Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites
V Í C I O
Diretor de um importante centro de estudos psiquiátricos, Peter Zak está acostumado a lidar com os aspectos mais sombrios da natureza humana. Nada, porém, o preparara para o choque de encontrar a amiga Channing Temple assassinada, aparentemente pela própria filha, uma adolescente dependente química. Mas algo parece deslocado no bem-montado cenário do crime. Intrigado, Zak consegue permissão para internar a garota por quinze dias, antes que vá a julgamento. Lutando contra o tempo, o médico mergulha nos subterrâneos da própria instituição em que trabalha, tentando descobrir a quem, afinal, a estudiosa Channing ameaçava. Quando, outro pesquisador é assassinado, vem à tona a certeza de que o respeitável Instituto Pearce esconde segredos inconfessáveis - segredos repletos de violência, desespero e loucura. Recorrendo a elementos clássicos dos grandes romances policiais, Vício aborda temas de extrema atualidade, como a questão das drogas e a manipulação econômica da ciência. Magistralmente arquitetado, o livro propõe ao leitor um instigante desafio, um quebra-cabeça inteligente e tenso do início até o surpreendente desfecho…
No palco do anfiteatro da Escola de Medicina, Matthew Farrell, assustado, dobrou sua estatura com mais de um metro e oitenta e dois centímetros para sentar-se na cadeira à minha frente. Apertava nas mãos uma garrafa de água Evian, agora vazia. A camiseta Salve as Baleias sobrava junto ao pescoço fino enquanto ele olhava rapidamente para a tela atrás de nós, no fundo elevado. O azul-elétrico do slide de abertura refletia-se em seu rosto tornando purpúreas as espinhas da testa. Ele não parecia estar lendo as letras em amarelo-canário: Síndrome de Asperger. Olhava fixamente a garrafa, apertando-a e soltando-a num ritmo lento, constante. Evitava contato visual comigo ou com os estudantes do segundo ano que enchiam o auditório, todos muito limpos em suas camisas e gravatas, suéteres e rabos-de-cavalo.
— Dr. Zak...
Meu colega, dr. Kwan Liu, chamou-me num murmúrio do outro lado do palco e indicou seu Rolex. Verifiquei meu Timex. Havíamos terminado a exposição teórica da nossa apresentação e estava na hora de iniciar a entrevista clínica. Tínhamos apenas uns quinze minutos antes que nossa audiência nos abandonasse sumariamente para atender às suas várias obrigações.
Limpei a garganta e esperei que o murmúrio no auditório cessasse. Apresentei Matthew aos alunos e agradeci a ele por ter concordado em ajudar nossos estudantes de medicina a entender a síndrome de Asperger. A garrafa de plástico fez poc quando ele a largou.
— Eu gostaria de fazer-lhe algumas perguntas — disse eu.
No silêncio, pude sentir que os estudantes de medicina do segundo ano inclinavam-se para a frente.
— O senhor gostaria de fazer perguntas — repetiu Matthew, olhando para a garrafa.
As palavras foram ditas com voz automática, cada sílaba tomando muito espaço da seguinte.
Houve uma risada nervosa no auditório.
— Sim, eu acho que gostaria de fazer perguntas. Penso que vou perguntar se você está tendo algum problema.
— Isso é o que o senhor pensa — considerou ele.
E esperou pacientemente que eu lhe falasse mais sobre meu processo de pensamento.
— Você está tendo algum problema na escola?
Dessa vez eu construíra a pergunta de modo a não poder ser mal compreendida.
— Sim, estou tendo problemas.
Então entendo por que os professores que se vêem diante de Matthew surpreendem-se gritando: "Olhe para mim quando falo com você!".
— Que tipo de problemas você está tendo?
— Espécie de problemas... problemas difíceis.
— Tem dificuldade com os trabalhos escolares?
— Com isso tudo OK — respondeu Matthew, sempre olhando para a garrafa de plástico.
— Não se entende com os colegas? Ele sacudiu os ombros.
— Eles riem e não sei por quê. Talvez riam de mim. — Matthew concentrou-se na garrafa como se ela fosse uma bola de cristal, por fim acrescentou: — Isso me leva a fazer coisas que não devo fazer.
Coisas-que-não-devo-fazer incluem atirar uma cadeira pela janela do colégio durante a aula de inglês. Por isso ele está passando algumas semanas na Unidade de Neuropsiquiatria no Instituto Psiquiátrico Pierce, para ser avaliado e ter a medicação ajustada. Era uma sorte para os estudantes daquela aula: um paciente vivo impressiona muito mais do que um psiquiatra e um psicólogo dando aula.
— Matthew, vou mostrar-lhe algumas figuras. — Cliquei o controle remoto, e uma foto de um homem sorridente foi projetada na tela atrás de nós. — Por favor, olhe o rosto dele e diga-me o que esse homem está sentindo.
Matthew olhou para a tela, inclinou a cabeça para um lado e olhou mais algum tempo.
— O que esse homem sente? — repeti.
— Os óculos dele estão tortos — disse Matthew, por fim. A segunda fotografia era de outro homem, com o rosto contorcido de raiva.
— E o que sente este homem?
— Está precisando barbear-se — observou Matthew.
E assim por diante, com cerca de meia dúzia de fotos. Não importava qual a expressão facial — desde a surpresa até o desgosto, passando pela tristeza —, o paciente comentava algum detalhe físico.
— Matthew, agora quero que você repita isto: Quem tem telhado de vidro não pode atirar pedras.
Houve uma pausa. Matthew repetiu a frase.
— Muito bem. Agora, diga-me, o que essa frase quer dizer?
— O que quer dizer... Atire uma pedra e vai quebrar o telhado de vidro.
— Mais alguma coisa?
— Vão ficar zangado com o senhor. Disseram que não fizesse isso.
Depois de mais algumas respostas, agradeci a Matthew e o bedel escoltou-o para fora do anfiteatro. Ainda tínhamos alguns minutos antes do término da aula.
Dei a palavra a uma jovem asiática, com cabelos muito negros e brilhantes cortados à escovinha, que levantara a mão meio hesitante.
— Ele fala como se fosse surdo. E surdo? Era uma boa pergunta.
— A resposta simples é não — respondi —, mas ele interpreta literalmente o que ouve. E surdo para as nuances, para as inflexões, para o conteúdo emocional de uma frase. E pode esquecer também o humor, sarcasmo e até mesmo a raiva: são sentimentos que passam direto por ele. Num certo sentido, é surdo às emoções. Como se pôde ver pelas respostas dele às fotografias, Matthew não consegue interpretar as emoções que transparecem no rosto dos outros. E também não consegue expressar emoções. A voz monótona, a conduta plana não nos dão indícios do seu estado íntimo.
Um jovem que poderia ser duble de Tom Cruise levantou a mão e perguntou:
— Ele parece introvertido, deprimido. O senhor o trataria de depressão?
— Você tocou num ponto muito importante. Parece que Matthew tem um distúrbio emocional. Porém o problema dele não é primariamente psiquiátrico. É mais causado por uma disfunção cerebral que envolve o hemisfério direito. Nesse caso, é relativa ao desenvolvimento, se bem que se possa encontrar sintomas similares em pacientes com derrame cerebral.
Olhei para Kwan. Ele continuou sem perder o ritmo:
— Se prestássemos atenção apenas no quadro psiquiátrico iríamos prescrever Prozac ou outro antidepressivo...
Quando funcionava, Kwan e eu éramos como uma equipe de corrida de revezamento, passando o bastão com presteza, nossa narrativa seguia fluindo com uma mesma tendência de percepção.
— ...mas neste caso o antidepressivo é contra-indicado. Ele poderia tornar o paciente ainda mais distante dos próprios estados emocionais e fazer com que ficasse ainda mais fora do controle e que se tornasse, provavelmente, um suicida.
— Qual o prognóstico?
A pergunta veio de um canto ao fundo, uma área em geral ocupada por médicos que costumavam aparecer quando uma das nossas aulas semanais despertava seu interesse.
— Há tratamento, remédios? — acrescentou a mulher que fizera a pergunta. — Como eles vivem fora do mundo real?
A surpresa transformou-se em prazer quando reconheci a voz e vi o rosto. Era Channing Temple. Ela ainda usava o cabelo loiro, liso, puxado para trás do rosto. Nunca havia sido exatamente bonita, mas tinha o tipo de aparência que impressionava, que fazia com que se ouvisse quando ela falava. Havíamos sido amigos durante anos. No tempo do colégio fui apaixonado por ela.
Channing fez a pergunta pondo-se de pé, inclinada para a frente e com um dedo erguido. Era uma atitude que ela usava para dar boa impressão quando alguém a via pela primeira vez desde quando tinha vinte anos e atormentava o reitor da universidade a respeito de investimentos institucionais em apólices de tabaco. Mas naquele dia seu tom de voz nada tinha da provocação que irritava o reitor, fazendo-o ficar roxo de raiva e gritar com ela, para delícia dos demais estudantes.
Havia uma hesitação em sua voz que me fez demorar um pouco a responder, aproveitando alguns segundos para suavizar aquele jeito direto que eu costumava usar para falar com outros médicos sobre doenças mentais. A síndrome de Asperger é de difícil diagnóstico, e imaginei que a pergunta fosse pessoal..
Antes que eu pudesse elaborar a resposta, Kwan respondeu. Ele sempre queria ter a primeira palavra... e a última.
— Não há cura, per si. — As palavras cruas causaram-me arrepios. — Há medicamentos que ajudam a controlar a raiva que surge de suas frustrações com o mundo.
Pelo menos isso era um pouco encorajador. Acrescentei:
— Em termos de tratamento, temos que considerar a terapia comportamental para ajudar o indivíduo a usar o próprio intelecto para adaptar-se. Então poderemos trabalhar com ele ensinando-o a notar o que não nota... expressões faciais, por exemplo... e levá-lo a dar um passo atrás e fazer perguntas quando ficam perplexos. A boa notícia é: há potencial para levar uma vida satisfatória.
Channing murmurou:
— Obrigada, Peter — e sentou-se.
Fiz um aceno de cabeça. Tentei lembrar-me de qual fora a última vez em que Channing e eu estiváramos juntos socialmente. Devia ter sido num dos grandes jantares na casa dela e de Drew, em Back Bay — será que havia sido dois anos atrás? Neste caso teria sido a última festa a que fui antes que minha mulher, Kate, fosse assassinada.
Desde a morte de Kate passei a evitar festas e velhos amigos também, para ser sincero. Trabalhava por muitas horas, mantinha-me ocupado e em geral policiando a mim mesmo. Havia visto Channing apenas a distância, correndo para seus muitos compromissos. Ela deixara um recado na minha secretária eletrônica, algumas semanas antes, mas havia sido sobre trabalho — queria recomendar-me um médico residente para rodízio na minha unidade. Felizmente ou não, o Instituto Psiquiátrico Pierce é tão grande que é fácil evitar qualquer pessoa com quem você não trabalhe diretamente.
Se eu fosse meu próprio terapeuta teria explicado que essa dor tinha de ser percebida para que fosse possível trabalhá-la. Só se pode entorpecer a dor por longo tempo recorrendo a atividades. Remova o anestésico e a dor reaparece em dobro. Mas eu era refratário ao meu próprio conselho.
Kwan agradeceu aos estudantes por terem comparecido e lembrou-os da agenda para a aula da semana seguinte. Channing permanecia parada em seu lugar. Acenou para mim, apontou para o saguão e ergueu um dedo. Mesmo a distância seu rosto parecia tenso pela ansiedade. Assenti e correspondi ao sorriso.
Entrei no saguão e me servi de um café na enorme máquina de metal. Kwan já estava lá, com um pacote de biscoitos na mão. Ergueu os olhos para mim e meneou a cabeça, reprovador.
— Quantas canecas hoje? Tomei um gole e fiz uma careta.
— Esta é uma de muitas.
Channing entrou no saguão. Quando me viu, sua expressão mudou de alegria para hesitação. Não, eu quis murmurar, a culpa não é sua por nos tornarmos estranhos.
Ela se aproximou. Executamos uma desajeitada dança em que ela inclinou-se para a esquerda e eu para a direita, por fim acabamos beijando o ar com nariz contra nariz, em vez de face contra face. Ela riu.
— Peter, como é bom ver você! — Abraçou-me e apertou forte. Ela ainda cheirava a limão. — Senti saudade...
Ergui a caneca vazia num oferecimento.
— Não, obrigada. Nunca tem chá nessas coisas — comentou ela —, e quando tem em geral está morno.
— Mais uma aficionada do chá — celebrou Kwan. — Poucos desses filisteus nos entendem.
Eu sabia que ele estava morrendo de vontade de saber que tipo de relacionamento eu tinha com Channing Temple.
Amigos, apenas amigos, eu teria dito a ele, mas Kwan acharia que éramos algo mais.
— Oi, Kwan — cumprimentou Channing. — Há quanto tempo.
Ambos executaram beijos no ar face a face, sem falhas nem colisões. Ela descansou a mão no braço dele.
— Hum, que tecido gostoso! — comentou. — Terno lindo. Armani?
— Não, mas quase. Pelo menos algum de nós tenta... Ele lançou um olhar significativo ao paletó de tweed Harris que eu comprara na Inglaterra uma década atrás.
— Pelo menos o meu ainda serve. Kwan fez um ar de desprezo.
— Ah, agora sei por que você nunca usou um chapéu: não encontrou um que fosse grande o bastante para conter essa sua cabeça despenteada.
Antes que eu desse uma resposta mordaz, ele ajeitou o paletó, reuniu sua dignidade e foi conversar com o grupo de estudantes.
— O que a fez vir assistir à minha aula sobre a síndrome de Asperger? — perguntei a Channing.
— Para começar, você estava na minha cabeça — respondeu ela.
Seu cabelo estava todo recolhido atrás e preso por um palito chinês de marfim. O queixo forte e faces proeminentes enfatizavam a aparência severa. Agora havia linhas tênues nos cantos dos olhos e dos lábios finos.
— Outro dia — prosseguiu ela —, Drew comprou-me um bonito ramo de orquídeas e coloquei-o num vaso, aquele que Olívia fez com Kate. — Ela pôs a mão no meu braço. — Você sabe como nos sentimos mal com o que aconteceu.
Acenei que sim e pisquei. Demonstrações de simpatia ainda me derrubavam, e detesto me sentir fora do controle.
— Aquele vaso é realmente muito lindo — acrescentou Channing.
— Kate achava que Olívia tem talento — contei a ela.
Lembrei-me da noite da festa de Channing. Kate ofereceu-se para dar aulas de cerâmica à calada e desajeitada filha pré-adolescente dela, que parecia evaporar-se nos cantos da casa. Kate gostara da "aula" e havia marcado outra.
— Parece que foi outro dia... — comentou Channing. — Vi seu nome no boletim afixado no quadro de avisos da lanchonete, anunciando esta aula: síndrome de Asperger. Li vários artigos a respeito nos jornais.
— É uma velha síndrome com diagnóstico novo... — disse eu.
— Algo como dislexia com nuance interpessoal — sugeriu Channing.
— Exatamente.
Ela abaixou a voz e chegou mais perto:
— Peter, eu emiti um ahá! mudo lá dentro, ao ouvi-lo. Para uma simples mulher de aspecto severo ela podia
tornar-se bonita quando se animava; era como se uma luz acendesse em seu interior.
— Sabe quando se é perito em alguma coisa, mas no momento em que se trata de alguém que se ama, alguém da própria família, a gente se torna cego e surdo? — indagou Channing. — Pois bem, enquanto você falava caí em mim. É Olívia. Ela está sendo tratada por uma terapeuta, com antidepressivos.
Levei-a até junto da janela, para longe das demais pessoas e, assumindo o ar de clínico, perguntei:
— Está preocupada com alguma coisa em particular?
— Com tudo, em particular. Você não a reconheceria. Pode-se dizer que está usando sua aparência para fazer uma demonstração. E o comportamento dela... tornou-se mal-humorada e sombria. Chega em casa, vai lá para cima e, blam, fecha-se em seu quarto. Passa horas sozinha.
Aos dezesseis anos, como eu desejara ter um quarto só para mim e deixar o mundo lá fora! Mas em um apartamento com apenas quarto e sala — meu irmão e eu dormíamos no quarto, meus pais dormiam num sofá-cama de casal, na sala — o único lugar em que você pode se fechar e ficar isolado é o banheiro, até que alguém comece a ameaçar matá-lo.
— Sei o que está pensando — disse Channing. — O que eu espero de uma garota de dezessete anos? Não preciso que me digam que isso é normal. E Deus sabe que provavelmente me ajudaria se eu tivesse tido uma boa atenção maternal quando tinha a idade dela.
Lembrei-me. A mãe de Channing se havia matado quando ela ainda estava no primeiro grau. Com um tiro na cabeça. Mas não havia autopiedade nem amargura na voz dela. Era apenas a constatação de um fato, de algo com que aprendera a conviver. Uma noite estávamos olhando o álbum de fotografias da família de Channing e comparando as nossas infâncias. Fiquei impressionado com a mudança que se operara nela, antes e depois do suicídio de sua mãe. Com oito anos de idade ela flertava com a câmara fotográfica, com ar resoluto e alegre, o cabelo loiro curto e fofo ao redor do rosto rechonchudo, olhos marotos. Um ano depois parecia distante, sombria e pensativa. O cabelo se tornara comprido, com uma franja que era como um véu sobre os olhos.
— Mas Livvy está cada vez mais encerrada em si mesma — continuou Channing. — Explode e fica fria, assim! — Estalou os dedos. — Diz que nada do que faz é bom para mim, mas a verdade é que ela se envergonha de tudo que faz e às vezes se recusa até a tentar. Quando precisa fazer alguma coisa que parece difícil, tem um ataque de ansiedade. Vive fechada no quarto, mexendo no computador. Difícil acreditar que é minha filha. — Channing deu uma risada forçada. — Tudo que sei fazer é responder aos meus e-mails. O que eles fazem naquelas salas de conversa, afinal?
— Provavelmente você vai preferir não saber — respondi.
— É, acho que não. O que sei é que ela vive em outro mundo, o tempo todo, um mundo que não compreendo — a voz dela partiu-se —, em que não consigo entrar.
Apertei-lhe o braço.
— Ela tem amigos? — perguntei.
— Não sei... — respondeu Channing, desanimada. — Não traz ninguém em casa. Mas sai. Acho que se encontra com os amigos de computador. Se é que se pode chamar aquilo de amizade. Como se vai saber quem eles são? Estou aflita. Livvy é muito jovem e inexperiente.
Channing era uma dessas pessoas que têm tudo sob controle. Imagine, foi preciso uma filha adolescente para abalar o equilíbrio dela.
— Peter, aposto que se você ficasse quinze minutos com Livvy seria capaz de nos dar uma idéia do que está acontecendo.
Eu sabia o que estava acontecendo. Eu deveria ter feito Channing calar-se invocando a regra não escrita "Não tratarás de amigos ou dos seus parentes". Ela poderia ser uma amiga casual ou colega, porém Channing era muito mais do que isso.
— Por favor, veja-a informalmente — pediu ela.
Eu sabia o que Kate teria dito: "Se você não pode ajudar os amigos, o que adianta ser um bom profissional?". E lembrei-me de uma foto do nosso álbum que mostrava Kate brincando com Olívia quando tinha seis anos, num piquenique em Berkshires, numa da poucas vezes que a tínhamos visto quando era criança. As duas estavam sentadas à beira de uma lagoa fazendo bolos de lama. Um par de espíritos afins. Durante a volta para casa, Kate falou sobre a filha que teríamos um dia e como esperava que nossa pequenina fosse aberta às possibilidades da vida como Olívia. Kate e eu jamais tivemos essa menininha... ou um menininho. Sempre havia um motivo para aquele momento não ser o certo.
— Você disse que ela estava se tratando com uma terapeuta? — perguntei.
— Daphne.
— Daphne?
Fiquei surpreso e ao mesmo tempo não. Daphne Smythe-Gooding era mentora de Channing havia muito tempo.
— Eu sei, eu sei! — adiantou-se ela. — Mas fiz análise com Daphne há mais de quinze anos e ela nunca ficou muito tempo com Olívia nessa ocasião. Aliás, é uma clínica brilhante...
A voz de Channing foi se apagando.
— Mas?
— Digamos que a química das duas não combina. No começo tive que arrastar Livvy, esperneando e gritando, para as sessões com Daphne... — confessou Channing, evitando meu olhar. — Acontece que Daphne é psiquiatra, como eu. Vemos o fato de um ângulo diferente de você, que é psicólogo. Talvez neste caso nosso ângulo seja o errado. Se você passar cinco minutos com ela garanto que poderá enxergar coisas que nós duas deixamos passar. — Olhou-me intensamente, implorando. — Nada formal. Apenas um encontro casual e aí você me dirá que sou uma mãe super-ansiosa.
Eu ri de leve, porém sabia bem mais a respeito. O que quer que Channing estivesse sentindo em relação a Olívia provavelmente era verdade. Talvez não se tratasse da síndrome de Asperger, mas era alguma coisa com um nome e, tomara, com tratamento.
— Terei prazer em vê-la de modo informal — concordei.
— Que tal neste fim de semana? — apressou-se em sugerir Channing, como se temesse que eu mudasse de idéia se pensasse por mais dez segundos. — Sábado à noite. E meu aniversário e algumas pessoas irão lá em casa para comemorar. Olívia vai estar.
— Uma festa? Não me parece a ocasião ideal para conversar com ela — retruquei.
A última festa a que eu comparecera na casa dela tinha sido black-tie, a espécie de festa que faz um adolescente preferir ficar fechado em seu quarto a comparecer.
— Quero que você tenha impressões sem interferências. Se ela souber que a está avaliando, irá fechar-se. Diga que irá.
Eu tinha planos de passar um sábado sossegado com Annie Squires. Annie era uma investigadora particular. Eu trabalhara durante anos com ela e o advogado Chip Ferguson, avaliando réus até que os ajudara a defender Ralston Bridges, um assassino sociopata que objetara violentamente o meu diagnóstico. Até então ninguém o chamara de louco, e isso o irritou. Depois que o júri declarou-o inocente ele se vingou esfaqueando e matando minha mulher.
Depois disso eu me retirara do trabalho forense. Para sempre, pensava. Mas então deixei Chip e Annie me falarem em defender um homem acusado de assassinato. A promotoria baseava o caso nas lembranças de sua ex-esposa que sobrevivera a um tiro na cabeça. No fim, não me arrependi de ter aceitado o caso. Ajudou-me a pôr alguns dos meus próprios demônios para dormir.
— Está livre no sábado? — perguntou Channing. Olhou para minha mão esquerda e exibi meu dedo anular.
— Tenho um encontro — informei.
— Está namorando alguém?
A pergunta me fez parar. Não estava pronto para pensar em mim mesmo namorando alguém. Nos últimos seis meses Annie e eu tínhamos saído algumas vezes e tido uma porção de quase encontros. Alguns ela cancelou por causa do seu trabalho, e outros eu cancelei por causa do meu trabalho.
Nosso último encontro havia sido por acaso — demos de cara um com outro no Wordsworth da Praça Harvard e fomos tomar alguma coisa, que se transformou em jantar e que teria se transformado em algo mais se Annie não tivesse marcado de ir visitar sua irmã naquela noite. Desde então ela estivera ocupada trabalhando e fazendo a mudança do escritório, que tinha com Chip, para um edifício recém-construído perto de Cambridge Courthouse. Eles iam passar a trabalhar particularmente.
Eu tinha estado muito ocupado. Ela tinha estado muito ocupada. Eu sabia que se não desse um jeito naquilo Annie ia acabar ficando ocupada com outro. Mas ainda não tinha certeza de estar preparado para um relacionamento sério.
— Maravilhoso! — entusiasmou-se Channing. — Leve a sua amiga.
Desfizeram-se as visões de suculentos filés grelhados e aquela garrafa de Turley, um vinho que eu sonhava saborear. Isso para não falar no restante de uma longa e vazia noite esperando para ser preenchida.
— Por favor, vá — pediu ela.
— Claro, eu vou — assenti por fim. Pelo menos iria ver Annie de novo.
Foi evidente o alívio no rosto de Channing. Ela pegou um cartão de visitas do bolso do blazer, escreveu rapidamente algo no verso e entregou-o a mim.
— É aqui que moramos. — Reconheci a escrita firme e meio inclinada para trás, que parecia impressa. — Fica perto da nossa antiga casa. Sábado à noite. Sete horas.
Acompanhei Channing até a porta. Abrimos caminho através das nuvens de fumaça que pairavam entre as colunas coríntias diante do edifício. Enfermeiras e médicos que sabiam das coisas reuniam-se ali para adquirir sua cota de nicotina. Atravessamos o bonito retângulo de grama flanqueado por cinco perfeitamente proporcionados edifícios do renascimento grego que ficavam à sombra dos altíssimos e modernos edifícios médicos que se amontoavam atrás deles.
Quando chegamos à passagem para o parque de estacionamento, Channing abaixou a cabeça. Fechou o blazer até o pescoço, segurando-o, com os ombros encolhidos de frio. A Nova Inglaterra pode ser muito desencorajadora no mês de março. Mais tempo frio e feio quando já estávamos fartos dele.
Channing deu um furtivo olhar para trás antes de perguntar:
— Você viu a nota no JAMA?
— Que nota?
Havia pilhas de jornais não lidos sobre a minha mesa, inclusive os últimos quatro exemplares do Journal of the American Medical Association.
— Incrível que ninguém a tenha mostrado a você. Uma equipe do Hopkins recusou minha pesquisa como - com dois dedos de cada mão fez os sinais alusivos a aspas — "falha demais para ser significativa".
Nos bem-educados círculos acadêmicos essa frase era o maior dos insultos. Seus detratores — e havia muitos desde que Channing não medira palavras quando precisou expor as partes questionáveis de trabalhos alheios — provavelmente estavam esfregando as mãos de alegria.
Um par de médicos passou na direção oposta. Um deles cumprimentou com um aceno de cabeça e então voltou a falar com o colega.
— Eles estão comentando isso — disse Channing, abaixando a voz. — Tratam-me como um caso perdido no qual não querem envolver-se. Isso me deixa louca da vida. E uma completa besteira. Quando falei por telefone com a equipe que estava revisando minha pesquisa disseram-me que os resultados deles pareciam estar confirmando os meus. Um mês depois a atitude foi como se tivessem dito "Deixem pra lá, a pesquisa dela não funciona". Gostaria de saber o que os fez mudar o modo de pensar.
Eu sorri. Ali estava a velha Channing, a independente que seguia o próprio ritmo — o que provavelmente explicava por que dirigira a Unidade de Reabilitação de Drogas e do Álcool durante anos porém jamais fora nomeada sua diretora.
— A pesquisa é a respeito do quê? — perguntei.
— É a apresentação dos resultados preliminares de um projeto piloto a respeito de vinte temas. Um tratamento para viciados. Pegamos pacientes que ainda não haviam passado por nenhum dos programas de desintoxicação que se ocupam da parte mais fácil: o vício físico. Meu trabalho focaliza a dependência psicológica — a voz de Channing era animada e entusiástica —, assim como um tratamento de duas semanas com um composto chamado Kutril.
— O que é isso?
— Você vai rir. É apenas um extrato altamente concentrado de kudzu [1] combinado com Trilafon.
— Kudzu? Não é aquela videira que está devorando o Estado da Flórida? Parece-me que se trata de uma poção viscosa, verde.
— Isso mesmo. A raiz da planta é que é medicinal. Os chineses a usavam no primeiro século A.C. para inibir o desejo por álcool.
— Você está mesmo falando sério?
— Completamente. Houve experiências com ratos que se demonstraram promissoras. Imagine se funcionar para os humanos? O kudzu nem mesmo é um remédio sob prescrição! E o Trilafon está no mercado há cerca de trinta anos. E barato. Temos um laboratório de Nova Jersey que já está produzindo o composto em forma de pílulas.
Trilafon foi um dos primeiros antipsicóticos desenvolvidos. Ele tranqüiliza sem sedar.
— E os efeitos colaterais? — indaguei.
Lembro-me de que esse foi um dos motivos pelos quais os médicos pararam de receitá-lo.
— Com uso a longo prazo, eles existem. Mas o tratamento proposto é curto e intensivo. Os pacientes tomam uma dose a cada quatro horas no primeiro dia. Depois, a cada oito horas durante uma semana. Em seguida, duas vezes ao dia por uma semana. A partir daí faz-se o desligamento com uma dose ao dia por duas semanas. Pára-se completamente. Mata a vontade de beber ou de se drogar desde o começo e parece que a vontade não volta, mesmo depois que se pára o tratamento.
— Qual é o nível de sucesso?
— Acabamos de analisar os resultados do estudo completo. Ele confirmou o que deduzimos no piloto. Oito por cento depois de seis meses. Sessenta e cinco por cento depois de doze meses.
Assobiei. Era impressionante.
— O único fator adverso sério aconteceu com dois pacientes que apresentaram convulsões, que foram bem controladas com Neurontin.
— Esse remédio pode ser administrado em pacientes que não estejam hospitalizados?
— Talvez. Eventualmente. — Channing irradiava satisfação. — Parece mágica, não? Converse com os laboratórios e vai perceber que existe a idéia subversiva de colocar esse remédio fora do negócio. A Acu-Med ficou histérica quando ouviu falar desse estudo. E, a grande surpresa, um dos médicos que publicou a nota contra o JAMA trabalha para esse laboratório. — Ela assumiu ar de desprezo. — Eu não me surpreenderia se soubesse que ele passou a consultor.
— Provavelmente eles estão tentando desenvolver um medicamento que tenha o mesmo efeito.
As sobrancelhas de Channing ergueram-se, numa expressão de surpresa.
— Peter, você está começando a pensar como eu. Estão, mesmo. Liam Jensen está dirigindo o julgamento clínico...
Jensen era um médico que trabalhava com Channing na Unidade de Reabilitação de Drogas e do Álcool. Ela esperou que um casal de meia-idade passasse e se distanciasse de nós para prosseguir:
— A maior parte do meu trabalho final foi retalhado. Os relatórios finais estão sendo revisados agora.
— Parece que acha que eles estão querendo acabar com você.
— E você acha que estou ficando paranóica?
— Não é paranóia quando se está rodeado de assassinos — respondi. — Afinal de contas, você é a única que ainda luta contra a ambição, a injustiça e o modo de viver americano. Acho que manifestou isso claramente na redação do seu trabalho.
Channing não riu.
— Gostaria de saber até que ponto fiz isso. Você ouviu alguma alegação contra mim?
— Não.
Eu tentava manter minha cabeça acima da sufocante nuvem de mexericos que flutuava no Pearce.
— Então, acho que é o único. Eles estão questionando meu julgamento clínico.
Julgamento clínico, um eufemismo vago o bastante para significar qualquer coisa. Este e jogador sem equipe eram as expressões usadas para designar aqueles que não se enturmavam.
— Dizem que me comportei de modo nada apropriado. Cheguei muito perto. Ultrapassei os limites.
Parei de andar de repente.
— Você? Channing riu.
— Ora, vamos, Peter! Não sou nenhuma puritana! — Ela me deu um olhar de lado. — Bem, talvez até seja... — Pegou-me pelo braço e me fez andar. — De qualquer modo, há quem acredite nisso. A pior parte é que as alegações deles estão tomando um caminho em que não posso confrontá-las. Assassinato de um personagem por insinuação.
Paramos perto da extremidade do parque de estacionamento, junto de um enorme leão de concreto. A criatura estava de boca aberta, a juba altiva sobre sua cabeça enquanto ele segurava um escudo com a palavra Veritas. Channing olhou-o e estremeceu.
— Verdade... — disse, quase cuspindo a palavra. — Sei que é para isso que se supõe que este lugar exista. Mas às vezes me pergunto se estamos abraçando ou devorando a verdade.
Quando voltei ao saguão do anfiteatro de aulas alguém desligara a cafeteira e a levara embora. Juntei as últimas migalhas de biscoitos e as comi.
— Eu não sabia que você e Channing Temple era tão bons amigos.
Era Kwan, que chegava por trás de mim. Estava mastigando o que deveria ter sido o último sanduichinho da bandeja.
— Nós nos conhecemos há séculos. Desde quando éramos calouros na universidade.
— Gostaria de saber se ela irá sobreviver à tempestade — comentou Kwan.
— O artigo no JAMA?
— Isso e estão dizendo que ela... Ergui as mãos.
— Não fale. Já sei mais do que gostaria de saber. Kwan cobriu os olhos com as mãos, depois as orelhas e, por fim, a boca.
— Ótimo — aprovei. — Para começar, é tudo asneira. Ela é uma boa amiga.
— Ah! — fez Kwan, como se eu houvesse explicado alguma coisa. — Ela é casada, não? E uma dos Temple?
— Hein?
— Os brâmanes de Boston. Dinheiro antigo... —- Parece que sim.
Eu sabia que Drew Temple não tinha dias típicos de trabalho. Quando lhe perguntavam o que fazia, ele resmungava algo sobre dirigir propriedades e empreendimentos financeiros. Eu sempre o achara agradável, porém distante. Em parte era por causa da diferença de idade — às vezes pensavam que ele fosse pai de Channing, principalmente logo depois do casamento deles. E a outra parte porque ele era distante mesmo.
— Moram em Back Bay, posso apostar — disse Kwan. Peguei o cartão de visita de Channing que estava no meu
bolso. Kwan apoderou-se dele e assobiou.
— Rua Marlborough. Alta vizinhança. Sábado à noite?
— Ela vai oferecer um jantar.
Os olhos do colega fixaram-se no meu paletó de tweed Harris; depois observou minha gravata como se fosse uma antiguidade.
— Você não vai "assim", vai?
Achei outra migalha errante de biscoito.
— Não estou elegante?
— Não o bastante para a rua Marlborough. Ela exige um terno de verdade. E, Peter, eu sei que você não tem nenhum. Na verdade, acho que nem sabe o que é um terno. — Consultou seu relógio. — Vejamos... terça-feira. Se formos lá esta tarde ainda dará tempo.
— Lá, onde? Tempo para quê?
— Tempo de salvá-lo de si mesmo e da sua permanente má reputação.
Eu deveria ter dito não. Disse a mim mesmo que não me importava com aparências. E na maior parte das vezes não me importava mesmo. Mas no momento em que estendi a mão para afastar Kwan, toquei a manga do paletó dele. O tecido era macio, fino, quase surpreendente. Além disso, ergui a cabeça e vi a nós dois refletidos no espelho enorme que cobria a parede em frente. Aquele terno tornava Kwan — um etéreo ser que evita exercícios do mesmo modo que algumas pessoas evitam meias sujas — um homem alto e de ombros largos. Meu surrado paletó de tweed Harris tornava-me — um homem alto com ombros decentes que percebe algo de podre no ar quando fica mais de dois dias sem remar ou correr — desmazelado e mais baixo.
Se ele houvesse esperado um dia provavelmente eu teria desistido. Mas na tarde desse mesmo dia, antes que eu tivesse tempo de mudar de idéia, estava no Lexus de Kwan, e pouco depois paramos no estacionamento da loja Neiman's. Como na Filene's Basement, há uma longa escada rolante que leva ao departamento masculino. Mas a semelhança pára aí. Não há a agitação de uma colméia, ninguém empurrando a gente para subir os degraus da escada rolante. Ao contrário, ali existe uma calma ordeira, suave música ambiente e um leve aroma de almíscar no ar.
— Ah, dr. Liu! Que prazer vê-lo de novo! — disse um indivíduo impecavelmente vestido que se materializou no momento em que chegamos em cima.
O rosto dele tinha a expressão de um manequim, perfeitamente equilibrado, sem rugas, as sobrancelhas apenas um tantinho mais escuras do que se espera.
— O que podemos fazer hoje pelo senhor? — acrescentou ele, com o imperial Nós.
— Por mim, nada. Trouxe meu amigo, o dr. Zak, para que tenha seu primeiro e verdadeiro terno.
O vendedor inclinou a cabeça um mícron e avaliou-me. O sorriso petrificou-se, e ele cocou o queixo, imaginei se sua pele teria a textura de um laminado.
— Certamente — anuiu o rapaz.
Tirou algo do bolso e sacudiu-o duas vezes, produzindo um alto porém discreto clique.
Comecei a me dirigir para a saída — eu não precisava daquilo —, porém Kwan bloqueou meu caminho. Um homem mais baixo e mais jovem surgiu. Tirou rapidamente as minhas medidas e escreveu uma série de números num caderninho.
— Cor? — indagou o vendedor, dirigindo-se a Kwan.
— Estamos começando um guarda-roupa... Eu diria um cinza básico, risca de giz.
O vendedor sumiu e reapareceu com dois ternos. Ergueu um deles.
— Temos este Brioni. Clássico, porém contemporâneo. — O terno era com três botões, cinza-escuro com listras brancas, finíssimas e discretas. — Os ateliês ficam em Milão, e os ternos são feitos a mão, claro.
Senti o tecido. As palavras sutil porém luxuoso, que um costureiro diria, inscreveram-se na minha mente. Havia uma etiqueta apenas visível numa das mangas.
— Cinco mil dólares? — grasnei.
Meu primeiro carro tinha custado menos do que isso. Imperturbável, o vendedor colocou o terno de lado e ergueu o outro.
— Este é um Canali. Discreta elegância. Detalhes finíssimos, claro. Mais, hum... acessível.
A última palavra saiu rascante, como se machucasse a garganta dele.
— Mais acessível quanto? — perguntei.
— Apenas experimente a droga do terno, Peter — resmungou Kwan. — Não é nada que possa matá-lo.
— Será que eu poderia — ofereceu o vendedor enquanto levava o terno para o provador — sugerir uma camisa e uma gravata que combinem com ele?
Quando saí do provador, Kwan deu-me um golpe duplo:
— Peter? É você mesmo que está aí?
Parei diante do espelho, e um estranho olhou para mim. Poderia ser o diretor do Instituto ou James Bond. Dependendo do estado da minha mente.
Comprei tudo — o terno, a camisa, a gravata. Ergui o nariz e entreguei meu cartão de crédito.
— Magnífica compra — ronronou o vendedor. — O senhor vai usar esse terno por cinco anos.
Ele falava como se fosse uma eternidade.
Houve uma tempestade de neve na noite da festa de Channing. Quando cheguei ao meu carro o pára-brisa se tornara uma lâmina de gelo. Meus dedos ficaram entorpecidos quando a retirei com uma espátula de plástico duro que, na verdade, exigia um lança-chamas.
Tive bastante tempo para especular sobre o que encontraria quando visse Olívia. Da buliçosa criança à introvertida pré-adolescente e em seguida a quê? Esperava uma jovem normal, rebelde do modo consagrado pelo momento em que os adolescentes se diferenciam dos pais. Queria muito reassegurar a Channing: isso tudo é passageiro.
Quando terminei de limpar os vidros do carro estava atrasado, tinha de ir pegar Annie na esquina perto do Tribunal de Cambridge — ela trabalhara a tarde inteira arrumando seu escritório novo. Imaginei que estaria morrendo de frio. Dirigi o mais rápido que me atrevia, encarando os faróis amarelos como um convite à velocidade.
Annie parecia um dente-de-leão fofinho, com o cabelo crespo avermelhado cintilando à luz do poste, o rosto oculto pela respiração condensada, que lembrava a fumaça de um dragão. Em vez do jeans e da jaqueta de couro de sempre, estava com um casaco comprido até os pés, como um daqueles sacos-de-dormir feitos para manter você aquecido numa noite de acampamento no Monte Washington. Ela deslizou para dentro do carro, inclinou-se e me deu um beijo no rosto. Seus lábios estavam gelados.
— Para a rua Marlborough, James — disse, tremendo. — Você ainda não consertou o aparelho de ar-condicionado deste seu carro velho?
Eu estava quase terminando de restaurar meu BMW 1967, levando o tempo necessário desamassando um dos pára-lamas traseiros — já havia feito isso, passado massa e pintado, mas um pilantra que fugia com um Firebird de um estacionamento o deixara pior do que antes. Depois disso, não me restava senão ter paciência. Voltei a trabalhar no carro durante as quietas e atrozes horas que qualquer pessoa em plena posse das faculdades mentais prefere estar na cama.
— Adoro o cheiro de couro — acrescentou Annie, respirando fundo. — Hummm, é tão confortador.
Aspirei também, só que apreciando o perfume de Annie, melancia e rosa.
Vi que ela me observava.
— Fiquei feliz por você ter me telefonado — disse.
— Já fazia...
Fiz uma pausa tentando me lembrar quanto tempo fazia.
— Um mês e meio — socorreu-me Annie.
— Não! Ela riu.
— Ninguém pode acusá-lo de ser repetitivo em alguma coisa. Se bem que, devo confessar, fiquei desapontada com a mudança de plano.
Inclinei-me e coloquei uma das mãos sobre a dela. Uma descarga elétrica subiu-me pelo braço.
— Um tranqüilo jantar a dois certamente seria bem melhor — comentei.
— Da próxima vez — replicou Annie, colocando a mão sobre meu joelho e apertando-o.
Foi com considerável esforço que continuei a caminho de Back Bay — pela avenida Memorial abaixo, através da ponte Harvard — em vez de fazer um U e voltar para minha casa. Esse trecho da avenida Massachusetts é indistinto — uma fileira de restaurantes decrépitos, lojas de conveniência e bares. Assim que viramos a esquina e pegamos a avenida Marlborough a paisagem mudou. Arvores dos dois lados da rua, formando um entrelaçamento incompleto de galhos que lembrava um arco. Fileiras de postes de cada lado, com lâmpadas suaves que tornavam visíveis as casas de cornijas, alinhadas numa tranqüila uniformidade de século dezenove.
Havia garagens apenas nas residências e até mesmo um residente do bairro não encontraria vaga para estacionar naquela noite. Conseguimos lugar a um metro da avenida Clarendon e voltamos a pé.
Paramos no passeio e olhamos a casa.
— Uau! — exclamou Annie.
— Uau mesmo — concordei. — Antes eles moravam alguns quarteirões adiante, numa casa que é metade desta.
A formidável casa de granito cinza tinha uma escadaria dupla que levava à entrada em arco com janelas de cada lado. Um candelabro de cristal cintilava por trás de uma das janelas.
Annie ergueu os ombros e fechou mais a gola do casaco ao redor do pescoço.
— Esta casa faz os meus dentes baterem.
Sorri e imaginei o que Channing faria com Annie. As duas não poderiam ser mais diferentes, e nenhuma delas era como Kate. Pelo menos não na aparência. Médica, investigadora particular, artista plástica. No entanto, cada uma delas era tão independente e auto-suficiente quanto uma pessoa pode ser.
Subimos os degraus. Os detalhes de latão — corrimão, caixa para cartas fixa na parede, aldrava — pareciam ter sido polidos naquele instante. Toquei a campainha. A porta da frente foi aberta por um jovem de smoking que parecia ter os dentes polidos também. Provavelmente um estudante que trabalhava para o bufê contratado.
Transbordantes arranjos florais eram notas graciosas no hall de entrada, generosamente proporcionado e de teto alto. Havia portas-francesas de cada lado; uma dava para a sala de visitas, a outra para a biblioteca. Depois de uma escadaria curva, um corredor estendia-se para os fundos da casa.
Parecia que pelo menos mais de duas dúzias de convidados já estavam lá. Reconheci alguns colegas do Instituto. As pessoas que não reconheci deveriam provavelmente ser amigas de Drew — corretores de valores e empreendedores imobiliários, com certeza.
Olhei para o patamar do segundo piso. Nada de Olívia,
Annie tirou o casaco como se fosse um casulo cinzento. Estava com um vestido curto, sem mangas. O veludo negro aderia a ela como uma segunda pele. Tentei não olhar. Estava espetacular. E eu fazia o que as mulheres dizem odiar, ou seja, olhava as pernas, as curvas dos quadris dela, os seios, percorrendo-a com o olhar de baixo para cima. Quando cheguei ao rosto vi que Annie nem tinha percebido. Ou, se tinha, não se importara. Olhava-me com os lábios entreabertos como se houvesse acabado de engolir um peixinho dourado. Tocou a lapela do meu terno e assobiou.
— Você está um arraso. Eu ri, um tanto alto.
— Não tanto quanto você.
— Peter, estou muito contente por você ter vindo!
Era Channing, entrando no hall, com uma flüte de champanhe pelo meio na mão. Seu rosto estava corado, e ela tropeçou na volumosa saia marrom, mas logo recuperou o equilíbrio. Algumas gotas de champanhe caíram sobre o tapete persa.
Dessa vez executei o cerimonial dos beijos sem choque de narizes. Entreguei-lhe uma garrafa de Calon-Segur 1986, de um vermelho aveludado, pronto para ser bebido.
— Para uma ocasião especial — eu disse. — Channing esta é...
Annie sorriu com doçura.
— Annie Squires, investigações criminais, pessoas desaparecidas e — ergueu uma sobrancelha olhando para mim
— amores perdidos. Channing riu.
— Muito apropriado! — Estendeu uma longa e elegante mão que Annie apertou com vigor. — E eu gostaria de saber mais... — Inclinou-se para mim e abaixou a voz. — Peter, você tem de prometer que me salvará caso eu desabe de vez. Fui bipada a noite passada e mal fechei os olhos. Sinto-me passada a ferro, e isto — ergueu a flüte de champanhe em toda altura do braço — está me subindo direto para a cabeça.
— Peter!
Cabelos grisalhos e distintíssimo num blazer escocês vermelho e gravata borboleta, o marido de Channing, Drew Temple, aproximou-se de nós com uma flüte de champanhe em cada mão. Com seu mais de um metro e oitenta e três ele teve de se inclinar um pouco ao passar pelo umbral da porta.
— Encantado por você ter podido vir — acrescentou, e quando sorriu, as rugas de seu rosto se acentuaram.
Pegamos o champanhe e então lhe apresentei Annie, que estremeceu.
— Ainda está com frio? — perguntei, passando um braço por seus ombros.
Então também senti a rajada de vento frio. Todos nos voltamos. A porta de entrada estava aberta. Channing correu para a jovem em pé no pórtico.
— Chan... — A mulher interrompeu-se. — Dra. Temple — continuou, estendendo rigidamente o braço.
Os braceletes tilintaram em seu pulso fino. Channing pegou a mão dela e apertou-a.
— Jess, estou contente por você ter vindo. Dê-me seu casaco.
A mulher tirou o casaco de lã. Por baixo usava um vestido preto, curto e sem mangas, como o de Annie. Olhei ao redor. A maioria das mulheres na festa estava usando vestidos mais ou menos parecidos. Com seu pescoço longo, cintura estreita, nariz aristocrático e o modo como mantinha a cabeça levemente inclinada, a moça fazia-me pensar numa Audrey Hepburn loira. A mesma inocência mista com sofisticação. Mas, definitivamente, não eram de Audrey Hebburn a mochila surrada que ela largara no chão nem a tatuagem, talvez uma borboleta, que tinha no tornozelo.
— Você está muito linda esta noite — disse-lhe Channing, em seguida passou um braço pela cintura da moça e apresentou-a a mim. — Esta é Jess Dyer.
Pronunciou o nome como se eu devesse conhecê-lo, mas nenhuma campainha soou no meu cérebro.
— Prazer em conhecê-la — disse eu, apertando-lhe a mão. Seus dedos eram longos e esguios, como os de uma ave pernalta. Apresentei-a a Annie.
— Dra. Dyer, a residente de quem lhe falei — lembrou-me Channing.
— Ah, é verdade! Você vai começar seu rodízio na Neuropsiquiatria na semana que vem — comentei, lembrando-me do recado que Channing deixara para mim semanas atrás. — Estamos ansiosos à sua espera.
Nossa equipe sempre se achava desfalcada. Um bom residente era um médico extra na unidade, alguém com novas perspectivas.
— Acredite-me — respondeu Jess —, eu também estou ansiosa por começar.
— Ela é de uma rara eficiência — disse Channing, e Jess corou. — Foi por isso que recomendei que trabalhasse com você. É muito interessada em testes.
O que não era nada comum — em geral psiquiatras gostam de deixar os testes para os psicólogos.
Apareceu uma garota de cabelos negros e pernas longas no alto da escada, mas desapareceu antes que a pudesse ver direito. No entanto, mesmo com um rápido olhar, pude concluir que jamais reconheceria nela a filha de Channing.
— Estarei lá, na luminosa manhã de segunda-feira — disse Jess.
Então, pediu licença para ir ao toalete. Channing ficou olhando-a afastar-se.
— Inteligente e muito simpática. Ela teve um ano difícil. Está precisando centrar-se. Estabilizar-se. Precisa do tipo de mentor que encontrei em Daphne quando estava fazendo minha residência.
A moça estaria precisando estabilizar-se até que ponto?, perguntei-me. Esperava que a jovem médica não se transformasse numa paciente extra.
— Daphne veio? — perguntei.
Uma gargalhada soou na sala contígua, seguida pelas palavras:
— Oh, pare com isso, Liam! Não pode estar falando sério. Channing ergueu um dedo:
— Aí está ela, em carne e osso.
Entramos na sala. Lá estava a dra. Daphne Smythe-Gooding, seu cabelo liso, branco e brilhante tocando os ombros cobertos por seda negra.
— Ela está muito bem — observei.
O marido de Daphne havia morrido no verão anterior. Robert Smythe-Gooding tinha apenas sessenta anos. Ele e Daphne eram ícones da solidez no Pearce. Robert, o brilhante pesquisador; Daphne, a clínica acadêmica. Quando comecei a trabalhar no Pearce, ele era o chefe da Psiquiatria. Todos acreditavam que estivesse no rumo de se tornar diretor do Instituto. Então houve u m remanejamento, que parecia ter por trás um bafejo de escândalo, e ele foi designado para outra posição: diretor de pesquisas clínicas.
Vi isso acontecer uma porção de vezes desde então. Rumores sobre drogas desaparecidas diante dos olhos do diretor de determinada unidade. Médico que andava dormindo com as pacientes. Falatórios sobre administrador malversando fundos. Quem sabe se essas histórias eram verdadeiras? O pequeno segredo sujo do Pearce era que, quando algum veterano do corpo de direção, raramente, fosse atingido, recebia uma promoção a trabalhos mais etéreos denominados "projetos especiais". O boato tornava-se um atrito administrado que triturava reputações. Eventualmente a pessoa desaparecia do mapa da organização deixando apenas um sussurro.
O que não havia acontecido com Robert. Para começar, a nova posição não tinha deveres reais. Sozinho, ele escreveu propostas de concessões e audaciosos projetos de pesquisas. Recrutou médicos para trabalhar com ele, cortejou o Hospital Nacional de Saúde Mental, empresas farmacêuticas e fundações. Quando o dinheiro começou a entrar, tornou-se evidente que aquela pesquisa seria a chave para a sobrevivência do Instituto Pearce.
Robert havia sido diretor de processos clínicos até sua morte. Câncer com metástase no cérebro. Daphne permaneceu constantemente ao lado dele nos últimos meses, até que ambos desapareceram de vista. Poucos meses depois vi o obituário. Fiquei feliz por ele. Câncer como aquele em geral significa agonia prolongada.
— Ouvi dizer que Daphne foi nomeada diretora de processos clínicos, é fato? — perguntei.
— É, sim. Claro, pelo menos por enquanto, ela está fazendo esse trabalho. Robert estava tentando exercer por mais tempo possível as mesmas e velhas rotinas, mas não conseguia. Recusava a ajuda de todos, menos a dela. O perverso velho filho da puta... — Channing sorriu, lembrando-se.
Na verdade, jamais esperei que ela desertasse para o lado escuro.
Era típico de Channing. Não tinha a menor dificuldade em ver o problema de seus pacientes sob as cores de uma paleta de pintura. A ética médica era outra história. Ela via um campo de batalha monocromático, habitado por exércitos de chapéus negros e chapéus brancos.
Houve outra risada.
— Quase não a reconheci ao vê-la — acrescentou Channing.
Daphne pareceu-me menor do que me lembrava, um tanto hesitante no modo como estava ali, de pé, com a cabeça levemente inclinada para um lado. Segurava um copo de vinho numa das mãos, e a outra parecia flutuar para longe de seu flanco, como se procurasse algo que não estava ali. Talvez sem o marido ao seu lado ela se sentisse insegura. Essa não era uma coisa tão comum. Seis meses depois da morte de Kate foi que comecei a cair na realidade em relação à perda — fazia dois anos, e eu ainda tinha dificuldade em me definir como "sozinho". Quando meu pai morreu, eu me lembrava, minha mãe levou mais de um ano para se reequilibrar. Era meu pai quem organizava a vida social dela, quem iniciava amizades. Ninguém ficou mais surpreso do que minha mãe quando descobriu que era uma conversadora natural.
Um garçom aproximou-se com uma bandeja de canapês. Daphne serviu-se de um que parecia ser de cogumelo. Não o comeu. Ficou apenas segurando-o, o que mantinha no lugar aquela mão livre e flutuante.
— Ela está recuperando um pouco do peso que perdeu - prosseguiu Channing. — Num certo momento tivemos medo de que Daphne desaparecesse. Pode se aproximar para dar-lhe um alô, ela sempre foi sua grande fã.
— Minha fã? Ela mal sabe quem sou — retruquei.
— Peter, posso assegurar, Daphne sabe tudo a seu respeito.
Senti que meu rosto tornava-se um grau mais quente. Daphne havia analisado Channing durante sua residência. Se Channing lhe contara sobre seus antigos amores, com certeza ela sabia a meu respeito bem mais do que qualquer pessoa deveria saber. Peguei Annie olhando-me, pensativa.
Liam Jensen, um psiquiatra sênior que trabalhava com Channing na Reabilitação de Drogas e do Álcool, expunha algo a Daphne e a um pequeno grupo de ouvintes:
— ...um novo tratamento para dependência de álcool e drogas. — Jensen estava meio dobrado sobre um dos quadris, o corpo inclinado para a frente como para um mergulho, o nariz cerúleo apontando para a audiência. — Hoje em dia podemos desentoxicar pacientes com Librium, mas a porcentagem de recaída é desencorajadora. Já o DX-200 diminui a dependência psicológica.
Quando no aproximamos, Daphne comia o canapê de cogumelo que estivera segurando, depois estendeu a mão para Channing e puxou-a para perto de si. Deu-lhe um sorriso forçado e rolou os olhos na direção de Jensen.
— Claro — disse Daphne —, Channing está trabalhando num tratamento diferente do mesmo mal.
— Videira kudzu — comentou Jensen, retorcendo os lábios com rejeição.
— Beberagem de médica feiticeira — explicou Channing, com um brilho maroto nos olhos. — Vamos ver qual deles é o mais eficiente. Pelo menos já sabemos qual é o mais caro.
Channing parecia saborear a rivalidade. Jensen não se mostrava nada divertido — mas acontece que era um dispéptico.
Um homem perguntou:
— E o potencial do mercado? Daphne se interpôs:
— O dr. Jensen tem suas prioridades. Não quer desperdiçar seu tempo com algo insípido, não é, Liam? — E ela acrescentou, rápida, para nós: — Aliás, ele é dono da maldita patente.
Agora sim, ela voltava a ser a velha Daphne, segura de si, cortante como uma navalha.
Jensen deu-lhe um leve sorriso.
— Conservadoramente falando— ele fez uma pausa —, centenas de milhões de dólares apenas aqui, no nosso país.
As últimas palavras caíram num vazio de conversas e de barulho da festa, o que fez com que grande número de rostos se voltassem na direção de Jensen, analisando as palavras dele.
Do outro lado da sala, Drew Temple conversava com uma mulher de uns trinta anos. Levando em conta a forma física, o terninho azul-claro, os cabelos negros que desciam pelos ombros como uma espessa cortina, ela não tinha o tipo Instituto. Deu um passo à frente e ajeitou a lapela do paletó de Drew. Ele olhou ao redor e viu que eu os fitava. Deu um passo atrás e teve um leve acesso de tosse seca.
Justamente nesse momento Channing anunciou que estava na hora do jantar e abriu caminho em direção à sala de jantar. Os empregados que tinham recebido nossos agasalhos nesse momento removiam um lugar e ajeitavam as cadeiras, os pratos e talheres, de maneira a camuflar o vazio onde parecia que Olívia não ia mais sentar-se. Vi-me incomodado entre Daphne e Channing.
Annie foi para o extremo da mesa, ao lado de Liam Jensen. Jess Dyer estava do outro lado de Jensen, que passou o braço pelo encosto de sua cadeira, e os dois falaram em voz baixa por alguns instantes. Em seguida ele pegou seu copo de vinho vazio, e Jess pegou o dela. Tocaram os copos num silencioso e simbólico brinde.
Rapidamente passei a fazer parte da conversa de Daphne e Channing sobre como as mulheres liberais que são inteligentes em política não são absolutamente respeitadas, ao passo que as mulheres conservadoras o são e fazem incurssões nos direitos de aborto e controle de armas. Nenhum comentário sobre a ausência de Olívia.
Channing falou de uma viagem a bordo de jangada que planejava fazer na primavera.
— Você não está apavorada? — perguntou Daphne.
— Completamente. E isso que torna a viagem excitante. Eu me esquecera daquele aspecto de Channing — o lado
que atraía seus medos. Vários anos usando roupas discretas e carregando uma pasta não a tinham feito mudar. Uma vez ela me mostrara o revólver com que sua mãe se matara. Mantinha-o limpo e lubrificado. Sabia atirar como um perito. Costumava dizer que tudo que você domina deixa de ser ameaça.
Channing empurrou a cadeira para trás e pôs-se de pé. Deu um breve sorriso para os convidados que a fitavam e mantinham-se sentados.
— Vamos tomar o café na sala de estar? — sugeriu. Quando passávamos pela escada no caminho para a sala
de visitas eu lhe disse:
— Talvez Olívia esteja em seu quarto. Posso subir? Channing suspirou.
— É evidente que ela não pretende descer.
— Qual é a porta? — perguntei.
— No alto da escada, primeira à esquerda. Arranje alguma desculpa.
No topo da escadaria encontrei com Jess saindo do corredor onde ficava o quarto de Olívia. Ela pareceu surpresa ao me ver, os olhos muito grandes e brilhantes.
— Apenas estive usando o toalete de senhoras — disse, fechando o zíper da mochila.
Claro que era uma desculpa perfeita para entrar no quarto de Olívia cuja porta, aliás, achava-se escancarada. Fiquei parado no corredor, ouvindo-a digitar no teclado de seu computador. Aproximei-me mais um centímetro da porta aberta. Ela estava sentada a uma mesa na minha frente, olhando atentamente para o monitor. Olívia não se parecia nada com a alegre menina de seis anos e nem com a quieta pré-adolescente de que me lembrava. Um longo pescoço e cotovelos ossudos sobressaíam da camiseta preta. Mas o cabelo era de chamar a atenção — denso, liso e negro com vestígios de tintura ruiva.
Ela tirou os óculos de lentes redondas com aro fino, pegou um vidrinho de colírio que estava ao lado do teclado, inclinou a cabeça para trás e pingou algumas gotas em cada olho. Tinha uma tira de couro amarrada à cintura e anéis de prata em todos os dedos, inclusive no polegar.
Recolocou o frasquinho na mesa e piscou. Em seguida endireitou-se, tornou a pôr os óculos e voltou a digitar.
Parou abruptamente, os olhos indo do teclado para o monitor. Depois mais uma rajada de digitação. De uma gaveta, tirou uma embalagem de plástico transparente com pílulas, pegou uma, pôs na boca e engoliu sem água mesmo.
Bati à porta. Ela estremeceu, e seu rosto se contorceu de raiva. Guardou rapidamente as pílulas na gaveta e disse, com voz estridente:
— Jesus Cristo, será que não pode me deixar em... Quando viu que era eu, tornou-se cautelosa, com os tendões do pescoço estirados, a expressão dura e atenta, como a do animal que de repente compreende que foi apanhado.
— Banheiro? — perguntei.
O rosto dela tornou-se inexpressivo.
— No fim do corredor — respondeu, com voz incolor. Vi imediatamente por que a mãe lembrara-se de Olívia ao ver Matthew Farrell — atitude indiferente pontuada por explosões de raiva.
— Sou Peter Zak. Lembra-se de mim? — perguntei, conseguindo um olhar vazio. — Nós nos conhecemos quando você era uma menininha. Algum tempo depois nos reencontramos e, então, você esteve na minha casa e minha mulher a ensinou a fazer vasos de cerâmica. Isso faz pelo menos uns três anos... — Os olhos dela se estreitarem ao me observar de lado. — Você cresceu um bocado desde aquele tempo.
A expressão da jovem azedou-se. Pude ouvir um não dito:
— Hum.
Olhei ao redor procurando onde me agarrar. Um pôster chamou-me a atenção.
— Você é fã do Nirvana? — perguntei.
— Kurt Cobain — respondeu.
Agora dê o fora !, acrescentou o corpo dela, enquanto voltava-se de novo para o computador.
Cobain, um sensível, obsessivamente compulsivo rapaz que enfiara o cano de um revólver na boca e apertara o gatilho. Não era um excelente modelo.
— Importa-se se eu der uma olhada? — voltei a perguntar. Ela sacudiu os ombros e entrei no quarto. O enjoativo odor de patchuli misturado ao de menta levou-me de volta aos meus dias de estudante em que usávamos ervas e incenso para mascarar o cheiro de maconha. Apenas tiras de parede eram visíveis entre os pôsteres de grupos de rock e fotos de jornal de Eric Harris e Dylan Klebold — garotos alienados que usavam capas impermeáveis de soldados para se definirem e que haviam construído seus nomes matando colegas do colegial. Ergui a foto de Eric Harris. Estava afixada sobre um recorte de revista com uma modelo loira e de vestido cor-de-rosa estilo Cinderela.
Havia também pedaços de papel escrito, presos em vários lugares da parede, sem nenhum padrão. Olhei um deles mais de perto. Era uma lista escrita com esferográfica de cor púrpura. Estava datada de dois meses atrás e continha vinte e nove itens numerados. O primeiro era "Escova de dentes", depois, "Consulta com a dra. D". Olhei mais embaixo, "Comprar um presente de aniversário para mamãe", "Lição de casa de Mat", "Trabalho do final do semestre", "Arrumar a cama". Uma outra lista estava afixada perto, verdadeira miscelânea. Era evidente que Olívia estava tentando ser organizada, esforçando-se por construir uma estrutura ao redor de sua vida. Mas qualquer um teria sido oprimido por tantos detalhes. Por onde começar?
Na parede adjacente havia uma pequena galeria de fotografias impressas por computador. Reconheci uma delas em que uma mulher de preto com cara de luto e longo cabelo ondulante estava em pé, confundindo-se com os sinuosos tronco e galhos de uma árvore.
— Esta é linda — admirei. — O trabalho de Annie Brigman é mesmo extraordinário.
— Você conhece Annie Brigman? — perguntou Olívia, com a voz traindo interesse.
Ela enfiou uma pilha de anéis no polegar, tirou o primeiro, depois recolocou-o.
— Eu gostaria de tê-la conhecido melhor — respondi. — Tive chance de comprar uma de suas fotos, alguns anos atrás, mas perdi-a.
— É mesmo? — Ela pôs-se em pé e aproximou-se de mim. — As fotografias dela são como... elas são tão totalmente emocionais.
Olívia parecia estar precisando de uma boa noite de sono. Apesar das gotas de Visine, seus olhos permaneciam vermelhos, e a mão tremia quando a ergueu para a foto. Os ossos sobressaíam como carbúnculos na base da aflitivamente fina cintura. Imaginei que pílulas ela estaria tomando.
— É como... Seria assustador se ela fotografasse a gente porque seria uma fotografia do nosso interior.
— Essa é uma observação muito perceptiva — comentei. Ela fitou-me, mas logo desviou os olhos e foi como se
fechasse uma porta de novo. Imaginei se no íntimo de Olívia havia uma prometida princesa ou estava escondido um Kip Kinkle fêmea.
Então reparei numa página impressa no computador, que estava na mesinha de cabeceira sob um copo de água vazio. O intrigante título "Dê uma Cafungada" e o subtítulo chamaram-me a atenção: Métodos Suicidas. Havia partes marcadas com tinta amarelo-luminoso.
Olívia continuava em pé, com a cabeça apoiada na parede, olhando a fotografia de Annie Brigman, o dedo acompanhando as linhas ondulantes que fundiam mulher e natureza numa única forma. Apesar do cabelo negro mal cortado, a semelhança de Olívia com a mãe era impressionante — o perfil forte, os olhos intensos. Quando ela parasse de ser relaxada e de andar inclinada, a semelhança seria ainda maior. Tive vontade de perguntar se estava deprimida, com raiva e se alguma vez pensara em se matar. Mas aquele não era o momento certo.
Deixei Olívia em seu quarto e fui à procura do banheiro que ficava, como me fora dito, no fundo do corredor. A conversa com a jovem me deixara preocupado. O fato de ela estar fascinada por proscritos sociais e adolescentes desviados não me afligiam, por si mesmos. Na idade dela é saudável espelhar-se em pessoas diferentes. Mas a combinação disso com literatura a respeito de suicidas fazia luzinhas vermelhas brilharem na minha cabeça.
Voltei para o topo da escada e olhei para baixo. Drew estava à porta da frente, despedindo-se de convidados. A porta do outro lado do patamar, do lado oposto ao quarto de Olívia, estava aberta. Ouvi alguém dizer:
— Uma demissão. É isto que eu quero. Chega dessa perigosa incompetência.
Era Channing. A voz dela soava baixa e intensa, desaparecida toda suavidade do vinho.
Não pude ouvir o que ela disse a seguir, porém a resposta foi alta e clara. Era a voz de um homem, com palavras simples e muito bem pronunciadas.
— É uma coisa que não quero que venha a público. Poderia prejudicar o Instituto. Ainda mais agora, neste momento crítico.
Dei um passo para mais perto da porta. Eu sabia que estava espionando, mas não podia evitar.
— Crítico para você — respondeu Channing.
— E para o Instituto...
— E para as empresas farmacêuticas. Não se esqueça dos laboratórios. São eles que pagam as bonitas e gordas despesas de pesquisas. Oh, não. Isso não me parece nada bom.
— Está certo. Você é muito grande, poderosa... e rica... para assumir as despesas de pesquisas — retrucou ele. — Mas sabe tão bem quanto eu que o Pearce teria se tornado, há muito tempo, um simples Instituto se não fosse o dinheiro deles.
A casa se tornara mortalmente silenciosa. Olívia pôs a cabeça para fora do quarto, com expressão cautelosa. Drew e Annie estavam na base da escada; Jess e Daphne, já com seus casacos, achavam-se junto à porta da frente. Todos olhavam para a escada, esforçando-se por ouvir. O homem continuou:
— Não ameace com o que não está preparada para fazer.
— Estou preparada. Pode acreditar em mim, estou preparada. Um homem morreu e todos pensam...
— Que diferença faz o que os outros pensam?
— Faria diferença para ele e faz diferença para mim.
— Você tem assim tanta certeza do que é errado e do que é certo?
— Por que não? — respondeu Channing, a voz repassada de desdém. — O que tenho a perder?
— Não pode culpar a ninguém por isso a não ser você mesma.
— Seu filho da puta! — sibilou Channing.
Houve uma pausa. Silêncio. Mal se ouviam, abafados, os sons de louça na cozinha. Então o homem reagiu ao ultraje:
— Que diabo pensa que está fazendo? — berrou. Aquilo foi o bastante para mim. Entrei no estúdio para
encontrar Channing e o dr. Liam Jensen se confrontando. Jensen segurava a haste de um abajur de pé, de latão, o rosto contraído pela raiva. O abajur estava erguido uns doze centímetros do chão, e tive a impressão de que ele estava a um fio de cabelo de usá-lo como um porrete. Seu rosto normalmente pálido achava-se vermelho. Channing empunhava uma garrafa de conhaque vazia, e conhaque pingava do nariz adunco de Jensen, porém a maior parte manchava uma das lapelas e um dos ombros perfeitamente acolchoados do paletó cinza-claro.
Quando ele me viu no umbral, recolocou o abajur no chão e soltou-o. Tossiu, pegou um lenço, enxugou o rosto e, depois, o paletó.
Aproximei-me de Channing.
— Você está bem? — perguntei.
— Eu queria matar esse desgraçado — ofegou ela. Então ergueu os olhos e viu Drew parado à porta com
Annie, Jess e Daphne amontoadas atrás dele. Channing recuou até uma poltrona de orelhas e deixou-se cair nela. Levou as mãos à cabeça.
— Oh, meu Deus, desta vez exagerei! Apoiei a mão em seu ombro.
— Liam, dê-me seu paletó — pediu Drew.
Jensen parecia não confiar em si mesmo nem sequer para dizer uma palavra. Tirou o paletó e entregou-o a Drew.
— Água fria — disse Channing, aérea —, antes que as manchas se fixem. Você não se importa de cuidar disso, não é, Peter? — Ergueu os olhos para mim. — Faça-o no banheiro, no fundo do corredor.
Drew deu-me o paletó, enquanto ela prosseguia:
— Água fria pode dar um jeito, mas você tem de fazer do modo certo. Se não funcionar, leve o paletó para Verna, na cozinha. Ela sabe o que fazer.
Saí, levando o paletó. Água fria. Fui andando para o banheiro e parei no meio do caminho. Olhei para o paletó no meu braço e reconheci a etiqueta de seda marrom de Brioni. Rapidamente dei meia-volta e trotei, levando o paletó de Jensen para a cozinha e entregando-o aos cuidados de Verna.
Enquanto Annie e eu caminhávamos para o carro um suor frio cobriu-me a testa, conseqüência da adrenalina provocada pela altercação. Sentia-me desconfortável, como se durante a noite inteira algo houvesse permanecido fora dos trilhos. Incompetência perigosa. Um homem morreu. De quem eles estariam falando? E a demissão de quem Channing queria?
— Alguma idéia do que significa aquilo tudo? — perguntou Annie.
— Nem a mínima — respondi.
Esperava que Annie não se tivesse incluído na lista de inimigos de alguém.
Chegamos ao carro. Liguei o motor e o aquecedor, se bem que soubesse que levaria pelo menos dez minutos até que algo parecido com calor chegasse até nós. Annie bocejou e encolheu-se toda.
— Cansada? — perguntei.
— Na verdade, não. São só onze horas. Vamos a algum lugar tomar um café?
As meias emitiram um ruído suave quando Annie cruzou as pernas. Um joelho emergiu da abertura do casaco, e café não me atraiu.
— Não faço questão... — respondi.
Annie balançou a cabeça e sorriu.
— Humm... Nem eu, para dizer a verdade.
Eu estava sem prática. Com Kate tinha sido tudo tão fácil, tão natural quanto deslizar num bote numa corredeira e no final subir à superfície ansiando por ar. Fora preciso muito tempo até que eu chegasse no ponto em que me encontrava. Há alguns meses, a sensação de culpa e de que estava sendo infiel olhando para outra mulher tornaria impossível que me sentisse como estava me sentindo naquele momento.
Tudo que consegui dizer foi:
— Ei, você aí...
E inclinei-me para tocar-lhe o rosto. Ela voltou a cabeça e envolveu meu dedo indicador com os lábios. Fechei os olhos.
— Ei, você aí... — murmurou Annie.
Coloquei a mão sobre a perna dela e acariciei, e uma intensa sensação de desejo cresceu em mim. Annie pegou minha mão e deslizou-a alguns centímetros mais para cima, na coxa. Passei a outra mão por trás da cabeça dela, que sorriu e fechou os olhos, com os lábios entreabertos, a boca convidativa. Eu pretendia beijá-la gentilmente, mas o beijo tornou-se violento e exigente. Ela apertou o corpo contra o meu. Levei a mão mais para cima na coxa macia, e as pernas dela separaram-se.
Annie ouviu o bip antes de mim.
— Deve ser o seu — disse, ofegando —, porque o meu está em casa.
Eu não queria soltá-la, tinha impulsos de jogar o bip fora. Mas não o fiz. Impressionante como o dever consegue esfriar o desejo.
Precisei limpar as lentes dos meus óculos, que estavam embaçadas, para poder ver o código 900, emergência.
— Grande! No momento certo... — resmunguei. — Passo uma semana sem ser bipado e justo agora tem de acontecer uma emergência.
Peguei uma flanela debaixo do assento e enxuguei o pára-brisa. Annie ajeitou o casaco sobre as pernas e estremeceu.
— Da próxima vez vamos descartar a festa.
— Isso. Vamos ficar na minha casa, com um bom jantar e uma garrafa de vinho.
— Hum-hum — ronronou Annie. — E sem bip.
— Sem bip — concordei, beijando-lhe a boca de leve. — Essa é uma coisa que me deixa furioso — acrescentei, com o rosto junto ao dela.
— Minha mãe sempre dizia que as coisas boas acontecem para quem sabe esperar.
— Besteira.
Deixei Annie diante de sua casa, apenas com um último beijo. Frustrado, fiquei olhando enquanto ela subia os degraus da entrada correndo e desaparecia no prédio.
O trajeto pela Somerville foi tranqüilo. Entrei na alameda que atravessava o amplo jardim e passei pela placa enorme com letras em relevo INSTITUTO PSIQUIÁTRICO PEARCE FUNDADO EM 1804. A alameda de acesso, cheia de curvas, estava deserta, com os poucos remanescentes olmos lembrando uma guarda fantasma.
Estacionei, abri a porta do carro e saí. A ausência era quase palpável. Havia uns poucos carros no estacionamento, agrupados sob os postes de luz. Inalei o frio metálico e amargo, depois fechei a gola para proteger-me do vento.
Corri alameda acima. Os canteiros ondulantes estavam cobertos pela neve que começava a derreter em alguns pontos. Austeros edifícios vitorianos que abrigavam as unidades ficavam à direita, na escuridão, porém as mais recentes adições, umas monstruosidades de tijolo aparente e vidro, pareciam nuas e desconfortáveis sem nenhuma vegetação para suavizar-lhe os contornos.
Cheguei ao pórtico dos fundos e entrei. Um bafo de ar superaquecido pareceu bater-me no rosto. Instantaneamente as lentes dos meus óculos embaçaram. Limpei-as enquanto atravessava o hall, passando pelo refeitório onde os pacientes comiam, depois pela antes graciosa sala de estar com seu grande piano e não tão grandes sofá, poltronas e cadeiras de vinil. Na luminosidade fluorescente as paredes cor-de-rosa eram quase cor de vômito.
Ouvi uma voz fina cantarolando "I left my hearrrt...".
Pude ouvir também a voz da enfermeira chefe, Glória Alspag, em contraponto:
— Sr. Fleegle, não pode ficar aqui fora, assim, sem roupa...
Isso me preparou para a cena que me esperava e passei pela meia dúzia de pacientes que assistiam ao show.
Se bem que eu seja o diretor, Glória é a espinha dorsal da unidade. Achei que parecia muito cansada, com partes da blusa fora da cintura da calça comprida marrom e os cabelos curtos de pé, como se houvesse enfiado os dedos neles num gesto de frustração. Segurava um lençol e o manejava do mesmo modo que um toureiro maneja a capa, enquanto o magérrimo Samuel Fleegle, nu em pêlo, o evitava com agilidade.
A enfermeira da noite levava dois pacientes de volta a seus quartos ao mesmo tempo que três outros tomavam seus lugares.
— Olé! — gritou um dos pacientes que assistiam. Os demais emitiam expressões de encorajamento.
— ...in San Francisco... — O sr. Fleegle mantinha a mão erguida e fechada, cantando diante dela. —Above the blue...
Havia pequenos pontos com pêlos brancos no peito dele, como pedaços de bolas de algodão grudadas na pele. A frente do corpo do sr. Fleegle era côncava, e atrás os músculos das nádegas e das costas estavam atrofiados. Seu rosto ficava vermelho quando ele fazia força para cantar.
Glória lançou-me um olhar exasperado.
— Sr. Fleegle, desse jeito está acordando todo mundo — disse ela, em tom razoável. — Por favor, sente-se e fique calado.
Justamente nesse momento o sr. Fleegle me viu de pé na sala, com o terno elegante. Ergueu a mão e fez sinal com o indicador.
— Garçom — disse, com voz reservada e polida —, pode trazer-nos dois Manhattan? — Lambeu os lábios. — Com bourbon.
Aproximei-me dele e passei um braço pelos ombros frágeis.
— Sr. Fleegle, sinto muito, mas só podemos servi-lo no bar — respondi esperando pela desilusão e contando com ela para levá-lo dali. — Por que não se senta aqui?
Manobrei de maneira a fazê-lo chegar à cadeira de rodas geriátrica em que Glória estava querendo sentá-lo. O paciente sentou-se de boa vontade e me cumprimentou. Pareceu ficar aborrecido quando a enfermeira desceu à frente dele a peça que funcionava como bandeja, anexa à cadeira, o que o impedia de levantar-se. Mas terminou a canção segurando por algum tempo a última e trêmula nota. Em seguida fez-se um bem-aventurado silêncio e, então, houve uma explosão de aplausos. Ele permaneceu expectante, tamborilando com os dedos sobre a bandeja o ritmo de uma música inaudível.
Glória levou-o para o refeitório, onde, pelo menos, podíamos fechar a porta.
— Há quanto tempo ele está assim? — perguntei.
— Há umas duas horas. Desde que o irmão veio visitá-lo esta manhã ele foi se tornando cada vez mais e mais feliz. Encontramos uma garrafa de seiscentos mililitros de Four Roses no quarto dele. Tentei tudo para acalmá-lo.
Glória deixou-se cair numa cadeira e apoiou a cabeça na mesa. O sr. Fleegle estava de novo cantando a canção desde o começo.
Eu não imaginava que ele, depois de uma vida como alcoólatra, pudesse ter uma reação como aquela a pouco mais de meio litro de bebida alcoólica. No entanto, o metabolismo muda com a idade. Aí, lembrei-me e perguntei:
— O dr. Kwan não colocou o sr. Fleegle sob tratamento com Zerenidine?
— Sim, começou há uma semana.
— Então, provavelmente é isso. Parece que esse medicamento combina-se com os mesmos pontos receptores que metabolizam o álcool. Faz com que o efeito do álcool se torne mais potente e, temo que assim seja pelo que acabamos de ver, que se prolongue por mais tempo. A boa notícia é que ele é um bêbado feliz.
Glória ergueu a cabeça da mesa.
— Por quanto tempo? Sacudi os ombros.
— Uma hora. Talvez um pouco mais.
— Um pouco mais? — repetiu Glória.
— Preciso ajudar a levar os pacientes para a cama. Nada se pode fazer, a não ser esperar. Ele estará bem no café da manhã, apenas com uma colossal dor de cabeça.
A voz do sr. Fleegle aproximou-se de outro trêmulo crescendo, e Glória gemeu:
— Eu também.
De repente acordei, cerca de meio-dia, sozinho na cama. Não era o que esperava. Enquanto fiquei deitado, a discussão de Channing com Liam Jensen voltou-me à lembrança. A raiva, as ameaças. Repassei as palavras mentalmente. A maior parte delas não fazia muito sentido. Alguém era perigosamente incompetente. Alguém morrera? A única coisa clara era que, fosse quem quer que fosse a pessoa incompetente, Jensen não queria mandá-la embora, e Channing, sim. Eu ainda estava na cama quando o telefone tocou. Era Channing.
— Então, o que você acha? — perguntou ela, com a voz demonstrando ansiedade.
— De Olívia ou de Liam Jensen?
— Esqueça Liam. Ele está sob controle.
— Não me pareceu...
— Ele está errado. — Houve uma pausa. — E Olívia? Tirei o cabelo dos olhos e estiquei os pés para fora da cama.
- Eu a vi por pouco tempo, é difícil...
- Peter, lembre-se de com quem está falando. Conheço todos esses rodeios.
- Desculpe, é o hábito.
Minha boca tinha gosto de sujeira. Levantei-me e fui para o banheiro.
— Bem — recomecei —, baseado numa quantidade mínima de dados, numa inspeção muito superficial e na maior parte das coisas, Olívia pareceu-me uma adolescente normalmente insatisfeita.
— E quanto ao resto? — indagou Channing, pegando o fio da meada.
Espremi pasta de dentes num dedo e lambi-a.
— Pareceu-me irritável e mal-humorada demais. Pode ser, apenas, que ela não esteja dormindo o suficiente.
— Isso também.
— Eu a vi tomando uma pílula. Daphne receitou-lhe alguma coisa?
— Há algum tempo receitou Prozac, mas agora não a mandou tomar nada.
— Bem, creio que seria bom verificar que remédio Olívia está tomando. Ele pode estar contribuindo para o mau humor — expliquei, encostando-me pesadamente na porta do banheiro. — E sente forte atração pelas fotografias de Annie Brigman.
— Quem é ela?
— Uma fotógrafa do início do século passado. Belas imagens de mulheres jovens ansiando fundir-se com a natureza. Há um misterioso erotismo nessas fotos, que aliás não me concerne. Mas há também alguma ligação com suicídio.
— Ela sabe que a avó se matou.
Voltei para o quarto e sentei-me na cama, resistindo ao impulso de me deitar de novo.
— Channing, ela tem um artigo sobre como cometer suicídio com alguns trechos marcados com amarelo-luminoso.
— Oh... — fez Channing.
Foi como o som do ar saindo de um balão de borracha. Ela sabia tão bem quanto eu o que isso queria dizer para um adolescente: obsessão com suicídio é sinal de perigo.
Falei com suavidade:
— Algumas literaturas sugerem que, por algum motivo, comportamentos suicidas se repetem numa família.
— Acha que não sei disso?
— Mas posso facilmente estar errado. Falei com Olívia por menos de dez minutos e...
Ela me interrompeu:
— Você pode fazer uma avaliação mais formal? Por favor.
— Não será melhor entregar isso a alguém que não seja amigo? Alguém que possa ser completamente objetivo.
— Preciso de alguém em quem confio.
— Por que não Daphne? Fez-se um breve silêncio.
— Não estou pedindo que você seja o terapeuta dela. Só quero alguém que possa me dar uma informação confiável. Para começar, Daphne... — Ela cortou o pensamento. — Quero outra opinião. Não posso entregar Livvy a alguém que não conheço, em quem não confiaria. Em você eu confio. Por favor, Peter — insistiu —, faça isso por mim. Cuide de Olívia. Diga que tem algum tempo para vê-la nesta semana, quando ela está na folga da primavera.
Peguei-me já pensando que tipo de testes me ajudaria a compreender Olívia. Aquelas longas e disfuncionais listas "a fazer" nas paredes do quarto dela sugeriam um programa de processamento. Testes cognitivos poderiam ajudar-me a entender qual era sua visão do mundo. Tentei não pensar no conflito que teria de enfrentar lidando com Daphne, que, como muitos analistas, via as coisas em termos de impulsos e emoções. Principalmente se minha visão de Olívia não combinasse com a dela.
Minha agenda estava sobre a mesinha-de-cabeceira. Abri-a. Havia bastante tempo livre na segunda-feira de manhã.
— Que tal você e Olívia se encontrarem comigo amanhã, na lanchonete, ali pelas onze horas?
Grande. Muito obrigada, Peter. Estou, mesmo, bastante agradecida.
Quando cheguei ao trabalho na segunda-feira, fui até o compartimento no fundo da sala das enfermeiras e dei uma espiada na minha caixa de correspondência. A maior parte era publicidade colorida e brilhante, panfletos de empresas farmacêuticas e um vistoso convite para um jantar e tudo-que-você-consegue-beber no Ritz — desde que eu agüentasse uma "análise" de meia hora sobre tratamentos atuais da ansiedade.
Virei o convite. Nenhuma figura, nenhum endereço. Apenas esta frase escrita a mão: "Dr. Zak, espero vê-lo lá". Devia ter sido entregue em mãos por algum propagandista de laboratório. Eu vivia cismado com a facilidade com que aqueles rapazes entravam na unidade.
Joguei o convite fora. Continuei pelo corredor até a sala de reuniões. Mal registrei os colegas já reunidos lá dentro. Tudo que vi foram os buracos feitos nas paredes e os fios pendurados deixados por um pequeno exército de pedreiro, eletricista e pintor que tinha invadido a sala havia algumas semanas e desaparecido sem deixar traços. Eu já havia falado com a manutenção quatro vezes. A cada uma delas alguém diferente prometera mandar imediatamente de volta os homens para que terminassem o trabalho. Pois bem, o "imediatamente" já fora e voltara e nada dos homens. Será que não entendiam que precisávamos daquela sala para trabalhar?
— Peter, você parece já estar tenso — comentou Glória, pondo a mão no meu braço e olhando-me com atenção.
Entretanto, ela parecia relaxada e descansada, apesar de ter trabalhado na noite de sábado. A calça caqui e a blusa branca estavam amassadas, seu cabelo curto, molhado e ainda mostrando as marcas dos dentes do pente.
Até então eu não me recuperara da noite de sábado.
— Está precisando de um café — prosseguiu ela, que já estava com sua caneca gigante na mão.
E Glória tinha razão. Eu me sentia como se um fio de tensão estivesse puxando minhas sobrancelhas para juntá-las. Tirei os óculos e massageei a ponta do nariz. Já havia tomado uma caneca — ou havia sido duas? — algumas horas antes. Desde então correra, tomara banho de chuveiro, me barbeara e lixara alguns pontos de ferrugem no meu carro.
Deixei a pasta na cabeceira da mesa e fiz uma rápida viagem até a cafeteira. Quando voltei, Glória, a nossa assistente social e a nossa terapeuta musical estavam prontas para o trabalho. Nosso colega psicólogo e um assistente veterano juntaram-se a nós. Kwan entrou trazendo uma onda de perfume de colônia pós-barba. Vinha com uma caneca de chá e um açucarado sonho. Estava impecável, como sempre, num terno escuro.
Sentei-me e peguei o livro de registros diários. As conversas aquietaram e, em seguida, silenciaram. Todos os olhos focalizaram o quadro branco em que estavam listados os dezoito leitos da unidade.
Antes que começássemos houve como que uma tentativa de batida na porta, e Jess Dyer enfiou a cabeça pelo vão. Encontrando meus olhos, ficou vermelha. Quando viu todos os outros, avermelhou mais ainda.
— Entre, por favor, dra. Dyer — eu disse, no meu tom formal. — íamos começar a reunião.
Ela deslizou para dentro da sala. No costume escuro, com o cabelo loiro preso, pasta na mão, parecia mais velha e mais eficiente do que na festa de Channing. De fato, parecia uma psiquiatra.
— Esta é a dra. Jess Dyer, nossa nova residente — apresentei-a.
Kwan ergueu-se, empurrando para trás a surrada cadeira Windsor, e fez uma reverência. Era o mesmo modo respeitoso com que tratava os pacientes. Jess murmurou agradecimentos, sentou-se e tratou de munir-se de um bloco e caneta.
Voltei minha atenção para o quadro branco.
— Comecemos com o sr. Fleegle, um alcoólatra com setenta e cinco anos. — Jess estava escrevendo. — O sr. Fleegle teve uma reação a um novo medicamento antipsicótico que o dr. Liu está experimentando, em altas horas do último sábado...
— No domingo de madrugada — corrigiu-me Glória.
— Isso. No domingo, muito cedo. Parece que o Zerenidine interagiu com o uísque que alguém contrabandeou para ele.
— Ele não deveria beber — lamentou-se Kwan, afundando-se na cadeira com o queixo enterrado no peito.
Ele teria de reportar o acontecimento adverso — é como eles dizem quando um remédio que está sendo testado tem um efeito inesperado. Aquele poderia ser o maior revés para o Zerenidine, e Kwan seria seu infortunado mensageiro.
— Como vai o sr. Fleegle? — perguntei. — Teve mais alucinações?
— Não. Parece normal — respondeu Glória. — Normal em relação a ele mesmo, é claro.
— Pobre Pharmacom — suspirou Kwan. — Eles tinham muita esperança no Zerenidine.
— Pobre Glória! — retruquei. — Ela ficou horas tentando acalmar o paciente...
Quanto a mim, não pude deixar de pensar, teria tido coisa bem melhor a fazer do que interromper o espetáculo do sr. Fleegle.
— Pensei que os testes com o Zerenidine tivessem terminado — acrescentei.
— Não, e tenho de testar mais cinco medicamentos durante as duas próximas semanas. Por isso agradeceria a ajuda — Kwan olhou-me diretamente — que vocês possam me dar.
Duas semanas não era muito tempo.
— Eu posso ajudar — ofereceu-se Jess. — Coordenava as pesquisas do dr. Temple quando estava na Unidade de Reabilitação de Drogas e do Álcool.
— Verdade? — Kwan parecia impressionado. Procurou num bolso e entregou um cartão de visita a Jess. — Vamos falar nisso hoje, doutora...
Ele hesitou.
— Dyer. D-y-e-r — soletrou Jess, e Kwan escreveu. Aquela distração dele era algo pequeno, porém indicava
definitivamente o quanto estava preocupado. Imagine, aparece uma jovem e atraente residente e Kwan não escreve o nome dela no topo das anotações do dia! Tudo que escrevera na folha branca fora um número 5, grande e sublinhado.
— Tivemos mais agitação no sábado à noite — disse Glória. — Pacientes fugindo por um túnel.
— Pacientes nossos? — alarmou-se Kwan.
— Não. Um grupo da Unidade de Reabilitação de Drogas e do Álcool. Eles foram parar num dos edifícios desativados. A maioria sentia-se segura porque eles tinham um aparelho radiocassete, algumas garrafas de suco de morango, pipoca, maconha e um pouco de vodca.
Tentei não rir, mas tive a visão do sr. Fleegle sem roupa, agitando um charuto e cantando Melancholy Baby para um grupo de arrebatados pacientes com o pijama tipo macaquinho do Instituto.
— O dr. Destler não está achando graça alguma — comentou Glória. — Recebi uma comunicação interna por e-mail hoje cedo.
Essa notícia fez todo mundo ficar calado por um momento. Arnold Destler era o diretor financeiro do Pearce. Trabalhava lá havia quatro anos "levando o Pearce rumo ao século vinte e um", como ele mesmo dizia. Não era de surpreender que as reações nunca fossem indiferentes quando se mencionava seu nome. As pessoas o viam como nosso salvador ou como o Anjo da Morte que transformava o Pearce numa instituição não muito econômica.
Glória tornou-se sombria. Quando o nome de Destler era mencionado numa conversa particular, ela resmungava "Esse homem é um psicopata. Alguém tem de livrá-lo da própria miséria". Contudo, nas manhãs de reunião ela ficava apenas sentada, com ar fúnebre. Estava convencida de que Destler tinha espiões que lhe contavam tudo.
— Parece que tivemos algumas altas no fim de semana — falei, notando algumas rasuras no quadro branco.
— Quatro pacientes liberados, um admitido — esclareceu Glória.
Isso nos dava três leitos vazios — um bem-vindo alívio que com certeza não duraria muito. No entanto, mesmo poucos dias abaixo da capacidade, eu me tornava ansioso. Com nossa margem financeira mais sutil do que o fio de uma navalha, vivíamos sob constante pressão para manter um censo de pelo menos 95%.
Olhei para a lista no quadro.
— Lydia Small.
— Admitida no domingo — disse Glória.
— Uma nova paciente? — indagou Kwan, demonstrando grande interesse.
Procurei entre os papéis e achei o registro de internações.
— Setenta e oito anos. A polícia encontrou-a na rua, perseguindo a irmã com uma faca de entalhe para escultura. Sem roupa. Levaram-na para um pronto-socorro, em delírio. Nenhum antecedente de violência. Mantiveram-na reprimida e não conseguiram acalmá-la. Fizeram uma rápida neuroleptização.
— Que deve ter expulsado o inferno de dentro dela — comentou Kwan.
— Uma rápida o quê? — perguntou Jess.
— Neuroleptização — dissemos Kwan e eu em coro. E Kwan prosseguiu:
—Significa que lhe deram meio miligrama de Ativan e meio miligrama de Haldol. Então, depois de uma hora, dobraram a dose. É o procedimento padrão com pacientes violentos.
— Aí, lavaram as mãos e a entregaram a nós — acrescentei.
— Ela ainda continua completamente dopada — informou Glória.
— Não é de admirar — ponderei. — Já temos o resultado do exame de sangue dela?
— Ainda não — respondeu a enfermeira. Kwan ficou mais atento.
— Parece uma candidata perfeita para o teste do Zerenidine.
Então tive certeza de que ele estava preocupado. Não era seu estilo ignorar os sintomas de um tratamento. Ele fora o único a conseguir tratar de um paciente que seqüestrara a sogra e ameaçara matá-la. Insistia em que a mulher era um extraterrestre. Manteve a polícia em suspenso por oito horas até que conseguiram capturá-lo, prendê-lo e entregá-lo a nós. Sua resposta ao reflexo do joelho indicava o uso de psicóticos, porém Kwan esperou e avaliou-o. Ficou provado que ele fizera bem em esperar. O homem se esquecera de tomar seu remédio para a tireóide. Um severo hipotireoidismo o fizera entrar em delírio. Não estava louco. Reestruturamos sua medicação e três semanas mais tarde ele estava tão normal quanto qualquer um de nós.
Fiquei tranqüilo quando Kwan acrescentou:
— Vamos esperar o resultado do exame de sangue antes de decidir. De qualquer modo, ela deverá não receber nenhum medicamento com benzoatos pelo menos por vinte e quatro horas. — Voltou-se para Jess. — Por favor, dra. Dyer, ligue para o laboratório e peça o resultado o quanto antes. — Jess tomava notas. — Depois, quando a paciente estiver lúcida, converse com ela sobre a experiência e pergunte-lhe se está de acordo. Enquanto isso, procure alguém que possa dar a permissão, caso ela não seja competente para isso.
Em seguida falamos sobre Matthew Farrell. Kwan disse:
— Acabamos de começar o Adderall com ele. — Jess ergueu a cabeça. — A-d-d-e-r-a-l-l. E um novo psicoestimulante. Supõe-se que seja mais eficiente no tratamento de pacientes com a síndrome de Asperger.
Acrescentei:
— Ajuda na concentração, controla a raiva. Kwan olhou as próprias anotações.
— Imagino como ele reagiria com o Zerenidine. Fechei o registro com um estalo.
— Farrell tem apenas dezoito anos e ainda não definiu o perfil.
Kwan ergueu um dedo:
— Explosões de raiva... — Dois dedos. — Fora da realidade...
— Ele não está fora da realidade. Você é o único que...
— Podemos passar para as rondas? — perguntou Glória, significativamente. — Acho que deveríamos estar falando do cuidado com os pacientes. Vocês dois atropelam tudo, como dois elefantes numa loja de louças.
Aquelas palavras puseram fim à discussão nascente.
— Está bem... — concordei — mensagem recebida.
Resumimos e passamos por todos os pacientes da unidade sem nenhuma acrimônia. Mas a tensão continuava presente. E eu sabia que ela continuaria até que Kwan terminasse a experiência com o Zerenidine e pudesse, então, deixar de medir cada novo paciente como um elemento em potencial para a pesquisa.
Pesquisas se haviam tornado um fato da vida no Instituto. O dinheiro, o prestígio decorrente do fato de se estar na frente de batalha contra doenças mentais, tudo isso era empolgante. Traziam proveito para os médicos individualmente, pois nos preocupávamos com o perigo de nos encontrar um dia na cama com os nossos pacientes. Por enquanto tínhamos parceiros de cama inteiramente diferentes para nos preocupar: as empresas farmacêuticas.
Passava das onze quando fui para a lanchonete encontrar-me com Channing e Olívia. O local cheirava a haddock assado e milho em lata. Examinei a cavernosa sala. Um esquadrão de mesas de fórmica alinhavam-se sobre o piso coberto por linóleo colorido. Esperava ver Channing sentada numa delas tamborilando os dedos sobre o tampo, em atitude que me incentivasse a aproximar-me logo. Esperava ver Olívia parecendo tão consciente quanto uma garota adolescente pode parecer quando está sendo vista em público com sua mãe. Mas a sala estava deserta.
Fui até o balcão de alimentos e passei reto por sonhos que davam a impressão de que alguém se sentara sobre eles. Peguei uma xícara de café, fui para uma mesa próxima da entrada e sentei-me disposto a esperar. O café tinha um gosto horrível, mas tomei-o mesmo assim.
Consultei meu relógio. Onze e quinze. O papel inverso em relação a Channing. Eu sempre fora o atrasado — uma das nossas muitas incompatibilidades que pareciam, eu percebia agora, simplesmente triviais. Para uma mulher com alma de rebelde, Channing tinha hábitos muito ajeitadinhos. Sob a colcha de seda indiana no dormitório dela, carregado de incenso, os lençóis deviam ser como no Instituto: bem esticados e os cantos mais duros do que os treinos de um sargento. Métodos de pesquisa ultrapassados? De jeito nenhum. Mas, então, o atraso dela era inexplicável para mim.
Já se haviam passado vinte minutos. Usei o telefone da lanchonete, na entrada, e liguei para o consultório dela. Caí diretamente na secretária eletrônica. Desliguei e disquei para o bip, marcando o número do meu consultório.
Desliguei e fiquei olhando pela janela. Aproximava-se a hora do almoço. Pessoas começavam a chegar sozinhas, duas a duas ou em pequenos grupos. Mas nenhuma delas era Channing. A Unidade de Reabilitação de Drogas e do Álcool ficava do outro lado do jardim. O consultório de Channing era uma das janelas imediatamente abaixo do beirai ornamentado do telhado, pouco além dos galhos mais altos de um carvalho com duzentos anos.
Verifiquei meu correio de voz. Havia uma mensagem. Mas não em resposta ao meu bip. Channing o deixara enquanto eu estava na reunião da manhã. Tive vontade de me chutar por não verificar os recados. Simplesmente não me ocorrera. Quando é importante, em geral me bipam.
"Peter, estou me atrasando um pouco. Por que não vem encontrar conosco no meu consultório, em vez de na lanchonete? Preciso da sua ajuda para me desembaraçar também."
Deixei o resto do café e me encaminhei para o consultório dela. O exterior do edifício onde ficava a Unidade de Reabilitação de Drogas e do Álcool parecia-se com o que abrigava nossa unidade. Mas o interior era outra história. O painel de mogno no saguão brilhava. As paredes pareciam ter sido recentemente pintadas. Um moderno lustre de latão pendia do medalhão do teto, não as lâmpadas fluorescentes que havia no nosso. Sem dúvida alguma, eles sabiam fazer as coisas direito.
Apertei o botão do elevador e esperei. Nada de estalidos e gemidos de maquinaria velha entrando em ação. Mal se podia ouvir um fraco murmúrio. Esperei. Apertei o botão de novo. Então apertei-o quatro vezes em seguida, com força, como se isso fizesse alguma diferença. Porém reassegurava a gente. Com todo dinheiro que haviam gasto na pintura e no lustre, o elevador não funcionava.
Segui a indicação da placa SAÍDA, cheguei a uma escada e subi os três andares. Havia um corrimão contínuo na parede externa. Do lado interno, onde a escada se encaracolava ao redor de uma entrada de ar no teto, havia uma seqüência ininterrupta de balaústres de madeira trabalhada, separados por um pequeno espaço, que subiam dos degraus ao teto. A proteção de madeira era uma prevenção para evitar que pacientes suicidas se atirassem do terceiro piso no térreo. O vão central da escadaria da nossa unidade também era protegido, só que por uma horrorosa série de barras de metal cinzento, como grades de cadeia.
Subi os degraus dois a dois, abri a porta do quarto piso e tentei orientar-me. Lá em cima o carpete era novo e, nas paredes, as arandelas de latão brilhavam. Não era de admirar que o elevador não tivesse atendido ao meu chamado. A porta estava sendo mantida aberta por um cesto de lixo. Alguém mais embaixo esmurrava a porta do elevador. Tirei o cesto e fiquei olhando a porta fechar-se silenciosamente.
Saí andando pelo corredor em que se alinhavam os consultórios. Uma placa a meio caminho indicava CHANNING TEMPLE. Todos os consultórios tinham portas duplas de carvalho separadas por um espaço que as tornava à prova de som. A porta externa estava aberta. Escutei. Nenhuma voz. Fosse o que fosse que houvesse retido Channing, estava sendo resolvido silenciosamente.
Bati na porta interior. Não houve resposta.
— Channing? — chamei, hesitante. Torci a maçaneta e entrei. — Você está aí?
Ouvi um som rascante, metálico, como um eco de um HÍstema de som. Fiquei gelado. Uma voz fina choramingou "Por favor, desligue e tente novamente. Se precisar de ajuda, ligue para a telefonista. Por favor, desligue agora. Isto é uma gravação".
Soltei o ar que retivera até então. O telefone estava fora do gancho. Olhei a sala espaçosa. A escrivaninha de Channing ficava à minha direita e diante de um par de janelas. A base do telefone achava-se sobre ela, ao lado de um computador laptop. Atravessei a sala e vi o receptor no chão. Recoloquei-o na base.
Pairava no ar um odor acre, metálico, como se algo estivesse queimando. O drive do laptop roncava.
Os cabelos da minha nuca se eriçaram quando mal percebi uma respiração alterada, rápida. Voltei-me devagar. Olívia estava de pé atrás de mim, encostada à parede, no canto oposto da sala. Entre o batom preto e a máscara negra nos olhos, ela parecia um guaxinim molhado no jeans e camiseta preta. Ela me olhava com as pupilas dilatadas.
Ao seu lado, parcialmente oculta pela porta aberta, Channing estava sentada numa cadeira de couro e teca em frente à escrivaninha. Seus olhos permaneciam fechados, e o cabelo loiro descia, macio e solto, pelo encosto vermelho da cadeira. No seu colo estava a piranha de madrepérola que usara para manter o cabelo preso.
Meu estômago deu uma reviravolta. Eu sabia que ela não estava dormindo e que apenas o encosto da cadeira era vermelho. O assento e a parte de trás eram de suave amarelo-manteiga.
— Kate?
Fiquei chocado ao ouvir o nome de minha mulher dito por mim mesmo. Eu olhava para Channing, porém via Kate caída, sobre uma poça de sangue, no piso do seu estúdio. Senti-me como se tivesse sido capturado pelo impiedoso brilho de uma lâmpada estroboscópica, e meu rosto se contraiu numa expressão de desespero. Morta, não. Por favor, meu Deus, de novo, não! Por que tenho que sempre chegar tarde?
Fiquei olhando minha mão aproximar-se do rosto de Channing como se os dedos, a faixa branca na beira das unhas, pertencessem a outra pessoa. A face dela estava fria, macia, a carne cedendo à pressão. Quis voltar para fora da sala, atrasar o relógio até o momento em que chegara à lanchonete e começar tudo de novo.
Recolhi a mão, e Channing inclinou-se de lado. Olívia gritou quando viu carne, osso e cérebro no encosto da cadeira.
Meu impulso era arrebentar tudo, acabar com o responsável por aquilo, do mesmo modo que espancara e quase matara o assassino da minha mulher. Olhei de Olívia para Channing, depois novamente para Olívia. Não havia ninguém ali que eu pudesse surrar.
Foi quando notei que Olívia tinha os dedos apertados ao redor do cano de um pequeno revólver prateado.
— Mamãe, eu não queria que isto acontecesse... — soluçou ela.
Apertava-se contra a parede, mas depois começou a escorregar e caiu de joelhos no chão, onde ficou com o corpo balançando.
— Oi, gente! — A voz de mulher vinha do corredor. — Channing? Tudo bem?
O sotaque era evidentemente inglês. Era Daphne, que entrou na sala e me viu.
— Oh, é você, Peter? Pensei ter ouvido... Paralisou-se ao ver Olívia e, em seguida, Channing.
— O que aconteceu? — perguntou.
Levou a mão trêmula à garganta e permaneceu de pé, rígida. Pareceu encolher e depois voltar ao normal.
— Channing! — o nome saiu como um grito estrangulado. Olívia emitiu uns ruídos indefiníveis e abaixou a cabeça.
— Você estava... — Daphne começou a perguntar para Olívia, porém se conteve e voltou-se para mim. — Olívia estava aqui quando isso aconteceu?
Precisei de alguns minutos para recuperar a voz.
— Não sei... Cheguei há um minuto.
— Oh, meu Deus!
— Ela e Channing iam encontrar-se comigo...
— Encontrar com você? — murmurou ela. Apoiou-se na mesa e procurou endireitar o corpo de Channing. — Já chamou a segurança?
— Ainda não.
Peguei o telefone. Daphne foi para perto de Olívia e ajoelhou-se ao lado dela.
— Livvy — disse com firmeza, pondo a mão no ombro da garota —, dê-me esse revólver.
Olívia encolheu-se. Balançou a cabeça e olhou para Daphne sem nenhuma expressão.
— Por favor, Olívia — insistiu Daphne, estendendo a outra mão.
Olívia pareceu encolher-se mais ainda. Disquei. O telefone tocou uma vez.
— Dê-me o revólver — repetiu Daphne, com voz contida. A moça olhou para a arma como se a visse pela primeira vez. Seus dedos tremeram ao redor do cano, e o revólver balançou.
O telefone tocou de novo.
Com o que pareceu-me uma extraordinária presença de espírito, Daphne tirou o suéter que vestia, enrolou-o na mão e segurou o revólver pela coronha. Com a outra mão, abriu os dedos de Olívia. Já de posse da arma, ela se pôs em pé, deu alguns passos à frente e colocou-a no chão, ao lado de Channing.
A segurança atendeu ao terceiro toque.
— Aqui é o dr. Zak — disse, e minha voz soou calma. — Estou no 407, na Unidade de Drogas e do Álcool. Houve... — Daphne tossiu e olhou-me expectante. — Houve um incidente. A dra. Channing Temple está morta. Chame a polícia — senti que minha voz se quebrava — e venha imediatamente para cá.
Desliguei antes que houvesse qualquer pergunta. Fechei os olhos, porém abri-os em seguida. O horror daquela sala era preferível à lembrança de Kate que me esmagava, a garganta dela cortada, o sangue que era sua vida empoçando no frio piso de cimento do seu estúdio.
— Estão vindo — anunciei.
Procurei dominar o tremor dos meus ombros e tentei me fixar no que havia no tampo da mesa — o telefone, o computador, uma bem arrumada pilha de pastas cor de púrpura, o metal brilhante do abridor de cartas com um elegante C em letra gótica no cabo, um peso de papéis de cristal com uma miniatura de flores de vidro no interior, uma caneca de porcelana vazia com o logotipo azul e branco da Acu-Med.
Um bip vindo do computador rompeu o silêncio. A cabeça de Olívia ergueu-se. Virei o laptop de modo a ficar de frente para nós. Grossas palavras em preto desenharam-se sobre o fundo vermelho brilhante: "Não posso mais viver comigo mesma. Perdoem-me".
Toquei no mouse. Instantaneamente a mensagem desapareceu, substituída por um fundo de céu azul com nuvens brancas e um retângulo com a mensagem Você tem um novo e-mail.
Veio um pesado som de passos do corredor. Um guarda da segurança entrou. O troncudo afro-americano tinha pendurados na cintura uma argola com o diâmetro de um punho cheia de chaves e um radiocomunicador que emitia sons de estática. Quando viu Channing, ele se aproximou dela a contragosto. Lidar com vítimas de tiro não é bem o padrão de ação do nosso pessoal de segurança. Tocou no pescoço dela.
Então, empunhou o rádio e falou nele. Peguei as palavras ambulância e polícia.
— Alguém tocou em alguma coisa? — perguntou.
— Eu usei o telefone — respondi.
O guarda relanceou os olhos por Olívia, depois ergueu as sobrancelhas para mim, à guisa de pergunta.
— É a filha da dra. Temple — esclareci.
— Pobre criança — murmurou ele. — Ela estava aqui quando...
— Não, não — apressou-se a responder Daphne. — Graças a Deus!
— Creio que devemos sair daqui e esperar — disse o segurança.
Daphne aproximou-se de Olívia e passou um braço pelos ombros dela, que procurou afastar-se.
— Venha... — disse Daphne. — Vamos sair daqui e esperar a polícia.
Ela falava com suavidade e acariciava a cabeça da garota, que tinha ós olhos secos, o rosto pálido, e estava em choque. Olhou para o corpo sem vida da mãe, depois para mim. Daphne ajudou-a a levantar-se e guiou-a pela sala. Olívia obedeceu, com as pernas rígidas. Segui-as para o corredor.
Poucos minutos depois ouvi o som de sirenes aproximando-se. Logo depois veio o som de passos na escada. O segurança foi encontrar-se com os dois policiais e meu velho amigo, o investigador sargento Joseph MacRae, quando surgiram no patamar. MacRae, cujo compacto e poderoso corpo faria mais sentido com jeans e camiseta, usava um terno marrom com as barras da calça já meio puídas junto aos tornozelos. Seu cabelo ruivo, cortado à escovinha, tinha alguns fios brancos a mais do que quando nos havíamos encontrado da última vez — quando então tínhamos desenvolvido relutante respeito um pelo outro. As cabeçadas que déramos no caso de Sylvia Jackson o haviam convencido de que as lembranças de uma vítima de traumatismo craniano podem não ser o que parecem. E ele me convencera de que nem todo tira é tão burro quanto parece. MacRae era o tipo do cara que eu preferia ter a meu favor a ter contra mim.
Ele me lançou um surpreso olhar de reconhecimento. Nossos olhos mantiveram-se presos por poucos segundos, e ele fez menção de um cumprimento com a cabeça antes de se dirigir para a porta. Daphne pôs-se diante dele, bloqueando-lhe o caminho. Mantinha-se rígida, com o rosto erguido.
— Foi suicídio — disse com firmeza, marcando as palavras. Ali estava de novo a velha dra. Smythe-Gooding, flagelo
dos residentes e dos administradores do Instituto.
— A dra. Temple atirou em si mesma — acrescentou. — Por favor, antes que o inferno se desencadeie aqui, prometa-me que irá tratar deste caso sem desnecessárias declarações à imprensa. A família dela e o Instituto agradeceriam por sua discrição.
Ela pegara MacRae desprevenido, e ele apresentou seu distintivo prateado.
— Investigador sargento Joseph MacRae. Claro, seguiremos os procedimentos policiais.
— Dis-cri-ção — Daphne pronunciou cada sílaba separadamente. — Certo?
— Certo — murmurou ele, com os dentes apertados.
Justo nesse momento houve um estrondo. Olívia não estava mais conosco no corredor. Mac empurrou Daphne de lado, e eu entrei na sala atrás dele. O ambiente se tornara frio, e o cheiro acre desaparecera. Através do vidro quebrado da janela, as luzes azuis da viatura policial pulsavam entre os galhos da árvore. Olívia estava sentada no chão, coberta de sangue. Respirava pesadamente, e seu rosto estava vermelho. Ela segurava um caco de vidro, e passou-o no lado de dentro de um braço, repetindo nele a outra longa e brilhante linha vermelha que fizera no outro.
— Olívia, não! — gritei.
Segurei-a pelo pulso e apertei. Ela soltou o vidro, e só quando gritou de dor é que percebi que a estava segurando com muito mais força do que a necessária para impedir que se machucasse. Tomei-a nos braços. Ela tremia e me olhava aterrorizada.
— Vamos levá-la para um lugar seguro — eu lhe disse. — Ninguém vai ferir você. Por favor, não lute contra mim, precisamos deter essa hemorragia.
— Leve-a para a internação, Peter — disse Daphne, e já fui andando. — Vou ligar para que alguém se encontre com você no hall de entrada — gritou ela atrás de mim.
— Espere aí... — começou MacRae.
Corri para o elevador e fiquei ali, em pé, ouvindo o som pesado da minha própria respiração, como contraponto à de Olívia, curta e rápida. MacRae nos alcançou.
— É a filha da dra. Temple — expliquei antes que ele perguntasse. Olívia amolecera em meus braços. — Ela já estava aqui quando cheguei. A dra. Temple já estava morta.
Era a verdade, estritamente falando.
— Precisamos conversar com ela — disse ele. —Você sabe disso.
A porta do elevador abriu-se. Entrei e voltei-me, ficando de frente para ele, que estava de boca aberta e um braço meio erguido, mas deixou que a porta se fechasse.
Um par de vigorosos enfermeiros esperava por mim no saguão, com uma maça. Coloquei Olívia sobre ela, e os enfermeiros a fixaram. Quando saímos do hall, um policial emergiu dos arbustos carregando o laptop de Channing. Compreendi então como a vidraça do consultório fora quebrada: Olívia jogara o computador nela.
O policial gritou. MacRae apareceu na janela, e o policial ergueu o computador. Aí foi Olívia que gritou e tentou sentar-se. Estava com os olhos arregalados, fixos no policial. Uma tira soltou-se. Um dos enfermeiros obrigou-a a deitar-se de novo, enquanto o outro afivelava a tira com segurança. Ela não podia com eles.
Olívia continuou gritando enquanto percorríamos os quatrocentos metros que separavam a Drogas e Álcool da Internação. Quando subimos a rampa e entramos, a voz dela estava rouca, e sua cabeça agitava-se de um lado para outro.
A enfermeira Dot O'Neill e a médica de plantão estavam à nossa espera. A enfermeira 0'Neill era uma figura formidável de idade indefinida, monolítica e aparentemente sem articulações. Examinou os cortes nos braços de Olívia e não pareceu impressionada. Inclinou-se sobre ela e segurou-a pelos ombros.
— Srta. Temple, precisa acalmar-se e relaxar — disse em voz baixa e tranqüila. — Vamos tratar dos ferimentos e tentar ajudá-la...
Olívia cuspiu nela.
Calmamente, a enfermeira limpou o rosto, mas lançou-me um olhar irritado. A médica de plantão fez que sim, e a enfermeira entrou na saleta dos médicos e logo saiu com uma seringa hipodérmica. Levantou a manga de Olívia, firmou-se e enfiou a agulha. Empurrou o embolo vagarosamente. Mesmo antes de a seringa ficar vazia, Olívia começou a amolecer. Em momentos seu rosto passou de vermelho para róseo. Ela parecia encolher à medida que seu corpo relaxava. As pálpebras estremeceram, e os olhos perderam o foco.
Liguei para a diretoria da Drogas e Álcool e consegui o telefone de Drew. Depois fiquei ali, parado, segurando o telefone junto à.orelha, sem conseguir discar. Os números que escrevera num bloquinho cor-de-rosa de recados pareciam misturar-se. Meus joelhos tremiam como se alguém tivesse dado uma pancada na parte de trás das minhas pernas. Sentei-me, com os ouvidos zunindo. Como aquilo pudera acontecer de novo? Uma outra mulher que eu queria bem, morta violentamente.
Mal percebi o ruído de discar desaparecer, ouvi outro rumor e a voz "Por favor, desligue e tente novamente...". Visualizei a porta do consultório de Channing se abrindo. Lá, sentada ereta na cadeira estofada de couro claro, estava minha mulher, Kate, olhando para mim, os olhos muito abertos. Alguma coisa no olhar dela fez algo romper-se dentro de mim.
Ralston Bridges havia armado uma cena que me apontava como o assassino da minha mulher. Será que estava acontecendo de novo? Alguém teria montado uma cena para que parecesse... Parecesse o quê? Que Channing havia se matado? Apenas Olívia e eu havíamos estado naquela sala? E, como eu, ela chegara tarde demais.
Quando olhei para o papel de novo o telefone de Drew estava perfeitamente em foco. Disquei os números. A assistente dele atendeu e pediu-me que esperasse.
Enquanto mantinha o telefone na orelha senti cheiro de café. Farejei o ar. Era a minha mão. Olhei para baixo. Havia sangue na minha camisa, na minha calça. Meu estômago virou. Onde eu arranjara o cheiro de café? Não me lembrava de ter respingado nem um pouco em mim enquanto esperava por Channing na lanchonete. Devia ter sido em algum lugar do consultório dela.
A assistente de Drew voltou ao telefone.
— Sinto muito, ele não está aqui.
Prometeu-me que entraria em contato com ele pelo pager pedindo-lhe que retornasse a minha ligação.
Passou-se meia hora até Drew me ligar. Desculpando-se, disse que seu bip estava com defeito. Contei-lhe o que acontecera e ele não disse nada. Apenas que estava a caminho, e agradeceu-me por ter cuidado de Olívia.
Eu esperava nos degraus de entrada quando ele chegou com seu Mercedes prata e estacionou perto do prédio. Parecia cansado, o terno escuro estava amarrotado, e a gravata de seda azul-gelo, solta no colarinho. Os olhos congestionados brilhavam, parecendo levemente maníacos. Isso acontece nas primeiras poucas horas de um grande choque. Você assimila a substância química que o organismo produz para mantê-lo anestesiado e funcional, deixando-o despreparado para a violenta onda de dor que mais tarde o esmagará. E, então, mesmo meses depois, um pequeno detalhe, às vezes um odor, bastará para lançá-lo no desespero.
— Sinto muito — falei.
Apertei a mão de Temple e coloquei a outra em seu ombro. O que mais havia para dizer?
— Ela sofreu? — perguntou Drew.
Ele cheirava a quem não tomara banho, um odor almiscarado com leve resquício de colônia pós-barba. Pelo menos aquilo eu podia responder com certeza:
— Não.
Drew distanciou-se de mim.
— Ela deixou algum bilhete? Algo que explique...
Ele estava terrível, as maxilas pareciam desencaixadas do lugar.
Contei-lhe da mensagem que aparecera no monitor do laptop.
— Não posso mais viver comigo mesma? Perdoem-me? — ecoou Drew, incrédulo. — Só isso?
— Não vi nada mais.
— Mas não explica nada. — Ele piscou, levou a mão à boca. — Não posso acreditar...
— Será que ela não estava sob pressão demais? Drew fitou-me, o rosto parecia de pedra.
— Ela era geniosa, Peter, não era uma suicida.
— Olívia estava lá — disse-lhe, e o rosto dele desabou.
— Não ficou claro quando ela chegou e o que viu — acrescentei com suavidade.
Ele permaneceu parado, olhando para o prédio, os braços soltos dos lados do corpo.
— Olívia está lá dentro?
Um telefone celular tocou. Depois, de novo. Foi só no terceiro toque que Drew estremeceu, tirou-o do bolso e atendeu. Uma expressão angustiada desenhou-se no rosto dele enquanto ouvia. Distanciou-se mais de mim e cobriu o telefone com a mão.
— Não posso falar agora — disse, impaciente. Uma pausa. — Ela morreu, está bem? — Suspirou. — Não sei. Telefono mis tarde. — Depois um macio e gentil: — Prometo.
Voltou-se. Parecia confuso, como se não soubesse o que fazer a seguir.
— Gostaria de ver Olívia? — sugeri. Ele assentiu, agradecido.
— Ela está bem?
Passei a língua pelos lábios.
— Não, não está.
— Ela tentou... — começou Drew.
— Foi bem atendida, sossegue. Atirou um computador pela janela e cortou-se com um caco de vidro. Agora está sendo avaliada.
Drew começou a subir a escada, e eu o acompanhei. Dot O'Neill achava-se na recepção.
— Eu gostaria de ver minha filha — disse Drew.
— É o pai de Olívia Temple — esclareci. A enfermeira indicou o corredor:
— Cento e doze.
Drew foi andando à minha frente. Abriu a porta do quarto e deu um passo para dentro antes de se imobilizar. Uma enfermeira e dois médicos preenchiam o espaço reduzido. Olívia estava na cama. Seus braços haviam sido enfaixados, e os olhos achavam-se entreabertos. A enfermeira colhia sangue, enquanto o mais jovem dos médicos auscultava a paciente.
— Ela foi sedada — expliquei a Drew.
— Pelo amor de Deus! — explodiu ele. — É apenas uma criança!
— Ela tentou se matar — disse o médico mais velho, escrevendo na ficha. Olhou para Drew. — O senhor é o pai da moça?
Temple engoliu seco.
— Sou.
— Conseguimos estabilizá-la. Pulsação rápida, pupilas dilatadas, pressão do sangue alta, suor frio. — O doutor inclinou a cabeça de lado, observando Drew. — O senhor sabe se sua filha está usando drogas ou tomando algum remédio sob orientação médica? Por exemplo, pílulas para emagrecer?
Drew pareceu perdido.
— Nada que eu saiba. O senhor conhece os jovens...
O médico assentiu e esperou um instante antes de dizer:
— Sr. Temple, encontramos cerca de meia dúzia de comprimidos de Ritalin no bolso dela.
— Ritalin? — Drew parecia genuinamente surpreso. — Creio que é indicado para jovens hiperativos.
— Drew, será que a psiquiatra dela não receitou esse remédio? — perguntei.
— Se o fez, nada sei a respeito, e acho que minha mulher também não.
O médico acrescentou:
— A paciente tinha também cerca de seis amostras grátis... Ritalin, Ativan e Prozac. — Fez mais algumas anotações na ficha. — Ainda não temos o resultado do exame de sangue, mas parece-me que ela deve ser internada na Unidade de Reabilitação de Drogas e do Álcool.
Dominei-me para não explodir. Eu havia explicado a situação quando internara Olívia. Será que não podiam comunicar-se entre si para ficarem a par das circunstâncias? Tratei de engolir a irritação.
— Não podemos fazer isso — disse, contido. — A mãe dela dirigia esta unidade e acaba de morrer. Não pode interná-la na Unidade de Neuropsiquiatria?
— Neuropsiquatria? — estranhou Drew.
— De qualquer modo teremos que avaliá-la — fiz uma pausa —, para verificar a presença ou não da síndrome de Asperger.
Eu estava improvisando. Olívia não precisaria ser internada para verificarmos se sofria ou não da síndrome, mas essa era a espécie de palavreado que precisávamos usar.
— Acontece que ela fez uma séria tentativa de suicídio e convém que fique num lugar seguro, onde se possa dar-lhe o apoio e ajuda de que precisa — acrescentei. — Ela pode ser colocada sob os cuidados do dr. Kwan Liu.
— Depressão suicida. Descartada a Asperger. — O médico escrevia as palavras que dizia. Então, lançou-me um olhar interrogativo. — Pelo menos, é no que acredito. Mas se é o que a família quer, dadas as circunstâncias...
Drew não conseguia falar. Por fim conseguiu dizer-me:
— O que você achar melhor... — a voz dele falhou. — Posso falar com ela?
— Pode tentar — respondeu o médico. — Ela está pesadamente sedada.
Drew puxou uma cadeira para perto da cama. Passou suavemente a mão pelo rosto da garota, colocando para trás alguns fios de cabelo que haviam caído sobre a face. Inclinou-se para bem perto dela e sussurrou:
— Olívia? Você está me ouvindo? Não houve resposta.
Ele sacudiu a cabeça.
— Oh, Livvy. Sinto tanto tudo isso ter acontecido! — Sua voz quebrou-se de novo, ele cobriu o próprio rosto com as mãos e estremeceu. — Tudo vai ficar bem, pequena. — Tirou um lenço de um bolso e assoou o nariz. — Tudo vai ficar bem — repetiu através do lenço.
Coloquei a mão no ombro dele.
— Precisa de alguma coisa? — perguntei. — Quer que eu ligue para alguém?
Ele sacudiu a cabeça. Deixei-o sentado ao lado da filha.
Caminhei pelo jardim do Instituto sem prestar atenção a ninguém e a nada que não fosse a raiva e a incredulidade que se avolumavam no meu íntimo. Eu não conseguia parar de pensar em por que aquilo estava acontecendo. Se Channing não tivesse ido à aula na Escola de Medicina na semana anterior, quem a teria encontrado?
Quando cheguei ao meu edifício dei uma olhada nos canteiros que rodeavam a Unidade de Reabilitação de Drogas e do Álcool. As luzes de emergência das viaturas piscavam — azuis as da polícia, vermelhas e brancas as da ambulância. Arrepiei-me quando dois homens de branco saíram do prédio carregando o que parecia ser um saco de cadáver. Fora daquele jeito que eles haviam levado Kate embora da nossa casa. Ralston Bridges saíra de maça, e Kate no saco de plástico preto. Eu quase o matara depois de subir a escada, tarde demais, para descobrir que ela se fora, com a garganta cortada. Bati nele com uma vareta de ferro que encontrei na mesa de trabalho de Kate, depois o chutei sem parar. Se não fosse a minha mãe eu continuaria a chutá-lo mesmo depois de morto.
Voltei-me e abri caminho entre os curiosos que estavam parados nos degraus.
— Sabe o que aconteceu? — perguntou-me uma mulher quando passei por ela.
Como eu não confiava em mim para falar, apenas fiz que não com a cabeça. Eles saberiam de tudo, cedo ou tarde.
Subi a escada. Queria ir para a minha sala, fechar a porta e ficar sozinho. Mas encontrei Daphne no hall esperando por mim, andando de um lado para outro. Estava pálida, com os olhos vermelhos.
— Como está Livvy? — perguntou.
Reencontrei minha voz.
— Estabilizada. Drew está com ela.
Abri a porta do meu consultório e entrei depois dela. Apesar da sala estar aquecida, Daphne estremeceu ao sentar-se e segurou a barra do suéter com uma das mãos.
— É tudo tão horrível... — disse. — Malditamente horrível. Remexeu num bolso da blusa e pegou um maço de cigarros.
— Você se importa?
Com mão trêmula, tirou um cigarro do maço. Fui para trás da minha mesa e, curvando-me para não bater a cabeça no teto inclinado, abri um pouco a janela antes de me sentar.
Daphne colocou o cigarro entre os lábios, pegou um isqueiro e acendeu-o. A ponta do cigarro balançou, depois tornou-se vermelha quando ela tragou a fumaça. Prendeu a respiração e fechou os olhos, depois exalou suavemente. Aquele era o mesmo efeito que o calmante fizera em Olívia: tranqüilidade instantânea.
— Não foi Olívia — disse Daphne.
— Ela estava segurando o revólver — retruquei.
— Asneira. — A palavra explodiu num puf de fumaça. — Tem de haver outra explicação.
Ela tornou a tragar profundamente e tossiu. Empurrei uma caneca vazia para perto dela.
— Como qual?
— Parece perfeitamente óbvio. Channing se matou. Olívia chegou, encontrou-a. Por algum motivo, pegou o revólver. Nós a encontramos segurando-o pelo cano.
A minha vontade era gritar "Channing jamais se mataria!". Não era possível. Mas métodos de pesquisas inferiores e comportamentos impróprios eram igualmente impossíveis. A explicação de Daphne dava mais importância à cena com que eu me deparara.
— Você acha, mesmo, que Channing cometeu suicídio?
— perguntei, mantendo expressão neutra. Daphne fitou-me.
— Ela lhe pareceu perturbada? — insisti.
— Conversamos ontem... — Daphne olhou para o cigarro. — Eu estava envolvida com meus próprios problemas. Estou para mudar de casa para um flat, agora isto...
— Agitou o cigarro deixando um rastro de fumaça no ar.
— É o tipo da coisa com que Robert sabia lidar... — O rosto dela endureceu, porém uma lágrima desceu pela face.
— Claro, se Robert ainda estivesse conosco eu não estaria mudando.
Parou de falar de repente, como que embaraçada pela estridência da própria voz.
— Sinto muito... — murmurei, certo de que se havia outra coisa para dizer eu não sabia o que era.
— Quando Robert morreu, eu me senti como se tivesse perdido um dos meus braços — continuou Daphne. — Agora perdi o outro. — A fumaça subiu para o teto. — Eu deveria ter visto a coisa começando. Se tivesse prestado atenção...
— Ver o que começando?
— Você não passou muito tempo com ela ultimamente, não é, Peter? — Não era uma acusação. — Channing era muito boa em fazer o mundo pensar que tudo ia maravilhosamente. Mas abaixo da superfície tudo... Bem, ela estava em crise. A pressão do trabalho. O que eles fizeram no JAMA com sua pesquisa... foi um choque profundo para ela. Olívia possivelmente caminhava para uma crise psicológica. Drew... — Daphne deixou o nome suspenso no ar por instantes. — Ela pediu-me que lhe receitasse Ativan para acalmar os nervos.
Era típico de Channing. Ela poderia facilmente ter receitado para si mesma, mas consultar outra médica era mais correto.
— Uma porção de gente precisa de ajuda uma vez na vida — observei.
— Mas Channing? Para pedir um sedativo? Concordei.
— Ela devia estar bastante perturbada.
— Era claro que estava — afirmou Daphne. — E talvez estivesse tomando mais remédio do que deveria.
Às vezes nos referíamos ao Ativan como "pileque desidratado" porque ele afeta as mesmas áreas do cérebro que o álcool, eliminando as inibições. Entregar um copo de conhaque a um colega, de fato, parecia fora de lugar. Um sedativo poderia ter transformado Channing em suicida? Uma semana antes eu teria descartado diretamente tal possibilidade. Agora não tinha tanta certeza. Ela se achava sob tremenda pressão. A filha estava perturbada. Acrescente a isso os boatos de inexatidão. Imaginei que a hesitação que percebera nela quando nos falamos depois da aula provavelmente nada tinha a ver comigo e minha perda.
— Channing... — Daphne pareceu suspirar o nome; largou o suéter e inclinou-se para trás. — Ela era notável, mesmo quando residente. Brilhante. Intuitiva. Honesta num deslize... — Deu uma risada. — Ela iria rir se me ouvisse dizendo isto. "Não se pode ser honesto num deslize, Daphne, os termos são contraditórios" — disse Daphne com a voz aplainada pelo sotaque americano. — Sempre foi uma excelente psiquiatra, e não sei de ninguém que possa dizer o contrário. Seus pacientes vão ficar arrasados. Principalmente... Oh, Deus! — Deu uma última tragada e jogou a ponta do cigarro dentro da caneca. — Fico pensando...
— No quê?
— Channing estava trabalhando com uma jovem. Suicida. Ela me falou nisso, estava com medo de perder a perspectiva. — Daphne fitou um ponto qualquer no ar, entre nós dois. — Ela tinha uma forte afinidade por essa mulher. Mas isso fez vir a tona uma porção de problemas. Problemas que pensei que houvessem sido enterrados anos atrás.
Essas palavras acabaram tornando o suicídio um pouco mais plausível.
— Está sugerindo que Channing se tornou íntima demais da paciente? — perguntei.
As sobrancelhas de Daphne ergueram-se.
—Estou?
— Ela conversou com você sobre o caso?
Ela começou a tirar bolinhas marrons da manga do suéter.
— Bem, apenas em termos gerais.
Talvez não quisesse acrescentar mais uma violação de limite à pilha de verdadeiras e falsas transgressões das quais Channing não podia mais se defender.
— Peter — acrescentou —, eu sempre tive uma relação supervisora com Channing. Ela era escrupulosamente discreta e não tenho idéia de quem é a paciente. Mas não posso deixar de imaginar se não estaria experimentando os efeitos de uma identificação projetada.
Identificação projetada. Era um conceito que sempre recusei como sendo forçado — até que aconteceu comigo. Eu estava trabalhando com um paciente que era obsessivo em relação a germes. Ele usava luvas de borracha o tempo todo e não suportava que o tocassem. Todas as noites fervia as maçanetas das portas do seu apartamento. Eu o via duas vezes por semana, e de repente descobri-me esfregando as mãos, limpando-as na calça, incapaz de me livrar da sensação de que estavam sujas. Tenho certeza de que o estresse a que fui submetido me tornara mais suscetível na época — Kate morrera havia apenas alguns meses.
É o que alguns terapeutas chamam de sentir-se "perdido em lugares familiares": você se encontra enredado nos sentimentos do seu paciente, mesmo quando sabe que nada tem a ver com eles. Se eu fosse meu próprio terapeuta, poderia ter explicado isso — diria que algo na necessidade de lavar as mãos estava ligado com a sensação de culpa que eu não era capaz de afastar, do mesmo modo que não podia livrar-me da visão do sangue de Kate no chão do estúdio. Parece muito lógico agora que me encontro a uma boa distância para examinar a situação. Na ocasião, nada havia de lógico.
Channing estava na idade em que sua mãe cometera suicídio, se eu bem me lembrava. Se ela se identificava com uma paciente suicida, então talvez o estresse combinado com efeitos do sedativo estivesse alterando seu julgamento e reduzindo a resistência à sugestão. Imaginei se a autópsia iria encontrar níveis de Ativan mais do que terapêuticos.
Tudo apontava para suicídio. Eu podia mastigar longamente a possibilidade, avaliar todos os fatores contribuintes, mas não conseguia obrigar-me a engolir.
— Digamos que ela fosse uma suicida — ponderei. — Por que escolher este momento em particular para se matar, quando sabia que Olívia estava prestes a chegar ao seu consultório?
— Confesso que não sei explicar.
Daphne enrolou um pouco da barra do suéter entre o polegar e o indicador.
Eu também tinha como explicar. Não podia aceitar. Channing jamais deixaria que a filha a encontrasse, como ela encontrara a mãe.
— Por mais experiência que eu tenha do comportamento humano — confessou Daphne —, há momentos como este em que me encontro perdida, impossibilitada de explicar.
Ficamos ali sentados, em silêncio. Eu estava perdendo o prazo para apresentar um orçamento que levara uma hora preparando, no dia anterior. Mas naquele momento isso me parecia sem importância. Acendi o abajur da mesa. O estreito facho de luz apenas intensificou a penumbra que nos rodeava.
— Olívia foi internada? — perguntou Daphne.
— Na Unidade de Neuropsiquiatria.
— De neuropsiquiatria? — estranhou ela.
Estava certa, havia melhores escolhas: a Unidade Adolescente ou a de Desordens Afetivas. Eu não quis admitir que não pensara em nenhuma delas. Channing me pedira que tomasse conta de Olívia, e era o que eu ia fazer.
— Não podíamos interná-la na Unidade de Reabilitação de Drogas e do Álcool — argumentei.
— Mas...
Pareceu-me ouvir a voz de Channing. Quero uma outra opinião. Ela fora categórica. No meio da crise Olívia se afastara de Daphne. Eu estava convencido de que fizera a coisa certa, só não conseguia defender esse ponto.
— Eu sei que você estava trabalhando com ela — interrompi, com delicadeza. — Channing me disse quando me pediu que avaliasse Olívia.
— Ela nunca me contou que procurou você para uma opinião.
Daphne parecia surpreendida, magoada.
— Para verificar a presença da síndrome de Asperger.
— De Asperger, bosta nenhuma! — reagiu ela.
— Duvido que Olívia tenha a Asperger — concordei. — Mas desconfio que esteja com algumas dificuldades menos sérias, porém relacionadas.
Havia uma porção de indícios de que Olívia estivesse tendo problemas emocionais relativos. As mudanças de humor. A atitude indiferente. O modo pelo qual utilizava uma aparência estranha para manter as pessoas afastadas. As amizades que fizera por computador.
— Julgando pelas ações dela, Olívia é uma suicida e precisa ser vigiada. Estava com drogas nos bolsos quando foi internada. Você receitou-lhe alguma coisa?
— Estávamos tentando Ritalin com ela — respondeu Daphne.
— Drew me disse que não sabia que ela estava tomando Ritalin.
— Talvez Channing não lhe tenha dito. Tínhamos começado a usá-lo.
— E estava ajudando?
— Estava. Acho que a ajudava a manter-se em foco. Esse é um dos problemas de Olívia, sabe? É facilmente impressionável. Falta-lhe estrutura.
— Percebi que ela faz listas — comentei. Daphne sorriu.
— A meu conselho: estratégia de fazer e copiar listas para mantê-la atenta ao que precisa fazer.
Imaginei se Daphne tinha visto as longas listas de Olívia nas quais grandes e pequenas atividades, importantes e sem importância, tarefas diárias e esporádicas estavam misturadas. Era uma estrutura, sim. Uma estrutura linear. E se eu fosse Olívia, uma só daquelas listas faria com que os dias me parecessem cada vez mais intimidantes. Imaginei se Daphne tinha a exata medida do estado de sua paciente. A essa altura comecei a suspeitar de que ela estivesse tentando forçar Olívia a se adaptar a um molde preconcebido. Porém, ainda não tinha informações suficientes sobre a garota para ter certeza.
— E claro — disse eu — que vamos consultar você sobre o tratamento dela, assim que Olívia estiver consciente e eu tenha permissão para discutir seu caso com você.
A boca de Daphne abriu-se e, em seguida, o seu olhar endureceu.
— Você vai me dizer o que posso fazer para ajudar.
A última coisa que eu queria era entrar num cabo-de-guerra sobre o tratamento de Olívia.
— Sem dúvida. Assim que ela se tornar estável.
— E a polícia? — quis saber Daphne.
— Vamos tentar mantê-la o mais distante possível.
— Eles pensam que foi suicídio. Eu lhes disse que o revólver estava caído ao lado da cadeira quando chegamos lá. Você vai dizer a mesma coisa, não é?
Não respondi.
— Pelo bem de Olívia — acrescentou ela.
Eu me senti pouco à vontade. Obrigado a escolher entre Olívia ter matado a mãe ou Channing ter se matado, não concordava com nenhuma das duas hipóteses. Mas aonde isso me levaria?
Depois que Daphne saiu meu telefone tocou. Era Arnold Destler, o diretor do Instituto. Aquilo não era comum. O que me surpreendeu foi ele ter telefonado pessoalmente — em geral era sua assistente que fazia a ligação e deixava você esperando até que Destler resolvesse dar-lhe a honra de pegar o telefone.
— Peter, quero lembrar-lhe do protocolo nessas situações... "Nessas situações"? Ele falava como se a morte violenta de uma psiquiatra fosse um acontecimento rotineiro.
— Caso a imprensa o procure, passe-a para os cuidados do Relações-Públicas.
Segurei o telefone longe da minha orelha. Será que o administrador iria dar-se ao trabalho de telefonar para saber se eu estava bem? Para perguntar como ia indo a filha de Channing? Sua principal preocupação era evidente: como lidar com as notícias sem prejudicar a reputação do Instituto.
— É uma vergonha que isso tenha acontecido dentro do Instituto — comentou ele.
— Tenho certeza de que a filha e o marido de Channing partilham da sua tristeza, Destler.
— Eu não quis parecer empedernido. Independente de onde aconteceu, é uma tragédia terrível, claro.
— Claro.
— Ninguém mais irá sentir tanto falta dos... das intuições da dra. Temple quanto eu.
Uma pinóia que ele ia! As chamadas intuições de Channing eram um entrave perene às finalidades de Destler. Ela via os tratamentos dirigidos do mesmo modo que Dante via o inferno, no qual os administradores permaneciam em cima, atormentando a todos nós. Desobediência civil era a única resposta. Ela não hesitava em perder documentos, até mesmo extraviar um paciente ocasional, apenas para não ter de mandá-lo embora quando ainda havia necessidade de cuidados mas o seguro-saúde deixava de cobrir a internação.
— Só para saber, você estava lá, não é? — perguntou-me.
— Eu a encontrei.
— E falou com a polícia.
— Claro que falei.
— E deu a impressão de que era...
— De que era o quê? Ele pigarreou.
— Suicídio?
Do ponto de vista de Destler suicídio era melhor veredicto do que acidente. Nenhuma ligação com o Instituto. Nenhuma possibilidade de ação judicial. Muito melhor do que assassinato, com todas as infindáveis especulações e publicidade prejudicial que o acompanham.
— Ora, me dê um tempo — respondi e desliguei.
Dormi mal naquela noite. Às cinco horas estava acordado, lidando com a cafeteira. Devo ter cochilado sentado à mesa da cozinha, porque acordei sobressaltado com a voz de Channing incentivando-me: "Corra, corra, corra...". Percebi, então, que era o som da água fervendo na cafeteira.
Corra. Era o que Channing sempre fazia quando queria esclarecer as idéias. Quando nos conhecemos, ela era uma fanática pela perfeição corporal, e eu podia ser considerado um Charles Atlas "antes" dos exercícios. Mas quando me formei no colegial, corria com ela todos os dias ao amanhecer, e já era quase capaz de correr e conversar ao mesmo tempo.
Depois disso, continuei correndo no inverno, quando não podia ir remar no rio. E depois que Kate morreu tornou-se uma compulsão. Durante uma hora por dia meu corpo ficava ocupado.
Vesti um abrigo, peguei meu aparelho de CD portátil e saí. Estava fechando a porta quando minha mãe abriu a dela e olhou para mim. Ela mora na casa ao lado, que Kate e eu compramos junto com a nossa logo depois de nos casarmos. Meus pais mudaram para lá assim que meu pai ficou doente. Ele morreu um ano depois.
Minha mãe estava com seu roupão felpudo cor-de-rosa, os cabelos brancos cobertos por um lenço de seda. Parecia cansada e preocupada. Eu sabia que não era apenas por ser muito cedo. Nós dois quase sempre acordamos antes dos passarinhos.
— Vi no jornal... — disse ela. — Não é aquela doutora sua amiga?
— Eu a encontrei — respondi, e minha mãe ofegou. — A filha dela também estava lá.
— Filha?
— Dezessete anos.
Minha mãe fechou os olhos.
— Essas coisas não deveriam acontecer. — Então, fitou-me. — Está cuidando da menina?
— Estou, sim.
— Bom — assentiu mamãe, e desapareceu dentro da sua casa.
Corri até o rio. Logo depois corria na avenida à margem dele. Empenhava-me olhando um silencioso pé, em seguida o outro, bater no chão, com o CD de Richard Thompson tocando nos meus ouvidos. O rio era uma larga faixa cinzenta, sem uma ruga sequer. Nada mais do que uma sutil silhueta sugeria que a Torre Hancock estava do lado de Boston do rio. A bruma umedecia meu rosto.
Mal havia corrido um quilômetro e meio já sentia vapor saindo do meu corpo e se insinuando no pesado abrigo. O suor descia sobre meus olhos, então passei o braço na testa. O desconforto físico pode ser muito útil para fazer você sentir-se seguro e consciente do momento.
Era o que eu queria. O hoje físico e nada mais. Tentava estar ali, sincronizando meus passos com o ritmo da música para sentir os pés batendo no solo e o choque subindo pela minha canela, depois dos joelhos para os quadris. Tirei o blusão e amarrei-o na cintura, ansiando por mais cinco minutos, quando eu inteiro estaria pensando no meu corpo e no esforço que precisava ser feito para seguir adiante. Podia ouvir a voz paciente de Channing: "Fale comigo, assim saberei que você está respirando".
Mas em vez de me ancorar no presente, encontrei-me recordando o telefonema que dera a Drew na noite anterior. Primeiro, ele perguntara sobre Olívia. Sua fala estava como que pastosa, uma palavra emendada na outra. Provavelmente estivera bebendo. Respondi que sua filha achava-se estável, porém ainda sedada.
Ele perguntou se eu sabia quando o corpo de Channing seria liberado, para que pudesse organizar a cremação e o funeral. Eu não tinha idéia, mas ofereci-me para me informar e telefonar-lhe depois. As logísticas da morte são uma coisa maravilhosa — proporcionam um ritmo, uma força de movimento que mantêm você funcionando durante aqueles primeiros horrendos dias. Fazem o corpo e o cérebro irem em frente quando tudo que o espírito quer é capotar e render-se.
— Como ela estava? — perguntara Drew. — O rosto dela... Parecia assustada?
Eu não queria que minha mente regredisse, que me fizesse lembrar, mas fechara os olhos e tentara.
— Não — respondera, honestamente. — Ela parecia em paz. Dormindo, mesmo.
Drew dera um suspiro cansado.
— Graças a Deus por isso, pelo menos.
Eu perguntara a ele se havia jantado, mas Drew ignorara a pergunta. A pior parte, dissera, era estar só. Até a governanta, abalada pela dor, fora para a casa da sua família. — Mas ficarei bem — garantira ele. — Vou dormir no escritório de Channing. Ela está lá, sabe? Os livros dela, seus escritos, seu cheiro.
Eu pudera então visualizá-lo no sofá, enrodilhado como um menino sob um cobertor.
— A culpa é minha — continuara Drew, e assoara ruidosamente o nariz. — Estava tendo um caso — acrescentara, rápido. — Não significava nada.
Esse era o problema com o suicídio. Todo mundo queria assumir o crédito, assumir a culpa. Daphne se culpava por não haver prestado atenção. Olívia tinha dito que tudo era culpa dela. E Drew fizera a mesma coisa.
— Você deveria consultar o seu médico — eu aconselhara. — Não seja estóico. Deixe que ele lhe receite algo que lhe dê apoio para os primeiros momentos, que são os piores.
— Já telefonei para ele, mas só tem hora para depois de amanhã.
— Vá devagar com a bebida, Drew. Você está deprimido, e o álcool deprime ainda mais.
— E tudo que tenho — respondera ele.
Muitos psiquiatras têm um armário de banheiro cheio de amostras grátis deixadas por generosos propagandistas de laboratório. Mas Channing, não. Era um lado da medicina que a enfurecia, um outro exemplo do incestuoso relacionamento das empresas farmacêuticas com os médicos.
Foi quando me lembrara: Daphne dissera que Channing estava tomando Ativan. Tratara, então, de descrever para Drew como eram as pílulas.
— Não sou médico — apressara-me a esclarecer —, não posso dizer-lhe que tome esse remédio, mas sim que um ou dois comprimidos de vinte e cinco miligramas provavelmente ajudarão, e os efeitos colaterais serão mínimos. Mas não o tome agora. Espere até amanhã "de manhã, depois de ter dormido.
Naquela manhã eu não conseguia tirar Drew da cabeça. Sempre pensara que o casamento deles dois fosse bom. Talvez não cheio de entusiasmo, porém sólido. Aí, veio-me à cabeça a imagem da jovem mulher de cabelos negros com terninho de tom pastel que estava na festa de Channing.
Com certeza ela não sabia de nada. Poderia não conseguir encerrar o caso, no entanto jamais toleraria, na festa do seu aniversário, a presença da mulher que tinha um relacionamento amoroso com seu marido.
A essa altura eu já me aproximava do Clube de Remo. Meu corpo era uma confusão de dores se ajustando, os músculos deslizando lentos sobre os ossos, as articulações gemendo. Pendurei os fones de ouvido no pescoço. Minha respiração quente se acumulava na concavidade do meu peito. Mesmo sem música, as palavras Richard Thompson continuavam ecoando nos meus ouvidos "O seu fantasma vive na minha cabeça...".
Aproximei-me da ponte Harvard e forcei as pernas doloridas, sentindo por fim as endorfinas aparecerem e começarem a expulsar a dor. Tornei a colocar os fones nos ouvidos e aumentei o volume, procurando encher minha cabeça de som para esvaziar a mente. Atravessei a ponte utilizando força viva e, sem esforço, percorri a inclinada espiral em direção à margem de Boston.
Quando eu perguntara a Drew se Channing ficara deprimida por causa do artigo no JAMA, ele rira.
— Deprimida coisa nenhuma! Ficou é puta da vida. Cheia de energia. Estava planejando responder. Eu disse a ela que seria como lutar contra moinhos de vento, mas ela não ligou. Ia enfrentar as empresas farmacêuticas e mais quem quer que a desafiasse. Por isso tratou de se preparar para a luta.
Para mim aquilo não parecia atitude de um suicida.
Quando cheguei ao trabalho, procurei por Glória.
— Não sei dizer — respondeu ela quando perguntei como ia Olívia. — Em choque ou está querendo nos manter por fora.
— Ela comeu?
— Não muito.
Fui ao quarto de Olívia. A porta estava encostada. Bati.
— Olá... — disse. E depois, mais alto: — Olívia? Nada de resposta. Empurrei a porta e enfiei a cabeça para
dentro do quarto.
— Bom dia.
Havia uma pequena mala sobre a mesa, aberta mas com tudo ainda dentro. A porta do banheiro achava-se entreaberta, e a garota não estava à vista.
Fui dar uma espiada na área comum. Matthew Farrell estava sentado ao piano de ébano tocando uma dura versão de The Entertainer. O sr. Fleegle encontrava-se sentado numa poltrona e acompanhando o ritmo, qualquer que ele fosse, com um pé. A televisão, na parede no outro extremo da grande sala, dava a previsão do tempo para os dois únicos e distraídos ocupantes.
Voltei para a sala das enfermeiras e anunciei:
— Ela não está lá.
Glória lançou-me um olhar piedoso.
— Olhe melhor. Ela está lá, sim. Acabei de verificar, há um minuto.
— Então ficou invisível.
— Deu uma espiada no armário?
— Ah, claro, o armário. Como não pensei nisso?
— Estava dentro dele quando estive lá.
Voltei ao quarto. Num canto havia um guarda-roupa alto e estreito. Bati à porta e abri-a devagar. Olívia estava lá dentro, encolhida num canto, os joelhos colados ao peito, com o rosto virado para outro lado.
Agachei-me ao lado dela. Seu antebraço achava-se enfaixado, e o corpo estava rígido, cada músculo empenhado em transformá-la numa bola. Havia roupas amassadas no chão.
— Olívia — eu disse, suave.
Ela não respondeu.
— Vi que seu pai lhe trouxe roupas. Quer que eu a ajude a guardá-las?
Ainda nada.
Eu sabia que ordenar-lhe que saísse do guarda-roupa serviria apenas para que se encolhesse ainda mais. Pensei por um momento.
— Está bom aí? — perguntei.
A cabeça dela estremeceu de leve.
— Está bom aí? — insisti.
Devagar, ela ergueu a cabeça e virou o rosto para mim. Seus olhos estavam vermelhos, a pele branquíssima em contraste com o cabelo negro. Olhava-me como se eu tivesse duas cabeças, mas sacudiu rigidamente os ombros.
— Posso experimentar? — pedi.
A sombra de um sorriso ergueu quase imperceptivelmente os cantos de seus lábios. Encorajado, continuei:
— Acho que não há lugar para nós dois aí dentro. Por que não sai e me deixa entrar um pouco?
Ela me fitava, avaliando-me. Por fim, estendeu um pé inseguro e em seguida saiu do guarda-roupa. Ficou parada ao lado, com os braços cruzados.
Entrei no guarda-roupa e, flexionando as pernas, mal consegui enfiar a cabeça também. Sentia-me como um pé tamanho quarenta e quatro num sapato quarenta e dois.
— Será que funciona melhor com a porta fechada? — gemi.
Ela fez que sim.
— Bem, então, vamos em frente. Vamos tentar.
Ela teve de empurrar a porta com força para fechá-la. Fiquei ali, inalando pó de madeira se desintegrando, sentindo as paredes do armário fecharem-se sobre mim, estreitas faixas de luz esgueirando-se pelas fendas da porta. Ainda bem que jamais tive problemas de claustrofobia. Assim mesmo fiquei aliviado quando ela abriu a porta e fitou-me.
— Obrigado — disse e fui me desenrolando para fora do armário, tomando cuidado para não enganchar o cinto na fechadura. — Acho que nada de muito ruim pode acontecer aí dentro.
Olívia foi até a cama e sentou-se junto aos travesseiros. Observou o quarto, desde a moldura cinzenta da janela que tinha barras de ferro e da pequena cômoda com gavetas até a porta reforçada com uma maçaneta curva de alumínio.
— Mamãe e eu íamos fazer compras — disse.
— Quer falar sobre o que aconteceu ontem?
— Ela me prometeu que iríamos à Loja das Contas, na praça.
— Olívia, não posso manter a polícia afastada por mais de uns dois dias. Pelo menos você terá recuperado um pouco de equilíbrio até lá. Mas há um investigador que quer falar com você. Não vai demorar muito para ele descobrir suas impressões digitais no revólver.
— Você acha que matei a minha mãe? Essas palavras flutuaram no ar, sem emoção.
— Não, não acho — respondi devagar.
Olívia rodou um dos anéis em seu polegar. Tirou-o, fitou-o aborrecida e tornou a colocá-lo.
— Íamos comprar as contas cor de cobalto e turquesa... — murmurou ela.
— Eu poderia ajudar se soubesse o que aconteceu — insisti.
Uma lágrima desceu de um olho de Olívia.
— Não sei o que aconteceu — disse. — Era para eu ir encontrar-me com ela no consultório. Atrasei-me. Sempre me atraso. Ela odeia isso em mim.
Uma lágrima apareceu no canto do outro olho.
— Você ouviu o tiro? — perguntei.
Olívia virou o rosto para o outro lado, depois tornou a olhar para mim.
— Não, não ouvi. Quando cheguei lá, encontrei-a...
Calou-se, incapaz de pronunciar a palavra.
— E onde o revólver estava?
— Na mão dela.
— Por que o pegou?
A garota olhou para as próprias mãos.
— Íamos à loja de contas... — sussurrou ela. Desviou o olhar de mim e transformou-se de novo numa bola. — Eu queria todas de cores diferentes — prosseguiu com voz monótona — e não queria falar com os tiras. Nada de tiras.
Começou a cantarolar com a boca fechada .
— Olívia, eu gostaria de falar com a dra. Smythe-Gooding. Ela cantarolou mais alto e enrodilhou-se ainda mais.
— Preciso da sua permissão para falar com a dra. Smythe-Gooding — eu disse com voz clara e firme.
Olívia resmungou alguma coisa.
— O quê? Não consegui entender.
Ela virou o rosto para mim, os olhos muito abertos e cheios de ansiedade.
— Não — a palavra pareceu explodir. — Ela é uma puta nojenta.
Tentei manter minha expressão neutra.
— Se você não quer falar comigo, nem deixar que eu fale com a dra. Smythe-Gooding, como vou fazer para ajudá-la?
Enquanto ela me fitava intensamente eu quase podia ouvi-la pensando, calculando.
— E hereditário, não?
— O quê? — perguntei, apesar de estar quase certo de saber do que se tratava.
— Suicídio.
Eu poderia dar-lhe a resposta padrão: "Não. Suicídio não se repete nas famílias". Tão definida e reconfortante. Mas a pesquisa não lhe dava base. Fiz um rodeio.
— Uma porção de gente gostaria de saber a resposta exata a essa pergunta. E verdade, o risco do comportamento suicida aumenta numa família com história de suicídio.
Porém jamais se trata, do resultado de um único fator. — Puxei uma cadeira para junto da cama e sentei-me perto dela. — Há uma longa distância entre dizer que porque a mãe de alguém cometeu suicídio, a avó de alguém cometeu suicídio, essa pessoa irá cometê-lo também. Não é uma conclusão definitiva.
Olívia olhou para o braço enfaixado.
— Eu quero morrer — murmurou.
Palavras que eu não podia ignorar agitavam-se na minha mente. Achava que a garota não pensava mesmo aquilo, mas tive de perguntar:
— Você diz isso literalmente ou é apenas uma reação aos acontecimentos que a arrasaram?
Ela tocou a bandagem e fungou.
— Tudo me parece tão... sem esperança.
Aquilo não era o bastante para acionar os vigilantes do suicídio. Perguntei:
— Tem algum plano?
Fitando-me com uma ponta de divertimento, ela respondeu:
— Vai me fazer assinar um contrato?
Devia ter ouvido sua mãe comentar a respeito dessa manobra com pacientes.
— Você tem feito com que venham me vigiar a cada dois minutos... — acrescentou.
Recostei-me na cadeira.
— Não posso deixá-la sem vigilância mais do que cinco minutos até ter certeza de que você não é um perigo para si mesma. Não acho que precisamos de um contrato escrito, mas terá de me prometer que não tentará se matar enquanto estiver aqui. E se tiver algum impulso de fazê-lo prometa que me avisará ou a alguém da equipe, imediatamente.
Ela engoliu seco.
— Prometo — disse, solenemente. Fitei-a, avaliando-a.
— Olívia, também quero saber sobre os remédios que você estava tomando. Há quanto tempo vem usando Ritalin?
— Acho que há uns dois meses —- foi a resposta vaga.
— E onde arranjou o remédio?
— Arranjar? Hum... Bem, eu... — Ela gaguejou, olhando para a colcha da cama, depois para mim. — A dra. Daffy.
O tom desdenhoso com que ela pronunciou o apelido de Daphne chamou-me a atenção. "Químicas que não combinam", fora assim que Channing descrevera o relacionamento entre Olívia e a psiquiatra?
— Ela começou com Ritalin — lembrei-a. Olívia assentiu.
— Para ver se ajudava.
— Ajudava a quê?
— A acabar com meu humor negro, como mamãe dizia. Ela fechou os olhos com força e fez uma careta, como se as próprias palavras a atingissem. Aquilo a ajudaria a absorver um pouco do aspecto catastrófico com que a morte da mãe a fazia ver o mundo.
— Você estava tendo dificuldades para se concentrar? — perguntei.
— Acho que sim — a garota sacudiu os ombros.
— Que quantidade de Ritalin tinha de tomar?
— Uma pílula de manhã e outra ao jantar — respondeu ela, olhando para o próprio colo.
— E era só isso que tomava?
— Era...
O fato de ela ter desviado os olhos ao responder não era muito convincente. O exame de sangue demonstrara a presença de alto nível de Ritalin. Imaginei há quanto tempo Olívia estaria tomando remédio a mais. Poderia tratar-se de um círculo vicioso. Doses excessiva durante determinado período podem produzir o hábito. Antes que você perceba, estará tomando duas ou três vezes mais do remédio para conseguir o mesmo efeito.
— Estava tomando alguma outra coisa, Olívia?
— Só Ritalin.
— Quando a internamos encontramos outras drogas em seus bolsos.
— Só Ritalin — repetiu ela, fuzilando-me com o olhar.
— Então, o que estava fazendo com...
Tentei lembrar-me do que mais haviam encontrado com ela.
— Era dos meus amigos. Muamba fácil de comprar.
A garota parecia tranqüila. Channing teria tido um ataque. Quando queria alguma coisa, ela não tinha dúvida em desconsiderar a autoridade, coisa que classificava de desobediência civil. Mas, de fato, isso era ignorar a lei, uma história muito diferente. Imaginei se Olívia via as coisas dessa maneira. Ou será que se drogava para conseguir o convívio de jovens juntos aos quais sentia-se uma estranha?
— Vamos livrá-la da dependência do Ritalin — disse-lhe, e ela pareceu assustada. — Gradualmente. Precisamos que esteja livre da droga para poder avaliá-la.
Seus olhos foram para a direita, depois para a esquerda e, afinal, voltaram-se de novo para mim.
— Por eu não posso continuar tomando Ritalin? Preciso dele.
— Sei que agora você pensa que precisa dele, mas não está claro que lhe esteja fazendo bem. Talvez até mesmo seja a causa de vários dos problemas que está tendo. Entretanto, vamos cuidar para que nada lhe aconteça. É para isso que está aqui.
Pelo modo como Olívia apertava a colcha, parecia que não estava nada tranqüila.
MacRae andava me deixando recados telefônicos de hora em hora. Queria interrogar Olívia e queria que eu fosse à delegacia para fazer uma declaração. Tive esperança de que ele se contentasse apenas com metade da exigência. Cancelei uma consulta que teria à tarde e fui para a delegacia, na Praça Central.
Segui-o por um labirinto de corredores até a Divisão de Investigações. O escritório dele era um surpreendentemente limpo cubículo de dois metros por dois. Uma das paredes achava-se coberta por lembretes e anotações. Na mesa havia uma elevada pilha de pastas de papelão manilha com as orelhas marcadas em azul. O modo como uma pessoa mantém seu escritório pode ser tão revelador como o modo pelo qual ela interpreta uma mancha de tinta. Ele pegou uma cadeira de madeira do cubículo vizinho.
Sólido e de ombros largos, Joseph MacRae mesmo sentado parecia como se um toque no lugar certo o faria saltar como uma mola. Ligou um gravador e pediu-me que dissesse quem eu era e, em seguida, o que acontecera. Eu disse tudo, exceto que Olívia estava segurando o revólver. Então, perguntei-lhe se haviam encontrado alguma evidência na cena do crime.
— O tiro atingiu a cabeça — disse MacRae. — Não há contusões ou qualquer outro sinal de força. Era o revólver da morta, e há resíduos de pólvora na mão dela. — Ele vigiava a minha reação. — Portanto, parece suicídio.
— Estão fazendo a autópsia? — indaguei.
— Já fizeram. Teremos o relatório logo. Talvez amanhã.
— O corpo?
— Já foi transferido para o necrotério.
Minha garganta apertou-se. Tentei firmar a voz, engolir. Expulsei a imagem de Channing, fria e imóvel, numa mesa de metal.
— Sinto muito — disse Mac. — Sei que era sua amiga.
Assenti, em silêncio. Tomei nota mentalmente de telefonar para Drew e verificar se ele já sabia que o corpo fora removido.
MacRae girou o corpo dando-me tempo para me refazer. Pegou uma pasta do topo da pilha, então girou de novo, ficando outra vez de frente para mim. Abriu a pasta e espalhou algumas fotos na mesa.
— Gostaria que você olhasse as fotografias que tiramos no consultório da dra. Temple, apenas para ter certeza de que tudo está como se lembra. .
Havia fotos de várias partes da sala, da escrivaninha e, claro, da própria Channing. Fiquei olhando para as ampliações vinte por dez e tentei me manter firme.
— Notou respingos de café? — perguntei. O detalhe emergiu não sei de onde.
— Analisamos manchas no carpete e restos que havia na caneca. Apenas café.
— A dra. Temple não tomava café.
— Acha, então, que havia alguém com ela?
— Talvez. — A foto mais próxima de mim era a de Channing. — Ela estava sentada ereta quando cheguei.
— E segurava o revólver?
— Não...
Pelo menos aquela pergunta eu respondera honestamente.
Ele apontou para outra foto. Era o tampo da mesa de Channing. Ali estavam as pastas púrpura, o abridor de cartas, o peso para papéis.
— O computador estava aí, em cima da mesa. — Indiquei o espaço vazio. — E tem outra coisa, Channing usava o computador como simples máquina de escrever. Duvido que soubesse como programar um protetor de tela com uma mensagem especial.
— Protetor de tela com mensagem especial? Olhei para o monitor do computador de MacRae.
— Protetor de tela, como esse...
O protetor de tela do computador estava ativado, e uma cena de crime em amarelo passava de vez em quando pela tela.
— Só que no dela — acrescentei — eram palavras que passavam na tela.
O investigador deu-me um olhar interrogador.
— Estava programado para que aparecesse uma mensagem mais ou menos assim "Não posso mais viver comigo mesma. Perdoem-me".
Parecendo aborrecido, MacRae tomou nota.
— Desculpe — voltei a falar —, pensei que você soubesse.
— O melhor é você partir do princípio que não sei coisa nenhuma — fuzilou-me ele. — Acho que não é muito difícil.
Ufa! Ele estava certo. Eu já o subestimara antes. Tentaria não fazer isso de novo.
— E mais uma coisa, MacRae. Como alguém que sabia a devastação que um suicídio acarreta, Channing Temple seria a última pessoa a achar que um dito espirituoso seria um bilhete de suicida adequado.
— Essa é a sua opinião?
Apenas olhei para ele. O policial também me subestimara durante nosso encontro anterior. Eu esperava que a história não estivesse se repetindo.
— Mais alguma coisa? — perguntou Mac.
Olhei atentamente para a foto. Estava faltando algo. Fechei os olhos e tentei lembrar-me.
— Havia uma caneca sobre a mesa — disse eu, por fim.
— Ela estava no chão quando eu cheguei — retrucou MacRae. — Talvez alguém tenha esbarrado nela e derrubado, e foi aí que o café espirrou.
— Não. A caneca que vi estava vazia e em cima da mesa.
— Como ela era?
— Uma outra caneca da Acu-Med, como essa aí. Mac pareceu cético.
— E você acha que não é a que encontramos no chão? Ele podia ser muito teimoso e míope quando se resolvia a isso.
— Essa aí tem traços de café. Você mesmo disse. — Minha voz se tornara estridente. — Channing não tomava café.
MacRae piscou e fez outra anotação.
Olhei a fotografia seguinte, um primeiro plano de um pequeno e prateado revólver no chão, sobre o carpete, ao lado da cadeira.
— Alguma coisa que deixou de nos dizer? — perguntou ele, com os olhos como dois buracos negros fixos em mim.
Se eu fosse falar sobre Olívia segurando o revólver, aquele era o momento.
— Por que pergunta?
Ele resmungou e bateu a ponta do polegar sobre a arma na foto.
— Apenas responda à pergunta.
— Acho que não.
— Ocultar uma evidência é crime grave — avisou-me o investigador. — O revólver está coberto de impressões digitais, e não são todas da dra. Temple.
— Eu não toquei no revólver.
— Certo. — MacRae praticamente cuspiu a palavra. Estreitou os olhos e me fitou. — Está certo de que não tem mais nada para me dizer?
Tentei não vacilar, mas creio que falei até depressa demais.
— Conversei com o marido dela, ontem à noite. Ele acha que é impossível ter sido suicídio.
— Minha experiência ensinou-me que qualquer um pode cometer suicídio — pontificou o policial.
Sacudi a cabeça.
— Mas minha experiência, não.
Ele juntou a ponta dos dedos formando uma tenda e inclinou-se para trás. Continuei:
— Há pessoas cujo senso de si mesmas é sólido demais para que lhes permita matar-se, e a dra. Temple era uma dessas pessoas.
— Não foi o que me disseram — contrapôs MacRae, erguendo mais os dedos unidos. — Parece que ela estava desmoronando.
Senti a raiva ferver no peito.
— Quem lhe disse isso?
— Gente do Instituto. A mãe dela não cometeu suicídio?
— Por isso ela também o fez?
— Talvez você não a conhecesse tão bem quanto pensava. Tive vontade de gritar E talvez você não a conhecesse de modo algum. Em vez disso, cerrei os dentes e disse a mim mesmo que ele estava apenas fazendo seu trabalho. Nada havia de pessoal no modo como agia.
— Mais alguma coisa? — perguntei.
MacRae inclinou-se para a frente, recolocou as fotos na pasta e guardou-a numa gaveta.
— Não se importa de registrar suas impressões digitais, já que está aqui?
— Sem problema.
— E Olívia Temple — disse ele, como se as letras todas fossem maiúsculas e estivessem sublinhadas. — Precisamos interrogá-la o mais depressa possível.
— Dê-lhe mais alguns dias, por favor. Ela ainda se encontra frágil demais. Está se recuperando de uma overdose de Ritalin e ainda não saiu do choque pela morte da mãe.
— Peter — a voz de Joseph MacRae soou cansada —, podemos ajudar um ao outro.
Ou podemos procurar pêlos em casca de ovo!, pensei. Depois do nosso encontro anterior eu tinha razões para pensar que embaixo do distintivo de um tira pode bater um coração humano.
— Que tal você ir ao Instituto na semana que vem? — propus. — Ela deverá estar estabilizada. Espero que até aí já tenha sido realizado o funeral.
— Na semana que vem?
Ele falou como se fosse depois de uma década.
— Vai conseguir mais dela se esperar.
Relutante, Mac pegou uma agenda e abriu-a em cima da mesa. Nesse momento o telefone tocou. Ele atendeu. Virou-se de costas para mim, protegeu o bocal do telefone com a mão e falou em voz baixa. Ouviu. Então ergueu-se e foi para o lado de fora do cubículo, junto à parede, esticando ao máximo o fio em espiral.
As páginas da agenda estavam cobertas por apontamentos. Mas o que me saltou à vista foi um deles, no dia anterior: Annie — 8:00. Disse a mim mesmo que não era a minha Annie e que, se fosse, provavelmente se tratava de trabalho. Ela era uma investigadora particular, ele era um policial. E mesmo que fosse social, o que tinha a ver?
Ele continuava ao telefone. Cuidadosamente, virei as páginas e olhei as primeiras do mês. Lá estava de novo o nome Annie, num sábado. Annie e MacRae? Será que tinham saído enquanto eu andava ocupado com outras coisas?
Claro, ele e Annie tinham crescido juntos, mas eu pensava que nos últimos anos se haviam tornado distantes. Lembrei-me de Annie me contando como seu pai, um ativista de sindicato, havia sido surrado na cadeia depois de ter sido preso numa passeata. Isso quebrara tanto o espírito dele quanto seu corpo. O pai de Joseph MacRae era policial. Annie achava que o sr. MacRae soubesse quais os tiras que haviam batido no pai dela mas não queria dizer. A amizade cedera lugar à lealdade para com a corporação. O afastamento entre as famílias tornara-se permanente. Ou não? Talvez tivesse havido uma reconciliação depois de todos aqueles anos. Era possível.
Inclinei-me para trás na cadeira e olhei para a parede, para a fotografia de um menino, talvez de uns dez anos. Usava short e camiseta, segurava uma bola de futebol americano e ria para a máquina fotográfica. Jamais me ocorrera que MacRae pudesse ter um filho. Uma ex-esposa em algum lugar, também? Imaginei se ele ainda estaria saindo com aquela enfermeira do Hospital de Reabilitação. E qual seria exatamente o relacionamento dele com Annie?
— Tá, eu ligo amanhã — prometeu MacRae, tornando a entrar no cubículo. — Está bem, está bem.
Desligou o telefone.
— Então você irá ao Pierce terça-feira para interrogar Olívia Temple — disse eu, fitando-o com cautela.
— O que há de errado com a segunda-feira?
— Nada... Vou ajeitar tudo.
Antes de sair, parei para olhar de perto a foto do jovem jogador de futebol, como se a visse pela primeira vez.
— Seu filho? — perguntei. Ele assentiu, com orgulho.
— Só que agora é mais velho.
— E continua jogando futebol?
— Pois é...
— Em qual posição?
— Sweeper [2]. Ele é um durão. Puxou a mim. Essa é uma das poucas coisas em que minha ex e eu concordamos.
— Se continua saindo com aquela enfermeira do Hospital de Reabilitação, transmita-lhe meus cumprimentos.
Falei tentando parecer natural, desinteressado.
— Não a vejo há meses — respondeu ele. — Mas dou o recado se por acaso a encontrar.
Enquanto apertava a mão de MacRae tentei imaginar Annie no cubículo conosco. Eu sabia que ela era mais baixa do que eu, nas seria mais alta do que MacRae? Tinha sido um telefonema íntimo. Depois do aperto de mão que trocamos fiquei mais certo do que nunca que preferiria não brigar com o sujeito de novo.
Quando cheguei em casa naquela noite havia um recado de Annie na secretária eletrônica. "Ei, Peter, sou eu. Fiquei sabendo das novidades. Telefonei para saber se você está bem. Há algo que eu possa fazer? Mas que bobagem! Conheço você... Vai dizer que está ótimo. Que tudo está ótimo. Vou para aí esta noite." Uma pausa, e em seguida: "Não coma antes de eu chegar".
Acendi a luz do alpendre. Pouco mais tarde a campainha tocou. Era Annie. Senti o cheiro de pizza antes mesmo de ver a enorme caixa redonda, achatada, de "Il Panino", a melhor pizzaria da zona norte, que agora tinha uma filial em Cambridge. Havia também uma embalagem com seis garrafas de Sam Adams.
Sentamos à mesa da cozinha e, enquanto comíamos os dois últimos pedaços de pizza, coloquei Annie ao corrente dos acontecimentos.
Ela acariciou de leve o meu rosto.
— Eu gostaria muito que houvesse algo que eu pudesse dizer ou fazer para ajudar.
Cobri a mão dela com a minha.
— Só o fato de você estar aqui ajuda — respondi. — Os terapeutas gostam de dizer "Falar alivia a depressão". Conversar com você a respeito ajudou-me a encontrar um sentido no que aconteceu, mas nem por isso deixei de continuar com a sensação de que o mundo saiu de controle... — suspirei — de novo.
Depois da morte de Kate eu não admitira mais amigos e sessões de pizza. Nem mesmo Channing. Eu queria ficar só, de modo que minha consciência pudesse devorar-me de dentro para fora.
Annie rompeu o silêncio.
— Não acredito que Olívia tenha matado a mãe. E você?
— Também não. Mas acontece que essa alternativa não me agrada.
— Eu mal conheci Channing, mas há pessoas que impressionam a gente. Ela não me pareceu inclinada a cometer suicídio.
— Uma psiquiatra experiente — contei —, que foi mentora dela desde que Channing era residente, disse-me que achava que ela desenvolveu uma transferência doentia em relação a uma paciente suicida.
— Transferência?
— Channing identificou-se de maneira tão forte com os sentimentos de desespero de sua paciente que acabou por senti-los.
— E foi por isso que ela se matou?
— Isso é o que a psiquiatra dela está dando como explicação parcial.
Annie ficou parada por alguns instantes, com os lábios entreabertos.
— Espere aí! Você está dizendo que sentimentos destrutivos andam flutuando por aí e que a gente pode pegá-los? — perguntou Annie. — Como se pega uma gripe?
Fiz que sim, e ela abanou a cabeça.
— Isso parece coisa do Arquivo X.
— Concordo que parece muito estranho, mas acontece. Um bom terapeuta tem de ser capaz de caminhar com os sapatos alheios. Quando você enfatiza muito, pode acabar com sentimentos que não são realmente seus. E até mesmo agir segundo esses sentimentos. Annie pôs as mãos na cintura.
— Depois disso, só falta você querer me vender a ponte de Boston!
Mas quando ela viu que eu estava sério, mudou de atitude.
— Está bem, vamos fazer de conta por um minuto que você tem razão. Por que ela não deixou um bilhete? Tinha uma filha de dezessete anos e não deixou explicação? Quero dizer, algumas palavras numa tela de computador nada explicam.
— Isso mesmo. Não adicionam nada. Channing jamais deixou de ter raiva da mãe por ter escolhido a saída mais fácil, como dizia. Ficaria furiosa se soubesse que estão pensando que ela também se matou.
— Por isso, você não pode deixar que as pessoas pensem dessa maneira.
— Mas aí vão pensar que foi Olívia.
— E você não pode deixar que pensem isso também.
— Seja como for, tornou-se um problema para mim, não é mesmo?
— Eu acho que é como você quiser que seja — observou Annie.
Até que ela levava jeito para uma boa psicóloga.
— Mas se Channing não se matou — raciocinei — e Olívia não a matou...
— Alguém o fez e tratou de ajeitar as coisas de modo que parecesse suicídio. Channing tinha inimigos?
Segurei um sorriso.
— Alguns. E não posso deixar de pensar se as críticas que recebeu no JAMA e todos os boatos sobre a falta de julgamento clínico dela não estão ligados entre si de algum modo.
— Uma trama — sugeriu Annie.
Eu sabia que ela estava indicando quão irreal aquilo tudo estava começando a parecer. Mas para mim até que começava a fazer sentido.
— A dra. Smythe-Gooding sugeriu que Channing andava tomando medicamento demais para a ansiedade. Em altas doses e durante um período de tempo razoavelmente longo isso poderia alterar-lhe a capacidade de julgamento.
Annie disse o que eu pensava:
— Será que eles já têm o resultado da autópsia?
— Estive com MacRae hoje e ele disse que o resultado ficará pronto amanhã.
Annie anuiu.
— Posso pegá-lo. Provavelmente eles já têm resultado dos testes preliminares, mesmo que ainda não estejam na forma final.
Visualizei Annie e Joseph MacRae juntinhos no cubículo dele, lendo o relatório preliminar. Antes que pudesse impedir-me, eu disse:
— Ah, esqueci. Você tem entrada livre lá. Imediatamente desejei poder retirar o que havia dito.
Como Glória comentara, eu parecia mesmo um elefante numa loja de louças.
Annie recuou.
— O que quer dizer com isso?
— Nada — esquivei-me. — Só que você e ele parecem encontrar uma porção de oportunidades para... colaborar.
Ela sacudiu a cabeça e disse, com ar alusivo:
— Ultimamente não tenho tido ninguém monopolizando meu tempo, na verdade.
Estremeci. Era muito ruim se ela estivesse saindo com alguém, e pior ainda se esse alguém fosse Joseph MacRae. E não era só porque ele se saíra um pouco melhor do que eu numa briga — acabei estirado no chão, respirando merda de pato, com o nariz achatado contra uma das tábuas do deque do Clube de Remo e um pé de Mac na minha bunda.
Ataquei:
— Pensei que tivesse me dito que nada há em comum entre vocês dois, a não ser tiras nas famílias.
— O pai dele morreu pouco tempo atrás — explicou Annie. — Minha mãe e eu fomos ao funeral. Ela e a sra. MacRae, então, tornaram a se dar bem, como nos velhos tempos. Reatar a amizade nesse ponto da vida delas é um verdadeiro dom.
— E você e Joseph? — ouvi minhas palavras antes de resolver dizê-las.
Annie cruzou os braços ao peito e olhou-me fixamente.
— Ele e eu continuamos afastados, apesar dessa sua pergunta não merecer resposta. E, além de tudo, isso não é da sua conta.
Os olhos dela pareciam emitir raios, de tanta raiva.
Não dava para eu acreditar naquilo. Como Annie podia sentir-se atraída por mim e estar interessada nele, ao mesmo tempo?
— Se você diz que não é da minha conta, acho que tem razão. Não é mesmo.
— O que pensou que eu fosse fazer? Ficar esperando sentada enquanto você revê seus sentimentos durante um século para verificar se está pronto para ter outra mulher na sua vida?
Abri a boca para falar, mas não saiu nada. Annie se pôs em pé.
— É melhor eu ir embora antes que nós dois acabemos dizendo coisas das quais nos arrependeremos depois. — Levou seu copo para a pia. — Fique com a cerveja.
Muito tempo depois da porta da frente bater eu continuava ali, sentado, olhando o par de garrafas de Sam Adams sobre a mesa da cozinha e a minha aura de integridade dissipando-se no ar como um mau cheiro. Sentia-me como um verdadeiro idiota.
Eu estava verificando as fichas na sala das enfermeiras na quarta-feira pela manhã, quando Kwan apareceu. Então Jess entrou também, quase correndo, com um lenço de papel na mão.
— Incompetência — resmungou Kwan. — Por que nada é bem feito por aqui a não ser que você mesmo faça?
Glória aproximou-se de nós.
— Brigão — disse a Kwan.
— Ora, vamos, Glória, ela é inconfiável — insistiu ele. — Profundamente inconfiável.
A boca de Glória tremeu, e os cantos curvaram-se para baixo, numa expressão de ceticismo.
— O que ela fez? — perguntou.
— É o que ela não fez — respondeu Kwan. — Precisava ter inscrito Lydia Small na experiência do Zerenidine, ontem.
Jess fora embora do trabalho abalada com a morte de Channing, telefonara no dia seguinte dizendo que estava doente e voltara ao trabalho naquele dia, quarta-feira, para enfrentar a ira de Kwan.
— Ela ainda não pode fazê-lo? — perguntei. Glória é que respondeu:
— Vocês não souberam? Ontem à noite a sra. Small caiu e quebrou a bacia. Foi transferida para a Ala Geral. Doloroso para a sra. Small, inconveniente para alguém de quem não preciso dizer o nome.
Se estivéssemos falando sobre outra coisa, Kwan faria algum comentário divertido que aliviaria o ambiente. Em vez disso ele abaixou a voz.
— Se ela não é capaz de fazer seu trabalho não vai ser uma boa psiquiatra. Não podemos deixar que nossas emoções nos dominem. Aqui está em jogo a vida de pessoas.
— A vida de pessoas ou a sua pesquisa? — perguntou Glória.
— No momento é a minha pesquisa que está mantendo o borderô desta unidade livre do vermelho.
Kwan lançou um olhar duro a todos nós.
— Pode ser — retrucou Glória —, mas acho que isso não deve interferir nos cuidados com os pacientes. Você continua ficando aqui o mesmo tempo que ficava antes, só que agora faz também experiências com parte do seu grupo de pacientes. Não vai me dizer que uma coisa não afeta a outra.
— Não é bom quando não podemos completar nossas pesquisas programadas — irritou-se Kwan. — E isso não deve interferir na reputação do nosso Instituto como instituição líder de pesquisas.
E meu colega saiu da sala, fervendo.
— De vez em quando ele sabe ser estúpido — resmungou Glória.
— Eu ouvi isso! — gritou Kwan por cima do ombro. Suspirei. Esperava que o velho Kwan, que tinha senso de perspectiva, não houvesse desaparecido para sempre.
Saí para o corredor com intenção de ir para a minha sala. Proteger a reputação do Instituto fora a mesma desculpa que Liam Jensen apresentara para que Channing não fizesse uma determinada coisa vir a público. Uma morte. Imaginei de quem. Talvez um acontecimento adverso que Jensen estivesse muito ansioso para ocultar?
Parei à porta de um aposento grande que era usado como sala geral pela meia dúzia ou mais de médicos temporários e a equipe de meio período da unidade. Jess estava sentada lá, olhando para o monitor apagado de um computador.
— Ele late mas não morde — eu disse, entrei na sala e sentei-me.
Ela levou a mão trêmula ao rosto.
— O dr. Kwan tem razão. Não fiz meu trabalho. Deixei que meus sentimentos pessoais interferissem.
— Tristeza é um sentimento legítimo, até mesmo para um psiquiatra. Não seja tão dura consigo mesma.
— Não posso acreditar que ela está morta — disse Jess, com a voz baixa e áspera. Chorava, e as lágrimas desciam livremente por suas faces. — Não consigo comer. Não consigo dormir. Não consigo concentrar-me em meus pacientes. Não sou capaz de pensar em outra coisa.
— Channing era mais do que mentora para você.
Jess olhou para a parede sem janelas.
— Channing foi minha âncora, meu porto seguro durante toda a doença da minha mãe.
— Sua mãe esteve doente? — perguntei.
— Alzheimer precoce. Tinha apenas cinqüenta anos. Era psicóloga. Ela mesma fez o diagnóstico, no Dia de Ação de Graças do ano passado, mesmo antes que os médicos dissessem que estava doente.
Eu tinha visto muitas famílias tentarem lidar com a incompreensível brutalidade do mal de Alzheimer, vendo a alma ir embora enquanto o corpo permanecia vital e forte.
— Sinto muito, Jess... E um golpe terrível.
— Lembro-me de quando ela parou de exercer. Foi no dia em que voltou para casa com um olho preto e culpou seu julgamento precário por isso. Tivera de avaliar um paciente agitado e sentara-se de modo que ele ficara entre ela e a porta. Quando o paciente explodiu, ela não teve como sair.
— Meu pai e eu tentamos mantê-la em casa — prosseguiu Jess, enxugando as lágrimas do rosto, primeiro com uma das mãos, depois com a outra. — Mas ela estava deteriorando muito depressa. Colocamos enfermeiros durante o dia, mas nunca se sabia quando sobreviria uma crise e eu tinha que correr para casa. Parecia que a cada minuto lidava com alguém que estava indo embora. Com Channing eu podia dizer como ficava com raiva por ter de sacrificar minha vida pessoal, tornar-me a cada dia mais fraca e, ao mesmo tempo, demonstrar quanto amava minha mãe. Interná-la num sanatório foi uma das coisas mais difíceis que fiz.
Jess tocou num antiquado medalhão que pendia do seu pescoço numa corrente. Esfregou-lhe a superfície trabalhada entre o polegar e o indicador.
— Channing ajudou-me a livrar-me da culpa. Era uma amiga, mais do que isso.
Os laços entre Jess e Channing pareciam ter sido intensos e pessoais. A jovem a idealizava. Mas o que Jess teria sido para Channing?, perguntei-me. Uma frágil avezinha a ser protegida? Uma filha para criar?
— Acho que sei por que isso a atingiu tão duramente — observei. — Você chora por uma amiga, mas também está emocionalmente abalada pela doença da sua mãe. Posso compreender como está sentindo essa perda.
Jess cobriu o rosto com as mãos.
— Eu continuo querendo pegar o telefone... —: sua voz rompeu-se — e ligar para ela.
Toquei-lhe um braço e perguntei:
— Acha que está em condições de trabalhar com pacientes?
— Sou uma psiquiatra. — A voz de Jess soava desigual; ela ergueu a cabeça e passou as mãos pelo cabelo, cruzando os dedos na nuca. — Devo saber controlar minhas emoções.
Agir como profissional é uma das coisas que aprendi com minha mãe e com Channing. — Endireitou o corpo. — Preciso trabalhar.
— Isso é bom, porque precisamos que você trabalhe. Jess deu-me um pálido sorriso.
Dirigia-me para a minha sala quando Glória e Kwan me interceptaram.
— Destler acaba de ligar — disse a enfermeira. — Quer nós três na sala dele agora.
— Merda! — explodi.
Já ouvira falar em chefes de unidades e sua equipe chamados à sala de Destler. Jamais era para boas notícias. Será que os lugares que sobravam na nossa sala de reuniões seriam o prelúdio para algo pior? Olhei para meus colegas. Eu me demitiria antes de deixar que ele dizimasse nossa equipe.
— Os informantes dele devem trabalhar em tempo integral — comentou Glória. — Provavelmente soube que estamos com deficiência de pessoal.
Kwan estufou o peito e puxou o paletó para baixo.
— Parece que os bárbaros estão de novo no nosso portão. Está na hora de reunir a tropa.
Aquele era o Kwan que eu conhecia e do qual gostava.
Nós três atravessamos o compus em direção ao edifício da Administração, entramos pela maciça porta dupla e subimos a larga escadaria de mármore que levava à sala de Destler. Virgínia Hedgewick achava-se sentada à sua mesa. Ergueu a cabeça e empurrou os óculos com aros de metal para a ponta do pequeno e pontudo nariz. Uma mulherzinha com a silhueta de um hidrante, que usava costumes de linhas retas e sapatos robustos. Virgínia trabalhava no Pearce por mais anos do que qualquer um poderia lembrar-se, se bem que não tivesse envelhecido uma hora sequer desde o dia em que a conheci, havia dez anos. Era afetuosamente chamada de o Porco-Espinho, em parte porque fazia pensar num desses animaizinhos, em parte porque se enrolava numa bola, figurativamente falando, quando a instituição modificava-se ao seu redor. Como ela acabara sendo assistente administrativa da diretoria do Instituto era pura especulação.
— Desculpem pelo chamado de última hora — disse Virgínia, olhando para o relógio na parede. — Meus parabéns, vocês chegaram praticamente dentro do prazo. Claro que ele está aqui, mas apenas porque varou a noite de novo. Sei que vocês vivem dizendo que não é saudável ser viciado em trabalho mas, caso me perguntem, isso faz o dr. Destler vicejar.
Foi abrir a porta do santuário. Destler estava de pé quando entramos, as mãos atrás das costas. Ele me fazia pensar num enorme pêssego com pele de um rosa-pálido e olhos azuis, com pálpebras avermelhadas. A sala tinha um odor adocicado, como se ele carregasse nos bolsos cernes de maçãs murchas. De um imponente quadro atrás da maciça escrivaninha de mogno de Destler, vigiava-nos a srta. Wilhelmina Pearce, neta de Silas Pearce, o benfeitor do Instituto. Longos cordões de pérolas desciam por seu amplo peito.
Sentamo-nos. Destler permaneceu em pé. Havia um mapa num cavalete de metal ao lado de sua mesa.
— Excelente.
Ele mostrava-se entusiasmado, e não perdeu um instante sequer para mencionar a tragédia ocorrida havia menos de quarenta e oito horas.
— Estou contente em tê-los aqui — continuou. — Desculpem pela convocação de última hora.
— Boas notícias? — indaguei, preparado para enfrentar qualquer coisa.
Como vocês sabem, os últimos quatro anos foram um período difícil para nós.
Era uma constatação. A média de permanência de internados encolhera de um ano para vinte e cinco dias. Pacientes de convênios haviam substituído a maior parte da nossa clientela rica.
— Estamos constantemente acertando a situação, acrescentou ele, voltando-se para o mapa.
A última coluna intitulava-se CUSTO DO EFETIVO, e tinha vistos pretos e vermelhos em todo canto. Procurei rapidamente a nossa unidade. Estávamos na última linha com um sinal de menos, vermelho. Não precisei pensar muito para descobrir que aquilo não era bom.
Destler indicou uma anêmica linha verde no mapa.
— Temo que o fluxo na Unidade de Neuropsiquiatria esteja abaixo de todos as demais, no nosso Instituto.
Fluxo era O Número determinado em reuniões pelo corpo da diretoria. Esse número representava quantos pacientes você atendia, dados os seus recursos, em determinado tempo padrão. Se os pacientes eram o sangue da vida da unidade — versão de um dito popular em uso por administradores como Destler —, então aumentar o fluxo significava pressão sangüínea mais alta para a unidade como um organismo. Podíamos levá-lo até determinado ponto sem que a equipe entrasse em colapso coletivo.
— Isso não me surpreende — disse eu. — Afinal de contas nossos pacientes são neurologicamente debilitados. Não se pode apenas enfiar um monte de pílulas neles e mandá-los embora.
— Todos os pacientes merecem atenção especial, Peter — observou Destler, dando-me seu benigno sorriso de Buda.
— E eles precisam de uma equipe bem-treina da — acrescentou Glória, erguendo-se de sua cadeira. — Lembre-se do que aconteceu com Carol Tillingham.
Todos nos lembrávamos da enfermeira que havia flutuado pela nossa unidade durante um dia e pedido demissão no outro.
— A culpa não foi dela — continuou Glória. — Boas enfermeiras de neuropsiquiatria costumam ser comidas vivas pelos nossos pacientes.
— Sei como se sente, enfermeira Alspag — respondeu Destler.
Pude até sentir Glória estremecendo. Ela reagia à padronização do mesmo modo que o restante de nós reagia ao veneno da cicuta. Destler não reparou nisso e deu continuidade ao que dizia:
— Foi por esse motivo que pedi a vocês que viessem aqui para pensarmos no assunto juntos. É melhor estar além da curva e evitar a espécie de aborrecimentos que vocês tiveram antes que eu viesse para cá.
Aquilo calou a boca de todos nós. Quando Destler começara a trabalhar no Pearce, o Instituto era como uma praça de guerra. Cortes de gastos não combinavam com o encolhimento da entrada de dinheiro. Havia assustadores boatos de falência, demissões, fusão com outras entidades. A vizinhança entrou em estado de agitação quando considerou-se vender parte do terreno para empresas construtoras. Eu fizera tudo que podia para impedir que Glória aceitasse uma das muitas ofertas de emprego que recebera.
— E com vocês três — prosseguia ele —, poderemos encontrar uma boa solução. Então, pensemos.
Não havia muito em que pensar. Para fazer o boteco ir adiante precisávamos aumentar o número de leitos, diminuir o número da equipe ou encurtar o período de internação — de preferência o primeiro.
Destler sugeriu:
— Podemos ampliar seu campo, combinando a Unidade de Neuropsiquiatria com a de Geriatria e...
Kwan interrompeu no ato:
— Só porque muitos dos nossos pacientes são velhos não quer dizer que podemos misturá-los com os pacientes geriátricos em geral. Pacientes que sofrem de demência senil não devem ser misturados com os que não a sofrem.
Ele falava bem devagar e deixando espaços entre as palavras, como fazia quando tentava explicar os pontos refinados de beisebol para mim ou para Glória.
O diretor fez um muxoxo.
— Posso compreender a sua preocupação... — Kwan começou a dizer algo, porém Destler ergueu as mãos. — Só por um momento, vamos considerar os benefícios. Concentrando maior e mais diversa população, provavelmente poderemos eliminar um psiquiatra, talvez dois. — Aquilo era com Kwan. — Podemos incluir uma supervisora de enfermagem clínica. — Agora era com Glória. — E, afinal, qual é o papel que um neuropsicólogo desempenha nisto tudo? — Ele ergueu as sobrancelhas e olhou para mim. — A cada dia que passa, mais os hospitais psiquiátricos se voltam para a medicina hoje em dia.
Tão oposto a tudo mais, pensei. Destler riu.
— O único ponto importante é a pesquisa que vocês estão fazendo.
Kwan lançou-me um olhar triunfante.
— Estou encorajando outras unidades a envolver-se em pesquisas clínicas — prosseguiu Destler. — Isso nos traz recursos adicionais com que trabalhar. E as empresas farmacêuticas são excelentes parceiras. Justamente nesta manhã, a propósito, recebi o telefonema de um dos figurões da Pharmacom. Ele queria dizer o quanto estão satisfeitos com a pesquisa do Zerenidine. — Fez uma pausa e fiquei esperando que o sapato caísse. — Eles têm apenas uma preocupação.
— Tenho certeza de que preencheremos a cota de pacientes — afirmou Kwan. — Ainda temos uma porção de tempo.
— Só que há outra coisa... Você acha, mesmo, que a Pharmacom poderia aborrecer-se pelo lato de a segurança na sua unidade ter falhado no controle do acesso de um paciente a bebidas alcoólicas? O incidente foi muito embaraçoso, para dizer o mínimo.
Eles haviam ficado sabendo do sr. Fleegle. Claro que através do relatório Acontecimento Adverso. Nós três nos remexemos nas cadeiras.
— Vocês definiram o acontecimento como "severo" — tornou Destler, e aquele era o ponto principal. — Desde quando a embriaguez ameaça a vida? O paciente teria de estar diante de um imediato risco de morte pela reação que ocorreu...
Kwan não se conteve.
— Se o sr. Fleegle estivesse dirigindo. Se tivesse conseguido uma garrafa maior de bebida. Sim, eu declararia que a reação poderia ameaçar sua vida.
— Poderia — acentuou Destler, esfregando o queixo. — Tudo que lhe peço é que pense a respeito. — Examinou o mapa. — Claro, eu jamais iria sugerir algo que fosse contrário ao seu julgamento clínico. Mas preciso atender às preocupações deles.
Paramos nos degraus da escadaria de entrada no prédio da Administração depois da reunião. Eu estava aturdido. Não conseguia ver outro modo de interpretar a mensagem de Destler: ele queria que o relatório sobre a bebedeira do sr. Fleegle fosse suavizado ou mesmo suprimido.
— O que eu penso que aconteceu, aconteceu mesmo? — perguntou Kwan.
— Fomos atropelados por um ônibus — disse Glória.
— Essa é a boa notícia — considerou Kwan. — A má é que sobrevivemos.
Glória olhou para as janelas do segundo piso.
— Ele não se atreveria...
Mas ela não tinha absoluta certeza disso.
— Aquele não foi um advento inócuo — zangou-se Kwan. — Se ele pensa que vou modificar meu relatório, pode tirar o cavalo da chuva.
— Concordo absolutamente — disse eu.
Quando cheguei à minha sala vi que Annie deixara um recado. "Oi, Peter. Consegui aquela informação. Avise-me quando quiser saber." Fiquei sossegado. Não parecia que ela estava zangada, se bem que tivesse o direito de estar.
Quando eu quisesse saber... Sorri, imaginando várias maneiras que tornariam a coisa mais agradável. Retornei o telefonema e deixei este recado: "Que tal tomando sorvete? Quer encontrar-se comigo no Toscanini's, às nove? E, Annie, muito obrigado por ter me ligado... mesmo".
Como não tive nenhuma resposta até às oito e meia, resolvi ir para a Meca dos sorvetes para namorados. Peguei uma mesinha de canto perto da vitrina dos sorvetes e preparei-me para esperar. Annie chegou exatamente vinte minutos depois das nove.
— Esperou muito? — perguntou, toda inocência, enquanto se sentava e tirava o capacete negro.
Vestia fuso preto, camiseta, colete e um blusão de moletom amarrado na cintura, onde estava pendurado um par de patins de rodinhas. Suas faces estavam rosadas.
— Levei mais tempo do que calculei para chegar aqui — prosseguiu. — Não tinha certeza se você ia esperar.
Tirou os protetores dos pulsos, joelhos e cotovelos; guardou-os na mochila.
— Escute... — comecei, esperando que minha voz soasse o bastante contrita — peço desculpas por...
Ela ergueu as mãos.
— Não precisa. Não me ofendi.
Pois sim! Então por que ela não me olhava nos olhos?
— O que você quer? — perguntei. — Café?
Annie observou a máquina italiana de café expresso de um metro e vinte centímetros de altura, com suas torneiras, canos e válvulas; era tão imponente que esperei ouvir um órgão tocar o Coro da Aleluia quando a acionassem.
— Sorvete? — sugeri.
Ela consultou o cardápio escrito a mão.
— Sorvete de chá verde? De açafrão? De ananás? O que / é isso?
— É gostoso. O de chocolate suíço também é bom. O de chocolate belga também. De chocolate branco.
— Já entendi... — riu Annie. — Uma granita[3], eu acho.
— Sorvete não?
— Não, obrigada.
Então eu trouxe uma granita para Annie; um café expresso e um sorvete de baunilha envolto em caramelo e com molho de chocolate quente. Lambi o molho de chocolate da minha colher.
— Quer experimentar? — ofereci.
— Talvez mais tarde. — Ela tirou um envelope da mochila. — Preliminarmente, os resultados da autópsia.
— Preliminarmente? — "Deixe o barco correr, seu cretino", disse a mim mesmo, e acrescentei, depressa: — Obrigado.
Peguei o envelope e coloquei-o de lado. Iria ler quando estivesse sozinho.
— Como está a granita? — perguntei.
— Deliciosa. Quer provar?
— Quero, sim — respondi.
Ela começou a me entregar o copo, mas apoiei a mão em seu braço, inclinei-me e beijei-lhe a boca; dessa vez um leve e gentil beijo. Por alguns momentos as vozes e risos na sorveteria desapareceram, deixando apenas o forte e doce cheiro de baunilha e cacau que já estava no meu nariz misturar-se com o gosto doce-amargo da granita e do leve salgado da pele de Annie.
— Você tem razão — assenti. — Deliciosa.
Annie inclinou-se para trás, encostando-se na parede de tijolo à mostra, e avaliou-me.
— Então, quando irá patinar comigo? Ergui as mãos, com ar chocado.
— Acho que não vou. Não sou muito bom nisso de ossos quebrados.
— Vamos, você vai adorar.
— Detestei patinar no gelo as duas vezes que tentei.
— Não é a mesma coisa.
— Tenho tornozelos fracos.
— Não faz mal, as botas reforçam os tornozelos.
— E se eu cair?
— Vai cair. A primeira coisa que vou lhe ensinar é a cair. Isso é fácil. Mais difícil é a segunda lição.
A situação estava ficando preta. A última coisa que eu queria era competir com MacRae, esborrachado no chão como uma tartaruga de patas para o ar. Tratei de contra-atacar.
— Você já remou alguma vez? Annie ergueu o queixo.
— Detesto barcos. Fico enjoada só de olhar para um.
— E um barco pequeno e não há ondas.
— A água do rio Charles é suja. Pode causar disenteria. Partes do corpo podem se dissolver. E é muito fria.
— Vai estar bastante quente dentro de algumas semanas.
— Mas podemos patinar agora.
Ficamos ali, sentados, rindo um para o outro. Achei que havia sido perdoado, mas como não tinha certeza, perguntei:
— Tem certeza de que não quer experimentar isto? Annie não respondeu de imediato, sabendo muito bem
que estava me torturando. Então enrugou o narizinho e disse:
— Está bem. Só um pouco.
Peguei uma colherada do sorvete, passei-o na calda de chocolate e coloquei-a na boca de Annie. Ela fechou os olhos.
— Humm! — murmurou. — Tem razão, é delicioso. — Fitou-me pensativa. — Há coisas pelas quais vale a pena esperar. O problema é que nunca se sabe quais são.
Bem nesse momento um grupo barulhento de patinadores amontoou-se no balcão de sorvetes. Na liderança estava um jovem negro com cabelo rastafári, cujas trancinhas desciam até os ombros, e com um gorro tricotado vermelho preto e verde. Ele gritou:
— Oi, Annie!
Vários outros jovens cumprimentaram, inclusive uma pequena ruiva que mantinha as costas retas, firmes, e a cabeça erguida como se fosse bailarina. Formavam o grupo mais variado que se poderia ver em Boston. Desde adolescentes até pessoas de meia-idade, homens, mulheres, todos os tons de pele, desde o preto-azulado até o sardento irlandês.
Senti um baque no peito quando vi que Annie estava vestindo o colete protetor de costas. Ela deve ter percebido minha decepção, porque disse:
— Sinto muito, Peter, eu não avisei? Meu grupo de patinação ficou de vir pegar-me aqui. Esta é a nossa noite semanal de patins.
Fiquei olhando enquanto ela pendurava os patins nos ombros. A sorveteria estava ficando vazia quando Annie pegou o capacete e tocou-me no ombro.
— Desculpe, eu deveria ter dito antes.
— Tudo bem — falei.
Mas suspeitava que aquilo fosse o troco por eu ter bancado o idiota na última vez que nos tínhamos encontrado. Vários componentes da corte de Annie gritaram e assobiaram ao vê-la me dar um beijo. Aí foram embora.
Terminei meu sorvete, joguei nosso lixo na lixeira e peguei o envelope que ela me entregara. De fato, não estava a fim de ler os resultados da autópsia nem esperava estar sozinho quando o fizesse. Teria de assumir a direção dos acontecimentos se quisesse que o azar parasse de conspirar para que Annie e eu não fôssemos juntos para casa.
De volta à minha sala de estar, tirei do envelope as folhas batidas a máquina. Enquanto lia, fiquei alheio a tudo mais a não ser meu intelecto. O jargão técnico tornava mais fácil alhear-me do que aquilo era: uma análise minuciosa da morte de Channing Temple.
De acordo com o relatório, havia resíduos de pólvora na mão direita. Contusões ao redor dos olhos. A parte de trás da cabeça havia explodido e o cabelo ficara empapado de sangue. A não ser por um pequeno corte no lábio superior, não havia outro sinal exterior de injúria física. Talvez o revólver houvesse saltado quando ela apertara o gatilho.
Ferimento: causado por uma única bala de revólver. A entrada do ferimento localizava-se no macio céu da boca e saía no alto da cabeça, levemente à direita da linha mediana. Encontraram resíduos do tiro na boca. A bala percorrera o hemisfério cerebral direito, quase secionando completamente a junção entre a medula e o cordão superior cervical. Se ela houvesse sobrevivido, teria ficado cega, em vida vegetativa e parcialmente paralisada.
Passei para o exame toxicológico. Os resultados eram positivos para lorazepam. Com certeza trava-se do Ativan.
Tudo visto em conjunto, parecia suicídio. No entanto, eu não conseguia parar de pensar. Que quantidade de Ativan havia no estômago dela? Quanto dele havia sido metabolizado? Eu precisava de mais informações. MacRae poderia facilmente fornecer os detalhes. Talvez não se eu pedisse, mas... Engoli o orgulho e liguei para Annie, sabendo que ela ainda não teria voltado para casa. Deixei recado, perguntando se poderia explorar a boa vontade de Mac e descobrir o que eu queria saber.
Quando desliguei, imaginei se em algum momento qualquer quantidade de Ativan e julgamento alterado poderiam ser suficientes para tornar o suicídio de Channing compreensível.
Na manhã seguinte fui ver Olívia. Ela não saíra do quarto a não ser para as refeições. Estava encolhida na cama, de rosto para a parede, mas pelo menos já não se escondia no guarda-roupa.
Bati na porta aberta. Ela não respondeu.
— Olívia — chamei.
Nenhuma resposta ainda. Aproximei-me dela. Estava com fones de ouvido e um toca CD na cama. Toquei-lhe o ombro e ela saltou, arrancou os fones de ouvido e gritou:
— Já lhe disse...
Calou-se abruptamente quando viu que era eu. A raiva que lhe contraía o rosto evaporou-se. Pôs-se em pé. Seu cabelo estava molhado. Vestia calças de pijama de flanela e uma camiseta atravessada por grandes letras verdes: CAOS DO INFERNO. Um par de chinelos de coelhinho completava sua vestimenta.
— Estava esperando outra pessoa?
Ela estreitou os olhos e fitou-me, com um resto de raiva crepitando atrás deles.
— Não.
— Como se sente hoje? — perguntei.
— Passada a ferro — respondeu, mexendo com os fones de ouvido.
Sorri comigo mesmo e me contive para não comentar que aquela expressão colorida era uma das que a mãe dela costumava usar. Em vez disso, disse apenas:
— Isso não me parece bom. Que tal irmos até o refeitório para conversar um pouco?
Ela sacudiu os ombros e interpretei o gesto como "sim".
Fiquei em pé, de lado. Ela colocou os fones sobre a cama, desligou o aparelho e dirigiu-se para a porta do quarto. Eu ia segui-la quando notei três pequenas bolas de felpas marrons sobre a colcha branca da cama. Peguei uma delas e rolei-a entre os dedos.
Quando saímos do quarto, Olívia lançou um olhar nervoso para Matthew Farrell, que estava sentado no hall, olhando.
— Ele sempre olha para mim — comentou. — Me dá arrepios. O que há de errado com esse garoto, afinal?
Acenei para Matthew e recebi um aceno maquinal de volta.
— Por que não pergunta a ele?
— Posso perguntar?
— Claro que pode. Só que prepare-se para ouvir a mesma pergunta também.
Quando chegamos ao refeitório, Olívia sentou-se. Peguei uma caneca com café normal para mim e uma com descafeinado para ela. Estremeci quando a vi pôr duas colheres cheias de açúcar no dela.
— Como é sentir-se passada a ferro? — indaguei.
— Uma merda.
— Deixe-me adivinhar: você está ansiosa, como se houvesse algo importante que está se esquecendo de fazer. E meio cansada. Há quem diga que se sentem como se estivessem embaixo da água.
— Talvez se você me desse um pouco de Kilalin... — ela tomou um gole de café — ou algo melhor do que esta bosta descafeinada.
Imaginei se era a raiva contida que falava ou se estava zangada porque alguém já estivera falando com ela mais cedo.
— Segure o lance. Você já está quase lá. Mais alguns dias e seu organismo estará livre do hábito.
Ela fez cara de desgosto.
— Sim, está certo. Em alguns dias, e depois? E se eu ainda não conseguir me concentrar?
Era uma boa pergunta. Olívia poderia continuar querendo a droga mesmo depois de seu corpo estar livre dela. Era exatamente o que Channing estava testando: um tratamento para o vício psicológico que permanece depois que a necessidade física cessa. Kutril.
A voz em minha cabeça me fez ficar gelado: "Não o use. Ainda não foi aprovado para esse uso". No entanto, Channing o declarara eficiente e sem efeitos colaterais.
Se pelo menos eu pudesse ver a data das pesquisas de Channing. Kwan devia saber se era seguro dar esse remédio a Olívia. Talvez houvesse uma cópia do relatório no consultório de Channing. Ou no computador dela, se o disco rígido não houvesse sido danificado. Ela dissera que havia dado o relatório para alguém revisar. Daphne, talvez?
Eu não queria dizer nada a Olívia que a fizesse ter esperança. Ela me deu um olhar amargurado.
— Parece que vou ficar louca.
Tinha os dentes cerrados e os olhos muito abertos, como se procurasse conter as lágrimas.
— Trabalho com uma porção de gente que é realmente louca, e você não é — afirmei. — Esteve pensando no que aconteceu?
Ela virou o rosto para o outro lado.
— Parece-me tão irreal...
— Sei o que quer dizer. Isto é parte do que a mente faz quando alguma coisa tremenda acontece com a gente.
— Foi apenas há alguns dias e parece que se passaram anos.
— Lembra-se se tomou Ritalin naquela manhã?
— Tomei, sim.
— Quantos?
— Acho que dois. Depois, briguei com minha mãe e tomei mais.
Ela me fitou de um modo que pensava ser desafiador, mas eu sabia que no íntimo a garota estava se desmontando.
— Você dirigiu até aqui?
Esperava que fazendo perguntas que conduzissem Olívia para fatos comuns poderíamos pôr as emoções de lado, assim ela estaria mais habilitada a entender o que acontecera e poderia começar a lidar com os fatos.
— Mamãe me deixou muito zangada e, depois, não consegui encontrar as malditas chaves do carro. — A voz de Olívia estava rouca. — Quando cheguei aqui o elevador não estava funcionando e tive de subir três lances de escada. Aí, encontrei a porta da sala dela aberta, como se mamãe estivesse me esperando. Eu estava atrasada e sabia que ela ia ficar puta. Eu pensava: vou dizer-lhe que não consegui encontrar as chaves, que a porra do elevador não funciona. E não soube de nada até que entrei... — Ela soluçou. — Estava ali, sentada na sua cadeira, com os olhos fechados. O revólver... — Olívia parou, ergueu a mão com a palma para cima e a deteve a meio caminho. — Corri para ela. Eu queria jogar aquele revólver fora. Mas havia algo estranho, um cheiro. Então, um som, como algo se movendo. Eu devo ter saltado porque bati numa caneca. — As palavras começaram a sair mais rápidas. — Então espalhou-se um cheiro de café na sala. E ele me fez ficar enjoada. Eu queria vomitar. — O rosto dela contraiu-se, e seu corpo começou a oscilar enquanto lágrimas escorriam-lhe pelas faces. — E ela segurava o revólver...
Olívia ofegou, em busca de ar.
— Olívia — interferi —, relaxe.
A jovem aspirava golfadas de ar, mas não conseguia expirá-lo.
— Assopre o ar, Olívia.
Ela segurou-se na mesa com ambas as mãos.
— Sopre o ar pela boca.
Os olhos dela estavam arregalados. Por fim, conseguiu exalar o ar.
— Agora sim... — disse eu, em voz baixa. — Apenas faça tudo bem devagar — acrescentei, falando lentamente de propósito. — Devagar é fácil... Apenas respire... Para dentro... para fora. Muito bem. — O rosto dela já estava menos vermelho. — Continue respirando.
A respiração de Olívia tornou-se menos rápida.
— Agora está bem? — perguntei.
Apertando uma das mãos ao peito ela fez que sim.
— Pode sentir seu coração batendo? De novo ela assentiu.
— Então continue respirando, sem pressa. — Os ombros frágeis tornaram-se menos rígidos. — Agora está sentindo seu coração bater menos rápido... mais devagar — cantarolei.
Olívia inclinou-se para trás. Aos poucos suas mãos descansaram, soltas, no colo.
— Vivo pensando — voltou a falar, agora com calma — que foi como com a minha avó. Só que dessa vez a culpa é minha.
— Olívia, a sua mãe a amava muito. Estava preocupada com você, sim, mas se ela se matou não foi por nada que você tenha feito ou deixado de fazer. Não foi por nada que você tenha dito. Precisa acreditar em mim. Eu conhecia muito bem a sua mãe.
A garota ficou olhando para o colo, apertando e soltando os maxilares.
— Lembra-se de ter voltado à sala da sua mãe depois que o segurança chegou? Por que voltou para lá?
Os olhos de Olívia cintilavam de modo intermitente.
— Ela estava sozinha. Não queria que minha mãe ficasse sozinha.
— Por que atirou o computador lá para baixo?
— Não sei.
— E depois se cortou.
Ela ficou olhando em frente, rígida.
— A culpa foi minha — disse, com voz sem cor. Incrível como a jovem parecia tão pequenina e o peso que carregava era tão grande!
— Sei que provavelmente não acredita em mim — disse eu —, mas entendo o que está passando.. — Olívia olhou-me, e os cantos de sua boca tremiam. — Quando minha mulher foi morta...
— Kate — murmurou ela.
— Kate. Ela a ensinou a fazer vasos de cerâmica, não é? Olívia acenou que sim com a cabeça, depois voltou a fitar o colo.
— Ela foi boa para mim.
— Kate era boa... — confirmei. — E adorava estar com você, mostrar-lhe como lidar com a argila, a usar a roda.
Eu olhava da porta do ateliê ensolarado de Kate, no último piso da nossa casa. Ela estava sentada no banquinho com Olívia acomodada entre suas pernas e guiava as mãozinhas da menina. Juntas, fizeram um vaso nascer da informe massa de argila. Kate me vira e sorrira. Mais tarde ela me dissera como fora bom ter a garotinha lá, ajustada aos contornos de seu próprio corpo. A cabeça de Olívia cheirava a xampu de bebê, contara-me.
— Bem, depois que ela foi morta eu me senti terrivelmente culpado, como você está se sentindo agora. Mas fui em frente, como você irá em frente porque não tem escolha. E porque a cada dia se tornará um pouco mais fácil. Sei que é duro acreditar nisso, mas é preciso.
Olívia suspirou baixinho.
— Sabe o que eu disse quando entrei na sala dela? "Espero que você esteja satisfeita". E mamãe ali sentada, com os olhos semicerrados. Fiquei olhando para ela como quem indaga "Qual é o problema?". — Olívia soluçou. — E disse isso em voz alta...
— Ela já estava morta, Olívia.
— Vovó morreu assim... — a voz da garota era um fio. — Mamãe a encontrou.
— Você pegou o revólver da mão dela? — perguntei. Os olhos dela fitaram os meus.
— Eu não podia deixar que a encontrassem daquele jeito. Ela detestaria isso.
— Você ouviu o tiro, Olívia? Uma expressão cautelosa brilhou nos olhos dela, como se um par de membranas transparentes os cobrisse.
—Não.
— Disse que havia um cheiro estranho... O nariz de Olívia enrugou-se.
— Como de fumaça — respondeu.
Parecia o mesmo cheiro que eu senti. Provavelmente de pólvora. Isso queria dizer que nós dois havíamos chegado logo depois do disparo.
— Você disse que percebeu algo se movendo. Pode descrever o som?
Ela mexeu numa espinha na face.
— Não sei...
— Era o som de algo na sala, com você? A garota fechou os olhos.
— Talvez... Mas também pode ter sido no corredor. Imaginei se ela não teria me ouvido chegar.
— Já estava segurando o revólver quando ouviu o som?
— Não tenho certeza. Acho que não.
— A caneca estava no chão? Olívia abraçou a si mesma.
— Por que tenho de continuar falando nisso? Por que tenho que continuar pensando nisso?
— Sei que é doloroso, Olívia, mas com o passar do tempo falar vai ajudá-la a parar de pensar o tempo todo no que houve, como deve estar acontecendo agora.
Ela olhou para as mãos e entrelaçou os dedos. Foi como se alguém tivesse tirado uma tampa: de repente, lágrimas começaram a descer-lhe pelo rosto. Procurei nos bolsos e peguei meu lenço. Bati com ele na cama de Olívia, livrando-a das bolinhas marrons de felpas, e entreguei-o a ela. Bolinhas de lã de um suéter? Daphne tinha o hábito nervoso de arrancar bolinhas de lã da manga do suéter e estava usando um marrom na última vez que a vira.
— Antes que eu chegasse aqui, hoje, alguém veio vê-la? Olívia olhou para o colo, depois ergueu o rosto para mim.
Eu quase podia ouvir as engrenagens do cérebro da garota funcionando.
— Meu pai — disse por fim. — Ele me trouxe algumas roupas.
— Mais alguém?
— Não — respondeu ela, depressa, e desviou o olhar.
— A polícia quer falar com você — avisei-a.
A jovem mordeu o lábio inferior e apertou o lenço embolado na mão fechada.
— Eles virão na segunda-feira de manhã — prossegui. — Provavelmente vão tirar suas impressões digitais.
— Segunda-feira — murmurou Olívia. Seria dali a três dias, apenas.
Eu sentia que Olívia escondia alguma coisa. Alguém tinha ido falar com ela naquela manhã, provavelmente Daphne. E mais. Por que esgueirar-se de volta à sala de Channing, pegar o computador e atirá-lo pela janela? Aquilo não fazia sentido. Se ela queria quebrar o vidro e cortar-se, o peso de papéis serviria muito bem.
Olívia ficara agitada quando o policial surgira dos arbustos com o laptop. Será que fora porque ele encontrara o computador? Ou estaria ansiosa sobre alguma outra coisa que a polícia descobriria se continuasse a procurar? Talvez a segunda caneca Acu-Med, a que desaparecera da cena do crime, houvesse seguido o laptop pela janela.
Mesmo diante de tantas perguntas sem resposta permanecia claro para mim que a dor de Olívia era genuína. Os cortes no braço dela eram bastante reais e nada superficiais. Por cima disso tudo ela estava passando momentos duros sem suas doses diárias de Ritalin.
Telefonei para Daphne e deixei um recado. Mesmo não podendo dar-lhe informações a respeito de Olívia, eu podia ao menos perguntar sobre a pesquisa de Channing. Provavelmente ela estava a par do regime do Kutril. Quando verifiquei meus recados, poucas horas mais tarde, Daphne me dizia que teria algum tempo livre no fim do dia.
Fui para a Unidade de Reabilitação de Drogas e do Álcool ali pelas cinco horas. Levei uma lanterna e ignorei os olhares curiosos dos que me viram remexendo os arbustos embaixo da janela da sala de Channing. Encontrei galhos quebrados de alguns teixos, sobre os quais provavelmente o laptop aterrissara. Agachei-me e procurei no solo, dirigindo a luz por entre troncos e galhos. Os cuidados de limpeza no Pearce eram meticulosos, por isso não me surpreendi por não encontrar canecas de café vazias ou lixo onde ninguém poderia vê-los. Procurei sistematicamente, em círculos ampliados. Nada encontrei além de alguns cacos de vidro.
Havia passado quatro dias depois do assassinato. Tempo bastante para alguém, inocentemente ou não, ter pegado a caneca ou recolhido seus pedaços. A única coisa que eu sabia com certeza é que esse alguém não era Olívia. Se ela houvesse saído da minha unidade eu teria sabido.
Desisti e entrei na Unidade de Drogas e do Álcool. Peguei o elevador para o quarto andar. Havia um cesto para lixo de metal junto à parede, provavelmente o que servira para manter a porta do elevador aberta no dia em que eu estivera lá pela última vez e encontrara Channing morta.
Olhei para os dois lados do corredor. Podia ouvir o elevador gemendo enquanto descia e o rumor das lâmpadas fluorescentes. O carpete parecia de um verde radiativo. Meu coração batia forte, e minha respiração tornara-se curta. Obriguei-me a andar pelo corredor.
A porta da sala de Channing estava interditada. Tudo que se notava na fita amarela com os dizeres "Cena do crime — Mantenha distância" era um par de marcas deixadas por esfregar-se contra o umbral. Toquei uma das abrasões.
Ergui a cabeça e vi Daphne em pé junto à porta do seu consultório. Parecia cansada, o rosto marcado e aflito como se ela houvesse envelhecido uma década nos últimos dias.
Fui para a sala dela e sentei-me. Um abajur azul e branco, no pé que era uma garrafa arredondada cor de gengibre, punha morna claridade nos papéis e pastas espalhados sobre a mesa. No parapeito da janela as flores de uma violeta-africana tornavam-se marrons. Chintz colorido suavizava as poltronas e o sofá institucionais espalhados na sala.
Havia um laptop numa prateleira deslizante, de plástico púrpura, sobre a mesa. A cafeteira borbulhava num canto, enchendo o ambiente com o cheiro reconfortante de café fresco. Observei as paredes. Havia diplomas e placas, juntamente com fileiras de fotografias.
Daphne encaminhou-se para uma foto do marido.
— Tirei-a quando estávamos em Londres, no ano passado, antes de Robert... — Ela estremeceu. — Robert disse... — Deu uma risada forçada. — Imagino-me conversando com ele. Ajuda.
Com a ponta de um dedo, acompanhou o contorno do rosto dele.
— Robert era fervoroso fã de Channing. Ela estava conosco no fim, sabe?
Eu não sabia. Estivera no funeral de Robert Smythe-Gooding, mas a multidão reunida na sala — inúmeras pessoas agrupadas falando e trocando lembranças sobre o falecido — era como um borrão para mim. Com certeza Channing achava-se presente, falara com eloqüência, mas eu não me lembrava.
— Como Livvy está reagindo? — perguntou Daphne, sentando-se à sua mesa.
— Difícil dizer...
O suéter marrom de Daphne estava no espaldar da cadeira dela.
— O que você acha? — continuei. — Foi vê-la esta manhã, não?
Daphne esfregou a nuca com uma das mãos, e com a outra pegou algumas amêndoas doces de uma tigela sobre a mesa. Suas unhas estavam amareladas pela nicotina.
— Posso oferecer-lhe um café? — perguntou.
— Claro... — assenti. — Preto.
Ela serviu duas canecas. Na sua colocou uma colher de açúcar, depois outra. Entregou-me a minha e foi com a dela para a mesa. Sentou-se e inclinou-se para trás.
— Eu não podia deixar de ir. Channing pediu-me para ir. Eu sabia que ela quisera dizer Olívia.
— Você não se importa, não é? — perguntou-me.
— Importar-me? Por que eu...
Como psiquiatra profissional, além de uma das altas administradoras, Daphne podia ir aonde bem quisesse no Pearce. Imaginei sobre o que Olívia precisava falar-lhe que não quisera me dizer. Daphne tinha estado lá? Mas eu não podia perguntar diretamente. Afinal de contas, era direito dela ver sua paciente, falar com ela em particular. Eu só esperava que não pretendesse continuar vendo-a regularmente. Agindo ao mesmo tempo, nós dois só iríamos causar confusão na cabeça de Olívia, para não mencionar que seria contraproducente.
— Da próxima vez — pressionei —, será que pode me avisar? Como simples cortesia.
— Bem, o que posso fazer por você?
— Estou tentando saber mais sobre o tratamento que Channing estava testando. Poderá ser algo que possamos usar com Olívia para cortar seu vício em Ritalin.
— Channing lhe falou sobre seus resultados, Peter?
— Apenas que estava muito satisfeita. Disse que alguém estava revisando sua análise. Pensei que fosse você...
— Os resultados dela são impressionantes.
Enquanto falava, Daphne abriu a gaveta de cima da escrivaninha e procurou algo. Pegou um disquete e fez menção de entregá-lo a mim, mas antes perguntou:
— Eu gostaria de saber... o que achou daquela briga no fim da festa de Channing?
Tentei pegar o disquete, mas ela recuou a mão. Ficou claro que aquilo ia ser uma troca.
— Tive impressão de que eles discutiam sobre relatar ou não um falecimento... — respondi, e vi que o rosto de Daphne tornara-se mais sério. — Channing queria comunicar, Jensen não.
Por fim Daphne entregou-me o disquete, e eu prossegui:
— Ele disse que aquilo iria prejudicar o Instituto. Tenho tentado dar um sentido ao que ouvi. Talvez um dos pacientes submetidos a um teste de medicamento tenha morrido e ninguém mencionou o fato num relatório Acontecimento Adverso.
— Uma morte... — murmurou Daphne. — Não. Nada ouvi sobre alguém ter morrido durante uma experiência clínica. Agora que as pesquisas com o Kutril foram completadas há apenas um medicamento sendo testado na Unidade de Drogas e Álcool. Jensen está analisando o DX-200.
— Você não acha... — comecei.
— Falei por telefone com a Acu-Med hoje de manhã. Estão contentes pelo fato de os testes estarem tão adiantados. Com certeza não houve... Imagino que... — A mão dela meio que cobriu-lhe a boca, depois abaixou-se. — Posso tentar me informar. É uma das vantagens de estar na direção de testes clínicos do Instituto. Basta-me perguntar.
— Conte-me o que descobrir. E obrigado pelo relatório. Vai ser de grande ajuda. — Levantei-me. — Alguma idéia de onde encontrar as anotações de Channing, as fichas de pacientes? Quero saber em que ponto ela estava na pesquisa com o Kutril para não cometer nenhuma imprudência caso resolva utilizá-lo em Olívia.
— Provavelmente guardadas no consultório dela. Eu ficaria muito surpresa se sua pesquisa não estivesse numa gaveta de arquivo, em ordem alfabética e perfeitamente exposta. Dê-me um minuto para pegar minhas coisas e levo você lá antes de sair. Pode vir aqui quando quiser e verificar o que bem entender.
— Obrigado — disse eu.
Daphne vestiu o suéter e, em seguida, o casaco. Pegou a pasta de couro.
— Ela confiava em nós, Peter — disse, agarrando meu braço. — Temos de ajudar Livvy.
A voz dela transbordava emoção, e seus olhos encheram-se de lágrimas.
Eu sabia que nós dois estávamos tentando ajudar Olívia. Só esperava que houvéssemos escolhido a mesma direção.
Daphne fez-me entrar no consultório de Channing e foi embora. A sala cheirava a desinfetante. Tapei a boca com a mão e senti o café querendo subir-me pela garganta. Esse mesmo cheiro pairava no ateliê de Kate, insinuando-se no nosso quarto e no térreo bastante tempo depois de ela ter sido assassinada.
O receptor do telefone estava no lugar. Assim mesmo o ruído e a voz que emitia naquele dia ecoaram na minha cabeça. Forcei-me a olhar para o ponto em que vira Channing. A cadeira de couro estava lá. Havia sido limpa.
Tratei de me dominar e comecei a procurar a pesquisa de Channing. Alguém tirara tudo de cima da mesa dela. As gavetas estavam trancadas. Procurei pela chave embaixo do mata-borrão. Nada. Então, tentei no copo alto de granito em que ela colocava canetas e lápis. Encontrei uma argola com pequenas chaves.
Abri a gaveta de arquivo da mesa. Continha um grande número de divisórias com as identificações em ordem e pastas púrpura em seu interior. Mas nas pastas era a maior bagunça — o contrato do convênio de saúde de Channing, anotações sobre palestras que dera, informações sobre grupos de apoio a abusos.
Voltei minha atenção para o fichário alto e cinzento. A chave encontrava-se na fechadura. A gaveta de cima tinha a definição PESQUISA. Era isso, era ali que deveriam estar os relatórios. Puxei a gaveta na minha direção — vazia.
Verifiquei a segunda gaveta. Tinha tantas pastas que era impossível tirar uma sem arrancar várias junto. Prontuários de pacientes. As terceira e quarta gaveta continham relatórios, documentos administrativos e contas de pacientes. Nada sobre a pesquisa do Kutril.
Abri de novo a primeira gaveta. Intrigava-me que estivesse vazia. Será que ela guardara a pesquisa em outro lugar para protegê-la mais? Ou alguém se apoderara dela depois da morte de Channing?
Examinei as estantes. Havia referências médicas, livros de psiquiatria, publicações médicas, algumas caixas com documentos acadêmicos. Tirei alguns da estante e recoloquei-os no lugar, até que vi uma agenda de capa preta enfiada no fundo da estante. Peguei-a. Continha anotações em cada dia das semanas.
Fui para o dia em que Channing tinha sido assassinada. Na linha das onze horas ela escrevera "P. e O. café". Às dez estava anotado "D". Quem seria? Destler? Daphne? Também poderia ser a inicial do nome de qualquer pessoa — paciente, funcionário do Instituto, um amigo.
Devolvi a agenda ao lugar onde a encontrara. Depois escrevi um rápido bilhete para Daphne, dizendo que nada pegara porque nada havia para pegar. Saí da sala, recoloquei o cadeado da porta no lugar e fechei-o.
Depois de enfiar o bilhete por baixo da porta do consultório de Daphne fui para o elevador, passando pela sala de Liam Jensen. A porta estava encostada. Voltei e bati.
— O que é? — perguntou Jensen, com uma ponta de irritação na voz.
Entrei, e ele me olhou, surpreso.
— Sim? Peter?
Fechou a pasta que estava manuseando e virou-a com a capa para baixo, batendo-a sobre a mesa.
— Espero que não se importe — comecei. — Vim conversar com Daphne e vi sua porta aberta.
— Tudo bem, tudo bem... — Os lábios dele contraíram-se no que supus que deveria ser um sorriso. — Em que posso ajudá-lo?
— Estou procurando a pesquisa da dra. Temple sobre o Kutril.
— Acredito que esteja no consultório dela.
Jensen falou sem me olhar diretamente e mexendo a mão direita.
— Já procurei lá. Pensei que talvez ela a tivesse entregue a você.
— A mim? — Jensen deu uma risadinha amarga. — Creio que não.
— As pesquisas de vocês dois eram uma contrária à outra, não?
Olhei para o tampo do arquivo ao lado da escrivaninha. Havia uma fileira de umas doze canecas para café alinhadas em ordem alfabética, de Acu-Med a Zoloft. Era uma verdadeira coleção. Olhei mais para baixo. A última gaveta do arquivo estava meio aberta. Jensen empurrou-a com o pé, mas algumas pastas cor de púrpura impediram-na de fechar-se completamente.
— Acho que se pode dizer isso — respondeu. — Se bem que eu não o veja assim. Afinal, estamos todos trabalhando pelo bem da humanidade.
Ele era tão presunçoso que não consegui me impedir de alfinetar:
— Ouvi dizer que houve alguns acontecimentos adversos com a pesquisa do DX-200. Uma morte...
— Morte? — Jensen parecia chocado. — É uma absoluta mentira. Quem lhe disse isso?
— Não era a esse respeito que você e Charming discutiam no final da festa na casa dela?
— O quê?
Jensen estava mesmo abafado. Dava a impressão de pensar depressa. Sua testa alisou-se por instantes, depois franziu-se, e a expressão dele tornou-se mais defensiva.
— O que discutíamos nada tinha a ver com os testes do DX-200 — esclareceu —, nem com a pesquisa sobre nenhum outro medicamento. Trata-se de um assunto particular entre a dra. Temple e eu.
— E você acha que isso nada tem a ver com a morte dela, não é?
— Com a morte dela? — As sobrancelhas de Jensen ergueram-se no máximo do espanto. — Bem... — Considerou a possibilidade. — Não — respondeu lentamente. — Isso não. — Fez uma pausa. — Não posso imaginar...
Fosse do que fosse ele não estava disposto a me dar detalhes. Então eu disse:
— Acabo de vir do consultório da dra. Temple. A gaveta do arquivo de pesquisas está vazia.
O rosto de cera de Jensen coloriu-se um pouco.
— Esquisito... Talvez as pastas tenham sido mudadas para um local mais seguro, agora que...
— Se o conteúdo era confidencial, imagino que os relatórios sobre pacientes também deveriam ter sido removidos. Mas não foram. Aliás, a sala está trancada a cadeado, foi Daphne que abriu para mim.
— Como já disse, não sei. Mas como diretor da unidade é meu dever cuidar para que pastas confidenciais permaneçam confidenciais.
— Diretor da unidade? Jensen tossiu.
— Bem, sim... O dr. Destler indicou-me para assumir as responsabilidades de Channing.
—Diretor temporário?
— Hum... não. Acredito que a nomeação seja permanente. Será que aquilo já tinha sido planejado de antemão?
— Creio que é o caso de congratulações... — observei. Ele fez um gesto vago com a mão.
— Eu não acho, devido às circunstâncias.
Sexta-feira era o dia do aniversário da minha mãe. Eu queria levá-la para jantar fora, mas ela insistiu em tomarmos o café da manhã juntos. Era a única ocasião em que podia me interrogar, segundo dizia. Como sempre, eu estava um pouco atrasado. Também como sempre, ela não estava me esperando. Às oito horas em ponto mamãe bateu à minha porta e eu abri.
Seu cabelo branco, perfeitamente penteado e crespo, mal chegava ao meu queixo. Usava um conjunto de moletom púrpura com flores cor-de-rosa pintadas no blusão e na lateral de uma das pernas.
— Rabanadas? — ofereceu ela, e imediatamente desapareceu pela porta de sua casa, geminada à minha.
Tranquei a porta e segui-a, desde o saguão às escuras até a cozinha bem iluminada, onde pairava no ar o delicioso cheiro de café acabado de fazer.
— Mas eu pensei que fosse levá-la para tomar o café da manhã fora! — reclamei enquanto ela já me servia café. — E o seu aniversário.
— Então, parabéns para mim! Não posso fazer o que eu quero?
Suspirei.
— E você quer...
— Ficar aqui e fazer rabanadas para meu filho lindo — respondeu mamãe, com um sorriso radiante.
— Pois sim! Ficou é com medo de que eu a levasse para comer em algum lugar lúgubre!
Minha mãe me olhou agastada. Quando se trata de comida ela não gosta de surpresas. Tem medo do que pode estar aninhado no interior dos quentes bolinhos chineses que cerca de meia dúzia de restaurantes de Chinatown servem ao café da manhã e que são minha idéia do paraíso.
— Mas não se preocupe — acrescentei —, ainda há chance, durante a semana, de levá-la para saborear comidas lúgubres.
— Bem, isso me anima muito.
— Eu ia levá-la ao Spinnaker, no topo do monte Hyatt. Dizem que eles têm um café da manhã fantástico.
— Aquele restaurante que gira? — Tem vistas sensacionais.
Minha mãe fez cara de quem mastigou um picles azedo demais.
— Restaurantes não devem girar. Eles devem ficar parados no lugar para que você possa digerir a comida direitinho. E é muito caro. Aposto que cobram três dólares por um suco de laranja.
Pegou uma caixa de suco Tropicana da geladeira, sacudiu e serviu-me um copo.
— Você não quer? — perguntei.
— Eu já tomei o café da manhã — anunciou ela.
E remexeu o conteúdo de uma tigela. Havia challah[4] fresco no balcão, a casca escura brilhando, e na tigela duas fatias de pão embebiam-se em leite e ovo batidos. Manteiga derretia numa frigideira. Manteiga de verdade. Minha mãe achava margarina uma mistura — ela não sabia do quê, mas uma mistura assim mesmo.
Não havia meio de convencê-la a deixar que eu a levasse para comer fora. Ela já se encarregara de tudo. E, para ser honesto, a perspectiva das rabanadas de mamãe enfraqueciam minha determinação.
A frigideira chiou quando ela colocou a primeira fatia molhada, e chiou de novo quando acrescentou a segunda. Então, fez-se aquele barulhinho suave do pão suspirando enquanto se expande, cada fatia ia tornando-se um aerado travesseirinho depois de frita. O cheiro gostoso me invadiu a memória levando-me de volta ao nosso apartamento no Brooklyn, onde a cozinha era maior do que qualquer outro aposento.
— Como vai aquela menina? — perguntou minha mãe.
— Ela está... Não sei direito. Passa por uma provação difícil e, além disso, é viciada em Ritalin. É o que eles dão...
— Pssiuu... — fez mamãe. — Eu sei o que é Ritalin. Quantas vezes desejei que pudéssemos dá-lo ao seu irmão Steven... a pílula mágica para acalmá-lo.
— Para mim não?
— Não. Você era fácil, a não ser pelo fato de ter comido apenas Torradas de Milho Café da Manhã durante três anos. Isso e um copo de leite.
A menção das Torradas de Milho trouxe-me outro cheiro à lembrança — algo entre papelão e flocos de milho. Atualmente eu não conseguia nem sequer olhar para elas. O que minha mãe não sabia é que naquele tempo, todos os dias, quando ia para a escola e quando voltava para casa, eu parava numa confeitaria para comer creme de chocolate e um enorme biscoito branco e preto, gelado, metade chocolate, metade baunilha. Jamais encontrei nada parecido em Boston. E olha que procurei muito.
— Alguma vez pensou em levar Steve para um psiquiatra? — perguntei.
Mamãe sorriu e balançou a cabeça.
— Naquele tempo se não se podia ver um problema, ele não existia.
Talvez, se o tivessem feito, meu irmão tivesse sido salvo de três casamentos infelizes. Ou talvez não.
Eu já estava na metade da segunda rabanada quando minha mãe disse:
— Tenho de estar na estação rodoviária dentro de quarenta minutos.
Tenho de estar na estação? Sessenta anos de Brooklyn, cinco de Boston e ela falava como se houvesse nascido ali. Bem, pelo menos não dizia Tenho qui tá na estação.
Falou, desapareceu e voltou poucos minutos depois vestindo seu agasalho de lã com capuz e carregando uma bolsa pequena de viagem, preta e com zíper. Enfiei depressa o último pedaço de rabanada na boca antes que ela pegasse o prato. Limpou as louças com papel-toalha, colocou-as na máquina de lavar, adicionou um pouco de sabão em pó e ligou-a.
— Pronto? — perguntou-me e olhou o relógio acima do fogão. — Trinta e dois minutos para a partida.
— Para onde?
— Windsor.
— Canadá?
— Isso, e é longe demais para ir de ônibus, se quer saber.
— Jogo?
— E remédios — disse ela, com franqueza. Fez um gesto com a mão, diante da minha surpresa. — Uma pessoa pode abrir falência comprando remédios neste nosso país. E em geral eu ganho quando jogo. Vinte-e-um... — acrescentou, toda satisfeita consigo mesma. — Não consigo ganhar naqueles caça-níqueis, sabe?
— Eu posso perfeitamente ajudá-la a comprar seus...
— Não se trata disso. Você sabe o dinheirão que essas indústrias farmacêuticas roubam de nós? Ladrões safados, todos eles — desabafou.
E foi para a porta carregando sua bolsa.
Annie saiu da cidade no fim de semana. Sábado e domingo realizei uma porção de tarefas que eu me comprometera a fazer na casa da minha mãe. Substituí fechos quebrados de janelas, consertei interruptores de luz defeituosos, vedei a torneira da máquina de lavar roupa que estava vazando, fechei com massa algumas rachaduras no teto do banheiro e pintei-o. Entre um trabalho e outro telefonava para a unidade a fim de saber se tudo estava bem.
Cheguei ao trabalho na segunda-feira e parei primeiro na sala das enfermeiras, como sempre faço. Glória estava à escrivaninha — coisa estranha para uma mulher que jamais senta enquanto trabalha. Ela mexeu a cabeça quando me aproximei e dirigiu o olhar para a sala de espera. O sargento MacRae estava lá, sentado e lendo um jornal. Ao lado dele achava-se uma policial uniformizada. Tinham chegado cedo.
Quando perguntei como estava Olívia, Glória balançou a cabeça.
— Pegaram-na na noite passada tentando entrar no almoxarifado.
— Droga! Essa é boa. Justo agora.
— Eu já a repreendi duramente — informou a enfermeira. — Ela está tentando acalmar-se.
Fui para perto de Mac, que abaixou o jornal.
— Chegou um pouco cedo — eu lhe disse. — O pai da srta. Temple só virá às nove.
Esperei que ele reclamasse, dizendo que o pai de Olívia não precisava estar presente, pois, afinal, ela não era suspeita. Mas ele não o fez. Apenas apresentou-me à sua colega, policial Connor, uma mulher grande, robusta, de rosto simpático.
— Café? — ofereci.
Eles agradeceram. MacRae voltou ao seu jornal. Eu me servi de outra caneca e fui com ela pelo corredor, para o quarto de Olívia, que estava de pé, olhando pela janela. Seus cotovelos ossudos sobressaíam das mangas da camiseta; o jeans, largo demais, dançava nos quadris. Seu rosto demonstrava ter sido lavado, e os cabelos estavam úmidos.
— Eles já chegaram — comuniquei. — Você está bem? Ela mordeu o lábio inferior e fez que sim.
— E o meu pai? — perguntou; havia um cílio na sua face.
— Vamos esperá-lo. Ele deverá chegar logo. A garota respirou fundo. Tremia.
— Você não está se sentindo bem, está?
Pelo olhar dela, eu soube que considerava o meu QI igual ao de uma ameba em estado de coma.
— Não consigo me concentrar. O corpo todo me dói. Tudo que quero é dormir. Você me tirou o Ritalin depressa demais.
— E ouvi dizer que você foi à procura dele esta noite.
— Preciso dele para pensar direito.
Era evidente que ela precisava de ajuda. Mesmo que fossem pílulas de açúcar. Por outro lado, por que usar um placebo se tínhamos um tratamento genuíno para ela com o Kutril? Senti no bolso o disquete que Daphne me dera.
— Vamos verificar se um... — comecei.
— Por que não me dá o que preciso? — cortou Olívia.
A veemência com que falou fez sua cabeça sacudir. A impaciência, o mau humor pareciam excessivos como reação à retirada de uma dosagem terapêutica do remédio. Provavelmente ela andara tomando Ritalin demais e por um longo período. Passou a mão na testa, e seu rosto se contraiu. Então o olhar dirigiu-se para a caneca que eu segurava.
— Eu gostaria de ver você ficar sem café. Toma zilhões de canecas por dia.
— Nada disso — neguei.
— É isso, sim — gritou ela.
Olhei para o café. Era minha quarta caneca naquela manhã. Ela cruzou os braços ao peito.
— Garanto que não é capaz de parar.
Antes de pensar, respondi:
— Claro que sou.
— Aposto que não pode.
— Aposto que posso.
— Prove.
Compreendi que havia me metido numa discussão idiota com uma criança. O problema é que ela me atingira em cheio. Eu andava tomando muito café. Precisava dele para manter o equilíbrio, como Glória comentou uma vez em que cheguei ao trabalho insuficientemente cafeinado. Eu não gostava de pensar em mim como dependente de uma substância. Irritava-me o pensamento de que não seria capaz de largá-la, mesmo que não completamente.
Dei a Olívia o meu olhar de raios X.
— A troco de quê?
— Vai apostar mesmo? — perguntou a jovem, descrente.
— Depende do que você oferecer.
— Uau... — fez ela. — Está bem, vou tentar.
— Você não usará mais drogas?
— Prometo. — Ela passou um dedo de alto a baixo no peito e depois horizontalmente. — Juro, posso até morrer, enfiar uma agulha no meu olho...
Ali estava o tipo da coisa encantadora para uma adolescente dizer. Ou será que aquela adolescente fora capaz de matar a própria mãe?
Ergui a caneca. Respirei fundo e fui para a pia do banheiro dela.
— Pronto, lá vai ele...
Coloquei-me em posição, mas hesitei. Era como aquele momento em que você está de pé na ponta de um trampolim sobre uma piscina não aquecida. Segurei a respiração e derramei o café na pia. Imediatamente me arrependi quando vi o líquido de um rico marrom descer pelo ralo.
Glória apareceu à porta com Drew. O rosto dela mostrava-se tenso, a boca apertada numa linha fina. Alguma coisa estava errada, algo mais do que nossa coletiva ansiedade em relação ao inevitável encontro de Olívia com a polícia. Quando vi Drew, compreendi o que era. Parecia que ele havia dormido vestido e a gravata fora afrouxada no pescoço. Ele se barbeara, por assim dizer, havia um pedacinho de lenço de papel grudado no queixo e manchas grisalhas nos locais em que o barbeador não passara. Estava pálido, e seus lábios, excessivamente rosados.
Abriu os braços para Olívia. No mesmo momento a garota pareceu enjoada, e no instante seguinte, assustada.
— Agora? — murmurou.
Correu para o pai com o queixo tremendo e escondeu o rosto no peito dele, que alisou-lhe os cabelos.
— Drew — interferi —, posso falar um momento com você?
— Papai... — disse Olívia.
— Voltaremos em um minuto — prometi e levei Drew para fora do quarto.
Andei pelo corredor até um lugar onde não nos escutariam. Parei muito perto dele e disse com voz baixa, intensa:
— O que é que você está pensando, vindo bêbado para cá?
Drew piscou, de boca aberta. Na verdade, ele cheirava a pasta de dentes, a loção pós-barba, e não a bebida. Parecia aturdido. Rapidamente a surpresa transformou-se em raiva.
— Não... estou... bêbado.
Passou a mão várias vezes sobre a boca.
— Não acha que a polícia vai ter a mesma impressão que eu?
Ele olhou para o chão.
— Talvez eu tenha bebido demais ontem à noite... Tirou um lenço do bolso e assoou o nariz.
— Encontrou o Ativan?
— Não, não encontrei.
— Há alguém para quem você possa telefonar? Anda vendo alguém?
— Não mais — respondeu ele.
— Eu quero dizer, está vendo um terapeuta? Está seguindo algum tratamento?
— Não.
Seus olhos estavam congestionados.
— Sério, Drew, você precisa de ajuda. Precisa se reerguer. Tem de dar apoio a Olívia. Que Deus me ajude, mas se você me aparecer aqui assim, de novo, eu o ponho para fora do Instituto.
— Você não vai...
— Vou, sim.
Ele fechou os olhos e pareceu tentar equilibrar-se.
— Dê-me apenas um minuto — pediu. Penteou o cabelo.
— Drew, tem um pedacinho de papel... — apontei para o meu queixo.
Ele retirou o papel que grudara em seu rosto. Ajeitou a camisa para dentro da calça, desfez o nó da gravata e o fez de novo. Dessa vez ela ficou ajustada ao pescoço. Então respirou fundo, endireitou os ombros e disse:
— Pronto. Vamos.
Quando entramos no quarto de Olívia, ele pegou-a pelo braço.
— Muito bem, pequena, vamos resolver esse assunto. Levei-os para o refeitório. Glória foi buscar MacRae e a policial Connor e levou-os para lá.
O investigador pôs sua pasta de couro no chão, tirou dela um gravador e colocou-o na mesa. Connor, a seu lado, armou-se com um bloco e caneta.
Fui ficar na sala das enfermeiras, de onde podia observar o que acontecia pelo enorme painel de vidro. Enquanto esperava, peguei o disquete e coloquei-o no computador. Havia um único arquivo nele: RELATÓRIO-RASCUNHO. Estava datado de duas semanas antes da morte de Channing.
No refeitório o sargento achava-se inclinado para trás em sua cadeira, o queixo enfiado no peito, ouvindo Olívia. Ela parecia alheia, sem emoção.
Abri o arquivo. Continha trinta páginas com a análise e os resultados do teste do Kutril. Era um rascunho com trechos faltando. Mas o que eu precisava saber sobre o tratamento estava claramente explicado. Dei uma espiada em quadros e mapas. Se bem que não seja perito em farmacologia clínica, os resultados pareceram-me impressionantes. Recostei-me na cadeira enquanto imprimia o relatório.
Aquela altura MacRae pegava papéis de sua pasta e mostrava-os a Olívia. Ela retirou-os das mãos dele e jogou-os longe. Então desabou, chorando e sacudindo a cabeça. Drew parecia querer saltar por cima da mesa e estrangular o investigador.
De repente, tudo terminou. MacRae guardou o gravador. A policial Connor tirou as impressões digitais de Olívia. Os dois levantaram-se para ir embora. Fui até lá e abri a porta do refeitório.
Quando Mac me viu, seu rosto tornou-se rígido.
— Você mentiu para mim — disse-me por entre os dentes apertados.
— Eu jamais menti — declarei, mantendo minha voz calma e indiferente.
— Você... você... — ele espumava. Ergui as mãos.
— Não menti. Nenhuma vez. É verdade que não lhe disse tudo, mas respondi honestamente às suas perguntas.
— Você ocultou deliberadamente...
"Me dê um tempo!", eu tinha vontade de dizer. Sentia-me muito cansado.
— Fiz o que precisava para proteger a minha paciente — disse, porém. — Ela precisa ficar sob cuidados médicos.
— Pois agora a menina não precisa de médico, mas sim de um advogado, e bem esperto.
Ele fez um gesto como querendo afastar-me e foi embora com a policial Connor nos calcanhares.
Voltei para o refeitório. Drew e Olívia ainda se encontravam sentados à mesa. Ele estava cor de cinza. Ela mantinha-se imóvel, com a cabeça entre as mãos.
— Por que a estão tratando como criminosa? — perguntou Drew.
— A polícia não gosta de surpresas — respondi. — Eles não gostam de ser os últimos a saber que uma testemunha segurava a arma do crime.
— E tem mais... — disse Olívia lentamente, erguendo a cabeça e sentando-se direito.
Sentei-me, sabendo que não queria ouvir o que ela ia me contar.
Drew foi pegar a bola de papel amarrotada que fora jogada num canto do refeitório.
— Encontraram isto no computador de Channing. Conseguiram recuperar o que havia no disco rígido.
Ele juntou os três pedaços da folha de papel sobre a mesa. Li o que estava escrito e fiquei meio enjoado. Eram mensagens por e-mail de Olívia para a mãe. Parágrafos de vitríolo puro. O último datava da manhã do dia da morte de Channing. Terminava assim:
Eu a odeio eu a odeio eu a odeio! Queria que você morresse, assim não teria de lidar com toda essa sua merda.
Olívia soluçou:
— Está vendo por que sou culpada? Eu a fiz se matar. Agora eu entendia. Fora por isso que Olívia voltara à sala de Channing e atirara o computador pela janela. Queria destruir o instrumento que usara para transmitir à mãe a raiva que sentia dela. Teria sido uma atitude decorrente da culpa e do remorso ou uma tentativa deliberada de esconder uma evidência da polícia?
— Olívia, quando neste mundo sua mãe fez alguma coisa só porque alguém a mandou fazer? — perguntou Drew, e a garota fitou-o com os olhos vermelhos. — Sua mãe podia ser a pessoa mais teimosa, mais cabeça-dura, mais do contra que já vi.
Olívia riu, a despeito de si mesma. Drew segurou-lhe o queixo e a fez olhá-lo diretamente.
— Se ela se matou — prosseguiu, então —, e note que eu disse se, pois não acredito nem por um segundo que ela o tenha feito, pode estar certa de uma coisa, filha... não foi por causa de nada que um de nós dois lhe tenha dito.
Quando Drew estava por ir embora, conversamos a sós por alguns momentos e eu lhe disse:
— Se a polícia decidir que não foi suicídio, irá procurar outra pessoa para pôr a culpa.
— Eu sei disso — concordou ele, sombrio.
— Olívia teve a oportunidade. Suas impressões digitais estão no revólver. Os e-mails sugerem o motivo. Eles podem, facilmente, acusá-la de assassinato.
Peguei um cartão de visita meu e escrevi no verso o nome de Chip Ferguson e seu telefone.
— Ela precisa de um bom advogado — acrescentei — e é bom que você fale com ele o quanto antes.
Drew hesitou.
— Temos o advogado da família...
— Nesse caso é preciso alguém experiente em leis criminais. Trabalhei com Chip. Ele foi defensor público e agora trabalha particularmente. E excelente e, além disso, um bom homem, que tem uma filha um pouco mais velha do que Olívia.
Relutante, ele pegou o cartão.
Quando voltei, Olívia achava-se enrolada numa manta, e Glória preparava-lhe um chocolate quente. Tirei o relatório da impressora e fui em busca de Kwan. Ele trabalhava na sala de reuniões. Ergueu a cabeça e viu os papéis que eu segurava.
— Por acaso escreveu uma novela a respeito de um homem que decepou o nariz porque detestava o próprio rosto?
Às vezes penso que ele é médium.
— Como soube?
— O quê?
Claro que ele não sabia, mas eu ia dizer-lhe.
— Larguei o café.
Aquela foi uma das poucas vezes que vi Kwan perder a fala.
— Nada assim tão difícil — acrescentei. — Acontece que descobri que estava me tornando dependente.
Jamais iria confessar que fora por causa de uma aposta cretina com uma garota de dezessete anos.
— Sei que houve momentos, antes deste, em que achei que você estivesse ficando maluco. Mas agora tenho certeza. — E Kwan completou: — Se a coisa ficar muito feia, espero poder assistir.
— Não se preocupe, você terá uma cadeira na primeira fila. — Estendi-lhe o relatório. — Pode dar uma espiada nisto para mim?
Ele olhou a página com o título e pegou os papéis. Começou a ler a introdução e o sumário. Em seguida foi mudando de página, parando aqui e ali para examinar uma tabela ou um mapa.
— Parece interessante — disse, por fim. — Eu sempre soube que a dra. Temple era uma excelente pesquisadora. Diga-me, por favor: por que, exatamente, quer que eu leia isto?
— Estou pensando se devemos dar Kutril a Olívia. Ela largou o Ritalin, porém está sofrendo demais. Tem de lidar com a morte da mãe, com vários problemas familiares e, ainda por cima, está sendo acusada de assassinato.
— O Kutril não foi aprovado para tratamento de vício, foi?
— Não. Mas não se trata mais de um medicamento experimental. Sabemos que o Trifalon é seguro em pequenas doses, desde que não utilizado por muito tempo. E o kudzu vem sendo usado pelos chineses desde o século primeiro.
— Provavelmente não concentrado em forma de pílula — contrapôs Kwan.
— Mesmo assim parece que não há grande risco.
— Tenho algum tempo hoje à tarde — disse ele.
-— Quanto antes, melhor, Kwan. Na noite passada ela tentou arrombar o almoxarifado. Ele consultou seu relógio.
— Está bem, está bem. Dentro de uma hora.
Era quase hora do almoço. Eu ficara de ir buscar minha mãe na rodoviária e cheguei no último momento.
— Como foi o passeio? — perguntei.
Coloquei sua bolsa de viagem no porta-malas do meu carro e abri a porta para ela. Mamãe eslava de blusão com a insígnia do Casino Magic.
Ela olhou-me através da viseira verde-clara que usava.
— Nada mau — admitiu, largando-se no assento. Recolheu os pés, recostou-se e colocou o cinto de segurança. — Ganhei alguns dólares.
Entrei no carro. Quando já saía para a rua, perguntei, rindo:
— Dá para comprar seus remédios?
— Dá, sim — respondeu, sacudindo os ombros. Abriu a bolsa e tirou um vidro de pílulas, depois outro.
Tentou abrir um deles.
— Ufa, à prova de crianças... Não sei como esperam que adultos consigam abri-los!
Quando paramos num farol, abri o frasco para ela. Pegou uma pílula de cada. Uma era pequena e branca, a outra era duas vezes maior e de um brilhante cor de laranja.
— Comprei este aqui — e apontou para o vidro de pílulas brancas.
Virei uma esquina.
— E para que é esse remédio?
— Para minha artrite. Não chega a me custar um dólar e meio por dia. Se eu quisesse gastar esse dinheiro todo, era só pedir pelo correio. Este branco, que comprei agora, deve ser o mesmo remédio que o cor de laranja, que comprei na Walgreens.
Parei o carro na nossa entrada de garagem e olhei para a mão dela.
— Não me parece que os dois sejam a mesma coisa. Minha mãe tornou a guardar os frascos na bolsa e fechou-
a com um clique, dando-me um sorriso paciente.
— Sempre dissemos que você poderia ser um cientista famoso.
— Não seja irônica.
— O que preciso saber é quantas destas — mostrou-me a pílula branca — teria de tomar para completar uma desta — mostrou a pílula laranja.
— Não recebeu instruções a respeito, mãe?
— Não se olham os dentes de um cavalo dado. Peguei as duas pílulas da mão dela e examinei-as. A alaranjada era grande e oval. A branca tinha o formato de 8, bem estreita no meio, como que para facilitar que fosse partida pela metade.
— Não tome nenhuma até que eu descubra o que você comprou — recomendei.
Com a ajuda de Kwan eu poderia descobrir. O Guia dos Médicos, a verdadeira Bíblia de remédios usadas por eles, tinha fotografias de todos os medicamentos fabricados na atualidade. Poderíamos compará-los e saber a dose indicada.
Tirei a bolsa de viagem da minha mãe do porta-malas e já estava no meio da calçada quando percebi que ela não vinha atrás de mim. A porta do carro achava-se aberta, e mamãe com as pernas fora dele, esticadas.
— Petey! — ela gritou.
Estremeci. Já lhe pedira um milhão de vezes que não me chamasse daquele jeito. Voltei.
— Este carro! — resmungou ela, furiosa — Tem o assento tão baixo que me admiro por sua bunda não bater no asfalto toda vez que você passa num buraco.
— Precisa de ajuda? — perguntei e ajudei-a a colocar-se de pé.
— Velhice, ufa! — desabafou minha mãe, massageando os quadris quando se endireitou na calçada.
Quando cheguei de volta ao Pearce, Kwan estava em sua sala. O relatório da pesquisa achava-se sobre a mesa, ao lado de um meio comido sonho Creme de Boston — o meu preferido — e de um copo gigante do café do Dunkin Donuts.
— Mas você não gosta de café! — observei, surpreso.
— Você vive elogiando tanto o café que acabei resolvendo experimentar.
— Faz isso só para me atormentar.
— E está dando certo?
Aquela era uma coisa que eu costumava fazer. Deixei pra lá e disse:
— Tenho de lhe pedir mais um favor, Kwan.
— O que é? Transformar você num lindo príncipe encantado? Já tentamos uma vez e não deu certo.
— Alguns de nós somos príncipes apenas no íntimo... — filosofei. Pesquei as pílulas no fundo de um bolso. — Esta pílula cor de laranja é o remédio da minha mãe para artrite. A branca é supostamente a mesma coisa. O problema é que ela não sabe quantas pílulas brancas tem de tomar para compensar uma pílula laranja, que foi receitada pelo médico.
Kwan assumiu um ar desconfiado.
— Onde ela comprou essa coisa que não sabe como tomar?
— Canadá.
— Ah! — fez meu colega, como se isso explicasse alguma coisa.
Levantou-se e foi pegar um enorme livro com capa vermelha na estante atrás de sua cadeira. Abriu-o direto nas fotos coloridas de medicamentos. Passou o dedo em fileiras de imagens, parando ocasionalmente nas de pílulas brancas.
— Parecida, mas não é... — disse, por fim, e sentou-se de novo à mesa. Apontou para a pequena pílula branca.— Onde disse que ela comprou isso?
— No Canadá.
— Em uma farmácia?
— Penso que sim. Kwan sacudiu a cabeça.
— Bem, se esse medicamento está aqui, não encontrei. Talvez seja muito novo...
— Acho que não.
— Deixe comigo por um ou dois dias. Quero mostrá-lo a um amigo. Ele poderá saber também onde sua mãe o comprou.
— Obrigado — disse eu. — Então, leu o relatório?
— Impressionante.
— Acha que o Kutril pode ajudar Olívia?
— Talvez... — respondeu Kwan. — O único problema é que a dra. Temple estava trabalhando com alcoólatras e viciados em heroína. O medicamento nunca foi testado em alguém viciado em psicoestimulantes como o Ritalin. E, também, ela trabalhava com adultos, não com adolescentes de quarenta e três quilos. No entanto — sacudiu os ombros —, não consigo pensar em qualquer outro tratamento que seja tão eficiente na redução do vício psicológico. E uma vez que existem relativamente poucos efeitos colaterais, creio que o benefício em potencial supera os riscos. Porém ela terá de ser monitorada com o maior cuidado. Estamos falando em altas doses de um composto sobre o qual pouco sabemos.
Em seguida Kwan telefonou para a empresa de Nova Jersey que fornecia Kutril para Channing e conseguiu que nos mandassem o suficiente para um tratamento simples.
Depois que desligou pegou o relatório e deu uma olhada em algumas páginas.
— A Acu-Med vai ter um ataque quando isto for publicado. Eles não estão tentando desenvolver um medicamento que é basicamente a mesma coisa? — Entregou-me o relatório. — Trate de guardá-lo em local seguro.
— Vou fazer isso. Em primeiro lugar, porque levei um tempão para consegui-lo. Mas o relatório detalhado, com os protocolos dos testes e as informações sobre os pacientes, desapareceu.
— Está brincando, Peter!
— Bem que gostaria! Sem os detalhes para dar base e consistência às conclusões o relatório daquela pesquisa não era publicável. E poderia ser necessário anos para reconstituir a pesquisa. Enquanto isso, o novo medicamento da Acu-Med já estaria firme no mercado. Kwan coçou a cabeça.
— Acha que ela levou as fichas para casa? Eu não havia considerado essa possibilidade.
— Talvez. Ou quem sabe alguém tenha se apoderado delas...
Essa idéia agradou Kwan.
— Aqueles representantes da Acu-Med vivem enxameando por aqui como moscas sobre um cadáver apodrecido.
— Ou talvez tenha sido alguém do Pearce, alguém que protege a Acu-Med...
Nesse instante revi o pé de Liam Jensen empurrando aquela gaveta do arquivo cheia de pastas — um oásis de desordem na paisagem sempre tão organizada que era a sala dele. Desejei ter prestado mais atenção.
Telefonei para Drew naquela noite. Contei-lhe que pensávamos tentar um tratamento experimental para os efeitos posteriores psicológicos de vício em medicamento, o tratamento em que Channing trabalhava. Disse-lhe que não tinha certeza se poderia ajudar Olívia, mas que valia a pena tentar. Ele concordou.
Quando a encomenda chegou, na manhã seguinte, desci imediatamente para ver Olívia. Na sala das enfermeiras, servi-me de uma caneca de café descafeinado. Tomei um gole. Não era assim tão mau. Acrescentei leite e açúcar. Eu ia conseguir, disse a mim mesmo.
Tinha medo de que Olívia se tivesse refugiado no guarda-roupa outra vez, mas não. Ela se achava na sala de estar, enrodilhada num canto de um sofá de vinil marrom. Matthew Farrell estava sentado ao lado dela, e quando entrei ele saiu.
— Você está bem? — perguntei. — Passou apertada com a polícia, não?
— Como é que eu ia adivinhar que eles tinham descoberto meus e-mails? — perguntou ela por sua vez, com voz insegura. — Jamais os teria enviado se desconfiasse que isso pudesse acontecer.
Palavras no papel são imperdoáveis. Em preto e branco elas assumem um significado que quem as escreve não pode apagar. As palavras de Olívia certamente fariam um júri pensar que ela detestava a mãe, talvez o bastante para matá-la.
Puxei uma cadeira.
— Por que os enviou, Olívia?
— Ela me disse que mandasse!
— Ela quem?
— A dra. Daffy. Eu estava muito zangada com a minha mãe, e ela disse que eu poderia escrever tudo que sentia expressando, assim, o que não podia dizer na cara da minha mãe. — Olívia soluçou. — Eu só fiz o que ela mandou. E odiava fazê-lo. Agora, veja o que parece... Parece que...
Eu ouvira falar dessa manobra terapêutica de aproximação. Começava com algo denominado análise de contra-transferência, ACT, e Daphne adquirira certa celebridade nos anos 1980 quando escrevera um livro a respeito dessa análise como técnica para ajudar o terapeuta a manter a própria perspectiva enquanto trabalhava com pacientes perturbados. Havia sido até mesmo convidada para testemunhar no rumoroso julgamento da dra. Margaret Bean-Bayog, uma terapeuta de quem um jovem paciente psicótico furtou os diários pessoais que estavam repletos de intensas fantasias sexuais com ele. A médica tivera de interromper o tratamento, e pouco depois o paciente cometera suicídio. Os diários íntimos da médica tornaram-se base para a família processá-la por tratamento inadequado. Houve uma audiência preliminar e a dra. Bean-Bayog perdeu a licença médica.
O caso provocou um arrepio coletivo na comunidade terapêutica porque se os seus sentimentos e pensamentos pessoais podem ser examinados num tribunal e usados contra você, então escrevê-los era cometer suicídio profissional. Desnecessário dizer, houve um efeito congelador no uso da ACT.
Seguindo os passos de sua mentora, Channing uma vez contou-me que mantinha um diário. Usava-o para trabalhar seus impulsos e fantasias. Desse modo, dizia, conseguia enfrentar seus demônios antes que a emboscassem.
Aparentemente, Daphne não abandonara o método. Trabalhando com Olívia, ela a induzira à aproximação, fazendo a paciente escrever para expressar sentimentos de raiva. Talvez ajudasse. O que não se sabia era até que ponto a comunicação desses sentimentos agressivos atingia a outra pessoa. Ali estava mais uma das bem-intencionadas terapias que eu gostaria de jogar num monturo, junto com a terapia em grupo e o grito primevo.
— Não funcionou — prosseguiu Olívia. — Eu disse a ela, mas Daffy mandou que continuasse fazendo. Às vezes eu fazia só para ela parar de me encher o saco.
Mordi minha língua. A experiência própria de Daphne com a ACT a havia cegado a ponto de impedi-la de ver que era inadequada para Olívia. As dificuldades da garota e suas lágrimas provavelmente haviam convencido Daphne de que ela precisava da ACT. Porém do que precisava, mesmo, era de "estrutura". Preconceitos rígidos são mais do que perigosos em terapia — podem ser criminosos. Mas como colega da doutora eu não devia dizer isso.
Havia olheiras sob os olhos da garota.
— Eu jamais quis matar minha mãe... — Então sua voz tornou-se estridente. — Ela não podia simplesmente deletar meus e-mails, podia? Tinha de salvá-los. Como se eu fosse um de seus estúpidos pacientes ou um dos preciosos estudantes. Era só deixar que ela fazia tudo errado!
O rosto da jovem tornara-se tenso pela raiva. Ódio da mãe pelo que ela fizera, pelo que ela não fizera e, principalmente, por ela ter morrido. Ódio e tristeza — cada um desses sentimentos era o umbral de passagem para o outro. Era meu trabalho ajudá-la a passar pelos dois umbrais. Talvez isso me ajudasse a lidar com minhas próprias sensações de inutilidade e raiva pela morte de Channing.
— Sua mãe provavelmente guardou tudo que você fez... mensagens, desenhos, histórias... porque eram importantes para ela.
O rosto de Olívia suavizou-se e eu acrescentei:
— A dra. Smythe-Gooding pode explicar à polícia que os e-mails faziam parte do seu tratamento. E pode explicar que você estava tomando Ritalin.
Olívia fungou.
— Ela prometeu...
Calou-se abruptamente, e tive a distinta impressão de que Olívia acabara de tocar em algo que não deveria dizer a ninguém.
— Ela veio vê-la?... — indaguei. — Foi quando prometeu? A garota parecia assustada.
— A dra. Smythe-Gooding contou-me que veio visitá-la — expliquei.
As feições contraídas relaxaram, e foi quando viu minha caneca. Espiou dentro dela.
— Continua com o vício?
O humor de Olívia podia mudar completamente em um instante.
— Descafeinado — esclareci. — Vim aqui conversar com você sobre o tratamento que gostaríamos de tentar. Ele pode reduzir sua necessidade de Ritalin. É um medicamento chamado Kutril, com o qual sua mãe estava trabalhando. Falei com seu pai e com Liu a respeito. Seria bom que começássemos já.
— Vai fazer com que me sinta melhor? — quis saber Olívia.
— Com certeza.
— Quando?
— Não sei ao certo. Depois de alguns dias, uma semana. A garota gemeu.
— Ao mesmo tempo a dor de cabeça pulsante vai passar
— acrescentei.
Isso a fez sorrir. Afinal de contas, um dos mais verdadeiros clichês da vida é que a miséria gosta de companhia.
Quando cheguei em casa naquela noite, fui direto para a adega no porão. Peguei um cabernet Caymus 1992 que comprara havia cinco anos, quando Kate e eu estivemos no Vale de Napa. Levei a garrafa para cima, tirei a rolha e limpei o mosto da borda do gargalo. Servi um cálice, fui para a sala de estar e coloquei-o na mesinha de centro. A sala era acolhedora com seu madeirame e móveis estilo Missão. Acendi um abajur para leitura e sentei-me com o jornal.
Quando terminei de ler a seção de esportes, tomei um gole. O cabernet era rico e denso, com cheiro de folhas e uma pontinha de gosto de cereja. Era incrível como um bom vinho pode satisfazer, do mesmo modo que a gente se satisfaz quando, afinal, encontra o ponto exato da coceira nas costas e dá uma boa cocada. Se eu tivesse um pouco de queijo e bolachas para acompanhar... Fui ao armário da cozinha e descobri um pacotinho de amendoins com os dizeres American Airlines. Não tinha idéia de onde e quando o arranjara.
Comia o último amendoim quando o telefone tocou. Era Chip Ferguson.
— Hoje Drew Temple me telefonou — disse ele. Fez uma pausa. — Até que ponto você conhece esse cara?
Não deu para eu decifrar o tom de Chip.
— Eu o conheço há muito tempo. Foi casado com uma amiga minha desde o tempo da escola.
— Então a mulher dele era sua amiga íntima?
— Isso aí.
— Sinto muito, Peter. O cara é um cabeça-dura espinhoso. Resmunguei, apenas.
— O que ele faz? — indagou Chip, voltando ao trabalho.
— Ele trabalha... — Parei, pois na verdade não sabia o que Drew fazia. — Ele administra o dinheiro, os bens da família. — Falei e achei aquilo um tanto vago. — Por quê?
— Parece que a mulher dele era cheia da grana. Mas o dinheiro dela está vinculado a um testamento de transmissão e não pode ser sequer tocado, por enquanto.
— Eles moram naquela casa incrível... — comecei.
— Completamente hipotecada — cortou-me Chip.
— Isso para mim é novidade. Pensei que tivessem o tipo de dinheiro que não precisa de empréstimo.
— Ninguém tem esse "tipo de dinheiro"... — pontificou meu amigo. — Mas parece que ele andou jogando na Bolsa. Erradamente. Comércio diário, talvez. A morte da mulher dele aconteceu num momento inoportuno, já que está afundado até o pescoço em transações marginais e não consegue sair do buraco.
Mais um motivo para o desespero de Drew que o levava a beber.
— Pensei ter abandonado para sempre a advocacia caridosa quando saí do Departamento de Defesa Pública... — observou Chip, cortante.
— Drew está sob forte estresse — expliquei —, e você vai representar a filha dele e não a ele. Chip, ela tem dezessete anos e provavelmente vai ser presa por um crime que não cometeu.
— Pelo jeito a polícia tem um bocado de base. O juiz pode perfeitamente negar fiança e mandá-la para um desses reformatórios para jovens criminosos violentos.
— Não, se você insistir em que ela seja entregue a nós para avaliação.
Chip não disse nada e fiquei esperando.
— Não estou nem um pouco ansioso para pegar esse caso — disse ele, por fim. — Você sabe que não adoro trabalhar com crianças.
— Não, eu não sabia disso. Desde quando? Aliás, ela não é uma criança.
— Está bem. E uma adolescente. Pior ainda.
— Apenas uns dois anos mais nova do que a sua filha.
— Agora você me pegou abaixo da cintura!
— Lembra-se de quando me procurou, há seis meses, disse que tinha um caso e que me queria trabalhando nele com você?
— Sim, sim, eu me lembro.
— E que eu acabei avaliando a memória de uma vítima de assassinato sobrevivente? E que Annie e eu quase fomos mortos?
Dessa vez Chip não respondeu. Tive impressão de ouvi-lo remexer-se na cadeira. Bom! Esperava que estivesse se sentindo infernalmente desconfortável.
— Você me deve uma — acrescentei.
Houve alguns momentos de silêncio sepulcral. Então...
— Você é que encontrou o corpo?
O tom do meu amigo se tornara profissional, e ouvi que digitava no teclado de seu computador.
— Eu tinha um encontro com Olívia e Channing na manhã em que ela foi morta. Channing queria que eu avaliasse a filha...
— Que a avaliasse por quê?
— Para ver se ela sofria da síndrome de Asperger. Ruídos de teclado.
— O que é isso?
— E uma severa falta de habilidade para perceber emoções. Acho que ela não sofre desse mal. De qualquer modo, quando as duas não apareceram no encontro marcado na lanchonete, fui para o consultório de Channing e encontrei-a morta. Olívia estava de pé ao lado dela, segurando o revólver. Passei por cima de algumas regras para admiti-la na minha unidade.
Eram apenas palavras, como se eu as estivesse lendo num jornal, tentando dar o maior número de informações num curto espaço de tempo.
— Parece-me que você está arriscando seu pescoço nesse caso, pessoal e profissionalmente. Imagino que não possa me ajudar como testemunha perita.
Dei uma risadinha amarga.
— Penso que não.
— Mas, e oficiosamente?
— Estou à sua disposição.
— Bom. Vou precisar de seus conhecimentos em planejamento para todas as contingências. Existem outras pessoas com motivo e oportunidade?
Meus dedos apertavam tanto o receptor do telefone que estavam com cãibra. A quem eu poderia apontar? Colegas? Amigos? Drew?
— Peter — chamou Chip. — Você ainda está aí?
— Estou.
— Sabe que se eles aparecerem com evidências suficientes para prender Olívia Temple há uma boa chance de que a condenem, não é?
— Não há testemunha ocular — informei.
— Você mesmo a viu com o revólver na mão!
— Mas não a vi apertar o gatilho. Outra coisa: o tiro foi disparado dentro da boca, como ela teria conseguido isso? Não havia sinal de luta.
— Está bem, está bem! — Chip deu um suspiro de exasperação. — Vamos adiante. Suponha que algo inesperado tenha acontecido, que Olívia confesse. Ou que eles desencavem uma testemunha ocular. Enfim, suponha por um momento que Olívia Temple matou a mãe. — Fez uma pausa, deixando que eu absorvesse a idéia. — Temos alguma circunstância atenuante?
Eu não gostei de entrar por aquele caminho.- Foi preciso que me esforçasse para fazer uma sugestão.
— Olívia estava tomando Ritalin. Chip bufou.
— Olívia Temple e mais metade dos adolescentes. '
— Sem brincadeira. A coisa se tornou um sério problema.
— Pára com isso — irritou-se ele.
— E verdade. Uma boa percentagem do uso de droga entre adolescentes é o Ritalin. — Passei a descrever as circunstâncias. — A psiquiatra de Olívia receitou-lhe Ritalin, talvez para tratar de uma disfunção cerebral. O Ritalin a ajuda a manter-se em foco, a estudar e a fazer os trabalhos escolares com mais facilidade. Quanto à dosagem prescrita do medicamento...
— A dosagem prescrita... — resmungou Chip digitando furiosamente.
Diminuí o ritmo.
— Ela ficou viciada. Perdeu o controle e passou a tomar mais do que a dose devida. O remédio passou a prejudicar sua capacidade de julgamento, e Olívia tornou-se impulsiva, hipomaníaca, isto é, quase no limiar do estado maníaco-depressivo.
— Impulsiva, maníaco-depressiva... — repetia Chip. O rumor de digitação parou. — Estamos apenas falando de Ritalin, não é?
— Isso foi tudo que encontrei no exame de sangue de Olívia.
— Porque, você sabe, se tiver algo a ver com cocaína ou ecstasy, ou mesmo com qualquer outra droga que ela esteja tomando sem prescrição médica, o caso vai se complicar muito.
— Pelo que sei, apenas Ritalin.
— Capacidade diminuída — voltou Chip —, isso é sempre difícil de provar. Exige alguém que conduza o júri através de uma lógica tortuosa. Detesto casos que abrangem técnicas legais, e sem você no banco das testemunhas...
— Posso indicar alguém.
— Podemos demonstrar que ela teve a capacidade de julgamento diminuída? Como você a descreveria?
— Impulsiva. Hipomaníaca. Mas veja, daqui a pouco tempo ela poderá não ser mais nada disso, uma vez que a estamos limpando da droga. No entanto, certamente poderemos testá-la para estabelecer que tem uma perturbação orgânica que torna necessário o uso do Ritalin, que, por sua vez, foi documentado como tendo esses perigosos efeitos.
— Pelo uso abusivo?
— Pelo uso abusivo — admiti.
— Ela está no Pearce agora? Sob os seus cuidados?
— Está. E vamos avaliá-la de qualquer modo. Depois que ela for testada, os resultados dos testes passarão a fazer parte do seu prontuário médico.
— Vamos precisar dos resultados dos testes se formos a julgamento, Peter. Não sei com que rapidez a polícia é capaz de se mover. Dá para começar os testes o quanto antes?
— Claro. Agora mesmo.
— Quem receitou Ritalin para ela?
— A dra. Daphne Smythe-Gooding. Uma psiquiatra do Pearce, que também era amiga íntima da morta.
— Mais uma amiga. Grande!
— Desculpe, é o que acontece quando se lida com filhos de psiquiatras. Pode até se tornar incestuoso.
— Tudo bem eu ir lá amanhã para conversar com a minha cliente?
— Na parte da tarde. Vou começar os testes pela manhã. E muito obrigado, Chip.
— Não há por quê — resmungou ele.
Desliguei o telefone, inclinei-me para trás e tentei continuar lendo o jornal. Mas meu cérebro não estava disposto a voltar ao ponto neutro. Fiquei imaginando. Será que Channing sabia que Drew estava jogando dinheiro fora? Será que sabia do caso amoroso dele? Com seu claro discernimento entre certo e errado, preto e branco, não teria decidido divorciar-se? E se estivesse planejando divorciar-se sua morte não fora muito conveniente para Drew?
Na manhã seguinte acordei de mau humor. O mundo parecia mover-se em câmara lenta, o ar parecia tão denso que eu tinha de abrir caminho através dele. Mais do que tudo, queria uma xícara de café. A não ser isso, estava desesperado para correr. Porém me atrasara e não havia tempo para isso.
Encontrei um pouco de café descafeinado no fundo de um armário da cozinha. O frasco estava empoeirado, e a data de validade era de quatro anos antes. Coloquei uma colher cheia numa caneca com água fervente e quando provei cuspi tudo. O gosto era terrível. Aí, consegui quebrar minha caneca ao deixá-la cair no fundo da pia. A caminho do carro pisei num monte de merda de cachorro, sem dúvida cortesia de algum civilizado dono de cão a passeio.
Praguejando, voltei para trocar de sapatos. Procurava as chaves do carro quando minha mãe bateu à porta. Gritei que estava aberta.
— O cobrador de impostos deixou-lhe calorosas lembranças — disse ela. Franziu o nariz. — Que fedor é esse?
Mamãe tem um nariz infalível. Dei-lhe um abraço, mas não a convidei para entrar na sala.
— Exatamente o fedor que parece — respondi. — Estou atrasado e não encontro minhas chaves.
— E daí? O que você descobriu? — perguntou minha mãe, na ponta dos pés.
Creio que a fitei com cara de bobo.
— Os remédios!
— Ah, é verdade! — lembrei-me. — Dei-os a Kwan, que não encontrou nenhuma referência no livro de medicamentos que tem. Ele disse que vai perguntar a um amigo. Deve me dar a resposta hoje. Tudo bem?
— Ainda devo viver por muito tempo... São estas as chaves que está procurando? — e ela apontou para o molho de chaves no primeiro degrau da escada.
Antes que eu pudesse agradecer, mamãe desapareceu dentro de sua casa.
Dei três partidas até o motor do carro pegar. Mas quando ele pegava, não parava mais. Passei a mão pelo painel e relaxei soltando-me no profundo e macio assento de couro. Podia sentir as rodas girando sobre o solo quando entrei na rua e acelerei para acompanhar o fluxo do tráfego. Pelo menos, podia aproveitar o trajeto, pois gostava muito de dirigir. O tráfego cooperou, e os dez minutos até o Instituto decorreram sem incidentes.
Quando cheguei, Jess já trabalhava no refeitório, administrando um teste de inteligência e um exame de status mental em Olívia. A psiquiatra ficara contente quando eu pedira que me ajudasse.
Uma hora depois Jess e eu nos encontramos no corredor, e ela resumiu para mim:
— QI superior. Verbal muito superior ao Prático.
Isso não me surpreendeu. Com inabilidade no desempenho não-verbal, eu esperava que Olívia se saísse melhor em tarefas mediadas pela linguagem.
Jess continuou:
— Problemas de concentração. Irritabilidade. Sentimentos instáveis. Ela desabou quando lhe perguntei se alguma vez pensara em se matar. Está aterrorizada, pensando que suicídio é hereditário e que será a seguinte.
Era sucinto e, pelo menos até aquele ponto, nada que eu já não soubesse.
Peguei uma pasta de couro de um armário no depósito e fui para o refeitório. Olívia fitou-me ansiosa.
— Quando esse Kutrid, ou seja lá como se chama, vai começar a fazer efeito? Ainda me sinto completamente perdida.
Estaquei, rígido. "Pare de choramingar!", senti vontade de dizer. "Pare com isso. Pense em algo que não seja você, para variar." Mas devia ser a falta de cafeína atuando em mim. Tratei de relaxar os músculos das costas e dos ombros, de desfazer a tensão em meu pescoço e maxilares.
— Precisa descansar ou podemos fazer outro teste? — perguntei.
Ela sacudiu os ombros.
— Você não vai me fazer escrever coisas, vai?
— Desta vez, não.
Coloquei a pasta sobre a mesa e a abri. Olívia ficou olhando enquanto eu tirava um estranho sortimento de itens. Quarenta e seis, ao todo. Quando terminei, cobriam metade da mesa. Ela pegou o pequeno cachorro de plástico marrom e branco. Pelo seu olhar dava para perceber que não tinha em alta conta o meu chamado teste.
Tirei o cachorro de suas mãos e coloquei-o na mesa.
— Como você sabe, temos alguma preocupação quanto a sua eficiência em processar uma informação — comecei. — Este é possivelmente um dos motivos para a dra. Smythe-Gooding tratá-la com Ritalin.
Uma pequena mariposa voou perto da minha cabeça e eu a espantei.
— O que você quer dizer com "processar uma informação"?
— Significa o quanto se compreende do mundo e como se lida com ele. Eis um exemplo. Você pega uma pessoa com problemas em processar informações, deixa-a no meio da Estação Ferroviária Grande Central, na hora do rush, e lhe diz que ela tem de pegar determinado trem. Essa pessoa fica atarantada com toda aquela gente andando de um lado para outro e pelo barulho de tal maneira que não consegue mais saber para onde deve ir. Torna-se ansiosa e fica paralisada. Mas se você pegar essa pessoa e soltá-la na mesma estação, à meia-noite, quando praticamente não há movimento, ela faz tudo que é preciso, sem problema. Olívia parecia não estar acreditando.
— Neste teste — prossegui —, os objetos sobre a mesa representam a Estação Central, e o fato de eu estar aqui marcando o tempo da sua ação transforma o momento na hora do rush.
Ela tentou conter um sorriso, mas ele ergueu-lhe os cantos dos lábios.
— O teste — finalizei — vai me dar idéia de como você vê e organiza o mundo ao seu redor.
— O que tenho de fazer? — perguntou a garota.
— Apenas mexer com esses objetos. Colocar junto o que deve estar junto, do modo que você achar certo.
— De quanto tempo disponho?
— Cinco minutos — respondi, e os olhos dela arregalaram-se. — Olhe, é tempo suficiente. Pronta?
Olívia fez que sim.
Disparei meu cronômetro e o ponteiro dos segundos começou a girar no mostrador. Ela apoiou os pés na beira da cadeira, abraçou os joelhos e começou a balançar-se para a frente e para trás. Olhava para a mesa. Suspirou, abaixou as pernas e pôs os cotovelos na mesa. Passou a enrolar uma mecha de cabelo.
De repente, saltou de pé e empurrou a cadeira para trás.
— Estou fora! Por que tenho de fazer isso?
— Tenha paciência — respondi. — Sei que parece uma coisa boba e infantil.
Ela cruzou os braços e fitou a mesa.
— Tem coisa demais aí e provavelmente já perdi muito tempo.
— É verdade, há muitas coisas. Às vezes as pessoas têm dificuldade de resolver por onde começar. Por que não começa com uma ou duas coisas e vê como é? Se precisar de ajuda, estou aqui.
Relutante, Olívia puxou a cadeira e sentou-se na beirada. Apoiou os cotovelos na mesa e a cabeça nas mãos. Ao acaso, pegou uma campainha de bicicleta.
— Esse é um bom item para começar. Agora, o que acontece com ele? — perguntei.
Ela pegou uma bola vermelha e me deu um olhar de esguelha enquanto a colocava na mesa, junto da campainha.
— Muito bem — aprovei.
Enquanto ela trabalhava eu fazia anotações. Juntou ao que já separara um cubo de açúcar, uma bala e um chiclete.
— Bom trabalho — assenti.
Para a maior parte de nós esse teste é imediato, porém para Olívia ia direto ao cerne dos problemas que tinha para estruturar seu mundo. Para alguém que dá igual importância às tarefas como escovar os dentes e fazer um trabalho escolar, escolher um ponto de partida quando se encontra diante de quarenta e seis itens é um ato arriscado que significa abrir-se e correr o risco de passar a vergonha de fazer uma escolha tola.
— Que tal fazer mais um grupo? — sugeri.
Olívia ainda tinha três minutos. Empurrou a cadeira para trás, levantou-se e deu a volta na mesa. Tornou a sentar-se. Pegou o cachorrinho de plástico e ficou segurando-o enquanto olhava os demais objetos na mesa. Seu olhar foi para a extremidade onde a mariposa estava descansando. Inclinou a cabeça de lado, enquanto a olhava parada ali, e seguiu-a com o olhar quando saiu voando. Depois sua atencão dispersou-se, e ela começou a balançar-se, esfregando as orelhas de seu chinelo de coelho.
— Mais algum grupo? — perguntei.
Ela olhou-me como se não soubesse o que estava fazendo. Lembrou-se. Então, concentrou-se de novo nos itens remanescentes. Hesitante, ela tocou no prato vermelho de piquenique.
— Bom — disse eu. — Esse será o começo de um novo grupo?
Olívia pôs o prato de lado. Sobre ele colocou o copo de plástico, o guardanapo, os talheres de prata, um pacote de biscoitos salgados, um bombom e um cigarrinho de chocolate. Depois de repensar, acrescentou um garfo e uma colher de brinquedo.
— Excelente! — exclamei.
A seguir ela fez um outro grupo com um martelo, fósforos, canivete grande, alicate, chave de fenda, pregos, cadeado e chaves. :
— Terminou o tempo — avisei.
Ela ainda segurava o cachorrinho de plástico.
— Você se saiu muito bem. Olhe para este grupo. — Apontei para o grupo com a campainha de bicicleta, a bola e os doces. — Como você o chamaria?
— Coisas que fazem a gente feliz — respondeu Olívia, de imediato.
— Por que essas coisas fazem a gente feliz? A garota revirou os olhos.
— O açúcar é doce, a gente brinca com a bola... — Tocou a campainha da bicicleta e sorriu. — Tive uma dessas quando era pequena. Na minha bicicleta púrpura com fitas prateadas no guidão. — Os olhos dela brilharam. — Minha mãe me ensinou a andar nela...
Enxugou uma lágrima.
— E isto? — perguntei, indicando o grupo do prato. O olhar que ela me dirigiu era de pura piedade.
— Coisas para comer, eu acho.
— O que faz delas coisas para comer?
— Ora, vamos! — gemeu Olívia.
— Só me conte.
— Bom, estas são coisas que se põem na mesa e que se usam para comer, mas este garfinho e colherzinha são brinquedos, e você pode fingir que come com eles. Já com estes a gente come mesmo.
— Muito bem. E como você classifica as coisas do grupo seguinte?
Ela me olhou de lado e explicou:
— São coisas com as quais a gente pode machucar as pessoas.
— Dá para me dizer mais alguma coisa?
— Bem... — começou ela, devagar, pegando o canivete e abrindo-o. — Você pode cortar alguém com o canivete ou bater numa pessoa com o martelo. — Olhou para o cadeado. — Com ele pode-se prender uma pessoa, como eu estou presa, e não deixá-la sair. E ela não pode ir para fora... — Começou a chorar. — E só pode fazer o que mandam.
Tomei notas e aguardei, esperando que a frustração dela se dissipasse. Mais da metade dos objetos havia ficado intocada, a maioria na beira da mesa. Era interessante ela não ter juntado o revólver de brinquedo e a bala ao grupo coisas-com-que-se-pode-machucar-pessoas.
— Mais algum grupo? — perguntei.
Ela abriu a mão. O cachorrinho de plástico caiu sobre a mesa.
— Este fica sozinho, porque precisa que cuidem dele — explicou.
Lembrei-me da vez em que aplicara esse mesmo teste a um paciente que era um solitário. Tinha enorme dificuldade em relacionar-se com os demais. Dividira tudo em dois grupos. Um grupo, dissera, eram objetos que combinavam com os outros. O outro grupo consistia em itens que subsistiam sozinhos. Este, numa casca de noz, era o mundo dele: um lugar em que permanecia sozinho, enquanto as outras pessoas conseguiam relacionar-se entre si.
A resposta de Olívia não chegava a esse extremo, mas o cachorrinho que precisava ser cuidado com certeza refletia sua necessidade de apoio. A extensão de para onde apontava e as emoções contidas no modo como ela organizara os grupos falavam de como ainda estava abalada pelos acontecimentos recentes. Também era evidente que passara duros momentos tentando organizar-se, decidindo por onde começar e fazendo bom uso do seu tempo. A maioria das pessoas faz cerca de dez grupos. Olívia fizera apenas quatro. Testes psicológicos nunca param de me surpreender — tão simples e, no entanto, tão criteriosos.
Misturei os itens que ela utilizara e pedi-lhe que formasse outros grupos. Dessa vez ela formou três pequenos grupos, deixando mais itens de fora. O grupo das coisas-com-que-se-pode-machucar-pessoas reapareceu, mas de novo sem o revólver e o projétil.
Quando sugeri que reunisse os itens por uma terceira vez, ela disse que não podia. Não havia outro modo de juntar aqueles objetos.
Eu tinha outros testes para fazer, porém ouvi na cozinha os ruídos característicos dos preparativos para servir o almoço. Se uma simples mariposa tinha sido o bastante para distrair Olívia, jamais se concentraria com gente andando por ali, pondo mesa e conversando.
Imaginei se os resultados obtidos seriam consistentes com as impressões de Daphne.
— Olívia, eu gostaria de telefonar para a dra. Smythe-Gooding — disse eu.
— Não quero — sobressaltou-se a jovem, com as feições endurecidas.
— Olhe, me ajudaria muito falar com ela para determinar o melhor tratamento a longo termo. A doutora trabalha com você há um ano. Ela sabe...
— Ela não me conhece nem um pouco — cortou-me Olívia. — Vive dizendo que eu tenho de parar de ser estúpida. Bem que tento. Faço listas para não me esquecer das coisas, mas isso não me ajuda a melhorar. Nada ajuda. Ela só faz eu me sentir uma idiota.
A inabilidade de Olívia em organizar seu mundo devia ter aturdido Channing. Era uma pena ela ter procurado a ajuda de Daphne. Olívia e Daphne não combinavam. Em vez de construir a confiança de Olívia e então ensinar-lhe novos comportamentos, Daphne a obrigara a continuar fazendo o que estava farta de fazer. Os ferimentos se haviam aprofundado ao invés de melhorar e cicatrizar. A autoconfiança de Olívia se desmontara num período da vida em que ela estava mais vulnerável.
— E se eu prometer falar com ela apenas sobre os resultados dos testes?
Relutante, Olívia concordou.
— O sr. Ferguson virá falar com você hoje à tarde — avisei-a.
Ela me fitou, solene.
— Ele vem para ajudá-la — prossegui. — Apenas seja honesta. Seja você mesma.
Parecia óbvio, mas era o melhor conselho que eu podia dar a ela.
Durante a tarde tive uma consulta após outra. Só arranjei tempo para enfiar minha cabeça pelo vão da porta da sala e dizer oi a Chip quando ele estava conversando com Olívia. Mais tarde, durante uma pausa, eu falava com Glória quando Kwan apareceu.
— Desculpe-me, porém não pude descobrir o que é isto
— disse ele, mostrando-me a pílula branca da minha mãe.
— Acho que precisa ser analisada.
Glória pegou a pílula da palma da mão de Kwan.
— Parece a mesma que Ginger toma para artrite, reconheço a forma.
— É para artrite — disse eu. — Mas Ginger não é a sua cachorrinha?
— Cães também têm artrite — respondeu ela, na defensiva.
Lembrei-me, então, de que os cartões de Natal que Glória e Rachel enviavam todos os anos eram fotos do cocker spaniel delas, num arco vermelho, e de novo me senti o elefante na loja de louças.
— Ginger está com artrite, pobrezinha — acrescentou a enfermeira.
— E provavelmente seu remédio tem a mesma base que o dos humanos — concluiu Kwan. — Deve ser bastante seguro. Só precisamos saber quantas...
— Você aconselharia sua mãe a tomar isso? — perguntei a ela.
— Minha mãe jamais iria ao Canadá e voltaria com um remédio misterioso. A maluquice dela é diferente da de sua mãe. Sabe, acupuntura e ginseng...
Telefonei para minha mãe e disse-lhe que não tínhamos encontrado a pílula dela no Catálogo de Referência dos Médicos,
— É um medicamento veterinário — esclareci. Minha mãe até engasgou.
— Está brincando comigo! Quer dizer, um remédio para vacas e galinhas?
— Mais para cães e gatos. Em geral vacas e galinhas vão para o matadouro antes de ter artrite.
— E isso que você acha que deveria acontecer comigo, agora que tenho um pouco de artrite?
— Claro que não, mamãe! Acho é que é loucura economizar dinheiro desse jeito quando você pode pagar pelo seu remédio. E se não puder, eu posso.
— É que me irrita... — começou minha mãe.
E seguiu-se uma longa consideração sobre como as empresas farmacêuticas enriqueciam à custa dos pobres idosos. Porém, eu sabia que havia algo mais. Minha mãe detesta pagar o preço pedido por qualquer coisa. Lembro-me das frias manhãs em que meu irmão e eu caminhávamos até a Praça Union, em Manhattan, e ficávamos esperando no passeio, agarradinhos a ela, espremidos pela multidão de mulheres que esperavam pela abertura das portas da loja S. Klein. Ficávamos suando sob camadas de roupas, aspirando os miasmas de lã umedecida, com cheiro de naftalina e laquê de cabelo. Nossa recompensa eram calças dentro das quais "iríamos crescer".
Minha mãe terminara a ladainha. Houve um silêncio. Então, ouvi passos. Depois foi um som como de descarga de privada.
— Muito obrigada pelo remédio veterinário deles. O que pensam que sou? — indagou, ultrajada —, uma gata siamesa?
De volta à minha sala, meu cérebro estava como se houvesse uma máquina produtora de neblina dentro dele. Procurei minha caneca de café. Um reflexo. Atravessei o corredor em direção ao banheiro masculino e lavei o rosto com água fria. Não ajudou.
Quando voltei de novo, a luzinha vermelha do telefone piscava. Recado de Chip. "Pode vir encontrar-se com Annie e comigo? A autópsia revelou que Channing Temple achava-se em estado de coma no momento em que teria atirado em si mesma."
Eram quase seis horas da tarde quando cheguei ao escritório de Chip. Aquela hora já havia bastante lugar para estacionar no Cambridge Leste. O escritório novo ficava num edifício de tijolos aparentes e com forma de hangar em miniatura. Antes da reforma era uma oficina de consertos de automóveis, e antes dela, provavelmente, uma cocheira e ferraria. As portas duplas, enormes, que antigamente davam passagem para cavalos e carruagens, haviam sido substituídas por janelas com muitos painéis.
Subi a escada até o segundo piso. A porta do escritório era antiga, de carvalho, com um painel de vidro na parte superior e maçanetas de latão, recurvadas, que me lembraram as maçanetas trabalhadas de cada porta das escolas públicas. Sobre o vidro, em letras pretas, estava escrito FERGUSON & SÓCIOS; mais embaixo, em letras menores: INVESTIGAÇÕES PARTICULARES.
A porta estava trancada. Toquei a campainha. Um minuto depois Annie atendeu. Uma espaçosa e bem iluminada área central apresentou-se diante de mim. O espaço tornava pequenos os escassos móveis: meia dúzia de arquivos e algumas escrivaninhas de aço com resistência industrial.
— Grande achado — comentei, olhando ao redor, para o teto abobadado e paredes de tijolos expostos. — Bonito, mesmo.
E dei um beijinho na boca de Annie. Ela corou de prazer. Tocou-me o braço.
— Assim que estivermos ganhando mais, teremos um ou dois assistentes aqui. Enquanto isso, estou pensando em trazer meu acolchoado para cá. Este é um lugar muito mais bonito do que a minha casa.
Ela me levou a ver uma seqüência de cinco salas. Fiquei mais tranqüilo ao notar que a cafeteira estava desligada. Nada para me tentar. Então, entramos na sala de Chip. Ele estava terminando um telefonema, de costas para uma janela enorme. A distância, cabos de aço brancos sustentando uma nova ponte abriam-se como um leque gigantesco invertido recortado contra o céu e a extremidade norte do rio Big Dig, num esforço hercúleo de Boston para construir sua primeira artéria norte—sul e deixar os meros mortais reclamar o quanto quisessem pelo coração da cidade e as margens do rio.
Reconheci o pôster do Morto Agradecido na parede, agora com uma moldura cromada. Chip o trouxera de trás da porta do seu escritório no Departamento de Defesa Pública.
Quando desligou, ele foi direto ao ponto:
— O legista encontrou grande quantidade de medicamento no estômago de Channing, e uma boa parte já havia sido metabolizada. Provavelmente estava inconsciente quando levou o tiro.
— Provavelmente?
— Eles sempre ficam em cima do muro. Solicitaram um mandado de prisão para Olívia.
— Por que tão depressa? — indaguei.
— MacRae não quis me explicar — disse Annie. — Mas acho que pode contar com a detenção para o fim da semana.
— Vocês contaram ao Drew?
— Era com ele que eu estava ao telefone — respondeu Chip. — Está histérico.
Eu sabia que aquilo ia acontecer, Olívia seria presa pelo assassinato de Channing. Mas saber de uma coisa intelectualmente e vê-la acontecer eram duas coisas muito diferentes. Como se pode ajudar uma garota de dezessete anos a se preparar para ser acusada de assassinato? Todo meu treinamento em psicologia parecia-me pouco.
— Como foi seu encontro com Olívia? — perguntei a Chip.
— Ela está apavorada.
— Parece-me uma resposta apropriada...
— O júri vai gostar dela — acrescentou Chip, imperturbável —, mas está desconcertada e arisca, ao contrário de alguém que inspira carinho e impulsos de proteção.
— Gosto dela.
— E o seu trabalho — contrapôs Chip.
Comecei a explicar que não era meu trabalho gostar áelaf mas deixei pra lá. Chip continuou:
— Quero que me ajude a me preparar para o processo. Há dois caminhos a seguir. Declará-la inocente afirmando que outra pessoa cometeu o crime. Ou inocente e entrar com a defesa de Twinkie.
— E melhor alegar que outra pessoa cometeu o crime — manifestou-se Annie.
— Muito melhor — concordou Chip —, mas teremos de estar prontos para entrar pelo outro caminho, dependendo do tipo de evidência que eles apresentarem.
Não me surpreendia a relutância deles em lançar mão da defesa Twinkie, que se baseava em responsabilidade diminuída. A Twinkie foi uma defesa realizada no julgamento de um homicídio duplo em São Francisco. Um fiscal estadual atirou e matou o prefeito George Moscone e em Harvey Milk, outro fiscal estadual. A imprensa informou que a defesa atribuiu a ação do criminoso ao Twinkie e outros alimentos doces que eram verdadeiro lixo. Eles teriam diminuído a capacidade de responsabilidade do acusado.
Como sempre, a imprensa entendera errado. O que a defesa argumentava era que o acusado passara por um longo período de depressão não tratada que diminuía sua capacidade de distinguir o certo do errado. Ele era incapaz da premeditação necessária para um assassinato de primeiro grau. Como apresentar aquilo? Aí alegaram que ele era um cara que sempre seguira uma dieta alimentar saudável e, de repente, começara a preferir comida errada. Comer Twinkies não causa depressão, mas é uma evidência dela, assim como a falta de higiene pessoal.
Caso usasse a defesa Twinkie para Olívia, Chip teria de demonstrar que ela estava com um problema íntimo profundo que diminuíra sua capacidade mental.
— Estou no meio dos testes com Olívia — disse eu. — Já tenho base para demonstrar que ela precisa de um psico-estimulante como Ritalin para se colocar em foco. Sabemos que a psiquiatra dela receitou-lhe esse remédio. Isso pode estabelecer a base que você precisa.
— Qual é a condição subjacente? — quis saber Chip.
— Desordem de aprendizado no hemisfério direito, não tão poderosa quanto a depressão — admiti —, no entanto doses excessivas de Ritalin podem alterar o julgamento. Assim mesmo, é difícil de fazer aceitar. De qualquer modo, não acredito que tenha sido ela.
— Não mesmo? — insistiu Chip.
— Eles têm bases fortes — interferiu Annie. — Ela foi encontrada segurando o revólver. Tinha Ativan num bolso. Há no computador mensagens dela para a mãe, repassadas de ódio.
— Essas mensagens foram escritas como parte da terapia — expliquei.
— Você disse que o Ritalin pode ter alterado o julgamento dela... — ponderou Chip. — Será que o alteraria a ponto de Olívia ser capaz de matar alguém?
Suspirei. - — Muita gente alimenta essa noção do bondoso dr. Jekyll se transformando no criminoso mr. Hyde por cortesia de uma poção. Mas é um bocado de bobagens. Ouçam, o vício não entorta a personalidade, quando muito a subverte. Solta os parafusos. As drogas podem desinibir uma pessoa, fazem aflorar traços de uma personalidade latente, mas não podem transformar alguém em criminoso se ele já não o for fundamentalmente.
— E Olívia? — pressionou Chip.
— Não.
Eu tinha certeza disso.
Chip inclinou a cabeça, apertou os lábios e fitou-me com um dos olhos fechados.
— Está bem. Então, digamos que Olívia Temple não fez isso. Está provado que não foi suicídio. Quem mais...
— Basta haver uma dúvida? — indaguei.
— Uma dúvida razoável — explicou Chip —, mas o júri quer alternativas plausíveis. Deixe-me ver... Há o pai dela. Problemas financeiros. Ele tem namorada? — Não respondi, e ele acrescentou: — Sabe se Drew tem álibi?
Annie e ele me encararam, e engoli em seco.
— Não sei... Tentei falar com ele quando encontrei Channing, e sua assistente só conseguiu encontrá-lo meia hora depois.
Chip fazia anotações.
— Channing tinha inimigos? — perguntou. Channing conseguira emputecer um grande número de
pessoas no decorrer dos anos, mas eu não estava disposto a oferecer a eles cordeiros de sacrifício. Por fim, falei.
— Tinha alguns, sim. Ela era radical, e nunca se permitiu acreditar nos poderes constituídos.
Chip ergueu a cabeça.
— Tenho impressão de que eu gostaria dela.
— Gostaria, sim. Almas gêmeas, na verdade.
— Ninguém costuma matar por causa de diferenças profissionais — disse Annie.
Ela estava com a razão. Havia outros modos de lidar com essas coisas, modos mais suaves e bem menos destrutivos.
— Ninguém precisaria matar Channing para desacreditar o trabalho dela — declarei. — Aliás, já estava acontecendo. Foi publicado um comentário desabonador sobre sua pesquisa numa revista médica, poucas semanas atrás. Aí explodiram boatos sobre impropriedades na pesquisa... Não sei exatamente que tipo de violação de limites ou que alegações são meritórias. Não houve uma audiência preliminar. Ela desconfiava de que queriam substituí-la na chefia da Unidade de Reabilitação de Drogas e do Álcool e acho que era isso mesmo. Acima de tudo, as pastas com os relatórios das pesquisas desapareceram.
Depois de emitir um assobio, Chip perguntou:
— Alguma idéia de quem as possa ter pegado?
— Não... — respondi.
Mas acho que não fui convincente, porque Annie me exortou:
— Vá em frente, Peter!
— Liam Jensen. Ele diz que não as pegou, mas quando estive na sala dele, outro dia, a gaveta inferior do arquivo estava aberta e ele tentou fechá-la com o pé. Estava repleta de pastas púrpura e, se vocês me perguntarem, Liam não é o tipo que usa essa cor.
— Não foi ele que discutiu com Channing no fim da festa dela? — perguntou Annie.
Assenti.
Passava das seis e meia quando terminamos. Telefonei para Jess e lhe pedi que aplicasse mais uma bateria de testes cognitivos em Olívia, na manhã seguinte.
Despedi-me de Chip, e Annie acompanhou-me até a porta.
— Não deve ser muito difícil entrar no consultório do dr. Jensen... — comentou, com ar distraído, como se estivesse sugerindo um passeio pela margem do Charles.
— Entrar lá? — estranhei.
— Só para verificar o que ele guarda naquela gaveta de arquivo. O dr. Jensen jamais saberá que alguém esteve lá.
Eu queria ajudar Olívia, e faria qualquer coisa para que a pesquisa de Channing não fosse condenada ao esquecimento. Mas invadir a sala de um colega estava definitivamente além de qualquer limite.
Annie insistiu:
— Você xeretou na sala de Channing, não?
— Não é a mesma coisa. Ela está morta, e um dos administradores do Instituto abriu a porta para eu entrar. Entrar na sala de Jensen sem a permissão dele, sem a permissão de ninguém... seria inteiramente outra coisa.
Ao falar pretendi demonstrar-me ultrajado, mas já estava considerando a possibilidade. Se eu apenas verificasse a pesquisa, evitando olhar anotações confidenciais sobre pacientes...
Annie viu que havia uma abertura.
— Vai ser fácil. Apanhei-me perguntando:
— O quanto fácil?
— Fácil mesmo. Confie em mim...
Quando Annie dizia aquilo, eu me arrepiava todo e ficava preocupado.
— Quem sabe — acrescentou ela — alguém esteja passando os relatórios na máquina de triturar papéis, neste momento em que conversamos.
O promotor público não perde tempo. Recebi um telefonema da segurança. A polícia vinha a caminho do Instituto com uma escolta. Telefonei para o escritório de Chip a fim de deixar recado do que acontecia e pedir que avisasse Drew. Então corri para o quarto de Olívia querendo preveni-la para que não fosse apanhada de surpresa.
A porta estava fechada. Bati. Não houve resposta. Bati mais forte.
— Olívia — gritei —, é o dr. Zak. Posso entrar?
Nada ainda. Abri a porta e olhei para dentro. O quarto estava vazio. Verifiquei o armário. Nada de Olívia. A porta do banheiro estava fechada. Bati.
— Olívia, você está aí? — perguntei.
Ouvi o barulho da descarga. Olívia, com a cabeça envolta numa toalha, abriu a porta do banheiro e fitou-me irritada.
— Será possível que neste lugar uma pessoa não pode ter cinco minutos de paz sem que alguém apareça para saber se ela está bem e...
A voz dela foi morrendo quando notou a minha expressão.
— Olívia, a polícia está vindo para cá.
De repente, pareceu ter cinco anos, e o terror a dominou.
— O que foi? Meu pai está bem?
Claro, aquela era a primeira coisa em que ela iria pensar. Em outra tragédia. Quando algo incrível acontece com a gente, a vida começa a parecer um caminho estreito ao longo de um precipício no qual qualquer pessoa que se ama poderá cair.
— Sim, ele está bem... — Fiz uma pausa procurando um modo de tornar suave o que tinha a dizer. — A polícia está vindo para prendê-la.
A garota ficou imóvel, momentaneamente sem palavras. Recuou e foi sentar-se na cama. A toalha desenrolou-se e caiu no chão. Madeixas de cabelos negros com raízes loiras avolumavam-se em desordem em sua cabeça.
— Eles vão levá-la ao tribunal. Vão colocá-la em uma cela. Ninguém vai machucá-la. Já chamei o sr. Ferguson, e ele já está vindo também. Vai haver uma audiência...
— Você também vai?
— Irei assim que puder.
Eu tinha uma série de compromissos e levaria algum tempo para atendê-los.
— Audiência... — ecoou ela.
— Você terá de se declarar culpada ou inocente.
— Inocente — murmurou Olívia.
— Claro.
— E daí?
— Eles vão estabelecer uma fiança e enviá-la para um estabelecimento apropriado e seguro para jovens ou entregá-la a uma instituição médica para ser avaliada.
Olívia tremia. Soou uma batida forte à porta. Nós dois saltamos. Glória entrou com um copo de plástico.
— Está de novo na hora de... — começou bruscamente. Olívia olhou-a, piscando. — O que há de errado? — A enfermeira voltou-se para mim. — O que está acontecendo?
Soaram passos no corredor. Olívia correu para Glória e agarrou-se a ela. Um guarda da segurança do Pearce entrou seguido por MacRae e dois policiais fardados.
— Olívia Temple — anunciou MacRae, brandindo um par de algemas. — Estou aqui para prendê-la pelo assassinato de Channing Temple.
— Algemas? — espantei-me. — Ora, dá um tempo, Mac!
— Desta vez estamos seguindo as exigências do livro, o código penal, dr. Zak — disse ele, e voltou-se para Olívia.
— Você tem o direito de ficar em silêncio...
Como uma penitente, Olívia estendeu os pulsos muito magros. Estremeci ao ver o investigador fechar as algemas ao redor deles, enquanto continuava:
— ... Qualquer coisa que diga poderá ser usada contra você no tribunal. Tem direito a um advogado...
— Ela não pode ir a lugar nenhum — protestou Glória.
— Precisa tomar este remédio — mostrou o frasco — a cada quatro horas.
Saltei em cima da chance:
— É um tratamento em experiência. Não sabemos o que pode acontecer se ela mão tomar uma dose ou parar de tomá-lo de repente. Não há modo de saber que reação poderá sobrevir.
Esperei que a perspectiva soasse assustadora.
— Então entregue-lhe pílulas o suficiente para quarenta e oito horas — grunhiu MacRae. — Parece que ela pode andar.
— Mas precisa ser monitorada — explicou Glória.
— Temos um médico de plantão — foi a resposta dele. Parei bem à sua frente.
— Vou torná-lo responsável por qualquer coisa que aconteça com a srta. Temple.
Mac apenas piscou e permaneceu impassível enquanto dizia:
— Se você não tem advogado para cuidar do caso, indicaremos um de graça. Compreendeu todos os direitos que acabo de ler para você?
Olívia olhou-me como se indagasse "Qual é a resposta certa?".
— Não responda nada — avisei-a. — Se alguém lhe fizer perguntas, não responda. Diga, apenas, que quer falar com seu advogado. Entendeu?
Olívia fez que sim, mas eu não tinha certeza de que houvesse processado minhas palavras.
Glória segurou o rosto da garota com ambas as mãos.
— Olívia, entendeu o que o dr. Zak disse? Não fale com ninguém, está bem? —Ajeitou o cabelo molhado dela, primeiro de um lado, depois do outro. — Não fale nem mesmo com outra prisioneira, a não ser que seu advogado esteja junto.
MacRae olhou-me furioso.
— Isso também está no livro — ironizei.
Uma raiva impotente ferveu em mim ao ver Olívia sendo levada.
A todo momento eu ia verificar minha secretária eletrônica naquela manhã. Por fim havia um recado de Chip. A audiência estava marcada para depois do almoço. Saí do Pearce com bastante tempo, mas alguns faróis estavam enguiçados e haviam sido substituídos por guardas excepcionalmente lentos, que transformaram a avenida Cambridge num pesadelo. Tive de cortar pela praça Harvard, coisa que normalmente evitava.
Parei num farol vermelho, apertando os dentes, resistindo ao impulso de passar por cima de um pedestre que considerou a frase luminosa NÃO ATRAVESSE como um convite para atravessar a rua.
Quando estacionei a um metro de distância do edifício do tribunal com dezoito andares e corri para ele, minha cabeça parecia prestes a explodir. O prédio erguia-se como uma laje de concreto ameaçando esmagar o digno edifício do século dezenove em que funcionava o tribunal das sucessões. Entrei na fila que serpenteava até a porta que parecia entrada de serviço porque parece que assim havia sido determinado até que a Cidade de Cambridge revogasse a permissão de transformar a entrada principal do prédio no que viria a ser um suntuoso saguão.
Passei rapidamente pelo detetor de metais e entrei num emaranhado de pequenos espaços com teto baixo e corredores comunicantes. O local era mais uma cela do que uma sala de tribunal. Uma mulher de blazer muito longo e saia muito curta lançou-me um olhar desdenhoso quando apertei o botão do elevador. Entrei nele com cerca de mais doze pessoas, cada qual parecendo segurar um galão de café.
Eu usara aqueles elevadores dezenas de vezes em minhas idas para seleção de júri e outras tantas para o julgamento do homem que matara Kate. Não queria que o júri esquecesse das dimensões humanas que significava a perda dela e queria que Ralston Bridges soubesse que eu estava ali, para ter certeza de que ele receberia o que merecia.
Quando o elevador abriu a porta no terceiro andar, entrou mais gente. Fiquei olhando para a parte de trás da cabeça de um homem, cujo cabelo loiro se esfregava no meu nariz. Senti um aperto na boca do estômago. O homem me lembrava Bridges.
Como mais gente se empurrava no elevador, tentei recuar. O homem loiro pisou nos meus pés e começou a voltar-se. Foi como no tempo em que eu entrava no tribunal e Bridges parecia sentir que eu chegara. Ele se achava sentado à mesa da defesa, de costas para a porta da sala. Sua cabeça virava-se para trás como se estivesse desconectada do corpo, ele me fitava por momentos com seus olhos mortos e depois virava-a para a frente.
Bridges não me deixava sentir satisfação, mesmo com o júri presente. Seu olhar parecia me dizer "Lembre-se, se não fosse você não estaríamos aqui". E era verdade. Se eu não houvesse dado meu depoimento como testemunha perita em avaliação de assassinos no julgamento dele, nós jamais nos teríamos encontrado.
Abri caminho para a câmara do juiz. Chip foi me encontrar no meio do corredor.
— Pronto? — perguntei.
— Sherman está aqui — disse ele.
Montrose Sherman era o promotor público — um cara pretensioso que perdera uma competição para procurador geral por pequena margem de votos. A última vez que o encontrara na barra do tribunal ele levara a melhor.
— O que não sei é por quê — acrescentou Chip.
— E por que não estaria? —- retruquei. — É um caso de assassinato, não?
— Mas envolve uma ré juvenil. Normalmente é o assistente do promotor que cuida desses casos.
— Talvez ele tenha interesse pessoal — sugeri.
— Merda! — explodiu meu amigo.
Era exatamente o que eu pensava. Entramos juntos. A espaçosa sala, com janelas que abriam para o troféu no topo do Museu da Ciência, estava repleta de livros. As lâmpadas fluorescentes murmuravam por todo lado, derramando uma luz impiedosa sobre o mais perfeitamente quadrado aposento com painéis que imitavam carvalho e piso de pequenos quadrados de linóleo cinza.
Sentei-me à enorme mesa de conferências oval que ficava no centro da sala, do lado oposto onde se encontrava Sherman e seu assistente. Uma estenógrafa achava-se sentada, atenta, ao lado do escrevente do juiz. Um par de guardas do tribunal flanqueava a porta
Olívia foi trazida e posta ao lado de Chip; parecia frágil como um caniço. Quando Drew chegou, sentou-se a meu lado.
Naquele dia Drew apresentava-se elegante e distinto, de terno limpo e bem passado. O juiz, um senhor idoso com camadas de papadas ligando sua cabeça com o colarinho da beca, presidia na cabeceira da mesa. Parecia que ele já tivera um dia exaustivo.
Conferenciando com o assistente, o promotor lembrava-me um anúncio de tônico capilar dos anos 1950 — um executivo com terno negro risca-de-giz e o cabelo brilhantinado perfeitamente no lugar. Ao seu lado o assistente parecia um adolescente fora do contexto. Seu terno parecia ter sido alugado: um tantinho largo, um tantinho usado.
O juiz verificou algumas páginas impressas. Então sentou-se e limpou a garganta.
— Estou para entrar com um argumento de inocência a seu respeito, srta. Temple — disse, com voz sonora porém bondosa. — E questão de fiança? — perguntou ao assistente do promotor.
Chip saltou em pé.
— A defesa requer uma consignação civil em lugar da fiança, pela qual a srta. Temple será reconduzida ao Instituto de Psiquiatria Pearce, onde estava sendo submetida a tratamento experimental e avaliação psíquica.
— O Estado... — começou o assistente do promotor. Mas Sherman inclinou-se para ele.
A voz do jovem morreu, e Sherman assumiu:
— O Estado requer que a acusada seja enviada para b Centro Bechtel para Moças a fim de ser avaliada. Eles têm excelentes psiquiatras que podem atendê-la.
Olívia estremeceu ao ouvir aquilo.
Bechtel era um seguro Departamento de Serviço para Jovens especializado em adolescentes violentos. Tinha boa reputação, mas eu detestava pensar no que Olívia — ou qualquer outra jovem — poderia aprender lá.
Chip argumentou:
— O Centro Bechtel não tem a capacidade médica requerida para o tratamento da minha cliente.
Sherman ergueu o queixo e olhou para Olívia por cima do nariz.
— Meritíssimo, a acusada está em tratamento para retirada de droga. A situação dela nada tem de única. O Bechtel lida com casos similares todos os dias da semana.
Olívia ficou pasma. Notei um leve tremor em sua mão, como o de um inseto apanhado entre dois painéis de uma janela.
— Se o senhor me deixar explicar... — começou Chip, e parou. O juiz acenou com a mão para que continuasse. — A srta. Temple está sob um protocolo experimental de medicamento. Seus médicos no Pearce sabem como lidar com isso no caso de ocorrer alguma reação inesperada. Ela fica trancada a noite toda, por isso não há perigo de que fuja. Mas se o senhor a enviar para o Bechtel, onde não têm experiência com esse tipo de medicação, haverá um risco real. — Chip fez uma pausa e olhou para Olívia, que se tornara branca. — Talvez haja até mesmo perigo de morte.
O tremor que se iniciara na mão de Olívia agora subia pelo braço. A cabeça e um ombro estavam descaídos para um lado, e eu não podia ver-lhe o rosto. Seus olhos estariam abertos ou rolados para trás? Descobri-me apoiando-me na mesa pronto para saltar.
Sherman disse:
— Meritíssimo, enquanto a acusada estiver no Pearce os psiquiatras do Estado não poderão avaliá-la. Não acredito que esse adiamento seja necessário.
— Quando esse tratamento experimental começou? — perguntou o juiz.
Chip relanceou os olhos por mim, e eu mostrei dois dedos.
— Duas semanas... — Eu sacudi a cabeça. — Dois dias atrás, meritíssimo.
Meu amigo não parecia satisfeito. Sherman observou:
— Isso parece bastante conveniente...
Parou de repente e ficou olhando para Olívia. O tremor se apoderara do corpo todo. Ela inclinou-se para a frente c a cadeira saiu debaixo dela. Seu queixo bateu na beira da mesa, e a garota desmaiou.
Eu já estava perto dela antes mesmo de ter tempo para pensar no que estava acontecendo, mas um policial do tribunal, um cara grandalhão, de cabelos brancos e bigode que lembrava as cerdas de uma escova de dentes, puxou-me para trás, enquanto o outro policial ajoelhava-se ao lado dela. Olívia tornara-se rígida e espumava pela boca. A espuma foi se tornando rosada à medida que se misturava com o sangue do local em que ela mordera o lábio.
— Ele é médico dela — disse Chip ao bigode de escova. E ele deixou que eu me aproximasse de Olívia.
O outro policial a deitara de costas. Tirei o paletó e coloquei-o sob a cabeça da garota. Aí, virei-lhe a cabeça de lado para que não sufocasse no caso de vomitar. Peguei minha carteira e coloquei-a entre os dentes de Olívia. Os calcanhares dela batiam repetidamente contra o chão, pesadamente no começo. O ponteiro dos segundos do relógio da parede saltava lentamente adiante, ao mesmo tempo que o bater dos calcanhares enfraquecia.
Quando o som cessou, a sala ficou em absoluto silêncio. O cheiro acre de urina flutuava no ar. Drew achava-se de pé a meu lado. Montrose Sherman continuava sentado no seu lugar, com os braços cruzados ao peito, um lápis sobre seu bloco amarelo.
Tirei a carteira da boca de Olívia. Ela parecia adormecida. Toquei-lhe um ombro.
— Olívia — eu disse, apertando-o suavemente. — Olívia, acorde.
Suas pálpebras agitaram-se e abriram-se para mostrar olhos sem foco. Ela parecia admirada. Então seu olhar encontrou o meu.
— Dr. Zak, estou tão cansada... — murmurou. Viu Drew atrás de mim. — Papai?
Esforçou-se para sentar-se. Seu rosto demonstrou surpresa e, em seguida, embaraço, quando pôs a mão entre as pernas.
— O que aconteceu?
Ao perguntar ela viu o juiz que espiava por cima da mesa de conferência.
— Você teve um mal-estar — respondi. — Perdeu o controle. Isso acontece. Fique deitada até ter certeza de que pode levantar-se. — Dei-lhe meu lenço. — Tome, você mordeu o lábio...
Ela pressionou o lenço nos lábios, retirou-o, olhou-o e fez uma careta ao ver sangue.
O juiz determinou recesso. Saí depressa, telefonei para Kwan e contei-lhe sobe o mal-estar de Olívia.
— Provavelmente uma reação ao Kutril — disse ele. — Pode ter sido potencializado pelo estresse. Pelo jeito, ocorreu uma emergência. Por enquanto, procure mantê-la calma.
Quando voltei para a câmara do juiz, Olívia estava tudo menos calma.
— Não ponham suas mãos nojentas em mim! — gritou para os três enfermeiros que haviam chegado.
Drew e eu os convencemos a ir embora. Drew pegou Olívia no colo e ela aninhou-se junto a ele. Fiquei mais sossegado ao ver que sua cor voltara. Alguns minutos depois ela havia adormecido.
Quando a audiência chegou ao fim, o juiz determinou:
— Vou permitir que a srta. Temple volte para o Instituto Pearce a fim de terminar o tratamento.
— Mas, meritíssimo... — começou Sherman. O juiz continuou, com voz firme:
— Ela deverá ficar numa unidade trancada. Daqui a duas semanas deverá ir ao Centro Bechtel para Moças para uma avaliação.
Antes que o juiz terminasse de falar, Sherman começou a guardar seus papéis na pasta de couro. Quando o juiz suspendeu a audiência, ele foi o primeiro a sair.
Duas semanas não era muito como prorrogação. Mas tínhamos que nos virar com isso.
Naquela tarde telefonei para Daphne e contei-lhe sobre a detenção e a acusação.
— É claro que Livvy não fez isso — protestou ela. — E um absurdo.
— Se não foi ela, foi outra pessoa — disse eu. Daphne ficou calada.
— Olívia permitiu que eu fale com você sobre o resultado dos testes, Daphne.
Ajudado por minhas anotações, descrevi os diferentes modos como Olívia juntara os objetos. Depois fiz um sumário das minhas conclusões iniciais.
— Ela está impaciente. Deixou uma porção de itens de lado, principalmente os da periferia da mesa, como se não os visse. Distrai-se facilmente e tem dificuldade de manter o foco. E inflexível: não conseguiu reagrupar determinados itens de modo algum. Foi como se estivesse oprimida pelo grande número de objetos.
— Interessante — comentou Daphne. — Agrupar coisas para comer, por exemplo. Suas necessidades orais informam o modo pelo qual ela interpreta o mundo. — Palavras de uma analista. — Adolescente típica, deixa que as emoções a dirijam. E como eu pensava: Olívia precisa de estrutura, de disciplina, de mão firme.
Eu não disse nada, se bem que visse a coisa de modo diferente. Pressionada pela grande quantidade de informações e pelo tempo limitado, a habilidade de Olívia de agir baixara, e seus impulsos básicos haviam assumido o papel de governar. Num caso desses nem toda "estruturação" do mundo iria ajudar. Ela precisava de uma terapeuta que quisesse ser sua parceira e não uma ditadora de tarefas ou determinadora de limites. Precisava de alguém em quem confiasse para permitir que entrasse em sua psique. Precisava ouvir "Vamos ver isto aqui juntas. Deixe-me ajudar". Em vez disso, tudo que ouvia de Daphne era isso está errado. Faça assim.
— Foi por isso que usei uma forma modificada de controle de ações com ela — explicava Daphne. — Escrevendo o que sente, os sentimentos não podem dominá-la, ela se tornará capaz de entendê-los e assumirá o controle.
Mais uma vez eu discordava. Desconfiava que fosse justamente o oposto. Quando Olívia escrevia seus sentimentos, eles se tornavam ainda mais intensos e mais assustadores. Transformavam-se em mais coisas das quais deveria envergonhar-se.
A despeito da excelente reputação de Daphne como clínica, ela errara a mão com Olívia. Tratava-se de uma paciente a quem não entendia. Em vez de tratá-la, Daphne a estava surrando com as próprias fraquezas. Se tivesse continuado por mais tempo, aquele tratamento poderia facilmente ter conduzido Olívia à beira de um despenhadeiro.
— Não é nada difícil fazer o diagnóstico, não acha? — perguntou-me Daphne.
— Eu diria que é típico de alguém com o hemisfério direito que esteja falhando na habilidade não conseguir focar-se nas coisas que o rodeiam ou ser incapaz de categorizá-las com eficiência. E isso explicaria também a imaturidade social dela — respondi. — Foi por isso que você começou a dar-lhe Ritalin?
Houve uma pausa. Pareceu-me que Daphne dava uma tragada no cigarro e exalava a fumaça.
— Foi isso que Olívia o autorizou a discutir comigo? Aquilo me pegou de jeito.
— O Ritalin vai um pouco além dos resultados dos testes dela, não acha? — acrescentou Daphne.
Eu não sabia a resposta. Estritamente falando, já tínhamos ido além do resultado dos testes. Por que o Ritalin era um tratamento sem limites ao passo que o tratamento de controle de ações não era?
— Bom — observou ela, ríspida —, andei verificando se houve alguma morte, comunicada ou não, nas nossas experiências com medicamentos. Não houve.
— Falou com o dr. Tensen?
— Falei. Com ele e com os outros, Peter.
— Perguntou se algum dos pacientes morreu durante alguma experiência?
— Isso.
— Por causas relacionadas ou não com os medicamentos testados?
— Já disse que sim. — Ela parecia aborrecida. — Peter, isso é tudo que posso fazer, não sou capaz de ler mentes.
— Se não houve morte alguma relacionada com a experiência DX-200, que Channing estava tentando relatar, por que ela e Liam discutiram a respeito?
— Tem certeza de que discutiam sobre uma morte, Peter?
— "Um homem morreu", foi isso que Channing disse, e acrescentou que ia fazer todo mundo ficar sabendo o que acontecera. — Havia certeza na minha voz, porém na verdade minha lembrança era um tanto confusa. — Talvez eu mesmo deva conversar com Liam.
— Mas eu já lhe disse... — Daphne estacou.
— Eu gostaria de saber se ele levaria vantagem ficando com as fichas de pesquisa de Channing.
— Peter...
— Bem, alguém sumiu com elas. Não foi você e não fui eu. Quando estive na sala de Jensen falando com ele, havia uma porção de pastas amontoadas numa gaveta de arquivo. Para uma pessoa organizada, isso é muito estranho. E é concebível que ele prefira que a pesquisa dela não seja publicada porque está trabalhando com a Acu-Med num remédio semelhante.
Houve um longo silêncio na linha.
— Peter, acho que você deveria ser extremamente cuidadoso com as acusações que faz. Uma morte não relatada é omissão muito séria. Uma coisa é confiar suas suspeitas a mim, e outra falar a respeito por aí, sem ter certeza. — Era como se ela houvesse desligado o botão Pessoa e apertado o Administradora do Instituto. — Meu conselho é que se mantenha fora disso. Já existem bastantes curiosos e boateiros por aqui para que você se torne um deles.
— Alguém furtou a pesquisa de Channing...
— Você não tem certeza disso.
— No arquivo dela há uma gaveta vazia que me dá razão.
— Há uma porção de explicações para uma gaveta vazia e... — Ela fez uma pausa. — Espere um pouco. — E Daphne atendeu a outra linha. — Alô?... Quem é?
Houve uma série de sons abafados, como se ela houvesse posto a mão sobre o bocal. Esperei.
Se Jensen estivesse com a pesquisa de Channing, se um paciente da sua experiência clínica houvesse morrido, por que Daphne o protegia? Será que estava encobrindo algo que o Instituto não queria ver exposto? Ou eu fora contaminado pela paranóia de Channing?
Daphne voltou à minha linha.
— Desculpe, Peter, mas preciso desligar. Tenho um compromisso. Continuaremos numa próxima vez.
O telefone foi desligado e fiquei olhando para o receptor.
Quanto mais pensava naquilo, mais me convencia de que insistir com Jensen sobre a pesquisa desaparecida seria um tiro pela culatra. Eu já lhe perguntara, e Daphne também. Ele respondera sempre que não estava com os relatórios.
Com Daphne e eu fungando na sua nuca Jensen poderia entrar em pânico e destruir as insubstituíveis anotações, principalmente porque parecia que o Kutril poderia desbancar o DX-200 pela eficiência e pelo custo menor. A patente de Jensen não teria nenhum valor.
Não demorei muito a me convencer. Não tinha como trazer Channing de volta, mas pelo menos poderia garantir que seu trabalho fosse reconhecido. Invadir a sala de Jensen já não me parecia impossível. Mas também era uma responsabilidade da qual eu não poderia escapar.
Telefonei para Annie e disse-lhe que havia mudado de idéia.
Às duas da madrugada estávamos na porta dos fundos da Unidade de Neuropsiquiatria, com o vento fazendo a chuva bater forte no nosso rosto. Fomos para minha sala. Tirei o paletó e deixei o guarda-chuva aberto para secar. Conforme instruções de Annie, eu estava de calças pretas, blusão preto e sapatos com sola de borracha. Annie pôs sua mochila no chão. Tirou a capa de plástico, sacudiu-a e colocou-a nas costas de uma cadeira. Estava de fuseau e suéter pretos.
Tive o impulso súbito de esquecer a idéia de esgueirar-me até o escritório de Jensen e, em vez disso, passar algum tempo agradável retirando aquele fuseau e, depois, ficar acariciando aquelas longas pernas pela eternidade. Isso para começar. No entanto, Annie era toda ação.
— Muito bem — disse ela —, mostre-me como os tais túneis se comunicam.
Tirei a fotocópia de um mapa de uma gaveta. Indiquei cada um dos edifícios do Pearce no campus e as passagens subterrâneas que os ligavam.
Os túneis eram originais como os prédios, e utilizados antigamente para o transporte de refeições da cozinha central a cada uma das unidades e para conduzir pacientes às salas de tratamentos especiais. Ainda bastante usados durante o dia, à noite os túneis quase sempre permaneciam desertos.
— E aqui que estamos, Unidade de Neuropsiquiatria — fiz um X no bloco que representava a minha unidade —, perto do final desta passagem principal.
Deslizei um dedo ao longo do túnel que se estendia de uma extremidade do Pearce a outra, interrompido apenas a meia distância pelo edifício dos consultórios médicos que abrigava em seu porão as salas da manutenção e da segurança. Os demais túneis desembocavam no principal.
— E é para este ponto que precisamos ir.
Marquei com outro X um edifício no final de um túnel secundário, do lado oposto do campus.
— A que distância fica?
— Oitocentos metros, talvez menos.
— E a segurança?
— Uma vez por hora um segurança passa por todos os túneis. Ele começa aqui — indiquei o edifício dos consultórios médicos no meio do mapa — e segue pelos túneis distanciando-se do centro. Aí ele volta para a base e faz a mesma coisa para o outro lado. Leva cerca de meia hora.
— Todos esses edifícios estão em uso? — perguntou Annie.
— Todos, não. Alguns estão desativados. — Escrevi um D sobre cada edifício fora de uso. — Caros demais para ser mantidos. Muito controversa a idéia de demoli-los.
— Trancados? — quis saber ela.
— Tudo está trancado — respondi, tirando um molho de chaves de um bolso e separando uma —, mas esta chave abre todas as portas. Funciona nas dos elevadores também.
Annie ficou olhando para o mapa como se quisesse gravá-lo na memória. Traçou nosso caminho com o dedo indicador.
— Muito fácil — disse. — Quando começamos? Consultei meu relógio. Havia passado vinte minutos. Fui olhar pela janela e divisei uma linha interrompida de luzes ao nível do chão, que ia do nosso edifício até o seguinte, por cima da colina. Eram luzes das janelas do túnel que ficavam exatamente à altura do solo. O fato de estarem acesas significava que o guarda ainda não completara a última ronda, pois as apagava quando voltava. Enquanto eu olhava, um trecho da linha de luzes apagou-se. Alguns minutos depois apagaram-se as que restavam.
— Agora — disse eu.
Annie abriu o zíper de sua mochila e tirou dela uma pochete preta de náilon que prendeu à cintura.
Deslizamos para fora da sala. Apenas a luz de emergência estava acesa no final do corredor. Andamos depressa e desembocamos na escada brilhantemente iluminada. Enquanto descíamos, fui passando a mão nas barras de metal que protegiam do vão central. Quatro pisos abaixo chegamos ao porão e passamos por uma pesada porta de aço.
Um alto e estreito túnel estendia-se à nossa frente com janelas horizontais alinhadas ao longo de canos e conduítes que serpenteavam junto ao teto. O ambiente cheirava a folhas molhadas, e o ar parecia vivo de sons: o surdo batucar dos pingos da chuva no solo acima do túnel, os estalidos dos canos bombeando vapor e água quente para todo lado. Durante o dia o túnel era bem iluminado, agora havia nele apenas a claridade velada das luzes de emergência.
Movimentamo-nos rapidamente pelo primeiro trecho do túnel. O piso foi se tornando molhado à medida que a chuva se infiltrava pelo teto. Em alguns pontos a tinta estava se soltando da parede, e em toda a extensão se desintegrara, tornando-se granulosa e formando bolinhas de pó branco.
Numa curva, Annie parou e ergueu os olhos. Acima dos canos envolvidos por asbesto havia tábuas apodrecidas com isolamentos defeituosos nos cantos. A água que escoava por eles e caía no chão adquiria um leve brilho à luz mortiça.
Começamos a descer uma longa rampa.
— Cuidado para não escorregar e cair sentada — murmurei —, falo por experiência própria.
— Lugar magnífico para um passeio — sussurrou ela de volta.
Nesse momento sobreveio, um novo som, como o vento assobiando através dos conduítes diretamente acima das nossas cabeças.
— Só falta essa coisa vir abaixo — disse Annie, olhando para o teto, e estremeceu. — Vamos logo.
Aquele trecho de túnel terminava numa porta que dava para o edifício dos médicos. Aquela era a parte mais divertida: no porão desse prédio ficava a segurança. Subimos a escada para o piso térreo e fomos para o outro lado. Quando estávamos no meio do caminho, Annie pôs a mão no meu ombro. E eu também ouvi. Passos no piso de cima. Não havia portas, nem qualquer abertura em que pudéssemos nos enfiar. Meu cabelo arrepiou-se à medida que os passos chegavam cada vez mais perto e passaram por cima de nós.
Segurei a mão de Annie e corremos para a porta de saída em frente, descemos a escada e entramos no túnel seguinte. Eu estava molhado de suor.
No final daquele trecho de túnel havia duas portas. Enquanto eu enfiava minha chave na fechadura de uma delas, Annie perguntou:
— Onde vai dar a outra?
— No porão do Pavilhão Albert, onde ficam as crianças da unidade. E, antes disso, esse pavilhão alojou uma das primeiras pacientes do Instituto, uma viúva riquíssima que enlouqueceu. A família mandou construir uma réplica da casa dela aqui. Trouxeram-na para cá no meio da noite, e ela viveu até o último de seus dias pensando que continuava em casa.
— Invenção sua.
— Não. É verdade.
Como uma criança, incapaz de resistir à tentação de ver o que havia por trás de uma porta trancada, Annie procurou pela maçaneta e pegou alguma coisa.
— Ei, amiguinha! — disse, abrindo a mão só um pouco. A altura dos meus olhos estava uma gorda aranha negra.
Olhei para cima. O teto estava todo enfeitado por teias de aranha.
— Lá vai você... — disse Annie, rebentando o fio no qual a aranha estava pendurada.
Colocou a pequena criatura no chão, com todo cuidado, e ela enrolou-se como uma bola por alguns segundos. Depois, desenrolou-se e saiu correndo. Em seguida, Annie girou a maçaneta.
— Trancada — murmurou e encostou o ouvido na porta. — Escute — acenou me chamando.
Apertei a orelha contra a porta. Música rock. Sacudi os ombros.
— Às vezes alguns pacientes encontram o caminho para cá. Ainda não tivemos tempo de resolver isso. Vou avisar a segurança quando terminarmos.
Annie pegou uma lanterna, com tamanho e formato de uma caneta, que emitiu um facho de luz surpreendentemente forte. Ela passou-o pela frincha da porta e comentou:
— Não seria muito difícil abri-la com um pé-de-cabra. Abri a outra porta e continuamos nosso caminho.
— Eu deveria ter trazido migalhas de pão... — brincou Annie quando contornamos uma quina e depois outra.
— Este é o nosso teste de mal de Alzheimer para os médicos que envelhecem... — expliquei. — Sossegue que não estamos perdidos, aliás, já chegamos.
O túnel terminava numa porta fechada. Usei minha chave mestra e a porta que dava para a Unidade de Reabilitação de Drogas e do Álcool abriu-se facilmente.
Achávamo-nos perto de uma das duas escadas no fundo do edifício. Estava escuro, a única luz vinha das indicações SAÍDA. Andei arrastando os pés até que um deles tocou no primeiro degrau. Annie acendeu a lanterninha e eu tive que me contentar com a amostra de claridade que vinha das janelas junto ao teto.
Tateei em busca de um corrimão, porém encontrei apenas a grade de madeira que subia dos degraus ao teto.
Apurei os ouvidos. Nada, a não ser silêncio.
— Vamos — sussurrou Annie e começou a subir.
O som dos nossos passos na escada parecia-me ensurdecedor, apesar da solas de borracha. A própria escada ressoava. Eu apoiava a mão, de leve, na proteção de madeira.
Quatro pisos acima entramos num corredor onde havia uma luz de emergência em cada extremidade. Annie guardou a lanterninha.
A chuva batia contra o telhado e o vento assobiava nos beirais. Deslizamos pelo corredor, passando por várias salas, até que chegamos a uma em que tinha na porta o nome LIAM JENSEN — MÉDICO.
Annie tentou a maçaneta. Trancada. Recorri à minha chave que nem sequer entrou na fechadura, fazendo-me saber que ela só servia para as portas dos túneis e das salas da minha unidade.
Annie abriu a pochete e pegou algo que parecia um pequeno estojo de couro. Abriu-o e tirou dele uma estreita tira de metal flexível que enfiou com pequenos movimentos na fechadura. Praguejou. Pegou uma outra lâmina e tentou de novo.
— Pronto — disse e abriu a porta.
Torceu a maçaneta da porta interna. Estava destrancada.
Entramos e fechamos as duas portas atrás de nós. A sala estava muito escura, com apenas a insinuação de leve claridade no que devia ser uma frincha entre as cortinas.
— Peter... — sussurrou Annie.
— Estou aqui — respondi e dei um passo na direção da voz dela.
Senti seu toque em meu ombro, depois desceu pelo braço, e ela pegou a minha mão. Em seguida, acendeu a lanterninha. O facho de luz foi de um canto para outro da sala e varreu-a em toda a extensão. Havia poltronas, cadeiras, um abajur com pé, um vaso com planta. Ela dirigiu a luz para o tampo da mesa de Jensen. Estava sem papel algum. Ele era mesmo um cara ordeiro. Cada um dos lápis e canetas achava-se alinhado um ao lado do outro, exatamente perpendicular à beira de trás da mesa. O único elemento destoante era uma caneca da Acu-Med com algo pela metade. Era café fraco, com creme que formava um círculo bege de borda espumosa.
Annie foi até a cortina e fechou-a direito, sobrepondo uma parte à outra. Só então acendeu o abajur.
Fui para a cadeira atrás da escrivaninha de Liam, sentei-me nela e rodei até o arquivo. Estava destrancado. Abaixei-me para a gaveta que vira aberta; em minha mente via uma porção de pastas púrpura amontoadas nela e o pé de Liam tentando fechá-la. Fiz uma pequena prece. Por favor, que ele não tenha destruído os relatórios da pesquisa. Puxei a gaveta, que se abriu facilmente demais. Antes que meus olhos confirmassem, eu soube que as pastas haviam sido tiradas dali. A gaveta, agora, estava ocupada até três quartos com pastas marrons, bem arrumadas e com as orelhas voltadas para a esquerda e para a direita, sem sobreposição. Peguei uma e li o rótulo datilografado. "8.3641. Experiência DX-200." Continha relatórios sobre a experiência feita com o medicamento num participante determinado pelo código 8.3641. Coloquei-a no lugar. Pendurada em primeiro lugar na gaveta achava-se uma pasta identificada "RA DX-200 Experiências." Peguei-a.
— Encontrou o que queria? — perguntou Annie. .
— Não. As pastas que vi aqui desapareceram. Mas espere um minuto. Há algo mais... Relatórios sobre reações adversas ocorridas durante os testes com o DX-200.
Que Deus abençoasse Liam por seu cérebro pequenino, porém ordeiro. Havia umas doze ou mais folhas de papel, com o número do paciente e a descrição da reação adversa. Náusea. Vertigem. Depressão com impulsos suicidas. Fadiga. Continuei procurando. Um leve ataque cardíaco foi a reação mais próxima da morte que encontrei.
Aqueles eram todos pacientes que haviam completado a experiência. E os que não haviam? No fundo da gaveta encontrei a pasta que procurava. Continha relatórios sobre pacientes que tinham parado o teste. Eram apenas três. Dois tinham saído por "motivos pessoais", e o terceiro por causa de um problema com automóvel. Eu me perguntei se algum deles seria o paciente morto que Channing exigia que Jensen comunicasse.
— Annie, é difícil descobrir se alguém morreu?
— Depende. Com o número da Previdência Social leva três segundos.
Dois dos pacientes que haviam saído da experiência eram mulheres. Não poderia ser nenhuma delas. O paciente com problema de automóvel era homem. Passei para Annie seu número da Previdência Social e ela escreveu-o num caderninho preto.
— Como estamos de tempo? — perguntou ela. Consultei meu relógio. Eram 2:40.
— Bem. A ronda do segurança só começará daqui a vinte minutos.
Recoloquei a pasta no lugar, ajeitei-a na gaveta e fechei-a. Verifiquei se a sala estava como a havíamos encontrado. A única coisa fora de lugar era aquela caneca da Acu-Med. Achava-se em cima da mesa, quando deveria ter sido lavada e recolocada no primeiro lugar na fileira de canecas que se alinhavam em cima do arquivo.
— Está tudo certo? — preocupou-se Annie.
— Sim, e até um pouco déja-vu... Quando encontrei o corpo de Channing havia uma caneca da Acu-Med na mesa dela também. A polícia disse que não encontrou nenhuma quando verificou a sala.
— Isso é incomum? — perguntou ela.
— Não... — admiti. Afinal, a empresa dera essas canecas a todos os médicos. — No entanto, não posso deixar de imaginar que esta é a que estava na mesa de Channing e que desapareceu antes de a polícia fotografar a cena do crime.
Eu ia apagar o abajur quando reparei na pasta de couro de Jensen no chão, apoiada na lateral da mesa. Estava aberta. Do mesmo jeito que eu deixava a minha pasta quando trabalhava no meu consultório. Eu era uma pessoa que podia facilmente deixar uma caneca suja de café sobre a escrivaninha ou esquecer minha pasta se saísse correndo do escritório. Liam Jensen parecia muito menos inclinado a fazer essas coisas, a menos que fosse apenas para ir ao banheiro ou ver um paciente.
De repente senti-me ansioso por sair dali. Apaguei o abajur e saímos. Fechei silenciosamente as portas do escritório atrás de nós.
Passamos depressa pela sala de Channing. A porta ainda estava fechada a cadeado e havia um quadrado de tinta cor-de-rosa na parede, de onde havia sido removida a placa com o nome dela.
Annie estacou diante do consultório de Daphne. A porta estava entreaberta. Havia luz lá dentro. Será que ela ainda estava trabalhando? Talvez Jensen estivesse lá, trabalhando com ela.
Pousei a mão na maçaneta. Se Channing confiava em alguém o bastante para entregar-lhe sua pesquisa, esse alguém só poderia ser Daphne — se as fichas haviam sido, de fato, confiadas a alguém em vez de terem sido tiradas de sua sala depois da morte. Se Jensen as tivesse pegado eu poderia facilmente imaginar Daphne confrontando-se com ele, apoderando-se dos relatórios e guardando-os a salvo na sua própria sala. Então, talvez por algum mal orientado senso de lealdade para com o Instituto, não quisesse revelar a ninguém que estava com eles. Eu levaria apenas um minuto para verificar isso.
Puxei a porta externa e parei. Escutei. Empurrei a porta interna e a abri de vez. A sala cheirava a cigarro. A lâmpada sobre a escrivaninha estava acesa.
— Peter...
Dei um pulo ao ouvir a voz de Annie e lhe disse:
— Esta é a sala da mulher que agora dirige os testes clínicos para o Instituto. Daphne Smythe-Gooding. Você a conheceu na festa de Channing. Ela era mentora de Channing e estava com um resumo da pesquisa. Imagino se...
— Bem, se vai entrar aí, é bom que o faça logo. Eu estava além da cautela.
— Certo. Apenas uma olhadinha rápida.
Entrei. A sala pareceu-me um pouco mais em desordem do que da última vez que tinha estado lá. Cartazes amarelos estavam encostados na parede atrás da mesa. Restava apenas uma amêndoa doce na tigela, que se encontrava junto a uma pilha de invólucros vazios e fitas de bombons Hershey's Kisses. A violeta-africana parecia cansada, suas folhas descaídas e tristes, as flores murchas e marrons. Não havia nenhum suéter no espaldar da cadeira e nenhuma pasta aberta em cima da mesa.
Num papel azul que se encontrava em cima de alguns outros na escrivaninha havia um desenho em escala. Era de uma lápide esculpida, com mais de um metro e meio de altura, na qual Daphne escrevera o nome do marido, as datas de seu nascimento e morte e: "Respeitado mestre, amado marido, irmão, tio". E na lápide sobre a sepultura havia a inscrição: "Chamado de volta antes do tempo".
O monumento era impressionante, maior e mais maciço do que as lápides dos cemitérios modernos. O recorte no granito ao redor da inscrição onde seriam plantadas fores conferia-lhe um quê vitoriano.
Não fiz túmulo para Kate. Sabia que ela ficaria horrorizada só em pensar nos seus ossos ocupando um eterno espaço num cemitério repleto. Em vez disso, fiz uma peregrinação a Martha's Vineyard e espalhei suas cinzas no lugar predileto dela para piqueniques: um costão rochoso ao longo de Moshup Trail, olhando para o mar.
Deixei o desenho onde estava e rapidamente verifiquei as quatro gavetas do arquivo de Daphne. Todas se achavam destrancadas. Cheguei à última sem ter encontrado nada que parecesse a pesquisa de Channing quando Annie assobiou.
— Por acaso é costume manter uma pequena farmácia no consultório?
Ela olhava para dentro de uma gaveta da mesa que estava cheia de amostras de remédios. Zoloft. Prozac. Valium.
— É típico — respondi. — O Instituto tem a política de que amostras de medicamentos devem ficar trancadas, mas isso nem sempre é obedecido.
Então notei um frasco transparente de Ativan em cima da mesa. Algumas das pílulas tinham desaparecido. Isso não era assim tão típico.
— Talvez ela o tenha esquecido na pressa — sugeri. — Aliás, até deixou a luz acesa.
A janela estremecia com as fortes rajadas de vento que a golpeavam.
— Precisamos ir — lembrou Annie.
Tínhamos dez minutos. Fechei as gavetas do arquivo e deixei a luz acesa, a gaveta da escrivaninha e a porta abertas, como as havíamos encontrado. Corremos para a escada mais próxima, que ficava no extremo oposto do prédio pelo qual havíamos chegado.
Segui Annie para dentro da escuridão. Por que com todas as comodidades daquele prédio não havia luzes de emergência na escada?
— Annie, onde você está? — sussurrei.
— Aqui, bem à sua frente — respondeu ela.
E emitiu um "psiu", exigindo-me silêncio, enquanto a porta se fechava tornando a escuridão ainda mais escura.
Procurei algo em que me segurar. Encostei a mão na grade de madeira e ouvi os passos de Annie descendo a escada.
— Onde está a sua lanterninha? — perguntei, enquanto tropeçava logo à frente.
Obriguei-me a descer depressa usando os balaústres de madeira como guias.
— Estou procurando — respondeu Annie.
Abriu o zíper da pochete quando chegamos ao segundo patamar de cima para baixo.
— Onde diabo eu a enfiei?... — praguejou Annie. — Tem que estar em algum lugar... Ahá!
A lanterna acendeu, e ela focou o facho de luz primeiro em mim e depois no chão à sua frente. No piso do patamar percebia-se uma fina camada de pó que parecia luminoso e que apresentava marcas de algo que fora arrastado pelo chão.
— Parece que... — começou Annie dando um passo adiante. — Uau!
Seu pé escorregou, ela cambaleou e aterrissou sentada com um barulho abafado. A lanterna saltou-lhe da mão e também caiu. Precipitei-me para pegá-la.
— Cuidado, Peter, não... — gritou Annie.
A lanterna rolou pelo chão e desapareceu no vão da escada. Precipitei-me para pegá-la, tateei no ar procurando as barras para me segurar, porém elas não estavam onde deveriam, e eu teria ido parar lá embaixo no porão, junto com a lanterna, se Annie não me agarrasse pelo blusão bem a tempo.
— Puta merda — murmurei, recuperando o equilíbrio.
Fiquei parado, respirando fundo para me acalmar. Meu coração parecia estar batendo como um martelo no peito a fim de abrir caminho para saltar fora. A camisa estava colada nas costas. Meus olhos acostumaram-se com o escuro, e pude ver que havia uma enorme falha na proteção de madeira. Passei uma das mãos no lugar onde as grades deveriam estar, de um lado para outro.
— Mas que diabo é isto? — ofeguei.
Havia um vão de pelo menos seis metros de altura. Aproximei-me e toquei no que restava das barras embaixo. Com cuidado, inclinei-me para o vão e olhei para o vazio. Estava muito escuro e era difícil ver qualquer coisa. Mas o estreito facho de luz da lanterna de Annie estava bem visível no chão do porão. Incrível ela ainda estar funcionando, depois de uma queda de quatro pisos até um chão de concreto.
Lá de baixo veio o som de passos. Recuamos para o escuro e esperamos. Os passos tornaram-se mais pesados. Pareceu que uma porta era aberta na base da escadaria. Uma voz de homem ecoou:
— Há alguém aí? Que droga aconteceu com as luzes? Um enorme e forte facho de luz irrompeu no vão. Um alarme disparou, e as luzes vermelhas dos corredores começaram a piscar. A luz confirmou o que havíamos quase deduzido: cerca de doze balaústres haviam se quebrado no local em que a lanterna caíra, e eu poderia tê-la seguido facilmente passando pela enorme falha.
— Não devem encontrá-la aqui — murmurei para Annie. Ela endireitou-se.
— Não se preocupe comigo. Com alguma sorte, encontro-me com você mais tarde, no túnel de entrada.
Esfregou as mãos no fuseau negro e deixou marcas que davam impressão de ser brilhantes à luz da poderosa lanterna. Passei os dedos pelo chão do patamar. Ergueram-se partículas minúsculas denunciadas pela luminosidade. Cheirei. Serragem. Foi então que compreendi que os balaústrês tinham se quebrado em cima, porém haviam sido serrados embaixo.
Agachei-me e olhei de novo para o vão. A luz da potente lanterna parecia pulsar no escuro ao seu redor. Havia um homem caído no piso do porão. Calças e paletó pretos. Seus braços achavam-se abertos, e as pernas encontravam-se grotescamente dobradas. Um segurança careca moveu-se e pegou a lanterninha de Annie, que estava sobre as costas do homem caído. Fora por isso que não se quebrara: aterrissara no macio. O guarda examinou-a, apagou-a e olhou para cima.
— Não se mexa! — gritou para mim.
Levou algum tempo para o segurança desligar o alarme. Quando voltou o silêncio, meus ouvidos continuaram a zumbir. Quando fechei os olhos para tentar clarear a cabeça, círculos de luz explodiram por trás das minhas pálpebras fechadas. O guarda gritou comigo de novo e me identifiquei. Ele me disse que descesse e esperasse a seu lado. Telefonara para o escritório da segurança, e a polícia estava a caminho. Desci até o fim da escadaria e parei.
O guarda não virará o cadáver de costas, nem precisaria fazê-lo. Reconheci o paletó Brioni. Era Liam Jensen, e eu sabia que estava morto. Sua cabeça e um dos braços jaziam numa poça de sangue. Na morte, ele parecia menor. Em algum canto desconectado do meu cérebro visualizei ossos encolhendo-se, como se fossem telescópicos, quando o corpo aterrissou no chão de concreto.
Virei as costas. Pude sentir a emoção represada em meu íntimo erodindo os diques. A última coisa que eu queria era fechar os olhos e isolar-me na minha mente apenas em companhia de lembranças. Sentia-me vazio e cansado como se houvesse batido contra uma parede. Abaixei a cabeça, olhei para as mãos e comecei a girar minha aliança.
Esperamos. Cerca de dez minutos depois ouvi passos aproximando-se pelo corredor. Vozes. Respirei fundo e cerrei os punhos, forçando energia para meus braços. Endireitei as costas, ergui os ombros. Quando MacRae e sua parceira apareceram, eu estava pronto. Tudo que o investigador disse foi:
— Você, de novo. — Calçou luvas de borracha e examinou o morto rapidamente. — Quem é ele?
— Dr. Liam Jensen — respondi. — O chefe da Unidade de Reabilitação de Drogas e do Álcool, que fica neste edifício.
MacRae abriu seu caderninho e começou a escrever. -J?...
— J-e-n-s-e-n — soletrei. — L-i-a-m, médico. MacRae escreveu rapidamente, parou, acrescentou algumas palavras.
— Como diabo ele... — Olhou para cima. — Jesus Cristo, caiu lá de cima! Acidente?
— Duvido muito — declarei.
O investigador não pareceu surpreso. Observava meu tênis, que estava sujo de serragem.
— Você estava lá em cima? Fiz que sim.
— E também quase caí pelo buraco. As luzes estavam apagadas.
O policial olhou ao redor até que sua atenção foi chamada por um soquete de lâmpada vazio.
— Aquela era a lâmpada de emergência? — indagou.
— Parece-me que alguém serrou os balaústres de segurança no patamar entre o terceiro e o quarto andar — contei-lhe. — Se Jensen viesse descendo e perdesse o equilíbrio ou fosse empurrado não seria preciso muita pressão para que eles quebrassem.
MacRae deu-me um olhar especulativo.
— Você estava sozinho ou acompanhado?
Para um cara bronco até que ele era esperto... Bati nas pernas das minhas calças para livrá-las da serragem.
— Não vejo ninguém comigo. Você vê?
— Há quanto tempo está aqui no edifício?
O mesmo tempo que Jensen está morto, calculei.
— Cheguei há cerca de uma hora.
— E antes disso?
— Estive com uma amiga até às dez.
— Você não trabalha neste prédio, trabalha?
— Não — admiti.
— Duas mortes suspeitas em poucas semanas... e você presente nas duas vezes.
Ele me olhou de alto a baixo reparando nas calças e blusão pretos.
Sustentei-lhe o olhar. Tentava lembrar a mim mesmo que Joe estava apenas fazendo seu trabalho, mas tudo em que podia pensar era "O que Annie viu nesse babaca?".
— O que estava fazendo, rastejando por aqui no meio da noite?
Mac ficou com os olhos firmes em mim, esperando pela explicação. Cruzei os braços e também fiquei olhando para ele, que abriu as pernas, enfiou os polegares no cós das calças e não piscou.
Soaram passos em algum lugar e nós dois erguemos a cabeça.
— Olá! Quem está aí? — Do andar térreo, Arnold Destler olhava para baixo. — Em nome de Deus, o que está acontecendo? — afligiu-se.
Desceu correndo escadaria abaixo e parou perto de nós. Estava de abrigo cinza, parecendo um balão estufado com uma cabecinha rósea numa das extremidades. Eu jamais o vira a não ser de terno e com gravata borboleta.
— Vim correndo assim que a segurança me avisou — explicou.
Aproximou-se lentamente de Jensen, quase na ponta dos pés.
— Pobre-diabo... — murmurou.
Olhou para cima e observou a proteção de madeira, provavelmente calculando a responsabilidade do Instituto. Em seguida fez o inventário de todos que estávamos na base da escada. Segurança. Polícia. Eu.
— Peter?
— Ele estava aqui quando o segurança encontrou o morto
— disse MacRae. — Ia justamente explicar-me o que fazia.
— Pesquisa — disse eu, a palavra acabou surgindo não sei de onde.
— Pesquisa? — ecoou o policial, descrente.
— Nossa equipe é muito dedicada... — explicou Destler. Tentei não parecer surpreso, pois Destler era a última
pessoa que eu esperava ver tomar a minha defesa.
— Não é incomum que fiquem por aqui trabalhando até de madrugada — acrescentou ele.
Todo mundo tinha conhecimento de que Destler era um viciado em trabalho e que ficava enfiado em sua sala até muitas horas depois de nós todos estarmos em nossa casa, de volta à nossa vida.
A essa altura chegaram outros policiais, inclusive um médico-legista, que nos pediu que lhe déssemos espaço para trabalhar. Fomos para o corredor.
— Esta não é a sua unidade — tornou a insistir MacRae, fitando-me com dureza.
Eu abria a boca para responder quando meu bip tocou e Destler disse, casualmente:
— Pesquisas médicas costumam ultrapassar fronteiras. Tentamos não nos fechar em compartimentos estanques, não é, dr. Zak?
— Pois é — respondi.
No meu bip piscava o número da sala de enfermeiras da minha unidade. Ergui os olhos. Destler e Mac esperavam que eu dissesse mais alguma coisa.
— Há uma pesquisa sendo feita aqui na qual são usados Kutril e um extrato de kudzu para curar vício — expliquei.
— Eu estava procurando anotações a respeito. Precisava ir até um telefone.
— Deveria ter me procurado para isso — observou Destler.
— Como assim? — indaguei, surpreso.
— Isso mesmo. Os relatórios me foram entregues para ficar a salvo.
— Estão com você?
MacRae parecia estar assistindo a uma partida de tênis: via cada um dos jogadores manejando raquetes, mas não conseguia ver a bola.
Destler prosseguiu:
— Sei que a dra. Temple achava que não dávamos o apoio que esperava para seu trabalho, mas na verdade gozava de considerável garantia e, apesar das indagações feitas a respeito de seus métodos, os resultados dela são... interessantes.
O médico-legista chegou à entrada do corredor e fez um sinal para Joe MacRae. Começaram a conferenciar. Aproveitei a oportunidade para usar o telefone que havia ali e liguei para a minha unidade.
— Notamos a presença de viaturas policiais — disse a enfermeira da noite —, por isso passamos os quartos todos em revista. Olívia Temple não está no dela. Nem Matthew Farrell. Procuramos por todo canto. Eles não estão aqui.
Imediatamente pensei: Pavilhão Albert. E perguntei:
— Quando foi a última vez que os viram?
— De acordo com a fichas, na ronda das onze horas.
— Irei para aí assim que puder. Acho que sei onde eles estão.
Quando desliguei o telefone, MacRae terminara de conversar com o legista. Destler olhava-o, expectante.
— Aparentemente o dr. Jensen morreu há várias horas — disse-nos o investigador, e me senti melhor. — E é provável que a morte tenha sido instantânea. — Voltou-se para mim. — Tem alguém que testemunhe por onde você andava algumas horas atrás?
Depois de hesitar um instante, respondi:
— Annie Squires.
Joe MacRae daria excelente jogador de pôquer. Nem sequer piscou. Apenas assentiu e tomou nota. Tudo que disse foi:
— Pode ir embora. Entraremos em contato.
Destler caminhou comigo pelo corredor. Quando estávamos longe o bastante para não sermos ouvidos, ele parou.
— Pesquisa? — Era evidente que controlava uma explosão. — No meio da noite?
Engoli em seco.
— Uma das nossas pacientes teve de parar de tomar Ritalin e a estamos tratando com Kutril para curar a dependência psicológica. Não há nada pior do que...
Destler interrompeu-me:
— Conheço o Kutril. — Seus olhos me fitaram, fuzilando. — Mas faz parte de um tratamento ainda experimental. Quem é a paciente que está sendo tratada de vício em Ritalin?
— Olívia Temple.
— Continua tratando a filha da dra. Temple depois de ela ter sido presa? Isso não é um tanto impróprio?
— O dr. Liu é médico dela, e acredito que o tratamento seja apropriado. Já tenho o relatório de pesquisa da dra. Temple referente às experiências preliminares...
— Você tem?
As sobrancelhas de Destler ergueram-se até encontrar a não-existente linha dos cabelos.
— Sim. Mas Olívia apresentou determinados efeitos colaterais, e queríamos...
— Que efeitos colaterais?
— Um mal-estar repentino. Precisamos verificar se os demais pacientes apresentaram reações similares e como foram tratados.
— As anotações das pesquisas me foram entregues para que as guardasse — disse Destler com frieza. — Agora vejo por quê. Gostaria que amanhã de manhã a primeira coisa que você e o dr. Liu fizessem seria apresentar-se no meu escritório.
Assim que terminou de falar ele levou as duas mãos ao pescoço, e tive impressão de que era para ajeitar a gravata borboleta que não estava lá.
— Cristo! — suspirou. — Quando a imprensa souber disto vai acampar aqui. — Em seguida murmurou: — A ordem é correr para recuperar o prejuízo... — e foi embora.
Eu corri para o lado oposto do prédio, em direção à porta do porão que dava para o túnel. Minha cabeça fervia. Se Jensen caíra para a morte antes da meia-noite, os balaústres de madeira deveriam ter sido serrados havia algumas horas. Annie e eu devíamos ter passado perto do cadáver quando chegáramos e subíramos a escada. E por que Destler estava sendo tão prestativo? Seria apenas para proteger o Instituto de mais vexames públicos?
Parei à porta do túnel e olhei para a escada que descia rumo à escuridão. Murmurei:
— Annie!
Fiquei ouvindo o silêncio. Chamei de novo, o mais alto que me atrevi.
Ouvi passos leves, e em um minuto ela estava a meu lado.
— Você sobreviveu — comemorou.
— Tive de dizer a Joseph MacRae que estava com você antes de vir para cá.
— Mas é a verdade — sorriu ela, sem piscar. — Aposto que gostou de dizer isso.
— Gostei mesmo. — Não pude deixar de corresponder ao sorriso dela, mas logo voltei a ficar sério. — Tenho certeza de que Jensen foi empurrado lá de cima. Mas como? Não deve ter sido fácil.
— Talvez primeiro ele tenha sido drogado. Aquele café que estava na mesa dele bem que poderia ter sido "batizado"...— sugeriu Annie.
Isso explicava por que a caneca havia ficado na mesa dele, suja. Liam jamais a teria deixado ali.
— Essa é uma coisa que poderemos descobrir — acrescentou ela. — Pegamos uma amostra do que está na caneca e mandarei analisar.
Ela já ia voltando quando eu disse:
— Olívia Temple e outro paciente fugiram dos quartos. Annie parou.
— Aquela música?...
— Provavelmente. Os idiotas.
— Mas isso não vai levar mais do que alguns minutos — garantiu ela, já a caminho da escada.
Dessa vez levou um minuto para abrir a porta da sala de Jensen. Sabíamos que não tínhamos muito tempo até a polícia irromper ali. Acendi o abajur e olhei para a mesa. A única indicação de que alguém estivera lá eram os lápis e as canetas que não mais estavam paralelos à beira lateral da escrivaninha. Eu tinha certeza de que os vira perfeitamente alinhados. Isso e o fato de que a caneca da Acu-Med desaparecera.
No entanto, agora havia uma caneca da Acu-Med em cima do arquivo. Examinei-a. Havia sido lavada, ainda estava úmida.
Ouvimos passos no corredor. Gelamos. Houve um barulho como se alguém enfiasse uma chave na fechadura na porta exterior da sala. Um momento depois a maçaneta da porta interior girou. Seria a polícia ou alguém que viera apagar outros indícios do assassinato de Jensen? Esperamos. A maçaneta girou de volta para a posição neutra.
Abri a porta. Não havia ninguém ali. Saí depressa e vi que a porta que dava para a escada, na extremidade mais distante do corredor, estava se fechando. Soaram passos de gente correndo na escadaria do outro lado. Provavelmente a polícia e os seguranças. Annie e eu corremos para o lado oposto.
Eu tinha impressão de que não podia mais respirar quando chegamos ao porão e entramos no túnel. Não havia nenhum sinal de que havíamos sido precedidos. Não se ouvia mais o som de chuva, porém ainda pingava água do teto, e as paredes exsudavam cheiro de concreto decadente.
Quando chegamos ao Pavilhão Albert, Annie colocou as mãos à frente do rosto ao se aproximar da porta, até tocá-la. Aí, pegou um cartão de crédito da carteira, agachou-se, enfiou-o no vão da porta junto à lingüeta da fechadura e passou a trabalhar.
— Espere um pouco — eu disse e peguei a minha chave-mestra.
Funcionou.
— Fim do show — brincou Annie.
Abriu a porta. O corredor do porão do Pavilhão Albert achava-se fracamente iluminado. Poeira e mofo pesavam no ar. Algumas velharias alinhavam-se junto a uma das paredes do corredor — uma escrivaninha de metal bem estragada, um colchão enrolado, o pé e a cabeceira de uma cama. Apertei o indicador junto ao nariz para impedir algum espirro.
A música soava num lugar bastante próximo. Annie tentou na primeira porta, que se abriu para um lavabo onde havia uma pia profunda de porcelana com um balde de metal galvanizado dentro. A porta seguinte dava para um compartimento com prateleiras. Nelas havia roupas de cama velhas, muito bem dobradas, que ninguém se importara em remover. O cheiro de mofo dominava soberano.
Aproximamo-nos da porta seguinte. A música tornou-se mais alta. Girei a maçaneta. Um momento depois a música extinguiu-se. Empurrei a porta, que se movimentou um pouco e parou. Haviam-na calçado com algo.
— Olívia, você está aí? — perguntei, esperando que minha voz não ecoasse no túnel inteiro.
Seguiram-se uns sons abafados.
— Abra a porta.
Soou uma risadinha contida. Fiquei puto da vida.
— Não estou brincando. Abra.
Esperei. Nada a não ser um intenso cochichar. Então o móvel que calçava a porta foi removido e ela abriu-se para mostrar Olívia fitando-me com olhos arregalados, vestida com um roupão felpudo azul-claro. Os chinelos coelhinho cor-de-rosa estavam molhados.
Matthew nos olhava, reclinado num colchão jogado num canto. Cerca de uma dúzia de velas estavam acesas junto dele, ao lado de uma garrafa com água. O rapaz escondeu alguma coisa sob o colchão.
Quando segui Annie para dentro da sala, algo rangeu sob meus pés. Abaixei-me e peguei um comprimido branco. Havia mais dois no chão, perto de um envoltório transparente, contendo metade dos comprimidos. Peguei-o. Comprimidos de Ritalin, dez miligramas.
Peguei também o que Matthew escondera sob o colchão. Era um pedaço de papel de alumínio com resíduos de comprimidos esmagados e um canudinho para refresco. Cheirando Ritalin? Aquilo era novidade para mim.
Matthew estava suado, com as pupilas dilatadas. Olívia ofegava como um cachorrinho calorento. Se ela fosse qualquer outro paciente, eu avaliaria o tratamento espremendo o cérebro para montar um sistema adicional de apoio e revisaria os procedimentos da nossa segurança. Em vez disso, senti a raiva ferver em meu peito. A garota agachou-se e encolheu-se.
— Que diabo acontece com você? — gritei. Ela estremeceu e guinchou:
— Não fiz nada!
Eu me sentia como um pai olhando para a filha ingrata. Perdi a distância profissional, mas pelo menos percebia que isso acontecera.
Abaixei a voz.
— Não acredito que você tenha idéia do que significa estar aqui. O único motivo pelo qual o juiz permitiu que voltasse para o Pearce, em vez de mandá-la para a cadeia, é que se trata de uma unidade de segurança. Se a polícia souber que você escapou e está se drogando...
Então o medo de Olívia tornou-se petulância.
— O que é que tem?
— Eles não vão mandá-la para um reformatório, sabia? Se tiver sorte, será jogada num centro de detenção. Talvez até mesmo na cadeia.
— Isto é uma cadeia — retrucou ela.
— Você já viu uma cadeia, Olívia? — perguntou Annie. :? Olívia abaixou a cabeça e ficou olhando as orelhas caídas dos coelhinhos.
— Pois eu vi — acrescentou Annie.
A garota deu-lhe um olhar de lado e cruzou os braços junto ao peito, mas sua voz soou cheia de curiosidade.
— E daí?
— Garanto que você não iria gostar...
Sem falar, Olívia limpou o nariz com a manga do roupão.
— Quantos anos você tem? — indagou Annie.
— Quinze?
— Dezessete — respondeu ela, indignada.
— É a idade que eu tinha... — Annie e eu trocamos um olhar. — Não era drogas... mas eu bebia. Muito. Pensei que pudesse controlar a coisa. Uma noite... fiquei na rua até tarde com amigos, depois de sair da escola... eu ia dirigindo para casa quando uma viatura policial me interceptou. Acontece que era meu tio Jack. Ele acendeu uma lanterna na minha cara e me perguntou se estivera bebendo. Eu respondi que não, imagine, só havia tomado algumas cervejas, e isso no decorrer de quatro ou cinco horas. Jack não acreditou e mandou que eu dissesse o alfabeto.
Olívia estava fascinada pelo que Annie dizia.
— Fui até o G... ou talvez até o H... Então as letras se embaralharam, deixando-me surpresa como o diabo. Aí eu disse ao meu tio: "Deixe-me cantar o alfabeto...". Mas estava de cara tão cheia que nem cantando deu certo.
A garota conteve uma risada.
— Tio Jack me disse que bebendo daquele jeito eu iria acabar me matando. Eu era menor de idade e o enfrentei. "O que vai fazer? Me prender?" E ele respondeu: "Isso mesmo!". Eu ri, achei que fosse brincadeira. Mas meu tio falava sério. Levou-me para a delegacia e enfiou-me numa cela onde estava uma mulher bêbada, imunda, vomitando até as tripas...
— A cela em frente à nossa — prosseguiu Annie — estava cheia de homens bêbados e pervertidos. Um deles gritava e sacudia as barras. Um outro expunha o sexo. Havia um mau cheiro danado no ar. Urina. Vômito. Esperma. O pior é que não havia para onde ir. Nossa cela tinha apenas dois catres e o chão nu. E ali estava eu, trancada naquele pequeno espaço. Não podia ir embora. Senti-me violentada só por estar ali. Eu teria morrido se ficasse presa por mais uma noite.
Olívia levou algum tempo para digerir a narrativa de Annie.
— O que aconteceu...
Assim que ela começou a falar, Matthew pôs-se em pé. Encostou-se na parede e começou a bater a cabeça contra ela.
A garota aproximou-se dele, olhou seu rosto com atenção, ergueu um braço e encostou a parte interna do pulso na testa do rapaz. Era um gesto terno, carinhoso, como o que a mãe faz diante do filho febril.
— Mattie está bem? — perguntou-me.
Mattie? Ele foi escorregando até ficar sentado no chão. Começou a cocar os braços, depois as pernas, com movimentos desajeitados e praguejando em voz baixa.
Aproximei-me e ajoelhei-me ao lado dele. O rapaz recuou, estendendo as mãos diante do rosto. Seus braços estavam cobertos de borbulhas inflamadas.
— Parece que está tendo uma reação à quantidade exagerada de Ritalin — observei.
Eu não estava surpreso. Ele estava sendo tratado com Adderall, que é também um psicoestimulante. A combinação de medicamentos poderia ter pontencializado a dose de Ritalin.
Segurei um braço de Matthew, e ele tentou livrá-lo.
— Só quero verificar a sua pulsação — expliquei.
— Pulsação? — balbuciou ele.
— Hum-hum — fiz eu, segurando-lhe o pulso. O coração dele estava disparado.
— Você quer me abduzir... — disse Matthew, separando bem as sílabas.
Olívia foi para junto dele.
— Ninguém quer abduzir você, Mattie.
— ...e me examinar com raios infravermelhos — continuou ele.
Psicose e paranóia eram reações comuns a overdoses de Ritalin.
— Sou o dr. Zak, Matthew — expliquei. — Tudo que quero é estabilizá-lo.
— In-fra-ver-me-lho...
O rapaz ficou repetindo a palavra, hesitando a cada sílaba.
— Temos de levá-lo de volta à unidade — decidi. Coloquei Matthew em pé e arrastei-o para o corredor.
Olívia tentou me ajudar dando apoio a ele do outro lado. Annie abriu a porta para o túnel e segurou-a.
— Tudo limpo — disse, chamando-nos. Começamos a voltar. O vazamento de água pelo teto diminuíra. Nosso trajeto pelo túnel foi rápido e sem surpresas.
Quando chegamos à minha unidade, Annie foi embora por uma saída no porão, e nós três pegamos o elevador para o primeiro andar. Uma enfermeira que trabalhava no período noturno havia anos nos cumprimentou. Seus cabelos grisalhos estavam em desordem, e o uniforme achava-se amarrotado como se ela houvesse passado as últimas quatro horas na cama, mas sem conseguir dormir.
Incrível como a ansiedade pode amassar roupas.
— Graças a Deus o senhor os encontrou — suspirou.
Mandei Olívia me esperar na sala de estar e fiquei olhando enquanto ela se afastava, mais uma vez impressionado com sua aparência de fragilidade dentro das roupas que dançavam em torno da magra estrutura. Seu andar era inseguro. Eu sabia que ela devia estar cansada, porém não se tratava do andar de uma pessoa cansada, mas sim de uma pessoa velha e com o começo da doença de Parkinson.
Entreguei Matthew Farrell à enfermeira, que resmungou alguma coisa.
— Quer fazer o favor de levá-lo ao quarto dele? — pedi. — Vá verificar como ele está a cada cinco minutos. Não exijo que ele durma... provavelmente não conseguirá adormecer antes de duas horas pelo menos... mas não quero que saia do quarto. Vou bipar para o dr. Liu e pedir que venha examiná-lo. Ah, outra coisa. Depois de acomodá-lo, faça uma revista no quarto da srta. Temple. Veja se encontra medicamentos, provavelmente amostras grátis.
Aí fui juntar-me a Olívia. Ela estava enrodilhada num sofá. Acendi a luz e sentei-me numa cadeira à frente dela. Piscou e cobriu os olhos com o braço, virando-se para o outro lado.
— Sente-se, por favor, Olívia. Preciso saber de uma coisa.
— Apague a luz — choramingou ela.
Apaguei. O amanhecer mal manchara o escuro, porém dava para eu vê-la perfeitamente, quando sentou-se.
— O que é?
Estava de novo beligerante.
— Estenda o braço — ordenei.
Ela fez uma cara azeda, mas obedeceu. Com uma das mãos segurei a dela, e com a outra rodeei-lhe o bíceps. Devagar, fui erguendo sua mão e dobrando-lhe o cotovelo. O músculo encolheu de repente, em vez de ir se contraindo aos poucos, saltando de uma posição para outra como quando você está pedalando uma bicicleta e a corrente engripa no ponto em que falta um dente. Olívia ergueu-se em um salto.
— O que está acontecendo? — perguntou olhando para o braço.
— Falha na engrenagem...
Olívia ergueu o braço, flexionando-o devagar até dobrá-lo.
— Que merda!
Fiquei olhando para ela por quase um minuto, esperando para ver se estalava os lábios, salivava ou se a língua se projetava da boca. Felizmente, não.
— Você pode fazer isso parar? — perguntou-me.
— O dr. Liu virá para cá e dará uma olhada em você. Ela deitou-se no sofá. Peguei uma manta e cobri-a, em
seguida liguei para Kwan.
— E bom que seja importante. Você interrompeu meu sono dos justos — resmungou ele.
Contei-lhe que havia encontrado Jensen morto e Olívia com Matthew no Pavilhão Albert. Quando ele perguntou o que eu estava fazendo, em primeiro lugar, zanzando pelo Instituto no meio da noite, respondi que fora procurar os relatórios da pesquisa de Channing na sala de Jensen.
— Não há outro modo de encontrar o que preciso para ajudar Olívia. Além disso, estava com medo de que se não encontrasse o trabalho de Channing alguém pudesse destruí-lo para que não fosse publicado. Fiquei aturdido quando Destler me disse que está com a pesquisa.
— Incrível — murmurou Kwan.
Então contei-lhe sobre a erupção no corpo de Matthew e os tremores de Olívia. Ele concordou em que Matthew parecia estar tendo reação a uma overdose de Ritalin. Sobre Olívia, disse:
— Não gosto disso. Se ela não fosse tão jovem eu ficaria preocupado com a possibilidade de uma discinesia tardia.
Não era agradável a perspectiva de uma adolescente com a língua entrando na boca o tempo todo e saindo e os braços sacudindo-se.
— Espero que seja apenas temporário — falei.
— Você tem razão sobre uma coisa: precisamos ler as anotações completas da dra. Temple. Não há nada sobre esse tipo de efeito colateral no relatório dela. Se formos manter Olívia com Kutril, preciso ter certeza de que esses sintomas são mesmo temporários.
— Este é o seu dia de sorte. Destler disse que poderemos ver as anotações da pesquisa de Channing hoje logo pela manhã... depois que ele falar conosco sobre o novo método que estamos usando para tratar o vício em Kutril de Olívia.
— Será que esta história vai ter um final feliz ou devo estar preparado para qualquer coisa?
— Não custa nada ficar preparado... — aconselhei.
Enquanto eu esperava por Kwan a enfermeira-chefe da noite me trouxe o relatório sobre o desaparecimento de Matthew e Olívia. O quadradinho "Resolvido" estava vazio e assinei dentro dele.
Fui dar uma espiada no quarto de Olívia, onde um ajudante e uma enfermeira davam uma busca metódica. Haviam desarrumado a cama e removido o colchão. A enfermeira tirava as roupas dos cabides e das gavetas do armário, verificando os bolsos. O atendente achava-se empoleirado numa escadinha com degraus verificando cada encaixe de placas de linóleo do teto. Quando me viu, desceu e entregou-me umas seis caixas de amostras de medicamentos. Em seguida, voltou ao trabalho.
Depois disso fiquei andando pela unidade, procurando manter-me acordado. Primeiro ate uma das extremidades, depois até a outra. Quando passei pela sala das enfermeiras, senti cheiro de café na cafeteira, atrás da mesa. Como seria bom tomar uma caneca... Meus passos começavam a tornar-se mais curtos. Eu precisava de café. Quando dei por mim estava diante da cafeteira, aspirando profundamente o aroma. Olhei para um lado, depois para outro. Ninguém por perto.
Só um pouquinho, disse a mim mesmo. Que mal poderia fazer? Servi meia caneca. Ia tomar o primeiro gole quando ouvi passos vindos pelo corredor. Engoli todo café de uma só vez. Tossia e amassava o copo de plástico quando Kwan apareceu.
— Que cena mais patética! Um homem desse tamanho! — Ele sacudia a cabeça. — Você já fez coisas idiotas, meu amigo, mas apostar que largaria o café foi o máximo.
Deu-me umas pancadinhas no ombro, e aquela foi uma das poucas vezes em que dei razão a Kwan.
Fomos ver Matthew Farrell. Achava-se deitado de costas na cama, a um canto do quarto, e contava as placas de linóleo do teto. Enquanto Kwan o examinava ele continuava contando as placas, e assim que o exame terminou, anotou quantas havia num microscópico espaço no cardápio do dia. Aí começou a contar os buracos em cada placa.
Kwan confirmou a presença de overdose de Ritalin, cujos efeitos já começavam a enfraquecer. O rapaz deveria dormir dali a pouco.
Passei algumas horas de sono inquieto no sofá do meu consultório. Quando desci, Glória já havia chegado.
— Tenho algo para lhe dar — disse-me. Entregou-me uma chave de latão. Examinei-a, peguei meu
molho de chaves e comparei-a com minha chave-mestra. Combinava perfeitamente.
— Onde a encontrou?
— No bolso do roupão de Olívia. Quando a levamos para o quarto, verifiquei seus bolsos.
— Provavelmente é a chave da mãe dela — sugeri. A expressão de Glória era sombria.
— E eu aposto qualquer coisa que esta não foi a primeira noite que eles escaparam.
Concordei, acrescentando:
— Foi a primeira noite em que foram apanhados. Gostaria de saber como um par de garotos havia tapeado facilmente a segurança da nossa unidade, evitando até mesmo que o alarme disparasse. Comecei a me dirigir ao quarto de Olívia, mas Glória me deteve.
— Ela ainda está dormindo, Peter.
Encostei-me à mesa. Estava cansado. Sentia as artérias e veias da minha cabeça latejando como barulhentos canos de aquecimento. Queria ir para casa, enfiar-me na cama e esquecer-me de Olívia Temple. Ela era um verdadeiro pé no saco.
Kwan e eu chegamos à ante-sala do escritório de Destler às nove horas. Kwan serviu-me uma pequena xícara de café.
— É meio descafeinado — disse-me.
Uma oferenda de paz. Aceitei-a, agradecido. ' Tomei o café devagar, pensando em como a abstinência torna o coração mole. Vinte minutos depois Virgínia Hedgewick entrou na sala. Seus braços estavam ocupados com alguns jornais e uma caixa de sonhos, que colocou sobre um armário baixo de teca, com mais de dois metros de comprimento. Estava de cara fechada ao voltar-se para nós.
— Não era para os médicos daqui estarem morrendo desse jeito. Eu gostaria de saber qual será o próximo.
— Já estão noticiando no rádio? — perguntei.
— O dr. Destler me telefonou, contando. Ainda bem que ele estava numa de suas crises de vinte e quatro horas de trabalho...
Bem nesse momento Destler abriu a porta da sua sala. Parecia estar saindo de uma academia de preparo físico para homens. Terno azul-marinho, gravata borboleta vermelha, cabelos brilhantinados. Parecia limpo e descansado. Lembrei-me. Tinha havido muito falatório sobre o dinheiro gasto para renovar sua sala quando entrara no Pearce — parece que era verdade que ele havia mandado instalar um boxe com chuveiro no seu banheiro particular.
Estava acompanhado por um sujeito bem-vestido, tipo homem de negócios. Eu já o tinha visto, era um executivo de uma empresa farmacêutica ou representante de vendas, mas não conseguia lembrar-me de onde ou como o conhecera. Apertaram-se as mãos e o visitante foi embora.
Destler deu-me um olhar reprovador. Eu não dormira muito, e sabia que o demonstrava. Pelo menos Kwan equilibrava a situação.
Entramos com Destler no escritório dele. Sentamo-nos diante da vasta mesa, em profundas poltronas de aço cromado e couro sob o olhar severo de Wilhelmina Pearce. Destler mantinha sua cadeira regulável na altura máxima e, assim, olhava-nos de cima.
— Coisa mais desagradável — comentou. — E você esteve lá, xeretando o arquivo do seu colega. Eu poderia levá-lo diante do Conselho por isso. — Cocou o queixo, pensativo. — Vocês dois demonstraram ter um tipo de julgamento questionável, para não mencionar os atos ilegais... — Kwan começou a protestar. — Quero dizer, um de vocês — consertou Destler. — Seria totalmente apropriado iniciar investigações para afastá-los de seus deveres e suspender seus privilégios.
As palavras eram de mau agouro, mas não me causaram ansiedade.
— No entanto, decidi deixar isso de lado por uma série de motivos.
Houve uma longa pausa durante a qual ele apertou os lábios de um jeito que eles até desapareceram. Pelo visto, não ia nos comunicar seus motivos.
Os olhos de Destler foram para uma revista aberta na mesa. Era um exemplar do JAMA, e estava aberto no artigo sobre a pesquisa de Channing com o Kutril. Havia trechos marcados com tinta luminosa.
Olhei de novo para Destler, que estava me fitando. Seu rosto impassível tornara-se duro.
— O estudo da dra. Temple sobre o Kutril está completo — disse. — O Instituto encontrou o requerimento de concessão.
— Você sabe que a pesquisa foi submetida a exame para publicação? — perguntei.
— E, como você sabe — rebateu ele —, a metodologia dela foi questionada.
Foi então que me lembrei de quem era o homem que vira saindo da sala de Destler: um executivo da Acu-Med. Um VIP da empresa, na verdade.
— E a pesquisa do dr. Jensen? — pressionei. — Não acredito que ele estivesse tão longe quanto a dra. Temple na fase clínica.
— Eu garanti à Acu-Med que o trabalho será completado e submetido a avaliação. O Instituto cumprirá suas obrigações. O medicamento DX-200 é muito promissor.
— Promissor e caro — retruquei.
— Peter... — começou Kwan.
Mas eu não estava disposto a calar a boca.
— A pesquisa da dra. Temple precisa ser publicada. Se o Kutril oferece um tratamento eficiente e barato para o vício psicológico...
Destler cruzou os braços e declarou.
— Existe um enorme "se".
— Você vai enterrá-la, não é?
— Não vou enterrá-la — respondeu Destler, pronunciando cada palavra como se as estivesse lendo — e também não vou suspendê-los. O estudo do Kutril é... bem, está encerrado. Está completo, no que se refere ao Pearce. O trabalho é bem-intencionado, porém cheio de falhas...
A única coisa que me manteve sentado na poltrona foi a mão de Kwan agarrando-me pelo braço.
— ...e a dra. Temple deve ter percebido isso — continuou o diretor. — Devia estar muito desapontada. Talvez até profundamente perturbada. Seus padrões eram altos, e ela deve ter encarado isso como um fracasso.
Ele fechou a revista JAMA.
— Channing Temple não se matou — declarei, tentando me controlar.
— Se ela o fez ou não é indiferente a esta nossa conversa — determinou Destler, seco. — Vocês vão parar com o estudo do Kutril, entenderam? Isso é do maior interesse a tudo que se refere ao Instituto. — Sua voz era calma e firme. — A última coisa de que precisamos agora é outra agitação. A morte violenta de dois médicos é um desastre para as relações públicas. As pessoas vão pensar que estamos com criminosos loucos flanando por aqui à noite. E você estar protegendo uma assassina não irá ajudar nada.
Eu saltei em pé empurrando a poltrona para trás.
— Ela não é assassina!
Ainda bem que a escrivaninha tinha a largura de um Buick. Destler também se levantou.
— Ela estava andando por aí na noite passada, não? — indagou, fazendo seu pescoço desaparecer quando recuou e pareceu descansar a cabeça no amplo seio de Wilhelmina Pearce.
Kwan puxou minha poltrona de volta e tornei a sentar-me nela, imaginando como Destler ficara sabendo tão depressa daquilo. Em geral a notícia de incidentes levam algumas horas para andar pelos canais competentes.
— Dr. Destler — comecei, mantendo minha voz numa calma pétrea —, Olívia Temple é uma paciente do Pearce e nossa obrigação número um, relações públicas à parte, é o bem-estar dos nossos pacientes.
Ele puxou sua cadeira e sentou-se. Continuei:
— Preciso ver as anotações de pesquisa da dra. Temple. Durante esta noite Olívia teve outra reação adversa.
A expressão dele mudou, tornando-se especulativa.
— Claro que pode vê-las, e será bom que veja uma outra coisa também. Leve o tempo que quiser. A única coisa que exijo é que verifique os documentos aqui, no meu escritório, e que os deixe aqui quando sair.
Eu me senti esquisito, certo de que estava prestes a ser apanhado numa armadilha.
— Vou pedir a Virgínia que lhe entregue os documentos — prosseguiu ele. — Leia com muita atenção e pense nas implicações.
Destler pegou o telefone, digitou três números e esperou.
— Virgínia... — começou e deu instruções. Escutou por alguns instantes, então desligou.
— Acabo de me lembrar — disse, pegando um caderno de capa preta de cima da mesa e abrindo a gaveta central — que tenho outros compromissos a atender. — Guardou o caderno e o exemplar do JAMA na gaveta, fechou-a e trancou-a. — Vou deixar os senhores fazer seu trabalho...
Ergueu-se, ajeitou a gravata borboleta e saiu da sala. Kwan pronunciou o veredicto apropriado:
— Bizarro. Realmente bizarro. — Em seguida, olhou cuidadosamente ao redor e abaixou a voz. — Acha que a sala está grampeada?
O mesmo pensamento me ocorrera.
Virgínia Hedgewick entrou trazendo uma caixa de papelão com um envelope de papel manilha em cima. Kwan ergueu-se e pegou a caixa dos braços dela, consumado cavalheiro que era.
— E um pouco cedo para exercícios de musculação, se querem saber... — comentou Virgínia, alisando a saia que chegava até o meio de suas pernas grossas. Cacarejou com ar reprovador olhando para a caixa de papelão. — Esse negócio de guardar pastas... em todos os anos que trabalho aqui jamais aconteceu nada parecido com o que está acontecendo. O mais próximo seria o caso de Robert Smythe-Gooding.
— Você já trabalhava aqui naquela época? — perguntou Kwan.
— Como secretária dele... Era assim que nos chamávamos nos velhos tempos, antes dessa maldita mania do politicamente correto. Foi muito triste, se querem saber, de cortar o coração. Vê-lo rebaixado por aquele zé-ninguém.
— Que zé-ninguém? — indaguei.
— Ele foi embora há muito tempo. Um residente. Veio para assistir ao dr. Smythe-Gooding numa pesquisa. Terminou acusando-o de plágio. Sem o menor sentido, se lhes interessa a minha opinião. Talvez ele tenha copiado algumas frases... Mas assim mesmo puseram-no de lado. Não queriam que a acusação se tornasse pública. Seria um desastre para a reputação do Instituto etc. e tal...
Virgínia olhou para a caixa que trouxera com cara de quem não gostava de seu cheiro.
— Claro que ninguém mais se lembra dessa história — comentou e deixou-nos a sós.
Kwan abriu a caixa, tirou as pastas e começou a examiná-las. Peguei o envelope que ele colocou de lado.
— O que é isto? — resmunguei, ao retirar o que havia dentro.
Pareciam cópias xerox das páginas de um diário. A escrita a mão era compacta, determinada, um pouquinho inclinada para trás. Reconheci a letra de Channing. A data no topo da primeira página era de seis meses atrás, e a última, de um mês atrás.
Destler tinha razão em querer que eu visse aquilo. Era incrível que Channing houvesse xerocado aquelas páginas e entregue a ele. Relutante, comecei pela primeira entrada.
Um calor de verão indiano, hoje. Quente e abafado. Com o ar-condicionado desligado, isto aqui parece um forno.
Vejo você deitada no divã e estou na minha poltrona, com a caneta pronta. Você está perturbada. Pronta para jogar tudo para o alto. Está se deixando levar. Deixando-se absorver pela escura tristeza. Você é tão vulnerável. Tão insegura de como agir. Quero torná-la forte.
Agora você está falando sobre suas experiências. Eu meio escuto, meio não escuto fascinada pelas gotas de suor acima do seu lábio superior. Tenho vontade de lamber sua salgada doçura.
Deixo minha mão sair de cima do braço da poltrona como se não soubesse que estou tocando a sua perna. A pele é firme, macia, pálida e iridescente. Meus dedos, deslizam na pele nua. Você sente o toque dos meus dedos e suas pernas se separam. Dirijo meus dedos para o interior das suas coxas. Suas pernas separam-se mais, e a saia é puxada para cima. Vejo que você está sem calcinha. Claro que você sabe. E concorda, é inevitável. Digo-lhe que quero fazer amor com você. Você age como quem não escuta, mas suas costas se arqueiam e seu corpo me diz que também quer.
Ajoelho-me. Você tem uma libélula bem ali, no espaço entre as pernas. Eu a toco com a ponta da língua. Você geme, mas não em protesto.
Havia mais, porém não consegui continuar lendo. Sentia-me nauseado — violador e violado ao mesmo tempo. Aquilo era mesmo um diário ou uma fantasia? Uma coisa estava clara: era algo particular, e eu não tinha o direito de ler. Se aquilo caísse em mãos erradas... aliás, já havia caído nas mãos erradas. Estremeci em pensar que mais alguém se apoderara dos pensamentos íntimos de Channing, pois aquilo era a base das acusações de comportamento impróprio, de violação de limites. Claro que não tinha havido uma audiência formal. Não tinham sido feitas acusações. Tudo se resumia a palavras sobre papel que jamais deveriam ser lidas por ninguém a não ser a própria Channing.
— O que é isso? — perguntou Kwan.
Hesitei. A última coisa que eu queria era exibir os pensamentos íntimos da minha amiga para uma pessoa que mal a conhecia.
— De algum modo, Destler se apoderou de algumas páginas do diário íntimo de Channing. Lembra-se daqueles boatos de conduta imprópria? Não me surpreenderia se estivessem baseados nisto aqui.
— Diário?
— Acho que ela anotava o que pensava, não o que fazia. Sei que começou a escrever um diário quando passou a se tratar com Daphne. É basicamente a mesma coisa que Olívia fez quando escreveu aqueles e-mails para a mãe: trabalhando os pensamentos e sentimentos que a perturbavam. Aliás, parece com... — Eu não queria dizer com o que se parecia. Outros já haviam dito o bastante a respeito. — Se a imprensa tiver acesso a isto...
Aquele pensamento me horrorizou. Repórteres enfiando o nariz em tudo, entrevistando antigos pacientes, crucificando uma psiquiatra morta que convenientemente não podia defender-se. Ocorreu-me que isso era justamente o que Destler queria que eu pensasse.
Anotei mentalmente que deveria dizer a Destler para pegar o diário de Channing e o guardasse em algum lugar seguro ou o destruísse. Recoloquei as páginas dentro do envelope. Detestava deixá-las com o diretor e seus asseclas. Mas não tinha escolha. Deveria haver outras cópias xerox, e o próprio diário se achava em algum lugar também.
— Isso é injusto, você pegou a parte fácil do trabalho — reclamou Kwan. — Vai me ajudar com isto aqui ou não?
Voltei a atenção para as pastas purpúreas que Kwan tirara da caixa. Pareciam as mesmas que eu vira na gaveta do arquivo de Jensen. Levamos quase uma hora para examiná-las quase todas. A maior parte das reações adversas eram pouco importantes. Náusea, perturbações visuais, sonolência. Encontramos dois pacientes que haviam apresentado sintomas mais significativos. Channing lhes dera Neurotin para manter os sintomas inócuos e continuara o tratamento, sem maiores problemas.
Então, Kwan encontrou um paciente que tivera tremores.
— Mas era um cara com cinqüenta e três anos — comentou, estendendo-me a ficha. — A essa idade tremores podem não ser uma reação adversa. Podem ser sinal de velhice. Depois de algum tempo ele saiu da experiência por motivos pessoais, diz aí. — A ficha parou no meio do caminho, Kwan não a largou e eu não a peguei. — Droga, Peter! A experiência dela não era para ser com jovens viciados?
Remexi na caixa e encontrei a ficha que continha os dados sobre os pacientes recrutas.
— Entre vinte e quarenta anos — li. — Um homem com cinqüenta e três anos não deveria participar da experiência.
Será que esta era outra coisa que Destler queria que víssemos? Que no afã de completar a pesquisa dentro do prazo, para chegar aos resultados que desejava, Channing aceitara pacientes que estavam fora das especificações?
— Imagino se há outros... — pensei em voz alta. Kwan já estava examinando as fichas. Em minutos reuniu três fichas com pacientes acima dos quarenta anos.
Se ela incluíra pacientes acima da idade, será que não teria cometido outras irregularidades? Sem dúvida, era essa a linha de inquirição que Destler esperava que eu tomasse.
Contemplei a pilha de pastas. Quatro procedimentos impróprios eram o suficiente para pôr todo o estudo em dúvida. Comentei com Kwan:
— Isto não faz sentido. Não deveria ser difícil recrutar elementos que se ajustassem ao protocolo, por que foi desobedecido?
— Talvez ela achasse que estivesse apenas infringindo as regras.
— Kwan, você sabe que Channing não era uma infratora de regras.
— Ou talvez estivesse fora de si. Será que andava bebendo demais? — sugeriu ele. — Ou quem sabe andava tomando algum medicamente para ajudá-la a agüentar a pressão que estavam exercendo sobre ela?
— Ativan.
— Muito ou pouco?
— Não sei.
Eu me sentia como se tivesse a Channing boazinha num ombro e a Channing perversa no outro. A primeira era austera, boa demais para ser humana. A outra era antiética, viciada em drogas e sedenta de poder. Em algum lugar entre as duas residia a verdade.
— Se estava disposta a trapacear — ponderou Kwan —, por que não de outro modo e com outras idades?
Claro, por que não?, pensei. E raciocinei em voz alta:
— Quer saber de uma coisa, Kwan?... Seria fácil para alguém que quisesse desacreditar as pesquisas do Kutril pegar um paciente dentro das normas e mudar a data do seu nascimento. Isso não seria facilmente controlável. E com Channing fora do caminho, quem iria descobrir? Se foi o que aconteceu, um tratamento caro e eficiente para vício psicológico vai virar fumaça, juntamente com a reputação dela.
— Eu diria que você está paranóico, mas há bastante lógica no que acaba de dizer. Tive um grande amigo, um pesquisador de câncer, que realizou um estudo que não foi o estouro que a empresa financiadora da pesquisa esperava. Para encurtar a história, ele teve de processá-la para poder publicar seu estudo.
— Omitir resultados é uma coisa, alterar as anotações de um pesquisador é outra, bem diferente — observei.
Onde estava a linha divisória entre ação criminosa e comportamento criminoso? Se alguém alterara a data de nascimento de pacientes cometera uma fraude.
Abri a pasta que continha as fichas dos pacientes acima da idade. Um homem. Quarenta e seis anos. Mas será que era essa mesmo a idade dele? Não havia nome na ficha, apenas o número de código atribuído ao paciente... Numa outra ficha, provavelmente em alguma das pastas da caixa, deveria haver a lista com o nome das pessoas e seus números de código.
Peguei minha caneta, porém na mesa de Destler não havia nenhum pedaço de papel para eu escrever. Remexi o cesto de lixo, peguei um envelope e copiei informações no verso dele.
Numa letra que faria Matthew Farrell ter orgulho da dele, escrevi o número de código de cada paciente acima da idade determinada, mais idade e sexo. Pedi a Kwan que procurasse uma pasta com a lista de todos os pacientes.
— Você continua me passando as piores tarefas — reclamou ele, mas começou a procurar.
Eu tinha um raciocínio pronto.
— É perfeitamente legal fazer isso. Destler é o administrador geral. No momento, ele é o único depositário desta pesquisa. Entregando-nos as anotações gerais deu-nos permissão para olharmos até mesmo informações privativas.
— E suponho que você acha que existe uma cláusula sobre sanidade mental, não?
— O que importa é que não vamos passar estas informações para mais ninguém.
— Encontrei! — anunciou Kwan no momento exato em que Virgínia surgiu na porta da sala.
— Terminaram, meninos? — perguntou ela. — Tenho de descer para despachar a correspondência.
— Quando o dr. Destler deve voltar? — perguntei-lhe.
— Agora — respondeu ela, e desapareceu. Kwan estava com a lista na mão.
— Os números estão todos aqui. Dite-os para mim. Ditei os números, um por vez, e copiei embaixo de cada qual o nome correspondente que ele lia. Estávamos fechando a caixa de papelão quando Destler voltou.
— Espero que vocês tenham visto o que precisavam ver. Eu também assim esperava.
Durante a caminhada de volta à nossa unidade, Kwan tornou-se pensativo.
— E um limite muito fácil de ultrapassar — disse, por fim. — Há muita pressão para que se chegue ao — fez o sinal de aspas no ar — "resultado" certo. A gente se sente tentado a entrar por atalhos a fim de cumprir o prazo e...
— Deixa-se parte da integridade de lado — ajudei-o.
— Acredito que eu teria sido mais zeloso — admitiu ele. — Sorte minha que tenho você à mão para manter-me honesto. Só espero que o próximo terno que vamos encomendar para você não seja com listras pretas e brancas horizontais e uma bola de ferro com corrente...
— Listras horizontais são pouquíssimo elegantes. Quando entrávamos na unidade, perguntei:
— O que acha de continuarmos com o Kutril para Olívia?
— Não estamos sabendo muito mais do que antes de termos examinado as anotações da pesquisa — observou Kwan. — Apenas um paciente com sintomas similares, mas ele está acima dos cinqüenta anos e foi retirado da experiência. Não nos ajuda nada.
— Detesto pensar em tirar esse medicamento dela. Parece que está dando certo.
— Até que ponto ele pode ter reduzido a dependência de Olívia? Ela não estava cheirando Ritalin esta noite?
— Afirmou-me que não, mas não tenho certeza — admiti. — Dava a impressão de que havia cheirado, sim.
— Mas?
Fiz uma pausa para organizar meus pensamentos.
— Mas se ela estava cheirando Ritalin, acredito que o fez por escolha consciente. Tenho uma forte convicção de que Olívia está a um fio de cabelo para escolher não fazer mais isso. Não gosto de desistir sabendo que posso ter mais uma semana para tentar.
— Suponhamos que você complete o tratamento e que os tremores continuem e os músculos travados persistam.
— Podemos diminuir o ritmo do tratamento, Kwan?
— Acho que podemos diminuir a dosagem. Continue por mais dois dias, se os tremores não desaparecerem, pararemos. Ela precisa continuar o tratamento por mais alguns dias adicionais, mas não irá presa no fim da semana?
— Quem sabe Chip dá um jeito para que fique mais uma semana conosco.
Kwan diminuiu o passo e parou.
— Peter, se Destler souber que Olívia saiu da unidade na noite passada, pode apostar que a polícia também vai saber. E acha que eles vão nos dar mais uma semana? Não estamos apenas adiando o inevitável?
— Podemos conseguir mais algum tempo para o tratamento do vício — respondi. — Porém se alguém não tirar o verdadeiro criminoso da cartola, não terei muito que fazer...
Telefonei para Chip e lhe falei sobre nosso plano de ampliar o tratamento por mais uma semana. Ele disse que solicitara uma audiência para propor uma ordem judicial, que fora marcada para o dia seguinte, e perguntou se Kwan não poderia estar presente para o caso de o juiz querer falar com o médico da acusada.
— E talvez precisemos também da psiquiatra de Olívia para depor — acrescentou. — Aqueles e-mails ameaçadores levam a supor que ela seja perigosa. Precisamos de alguém que explique que eles fazem parte da terapia que estava sendo aplicada.
— Tenho certeza de que Daphne irá se lhe pedirmos — respondi. — Vou conversar com Olívia e ver se ela concorda com isso.
A manhã ia em meio quando fui ao quarto de Olívia. Eu me encontrava além da exaustão. Minha cabeça parecia o interior de um canhão usado recentemente. O café que tomara só servira para aumentar a vontade.
Olívia não estava lá. Uma cadeira havia sido colocada junto da janela, e as cortinas estavam abertas. Poderia ser imaginação minha, porém havia uma depressão na tela protetora da janela suja onde parecia ter estado apoiada a testa da garota.
Verifiquei o guarda-roupa. Vazio. A porta do banheiro estava aberta, e ela também não se encontrava lá. Fui dar uma olhada no refeitório e na sala de atividades comuns, depois segui para a sala das enfermeiras.
— Eu dei um trabalho a ela, está ajudando o sr. Fleegle a arrumar as malas — informou-me Glória. — Ele vai para uma casa de repouso.
Enquanto eu ficava ali parado, de boca aberta, a enfermeira-chefe acrescentou:
— Algo deve ter se modificado nela na noite passada. É como se Olívia houvesse abraçado uma religião. Uma boa religião.
Fui ao quarto do sr. Fleegle. Jess estava na porta. Aproximei-me por trás dela e, por cima do seu ombro, olhei o que acontecia.
Olívia dobrou uma camisa, depois outra e acomodou-as numa surrada mala de lona com padrão escocês. O sr. Fleegle achava-se sentado, um dos braços apoiado no braço da poltrona, e o outro movimentando-se como se regesse uma orquestra, com um cigarro como batuta.
— Vai apresentar-se durante sua estada aqui? — perguntou o sr. Fleegle a Olívia. — A casa pode oferecer um aperitivo... Eu ficaria muito feliz se pudesse ouvi-la cantar de novo.
Olívia sorriu e fez-lhe uma pequena reverência.
— Muito obrigada, sr. Fleegle.
— Somos amigos há tanto tempo. Por favor, chame-me de Sam. — Ele ergueu a cabeça e viu Jess e eu à porta. — Celeste, você tem visitas.
Olívia olhou-nos. Dobrou a última camisa e aproximou-se de nós.
— Você tem um minuto? — perguntei-lhe.
Ela voltou-se para o sr. Fleegle, que movimentava a cabeça como se acompanhasse um ritmo de jazz que soava em sua mente.
— Glória quer que eu...
— Eu sei, mas isto é muito importante. Por que não vai dizer a Glória que eu a dispensei?
Olívia saiu correndo, e voltei-me para Jess:
— Definitivamente, nada de síndrome de Asperger. Ela tem muita empatia.
— O sr. Fleegle pensa que Olívia é uma conhecida dele.
— Paramnésia reduplicativa — esclareci, dando um nome ao sintoma. — Verifica-se em pacientes com o mal de Alzheimer ou com esquizofrenia, duas formas de demência. E Olívia está fazendo por instinto algo que eu, como psicólogo, tive de treinar para fazer: entrar na ilusão do paciente. Negar, tentar discutir não adianta nada. A realidade jamais serve de mediador para a ilusão. E perturbadora demais.
Vi que Olívia vinha voltando. Parecia estar se movendo com mais facilidade, sem hesitar. Fomos para o refeitório.
— O que é Coconut Grove? — perguntou-me, assim que se sentou.
— Uma antiga boate de Boston. Por quê?
— O sr. Fleegle disse que é garçom lá e pensa que sou uma cantora que trabalha lá também. Fiz de conta que era, não quis decepcioná-lo.
Eu ri.
— A Coconut Grove foi destruída por um incêndio há cinqüenta anos.
— Cinqüenta anos? — surpreendeu-se Olívia. — Alguém se feriu?
— Uma porção de gente morreu. Quatrocentas pessoas e alguma coisa é o número que ficou na minha cabeça. Psicólogos estudaram os efeitos nos sobreviventes.
— Aposto que você sabe perfeitamente o que acontecia com eles — observou ela.
— Perturbações no sono, nervosismo, ansiedade, paranóia, complexo de culpa... — citei. — Foi quando começamos a compreender aquilo que chamamos de estresse pós-traumático.
— É o que está acontecendo comigo? — perguntou a garota. — E isto, o que é?
Ela ergueu o braço e foi dobrando o cotovelo. O movimento estava mais suave, porém ainda havia algum espasmo muscular.
— Achamos que é por causa do Kutril, mas não temos certeza. Pode estar havendo uma interação de medicamentos. Ritalin sobre Kutril.
— Eu já disse — resmungou ela — que não tomei Ritalin... Isto pode piorar?
Eu estava contente por ver que a velha Olívia não havia desaparecido completamente: curas da noite para o dia me deixam nervoso.
— Não sabemos. Para maior segurança, diminuímos a dose de Kutril. Se não der certo, vamos parar completamente o tratamento.
Tirei a chave-mestra do bolso e coloquei-a na mesa.
— Quer falar-me sobre isto? Olívia não respondeu.
— É a chave-mestra da sua mãe, não? Ela assentiu.
— E a noite passada não foi a única em que você e Matthew fugiram, não é?
Olívia baixou os olhos para o próprio colo. Girou o anel do polegar, tirou-o e colocou-o de novo.
— Há quanto tempo vocês vêm fazendo isso?
— Há uma semana — murmurou ela.
— Onde arranjaram as amostras?
— No consultório da dra. Smythe-Gooding.
Não mais "dra. Daffy"?, estranhei. Talvez Olívia estivesse começando a se conscientizar de que a psiquiatra não a compreendia.
— Esta chave não abre a porta da sala dela — disse eu. — Como entrou lá?
— Ela jamais tranca a porta.
Claro. Fora assim que Olívia conseguira um bom suprimento de Ritalin e sabe Deus que outras drogas... por cortesia da porta aberta, da gaveta aberta e da generosidade do depósito de medicamentos da dra. Daffy.
— Então você foi lá. Buscar o quê? Para quê?
— Ritalin. — Ela me encarou. — Para Matthew. Mostrei a ele como se cheirava, só isso.
— E o que mais? — insisti.
— Valium. Prozac. A merda de sempre. Para ela era a coisa mais natural do mundo.
— Você pegou os medicamentos... e depois?
— Fomos para um daqueles edifícios que ninguém mais usa.
— Na noite passada não ouviu nada enquanto você e Matthew estavam na sala da dra. Smythe-Gooding?
Olívia nem sequer piscou. Ficou me olhando como se meu rosto fosse um quebra-cabeças e que se o fitasse por bastante tempo as peças entrariam nos lugares.
— Não, não ouvi.
— Qual foi a escada pela qual desceram? A que fica perto do consultório da dra. Smythe-Gooding?
— Eu... Não me lembro.
— Um homem morreu mais ou menos na hora em que vocês estavam na sala dela. Ele caiu no poço da escada do prédio da Unidade de Drogas e do Álcool...
O rosto de Olívia alongou-se, suas mãos fecharam-se com força.
— Foi o dr. Liam Jensen — acrescentei, e não houve nenhum sinal de reconhecimento. — Ele trabalhava com sua mãe. Lembra-se? Os dois discutiram no fim da festa do aniversário dela.
A expressão da garota tornou-se dura.
— Ele quis machucá-la. — Ela olhou para as mãos e abriu os dedos. — Sei o que você está pensando. Quero dizer, eu não estava onde deveria estar, pareço uma drogada, porém não matei ninguém.
Os olhos de Channing olharam-me do rosto de Olívia, desafiando-me a não acreditar nela.
— Sei que não — anuí.
— Eles vão pensar que o matei? — perguntou Olívia. — Vão? Por que isso tudo teve de acontecer? Eu queria tanto que mamãe estivesse aqui!
— Tem saudade dela?
— Eu queria que ela me abraçasse... que passasse os dedos entre meus cabelos como sempre fazia, assim...
Ela enfiou os dedos nos cabelos, movendo-os devagar, fechou os olhos, acariciou a fronte de leve. Sua respiração tornou-se lenta, e seu corpo relaxou. Depois deixou as mãos cair sobre o colo e cruzou os dedos.
— Mas ela não está aqui — murmurou —, c ou não consigo esquecer.
Um profundo e longo suspiro agitou-lhe o peito.
— Há uma porção de coisas que a gente faz para esquecer. Eu remo. Conserto meu carro. Trabalho durante longas horas.
— E ajuda?
— Em geral, ajuda. Faz a gente entrar no dia-a-dia. Mas esquecer, mesmo, não se esquece. E na verdade não queremos esquecer. Jamais pára de doer. A dor volta quando menos se espera. Quando se está desprevenido. É por isso que as pessoas fazem tudo para manter os sentidos ocupados. Algumas fumam, outras comem o tempo todo.
— Bebem muito café, usam drogas — acrescentou Olívia.
— Não acredito que seja por isso que você anda se drogando.
Ela não disse nada.
— Você é bastante parecida com sua mãe, sabia? Lida com o medo correndo ao encontro do que a amedronta. Agir como se não tivesse medo a faz sentir-se no controle.
Ficamos algum tempo ali sentados, em silêncio. Olívia ajeitou-se, sentando-se sobre as pernas dobradas, e apoiou a cabeça no meu ombro. Passei um braço ao redor dela e toquei-lhe o rosto. Chorava. Era um choro suave, um deixar-se levar.
Por fim ela se endireitou.
— Vou para a cadeia? — perguntou.
— Estamos fazendo tudo para evitar isso — respondi. — O sr. Ferguson está tentando conseguir que lhe permitam ficar aqui por mais uma semana. Isso nos daria tempo para completar seu tratamento e daria mais alguns dias para seu organismo recuperar o controle.
— Não quero ir para a cadeia — disse Olívia. — Tudo parece tão confuso! Tão fora de controle que não adianta eu fazer nada para mudar as coisas. E como se estivesse amarrada, imobilizada, e eles me obrigassem a assistir a um filme terrível. Só que não é filme, é a minha vida.
Aquela era uma imagem muito melodramática. No entanto, eu sabia que às vezes a vida se torna um filme horroroso.
— Você não pode controlar o fato de eles a mandarem ou não para a cadeia. Nem o fato de sua mãe ter morrido. Mas irá sentir-se menos fragilizada se puder assumir o que consegue controlar. Para começar, pode concordar em que a dra. Smythe-Gooding testemunhe a seu favor quando tivermos uma audiência marcada. Ela pode explicar ao juiz que tomar Ritalin e enviar e-mails à sua mãe faziam parte da terapia. Isso ajudará a convencê-lo de que você deve continuar aqui.
Olívia mordeu o lábio inferior.
— E se ela não testemunhar?
— Aí não sei... — respondi. Ao ver que os olhos dela aumentavam de medo, acrescentei: — Há alguma coisa que você não nos contou? Porque, assim como o seu advogado irá interrogar a dra. Smythe-Gooding, o promotor também o fará.
Ela desviou o olhar para seu colo, começou a puxar a perna da calça e fez que não com a cabeça.
— Tem certeza? — insisti.
— Tenho certeza que tenho certeza — respondeu Olívia, com seu conhecido ar de desafio.
Nós dois voltamos para a sala das enfermeiras. Senti o cheiro bem antes de ver. Café fresco borbulhava na pequena jarra da cafeteira atrás da escrivaninha. Segurei um gemido a duras penas.
— Vá em frente, tome seu café — disse Olívia. — Terminou a aposta. Você ganhou.
— Não ganhei — admiti. — Você tinha razão. Eu andava tomando muito café. Tomava um pouco antes de vir para cá e não conseguia atravessar a manhã sem tomar mais uma xícara.
— Glória diz que você é um pé no saco quando não toma o seu café e que passa a ter a atenção de um mosquito.
Eu ri. Eram bem palavras de Glória.
— E fácil falar — comentei.
— À tarde ela só toma café descafeinado — observou a garota.
— É mesmo?
— Moderação — pontificou ela, solene.
— E acha que é disso que você precisa? — perguntei-lhe, sério.
— Não. Se eu recomeçasse a tomar Ritalin, provavelmente logo estaria tomando muito. E nunca mais quero me sentir daquele jeito.
Como eu gostaria que Channing pudesse ouvir aquilo!
— Dr. Zak — continuou ela —, tudo bem para mim se você voltar a tomar café. Talvez eu também tente tomá-lo.
Momentos como aquele eram o motivo de eu colocar a terapia em primeiro lugar. Ali estava a clássica transferência: Olívia identificando-se comigo. Senti uma enorme satisfação.
Durante a tarde daquele mesmo dia encontrei Daphne em frente ao prédio da Unidade de Reabilitação de Drogas e do Álcool. Fomos caminhando juntos para a lanchonete. O ar cheirava a terra molhada, a forsítia estava começando a pôr botões, e uma hamamélis exibia sua florescência de um amarelo brilhante. Daphne acendeu um cigarro.
— Não sei... — respondeu, quando eu disse que talvez ela tivesse de depor na audiência.
— Olívia deu permissão, Daphne.
A psiquiatra demorou um pouco a falar.
— Que tipo de pergunta eles vão fazer? — perguntou, por fim.
— Poderão perguntar se sabe como Olívia começou a viciar-se em Ritalin. Como ela passou a abusar do remédio. E talvez queiram saber sua opinião sobre os e-mails que mandava para a mãe.
Daphne apertou os olhos por causa do sol já baixo no céu.
— Olívia contou-lhe que andou roubando Ritalin?
— Contou.
— E você tem certeza de que meu testemunho poderá ajudá-la? Poderemos estar abrindo uma lata de...
Ela fez um aceno com as mãos e pareceu procurar o termo certo.
— Uma lata de vermes? Daphne assentiu.
— Tem razão, poderá ser um tiro pela culatra, principalmente porque o promotor terá liberdade para perguntar-lhe o que bem entender quando você estiver no banco das testemunhas. Há algo que ele pode perguntar e causar problemas?
Hesitante, Daphne parou.
— Não sei. Mas advogados são capazes de torcer as palavras da gente. E isso que eles fazem.
E ela estava certa. Aliás, Monty Sherman era um habilidoso torcedor de palavras. Contemporizei:
— O advogado de Olívia só a chamará se for absolutamente necessário.
— Sabe que farei tudo o que puder para ajudar. Olívia é inocente.
Apesar das nossas diferenças, aquela era uma coisa em que nós dois concordávamos.
— Está bem, direi ao advogado dela que você estará lá — disse eu. Nosso passeio parecia terminado, mas acrescentei: — Ah, uma coisa. Vi as anotações de Channing da pesquisa sobre o Kutril.
— Como conseguiu isso? — surpreendeu-se ela.
— Destler me deixou ver as pastas.
— Hum... — fez Daphne, como se isso explicasse alguma coisa. — Então estavam com ele o tempo todo.
Não pude ver a expressão do seu olhar, mas perguntei:
— Você sabia que ela havia incluído pacientes fora do padrão protocolar? Velhos demais. Não posso deixar de pensar que existam outras irregularidades no trabalho.
Daphne pareceu ficar sem palavras por alguns instantes. Então, falou:
— Você está sugerindo que Channing incluiu deliberadamente no estudo pacientes fora do protocolo? Nem que
0 inferno congelasse! — explodiu, com os olhos soltando fogo. Depois, mais calma: — Gostaria de saber o que eles aprontaram...
— Eles?
— Aconteceu a mesma coisa com Robert. Plágio? Negativo! Mas é assim que a coisa funciona. Eles introduzem um jovem residente cheio de entusiasmo, supostamente para organizar a sua papelada. E antes que você perceba, ele sai dizendo que a sua pesquisa é corrupta, que você copiou trechos de outro trabalho. Não as conclusões, imagine! Jamais alguém sequer insinuou que o trabalho de Robert não fosse original e brilhante. Ele conseguiu lutar contra a adversidade, mas o esforço o enfraqueceu e, se você me perguntar, acredito que a fraqueza tenha dado campo para o câncer se desenvolver. — Ela fez uma pausa, e seu rosto se animou. — Se ele estivesse aqui conosco daria apoio a Channing e a ensinaria a sobreviver.
Infelizmente, pensei, a sobrevivência estava além de qualquer ajuda que Robert pudesse oferecer.
— Você não acha que nós a superestimamos, não é? — perguntei.
— Channing? — indagou Daphne. — Isso é o que eles querem que a gente pense.
Aquele "eles" de novo! Ela deu um sorriso amargo e prosseguiu:
— A incorruptível Channing, sans peur et sans reproche,[5]1 que sempre se manteve na linha, de repente atropelando as regras como quem faz qualquer coisa para conseguir o que quer? — Daphne respirou fundo. — Não. É absolutamente impossível.
Afastou de um lado do rosto fios de cabelos prateados que se haviam soltado, depois do outro lado.
— Garanto que ela estava completamente obcecada pela pesquisa. Trabalhava dia, noite e nos fins-de-semana como se isso fosse tudo que lhe importasse no mundo. Isso porque tinha paixão pela verdade. Nisso Channing era implacável. Talvez implacável demais para seu próprio bem.
— Veritas — disse eu.
— Como?
— Apenas uma coisa que certa vez Channing me disse. Verdade, às vezes ela pode devorar você...
Naquele fim de semana Annie e eu nos encontramos na avenida Memorial, perto da praça Harvard. Era um dia glorioso com apenas uma ou outra nuvem semelhante a um grande floco de algodão suspenso num luminoso campo azul-claro. A rua estava fechada ao tráfego. Ciclistas, corredores e patinadores competiam agressivamente pelo direito de passagem, tratando os humildes pedestres como meros obstáculos numa pista de esqui.
A margem do rio, gramada, estava esparsamente habitada, um casal ou outro sentado numa manta, admirando a água cintilante, a silhueta de Boston no horizonte e as resistentes equipes remadoras de universitários que deslizavam em seus barcos entre as arcadas de tijolos das pontes do rio Charles.
Esperei por Annie diante de uma tenda amarela montada sobre a grama encimada por uma faixa que dizia Alugue Patins Aqui. Eu tomava um imenso café do Peefs. Annie veio patinando à toda e parou espetacularmente diante de mim — se ela estivesse patinando no gelo, eu teria recebido uma bela chuva de pedacinhos minúsculos de neve.
Estava com um camisão azul-brilhante e fuseau púrpura. Tirou o capacete e sacudiu os cabelos, soltando-os.
— Pensei que você tivesse largado o café — comentou.
— Tive uma recaída. Mas estou tentando diminuir. Este é meu segundo copo hoje. Estou saboreando até a última gota.
— Bom proveito... — disse ela, dando-me um beijo no rosto.
Entramos na tenda em busca de patins para meus pés número quarenta e quatro.
— Confie em mim, você vai adorar — garantiu ela, quando encontramos um banco vago.
Abri as presilhas de velcro e comecei a soltar o cordão de um dos patins.
— Deixe que eu faço isso por você — disse Annie. — E melhor que primeiro vista os protetores.
— Para o caso de cair do banco? — brinquei.
— Não ria, bem que isso acontece de vez em quando.
Olhei para a pilha de armaduras acolchoadas com qualquer coisa, menos entusiasmo. Munhequeiras, joelheiras, cotoveleiras e capacete, cujo plástico negro já estava arranhado e amassado por vários contatos com superfícies cimentadas.
Quando eu já havia posto tudo, menos o capacete, Annie estendeu-me os patins. Calcei um, depois o outro, e ela ajoelhou-se a meus pés a fim de ajustar os fechos de velcro.
— Confortável? — indagou.
— Como uma sardinha em lata — respondi e comecei a me levantar.
— Ei, pare! Primeiro o capacete.
Coloquei o capacete, ajustei a tira e ergui a viseira.
— Muito bem. Agora, vire seus pés só um pouquinho para fora. Isso, levante-se.
Apoiei-me em Annie e fiquei de pé.
— Vamos dar um pequeno passeio na grama. Mantenha sempre a ponta dos pés virada um pouco para fora.
Assim fiz. A cada passo eu me sentia como um daqueles avestruzes bailarinos do filme Fantasia, e os patins eram os pés enormes.
— Agora pare e equilibre-se num só pé — instruiu Annie, enquanto saíamos de baixo da tenda.
Obedeci: um avestruz imitando um flamingo.
— Perfeito! Agora, erga o outro pé. — Mandou e ficou observando minha performance. — Tem certeza de que jamais patinou?
Eu estava sem fala, mas consegui forçar um sorriso amarelo.
— Muito bem. Agora vamos praticar o equilíbrio. — Postou-se à minha frente e encostou a palma das mãos nas minhas, com nossos braços flexionados nos cotovelos. — Flexione os joelhos e apóie-se nas almofadas e nos dedos dos pés.
Por um minuto foi como se meus joelhos não quisessem se dobrar. Mas por fim dobraram-se e inclinei-me para a frente.
— Um pouco mais — incitou-me ela, e obedeci. — Muito bem. Peso sobre os dedos, joelhos flexionados. Perfeito.
Na verdade, eu me sentia um perfeito idiota parado ali com o traseiro arrebitado.
— Isto é ridículo — desabafei.
— Porque você está todo rígido. É só inclinar-se um pouco mais para a frente... Vamos, tente.
Inclinei-me, e só não caí de quatro porque Annie estava me sustentando.
— Certo — aprovou ela. — É isso que deve fazer, inclinar-se para a frente.
— Só que você não vai estar aí o tempo todo para me segurar e vou cair.
— Pois é. E isso que você vai fazer: cair. E quando cair, terá que se levantar.
— Cair. Levantar — resmunguei.
Como é que eu fora me meter naquilo? Patinar não apenas era perigoso como também muito complicado.
— Muito bem. Vamos tentar. Com os braços para a frente, deixe-se cair sobre os joelhos e mantenha-os unidos porque as joelheiras tendem a sair do lugar.
— Braços para a frente e deixar-se cair — repeti.
E o fiz, sentindo-me numa posição realmente indigna. Parecia-me que todos os garotinhos de Cambridge estavam ali, patinando magicamente, deslizando de frente e de costas, com a maior elegância.
— Está vendo esse disco duro nas munhequeiras? Eles foram concebidos para deslizar sobre o pavimento e não para se chocarem secamente contra ele. Procure utilizar seu corpo como um amortecedor de choques, encolhendo-se na queda.
— Hum-hum... — grunhi. — E agora, como é que me levanto?
— Tudo bem. Primeiro, apoie um dos joelhos no chão. Apoiei.
— Agora apoie as mãos no chão, de cada lado do corpo, e empurre-se para cima devagar.
E não é que funcionava? Eu já estava quase de pé. Annie continuava falando:
— Não se esqueça de colocar os pés na posição de V, para não cair e...
Mas antes que eu percebesse o que acontecia estava girando os braços no ar como hélices propulsoras, e aterrissei sobre meu traseiro, com toda força.
— Merda! — desabafei.
Annie tinha uma das mãos sobre a boca. Retirou-a e disse:
— A única peça protetora que você não pegou foi um travesseiro para amarrar no traseiro.
— Eu sabia que havia me esquecido de alguma coisa.
— Então, a regra número um para patinar: sempre, sempre e sempre caia para a frente. E assim que se faz o uso de toda sua proteção. E se começar a cair de costas, não agite os braços como moinhos de vento.
— Certo — respondi, ainda caído de bunda e olhando os joelhos de Annie.
Não é que a danada tinha lindos joelhos, coxas firmes e um bonito e arredondado traseiro exibido pelo justo fuseau de lycra!
— Nada de moinhos de vento — repeti.
Por fim ficamos prontos para patinar. Eu havia conseguido me levantar sozinho e permanecer sobre os patins sem dificuldades. Tentei dar um passo hesitante sobre a pista de cimento. Respirei bem fundo, contei até dez, concentrei-me no meu centro de gravidade. Aí, fui em frente. Um passo, dois, três... e saí patinando até ir parar na grama.
O suor descia por cima das minhas sobrancelhas. Tive vontade de arrancar o capacete e jogá-lo fora. Esperta Annie que usava uma faixa na testa, debaixo do capacete, para evitar o suor.
Patinamos na calçada, na Ponte de Anderson e começamos a descer pela pista do lado de Boston. Annie voltava quando eu me atrasava, por uma queda ou trapalhada mesmo.
— Não se esqueça de flexionar os joelhos e os tornozelos — instruía-me. — Procure relaxar...
Patinamos para além dos edifícios de tijolos à vista da Escola de Negócios Harvard. Annie estava certa sobre uma coisa: as botas firmavam os tornozelos, e eles não doíam nada. Eram as almofadas dos meus pés que me davam a sensação de que estavam enfiando atiçadores de fogo em brasa neles.
O agradável ar fresco sob a sombra de árvores altas e frondosas tornou-se enregelante quando passamos diante do prédio da Acu-Med. O mostro de tijolos vermelhos, encimado por uma torre, erguia-se sinistro como um centro de processamento de refugiados que chegavam ao Bravo Novo Mundo. Através de suas imensas janelas as únicas coisas visíveis eram máquinas, fiações e encanamentos.
Quando chegamos de novo sob o sol, Annie rolou até uma grade e parou. Fui me chocar contra ela e fiquei ali, meu corpo unido ao seu.
— Parada — dissemos ao mesmo tempo.
— Isso você não me ensinou — observei.
— Da próxima vez ensino.
— Acho que vamos pular essa aula. Prefiro aprender deste jeito mesmo.
Annie olhou para o edifício da Acu-Med.
— Esse monstro me dá arrepios... Um belo dia a torre vai ser atingida por um raio e vai sair dela um cara grandalhão, com um parafuso gigante passado no pescoço.
Dei risada.
— Acu-Med. Eles confiam uma porção de pesquisas ao Instituto. Liam Jensen estava realizando uma, por exemplo.
— O que me faz lembrar de uma coisa — disse Annie. — O número da Previdência Social que você me pediu para checar, do cara que caiu fora da experiência de Jensen. Ele não morreu.
— Não morreu... — murmurei. — Então ainda não sabemos sobre o que Channing e Liam discutiam. E com a morte de Liam, ele não pode nos contar. Aliás, fiquei sabendo que o diretor do Instituto está com as fichas da pesquisa de Channing Temple.
— Então elas não desapareceram.
— Pelo jeito, não. Destler disse que ela as entregou a ele para que as guardasse com segurança. Minha opinião é que as tirou de Jensen, que, por sua vez, apoderou-se delas. Ele deixou que eu as examinasse. Creio que o fez para inteirar-me de que Channing incluiu na experiência pacientes que eram velhos demais.
— E isso é muito sério?
— Seriíssimo. Para dizer a verdade, foi um golpe para mim. Eu jamais poderia conceber Channing fazendo isso. Ela era compulsiva com detalhes, com a ética.
— E você tem certeza de que eles eram velhos demais?
— E o que fiquei pensando. Isso tudo não faz o menor sentido. Há uma porção de coisas nessa história que não faz sentido.
Annie ficou me olhando por instantes.
— Bem, o que a sua intuição lhe diz?
Vá em frente com o que você sabe das pessoas. Ignore a realidade. Afinal, era para fazer isso que me pagavam. Dia a dia trabalhando com pacientes, meu instinto trabalhava junto, o tempo todo. Às vezes eu me guiava por ele, outras avaliava os sentimentos e os colocava de lado, conscientemente. Fora da sala de terapia eu usava lentes para filtrar todas aquelas nuances estranhas.
— Bom — comecei —, meu instinto diz que Channing não incluiria no estudo pacientes acima da idade determinada.
— No entanto... — pressionou-me Annie.
— Talvez alguém tenha alterado os registros para que parecesse que alguns dos pacientes eram mais velhos e, assim, ficassem fora do padrão protocolar. Para desacreditar o trabalho dela.
— Ou talvez, depois da morte dela, alguém tenha inserido fichas de gente que não fazia parte da experiência, para demonstrar que Channing agia de modo antiético — sugeriu Annie. — Isso é bastante fácil de descobrir. Posso ir falar com essas pessoas, perguntar-lhes se faziam parte da pesquisa do Kutril e qual é a idade delas. É só você me dar os nomes.
Isso me fez ter um sobressalto.
— Não, não posso fazer isso, Annie. São pacientes confidenciais. Já é bastante ruim que se tenha escrito o nome deles numa lista.
Annie apoiou o queixo nas mãos e pensou.
— Está bem. Estamos procurando por... Quantos são eles?
— Quatro.
— Quatro viciados ou ex-viciados. Quem pode ou não pode ter que idade?
— O limite é quarenta anos.
— E quem pode ou não pode ter participado da experiência do Kutril?...
Aquela manobra parecia-me impossível, porém Annie mostrava-se muito animada quando acrescentou, com um brilho nos olhos:
— Vou começar com os encontros na AAA[6].
E tinha razão. O protocolo exigia que os pacientes submetidos à experiência fossem às reuniões da AAA para ter apoio.
— E os viciados que se tratam no Pearce — prosseguiu ela — tendem a ser os mesmos que participam das reuniões da AAA.
— E verdade. Mas como você...
— Sabe aquela história que contei a Olívia de que eu bebia muito quando garota e acabei na cadeia? Só falseei uma parte dela, pois realmente aconteceu com a minha irmã. Mas achei que Olívia iria levar mais a sério se a experiência fosse minha, de primeira mão. Valerie por fim parou de beber há poucos anos. Eu fui a única a acompanhá-la na AAA. Continua a ir regularmente, e de vez em quando vou com ela. Ninguém vai se surpreender se eu aparecer lá. Posso xeretar depois do encontro e ver o que descubro.
Aquilo não me agradava. A última coisa que eu queria era subverter o tratamento que os viciados estavam seguindo voluntariamente. Parecendo ler minha mente, Annie disse:
— Não se preocupe, não vou fazer nada que atrapalhe o encontro. Depois trarei a você o nome das pessoas acima de quarenta anos que participaram de experiências com medicamentos antivício no Pearce. Pode ser que bata com os nomes que você tem, pode ser que não. De qualquer modo, não terá de me revelar esses nomes e nenhuma ética de privacidade será violada sem o consentimento deles.
Pensei no assunto e não encontrei objeção alguma, se bem que ainda me parecesse que o que Annie se propunha era apenas o lado dos anjos.
Tratamos de voltar. Dessa vez foi mais fácil "dar a partida". Eu já começava a me divertir. Patinamos pela Ponte da Avenida Oeste e fomos pela Avenida Memorial até o lado de Cambridge.
No entanto, quando entramos na tenda, senti enorme alívio ao me sentar no banco, tirar os patins e devolvê-los ao pessoal do Alugue Patins Aqui.
Atravessamos a ponte e descemos pela margem do rio até o centro da cidade.
— Achei que iria ser impossível descobrir — disse eu. — Você é incrível.
— Esse é o meu trabalho — respondeu ela —, e sou boa no que faço.
— Já notei.
— E estou caprichando mais ainda neste caso.
O sol estava baixo no céu, e a temperatura caía depressa.
— Ei! — sobressaltou-se Annie. — Não é o prédio do tribunal? — Apontava para um alto edifício vermelho e cinza, ao longe, com luzes vermelhas piscando no topo. — Ele me lembra uma coisa que eu queria lhe dizer. A audiência. Vai ser na quarta-feira à tarde, às três horas.
— Quarta-feira... Vou avisar Kwan e Daphne. Espero que dê certo..
— Um adiamento não é uma absolvição — observou Annie.
E de novo tinha razão. O único modo de salvar Olívia de uma longa estada no purgatório era a polícia encontrar outra pessoa para prender, e o tempo voava.
O tráfego pulsava através da ponte atrás de nós. A nossa frente o rio cintilava, liso e tranqüilo. Uma canoa com uma equipe de oito remadores deslizou na nossa direção e passou sob a ponte, entrando nas sombras que se adensavam, deixando para trás apenas alguns pequenos rodamoinhos e uma esteira prateada que se desfazia rapidamente.
Passei um braço pelos ombros de Annie e puxei-a para perto de mim.
— Logo... — murmurei, enfiando o rosto no pescoço dela e inalando seu suave odor.
— Logo o quê? — indagou ela, rindo.
— Logo... — Mordisquei a pontinha da sua orelha — vai estar quente o bastante para eu voltar a remar. E justo uma reviravolta. Você me torturou, e eu vou torturá-la.
— Hummm... Talvez.
— Bom. Alguma idéia para o jantar?
Annie abraçou-me. Pude sentir os seios macios contra meu peito. Passei as mãos pelas costas dela, até a cintura.
— Tenho más notícias, Peter...
— Está sem fome? Essa não é má notícia!
— Tomara fosse isso. Estou faminta! Mas é domingo... a noite em que os pacientes do Pearce costumam ir à AAA.
Eu gemi.
— Pelo menos era — acrescentou Annie.
Eu sabia que não poderia pedir-lhe que adiasse para o próximo domingo.
— Isso não é justo — reclamei, segurando-a pelos quadris e puxando-a para mim.
Annie olhou-me, com o rosto dourado ao sol poente.
— Fale-me a respeito.
A audiência foi num dia agitado. Vi Glória e Olívia entrarem no táxi que as levaria ao tribunal. A garota mantinha-se calada e arredia. Sob um casaco azul-marinho e um lenço de pescoço xadrez, usava saia e blusa branca, abotoada na frente. Os cabelos negros com cerca de dois centímetros loiros nas raízes contrastavam com a aparência de estudante secundária.
Kwan e eu fomos juntos e estacionamos o carro nas proximidades. Encontramos Daphne quando íamos indo para o tribunal. Ela caminhava contra o vento, decidida, protegendo com uma das mãos os olhos da poeira da rua que as rajadas erguiam e segurando um cigarro com a outra. Deu uma tragada e soltou a fumaça, parecendo uma teimosa locomotiva subindo uma colina.
Quando chegamos ao tribunal, o rosto de Daphne estava rosado, e os cabelos em desordem. Depois de passarmos pela segurança, ela pediu licença e foi ao toalete de senhoras. Kwan e eu subimos a escada para o andar das câmaras dos juizes. Daphne juntou-se a nós alguns minutos depois. Sentei-me entre Drew e Kwan. O promotor Montrose Sherman já estava lá, com seu assistente. Dois minutos depois das onze a audiência começou.
— Os médicos do Instituto de Psiquiatria Pearce recomendam que a srta. Temple continue o tratamento por mais duas semanas — declarou Chip, que tinha Olívia sentada a seu lado. — Ela apresentou sérios efeitos colaterais, que obrigaram os médicos a diminuir a dose de medicamento que estavam aplicando.
— Piores do que o mal-estar que ela sofreu na audiência anterior? — perguntou o juiz.
— Sim, meritíssimo. Tremores. Desordens na movimentação, como as provocadas pelo mal de Parkinson.
Sherman fechou a cara. Seu assistente apenas inclinou-se para trás, deixando que o chefe assumisse o controle.
— O Estado já concedeu um prazo de duas semanas para esse tratamento experimental. Como saberemos se depois deste adiamento não haverá outro, depois mais outro? Tenho certeza de que não precisamos lembrar ao sr. Ferguson a seriedade das acusações contra sua cliente.
— E eu tenho certeza de que não precisamos lembrar ao sr. Sherman os riscos que pode oferecer uma interrupção prematura de um tratamento — contra-atacou Chip. — O Estado nada perde com um pequeno adiamento. O dr. Liu está aqui e pode explicar as razões médicas.
— Olívia Temple poderá seguir o tratamento que precisa mesmo presa — insistiu Sherman. — Com todo respeito devido aos procedimentos de segurança do Pearce — fez uma pausa e bateu com o lápis no bloco sobre a mesa —, ela representa um perigo para a comunidade e deve ser mantida na prisão. Os e-mails que andou enviando sugerem planejamento, deliberação.
— Isso é a Corte que decidirá — rebateu Chip. O juiz interferiu:
— Todos nós sabemos que esta é uma audiência e não um julgamento.
— As mensagens que a srta. Temple enviou para a mãe fazem parte de sua terapia. Eram...
Sherman cortou:
— A srta. Temple enviou uma mensagem em que diz querer que a mãe estivesse morta. No dia seguinte ela foi assassinada. Isso não é terapia. É assassinato premeditado.
— Estou inclinado a concordar com o sr. Sherman — observou o juiz. — Creio que serei negligente se permitir que ela continue no Pearce, principalmente depois de um segundo crime.
— Terapia com e-mail — disse Sherman, com desprezo irônico.
Drew estava começando a se levantar; coloquei a mão em seu ombro, e ele tornou a sentar-se.
— Meritíssimo, a srta. Temple não é acusada de ter cometido o segundo assassinato — contemporizou Chip. — A psiquiatra dela, dra. Smythe-Gooding está aqui. Ela pode explicar as mensagens. Pode, também, dar sua opinião profissional se a srta. Temple representa ou não um perigo para a sociedade.
Sherman lançou um olhar de surpresa para Chip, em seguida encarou-me sem piscar. Tentei manter uma expressão neutra, mas podia sentir que meu rosto ficava quente. A última vez que nos havíamos encontrado no tribunal Sherman deveria ver-me apenas como um perito que examinara a memória de uma vítima que sofrerá traumatismo craniano por um ferimento a tiro na cabeça, mas ele incluíra em suas perguntas sutis alusões sobre o assassinato da minha mulher. Jogara uma isca para mim, e eu quase a engolira. Eu sabia que os advogados golpeiam embaixo e jogam sujo, mas Sherman era um cara que conseguia fazer isso sem que percebessem a sujeira.
— Dr. Sherman? — indagou o juiz.
— Não faço objeção.
Todos os olhares voltaram-se para Daphne. Ela parecia alguém que se acha prestes a fazer um discurso mas não está preparado. Prestou juramento, Chip pediu-lhe que se identificasse e em seguida declarou suas credenciais. Aí, perguntou-lhe:
— Doutora, quer por favor dizer à Corte qual o seu relacionamento com a srta. Temple?
— Durante o ano passado... — Daphne limpou a garganta. — Durante o ano passado Olívia Temple foi minha paciente. Fazia terapia.
— Do que a senhora a tratava?
— Ela estava apresentando dificuldades de concentração na escola. Tinha problemas em casa.
As respostas foram dadas com polidez e autoridade.
— E qual era o tratamento?
— Eu... hum...
Daphne remexeu-se na cadeira. Chip esperava. Depois de lançar um rápido olhar a Olívia, a psiquiatra tornou a fixar os olhos em Chip.
— Receitei-lhe Ritalin... — disse ela com insegurança na voz, o que não me agradou — para fazê-la recuperar o foco.
Dava impressão de que Daphne pinçava as palavras cuidadosamente. Sherman inclinou-se para diante e escreveu algo em seu bloco amarelo. Em seguida endireitou-se e cruzou os braços diante do peito.
— Obrigado, doutora — disse Chip. — Era parte do tratamento fazer Olívia Temple escrever o que sentia a respeito da mãe?
— Objeção! — berrou Sherman. — Ele está induzindo a testemunha.
Chip pareceu surpreso. Audiências para crimes juvenis costumam ser bem mais tranqüilas do para crimes adultos.
— Perguntarei de outro jeito — disse ele. — Como era o tratamento?
— Ela ia ao consultório uma vez por semana. Conversávamos, e eu a fazia escrever.
— Escrever o quê?
— Trata-se de uma técnica denominada análise de contratransferência. — A segurança de Daphne voltara, e ela gesticulava com as duas mãos. — Escrever os pensamentos e sentimentos recalcados ajuda a pessoa a recuperar uma perspectiva saudável. É um tratamento que desenvolvi com a ajuda de terapeutas...
Ela percebeu o olhar de Chip e interrompeu-se. Isso me fez lembrar das muitas vezes que meu amigo advogado me preparara para testemunhar. Ele sempre terminava com este aviso "Apenas responda à pergunta, Peter. Fale demais e estará dando corda para o promotor enforcá-lo".
— Obrigado, doutora — disse ele. — Na sua opinião, escrever revelando um sentimento indica que a pessoa irá agir segundo esse sentimento?
— O sr. Ferguson está conduzindo a testemunha — interferiu Monty. — De novo.
— Sr. Ferguson... — começou o juiz.
— Vou refazer a pergunta — apressou-se a dizer Chip, parecendo aborrecido. — Há algum relacionamento com o que a pessoa escreve e com o que faz?
— Acontece que todos nós pensamos em uma quantidade enorme de coisas que jamais fazemos — respondeu Daphne.
— A senhora reconhece o que está escrito aqui? — perguntou Chip, entregando-lhe uma folha de papel impressa.
Depois de ler, ela respondeu:
— E um dos e-mails que Olívia Temple escreveu para a mãe.
Houve uma pausa. Chip inclinou-se para Daphne, que pareceu momentaneamente nervosa, e acrescentou, depressa:
— Como parte da terapia. Chip recuou.
— Olívia Temple escreveu que queria que a mãe estivesse morta. É sua opinião que Olívia Temple planejava ferir a mãe?
Dessa vez não houve hesitação:
— Absolutamente não.
— E fazia parte da terapia a sua paciente colocar pensamentos e sentimentos em e-mails e enviá-los para a mãe?
— Objeção! — gritou Sherman de novo. Ele não queria deixar as coisas fáceis.
— Aceita — assentiu o juiz. Chip suspirou.
— A senhora disse à srta. Temple que fizesse algo com a mensagem que ela escreveu para a mãe?
— Disse-lhe que mostrasse a mensagem para a mãe — respondeu Daphne —, e Olívia usou o e-mail para isso. A mãe dela conhecia a análise de contratransferência. Achei que fosse fazer bem a ambas.
— Obrigado, doutora.
Daphne recostou-se na cadeira, evidentemente aliviada. Então Sherman começou:
— Desculpe-me, doutora. Tenho apenas algumas perguntas...
Daphne fitou-o, perplexa.
— A senhora disse que receitou Ritalin à srta. Temple — prosseguiu ele. — Quando indica um medicamento, tipicamente escreve uma receita?
— Se eu escrevo... Bem, claro que sim.
— Então, quando o paciente tem a prescrição, a farmácia que lhe vende o medicamento anota num livro de registros. Se houver questão de segurança envolvida com esse medicamento eles são avisados.
— Acredito que sim.
— Então pode me explicar como prescreveu Ritalin para a srta. Temple quando nenhuma farmácia do Estado tem qualquer registro dessa venda?
Daphne recuou, piscando.
— Bem, é porque...
Olívia inclinou-se para a frente, tensa.
— A senhora deu ou não deu uma receita para a srta. Temple? — O promotor fez uma pausa. — Tenho certeza de que não preciso lembrá-la de que está sob juramento.
Os olhos de Daphne fuzilaram Sherman.
— Quando um paciente inicia uma nova terapia, em geral os psiquiatras lhe fornecem amostras do remédio, para uma espécie de teste, antes de fazer a receita.
— A senhora prescreveu ou não Ritalin para a srta. Temple? — pressionou Sherman.
— Se o senhor quer dizer se escrevi uma receita a resposta é não. Mas ela estava tomando o medicamento sob minha orientação.
A voz de Daphne era gelada de desprezo.
— Durante quanto tempo, doutora?
— Quatro, talvez cinco meses. Preciso verificar as anotações na ficha para ter certeza.
— É comum alguém usar durante tanto tempo amostras grátis de remédios?
— Não. Não é comum.
— Hummm — fez Sherman. — E há quatro meses a senhora comunicou à segurança do Instituto que seu consultório havia sido invadido e medicamentos roubados? — Sherman agitou um papel. — Um dos medicamentos roubados era o Ritalin.
— Não vejo o que isso tem a ver com... — começou Daphne.
— A senhora fez esse comunicado? — Sherman estendeu-lhe o papel.
Relutante, Daphne pegou-o. Leu o que parecia a cópia de um formulário.
— Sim, aparentemente fiz — ela devolveu o papel a Sherman.
— Obrigado, doutora. Tenho apenas mais algumas perguntas. Poucas noites atrás a senhora comunicou à segurança que de novo haviam sumido medicamentos do seu consultório?
A resposta dela foi quase inaudível.
— Pode falar mais alto, por favor? — insistiu o promotor.
— Sim — confirmou Daphne. — Sim, comuniquei. Mas como sabia que Olívia havia escapado e...
A boca da psiquiatra fechou-se bruscamente, e ela pareceu aturdida. Lembrei-me de quando Sherman havia me pegado numa armadilha, também, na última vez em que tomara meu depoimento.
— Exatamente — apressou-se a assentir ele. — É claro que a senhora estava sabendo que Olívia Temple havia escapado da supostamente segura unidade naquela mesma noite e perambulado livremente pelos edifícios do Instituto... Aliás, na noite em que, coincidentemente, um outro médico foi morto. — Ele fez uma pausa para criar efeito. — Só mais uma coisa, doutora. A senhora prescreveu ou não uma terapia em que a srta. Temple deveria enviar mensagens eletrônicas para a sua mãe?
Daphne reencontrara o equilíbrio.
— Claro que sim, faz parte do método de tratamento.
— E essa parte que a senhora prescreveu especificamente, coisa que sua paciente não fez por iniciativa própria, era apenas para ajudá-la, como o Ritalin...
— Objeção! — saltou Chip. — O sr. Sherman está usando de sugestão e alusão...
O juiz interrompeu-o, seco.
— Penso que já ouvi tudo que precisava saber. Nego a moção.
— Mas a srta. Temple precisa de um tratamento médico que só pode ter no Pearce — argumentou Chip.
— Sr. Ferguson, está abusando da paciência desta Corte — preveniu-o o juiz. Tirou os óculos e esfregou a ponte do nariz. — Não há nada que sustente seu requerimento, a não ser que a srta. Temple provém de um lar privilegiado. O local em que ela está demonstrou ser insuficientemente seguro. Tenho de concordar com o sr. Sherman. Este é um caso de assassinato, e há evidência de que a acusada pode ser perigosa e até mesmo capaz de apresentar o risco de fuga. Vou dar prazo até sexta-feira para os médicos do Pearce terminarem o tratamento, quando então a srta. Temple será enviada ao Centro Betchel para Moças. A audiência está encerrada.
Sherman e seu assistente saíram. Levantei-me e esperei que Chip terminasse de guardar seus papéis. Drew passou um braço pelos ombros de Olívia e saímos da sala. No corredor, Chip resmungou:
— Puta merda! Dois dias... Olívia estava agitada.
— Vaca mentirosa. Vaca mentirosa...
Repetia a frase sem parar, como se estivesse girando uma chave de ignição de um motor.
Daphne aproximou-se dela.
— Livvy...
Olívia desviou o corpo para que a médica não a tocasse e expeliu o ar com força, parecia o chiado de uma gata com raiva.
— Minha mãe nunca deveria ter confiado em você..
— Livvy, não sabe o que está dizendo! Eu estava sob juramento e...
— Dra. Smythe-Gooding — cortou Chip —, tem algum tempo para conversarmos? Há uma sala de reunião no fundo do corredor que podemos usar.
Daphne lançou um olhar implorante a Olívia, que nem sequer queria olhar para ela. Afinal, a psiquiatra assentiu com a cabeça e encaminhou-se para a sala de reuniões.
— Importa-se de nos esperar lá dentro um pouco? — pediu Chip.
Assim que Daphne entrou, Olívia se soltou. Levantou-se e cuspiu na direção em que a psiquiatra desaparecera, depois começou a gritar:
— Sua puta maluca! Você prometeu me proteger!
Kwan aproximou-se de Olívia e passou a falar com ela calmamente, porém sua conversa macia não funcionou. Olívia gritou mais alto:
— Puta desgraçada! Você prometeu que ia me ajudar! Com jeito, Kwan segurou um braço de Olívia e Drew segurou o outro.
— Mentirosa! — berrou a garota, tentando soltar-se. — Eu nunca deveria ter confiado em você!
Ela debateu-se com mais força e jogou o pai contra a parede. Um par de guardas uniformizados saiu da sala do tribunal e aproximou-se, para ver se a situação estava sob controle.
Glória chegou perto da jovem e acariciou-lhe o rosto de leve, falando baixinho enquanto ela sacudia a cabeça para trás e para a frente. Kwan voltou-se para mim, parecendo consternado.
— Olívia precisa ir para a Instituto. — E depois de breve pausa acrescentou: — agora mesmo. Está agitada demais e precisa de um calmante.
— Não há razão para que ela fique — concordou Chip.
— Vaca! Mentirosa! — gritava Olívia enquanto Kwan e Glória a levavam.
Eu me senti tão angustiado quanto Drew, olhando a garota agitada e fora de si, gritando, enquanto ia embora. Queria ir com eles para ajudar a acalmá-la, para ter certeza de que ela não ia se machucar, mas também precisava ficar, para tentar ajudar na sua defesa. E eu sabia que Olívia estava em boas mãos.
Chip levou-nos para a sala de reuniões, pequena, sem janelas, com uma mesa e algumas cadeiras. Daphne estava pálida e apagada, de pé, olhando para a parede. Sentamo-nos.
Chip inclinou-se para trás na cadeira e deu um olhar apreciador a Daphne.
— A senhora nos surpreendeu — disse-lhe.
O rosto dela demonstrava aflição, e suas mãos tremiam.
— Se soubéssemos que não havia dado receitas de Ritalin a Olívia não lhe pediríamos para testemunhar.
— Pensei que soubessem. Quando falei com Peter... Acho que ele não compreendeu... Confundi tudo... Só queria ajudar. Não sei por que fui dizer que Olívia fugiu da unidade. Escapou...
Escapou? Como psiquiatra Daphne sabia muito bem que ninguém simplesmente deixa "escapar" alguma coisa.
— Com certeza sabia que o que ia dizer iria influir na decisão do juiz — voltou Chip.
— Foi um incidente! — insistiu Daphne, apertando a borda da mesa com ambas as mãos. — Como pode insinuar que sabotei minha paciente de propósito? A filha da minha melhor amiga?
— Que confusão... — balbuciou Drew, escondendo o rosto nas mãos.
Daphne tocou-lhe o ombro.
— Desculpe, Drew.
Ele a repeliu e perguntou a Chip:
— Será que você pode fazer alguma coisa?
— Creio que não temos opções — respondeu meu amigo. — Depois de amanhã ela irá presa... — olhou-me significativamente —, e não acredito que outra tentativa de suicídio ou reação a medicamentos façam alguma diferença.
Dirigi de volta ao Pearce apertando e soltando espasmodicamente os maxilares, enquanto repassava a audiência em minha mente. Pensei em Daphne, em como ela parecera insegura no banco das testemunhas. Será que havia sido mesmo um mal-entendido, que ela tentara dizer-me que não dera receitas a Olívia? Será que era ou não comum tratar pacientes com um medicamento de risco sem fazer prescrição? Limite de fronteira, pensei. Ter sido apanhada por Monty numa armadilha, bem. Eu também havia caído na dele, na última vez em que me interrogara. No entanto, não podia deixar de pensar se o escorregão fora, mesmo, inocente. Aí, ocorreu-me que talvez Daphne jamais dera Ritalin a Olívia, que talvez estivesse dizendo isso para protegê-la de uma realidade pior: que a garota estivera o tempo todo furtando o medicamento e o tomara por conta própria.
Na Avenida do Memorial diminuí a velocidade e enfiei o carro numa reentrância diante de um edifício estatal. Um motorista passou por mim com a mão na buzina. Ouça o seu instinto, fora o que Annie me aconselhara. O que meu instinto dizia? Coloquei o motor em ponto morto, acionei o freio de mão e fechei os olhos.
Vi um caleidoscópio de imagens. Olívia no alto da escada durante a festa. Segurando o revólver pelo cano e parecendo aturdida, no consultório da mãe. Cortando o próprio braço. Escondida no armário. Fitando-me com os olhos esbugalhados do colchão no porão do Pavilhão Albert. Dobrando as camisas do sr. Fleegle.
Abri os olhos e olhei pela janela. Uma árvore, plantada na beira da calçada, me chamou a atenção. O tronco lembrava uma cobra, de tão sinuoso, como aquele da foto de Annie Brigman na parede do quarto de Olívia — uma parede com assassinos em idade escolar e garotas adolescentes com roupas de Cinderela. O que significava aquilo?
Com cuidado, levei o carro de volta para dentro do tráfego e continuei em direção ao Pearce.
Glória estava na sala das enfermeiras. Seu cabelo curto começava a virar-se para cima nas pontas. Ela segurava a ficha de um paciente como se a lesse, mas seus óculos estavam sobre o balcão. Eu sabia que naquele momento a enfermeira-chefe comungava com o espaço.
— Da Terra para Alspag — brinquei. Glória me deu um sorriso cansado.
— Agora conseguimos acalmá-la, por fim. Continuou agitada durante a vinda para cá, então desabou e não parava de chorar. Kwan lhe deu um pouco de Klonopin. Não adiantou muito, e ele deu-lhe mais. Mesmo assim ela continuou consciente.
Dirigi-me para o quarto de Olívia.
— Lá não — avisou-me Glória —, ela está no quarto de acalmar.
O que chamávamos de "quarto de acalmar" era um espaço semelhante a uma cela que usávamos para pacientes agitados. Suas paredes eram brancas, a luz, suave, e continha apenas uma cama com apetrechos de contenção. Nada de cantos agudos, nem outros móveis. Mantínhamos a porta aberta e alguém sentado numa cadeira junto dela, do lado de fora, até que o paciente se estabilizasse.
Jess estava sentada na cadeira junto à porta do quarto de acalmar. Tinha um laptop equilibrado no colo e apoiava a ponta dos pés no chão para formar uma superfície reta.
— Desde quando psiquiatras fazem vigilância? — perguntei a ela.
— Eu me ofereci voluntariamente — respondeu Jess. — Estou substituindo Joe para que descanse um pouco. Ele vai voltar em um minuto.
— Fico no seu lugar — ofereci.
Ela desligou o computador, inclinou-se, pegou a mochila que se achava embaixo da cadeira e guardou-o.
— Por fim ela ficou mais calma — comentou.
Jess se pôs em pé e deixou cair a caneta. Quando me abaixei para pegá-la, vi a tatuagem no tornozelo. Era uma libélula. Endireitei-me devagar. Algo pareceu-me familiar, porém levei algum tempo para fazer a conexão com o que lera no diário de Channing: sua paciente tinha uma libélula tatuada. Ou eu assumira que se tratava de uma paciente. Poderia perfeitamente tratar-se de uma discípula devotada.
Devagar, entreguei a caneta a Jess. Será que era a suicida que Daphne dissera que Channing estava tratando, a paciente que a fazia perder a perspectiva clínica? Mas com certeza Jess era objeto da intensa fantasia sexual de Channing.
A psiquiatra guardou a caneta na mochila.
— Você carrega essa mochila para todo lugar aonde vai? — perguntei, tentando parecer natural.
Ela olhou para a grande bolsa com certa surpresa.
— É... acho que sim.
— Estava com ela também na festa de aniversário de Channing. No começo, pareceu-me esquisito. Você estava com vestido de festa, no entanto carregava essa mochila.
— Acho que é hábito.
— Quando a encontrei no piso superior da casa, durante a festa, você estava saindo do escritório de Channing... carregando a mochila.
— Joe prometeu que voltaria logo — tergiversou ela, olhando para seu relógio.
— Lembro-me bem que você fechava o zíper da mochila
— insisti.
E fechando o zíper, emendou:
— Tenho de ver uma paciente. — Jess deu um passo para trás, distanciando-se de mim.
— Lembra-se do que me disse que estava fazendo? Que tinha ido ao banheiro.
— Eu disse isso?
— Só que não há banheiro nenhum perto do escritório. Se houvesse, Channing o teria indicado para mim, em vez de me dizer que fosse ao banheiro no fundo do corredor para passar água no paletó manchado de Jensen.
Jess estava paralisada, com a boca aberta, a mochila apertada contra o peito.
— O que foi fazer no escritório da dra. Temple na noite da festa?
— Não é o que você está pensando... — justificou ela.
— O que estou pensando?
— Eu estava tentando devolver.
— Devolver o quê?
Justo nesse momento Joe veio andando pelo corredor, com uma lata de Diet Dr. Pepper. Homem grandalhão que tinha rosto grande, bondoso, ele deu um olhada para dentro do quarto. Em seguida sentou-se na cadeira à porta e abriu seu jornal.
De dentro do quarto veio a voz fraca de Olívia.
— Dr. Zak?
— Posso explicar tudo — disse Jess, com urgência na voz.
— Só me dê chance de explicar.
— Dr. Zak? — chamou Olívia de novo. — E você? Enfiei a cabeça no quarto.
— Estou aqui, Olívia. Num segundo vou aí.
Voltei para perto de Jess. Os olhos dela brilhavam, do mesmo modo quando a vi saindo do escritório de Channing. Ela fora pôr alguma coisa lá ou tirar alguma coisa?
— Não é o que está pensando... — repetiu Jess, com voz implorante.
— Preciso ir ver Olívia — disse eu. — Depois, poderemos conversar.
— Vou estar trabalhando no refeitório. Vá para lá assim que terminar — pediu ela, e afastou-se.
Eu disse a Joe que ficasse mais cinco minutos de folga enquanto eu usaria sua cadeira. Entrei no quarto silencioso e sentei-me ao lado de Olívia.
Ela estava deitada de costas, os olhos apenas meio abertos, as pálpebras fechando-se e, em seguida, abrindo-se com um tremor. Havia saliva seca nos cantos da sua boca.
— Olívia — comecei, puxando a cadeira mais para perto dela —, por que não relaxa? Durma.
— Não consigo dormir — disse a garota, com a língua grossa por causa do sedativo. — Não posso dormir.
— Psiuu... — fiz eu. — Poderemos conversar mais tarde, você sabe. Não vou a lugar algum.
— Conversar... agora. — Ela rolou de lado e pôs o indicador sobre a boca, enquanto eu me inclinava. — Ela prometeu que não diria.
— Quem prometeu? Que não diria o quê?
— Sobre o Ritalin.
— A dra. Smythe-Gooding?
— Mamãe não queria que eu o tomasse.
— Foi a dra. Smythe-Gooding que lhe deu o medicamento? Olívia assentiu.
— Ela disse que mamãe não compreenderia.
-— Ela mentiu quando disse que você furtou o Ritalin? A garota fechou os olhos, e eu pressionei:
— Não foi sobre isso que ela mentiu, foi?
— Eu precisava de mais. Ela não queria me dar mais. Prometeu que não contaria.
Uma campainha soou na minha cabeça.
— Você estava no consultório da dra. Smythe-Gooding furtando medicamentos quando sua mãe morreu?
Uma lágrima desceu do olho de Olívia e caiu no colchão.
— Mamãe... — murmurou ela.
— Você ouviu o tiro, não ouviu?
— Eu prometi que não diria...
— Quem a fez prometer que não diria?
— Puta mentirosa — disse a garota, cornos olhos se fechando.
— Prometeu a Daphne que não contaria? Os olhos permaneceram fechados.
— A dra. Dyer era amiga da sua mãe?
— Uma amiga especial — respondeu Olívia, separando as palavras.
— Do mesmo modo que Daphne era uma amiga especial?
— Puta mentirosa — disse ela de novo.
Só que dessa vez as palavras foram ditas com suavidade.
Fiquei sentado ali por alguns minutos, ouvindo a respiração dela aprofundar-se, e vi que sua mão se abria, relaxando. Afastei-lhe os cabelos do rosto. Ela parecia muito jovem e vulnerável.
Amiga especial? Será que aquilo era, mesmo, amizade? Ou o relacionamento de Jess e Channing havia ido mais longe?
Encontrei uma manta e a estava estendendo sobre Olívia quando vi algo em seu pescoço. Era um medalhão antigo, de ouro e gravado. Onde eu o vira antes? O medalhão estava entreaberto. Inclinei-me para fechá-lo, mas quando vi estava abrindo-o inteiramente. Uma meninazinha de uns dez anos, na fotografia em preto-e-branco, olhava para mim. Parecia-se com Olívia, mas com os cabelos loiros e rosto redondo. Eu já tinha visto aquela menina. Era Channing, como aparecia nas fotografia dos álbum de família.
Fechei o medalhão e fiquei esfregando-o entre os dedos polegar e indicador. Tratava-se do mesmo medalhão que Jess tinha no pescoço na semana anterior. Será que era aquilo que ela estava tentando devolver?
Quando Joe voltou, disse-lhe que ia escrever uma ordem para restringir as visitas a Olívia e ordenei:
— Então, por favor, não deixe ninguém entrar a não ser eu, a enfermeira Alspag e o dr. Liu. Entendido?
Ele anuiu.
— Só os senhores três.
— Isso mesmo.
— E se... — começou ele.
— Se mais alguém quiser ver a srta. Temple... e eu quero dizer qualquer outra pessoa, seja quem for... comunique-se comigo para pedir permissão.
Fui falar com Glória e Kwan, avisando-os que as visitas a Olívia se restringiam apenas a nós três. Ainda bem que nenhum dos dois me questionou, porque na verdade eu não saberia explicar, nem a mim mesmo, de que ou de quem estava tentando proteger Olívia.
Jess encontrava-se trabalhando no refeitório. Chamei-lhe a atenção batendo no vidro e apontei para cima, indicando que ia para meu consultório. Ela fez que sim, ergueu a mão e indicou cinco minutos.
Peguei o elevador e entrei na minha sala. Sentei-me à escrivaninha, inclinei-me para trás, tirei os óculos e fiquei olhando para o teto. Então Olívia estava lá, bem perto, quando Channing fora morta. Ouvira o tiro. O que Daphne a fizera prometer que não contaria? Teria visto alguém? Alguém que Daphne não mencionara?
O que me levou a pensar de novo no que Jess estaria fazendo no escritório de Channing na noite da festa. Se estava devolvendo alguma coisa, por que mentira dizendo que tinha ido ao banheiro? A menos que estivesse devolvendo alguma coisa que furtara. Algo como o medalhão. Ou talvez houvesse ido pegar o revólver.
Channing escrevera D na agenda na manhã do dia em que fora morta. Dyer? J teria sido mais aplicável a uma mulher que Olívia classificara como amiga especial de sua mãe.
O telefone tocou. Verifiquei meu relógio. Haviam-se passado mais de cinco minutos desde que me comunicara com Jess. Talvez fosse ela telefonando para dizer que viria mais tarde. Atendi.
— Ei, Peter!
Era Annie, e eu senti uma onda de prazer.
— Ei para você também — respondi.
— Ouvi dizer que as coisas não correram muito bem hoje de manhã. Como está Olívia?
A voz dela ecoava, como se estivesse falando de um telefone celular.
— Sedada. Dormindo. — Depois de um segundo, acrescentei: — Sentindo-se traída.
— Sexta-feira ela vai para o Betchel.
— Mais dois dias.
Annie não disse nada por alguns momentos. Depois:
— Bem, acho que você nada pode fazer para impedir... Fui à reunião dos AA e conversei com pessoas que pareciam ter mais de quarenta anos. Disse-lhes que estava pensando em me candidatar às experiências com medicamentos do Pearce e que gostaria de saber se alguém ali já passara por isso. As pessoas gostam de ser prestativas. Consegui alguns nomes.
— Incrível — disse eu. Peguei o envelope que tirara do cesto de lixo de Destler, onde escrevera os nomes dos pacientes acima dos quarenta. — Manda ver.
Annie me deu três nomes e idades. Um deles combinava.
— Não posso acreditar! Merda... Parece que Channing realmente recrutou pacientes que não se enquadravam no padrão da experiência com o Kutril e...
— Espere aí! — interrompeu-me Annie. — Devagar. Eu disse que eles participaram da experiência com o Kutril? Não. Essas pessoas estavam na experiência com o DX-200.
— A de Jensen... — murmurei, enquanto fazia um círculo ao redor do nome. — Então como a ficha de um paciente da pesquisa DX-200 foi parar na pasta de pacientes da pesquisa Kutril?
— Boa pergunta — disse ela.
Considerei as alternativas. Desesperada para aumentar o número de participantes da sua pesquisa, Channing "pegara emprestada" a ficha de um dos pacientes de Jensen sem perceber que a pessoa era velha demais para o seu padrão. Comecei a desenhar no envelope transformando um A numa pirâmide e colocando uma bandeirinha no topo. Não, ela era ética demais para fazer isso. E mesmo que fosse tentada, com a cabeça que tinha para detalhes não dava para imaginar Channing passando por cima de um dado tão óbvio quanto a idade do paciente. Talvez alguém houvesse inserido a ficha daquele paciente entre as fichas dos pacientes dela: um ovo de cuco que serviria para desacreditar seu trabalho. Será que Jensen era capaz de ter feito isso? Será que alguém resistiria à tentação de misturar algumas folhas de papel aos documentos de uma pasta se a alternativa fosse ver uma patente de milhões de dólares se transformar em poeira? Afinal de contas, que médico prescreveria DX-200 quanto tinha no Kutril um tratamento eficiente por uma fração do custo? Porém, se houvesse sido Jensen, ele teria agido sozinho?
Parei de desenhar quando minha atenção foi chamada pelo que estava impresso no envelope. Remetente: Congresso dos Representantes da Acu-Med. O envelope estava endereçado para Francine Bentsen, em Weston. O nome da esposa de Destler era Fran, e ela morava em Weston.
Senti os cabelos da nuca se arrepiarem quando percebi as implicações. Claro. Destler não se atreveria a comprar um estoque da Acu-Med em seu próprio nome ou a permitir que enviassem a encomenda para o Instituto Pearce.
— Você ainda está aí? — perguntou Annie.
— Sabe aquele envelope que peguei no lixo de Destler? Foi enviado de um congresso de representantes da Acu-Med.
— E daí?
— Acho que está endereçado para a esposa de Destler. Ele deve ter trazido a correspondência de casa e jogou o envelope fora, sem imaginar que eu fosse remexer o seu lixo.
— E daí? Será que perdi alguma coisa?
— A ética de pesquisas médicas é bastante clara. Se o que você faz como parte do seu trabalho puder afetar o valor de um estoque, então você não poderá comprar esse remédio. Um medicamento promissor, principalmente acima da concorrência, pode fazer o preço do estoque da empresa produtora subir às nuvens. Não seria apropriado para Destler, como administrador, ter um estoque da Acu-Med. E se ele tivesse, só como exemplo, poderia ser tentado a sabotar a pesquisa concorrente.
— Ou, pelo menos — sugeriu Annie —, fechar os olhos.
— Pelo menos.
— Bem, a certeza é alimento para se pensar — filosofou Annie. — Por falar em alimento, não tínhamos combinado de jantar juntos hoje?
— Por quê? Você está tentando filar um jantar de mim?
— Quem sabe... Mas o fato é que vou estar por perto do Instituto em cerca de uma hora ou pouco mais. E não almocei hoje... Podemos conversar sobre isso daqui a pouco?
— Pode conversar comigo sobre o que quiser, e daqui a pouco parece-me ótimo.
Depois que desligamos tentei lidar com a papelada que se acumulara em minha mesa, mas não conseguia me concentrar. Precisava pensar. Afinal as imagens antagônicas de Channing Temple começavam a convergir. Alguém estava tentando desacreditá-la, pintando-a como capaz de todo tipo de impropriedades pessoais e profissionais. E, de repente, eu estava a poucos passos de definir quem era esse alguém.
Consultei meu relógio. Fazia meia hora que Jess me indicara que estaria comigo em cinco minutos. Liguei para a sala das enfermeiras e perguntei a Glória onde ela estava.
— Eu também gostaria de saber — respondeu a enfermeira. — Ela marcou de fazer a ronda da neuro há cinco minutos e não apareceu aqui.
— Ela estava no refeitório... — comecei.
— Com um paciente, eu sei. Depois, fez um telefonema e saiu. Já bipei para ela.
— Foi dar uma espiada em Olívia? — indaguei.
— Joe está sentado à porta do quarto de acalmar, quieto como um pepino, se posso dizer assim.
— Vou até lá — disse eu.
Saí da minha sala, corri para o elevador, apertei o botão, esperei alguns segundos e ouvi quando ele entrou em ação. Sentia-me como se alguém estivesse me espetando por trás com um chuço, provavelmente Channing, e desci pela escada. As barras de metal que fechavam o acesso para o vão ressoavam com meus passos enquanto eu corria para baixo.
Estava passando por Joe para entrar no quarto quando ele levantou a cabeça e falou, de maneira automática:
— Nada de visitas... Ah, é o senhor — e voltou a ler. Olívia dormia sonoramente. Mexeu-se quando toquei-lhe a testa e voltou para o sono profundo. Fui falar com Glória.
— Jess apareceu?
— Ainda não.
— Tem alguma idéia de com quem ela falou ao telefone? Glória mostrou-se insultada.
— Como é que eu poderia saber isso?
— Desculpe, mas você é a pessoa mais bem-informada que há por aqui.
Aí a enfermeira-chefe sorriu.
— Lá isso eu sou mesmo.
— Ela não disse nada quando saiu?
— Eu nem vi que Jess havia saído!
Passei por Glória e dei uma espiada no refeitório. As coisas da psiquiatra ainda estavam lá, sobre uma mesa. O pessoal da cozinha já se agitava pela sala, pondo as mesas.
— Eu diria que ela pretendia voltar — comentou Glória, seguindo meu olhar.
Fui pegar as coisas de Jess a fim de guardá-las para ela. Abri a mochila para pôr os livros e papéis. O bip dela estava vibrando lá dentro. De que adianta um bip se você o deixa para trás? Jess precisava um pouco mais do que ser colocada em equilíbrio. Precisava também de uma boa dose de bom senso.
Algo mais chamou minha atenção. Um dos livros era um diário, do tipo que contém páginas em branco ou com linhas. Análise de contratransferência. Provavelmente Jess seguia os passos da mentora, mantendo um diário em que anotava seus pensamentos e sentimentos. Eu precisava avisá-la do perigo que era carregá-lo consigo por todo lugar aonde ia. Não era o tipo de coisa que a gente quer que alguém leia e interprete mal.
Quando enfiei o diário na mochila, vi as palavras nitidamente escritas na capa: Sentimentos e Fantasias — Volume 11. Onze? Jess ainda não vivera tempo suficiente para encher esse número de diários. Meu estômago se contraiu. A letra era de Channing.
O que Jess fora fazer no escritório de Channing durante a festa? Pegar ou talvez, como ela dissera, devolver um diário? Será que ela é que dera as xerox das páginas de um diário a Destler, fornecendo-lhe mais munição-? Boatos de comportamento reprovável, de métodos de pesquisa questionáveis... Todos fatos que poderiam juntar-se para tornar aceitável a idéia de suicídio.
Abri o diário. As primeiras páginas datavam de junho, as últimas de dezembro. Eu não me lembrava das datas das páginas que Destler tinha, mas ela citara um verão indiano. Procurei setembro e virei as páginas, examinando-as. Perto do fim do mês havia a entrada Um calor de verão indiano, hoje. Quente e abafado... Não precisava ler de novo, pois me lembrava muito bem.
Levei a mochila para a sala das enfermeiras e deixei-a numa prateleira por trás do balcão. Ficara com o diário.
Sentia-o queimar-me a mão enquanto esperava o elevador a fim de ir para a minha sala. Não gostava de estar com ele. Nunca deveria ter sido lido por outros olhos que não os de Channing. Mas ela estava morta. No entanto, a morte dela iria sendo esquecida enquanto sua reputação se destruiria. Compreendia que talvez devesse entregar o diário a MacRae para ser examinado. Mas não podia fazer isso. Seria como aceitar e participar do insulto, como violar sua privacidade ainda mais.
Sentei-me à minha mesa e passei a folhear o diário. A vida real e a fantasia de Channing pareciam misturar-se naquelas páginas. O obituário do marido de Daphne estava reproduzido por uma das primeiras anotações. A doença de Robert Smythe-Gooding dominava o mês de julho. Parecia que Channing o visitara constantemente. Gostara muito dele e agonizara com ele, vendo-o sair aos poucos do próprio corpo.
Depois da morte de Robert, Channing parecia ter-se voltado para dentro de si mesma.
Não posso intelectualizar. Sei que ela sabia que era a única escolha. No entanto "suicídio" reescreve o passado. Em seguida, é como se tudo tivesse deixado de existir. Não mais risadas. Nem dia-a-dia. Nem vida.
Seria uma meditação sobre o suicídio da mãe? Eu não tinha como saber. Com certeza o ponto de vista dela era válido. Suicídio. Assassinato. O efeito era o mesmo. E, depois, acontecera com a própria Channing. O modo como ela morrera se sobrepunha a todas as lembranças de como ela vivera.
Passei para outubro. As entradas referiam-se a sentimentos a respeito dos seus pacientes, do seu trabalho. Era como se Channing pegasse a própria escuridão — sua luxúria, inveja, ambição —, a processasse como um veneno amargo e a espargisse nas páginas do seu diário.
Então, uma entrada no mês de novembro me impressionou:
mudanças sutis
— mais rígida e inflexível
— esquecida
— insegura
— mais distante
— explosões de calor e frieza
Oprimida?
Benzoatos?
Culpa?
Olívia bem?
Fiquei surpreso com a lista. Seriam observações a respeito de Olívia? Sobre a própria Channing? Fui para a página seguinte. Havia uma outra lista, seis semanas depois. Antes que eu a lesse o telefone tocou.
Era Glória.
— Jess acaba de telefonar.
— Onde diabo ela está?
— Na unidade de Drogas e do Álcool. Diz que estará de volta dentro de uma hora.
— Ela falou o que está fazendo lá?
— Disse que a dra. Smythe-Goodmg lhe pediu para ajudá-la a examinar o que há no consultório da dra. Temple, a fim de ver se há algo importante. A administração quer a sala liberada amanhã de manhã.
Eu estava determinado a, dali a uma hora, estar em algum lugar sossegado, com Annie, com um copo de vinho, pedindo jantar para dois. A prisão de Olívia tornava o horizonte sombrio. Eu não via a hora de descobrir como as páginas do diário de Channing tinham ido parar nas mãos de Destler. Precisava falar com Jess.
Liguei para a sala de Channing. O telefone passou imediatamente para a secretária-eletrônica. Era enervante ouvir a voz dela dizendo-me que deixasse o recado e que ligaria de volta para mim. Não adiantaria bipar para Jess. Tinha de ir pessoalmente se quisesse uma resposta.
Olhei as horas.
— Annie deverá vir encontrar-se comigo aqui, dentro de uma hora — disse a Glória e comecei a sair da sala. — Se ela chegar antes de eu voltar, diga-lhe que me desculpe e faça-a esperar-me, por favor.
— Fazê-la esperar? — riu Glória.
— Isso mesmo, trate de distraí-la.
— Pode deixar por minha conta... Ah, a Administração ligou. A polícia entrou em contato com eles para combinar a transferência de Olívia para o Betchel. Depois de amanhã.
Não era preciso que me lembrassem disso.
A meio caminho para a Unidade de Reabilitação de Drogas e do Álcool encontrei Destler, que ia voltando para seu escritório. O rosto dele estava vermelho pela subida da colina. Aproveitei a chance.
— Preciso pedir seu conselho sobre uma coisa — disse, tentando parecer ingênuo.
— Meu conselho...
O rosto dele tornou-se preocupado, e Destler consultou o relógio.
— Só vai levar um minuto. Veja, apareceu uma oportunidade para mim. Um dos representantes da Pharmacom falou-me sobre alguns medicamentos promissores para terapia que estão investigando. Não é uma informação secreta nem nada, devem ter sido mencionados, só que eu não tenho lido nada ultimamente. De qualquer modo, estou querendo investir na empresa, e aí pensei que fosse melhor falar com alguém para saber se isso é legal.
Ele inclinou a cabeça de lado e me deu um olhar avaliador.
— Pharmacom. Não é o laboratório que está financiando a experiência do dr. Liu?
Tentei parecer surpreso.
— Hein? Oh, sim. Acho que é. Ele fungou.
— Tanto o Instituto quanto a Escola de Medicina têm regras claras. Está havendo a pesquisa na sua unidade, sob seus olhos. Não é legal.
— Que pena... — lamentei-me, verificando se estava no meu bolso o envelope de Destler que indicava envio de correspondência da Acu-Med para a esposa dele. — Detesto perder uma oportunidade tão boa. Bem, acho que está decidido... — Fiz uma pausa. — A menos, é claro, que você aceite investir por mim.
Foi a vez de Destler mostrar surpresa, depois cautela.
— Você não deve estar falando sério. Seria uma violação dos padrões de ética para mim tanto quanto para você. Se não pior ainda.
— Se... não... pior... ainda — repeti as palavras dele. — E eu pensava que você tivesse um estoque da Acu-Med.
— Eu... — Ele se tornou vermelho e gago. — Bem... é diferente...
— O que é diferente?
Destler estreitou os olhos e verificou o relógio de novo.
— Tenho mesmo de ir — disse, virando-se. — Por que não telefona para a Virgínia e marca uma hora para conversarmos sobre isso, quando eu tiver mais tempo?
Tirei o envelope do Congresso dos Representantes da Acu-Med do bolso e desdobrei-o.
— Acredito que você tenha seu próprio estoque, uma vez que lhe mandaram uma carta... Congresso de Representantes... endereçada à sua esposa.
— Como diabo... — explodiu Destler. Dominou-se, arrancou o envelope da minha mão e amarrotou-o. — Seu filho da...
— Não é desencorajado, proibido mesmo, termos estoques de remédios dessas empresas porque isso pode influir no julgamento clínico? — perguntei. — Por exemplo, suponha apenas que dois médicos do Instituto estejam trabalhando em pesquisas de medicamentos diferentes para tratar as mesmas condições. E suponha que o administrador tenha interesse num dos medicamentos em estudo. Será que essa pessoa não seria tentada a agir de modo a encorajar uma das linhas de pesquisa e desencorajar a outra? Afinal de contas, pode haver uma enorme quantia de dinheiro em jogo.
Destler enfiou o envelope no bolso do paletó, recuou dois passos e olhou-me avaliadoramente.
— E claro — continuei — que a atitude pode ser sutil. Mais recursos para um dos pesquisadores... Mas quando existem esforços para desacreditar o outro pesquisador e o administrador de repente desenvolve uma cegueira temporária, creio que uma pequena investigação pode demonstrar — o tom de minha voz subiu — que ã culpa de alguém foi forjada.
Ele entrelaçou os dedos e estalou-os.
— Você está blefando — disse.
— Você me mostrou as anotações da pesquisa da dra. Temple porque queria que eu visse que ela havia incluído pacientes velhos demais para o protocolo da pesquisa do Kutril. Não percebeu que esses pacientes acima da idade não estavam no grupo pesquisado por ela?
— Isso é absurdo — reagiu Destler.
— Alguém pegou a ficha de um paciente da pesquisa do dr. Jensen sobre o DX-200 e plantou-a na pasta que continha a lista dos pacientes da pesquisa do Kutril.
Ele ficou me olhando estupidamente. Era possível que estivesse vendo aquela possibilidade pela primeira vez.
— O que está dizendo? Que a dra. Temple apoderou-se de fichas de pacientes do dr. Jensen para juntar às dela, a fim de apresentar um número maior de elementos de pesquisa?
— Nem mesmo você pode acreditar nisso. A dra. Temple era meticulosa e inteligente. Se resolvesse trapacear, por que não pegaria pacientes dentro do seu protocolo? Não. Sei que alguém se apoderou daquelas fichas e as inseriu na pesquisa dela.
Destler se tornara cor de cinza.
— E o diário? A evidência de que uma psiquiatra ultrapassou os limites tendo um relacionamento sexual com sua paciente? A única coisa que foi realmente demonstrada é que a dra. Temple tinha devaneios sexuais. Nós todos temos devaneios sexuais, que vêm naturalmente. O que importa é o que fazemos com eles. A dra. Temple escrevia os dela. Não existe nenhuma evidência de que ela os vivia. Você verificou? Ou ia ao encontro dos seus interesses acionar o moinho de vento dos boatos? Tudo se torna mais limpo e bem arrumado quando um aborrecido radical se demite. Ou se mata.
— Epa, agora espere aí! — reagiu Destler, mas como duas enfermeiras se aproximavam ele olhou ao redor e baixou a voz. — Espero que não esteja insinuando que tenho algo a ver com a morte da dra. Temple.
— Não estou insinuando nada. Ainda. Mas gostaria de saber onde você arranjou aquelas páginas de diário. Furtou-as? Ou mandou que alguém as furtasse para você? Tenho certeza de que Channing não as ofereceu a ninguém como presente de aniversário.
— Mas é claro que não as furtei... — declarou ele, meio engasgado. —Já estou farto deste... desta inquisição! — Sua voz tornou-se dura de raiva. — Como se atreve a sugerir que trapaceei com pesquisas, que espionei a vida de colegas de trabalho? — Sentiu o envelope no bolso. — Mas entendo por que chegou a pensar isso, uma vez que é capaz de fazê-lo. E agora tenho um compromisso.
Destler virou-me as costas e foi embora.
Fui quase correndo para a Unidade de Reabilitação de Drogas e do Álcool, convencido de que explodira tudo com o administrador. Eu ainda não sabia quem interferira nas anotações da pesquisa de Channing nem como Destler conseguira as cópias xerox daquelas páginas do diário dela. Tudo que conseguira fora fazer o administrador ficar puto da vida e preveni-lo de que podia acionar sua atividade preferida: controle de prejuízos. Subi de elevador até o quarto andar.
As portas do consultório de Channing estavam abertas. Quando me aproximei, senti cheiro de tinta fresca. Olhei para dentro. Panos pintalgados de tinta cobriam um amontoado de móveis no meio da sala.
A porta do banheiro no fundo do corredor abriu-se e Daphne saiu com a jarra da cafeteira com água.
— Peter! — Parecia surpresa, retraída. — O que o traz aqui? Um lado do seu casaquinho de lã estava mais comprido do que o outro. Ela errara ao abotoá-lo.
— Estou procurando a dra. Dyer — respondi. — Ela está por aqui, em algum lugar?
— Ela está por aí — disse Daphne, vagamente —, verificando o que ficara na sala de Channing. — Espiou para dentro da sala vazia. — Olhou embaixo da mortalha?
E passou por mim, deixando atrás de si um aroma de flores.
Fui atrás dela. A sugestão era bizarra, fora de momento e de lugar. E ela parecia um tanto desalinhada. Pretendia perguntar-lhe se estava se sentindo bem. Mas ela entrou na sua sala e bateu a porta, numa clara indicação de que dispensava minha solicitude.
Voltei para o escritório de Channing. Os pintores poderiam ter deixado a janela aberta para que o cheiro de tinta se dissipasse. Fui até a janela dupla, abri o trinco e empurrei. A tinta da madeira ainda estava pegajosa. Tentei abrir a janela, mas ela fora pintada fechada. Peguei meu molho de chaves e passei a ponta de uma delas nas frinchas, para tirar a tinta dos encaixes. Então apoiei a palma das mãos em cima e embaixo na junção das duas partes da janela e empurrei. A princípio elas nem se moveram. Empurrei com toda a minha força, sentindo a tensão primeiro nos braços e nos ombros, depois no torso e nas pernas. A janela cedeu e abriu-se de repente, deixando entrar ar frio na sala e me fazendo cambalear para trás até encostar na pilha de móveis.
Tratei de recuperar o equilíbrio, esperando sentir o impacto com duras quinas de uma escrivaninha, de estantes ou do arquivo embaixo dos panos. Em vez disso bati contra algo firme, porém macio. Afastei-me com um salto. Imaginei Jess dobrada sob o que agora assumira, mesmo, o aspecto de fúnebre mortalha. O poder da sugestão é absurdo, Segurei uma ponta dos panos, que estava rígido por causa dos pingos de tinta. Comecei a erguê-lo.
— Dr. Zak...
O som da voz de Jess não provinha de debaixo dos panos. Ela espiou para dentro da sala. Carregava uma pilha de pastas.
— Tudo bem? — perguntou. — Está com cara de quem viu fantasma.
— Você não devia estar fazendo a ronda da neuro? — zanguei-me.
— Devia? Que dia é hoje? Meu Deus, tem razão! Esqueci completamente.
— Ajudaria muito se carregasse sempre seu bip com você.. Ela tocou o bolso do blusão.
— Não estou com ele?
— Não. Ele está na nossa unidade, na sua mochila, que você deixou aberta numa mesa do refeitório. — Fiz uma pausa para que ela assimilasse minhas palavras. — E disse que iria conversar comigo em cinco minutos.
Ela piscou várias vezes. Uma das pastas escorregou do topo da pilha e segurei-a.
— Em geral não sou assim... — tentou explicar.
— Dá para acreditar nisso. Se fosse irresponsável como está sendo, a dra. Temple não confiaria em você para coordenar sua pesquisa. Não teria trabalhado com ela nem por cinco minutos.
— A dra. Temple confiava em mim. E por isso que a dra. Smythe-Gooding me pediu que viesse ajudar a arquivar a pesquisa dela.
— Espero que essa confiança não esteja mal empregada — resmunguei.
Jess colocou a pilha de pastas sobre uma cadeira. Havia uma leve camada de transpiração sobre seu lábio superior.
— Está pronta para me dizer o que fazia no escritório da dra. Temple na noite da festa?
— Estava devolvendo o diário dela.
— Devolvendo? Ela sabia que você o havia pegado?
— Não. Eu... o peguei emprestado... — continuou, depressa — e o estava devolvendo. Só queria ter certeza de tê-lo colocado no lugar certo. Quando ouvi seus passos no corredor, saí correndo e, então...
A voz dela falhou.
— Então Channing foi assassinada — completei — e não pôde devolvê-lo.
O rosto de Jess contraiu-se, e uma lágrima desceu-lhe pela face.
— Em primeiro lugar, por que se apoderou dele?
— Sei que não deveria fazê-lo — as palavras dela saíam atropeladamente —, mas acho que estava apenas curiosa, pensando em que tipo de coisas ela escrevia no diário. Quando li o que escreveu a meu respeito, desejei não ter feito aquilo. Ela escreveu sobre coisas...
A minha vontade era de sacudir a moça, mas mantive a voz calma.
— Coisas que você sabia que jamais haviam acontecido. — Jess assentiu, com ar miserável. — Não compreendeu o que ela estava fazendo?
— Compreendi, sim. Análise contratransferência. É ótima no abstrato. Ou quando sou eu que escrevo sobre meus pacientes. Mas aquilo se referia a mim. Era tão... — ela procurou palavras — cru. Sexualmente explícito. Mesmo sabendo que se tratava de pura fantasia... senti-me como que violentada.
— Nunca teve pensamentos sexuais sobre um paciente? Ou mesmo sobre sua terapeuta?
Jess corou.
— Todo mundo tem.
— Claro. E nisso que se baseia a transferência, na libido. Não é possível evitar. E, como terapeutas, temos de compreender a transferência a fundo para que ela não afete o relacionamento. Channing usava a análise contratransferência para empurrar aqueles pensamentos e sentimentos para uma conclusão lógica, para o extremo. Escrevendo-os, roubava-lhes o poder de distraí-la. Isso é tudo. Jess uniu as mãos.
— Eu sei, eu sei. Mas quando li...
— Deixe-me pôr isso nos termos exatos: você furtou o diário da dra. Temple... — eu tentava não gritar, mas ouvia minha voz elevar-se — e tem tanto desprezo pela privacidade dela que hoje à tarde deixou o livro jogado em cima da mesa, fora da mochila.
— Eu não quis fazer isso — defendeu-se Jess.
— Sabe que o dr. Destler tem cópias de páginas desse diário e que andou mostrando-as por aí, usando-as para fazer com que se pense que Channing tinha relações sexuais com uma paciente?
— Nunca mostrei o diário a... — a voz dela morreu.
— Nunca mostrou o diário ao dr. Destler, mas mostrou-o a alguém.
— Ele prometeu que seria confidencial.
— Quem?
— Oh, meu Deus! — gemeu Jess. — Mostrei-o ao dr. Jensen porque confiava nele... e porque não podia perguntar a Channing sobre isso. Eu devia ter pensado. Por que ele me ofereceu trabalho? Fui pateticamente ingênua...
— Ele lhe ofereceu um cargo para quando você terminasse a residência?
— Disse que eu poderia trabalhar com ele, atendendo os clientes externos na Divisão de Pesquisas.
— Que Divisão de Pesquisas?
— Você sabe... a renovação do Pavilhão Albert.
— O quê?
— Você não sabia? Vai haver consultórios para atendimento de clientes externos, novas facilidades para pesquisas. E quando a dra. Smythe-Gooding se aposentar...
— Aposentar?
— Por quanto tempo ainda ela vai continuar trabalhando? Todo mundo sabe que não é eficiente e que está cada vez pior. Dizem que sem o marido ela é um zero à esquerda, sem consistência nem capacidade.
— Mas ela ainda está fazendo seu trabalho, não? Jess sacudiu os ombros.
— Os programas de pesquisas que se diz que a dra. Smythe-Gooding dirige dirigem-se muito bem sozinhos. Quando havia um problema, Channing o resolvia por ela.
Itens da lista do diário de Channing pareceram flutuar diante dos meus olhos. Mais rígida e inflexível. Esquecida. Insegura. Fora por isso que Channing me procurara. Assistia à amiga, a mentora mudando, e viu-se questionando o julgamento de alguém em quem sempre confiara... e estava preocupada com a terapia que ela desenvolvia com Olívia.
Lembrei-me do punhado de amostras grátis de Ativan na escrivaninha de Daphne. Não era Channing, mas sim ela que estava tomando remédios para a ansiedade. Muita quantidade de Ativan podia explicar o que Jess dissera sobre inconsistência. Porém eu tinha a sensação de que havia mais coisas ali. Algo além da tristeza, agora provocando mais tristeza.
— Ninguém falou nisso a Daphne? — perguntei.
— E ter a cabeça arrancada? — Jess pegou uma das pastas que trouxera. — E uma vergonha que ninguém continue o trabalho de Channing. Imagino que fossem simplesmente enfiar estas pastas num canto qualquer.
— São fichas de pesquisa?
— Sim. Dados sobre pacientes, de um estudo de pesquisa que ela publicou há poucos anos. Pelo menos vou ter certeza de que ficarão devidamente arquivados.
— Acredito. Você coordenava a pesquisa de Channing. Sabia que documentação adicional de pacientes foi incluída nas pastas do Kutril?
— Creio que não sei do que você está falando.
— Bem, não é o caminho usual da ficha de um paciente ser criada e as informações anotadas nela?
— Claro. Seguimos um procedimento padrão. Ela sempre me entregava os formulários, eu os incluía no sistema, depois arquivava a cópia.
— Os dados de algum paciente podem ter sido acrescentados de outra maneira? Por exemplo, alguém que não a dra. Temple entregando-lhe formulários de pacientes para ser incluídos no estudo?
— Oh, sim! Mas isso só depois que ela morreu.
— Quem fez isso depois da morte de Channing?
— O dr. Jensen. Ele me deu uns três ou quatro formulários. Você não está pensando que...
— E você os incluiu no banco de dados e no arquivo.
— Claro que sim.
Imaginei de quantos outros modos os superiores de Jess teriam tirado vantagem dela.
— Acredito que o dr. Jensen a usou, Jess. Acredito que ele incluiu aquelas fichas para dar a impressão de que Channing utilizou pacientes velhos demais para o estudo que fazia.
— Não. Ela sempre foi muito meticulosa na seleção dos participantes.
— Eu sei disso. Mas Jensen queria dar a impressão de que ela não se detinha diante de nada para conseguir o que queria.
— Ele me usou...
Jess gelou, como um gato que de repente ouve um som desconhecido. Nós dois olhamos para a porta aberta da sala. Com um barulhão, a porta externa fechou-se. Antes que eu pudesse me mexer ouvi o ruído de metal contra metal e um clique. Alguém nos havia prendido ali dentro.
Tentei abrir a porta. A maçaneta girou e abriu-se apenas uma fenda, então a porta parou. Empurrei-a com meu ombro; recuei e atirei-me contra ela. Recuei de novo e me atirei. Recuei pela terceira vez e me atirei com toda força. Eu ia acabar quebrando o ombro em vez de quebrar a porta. Já me sentia como se tivessem me batido com uma marreta.
Esfreguei o ombro e comecei a procurar alguma coisa que servisse de alavanca. Arranquei os panos de cima dos móveis e fiquei prostrado. Lá estava a cadeira estofada de Channing, de couro, ocupada não por um cadáver, mas sim por uma pilha de livros e encimada por um barrete de crochê e um pedaço de seda vermelha e dourada.
Peguei a peça chamativa. Lembrei-me: era um grande lenço que Channing trouxera da Tailândia. Usava-o sobre os ombros na noite em que me dera as más notícias, que conhecera alguém enquanto viajava e que ia casar-se. Alisei a seda, e o penetrante perfume cítrico fez meus olhos arderem.
Ouvi a respiração rápida de Jess. Ela me fitava com os olhos muito abertos, as narinas frementes. Tentou de novo abrir a porta.
— Estamos presos — disse. — Como vamos sair daqui?
Arranquei outro pano de cima da mesa. Havia um telefone sobre ela, com o fio espiralado enrolado ao redor. Procurei junto ao rodapé até que achei a tomada do telefone. Enfiei o plugue e peguei o receptor. Nada.
— Morto — informei.
A voz de Jess soou mais aguda.
— Alguém tem de nos ouvir! — Correu para a porta de sólido carvalho e passou a bater nela com os punhos cerrados. — Socorro! — gritou. — Estamos presos aqui!
Voltou-se, apoiando as costas na porta. Seus olhos percorreram nervosamente a sala.
— Tenho um problema... — ofegou, com a mão no pescoço. — Não consigo ficar num local fechado, sabendo que não posso sair...
A respiração dela passara a ser aos arrancos, e seu rosto estava ficando vermelho.
— Você está hiperventilada — expliquei-lhe. Tirei os livros da cadeira. — Sente-se... — Dei-lhe a mão e ajudei-a a sentar-se. — Acalme-se que isso melhora.
— Eu sei, eu sei... — Jess ainda ofegava. — Não é como no meio da noite...
Agarrou-se aos braços da cadeira, e coloquei minha mão no seu ombro.
— Não fale. Respire.
— Tem uma porção de gente no Instituto, não?
— Sim, claro. Uma porção de gente.
— Você...
Levei um dedo aos lábios dela.
— Não fale. Respire.
Ela pôs uma das mãos sobre a boca e fechou os olhos. A respiração foi se acalmando.
— Vá devagar... — A cor dela voltava ao normal. — Isso, assim, devagar e de leve. Inspire. Expire.
Jess recostou-se na cadeira, colocou as mãos no colo e suspirou profundamente.
— Assim esta ótimo. Deu para ver se alguém passou pelo corredor?
Ela passou a língua pelos lábios.
— Só a dra. Smythe-Gooding. Ela passou e repassou diante da porta várias vezes. Acha que ouviu o que eu disse? Sobre ela ser incompetente? Eu não devia ter falado tão alto, mas nem pensei nisso.
Claro que Daphne tinha ouvido. Mas por que nos trancar ali? Estava prestes a ir gritar na janela quando bateram à porta.
— Peter, você está aí?
Era Annie. Jess atirou-se na porta.
— Estamos presos aqui — gritou.
— Annie? — chamei. — Que bom ouvir a sua voz. Como nos encontrou?
— Glória. Como você não voltava... Graças a Deus por Glória.
— Pode nos tirar daqui? Houve uma pausa.
— Posso, sim. Parece fácil. — Sacudiu o cadeado. — Acho que preciso de algumas ferramentas. Esperem que tenho algumas no carro.
— Depressa! — pedi.
— Quem é ela? — perguntou Jess.
— Uma amiga minha que vai nos tirar daqui.
— Depressa, espero... — suspirou a psiquiatra.
— Provavelmente ela estacionou perto da Unidade de Neuropsiquiatria.
Pude imaginar a distância: três lances de escada para baixo, uns quatrocentos metros de ida e volta, três lances de escada acima. Encostei-me na parede, deslizei até o chão e sentei-me para esperar. Jess parecia calma, agora que sabia que íamos sair dali.
— Onde está o medalhão que você estava usando? — perguntei.
Ela tocou o pescoço com os dedos.
— Meu medalhão?
— Seu?
— Eu o dei para Olívia — sussurrou Jess.
— Quer falar-me sobre ele?
O rosto dela expressou angústia.
— Era de Channing. Pertenceu à mãe dela.
— Channing o deu a você?
— Estava no escritório dela. Quando peguei o diário... — Ela começou a chorar. — Só estava pegando emprestado, mas nunca tive chance de devolver.
— E deu-o a Olívia?
— Sim.
— Como explicou...
— Menti. Disse que Channing me emprestou o medalhão e que não tive oportunidade de devolver. Disse que era amiga da mãe dela.
— Uma amiga especial? — indaguei.
— Uma amiga especial — ecoou ela.
— Era uma mentira também?
Jess não respondeu. Pegou o lenço de Channing e encostou-o no rosto. Levantei-me e fui olhar pela janela. Depois de alguns minutos Annie apareceu, correndo colina acima na direção do edifício.
— Lá vem ela — avisei.
— Graças a Deus — disse Jess, suavemente.
Alguns minutos depois soou uma batida na porta e ouvimos a voz de Annie:
— Estou de volta...
Jess ergueu-se e foi encostar-se na porta.
— Você vai nos tirar daqui?
— Vou tratar disso — respondeu Annie.
Houve um silêncio, depois surgiu o barulho de metal contra metal.
— Merda! — desabafou ela.
De novo o barulho de serra contra metal. Eu me sentia no dentista, rezando para que ele afastasse aquela máquina infernal do meu dente, sentindo os segundos passarem como horas e esperando ser libertado daquela cadeira.
— Mas que droga! — reclamou Annie. Houve um minuto de silêncio.
— Agora vai — disse ela.
Seguiram-se alguns sons metálicos, resmungos e o som de madeira estilhaçando-se.
A porta abriu-se. Annie estava de pé ali, segurando um pé-de-cabra. Um sortimento de picaretas pequenas e serras de ferro estavam a seus pés.
Jess saiu para o corredor.
— Como é bom ver você! — disse eu.
Olhei para o pé-de-cabra, depois para a fechadura arrebentada. Toquei o umbral da porta, do qual faltavam alguns bons pedaços e lascas de madeira. Ponderei:
— Creio que quando a delicadeza não funciona é preciso usar a força bruta.
— E exatamente o que penso — concordou Annie. — Como ficaram presos aí?
— Acho que foi Daphne Smythe-Gooding que nos trancou — respondi.
— A culpa é minha — declarou Jess. — Eu estava dizendo que a dra. Smythe-Gooding não é...
Fechou a boca e olhou ansiosamente para a porta da sala de Daphne.
Com poucos passos cheguei lá. A porta estava aberta, mas a sala encontrava-se vazia. Havia um forte cheiro de cigarro. O que eu me lembrava que eram pilhas organizadas de papéis sobre a mesa dela se havia transformado em verdadeira bagunça, e uma caneca da Acu-Med servia para mantê-los no lugar. A violeta-africana agora estava além de qualquer socorro. A jarra de água que ela trouxera do banheiro parecia ter sido esquecida sobre uma cadeira.
Ao lado da janela um quadrado de parede mais claro parecia brilhar. Havia um prego no meio desse espaço. Daphne tirara a foto do marido dali. Abaixo havia um armário de livros de madeira escura, fechado com portas envidraçadas. Numa das prateleiras estavam umas duas dúzias de diários, cada qual com um número marcado a mão na lombada. Anos.
Abri uma das portas do armário. Estava por pegar um diário quando hesitei. Annie e Jess tinham ficado no corredor. Fui até elas.
— Dêem-me um minuto — pedi e fechei a porta.
Tentava racionalizar de todo modo o fato de olhar a propriedade particular de alguém. Pelo menos iria fazê-lo sem implicar outras pessoas.
Peguei o último diário e o abri. As páginas estavam datadas e cheias de uma escrita firme, densa. Procurei os dias mais próximos da morte de Channing. No dia depois da festa de aniversário dela a entrada começava:
Minha filha especial. Brilhante. Linda. Agora ela se volta contra mim, como uma víbora. Como sua filha voltou-se contra ela. Como a mãe dela, sua vergonha. Vergonha. Suicídio. Vergonha. Suicídio.
Robert e eu. Temos de fazer isso juntos.
Li rapidamente as páginas que se seguiam, os dias se passando até a morte de Jensen. Essas páginas estavam cheias da dor da perda. Daphne escrevera as lembranças que tinha de Channing, sua protegida. As palavras brilhante, instintiva, honesta, escrupulosa acumulavam-se nas páginas enquanto ela transformava Channing numa santa. Então:
Começou. As anotações dela desapareceram. Só posso imaginar onde estão.
Bateram à porta.
— Peter? — era Annie.
— Dê-me mais algum tempo — respondi.
Passei para o diário do ano anterior. Robert morrera no começo de agosto. Ali encontrei o que procurava.
Sábado.
Estou em casa. Sentada, ouvindo a respiração superficial. O cheiro acre de urina e podridão parece estar grudado no papel de parede, nas cortinas. Não suporto olhar. Tanta e tão forte personalidade, brilho e força destruídos. O rosto dele transformou-se numa caveira coberta por uma membrana toda percorrida por veias azuis. Olhos no fundo.
Tento ler, mas meu pensamento não se concentra na leitura. Em vez disso escrevo e ouço, embalada pelo suave inspirar, expirar. Aí, por alguns momentos, nada. Meu coração pára. Acabou? Um ronco, uma tosse fraca. E me zango diante do alívio que me invade. O que sou sem você? No entanto, é o que vai acontecer.
Ele se mexe. As pálpebras fremem. Poços de escuridão me fitam. Esta pessoa que não pode andar, que mal pode sentar, ainda consegue erguer os braços finos como gravetos, a cabeça balançando sobre uma haste sutil.
Ele me olha. A voz que amei e agora mal posso ouvir. Escarnecendo de mim por ser tão fraca. Eu sei, combinamos. Digo a ele. Logo. Mesmo assim seu olhar me despreza.
Toco sua mão tentando não aplicar nem mesmo o mínimo de pressão por medo de machucá-lo, de marcá-lo. Olhos fechados. Essa é uma expressão de dor ou o limiar de um sorriso. Então, o espírito afunda de novo.
Tem de ser agora. Ontem à noite dispensei a enfermeira da noite. Cancelei a do dia. Por que fico sentada aqui, sem fazer nada? Por que ainda espero, contando as respirações, escrevendo em vez de agir, esperando que Deus queira que faça o que prometi? Tudo depende de mim, agora.
Abro a gaveta ao lado da cama. Nela fica o revólver. Um presente, "emprestado" por um amigo que não aprova. Frio e rijo, como ele se encaixa bem na mão. Uma simples pressão e estará feito. A vontade de Deus.
Ou, quem sabe, o travesseiro de plumas. Vejo a mim mesma pressionando gentilmente. Mas não, gentilmente nunca poderá ser. Quanto tempo será preciso, e será que vou agüentar? Agüentar.
Pílulas? Como é fácil removê-las depois. Limpo e ordeiro. Eu também tomo uma pílula. Espero. Não posso continuar esperando. Tomo outra.
Domingo
Graças a Deus acabou. Agora, o que sou eu?
Claro, isto é o que todo mundo sabia sem perguntar. Robert Smythe-Gooding morrera antes da hora. Não devido à lenta devastação do câncer. Mas também não por sua própria mão, como muitos pensavam. Daphne o matara.
Estava começando a ficar claro, porque eu continuava vendo o entrelaçamento, não importa de que ângulo olhasse: suicídio assistido. Morte não comunicada. O assassinato de Channing. O furto de páginas do diário. O assassinato de Jensen. A alteração da pesquisa.
Preste atenção nos detalhes. Era como um dos meus testes psicológicos. Junte as coisas que combinam. Então, dê nome aos grupos. Eu defini dois nomes: assassinato e assassinato de reputação.
Dois crimes. Criminosos diferentes? Claro. E se eu não me apressasse haveria mais um crime.
Peguei o telefone e liguei para o escritório de Destler, rezando para que Virgínia ainda estivesse lá. Quando ela atendeu, gritei:
— Ele ainda está aí?
— Olá, Peter! Sinto, mas não está. Parece estar muito ocupado nesta tarde.
— A dra. Smythe-Gooding foi procurá-lo?
— Para ser franca... Interrompi-a.
— Disse a ela onde ele está?
Eu sabia que estava sendo grosseiro, mas Virgínia era uma alma que perdoaria.
— Claro que disse.
— E onde ele está?
— Bem... deixe-me ver... Ele recebeu uma pessoa e a visita deve ter terminado às cinco e meia. Em geral ele vai embora, porém...
Por mais que eu gostasse de Virgínia, se ela estivesse ali comigo eu a teria estrangulado. Interrompi a enxurrada de considerações.
— Onde você acha que ele está agora? Por favor, é muito importante.
— Oh, meu Deus! Provavelmente está no Pavilhão Albert. Levou as plantas da reforma e ia verificar...
— Há algum modo de se comunicar com ele?
— Posso bipá-lo, mas no pavilhão não há telefones...
— Vou até lá — disse eu, e desliguei.
Saí para o corredor. Annie já havia guardado as ferramentas e pegava o pé-de-cabra.
— Vamos para o Pavilhão Albert. Destler está lá, e Daphne foi atrás dele.
— Vou com vocês — anunciou Jess quando Annie e eu já estávamos a caminho.
— Não acho uma boa idéia — discordei.
— Por favor! Eu confundi tudo, confiando no dr. Jensen, ficando calada...
Descemos as escadas correndo, passamos pelo local em que Jensen caíra para a morte. Um pedaço de madeira tinha sido colocado no rombo dos balaústres quebrados. Jess esforçava-se por nos acompanhar. Seus saltos altos e saia justa não eram adequados à velocidade. Ela ainda estava com o lenço de Channing na mão.
— Pode ser perigoso — avisei.
— Tem de haver um modo de eu compensar a confusão que provoquei — insistiu Jess.
Saímos do prédio e paramos nos degraus de entrada da Unidade de Reabilitação de Drogas e do Álcool.
— Precisamos dizer à segurança que vá nos encontrar no Pavilhão Albert — disse eu.
— Eu faço isso — ofereceu-se Jess. — Chamo a segurança e os encontro lá.
Tornou a entrar no prédio, correndo.
Annie e eu cortamos caminho para o Pavilhão Albert pelo gramado. Era mais rápido do que ir pelos túneis, uma reta em vez de ziguezagues. E era tudo colina abaixo. Eu corria solto, Annie me acompanhava passo a passo.
Apesar dos holofotes no alto dos cantos, o Pavilhão Albert parecia abandonado. A alameda circular estava sendo invadida pelo mato. A um lado do prédio havia uma caçamba, e muitas das janelas estavam cobertas com pranchas de madeira. Uma tabuleta PROIBIDA A ENTRADA estava presa a uma estaca enterrada no chão, e a porta maciça de carvalho achava-se fechada com cadeado. Peguei o pé-de-cabra de Annie, enfiei-o junto à fechadura e forcei. Saltou madeira para todo lado, até que a fechadura se soltou e o cadeado ficou pendurado, inútil.
A porta abriu-se. Annie iluminou a entrada com sua lanterna. Tentamos ver algo na escuridão. Havia largos degraus no saguão. O teto, trabalhado cm relevo, apresentava rachaduras, algumas tão profundas que se podia ver o espaço mais escuro entre o teto e as telhas.
Entramos, passando por uma enorme lata de lixo ao lado de ripas velhas e folhas de gesso. O cheiro forte de aguarrás subia de alguns trapos em cima das ripas. Mais adiante havia um amontoado de canos. Havia também uma pilha de tábuas quebradas e pedaços de pau ao lado de um gigantesco carretel com cabo de eletricidade.
Annie dirigiu o facho de luz para o outro lado do saguão e depois para o teto. A cúpula do saguão, acima da altura de dois pisos, deveria ter sido imponente. Uma larga escadaria subia, e do centro do teto pendia um enorme lustre de latão empoeirado.
— Mais parece um mausoléu do que uma mansão — comentou Annie.
O lugar cheirava a podridão seca, e o soalho estava esponjoso em alguns pontos. Imaginei quanto dele ainda seria aproveitável. Annie abria caminho em direção a um painel com interruptores de luz.
— Cuidado — avisei —, o soalho não é...
Justo nesse momento uma tábua cedeu sob Annie. Ela mudou de lugar agilmente e continuou andando com mais cuidado para o painel.
— Dr. Destler! — chamei.
Tentei enxergar na escuridão. Esperei que houvesse eco, mas não ouvi nada. As paredes fofas e o soalho apodrecido pareciam absorver o som.
Houve um clique, e o lustre ficou vivo. Então, duas ou três lâmpadas explodiram, emitindo uma chuva de faíscas. Uma outra lâmpada caiu e estilhaçou-se no chão. O saguão ficou de novo às escuras.
— Deve ter sido um fusível — disse Annie. — Podemos olhar no quadro de luz.
— Esqueça — respondi, enquanto meus olhos se ajustavam de novo ao escuro. — Não há tempo para isso. Precisamos encontrá-los.
Annie dirigiu a luz para perto da escadaria central.
— Parece que há alguma coisa aqui.
Ela me deu um rolo comprido de papel. Cheirei-o. Não tinha cheiro de pó nem de mofo. Abri-o, enquanto Annie o iluminava. Eram várias folhas, enroladas umas dentro das outras.
Examinei a primeira. Tratava-se de uma planta de arquitetura do andar principal, com a inscrição "Pavilhão Albert", na qual o grande hall de entrada permanecia, porém não havia mais a harmoniosa disposição central. Uma nova ala fora anexada no lado leste, com entrada própria. Parecia ser a espécie de espaço adequado para atendimento de pacientes externos — um hall de entrada e corredores internos que levavam a vários espaços de tamanho médio que poderiam ser escritórios ou consultórios. A maior parte do edifício original seria derrubada. Os escritórios no final do primeiro andar seriam substituídos por um anfiteatro com palco semi-circular e fileiras de cadeiras em níveis que se elevavam. Letra caprichada indicava que esse local se chamaria Destler Hall.
Assobiei. Significava uma campanha especial para pagar aqueles planos grandiosos. Mas, pelo que eu sabia, não poderia haver meio-termo: tinha de ter um doador, alguém com a carteira bem recheada.
— Para onde vamos? — perguntou Annie.
Passou a luz da lanterna de um lado do hall, depois do outro, em seguida pela escada e por fim no meu rosto. Pisquei, ofuscado. Ela desviou o foco. De algum lugar lá em cima veio o som de passos, de luta.
Larguei as plantas e subimos a escada curva correndo. Paramos no segundo piso e ouvimos.
— O que é aquilo? — perguntou Annie, indicando um corredor que saía do patamar.
Havia uma fraca luminosidade ao nível do chão, perto do fim do corredor. Annie chegou perto primeiro e pegou um capacete amarelo com uma lanterna na frente. Com um leve som metálico, o filamento da lanterna rompeu-se. Passei a mão e senti um amassado no alto do capacete. Torci para que a cabeça que ele protegia estivesse em melhor estado.
Soaram vozes no fim do corredor. Corremos. A porta de um dos escritórios estava aberta. Na penumbra, Destler achava-se em pé diante de uma janela. Seu rosto se ocultava na escuridão.
— Fique longe de mim — engrolou para Daphne, que segurava um pau pontiagudo na direção do ventre dele.
— Channing tinha razão a seu respeito — disse Daphne, com a voz cheia de desprezo. — E capaz de qualquer coisa para conseguir o que quer. Você tinha de manter seus amigos da Acu-Med satisfeitos, senão o que aconteceria com este brilhante monumento à sua arrogância?
— Eu não a matei — declarou Destler. Entrei na sala e chamei:
— Daphne...
Ela fez um gesto de cabeça na minha direção, mas continuou com o chuço de madeira apontado para Destler, que pediu:
— Tire essa mulher da minha frente. Ela está maluca!
— Vá embora, Peter — pediu Daphne. — Isto nada tem a ver com você.
— Se for um acerto de contas, tem, sim — respondi. — Ele não a matou.
Daphne riu.
— Claro que não, ele não tem colhões para matar.
— Mas não hesitou em destruir a reputação dela depois de morta — observei.
Daphne deu um passo na direção de Destler, com o casaquinho de lã descaído de um dos ombros.
— Pare aí! — gritou Destler. — Tenho um revólver.
— Você? — desdenhou ela. — Você é um monte de lixo. Não passa de um covarde sujo.
Destler poderia ter agarrado a extremidade do pau, mas não o fez. Recuou, ficando mais perto da janela.
Daphne deu-lhe uma estocada, ele enfiou a mão num bolso e pegou alguma coisa. Pude perceber que era um pequeno revólver.
— Destler, largue isso — exortei. — Você vai matar alguém... Daphne sacudiu o chuço de madeira, e Destler saltou para trás, quebrando a vidraça. Um caco de vidro feriu a mão dele, que soltou o revólver. A arma deslizou pelo chão até um canto. Daphne apressou-se a ir pegá-la, enquanto Destler passava correndo por mim e saía da sala. Daphne voltou-se e me enfrentou.
— Saia do meu caminho — ordenou. — Ele não vai me escapar.
— Não precisa matá-lo — respondi, erguendo as mãos com as palmas voltadas para ela. — Sei o que Destler fez. Ele queria destruir a reputação de Channing, com acusações de comportamento profissional execrável e pesquisa desonesta. Mas ele sabia que tudo isso era mentira. E logo todo mundo também irá saber. Ele vai ficar desacreditado, e nenhuma outra instituição médica do mundo o aceitará. Sem seu trabalho, sem seu título, sem a Acu-Med para bancá-lo, você estará mais do que vingada, Daphne.
— Não basta — contrapôs ela. — Destler a desgraçou. — Teve um acesso de tosse seca, fraca. — Destruiu a reputação dela, todo seu brilho, toda sua bondade...
— Ele apenas terminou o que você começou. Foi muito mais fácil para Destler destruir a reputação de Channing depois que você a matou e tentou fazer com que parecesse suicídio.
Daphne recuou. Cacos de vidro rangeram sob seus pés.
— Matá-la? Como eu poderia fazer isso? Eu a amava, ela era como uma filha para mim.
— E Robert era seu marido. Não foi esse o começo? Matá-lo e fazer que parecesse...
— Robert queria morrer. Ele me forçou a matá-lo porque não podia fazê-lo por si só — explicou ela, chorando. — Eu amava Robert. Eu não podia atirar nele. — A voz dela tornou-se lenta, como numa ladainha. — Eu não podia atirar nele...
— Mas pôde atirar em Channing. Isso não lhe diz que algo estranho anda acontecendo com você?
Os olhos de Daphne estavam fixos em mim, velados de sombra, sua boca permanecia aberta.
— Ao fazer com que a morte de Channing parecesse suicídio você se colocou nas mãos deles — prossegui. — Jensen teve como armar para que a pesquisa dela parecesse desonesta, para que seu relacionamento com as pessoas que mais amava parecesse corrompido. E Destler foi em frente, todo feliz. Afinal de contas, Channing se matara, o que parecia comprovar os boatos.
Daphne abraçou a si mesma, trêmula.
— Eu tinha de detê-la. Quem mais poderia fazê-lo?
— Ela queria que você se demitisse, pois achou que não estava no seu normal. Quando você matou Robert... talvez tenha sido suicídio assistido, talvez ele não quisesse morrer, mas só você sabe a verdade... foi que Channing percebeu que alguma coisa estava errada. Era sobre isso que ela e Jensen discutiam na festa de aniversário. Estava disposta a revelar o que sabia se você não se aposentasse.
Os olhos de Daphne cresceram.
— Incompetência perigosa. Como ela se atreveu? O que ela sabia? Fui eu quem lhe ensinou tudo, que a moldei, que fiz dela o que era.
As palavras terminaram em soluços amargos.
— Então matou-a... — acrescentei — e transformou-se num anjo de vingança. Matou Jensen porque ele descobriu que você matara Channing? E agora ia matar Destler... Tudo em nome de proteger a reputação de Channing. Imagino o que ela pensaria de tudo isto.
Soaram passos pesados no corredor e ouviu-se a voz de Destler:
— Eles estão ali. Cuidado que ela tem um revólver. Daphne recuou, aproximando-se da janela quebrada.
Fachos de luz brilhavam no corredor, e os passos se aproximavam. Dois corpulentos seguranças apareceram à porta.
— Parados aí! — ordenou Daphne.
Olhou para a escuridão atrás dela, então voltou-se para encarar os guardas. Uma rajada de vento entrou pela janela quebrada. Daphne passou a mão livre pelo rosto. Com os cabelos em desordem ela lembrava a Medusa.
— Não! — gritou.
Voltou-se como se fosse saltar pela janela, porém Annie deslizara para junto dela, que ergueu o revólver.
— Não! — exclamei.
Daphne virou-se para mim, apontou o revólver para a própria cabeça, depois enfiou-o na boca.
— Não! — repeti, em desespero.
Mas antes que pudesse alcançá-la ela fechou os olhos e apertou o gatilho. Porém houve apenas um clique. Ela tirou a arma da boca e olhou-a, alucinada.. Outro clique.
— Seu maldito covarde! — disse Daphne, olhando para o revólver. Jogou-o longe, quase acertando minha cabeça. — Malditos, fedorentos covardes, todos vocês! — gritou e desabou, amontoando-se no chão.
Annie e eu nos colocamos de cada lado dela.
— Dra. Smythe-Gooding?
Era Jess, que viera com os seguranças.
Daphne ergueu a cabeça, hesitante. No mesmo instante seu rosto tornou-se radiante, sorridente, como se ela experimentasse uma maravilhosa revelação.
— Oh, Channing ! Graças a Deus é você! Jess fitou-me, confusa.
— Sim, claro, sou eu... — respondeu Jess, a voz incerta contradizendo suas palavras.
Levantando-se, Daphne caminhou hesitante, passou por mim e pelos seguranças e chegou perto de Jess.
— Que xale mais lindo! — disse, encantada. — Ele sempre foi meu preferido.
Tocou o lenço que Jess pegara no consultório de Channing.
Abrindo o lenço vermelho e dourado a jovem psiquiatra ajeitou-o nos ombros de Daphne, e ao fazê-lo pareceu reencontrar o próprio equilíbrio.
— Sim... E um xale lindo, e agora você o está usando. Daphne encostou o rosto na seda macia e inalou profundamente. Em seguida segurou Jess por um braço.
— Você precisa defender-se! — disse. — O seu trabalho. Eles estão tentando destruí-la, como fizeram com Robert.
— Robert... — Jess devolveu o nome a ela, suavemente. Endireitando o corpo, Daphne segurou as pontas do lenço com uma das mãos e ajeitou o cabelo com a outra mão.
— Plágio. Absurdo. O trabalho dele era inteiramente original, sua hipótese, brilhante. Ele foi empurrado para fora do caminho, do mesmo modo que estão querendo empurrar você. Mas não vai dar certo porque tudo permanece — colocou um dedo sobre os lábios — ultra-secreto. Não importa se é... se é inconcebível.
Fez uma pausa e torceu o nariz antes de prosseguir.
— Você, falsificando sua pesquisa? Você, tendo um caso com uma residente que supervisiona? — Deu uma risada amarga. — Você, que nem sequer aprovou que eu ajudasse Robert a morrer. Você e sua moral, suas regras... — concentrou o olhar no chão e começou a andar de um lado para outro, continuando a falar, só que com a voz estridente — Você, o árbitro do certo e do errado. Fiquei com tanta raiva! Eu queria matá-la... — Fez uma pausa. — Até sonhei com isso.
— Você não está bem... — começou Jess.
— Por que não pára de me dizer isso? Estou perfeitamente bem. — Daphne tossiu de novo. — Tenho apenas algumas coisinhas a fazer. Preciso detê-los. Destler. Jensen...
Jess tratou de dizer, suavemente:
— Dra. Smythe-Gooding, o dr. Jensen está...
— Oh, minha querida — murmurou Daphne. Depois, com zombeteira seriedade: — Doutora Smythe-Gooding. Não me chama assim desde quando começamos a trabalhar juntas. Lembro-me de como você era brilhante. Como ansiava por aprender. Era incansável, cheia de vida...
Pareceu ficar chocada com as últimas palavras. No silêncio que se fez foi possível ouvir sirenes.
— Também me lembro — disse Jess. — Eram bons tempos. Mas agora tenho um compromisso, e um cliente espera por você... — Jess consultou seu relógio. — Já estamos vinte minutos atrasadas.
A jovem psiquiatra pôs a mão num ombro de Daphne.
— Tire a mão de mim! — reagiu ela, mas não empurrou Jess para longe, e sim abraçou-a. — Que diabo você pensa que está fazendo? Você com sua superioridade e poder... — Deu um suspiro doloroso. — Pensa que sabe o que é certo para todo mundo. Porra de vaca julgadora! Às vezes... — começou a rir, mas a risada tornou-se um rouco grasnido — Às vezes eu quero matar você.
— Eu sei, eu sei — assentiu Jess. — Seu cliente está esperando. Vamos?
Daphne recuou um passo e, com um gesto delicado, afastou uma mecha de cabelos do rosto de Jess.
— Você sempre foi tão bonita... — murmurou.
Três semanas depois a forsítia estava completamente florida. Os galhos esguios dos salgueiros-chorões, ao longo da margem do rio, haviam se tornado cor de vinho chartreuse. Quando o sol nasceu, uma camada de névoa estendeu-se sobre a água como se ela se aquecesse para ficar em paz com o ar. A reforma do Pavilhão Albert fora adiada, se bem que a Acu-Med se houvesse declarado disposta a arcar com as despesas. Pelo jeito, salvar a cara valia qualquer preço.
Numa irônica virada, Chip fora convidado a fazer a defesa de Daphne Smythe-Gooding. Ele telefonou-me para perguntar se ela estava apta a suportar um julgamento. Respondi que não sabia.
— Mas ela ainda praticava psiquiatria e era membro da administração do Pearce no dia em que foi presa — argumentou ele.
— Enquanto Robert esteve presente, ela demonstrou eficiência. Mas com a morte dele, principalmente por causa do modo como o ajudou a morrer, Daphne perdeu o equilíbrio mental. Começou a deslizar ladeira abaixo, agarrando-se à rotina, ao trabalho, mas não conseguiu equilibrar-se. Channing vivia aconselhando-a a se demitir, mas ela se recusava. Então Channing encurralou-a, ameaçando revelar que ela matara Robert.
— Quer dizer que foi um crime por autopreservação.
— Creio que sim. Porém acho que há mais. Acredito que Daphne estivesse tomando altas dosagens de Ativan. É um medicamento para a ansiedade.
— Um antiansiolítico? Não foi o que encontraram na autópsia de Channing Temple?
— Daphne levou-nos a acreditar que Channing estava tomando Ativan, mas não era verdade. Ela colocou uma overdose desse medicamento no chá de Channing.
Fora isso, aliás, que me confundira. O café que Olívia derrubara no chão era de Daphne. O chá é que estava com Ativan, e Daphne removera a caneca antes de a polícia chegar.
— O problema foi — continuei — que Daphne exagerou. Usou medicamento demais e teve de esperar muito para atirar nela. Provavelmente foi uma repetição do que fez para matar Robert. Uma coisa foi preparar a mente para o assassinato... outra, e muito diferente, realizá-lo. Quando Olívia entrou em cena as coisas se complicaram ainda mais.
— Então temos abuso de droga e fraqueza psicológica. É caso de diminuição da capacidade de controle?
Parecia-me que sim.
— Daphne sentiu-se culpada, deprimida, por ter ajudado o marido a cometer suicídio. Passou a ingerir benzoatos cada vez mais, e eles suprimem o REM do sono, suprime os sonhos. Ela aumentou as doses, tornando-se cada vez mais desinibida.
— Desinibida. Está sugerindo que o tempo todo queria matar Channing Temple?
— Num certo sentido, sim. É complicado ser mentor de pessoas amigas. Daphne perdeu Robert e, com ele, a parceria deles, sua maneira de definir a si mesma no mundo. Aí, surgiu a indagação de quem era ela em relação à sua protegida que estava prestes a fazer uma real contribuição à medicina com uma pesquisa e a alcançar um sucesso que Daphne jamais alcançara ou alcançaria. Era inevitável que surgisse a inveja. Em seguida, Channing notou que sua mentora estava decaindo e tentou convencê-la a demitir-se, a se aposentar. Assim, tornou-se uma ameaça ao único caminho na vida que restara a Daphne. O que vemos aqui é o colapso físico de um indivíduo. Entre a culpa de ter matado o marido e o uso crônico de benzodiazepinas, passou a ficar nervosa, insegura. Para compensar, tornou-se rígida e inflexível. Antes uma pessoa organizada, seu consultório tornou-se verdadeira bagunça.
— Parece-me que os remédios que tomava agiam de modo contrário ao que ela precisava — observou Chip.
— Isso mesmo. A mente de Daphne fez um retorno depois que ela matou Channing, transformando-a numa santa. Os psicólogos chamam isso de reação-formação. E um mecanismo de defesa. Por exemplo, pegamos alguma coisa e a transformamos no seu oposto. Digamos que não tivemos promoção no trabalho, então consolamo-nos dizendo a nós mesmos que tudo bem, pois não queríamos mais trabalho. O caso de Daphne é mais extremo; tinha medo de que Channing a superasse e a matou, depois colocou-a num pedestal tornando-a exatamente o que temia que ela se tornasse.
— E por que ela matou Jensen? — quis saber Chip.
— Daphne descobriu que Destler e Jensen iam utilizar o diário de Channing para destruir a reputação dela. Sabia que Jensen se apoderara das anotações das pesquisas do Kutril. Era uma coisa matar sua protegida, outra destruir seu bom nome. Jensen e Destler pareciam determinados a fazer justamente isso.
Indiquei uma psicóloga pára ajudar na defesa.
A vida voltara ao normal no Pearce. Quando entrei na sala das enfermeiras para pegar minha correspondência, Glória sorriu para mim e acenou com uma folha de papel cor-de-rosa como se agitasse a bandeira da vitória.
— Veja a sua correspondência — disse.
Eu recebera o mesmo papel cor-de-rosa. Era um memorando do Departamento de Controle de Padrões Éticos: "Ref.: Reorganização". Li o memo como um press release, pois é o que de fato era. "De maneira a promover maior eficiência de funcionamento, a Seção de Finanças foi reorganizada..." Para encurtar a conversa: as decisões de Destler teriam de ser submetidas a um novo controlador. As responsabilidades financeiras haviam sido redefinidas. Felizmente, menos independência e mais visão futura. No final havia um P.S.: "Arnold Destler, doutor em medicina, decidiu dar maior atenção ao nosso atendimento hospitalar e passou para a Seção de Projetos Especiais".
Projetos Especiais era uma porta de saída constantemente entreaberta no Pearce... Ninguém foi despedido, se bem que eu desconfie que se houvesse alguma demissão não haveria festas de despedida.
— O psicopata — comentou Glória. — Por fim alguém o livrou da própria miséria.
— Sabe o que irá acontecer com Virgínia? — perguntei.
— Ela ficará onde está, secretariando o novo controlador.
— Essa mulher é incrível! — observei. — Toda vez que há um terremoto por aqui ela consegue permanecer intocada.
Verifiquei o resto da minha correspondência. Uma folha amarela anunciava um novo Programa de Educação sobre Ética Médica para todas as equipes do Instituto. Era a primeira iniciativa tomada pelo novo comitê de revisão de padrões éticos de médicos. O DCPE fizera-me um convite para integrar o comitê, mas eu recusara polidamente.
— Estamos determinados a que nunca mais aconteça nada parecido — declarara o controlador.
Tomara. No entanto, se o resto do que havia na minha correspondência eram medidas para evitar tudo ao que ele era contra, iriam ser precisos mais do que um comitê e mais do que um programa de educação sobre ética médica. Havia um catálogo de propaganda de um novo medicamento para a hiperatividade formulado especialmente para crianças abaixo de cinco anos. Com ele vinham vinte e cinco ímãs para geladeira com girafas em pé sobre o nome do remédio.
Além disso, deparei com dois envelopes que pareciam ter sido entregues em mãos — não tinham selos e apresentavam, manuscritas, duas palavras: Dr. Zak. Eram convites; um para um passeio de barco pela baía, e o outro para um jantar no Ritz, oferecido por empresas farmacêuticas empenhadas em um contato pessoal para transmitir suas mensagens.
Por fim, havia um envelope de papel grosso, de primeira, cor de, marfim, contendo um convite impresso. O Primeiro Simpósio Channing Temple sobre Psiquiatria e Ética teria lugar dali a poucos meses. Tratava-se de um memorial perfeito. Jess Dyer seria uma das conferencistas. Ela estava baseando sua residência em pesquisas, a fim de preparar o estudo de Channing sobre o Kutril para publicação.
Verifiquei meu relógio. Atenderia um paciente dali a cinco minutos.
— Vou para a minha sala — avisei Glória.
— Ainda não. Há umas pessoas aqui que vieram falar com você.
Voltei-me. Ali estava Matthew Farrell em companhia de uma jovem que quase não reconheci. O cabelo de Olívia voltara ao loiro natural. Usava saia curta, suéter e um par de desajeitadas botas verdes de combate. Uma loira Olive Oyl com botas verdes.
Ela se aproximou e me abraçou. Era bastante sólida para uma estrutura tão pequena e esguia. Estava usando o medalhão de Channing, preso ao pescoço por uma fita de veludo vermelho.
Estendi a mão para Matthew Farrell. Ele apertou-a com firmeza.
— Como vai seu pai? — perguntei a Olívia.
Eu sabia que Drew havia ido para um centro de reabilitação em Berkshires.
— Já está em casa. Diz que irá ao nonagésimo encontro na AAA em noventa dias. Ele está bem.
— E você, Olívia?
— Limpa — respondeu ela. — Não sou mais uma viciada.
— Ótimo. — Fiz uma pausa para observá-la mais de perto. Pareceu-me que andava dormindo o suficiente. — E quanto ao resto?
Ela sacudiu os ombros.
— Tudo bem.
Eu sabia que ainda não era bem assim.
— Logo ficará bem — garanti.
— Seria muito pior se eu continuasse pensando que ela se matou.
— Sua mãe? Nunca.
— Estou freqüentando a terapeuta que você me recomendou. Ajuda bastante. Ela diz que sou propensa a depressão.
— E?
— Que preciso me monitorar.
— Isso lhe parece certo? Olívia pensou um pouco.
— Sim... eu acho. O que você acha?
— Acho que cada um de nós somos diferentes. Os testes que fizemos demonstraram que você tem certa dificuldade em processar o mundo ao seu redor. Isso significa que quando se encontra em uma situação complicada pode perder a própria profundidade e não ter certeza do que fazer. A parte ruim é que essa confusão pode torná-la ansiosa e fazê-la ficar mal consigo mesma. Sua terapeuta tem razão. Você precisa estar sempre em guarda contra a depressão... pelo menos até descobrir que é apaixonada pela vida.
Continuei:
— Não se esqueça de que tudo isso é inerente à sua idade. Seu corpo está se modificando, seu cérebro está sendo constantemente invadido por hormônios. E natural que os adolescentes experimentem ser pessoas diferentes. Mas desconfio que quando a poeira assentar você terá uma personalidade substancial.
Olívia ficou olhando para os próprios pés. Parecia não ter certeza de como receber o cumprimento. Por fim, disse:
— Eu lhe trouxe uma coisa.
Cutucou Matthew com o cotovelo. Ele me estendeu um pequeno pacote feito com papel azul e amarrado com fita amarela.
— Você não devia... — comecei. Matthew recuou o pacote;
— Não... devia...
Olívia pôs a mão no ombro dele.
— O dr. Zak não está querendo dizer realmente isso. Olhe bem o rosto dele... a boca...
— Sorrindo — murmurou Matthew, estendendo-me de novo o pacote.
— Muito obrigado — e dessa vez eu o aceitei.
Fiquei impressionado com o modo como Olívia estava ajudando Matthew, agindo como intérprete e ao mesmo tempo ensinando-o a interpretar por si mesmo o que via.
— Não vai abrir? — perguntou ela.
Desamarrei a fita e tirei o papel. Era uma moldura. Virei-a. Uma fotografia em preto-e-branco; duas mulheres com vestidos diáfanos, sobre uma rocha em formação. Uma terceira achava-se entrelaçada com os galhos agitados pelo vento de um cipreste que crescia sobre a rocha. Era uma imagem erótica, perturbadora. Estava assinada no canto direito inferior: Annie Brigman, '08.
— Não posso...
— Tem de aceitar. Papai me deu de presente no dia do meu aniversário, e vou lhe dizer a verdade — Olívia ergueu mais o rosto —, não gosto mais do trabalho dela. E sei que você gosta.
Olhei a foto, as jovens mulheres amalgamadas à natureza e desaparecendo.
— Olívia, isto aqui não é você — observei.
— Eu sei. — Ela pareceu surpresa e contente. — Pedi que papai me desse uma câmara fotográfica digital. Estou mais interessada em tirar minhas próprias fotografias do que em colecionar as dos outros.
Despedi-me de Olívia e de Matthew. Levei a foto para a minha sala e pendurei-a acima da minha estante.
Havia alguns recados na secretária eletrônica. Um era da minha mãe, convidando-me para juntar-me a ela e ao sr. Kuppel, o seu amigo que trabalha meio período na nossa videolocadora local. Eles iam assistir a uma retrospectiva de Bete Davis no Cineteatro Brattle. O filme era All About Eve, um rico melodrama em que uma agressiva starlet destrói sua mentora, uma mulher mais velha. Ser mentor de alguém é uma dança complicada que se complica mais quando o mentor enfraquece e o discípulo se fortalece. Erros de conduta, sentimentos magoados, ciúme e inveja são inevitáveis. Na vida real o drama transformara-se numa tragédia dupla.
Retornei a ligação e agradeci à minha mãe, mas tinha outro compromisso, expliquei e desliguei antes que ela perguntasse com quem. Fiquei girando a aliança enquanto verificava na agenda as anotações para aquele dia. Procurava pelo encontro à tardezinha e jantar com Annie. Naquela noite desligaria meu telefone e meu bip. Já saboreava a delícia daqueles momentos com antecipação.
Quando pensei naquele filé grelhado e no vinho cabernet especial que guardara para a ocasião, notei que tirara a aliança. Olhei-a. Lembrei-me de quando Kate a enfiara em meu dedo depois de pronunciarmos os votos de matrimônio. Ela estava radiante, com flores no cabelo e um vestido simples de renda branca com faixa de um rosa-brilhante. Sorri à lembrança. Poucos meses atrás, lembrar disso me trazia apenas dor e sofrimento.
Beijei a aliança e guardei-a no bolso.
[1] KUDZU — Videira oriental (Pueraria lobato). (N. T.)
[2] SWEEPER — Varredor: jogador que, no futebol americano, "varre", ou.seja, obre caminho no meio da defesa para o portador da bola passar. (N.T.)
[3] GRANITA — Bebida gelada, do norte da Itália, principalmente na costa amalfitana, que consta de sorvete de café batido com café forte e coberto com chantily.(N.T.)
[4] CHALLAH — Pão branco de ovos, em tranca, què os judeus costumam comer tradicionalmente no Sabat, feriados c outras ocasiões de cerimônia. (N.T.)
[5] SANS PEUR ET SANS REPROCHE — Em francês no original. Sem temor e sem arrependimento. (N.T.)
[6] AAA — Associação dos Alcoólicos Anônimos. (N.T.)
G. H. Ephron
O melhor da literatura para todos os gostos e idades