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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


VIAGENS NO SCRIPTORIUM / Paul Auster
VIAGENS NO SCRIPTORIUM / Paul Auster

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblio "SEBO"

 

 

 

  

Um homem de uma certa idade está sentado num quarto, com apenas uma porta, uma janela, uma cama, uma secretária e uma cadeira. Acorda todos os dias sem memória, não tendo a certeza se está ou não trancado no quarto. Anexadas aos poucos objectos à sua volta estão etiquetas escritas à mão com apenas uma palavra; na secretária encontra-se uma série de fotografias a preto e branco vagamente familiares e quatro pilhas de papel. Em seguida, uma mulher de meia-idade chamada Anna entra no quarto e fala de comprimidos e tratamentos, mas também de amor e promessas.

Quem é Mr. Blank e qual o seu destino? O que representa Anna no seu passado? E será que vai ter tempo suficiente para perceber as pistas que surgem?

Depois do enorme sucesso de As Loucuras de Brooklyn, Viagens no Scriptorium marca o regresso de Paul Auster a um território mais metafísico. Um puzzle sombrio, um jogo, que envolve ao mesmo tempo o leitor e o escritor. Uma exploração engenhosa da linguagem, da responsabilidade e da passagem do tempo.

 

 

 

 

O velho está sentado na beira da cama estreita, mãos abertas finca­das nos joelhos, cabeça baixa, olhos fixos no chão. Não faz ideia de que uma máquina fotográfica está instalada no tecto, mesmo por cima dele. O obturador é silenciosamente accionado uma vez por segundo, produzindo oitenta e seis mil e quatrocentas fotografias a cada rotação da Terra. Mesmo que soubesse que está a ser vigiado, isso não faria a menor diferença. A mente dele está longe daqui, encalhada no meio das criaturas que povoam a sua imaginação, enquanto procura uma resposta para a pergunta que o atormenta.

Quem é ele? Que faz aqui? Quando chegou e quanto tempo perma­necerá aqui? Com um pouco de sorte, o tempo dir-nos-á tudo. Para já, a nossa única tarefa consiste em estudar as fotografias tão atentamente quanto possível, abstendo-nos de tirar conclusões prematuras.

Há um certo número de objectos no quarto e, em cada um deles, foi colada uma tira de fita adesiva branca onde se pode ler uma só palavra escrita com maiúsculas. Na mesa-de-cabeceira, por exemplo, a palavra é MESA. No candeeiro, a palavra é CANDEEIRO. Mesmo na parede, que não é um objecto no sentido estrito do termo, há uma tira de fita em que se pode ler PAREDE. O velho ergue os olhos por um momento, vê a pare­de, vê a tira de fita adesiva colada à parede, e, com uma voz sumida, pro­nuncia a palavra parede. O que não podemos saber neste momento é se ele está a ler a palavra na fita ou se está simplesmente a referir-se à pare­de. Pode ser que ele já não saiba ler, que se tenha esquecido dessa apti­dão, mas que ainda seja capaz de reconhecer as coisas e de as chamar pelos seus nomes, ou, inversamente, que tenha perdido a capacidade de reconhecê-las, mas que ainda saiba ler.

Veste um pijama de algodão às riscas azuis e amarelas, tem os pés enfiados num par de pantufas pretas de cabedal. O local exacto onde se encontra, aí está uma coisa que não é nada clara para ele. No quarto, sim, claro, mas em que edifício se situa este quarto? Numa casa? Num hospi­tal? Numa prisão? Não consegue lembrar-se de há quanto tempo está aqui, nem da natureza das circunstâncias que precipitaram o seu afastamento para este local. Talvez tenha estado sempre aqui; talvez este seja o sítio onde vive desde o dia em que nasceu. O que ele sabe é que o seu cora­ção está cheio de um implacável sentimento de culpa. Ao mesmo tempo, é-lhe impossível não sentir que está a ser vítima de uma terrível injustiça. Há uma janela no quarto, mas a cortina está baixada, e, que se lem­bre, nunca assomou à janela para ver o que há para lá dela. O mesmo se pode dizer da porta com a sua maçaneta branca de porcelana. Está preso neste quarto ou tem liberdade para entrar e sair como muito bem lhe aprouver? Esta é uma questão que terá de investigar mais tarde - porque, neste momento, como se disse no primeiro parágrafo, a mente dele está longe, à deriva no passado, enquanto erra no meio dos seres espec­trais que atravancam a sua cabeça, debatendo-se para encontrar a respos­ta à pergunta que o atormenta.

As fotografias não mentem, mas também não contam a história toda. Mais não são do que um registo do tempo que passa, a evidência exte­rior. A idade do velho, por exemplo, é difícil de determinar a partir das imagens a preto e branco, um pouco desfocadas. O único facto que se pode estabelecer com alguma certeza é que ele não é jovem, mas a pala­vra velho é um termo flexível, um termo que pode ser usado para des­crever qualquer pessoa entre os sessenta e os cem anos. Vamos por isso abandonar o epíteto velho; a partir de agora, designaremos a pessoa no quarto apenas como Mr. Blank [N1]. Para já, não será necessário um nome próprio.

Mr. Blank levanta-se finalmente da cama, faz uma breve pausa para recuperar o equilíbrio, e, depois, num passo arrastado, dirige-se para a secretária, que fica no outro extremo do quarto. Sente-se cansado, como

 

1 Se bem que o termo .blank. possa ter vários significados, seja como substantivo, seja como adjectivo, cremos que, neste caso, o sentido fundamental é o de em branco, vazio.. (N. do T.)

 

se tivesse acabado de despertar de um sono agitado e demasiado breve, e, enquanto as solas das suas pantufas vão raspando no soalho nu, um som emerge na sua memória: o som da lixa [N2]. Muito ao longe, para lá do quarto, para lá do edifício onde o quarto se situa, ouve o grito esbatido de um pássaro - talvez um corvo, talvez uma gaivota, não lhe é possí­vel saber.

Mr. Blank baixa o seu corpo até sentir o assento da cadeira que está junto à secretária. É uma cadeira extremamente confortável, conclui, o material é um suave cabedal castanho, tem uns braços amplos, perfeitos para apoiar os cotovelos e os antebraços, já para não falar de um meca­nismo de molas invisível que lhe permite balouçar à vontade para trás e para a frente, e é precisamente isso que ele começa a fazer no instante em que se senta. Balouçar para trás e para a frente produz nele um efei­to calmante, e, enquanto continua a entregar-se a estas agradáveis oscila­ções, Mr. Blank lembra-se do cavalo de balouço que havia no seu quarto de menino e, então, começa a reviver algumas das viagens imaginárias que costumava fazer nesse cavalo, cujo nome era Whitey e que, na mente da criança que Mr. Blank foi, não era um objecto de madeira pintado de branco, mas um ser vivo, um cavalo de verdade.

Após esta breve excursão à infância, uma angústia implacável domi­na-o de novo, as garras cravadas na sua garganta. Diz alto, com uma voz cansada: Não posso permitir que isto aconteça. Então, curva-se para examinar as pilhas de papéis e fotografias impecavelmente arrumadas sobre o tampo da secretária de mogno. Pega primeiro nas fotografias, três dúzias de retratos a preto-e-branco, formato vinte por vinte e cinco, de homens e mulheres de diversas idades e raças. A primeira fotografia da pilha mostra uma jovem de vinte e poucos anos. Tem o cabelo escuro muito curto e fita a objectiva com um olhar intenso e inquieto. Está numa rua de uma cidade qualquer, talvez uma cidade italiana ou francesa, já que, atrás dela, é possível ver uma igreja medieval, e, como tem um casa­co de lã e um cachecol, é seguro concluir-se que a fotografia foi tirada no Inverno. Mr. Blank mergulha nos olhos dela e esforça-se por se lem­brar de quem poderá ser a jovem.

 

2 Note-se que .lixa. em inglês se diz .sandpaper., um termo que junta os dois princi­pais elementos da .lixa. - areia e papel. (N. do T.)

 

Ao fim de cerca de vinte segundos, ouve-se a sussurrar uma só palavra: Anna. Sente-se arrastado pela torren­te de um amor irresistível. Pergunta-se se Anna não será alguém com quem foi casado em tempos, ou se não estará talvez a olhar para uma fotografia da sua filha. Um instante depois de ter pensado isto, é assalta­do por uma nova vaga de culpa, e é então que sabe, sem margem para dúvidas, que Anna está morta. Pior ainda: suspeita que é ele o responsá­vel pela sua morte. Pode até ter acontecido, diz para si mesmo, que tenha sido ele a pessoa que a matou.

Mr. Blank solta um gemido de dor. Olhar para as fotografias é intolerável, é insuportável, e por isso as afasta e por isso centra a sua atenção nos papéis. Há ao todo quatro pilhas, cada uma com cerca de quinze centímetros de altura. Por nenhuma razão particular de que tenha consciência, pega na página de cima da última pilha à sua esquerda. O texto escrito à mão, em maiúsculas semelhantes às das tiras de fita adesiva, diz o seguinte:

Vista dos confins do espaço, a Terra não é maior do que um grão de poeira. Lembra-te disso da próxima vez que escreveres a palavra "huma­nidade».

Pela expressão de profundo desagrado que se crava no seu rosto enquanto dá uma vista de olhos a estas frases, podemos concluir com alguma segurança que Mr. Blank não perdeu a capacidade de ler. Mas quem poderá ser o autor destas frases? Aí está uma questão para a qual ainda não temos resposta.

Mr. Blank pega na página seguinte e descobre que está perante algo que, tudo o indica, será um manuscrito dactilografado. Eis o que ele lê no primeiro parágrafo:

Mal comecei a contar a minha história, atiraram-me ao chão e desa­taram a pontapear-me na cabeça. Consegui levantar-me e recomecei a falar, mas um deles atingiu-me em cheio na boca e, logo a seguir, um outro deu-me um murro no estômago. Caí. Consegui levantar-me de novo, mas, no preciso momento em que ia começar a história pela ter­ceira vez, o coronel atirou-me contra a parede e eu desmaiei.

Há mais dois parágrafos na página, mas, antes que Mr Blank tenha tempo para começar a ler o segundo, o telefone toca. É um modelo preto, com disco, de finais dos anos 40 ou princípios dos anos 50 do século passado, e, como o telefone se encontra na mesa-de-cabeceira, Mr. Blank é obrigado a levantar-se do macio assento de cabedal e a arrastar-se até ao outro extremo do quarto. Pega no auscultador ao quarto toque.

Estou, diz Mr. Blank.

Mr. Blank?, pergunta a voz do outro lado.

Se você o diz.

Tem a certeza? Não posso correr nenhum risco.

Eu não tenho a certeza de nada. Se você quer chamar-me Mr. Blank, responderei de bom grado por esse nome. Com quem estou a falar?

James.

Não conheço nenhum James.

James P. Flood.

Refresque-me a memória.

Fui visitá-lo ontem. Passámos duas horas juntos.

Ah. O polícia.

Ex-polícia.

Certo. O ex-polícia. Em que posso ser-lhe útil?

Quero vê-lo outra vez.

Uma conversa não chegou?

Não posso dizer que tenha chegado. Eu sei que não passo de uma personagem secundária nesta história toda, mas eles disseram que eu podia vê-lo duas vezes.

Está a dizer-me que não tenho alternativa.

Receio bem que não. Mas não temos de conversar no quarto; se o senhor não quiser, nada nos obriga a ficar no quarto. Podemos sair e sen­tar-nos no parque, se preferir.

       Não tenho nada para vestir. Um pijama e um par de pantufas – neste momento, o meu vestuário resume-se a isso.

       Procure no roupeiro. Aí encontrará todas as peças de roupa de que precisa.

       Ah. O roupeiro. Obrigado.

       Já tomou o seu pequeno-almoço, Mr. Blank?

       Não creio. É-me permitido comer?

       Três refeições ao dia. Ainda é um bocado cedo, mas Anna deve estar a chegar.

       Anna? Você disse Anna?

       É a pessoa que cuida de si.

Pensava que tinha morrido.

Não pode estar mais viva.

Talvez seja uma outra Anna. . .

Duvido. De todas as pessoas envolvidas nesta história, ela é a única que está inteiramente do seu lado.

       E as outras?

       Digamos apenas que há um imenso ressentimento - mas fiquemo­-nos por aí.

Deverá ser assinalado que, para além da máquina fotográfica, há um microfone incrustado numa das paredes, e que cada som que emana do corpo de Mr. Blank está a ser reproduzido e preservado por um grava­gor digital extremamente sensível. Daí que o mais ínfimo gemido ou fun­gadela, a mais débil tosse ou a mais fugaz flatulência, em suma, todos os sons que emergem do seu corpo, constituam uma parte integral do nosso relato. Desnecessário será dizer que estes dados sonoros incluem também todas as palavras que Mr. Blank possa murmurar, proferir ou gritar, como aconteceu, por exemplo, com o telefonema de James P. Flood acima registado. A conversa termina com Mr. Blank cedendo com algu­ma relutância ao pedido do ex-polícia para lhe fazer uma visita nessa mesma manhã. Depois de desligar o telefone, Mr. Blank senta-se na beira da cama estreita, assumindo uma posição idêntica à descrita na primeira frase deste relatório: mãos abertas fincadas nos joelhos, cabeça baixa, olhos fixos no chão. Pergunta-se se não deveria levantar-se e começar a procurar o roupeiro a que Flood se referiu, e, caso o roupeiro exista, se não deveria trocar o pijama por alguma roupa mais substancial, partindo do princípio de que há peças de roupa no roupeiro - e, claro, de que o roupeiro em causa existe mesmo. Mas Mr. Blank não sente a menor pres­sa em envolver-se em tarefas tão triviais. Quer voltar ao manuscrito dactilografado que começou a ler antes de ser interrompido pelo telefone.

Portanto, levanta-se da cama e, ao dar um primeiro passo hesitante na direcção do outro extremo do quarto, é acometido de uma súbità sensação de vertigem. Dá-se conta de que acabará por cair se continuar de pé, mas, em vez de voltar para trás e de se sentar na cama até que a crise passe, espeta com a mão direita na parede, apoia nela todo o seu peso e, a pouco e pouco, deixa-se deslizar até ao chão. Vendo-se de joelhos, Mr. Blank lança-se para a frente e firma também as mãos no chão. Com ou sem tonturas, é tão grande a sua determinação em chegar à secretária que acaba por percorrer a distância de gatas.

Iça-se para se sentar na cadeira de cabedal e, logo que se senta, põe­-se a balouçar para trás e para a frente; o balouço demora alguns minu­tos, sempre é uma maneira de acalmar os nervos. Apesar dos seus esforços físicos, compreende que está com medo de continuar a ler o manuscrito dactilografado. Não consegue explicar por que razão este medo tomou conta dele. São só palavras, diz para si mesmo, e desde quando é que as palavras têm o poder de deixar um homem meio morto de medo? Nem pensar, murmura ele numa voz sumida, quase inaudível. Então, para se tranquilizar, repete a mesma frase, grita-a a plenos pul­mões: NEM PENSAR!

Inexplicavelmente, esta súbita explosão sonora dá-lhe a coragem necessária para continuar. Respira fundo, fixa os olhos nas palavras à sua frente, e lê os dois parágrafos seguintes:

Desde então, têm-me mantido neste quarto. Com os elementos de que disponho, poderei concluir que não se trata de uma cela típica; por outro lado, não parece fazer parte do presídio militar nem do centro de detenção territorial. É um espaço pequeno e desprovido de mobiliário, mede cerca de três metros e meio por quatro metros e meio, e, tendo em conta a simplicidade da sua concepção (chão de terra, grossas paredes de pedra), suspeito que tenha sido usado em tempos como uma espécie de armazém para guardar víveres, talvez sacas de farinha e cereais. Há uma única janela com grades no cimo da parede oeste, tão longe do chão que não consigo tocar-lhe. Durmo numa enxerga de palha a um canto e dão-me duas refeições todos os dias: papas de aveia frias de manhã, uma sopa morna e pão duro ao entardecer. De acordo com os meus cálculos, encontro-me aqui há quarenta e sete noites. No entanto, estes cálculos podem estar errados. Nos meus primeiros dias nesta cela, fui espancado inúmeras vezes, e, como não consigo lembrar-me de quantas vezes perdi a consciência - nem do tempo que terão durado esses períodos de inconsciência -, é possível que, nalguma dessas ocasiões, tenha perdi­do a noção dos dias e que me tenha escapado algum alvorecer ou um ou outro ocaso.

O deserto começa aqui já sob a minha janela. Sempre que o vento sopra de oeste, sinto a fragrância da salva e do zimbro, a vegetação ínfi­ma destas áridas extensões. Aí vivi só durante cerca de quatro meses, vagueando livremente de lugar em lugar, dormindo ao ar livre qualquer que fosse o estado do tempo, e não foi nada fácil trocar a vastidão des­ses espaços pelos exíguos limites êleste quarto. Posso suportar a solidão forçada, a ausência de conversação e de contacto humano, mas anseio regressar ao ar livre e voltar a sentir a luz, e passo os meus dias consu­mido pelo desejo de poder olhar para outra coisa que não estas agrestes paredes de pedra. De quando em quando, soldados marcham sob a minha janela. Ouço as suas botas esmagando a terra, as vozes que, de um jeito irregular, irrompem no silêncio, o tumulto de carruagens e cava­los no calor do dia inalcançável. Este é o quartel de Ultima: o extremo ocidental da Confederação, um local situado nos limites do mundo conhecido. Encontramo-nos a mais de três mil quilómetros da capital, a um passo das regiões inexploradas dos Territórios Estrangeiros. A lei proí­be-nos de entrar nessas regiões. Eu fui porque me ordenaram que fosse e, agora, regressei para apresentar o meu relatório. Vão escutar - ou não - o que tenho para lhes dizer, e, depois, levar-me-ão lá para fora, para. o sítio onde serei executado. O que é realmente importante é que não me iluda, é que resista à tentação da esperança. Quando finalmente me encostarem ao muro e me apontarem as espingardas, pedir-lhes-ei ape­nas uma coisa: que me retirem a venda. Não que sinta o menor interesse em ver os homens que vão matar-me. Não, o que eu quero é poder vol­tar a olhar para o céu. Neste momento, é esse o meu único desejo. Estar ao ar livre e erguer os olhos para o imenso céu azul por cima de mim, contemplar, uma última vez, o uivante infinito [N3].

Mr. Blank pára de ler. O medo deu lugar à confusão, e, embora tenha entendido todas as palavras que até agora leu, não faz a menor ideia de que texto poderá ser este. Tratar-se-á efectivamente de um relatório, per­gunta-se, e que sítio será este a que é dado o nome de Confederação,

 

3 A expressão .fhe howling infinite. (.0 uivante infinito.) é uma citação de Herman Melville (Moby Dick) , (N do T)

 

com o seu quartel em Ultima e os seus misteriosos Territórios Estrangei­ros, e porque é que tem a sensação de que está perante um texto escrito no século XIX? Mr. Blank tem perfeita consciência de que o seu estado mental deixa bastante a desejar, de que está completamente às escuras quanto ao local onde se encontra e quanto às razões por que se encon­tra nesse local, mas sabe, com uma segurança muito razoável, que o pre­sente momento pode ser situado no início do século XXI e que vive num país chamado Estados Unidos da América. Este último pensamento traz­-lhe à ideia a janela ou, para sermos mais precisos, a cortina da janela, àqual foi colada uma tira de fita adesiva branca em que se pode ler a pala­vra CORTINA. Firmando as plantas dos pés no chão e os cotovelos nos braços da cadeira de cabedal, gira para a direita entre noventa a cem graus, a fim de poder olhar para a referida cortina da janela - visto que esta cadeira, para além de ter sido dotada da capacidade de balouçar para trás e para a frente, também é capaz de mover-se em círculos. Esta últi­ma descoberta é para ele tão agradável que, por momentos, Mr. Blank se esquece dos motivos por que queria olhar para a cortina da janela, ren­dendo-se, em vez disso, à pura fruição deste atributo da cadeira, até então desconhecido. Gira uma vez, depois duas vezes, depois três vezes, e, en­quanto gira, lembra-se de quando, era ele criança, se sentava na cadeira da barbearia, e lembra-se de Rocco, o barbeiro, que o fazia girar na cadei­ra, praticamente do mesmo modo como está a girar agora, tanto antes como depois de lhe cortar o cabelo. Por sorte, quando Mr. Blank fica de novo quieto, a cadeira está mais ou menos na mesma posição em que estava quando ele começou a mover-se em círculos, o que significa que está de novo a olhar para a cortina da janela, e, uma vez mais, após este delicioso interlúdio, Mr. Blank pergunta-se se não seria boa ideia ir até à janela, puxar a cortina e dar uma espreitadela lá para fora. Ficaria a saber onde está. Se calhar, diz ele para si mesmo, se calhar já não se encontra na América, mas noutro país qualquer, se calhar foi raptado a altas horas da noite por agentes secretos ao serviço de uma potência estrangeira.

No entanto, a sua tripla rotação na cadeira deixou-o um pouco entontecido, e por isso hesita em sair de onde está, temendo uma réplica do episódio que, minutos antes, o obrigou a percorrer o quarto de gatas. Aquilo que Mr. Blank ignora ainda neste ponto é que, para além de balouçar para trás e para a frente e de girar em círculos, a cadeira de cabedal está também equipada com um conjunto de quatro pequenas rodas, conjunto esse que lhe permitiria fazer a viagem até à janela sem ter de se levantar. Como não sabe que tem à sua disposição outros meios de propulsão para além das pernas, Mr. Blank permanece onde está, sen­tado na cadeira, de costas para a secretária, olhando para a cortina da janela, em tempos branca, mas agora amarelecida, tentando lembrar-se da conversa que manteve na tarde anterior com o ex-polícia James P. Flood. Esquadrinha a sua mente na esperança de encontrar uma imagem, uma qualquer sugestão quanto ao eventual aspecto do homem, mas a sua mente não só não lhe devolve uma única imagem minimamente clara, como, ainda por cima, é uma vez mais dominada por uma paralisante sensação de culpa. Contudo, antes que este novo acesso de tormentos e terrores possa deixá-lo à mercê dos tentáculos do pânico, Mr. Blank ouve alguém a bater ao de leve na porta, e, no instante seguinte, o som de uma chave a penetrar na fechadura. Significa isto que Mr. Blank está preso no quarto, que lhe é impossível deixá-lo a não ser graças à amabilidade e à boa-vontade dos outros? Não necessariamente. Pode ser que Mr. Blank tenha fechado a porta por dentro e que a pessoa que agora está a tentar entrar no quarto tenha de desfazer o que ele fez a fim de atravessar o. limiar, poupando dessa forma a Mr. Blank a canseira de se ter de levan­tar e de abrir a porta.

Seja como for, o certo é que a porta se abre e logo entra uma mulher de baixa estatura e idade indefinida - algures entre os quarenta e cinco e os sessenta, pensa Mr. Blank, mas é difícil ter uma certeza. O cabelo grisalho é curto, veste umas calças largas azul-escuras e uma blusa de algodão azul-clara, e a primeira coisa que faz logo que entra no quarto é sorrir para Mr. Blank. Este sorriso, que parece combinar afecto e ternura, elimina os seus medos e deixa-o num estado de calmo equilíbrio. Não faz ideia de quem possa ser esta mulher, mas, ainda assim, sente-se feliz por a ver.

Dormiu bem?, pergunta a mulher.

Não tenho a certeza, responde Mr. Blank. Para ser absolutamente sin­cero, não consigo lembrar-me se dormi ou não.

Isso é bom. Significa que o tratamento está a resultar.

Em vez de comentar esta enigmática afirmação, Mr. Blank estuda a mulher em silêncio por um momento, após o que pergunta: Desculpe, eu sei que é uma pergunta completamente pateta, mas por acaso não se chama Anna?

Uma vez mais, a mulher oferece-lhe um sorriso terno e afectuoso.

Estou muito contente por se ter lembrado do meu nome, diz ela. Ontem, por muitos esforços que fizesse, o meu nome escapava-lhe sempre no último momento...

De súbito perplexo e agitado, Mr. Blank dá uma volta na cadeira de cabedal até que fica de frente para a secretária; depois, retira o retrato da jovem da pilha de fotografias a preto-e-branco. Antes que tenha tempo para girar de novo e olhar para a mulher cujo nome, pelos vistos, é Anna, já ela está ao lado dele, a mão suavemente pousada no seu ombro direi­ to, apreciando, também ela, a fotografia.

Se o seu nome é Anna, diz Mr. Blank, a voz trémula de emoção, então quem é esta jovem? O nome dela também é Anna, não é?

Sim, diz a mulher, examinando o retrato com extrema atenção, como que detendo-se numa qualquer memória com dois sentimentos antagóni­cos, mas igualmente poderosos - repulsa e nostalgia.

Esta é Anna. E eu sou Anna também. Sou eu quem está nesta fotografia.

       Mas, balbucia Mr. Blank, mas... a rapariga na fotografia é jovem. E você. ., você tem o cabelo grisalho.

       O tempo, Mr. Blank, diz Anna. Compreende o significado do tempo, não é verdade? Esta sou eu há trinta e cinco anos.

       Antes que Mr. Blank tenha oportunidade de reagir, Anna devolve à pilha de fotografias o retrato da jovem que ela foi.

       O seu pequeno-almoço está a ficar frio, diz ela, e, sem mais palavras, abandona o quarto, se bem que volte passado um momento, empurrando um carrinho de aço inoxidável com uma bandeja de comida, carrinho que posiciona paralelamente à cama.

A refeição consiste de um copo de sumo de laranja, uma torrada com manteiga, dois ovos escalfados numa pequena tigela branca e um bule de chá Earl Grey. A seu tempo, Anna ajudará Mr. Blank a levantar-se da cadeira e conduzi-lo-á até à cama, mas, primeiro, dá-lhe um copo de água e três comprimidos - um verde, um branco e um púrpura.

O que é que se passa comigo?, pergunta Mr. Blank. Estou doente?

Não, de maneira nenhuma, diz Anna. Os comprimidos fazem parte do tratamento.

Eu não me sinto doente. Um pouco cansado e tonto, talvez, mas, tirando isso, nada de grave. Aliás, tendo em conta a minha idade, até nem estou nada mal.

       Engula os comprimidos, Mr. Blank. Depois, poderá comer o seu pequeno-almoço. Tenho a certeza de que está cheio de fome.

Mas eu não quero os comprimidos, dispara Mr. Blank, obstinado em não ceder. Se não estou doente, é claro que não vou engolir esses mal­ditos comprimidos.

Em vez de reagir de uma forma brusca à intervenção rude e agressiva de Mr. Blank, Anna baixa-se um pouco e beija-o na testa.

Meu querido Mr. Blank, diz ela. Eu sei como se sente, mas a verdade é que prometeu que tomaria os comprimidos todos os dias. Esse foi o contrato. Se não tomar os comprimidos, o tratamento não resultará.

Prometi?, diz Mr. Blank. Como é que eu sei se está a dizer a verdade?

Porque sou eu, Anna, quem lho diz, e eu nunca lhe mentiria. Tenho­-lhe demasiado amor para lhe fazer uma coisa dessas.

A palavra amor tem o efeito de afrouxar a determinação de Mr. Blank; impulsivamente, decide recuar.

Muito bem, diz ele, eu tomo os comprimidos. Mas só se me der outro beijo. De acordo? Mas desta vez tem de ser um beijo a sério. Nos lábios.

Anna sorri, após o que se baixa de novo e pespega-lhe um beijo nos lábios. Tendo em conta que dura uns bons três segundos, o beijo tem de ser qualificado como mais do que um simples beijinho, e, apesar de não haver línguas envolvidas, este contacto íntimo faz disparar no corpo de Mr. Blank um formigueiro de excitação. Quando Anna se reergue, já ele começou a engolir os comprimidos.

Agora, estão sentados lado a lado na beira da cama. O carrinho da comida está diante deles e, enquanto Mr. Blank bebe o sumo de laranja e dá uma trinca dela na torrada e bebe um primeiro gole de chá, Anna massaja-lhe suavemente as costas com a mão esquerda, cantarolando uma melodia que ele não é capaz de identificar, apesar de saber que a can­ção lhe é familiar, ou que, em tempos, lhe foi familiar. Então, Mr. Blank trata de atacar os ovos escalfados, furando uma das gemas com a ponta da colher e reunindo uma modesta combinação de amarelo e branco na concavidade do utensílio, mas, quando tenta erguer a colher na direcção da boca, é com manifesta perplexidade que descobre que a mão está a tremer. Não se trata apenas de uma tremura ligeira, mas sim de uma trepidação pronunciada, convulsiva, que ele não consegue controlar. Vai a colher a meio caminho entre a tigela e a boca - ou seja, não subiu mais de quinze centímetros -, e o espasmo é tão violento que a maior parte da mistura amarela-e-branca já se espalhou pela bandeja.

Quer que eu lhe dê de comer?, pergunta Anna.

O que é que se passa comigo?

Não deve preocupar-se com isso, responde ela, afagando-lhe as cos­tas para tentar tranquilizá-lo. É uma reacção natural aos comprimidos. Daqui a uns minutos, já não sente nada.

       Mas que rico tratamento que você me arranjou, murmura Mr. Blank num tom ressentido, autocomiserativo.

       É tudo para o seu bem, diz Anna. E não vai durar para sempre. Acre­dite em mim.

De modo que Mr. Blank deixa que Anna lhe dê de comer, e, enquan­to ela se entrega calmamente às suas tarefas - tirar com a colher sucessivas porções de ovo escalfado, aproximar a chávena de chá dos lábios dele, limpar-lhe a boca com um guardanapo de papel - Mr. Blank come­ ça a pensar que Anna é menos uma mulher do que um anjo, ou, se qui­sermos, um anjo em forma de mulher.

Porque é que é tão boa para mim?, pergunta ele.

Porque o amo, diz Anna. Tão simples como isso.

       Terminada a refeição, chega a hora das excreções, das abluções, e também de trocar o pijama por um vestuário mais substancial. Anna afas­ta o carrinho da cama e, depois, dá a mão a Mr. Blank a fim de o ajudar a levantar-se. Para seu imenso assombro, Mr. Blank dá por si de pé dian­te de uma porta, uma porta que, até agora, lhe tinha passado completa­mente despercebida, e, colada à superfície desta porta, há mais uma tira de fita branca, na qual se pode ler CASA DE BANHO. Mr. Blank pergun­ta-se como é possível que não tenha dado pela porta, tanto mais que a distância da cama à porta é de apenas alguns passos, mas, como o leitor já teve oportunidade de saber, os seus pensamentos têm estado longe, perdidos numa terra-de-brumas povoada de estilhaços de memórias e de seres semelhantes a espectros, enquanto busca uma resposta para a per­gunta que o atormenta.

Precisa de ir?, pergunta Anna.

Ir?, replica ele. Ir aonde?

       À casa de banho. Precisa de usar a sanita?

       Ah. A sanita. Sim. Agora que fala nisso, sim, acho que seria uma boa ideia.

       Quer que o ajude ou é capaz de se desenvencilhar sozinho?

       Não tenho a certeza. Deixe-me experimentar e logo se vê o que é que acontece.

Anna poupa-o ao trabalho de rodar a maçaneta de porcelana e a porta abre-se. Enquanto Mr. Blank avança no seu passo arrastado pelo xadrez preto-e-branco do chão da casa de banho branca e sem janelas, Anna fecha a porta .atrás dele, e, durante vários momentos, Mr. Blank limi­ta-se a ficar de pé no meio da casa de banho, a olhar para a sanita branca encostada à parede do fundo, de súbito vencido por um profundo senti­mento de desamparo, por um doloroso desejo da companhia de Anna. Por fim, murmura para si mesmo: Aguenta-te, meu velho. Estás a com­portar-te como uma criança. No entanto, apesar de fazer um esforço e de se arrastar na direcção da sanita e de começar a baixar as calças do pija­ma, sente uma esmagadora vontade de chorar.

As calças do pijama caem até aos tornozelos; ele senta-se no assen­to da sanita; a bexiga e os intestinos preparam-se para evacuar os líqui­dos e sólidos até agora retidos. Urina flui do seu pénis, primeiro um troço e depois um segundo troço deslizam do seu ânus, e sabe-lhe tão bem estar a aliviar-se desta forma que acaba por se esquecer da desolada tris­teza que, escassos momentos antes, se apossou dele. Claro que é capaz de se desenvencilhar sozinho, diz ele para si mesmo. Desde criança que o faz, e, no capítulo do mijar e do cagar, é tão capaz como qualquer outra pessoa neste mundo. Mas há mais: também é um perito no que toca a limpar o cu.

Deixemos que Mr. Blank tenha o seu pequeno momento de orgulho, já que, apesar do êxito com que conclui a primeira parte da operação, a segunda parte não corre, nem de longe nem de perto, tão bem como a primeira. Não tem a menor dificuldade em levantar-se do assento e em puxar o autoclismo, mas, mal acaba de fazer isso, verifica que as calças de pijama continuam enrosca das em volta dos tornozelos e que, se qui­ser puxá-las para cima, terá de se curvar ou de se agachar e de, com mãos certeiras, agarrar no cós. Acontece que, hoje, Mr. Blank não se sente nada à vontade para se entregar a actividades como curvar-se ou agachar-se, mas, das duas, aquela que lhe inspira mais medo é curvar-se, pois sabe que, se baixar a cabeça, correrá um grande risco de perder o equilíbrio, e Mr. Blank receia que, com a perda de equilíbrio, acabe por dar uma queda e, quem sabe, partir a cabeça nos ladrilhos pretos e brancos. Con­clui por isso que agachar-se é o menor dos dois males, embora não este­ ja nada seguro de que os seus joelhos aguentem a pressão a que vão ser sujeitos. Nunca saberemos se os joelhos de Mr Blank aguentam ou não essa pressão. Alertada pelo som do autoclismo, Anna, presumindo sem dúvida que Mr. Blank concluiu as tarefas que se tinha proposto fazer, abre a porta e entra na casa de banho.

Poder-se-ia pensar que Mr. Blank se sentiria constrangido ao ver-se numa situação tão comprometedora (para ali plantado na ca_a de banho com as calças para baixo, o pénis flácido pendendo entre as escanzela­das pernas nuas), mas não é esse o caso. Perante Anna, Mr. Blank não sente nem o mais leve resquício de falso pudor. pelo contrário, sente-se mais do que satisfeito por a deixar ver o que quer que seja que há para ver, e, em vez de se agachar à pressa para puxar as calças de pijama, começa a desabotoar o casaco de pijama a fim de despir também a camisa. Gostaria de tomar o meu banho agora, diz ele.

Um banho a sério, na banheira, pergunta ela, ou só um banho de esponja?

Tanto me faz. Decida você.

Anna olha para o seu relógio e diz: Talvez só um banho de esponja. Já está a ficar um bocado tarde e eu ainda tenho de o vestir e de fazer a cama.

Por esta altura, já Mr. Blank despiu tanto as calças como o casaco de pijama, para além de ter descalçado as pantufas. Indiferente à nudez do velho, Anna abeira-se da sanita e baixa a tampa do assento, que afaga umas quantas vezes com a palma da mão em jeito de convite para que Mr. Blank se sente. Mr. Blank senta-se e, sem perder tempo, Anna empo­leira-se ao lado dele na borda da banheira, abre a água quente e trata de empapar um pano branco sob a torneira.

Mal Anna começa a tocar-lhe no corpo com o pano quente e cheio de espuma de sabonete, Mr Blank cai num transe de lânguida submissão, abandonando-se, deliciado, às sensações que lhe proporcionam aquelas suaves mãos que o percorrem. Anna começa por cima e vai descendo lentamente; lava as orelhas e atrás das orelhas, lava o pescoço e a nuca, após o que o faz virar-se no assento da sanita, a fim de passar com o pano pelas costas, para cima e para baixo, para baixo e para cima, e, depois de o virar de novo, faz o mesmo ao peito, parando de quinze em quinze segundos ou à volta disso para ensopar o pano sob a torneira, ora acres­centando mais sabonete, ora retirando o sabonete do pano, consoante o que vai fazer a seguir - lavar uma área específica do corpo de Mr. Blank ou remover a espuma de uma área que acaba de ser limpa. Mr. Blank fecha os olhos, a cabeça de súbito esvaziada dos seres-sombras e dos ter­rores que o têm atormentado desde o primeiro parágrafo deste relatório. Quando o pano lhe chega à barriga, já a forma do seu pénis começou a alterar-se, crescendo tanto em comprimento como em grossura e tornan­do-se parcialmente erecto, e Mr. Blank sente-se maravilhado com o facto de, apesar da idade avançada, o seu pénis continuar a reagir como sem­pre reagiu, sem uma única mudança de comportamento desde as primí­cias da adolescência. Tanta coisa mudou para ele desde então, mas não isso, não essa coisa específica, e, agora que Anna pôs o pano em contac­to directo com essa parte do seu corpo, Mr. Blank sente o pénis a ente­sar-se tanto 'quanto lhe é possível entesar-se, e, enquanto ela continua a afagá-lo e a esfregá-lo com a água quente e espumosa, tem de fazer um esforço sobre-humano para não lhe pedir, num grito irreprimível, que ter­mine aquilo que começou.

Estamos muito fogosos hoje, Mr. Blank, diz Anna.

Quer-me parecer que sim, sussurra Mr. Blank, os olhos ainda fecha­dos. É mais forte do que eu.

       Se estivesse no seu lugar, sentiria orgulho. Há muitos homens da sua idade que já não são capazes... disto.

       Não tem nada a ver comigo. A coisa tem uma vida própria, indepen­dente de mim.

De súbito, o pano passa para a perna direita. Antes que tenha tempo para se render à decepção, Mr. Blank sente a mão nua de Anna deslizan­do para cima e para baixo ao longo da bem lubrificada erecção. A mão direita continua a lavá-lo com o pano, mas a mão esquerda está agora empenhada nesta outra tarefa ao serviço dele, e, enquanto sucumbe aos experientes cuidados dessa mão esquerda, Mr. Blank pergunta-se que terá ele feito para merecer um tão generoso tratamento.

Sufoca um grito quando o sémen jorra de dentro dele, e só então, depois do facto consumado, é que abre os olhos e se vira para Anna. Ela já não está sentada na borda da banheira, mas sim ajoelhada no chão diante dele, limpando a ejaculação com o pano. Tem a cabeça baixa e, portanto, ele não consegue ver-lhe os olhos, mas, apesar disso, Mr. Blank curva-se um pouco e toca-lhe na face esquerda com a mão direita. Nesse instante, Anna ergue os olhos e, quando os seus olhos se encontram com os dele, oferece-lhe mais um dos seus ternos e afectuosos sorrisos.

Você é tão boa para mim, diz ele.

Eu quero que se sinta feliz, responde ela. Este é um tempo difícil para si e, se puder ter alguns momentos de prazer no meio de tudo isto, pode crer que o ajudarei de bom grado.

Eu fiz-lhe qualquer coisa de terrível. Não sei o que foi, mas de cer­teza que foi qualquer coisa de terrível.. inominável... impossível de ser perdoada.,. E, apesar disso, aqui está você, cuidando de mim como uma santa.

Não foi por culpa sua. O senhor fez o que tinha a fazer e eu não lhe guardo nenhum ressentimento por isso.

Mas você sofreu. Eu fi-la sofrer, não foi?

Sim, muito, terrivelmente. Por pouco não aguentava.

O que é que eu fiz?

Mandou-me para um local perigoso, um local desesperado, um local de destruição e de morte.

O que foi? Algum tipo de missão?

Sim, suponho que lhe pode chamar isso.

E você nessa altura era jovem, não era? A rapariga na foto.

Sim.

Era muito bonita, Anna. É mais velha agora, mas continuo a achá-la bonita. Praticamente perfeita, não sei se me faço entender.

Não precisa de exagerar, Mr. Blank.

       Não estou a exagerar. Se alguém me obrigasse a olhar para si vinte e quatro horas por dia o resto da minha vida, acredite que não levantaria qualquer objecção.

Uma vez mais, Anna sorri, e, uma vez mais, Mr. Blank toca-lhe na face esquerda com a mão direita.

Quanto tempo esteve nesse sítio?, pergunta ele.

Alguns anos... Muito mais tempo do que esperava estar...

Mas conseguiu escapar.

Sim, por fim, consegui...

Sinto-me tão envergonhado...

Não deve sentir vergonha do que fez. A verdade é que, sem si, eu não seria ninguém...

Ainda assim...

Esse ainda assim está a mais... Você não é como os outros homens. Sacrificou a sua vida a algo que é maior do que você mesmo, e, por detrás de tudo o que fez ou deixou de fazer, nunca estiveram razões egoístas.

Alguma vez esteve apaixonada, Anna?

Várias vezes.

É casada?

Fui.

Foi?

O meu marido morreu há três anos.

Como é que se chamava?

David. David Zimmer.

O que é que aconteceu?

Problemas de coração.

Eu também sou responsável por isso, não sou?

Não propriamente... Enfim, só de uma forma indirecta.

Lamento muito...

Não, não lamente. Para começar, se não fosse você, eu nunca teria conhecido David. Acredite em mim, Mr. Blank, a culpa não é sua. Você faz o que tem a fazer e, depois, as coisas acontecem. Tanto as coisas boas como as coisas más. É assim mesmo. Sim, nós podemos ser aqueles que sofrem, mas há uma razão para isso, urna boa razão, e quem quer que se queixe disso não compreende o que significa estar vivo.

Deverá ser assinalado que uma segunda máquina fotográfica e um segundo gravador foram instalados no tecto da casa de banho, o que possibilita o registo visual e auditivo de todas as actividades que ocorrem nesse espaço, e, dado que a palavra todo é um termo absoluto, impõe-se a conclusão de que não há um único pormenor da transcrição do diálo­go entre Anna e Mr. Blank que não possa ser verificado.

O banho de esponja continua por mais alguns minutos e, quando acaba de lavar e enxaguar as restantes áreas do corpo de Mr. Blank (per­nas, à frente e atrás; tornozelos, pés, dedos dos pés; braços, mãos, dedos; escroto, nádegas, ânus), Anna tira um roupão de turco preto que está pendurado num gancho que há na porta e ajuda Mr. Blank a vesti-lo.

Depois, pega no pijama às riscas azuis e amarelas e dirige-se para a outra divisão, tendo o cuidado de deixar a porta aberta. Enquanto Mr. Blank se planta diante do pequeno espelho por cima do lavatório, barbeando-se com una máquina eléctrica que funciona a bateria (por razões óbvias, as tradicionais lâminas de barbear estão proibidas), Anna, depois de dobrar o pijama e de fazer a cama, abre o roupeiro a fim de seleccionar as rou­pas que Mr. Blank irá vestir ao longo do dia. Move-se com rapidez e efi­ciência, como que a tentar recuperar o tempo perdido. É tão rápida na execução destas tarefas que Mr. Blank, ao entrar no quarto depois de ter feito a barba com a máquina eléctrica, não esconde a sua estupefacção perante aquilo que os seus olhos vêem: as diversas peças de roupa que vai vestir encontram-se já alinhadas em cima da cama. Tendo-se lembra­do da conversa que teve com James P. Flood e da referência a um rou­peiro, Mr. Blank esperava apanhar Anna a abrir a porta do roupeiro ­ se é que um tal roupeiro existe de facto -, a fim de determinar a sua localização no espaço do quarto. Agora, os seus olhos perscrutam o quar­to, mas Mr. Blank não vê nem sinal do roupeiro e mais um mistério fica por resolver.

Claro que poderia perguntar a Anna onde é que fica o roupeiro, mas, mal os seus olhos se detêm em Anna, sentada na cama e sorrindo para ele, sente-se tão tocado por estar de novo na sua companhia que depres­sa se esquece da pergunta.

Começo a lembrar-me de si, diz ele. Não, não me lembro de tudo, são só pequenos lampejos, um ou outro fragmento aqui e acolá. Eu era muito jovem quando a vi pela primeira vez, não era?

Creio que teria à volta de vinte e um anos, diz Anna.

Mas estava sempre a perdê-la... Por vezes, estava lá alguns dias e, depois, desaparecia... Passava um ano, passavam dois anos, passavam quatro anos, e, então, inopinadamente, voltava a aparecer.

       A razão é simples: você não sabia o que havia de fazer comigo. Demorou muito tempo a encontrar uma resposta.

E, depois, mandei-a numa... numa missão. Lembro-me de ter medo, muito medo, do que lhe pudesse acontecer. Mas, naqueles tempos, você era uma verdadeira lutadora, não era?

       Uma rapariga cheia de força e de coragem, Mr. Blank.

       Exactamente. E era isso que me dava esperança. Se você não fosse uma pessoa tão cheia de recursos, nunca teria conseguido.

       Deixe-me ajudá-lo a vestir-se, diz Anna, dando uma espreita dela ao relógio. O tempo não pára. Nunca - é a marcha do tempo...

A palavra marcha induz Mr. Blank a pensar nas suas tonturas e nas dificuldades que tem experimentado ao caminhar, mas, agora, ao percor­rer a curta distância entre a porta da casa de banho e a cama, há algo que o anima e que o leva a obsvrvar que não há nenhuma sombra no seu cérebro e que não sente minimamente o perigo de cair. Sem nada que. apoie uma tal hipótese, atribui as suas melhoras à bondosa Anna, ao sim­ples facto de ela ter estado com ele nos últimos vinte ou trinta minutos, oferecendo-lhe o afecto por que ele tão desesperadamente anseia.

Como depressa verifica, as roupas são todas brancas: calças de algo­dão brancas, camisa de botões branca, boxers brancos, meias de nylon brancas, um par de ténis brancos.

       Uma estranha escolha, diz Mr. Blank. Vou ficar tal e qual o homem dos gelados Good Humor.

       Foi um pedido especial, responde Anna. De Peter Stillman.. Não o pai, mas o filho. Peter Stillman Junior.

Quem é?

Não se lembra?

Quer-me parecer que não...

É mais uma das pessoas por quem foi responsável, Mr. Blank. Quan­do o mandou cumprir a sua missão, teve de se vestir todo de branco.

Quantas pessoas é que eu mandei em missão?

Centenas, Mr. Blank. Tantas que nem têm conta...

Muito bem. Vamos a isto. Acho que tanto me faz.

Sem mais cerimónias, desaperta o cinto e deixa que o roupão caia no soalho do quarto. Uma vez mais, está nu diante de Anna e não sente nem o mais leve resquício de constrangimento ou pudor. Olhando de relance para baixo e apontando para o seu pénis, diz: Veja só como agora está pequeno. O Senhor Grandalhão já não está tão grande agora, pois não?

Anna sorri e, depois, dá umas palmadinhas na cama, convidando-o a sentar-se ao lado dela. Quando Mr. Blank se senta, é como se, uma vez mais, recuasse de súbito aos dias da sua primeira infância, aos dias de Whitey, o cavalo de balouço, e às suas longas jornadas juntos através de desertos e montanhas do faroeste. Pensa na sua mãe, em como a mãe costumava vesti-lo assim, tal e qual, no quarto dele, com o sol da manhã

penetrando oblíquo por entre as tabuinhas das gelosias, e, nesse mesmo instante, dando-se conta de que a mãe está morta, sem dúvida há muito. tempo, pergunta-se se Anna não se terá tornado de algum modo uma nova mãe para ele, apesar da sua avançada idade, pois, se assim não fosse, por que razão se sentiria ele tão à vontade com ela, ele que, de um modo geral, sofre de uma timidez e de um constrangimento tão grandes em relação ao seu corpo, quando está com outras pessoas?

Anna ergue-se da cama e logo se agacha em frente de Mr. Blank. Começa pelas meias, enfiando uma no pé esquerdo e depois a outra no pé direito, passa às cuecas, que faz deslizar ao longo das pernas e, depois de Mr. Blank se levantar para lhe facilitar o trabalho, até à cintura, ocul­tando desse modo o Senhor Ex-Grandalhão, o qual, não tenhamos dúvi­das, voltará a, erguer-se dentro de algumas horas a fim de reafirmar o seu domínio sobre Mr. Blank.

Mr. Blank senta-se na cama uma segunda vez e o processo é repeti­do com as calças. Quando Mr. Blank se senta pela terceira vez, Anna calça-lhe os ténis, primeiro o esquerdo, depois o direito, e começa de imediato a apertar os atacadores, primeiro os do ténis esquerdo, depois os do ténis direito. Concluída esta tarefa, Anna emerge do seu agacha­mento e senta-se na cama ao lado de Mr. Blank a fim de o ajudar a vestir a camisa, guiando primeiro o braço esquerdo ao longo da manga esquer­da, depois o braço direito ao longo da manga direita, e, por fim, abotoan­do os botões de baixo para cima, e, durante estas lentas e laboriosas operações, os pensamentos de Mr. Blank estão longe, de volta ao seu quarto de menino com Whithey e a sua mãe, recordando como ela cos­tumava fazer-lhe estas mesmas coisas com a mesma paciência amorosa, tantos anos antes, nos já tão longínquos primórdios da sua vida.

Agora, Anna já não está lá. O carrinho de aço inoxidável desapare­ceu, a porta foi fechada, e, uma vez mais, Mr. Blank está só no quarto. As perguntas que tencionava fazer a Anna - sobre o roupeiro, sobre o manuscrito dactilografado em torno da pretensa Confederação, sobre se a porta está fechada por fora ou não - ficaram todas por formular, pelo que Mr. Blank continua tão às escuras quanto ao que está a fazer neste sítio como estava antes da chegada de Anna. Para já, está sentado na beira da cama estreita, mãos abertas fincadas nos joelhos, cabeça baixa, olhos fixos no chão, mas, em breve, logo que sinta a força de vontade indis­pensável para o fazer, levantar-se-á da cama e, uma vez mais, percorreráa distância que o separa da secretária a fim de examinar a pilha de foto­grafias (caso consiga armar-se da coragem necessária para enfrentar de novo essas imagens) e de avançar na leitura do manuscrito dactilografado sobre o homem preso no quarto em Ultima. Para já, contudo, a única coisa que Mr. Blank faz é ficar sentado na cama a suspirar por Anna, ele que daria tudo para que ela ainda estivesse ali, ele que daria tudo para poder envolvê-la nos seus braços e estreitá-la contra si.

Agora, está de pé uma vez mais. Tenta arrastar-se na direcção da secretária, mas esquece-se de que já não tem as pantufas calçadas, e a sola de borracha do seu ténis esquerdo gruda-se à madeira do soalho ­de uma forma tão abrupta e inopinada que Mr. Blank perde o equilíbrio e por pouco não cai. Raios os partam, diz ele, raios partam estes estúpi­dos filhos da puta destes miseráveis ténis brancos. Sente um desejo tre­mendo de tirar os ténis e calçar as pantufas, mas as pantufas são pretas e, se as calçar, deixará de estar todo vestido de branco, e isso foi uma coisa que Anna lhe pediu expressamente que fizesse - a pedido de um tal Peter Stillman Junior, seja lá quem for que a criatura possa ser.

Consequentemente, Mr. Blank abandona o passo arrastado a que recorria quando tinha as pantufas calçadas e viaja na direcção da secretá­ria com algo que se assemelha a um andar normal. Não propriamente a passada segura e enérgica que vemos nos jovens e vigorosos, mas uma passada lenta e pesada que consiste no seguinte: Mr. Blank ergue um pé cerca de três ou quatro centímetros, impele a perna que está agarrada a esse pé uns quinze centímetros para a frente, e, depois, pespega no chão toda a planta do pé, calcanhar e dedos ao mesmo tempo. Segue-se uma breve pausa, após o que repete o processo com o outro pé. Pode não ser muito agradável de se ver, mas chega para o que ele quer, e, ao fim de um tempo relativamente curto, Mr. Blank vê-se de pé diante da secretária.

A cadeira foi empurrada de modo a ajustar-se ao vazio sob o tampo da secretária, o que implica que, para se sentar, Mr. Blank tem de puxá­-la para trás. Ao fazê-lo, descobre finalmente que a cadeira está equipa­da com rodas, já que, em vez de arranhar ruidosamente o soalho, como ele estava à espera, desliza suavemente, com um esforço quase nulo da sua parte. Mr. Blank senta-se, perplexo com o facto de não ter reparado nessa característica da cadeira nas suas anteriores visitas à secretária. Firma os pés no chão, dá um pequeno impulso à cadeira e lá vai ele para trás, cobrindo uma distância de cerca de um metro, talvez um pouco menos, talvez um pouco mais. Considera que está perante uma impor­tante descoberta, visto que, por muito agradável que possa ser balouçar para trás e para a frente e girar em círculos, o facto de a cadeira poder mover-se ao longo do quarto é, potencialmente, de um grande valor tera­pêutico - como, por exemplo, quando as suas pernas se sentem espe­cialmente cansadas, ou quando é vítima de mais um dos seus acessos de tonturas. Nessas alturas, em vez de ter de se levantar e de caminhar, po­derá usar a cadeira para viajar sentado daqui para ali e dali para acolá, preservando desse modo a sua força para problemas mais urgentes. Sen­te-se reconfortado com este pensamento e, apesar disso, enquanto em­purra a cadeira de volta para a secretária, o esmagador sentimento de culpa que, durante a visita de Anna, desapareceu quase por inteiro, regres­sa subitamente, e, no instante em que chega à secretária, compreende que a responsável por estes opressivos pensamentos é a secretária ela mesma - não a secretária na sua qualidade de secretária, talvez, mas as fotografias e os papéis que estão empilhados em cima do seu tampo e que, sem dúvida, contêm a resposta à pergunta que o atormenta. Os pa­péis e as fotografias são a fonte da sua angústia e, apesar de dispor de uma solução muito simples que seria voltar para a cama e ignorá-los, Mr. Blank sente-se compelido a prosseguir com as suas investigações, por muito tortuosas e dolorosas que elas possam ser.

Olha de relance para baixo e repara num bloco de notas e numa esferográfica - objectos que, se bem se lembra, não estavam lá durante a sua última visita à secretária. Não interessa, diz ele para si mesmo, e, sem mais, pega na esferográfica com a mão direita e abre o bloco na pri­meira página com a esquerda. A fim de não se esquecer de tudo o que hoje aconteceu - pois se há coisa que Mr. Blank é, é esquecido - toma nota da seguinte lista de nomes:

 

James P. Flood

Anna

David Zimmer

Peter Stillman Jr.

Peter Stillman Sr.

 

Concluída esta pequena tarefa, fecha o bloco de notas e arruma-o, bem como à caneta, a um canto. Depois, quando pega nas páginas de cima da última pilha à sua esquerda, descobre que foram agrafadas, tal­vez um total de vinte a vinte e cinco páginas, e, quando põe esse con­junto de páginas à sua frente, faz uma nova descoberta - é o manuscrito dactilografado que estava a ler antes da chegada de Anna. Conclui que foi ela quem agrafou as páginas - para lhe facilitar as coisas - e, depois, dando-se conta de que o manuscrito não é nada longo, bem pelo contrá­rio, pergunta-se se terá tempo para o acabar de ler antes que James P. Flood lhe bata à porta.

Detém-se no quarto parágrafo da segunda página e começa a ler: Nos últimos quarenta dias, não fui vítima de nenhum espancamento e nem por uma vez vi o coronel ou qualquer um dos membros da sua equipa. A única pessoa que tenho visto é o sargento que me traz a comida e que muda o balde dos excrementos. Tenho tentado agir com este ho­mem de uma forma educada, dirigindo-lhe sempre uma qualquer obser­vação trivial quando ele entra, mas - tudo aponta nesse sentido – o sargento recebeu ordens para se manter calado, e a verdade é que nem por uma vez consegui arrancar uma única palavra a este gigante de unifor­me castanho. Até que, há menos de uma hora, ocorreu um acontecimento extraordinário. O sargento abriu a porta e logo entraram dois jovens soldados que traziam uma pequena mesa de madeira e uma cadeira de cos­tas direitas. Depois de as terem colocado a meio do quarto, o sargento entrou e pôs em cima da mesa um substancial monte de folhas em bran­co juntamente com um frasco de tinta e uma caneta.

- Tem autorização para escrever - disse ele.

- É esse o seu jeito de meter conversa com as pessoas - pergun­tei eu - ou devo presumir que está a dar-me uma ordem?

       - O coronel diz que tem autorização para escrever. Interprete isso como muito bem entender.

       - Então e se eu decidir não escrever?

- O senhor é livre de fazer o que quiser, mas o coronel diz que é improvável que um homem na sua posição desperdice a oportunidade de se defender por escrito.

- Presumo que o coronel tencione ler aquilo que eu possa escrever.

- Uma presunção lógica, sem dúvida.

- E enviará para a capital aquilo que eu escrever?

- O coronel não falou das suas intenções. Limitou-se a dizer que o senhor tem autorização para escrever.

- Quanto tempo é que eu tenho?

- Esse assunto não foi discutido.

- Então e se me acabar o papel?

- Terá todo o papel e tinta de que precisar. O coronel pediu-me que lhe dissesse isso.

- Agradeça por mim ao coronel e diga-lhe que percebo muito bem o que está a fazer. Está a dar-me uma oportunidade para eu mentir acer­ca do que aconteceu e, desse modo, salvar a minha pele. É uma atitude de uma grande generosidade. Diga-lhe, por favor, que lhe fico muito grato por tal gesto.

- Transmitirei ao coronel a sua mensagem.

- Muito bem. Agora deixe-me só. Se ele quer que eu escreva, escre­verei, mas, para o fazer, tenho de estar só.

Claro que eu não podia fazer outra coisa senão conjecturar. A ver­dade é que não faço a menor ideia das razões que levaram o coronel a fazer o que fez. Gostaria de pensar que o meu presente estado suscitou nele algum acesso de compaixão, mas duvido que as coisas possam ser assim tão simples. Se há sentimento a que o coronel de Vega parece ser imune é a compaixão e, se, por um singular acaso, cedeu ao súbito dese­jo de tornar a minha vida menos desconfortável, dar-me uma caneta é, sem sombra de dúvida, uma estranha maneira de realizar tal objectivo. Um manuscrito de mentiras ser-lhe-ia extremamente útil, mas é inconce­bível que lhe tenha passado pela cabeça que, ao fim de tanto tempo, eu possa estar disposto a alterar a minha história. Já tentou obrigar-me a negar tudo o que disse, mas, se não o fiz quando quase me mataram, por que razão o faria agora? Tudo se resume, creio, a uma questão de pre­caução, a uma forma de se preparar para o que quer que possa vir a acontecer. Há demasiadas pessoas que sabem que eu estou aqui e, por isso, o coronel não poderá executar-me sem julgamento. Por outro lado, um julgamento é algo que tem de ser evitado a todo o custo - já que, se o caso for levado a tribunal, a minha história chegará ao conhecimento do público. Ao permitir-me narrar a minha história por escrito, o coronel pretende apenas reunir provas, provas irrefutáveis, provas susceptíveis de justificarem toda e qualquer medida que decida tomar contra mim. Imaginemos, por exemplo, que ele vai em frente e que ordena a minha execução sem um julgamento prévio. Logo que a notícia da minha morte. chegue à capital, o comando militar será obrigado por lei a abrir um inquérito oficial, mas, nesse ponto, o coronel terá apenas de lhes dar as páginas que eu escrevi para que o absolvam de toda e qualquer acusa­ção que sobre ele possa pender. Não duvido que o condecorarão com uma medalha por ter resolvido o dilema de uma forma tão habilidosa. De facto, é até possível que ele já lhes tenha escrito acerca do meu caso, e que, neste momento, eu esteja a segurar nesta caneta unicamente porque eles lhe deram instruções para a pôr na minha mão. Em circunstâncias normais, uma carta demora cerca de três semanas a percorrer a distância que separa Ultima da capital. Se eu estou aqui há um mês e meio, é muito provável que o coronel tenha recebido hoje a resposta. E que diz essa carta? Isto, pela certa: deixe o traidor pôr a sua história por escrito; quan­do concluir a sua tarefa, teremos toda a liberdade para acabar com ele como muito bem entendermos.

Esta é uma possibilidade. Contudo, também é possível que eu esteja a exagerar a minha importância e que o coronel esteja simplesmente a usar-me como uma mera peça de um jogo, de uma brincadeira. Quem sabe se não resolveu divertir-se com o espectáculo do meu sofrimento? As distracções são escassas numa cidade como Ultima e quem não pos­sui engenho bastante para inventar as suas próprias distracções corre o sério risco de ceder à demência por efeito do tédio. Sim, de facto não me é difícil imaginar o coronel a ler as minhas palavras para a sua amante, os dois sentados na cama à noite, rindo-se das minhas insignificantes e patéticas linhas. Seria uma actividade divertida, não vos parece? Um tão ansiado divertimento, um tão cruel desfrute...! Pode ser que, se eu o man­tiver suficientemente entretido, ele me deixe continuar a escrever para sempre... A pouco e pouco, converter-me-ei no seu palhaço privado, no seu escriba-bobo, naquele que, com infindáveis rios de tinta, rabiscará, página após página, os seus números eminentemente burlescos. E mesmo que ele se canse das minhas histórias e me mande matar, o manuscrito ficará, não é verdade? Esse será o seu troféu - mais uma caveira ,para acrescentar à sua colecção.

Ainda assim, é-me muito difícil suprimir a alegria que estou a sentir neste momento. Sejam quais forem os motivos do coronel de Vega, sejam quais forem as armadilhas e humilhações que tenha preparado para mim, posso dizer, com toda a sinceridade, que, desde que fui preso, nunca me senti tão feliz. Estou sentado à mesa e escuto a pena que vai arranhando ao longo da superfície do papel. Paro. Mergulho o aparo no tinteiro e, depois, observo as formas negras que se vão inscrevendo na página à medida que a minha mão, no seu jeito lento, avança da esquerda para a direita. Chego a uma ponta da página e depois volto à outra ponta e, quando as formas começam a esbater-se, paro uma vez mais e mergulho o aparo no tinteiro. E assim prosseguem as coisas enquanto vou descen­do pela página, e cada feixe de marcas é uma palavra, e cada palavra é um som na minha cabeça, e, de cada vez que escrevo outra palavra, ouço o som da minha própria voz, ainda que os meus lábios permaneçam em silêncio.

Logo após o sargento ter fechado a porta, peguei na mesa e encos­tei-a à parede oeste, sob a janela. Depois, fui buscar a cadeira, pus a cadeira em cima da mesa e, não sem um grande esforço, subi até lá acima - primeiro para a mesa, depois para a cadeira. Queria ver se conseguia agarrar-me ás grades e içar-me até à janela e permanecer assim o tempo suficiente para poder ver o mundo exterior. No entanto, por muito que me esforçasse, as pontas dos meus dedos nunca alcançavam o seu alvo. Decidido a não desistir, despi a camisa e tratei de a lançar na direcção da janela, pensando que talvez conseguisse enfiá-la entre as grades e depois, agarrando-me às mangas, içar-me até ao pequeno rectângulo de luz. Mas a camisa não era suficientemente comprida e, sem uma ferramenta de algum tipo para guiar o pano em torno das grades de metal (um pau, um cabo de uma vassoura, até mesmo um galho), a única coisa que conse­gui fazer foi lançar a camisa, vezes sem conta, na direcção da janela: no fundo, limitei-me a acenar com a camisa, como se ela fosse uma bandei­ra branca de rendição.

Vendo bem as coisas, talvez não seja assim tão mau desistir desses sonhos. Se não posso passar os meus dias a olhar pela janela, serei for­çado a concentrar-me na tarefa que tenho entre mãos. O factor essencial é deixar de me preocupar com o coronel, esvaziar a minha cabeça de todos os pensamentos que possam envolvê-lo e descrever os factos tal e qual os conheço. Aquilo que o coronel decidir fazer com este relatório depende exclusivamente dele e não há nada que eu possa fazer para influenciar a sua decisão. A única coisa que poderei fazer é contar a his­tória. E, tendo em conta a história que tenho para contar, acreditem que não será tarefa fácil.

Mr. Blank pára por um momento para descansar os olhos, para pas­sar a mão pelos cabelos, para ponderar o significado das palavras que acaba de ler. Quando pensa na tentativa falhada do narrador para chegar ao cimo da parede e espreitar pela janela, lembra-se de súbito da sua pró­pria janela, ou, mais exactamente, da cortina que cobre a janela, e, agora que possui um meio para viajar até lá sem ter de se levantar, decide que chegou a hora de erguer a cortina e dar uma espreitadela lá para fora. Se puder ter uma ideia precisa do espaço que o rodeia, quem sabe se não lhe ocorrerá alguma memória capaz de o ajudar a explicar aquilo que está a fazer neste quarto; quem sabe se o mero relance de uma árvore ou da cornija de um edifício ou de um retalho de céu perfeitamente aleatório não o guiará no sentido de um entendimento profundo da provação por que está a passar. Assim sendo, Mr. Blank abandona temporariamente a leitura do manuscrito dactilografado a fim de fazer uma breve viagem até à parede onde se situa a janela. Quando chega ao seu destino, estica o braço direito, agarra na ponta da cortina e dá-lhe um puxão rápido, na esperança de accionar a mola que fará com que a cortina dispare e, ao disparar, se enrosque, e, ao enroscar-se, revele a janela. No entanto, a cortina, velha como é, já perdeu muita da sua força, e, em vez de subir e de revelar a janela, desce ainda mais, e, ao descer, queda-se, frouxa e flá­cida, vários centímetros abaixo do peitoril. Frustrado com esta tentativa gorada, Mr. Blank puxa uma segunda vez pela cortina, mas com mais força e durante mais tempo, e, sem mais nem menos, a cortina decide comportar-se como uma cortina digna desse nome e lá vai ela disparada, enroscando-se sobre si mesma até chegar ao topo da janela.

Imagine-se a decepção de Mr. Blank quando espreita pela janela e vê que a persiana está fechada, impedindo-o de olhar lá para fora e de descobrir onde está. Para mais, nem sequer se trata da clássica gelosia de tabuinhas movíveis que permitem a passagem de um pouco de luz; não, o que Mr. Blank tem diante dos olhos são uns painéis metálicos de carac­terísticas industriais, sem aberturas de tipo nenhum, pintados num tom cinzento baço, com áreas de ferrugem que emergiram num ou noutro ponto e começaram já a corroer a superfície. Logo que recupera do cho­que, Mr. Blank dá-se conta de que a situação não é tão desesperada como pensava. A persiana fecha-se por d :ntro, e, para que os seus dedos che­guem ao fecho, bastar-lhe-á ergue. o caixilho inferior da janela de gui­lhotina o máximo que é possível erguê-lo. Depois de abrir o trinco da persiana, poderá erguê-la e contemplar o mundo que o rodeia. Mr. Blank sabe que, para ganhar a força necessária a tal operação, terá de se levan­tar da cadeira, mas esse é um pequeno preço a pagar, de modo que ergue . o seu corpo do assento, certifica-se de que a janela não tem nenhum fecho a prendê-la (não tem), ajusta a parte inferior das palmas das mãos à travessa superior do caixilho inferior da janela de guilhotina, faz uma pequena pausa para se preparar para o esforço que vai ter de despender, e, depois, empurra a travessa para cima com toda a sua força. Inespera­damente, a janela não se mexe. Mr. Blank pára a fim de recuperar o fôle­go e, depois, repete a tentativa - com o mesmo resultado negativo. Suspeita que a janela esteja de algum modo emperrada - seja por causa de um excesso de humidade do ar, seja por causa de um excesso de tinta que, inadvertidamente, colou os caixilhos superior e inferior -, mas, nesse preciso momento, ao examinar com mais atenção a travessa supe­rior do caixilho inferior, descobre algo que até então lhe havia escapado. Alguém enfiou na travessa dois pregos enormes, daqueles usados na construção civil; se os pregos se tornaram quase invisíveis, foi porque as suas cabeças também foram pintadas. Um prego enorme na ponta esquer­da, um prego enorme na ponta direita, e, como sabe que lhe é de todo impossível extrair os pregos da madeira, Mr. Blank sabe também que a janela não pode ser aberta: nem agora, nem mais tarde, nem - como depressa se apercebe - em circunstância alguma, que é o mesmo que dizer nunca.

Finalmente, tem diante de si uma prova. Alguém, ou talvez vários alguéns, fechou ou fecharam Mr. Blank neste quarto e fê-lo ou fizeram­-no prisioneiro contra sua vontade. Pelo menos é o que ele conclui, baseando-se na prova dos dois pregos que foram pregados na travessa do caixilho inferior da janela, mas, por muito concludente que seja essa prova, ainda há a questão da porta, e, enquanto Mr. Blank não determi­nar que a porta se encontra fechada por fora, se é que, de facto, se encon­tra fechada, a conclusão que acaba de tirar poderá muito bem revelar-se falsa. Se conseguisse raciocinar com clareza, o seu passo seguinte consistiria em caminhar, ou em ir de cadeira, até à porta, e investigar o caso sem mais demoras. Mas Mr. Blank não se mexe do sítio em que está, isto é, junto à janela, pela simples razão de que está com medo; é tão grande o seu medo do que a porta lhe possa dizer que não consegue decidir-se a arriscar um confronto com a verdade. Em vez disso, volta a sentar-se na cadeira e decide partir a janela. É que, esteja ele ou não preso neste quarto, Mr. Blank sente-se acima de tudo desesperado por saber onde está. Pensa no homem do manuscrito dactilografado que tem estado a ler e, no momento seguinte, pergunta-se se também ele não acabará por ser levado lá para fora - e executado. Ou, ainda mais sinistro para a sua imaginação, se não será assassinado aqui mesmo no quarto, estrangula­do até à morte pelas mãos possantes de um qualquer facínora.

Não há, no quarto, nenhum objecto capaz de partir uma janela. Não há martelos, por exemplo, nem cabos de vassouras, nem pás, nem pica­retas, nem aríetes de espécie nenhuma, pelo que, mesmo antes de come­çar, Mr. Blank sabe que os seus esforços estão condenados ao fracasso. No entanto, não é isso que o impede de tentar, já que, para além do medo, Mr. Blank sente uma raiva imensa dentro de si, e, movido por esse sentimento de raiva, descalça o ténis direito, agarra firmemente na biquei­ra do ténis com a mão direita e desata a martelar o vidro com o calca­nhar. É plausível que uma janela normal não aguentasse uma tal investida, mas esta é uma janela de vidros duplos do tipo mais resistente que é possível encontrar no mercado, uma janela que mal estremece enquan­to o velho a martela com a sua frágil arma de borracha e lona. Ao fim de vinte e uma marteladas consecutivas, Mr. Blank desiste e deixa cair o ténis no chão. Agora, tão frustrado quanto irado, dá uma série de punha­das no vidro, obstinado em não permitir que a janela tenha a última pala­vra, mas, no que toca a partir vidraças, a carne e o osso não são mais eficazes do que o ténis. Pergunta-se se pespegar uma valente cabeçada na janela não resolveria o problema, mas, se bem que o seu estado men­tal deixe muito a desejar, Mr. Blank ainda está suficientemente lúcido para compreender que isso seria uma loucura; de facto, ao lutar por uma causa que, é sem dúvida, uma causa sem esperança, acabaria por infli­gir graves danos físicos a si próprio. É pois de coração destroçado que se afunda na cadeira e fecha os olhos - não só cheio de medo e raiva, mas também exausto.

No instante em que fecha os olhos, vê os seres-sombras desfilar na sua cabeça. É uma longa procissão tenuemente iluminada, composta por dezenas, se não mesmo centenas, de figuras, e, entre elas, tanto há homens como mulheres, crianças como velhos, e, enquanto algumas são baixas, outras são altas, e, enquanto algumas são roliças, outras são magras, e, graças ao esforço que faz para escutar todo e qualquer som que delas possa vir, Mr. Blank consegue ouvir não só o som dos seus pas­sos, mas também algo que se assemelha a um gemido, um gemido colec­tivo, quase inaudível, é certo, que se ergue do seio da multidão. Onde estão essas figuras e para onde vão, aí estão duas perguntas a que Mr. Blank não poderá responder, mas as criaturas em causa parecem avançar, com passos lentos e pesados, ao longo de uma remota charneca algures, de um baldio que, de tão árido, alberga apenas ervas enfezadas, e como está muito escuro, e como cada figura avança de cabeça baixa, Mr. Blank não consegue distinguir nenhum rosto. Tudo o que ele sabe é que a simples visão destas criaturas o enche de pavor e, uma vez mais, é invadido por um implacável sentimento de culpa. Especula que possam ser as pessoas que enviou em várias missões ao longo dos anos, e, como aconteceu com Anna, talvez algumas delas, ou muitas delas, ou todas elas, tenham pas­sado por momentos verdadeiramente difíceis ou tenham mesmo sido sujeitas a um sofrimento insuportável e/ou à morte.

Mr. Blank não pode ter certeza de nada, mas parece-lhe possível que haja uma ligação entre estes seres-sombras e as fotografias que estão na secretária. Será que as fotografias representam as mesmas pessoas cujos rostos não consegue identificar na cena que está a desenrolar-se na sua cabeça? Se for esse o caso, então os fantasmas que está a observar não serão um produto da sua imaginação, mas sim memórias, memórias de pessoas reais - de facto, quando é que foi a última vez que alguém tirou uma fotografia a uma pessoa que não existia? Mr. Blank sabe que não dis­põe de nenhum dado susceptível de suportar a sua teoria, sabe que se trata apenas da mais delirante das conjecturas delirantes, mas tem de haver alguma razão, diz ele para si mesmo, alguma causa, algum princí­pio capaz de explicar o que lhe está a acontecer, capaz de esclarecer o facto de ele se encontrar neste quarto com estas fotografias e estas qua­tro pilhas de manuscritos, e, assim sendo, porque não aprofundar um pouco mais a investigação para ver se há alguma verdade nesta sua cega estocada na escuridão?

Esquecendo os dois pregos enfiados na janela, esquecendo a porta e a questão de saber se estará fechada por fora ou não, Mr. Blank desliza na sua cadeira até à secretária, pega na pilha de fotografias e coloca-a diante de si. A fotografia de Anna é a primeira, claro, e ele passa mais al­guns momentos a olhar de novo para ela, a estudar o seu rosto infeliz, embora belo, a mergulhar na fixidez dos olhos escuros e febris de Anna. Não, diz para si mesmo, nós nunca fomos casados. O marido dela era um homem chamado David Zimmer e, agora, Zimmer está morto.

Põe esta fotografia de lado e olha para a seguinte. É outra mulher, talvez a meio dos vinte, cabelo castanho-claro, um olhar firme e vigilan­te. A metade inferior do seu corpo encontra-se obscurecida, dado que ela está de pé à entrada do que parece ser um apartamento nova-iorquino, com a porta apenas parcialmente aberta, como se, de facto, tivesse aca­bado de abri-la para dar as boas-vindas a alguma visita, e, apesar da ex­pressão cautelosa que mora nos seus olhos, os vincos nos cantos da boca revelam o esboço de um sorriso. Mr. Blank tem uma súbita e pungente sensação de reconhecimento, mas, apesar de todos os seus esforços para se lembrar do nome da mulher, não lhe ocorre rigorosamente nada ­nem ao fim de vinte segundos, nem ao fim de quarenta segundos, nem ao fim de um minuto. Tendo em conta o facto de ter descoberto o nome de Anna tão rapidamente, imaginou que seria capaz de fazer o mesmo com os outros. Pelos vistos, porém, tal não é o caso.

Examina mais dez fotografias, sempre com os mesmos resultados decepcionantes. Um velho numa cadeira de rodas, tão magro e delicado como um pardal, usando os óculos escuros dos cegos. Uma mulher de sorriso arreganhado, com uma bebida numa mão e um cigarro na outra, envergando um vestido típico dos. anos 1920 e um chapéu clache. Um homem assustadoramente obeso com uma imensa cabeça calva e um cha­ruto projectando-se da boca. Uma outra jovem, esta chinesa, vestida com um fato de ballet. Um homem de cabelo escuro com um bigode encera­do, todo aperaltado no seu fraque e chapéu alto. Um jovem dormindo na relva daquilo que parece ser um parque público. Um homem mais velho, talvez na casa dos cinquenta, deitado num sofá, com as pernas ao alto, apoiadas num monte de almofadas. Um sem-abrigo com um ar escavei­rado e uma barba enorme: está sentado num passeio, abraçado a um cão, um corpulento vira-lata. Um homem negro, com um físico anafado, na casa dos sessenta, tem nas mãos uma lista telefónica de Varsóvia de 1937­-38. Um jovem esguio sentado a uma mesa com cinco cartas na mão e uma pilha de fichas de póquer à sua frente.

Cada fracasso só contribui para desencorajar ainda mais Mr. Blank e para o encher ainda mais de dúvidas quanto à possibilidade de reconhe­cer a pessoa seguinte - até que, murmurando qualquer coisa com uma voz tão sumida que o gravador não consegue apanhar as palavras, desis­te da tarefa que se propusera e afasta as fotografias.

Balouça para trás e para a frente na cadeira durante cerca de um minuto, esforçando-se por recuperar o equilíbrio mental e por esquecer o desaire. Então, determinado a não gastar nem mais um pensamento com a questão das fotografias, pega no manuscrito dactilografado e come­ça de novo a ler:

O meu nome é Sigmund Graf. Nasci há quarenta e um anos na cida­de de Luz, um centro têxtil no noroeste da província de Faux-Lieu, e, atéà minha detenção pelo coronel de Vega, trabalhei na divisão de Estudos Demográficos do Ministério dos Assuntos Internos. Na minha juventude, conclui com êxito o bacharelato em Literatura Clássica na AlI Souls University, e, posteriormente, ingressei no exército e, como funcionário dos serviços de espionagem, participei nas Guerras da Fronteira Sueste e, em particular, na batalha que conduziu à unificação dos principados de Petit­-Lieu e Merveil. Fui honrosamente desmobilizado com o posto de capi­tão, tendo recebido uma medalha por serviços distintos em consequência do meu trabalho de intercepção e descodificação de mensagens inimi­gas. Ao regressar à capital após a desmobilização, entrei para o Ministé­rio dos Assuntos Internos na qualidade de investigador e coordenador de campo. Estava no ministério havia doze anos quando parti para os Terri­tórios Estrangeiros. O meu último título oficial foi o de subdirector adjunto.

Como todos os cidadãos da Confederação, conheci o meu quinhão de sofrimento, vivi dilatados períodos de violência e tumultos e, na minha alma, ficaram gravadas as indeléveis marcas da perda. Não tinha ainda catorze anos quando os motins na Sanctus Academy, em Beauchamp, precipitaram a eclosão das Guerras das Línguas de Faux-Lieu, e, dois me­ses após a invasão, vi a minha mãe e o meu irmão mais novo morrerem queimados durante o Saque de Luz. O meu pai e eu encontrávamo-nos entre as sete mil almas que participaram no êxodo para a província vizi­nha de Neue Welt. Era uma viagem de cerca de novecentos quilómetros e que demorava mais de dois meses e, quando chegámos ao nosso des­tino, a multidão que havia partido sofrera uma redução de um terço. Nas últimas centenas de quilómetros, o meu pai estava tão fraco devido à doença de que padecia, que tive de o levar às costas, cambaleando meio cego no meio da lama e sob as chuvas invernosas até chegarmos aos arra­baldes de Nachtburg. Durante seis meses, mendigámos nas ruas dessa cidade cinzenta, visto que essa era a única maneira de sobrevivermos, e, quando finalmente fomos salvos pelo dinheiro que nos emprestaram alguns parentes que viviam no Norte, estávamos prestes a morrer de fome. Depois disso, a nossa vida melhorou muito, mas, não obstante toda a prosperidade que o meu pai alcançou nos anos subsequentes, a verda­de é que nunca recuperou inteiramente desses meses de provações. Quando ele morreu aos cinquenta e seis anos - passaram agora dez Verões - a brutalidade das experiências a que o destino o condenou envelhecera-o de tal maneira que o seu aspecto era o de um homem de setenta anos.

Contudo, não foram estes os únicos sofrimentos a marcar a minha vida. Há cerca de ano e meio, o ministério enviou-me numa expedição às Comunidades Independentes da Província de Tierra Blanca. Menos de um mês após a minha partida, a epidemia de cólera devastou a capital. Muitos são aqueles que agora se referem à peste como a Maldição da His­tória, e, tendo em conta que ela eclodiu precisamente quando as cerimó­nias de Unificação, com tanto cuidado planeadas, estavam prestes a começar, é compreensível que a epidemia possa ser interpretada como um sinal funesto, como um juízo acerca da própria natureza e desígnios da Confederação. Pessoalmente, não sou dessa opinião, mas a verdade é que a epidemia alterou para todo o sempre a minha vida. Sem acesso a nenhuma notícia da capital, tratei de fazer o meu trabalho durante os qua­tro meses e meio seguintes, viajando num constante vaivém entre as remotas comunidades das regiões montanhosas do Sul, prosseguindo as minhas investigações acerca das diversas seitas religiosas que se haviam implantado nesse território. Quando regressei em Agosto, já a crise tinha passado - pelo contrário, nesse preciso momento começava a minha crise pessoal, visto que fiquei a saber que a minha mulher e a minha filha, então com quinze anos, tinham desaparecido. A maior parte dos nossos vizinhos do bairro de Closterham ou fugira da cidade ou sucumbira à doença, mas, entre aqueles que ficaram, não havia um único que se lem­brasse de as ter visto. A nossa casa estava intacta, e, em todos os seus quar­tos e salas, em todos os seus cantos e recantos, não encontrei um único elemento que pudesse sugerir que a doença se havia infiltrado entre aquelas paredes. Examinei minuciosamente todas as divisões da casa, mas nenhum segredo me foi revelado nem quanto ao modo como a minha mulher e a minha filha poderiam ter abandonado o local, nem quanto ao momento em que presumivelmente o teriam feito. Não desaparecera uma única jóia, não faltava uma única peça de roupa, não havia no soalho da casa nenhum objecto abandonado à pressa. A casa estava exactamente como eu a deixara cinco meses antes. Com uma só e avassaladora dife­rença: a minha mulher e a minha filha já não se encontravam lá.

Passei várias semanas indagando nas ruas da cidade, ávido de pistas que me pudessem conduzir ao seu paradeiro, rendido a um desespero que não parava de crescer a cada tentativa fracassada para descobrir informações que me elucidassem acerca do seu rasto. Comecei por falar com amigos e colegas e, depois de ter esgotado o círculo de pessoas conhecidas (no qual incluo as amigas da minha mulher, os pais das cole­gas de escola da minha filha, bem como os comerciantes e lojistas do nosso bairro), comecei a abordar desconhecidos. Armado de retratos da minha mulher e da minha filha, interroguei inúmeros médicos, enfermei­ras e voluntários que tinham trabalhado nos hospitais improvisados e nas escolas onde os doentes e moribundos haviam sido socorridos e ampa­rados, mas, entre todas as pessoas - e foram centenas - que olharam para essas miniaturas, não houve uma única que reconhecesse os rostos que eu segurava na mão. No fim de tudo, só havia uma conclusão a tirar. o flagelo ceifara as vidas das duas pessoas que eu mais amava neste mundo. Juntamente com milhares de outras vítimas, a minha mulher e a minha filha jaziam agora numa das valas comuns de Viaticum Bluff, o cemitério dos mortos anónimos.

Não refiro estes factos com a intenção de fazer incidir sobre a minha pessoa a luz propícia da compaixão. Ninguém tem de sentir pena de mim, tal como ninguém tem de procurar desculpas para os erros que cometi em consequência destes acontecimentos. Sou um homem, não um anjo, e se, ocasionalmente, o sofrimento que tomou conta de mim toldou a minha visão e me levou a adoptar uma conduta censurável, isso não deverá de modo nenhum instilar no meu eventual leitor quaisquer dúvi­das sobre a veracidade da história que estou a contar. Antes que alguém tente denegrir-me, apontando essas manchas no meu cadastro, sou eu que, por minha livre vontade, considero ser meu dever expor-me e decla­rar abertamente a minha culpa perante o mundo. São traiçoeiros os tem­pos em que vivemos e eu sei que uma única palavra segredada ao ouvido errado pode deturpar - e com que facilidade...! - a percepção das coi­sas. Quando alguém se propõe desacreditar o carácter de um homem, não deixará de proceder para que todas as acções desse homem pare­çam desonestas, suspeitas, prenhes de motivos dúplices. No meu caso, as manchas em questão foram fruto não da perversidade, mas do sofri­mento; não da torpeza, mas da confusão. Eu perdi o norte e, durante vários meses, busquei alívio no poder anestesiante do álcool. A maior parte das noites, bebia sozinho, sentado na escuridão da minha casa vazia, mas algumas noites eram piores do que outras. Sempre que me confrontava com um desses momentos de crise aguda, os meus pensa­mentos minavam os fundamentos do meu ser e, ao fim de pouco tempo, acabava a sufocar na minha própria respiração. A minha cabeça enchia­-se de imagens da minha mulher e da minha filha, e, vezes sem conta, via os seus corpos salpicados de lama a descerem à vala comum, e, vezes sem conta, via os seus braços e pernas nus emaranhados nos braços e pernas de outros cadáveres que jaziam na vala, e, de súbito, a escuridão da casa era tão esmagadora que se tornava intolerável. Então, afoitava­-me a sair e a frequentar locais públicos, na esperança de que o ruído e o tumulto das multidões quebrassem o trágico sortilégio dessas imagens. Frequentava estalagens e cervejarias e foi num desses estabelecimentos que infligi os danos mais graves que se possa imaginar a mim mesmo e à minha reputação. o incidente ocorreu numa noite de sexta-feira em Novembro, quando um homem chamado Giles McNaughton provocou uma briga comigo no Auberge des Vents. McNaughton asseverava que eu o tinha agredido primeiro, mas onze testemunhas disseram o contrário em tribunal, pelo que fui absolvido de todas as acusações. No entanto, não foi mais do que uma pequena vitória, visto que, na verdade, eu parti o braço do homem e despedacei-lhe o nariz, e nunca teria reagido de forma tão violenta se, por via do álcool, não me tivesse condenado ao inferno em que vivia. o júri declarou-me inocente, considerando que agira em legítima defesa, mas isso não apagou o estigma de ter ido a jul­gamento - nem o escândalo que rebentou quando se descobriu que um alto funcionário do Ministério dos Assuntos Internos estivera envolvido numa sangrenta rixa algures num qualquer bar mal afamado. Horas depois do veredicto, circulava já o rumor de que influentes personalida­des do ministério haviam subornado certos membros do júri para que votassem a meu favor. Não tenho conhecimento de eventuais procedi­mentos corruptos para me salvar da condenação, mas sentir-me-ia incli­nado a rejeitar liminarmente tais acusações; em minha opinião, tratava-se apenas de mais um caso de baixa intriga. Do que tenho absoluta certeza é de que, até àquela noite, nunca na minha vida vira McNaughton. Ele, em contrapartida, sabia de mim o bastante para me tratar pelo meu nome, e, quando se aproximou da minha mesa e começou a falar da minha mu­lher, sugerindo que dispunha de informações que ajudariam a resolver o mistério do seu desaparecimento, respondi-lhe que me deixasse em paz. O que aquele homem queria era dinheiro, mas bastou-me olhar para o seu rosto macilento e cheio de manchas, para me compenetrar de que McNaughton era um reles impostor, um oportunista que, não sei por que vias, soubera da minha tragédia e pretendia extrair dela algum lucro. Pelos vistos, McNaughton não gostou que eu o mandasse embora sem lhe prestar a menor atenção. Em vez de se retirar, sentou-se na cadeira a meu lado e, furioso, agarrou-me pelas bandas do colete. Depois, puxan­do-me para a frente com tal força que os nossos rostos quase se tocavam, olhou-me nos olhos e perguntou: Qual é o problema, cidadão? Está com medo da verdade? Os seus olhos transbordavam de ira e de desprezo e, como estávamos tão perto um do outro, aqueles olhos eram os únicos objectos no meu campo de visão. Podia sentir a hostilidade que fluía ao longo do seu corpo e, um instante depois, senti como que uma transfu­são dessa hostilidade para o meu corpo. Foi então que o agredi. Sim, ele tinha-me tocado primeiro, mas, no instante em que comecei a ripostar, a única coisa que queria era destroçá-lo, era atingi-lo com toda a violência de que fosse capaz.

Esse foi o meu crime. Tome-o o leitor por aquilo que realmente foi, mas não permita que ele interfira na sua leitura deste relatório. Todos os homens passam por crises de uma espécie ou de outra e cada homem faz a sua paz com o mundo à sua própria maneira. Se a força que nessa noite usei contra McNaughton foi injustificada, a maior de todas as ini­quidades foi o prazer que senti ao usar essa força. Não perdoo os meus actos, mas, tendo em conta o meu estado mental durante esse período, não deixa de ser extraordinário que o incidente no Auberge des Vents tenha sido o único em que maltratei outra pessoa. A única pessoa que eu maltratava era eu mesmo, e, enquanto não aprendesse a dominar o meu desejo de álcool (que era, na realidade, um desejo de morte), corria o sério risco de me destruir de forma irrevogável. Com o correr do tempo, consegui recompor-me, mas confesso que já não sou o mesmo homem de outros tempos. Se continuei a viver, foi, em grande parte, porque o meu trabalho no ministério me deu uma razão para viver. Tal é a ironia da minha provação. Acusam-me de ser um inimigo da Confederação, e, no entanto, nos últimos dezanove anos, a Confederação encontrou em mim o mais leal dos servidores. É isso que a minha folha de serviços mostra e devo dizer que me orgulho de ter vivido numa época que me permitiu participar numa tão vasta empresa humana. O trabalho de campo em que sempre estive envolvido ensinou-me a amar a verdade acima de todas as coisas, e, por isso mesmo, tratei de eliminar todas as dúvidas ou ambiguidades que pudesse haver acerca dos meus pecados e transgressões; no entanto, isso não significa que eu possa aceitar a culpa por um crime que não cometi. Acredito naquilo que a Confederação representa e defen­di-o apaixonadamente com as minhas palavras, com os meus actos e com o meu sangue. Se a Confederação se virou contra mim, isso só pode sig­nificar que a Confederação se virou contra si própria. Não posso já aca­lentar qualquer esperança de sobrevivência, mas, se estas páginas forem parar às mãos de alguém com suficiente firmeza de coração para as ler no mesmo espírito em que foram escritas, então talvez o meu assassínio não tenha sido inteiramente em vão.

Muito ao longe, para lá do quarto, para lá do edifício onde o quarto se situa, ouve de novo o grito esbatido de um pássaro. Distraído pelo som, Mr. Blank ergue os olhos da página que tem à sua frente, abando­nando temporariamente as dolorosas confissões de Sigmund Graf. Uma súbita sensação de pressão invade-lhe o estômago e, antes que Mr. Blank tenha tempo para atribuir um nome - dor, simples desconforto - a essa sensação, o seu tracto intestinal trombeteia um amplo e retumbante peido. Oh! Oh!, exclama ele, grunhindo de prazer, Hopalong Cassidy ataca de novo! Depois, recosta-se na cadeira, fecha os olhos e começa a balouçar, depressa caindo num daqueles estados de lassidão roçando o transe em que a mente se esvazia de todos os pensamentos, de todas as emoções, de todas as conexões com o eu. Assim rendido a este estupor reptiliano, Mr. Blank está, por assim dizer, ausente, ou, pelo menos, momentaneamente desligado daquilo que o rodeia, o que implica que não ouça a mão que começou a bater à porta. Pior do que isso, não ouve a porta a abrir-se, e, portanto, apesar de alguém ter entrado no quarto, Mr. Blank continua sem saber se a porta é ou não fechada por fora. Ou melhor, daqui a pouco - logo que desperte do seu transe - continuará sem saber.

Há alguém que lhe bate ao de leve no ombro, mas, antes que Mr. Blank consiga abrir os olhos e girar na cadeira para ver quem é, essa pes­soa começou já a falar. Pelo timbre e entoação da sua voz, Mr. Blank reco­nhece instantaneamente que pertence a um homem, mas fica perplexo com o facto de essa voz estar a falar com ele com o que parece ser um sotaque cockney.

Desculpe, Mr. Blank, diz-lhe o homem. Fartei-me de bater, e, como o senhor não abriu, pensei que seria melhor entrar para ver se havia algum problema.

Agora, Mr. Blank gira na cadeira e examina atentamente a visita. O homem parece andar pelos cinquenta e poucos anos, tem um cabelo primorosamente penteado e um pequeno bigode castanho com salpicos grisalhos. Nem baixo nem alto, diz Mr. Blank para si mesmo, mas mais para o baixo do que para o alto, e, pelo porte erecto (de facto, a criatura está quase tão direita como um fuso) que assume, ali plantado no quar­to, enfarpelado no seu fato de tweed, faz lembrar um militar de algum tipo ou talvez um funcionário público de nível inferior.

E o senhor é?, pergunta Mr. Blank.

Flood, sir. Nome próprio James. Segundo nome Patrick. James P. Flood. Não se lembra de mim?

Vagamente, apenas vagamente.

O ex-polícia.

Ah. Flood, o ex-polícia. Ia fazer-me uma visita, não era?

Isso mesmo, sir. Exactamente, sir. É por isso que aqui estou. Estou a fazer-lhe a visita agora.

Mr. Blank percorre o quarto com os olhos na esperança de encon­trar uma cadeira, já que só assim poderá oferecer a Flood um lugar para se sentar, mas, pelos vistos, a única cadeira no quarto é aquela que ele próprio ocupa agora.

Algum problema?, pergunta Flood.

Não, não, replica Mr. Blank. Estava só à procura de outra cadeira.

Posso sempre sentar-me na cama, não é, responde Flood, apontan­do para a cama. Ou, se lhe apetecer, podemos ir até ao parque, do outro lado da rua. No parque é que não há falta de bancos.

Mr. Blank aponta para o seu pé direito e diz: Falta-me um ténis. Não posso sair só com um ténis calçado.

Flood vira-se e localiza imediatamente o ténis branco no chão sob a janela. Está ali o outro, sir. Podemos calçar-lhe de novo o ténis enquanto      o gato dá duas sacudidelas [N4].

O gato? Mas de que é que você está a falar?

É só uma expressão, Mr. Blank. Não era minha intenção ofender. Flood cala-se por um momento, olha outra vez para o ténis no chão e depois diz: Bom, então que me diz? Calçamo-lo ou não?

Mr. Blank solta um longo e cansado suspiro. Não, diz ele, com uma nota de sarcasmo na voz, eu não quero calçá-lo. Estou farto destes mal­ditos ténis. Aliás, preferia descalçar também este.

Mal estas palavras escapam da sua boca, Mr. Blank, por via de um súbito estímulo, dá-se conta de que um tal acto pertence ao reino do pos­sível, de que, neste insignificante caso, não precisa da ajuda de ninguém. Por isso, sem um momento de hesitação, baixa-se e tira o ténis do seu pé esquerdo.

Ah, assim está melhor, diz ele, erguendo as pernas e meneando os dedos dos pés no ar. Muito melhor. E continuo todo vestido de branco, não é?

       Claro que está todo vestido de branco, diz Flood. Mas... porque é que isso é assim tão importante?

Deixe lá, não interessa, diz Mr. Blank, enjeitando a pergunta de Flood por irrelevante. Olhe, sente-se na cama e diga-me o que pretende, Mr. Flood.

O antigo inspector da Scotland Yard senta-se aos pés da cama, posicionando o corpo no quadrante esquerdo, a fim de alinhar o seu rosto com o rosto do velho, que está sentado na cadeira, de costas para a secretária, a uma distância de mais ou menos dois metros. Flood pigarreia, como que procurando as palavras apropriadas para começar, e, depois, com uma voz baixa, trémula de ansiedade, diz: É por causa do sonho, sir.

Do sonho?, pergunta Mr. Blank, confuso com a afirmação de Flood. Que sonho?

 

4 .In two shakes oi a cal» (à letra, .em duas sacudidelas de um gato-). Trata-se de uma expressão tipicamente cockney (um pouco caída em desuso) e por isso a mantivemos na tradução. Um correspondente possível em português seria -enquanto o diabo esfrega um olho-. (N. do T)

 

o meu sonho, Mr. Blank. O sonho que o senhor mencionou no seu relatório sobre Fanshawe.

Quem é Fanshawe?

Não se lembra?

Não, declara Mr. Blank numa voz sonora e irritada. Não, não me lem­bro de Fanshawe. Aliás, mal me lembro do que quer seja. Andam a encher-me de comprimidos e o que se passa é que, agora, já não me lem­bro praticamente de nada. A maior parte do tempo, nem sequer sei quem sou. E se eu não consigo lembrar-me de mim mesmo, por certo não espe­ra que eu me lembre desse tal... desse tal...

Fanshawe.

Fanshawe... Mas diga-me, por favor - quem é essa pessoa?

Um dos seus operacionais, sir.

Quer dizer, alguém que eu mandei numa missão?

Uma missão extremamente perigosa.

Sobreviveu?

Ninguém sabe ao certo. Mas a opinião predominante é a de que ele já não está entre nós.

       Gemendo baixinho para si mesmo, Mr. Blank cobre o rosto com as mãos e sussurra: Mais um dos danados...

Desculpe, interrompe Flood, não percebi o que disse...

Nada, replica Mr. Blank, num tom mais alto, eu não disse nada.

Nesse ponto, há uma pausa na conversa, uma pausa que se vai alon­gando. O silêncio reina e, nesse silêncio, Mr. Blank imagina que está a ouvir o som do vento, um vento forte que sopra por entre um renque de árvores num qualquer local perto, bastante perto. Resta saber se esse vento é ou não real, e Mr. Blank não sabe. Durante todo esse tempo, os olhos de Flood permanecem fixos no rosto do velho. Quando o silêncio já se tornou insuportável, Flood faz finalmente uma tímida tentativa para   reatar o diálogo. Então?, diz ele.

Então o quê?, replica Mr. Blank.

O sonho. Podemos falar do sonho agora?

Como é que eu posso falar de um sonho de outro homem se não conheço esse sonho?

       Mas o problema é mesmo esse, Mr. Blank. Eu próprio não tenho nenhuma lembrança desse sonho.

Então não posso fazer nada por si, pois não? Se nenhum de nós sabe o que aconteceu no seu sonho, não há nada para falar.

É mais complicado do que isso.

De maneira nenhuma, Mr. Flood. É muito simples.

O senhor diz isso só porque não se lembra de ter escrito o relatório. Se se concentrasse, se deixasse que a sua mente se centrasse única e exclusivamente naquilo que escreveu, estou em crer que se recordaria de       tudo.

Duvido.

Ouça. No relatório que escreveu sobre Fanshawe, o senhor refere que ele foi autor de vários livros nunca publicados. Um deles intitulava­-se Neverland. Infelizmente, exceptuando o facto de concluir que alguns acontecimentos do livro foram inspirados por acontecimentos similares da vida de Fanshawe, o senhor não diz nada acerca do assunto nem da intriga do livro - enfim, não diz rigorosamente nada acerca do livro. Apenas um breve aparte - e, permito-me acrescentar, escrito entre parênteses - que consiste do seguinte... Cito de memória: (A casa de Montag no capítulo VII; o sonho de Flood no capítulo xxx). A questão, Mr. Blank, a questão é que o senhor leu com toda a certeza esse livro, e, como é uma das poucas pessoas no mundo que o leu, ficar-lhe-ia pro­fundamente grato - do fundo do coração, Mr. Blank, do fundo deste meu desconsolado coração - se fizesse um esforço para se lembrar do conteúdo do meu sonho.

Pelo modo como fala do livro, julgo poder concluir que se trata de um romance.

É verdade, sir. É uma obra de ficção.

E Fanshawe usou-o como personagem?

Sim, pelos vistos usou... Mas não há nada de estranho nesse proces­so. Tanto quanto sei, os escritores fartam-se de fazer isso.

Talvez façam, mas, francamente, não percebo por que razão é que se deixa afectar tanto por isso... Porque a verdade é esta: na realidade, o sonho nunca aconteceu. São apenas palavras numa página - pura inven­ção. Esqueça o sonho, Mr. Flood. Não é nada de importante.

É importante para mim, Mr. Blank. Toda a minha vida depende dele. Sem esse sonho, eu não sou nada - literalmente nada.

A paixão com que o ex-polícia, por norma reservado, diz estas pala­vras - uma paixão acirrada por um desespero genuíno, lancinante -, éencarada por Mr. Blank como algo de hilariante, e, pela primeira vez desde o início deste relatório, Mr. Blank desata a rir. Como seria de espe­rar, Flood fica ofendido com tal reacção, visto que ninguém - e em par­ticular uma pessoa tão fragilizada, como é o caso de Flood neste momento - gosta de ver os seus sentimentos espezinhados de uma maneira tão cruel.

       Francamente, Mr. Blank, está a ofender-me, diz ele. Não tem o direi­to de se rir de mim.

Talvez não, diz Mr. Blank logo que param os espasmos no seu peito, mas, sinceramente, é mais forte do que eu... Você leva-se tão tremendamente a sério, Flood... Acaba por parecer ridículo...

Eu posso ser ridículo, diz Flood, num tom cada vez mais furioso, mas o senhor... o senhor é cruel... cruel e indiferente ao sofrimento dos outros. O senhor brinca com as vidas das pessoas e não assume respon­sabilidade rigorosamente nenhuma por aquilo que faz. Não vou ficar aqui a chateá-lo com os meus problemas, mas deixe-me que lhe diga: você é o culpado por tudo o que me aconteceu. É com o coração nas mãos que lhe digo, Mr. Blank - a culpa é toda sua e eu odeio-o por isso.

Problemas?, diz Mr. Blank, de súbito amaciando o seu tom, dando o seu melhor para mostrar alguma compaixão. Que espécie de problemas?

As dores de cabeça, por exemplo. O facto de ter sido obrigado a reformar-me cedo. O facto de ter ficado sem nada - completamente fali­do. E depois há a história com a minha mulher, ou melhor, a minha ex­-mulher, já para não falar dos meus filhos, que não querem nada comigo. A minha vida está em ruínas, Mr. Blank. Vagueio pelo mundo como um fantasma, e, às vezes, pergunto-me se existirei realmente. Se alguma vez existi, se alguma vez tive algum tipo de existência.

       E acha que o acesso a esse sonho vai resolver isso tudo? Francamen­te, parece-me muito duvidoso...

O sonho é a minha única hipótese. É como uma parte de mim que me falta, e, enquanto não a encontrar, creia que nunca mais voltarei a ser eu mesmo.

       Não me lembro de Fanshawe. Não me lembro de ter lido esse romance. Não me lembro de ter escrito o relatório. Gostaria muito de poder ajudá-lo, Flood, mas o tratamento que me estão a dar transformou o meu cérebro num monte de sucata enferrujada.

Tente lembrar-se. É tudo o que lhe peço. Tente.

Enquanto fita os olhos do destroçado ex-polícia, Mr. Blank repara nas lágrimas que começaram a deslizar pelas suas faces. Pobre homem, diz Mr. Blank para si mesmo. Por um momento, põe a hipótese de pedir a Flood que o ajude a descobrir o roupeiro, pois acaba de se lembrar de que foi precisamente Flood quem lhe falou do roupeiro na conversa tele­fónica que teve com ele nessa manhã, mas, no fim, depois de ter pesado todos os prós e contras de um tal pedido, decide que não. Em vez disso, diz: Por favor, perdoe-me, Mr. Flood. Lamento muito ter-me rido de si.

Agora, Flood já não está lá e, uma vez mais, Mr. Blank encontra-se só no quarto. Em consequência do perturbante encontro, o velho sente­-se irritadiço e mal-humorado, magoado com as injustas e agressivas acu­sações a que foi sujeito. Ainda assim, não querendo desperdiçar nenhuma oportunidade de dilatar o conhecimento que tem das suas presentes circunstâncias, gira na cadeira até ficar de frente para a secretária, após o que pega no bloco de notas e na esferográfica. Neste ponto, Mr. Blank já se capacitou de que, se não tomar nota dele imediatamente, o nome depressa voará da sua cabeça, e se há coisa que ele não quer é correr o risco de o esquecer. Portanto, abre o bloco de notas na primeira página, pega na caneta e acrescenta mais uma entrada à sua lista:

 

James P. Flood

Anna

David Zimmer

Peter Stillman Jr.

Peter Stillman Sr.

Fanshawe

 

Quando escreve o nome de Fanshawe, ocorre-lhe que, durante a visita de Flood, foi mencionado um segundo nome, um nome que ouviu associado à referência ao sonho de Flood no capítulo xxx do livro, mas, por muito que se esforce para trazê-lo de volta, Mr. Blank não consegue encontrar uma resposta. Qualquer coisa a ver com o capítulo VII, diz ele para si mesmo, qualquer coisa a ver com uma casa, mas o resto é um vazio na mente de Mr. Blank. Apesar de muito irritado com a sua inép­cia, decide tomar nota de alguma coisa, na esperança de que o nome lhe ocorra num qualquer momento futuro. De modo que a lista acaba por ficar como segue:

 

James P. Flood

Anna

David Zimmer

Peter Stillman Jr.

Peter Stillman Sr.

Fanshawe

Homem com casa

 

Quando larga a caneta, há uma palavra que começa a ressoar na sua cabeça, e, durante vários momentos depois disso, enquanto a palavra continua a ecoar dentro dele, Mr. Blank sente que está a um passo de uma importante descoberta, de um ponto de viragem crucial que ajudará a clarificar, pelo menos em parte, aquilo que o futuro lhe reserva. A pala­vra é parque. Lembra-se agora de que, pouco depois de ter entrado no quarto, Flood sugeriu que fossem conversar para o parque, do outro lado da rua. Esta indicação parece pelo menos contrariar a prévia asserção de Mr. Blank segundo a qual se encontraria cativo, confinado ao espaço limi­tado por estas quatro paredes, impedido, para o todo o sempre, de se fazer ao mundo. Sente-se algo encorajado por este pensamento, mas sabe também que, mesmo que o autorizem a visitar o parque, isso não prova necessariamente que seja um homem livre. Talvez tais visitas sejam pos­síveis apenas sob uma rigorosa supervisão, talvez o deixem saborear uma tão ansiada dose de sol e ar fresco e logo o conduzam de novo ao quar­to, devolvendo-o desse modo à situação em que se encontra - prisio­neiro contra sua vontade. Lamenta não ter tido a presença de espírito necessária para questionar Flood acerca do parque - a fim de determi­nar se se trata de um parque público, por exemplo, ou apenas uma área relva da ou arborizada pertencente ao edifício ou instituição ou asilo em que agora vive. Mais importante do que isso, Mr. Blank dá-se conta ­ por aquela que deve ser a enésima vez nas últimas horas - de que tudo se resume à natureza da porta e à questão de saber se a porta é fechada por fora ou não. Fecha os olhos e esforça-se por se lembrar dos sons que ouviu quando Flood saiu do quarto. Teria sido o som de um fecho a des­lizar, o som de uma chave girando no canhão da fechadura ou simples­mente o clique de um trinco? Mr. Blank não consegue lembrar-se. Quando a conversa com Flood chegou ao fim, aquele homenzinho desa­gradável mais as suas lamurientas recriminações tinham provocado nele uma tal agitação que só por milagre iria prestar atenção a questões tão insignificantes como fechaduras e fechos e portas.

Mr. Blank pergunta-se se não terá chegado finalmente o momento de se lançar ele mesmo na investigação do caso. Por muito medo que possa sentir, não seria melhor conhecer a verdade de uma vez por todas, em vez de viver num estado de perpétua incerteza? Talvez, diz ele para si mesmo. E, vendo bem as coisas, talvez não, acrescenta. Antes que Mr. Blank tenha tempo para decidir se tem a coragem necessária para fazer finalmente a viagem até à porta, há um novo e mais urgente problema que, de súbito, se impõe - algo a que, com toda a propriedade, pode­ríamos chamar uma urgência verdadeiramente urgente - por outras pala­vras, Mr. Blank está aflito, ou ainda por outras palavras, Mr. Blank está à rasquinha. Algures no corpo de Mr. Blank uma nova pressão começou a fazer-se sentir. Ao contrário do episódio anterior, que ocorreu, lato sensu, na região do estômago, este surge num local situado alguns centímetros abaixo, no extremo sul do abdómen de Mr. Blank. Graças a uma longa experiência em tais matérias, o velho depressa conclui que tem de ir fazer chichi. Põe a hipótese de fazer a viagem até à casa de banho na sua cadei­ra, mas, como sabe que a cadeira não cabe na porta da casa de banho e que não pode executar o chichi sentado na cadeira e que um momen­to virá - é inevitável - em que terá de se levantar (nem que seja para se sentar de novo, desta vez no assento da sanita, caso se veja acometi­do de mais um acesso de tonturas), Mr. Blank decide fazer a jornada a pé. Levanta-se por conseguinte da cadeira, e, ao fazê-lo, dá-se conta, com óbvio agrado, de que o seu equilíbrio é estável, sem a mais leve sombra da sensação de vertigem que anteriormente tanto o afligiu. Há, contudo, uma coisa de que Mr. Blank se esqueceu: é que, neste momento, já não tem os ténis calçados (e muito menos as pantufas pretas) e que o único adereço que lhe envolve os pés são as meias de nylon brancas. Dado que o material de que as meias são feitas é de uma macieza extraordinária e , que a madeira do soalho é de uma suavidade não menos extraordinária, Mr. Blank, mal dá o primeiro passo, descobre que poderá deslizar até à casa de banho - não com o passo arrastado a que o obrigavam as pan­tufas (com aquele irritante som de lixa que as ditas pantufas produziam ao rasparem no soalho), mas como se estivesse a patinar no gelo.

Mr. Blank tem assim à sua disposição uma nova forma de prazer e, depois de dois ou três giros experimentais entre a secretária e a cama, conclui que este novo prazer não é menos agradável do que balouçar para trás e para a frente e girar na cadeira - será até talvez mais agradá­vel. A pressão na bexiga é cada vez maior, mas Mr. Blank adia a sua via­gem à casa de banho a fim de prolongar por alguns momentos o seu passeio pelo gelo imaginário, e, enquanto vai patinando pelo quarto, erguendo no ar ora um pé, ora o outro, ou flutuando com ambos os pés no soalho, regressa uma vez mais ao distante passado, não tão distante como a era de Whitey, o cavalo de balouço, ou das manhãs em que se sentava ao colo da mãe para que ela o vestisse na cama, mas, ainda assim, distante: Mr. Blank no final da sua média infância, por volta dos seus dez anos, talvez mesmo onze, mas de modo nenhum com uma idade tão avançada como doze anos. É uma fria tarde de sábado em Janeiro ou Fevereiro. O lago da pequena cidade onde cresceu é agora uma sólida superfície gelada e lá está o jovem Mr. Blank, a quem, por essa altura, chamavam Menino Blank, patinando de mão dada com o seu primeiro amor, uma rapariga de olhos verdes e cabelos arruivados, longos cabelos arruivados que o vento despenteia, as faces vermelhas do frio, o seu nome já esquecido, mas começando pela letra S, diz Mr. Blank para si mesmo, quanto a isso não tem a menor dúvida, talvez Susie, pensa ele, ou Saniantha ou Sally ou Serena, mas não, não era nenhum desses nomes, e, no entanto, que importância é que isso tem, importância nenhuma, porque, tendo em conta que foi a primeira vez na sua vida que deu a mão a uma rapariga, aquilo de que agora se lembra de uma forma mais intensa é da sensação de ter penetrado num novo mundo, um mundo em que dar a mão a uma rapariga era o mais desejado de todos os bens, e tal era o seu ardor por esta jovem criatura cujo nome começa­va com um S que, mal pararam de patinar e se sentaram num cepo à beira do lago, o Menino Blank teve audácia bastante para a beijar nos lábios, depois de se ter chegado a ela muito chegadinho. Por razões que, na altu­ra, o deixaram simultaneamente desconcertado e magoado, Miss S. desa­tou a rir-se, virou a cabeça e repreendeu-o com uma frase que, desde então, nunca mais o largou - mesmo agora, nas abjectas circunstâncias em que se encontra, mesmo agora que o seu estado mental deixa bastan­te a desejar e tantas outras coisas desapareceram: Não sejas tolo. É que o objecto da sua afeição não entendia nada de tais matérias, porquanto tinha apenas dez ou onze anos e carecia ainda daquela maturidade sem a qual as investidas amorosas de um membro do sexo oposto perdem todo o significado. E foi assim que, em vez de reagir ao beijo do Menino Blank com um beijo seu, Miss S. desatou a rir.

O sentimento de rejeição persistiu dias a fio, causando tanto sofri­mento à sua jovem alma que, certa manhã, a mãe, apercebendo-se da tristeza em que o filho caíra, lhe perguntou o que é que se passava. Mr. Blank, por via da sua ainda tenra idade, sentia-se perfeitamente à 'vonta­de para se confessar à mãe, pelo que acabou por lhe contar a história toda. A mãe escutou-o e, no final, respondeu-lhe: Não te preocupes; há outros seixos na praia. Era a primeira vez que Mr. Blank ouvia tal expres­são e achou curioso que as raparigas pudessem ser comparadas a seixos, com os quais, parecia-lhe, não tinham qualquer semelhança (ou, pelo menos, era o que lhe dizia a sua experiência com raparigas). No entanto, Mr. Blank apanhou a metáfora, mas, apesar de compreender o que a mãe queria dizer, discordava dela, visto que a paixão é e será sempre cega perante tudo excepto uma coisa, e, no que respeitava a Mr Blank, havia na praia um único seixo que contava, e, se não podia ter esse seixo espe­cífico, então também não estava interessado em mais nenhum. O tempo mudou tudo isso, claro, e, com o passar dos anos, Mr. Blank acabou por concluir que não faltava sabedoria à visão da mãe. Agora, enquanto con­tinua a deslizar pelo quarto com as suas meias de nylon brancas, pergun­ta-se quantos seixos é que terá havido desde então. Mr. Blank não pode ter a certeza, pois se há traço que caracteriza a sua memória é a ineficiência, mas sabe que houve dezenas ou talvez mesmo centenas de seixos ­tantos que nem têm conta, incluindo e terminando em Anna, a rapariga que conheceu já lá vão tantos anos e de que, durante um tempo imenso, nada soube, e que, hoje mesmo, foi redescoberta na infinita praia do amor.

Estas cogitações voam pela cabeça de Mr. Blank numa questão de segundos, talvez doze, talvez vinte, e, durante todo esse breve período, ao mesmo tempo que o passado vai crescendo dentro dele, Mr. Blank esforça-se por manter a sua concentração a fim de não perder o equilí­brio enquanto patina pelo quarto. Contudo, por muito breves que sejam esses segundos, um momento vem em que o passado acaba por vencer o presente e, em vez de pensar e de se mover ao mesmo tempo, Mr. Blank esquece-se de que está a mover-se e concentra-se exclusivamente nos seus pensamentos, e, escassos instantes depois - quanto muito um ou dois segundos - o seu pé escorrega e, ao escorregar, deixa de suster o peso do seu corpo, e, ao deixar de suster o peso do seu corpo, é claro que o resultado só pode ser um. Mr. Blank cai no chão.

Felizmente, não aterra de cabeça, mas, em todos os outros aspectos, o episódio tem tudo para ser qualificado como uma queda grave. Tom­bando para trás no vazio enquanto os seus pés, com a sua segunda pele de nylon, lutam por encontrar um ponto de apoio nas escorregadias tábuas do soalho, Mr. Blank lança as mãos para trás na esperança vã de amortecer o impacto, mas, não obstante, bate em cheio com o cóccix no chão, o que faz disparar uma cascata de fogo vulcânico pelas suas pernas e torso, e, dado que, na queda, usou as mãos para se apoiar, os pulsos e os cotovelos, de súbito, também ficam em brasa. Mr. Blank contorce-se no chão, tão aturdido que nem sequer consegue sentir pena de si mesmo, e, enquanto trava uma dura batalha para absorver a dor que se apossou do seu corpo, esquece-se de contrair os músculos do e à volta do pénis, coisa que sempre fizera durante os breves momentos em que patinara de volta ao passado. É que a sua bexiga, de tão cheia, está prestes a rebentar, e, sem fazer um esforço consciente para, por assim dizer, não largar as rédeas da situação, Mr. Blank está a um passo de ser protagonista de um acidente tão constrangedor quanto vergonhoso. Mas a dor é demasiado forte para ele. A dor expulsou todos os outros pensamentos da sua mente, e logo que ele começa a relaxar os músculos acima mencionados, sente a uretra a render-se ao inevitável e, um momento depois, está a mijar nas calças. Um bebé não faria melhor, diz ele para si mesmo enquanto a urina morna flui do seu pénis e desliza pela perna. E logo acrescenta: Choramingando e vomitando nos braços da sua ama [N5]. E, quando o dilúvio cessa, desata a gritar a plenos pulmões: Idiota! velho idiota! Mas que porra é que se passa contigo?

Agora, Mr. Blank está na casa de banho a despir as calças, as cuecas e as meias, que ficaram ensopadas e amarelecidas em consequência da involuntária perda de controlo. Ainda todo atarantado com o dislate cometido, ainda cheio de dores nos ossos por causa da queda no chão, atira furiosamente cada peça de roupa para a banheira, após o que pega no pano branco que Anna usou para o banho de esponja e lava com água tépida as pernas e o entrepernas. Ao fazê-lo, o seu pénis começa a inchar, despedindo-se consequentemente do estado de flacidez em que se encontrava, e acaba por se erguer da perpendicular até atingir um ângu­ lo de quarenta e cinco graus. Não obstante as múltiplas indignidades a que foi sujeito nestes últimos minutos, Mr. Blank não pode deixar de se sentir consolado com este desenvolvimento, como se ele de algum modo provasse que a sua honra permanece intacta. Depois de mais uns quan­tos safanões, o seu velho companheiro fica definitivamente espetado, for­mando em relação ao corpo que o sustém um indubitável ângulo de noventa graus, e é assim, antecedido pela sua segunda erecção da manhã, que Mr. Blank sai da casa de banho, caminha até à cama e enfia as calças de pijama que Anna deixou sob a almofada. Quando o velho enfia os pés nas pantufas de cabedal, já o Senhor Grandalhão começou a murchar, mas que outra coisa se poderia esperar na ausência de uma fricção con­tinuada ou de algum tipo de estímulo mental? Mr. Blank sente-se mais confortável com as calças de pijama e as pantufas do que com as calças brancas e os ténis, mas, ao mesmo tempo, não consegue deixar de se sentir culpado com a mudança de figurino, porque a verdade é que já não se encontra todo vestido de branco, o que significa que quebrou a promessa que fizera a Anna - a pedido de reter Stillman ]unior - e isso dói-lhe profundamente, ainda mais profundamente do que as dores físicas que continuam a reverberar ao longo do seu corpo. Enquanto se

 

5 Citação de Shakespeare, As You Like It. (N. do T.)

 

arrasta na direcção da secretária a fim de retomar a leitura do manuscrito dactilografado, decide que, da próxima vez que estiver com Anna, lhe confessará, tintim por tintim, tudo o que se passou, na esperança de que o coração dela se enterneça e se abra ao perdão.

Vários momentos depois, Mr. Blank está uma vez mais sentado na cadeira, o cóccix latejante enquanto meneia o traseiro até encontrar uma posição mais ou menos aceitável. Então, começa a ler:

Foi há seis meses que ouvi falar pela primeira vez dos problemas que havia nos Territórios Estrangeiros. Foi no final de uma tarde de mea­dos de Verão e estava sozinho no meu gabinete, a trabalhar nas últimas páginas do meu relatório semestral. Por essa altura, a estação dos fatos brancos de algodão já ia bem adiantada, mas, nesse dia, o ar estivera especialmente quente, abatendo-se sobre as pessoas de uma forma tão opressiva e sufocante que mesmo a mais fina peça de roupa parecia excessiva. Às dez da manhã, ordenara aos homens da minha secção que tirassem casacos e gravatas, mas, como o resultado parecia ser nulo, man­dei-os embora ao meio-dia. Visto que, durante toda a manhã, os meus subordinados não tinham feito outra coisa senão abanar os rostos e lim­par o suor das testas, pareceu-me que não fazia sentido mantê-los reféns do trabalho por mais tempo.

Lembro-me de ter ido almoçar ao Bruder Hof, um pequeno restau­rante nas proximidades do edifício do Ministério dos Assuntos Externos. Depois do almoço, dei um passeio pelo Santa Victoria Boulevard, deten­do-me junto ao rio na esperança de atrair alguma brisa que me refrescas­se as faces. Vi as crianças lançando à água os seus barcos de brinquedo, as mulheres que passavam em grupos de três ou quatro com as suas som­brinhas amarelas e os seus sorrisos tímidos, os rapazes que preguiçavam na relva. Sempre adorei a capital no Verão. Há nessa altura do ano uma quietude que nos envolve a todos, uma qualidade próxima do transe que parece esbater a diferença entre as coisas animadas e inanimadas, e, com as multidões que passam nas avenidas muito mais reduzidas e muito menos ruidosas, a azáfama das outras estações torna-se quase inimaginá­vel. Talvez isso aconteça porque o Protector e a sua farrulia deixam a cida­de nessa altura e, com o palácio vazio e as persianas azuis cobrindo as janelas que tão bem conhecemos, a realidade da Confederação começa a parecer menos substancial. Uma pessoa tem consciência das grandes distâncias, dos infindáveis territórios e pessoas, do caos e do clamor das vidas que vão sendo vividas - mas tudo isso está de algum modo longe, apartado de nós, como se a Confederação se tivesse tornado algo de interno, um sonho que cada pessoa traz dentro de si.

Depois de ter voltado ao escritório, trabalhei sem uma pausa até às quatro horas. Tinha acabado de largar a caneta para reflectir um pouco acerca dos parágrafos finais quando fui interrompido pela chegada do secretário do ministro - um jovem chamado Jensen ou Johnson, já não me lembro ao certo. Entregou-me uma mensagem e, depois, enquanto eu a lia, desviou discretamente os olhos de mim, aguardando pela res­posta que deveria levar ao ministro. A mensagem era muito breve. Ser­-lhe-ia possível passar pela minha casa esta noite? Desculpe o convite tão em cima da hora, mas há um assunto extremamente importante que pre­ciso de discutir consigo. joubert.

Escrevi uma resposta em papel timbrado do ministério, agradecendo o convite e dizendo ao ministro que contasse comigo às oito horas. O se­cretário - que era ruivo, lembro-me agora - foi-se embora com a carta e, nos minutos seguintes, deixei-me ficar sentado à secretária, tentando decifrár o que tinha acabado de acontecer. Joubert tomara posse como ministro três meses antes, e, ao longo desses três meses, vira-o apenas uma vez - num banquete formal oferecido pelo ministério para come­morar a sua nomeação. Em circunstâncias normais, um homem na minha posição pouco contacto directo teria com o ministro, e parecia-me estra­nho, verdadeiramente singular, que ele me tivesse convidado para ir a sua casa, especialmente com tão pouca antecedência. Pelo que ouvira dizer dele até esse momento, poderia concluir que Joubert não era um governante impulsivo nem espalhafatoso; e também não era um daque­les ministros que exercem o seu poder de um modo arbitrário ou pouco razoável. Duvidava que me tivesse convocado para esta reunião privada para criticar o meu trabalho, mas, ao mesmo tempo, tendo em conside­ração a urgência da sua mensagem, tornava-se evidente que seria mais do que uma simples visita social.

Fisicamente, Joubert era o que se chama uma fraca figura, um facto que contrastava de uma forma gritante com a elevada posição que alcan­çara na hierarquia do Estado. Prestes a fazer sessenta anos, Joubert era um homem baixo e atarracado com uma visão deficiente e um nariz bul­boso que, ao longo da nossa conversa, não parava de ajustar e reajustar o pincenez. Um criado conduziu-me pelo corredor central até uma pequena biblioteca do piso térreo da residência do ministro e, quando Joubert se levantou para me dar as boas-vindas, vestindo um figurino completamente fora de moda em que avultavam uma sobrecasaca casta­nha e uma gravata branca de folhos, tive a sensação de que estava a cum­primentar um funcionário judicial e não um dos homens mais importantes da Confederação. Contudo, mal começámos a falar, essa ilusão depressa se esbateu. Joubert possuía uma mente clara e atenta e cada uma das suas observações era proferida com autoridade e convicção. Depois de ter pedido desculpa por me ter chamado a sua casa num momento tão ino­portuno, apontou para a cadeira de cabedal com remates dourados em frente da sua secretária e eu sentei-me.

- Sei que está a par da sorte de Ernesto Land - disse o ministro, sem perder tempo com formalidades fúteis.

- Ele era um dos meus melhores amigos - respondi. - Combate­mos juntos nas Guerras da Fronteira Sueste e, depois, fomos colegas na mesma divisão dos serviços de espionagem. Após o Tratado de Consoli­dação do 4 de Março, Land apresentou-me à mulher com quem acabei por me casar, a minha falecida esposa Beatrice. Um homem de excepcio­nal coragem e capacidade. A sua morte aquando da epidemia de cólera foi para mim uma grande perda.

- Essa é a história oficial. Existe de facto uma certidão de óbito nos arquivos do Registo Civil Municipal, mas, inesperadamente, nestes últimos tempos, o nome de Land reapareceu em diversas ocasiões. Se estes rela­tórios são verdadeiros, é crível que Ernesto Land esteja ainda vivo.

- Mas essa é uma excelente notícia, senhor ministro. Fico muito contente.. .

- Nestes últimos meses, o nosso quartel em Ultima tem-nos feito chegar certos rumores... Até agora, nada foi confirmado, mas, de acordo com esses rumores, Land atravessou a fronteira dos Territórios Estrangei­ros algum tempo depois de a epidemia de cólera ter terminado. A via­gem da capital a Ultima demora três semanas. Isso significaria que Land partiu logo após a eclosão .do flagelo. Nesse caso, Ernesto Land não esta­ria morto, mas simplesmente desaparecido.

- Mas nós não podemos passar a fronteira que nos separa dos Ter­ritórios Estrangeiros. É proibido. Toda a gente sabe disso. As Leis das Fronteiras Fechadas estão em vigor há já dez anos...

- No entanto, é nos Territórios Estrangeiros que Land se encontra neste momento. Se os relatórios dos serviços de espionagem estão cor­  rectos, Land viajaria com um exército de mais de cem homens.

- Não compreendo.

- Cremos que ele está a atiçar o descontentamento entre os Primiti­vos, preparando-se para os conduzir numa insurreição contra as provín­cias ocidentais.

- Isso é impossível.

- Nada é impossível, meu caro Graf. Se há uma pessoa no mundo que deveria saber isso, é precisamente o senhor.

       - Ninguém acredita nos princípios da Confederação mais fervoro­samente do que ele. Ernesto Land é um patriota.

       - Os pontos de vista dos seres humanos, por vezes, mudam...

       - Perdoe a franqueza, mas creio que o senhor ministro deve estar equivocado. Uma insurreição é algo de impossível. Uma acção militar exi­giria que houvesse unidade entre os Primitivos e isso nunca aconteceu nem nunca acontecerá. Os Primitivos são tão diversos e encontram-se tão divididos como nós. Os seus hábitos sociais, línguas e crenças religiosas foram causa de conflitos durante séculos. Os Tackamen, no leste, enter­ram os seus mortos tal e qual como nós. Os Gangi, no oeste, colocam os seus mortos em plataformas altas e deixam os cadáveres a apodrecer ao sol. O Povo Corv0 [N6], no sul, incinera os seus mortos. Os Vahntoo, no norte, cozinham os corpos e comem-nos. Para nós, trata-se de uma ofensa a Deus, mas, para eles, é um ritual sagrado. Cada nação encontra-se divi­dida em tribos, as quais, por sua vez, se dividem em pequenos clãs, e, para além das guerras que houve entre todas essas nações em diversas épocas, as tribos que compõem cada uma das nações também travaram guerras entre si. A questão é esta, senhor ministro: não consigo imaginar

 

6 No original, orbe Crow people-. De todas as tribos ou nações referidas, é a única que, tanto quanto sabemos, tem um -equivalente- real - o -Povo Corvo- (ou Apsáalooke), uma tribo índia norte-americana que viveu no vale do rio Yellowstone e que hoje está confina­da a uma reserva no estado de Montana. (N. do T)

 

que, um dia, todos esses povos se possam unir. Aliás, se eles fossem capazes de uma acção unificada, nunca teriam sido derrotados.

- Tenho conhecimento de que o senhor é uma autoridade no que respeita aos Territórios Estrangeiros...

- Passei mais de um ano entre os Primitivos durante os meus pri­meiros tempos no ministério. Claro que isso foi antes das Leis das Fron­teiras Fechadas. Visitei um clã após outro, estudando o funcionamento de cada sociedade, investigando tudo, desde normas dietéticas a rituais de acasalamento. Foi uma experiência memorável. Depois disso, sempre me consagrei ao meu trabalho de uma forma muito empenhada, mas devo dizer que considero essa missão o mais exigente e extraordinário desafio de toda a minha carreira.

- Em tempos idos, os Primitivos eram donos e senhores de tudo o que havia nas suas terras. Depois, começaram a chegar os navios, trazen­do colonos da Ibéria e da Gália, de Álbion, da Germânia, dos reinos tár­taros, e, a pouco e pouco, os Primitivos foram escorraçados das suas terras. Nós massacrámo-los e escravizámo-los e, depois, conduzimo-los como se conduz uma manada de gado para os territórios situados para lá das províncias ocidentais, regiões que um sol impiedoso condenou à aridez. Durante as suas viagens, deve ter encontrado muita amargura e ressentimento...

- Menos do que seria de esperar. Ao fim de quatrocentos anos de conflitos, a maior parte das nações sentia-se feliz por estar em paz.

- Isso passou-se há mais de dez anos. Talvez eles tenham reconsi­derado entretanto a sua posição... Se estivesse no lugar deles, sentir-me-ia fortemente tentado a reconquistar as províncias ocidentais. É que, aí, as terras são férteis. A caça abunda nas florestas. As províncias ocidentais proporcionariam aos Primitivos uma vida melhor, uma vida mais fácil.

- Está a esquecer-se de que todas as nações primitivas ratificaram as Leis das Fronteiras Fechadas. Agora que as guerras acabaram, estou em crer que prefeririam viver no seu próprio mundo, separadas de nós, sem qualquer interferência por parte da Confederação.

- Espero que tenha razão, Graf, mas é meu dever proteger o bem­-estar da Confederação. Revelem-se infundados ou não, os relatórios acer­ca de Land têm 'de ser investigados. O senhor conhece-o, passou tempo bastante nos Territórios, e, entre todos os membros do ministério, não vejo ninguém mais bem qualificado para assumir tal missão. Não estou a ordenar-lhe que vá, mas ficar-lhe-ia profundamente grato se aceitasse. O futuro da Confederação poderá depender disso.

- Sinto-me honrado com a confiança que deposita em sim, senhor ministro. Mas há desde logo um problema: imagine que me impedem de passar a fronteira...

- Claro que levará uma carta pessoal minha para o coronel de Vega, o oficial que chefia o quartel de Ultima. De Vega não ficará nada satisfeito com isso, mas a verdade é que não terá alternativa... Uma ordem do governo central tem de ser obedecida.

- Mas... se aquilo que o senhor diz é verdade, se Land se encontra realmente nos Territórios Estrangeiros com um exército de cem homens, é óbvio que isso levanta uma questão francamente desconcertante, não é verdade?

- Uma questão?

- Sim. Como é que Land conseguiu chegar aos Territórios Estran­geiros? Tanto quanto sei, há tropas estacionadas ao longo de toda a fron­teira. Posso imaginar um homem capaz de, furtivamente, vencer a vigilância dessas tropas, mas... uma centena de homens? Se Land conseguiu passar a fronteira, então deve tê-lo feito com a conivência do coro­nel de Vega.

       - Pode ser que sim, pode ser que não. Esse é um dos mistérios cuja solução lhe vai ser confiada.

       - Quando quer que eu parta?

       - Tão cedo quanto possível. Uma carruagem do ministério estará à sua disposição. Abastecê-lo-emos de víveres e outras provisões e toma­remos todas as providências necessárias. As únicas coisas que precisaráde levar consigo são a carta e a roupa que tiver no corpo.

- Nesse caso, partirei amanhã de manhã. Acabei de escrever o meu relatório semestral e não tenho nenhum trabalho à minha espera na secretária.

       - Vá buscar a carta ao ministério às nove horas. Estarei à sua espe­ra no meu gabinete.

       - Muito bem, senhor ministro. Amanhã de manhã às nove.

Quando chega ao fim da conversa entre Graf e Joubert, o telefone começa a tocar e, uma vez mais, Mr. Blank é obrigado a interromper a sua leitura do manuscrito dactilografado. Após um primeiro momento em que, rosnando a sua indignação, se desenvencilha da cadeira, caminha num passo vagaroso e titubeante na direcção da mesinha de cabeceira, mexendo-se com dificuldade devido às suas recentes contusões, e, de facto, tão lento e difícil é o seu progresso que só consegue pegar no aus­cultador ao sétimo toque, quando, não muito tempo antes, revelando uma notável agilidade, conseguira atender a chamada de Flood ao quar­to toque.

O que é que quer?, dispara rispidamente Mr. Blank enquanto se senta na cama, já que, de súbito, sente uma vertigem - a sua já tão familiar sensação de vertigem - redemoinhando dentro de si.

Quero saber se já acabou a história, responde calmamente uma voz de homem.

História? Que história?

A que tem estado a ler. A história sobre a Confederação.

Não sabia que era uma história. Parece mais um relatório, uma coisa que aconteceu realmente.

É tudo inventado, Mr. Blank. Uma obra de ficção.

Ah. Isso explica porque é que nunca ouvi falar dessa tal Confedera­ção. Eu bem sei que a minha cabeça hoje não está a trabalhar muito bem, mas pensei que o manuscrito de Graf poderia ter sido encontrado por alguém uns anos depois de ele o ter escrito e, mais tarde, passado à máquina por um dactilógrafo.

Um equívoco perfeitamente natural.

Um equívoco estúpido.

Não se preocupe com isso. A única coisa que preciso de saber é se já acabou a história.

       Quase. Já não falta muito. Se não me tivesse interrompido com esta maldita chamada, provavelmente já teria acabado.

       Óptimo. Eu passo por aí dentro de um quarto de hora, vinte minu­tos, e então poderemos dar início à nossa consulta.

Consulta? Que raio de história é essa?

Eu sou o seu médico, Mr. Blank. Tenho ido vê-lo todos os dias. Não me lembro de ter um médico.

Claro que não. Isso é porque o tratamento está a começar a dar os seus frutos.

O meu médico não terá por acaso um nome?

Farr. Samuel Farr.

Farr... Hmm... Sim, Samuel Farr... Por acaso não conhece uma mu­lher chamada Anna?

       Falamos disso mais tarde. Para já; a única coisa que tem de fazer é acabar a história.

       Está bem, eu acabo a história. Mas... quando me vier visitar, como é que eu vou reconhecê-lo? Imagine que alguém se faz passar por si. . .

Há uma fotografia minha na sua secretária. A décima segunda a con­tar de cima. Olhe bem para ela e, quando eu aparecer, não terá a menor dificuldade em reconhecer-me.

Agora, Mr. Blank está de novo sentado na cadeira, todo curvado sobre a secretária. Em vez de procurar o retrato de Samuel Farr na pilha de fotografias, como lhe foi dito que fizesse, pega no bloco de notas e na esferográfica e acrescenta mais um nome à lista:

 

James P. Flood

Anna

David Zimmer

Peter Stillman Jr.

Peter Stillman Sr.

Fanshawe

Homem com casa

Samuel Farr

 

Põe de lado o bloco de notas e a caneta e, de imediato, pega na his­tória, esquecendo-se por completo da sua intenção de procurar a foto­grafia de Samuel Farr, do mesmo modo que há muito se esqueceu de procurar o roupeiro que supostamente se encontra no quarto. As últimas páginas do texto rezam o seguinte:

A longa viagem a Ultima proporcionou-me muito tempo para reflec­tir acerca da natureza da minha missão. Os vários cocheiros foram-se revezando a intervalos de cerca de trezentos quilómetros e, sem outra coisa para fazer a não ser ficar sentado na carruagem e deixar que os meus olhos se perdessem na paisagem, o meu coração foi-se abandonan­do a um sentimento de temor que se ia avo lu mando à medida que me aproximava do meu destino. Ernesto Land fora meu camarada de armas e amigo íntimo e eu sentia a mais extrema relutância em aceitar o vere­dicto de Joubert de que ele se tornara um traidor à causa que defendera durante toda a sua vida. Land permanecera no exército após as Consoli­dações do Ano 21, continuando o seu trabalho como membro dos servi­ços secretos sob a égide do Ministério da Guerra, e, quando jantava connosco em nossa casa ou se encontrava comigo à tarde para uma refei­ção numa das estalagens perto da Praça do Ministério, Land falava sem­pre com entusiasmo da inevitável vitória da Confederação, seguro de que todos os nossos sonhos, pelos quais havíamos lutado desde os primór­dios da nossa juventude, acabariam por se concretizar. Agora, de acordo com os agentes de Joubert em Ultima, Land, para além de ter escapado à morte durante a epidemia de cólera, obtivera uma certidão de óbito falsa e fugira para as recônditas regiões para lá das nossas fronteiras, acompa­nhado de um pequeno exército anti-confederacionista, a fim de fomentar a rebelião entre os Primitivos. Tendo em conta tudo aquilo que sabia acerca de Land, parecia-me uma acusação absurda e ridícula.

Land crescera na região agrícola do noroeste da província de Tierra Vieja, a mesma parte do mundo onde a minha esposa Beatrice nascera. Ernesto e Beatrice tinham sido amigos de infância e, durante muitos anos, as duas famílias deram como certo o casamento entre os dois jovens. Beatrice confessou-me certa vez que Ernesto fora o seu primeiro amor e que se sentira como se a sua vida tivesse terminado quando o seu jovem amigo se apartara dela para se tornar noivo de Hortense Chatterton, a filha de uma abastada família de Mont Sublime ligada à marinha mercan­te. Porém, Beatrice era uma jovem cheia de força, demasiado orgulhosa para partilhar o seu sofrimento com quem quer que fosse, e, numa demonstração de extraordinária coragem e dignidade, acompanhou os pais e os dois irmãos à sumptuosa cerimónia de casamento na proprie­dade dos Chatterton. Foi aí que fomos apresentados. O meu coração ren­deu-se aos seus encantos logo nessa primeira noite, mas Beatrice sóaceitou o meu pedido de casamento depois de um longo namoro de dezoito meses. Eu sabia que, aos olhos dela, nunca poderia rivalizar com Land. Não era tão bem-parecido nem tão brilhante como ele, e Beatrice precisou ainda de algum tempo para compreender que a minha firmeza de carácter e a ardente devoção que lhe dedicava eram qualidades tão importantes como o fulgor físico e intelectual quando o que estava em causa era construir uma união para toda a vida. A extrema admiração que eu nutria por Land não obstava a que me apercebesse dos seus defeitos. Na personalidade de Land sempre houvera uma faceta brutal e turbulen­ta, uma pertinaz confiança na sua superioridade em relação aos outros, e, apesar dos seus encantos e da sua capacidade de persuasão, essa facul­dade inata para atrair as atenções para a sua pessoa qualquer que fosse o círculo em que se movesse, seria difícil não nos apercebermos de que, sob essa superfície brilhant_ e sedutora, espreitava o flagelo de uma incu­rável vaidade. O casamento com Hortense Chatterton viria a revelar-se uma infeliz experiência. Ernesto foi-lhe infiel quase desde o início e, quando ela morreu durante o parto quatro anos depois, depressa recu­perou da perda. Entregou-se a todos os rituais do luto e da dor pública, mas parecia-me que, no fundo, se sentia mais aliviado do que destroça­do. Depois da morte da mulher, Land tornou-se uma presença assídua no seio da nossa família, muito mais assídua do que nos primeiros anos do nosso casamento. Num ponto tereI .le lhe fazer justiça: Land ganhou uma afeição profunda à nossa pequena Marta; levava-lhe presentes sempre que nos visitava e era tão pródigo nas suas manifestações de carinho que.. a menina acabou por encará-lo como uma figura heróica, o maior de todos os homens ao cimo da Terra. É certo que se comportava com extre­mo decoro sempre que nos visitava; no entanto, quem poderia censurar­-me quando, por vezes, dava por mim a duvidar que a chama que em tempos ardera na alma de minha mulher se encontrava definitivamente extinta? Nunca aconteceu nada que infringisse as normas da decência ­ nem palavras nem olhares susceptíveis de incendiarem os meus ciúmes - mas, no seguimento da epidemia de cólera que supostamente os mata­ra a ambos, como poderia eu interpretar o facto de Land ser agora dado como vivo e de, não obstante os meus constantes esforços para obter informações sobre a sorte de Beatrice, eu não ter descoberto uma única testemunha que a tivesse visto na capital durante o flagelo? Se não fosse a minha desastrosa rixa com Giles McNaugthon, desencadeada precisa­mente por abjectas insinuações acerca da minha mulher, seria duvidoso que tivesse sucumbido a tão negras suspeitas durante a viagem para Ulti­ma. Mas... e se Beatrice e Marta tivessem fugido com Land enquanto eu viajava pelas Comunidades Independentes da província de Tierra Blanca? Parecia impossível, mas, como Joubert dissera na véspera da minha par­tida, nada era impossível, e, entre todas as pessoas que habitam este mundo, eu era precisamente aquela que melhor deveria saber que, de facto, nada era impossível.

As rodas da carruagem giravam e, quando cheguei aos arrabaldes de Wallingham, sensivelmente a meio da viagem, compreendi que me enca­minhava para um duplo horror. Se Land tivesse traído a Confederação, teria de o deter e de o levar, acorrentado, para a capital: tais eram as ins­truções que recebera do ministro. Essa perspectiva já era suficientemente horrível, mas, se o meu amigo me tivesse traído também, se ele me tives­se roubado a minha mulher e a minha filha, eu próprio o mataria. Tal era a minha intenção, uma intenção que se concretizaria quaisquer que fos­sem as consequências. Que Deus me amaldiçoe por dar guarida a tão negros pensamentos, mas, para o bem de Ernesto e para meu próprio bem, eu rezava para que Beatrice já não pertencesse ao mundo dos vivos.

Mr. Blank atira com o manuscrito para cima da secretária, bufando de desagrado e desprezo, furioso por ter sido obrigado a ler uma história que não tem fim, uma obra inacabada e, pior do que isso, uma obra que acaba quando ainda mal começou, enfim, não mais que um simples frag­mento, a porra de um estúpido fragmento. Mas que porcaria, diz ele bem alto, e, então, depois de obrigar a cadeira a dar um giro de cento e oiten­ta graus, desliza até à porta da casa de banho. Está com sede. Como não tem bebidas à sua disposição, a única solução consiste em abrir a tornei­ra do lavatório da casa de banho e encher um copo de água. Levanta-se da cadeira, abre a porta e avança no seu passo arrastado para fazer pre­cisamente isso, e, enquanto executa todas essas operações, não pára de lamentar o muito tempo que perdeu com aquele deplorável arremedo de história. Bebe um copo de água, depois outro, apoiando-se no lavatório com a mão esquerda para não perder o equilíbrio, enquanto fita com uma expressão infeliz a roupa suja que deixou na banheira. Agora que a sede o levou à casa de banho, Mr. Blank diz para si mesmo que talvez não fosse má ideia tentar fazer mais um chichi, enfim, só para jogar pelo segu­ro. Receando uma nova queda caso se mantenha de pé demasiado tempo, deixa que as calças de pijama lhe caiam até aos tornozelos e senta-se na sanita. Tal qual uma mulher, diz ele para si mesmo, de súbito divertido com a ideia de quão diferente a sua vida teria sido se não tives­se nascido homem. Tendo em conta que a queda e a consequente perda de controlo urinário ocorreram há relativamente pouco tempo, é natural que a sua bexiga não esteja numa maré muito participativa, mas, ainda assim, Mr. Blank lá acaba por verter dois ou três medíocres esguichos. Puxa as calças de pijama ao mesmo tempo que se iça da sanita, puxa o autoclismo, passa as mãos por água no lavatório, seca-as numa toalha e, de seguida, vira-se e abre a porta - e é nesse exacto instante que vê um homem de pé no quarto. Mais uma oportunidade perdida, diz Mr. Blank para si mesmo, dando-se conta de que o ruído do autoclismo deve ter abafado o som da entrada do desconhecido, deixando desse modo sem resposta a questão de saber se a porta é ou não fechada por fora.

Mr. Blank senta-se na cadeira e dá uma abrupta meia-volta a fim de examinar o recém-chegado, um homem alto a meio da casa dos trinta, vestido com uns jeans azuis e uma camisa vermelha com botões aberta no colarinho. Cabelo escuro, olhos escuros, e um rosto emaciado que, pelo menos é o que parece, há anos não se abre num sorriso. Contudo, no exacto instante em que Mr. Blank faz esta observação para si mesmo, o homem sorri-lhe e diz: Olá, Mr. Blank. Como é que se sente hoje?

Eu conheço-o?, pergunta Mr. Blank.

Não viu o retrato?, replica o homem.

Que retrato?

A fotografia que está na sua secretária. A décima segunda a contar de cima. Não está lembrado do que eu lhe disse?

Ah, isso. Sim. Acho que sim. Eu devia ter visto a fotografia, não era? E?

Esqueci-me. Estava demasiado ocupado a ler aquela história comple­tamente pateta.

       Não faz mal, diz o homem, virando-se e encaminhando-se na direc­ção da secretária, de onde tira as fotografias, após o que procura na pilha até encontrar o retrato em questão. Depois de devolver as outras fotogra­fias à secretária, abeira-se de Mr. Blank e passa-lhe o retrato. Está a ver, Mr. Blank?, diz. Aí me tem.

       Nesse caso, você deve ser o médico, diz Mr. Blank. Samuel... Samuel qualquer coisa...

       Farr.

       Exacto. Samuel Farr. Já me lembro agora. Você tem qualquer coisa a ver com Anna, não é?

       Tive. Mas isso já foi há tanto tempo...

Pegando firmemente no retrato com ambas as mãos, Mr. Blank er­gue-o até o ter directamente em frente dos olhos, após o que o examina durante uns bons vinte segundos. Farr, praticamente com o mesmo aspec­to que tem agora, está sentado num jardim algures, envergando uma bata branca de médico, e tem um cigarro a arder entre o indicador e o dedo do meio da mão esquerda.

Não estou a perceber, diz Mr. Blank, de súbito acossado por um novo ataque de angústia que lhe queima o peito como carvão a arder e que lhe aperta o estômago tão apertado que este, a certa altura, mais parece um punho cerrado.

Qual é o problema?, pergunta Farr. Está muito parecido, não está?

Sim, claro, o retrato é perfeito. É possível que agora tenha mais um ou dois anos, mas não há a menor dúvida: o homem no retrato é você. E isso é um problema?

       Não, o problema é que você é tão jovem..., diz Mr. Blank com uma voz trémula, esforçando-se por reprimir as lágrimas que se estão a for­mar nos seus olhos. Anna também é jovem no retrato... Mas ela disse-me que a fotografia foi tirada há mais de trinta anos. Ela já não é nenhuma rapariga... Tem o cabelo grisalho, morreu-lhe o marido, o tempo, a pouco e pouco, está a fazer dela uma velha. Mas você, não. E você esteve com ela. Você esteve naquele país horrível para onde eu a mandei, mas isso já foi há mais de trinta anos, e você não mudou nada.

Farr hesita: é óbvio que não sabe o que responder a Mr. Blank. Senta-se na beira da cama, as mãos abertas fincadas nos joelhos, e pôe­-se a olhar para o chão, adoptando inadvertidamente a mesma posição em que encontrámos o velho no início deste relatório. Segue-se um longo momento de silêncio. Finalmente, com uma voz sumida, diz: Não estou autorizado a falar disso.

Mr. Blank fita-o horrorizado. Você está a dizer-me que está morto, exclama. É isso, não é? Você não conseguiu escapar. Anna sobreviveu, mas você não.

Farr ergue a cabeça e sorri. Pareço-lhe morto, Mr. Blank?, pergunta. Claro que todos nós passamos por momentos difíceis, mas, acredite no que lhe digo - estou tão vivo como o senhor.

Bom, e quem é que me garante que eu estou vivo?, diz Mr. Blank, oferecendo a Farr um sorriso francamente sinistro. Se calhar também estou morto. Pelo modo como as coisas me têm corrido esta manhã, não me espantaria nada se estivesse morto. O tratamento... Qual tratamento, qual carapuça... Se calhar, não passa de mais uma palavra para morte...

O senhor agora não se lembra, diz Farr, levantando-se da cama e tirando a fotografia das mãos de Mr. Blank, mas tudo isto foi ideia sua. Nós estamos apenas a fazer o que o senhor nos pediu que fizéssemos.

       Lérias. Quero falar com um advogado. Ele há-de tirar-me daqui. Não sei se sabe, mas eu tenho os meus direitos.

Um advogado? Podemos tratar disso, responde Farr, levando a foto­grafia para a secretária, onde a reinsere na pilha. Se quiser, pedirei a alguém que passe por cá esta tarde.

       Muito bem, murmura Mr. Blank, algo confuso com os modos solíci­tos e obsequiosos de Farr. Assim está melhor.

Farr olha de relance para o seu relógio e logo abandona a secretária e, uma vez mais, senta-se na cama de frente para Mr. Blank, que conti­nua sentado na sua cadeira ao pé da porta da casa de banho. Está a fazer­-se tarde, diz o jovem. Temos de começar a nossa conversa.

Conversa? Que género de conversa?

A consulta.

Eu compreendo a palavra, mas não faço ideia do que é que você quer dizer com ela.

Está previsto que discutamos a história.

Mas para quê? Aquilo é apenas o princípio de uma história e, na minha terra, as histórias têm um princípio, um meio e um fim, caso con­trário não são histórias.

Não poderia estar mais de acordo.

A propósito, quem é que escreveu aquela coisa completamente idio­ta? Sabe o que é que deviam fazer a esse sujeito? Encostá-lo a um muro e executá-lo.

Foi um homem chamado John Trause. Já ouviu falar?

Trause. .. Hmmm... Talvez. Escreveu romances, não foi? Está tudo um bocado enevoado na minha cabeça, mas creio que... Sim, é possível que tenha lido alguns desses romances...

Leu, sim. Pode ter a certeza de que leu.

Nesse caso, porque é que não me deram um dos romances dele ­em vez de uma história mal atamancada, inacabada e sem título?

Acontece que Trause acabou essa história. O manuscrito tem cento e dez páginas e ele escreveu-o no início dos anos 1950, quando estava a começar como romancista. O senhor pode achar que não é grande coisa, mas, para um puto de vinte e três, vinte e quatro anos, até que nem está nada mal...

Não compreendo. Porque é que não me deixam ler o resto?

Porque isso faz parte do tratamento, Mr. Blank. Nós não pusemos estes papéis todos na secretária só para o senhor se divertir. Se eles estão aqui, por alguma razão é.

Que razão?

Testar os seus reflexos, por exemplo.

Os meus reflexos? O que é que os meus reflexos têm a ver com isto? Reflexos mentais. Reflexos emocionais.

E?

O que eu quero que faça é que me conte o resto da história. Comece no ponto em que parou e diga-me o que é que acha que vai aconte­cer a seguir - até ao último parágrafo, até à última palavra. Já tem o princípio, não é? Agora, quero que me dê o meio e o fim.

Mas o que é isto? Um jogo de salão?

Se quiser. Eu prefiro defini-lo como um exercício de raciocínio ima­ginativo.

       Bonita expressão, doutor. Raciocínio imaginativo. Desde quando é que a imaginação tem alguma coisa a ver com razão?

       A partir de agora, Mr. Blank. A partir do momento em que começar a contar-me o resto da história.

       Muito bem. Também não tenho nada de melhor para fazer, não é?

A ideia é essa.

Mr. Blank fecha os olhos para se concentrar na tarefa que tem entre mãos, mas o apagamento do quarto e de todos os objectos que o rodeiam tem o perturbante efeito de convocar a procissão de seres imaginários que, em pontos anteriores da narrativa, desfilou na sua cabeça. Mr. Blank estremece perante a medonha visão e, um instante depois, abre de novo os olhos a fim de a fazer desaparecer.

Algum problema?, pergunta Farr com uma expressão preocupada.

Os malditos espectros, diz Mr. Blank. Estão outra vez de volta.

Espectros?

As minhas vítimas. Todas as pessoas que eu fiz sofrer ao longo dos anos. Agora não fazem outra coisa senão perseguir-me. Querem vingança.

       Mantenha os olhos abertos, Mr. Blank, isso basta para que elas não voltem a aparecer. Vá lá, temos de avançar com a história.

       Está bem, está bem, diz Mr. Blank, soltando um longo suspiro auto-comiserativo. Dê-me um minuto.

       Olhe, porque é que não me diz o que pensa da Confederação? Pode ser que isso o ajude, por assim dizer, a aquecer...

A Confederação... A Con-fe-de-ra-ção... Não podia ser mais simples, pois não? É apenas um outro nome para a América. Não os Estados Uni­dos como nós os conhecemos, mas um país que evoluiu de uma manei­ra diferente, que tem uma história diferente. Mas todas as árvores, todas as montanhas e todas as pradarias desse país estão exactamente nos mes­mos sítios que as nossas árvores, as nossas montanhas e as nossas pradarias. Os rios e os oceanos são idênticos. Os homens caminham sobre duas pernas, vêem com dois olhos e tocam no que quer que seja com duas mãos. Têm pensamentos contraditórios e emitem opiniões dife­rentes sobre os mesmos assuntos consoante os interlocutores.

Muito bem. Agora diga-me - o que é que acontece a Graf quando chega a Ultima?

Vai ter com o coronel e mostra-lhe a carta de Joubert, mas De Vega reage como se tivesse acabado de receber um bilhete das mãos de uma criança. É que ele também está envolvido na conspiração. Graf lembra­-lhe que uma ordem de um membro do governo central tem de ser obe­decida, mas o coronel diz que trabalha para o Ministério da Guerra e que recebeu ordens rigorosas para respeitar e fazer respeitar as Leis das Fron­teiras Fechadas. Graf menciona os rumores que correm acerca de Land e dos cem soldados que penetraram nos Territórios Estrangeiros, mas De Vega faz de conta que não sabe de nada. Depois, Graf diz-lhe que não. tem outra alternativa senão escrever ao Ministério da Guerra a pedir uma autorização para infringir as Leis das Fronteiras Fechadas. Muito bem, diz De Vega, mas vai ter de esperar seis semanas, porque a sua carta vai de­morar três semanas a chegar à capital e a resposta do Ministério vai demo­rar outro tanto a chegar a Ultima, e o que é que você vai fazer nesse intervalo? Vou ver tudo o que há de interessante para ver em Ultima e aguardar pela resposta, diz Graf, sabendo muito bem que o coronel de Vega nunca permitirá que a sua carta saia de Ultima, que a carta será interceptada logo que ele tente mandá-la.

Porque é que De Vega está envolvido na conspiração? Pelo que pude perceber, tudo aponta para que De Vega seja um militar leal à Confederação.

E é. Quanto a isso não há a menor dúvida: De Vega é um militar leal à Confederação. Tal e qual como Ernesto Land, que comanda os seus cem soldados nos Territórios Estrangeiros.

Não percebo.

A Confederação é um estado frágil, de formação recente, composto por colónias e principados que, antes da Confederação, eram indepen­dentes, e, a fim de se consolidar uma tão ténue aliança, haverá melhor maneira de unir o povo do que inventar um inimigo comum e desenca­dear uma guerra? Neste caso particular, escolheram os Primitivos. Land éum agente duplo que foi enviado para os Territórios Estrangeiros a fim de atiçar a rebelião no seio das tribos que lá vivem. Não é assim tão dife­rente do que nós fizemos aos Índios depois da Guerra Civil. Faz-se tudo para pôr os nativos em pé de guerra e, depois, toca a massacrá-los.

Mas como é que Graf sabe que De Vega também está envolvido na conspiração?

Porque De Vega não fez perguntas suficientes. O coronel deveria pelo menos ter fingido alguma curiosidade. Além disso, há o facto de ele e Land trabalharem para o Ministério da Guerra. Joubert e os seus homens do Ministério dos Assuntos Internos, obviamente, estão completamente a leste da conspiração, mas isso é perfeitamente normal. As várias agências do governo escondem coisas umas às outras o tempo todo. Cada uma tem os seus segredos, não é?

E depois?

       Joubert deu a Graf os nomes de três homens, espiões que trabalham

para o ministério em Ultima. Nenhum deles sabe da existência dos outros, mas têm sido eles, no seu conjunto, a fonte das informações de Joubert sobre Land e os seus movimentos. Depois da sua conversa com o coro­nel, Graf vai à procura dos três espiões. Mas, um após outro, descobre que todos eles, como se costuma dizer, foram despachados para parte incerta. Podíamos dar-lhes nomes... É sempre mais interessante quando uma personagem tem um nome. O capitão... hmmm... o major Jacques Dupin foi transferido para um posto nas montanhas centrais dois meses antes. O Df. Carlos... Woburn... deixou a cidade em Junho a fim de ofe­recer os seus serviços às populações do norte, onde grassa uma epide­mia de varíola. E Declan Bray, o mais próspero barbeiro de Ultima, morreÚ de intoxicação alimentar no início de Agosto. Acidente ou crime, é impossível saber, mas, tudo somado, cá temos o pobre Graf, sem qual­quer possibilidade de ligação ao ministério, sem um único aliado ou con­fidente, completamente só naquele árido e lúgubre recanto da Terra.

Muito bem. Os nomes são um bom retoque, Mr. Blank.

O meu cérebro está a girar a duzentos quilómetros à hora. Ao longo de todo o dia, não houve um único momento em que sentisse uma ener­gia tão grande como agora...

Os velhos hábitos custam a morrer - talvez seja essa a razão.

Que raio é que quer dizer com isso?

Nada. Quero dizer apenas que está em boa forma, que está a come­çar a carburar, a ganhar ritmo, a entrar na coisa. O que é que acontece a seguir?

Graf deixa-se ficar em Ultima durante mais de um mês, procurando descobrir uma maneira de atravessar a fronteira que o separa dos Terri­tórios. Bom, para começar, não pode ir a pé. Precisa de um cavalo, de uma espingarda, de provisões, se calhar também de um burro. Entretan­to, como não tem mais nada para ocupar os seus dias, acaba por se dei­xar envolver pela sociedade de Ultima - ainda que a dita sociedade deixe muito a desejar, pois é preciso não esquecer que Ultima mais não é do que uma pequena e asquerosa cidade que, para além de ficar no mais remoto cu de judas que se possa imaginar, vive inteiramente à volta do seu quartel. Entre todas as figuras de Ultima, é precisamente o hipó­crita De Vega que, com grande alarde, resolve comportar-se como se sen­tisse por ele uma entranhada amizade. Além de o convidar para jantares - longas e enfadonhas festas frequentadas por oficiais do exército, auto­ridades da cidade, membros da classe mercantil, para além das respectivas esposas ou companhias femininas de tipos vários e assim por diante -, De Vega leva-o aos melhores bordéis e chega mesmo ao ponto de ir à caça com ele umas quantas vezes. Além disso, há a amante do coronel...

Carlotta... Carlotta Hauptmann... uma sensualista debochada, a prover­bial viúva cheia de apetite sexual, cujos principais entretenimentos na vida são foder e jogar às cartas. O coronel é casado, claro, tem mulher e dois filhos, e, como só pode dar as suas escapa delas uma ou duas vezes por semana, Carlotta está disponível para aventuras com outros homens. Ao fim de pouco tempo, Graf envolve-se com ela. Certa noite, na cama, Graf questiona-a acerca de Land e Carlotta confirma os rumores. Sim, diz ela, Land e os seus homens atravessaram a fronteira há pouco mais de um ano. Porque é que ela lhe diz isso? Os motivos de Carlotta não são lá muito claros. Pode ser que se tenha enamorado de Graf e queira ajudá­-lo, pode ser que o coronel a tenha levado a fazer isso por razões que sóele saberá. Esta parte tem de ser tratada com extremo cuidado. O leitor nunca poderá ter a certeza se Carlotta está a atrair Graf para uma arma­dilha ou se, muito simplesmente, fala mais do que devia. Não nos esque­çamos de que estamos em Ultima, o mais enfadonho de todos os postos fronteiriços da Confederação, onde o sexo, o jogo e a intriga acabam por ser as únicas diversões que uma pessoa pode ter.

E como é que Graf atravessa a fronteira?

Não estou lá muito certo. Algum tipo de suborno, sem dúvida. Para dizer a verdade, também não é um ponto muito importante. O que inte­ressa é que há uma noite em que ele passa a fronteira - e é aí que come­ça a segunda parte da história. Agora, estamos no deserto. Um vazio que nos rodeia por todos os lados, um feroz céu azul por cima das nossas cabeças, uma luz que golpeia incessante, e, depois, quando o sol se põe, um frio capaz de nos enregelar até ao tutano. Graf segue para oeste durante vários dias, montado num cavalo baio que dá pelo nome de Whi­tey por ter uma mancha branca entre os olhos, e, como conhece bem a zona devido à sua visita doze anos antes, Graf cavalga rumo às terras dos Gangi, a tribo com que melhor se deu durante as suas anteriores via­gens e que lhe pareceu ser a mais pacífica de todas as nações primitivas. Certa manhã, já perto do meio-dia, aproxima-se finalmente de um acam­pamento Gangi, uma pequena aldeia de quinze ou vinte cabanas, o que sugeriria uma população de setenta a cem pessoas. Não se vê vivalma. Quando está a cerca de trinta metros da primeira cabana da aldeia, grita uma saudação no dialecto Gangi local a fim de informar os habitantes da sua chegada - mas ninguém responde. Cada vez mais alarmado, Graf apressa o cavalo e trota na direcção do centro da aldeia, onde não encon­tra o menor sinal de vida humana. Desmonta, encaminha-se na direcção de uma das cabanas e afasta a pele de búfalo que serve de porta. No ins­tante em que entra na cabana, é saudado pelo lancinante fedor da morte, pelo repugnante cheiro de corpos em decomposição, e ali, à ténue luz da cabana, vê uma dúzia de Gangi massacrados - homens, mulheres, crianças -, todos eles abatidos à queima-roupa. Sai da cabana a camba­lear, sedento de ar puro, tapando o nariz com um lenço, e, depois, uma após outra, inspecciona todas as cabanas da aldeia. Estão todos mortos, nem uma só alma sobreviveu ao massacre, e, entre eles, Graf reconhece uma série de pessoas com quem fez amizade doze anos antes. As rapari­gas que, desde então, se tornaram mulheres, os rapazes que, desde então, se tornaram homens, os pais que, desde então, se tornaram avós, e, entre todos eles, já não há nenhum que respire, e, entre todos eles, já nenhum envelhecerá nem mais um dia até ao fim dos dias.

Quem é que fez isso? Land e os seus soldados?

       Paciência, doutor. Uma coisa destas não pode ser apressada. Esta­mos a falar de brutalidade e morte, da matança dos inocentes, e Graf sente-se ainda demasiado desorientado com o choque da sua descober­ta. Não está em condições de absorver o que aconteceu, mas, mesmo que estivesse, porque é que ele iria pensar que Land tinha alguma coisa a ver com o massacre? Graf parte do princípio de que o seu velho amigo está a tentar desencadear uma rebelião, a tentar formar um exército de Primi­tivos que invadirá as províncias ocidentais da Confederação. Ora um exército de mortos não é propriamente o mais aguerridos dos exércitos, pois não? A última coisa que Graf concluiria é que Land poderia ter mas­'sacrado os seus futuros soldados.

Desculpe. Não o interrompo mais.

Interrompa as vezes que quiser. Estamos a lidar com uma história complicada, e nem tudo é o que parece, bem pelo contrário. Pense, por exemplo, nas tropas de Land. Esses soldados não fazem a menor ideia de qual poderá ser a sua verdadeira missão, tal como não fazem a menor ideia de que Land é um agente duplo que trabalha para o Ministério da Guerra. São umas dezenas de sonhadores instruídos e cultos, jovens que, assumindo posições radicais no espectro político, se opõem firmemente à Confederação e, quando Land os recrutou para o acompanharem aos Territórios Estrangeiros, esses jovens acreditaram piamente nas suas pala­vras e lançaram-se à aventura pensando que iam ajudar os Primitivos a anexar as províncias ocidentais.

Graf alguma vez encontra Land?

Tem de encontrar. Caso contrário, não haveria história nenhuma para contar. Mas isso só acontece muito mais tarde - teremos ainda de espe­rar várias semanas ou meses. Cerca de dois dias depois de ter abandona­do a aldeia massacrada, Graf encontra um dos homens de Land, um soldado que, em perfeito estado de delírio, se arrasta, trôpego, pelo deserto, sem comida, sem água, sem cavalo. Graf tenta ajudá-lo, mas já é demasiado tarde, e o rapaz só se aguenta por mais umas horas. Porém, antes de morrer, rompe num discurso delirante, num caudal de palavras incoerentes que vai balbuciando ao ouvido de Graf. E que diz o solda­do? Que estão todos mortos, que nunca tiveram a menor hipótese de fazer aquilo que se propunham fazer, que toda aquela história foi uma fraude desde o primeiro instante. Graf tem dificuldade em percebê-lo. O que é que ele quer dizer com todos? Land e os seus soldados? Os Gangi? Outras tribos primitivas? O rapaz não responde e, antes de o sol se pôr, está morto. Graf enterra o corpo e segue o seu caminho e, um dia ou dois depois disso, chega a uma outra aldeia Gangi cheia de cadáveres. Já não sabe o que pensar. Então e se Land for responsável por aquilo tudo? Então e se o rumor de uma insurreição não for mais do que um disfarce para ocultar uma empresa muito mais sinistra: uma discreta matança dos Primitivos que permitiria ao governo abrir os seus territórios à coloniza­ção branca e expandir os tentáculos da Confederação até às praias do oceano ocidental? E, no entanto, como é que um tal objectivo poderia ser alcançado com um tão magro exército? Apenas cem homens para elimi­nar dezenas de milhar de soldados Primitivos? Aí está algo que, franca­mente, não parece possível, e, no entanto, se Land não tem nada a ver com o que se passa, então só nos resta uma explicação - os Gangi foram mortos por outra tribo, os Primitivos estão a ser dizimados por guerras intestinas.

Mr. Blank está prestes a continuar, mas, antes que consiga pronun­ciar outra palavra, ele e o doutor são interrompidos por alguém que bate à porta. Por muito envolvido que esteja na elaboração da história, por muito satisfeito que se sinta por estar a desfiar a sua versão de uma tão ampla sequência de eventos imaginários, Mr. Blank apercebe-se imedia­tamente de que chegou o momento por que tem estado à espera: o mis­tério da porta está - finalmente - a um passo de ser resolvido. Mal ouve bater à porta, Farr vira a cabeça na direcção do som. Entre, diz ele, e, sem mais nem menos, a porta abre-se, e logo entra uma mulher empur­rando um carrinho de aço inoxidável, talvez o mesmo que Anna usou umas horas antes, talvez um outro, embora idêntico. Por uma vez, Mr. Blank prestou atenção, e, tanto quanto se pôde aperceber, não ouviu nenhum som de uma fechadura a abrir-se - nada que se assemelhasse ao som de um fecho ou de um trinco ou de uma chave - o que sugeri­ria não só que a porta não estava fechada de maneira nenhúma, como também que a porta nunca esteve fechada. Ou pelo menos é o que Mr. Blank imagina e, rendido às asas da sua imaginação, começa já a rejubi­lar perante a liberdade que o espera, ou seja, perante a perspectiva de poder entrar e sair como muito bem lhe aprouver; passado um momen­to, porém, dá-se conta de que as coisas talvez não sejam assim tão sim­ples. Pode ser que o Dr. Farr se tenha esquecido de fechar a porta quando entrou. Ou, ainda mais provável, pode ser que o Dr. Farr não se tenha dado ao trabalho de a fechar, sabendo que não teria a menor dificuldade em dominar o prisioneiro caso este tentasse escapar da sua cela. Sim, diz o velho para si mesmo, a resposta deve ser essa. E Mr. Blank, que, em relação às suas perspectivas de futuro, não sente outra coisa senão o mais absoluto pessimismo, resigna-se, uma vez mais, a viver num estado de constante incerteza.

       Olá, Sam, diz a mulher. Desculpe aparecer assim, sem avisar nem nada, mas está na hora do almoço de Mr. Blank.

       Olá, Sophie, diz Farr, levantando-se da cama e olhando para o seu relógio. Não me tinha apercebido de que já era tão tarde.

Mas o que é que está a acontecer aqui?, pergunta Mr. Blank num tom insolente, ao mesmo tempo que dá um murro no braço da cadeira. Eu quero continuar a contar a história.

O nosso tempo acabou, diz Farr. Chegámos ao fim da consulta de hoje.

       Mas eu não acabei!, grita o velho. Eu ainda não cheguei ao fim!

       Eu sei, replica Farr. O problema é que estamos a trabalhar com horá­rios muito apertados e, contra isso, não há nada a fazer. Continuaremos com a história amanhã.

Amanhã?, brada Mr Blank, tão incrédulo quanto confuso. Mas ama­nhã como? Amanhã eu não me vou lembrar de nenhuma das palavras que disse hoje. Nem uma só! Você sabe disso. Até eu sei disso, e eu não sei porra nenhuma.

Farr abeira-se de Mr. Blank e dá-lhe umas palmadinhas no ombro, um gesto de apaziguamento clássico para um homem versado na subtil arte de lidar com doentes. Muito bem, diz ele, vou ver o que posso fazer. Claro que, primeiro, terei de obter a devida autorização, mas se quiser que eu volte ao fim do dia, é provável que consiga dar um jeito. Está bem assim?

       Está, murmura Mr. Blank, sentindo que a gentileza e a preocupação com que Farr lhe fala abrandaram um pouco a sua determinação.

       Bom, nesse caso vou andando, anuncia o médico. Até mais logo.

       Sem mais palavras, acena um adeus a Mr. Blank e à mulher chama­da Sophie, avança na direcção da porta, abre-a, transpõe o limiar e fecha a porta atrás de si. Mr. Blank ouve o clique de um trinco, mas nada mais. Nem o tumulto metálico de um fecho, nem o ruído característico de uma chave a girar na fechadura, de modo que, agora, Mr. Blank pergunta-se se a porta não será muito simplesmente uma daquelas engenhocas que ficam automaticamente trancadas mal uma pessoa as fecha.

Enquanto Mr. Blank se entrega a tais pensamentos, a mulher chama­da Sophie anda numa azáfama a arrumar o carrinho de aço inoxidável paralelamente à cama e a transferir os vários pratos do almoço de Mr. Blank da prateleira de baixo para a prateleira de cima. Mr. Blank repara que há ao todo quatro pratos e que cada prato se encontra oculto por uma cobertura de metal redonda com um buraco no meio. De súbito, ao ver tais coberturas, lembra-se do serviço de quartos dos hotéis, o que, por sua vez, o incita a especular acerca do número de noites que terá passado em hotéis ao longo da sua vida. Ouve uma voz dentro dele a dizer: Tantas que nem têm conta. Só que a voz que diz isso não é a voz dele ou, pelo menos, não é uma voz que ele reconheça como a sua pró­pria voz, e, no entanto, como fala com tanta autoridade e convicção, Mr. Blank tem de conceder que a dita voz só pode estar a dizer a verdade. Se é esse o caso, pensa, então é porque, no' seu tempo, se fartou de via­jar, andou sempre numa roda-viva de um lado para o outro, em carros, em comboios, em aviões, e sim, acrescenta ele para si mesmo, os aviões levaram-no a todos os cantos do mundo, a muitos países em vários con­tinentes, e sem dúvida que essas viagens tiveram alguma coisa a ver com as missões que confiou a todas aquelas pessoas, àquelas pobres pessoas que tanto sofreram por causa dele, e é seguramente por isso que agora está confinado a este quarto, impedido de viajar seja para que destino for, encurralado entre estas quatro paredes porque está a ser punido pelo mal que fez aos outros.

Este fugaz devaneio é interrompido a meio do seu curso pelo som da voz da mulher. Pronto para o seu almoço?, pergunta a mulher, e, ao erguer a cabeça para olhar para ela, Mr. Blank dá-se conta de que já não consegue lembrar-se do seu nome. A mulher deve estar a sair da casa dos quarenta ou então já entrou na dos cinquenta, e, embora ache o seu rosto simultaneamente delicado e atraente, Mr. Blank constata que o corpo é demasiado cheio e atarracado, pelo que dificilmente poderá classificá-la como uma mulher ideal. Para que conste, deverá ser assinalado que o vestuário da mulher é idêntico ao usado por Anna algumas horas antes.

       Onde é que está a minha Anna?, pergunta Mr. Blank. Pensava que era ela que cuidava de mim.

       E é, diz a mulher. Mas Anna teve umas coisas para fazer à última hora e pediu-me para a substituir.

       Isso é terrível, diz Mr. Blank, num tom francamente pesaroso. Claro que não tenho nada contra si, quem quer que você possa ser, mas passei todas estas horas à espera de a voltar a ver... Aquela mulher é tudo para mim. Não posso viver sem ela.

Eu sei, diz a mulher. Todos nós sabemos. Mas - e, aqui, oferece-lhe um sorriso amável - que posso eu fazer? Quer-me parecer que vai ter mesmo de aguentar comigo...

       Ai de mim..., suspira Mr. Blank. Tenho a certeza de que as suas intenções são as melhores, mas não vou fingir que não estou desapontado.

Ninguém o obriga a fingir coisa nenhuma. Aliás, tem todo o direito de sentir o que sente, Mr. Blank. Não tem culpa de sentir o que sente, pois não?

       Já que vamos ter de aguentar um com o outro, como você diz, acho que talvez fosse boa ideia se me dissesse quem é.

       Sophie.

       Ah. Exacto. Sophie... Um nome muito bonito. E começa com a letra S, não começa?

       Pelos vistos...

Tente recordar-se, Sophie... Você não será por acaso a rapariga que eu beijei quando tinha dez anos? Nas margens do lago? Tínhamos acaba­do de patinar no gelo e depois sentámo-nos num cepo e eu beijei-a. Infe­lizmente, você não retribuiu o meu beijo. Pelo contrário: riu-se.

Não poderia ter sido eu... Quando o senhor tinha dez anos, eu nem sequer era nascida.

Sou assim tão velho?

Quer dizer, v_lho, velho, não. Mas muito mais velho do que eu. Muito bem. Se você não é essa Sophie, então que Sophie é você?

       Em vez de lhe responder, a Sophie que não é a rapariga que Mr. Blank beijou quando tinha dez anos vai até à secretária, retira uma das fotografias da pilha e ergue-a. Esta sou eu, diz ela. Quer dizer, com menos vinte e cinco anos. Aproxime-se mais, Mr. Blank. Está demasiado longe.

       Passados alguns segundos, Mr. Blank está com a fotografia nas mãos. Pelos vistos, é a fotografia que ele examinou com tanta atenção num momento anterior do dia - a fotografia da jovem que acaba de abrir a porta daquele que parece ser um apartamento nova-iorquino.

Era muito mais magra, diz ele.

É a idade, Mr. Blank, ou melhor, a meia-idade. A meia-idade costu­ma fazer umas coisas assim um bocado esquisitas ao físico de uma rapa­riga, não é?

Diga-me, diz Mr. Blank, batendo na fotografia com o indicador. O que é que se passa aqui? Quem é a pessoa que está no corredor e por­que é que você a fita com esta expressão? Apreensiva, sim, de algum modo, mas, ao mesmo tempo, contente, satisfeita. Se não estivesse con­tente, não estaria a sorrir, pois não?

Sophie agacha-se ao lado de Mr. Blank, que continua sentado na cadeira, e examina a fotografia em silêncio durante vários momentos.

É o meu segundo marido, diz ela, e julgo que é a segunda vez que ele vem ver-me. Da primeira vez, eu estava com o bebé nos braços quan­do abri a porta, lembro-me disso muito bem - portanto, esta só pode ser a segunda vez.

Porquê tão apreensiva?

Porque não tinha a certeza quanto aos sentimentos dele...

E o sorriso?

Estou a sorrir porque me sinto feliz por voltar a vê-lo.

Disse que era o seu segundo marido. E o primeiro? Quem era ele?

Um homem chamado Fanshawe.

Fanshawe... Fanshawe..., murmura Mr. Blank para si mesmo. Acho que, finalmente, estamos a chegar a algum lado...

Com Sophie ainda agachada ao lado dele, com a fotografia a preto­-e-branco da jovem Sophie ainda no seu colo, Mr. Blank, abruptamente, desata a gingar para a frente na sua cadeira, avançando na direcção da secretária tão rapidamente quanto lhe é possível. Logo que chega ao seu destino, atira com o retrato de Sophie para cima da pilha de fotografias, tapando desse modo o retrato de Anna, pega no pequeno bloco de notas e abre-o na primeira página. O seu dedo vai descendo pela lista de nomes até que pára em Fanshawe. Então, Mr. Blank gira na cadeira a fim de ficar de frente para Sophie, a qual, entretanto, depois de se ter levantado, se encaminha lentamente na direcção dele.

       Ah! Ah!, diz Mr. Blank, batendo com o dedo no bloco de notas. Eu bem sabia. Fanshawe está implicado nisto tudo, não está?

       Não percebo o que quer dizer, diz Sophie, detendo-se aos pés da cama e logo se sentando mais ou menos no mesmo sítio anteriormente ocupado por James P. Flood. Claro que está implicado. Todos nós esta­mos implicados nisto, Mr. Blank. Julgava que tinha entendido isso.

Embora a resposta dela o deixe confuso, Mr. Blank faz um esforço para não largar a linha de pensamento a que, com tanto ânimo, se tinha agarrado. Alguma vez ouviu falar de um homem chamado Flood? James P. Flood. Um tipo inglês. Ex-polícia. Fala com sotaque cockney.

       Não seria melhor comer o seu almoço?, pergunta Sophie. A comida está a ficar fria.

Um minuto se faz favor, dispara Mr. Blank, irritado por ela ter muda­do de assunto. Dê-me só um minuto. Antes de falarmos de comida, quero que me conte tudo o que sabe acerca de Flood.

       Eu não sei nada. Ouvi dizer que esteve cá hoje de manhã, mas não o conheço - nunca o vi...

Mas o seu marido... quer dizer, o seu primeiro marido... esse tal Fanshawe... Ele escreveu livros, não foi? Num deles, um livro chamado.. . porra... não me consigo lembrar do título. Never... Never qualquer coisa.. .

Neverland.

       Isso. Neverland. Fanshawe usou Flood como uma das personagens desse livro e no capítulo... no capítulo xxx, creio, ou talvez fosse o VII, Flood tem um sonho.

Não me lembro, Mr. Blank.

Está a dizer-me que não leu o romance do seu marido?

       Não, eu li o livro. Mas já foi há tanto tempo... E, além disso, desde então nunca mais peguei nele... O senhor provavelmente não vai com­preender, mas era a minha paz de espírito que estava em causa, de modo que tomei a decisão de não pensar mais no meu primeiro marido nem na sua obra. Chegou um momento em que disse para mim mesma: aca­bou. E pronto - risquei-o do meu pensamento.

       Como é que acabou o vosso casamento? Fanshawe morreu? Divorciaram-se?

       Eu casei-me com ele era ainda muito jovem. Vivemos juntos alguns anos, eu engravidei e, depois, ele desapareceu.

       Mas aconteceu alguma coisa? Ou não aconteceu nada e ele deixou-a porque... porque sim... quer dizer, foi deliberado da parte dele...?

       Sim, foi deliberado.

Esse homem devia ser louco... Deixar uma jovem tão bonita... Fanshawe era uma pessoa extremamente perturbada. Um homem com tantas qualidades, com tanta coisa boa dentro de si, mas que, no fundo, queria destruir-se... E, no fim, conseguiu mesmo destruir-se... Virou-se contra mim, virou-se contra o seu trabalho, e, depois, cortou por completo com a sua vida e desapareceu.

Disse «o seu trabalho». Quer dizer que ele deixou de escrever?

Sim. Desistiu de tudo. Ele tinha imenso talento, Mr. Blank, mas, com o tempo, acabou por desprezar essa parte de si mesmo, até que, um dia, parou. Tão simples como isso - parou, largou tudo.

E a culpa disso tudo é minha, não é?

Eu não iria tão longe. Claro que o senhor desempenhou um papel nessa história toda, mas estava apenas a fazer aquilo que tinha de fazer. Você deve odiar-me.

Não, não o odeio. Passei por um período muito difícil, mas, depois, as coisas acabaram por se compor. E devo dizer que até nem correram nada mal... Não se esqueça de que voltei a casar-me - e tem sido um bom casamento, um longo e bom casamento. Já para não falar dos meus dois filhos, claro. Ben e Paul. Que já são dois homens feitos. Ben é médi­co e Paul está na universidade, vai ser antropólogo. Nada mau, pois não? Sou eu que lho digo, Mr. Blank, posso dar-me por feliz. Espero que, um dia, venha a conhecer os meus filhos... Acho que se sentiria muito orgu­lhoso.

Agora, Sophie e Mr. Blank estão sentados lado a lado na cama, de frente para o carrinho de aço inoxidável com os vários pratos do almoço de Mr. Blank alinhados ao longo da prateleira de cima, cada prato oculto por uma cobertura de metal redonda com um buraco no meio. Mr. Blank está desejoso de atacar o almoço pois o seu apetite não tem feito outra coisa senão crescer, mas, diz-lhe Sophie, antes que possa tocar num só naco de comida, terá de tomar os seus comprimidos da tarde. Apesar da compreensão que se desenvolveu entre eles nos últimos minutos, e ape­sar do prazer que Mr. Blank sente por estar tão perto do corpo amplo e quente de Sophie, a verdade é que o velho torce resolutamente o nariz à exigência que lhe é feita e recusa-se a engolir a medicação. Enquanto os comprimidos que ingeriu de manhã eram um verde, outro púrpura e outro branco, aqueles que agora estão alinhados na prateleira de cima do carrinho de aço inoxidável são um cor-de-rosa, outro vermelho e outro cor de laranja. Sophie explica-lhe que, de facto, estes comprimidos são diferentes, concebidos para produzirem efeitos diferentes dos efeitos dos comprimidos da manhã, e que, se ele não tomar estes comprimidos em conjunção com os outros, o tratamento não resultará. Mr. Blank entende os argumentos expostos por Sophie, mas isso não chega para o conven­cer a mudar de ideias, e, enquanto Sophie pega no primeiro comprimido entre o polegar e o dedo médio e tenta dar-lho, Mr. Blank abana obsti­nadamente a cabeça.

Por favor, implora-lhe Sophie, eu sei que está com fome, mas, de uma maneira ou de outra, estes comprimidos vão ter de entrar no seu sis­tema antes que coma a sua primeira garfada.

Que se foda a comida, diz Mr. Blank, e com que azedume.

       Sophie suspira exasperada. Ouça lá, seu velho dum raio, diz ela. Caramba, eu só quero ajudá-lo...! Eu sou uma das poucas pessoas que está do seu lado nesta história toda, mas, se você não cooperar, pode crer que há pelo menos uma dúzia de homens que vão ficar todos contentes por lhe enfiarem estes comprimidos pela goela abaixo.

       Pronto, está bem, diz Mr. Blank, começando a afrouxar um pouco. Mas com uma condição.

       Condição? Que história é essa?

       Eu engulo os comprimidos. Mas, primeiro, tem de se despir e de dei­xar que as minhas mãos afaguem o seu corpo...

Sophie acha a proposta tão ridícula que desata num riso pegado ­ sem se aperceber de que foi precisamente assim que a outra Sophie rea­giu em circunstâncias similares tantos anos antes, nas margens do lago gelado da meninice de Mr. Blank. E, depois, para piorar ainda mais as coisas, pronuncia as palavras fatais; Não seja tolo.

Ah, diz Mr. Blank, inclinando-se todo para trás como se alguém tives­se acabado de lhe dar um bofetão mesmo em cheio na cara. Ah, geme ele. Diga o .que quiser, mulher. Mas não isso. Por favor. Não isso. Diga­-me tudo menos isso.

Em poucos segundos, os olhos de Mr. Blank encheram-se de lágri­mas e, antes que tenha tempo para se aperceber do que se passa, já as lágrimas lhe deslizam pelas faces e todo ele é soluços.

Desculpe, diz Sophie, não era minha intenção magoá-lo...

O que é que tem de mal querer olhar para si?, pergunta Mr. Blank, a voz meio sufocada pelos soluços. Tem uns seios tão bonitos... Eu só quero vê-los e tocar-lhes... Quero pôr as minhas mãos na sua pele, pas­sear com os meus dedos pelos seus pêlos púbicos. Será que é uma coisa assim tão terrível? Eu não vou magoá-la. Só quero um pouco de ternura, nada mais. Depois de tudo o que me têm feito neste sítio, será pedir demasiado?

Bom, diz Sophie, e, pelo seu ar, só se pode concluir que está a pen­sar seriamente no caso - sente sem dúvida alguma compaixão perante o tormento por que Mr. Blank está a passar -, pode ser que consigamos chegar a um compromisso...

       Como por exemplo?, pergunta Mr. Blank e logo limpa as lágrimas com as costas da mão.

       Por exemplo... Você toma os comprimidos, certo? De cada vez que engolir um comprimido, eu deixo-o tocar-me nos seios.

Seios nus?

Não. Prefiro ficar de blusa.

Oh, isso assim não presta...

Está bem. Eu tiro a blusa. Mas o soutien fica onde está. Entendido? Não é propriamente o paraíso, mas acho que não tenho outra hipó­tese senão aceitar.

E é desta forma que a questão é resolvida. Sophie despe a blusa e, ao fazê-lo, Mr. Blank verifica, com ânimo redobrado, que o soutien que ela usa é de uma variedade muito fina e delicada e rendilhada e não uma daquelas peças de equipamento - é o termo - usadas por matronas já bem entradas na idade e por outras que, não sendo velhas, já atiraram ao chão a toalha do amor físico. As metades superiores dos rotundos e abun­dantes seios de Sophie estão à vista, e, mesmo mais em baixo, o material do soutien é tão diáfano que Mr. Blank pode ver claramente os mamilos espetados contra o tecido. Não propriamente o paraíso, diz Mr. Blank para si mesmo enquanto engole o primeiro comprimido com um gole de água, mas, ainda assim, extremamente satisfatório. E, logo de seguida, as suas mãos estão em cima deles - a mão esquerda no seio direito, a mão direita no seio esquerdo - e, enquanto saboreia a magnitude e a suavidade das glândulas mamárias de Sophie, algo descaídas, é certo, mas, ainda assim, prenhes de nobreza, Mr. Blank encontra um outro moti­vo de contentamento - Sophie está a sorrir. Não de prazer, talvez, mas, pelo menos, de divertimento, demonstrando desse modo que não lhe guarda nenhum ressentimento e que está a lidar lindamente com a aven­tura por ele proposta.

Mas que velho lúbrico que o senhor me saiu, diz ela.

Eu sei, responde ele. Já em jovem eu era lúbrico...

       Repetem o procedimento combinado mais duas vezes - a toma de um comprimido seguida de mais um delicioso encontro com os seios ­e, depois, Sophie veste de novo a blusa, o que significa que chegou o momento de Mr. Blank começar a comer.

Infortunadamente, o repetido acariciar da apetitosa carne de uma mulher desencadeou uma alteração previsível na carne do acariciador. O velho amigo de Mr. Blank está outra vez a fazer das suas e, como o nosso herói já não tem vestidas as calças de algodão e as cuecas e está nuzinho em pêlo sob as calças de pijama, não há nenhuma barreira capaz de impedir o Senhor Grandalhão de dar um pulo decisivo e, ao pular, de assomar à abertura das calças de pijama e, ao assomar a essa janela, de espetar a sua cabeça para a luz do dia. Isto acontece no preciso momen­to em que Sophie se debruça a fim de começar a remover as coberturas metálicas que tapam os pratos e, ao baixar-se para guardar as coberturas na prateleira inferior do carrinho, os seus olhos ficam a escassos centí­metros do infame prevaricador.

Olha-me só para ti..., diz Sophie, dirigindo-se ao pénis erecto de Mr. Blank. O teu dono apalpa-me as mamas não mais que três vezes e já estás todo feito para entrares em acção... Deixa-te disso, rapaz... A festa já acabou.

Desculpe, diz Mr. Blank, por uma vez francamente embaraçado com o seu comportamento. Mas é que o raio da coisa a modos que se dispa­rou sozinha... Não estava nada à espera...

Não precisa de pedir desculpa, replica Sophie. Agora toca a devol­ver essa coisa à procedência, ou seja, enfie-a outra vez nas calças, que épara nós irmos ao que interessa.

O que interessa, neste caso, é o almoço de Mr. Blank, o qual consis­te de uma pequena tigela com uma sopa de legumes já morna, uma san­duíche com três fatias de pão branco e duas camadas de recheio, uma salada de tomate e uma taça de gelatina vermelha. Não vamos fazer uma descrição exaustiva dos vários passos desta refeição, mas, não obstante, há um acontecimento cujo relato se impõe. Tal como sucedeu depois de Mr. Blank ter tomado os seus comprimidos da manhã, as mãos dele come­çam a tremer incontrolavelmente no instante em que tenta levar a comi­da à boca. Estes comprimidos podem muito bem ser diferentes, podem muito bem ter sido concebidos com diferentes objectivos e banhados em diferentes cores, mas, no que respeita à tremura das mãos, o seu efeito é idêntico. Mr. Blank começa a refeição atacando a sopa. Como se poderá imaginar, a viagem inaugural da colher entre a tigela e a boca de Mr. Blank revela-se muito acidentada e o resultado é que não há uma só gota de sopa que chegue ao destino pretendido. Mr. Blank não tem culpa nenhuma do que está a acontecer, mas a verdade é que todo o conteúdo da colher se despenha, em sucessivas chuvadas, em cima da sua camisa branca.

Santo Deus, diz ele. Voltei a fazer o mesmo.

Antes que a refeição possa continuar, ou, para sermos mais exactos, antes que a refeição possa começar, Mr. Blank é obrigado a despir a cami­sa, que era a última peça de roupa branca que ainda tinha vestida, e a substitui-la pelo casaco de pijama, regressando assim à mesma indumen­tária com que o encontrámos no início deste relatório. É um momento bem triste para Mr. Blank, pois, agora, já não resta nem o mais ténue traço dos gentis e meticulosos esforços de Anna para o vestir e preparar para o dia. Pior ainda: Mr. Blank renunciou por completo ao cumprimento da promessa que fez a Anna, visto que, agora, nenhuma das peças de roupa que tem no corpo é branca.

Tal como Anna fez antes dela, Sophie assume a tarefa de dar de comer a Mr. Blank. Embora não seja menos amável e paciente com ele do que Anna foi, o certo é que Mr. Blank não gosta de Sophie do mesmo modo que gosta de Anna, e é por isso que, enquanto ela vai levando as sucessivas colheradas e garfadas à sua boca, ele se põe a olhar por cima do ombro esquerdo dela para um ponto na parede mais distante, fanta­siando que é Anna que está sentada ao lado dele e não Sophie.

Você conhece bem Anna?, pergunta ele.

Conheci-a há dias, replica Sophie, mas já tivemos três ou quatro lon­gas conversas. Somos pessoas muito diferentes sob todos os pontos de vista, mas, em relação às coisas que realmente contam, às coisas realmen­te importantes, não podíamos estar mais de acordo.

Que coisas?

O senhor, por exemplo.

Foi por isso que ela lhe pediu que a substituísse esta tarde?

Acho que sim.

Até agora, tenho tido um dia horrível, mas o facto de a ter reencon­trado fez-me um bem tão grande... Não sei o que faria sem ela.

Ela sente o mesmo em relação a si.

Anna... Mas Anna quê? Tenho passado horas a tentar lembrar-me do apelido dela. Creio que começa com um B, mas não consigo ir mais longe do que isso.

Blume. O nome dela é Anna Blume.

Claro!, exclama Mr. Blank, após o que se põe a bater na testa com a palma da mão esquerda. Mas que raio é que se passa comigo? Eu sem­pre conheci esse nome - toda a minha vida o conheci... Anna Blume. Anna Blume. Anna Blume...

Agora, Sophie já não está lá. O carrinho de aço inoxidável desapare­ceu, a camisa branca salpicada de sopa desapareceu, as roupas sujas e molhadas que estavam na banheira desapareceram, e, uma vez mais, depois de ter ido à casa de banho e de, com a ajuda de Sophie, ter feito um chichi como deve ser e sem o menor incidente, Mr. Blank está só, sentado na beira da cama estreita, mãos abertas finca das nos joelhos, cabeça baixa, olhos fixos no chão. Avalia a recente visita de Sophie em todos os seus pormenores e zurze em si mesmo por não lhe ter pergun­tado nada acerca das coisas que mais o preocupam. Onde está, por exem­plo. Se lhe é permitido passear no parque sem supervisão. Onde é que fica o roupeiro, se é que um tal roupeiro existe de facto, e por que razão é que ele ainda não foi capaz de o encontrar. Já para não falar do eterno enigma da porta - e se é ou não fechada por fora. Porque é que hesi­tou em revelar a Sophie tudo o que lhe vai na alma, pergunta-se, quando ela é uma pessoa tão compassiva, para além de não lhe guardar o menor ressentimento? Será simplesmente uma questão de medo, pergunta-se, ou será que isso tem alguma coisa a ver com o tratamento, esse nefasto tratamento que tanto o debilita, que, a pouco e pouco, lhe tem vindo a rou­bar a capacidade de se erguer em defesa de si mesmo e de travar as suas próprias batalhas?

Sem saber o que pensar, Mr. Blank encolhe os ombros, bate com as palmas das mãos nos joelhos e, acto contínuo, levanta-se da cama. Vários segundos depois, está sentado à secretária, a esferográfica na mão direi­ta, o pequeno bloco de notas à sua frente, aberto na primeira página. Pro­cura o nome de Anna na lista, encontra-o na segunda linha logo a seguir a James P. Flood, e inscreve as letras B-l-u-m-e, alterando assim a entra­da em causa - Anna é agora Anna Blume. Então, como todas as linhas da primeira página já estão preenchidas, passa para a segunda página e acrescenta mais duas entradas à sua lista:

 

John Trause

Sophie

 

Quando fecha o bloco de notas, é com estupefacção que Mr. Blank se dá conta de que não precisou de fazer nenhum esforço para se lem­brar do nome de Trause. Depois de tantos combates, de tantas tentativas fracassadas para se lembrar de nomes e rostos e acontecimentos, consi­dera que está perante um triunfo de primeira magnitude. Desata a balou­çar para trás e para a frente na cadeira a fim de celebrar a sua proeza, ao mesmo tempo que se pergunta se os comprimidos da tarde não serão de algum modo responsáveis pela neutralização das suas falhas de memória das horas anteriores, ou se não se tratará apenas de um feliz acaso, uma daquelas coisas inesperadas que nos acontecem por nenhuma razão pal­pável, manifesta. Qualquer que seja a causa, decide que agora vai conti­nuar a pensar na história, na expectativa da visita do médico prevista para o fim do dia, visto que Farr lhe disse que faria tudo o que estivesse ao seu alcance para lhe permitir continuar a contar a história até ao fim não amanhã, pois amanhã já Mr. Blank se terá esquecido sem dúvida da maior parte daquilo que até agora narrou, mas hoje. Contudo, enquanto continua a balouçar para trás e para a frente na cadeira, os seus olhos detêm-se, por um mero acaso, na tira de fita adesiva branca colada ao tampo da secretária. Ao longo do dia, olhou já para essa tira pelo menos cinquenta ou cem vezes, e, sempre que o fez, não deixou de reparar que a palavra escrita na fita branca era, muito claramente, SECRETÁRIA. Agora, para seu grande espanto, Mr. Blank vê que a palavra é CANDEEI­RO. A sua reacção inicial é pensar que os seus olhos de algum modo o enganaram, de maneira que pára de balouçar para trás e para a frente, a fim de examinar com mais atenção a tira de fita adesiva. Debruça-se sobre a secretária, baixa a cabeça até que o nariz quase toca na fita e, com todo o cuidado, estuda a palavra. E, para seu imenso tormento, descobre que a palavra continua a ser CANDEEIRO.

Cada vez mais inquieto, Mr. Blank iça-se da cadeira e começa a andar pelo quarto no seu passo arrastado, parando a cada tira de fita adesiva branca colada a um objecto, a fim de determinar se outras palavras foram alteradas. Após minuciosa investigação, é com horror que descobre que todas as etiquetas mudaram de sítio. A parede, agora, diz que é CADEIRA. O candeeiro, agora, diz que é CASA DE BANHO. A cadeira, agora, diz que é SECRETÁRIA. Várias explicações possíveis irrompem de imediato na mente de Mr. Blank. Acaba de ser vítima de um acidente vascular ou de uma qualquer lesão cerebral; perdeu a capacidade de ler; houve alguém que lhe pregou uma partida de muito mau gosto. Mas, pergunta­-se, se realmente foi alvo de uma partida, quem poderá ser responsável por ela? Várias pessoas entraram no seu quarto nas últimas horas: Anna, Flood, Farr, Sophie. Quanto às mulheres: parece-lhe inconcebível que qualquer uma delas lhe possa ter feito tal coisa. Contudo, é verdade que, quando Flood entrou, a sua mente estava longe, muito longe dali, e tam­bém é verdade que, quando Farr entrou, se encontrava na casa de banho a puxar o autoclismo, mas não consegue imaginar como é que qualquer um dos dois homens poderia ter levado a cabo uma tão complexa ope­ração de troca no breve período de tempo em que escaparam ao seu campo de visão - vários segundos, no máximo, ou seja, praticamente tempo nenhum. Mr. Blank sabe que não está na sua melhor forma, que a sua mente não está a trabalhar tão bem como devia, mas também sabe que não está pior agora do que quando o dia começou, o que eliminaria desde logo a teoria do acidente vascular, cerebral ou não, e, se perdeu a capacidade de ler, como é que poderia ter acrescentado mais dois nomes à sua lista escassos momentos antes? Senta-se na beira da cama estreita e pergunta-se se não terá dormitado uns minutos depois de Sophie ter dei­xado o quarto. Não se lembra de ter adormecido, mas, tudo somado, é a única explicação que faz sentido. Uma quinta pessoa entrou no quarto, uma pessoa que não era Anna, nem Flood, nem Farr, nem Sophie, e mudou as etiquetas durante o seu breve - e já esquecido - mergulho na inconsciência.

Um inimigo anda a rondar este local, diz Mr. Blank para si mesmo, talvez vários ou mesmo muitos inimigos, operando em conluio uns com os outros, e a sua única intenção é assustá-lo, desorientá-lo, levá-lo a pen­sar que está a ficar doido, como se estivessem a tentar persuadi-lo de que os seres-sombras alojados na sua cabeça se transformaram em almas sem um corpo que as sustente, em fantasmas vivos recrutados para invadirem o seu pequeno quarto e causarem tanta devastação quanto possível. Mas Mr. Blank é um homem de ordem e fica ofendido com as infantis tentati­vas dos seus captores para lhe fazerem a vida negra. A sua experiência de vida, que já é bem longa, levou-o a valorizar a importância da precisão e da clareza em todas as coisas, e, ao longo dos anos em que mandou as pessoas a seu cargo nas mais diversas missões por todos os cantos do mundo, Mr. Blank nunca se poupou a esforços para redigir os relatórios sobre as suas actividades numa linguagem que não traísse a verdade daquilo que elas viam e pensavam e sentiam a cada passo das suas jor­nadas. Portanto, chamar secretária a uma cadeira ou candeeiro a uma secretária pura e simplesmente não pode ser. Não - nem pensar. Con­temporizar com um tão pueril capricho equivale a lançar o mundo no caos, a tornar a vida intolerável para toda a gente excepto para os lou­cos. Mr. Blank ainda não chegou ao ponto de não conseguir identificar objectos que não tenham apensos os respectivos nomes, mas não há dúvida de que está em declínio, e compreende que poderá chegar o dia, talvez dentro de pouco tempo, talvez mesmo amanhã, em que o seu cére­bro sofrerá uma erosão ainda maior e em que ele precisará de ter o nome da coisa na coisa para poder reconhecê-la. Assim sendo, decide acabar com a desordem criada pelo seu inimigo invisível e devolver as etiquetas aos objectos a que, de facto, correspondem.

Um tal trabalho demora mais tempo do que previu, pois Mr. Blank depressa fica a saber que as tiras de fita em que as palavras foram escri­tas possuem poderes quase sobrenaturais de adesão, e que descolar uma delas da superfície a que está grudada exige uma concentração e um esforço irrestritos. Mr. Blank começa por usar a unha do polegar esquer­do para arrancar a primeira tira (a palavra PAREDE, que foi parar à gros­sa tábua de carvalho aos pés da cama), mas, logo que consegue enfiar a unha sob o canto inferior direito da fita, a ponta da unha quebra-se. Tenta novamente com a unha do dedo médio, um pouco mais pequena e, por­tanto, menos quebradiça, e, diligentemente, desata a atacar o renitente canto direito até que, já com uma boa porção da fita descolada, Mr. Blank põe uma pequena secção da mesma entre o polegar e o dedo médio e, puxando com todo o cuidado para não provocar um único rasgão, arran­ca a tira da grossa tábua de carvalho. Um momento satisfatório, sem dúvi­da, mas um momento que exigiu uns bons dois minutos de laboriosos preparativos. Considerando que há um total de doze tiras de fita que terão de ser removidas, e considerando que Mr. Blank quebra mais três unhas no processo (reduzindo desse modo para seis o número de dedos ope­racionais), o leitor compreenderá por certo por que razão o nosso herói demora mais de meia hora para dar por findo o seu trabalho.

Estas fatigantes actividades deixaram Mr. Blank esgotado e, em vez de fazer uma pausa para dar uma vista de olhos ao quarto e admirar o seu trabalho (o qual, por muito pequeno e insignificante que possa pare­cer, é, para ele, nada mais nada menos do que uma tentativa simbólica de devolver a harmonia a um universo devastado), arrasta-se até à casa de banho para limpar o suor do rosto. A velha sensação de vertigem vol­tou e Mr. Blank agarra-se ao lavatório com a mão esquerda enquanto bor­rifa o rosto com a mão direita. Mal fecha a torneira e estica o braço para pegar numa toalha, sente-se de súbito pior, pior do que até agora se sen­tiu em qualquer momento do dia. O problema parece localizar-se algu­res no estõmago, mas, antes que ele consiga pronunciar a palavra estômago para si mesmo, já a coisa está a viajar rumo à traqueia, acom­panhada por um desagradável latejo nos maxilares. Instintivamente, agar­ra-se ao lavatório com ambas as mãos e baixa a cabeça, preparando-se para o acesso de náusea que, sem qualquer explicação, tomou conta dele. Luta contra o vómito durante um ou dois segundos, rezando para que consiga deter a explosão que se anuncia, mas é uma causa desesperada e, passado um instante, Mr. Blank está a vomitar para o lavatório. Eles envenenaram-me!, grita Mr. Blank, já sem nada para vomitar. Os mons­tros envenenaram-me!

Quando a acção recomeça, Mr. Blank está estirado na cama, a olhar para o tecto branco, pintado de fresco. Agora que as criminosas toxinas foram expulsas do seu sistema, sente-se sem um pingo que seja de ener­gia, meio morto devido ao violento ataque de ânsias de vómito e subse­quentes vómitos e subsequente crise de choro que tiveram lugar na casa de banho há escassos minutos. E, no entanto, se é que uma tal coisa é possível, também se sente melhor, mais tranquilo no cerne do seu debili­tado eu, mais preparado para enfrentar as provações que, sem dúvida, o esperam.

A pouco e pouco, enquanto estuda o tecto, a brancura deste evoca na sua mente uma imagem, e, a certa altura, dá por si a imaginar que está a olhar não para um tecto, mas para uma folha de papel em branco. Não sabe por que razão as coisas tomaram tal caminho, mas talvez tenha al­guma coisa a ver com as dimensões do tecto, que é rectangular e não quadrado, o que significa que o quarto também é rectangular e não qua­drado, e, embora o tecto seja muito maior do que uma folha de papel, as suas proporções são grosseiramente similares às de uma página standard, ou seja, uma página com vinte e um centímetros e cinquenta nove por vinte e sete centímetros e noventa e quatro. Enquanto dá continuidade a este pensamento, há qualquer coisa que se agita dentro de Mr. Blank, uma qualquer memória distante que não consegue fixar na sua mente, uma memória que se esbate sempre que se abeira dela, mas, através da névoa que o está a impedir de ver a coisa claramente na sua cabeça, con­segue enxergar vagamente os contornos de um homem, um homem que é sem sombra de dúvida ele mesmo, sentado a uma secretária, a enrolar uma folha de papel numa velha máquina de escrever manual. Deve ser um dos relatórios, diz ele em voz alta numa voz baixa, e, então, Mr. Blank pergunta-se quantas vezes é que não terá repetido esse gesto, quantas vezes ao longo dos anos, compreendendo agora que foram nem mais nem menos do que milhares de vezes, milhares e milhares de vezes, mais folhas de papel do que um homem poderia contar num dia ou numa semana ou num mês.

O facto de pensar na máquina de escrever traz-lhe à memória o manuscrito dactilografado que leu em momentos anteriores do dia, e, agora que já recuperou, enfim, mais ou menos, do exasperante trabalho de descolar as tiras de fita adesiva branca e de as devolver aos seus cor­rectos locais no quarto, e, agora que a batalha que, de forma tão violen­ta, eclodiu no seu estômago, já se extinguiu, Mr. Blank lembra-se de que era sua intenção continuar com a história, traçar todas as minúcias do enredo até à conclusão, a fim de se preparar para a visita suplementar do médico ao fim do dia. Ainda estirado na cama com os olhos abertos, con­sidera por um momento se deverá prosseguir em silêncio, isto é, contar a história a si mesmo dentro das paredes da sua mente, ou se não será melhor continuar a improvisar as sucessivas peripécias em voz alta, ape­sar de, no quarto, não haver ninguém para o ouvir. Como, neste preciso momento, se sente particularmente só, completamente esmagado pelo peso da solidão forçada, decide fazer de conta que o médico se encontra no quarto com ele e, por conseguinte, proceder como antes, isto é, con­tar a história com a sua voz em vez de se limitar a pensá-la na sua cabeça.

Prossigamos então com a história, de acordo?, diz ele. Muito bem, responde. A Confederação. Sigmund Graf. Os Territórios Estrangeiros. Ernesto Land. Em que ano estamos neste país imaginário? Suponho que por volta de 1830. Não há comboios, não há telégrafo. Viaja-se de cavalo e uma pessoa chega a esperar três semanas por uma carta. Muito pareci­do com a América, mas não idêntico. Para começar, não há escravos negros - pelo menos, o texto não refere nenhum. Mas mais variedade étnica do que na América, pelo menos nesse momento da História. Nomes alemães, nomes franceses, nomes ingleses, nomes espanhóis. Muito bem, onde é que nós íamos? Graf está nos Territórios Estrangeiros à procura de Land, que pode ou não ser um agente duplo, que pode ou não ter fugido com a mulher e a filha de Graf. Vamos recuar um pouco, está bem? Acho que andei demasiado depressa, que saltei para demasia­das conclusões apressadas. De acordo com Joubert, Land é um traidor àConfederação que formou o seu próprio exército privado a fim de con­duzir os Primitivos numa invasão das províncias ocidentais. A propósito - detesto essa palavra. Primitivos. É demasiado prosaica, demasiado grosseira, falta-lhe elegância. A ver se encontramos uma coisa mais... enfim, mais colorida... Hmmm... Não sei... Talvez qualquer coisa como... o Povo do Espírito. Não. Não presta. Os Dolmen. Os Olmen. Os Tolmen. Que horror. O que é que se passa comigo? Os Djiin. Isso mesmo. Os Djiin. Soa um bocado como Injun, mas com outras conotações lá pelo meio também [N7]. Muito bem, fica Djiin. Joubert pensa que Land está nos Territó­rios Estrangeiros, decidido a chefiar os Djiin num ataque às províncias ocidentais. Mas Graf acha que a coisa é mais complicada do que isso. Porquê? Por um lado, acredita que Land é leal à Confederação. Por outro lado, como é que Land poderia ter atravessado a fronteira acompanhado por cem homens sem o conhecimento do coronel de Vega? De Vega garante que não sabe de nada, mas Carlotta disse a Graf que Land entrou nos Territórios vai para mais de um ano, e, a menos que ela esteja a men­tir, a conclusão é óbvia: De Vega está envolvido na conspiração. Ou então - e este é um ponto que não me ocorreu - Land subornou De Vega com uma avultada soma e o coronel, afinal de contas, não está envolvi­do em conspiração nenhuma. Mas isso é algo que não tem nada a ver com Graf, que nunca suspeita da possibilidade de um suborno. A histó­ria que Graf constrói na sua cabeça é esta: Land, De Vega e os chefes mili­tares planeiam desencadear uma guerra contra os Djiin, uma guerra que não passa de um embuste e cujo único objectivo é consolidar a Confe­deração. Talvez queiram matar dois coelhos de uma cajadada, isto é, con­solidar a Confederação e aniquilar os Djiin. Mas talvez não. Para já, temos apenas duas possibilidades: a posição de Joubert e a posição de Graf. Contudo, se queremos que esta história funcione, se queremos que ela venha a dar nalguma coisa, tem de haver uma terceira explicação, algo de que ninguém jamais estaria à espera. Caso contrário, é demasiado pre­visível - tão simples como isso, previsível até dizer chega...

Muito bem, prossegue Mr. Blank, após uma breve pausa para recentrar

 

7 .Djiin' não pode deixar de evocar o termo árabe jinrb (também ,djinn ou ,djin», que, numa definição simples, são anjos que caem em desgraça e que, em relação aos huma­nos, assumem comportamentos normalmente nefastos. O termo árabe também acabou por ser lido no Ocidente como ,génio", sobretudo pela via das traduções francesas de As mil e uma noites. ,Injurb é um termo inglês (americano) sinónima de .índio, (norte-americano). (N. do T)

 

os seus pensamentos. Graf passou por duas aldeias Gangi e os habitan­tes de ambas as aldeias foram massacrados. Enterrou o soldado branco que, à hora da morte, lhe fez uma delirante confissão, e, agora, não sabe o que pensar. Para já, enquanto Graf segue na sua lenta jornada em busca de Land, vamos separar as duas principais questões com que ele se vê confrontado. A questão profissional e a questão pessoal. O que é que Land está a fazer nos Territórios, e onde é que estão a mulher e a filha de Graf? Para ser franco - mais franco não poderia ser - acho esta ques­tão doméstica uma seca de todo o tamanho. Pode ser resolvida de várias maneiras, mas todas as soluções são .embaraçosas: demasiado triviais, demasiado gastas, não justificam que gastemos com elas as nossas ener­gias intelectuais. Primeira solução: Beatrice e Marta fugiram com Land. Se Graf os encontrar juntos, não descansará enquanto não matar Land. Resta saber se conseguirá ou não eliminar o rival, mas o que nós sabemos já é que, neste ponto, a história descamba no típico melodrama do cornudo que procura defender a sua honra. Segunda: Beatrice e Marta fugiram com Land, mas Beatrice morreu - fosse devido aos efeitos da epidemia de cólera, fosse por causa da extrema dureza da vida nos Territórios. Ima­ginemos que Marta, agora com dezasseis anos, já uma mulher feita, viaja com Land porque Land é seu amante. Que faz Graf num caso desses? Continua a querer matar Land, a querer assassinar o seu velho amigo enquanto a sua única filha lhe suplica que poupe a vida do homem que ama? Paizinho, por favor, paizinho, não mate o meu amado! Ou será que Graf conclui que águas passadas não movem moinhos e resolve esque­cer toda essa história? De uma maneira ou de outra, não dá, não pega, não resulta. Terceira: Beatrice e Marta fugiram com Land, mas ambas mor­reram. Land não menciona os seus nomes a Graf e esse elemento da his­tória transforma-se numa defunta pista falsa. Pelos vistos, Trause era muito jovem quando escreveu esta peça e não me surpreende nada que nunca a tenha publicado. As duas mulheres deixaram-no num beco sem saída. Não sei que solução é que ele arranjou, mas estava capaz de apos­tar uma boa maquia em como foi a segunda - que é tão má como a pri­meira e a terceira. Quanto a mim, acho melhor dizermos definitivamente adeus a Beatrice e a Marta. Digamos que elas morreram devido à epide­mia de cólera e deixemos as coisas assim. Pobre Graf, claro, pobre Graf, mas a questão é esta - se queremos contar uma boa história, temos de ser impiedosos. É. Não podemos mostrar compaixão rigorosamente nenhuma.

Muito bem, diz Mr. Blank, pigarreando enquanto tenha apanhar o fio à meada, onde é que nós íamos? Pois. Graf. Graf sozinho. Graf errando pelo deserto montado no seu cavalo, esse belo corcel chamado Whitey, em busca do inacessível Ernesto Land...

Mr. Blank pára. Uma nova ideia acaba de surgir na sua cabeça, uma diabólica e devastadora iluminação que faz disparar uma onda de prazer que lhe arrepia o corpo todo, desde as pontas dos dedos dos pés até às células nervosas do cérebro. Num só instante, toda a trama, toda a histó­ria, se tornou clara para ele, e, ao contemplar as arrasadoras consequên­cias daquela que, sabe-o agora, é a escolha inevitável, a única escolha viável entre um ror de possibilidades em confronto, o velho desata a bater no peito e a dar pontapés no ar e abanar os ombros enquanto se lança numa convulsiva e desvairada chinfrineira de riso.

Espere aí..., diz Mr. Blank, erguendo uma mão para o seu interlocu­tor imaginário. Apague tudo. Já sei como é que vai ficar. Voltemos ao princípio. Isto é, à segunda parte. Voltemos ao princípio da segunda parte, quando Graf passa a fronteira e penetra nos Territórios Estrangei­ros. Esqueça o massacre dos Gangi. Esqueça o segundo massacre dos Gangi. Ao longo da sua viagem, Graf mantém-se longe de todos os acam­pamentos e aldeias dos Djiin. As LeiS das Fronteiras Fechadas encontram­-se em vigor há dez anos e ele sabe que os Djiin não reagirão bem à sua presença. Um homem branco viajando sozinho pelos Territórios? Impos­sível. Se o encontram, Graf é um homem morto. De modo que o nosso herói conserva-se sempre à distância, nunca sai das amplas zonas desér­ticas que separam as diferentes nações umas das outras - em busca de Land e dos seus homens, sim, sem dúvida, encontrando o soldado que sucumbe ao delírio da febre, sim, sem dúvida, mas, quando finalmente alcança o seu objectivo, encontra o exacto oposto daquilo que esperava encontrar. Numa árida planura do centro norte dos Territórios, uma região similar às planícies salgadas do Utah, depara com uma pilha de cento e quinze cadáveres, alguns deles mutilados, outros intactos, todos eles apo­drecendo e decompondo-se sob um sol impiedoso. Não corpos de Gangi, não corpos de nenhuma das tribos das nações Djiin, mas sim homens brancos, homens brancos com uniformes do exército, pelo menos aqueles que não foram despidos e cortados aos bocados, e, enquanto erra, num passo vacilante, em redor desta massa pútrida e nauseabunda de gente chacinada, Graf descobre que uma das vítimas é o seu velho amigo Ernes­to Land - que jaz de costas com o buraco de uma bala na testa e uma chusma de moscas e vermes rastejando ao longo do seu rosto já meio devorado. Não dedicaremos muito espaço à reacção de Graf a este hor­ror: os vómitos e as lágrimas, os gritos, as suas mãos que, como garras, se cravam na sua roupa e a reduzem a farrapos. O que importa é isto. Como o seu encontro com o soldado delirante se deu há apenas duas semanas, Graf sabe que o massacre ocorreu numa data bastante recente. Mas, acima de tudo, o que importa é isto: Graf não tem a menor dúvida . de que Land e os seus homens foram massacrados pelos Djiin.

Mr. Blank faz uma pausa para emitir uma nova risada, mais comedi­da talvez do que a anterior, mas, ainda assim, uma risada que logra expri­mir ao mesmo tempo alegria e amargura, visto que, embora se sinta feliz por ter reformulado a história de acordo com os seus próprios desígnios, Mr. Blank sabe que se trata de uma história horrível, e uma parte dele retrai-se de terror perante aquilo que terá ainda de contar.

Mas Graf está enganado, diz Mr. Blank. Graf não sabe nada acerca do sinistro plano em que, involuntariamente, se viu envolvido. Ele é o otário, como se diz nos filmes, o trouxa que foi ludibriado pelo governo para pôr a máquina em andamento. Eles estão todos metidos nisto - Jou­bert, o Ministro da Guerra, De Vega, não escapa nenhum. Sim, Land foi enviado para os Territórios como agente duplo, com instruções para inci­tar os Djiin a invadirem as províncias ocidentais, o que desencadearia a guerra que o governo tão desesperadamente deseja. Mas Land falha na sua missão. Um ano passa e, como nada aconteceu ao fim de tanto tempo, os homens que detêm as rédeas do poder concluem que Land os traiu, que, por uma razão ou por outra, a sua consciência acabou por se impor e vencer, e que Land fez a paz com os Djiin. Assim sendo, os homens do governo congeminam um novo plano e enviam um segundo exército para os Territórios. Não de Ultima, mas de um outro quartel umas boas centenas de quilómetros a norte de Ultima, e este contingente é muito maior do que o primeiro, pelo menos dez vezes maior, e, com mil soldados contra uma centena, Land e o seu anárquico bando de idealis­tas não têm a menor hipótese. Sim, ouviu bem. A Confederação envia um segundo exército para aniquilar o primeiro. Tudo isso no maior segredo, claro, e, se mandarem um homem como Graf à procura de Land, é óbvio que Graf concluirá que os responsáveis por aquela fétida pilha de cadá­veres mutilados são os Djiin. Neste ponto, Graf torna-se a figura-chave de toda a operação. Sem o saber, ele é a pessoa que vai permitir que a guerra seja desencadeada. Como? Sendo autorizado a escrever a sua his­tória naquela cela imunda em Ultima. Nos primeiros dias, De Vega e os seus homens tratam-lhe da saúde, espancam-no constantemente durante uma semana inteira, mas isso é só para o deixar aterrorizado e para o convencer de que está prestes a ser executado. E quando um homem pensa que está a um passo da morte, é claro que, se lhe derem papel e tinta, se o autorizarem a escrever, deitará tudo cá para fora, que o mesmo é dizer para a página. E, assim, Graf faz aquilo que eles querem que faça. Relata a sua missão para localizar Graf e, quando chega ao massacre que descobriu nas planícies salgadas, não omite nada, descreve todo o hor­ror de que foi testemunha, não descurando os mais sanguinolentos por­menores. Esse é o ponto crucial: um relato vívido daquilo que aconteceu, escrito por uma testemunha ocular que, ainda por cima, atribui todas as culpas aos Djiin. Quando Graf acaba de escrever a história, De Vega apo­dera-se do manuscrito e liberta-o da prisão. Graf fica abismado. Estava àespera de ser fuzilado e, afinal, pagam-lhe um generoso bónus pelo seu trabalho e oferecem-lhe uma viagem de regresso à capital numa carrua­gem de primeira. Quando chega a casa, já o manuscrito foi engenhosa­mente editado e distribuído por todos os jornais do país. SOLDADOS DA CONFEDERAÇÃO MASSACRADOS PELOS DJIlN: Um relato em primeira­-mão por Sigmund Graf, Subdirector Adjunto do Ministério dos Assuntos Internos.

Graf encontra toda a população da capital em armas, clamando pela invasão dos Territórios Estrangeiros. Compreende agora toda a crueldade do embuste de que foi vítima. Uma guerra em tão larga escala poderia ter sido um factor de destruição para a Confederação, e, pelos vistos, foi ele, e só ele, o fósforo que ateou este fogo mortífero a que agora assiste. Vai ter com Joubert e exige uma explicação. Visto que as coisas correram tão bem para ele e para o governo, Joubert dá-lhe de bom grado todas as explicações. Depois, oferece-lhe uma promoção com um grande aumento de salário, mas Graf contra-ataca com a sua própria proposta, que é muito simples - demite-se. Resigno ao meu cargo, diz ele, e, sem mais, abandona o gabinete do ministro e bate a porta atrás dele com toda a força. Nessa noite, na escuridão da sua casa vazia, pega num revólver carregado e enfia uma bala na cabeça. E é tudo. Fim da história. Finità, la commedia [N8.]

Mr. Blank tem estado a falar praticamente sem pausas há cerca de vinte minutos, e agora está cansado, e não é só por causa do esforço a que sujeitou as suas cordas vocais, pois a sua garganta já estava irritada quando começou Cirritação provocada pela crise de vómitos na casa de banho poucos minutos antes), de modo que, as últimas frases da sua his­tória, di-las já com uma acentuada rouquidão. Fecha os olhos, esquecen­do-se de que, muito provavelmente, uma tal acção trará de volta a procissão de seres imaginários que se arrastam às cegas por uma remota região desértica, a turba dos danados, aqueles seres sem rosto que aca­barão por cercá-lo e cair sobre ele e despedaçar o seu corpo, mas, desta vez, a sorte poupa Mr. Blank aos demónios, e, quando fecha os olhos, vê-se uma vez mais no passado, sentado numa cadeira, uma cadeira de um tipo particular, Adirondack, sim, julga ser esse o nome, uma cadeira Adirondack, num relvado algures no campo, 'um qualquer local remoto e rústico que não consegue identificar, com erva verde a rodeá-lo por todos os lados e montanhas azuladas ao longe, e o tempo está quente, quente no sentido em que o Verão é quente, com um céu sem nuvens lá nas alturas e o sol que se derrama em cheio sobre a sua pele, e aqui está Mr. Blank num tempo já longínquo, pelo menos é o que parece, Mr. Blank de regresso aos primeiros tempos da idade adulta, sentado na cadeira Adirondack e com uma criança pequena nos braços, uma meni­na com apenas um ano de idade vestida com uma T-shirt e uma fralda branca, e Mr. Blank está a olhá-la nos olhos e a falar com ela, que pala­vras lhe está a dizer, aí está uma coisa que ele não sabe, não pode saber porque esta excursão ao passado está a desenrolar-se em silêncio, e, enquanto Mr. Blank fala com a menina, ela, por sua vez, fita-o com uma expressão muito séria e concentrada, e Mr. Blank pergunta-se agora,

 

8 Em Italiano, no original - "o espectáculo acabou". (N. do T)

 

dei­tado na cama com os olhos agora fechados, se esta pequena criatura não será Anna Blume no início da sua vida, a sua querida Anna Blume, e, Sé não for Anna, então será que a menina é sua filha, mas que filha, per­gunta-se Mr. Blank, que filha e como é que ela se chama, e, se realmen­te ele é pai de uma criança, onde é que está a mãe e como é que ela se chama, pergunta-se Mr. Blank, e, depois, toma nota na sua cabeça de uma coisa que tem de fazer, tem de investigar estes assuntos todos da próxi­ma vez que entrar alguém no quarto, tem de descobrir se tem um lar algu­res com uma mulher e filhos, ou se em tempos teve uma mulher, ou se em tempos teve um lar, ou se este quarto não será o lugar onde sempre viveu, mas Mr. Blank está prestes a esquecer-se desta nota mental e, por­tanto, esquecer-se-á de fazer tais perguntas, tanto mais que, agora, está extremamente cansado, e a imagem de si mesmo na cadeira Adirondad com a menina nos braços acaba de desaparecer, e Mr. Blank adormece.

Por causa da máquina fotográfica, que tem continuado a tirar uma fotografia por segundo ao longo deste relatório, sabemos sem qualquer margem para dúvida que a soneca de Mr. Blank dura exactamente vinte e sete minutos e doze segundos. Poderia ter dormido muito mais do que isso, mas, agora, um homem que acaba de entrar no quarto está a dar. -lhe umas palmadinhas leves no ombro, a ver se o acorda. Quando abre os olhos, o velho sente-se totalmente retemperado por esta breve estadia nas Terras do Sono, e senta-se de imediato na cama, alerta e pronto par" o encontro, sem o menor traço de azamboamento a toldar-lhe o cérebro,

O visitante parece estar no final da casa dos cinquenta ou no princípio da casa dos sessenta e, como Farr, está vestido com uns jeans azuis mas, enquanto Farr vestia uma camisa vermelha, a camisa deste homen é preta, e, enquanto Farr entrou no quarto de mãos vazias, o homem d, camisa preta carrega nos braços uma pesada pilha de pastas e processos Mr. Blank dá-se conta de que o rosto deste homem lhe é profundamente familiar mas, como aconteceu com muitos dos rostos que viu hoje, tanto em fotografias como em carne e osso, sente uma dificuldade extrema en associar-lhe um nome.

Você é Fogg?, pergunta. Marco Fogg?

O visitante sorri e abana a cabeça. Não, diz, lamento, mas não sou O que é que o terá levado a pensar que eu poderia ser Fogg?

       Não sei, mas, agora mesmo, quando acordei, lembrei-me de súbito de que Fogg passou por cá ontem, a esta hora. a que, vendo bem, é, de facto, um pequeno milagre... Quer dizer, o facto de eu me ter lembrado. Mas Fogg esteve cá. Tenho a certeza de que esteve. Para o chá da tarde. Jogámos às cartas por um bocado. Conversámos. E ele contou uma série de anedotas.

Anedotas?, pergunta o visitante, e logo se encaminha para a secretá­ria e faz girar a cadeira cento e oitenta graus e senta-se com a pilha de dossiers no colo. Enquanto o visitante faz isto, Mr. Blank levanta-se, avan­ça no seu passo arrastado uns quantos metros e, depois, senta-se aos pés da cama, mais ou menos no mesmo sítio que Flood ocupou num momen­to anterior do dia.

       Sim, anedotas, prossegue Mr. Blank. Não consigo lembrar-me de todas, mas há uma que me pareceu francamente boa.

       Por acaso não se importa de me contar essa anedota?, pergunta o visitante. É que eu ando sempre à procura de boas anedotas.

Posso tentar, responde Mr. Blank, após o que faz uma pausa de alguns momentos a fim de pôr em ordem os seus pensamentos. Vejamos, diz ele. Hmmm. Deixe-me ver. Creio que começa assim. Um homem entra num bar em Chicago às cinco da tarde e pede três scotches. Não um de cada vez, mas todos ao mesmo tempo. o barman fica um bocado per­plexo com este pedido invulgar, mas não diz nada e dá ao homem aqui­lo que ele quer - três scotches, os três copos alinhados em cima do balcão. Um atrás do outro, o homem bebe os três scotches. Depois, paga a conta e vai-se embora. No dia seguinte, volta ao bar às cinco horas e pede o mesmo. Três scotches todos ao mesmo tempo. E no dia seguinte, e todos os dias a seguir a esse durante duas semanas. Por fim, o barman deixa-se vencer pela curiosidade. Não quero meter-me onde não sou cha­mado, diz ele, mas, nestas duas últimas semanas, o senhor veio cá todos os dias e pediu sempre os seus três scotches todos ao mesmo tempo e, bom, isso tem-me feito muita espécie, de modo que gostava de saber por­que é que faz isso. É que a maior parte das pessoas pede um scotch e bebe-o e, depois, se lhe apetece outro scotch, pede outro e bebe-o e assim por diante... Ah, diz o homem, a resposta é muito simples. Eu tenho dois irmãos. Um deles vive em Nova Iorque e outro vive em São Francisco e acontece que nós somos muito, mas mesmo muito chegados.

E, para celebrarmos a nossa amizade, vamos todos a um bar às cinco da tarde e pedimos três scotches e, silenciosamente, brindamos à saúde de cada um, fazendo de conta que estamos todos juntos no mesmo sítio. o barman acena que sim com a cabeça, compreendendo finalmente a razão de tão estranho ritual, e não pensa mais no caso. A história prosse­gue durante mais quatro meses. o homem aparece no bar todos os dias às cinco da tarde e o barman serve-lhe as três bebidas. Até que, um dia, há uma estranha mudança. o homem aparece à hora do costume, mas, desta vez, pede apenas dois scotches. o barman fica preocupado e, pas­sado um minuto ou dois, enche-se de coragem e diz: Não quero ser intro­metido, mas, nos últimos quatro meses e meio, o senhor veio cá todos os dias e pediu sempre três scotches. Agora, pediu dois. Eu sei que não tenho nada a ver com isso, mas só espero que não tenha acontecido nada de mal à sua família. Não, não aconteceu nada de mal, diz o homem, tão alegre e jovial como sempre. Então o que foi?, pergunta o barman. A res­posta é muito simples, diz o homem. É que eu deixei de beber.

O visitante desata num longo acesso de riso, e Mr. Blank, 'embora não se associe a tal manifestação de hilaridade, visto que já sabia como é que a anedota acabava, não deixa de sorrir para o homem da camisa preta, satisfeito consigo mesmo por se ter desenvencilhado tão bem da anedota. Quando as gargalhadas finalmente se esbatem, o visitante olha para Mr. Blank e diz: Sabe quem eu sou?

       Não tenho a certeza, replica 'o velho. Não é Fogg - isso é certo. Mas não há dúvida de que já nos encontrámos - muitas vezes, creio.

       Sou o seu advogado.

       O meu advogado... Isso é bom... muito bom. Contava vê-lo hoje. Temos muito que conversar.

Sim, diz o homem da camisa preta, dando umas significativas palmadinhas na pilha de pastas e processos que tem no colo. Temos mesmo muito que conversar. Mas, antes de tratarmos disso, gostava que olhasse bem para mim e que tentasse lembrar-se do meu nome.

Mr. Blank examina com toda a atenção o rosto magro e anguloso do homem, perscruta os seus grandes olhos cinzentos, estuda a queixada e a testa e a boca, mas, no fim, não consegue fazer melhor do que soltar um suspiro e abanar a cabeça numa confissão de derrota.

Sou Quinn, Mr. Blank, diz o homem. Daniel Quinn. O seu primeiro operacional.

Mr. Blank não consegue reagir senão com um gemido. Está mortifi­cado de vergonha, tão profundamente embaraçado que uma parte dele, lá muito no fundo de si mesmo, daria tudo para poder enfiar-se num buraco e morrer. Por favor, perdoe-me, diz ele. Meu caro Quinn - meu irmão, meu camarada, meu leal amigo. São estes malditos comprimidos que eu tenho andado a tomar. Deixam-me a cabeça completamente lixa­da, de modo que já nem sei a quantas ando.

       Entre todos os seus operacionais, foi a mim que o senhor confiou mais missões, diz Quinn. Lembra-se do caso Stillman?

Vagamente, replica Mr. Blank. Peter Stillman. Junior e Senior, se não estou em erro. Um deles vestia-se todo de branco. Já não me lembro qual, mas acho que era o filho.

       Sem tirar nem pôr. O filho. E, depois, houve o estranho caso de Fanshawe.

       O primeiro marido de Sophie. Aquele louco que desapareceu.

       Exacto uma vez mais. Mas não devemos esquecer o passaporte. Uma coisa pequena, suponho, mas, mesmo assim, foi trabalho duro...

       Que passaporte?

       O meu passaporte. O passaporte que Anna Blume encontrou quan­do o senhor a mandou em missão.

       Anna? Conhece Anna?

       Claro. Toda a gente conhece Anna. Por estas bandas, ela é assim gênero uma lenda...

       E merece ser. Não há nenhuma mulher como ela no mundo.

       E em último lugar, mas não menos importante, há a minha tia, Molly Fitzsimmons, a mulher que casou com Walt Rawley. Eu ajudei-o a escre­ver as suas memórias.

Walt quê?

Rawley. Em tempos conhecido como Walt, o Rapaz-Prodígio. Ah, sim. Isso já foi há muito tempo, não foi?

Correcto. Há muito, muito tempo.

E depois?

É tudo. Depois disso, o senhor passou-me à reforma...

       Mas por que raio é que eu fiz uma coisa dessas? O que é que me passou pela cabeça para o reformar?

É que eu já levava muitos anos de trabalho e, bom... tinha chegado a hora de me retirar... Os operacionais não duram para sempre. Faz parte da natureza da coisa.      .

Quando é que foi isso?

1993.

E em que ano estamos?

2005.

Doze anos. E o que é que tem feito desde... desde que eu o reformei? Viajado, sobretudo. Já estive em quase todos os países do mundo. E agora está de volta e a trabalhar como meu advogado. Estou muito contente por você ser o meu advogado, Quinn. Sempre senti que podia confiar em si.

       E pode, Mr. Blank. Foi por isso que me deram este trabalho. Porque já andamos nisto há tanto tempo...

       Tem de me tirar daqui, Quinn. Acho que já não consigo aguentar mais isto.

Não vai ser fácil. São tantas as acusações contra si que eu estou literalmente afogado em papéis... Tem de ser paciente. Gostaria muito de lhe poder dar uma resposta, mas não faço ideia de quanto tempo é que        vamos precisar para resolver as coisas.

Acusações? Que tipo de acusações?

Infelizmente, Mr. Blank, creio que temos o catálogo todo... Desde negligência com dolo a abuso sexual. Desde associação criminosa a prá­ticas fraudulentas, passando por homicídio por negligência. Desde difa­ mação de carácter a homicídio em primeiro grau. Quer que continue?

Mas eu estou inocente... Eu nunca fiz nenhuma dessas coisas... Esse é um ponto discutível. Tudo depende do modo como se enca­ra a coisa. . .

E o que é que acontece se perdermos?

A natureza do castigo ainda está em discussão. Há um grupo que defende clemência, um amplo perdão, um perdão que abranja todas as acusações de que o senhor é alvo. Mas há outros que querem sangue. E não são só dois ou três. É toda uma chusma de acusadores e estão cada vez mais assanhados...

       Sangue. Não compreendo. Quando fala de sangue, quer dizer...morte?

Em vez de responder, Quinn tira do bolso da camisa preta uma folha de papel, que depois desdobra a fim de partilhar com Mr. Blank aquilo que nela está escrito.

Houve uma reunião há apenas duas horas, diz Quinn. Não é minha intenção assustá-lo, mas, a certa altura, um dos participantes levantou-se e, imagine só, propôs o seguinte como uma solução possível. Cito: Ele deverá ser arrastado pelas ruas até ao local da sua execução, onde será enforcado e retalhado vivo, e o seu corpo deverá ser aberto e o seu cora­ção e entranhas arrancados e as suas partes pudendas cortadas e atira­das ao fogo diante dos seus olhos. Depois, a sua cabeça deverá ser decepada e o corpo deverá ser dividido em quatro partes, às quais dare­mos o destino que muito bem entendermos [N9]

Sim senhor, uma proposta muito simpática..., diz Mr. Blank com um suspiro. E que alma caridosa é que propôs essa... solução?

Não interessa quem foi, diz Quinn. Eu só quero que o senhor fique com uma ideia clara daquilo que temos pela frente. Não darei tréguas aos seus inimigos e lutarei por si até ao fim, mas temos de ser realistas. Pelo jeito que as coisas estão a tomar, vamos ter sem dúvida de chegar a alguns compromissos.

Foi Flood, não foi?, pergunta Mr. Blank. Esse homenzinho odioso que apareceu aqui de manhã só para me insultar.

Não, para dizer a verdade não foi Flood, mas isso não quer dizer que ele não seja uma pessoa perigosa. Fez muito bem em recusar o convite para ir até ao parque. Mais tarde, descobrimos que Flood tinha uma faca es­condida no casaco. A ideia dele era matá-lo logo que saíssem do quarto.

       Ah. Foi o que eu pensei. Aquele miserável e imprestável monte de merda...

Eu sei que é muito duro estar encurralado neste quarto, mas sugerir­-lhe-ia que não saísse nunca daqui, Mr. Blank. Se alguém o convidar para um passeio no parque, invente uma desculpa qualquer e recuse.

Então quer dizer que há mesmo um parque?

Sim, há mesmo um parque.

E os pássaros. Estão na minha cabeça ou será que os oiço mesmo? Que tipo de pássaros?

Corvos ou gaivotas, não lhe sei dizer quais.

Gaivotas.

Então devemos estar perto do mar...

A escolha do local foi sua, Mr. Blank. Apesar de tudo o que se tem passado aqui, juntou-nos a todos num belo local... Estou-lhe grato por isso.

       Nesse caso, porque é que não me deixam vê-lo? Nem sequer posso abrir o raio da janela...   .

       É para sua própria protecção, Mr. Blank. De início, o senhor até que­ria ir para o piso de cima, mas nós não podemos correr riscos, pois não?

       Se é de suicídio que está a falar, pode ter a certeza de que não vou matar-me.

Eu sei. Mas nem todos partilham a minha opinião.

Mais um dos seus compromissos, não é?

Em jeito de resposta, Quinn encolhe os ombros, olha de relance para baixo, dá uma espreitadela ao seu relógio.

temos pouco tempo, diz ele. Trouxe os dossiers de um dos casos e acho que devíamos examiná-lo agora. A menos que se sinta demasia­do cansado, claro. Se preferir, posso sempre voltar amanhã.

       Não, não, responde Mr. Blank, agitando a mão num gesto amargura­do. Vamos tratar disso já.

Quinn abre a primeira pasta e retira quatro fotografias a preto-e-bran­co com vinte por vinte e cinco centímetros. Avança na cadeira e passa-as a Mr. Blank e diz: Benjamin Sachs. Diz-lhe alguma coisa, este nome?

       Acho que sim, replica o velho, mas não tenho a certeza.

É um dos casos bicudos... Aliás, é mesmo um dos piores, mas, se formos capazes de construir uma defesa forte, uma defesa convincente e bem estruturada contra estas acusações, é possível que consigamos esta­belecer um precedente para os restantes casos. Ouviu o que eu disse, Mr. Blank?

Mr. Blank acena que sim em silêncio, pois lá começou a ver as foto­grafias. A primeira mostra um homem alto e esgalgado com cerca de

 

9 o texto em itálico reproduz - com pequenas adequações - o texto da condenação de Sir Walter Raleigh em 1603. (N. do T)

 

quarenta anos, empoleirado no corrimão de uma escada de salvação, num local que parece ser Brooklyn, Nova Iorque, contemplando a noite à sua frente - mas, depois, Mr. Blank passa para a segunda fotografia, e, de súbito, esse mesmo homem perdeu o equilíbrio e está a cair na escuridão, uma silhueta de pernas e braços estirados apanhada em pleno ar, mergulhando na direcção do passeio. Isto já é suficientemente pertur­bante, mas, quando Mr. Blank chega à terceira fotografia, é como se um choque de reconhecimento trespassasse todo o seu corpo. O mesmo homem alto e esgalgado está numa estrada de terra batida algures no campo e empunha um taco metálico de softball e está prestes a desferi­-lo num homem barbudo que se encontra de pé diante dele. A imagem revela o preciso instante em que o taco entra em contacto com a cabeça do homem barbudo, e, pela expressão do seu rosto, é evidente que o golpe vai matá-lo, que, dentro de segundos, ele cairá desamparado no chão, com o crânio esmagado enquanto o sangue escorre da ferida e se concentra num charco à volta do cadáver.

Mr. Blank crava as mãos no seu rosto, os dedos ferrados na pele como que querendo rasgá-la. Está com dificuldade em respirar agora, pois, ainda que não consiga lembrar-se nem do modo como soube nem das razões por que soube, a verdade é que ele já sabe, ele já sabe qual é o assunto da quarta fotografia, e, como pode antever a explosão da bomba artesa­nal que vai estraçalhar o homem alto e esgalgado e arremessar em todas as direcções o seu corpo mutilado, Mr. Blank não encontra a força neces­sária para olhar para tal imagem. Em vez disso, deixa que as quatro foto­grafias escorreguem das suas mãos e caiam no chão, e, depois, levando essas mesmas mãos ao rosto, tapa os olhos e começa a chorar.

Agora, Quinn já não está lá, e, uma vez mais, Mr. Blank encontra-se só no quarto, sentado à secretária com a esferográfica na mão direita.

_A torrente de lágrimas já secou há mais de vinte minutos, e, enquanto abre o bloco de notas e passa a primeira página e se detém na segunda, diz para si mesmo: Eu estava apenas a fazer o meu trabalho. Mesmo quando as coisas corriam mal, o relatório tinha de ser redigido, e, além do mais, eu não posso ser censurado por contar a verdade, pois não?

Depois, concentrando-se na tarefa que tem em mãos, acrescenta mais três nomes à sua lista:

 

John Trause

Sophie

Daniel Quinn

Marco Fogg

Benjamin Sachs

 

Mr. Blank põe a esferográfica em cima da secretária, fecha o bloco de notas, e afasta os dois artigos. Apercebe-se agora de que nutria a secreta esperança de que Fogg, o homem que conhece todas as anedotas e his­tórias com piada, o visitasse, mas, apesar de não haver nenhum relógio no quarto e relógio nenhum no seu pulso, o que implica que Mr. Blank não tem a menor noção do tempo, nem mesmo uma noção aproximada, há qualquer coisa que lhe diz que a hora do chá e da conversa ligeira e divertida já lá vai. É possível que, daqui a pouco, Anna volte para lhe ser­vir o jantar, e, se por acaso, não for Anna, se mandarem uma outra mulher ou um homem em substituição de Anna, ah, se isso acontecer, não espe­rem que ele aceite a substituição de forma pacífica, ah não, porque ele - já decidiu - ele vai protestar, ele vai portar-se muito mal, vai gritar e vociferar, vai causar uma tal balbúrdia, um tal tumulto, sim, vai ser uma revolução e, por via dessa revolução, até o tecto do quarto vai explodir e, ao explodir, disparar em estilhaços até às alturas do céu.

Como não tem nada de mais interessante para fazer neste preciso momento, Mr. Blank resolve prosseguir com as suas leituras. Por baixo da história de Trause sobre Sigmund Graf e a Confederação, há um manus­crito mais extenso - terá à volta de cento e cinquenta páginas -, manus­crito que, ao contrário da obra anterior, vem com uma página a servir de capa, página essa que anuncia o título da obra e o nome do autor:

 

         Viagens no Scriptorium

                        de

  1. R. Fanshawe

 

Ah!, exclama Mr. Blank. Assim está melhor, muito melhor... No fim de contas, talvez cheguemos - finalmente - a algum lado...

Então, vira a página que serve de capa e começa a ler:

O velho está sentado na beira da cama estreita, mãos abertas finca­das nos joelhos, cabeça baixa, olhos fixos no chão. Não faz ideia de que uma máquina fotográfica está instalada no tecto, mesmo por cima dele. O obturador é silenciosamente accionado uma vez por segundo, produ­zindo oitenta e seis mil e quatrocentas fotografias a cada rotação da Terra. Mesmo que soubesse que está a ser vigiado, isso não faria a menor dife­rença. A mente dele está longe daqui, encalhada no meio das criaturas que povoam a sua imaginação, enquanto procura uma resposta para a pergunta que o atormenta.

Quem é ele? Que faz aqui? Quando chegou e quanto tempo perma­necerá aqui? Com um pouco de sorte, o tempo dir-nos-á tudo. Para já, a nossa única tarefa consiste em estudaras fotografias tão atentamente quanto possível, abstendo-nos de tirar conclusões prematuras.

Há um certo número de objectos no quarto e, em cada um deles, foi colada uma tira de fita adesiva branca onde se pode ler uma só palavra escrita com maiúsculas. Na mesa-de-cabeceira, por exemplo, a palavra é MESA. No candeeiro, a palavra é CANDEEIRO. Mesmo na parede, que não é um objecto no sentido estrito do termo, há uma tira de fita em que se pode ler PAREDE. O velho ergue os olhos por um momento, vê a pare­de, vê a tira de fita adesiva colada à parede, e, com uma voz sumida, pro­nuncia a palavra parede. O que não podemos saber neste momento é se ele está a ler a palavra na fita ou se está simplesmente a referir-se à pare­de. Pode ser que ele já não saiba ler, que se tenha esquecido dessa apti­dão, mas que ainda seja capaz de reconhecer as coisas e de as chamar pelos seus nomes, ou, inversamente, que tenha perdido a capacidade de reconhecê-las, mas que ainda saiba ler.

Veste um pijama de algodão às riscas azuis e amarelas, tem os pés enfiados num par de pantufas pretas de cabedal. O local exacto onde se encontra, aí está uma coisa que não é nada clara para ele. No quarto, sim, claro, mas em que edifício se situa este quarto? Numa casa? Num hospi­tal? Numa prisão? Não consegue lembrar-se de há quanto tempo está aqui, nem da natureza das circunstâncias que precipitaram o seu afastamento para este local. Talvez tenha estado sempre aqui; talvez este seja o sítio onde vive desde o dia em que nasceu. O que ele sabe é que o seu coração está cheio de um implacável sentimento de culpa. Ao mesmo tempo, é­-lhe impossível não sentir que está a ser vítima de uma terrível injustiça.

Há uma janela no quarto, mas a cortina está baixada, e, que se lem­bre, nunca assomou à janela para ver o que há para lá dela. O mesmo se pode dizer da porta com a sua maçaneta branca de porcelana. Está preso neste quarto ou tem liberdade para entrar e sair como muito bem lhe aprouver? Esta é uma questão que terá de investigar mais tarde - porque, neste momento, como se disse no primeiro parágrafo, a mente dele está longe, à deriva no passado, enquanto erra no meio dos seres espectrais que atravancam a sua cabeça, debatendo-se para encontrar a resposta à pergunta que o atormenta.

As fotografias não mentem, mas também não contam a história toda. Mais não são do que um registo do tempo que passa, a evidência exte­rior. A idade do velho, por exemplo, é difícil de determinar a partir das imagens a preto-e-branco, um pouco desfocadas. O único facto que se pode estabelecer com alguma certeza é que ele não é jovem, mas a pala­vra velho é um termo flexível, um termo que pode ser usado para des­crever qualquer pessoa entre os sessenta e os cem anos. Vamos por isso abandonar o epíteto velho; a partir de agora, designaremos a pessoa no quarto apenas como Mr. Blank. Para já, não será necessário um nome próprio.

Mr. Blank levanta-se finalmente da cama, faz uma breve pausa para recuperar o equilíbrio, e, depois, num passo arrastado, dirige-se para a secretária, que fica no outro extremo do quarto. Sente-se cansado, como se tivesse acabado de despertar de um sono agitado e demasiado breve, e, enquanto as solas das suas pantufas vão raspando no soalho nu, um som emerge na sua memória: o som da lixa. Muito ao longe, para lá do quarto, para lá do edifício onde o quarto se situa, ouve o grito esbatido de um pássaro - talvez um corvo, talvez uma gaivota, não lhe é possí­vel saber...

Por esta altura, Mr. Blank leu tanto quanto conseguiu aguentar, e não se sente nem um bocadinho divertido, bem pelo contrário. Numa ex­plosão da raiva e da frustração que acumulou e reprimiu, arremessa o manuscrito por cima do seu ombro com um violento movimento do pulso, não se dando sequer ao trabalho de se virar para ver aonde é que ele aterra. Enquanto o manuscrito voa pelo ar e cai no chão com um ruído surdo, Mr. Blank dá um murro no tampo da secretária e pergunta bem alto:

Quando é que este absurdo vai acabar?

Não vai acabar nunca. Porque Mr. Blank é um de nós agora, e, por muito que se debata para compreender a sua provação, acabará sempre por se sentir perdido. Creio poder falar por todas as pessoas por quem ele foi responsável quando digo que Mr. Blank está a ter o que merece - nem mais, nem menos. Não como uma forma de punição, mas como um acto de suprema justiça e compaixão. Sem ele, nós não somos nada, mas o paradoxo é que nós, as criaturas imaginadas por uma outra mente, sobreviveremos à mente que nos criou, já que, a partir do mo­mento em que somos lançadas no mundo, continuamos a existir para sempre, e as nossas histórias continuam a ser contadas, mesmo depois da nossa morte.

Mr. Blank pode ter agido de uma forma cruel em relação a algumas das pessoas por quem foi responsável ao longo dos anos, mas nenhum de nós pensa que ele não fez tudo o que estava ao seu alcance para nos servir bem. É por isso que tenciono mantê-lo onde está. O quarto é o seu mundo agora, e, quanto mais tempo durar o tratamento, mais Mr. Blank se sentirá inclinado a aceitar a generosidade daquilo que tem sido feito por ele. Mr. Blank está velho e debilitado, mas, enquanto permanecer no quarto com a janela entaipada e a porta fechada, nunca poderá morrer, nunca poderá desaparecer, nunca poderá ser outra coisa senão as pala­vras que estou a escrever na sua página.

Daqui a pouco, uma mulher entrará no quarto e dar-lhe-á o seu jan­tar. Ainda não decidi quem será essa mulher, mas, se tudo correr bem atélá, mandar-lhe-ei Anna. Isso deixará Mr. Blank feliz, e, vendo bem as coisas, Mr. Blank já deve ter sofrido bastante para um dia. Anna dará de comer a Mr. Blank e depois lavá-lo-á e deitá-lo-á na cama. Mr. Blank ficará acordado na escuridão por algum tempo, escutando os gritos dos pássa­ros ao longe, muito ao longe, mas, depois, os seus olhos começarão final­mente a ficar pesados e as suas pálpebras fechar-se-ão. Ele adormecerá, e, quando acordar de manhã, o tratamento recomeçará. Mas, para já, é ainda o dia que sempre foi desde a primeira palavra deste relatório, e, agora, é o momento em que Anna beija Mr. Blank na face e lhe puxa os cobertores para o agasalhar, e, agora, é o momento em que ela se levan­ta da cama e começa a andar na direcção da porta. Durma bem, Mr. Blank. 

 

                                                                                Paul Auster

 

 

                      

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