todo castanho. João pegou noutro, de pêlo malhado.

- Que macios!

- Temos que ter cuidado para ninguém os descobrir.

Esquecido do choro, Gaspar alargou o esconderijo com gestos carinhosos.

- Ficam bem aqui. Não há-de haver problema. Este mais gordo vai-se chamar Bolota.

- E este? Malhadinho!

Os cachorros gemiam ao de leve e mordiscavam os

dedos do João.

- São tão engraçados. Mesmo que os descubram, não acredito que alguém tenha coragem de os deitar ao mar.

 

Claro que descobriram os cachorros e claro que ninguém os deitou ao mar. Toda a gente lhes fez a maior festa e até serviram para ajudar a distrair a tripulação porque durante muito tempo continuou a não acontecer nada de especial. Os marinheiros que subiam ao cesto da gávea bem se arregalavam com esperança de avistarem sinais de terra. Mas coitados, só viam de novo mar e céu, céu e mar, que monotonia. João andava aborrecidíssimo.

- Que dia é hoje? Que horas são? - perguntava constantemente aos homens encarregues de medir o tempo com um relógio de areia, uma ampulheta.

Eles respondiam-lhe com enfado:

- Não te serve de nada andares nesse desinço, havemos de chegar quando for a altura e ainda falta muito.

- Mas que dia é hoje? - insistiu.

- Estamos a 4 de Novembro, que é dia do Santo lá da minha terra.

Se eu fosse a ti, pedia a um santo que me desse paciência.

João encolheu os ombros e em vez disso foi pedir ao mestre que o deixasse subir ao cesto da gávea. O mestre hesitou.

- És muito novo e nunca fizeste esse serviço. Lá em cima abana que se farta.

- Não me importo. Eu preciso mesmo é de abanões, que estou a ficar uma lesma de tanto pensar.

O mestre riu-se.

- Bom, nesse caso sobe. Mas cuidado nas cordas, hã? Não quero acidentes.

Satisfeitíssimo, esfregou as mãos uma na outra e atirou-se às cordas.

- Afinal não é nada fácil - pensou, procurando não mostrar que subir por aquela espécie de rede suspensa arrepiava qualquer um.

- Tem cuidado! - gritou-lhe a irmã cá de baixo. Ele acenou-lhe como se estivesse totalmente à vontade e continuou a içar-se até ao posto de observação mais alto do navio, enfiando as mãos e os pés descalços nos quadrados da rede. Quando chegou lá acima entrou no cesto de cambalhota, endireitou-se, sacudiu a roupa, e passou a mão direita pela testa que pingava suor. Depois debruçou-se para ver o efeito da sua escalada. Lá em baixo não era só a irmã que lhe seguia os movimentos, era um magote de grumetes. Ainda nunca tinham sido autorizados a tentar aquela proeza, observavam-no com admiração, sobretudo os amigos. Gaspar José, com um cachorrinho ao colo, incentivava-o:

- Força, João! Força! És o melhor!

João ergueu os dois braços em sinal de vitória e logo a seguir berrou a plenos pulmões:

- Terra à vista! Terra à vista!

A irmã e os amigos ficaram passados porque pensaram que estivesse a gozar. O próprio mestre fez cara de caso porque a bordo não se brinca com coisas sérias. Mas no minuto seguinte o mesmo grito soava nos cestos da gávea das três naus:

- Terra à vista!

Vasco da Gama saiu dos aposentos e correu para a proa rápido que nem uma flecha. Os homens e a rapaziada acorreram também a debruçar-se do lado em que se avistava agora nitidamente um risco branco debruado de verdura que só podia significar terra. Onde estariam? Ninguém sabia, nem os pilotos. A única coisa certa era tratar-se de uma qualquer zona em África. Paulo da Gama tomou a iniciativa de festejar o acontecimento com tiros. As outras naus imitaram-no. E mesmo sem combinarem, içaram bandeiras e todos foram vestir a melhor roupa que tinham para celebrar o facto de porem o pé numa linda baía desconhecida. Naturalmente ansiavam por desembarcar. Vasco da Gama porém não os deixou.

- Calma. Nada de precipitações. Temos de escolher o melhor sítio para lançar as âncoras.

Conforme era costume, chamou o piloto e enviou um bote para verificar a profundidade da água e as condições de segurança. Orlando assistiu à operação com o interesse próprio dos cientistas. De vez em quando procurava a Ana e o João com os olhos e fazia acenos para a São Gabriel.

- Tem que se dar um nome a esta terra - lembrou Álvaro Velho. - Precisa de um nome para se inscrever no mapa.

- Fica Santa Helena - decidiu Vasco da Gama. - Baía de Santa Helena.

As palavras do capitão-mor foram abafadas por um burburinho exaltado. A terra era habitada! Na praia circulavam homens e mulheres escuros de pele e vestidos com peles de animais. Observavam as naus com espanto, pois nunca tinham visto homens brancos nem navios parecidos com aqueles.

- Deixe-me ir a terra já - pediu Fernão Veloso ao capitão com insistência. - Por favor!

- E a mim também! Deixe-me ir a mim - pediram várias vozes.

Mais uma vez o capitão teve que exigir calma.

- Eu vou desembarcar e levo comigo Álvaro Velho. Quanto aos outros, o mestre decide.

O mestre não fez a vontade a Fernão Veloso, preferiu mandar à frente os irmãos de Gaia.

- E nós? - perguntou o João desconsolado.

- Vocês, esperam.

Não foi longa a espera. Pouco depois saíam vários botes. Aquela tribo africana mostrou-se simpática e os primeiros contactos resultaram amistosos. Embora não falassem a mesma língua, entenderam-se por gestos e o capitão resolveu convidar um dos homens da tribo para ir a bordo.

- Quero mostrar-lhe ouro para ver se ele conhece - explicara.

O homem aceitou porque devia ser tão curioso como Fernão Veloso. E Vasco da Gama não lhe mostrou só ouro, mostrou-lhe também pérolas. Ele não reagiu, olhou para aquelas riquezas com total indiferença.

- Mostre-lhe canela - sugeriu Álvaro Velho. - Se aqui houvesse canela, era óptimo. Levávamos já um carrego. Se não conseguíssemos chegar à índia, já não se perdia tudo.

- Cala-te, Álvaro Velho. Isso não se diz nem a brincar. Mas tragam lá a canela.

O homem olhou a canela, cheirou-a, riu-se e devolveu-a sem lhe atribuir importância de maior. Depois comeu o que lhe serviram, aceitou os presentes e voltou para terra contentíssimo. Esta primeira experiência tornou os contactos ainda mais amistosos. Nos dias seguintes o vaivém de botes intensificou-se, marinheiros portugueses para terra, habitantes da baía de Santa Helena para as naus. A bordo ofereciam petiscos bem temperados por Januário. Em terra os portugueses experimentavam bifes de baleia e de lobo marinho assado na brasa e costeletas de gazela muito tostadinhas. Teria sido uma paragem amena e agradável, se não fossem as maluqueiras de Fernão Veloso. Como à beira-mar não havia casas, metera-se-lhe na cabeça que tinha de subir umas colinas e ir à procura da povoação onde aquela tribo vivia. O capitão não queria autorizar, mas ele tanto insistiu que acabou por levar a sua avante. João estava no ar para ir com ele. Orlando opôs-se.

- Nem penses. Eu hoje volto para a nau São Gabriel e quero que lá estejam tu e a tua irmã, entendido?

João, embora contrariado, obedeceu.

À tardinha o convés da São Gabriel encheu-se porque, como era o último dia que passavam ali ancorados, Vasco da Gama resolvera convidar o irmão, os outros capitães e os pilotos para um almoço de despedida. Como Nicolau Coelho decidira levar consigo Álvaro Novo em paga de ele ter livrado os marinheiros da praga de piolhos que os afligia, João ficou irritadíssimo e isolou-se. Encostado na amurada, de olhos postos nas colinas onde Fernão Veloso tinha desaparecido, remoía entredentes.

- Eu devia ter ido com ele em vez de ficar para aqui a aturar as baboseiras do idiota do Álvaro Novo. Se ele me torna a pregar alguma, nem sabe o que lhe acontece.

De súbito viu Fernão Veloso a correr desvairadamente. Descia as colinas em direcção à praia perseguido por vários homens da tribo que berravam de lanças em punho.

João deu o alarme imediatamente. E como a situação era de perigo, o próprio capitão meteu-se num bote com vários marinheiros armados para o ir salvar.

Os gritos continuavam:

- Socorro! Socorro!

Que se teria passado? Por que motivo pessoas tão amistosas se enfureciam assim?

Fernão Veloso entrou pela água aflito de braços estendidos para o bote. Mas apesar de o verem fugir, os habitantes da baía de Santa Helena continuaram furiosos e atiraram lanças na sua direcção atingindo o capitão e três marinheiros.

Os que estavam a bordo assistiram a tudo, espavoridos. Quando Vasco da Gama regressou a sangrar, receberam-no num silêncio consternado.

- Levem o capitão para os aposentos - ordenou Orlando. - Eu vou tratá-lo. Não se aflijam, que eu tenho o que é preciso. São ferimentos ligeiros.

A ordem foi imediatamente cumprida. A cara de Vasco da Gama estava crispada de dor mas não soltou um gemido. Quanto aos marinheiros feridos, berraram que se fartaram quando Álvaro Novo assumiu o papel de cirurgião-barbeiro e resolveu limpar-lhes as feridas. Com a sua única mão lavou o sangue e enrolou tiras de pano por cima da zona magoada, sempre a rir e a dizer piadas estúpidas que irritaram toda a gente. João teve ganas de lhe dar um estalo mas dominou-se. A comida arrefecia nos panelões, já ninguém tinha fome, estavam tristes. Fernão Veloso, envergonhado e arrependido por ter provocado distúrbios com graves consequências, não se calava.

- Eu só queria ver as casas da aldeia, não fiz mal nenhum.

- Alguma fizeste - pensavam os outros que o conheciam bem e sabiam de que maluqueiras era capaz.

Gaspar aproveitou a distracção geral para surripiar os pedaços de carne de gazela que os marinheiros tinham trazido na véspera e que Januário tão bem guizara para a festa de despedida. Comeu um naco e disfarçadamente deu outro à cadelinha Salpica que o engoliu quase inteiro com estalidos ruidosos de mastigação feliz.

O mestre viu perfeitamente mas fingiu não ver porque lhe achou graça. Depois chamou Veloso a sós para lhe ralhar:

- Não sei que broncas armaste, nem te pergunto porque não estou para ouvir mentiras. De qualquer modo espero que não se torne a ouvir falar de ti nesta viagem. Por tua causa está o capitão-mor ferido.

- Eu não queria arranjar problemas.

- Pois não os arranjes. Bem bastam os problemas que hão-de vir ter connosco sem nós os procurarmos.

De expressão severa, acrescentou:

- O piloto diz que não devemos estar longe do cabo da Boa Esperança. É uma zona de grandes tempestades. Sabe Deus o que nos espera...

 

Afinal quando passaram do oceano Atlântico para o oceano Índico o mar estava calmíssimo e o vento soprava na direcção certa. Os grandes rochedos do cabo da Boa Esperança tinham um manto de nuvens brancas por cima que faziam um efeito bonito, pareciam toalhas esvoaçantes sobre colossais mesas de pedra.

Gaspar José viajara debruçado, numa excitação, à espera do momento em que sairiam de um oceano para entrar no outro porque estava convencido de que havia grandes diferenças. A desilusão foi completa.

- Tanta coisa, tanta coisa e é tudo água azul de um lado e do outro.

- O que é que tu querias? - perguntou-lhe o João. - Um risco a dividir as águas?

- Não. Mas pelo menos... a... que fosse de outra cor.

João pegou-lhe na palavra quando um pôr do Sol esplendoroso tingiu a superfície líquida, primeiro espalhando manchas cor-de-rosa e depois pinceladas douradas.

- Estás a ver, Gaspar? Aqui no Índico é assim. À noite o mar muda de cor.

- Ora! O Atlântico também. João continuou na brincadeira:

- Há uma diferença importantíssima. No Atlântico as pinceladas desaparecem à noite. Mas no Índico, ficam. Amanhã vais ver o mar todo amarelo.

Gaspar franziu-se desconfiado:

- Como é que sabes?

- Sei porque me disse o piloto. Lembra-te que ele já aqui veio na viagem anterior, com o capitão Bartolomeu Dias.

David José aproximara-se e Gaspar lançou-lhe uma mirada interrogativa.

- É verdade?

- É - respondeu o irmão com um meio sorriso.

- Vocês estão-me a gozar.

- Talvez sim, talvez não. Amanhã logo tiras as dúvidas.

O miúdo encolheu os ombros e afastou-se para ir tratar dos seus cachorrinhos. Fingiu não acreditar, só que, no dia seguinte, foi o primeiro a levantar-se para ir espreitar a cor do oceano. Tinha sonhado que o João não mentira e que os navios deslizavam suavemente sobre ondas amarelas tão brilhantes como o ouro. E que na espuma rolavam pepitas e moedas que os marinheiros pescavam com redes gritando de alegria porque assim já não era preciso ir à índia, podiam voltar para casa! Ainda estremunhado, erguera-se de um salto e precipitara-se para o convés.

Então o sonho desfez-se pois as águas do mar estavam exactamente da cor do céu àquela hora matutina, um azul clarinho suave e bonito. Logo a seguir, porém, sentiu-se compensado pois foi ele o primeiro a ver o recorte do continente. Os marinheiros de serviço e o rapaz que ia no cesto da gávea tinham adormecido, portanto foi ele quem gritou:

- Terra à vista!

A tripulação acorreu logo em alvoroço. E o piloto reconheceu o sítio.

- Chegámos à angra que Bartolomeu Dias baptizou com o nome de São Brás.

Os navios ancoraram e Vasco da Gama aproveitou para chamar o Rui e mandá-lo à naveta que transportava mantimentos para ver como estavam as despensas. Rui levou o João com ele e voltaram ambos tristíssimos.

- Já não há quase nada para comer - disse o Rui erguendo a sua meia sobrancelha. - Duas pipas com biscoito ainda aproveitável, cinco sacas de fava seca e pouco mais. As outras pipas estão vazias ou têm restos de comida que cheira a mofo. Está podre.

- E o pior não é isso - acrescentou o João. - Há ratos por todos os lados. E ratazanas enormes!

Ana ficou horrorizada mas disfarçou, com medo de que desconfiassem, porque o nojo de ratos é muito típico das mulheres.

Vasco da Gama coçou a barba e ficou pensativo.

- Se calhar não vale a pena continuarmos com a naveta. Mesmo que se arranjem por aí alimentos transportáveis, não tornamos a encher aqueles porões.

Álvaro Velho e Orlando concordaram.

- Uma embarcação vazia não tem préstimo, só serve para nos atrasar!

- Pois é. Vou distribuir os marinheiros pelas três naus, § que bom jeito fazem.

- E abandona-se a naveta? - perguntou o João.

- Não. Nunca se abandona um navio.

- Então o que é que se faz?

- Queima-se. Temos que lhe pegar fogo.

A informação era de molde a incendiar o ânimo dos mais novos.

- Destruir é sempre mau. Mas às vezes é necessário - comentou Álvaro com a sua sabedoria de Velho. - E às vezes apetece, não é?

Várias cabeças jovens acenaram-lhe que sim. Irem para bordo da naveta com archotes em punho e pegarem fogo aos mastros, às cordas, às tábuas e depois verem as chamas ganharem força e irem devorando tudo num fragor, enquanto eles fugiam para os botes e remavam a toda a pressa com medo que lhes caísse em cima uma tábua a arder, soava a missão perigosa, missão de alto risco. E, porque não confessar?, missão sedutora, divertida.

Não faltaram voluntários para ir pegar fogo à naveta de mantimentos. E o espectáculo ultrapassou o que tinham pensado, porque como o fogo só pegou em força ao fim da tarde e se prolongou por uma boa parte da noite, assistiram àquilo que parecia impossível: uma fogueira de labaredas gigantescas em pleno oceano.

Os marinheiros permaneceram no convés a observar o fenómeno. E em terra, que algazarra. Os habitantes da zona correram até à praia com as suas flautas e tocaram e dançaram horas a fio. No dia seguinte a boa disposição era tal que se juntaram à beira-mar mais de duzentos homens, mulheres e crianças. Traziam com eles vacas, bois e carneiros. Para compensar a falta de mantimentos, Vasco da

Gama comprou-lhes um boi que mandou matar para comerem em bifes e nacos grelhados no espeto. De novo chamaram Januário para que ele usasse a sua arte de temperar e todos se regalaram com uma boa refeição. Não valia a pena guardar carne fresca porque com o calor daquelas paragens depressa se estragaria. Devoraram o boi até ao último pedacinho. Lamberam a gordura, roeram os ossos das costeletas e depois atiraram-nos ao mar num despique, a ver quem lançava para mais longe o seu projéctil.

Assim se compreende que, ao levantarem âncora, se sentissem realmente optimistas. A alegria, no entanto, pouco tempo durou. Álvaro Novo tinha voltado à São Gabriel e foi ele quem chamou a atenção para as nuvens pretas que se acumulavam no horizonte.

- Vamos ter borrasca da grossa.

Não se mostrava assustado, nem ele nem Fernão Veloso, que resolveu gabar-se de ter sobrevivido a muitas tempestades. Não contente com isso, descreveu tais cenas que, ao soarem os primeiros trovões, já os grumetes estavam em pânico.

- Depressa - gritou o mestre de cabelos revoltos e olhar esgazeado. - É preciso recolher as velas antes que a tempestade nos apanhe, senão rompem-se.

Os marinheiros treparam pelas cordas com a alma num susto. Ondas cada vez mais fortes faziam balançar as naus com violência e o céu abria-se em fogo. Riscos de luz, raios, clarões seguidos de estrondos pavorosos. Agora não era só o mar a mudar de cor, era a atmosfera que vibrava em tons de cinzento e roxo. Gaspar tremia de medo agarrado a um monte de cordas. Queria fugir para o porão mas não se atrevia a dar um passo receando escorregar pelas tábuas molhadas e ser cuspido borda fora.

A chuva pesada abatia-se sobre os homens, encharcando-os. A roupa pegada ao corpo dificultava-lhes os movimentos.

- Cuidado, João! Cuidado! - gritava a Ana espavorida por ver que ele tinha ido acompanhar os marinheiros na recolha das velas.

Nesse momento a nau inclinou-se tanto e tão perigosamente para a direita que o Orlando, debruçado no castelo da popa, desesperado por não saber dos companheiros, esqueceu as precauções e chamou em altos berros:

- João! Ana! Venham para aqui!

Nem eles nem ninguém o ouviu. Vasco da Gama tinha ido para junto do piloto, os outros homens estavam todos ocupados, ou nos mastros, ou no leme ou a tentarem manter o equilíbrio para salvar a vida. Vento rijo e vagalhões que pareciam muralhas de água erguendo-se para engolir a nau provocaram um clamor de aflição. Ana abraçou-se ao pequeno Gaspar. Tremiam os dois dos pés à cabeça e não despegavam o olhar dos mastros onde João e David se agarravam com unhas e dentes para não caírem.

- Ai!

- Cuidado...

Um remoinho gigantesco levantou a nau a uma altura incrível e fê-la voar como se fosse uma simples casca de noz.

- Vamos morrer!

Na volta embateram na superfície com estrondo medonho mas a nau nem rachou, nem virou. Ana e Gaspar desataram num choro convulsivo porque viram a nau de Nicolau Coelho desaparecer.

- A Bérrio foi ao fundo!

- E nós vamos a seguir... aiiiiiiii...

No porão, a cadela Salpica ladrava como louca e os cachorrinhos ganiam rebolando contra as tábuas do casco.

De repente, schlop! Caiu um homem ao mar.

Os gritos redobraram. Ninguém sabia quem tinha desaparecido nas ondas e de qualquer forma, mesmo que soubessem, nada podiam fazer.

A tempestade durou toda a noite e outros homens foram projectados borda fora perante o olhar impotente dos que se conseguiam manter mais ou menos seguros. João deixara-se escorregar pelo mastro e juntou-se à irmã. O Rui também estava ao pé deles. Sem notar, mantivera os dedos crispados à volta de uma côdea de pão duro que estava a roer quando a tempestade desabou. Só se deu conta da estupidez ao nascer do Sol.

- Olha! Andei para aqui toda a noite agarrado a isto! O céu continuava cor de chumbo mas o vento serenara e o mar também.

- A Bérrio! A Bérrio! - gritou o João apontando a nau, que afinal não se afundara.

- E os homens? - perguntava a Ana muito baixinho de coração apertado. - Caíram vários. Será que morreram todos?

Por entre as vagas emergiu uma cabeça, um corpo, alguém ainda vivo e agarrado a uma tábua. No entanto era óbvio que estava prestes a ficar sem forças.

- Quem é?

- Parece o meu irmão David - exclamou o pequeno Gaspar em pranto.

Nesse momento o náufrago largou a tábua e desapareceu.

- David! Salvem o meu irmão!

Mas quem se atrevia a enfrentar as águas ainda revoltas? Deixando todos de boca aberta, Álvaro Novo, o único que só tinha um braço, atirou-se de mergulho para ir em socorro de David.

O espanto foi de molde a petrificar marinheiros, grumetes, o próprio mestre e o capitão-mor. Que coragem! Sem conseguirem mexer um só músculo, fitaram a superfície líquida onde Álvaro Novo também desaparecera por instantes. Mas logo o viram emergir. Nadava só com as pernas. Servindo-se do braço válido mantinha David à tona. Abel José, ajudado pelos outros irmãos, fez descer imediatamente um bote e foi recolhê-los.

- Ele salvou-o? Ou o David está morto? - perguntava a Ana numa angústia.

Orlando acalmou-a. Dali já se via perfeitamente que o rapaz respirava. Os outros estavam a passar-lhe uma corda por baixo dos braços para que os da nau o pudessem içar.

- Salvou-se. Este Álvaro Novo realmente...

João não desfitava o incrível barbeiro que já considerara amigo e inimigo.

- Que tipo estranho - murmurou.

- Estranhíssimo - concordou o Rui. - A gente pensa que o conhece e ele está sempre a surpreender-nos para o bem e para o mal.

Viram-no regressar a bordo com o peito agitado por sentimentos contraditórios. Era impossível não o admirarem. Mas apeteceu-lhes bater-lhe porque ele, mal pôs o pé no convés, desatou a dizer idiotices.

- Para estas coisas é bom não ter um braço - gabarolou-se. - Sabem porquê? Porque se houver tubarões em volta não nos ligam. Preferem gente inteira, para terem mais que comer.

- Ó Álvaro Novo, deixa-te de patetices - ralhou Álvaro Velho. Mas tinha lágrimas nos olhos e abriu-lhe os braços orgulhoso.

- Dá cá um abraço ao teu tio!

No céu já menos carregado surgiu um arco-íris completo, perfeito, com os dois extremos mergulhados no mar que a pouco e pouco recuperara os tons de azul.

- O pior já passou - murmurou Orlando.

 

Depois da grande tempestade o sentimento geral a bordo era de tristeza e de preocupação. Tristeza, porque muitos marinheiros tinham caído ao mar e não fora possível encontrá-los. Preocupação, porque cinco dias depois tinham passado junto à boca de um rio que na viagem anterior Bartolomeu Dias baptizara com o nome de rio do Infante e esse era o último sítio de que havia informações.

- A partir daqui estamos em branco - disse Vasco da Gama aos homens reunidos no convés. - Não sabemos absolutamente nada, não fazemos a mínima ideia de como é o mar, se é aconselhável navegar com terra à vista ou se nos devemos afastar, se há bancos de areia, se há rochas, enfim, o que nos vale é trazermos connosco Pêro de Alenquer, o melhor piloto português.

O piloto sorriu mas sentiu-se na obrigação de prevenir:

- Eu também não sei o que vamos encontrar pela frente...

- Mas nós confiamos em ti. Deves ser o piloto mais sábio e mais viajado, trouxeste Bartolomeu Dias até aqui e hás-de levar-nos à índia.

João não resistiu a meter-se na conversa:

- Vai-nos levar à índia por mares nunca dantes navegados.

Orlando fulminou-o com o olhar. Não era costume os grumetes interromperem o capitão e o piloto.

- Cala-te! - ralhou a irmã com uma cotovelada.

- Não arranjes sarilhos.

Felizmente ninguém pareceu dar importância ao comentário.

- Mantenham-se todos alerta - pediu o piloto.

- E se virem alguma coisa que chame a atenção, procurem-me e digam-me. Mesmo que pareça uma estupidez, é preferível avisarem de mais do que de menos.

- Contamos com todos - reforçou Vasco da Gama.

- Para chegar à índia, precisamos de todos.

Ia mandar dispersar, quando o padre tomou a palavra:

- Aproxima-se o dia de Natal. Também gostava de contar com todos para fazermos uma festa a bordo. Vou dizer missa e gostava que cantassem em coro. Quem tiver boa voz, ou mesmo quem não tiver, pode participar. Logo à tardinha, ao pôr do Sol, juntem-se aqui ao pé do mastro grande para um ensaio.

A palavra Natal em vez de os alegrar lançou uma onda de tristeza sobre a tripulação. Que saudades horríveis de casa, dos pais, das mulheres, dos filhos. Gaspar teve que fazer um esforço tremendo para conter as lágrimas que lhe vinham aos olhos. E demorou a afastar para longe a imagem da mãe de volta do lume a preparar doces e fritos para eles comerem à ceia. Estando sozinha com o pai, faria na mesma doces e fritos?

Se calhar fazia, só para os dois. E havia de ler à luz da vela aquelas partes da Bíblia em que se fala do nascimento do menino Jesus, do anjo que guiou os pastores a Belém e da estrela que guiou os reis magos, como sempre lia antes de se deitarem.

Para se consolar, olhou os irmãos gémeos, Baltazar e Belchior, que remendavam uma vela conversando com Álvaro Novo, a quem agora tratavam como herói.

«Pelo menos tenho os meus irmãos» pensou. «Os outros grumetes, coitados, não têm ninguém.»

Os festejos de Natal realizaram-se no dia 25 de Dezembro, segunda-feira, com os navios a pairar no oceano Índico e à vista de terra.

Houve missa de manhã bem cedo. O coro, desafinadíssimo, cantou e voltou a cantar, primeiro cantigas de Igreja, depois canções de amor e por fim quadras um pouco atrevidas:

 

Maria, vi-te na feira

Quiseste vender-me queijos

Respondi com toda a gana

Só tenho fome de beijos.

 

Foi uma risota. E que saudades sentiram então os marinheiros de estarem num sítio onde pudessem arranjar namoradas! Os sete irmãos acotovelavam-se, cochichavam, recordavam outras festas. Os outros também tinham formado grupos. Só Januário se mantinha de parte, sozinho, feio e tão triste que fazia pena.

Ana queria aproximar-se e dizer-lhe qualquer coisa mas não sabia o quê.

- Cantem mais! - pediram várias vozes, incluindo as de Álvaro Velho, de Álvaro Novo e do mestre. - Cantem quadras que falem de raparigas para a gente animar.

Fernão Veloso, à sua maneira brincalhona, improvisou logo outra quadra:

 

Sonho contigo ao luar

Ó linda cabeça oca

Logo que a casa voltar,

Dou-te mil beijos na boca.

 

- Eii!

- Essa é boa, ó Veloso!

Talvez tivessem continuado a cantar até à noite, se não fosse o ventinho áspero que se levantou. O piloto deu imediatamente ordem para subirem ao mastro a fim de colocarem mais uma vela, uma vela pequena acima do cesto da gávea.

- Assim aproveitamos o vento e seguimos mais depressa.

O pior é que o mastro principal estava rachado. Tinha uma fenda enorme.

- Isto foi da tempestade.

- E agora?

Se o mastro partisse, que transtorno!

- A única solução é enrolar cordas a toda a volta - disse o piloto. - E rezar para que aguente até podermos ir a terra.

A ideia de subirem ao topo de um mastro rachado não era muito convidativa. Mas o Abel ofereceu-se, o João quis ir com ele e lá realizaram a operação da melhor maneira possível. Com o mastro «embrulhado» em cordas, seguiram viagem, pois naquela zona as correntes marítimas eram tão fortes que se tornava impossível desembarcar.

Nessa noite, quando os que não estavam de serviço já se encontravam deitados, Ana deu consigo às voltas na palha sem conseguir dormir. Sentia comichões horríveis pelo corpo todo, coçava-se, já tinha a carne arranhada e quase em ferida. Incomodada, levantou-se.

- Devem ser pulgas - murmurou.

- Ou percevejos - respondeu-lhe uma voz que não identificou logo.

Mas era o Rui, também ele às voltas com a bicheza que se instalara nas mantas nunca lavadas para não gastar água e na palha que há meses não era renovada. Levantaram-se os dois e subiram ao convés. A noite estava abafadíssima, sufocante mesmo. Nem ao ar livre se respirava bem! Abel, que estava de serviço, suava em bica, bocejava de cansaço e queixou-se:

- Odeio este turno da modorra. - Ficar aqui pasmado da meia-noite às quatro da manhã é uma tortura.

- Se queres vai-te deitar - disse o Rui. - Não tenho sono e fico na tua vez.

- E se o mestre se zanga?

- Eu depois falo com ele. Se preferes as pulgas e os percevejos, vai lá para baixo e bons sonhos.

- A minha pele é mais rija do que o coiro e devo ter o sangue azedo porque as pulgas não querem nada comigo - argumentou Abel.

Com um bocejo, despediu-se:

- Uá! Boa noite, Rui. E obrigado.

Ana viu-o desaparecer pela escada do porão com inveja por ele não interessar às pulgas. Estava mordida, com os braços numa lástima!

Arregaçou as mangas e cravou as unhas com toda a força na carne arranhando-se com fúria. De súbito, porém, sentiu-se observada e parou. Rui olhava o braço dela com surpresa. Que braço tão fino! Erguera a meia sobrancelha e parecia interrogar-se. A luz pálida da Lua derramava-se pelo convés e Ana apercebeu-se de que ele a fitava intensamente. Aflita, quis dizer qualquer coisa mas só lhe saiu um som desarticulado.

- Não vale a pena falares porque eu já sei tudo - declarou o Rui muito baixinho.

- Sabes tudo o quê?

- Sei onde te vi. E sabendo isso também sei o resto. Ela hesitou. Valeria a pena contradizê-lo, ou não?

Antes que decidisse, Rui esclareceu-a:

- Vi-te à porta da taberna da minha mãe. Ias levando com uma pipa em cima, não foi?

Não lhe respondeu nem sim, nem não.

- Fixei a tua cara porque te achei bonita. És uma rapariga linda, sabes?

A voz tornara-se muito meiga e ela sentiu um arrepio.

Talvez influenciados pelas brincadeiras da tarde, foram-se aproximando, aproximando e deram um beijo.

«Eu gosto é do David» pensou a Ana com o coração a bater muito. «Ou estarei enganada?»

A dúvida foi-se dissipando à medida que ele a agarrava e lhe pregava beijos atrás uns dos outros.

- Mil, pelo menos mil como disse o Veloso...

Já iam para aí no beijo quinhentos e setenta e oito quando ouviram passos no convés. Separaram-se logo às pressas. E, azar máximo, era o David. Também ele não conseguia dormir. Quando o viu, Ana corou até à raiz dos cabelos.

«Ainda bem que é de noite» pensou. «Assim ninguém repara.»

Para disfarçar, Rui fingiu que discutiam a falta de água.

- Amanhã vou ter de falar com o capitão. As pipas estão quase vazias. Se não formos a terra, havemos de passar muita fome e muita sede.

David ficou apenas um instante ao pé deles. Queixou-se de ter tido um pesadelo e seguiu para o varandim da proa.

- Vou ver se arejo os pensamentos.

De novo sozinhos, Rui e Ana entreolharam-se.

- Não contes nada a ninguém. Jura que não dizes que eu sou uma rapariga. E que não falas no assunto nem ao meu irmão, nem ao Orlando. Jura.

- Juro, numa condição.

- Qual?

- Explica-me por que é que tu, o teu irmão e o Orlando andavam vestidos com roupas riquíssimas e embarcaram fingindo que são pobres.

Pobre da Ana! Engoliu em seco à procura de uma desculpa aceitável. Como não lhe ocorreu nada, limitou-se a responder:

- Não posso contar a verdade. É um segredo, compreendes? Fiz uma promessa.

- A... com promessas não se brinca. Ela pegou-lhe logo na palavra:

- Pois não. Só te peço que não me faças mais perguntas.

- Então dá-me outro beijo.

- Agora, não. O David pode ver.

Empurrou-o de mansinho, afastou-se e tentou avaliar a situação.

No convés estavam dois rapazes de quem gostava, acabara de ser descoberta por um e deixara-se beijar sem saber se queria.

Apesar dos riscos, palpitava-lhe que ele voltaria à carga. No porão estavam as pulgas e os percevejos prontos para lhe atacarem a pele. Que fazer? Pareceu-lhe menos complicado enfrentar pulgas e percevejos. Correu então para a escada, desceu precipitadamente e deitou-se em cima das mantas com um suspiro longo.

- É perigoso. Se a notícia se espalha, o menos que me pode acontecer é levar chicotadas...

No entanto sorria. Porque no fundo, bem lá no fundo, sentia-se satisfeita. Assim com um namorado no activo e outro em lista de espera, a viagem ia ser bem mais divertida.

Durante quinze dias bem contados, Ana viveu como num sonho. Namorava às escondidas. Ela e o Rui usavam a despensa para encontros secretos e divertiram-se de facto imenso a conversar, a acarinharem-se e em cenas de beijos meigos. David ficara para segundo plano. Mas no dia 10 de Janeiro Ana voltou a ser sacudida por dúvidas. Aproximaram-se de terra. David foi quem lançou a âncora e quando o viu debruçado, de cabelos loiros ao vento, achou-o tão bonito que sentiu um estremeção dentro do peito.

«Estou confusa. Continuo confusa. Qual deles será que eu quero?»

Não teve tempo de aprofundar a questão porque o mestre escolheu-a para ir a terra com o Rui e com um tal Martim Afonso, que sabia várias línguas e podia tentar estabelecer contactos com o povo daquela zona. A saída foi giríssima e muito proveitosa. Conseguiram água, galinhas, milho, sal e outros produtos de que havia falta. Mas o melhor de tudo tinha sido o convívio com as pessoas da tribo que ali habitava. Eram tão simpáticas, tão alegres, tão acolhedoras, que até puderam ficar lá e dormiram uma noite nas cabanas da aldeia.

Antes de zarparem de novo, o capitão mandou Álvaro Velho registar no diário o nome que deu àquela terra.

- Terra da Boa Gente. Fica Terra da Boa Gente (1).

 

*(1) A Terra da Boa Gente é em Moçambique e hoje chama-se Inhambane.

 

Dali em diante navegaram com terra à vista. Tão próximo que podiam ver as árvores, cabanas, pessoas. Havia homens de tanga mas a partir de certa altura apareceram também indivíduos ricamente vestidos. As mulheres eram muito elegantes e usavam enfeites de metal retorcido. As crianças, brincalhonas, diziam-lhes adeus.

Alguns grupos meteram-se em canoas para se aproximarem das naus e verem de perto aquela estranha gente de pele branca e roupas diferentíssimas das suas. Quando o mar permitia, subiam a bordo e trocavam produtos com os navegadores.

Apesar daquela etapa estar a ser tão agradável, Vasco da Gama gostaria de seguir sem grandes demoras, mas o piloto lembrava-lhe todos os dias que era arriscado continuarem viagem com o mastro rachado.

- Ninguém nos garante que não volte a haver tempestade, não sabemos se estamos longe se estamos perto, é indispensável parar e arranjar o mastro, depois vamos mais descansados.

Ancoraram pois junto à boca de um rio onde as condições pareciam favoráveis.

- Vive aqui bastante gente, árvores não faltam, podemos obter madeira.

Conforme seria de prever todos os marinheiros e grumetes pediram ao mestre para serem os primeiros a desembarcar.

- Mande-me a mim. Por favor!

- Calma. Isto vai levar tempo, fiquem descansados que hão-de ir todos a terra.

Para maior confusão da Ana, o mestre escolheu-a a ela, ao David e ao Rui. Como não lhe apetecia nada ir no meio dos dois, ainda pensou dizer que cedia a vez ao irmão. Mas não pôde fazê-lo porque ao mesmo tempo saiu outro bote para onde o João desceu logo seguido do pequeno Gaspar, radiante. Obtivera licença para levar consigo o cachorrinho Bolota. Com eles ia também Januário e o intérprete Martim Afonso. Os dois botes dirigiram-se a terra lado a lado com os remadores a espicaçarem-se alegremente.

- Vamos chegar primeiro!

- Quem chega primeiro somos nós...

Rui aproveitou a distracção dos companheiros para afagar ao de leve o cotovelo da Ana. Ela encolheu-se e lançou-lhe um olhar de reprovação, mexendo os lábios para o advertir sem som.

- Está quieto. Os outros podem ver.

A cautela era oportuna. No entanto, verdade, verdadeira, o que ela não queria era que o David visse e percebesse, pois ainda não tinha resolvido com qual deles queria namorar. Rui, que não sabia nem sequer sonhava com aquelas hesitações, entendeu a mensagem como pura cautela e não tornou a fazer avanços.

Pouco depois os botes deslizavam já a raspar na areia do fundo. Saltaram todos para dentro de água e brindaram-se uns aos outros com respingos que até sabiam bem, pois estava um calor insuportável e a água do mar era tão morna como se tivesse sido aquecida ao lume.

As surpresas não se fizeram esperar. Pelo rio abaixo vinha uma canoa transportando dois indivíduos que vestiam túnicas de seda e usavam turbantes de cetim em cores vivas. Pela roupa e pela postura percebia-se que eram senhores importantes acompanhados pelos seus criados, esses envergando trajes de tecido grosseiro. Martim Afonso apressou-se a tentar estabelecer contacto. Os homens não falavam nenhuma das línguas que ele conhecia mas reagiram a algumas palavras em árabe e pronunciaram outras que Martim Afonso julgou entender. Além disso tornou-se evidente que eram comerciantes, pois traziam panos e outros produtos que expuseram para venda. Como também não mostraram estranheza perante o tamanho e a forma das naus portuguesas, Martim Afonso concluiu que eram mouros e estavam habituados a comerciar com gente vinda da índia.

- Isto é bom sinal, é bom sinal! Vou a bordo dar a notícia ao capitão. Daqui já não deve faltar muito, de certeza que estamos a chegar à índia.

Enquanto ele voltava à nau São Gabriel, Rui ocupou-se como de costume a procurar uma fonte de água doce onde pudesse encher as pipas e convidou a Ana a acompanhá-lo à outra margem do rio. Ela não quis ir.

- É melhor não, podemos dar nas vistas. Vai tu, leva o João que ele dá sempre jeito para estabelecer contactos amistosos.

Rui amuou.

- E tu? O que é que ficas aqui a fazer?

- O que for preciso.

Para evitar discussões virou-lhe as costas e dirigiu-se para junto de Januário, que tentava comunicar com um grupo de mulheres a quem queria pedir temperos. Elas riam muito, exibindo dentaduras invejáveis, dentes branquíssimos com aspecto de nunca terem tido uma cárie. Como Januário fez gestos a indicar «comer» elas perceberam e convidaram-no para ir a uma das cabanas. Vendo a Ana pasmada a olhar, convidaram-na também por acenos. Foi dessa maneira que Ana se livrou da situação embaraçosa em que se encontrava.

«Às vezes a pessoa tem que ficar sozinha para pensar», concluiu satisfeita por se ver livre dos dois rapazes que lhe interessavam. «Assim é melhor.»

Rodeada pelo mulherio que soltava gargalhadas cristalinas, assistiu à preparação de alguns petiscos picantes e saborosíssimos. Januário exultava.

- Hum... que caranguejo delicioso! Nunca comi nada tão bom.

Regalaram-se os dois. A variação de paladar fê-los comer de mais. De barriga cheia, debaixo de um sol ardente e a morrer de calor, foram invadidos por uma sonolência pesada.

- Apetecia-me dormir uma sesta.

- Também a mim. Espera aí que eu já organizo tudo - respondeu Januário, que decidira chamar a si a autoridade de cozinheiro. - Vou mandar para bordo um carregamento de caranguejos e umas sacas de temperos porque já percebi a receita. Logo à noite faço um verdadeiro banquete. E agora, enquanto eles carregam e não carregam, a gente finge que vai em busca doutras especialidades e pregamo-nos mas é a dormir dentro da cabana maior. A dona foi tão simpática, que com certeza não se importa.

De facto, não se importou, até ofereceu uma esteira a cada um. Estenderam-se ambos e adormeceram mesmo, apesar do calor e dos mosquitos incomodativos.

Enquanto eles se recompunham do inesperado festim, os companheiros continuaram numa azáfama a recolher água, mantimentos, a tratar do mastro partido. E saíram mais botes para deixar naquela terra amigável uma espécie de grande mastro em pedra, um padrão com as armas do rei de Portugal, que viajara na nau São Rafael.

- Fica aqui a assinalar a nossa passagem. Quem vir o padrão terá de lembrar-se de que os primeiros que por cá passaram vindos do oceano Atlântico, fomos nós, os navegadores portugueses - disse Álvaro Velho, que pouco depois, de volta à nau, escreveu no seu diário com uma pena de pato muito afiadinha «O padrão São Rafael ficou junto ao rio dos Bons Sinais».(1)

Nessa noite os caranguejos preparados por Januário «à moda do Rio dos Bons Sinais» cheiravam tão divinamente, que Paulo da Gama decidiu oferecer um jantar ao irmão na São Rafael. E como havia comida de sobra, convidou também Nicolau Coelho, os dois Álvaros, os pilotos, todos os marinheiros e grumetes que não faziam falta nas naus ancoradas. Ana invocou o facto de já ter experimentado aquele petisco e ofereceu-se para ficar de

 

*(1) Chamou-se rio dos Bons Sinais a uma das bocas do rio Zambeze que desagua em Quelimane, Moçambique.

 

serviço na São Gabriel. João foi com Orlando. Os sete irmãos de Gaia acompanharam-nos. Quanto ao Rui, depois de muitas hesitações, decidiu ir também com a intenção de arreliar a Ana porque achava que ela não lhe ligava o suficiente.

Quase sozinha a bordo, Ana passeou no convés de um lado para o outro. E arrependeu-se bem arrependida da sua decisão, pois na São Rafael soavam gargalhadas, cantorias, acordes musicais.

- O banquete está a ser divertidíssimo e eu, tão estúpida, não fui.

Para se consolar, lembrou-se de ir ao porão buscar os cachorrinhos e trouxe também a cadela Salpica a fim de os passear. Mas depressa desistiu, porque eles ficaram excitadíssimos, puseram-se a correr desvairados e o mais pequenino ia caindo por uma das aberturas da amurada. Se se precipitasse no mar, nunca mais o viam e o Gaspar, coitadinho, morria de desgosto.

Devolveu-os rapidamente à zona do porão onde viajavam e voltou para cima irritada consigo mesma:

- Fui uma estúpida, que estúpida que eu fui!

Poucas horas depois dava graças por não ter participado na festa. Vários homens regressaram maldispostos, a meio da noite gemiam com febre e ao amanhecer tinham as gengivas inchadas.

- Os caranguejos deviam estar estragados.

- Só pode ser. Aquele Januário é maluco e há-de acabar por nos envenenar a todos - disse logo impensadamente Álvaro Novo, que escapara à epidemia e cirandava de perfeita saúde fazendo uso da sua habitual palavra fácil. - Um cozinheiro destes dá cabo de qualquer armada.

Abel José, que sempre demonstrara o apurado sentido de justiça próprio de um irmão mais velho sensato e habituado a servir de juiz nos conflitos familiares, sentiu-se na obrigação de defender o inimigo:

- O Januário é um excelente cozinheiro. Se os caranguejos estavam estragados ele não sabia, não teve culpa.

Quem o ouviu, espantou-se. E o próprio Abel José se admirou por ser capaz de sair em defesa de um homem que tanto odiara. Compreendeu então que ao longo dos últimos meses a raiva contra ele se tinha esbatido. Não que lhe perdoasse a morte de Cristóvão, isso não. Mas, de facto, o tempo tudo vai apagando a pouco e pouco. E naquelas circunstâncias, vivendo um destino comum que ora proporcionava momentos felizes, ora trazia momentos de grande aflição, estabeleciam-se espontaneamente laços de solidariedade. Além disso Januário pusera a correr que estava arrependido, que a briga fora por causa de uma rapariga e que nenhuma rapariga, por mais bonita que seja, vale tanto como a vida humana.

- Enfim, é um desgraçado.

Orlando nunca se metia nas discussões de marinheiros. Desta vez, porém, apressou-se a dar razão a Abel José para livrar o pobre Januário da ira dos companheiros.

- Não o culpem. Eu sou médico e posso garantir que esta doença não tem nada a ver com os caranguejos.

Em privado com a Ana e o João explicara:

- O que eles têm é escorbuto. Aparece por falta de vitaminas, sobretudo por falta de vitamina C. Há muito tempo que não comem legumes nem frutas, o resultado é este.

- Então diga-lhes - pediu o João.

- Não posso. Lembra-te da regra de ouro para quem viaja no tempo: não é permitido revelar nada que altere a História.

João encaixou mal aquela norma, porque os amigos estavam cada vez piores. Na nau de Nicolau Coelho já tinham morrido dois marinheiros e um grumete. Ele vira descerem os corpos num bote para os irem enterrar nas margens do rio dos Bons Sinais. E não tardaria a haver muito mais enterros se não descobrissem o tratamento. Os gémeos Baltazar e Belchior, por exemplo, já tinham as gengivas tão inchadas que quase não lhes cabiam na boca. E o David, então, piorava a olhos vistos. Dois dias depois tinha também as mãos e os pés num estado miserável. Ana ouviu-o gemer com dores. Aproximou-se da prateleira onde ele dormia e pôs-lhe a mão na testa.

- Está a arder em febre.

Os olhos verdes brilhavam no escuro como os olhos de um gato mas tinha uma expressão alucinada. Chamou pela mãe, pelo pai, aparentemente não sabia onde se encontrava nem dava mostras de conhecer ninguém. Vendo que ele passava a língua pelos lábios secos Ana foi buscar água. Deu-lha a beber, depois encharcou um pano e passou-lho pela testa, pela cara, com gestos carinhosos. Atrás dela alguém chamou de surdina.

- Ana!

Pensando que era o Rui virou-se em sobressalto. Mas era o irmão. Tinha ido a terra e trazia escondidas na roupa várias peças de fruta.

- Olha o que eu arranjei. Dá-lha.

- A... se o Orlando sabe... achas que...

- O que eu acho é que qualquer grumete se podia ter lembrado de ir buscar fruta porque é refrescante. Aliás lembraram-se de certeza, se não morriam todos e não se chegava à índia. Portanto não fui o único a ter esta ideia.

Só há uma diferença, eu sei que funciona como remédio. Vá, dá-lhe, Ana.

David, no seu delírio, arregalou os olhos, captou a última palavra e repetiu:

- Ana... Ana...

- Pschiu! - ordenaram os dois irmãos em coro. - Cala-te!

Nervosíssimos, descascaram a fruta e deram-lhe pedaços pequenos para ele não se engasgar. A seguir o João foi ocupar-se do pequeno Gaspar, que também estava péssimo.

Ana ficou ali para ver se o doente recuperava e se tinha percebido ou não que ela era rapariga.

David manteve-se entre o cá e o lá, meio a dormir, meio desperto. Quando por fim abriu os olhos e a fitou de forma consciente, agarrou-lhe a mão e murmurou:

- Ana... eu já desconfiava que eras rapariga.

- Não digas nada a ninguém senão vou ter problemas. Não contes nem aos teus irmãos.

- Está bem. Mas diz-me uma coisa, mais alguém sabe? Ou sou só eu?

Ana engoliu em seco e optou por mentir descaradamente:

- Além do Orlando e do João, só tu é que descobriste a verdade.

- Ainda bem - respondeu ele apertando-lhe a mão com força. - Ter aqui uma rapariga tão bonita ao pé de mim ainda me parece um sonho. Vais ver que fico bom num instante e depois peço-te para namorares comigo às escondidas, está bem?

Ana não respondeu, mas não resistiu a fazer-lhe uma festa na bochecha. E pensou: «Estou a arranjar lenha para me queimar...»

 

O escorbuto levou tantos homens da tripulação que a bordo chegaram a recear um desastre completo.

- Vamos morrer todos, não se salva ninguém - lamentava-se Januário, a quem o inchaço nas gengivas tinha feito cair mais um dente. - Estamos perdidos!

Mas não estavam. Porque já não era só o João a distribuir fruta. Ana e outros grumetes fizeram o mesmo e foi isso que ajudou alguns doentes a ultrapassarem a crise.

Quando o David se pôs de pé e retomou as suas actividades, Ana começou a ser perseguida por ele e pelo Rui. Ambos se consideravam seus namorados. Sem saber como resolver a questão, passou a andar sempre colada aos calcanhares do mestre.

Antes de partirem do rio dos Bons Sinais, soube-se que era necessário redestribuir os tripulantes pois havia falta de gente na Bérrio.

- Nicolau Coelho precisa de marinheiros para substituírem os que morreram de escorbuto e como os nossos grumetes já aprenderam o ofício, vou mandar para lá alguns - disse o mestre. - Depois, mais adiante, fazem-se novas trocas conforme der jeito.

Enquanto escolhia e não escolhia, Ana puxou o irmão de lado e convenceu-o a oferecerem-se.

- É uma experiência gira. E estamos uns dias longe de Orlando, que anda sempre a vigiar-nos.

João hesitou mas acabou por ceder e mudaram-se para a Bérrio. No dia seguinte levantaram âncora. Ana sentiu um alívio tal que até a ela fez confusão.

«Estou fartíssima de guardar segredo e apetecia-me que alguém descobrisse que sou mulher. Agora há dois que sabem e eu, em vez de ficar contente, fugi da nau a sete pés. Uma pessoa não se entende a si própria...»

Claro que não acrescentava aos seus pensamentos uma verdade simples: o problema não era haver dois no segredo, era ter resolvido namorar com ambos.

«Enfim, temos é que andar para a frente.»

O vento, soprando nas velas, fez-lhe a vontade. Capitães e pilotos tinham sido informados pelos homens do rio dos Bons Sinais que adiante encontrariam uma ilha rica e bonita, cheia de gente, onde podiam comerciar. E de facto, poucos dias depois, navegavam numa zona de ilhas magníficas. A maior e talvez a melhor era a ilha de Moçambique, separada do continente por uma espécie de canal. Nicolau Coelho foi o primeiro a dirigir-se para lá. Os baixios iam fazendo encalhar a nau, partiu-se um leme, mas tanto a Bérrio como a São Gabriel e a São Rafael acabaram por ancorar junto de um porto animadíssimo. Mal lançaram âncora, receberam a visita de alguns habitantes da ilha. Eram homens fortes, bem constituídos.

Vestiam roupas de algodão e linho às riscas de várias cores e usavam turbantes e chapéus de seda enfeitados com fios de ouro. Falavam um género de árabe, para alegria de Martim Afonso, que, sendo assim, podia servir de intérprete.

- Eles perguntam se queremos comerciar. Estão interessados em comprar-nos panos vermelhos.

- E o que oferecem em troca? Vê lá o que oferecem em troca.

A resposta deixou toda a gente siderada.

- Ouro, prata, jóias, pimenta...

Martim Afonso não pôde terminar porque Vasco da Gama se virou para o irmão e para Nicolau Coelho, contente e ao mesmo tempo preocupado.

- Se estes homens percebem árabe é porque têm contacto com os mouros. E se têm os produtos da índia, devemos estar realmente muito perto.

A conclusão representava uma surpresa cheia de contradições. Era óptimo pensar que a viagem de ida estava quase a chegar ao fim. Por outro lado, havia que proceder com mil cuidados, pois os comerciantes mouros com certeza não iam aceitar pacificamente a chegada de concorrentes estrangeiros.

Os capitães estavam reunidos na Bérrio, discutiram o assunto e Vasco da Gama considerou que o melhor seria agir com diplomacia. Marcou encontro com o chefe local, o sultão. Deu-lhe presentes, contou-lhe a verdade sobre a viagem e pediu um piloto que o levasse à índia.

- Preciso de alguém que conheça a melhor rota e estou disposto a pagar seja o que for. Faça um preço.

O sultão concordou e o preço acordado foi de trinta moedas de ouro, meticais de ouro.

Condições aceites, subiram dois pilotos mouros para as naus. Só que, pouco depois, um deles fugiu. Vasco da Gama, furioso, resolveu ir ele próprio no encalço do fugitivo e Nicolau Coelho foi também.

Quando os dois botes seguiam para terra, apareceram várias canoas cheias de homens com arcos e flechas.

- Querem matar o capitão! Querem matar o capitão! - gritaram os marinheiros em pânico.

Paulo da Gama estava na Bérrio, correu para a amurada aflitíssimo e não perdeu tempo.Vendo que realmente havia perigo, mandou soltar as velas para ir em socorro dos companheiros e ordenou aos homens que disparassem os canhões.

«Caboum... Boum...» O estrondo, seguido de nuvens de fumaça, funcionou de maravilha, pois os homens das canoas remaram logo para terra e desapareceram dali. Vasco da Gama e Nicolau Coelho voltaram às naus.

- Vamos embora! Vamos mas é embora e depressa. Esta gente não é de confiança.

Mais uma vez o vento ajudou. Partiram, com os homens bastante atarantados devido aos últimos acontecimentos. Na Bérrio então, multiplicavam-se os motivos do alvoroço, porque o Rui e o David tinham conseguido transferir-se para lá.

Quando a Ana os viu, ficou verde. E antes que puxassem outras conversas pôs-se a falar do ataque.

- Aqueles tipos da ilha de Moçambique são esquisitos. Atacaram sem motivo, que a gente não lhes fez mal nenhum.

- Devem ter sido ideias do Sultão - respondeu o David. - Ele pareceu-me falso.

- Porquê? - perguntou o Rui.

- Porque sorria com a boca e não sorria com os olhos. Isso é sinal de falsidade.

Ana virou-lhe as costas, porque receava ter na cara uma expressão do género. Para se afastar dos dois pretendentes que começavam a chateá-la de tanto a perseguirem, subiu ao castelo da proa e foi encostar-se à amurada. A São Gabriel navegava lado a lado com a Bérrio e ela pôde ver perfeitamente o piloto mouro que também ia encostado à amurada. Num relance, pareceu-lhe que a frase usada pelo David encaixava naquela cara morena e viva: «Sorri com a boca e não sorri com os olhos.» Seria próprio daquela gente rir assim, ou tinham um traidor a bordo?

O piloto mouro fazia-se prestável. Quando avistaram uma cidade, desmultiplicou-se em explicações.

- É Mombaça, uma cidade estupenda. E vivem lá cristãos. Podem desembarcar à vontade!

Martim Afonso ia traduzindo o que ele dizia. Mas achou insistência a mais e resolveu alertar Vasco da Gama para uma hipótese de cilada. Álvaro Novo fez coro com ele.

- Este piloto mouro é um fala-barato. Ouça o que eu lhe digo, capitão.

Abel José nada disse mas concluiu em pensamento: «Um fala-barato reconhece sempre outro fala-barato,

mesmo que não entenda a língua...»

As desconfianças eram gerais. E redobraram, quando

o rei de Mombaça mandou levar de presente a bordo um

carneiro, cestos de laranjas, pedaços de cana-de-açúcar e

um anel em sinal de paz.

- Que exagero. Não há motivo nenhum para nos receberem assim...

O capitão não precisou de pensar muito para decidir.

- Não desembarco eu, nem desembarca ninguém.

Chamem o Januário e outro degredado. Vão eles a terra ver o que se passa. Se voltarem, é mais um serviço que prestaram ao rei, mais uma razão para lhes serem perdoados os crimes. Se os matarem, paciência. Tinham sido condenados à morte, cumpre-se a pena.

Januário apresentou-se. A seguir veio um tal Francisco, de alcunha O Ranhoso, que era natural do Algarve e tinha tentado roubar um cálice de ouro da igreja de Silves.

- Preparem-se. Chegou a hora da vossa grande missão. Se não morrerem, ficam já perdoados.

Os dois homens mediram-se de alto a baixo com um olhar peculiar. Mal se conheciam porque tinham viajado sempre em naus diferentes. Aquela missão unia-os de forma inesperada e estranha. Um assassino de Gaia já arrependido do acto terrível que cometera por amor. Um ladrão do Algarve que assaltara uma igreja por cobiça mas que, se soubesse o que o esperava, teria de boa vontade golpeado as próprias mãos até sangrar para evitar o castigo. Seriam capazes de formar equipa? Se os atacassem, desandava cada um para o seu lado? Ou uniam-se para enfrentar o inimigo em conjunto? Nenhum saberia responder àquelas perguntas, que aliás ficaram sem resposta porque ninguém os atacou. Januário e o Ranhoso foram recebidos como príncipes no palácio do rei de Mombaça. E de volta às naus queriam contar tanta coisa que até gaguejavam.

- O palácio tinha quatro portas e quatro porteiros!

- Cada qual... com seu punhal! Vocês haviam de ver, um luxo.

- E cristãos? Havia? - perguntava um coro de vozes com insistência. - Havia cristãos?

- Não temos a certeza - disse o Ranhoso. - Mas talvez sim por causa de um desenho que nos mostraram.

- Uma cruz?

- Não. O desenho representava o Espírito Santo - explicou Januário abrindo muito a sua boca desdentada.

- Pois - concordou o Ranhoso, que depois daquela inquietante passeata se sentia próximo e amicíssimo do cozinheiro. - O desenho era uma pomba. E uma pomba só pode representar o Espírito Santo, não é?

Álvaro Novo abanou a cabeça e esboçou um sorriso de troça.

- Onde é que descobriste isso, ó Ranhoso! Foi na igreja de Silves?

Os outros largaram à gargalhada e o Ranhoso ficou fulo. Não percebia porquê, mas sentia que estavam a gozá-lo.

Januário interveio em defesa do amigo.

- Eu também pensei o mesmo. Mostraram-nos a figura da pomba com tanto respeito que pensámos ser uma imagem do Espírito Santo. Mas se o capitão me der licença eu tiro a história a limpo com azeite.

- Com azeite? - perguntaram várias vozes em coro.

- Artes de cozinheiro - disse Januário. - Tragam aqui esses rapazes mouros que subiram connosco a bordo. Chamem o intérprete e deixem-me acender o lume que eu já lhes conto uma cantiga das boas...

Talvez o piloto mouro tivesse percebido o que ia passar-se, porque se atirou ao mar e fugiu. Enquanto isso, Januário deitava pingas de azeite a ferver no braço dos outros mouros e garantiu-lhes que deitava muito mais se não contassem a verdade a respeito do encontro em terra. Eles acabaram por confessar tudo.

- Em Mombaça já se sabia que vinham aí estrangeiros de muito longe.

Foram os mercadores da ilha de Moçambique que mandaram avisar. E como os mercadores não querem concorrência nos negócios da índia, estava tudo preparado para vos atrair a terra e para vos matar - disse um.

- A pomba era uma cilada - disse o outro.

Logo que Martim Afonso traduziu as confissões, gerou-se um burburinho e os dois mouros aproveitaram para fugir. Lançaram-se borda fora, de mergulho, e ninguém mais os viu.

- Não restam dúvidas de que esta paragem não nos convém - concluiu o capitão. - O melhor é levantarmos âncora logo que for possível.

O piloto torceu o nariz.

- Temos de concertar velas e fazer reparações no madeirame, é trabalho para dois ou três dias.

- Nesse caso, quero vigilância permanente e não desembarca nem mais um marinheiro.

A certeza de que havia inimigos na zona deixou as tripulações bastante inquietas. Não eram só os homens encarregues da vigilância que lançavam olhares desconfiados a todas as canoas que circulavam na zona, os marinheiros encarregues dos arranjos de vez em quando paravam de trabalhar e punham-se à coca com a alma num susto.

- Não viemos até aqui para cairmos numa ratoeira...

- Eles que se atrevam...

Particularmente ansiosos andavam o Rui e o David, porque se sentiam na obrigação de proteger a Ana. E não entendiam por que raio ela, em vez de agradecer, reclamava pedindo que a deixassem em paz. As breves tentativas de diálogo acabaram por chamar a atenção do João, que não precisou de grandes vigilâncias internas para perceber o que se passava. Furioso, chamou-a de parte e ralhou.

- Olha lá, que sarilhos é que tu queres arranjar? Ela fez-se de parva.

- Eu?

- Sim, tu. Para que é que disseste a estes dois tipos que és rapariga?

Ana encolheu os ombros e desviou a vista.

- Eu não lhes disse, eles é que descobriram.

- E tu confessaste, mas devias ter negado.

- A...

- Já pensaste a bronca que rebenta se eles espalham a notícia?

- Eles prometeram não dizer nada a ninguém.

- Em troca de quê? - perguntou-lhe o irmão com fúria crescente. - Beijinhos, é?

- Ora, João!

- Pois parece-me que sim. Fizeste esse estúpido negócio e eles agora querem cobrar, por isso é que não te largam.

- Então ajuda-me, em vez de me chateares. Se andares sempre comigo, já não temos problemas.

João resmungou mas aceitou a proposta porque era a única solução que lhes convinha. A partir daí grudou-se à irmã dia e noite. E na noite seguinte, quando já tinham descido ao porão para dormir mas ainda estavam acordados, começaram a ouvir um ruído inesperado «rec rec rec...»

- Que é isto? - perguntou o David, que se tinha instalado perto.

- Deve ser um golfinho a raspar nas cordas da âncora - respondeu o Rui, que também se instalara na mesma prateleira.

- Não sei. Ora ouçam.

O rec rec... continuava a espaços tão regulares que o João estranhou.

- Parece alguém a serrar. É melhor irmos ver o que se passa. Vou subir ao convés.

Vendo que os outros se preparavam para o acompanhar, virou-se para a irmã e ia a dizer «Ó A...», mas travou a língua a tempo. Mesmo sabendo que já havia dois dentro do segredo, preferiu calar-se com medo que mais alguém ouvisse.

- A... olha, se quiseres fica cá em baixo, eu vou com o Rui e o David ver o que se passa.

- Eu também quero ir - disse ela enfiando o barretinho vermelho até às orelhas. - Subam à frente que eu vou atrás.

Ainda a Ana não tinha posto a cabeça de fora, já os rapazes estavam aos berros.

- Socorro!

- Sabotagem!

- Inimigos à vista! Assaltantes!

A tripulação acorreu no maior alvoroço.

- Aonde? - perguntavam. - Aonde estão os assaltantes?

- Ali! Olhem ali!

Ali, era nas cordas. Não um golfinho, mas vários mouros a tentar cortar as cordas. Percebendo que tinham sido descobertos, fugiram a nado para duas canoas deixadas ao largo.

- Malandros! Malandros! - gritaram da Bérrio.

- Se não fosse o capitão proibir-nos de desembarcar, vocês iam ver do que a casa gasta!

Ao lado, na São Rafael, rebentou igual burburinho porque um grupo de mouros atrevera-se mesmo a subir a bordo.

Já se encontravam pendurados no casco e preparavam-se para fazer sabe Deus o quê. A gritaria afugentou-os. Apesar disso, naquela noite nenhum marinheiro e nenhum grumete voltou para os porões. Conversando sobre o caso, passearam no convés de um lado para o outro, sempre de olhos bem abertos, até ao nascer do Sol.

- Esta gente é tramada. Temos de ir embora...

Dois dias depois zarparam finalmente. Satisfeitos apesar de tudo, porque todos os que ainda tinham as gengivas inchadas do escorbuto recuperaram a saúde.

«Mombaça é terra de malícia e traição», escreveu Álvaro Velho no seu diário. «Mas os ares são tão bons que os nossos doentes recuperaram a saúde.»

Orlando estava com ele, sorriu e nada disse, mas pensou:

«Puro engano. Não foram os ares, foram os frutos, as laranjinhas oferecidas pelo traidor é que serviram de remédio!»

Verdadeiros amigos só encontraram em Melinde, onde foram recebidos por um rei elegantíssimo e honestíssimo. Usava trajes em seda e cetim e aos ombros uma capa verde espampanante. Fazia-se acompanhar por pagens que anunciavam a sua presença tocando cornetas de marfim e tambores.

Toda a gente ficou encantada com ele, com os súbditos que se exibiam a cavalo galopando à beira-mar e sobretudo com a beleza da terra. Ainda por cima a povoação tinha uma particularidade: casas caiadas de branco. Ora casas caiadas de branco lembravam as aldeias de Portugal.

- Escreva lá no diário que Melinde parece Gaia - pediram os sete irmãos a Álvaro Velho.

- Parece-se é com o Barreiro - garantiu Álvaro Novo.

- Pois a mim, embora seja mais pequena, esta povoação lembra-me Lisboa - disse o Rui. - Escreva lá no diário «Melinde parece Lisboa».

Os pedidos não ficaram por ali. Nas casas brancas cada um via a sua terra. É Sines. É Lagos. É a Nazaré. Ora, ora! É tal e qual Caminha, a minha vila adorada.

Álvaro Velho, para não contentar uns e descontentar outros, decidiu:

- Pois vou escrever que se parece com Alcochete, que é a terra do nosso rei D. Manuel I.

Contra aquela decisão ninguém se atrevia. Quando se afastaram dali, lançaram às casas caiadas de branco um olhar comprido cheio de saudades, não daquela terra onde tinham estado apenas nove dias, mas das aldeias, vilas e cidades de onde tinham partido há quase um ano!

Levavam a bordo um piloto mouro que o rei cedera da melhor vontade e que tinha ordens para lhes indicar o caminho certo de Melinde até à índia.

 

- Há vinte e três dias bem contados que não avistamos terra - suspirou o mestre.

João suspirou também. Tinha voltado para a nau São Gabriel com a irmã e nenhum dos dois se podia dar ao luxo de descansar. Com a morte de tantos companheiros, havia poucos braços disponíveis. Trabalhavam horas seguidas sem parar.

- Doem-me as mãos de tanto puxar cordas - queixou-se. - E sinto-me uma ilha ambulante assim rodeado de água por todos os lados, até pela cabeça.

De facto, chuvadas é que não tinham faltado. Já nem despiam a roupa para a secar ao vento, deixavam-na enxugar no corpo. E arrastavam-se pelo convés transportando impaciência e mal-estar.

- A água está intragável.

- E a comida? Só o cheiro dá vómitos.

Para tentar resolver o problema da alimentação, o mestre resolveu fazer novas trocas de marinheiros e chamar o cozinheiro Januário para a nau São Gabriel. Talvez ele conseguisse dar um sabor aceitável aos produtos envelhecidos, semiapodrecidos, a cheirar a mofo. Antes, porém, chamou Abel José e exigiu-lhe que se responsabilizasse pela paz a bordo.

- Sei que tu e os teus irmãos têm motivos fortes para o detestar, mas não quero confusões, hã?

- Fique descansado. Já passou muito tempo, aconteceu tanta coisa, que para nós este Januário já não tem nada a ver com o homem que se envolveu numa rixa de feira.

- O assunto está esquecido?

- Esquecido nunca estará. Mas ainda ontem conversámos os sete e concordámos que o melhor é fingir tratar-se de outra pessoa. E na verdade achamos que ele já é outra pessoa.

- Bom, então vejam lá se continuam com esses bons pensamentos até ao regresso.

Com Januário regressou também o Rui, porque naquelas circunstâncias parecia conveniente manter juntos o cozinheiro e o despenseiro. David regressara uns dias antes e a Ana voltou a ver-se a braços com dois candidatos. Desta vez o que lhe ocorreu foi conseguir ser chamada para prestar serviço junto do capitão. Orlando pensou que o pedido se devia ao facto de ela não aguentar os trabalhos pesados dos marinheiros e tratou de lhe arranjar o lugar, Sendo assim, Ana passou a viajar quase sempre no castelo da popa e, mesmo quando podia vir para baixo, não vinha. O irmão e os pretendentes acenavam-lhe de longe. Ela correspondia, fingindo-se muito ocupada. Estavam precisamente nesse jogo de acenos quando o rapaz que viajava no cesto da gávea gritou:

- Terra à vista!

Desta vez o grito funcionou como um choque eléctrico, pois só podia tratar-se da índia. A reacção foi a mesma nas três naus, correram todos para a amurada. Capitães, pilotos, marinheiros e grumetes abandonaram o que estavam a fazer e debruçaram-se em magote, arregalados para o recorte de uma montanha verde próxima e distante, que lhes parecia real e ao mesmo tempo miragem.

- É a índia? - perguntou Martim Afonso ao piloto mouro.

Como ele acenou que sim, uma forte comoção tomou conta dos homens.

Há anos e anos que se falava naquela terra longínqua, misteriosa e rica. Príncipes, reis, rainhas, sábios, navegadores, gente importante e gente comum sonhara com o dia da chegada tão desejada e sempre adiada. E afinal a alegria de realizar esse sonho antigo seria deles e só deles.

Esquecendo trabalhos, tristezas, tempestades, doenças, mortes, aflições, sondavam o horizonte em busca de sinais das maravilhas mil vezes descritas e outras tantas imaginadas, que se encontravam ali, quase ao alcance da mão, num qualquer recorte da montanha verde.

O recorte que os olhos procuravam existia defronte da cidade de Calecute. Prudente como sempre, Vasco da Gama tornou a chamar os degredados para enviar um deles a terra a ver o que acontecia. O Januário e o Ranhoso ficaram de parte, porque já tinham sido perdoados. A escolha acabou por recair num tal João Nunes que ainda não desempenhara nenhuma missão. Quando ele partiu, a expectativa a bordo cresceu.

- O capitão devia-me ter mandado a mim - reclamou o Álvaro Novo. - Sou mais velho, dou sorte e trazia-lhe boas notícias.

Vasco da Gama riu-se.

- Por agora contenta-te em ser barbeiro. Quero toda a gente apresentável, de barba aparada e cabelo cortado. Começas por mim e depois corres tudo a eito.

Ele não se fez rogado. Apresentou-se logo de tesoura e navalhas em punho, pediu que lhe arregaçassem a manga e trouxessem uma tigela com água e um pedaço de sabão. Instalado no convés, meteu mãos à obra. Os pêlos da barba e os tufos de cabelo iam caindo pelo chão e, como não estava vento, acumulavam-se à volta da pipa que funcionava como cadeira de barbeiro. Quando acabava de tosquiar um dos homens, Álvaro Novo chamava outro:

- O seguinte! Vamos lá que se faz tarde! - E tchep... tchep... tchep..., mais tesouradas, mais tufos no chão. O pequeno Gaspar olhava aqueles despojos com interesse. Madeixas loiras, pretas, ruivas, grossas, fininhas, lisas, encaracoladas...

- Tive uma ideia - anunciou aos irmãos.

- O que é que vais fazer?

- Vocês já vão ver...

Com sorriso de miúdo brincalhão, foi buscar um balde de madeira e começou a recolher tufos de cabelo às mãos cheias.

- O seguinte! - gritou Álvaro Novo.

Abel José empurrou a Ana que estava na frente e ela não teve outro remédio senão sentar-se. Mas bastante aflita, com medo de que a pele fininha da cara a denunciasse.

- Eh, pá! A ti ainda não te nasceu ponta da barba - brincou Álvaro Novo fazendo soar as lâminas da tesoura. - Pareces uma menina.

Ana corou violentamente. Para disfarçar, engrossou a voz e replicou de forma brusca:

- Menina é você!

- Pronto, pronto! Não te zangues. Há muito homem sem barba que vale mais do que qualquer barbudo.

- É o meu caso.

- Então tira lá o barrete para te aparar a cabeleira. Rui assistia à cena divertido. Aquela Ana era de mais! Ainda não tinham acabado as tosquias quando João Nunes regressou acompanhado por um rapaz mouro de turbante vermelho que falava espanhol. O capitão veio logo recebê-lo. O mouro sorriu, exibindo uma estranha dentadura amarelada de caninos salientes. Fez uma vénia profunda e saudou Vasco da Gama de forma algo inesperada:

- Buenaventura, buenaventura: muitos rubis, muitas esmeraldas, muitas graças deveis dar a Deus por vos trazer à terra onde há tanta riqueza!

A frase era de molde a provocar grande excitação.

- Ó que excelente mensageiro! Como te chamas?

- Moçaíde.

- Então vem comigo para termos uma conversa em particular.

Moçaíde seguiu o capitão para os aposentos no castelo da proa. Cá fora as conversas dispararam em todas as direcções.

- Aposto que adivinho o nome dos homens que o capitão há-de escolher para saírem com ele em terra - declarou Álvaro Novo. - Querem apostar comigo?

O mestre ouviu-o mas fingiu não ter prestado atenção. Embora fossem proibidos os jogos, achou que naquele momento não valia a pena cansar-se a ralhar por causa de uma simples aposta.

- Que dia é hoje? - perguntou Álvaro Velho. - Digam-me o dia exacto para eu registar.

- É domingo, vinte e sete de Maio do ano feliz de 1498 - disse pausadamente um marinheiro chamado Diogo Dias. - Esses pormenores não me escapam.

- Nem podem escapar - retorquiu Álvaro Novo. - Porque tu é que és o verdadeiro escrivão da nau São Gabriel. O meu tio faz o diário, tu fazes outros registos. E como são os dois a escrever, aposto já que o capitão Vasco da Gama há-de levar vocês dois com ele a terra. Aposto três meticais de ouro.

João estranhou.

- Olhe lá, Álvaro Novo, você tem meticais de ouro?

- Claro que não. Mas como não tenciono perder, também não me fazem falta. Posso apostar à vontade.

À conta daquela fanfarronada talvez tivesse estalado uma discussão. Mas apareceu o pequeno Gaspar radiante com um saco de pano velho cheio de qualquer coisa que o tornava fofo.

Os cachorrinhos, já grandotes, acompanhavam-no a ladrar alegremente. E ele apresentou o fruto das suas habilidades com um sorriso feliz.

- Quem quer experimentar a minha almofada de cabelos humanos? Mais macia não há!

- Então guarda-a - recomendou-lhe o irmão mais velho. - Se for tão macia como dizes, talvez possas trocá-la por algum produto da índia.

- Lembras bem - disseram os gémeos Baltazar e Belchior.

- Vamos lá abaixo rebuscar nas nossas bagagens a ver o que temos para vender.

- Eu não tenho nada - lamentou-se o Januário.

- Tens a tua especialidade - atalhou logo Álvaro Novo. - Se quiseres eu compro mantimentos, tu cozinhas e depois vendemos. Mas o lucro divide-se por três.

- Por três?

- Sim. Uma parte para ti e duas para mim.

- Porquê?

- Porque eu gasto o dinheiro...

- E eu o trabalho.

- E quem é que teve a ideia, hã?

Januário, irritado, arrebatou a almofada de cabelos ao pequeno Gaspar e atirou com ela à cara de Álvaro Novo. Voaram vários tufos por uma abertura mas não se estragou por completo.

A conversa foi interrompida pelo aparecimento de Vasco da Gama. Moçaíde acompanhava-o todo vénias e sorrisos que deixavam à mostra a sua extraordinária dentadura. Era óbvio que se estava a despedir. Os homens seguiram-lhe os movimentos com grande curiosidade. Moçaíde, de caminho para o bote, a todos brindou com um sorriso rasgado. E informou:

- Vou tratar de organizar o encontro entre o vosso capitão Vasco da Gama e o príncipe de Calecute, o Samorim.

À maneira de confidência, disse em voz baixa.

- O vosso capitão vai levar com ele treze homens.

- Ele disse quem eram? - perguntou Álvaro Novo.

- Dizer, disse. Só que como não vos conheço, fiquei na mesma.

- Mas sabe os nomes?

- Saber, sei. Pelo menos alguns fixei.

- Então, diga.

- Não digo, porque o capitão pode mudar de ideias!

Moçaíde deixou-se escorregar pela corda até ao bote. Já lá em baixo, ergueu a cabeça e arreganhou a dentuça:

- Até amanhã em Calecute!

 

Se Álvaro Novo tivesse conseguido fazer a aposta ganhava, pois Vasco da Gama escolheu para irem com ele a terra os dois homens que escreviam bem. Diogo Dias e Álvaro Velho ficaram radiantes ao ouvirem chamar pelos seus nomes.

- A seguir vai dizer que leva Paulo da Gama, vocês não acham? - perguntou o João aos amigos.

- Não. Os outros capitães devem ficar a bordo para o que der e vier.

- Ah, sim, claro.

- E nós? Achas que temos hipótese? - perguntou Gaspar.

Abel respondeu com uma festa na cabeça do irmão.

- É pouco provável. Com certeza quer gente com mais idade e com ar respeitável.

De facto, assim aconteceu. Mas para alegria da Ana e do João, o décimo terceiro homem do grupo foi Orlando.

- Óptimo. É da maneira que ele nos conta tudo quando voltar.

Vasco da Gama e os treze acompanhantes saíram da São Gabriel de manhã cedo. Todos envergavam trajes riquíssimos que tinham sido levados especialmente para aquela ocasião. E, a fim de impressionarem, transportavam bandeiras, estandartes, instrumentos musicais e presentes. Os marinheiros ficaram a vê-los afastar-se nos botes em direcção à praia. Perceberam que em terra se tinham juntado muitos indianos para verem os navegadores estrangeiros. E ainda deu para assistirem a uma cena engraçada.

- Olhem, olhem! Que meio de transporte tão esquisito.

- É um andor?

- Parece!

Seis indianos carregavam aos ombros uma padiola ou um género de andor como os que levam os santos nas procissões. E o andor tinha um cadeirão onde instalaram Vasco da Gama.

- Vão suar em bica, que o nosso capitão-mor é um homem de peso.

- Tomara que voltem depressa. Estou louco por saber novidades.

Para desespero geral, os dias foram passando e nem o capitão nem os seus homens davam sinais de vida. Que poderia ter acontecido em Calecute? Toda a gente andava cabisbaixa, Paulo da Gama e Nicolau Coelho conferenciavam em segredo, mas finalmente chegou uma mensagem escrita a ordenar que enviassem mercadorias para terra. Os botes que fizeram o serviço trouxeram de volta o capitão e onze dos seus homens. Diogo Dias e um marinheiro de Braga não regressaram.

Contrariando as expectativas, Vasco da Gama não regressou particularmente satisfeito. Mudou de roupa e trancou-se na cabine com Nicolau Coelho. Os outros também não mostravam grande vontade de conversar. E o próprio Orlando parecia melancólico. Retirou-se para os seus aposentos e só chamou a Ana e o João ao anoitecer. Eles precipitaram-se, em ânsias.

- O que é que se passou?

- É verdade que raptaram o Diogo Dias e o Braga?

- Não. Não raptaram ninguém.

- Então era melhor contarem tudo, porque já correm imensos boatos.

- Que boatos?

- Que não há nenhum príncipe de Calecute. Que houve um assalto. Que os indianos raptaram esses dois e querem um resgate...

- Fantasias delirantes! - comentou Orlando com certa tristeza. -Não é nada disso.

- Então? As coisas não correram bem? Ele encolheu os ombros:

- Correram um bocado chaladas.

- Porquê?

- Porque o príncipe de Calecute é podre de rico e achou os presentes que lhe oferecemos muito insignificantes.

- E disse?

- Disse.

- Nesse caso não é lá muito educado.

- São hábitos da terra. Mas não foi só isso. Os mouros estão furiosos por verem chegar concorrentes para os negócios rendosos que se fazem aqui na índia e começaram a meter intrigas. Encheram os ouvidos do príncipe e dos homens da corte com mentiras a nosso respeito.

Foi por causa dessas intrigas que o Diogo Dias ficou em terra? Prenderam-no?

- Não. O capitão é que o mandou a ele e ao Braga procurar comerciantes com quem possam fazer as primeiras trocas. Mas não vai ser fácil.

- Que balde de água fria - mastigou o João.

- Isto tem que ser levado com calma. No fundo, o que viemos cá fazer já está feito. Vasco da Gama descobriu o caminho marítimo para a índia, não foi? Então, pronto. Está vencida a etapa mais importante. Fazer amizades e levar daqui grandes riquezas, fica para a próxima. Hão-de vir muitos navios e hão-de regressar tão carregados que Lisboa se vai tornar uma das cidades mais importantes do mundo. Mas para isso era necessário que alguém abrisse o caminho, não era?

- Pois era. E fomos nós que o fizemos - consolou-se o João.

- Bom, agora deixem-me dormir que venho cansado.

Ana e João retiraram-se com um vago desconforto interior. Mas cá fora já reinava grande animação. Os marinheiros tinham-se sentado nas tábuas do convés a ouvir o relato do que se passara em terra.

- Vocês não fazem ideia como é o palácio deste Samorim.

- Nunca na minha vida tinha estado em lugar tão rico. Passámos portas e portas, como se fosse um palácio mágico.

- E depois lá dentro eram só veludos, só sedas.

- E ouro? Até o bacio era de ouro maciço... Aqueles pormenores deixaram a tripulação ao rubro.

Todos ardiam com vontade de ir ver tais maravilhas. Por isso foi uma alegria imensa quando, passados alguns dias, o capitão declarou que os autorizava a sair em terra, mas numa condição:

- Saem em grupos de dois e dois ou de três e três, no máximo.

- Porquê?

- Para evitar problemas. Se aparecer na cidade um grande grupo de estrangeiros, o Samorim pode pensar que vão armar barafunda e mandar prendê-los.

- Ah! Está bem.

- E podemos comprar alguma coisa? Ou é melhor não?

- Quanto a isso não há problema. Podem levar o que tiverem para fazer trocas - explicou o mestre. - Mas mesmo que sejam insultados ou provocados pelos mouros, não respondam. Finjam que não percebem e afastem-se. Não queremos complicações, hã?

Todos aceitaram as regras, mas surgiu imediatamente uma complicação interna: não se punham de acordo quanto à maneira de formar grupos. David e Rui insistiam que queriam ir com a Ana num grupo de dois. Ana preferia ir com o João. Os irmãos de Gaia queriam ir todos juntos. Ninguém queria ir com Álvaro Novo. Januário tentava desesperadamente convencer o Rui a deixar a Ana para o David e a formar grupo com ele, alegando que convinha o despenseiro e o cozinheiro saírem juntos. Rui batia o pé.

- Não quero. Não quero!

Como nunca mais se entendiam, o mestre acabou por propor uma actividade proibida.

- Acabem lá com a gritaria, vamos fazer um jogo. A palavra «jogo» na boca do mestre teve como efeito

silêncio total. Admirados, cercaram-no e ele então retirou do bolso os dados que confiscara no início da viagem e não propôs, ordenou:

- Jogamos aos dados. Conforme o resultado, assim serão as equipas.

Agacharam-se então em círculos e foram passando os dados de mão em mão. Quem obtinha um seis, escolhia parceiro.

- Ficas comigo - disse o David virando-se para a Ana com os enormes olhos verdes a faiscar de contentamento. - E não quero mais ninguém, vamos só os dois.

A seguir calhou a vez ao Januário, que olhou para o Rui. Vendo-o amuado, pensou que era por não querer ir com ele e entendeu por bem não o obrigar. Fixou-se então nos irmãos de Gaia. Só que não sabia qual havia de chamar.

- Se me escolheres a mim - disse o Baltazar - levas também o Belchior porque somos gémeos, não nos separamos. Juntos damos sorte, separados damos azar.

- Nesse caso venham os dois comigo.

A seguir foi a vez de Álvaro Novo, que fez batota com um dado viciado, escolheu o Rui e o João.

- Serão meus companheiros. Vão ver que se divertem. E por fim Abel José, assumindo o papel de irmão mais

velho, quis formar equipa com o pequeno Gaspar e escolheu também um tal Fernão Martins que viera da nau de Paulo da Gama. Era um tipo forte e despachado, e ainda por cima falava várias línguas.

- Por hoje acabou-se - disse o mestre. - Amanhã saem estes grupos, depois de amanhã tornamos ao jogo.

No dia seguinte bem cedo, quando os primeiros raios de Sol tingiam a atmosfera de cor-de-rosa, já o bote maior ia a caminho da cidade com as quatro equipas. Desembarcaram ainda não havia ninguém na praia. E, embora contrariados, cumpriram as ordens do mestre e separaram-se.

David era talvez o mais feliz. Assim que os outros desapareceram passou um braço em volta dos ombros da Ana e perguntou-lhe com voz meiga:

- Onde é que tu queres ir?

- Sei lá - respondeu ela atrapalhadíssima, com medo que os outros se voltassem para trás e os surpreendessem a namorar. - Não conheço nada...

- Vamos procurar um sítio sossegado, está bem?

- Está.

O sítio mais sossegado que encontraram foi um edifício de pedra muito trabalhada e com várias portas, todas abertas de par em par. Àquela hora matutina o edifício estava vazio. David não pensou duas vezes, arrastou a Ana lá para dentro.

- Que será isto?

- Não faço ideia. Mas deve ser uma espécie de igreja, olha as estátuas.

As estátuas que havia espalhadas por recantos e nichos pareceram-lhes estranhas.

- Repara, Ana. Estes santos indianos têm vários braços. Eu também gostava de ter vários braços.

- Para quê?

- Ora, não percebes? Para te abraçar!

E vai daí empurrou-a para trás de uma coluna grossa que serviu para se ocultarem de olhares indiscretos. Abraçou-a e deu-lhe uma série de beijos mais longos, mais demorados e mais pegajosos que os do Rui. Ela correspondeu e até gostou mas não conseguia deixar de pensar no Rui.

«Acho que gosto dos dois», concluiu. «Que barafunda na minha cabeça!»

David atacava agora precisamente a cabeça, com uma rodada de beijos ainda mais lentos pela testa e pelos cabelos.

«A este ritmo nunca chegaria aos quinhentos e tal como fez o Rui», pensou a Ana entre divertida e envergonhada. «Eles têm maneiras de ser diferentes. E são ambos muito especiais...»

Entretidos com as trocas de beijos, Ana e David ficaram no templo horas sem fim, pouco se importando com outras ricas trocas que na índia podiam fazer.

Álvaro Novo também não procurou o mercado. Tinha uma ideia lá dele, que não comunicou aos companheiros. Em vez disso, pôs-se a andar com tal rapidez que o João e o Rui se viram obrigados a correr para lhe acompanharem a passada.

- Espere aí!

- Onde é que você vai?

Álvaro Novo olhava para trás e ria-se com um riso bastante irritante.

- Sigam-me, que não se arrependem. Obrigados a segui-lo devido ao compromisso tomado

com o mestre, lá foram, mais ou menos furiosos, correndo sem parar.

- Ó Álvaro!

- Mais devagar, homem...

Entretanto Januário e os gémeos Baltazar e Belchior caminhavam por uma rua estreita ladeada de casas baixas, que se iam enchendo de gente à medida que a manhã avançava.

Circulavam homens muito velhos em tronco nu vestindo apenas uma tanga branca que parecia uma fralda. Outros apresentavam-se com roupas coloridas, turbantes e longas barbas. As mulheres eram muito bonitas.

- Parecem deusas! - suspirou o Januário ao cruzar-se com duas raparigas de longos cabelos lisos, negros e brilhantes apanhados em rabo de cavalo. Não vestiam nada que se parecesse com as roupas de mulher que ele conhecia. Tanto elas como todas as outras que por ali andavam traziam panos de seda enrolados à volta do corpo, espécie de mantos esvoaçantes até aos pés que formavam pregas elegantíssimas.

- Parecem deusas - repetiu.

Os gémeos também se mostravam extasiados.

- Que lindas!

Veio distraí-los da contemplação um pequeno elefante que um miúdo levava à trela como se fosse um cão. Atrás caminhava um elefante enorme transportando no dorso um casal como se fosse um cavalo.

- Isto realmente é uma terra de maravilhas!

Mais adiante o pequeno Gaspar tinha-se metido em trabalhos. Ele, o Abel José e o Fernão intérprete estavam junto ao portão de um mercado ao ar livre onde havia imensas tendas e bastante movimento. Calculando que pudessem ali fazer bons negócios, queriam entrar. Só que uma enorme vaca branca resolvera deitar-se atravessada diante do portão. Apesar de várias pessoas quererem sair e de outras tantas fazerem fila para entrar, ninguém se atrevia a enxotá-la. Então o pequeno Gaspar decidiu passar-lhe por cima do lombo. Quando alçou a perna, ouviu-se um alarido e vários homens ameaçaram bater-lhe. Esbracejavam de fúria, repetiam palavras que ele não entendia. Valeu-lhe o irmão, que lhe pegou e o pôs às cavalitas. Nessa altura perceberam como era útil terem por companheiro um homem que sabia línguas, pois Fernão falou com alguns homens e pouco depois explicava:

- Eles estão zangados porque as vacas na índia são sagradas. É proibido incomodá-las.

- Vacas sagradas? Nunca tal ouvi...

- Cada terra tem seus costumes - lembrou o intérprete. - Eu já viajei muito. Quem não quiser respeitar os outros, o melhor que tem a fazer é ficar em casa.

João, Rui e Álvaro Novo tinham chegado a um largo enorme onde se erguia o fabuloso palácio do Samorim. A escadaria que conduzia à porta principal era em mármore branco com degraus enormíssimos. Guardavam o palácio homens muito altos e robustos que vestiam túnicas amarelas e vermelhas e usavam turbantes com plumas de pavão.

Álvaro Novo queria por força comunicar com eles, já ensaiara várias tentativas sem qualquer sorte. Eles não respondiam, limitavam-se a franzir as sobrancelhas com cara de poucos amigos.

- Ó Álvaro, pare com isso, senão ainda temos problemas.

- Daqui a nada correm connosco a pontapé.

- Não! Vocês esquecem-se da minha lábia. Não saio daqui sem ver o bacio de ouro do Samorim. Quem sabe se consigo trocá-lo por um par de tesouras de barbeiro?

- Ó Álvaro, que estupidez.

- Estupidez, não. Se cá na índia houver penicos de ouro com fartura, não são valiosos, já pensaste? E pode dar-se o caso de o Samorim nunca ter visto tesouras de barbeiro. Sendo assim, as minhas valem pelo menos um penico de ouro. O valor das coisas depende da raridade.

- Disparate.

- Disparate, não. Ontem à noite massacrei o meu tio Álvaro Velho para me explicar o caminho até ao palácio do Samorim. Já tinha na ideia que havia de tentar esta troca. Conseguimos cá chegar, agora não vou desistir.

Para desespero do João e do Rui, subiu mais uns quantos degraus, aproximou-se do guarda que estava mesmo junto à porta, retirou uma tesoura do bolso e, erguendo-a na sua única mão, fê-la cantar diante da cara desse guarda. «Tchep... tchep... tchep.» O homem rebolou os olhos nas órbitas, soltou um assobio agudo e logo acorreram dois brutamontes que, levantaram Álvaro Novo do chão. Ele bem esperneou e gritou que de nada lhe serviu.

- Ai! Ai! Salvem-me! - gritou ele antes de desaparecer. - Socorro!

O Rui e o João nada puderam fazer. Especados ao fundo da escadaria, viram os homens levar Álvaro Novo para o interior do palácio e fecharem a porta com estrondo.

- E agora? Vamos para bordo? Prevenimos o capitão?

- Hum... acho perigoso. Isso demora. Até que venha gente salvá-lo, não sabemos o que pode acontecer - disse o João.

- Então o que é que propões?

- Vamos dar a volta. Talvez haja entradas de serviço, portas mal guardadas nas traseiras.

- Para quê?

- Para irmos lá dentro buscá-lo.

Rui hesitou apenas um instante. Não queria dar parte de fraco. Sentia-se obrigado a fazer alguma coisa pelo maluco do barbeiro, que, apesar da sua maluqueira, soubera atirar-se à água e salvar uma vida. E, por que não confessar? morria de curiosidade por ver como era o palácio e, se possível, o tal penico de ouro.

- Vamos a isso.

Os dois rapazes deram a volta pelo lado de fora dos jardins magníficos que havia nas traseiras. Tal como desejavam, encontraram um pequeno portão de madeira que não estava fechado à chave. Esconderam-se atrás de uns arbustos e ficaram à coca. Quem saía e entrava eram homens baixinhos, todos vestidos de igual, carregando baldes e instrumentos de jardinagem. Alguns traziam árvores pequenas.

- Andam a arranjar o jardim do palácio...

- Pois andam. E não vejo guardas. Quando o caminho ficar livre, damos uma corrida e enfiamo-nos ali dentro.

O coração de ambos disparara a galope. João pôs-se a jeito e, mal lhe pareceu que as circunstâncias eram favoráveis, deu uma corrida de cabeça baixa e transpôs o portão. Rui seguira-o, encolhendo-se. Atiraram-se de mergulho para dentro de um casinhoto que, pelos vistos, servia de arrumo aos utensílios e aos fatos de jardineiro. Num mesmo impulso, enfiaram cada um sua vestimenta por cima das próprias roupas. Depois esfregaram a cara com terra para melhor disfarçarem as feições. E pegando em baldes e plantas, avançaram resolutos pelo jardim em direcção às zonas de serviço do palácio. Sem trocarem palavra, introduziram-se num pátio para onde abriam as cozinhas.

- Olha para aquilo, que espectáculo!

Rui apontara um panelão de cobre escurecido pelo fumo onde fervilhavam camarões gigantes a boiar num caldo amarelo vivo que cheirava a picante.

- Hum... que fome! - murmurou o João.

O cozinheiro, demasiado absorvido na preparação de legumes que cortava em bocadinhos pequeninos, não lhes ligou nenhuma. Talvez fosse costume os jardineiros virem § ali deliciar-se com aquele cheiro, mais dois menos dois pouca importância tinha. Então o Rui e o João largaram a tralha que traziam e, numa corrida silenciosa, penetraram numa copa forrada de azulejos.

- Se nos apanham, estamos feitos.

- Mantém um ar natural, que a gente safa-se.

O edifício era um autêntico labirinto, com alpendres e pátios ligados entre si por escadinhas e pequenos corredores. João caminhava à frente, tentando manter a postura de um jardineiro que vinha pedir ordens. Rui ia atrás e a certa altura viu qualquer coisa que o deixou esbugalhado.

- Oh!

- Que foi?

- Nada.

João continuou em frente mas de súbito apercebeu-se de que ia sozinho. Inquieto, chamou em voz baixa.

- Rui!

Não obteve resposta e chamou outra vez:

- Rui!

Sem querer elevara o tom, quem lhe respondeu foi Álvaro Novo de um terraço no piso superior.

- Ei! João! Estou aqui! Vem-me soltar que estou preso.

Por um instante João ficou sem saber o que fazer.

Correr pela escada de caracol ao encontro de Álvaro Novo esquecendo o Rui? Ou ir procurar o idiota do Rui para juntos tentarem salvar Álvaro Novo?

- Despacha-te, antes que os guardas voltem! Engolindo em seco, João galgou a escada saltando os

degraus a dois e dois. Mas o caminho não era directo. Primeiro aterrou num varandim. Depois enfiou-se num compartimento pequeno com as paredes cobertas de pinturas que representavam caçadas ao tigre. Como no compartimento havia duas portas, foi obrigado a escolher. Calculando que a da direita é que lhe convinha, abriu-a de mansinho e espreitou. Em vez de encontrar Álvaro Novo, deu consigo num aposento espectacular que só podia ser a sala do trono do Samorim. Ao meio havia um estrado coberto de panos de veludo verde. Em volta candeeiros com mil velas. E o maldito penico de ouro, responsável por toda aquela trapalhada, estava ali. Era enorme, bojudo, com os rebordos arredondados e duas asas em vez de uma. Seria mesmo um penico? «Só se for para elefante», pensou. Gostaria de lhe tomar o peso mas não podia perder tempo.

- Se me apanham aqui, estou frito!

Recuou rapidamente e, com as mãos húmidas de suor, abriu a outra porta.

- Até que enfim! Julguei que nunca mais aparecias! - ralhou Álvaro Novo para disfarçar a nervoseira, pois pela primeira vez em muitos anos não conseguira safar-se sozinho das encrencas que arranjava.

João dispensou-se de lhe responder. Desatou-lhe a mão e os pés tão depressa quanto possível sem se lembrar de perguntar pelas tesouras. Mas Álvaro Novo informou:

- Roubaram-mas. Os malandros roubaram-me as tesouras!

- Deixe lá isso, vamos mas é embora daqui.

Por sorte o palácio encontrava-se quase deserto. Mesmo assim fizeram o caminho de volta numa afobação.

- O Rui?

- Sei lá do Rui. Vocês dois só me metem em sarilhos. Que raio de equipa me havia de calhar!

Rui esperava-os no jardim, inclinado sobre um canteiro. Quando os viu, ergueu-se e fez-lhes sinal.

- Depressa, embora depressa!

Não perceberam por que motivo os recebera com uma expressão tão radiosa. E também não era altura de fazerem perguntas. Saíram os três disparados pelo portão das traseiras mesmo a tempo de avistarem um cortejo sumptuoso de que faziam parte cavalos, elefantes cinzentos, criados carregando peças de caça. A fechar o cortejo, um elefante branco que transportava no dorso uma espécie de casinha em madeira coberta de panos bordados. Lá dentro viajava um homem tão enfeitado de jóias que só podia ser o Samorim. Tinha um ar cansado e feliz.

- Por isso é que havia pouca gente no palácio - exclamou o João. - Foram à caça.

- E nós também - respondeu misteriosamente o Rui.

Libertos das roupagens de jardineiro, iniciaram a corrida para o porto de Calecute onde chegaram esfalfados e contentes. O Sol declinava no horizonte, pintando o mar e o céu de um vermelho doce. As outras equipas esperavam-nos no bote já em grandes aflições. Quando os viram, que alívio!

- Mexam-se.

- Temos de regressar à nau com luz de dia. Álvaro Novo foi o primeiro a atirar-se para o fundo do bote.

- Que raio de cidade. Nunca pensei perder as minhas tesouras em Calecute!

- Roubaram-tas? - perguntou Abel José.

- Sim e... não. É uma longa história que eu depois conto.

Para desviar a conversa, João virou-se para a irmã.

- Conseguiste trazer alguma coisa?

Ela ficou muito corada e quem respondeu foi o David José:

- Não houve grande tempo para negócios. Andámos a ver um templo.

- Todo o dia?

- Sim. Era um templo enorme com muitas estátuas. Sabes que as estátuas indianas têm vários braços? - perguntou a Ana para mudar de assunto.

- E os templos muitas colunas. Colunas grossas - disse o David sorrindo com malandrice.

Ela fez que não entendeu e mostrou ao irmão a única recordação que trazia.

- Apanhámos este macaquinho. Não é tão giro? Um macaco minúsculo de pêlo amarelo, olhos vivos e

rabo comprido saltou para o colo do João aos guinchos.

- É giríssimo.

- E se aguentar a viagem, quando chegarmos podes vendê-lo.

- Não sei se o quero vender. Acho que fico com ele.

- Bom dinheiro vale isto - declarou o Januário radiante da vida. - Olhem só o que eu arranjei!

Na palma da mão exibiu uma pérola enorme, redonda e lisa como um ovo de pomba.

Os gémeos tinham obtido no mercado pedrinhas vermelhas.

- São rubis.

Abel e Gaspar traziam os bolsos cheios de pérolas mínimas que o intérprete disse chamarem-se aljôfar.

- Têm formato de bagos de arroz. E também hão-de valer bastante.

- Bastante vale mas é o que eu tenho aqui - anunciou o Rui tirando de dentro da camisa vários embrulhinhos que mostrou um a um. - Olhem só: pimenta...

Algumas partículas do pó espalharam-se no ar provocando espirros.

- Atchim!

Ele continuou a exibição, imperturbável.

- Canela, noz, é noz-moscada. Vocês haviam de ver aquela despensa do Samorim. Uma pessoa até fica parva com tanta riqueza.

- Ficaste tão aparvalhado que resolveste roubar.

- Que ideia. Eu só tirei umas amostras. Na despensa do Samorim havia sacas a abarrotar. O que eu trouxe aqui é uma ninharia sem importância. Mas em Lisboa estes produtos são caríssimos, vou ganhar bom dinheiro.

- Tu e nós.

- Nós quem?

- Eu e o João. O que trouxeste do palácio do Samorim é a dividir por três.

- Quem disse?

- Digo eu - afirmou Álvaro Novo com total descaramento. - Se lá entraste, foi graças a mim! Ou não foi?

Impossível não rir. Os remos faziam chap... chap... no mar liso. Aproximavam-se da nau São Gabriel, todos com muitas histórias para contar e outras tantas para esconder, sobre a visita à cidade de Calecute.

 

Ana receava que o mestre se zangasse por ela trazer um macaco para bordo. Mas ele achou-lhe imensa graça. Quem reagiu mal foram os cachorros. Vendo aquele intruso pela frente, desataram a ladrar como loucos. O macaco, assustadíssimo, atirou-se às cordas, trepou por ali acima e só parou no topo do mastro.

- Vou buscá-lo, queres? - propôs o David. O mestre interpôs-se.

- Nem pensar. Há muito que fazer, ele desce quando tiver fome.

- É verdade, temos de o alimentar.

- O que será que come um macaco indiano?

- Frutas da índia.

- Há-de comer o que a gente tiver para lhe dar. Agora deixem-no e ocupem-se das vossas tarefas.

Girando pelo convés, não tiravam os olhos do mastro onde o pobre macaquinho soltava uns guinchos agudos e ásperos como nunca tinham ouvido: «gchinc... gchinc...»

Já enervado com a guincharia, o mestre acabou por autorizar David a ir recolhê-lo.

O rapaz subiu, os outros ficaram a observá-lo de cabeça erguida e em silêncio. Depois, vendo que ele não conseguia deitar-lhe a mão, gritaram palpites:

- À direita!

- Segura-o pelo rabo.

- Pelo rabo, não. Pelas pernas!

David fez várias tentativas, balançando-se quase a perder o equilíbrio, mas sempre que lhe tocava, o macaco dava um pulo e pendurava-se noutra posição, sendo impossível alcançá-lo. A rapaziada já gritava sugestões em coro e os cachorros ladravam sem parar. O mestre, irritadíssimo, virou-se para a Ana e ordenou:

- Tu é que o trouxeste, agora vai buscá-lo e cala-o de uma vez.

Como nunca tinha subido ao mastro, Ana ficou aflita. Ainda olhou para o João mas, receando desmascarar-se, cerrou os dentes e pendurou-se nas cordas. David acenava-lhe. Foi ao seu encontro amarinhando devagarinho. Evitava olhar para baixo por causa das vertigens. Ainda ia a meio quando o macaco largou as cordas e se atirou a ela agarrando-a pelo pescoço.

Os marinheiros festejaram o espectáculo com uma salva de palmas e muitas graçolas.

- Ei!

- Bravo!

- Quando deixares de ser grumete podes tornar-te domador e apresentar números em feiras.

Assim que a Ana voltou ao convés, abraçaram-na e deram-lhe pancadas nas costas. Todos menos o Gaspar, que segurava os cachorros.

- É bom ter animais a bordo - disse o Januário abrindo muito a sua boca desdentada. - Os animais a bordo são uma alegria, ajudam a passar o tempo.

De facto os animais revelaram-se uma companhia excelente e uma bela distracção, porque os navios foram obrigados a permanecer diante da cidade de Calecute muito mais tempo do que seria desejável.

Os marinheiros continuavam a ir a terra em grupos de dois ou três. Só que não conseguiam voltar todos para bordo. Ao princípio ainda julgaram que se tratasse de um acaso, mas a certa altura perceberam que os guardas do Samorim faziam de propósito. Quando chegava um grupo, entretinham os homens e só os deixavam partir se aparecesse outro grupo. Vasco da Gama, preocupado, chamou os capitães e o Orlando para debaterem o assunto. Todos concordaram que aqueles estratagemas eram suspeitos.

- Só pode haver uma razão para o Samorim reter os marinheiros em terra. Não nos quer deixar partir, vocês não acham?

- Sim - concordou Nicolau Coelho. - Mas porquê?

- Porque os mouros não nos querem cá. Devem ter espalhado intrigas a nosso respeito e podem, por exemplo, ter convencido o Samorim a reunir gente para nos atacar.

- Realmente estas manigâncias cheiram a cilada - considerou Paulo da Gama.

Conversas semelhantes agitavam as tripulações das três naus.

- Mantenham-se alerta - recomendava o mestre. - Se virem alguma movimentação estranha, avisem logo.

Eles bem se arregalavam, mas não acontecia nada.

Iam portugueses a terra, vinham indianos a bordo, sempre para comerciar. Aparentemente tudo pacífico e normal, só que pairava no ar uma ameaça, um perigo de contornos indefinidos.

Uma noite viram chegar um bote deslizando sem lanterna na escuridão. Rui estava de serviço e deu o alerta com voz abafada.

- Vem ali alguém.

- A esta hora?

- Quem será?

O mestre acorrera, seguido pelo piloto e pelo capitão. À cautela, alguns homens pegaram em espadas e punhais. Mas não havia motivo para sustos. O visitante nocturno era o amigo Moçaíde. Antes de lhe reconhecerem a face, reconheceram a sua extraordinária dentadura.

- Moçaíde? Aconteceu alguma coisa? A resposta revelou-se inquietante.

- Ainda não aconteceu, mas pode acontecer a qualquer momento.

A tripulação não pôde satisfazer a curiosidade porque o capitão levou Moçaíde com ele para o castelo da popa a fim de conferenciarem em privado. Então os marinheiros desataram a imaginar desgraças.

- Palpita-me que vamos ser atacados.

- Ele disse «a qualquer momento»; por isso não me admirava que fosse hoje mesmo.

- O Samorim é tão rico, deve ter centenas de navios.

- Não tarda aparecem aí para uma batalha naval.

- Se houver perigo, o capitão com certeza manda levantar âncoras e zarpamos antes que seja tarde.

- Não digas isso, Rui. Lembra-te que os meus irmãos estão em terra - gaguejou o pequeno Gaspar.

Rui desviou os olhos para evitar que o miúdo se apercebesse de uma verdade terrível: se os navios corressem realmente grande perigo, o capitão não podia arriscar a vida de todos por causa de três.

- O Abel e os gémeos escusavam de ter voltado a Calecute - murmurou inconscientemente o João. - Ou pelo menos não deviam ter ido juntos, logo três da mesma família.

O pequeno Gaspar ficou ainda mais transtornado.

- Por que é que estás a dizer isso? Achas que o capitão é capaz de ir embora e deixá-los cá sozinhos?

João torceu o nariz e tentou acalmá-lo mas com pouca convicção.

- Não penses no pior, vais ver que tudo se resolve em bem.

O cachorro que dava pelo nome de Bolota soltou um latido tão longo e tão triste que os deixou de coração apertado.

- Parece mau presságio - suspirou o Januário. - Detesto ouvir os cães uivar.

- Ele não uivou. Ganiu... foi só um ganido.

- Não sei, não. Palpita-me que amanhã temos surpresas desagradáveis - insistiu.

Não se enganou, o Januário. Na manhã seguinte, quando chegaram comerciantes indianos à nau SãoGabriel, Vasco da Gama mandou amarrá-los e decidiu.

- Vamos embora hoje mesmo. Já que o Samorim prendeu os meus homens em terra, eu prendo os dele a bordo e levo-os comigo para Lisboa. Soltem as velas e levantem as âncoras.

Gaspar estava no porão a tratar dos cachorros quando o navio começou a deslizar sobre as águas.

Por um breve instante ficou paralizado. Depois correu para cima em desvario.

- Mestre! Mestre! Os meus irmãos? Já voltaram? Com as velas desfraldadas, as naus afastavam-se da

cidade de Calecute. O mestre tinha uma expressão grave, séria, assustadora.

- Os meus irmãos ficaram em terra? Vamos deixá-los aqui?

No mais completo desespero, Gaspar pendurou-se na amurada e chamou à toa.

- Abel! Baltazar! Belchior!

Ana aproximou-se, desolada. Pôs-lhe a mão por cima do ombro e nada disse. Gaspar largou a chorar convulsivamente. Os outros irmãos acorreram, também eles consternadíssimos.

- Não pode ser! Não acredito que o capitão faça uma coisa destas - clamava o David.

Álvaro Novo também se juntara ao grupo. Em voz baixa, mas num tom bastante firme, declarou:

- Não se aflijam de mais, que não vale a pena. Isto é de certeza um truque do capitão.

Aquelas palavras devolveram uma réstea de esperança.

- Acha?

- Acho.

- Mas que truque?

Ele arreganhou os lábios e sorriu, assumindo uma expressão peculiar que às vezes parecia quase maldosa, outras simplesmente irritante e em certas ocasiões perspicaz, intuitiva, própria de um adivinho.

- Não percebem? - perguntou. - Basta pensarem um pouco. O Samorim ficou com alguns marinheiros nossos.

O capitão prendeu alguns comerciantes dele. Fingiu que se ia embora. Mas aposto as minhas tesouras de barbeiro em como manda parar aí adiante e envia mensageiros a terra propor a troca de reféns.

Pouco depois verificaram que acertara em cheio. Talvez tivesse ouvido conversas secretas entre o capitão e o piloto, ou talvez tivesse acertado por puro acaso, quando se propusera apostar aquilo que já não tinha, mas tudo se passou como anunciara. Os mensageiros partiram, nem sequer demoraram muito e na volta, além dos homens, trouxeram uma carta inesperada e agradabilíssima com mensagens simpáticas do Samorim para o rei de Portugal! A carta foi lida em voz alta diante dos capitães e dos homens reunidos no convés da São Gabriel. Propunha negócios futuros que muito alegraram Vasco da Gama.

- Missão cumprida - declarou. - Agora podemos regressar a casa satisfeitos.

Num gesto espontâneo, os marinheiros atiraram os barretes vermelhos ao ar e aplaudiram a decisão com palmas, gritos de alegria, vivas entusiásticos. Depois disso, cada um retomou as suas obrigações e entraram num verdadeiro frenesim como se lavar as tábuas depressa, consertar as velas depressa, cozinhar depressa ou comer depressa os ajudasse a chegar mais depressa a casa. No meio da agitação geral, destoava o pequeno Gaspar, a quem subira a febre com o susto de perder os irmãos e que nunca mais arrebitara.

- Tens que reagir - diziam-lhe os outros. - Come, para ver se melhoras.

Como ele não tinha apetite, Januário ainda lhe preparou alguns petiscos especiais, mas nem assim comeu grande coisa. Vendo-o tão pálido, sempre à procura de uma sombra, cada vez mais magro e com olheiras mais fundas, João ficou inquieto e foi falar com o Orlando. Começou por tentar averiguar qual o destino daquela criança.

- Ó Orlando, diga-me lá, sabe o que acontece a este miúdo na viagem?

- Não faço ideia.

- Oh! Está a mentir.

- Eu nunca minto. Posso não dizer o que sei, mas isso é guardar segredo, não é mentir.

- E não sabe mesmo? O Orlando sabe tudo!

- Ó João, raciocina. Nesta viagem participaram muitos homens. O Álvaro Velho fez um diário pormenorizado mas só registou aquilo que achou importante. Não ficaram notícias detalhadas sobre cada um dos marinheiros e muito menos sobre os grumetes.

Do lugar onde conversavam viam o miúdo deitado sobre um rolo de cordas. Tinha os cachorrinhos junto dele, afagava-os, deixava-os mordiscar as mãos quase sem se mexer. Impressionava, de tão murcho. João tomou balanço para pedir ao Orlando que abrisse uma excepção e o salvasse.

- Olhe lá, se ele ficar em perigo de vida não pode tratá-lo?

- Já sabes que não.

- Oh, Orlando! Vá lá! O Gaspar é um grumete sem importância nenhuma. Salvar-lhe a vida não altera a história...

Orlando não teve tempo de responder porque as naus estavam a atravessar a zona das ilhas Angedivas e num dos canais flutuavam sobre as águas pequenos barcos cobertos de ramagens, tantas ramagens que os marinheiros estranharam.

- Mestre! Mestre! Venha ver...

- Aqueles barcos devem trazer gente escondida.

- E quem se esconde por algum motivo é.

O mouro Moçaíde, que pedira para viajar com eles até Lisboa e se desdobrava a ajudar em tudo, apareceu logo pronto para dar informações úteis.

- Tenham cuidado! Estas ilhas são esconderijos de piratas...

Os barcos ramalhudos aproximavam-se da nau.

- Se calhar tencionam fazer uma abordagem...

- Então vamos responder-lhes antes que seja tarde --decidiu Vasco da Gama. - Os homens de serviço aos canhões que se preparem para disparar.

A ordem foi prontamente obedecida. Minutos depois ouvia-se o grito da praxe.

- Fogo!

Estrondos seguidos de clarões encheram a atmosfera de um cheiro intenso a pólvora. E os estrondos repetiram-se: «Boum... Boum... caboum.» Nuvens de fumo branco toldaram a visão aos marinheiros, que se espantaram porque lhes pareceu captar guinchos de macaco vindos dos botes: «gchinc... gchiiiinc...» Ter-se-ia tratado de um falso alarme? Logo que o fumo se dissipou, dissiparam-se também as dúvidas: quem guinchava eram homens que saltavam por entre as ramagens e se lançavam ao mar, nadando apressadamente para a ilha mais próxima.

- O Timoja! O Timoja! - exclamou Moçaíde. - O chefe destes piratas chama-se Timoja!

João estranhou.

- Como é que sabe? Daqui não se conseguem ver caras.

- Mas ouvem-se os gritos. O Timoja e os seus companheiros usam um grito de guerra bem conhecido nestas zonas. É ele. E posso garantir que vinha atacar.

- Pois foi daqui servido!

Por trás do Rui soou um «gchinc» que assustou toda a gente. Mas era o macaco. Na altura do tiroteio tinha-se refugiado numa pipa vazia, agora reaparecia aos saltos.

A semelhança entre os guinchos fez rir toda a gente.

- Eh, grande pirata! Fazes parte do grupo do Timoja, é?

- O nome assenta-lhe como uma luva. Fica a chamar-se Timoja!

Ana pegou-lhe ao colo com gestos delicados e carinhosos. De súbito porém sentiu-se observada. O mestre fitava-a com um olhar interrogativo. Receando que a maneira de pegar no macaco fosse demasiado feminina e portanto reveladora, pousou-o no chão. Os cachorros investiram logo a ladrar.

- Quieto, Bolota! Quieto, Malhado! - chamou Gaspar, articulando as palavras com evidente dificuldade.

João lançou-lhe um olhar inquieto. E Gaspar esboçou um sorriso que deixou à mostra as gengivas muito vermelhas e inchadas.

- Escorbuto! - pensaram todos os que estavam por perto horrorizados. - Outra vez escorbuto!

Tinham sofrido traições, tempestades, ataques, mas nada lhes parecia pior do que aquela maldita doença que tanto os fizera sofrer. Se houvesse nova epidemia, quantos conseguiriam escapar com vida?

 

A etapa seguinte foi de grande sofrimento. Não conheciam aquele mar e agora não dispunham de nenhum piloto local que os orientasse. Navegando à toa, a viagem parecia não ter fim. E a doença voltou a atacar em força. Já não era só o pequeno Gaspar a arder em febre de gengivas inchadas. Todos os dias aparecia alguém com os malditos sintomas. Sem frutas e legumes a bordo que servissem de remédio, iam piorando a olhos vistos. Os gémeos Baltazar e Belchior, com as pernas inchadíssimas, quase não se podiam mexer. Januário, então, parecia um bicho. Tinha os pulsos, os tornozelos e as bochechas numa lástima. O mestre continuava em pé, apesar da febre. E tentava animá-los:

- Isto passa. Já sabemos que não é uma doença fatal. Lembrem-se que da outra vez se salvaram muitos homens.

As palavras surtiram pouco efeito porque começaram as baixas. Quando morreu o primeiro grumete, a tripulação da nau São Gabriel juntou-se no convés para rezar por ele. Depois, com os olhos cheios de lágrimas, aproximaram-se da amurada. O corpo ia ser lançado ao mar. Ana também estava presente, com o Timoja ao colo e um frio terrível no peito. Pestanejava sem saber se teria coragem para assistir.

- Um enterro é sempre triste, mas enterros aquáticos ainda são mais impressionantes.

Quem pegou no corpo foram os dois Álvaros. No momento em que o ergueram, fez-se silêncio. Um silêncio pesadíssimo.

As madeiras rangeram ao sabor do vento e os cachorros soltaram latidos aflitivos como se compreendessem o que ali se passava. O padre esticou o braço e traçou o sinal da cruz, Álvaro Novo murmurou entredentes:

- Homem ao mar!

Ana fechou os olhos com força para não ver. Não pôde no entanto impedir-se de ouvir o «tchap» do corpo embatendo na água.

As lágrimas saltaram-lhe a quatro e quatro, escorrendo pela face até ao canto da boca onde as recolheu com a ponta da língua. O mestre olhava-a entre solidário e desconfiado. Desta vez, porém, não se importou. David e Rui também a olhavam, esses agitados por outros sentimentos. Nenhum deles adoecera mas não a podiam perseguir porque, com tantos companheiros impedidos de se mexerem, o trabalho triplicara e não havia tempo para conversas. Em todo o caso ansiavam por uma oportunidade que lhes permitisse nova sessão de beijos ou, pelo menos, uns segredos. Ela estava mais alta, emagrecera, tinha a pele queimada do sol e tanto um como outro a achavam ainda mais bonita. Não percebiam era por que motivo fugia deles e ambos

tencionavam averiguar. Mas a Ana trocava-lhes sempre as voltas. Nos poucos momentos de pausa ia tratar dos doentes e assim, nada feito.

Depois daquela triste cerimónia, Orlando chamou a Ana e o João aos seus aposentos. Queria encorajá-los mas na verdade não sabia como proceder.

- Instalem-se aí em cima dessas mantas - sugeriu. - Devem estar a precisar de um desabafo, não?

Os dois irmãos olharam-no longamente. Gostariam de lhe pedir que usasse o seu poder para salvar vidas mas já sabiam qual seria a resposta e por isso calaram-se.

- Vocês quiseram vir - lembrou o Orlando. - Estão aqui de livre vontade. Eu preveni que haveria momentos difíceis.

- Pois preveniu - concordou o João. - Só que eu pensei mais em tempestades, fome, calor de mais, sei lá! Na altura não me lembrei de mortes.

Engolindo em seco, perguntou:

- Ainda vai morrer muito mais gente?

- Sim. Vocês aguentam?

- Que remédio! - suspirou a Ana.

- Bom, não se deixem ir abaixo, está bem? Nestas alturas é preciso fazerem-se fortes por vocês e pelos outros. O desânimo propaga-se como o fogo. É indispensável manter um certo optimismo. Conto convosco.

Pedir era fácil, mas cumprir nem por isso. Todos os dias morriam homens, os sobreviventes arrastavam-se pelo convés mergulhados no mais profundo desespero. O aspecto também não ajudava. Sem as tesouras de Álvaro Novo nunca mais tinham podido aparar barbas e cabelos e, assim façanhudos, desgrenhados, mal lavados, mal alimentados, cheirando a doença, sentiam-se realmente muito mal.

Uma noite, depois de ter assistido ao vigésimo nono enterro aquático, Ana não aguentou mais. Pegou no Timoja, foi sentar-se atrás de umas pipas e entregou-se ao choro. David seguira-lhe os movimentos e ainda hesitou.

«Ela quer estar sozinha. Deixo-a em paz? Ou vou lá ter?»

Embora lhe parecesse que seria mais correcto não a incomodar, acabou por ceder à tentação e aproximou-se.

- Ana...

Ela levantou a cabeça e encarou-o de frente. Soube-lhe bem ver aquele namorado com os enormes olhos verdes a derramar ternura. Sorriu-lhe. Ele aproximou-se mais. Tencionava dizer-lhe imensas coisas mas afinal sentou-se ao lado, passou-lhe o braço à volta dos ombros e segundos depois cobria-a de beijos.

«Longos, lentos e pegajosos», pensou a Ana de si para consigo, sem poder negar que lhe agradavam. «Acho que já decidi, gosto do David José.»

A cena romântica foi interrompida porque o mestre chamou. Mal lhe ouviram a voz, soltaram-se. Ana fingiu ocupar-se do Timoja e David correu para a proa a fim de receber ordens e de impedir que o mestre os visse juntos pois tinha medo de não conseguir disfarçar o enleio.

- Vais substituir o marinheiro de serviço - disse o mestre. - Cumpres o próximo turno.

Ora o próximo turno era o chamado «quarto de alva»(1), que se prolonga das quatro às oito da manhã. Ana ficou sozinha. Não tinha sono nem lhe apetecia ir para o porão

 

*1. Os turnos da noite eram assim: quarto de prima, das oito à meia-noite. Quarto de modorra da meia-noite às quatro horas. Quarto de alva, das quatro às oito horas da manhã.

 

naquela noite quente e abafada; por isso deixou-se ficar atrás das pipas, passeando a vista pelo céu onde brilhavam milhares de estrelas, milhões de estrelas e uma fatia minúscula de lua em forma de gomo. Não podia adivinhar que o marinheiro saído de serviço era, nada mais nada menos, que o Rui. A falta de pessoal tinha alterado a organização a bordo. Já ninguém se ocupava apenas de uma tarefa, cada um fazia o que lhe mandassem. O despenseiro virava cozinheiro, consertador de velas, vigilante nocturno ou o que fosse. Como nunca tivera o mínimo sintoma de doença, cumpria as suas obrigações de cara alegre. Cara essa que lhe apareceu ali com um sorriso doce e meia sobrancelha erguida.

- Então, Ana? Tens andado a fugir de mim? Atrapalhada, sem saber o que dizer, corou e balbuciou

apenas alguns sons mal articulados. Ele interpretou esses sons da forma que melhor lhe convinha.

- Tens saudades minhas, não é? Eu já calculava! Sem esperar resposta, sentou-se ao lado dela, passou-lhe o braço à volta dos ombros e cobriu-a de beijos.

«Beijos sôfregos, fogosos, rápidos como pensamentos», concluiu a Ana sem poder negar que lhe agradavam. «Já devemos ir para aí em cento e quarenta e sete e não me importo nada se chegarmos aos mil. Se calhar gosto é do Rui. Que barafunda na minha cabeça!»

A partir de então o espírito da Ana dividiu-se. Metade preocupava-se com os problemas comuns. A outra metade preocupava-se exclusivamente consigo própria e com os seus amores.

Tinham finalmente alcançado a costa oriental da África. O capitão, o piloto, os marinheiros já reconheciam as terras por onde tinham passado a caminho da índia.

E como voltaram a parar em Melinde e aí receberam de novo laranjas de presente, os doentes começaram a melhorar, o que foi motivo de grande alegria. Quando o pequeno Gaspar mostrou pela primeira vez a boca já sã, sem vestígios de inchaço, David abraçou-o a ele e aos companheiros um por um, aproveitando para apertar a Ana com mais força. Mas ninguém estranhou, porque eram festejos muito naturais.

Alguns dias depois, já navegando a sul de Mombaça, foi Rui quem teve a oportunidade de manifestar o seu amor em público sem provocar suspeitas. O capitão-mor tinha chamado à São Gabriel o irmão e Nicolau Coelho porque os sobreviventes do escorbuto não chegavam para manter o bom funcionamento das três naus na viagem de regresso, que ainda seria demorada. Era necessário tomar decisões. Todos concordaram que a única solução seria concentrarem os homens em duas naus e queimarem uma. A escolha recaiu na São Rafael porque se encontrava mais danificada do que a Bérrio.

- Paulo da Gama fica connosco - anunciou o capitão. E escolhe os homens que quer trazer com ele.

Procedeu-se então à transferência das bagagens, das pipas com água e com alimentos, e de tudo o que se encontrava em bom estado e pudesse ser útil. Depois foi preciso tratar do incêndio. Ao contrário do que acontecera meses antes quando tinham pegado fogo à naveta dos mantimentos, ninguém se divertiu com a tarefa.

- A naveta era uma espécie de despensa ambulante - disse o Rui. - De certo modo não fazia parte da armada. Funcionou como apoio, se já não tinha serventia afundou-se e pronto. Agora a São Rafael é outra história... faz pensar nos homens que morreram.

De facto, assim era. O grupo encarregue de provocar o incêndio partiu contrafeito. Todos fizeram deslizar as tochas acesas sobre a madeira de coração apertado. Depois voltaram rapidamente para bordo, como se tivessem medo de serem arrastados para o fundo. E juntaram-se em magote debruçados na amurada a ver as labaredas cada vez mais altas devorarem a nau que Paulo da Gama capitaneara. Ele também assistiu encostado ao varandim da popa. Pálido, abatido, não disse uma palavra até se extinguirem as chamas e se afundar o que restava do navio. Os marinheiros, imóveis e muito juntos, debatiam-se com maus pressentimentos. Todos menos o Rui, que se posicionara estrategicamente ao lado da Ana para se poder apertar de encontro a ela com o ar mais natural deste mundo. Só que o David tivera a mesma ideia. E assim a Ana viu mergulhar nas águas do oceano Índico as últimas tábuas da São Rafael bem encaixada entre os dois rapazes por quem se tinha apaixonado. Ao desgosto colectivo sobrepunham-se dúvidas muito pessoais. Seria capaz de escolher um?

Álvaro Velho reparou nela por acaso. Habituado a observar as pessoas e as coisas com atenção para poder fazer os seus registos, estranhou a maneira como ela olhava ora o companheiro da direita ora o da esquerda. Mas não conseguindo classificar aqueles olhares de forma satisfatória, preferiu esquecer o assunto e concentrar-se no acontecimento central daquele dia. Pouco depois abria o seu diário e escrevia com letra bem desenhada: «dia treze de Janeiro de 1499 pusemos fogo ao navio São Rafael porque era impossível navegarem três navios com tão pouca gente».

A partir de então a sorte parecia ter mudado. Ventos favoráveis e mar calmo conduziram os navios rapidamente e sem novidades de maior para o oceano Atlântico. Passado o cabo da Boa Esperança, melhores condições ainda permitiram que a São Gabriel e a Bérrio chegassem a Cabo Verde em poucos dias. Os sobreviventes do escorbuto tinham recuperado as forças e sonhavam com o momento do regresso a Lisboa. Só Paulo da Gama definhava. Magro, olheirento, branco como a cal, ia perdendo as forças e não mostrava ânimo nem quando lhe falavam do regresso. Januário experimentou todas as receitas que conhecia e que era possível confeccionar com os produtos disponíveis na ilha de Santiago. Levava-lhe os pratos cheio de esperança de lhe agradar, mas Paulo da Gama pouco comia.

- Não te canses, Januário. A culpa não é tua. Eu é que não tenho apetite.

Vasco da Gama passava horas esquecidas à cabeceira do irmão. De início tentara alijeirar, fingia que a doença não tinha importância e dizia a todos que se tratava de um mal-estar passageiro. Em todo o caso conferenciava com Orlando e implorava-lhe que usasse os seus conhecimentos para curar o doente, prometendo grandes recompensas. Orlando só podia usar os remédios da época, que não surtiam efeito. Um dia, vendo o capitão desnorteado, resolveu prepará-lo para o pior. Não lhe disse que o irmão estava às portas da morte, mas deu a entender com frases do género «cada um tem de cumprir o seu destino», «é preciso aceitar a vontade de Deus».

Vasco da Gama percebeu perfeitamente onde ele queria chegar. Mas não perdeu logo a esperança. Pensando que talvez em Lisboa encontrasse médicos capazes de curar aquele mal, decidiu tomar medidas drásticas.

- As naus continuam viagem sem mim. Vou alugar uma caravela, que é mais leve e mais rápida, e levo o doente comigo.

A notícia correu veloz e deixou os marinheiros bastante perturbados e a interrogarem-se. Quem seriam os escolhidos para a caravela?

- Eu gostava de ir com o capitão até ao fim - disse o Rui.

- Pois a mim tanto me faz - disse o pequeno Gaspar. - Quero é ir com os meus irmãos. E se possível com os cachorrinhos.

- Amanhã já se sabe quem vai nas naus e quem segue na caravela - explicou o mestre. - E têm de obedecer sem replicar. Não macem o capitão com pedidos tolos.

No dia seguinte, mal o Sol se levantou, reuniram-se no cais para receberem instruções. Nicolau Coelho continuou no seu posto, a capitanear a Bérrio e, entre outros, levou consigo Álvaro Velho.

- Adeus meu tio! - despediu-se Álvaro Novo utilizando a sua única mão para lhe aplicar fortes pancadas nas costas. - Quando nos tornarmos a ver, faço-lhe um corte especial com estas tesouras que levo de Cabo Verde. Por agora, sou indispensável junto do capitão Vasco da Gama. Fui chamado para a caravela!

Ana assistia à distribuição dos homens com o coração dividido em quatro partes. Uma pensava no Orlando e outra no irmão. Queria continuar com eles. As restantes ocupavam-se do Rui e do David. Ficaria com algum? Ou com nenhum? Continuava sem saber qual preferia. Ficou portanto bem satisfeita quando soube que iam todos na caravela. Vasco da Gama, talvez por ser tão chegado ao irmão, não quisera separar os sete irmãos de Gaia e até autorizou o pequeno Gaspar a subir a bordo, levando a cadela e os cachorrinhos. Orlando, como médico, tornava-se indispensável mais os seus grumetes de estimação. O despenseiro e o cozinheiro também foram chamados. As despedidas prolongaram-se com abraços comovidos. O mestre foi talvez o mais solicitado pelos marinheiros e grumetes. Para todos teve uma palavra simpática, uma graça, uma brincadeira. Quando chegou a vez da Ana, disse-lhe ao ouvido:

- Adeus, rapariga. E boa sorte!

Ela recuou e encarou-o de sobrancelhas erguidas. Então o mestre voltou a falar-lhe ao ouvido:

- Há muito que descobri o teu segredo. Mas já tínhamos problemas de sobra, não achas? Eu sou o mestre. E nos momentos complicados, um verdadeiro mestre só levanta problemas novos se os puder resolver.

Ana mostrou-se agradecida e ele acrescentou:

- Parabéns. Portaste-te como um marinheiro dos melhores. Mas não repitas, que te podes dar mal. Ganha juízo, rapariga. Procura trabalhos próprios de mulher.

Dito isto, subiu para a nau São Gabriel, agora comandada por um tal João de Sá, indivíduo sério e muito competente.

Iam partir. Os marinheiros saudaram-se com gritos e acenos:

- Até breve!

- Boa viagem!

Timoja também participou. Empoleirado no ombro da Ana, soltava guinchos sem fim. E Álvaro Novo imitou-o em vários tons:

- Gchiiiinc.

Encostado à amurada, Paulo da Gama sorriu-lhe e abanou a cabeça:

- Ó Álvaro Novo, és completamente louco...

- Pois sou, meu senhor. E se puder animá-lo com as minhas maluqueiras, será uma honra.

O sorriso de Paulo da Gama esmoreceu.

- Já nada me anima. Sinto-me muito mal.

De vento em popa, a caravela navegou para norte com a ligeireza própria de um navio leve e fácil de manejar. Certamente teriam chegado a Lisboa antes das naus, se não fosse a doença de Paulo da Gama agravar-se. Cada vez mais fraco e abatido, tornou-se evidente que não chegaria a casa com vida. Quando percebeu que não havia nada a fazer, o capitão chamou o piloto e ordenou-lhe:

- Ruma aos Açores.

- Aos Açores? Mas assim o mais provável é sermos os últimos a chegar a Lisboa.

- Não me interessa. O meu irmão está a morrer. Não quero que morra a bordo para não ter de atirar o corpo dele ao mar. Se tem de morrer, hei-de dar-lhe sepultura condigna.

O piloto cumpriu as ordens à risca e conduziu a caravela para o arquipélago dos Açores. Avistaram os contornos suaves da ilha Terceira numa manhã de neblina que os raios de sol iam dissipando com vagar. E o efeito era tão belo que mais parecia tratar-se de uma ilha mágica. Januário viajava no cesto da gávea mas não foi ele quem gritou «terra à vista» porque ficara rouco de emoção ao dar com os olhos nas colinas verdes, frescas, serenas. Por um instante julgou até ouvir o canto das sereias a chamá-lo por entre orlas de espuma branca que se desfaziam contra as rochas. Pouco depois tomava o primeiro bote e assim que pôs o pé em terra deu mostras de uma desenvoltura, de um à-vontade que os outros não lhe conheciam.

A população da ilha Terceira tinha-se juntado no cais à espera «de quem lá vinha». Homens, mulheres e crianças nem queriam acreditar que estava ali em carne e osso o famoso Vasco da Gama, o capitão que partira de Lisboa dois anos antes em busca do caminho marítimo para a índia.

- Sempre lá chegaram?

- E como é a índia?

- Tem as riquezas que se dizia?

Os marinheiros ficaram atrapalhados sem saber como cortar a conversa e pedir apoio para o doente. Januário resolveu a questão da melhor maneira. Tirou do bolso a pérola gorda como um ovo de pomba que trouxera de Calecute e exibiu-a na palma da mão.

- Na índia há riquezas sem fim. Eu próprio, que não passo de um simples cozinheiro de bordo, trouxe comigo esta pérola.

Um miúdo pequeno saltou logo para junto dele, arregalando os olhos pestanudos.

- Então é verdade que na índia há árvores que em vez de frutos dão pedras preciosas?

Januário ia responder, mas preferiu não desiludir:

- É uma terra de maravilhas. Depois contaremos tudo. Agora precisamos de ajuda. O irmão do capitão-mor vem muito doente, alguém o pode receber em casa?

A dificuldade foi escolher, porque todas as famílias presentes se dispuseram imediatamente a abrir as suas portas. Depois de instalado o doente, houve um autêntico rodopio de pessoas que apareciam a oferecer remédios, bolos, licores, enfim, tudo o que tinham e julgavam poder ser útil.

Na noite em que Paulo da Gama morreu, a população chorou como se o conhecesse há muito.

E todos compareceram no enterro vestidos de preto, carregando flores. Apesar da chuva miudinha e persistente não arredaram pé e no fim desfilaram perante Vasco da Gama para lhe apertarem a mão num gesto de solidariedade. Ele recebeu os cumprimentos muito direito, como um verdadeiro capitão. Mas o seu olhar, exprimia toda a tristeza do mundo. Nessa mesma noite deu ordem para se fazerem os preparativos necessários ao regresso a Lisboa.

Januário tornou a mostrar-se particularmente activo. Resolveu problemas, comprou mantimentos, encheu pipas de água, sempre ajudado pelo Rui e pelo João. Quando tudo ficou pronto, chamou-os de parte dizendo que tinha grandes novidades.

- Não quero voltar para casa. Vou pedir ao capitão que me deixe aqui.

Os amigos estranharam.

- Agora, que falta tão pouco, queres abandonar o barco?

- Olha que em poucos dias chegamos a Lisboa.

- Chegam vocês. Se o capitão me autorizar, eu fico na ilha Terceira.

- Mas porquê?

Ele abriu-se num sorriso tão feliz que até a boca desdentada parecia engraçada:

- Vou começar vida nova. Na minha terra as pessoas não vão esquecer que eu cometi um crime. Estou arrependido, se pudesse voltar atrás tudo seria diferente, mas não posso. Nunca mais hei-de fazer mal a uma mosca, mas na minha terra serei sempre olhado com desconfiança. Aqui ninguém sabe o que se passou naquela maldita feira.

- Pensa bem, Januário. Aqui não tens família...

- Vou ter.

- Vais ter, como?

- Vou-me casar.

- Com quem?

- Lembram-se daquele miúdo que perguntou pela árvore das pérolas? A mãe dele é viúva. Tem dois filhos pequenos, uma terra para cultivar e gado para cuidar. Simpatizei com ela mas não me atrevi a falar-lhe. Quem se atreveu foi ela mesmo. Pediu-me em casamento. Eu ainda lhe perguntei: «Mas queres um desdentado?» Ela riu-se e respondeu assim: «Um dente a mais ou a menos pouca diferença faz. Tu tens cara de boa pessoa e eu preciso de quem me ajude a criar os meus filhos e a tratar das terras.»

Passeou a língua pelos lábios e terminou:

- Aceitei. Ontem à noite festejámos. Ela fez doces de ovos. Eu fiz um borrego assado, que ficou uma especialidade. E contei histórias aos miúdos, umas verdadeiras, outras inventadas. Adoraram e querem mais. Se o capitão autorizar, fico, vendo a pérola e compro mais gado. Arranjei uma família, tenciono viver em paz e ser feliz.

Ora, o capitão autorizou. E assim, quando embarcaram para a última etapa da grande viagem, no cais ficou um Januário felicíssimo a dizer adeus. A mulher e os filhos estavam com ele e despediram-se agitando lenços brancos até a caravela desaparecer no horizonte.

Lisboa em peso acorreu a Belém quando se espalhou a notícia de que Vasco da Gama estava a chegar. Já toda a gente sabia pelos homens da São Gabriel e da Bérrio que a missão fora cumprida e estavam abertos os caminhos para a índia. As pessoas queriam festejar o capitão mas ele, logo que pôs o pé em terra, dirigiu-se à capela de Belém e ali ficou nove dias a rezar porque prometera a Nossa Senhora que se chegasse ao seu destino, ali rezaria uma novena. Durante esses nove dias foi visitado por grandes senhores da corte que queriam felicitá-lo pessoalmente pela sua façanha.

Entretanto o rei D. Manuel mandara organizar grandes festejos.

- Quero touradas, saltimbancos actuando pelas ruas, danças, bailes e várias procissões. Este é um dos momentos mais felizes e mais extraordinários do meu reinado! Do meu reinado, não. Da nossa história. Ou melhor, da história do mundo. Isto é importante para o mundo inteiro!

Quando finalmente Vasco da Gama se dirigiu ao palácio, foi o delírio. As ruas encheram-se de pétalas de flores e toda a gente pendurou colchas à janela para enfeitar as casas em sinal de alegria. D. Manuel saiu em cortejo e quis o capitão junto de si debaixo do pálio real, ou seja, de um toldo de seda destinado a proteger do sol e a assinalar a presença do rei no desfile. À medida que iam avançando, ouviam-se tambores, cornetins, palmas e gritos:

- Viva el-rei D. Manuel I!

- Viva o nosso capitão Vasco da Gama!

Os marinheiros e os grumetes seguiam atrás da corte, riam para o público que lhes atirava flores e doces, bagos de trigo. Depois de uma ausência tão longa, de uma viagem tão dura, sentiam que mereciam aqueles aplausos e o coração inchava-lhes de contentamento. Por uma última vez Ana caminhou entre os dois namorados. E foi pisando pétalas de rosa que decidiu o que lhes havia de dizer.

«Quando acabar o cortejo, chamo-os de parte e conto-lhes a verdade. Digo que namorei com os dois porque não consegui escolher um.

E como não é justo enganá-los, por agora acabamos tudo. E se eles ficarem amuados, paciência. Uma pessoa não tem culpa de se apaixonar por dois. Ou tem?»

Nenhum dos outros marinheiros se debatia com um problema igual para resolver. Mas os pensamentos eram semelhantes porque todos transportavam recordações fortes, novos afectos, novos projectos. E era preciso tomar decisões para o futuro, decisões ousadas.

Amores, dúvidas e ideias novas também foram riquezas que trouxemos da índia.

 

 

                                                                  Ana Maria Magalhães & Isabel Alçada

 

 

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