Viaje para os mundos onde a magia é tão comum quanto a matemática - e duas vezes mais perigosa em mãos erradas! Neste mundo mágico com vários universos paralelos, um menino mago com nove vidas, Eric Chant (mais conhecido como Gato) começa sua grande aventura. A irmã dele, Gwendolen Chant, é uma bruxinha superdotada, com poderes espantosos, de modo que ela acha muito conveniente ser levada para morar no Castelo Crestomanci. O problema é que Eric não está tão ansioso para isso, pois ainda não conhece o poder que tem e não possui o menor talento para a magia.
Mas a vida com o grande mago e sua família não é o que os dois imaginam que seria, e logo começam as confusões...
Gato Chant tinha muita admiração por sua irmã mais velha, Gwendolen. Ela era bruxa. Ele a admirava e era bastante agarrado a ela. Grandes mudanças aconteceram na vida dos dois e deixaram Gato sem outra pessoa a quem agarrar-se. A primeira grande mudança veio quando os pais os levaram para uma excursão pelo rio, num navio a vapor movido por uma grande roda na popa. Saíram em grande estilo: Gwendolen e a mãe usando vestidos brancos com fitas, Gato e o pai em seus ternos domingueiros de sarja azul, que lhes dava comichões na pele. Era um dia quente. O navio estava apinhado. As pessoas, em suas roupas de domingo, conversavam e riam, comendo moluscos em fatias finas de pão branco com manteiga. O órgão a vapor, ofegante, tocava melodias populares, de modo que as pessoas não conseguiam escutar umas às outras.
Na realidade, o navio levava gente demais e era velho demais. Alguma coisa não deu certo na pilotagem e toda aquela multidão de gente em suas melhores roupas domingueiras rindo e comendo moluscos foi arrastada pela correnteza da barragem. O navio colidiu com uma das traves que supostamente serviam para impedir que as pessoas fossem arrastadas, e, por ser velho, simplesmente fez-se em pedaços. Gato lembrava-se do órgão tocando e das pás da grande roda girando no céu azul. Nuvens de vapor escapavam ruidosamente dos canos quebrados e abafavam os gritos da multidão, enquanto todas as pessoas a bordo eram varridas para o outro lado da barragem.
Foi um acidente horrível. Os jornais denominaram-no "O Desastre do Saucy Nancy". As mulheres, com suas roupas pesadas, não conseguiam nadar. Os homens, em seus ternos de sarja azul apertados, estavam em situação um pouquinho melhor. Gwendolen, porém, era bruxa, de modo que não se afogou. E Gato, que se abraçara a Gwendolen quando o barco atingiu a trave, escapou também. Os sobreviventes foram pouquíssimos.
Todo o país ficou chocado. A empresa proprietária do navio e a Prefeitura de Wolvercote dividiram as despesas dos funerais. Gwendolen e Gato ganharam pesados trajes de luto, pagas com dinheiro público, e acompanharam a procissão de carros fúnebres numa carruagem puxada por cavalos negros com plumas negras na cabeça. Os outros sobreviventes também compareceram. Gato olhava para eles a perguntar-se se seriam bruxas e bruxos, mas nunca chegou a descobrir. O Prefeito de Wolvercote havia criado um Fundo para os sobreviventes; chegava dinheiro de todo o país. Todos os outros sobreviventes pegaram a sua parte e foram começar vida nova em outro lugar; só restaram Gwendolen e Gato, e, como ninguém conseguira encontrar algum parente deles, continuaram em Wolvercote.
Durante algum tempo eles foram célebres. Todos mostraram-se muito bondosos. Todo o mundo comentava sobre os lindos orfãozinhos. De fato, eles eram mesmo lindos. Ambos eram louros, de pele clara e olhos azuis, e as roupas pretas lhes caíam bem. Gwendolen era muito bonitinha - e alta, para a idade que tinha. Gato era pequeno para a sua idade. Gwendolen era muito maternal para com ele, e isso deixava as pessoas comovidas.
Gato não se importava com a celebridade. Aquilo compensava um pouco o seu estado de espírito vazio e perdido. As damas davam-lhe bolo e brinquedos. Os Conselheiros Municipais vinham perguntar como ele se sentia; e o Prefeito o visitava e lhe dava tapinhas carinhosos na cabeça. O Prefeito explicou que o dinheiro do Fundo seria colocado num banco até que eles crescessem. Enquanto isso, a municipalidade custearia sua criação e sua educação.
- E onde vocês gostariam de morar, amiguinhos? - ele perguntou com bondade.
Gwendolen disse imediatamente que a velha Sra. Sharp, do andar de baixo, oferecera-se para ficar com eles.
- Ela sempre foi muito boa conosco - a menina explicou. - Adoraríamos morar com ela.
A Sra. Sharp tinha sido mesmo muito bondosa. Ela também era bruxa - o cartaz na janela da sua sala de visitas dizia "Bruxa Registrada" - e se interessava por Gwendolen. O Prefeito hesitou; como todas as pessoas que não tinham dons de bruxaria, ele não aprovava aqueles que os possuíam. Perguntou a Gato como ele se sentia a respeito desse plano de Gwendolen. Gato não se importava; até preferia morar na casa onde estava acostumado, mesmo que fosse no andar de baixo. Como o Prefeito achava que era preciso fazer o possível para que os dois órfãos ficassem felizes, concordou. Gwendolen e Gato mudaram-se para a casa da Sra. Sharp.
Rememorando esse episódio, Gato acreditava que foi daí em diante que ele teve a certeza de que Gwendolen era bruxa. Antes, não estava tão certo. Quando perguntara aos pais, eles haviam balançado a cabeça, suspirando e assumindo um ar infeliz. Gato ficara confuso, pois se lembrava do problema terrível que houve quando Gwendolen lhe deu eólicas. Ele não entendia como os pais poderiam culpar Gwendolen por isso se ela não fosse realmente bruxa. Mas tudo isso agora havia mudado; a Sra. Sharp não fazia segredo do fato.
- Você tem um verdadeiro talento para a magia, queridinha - dizia, sorrindo para Gwendolen. - E eu não estaria sendo justa com você se deixasse ele ser desperdiçado. Temos que lhe arranjar um mestre imediatamente. Para começar, não seria mal se você procurasse o Sr. Nostrum, na casa ao lado. Ele pode ser o pior necromante da cidade, mas sabe ensinar. Vai lhe dar uma boa base, meu bem.
O preço que o Sr. Nostrum cobrava para ensinar magia era de uma libra esterlina por hora no Curso Básico e, depois, um guinéu por hora no Curso Avançado. Um pouco caro, como declarou a Sra. Sharp. Ela colocou o seu melhor chapéu, que era coberto de continhas pretas, e correu à Prefeitura, para ver se o Fundo pagaria as aulas de Gwendolen.
Para sua contrariedade, o Prefeito recusou. Ele disse à Sra. Sharp que bruxaria não fazia parte de uma educação normal. A Sra. Sharp chegou de volta chacoalhando as contas do chapéu em sua irritação, trazendo uma caixa de papelão que o Prefeito lhe dera, cheia de miudezas que as bondosas damas tinham recolhido ao limparem o quarto de dormir dos pais de Gwendolen.
- Quanto preconceito! - exclamou a Sra. Sharp, deixando a caixa sobre a mesa da cozinha. - Se uma pessoa possui um dom, tem o direito de desenvolver isso, e foi o que eu disse a ele! Mas não se preocupe, meu bem. Há jeito para tudo -continuou ela, vendo que Gwendolen parecia decididamente revoltada. - O Sr. Nostrum aceitaria ensinar-lhe de graça, se conseguirmos encontrar a coisa certa para usarmos como isca. Vamos dar uma olhada nesta caixa; pode ser que os seus pais, coitados, tenham deixado alguma coisa que poderia servir certinho.
Assim dizendo, a Sra. Sharp derramou sobre a mesa o conteúdo da caixa. Era uma estranha coleção de objetos - cartas, rendas, lembranças. Gato não se lembrava de metade daquelas coisas. Havia uma certidão de casamento declarando que Francis John Chant desposara Caroline May Chant 12 anos antes na Igreja de Santa Margaret, em Wolvercote, e um buquê de flores secas que a noiva provavelmente levou durante a cerimônia. Debaixo dessas coisas o menino encontrou um par de brincos cintilantes que ele nunca vira a mãe usar.
O chapéu da Sra. Sharp chacoalhou quando ela inclinou-se rapidamente sobre eles.
- São brincos de diamante! - exclamou. - A mãe de vocês deve ter tido dinheiro! Ora, se eu mostrar estes brincos ao Sr. Nostrum... Mas eles renderiam mais se eu levasse para o Sr. Larkins.
O Sr. Larkins era o dono da loja de quinquilharias na esquina - só que nem sempre eram quinquilharias. Entre os apetrechos de lareira feitos de bronze e as peças de louça rachadas, podia-se encontrar coisas bastante valiosas, e também um cartaz discreto dizendo "Mercadorias Exóticas" - o que significava que o Sr. Larkins também vendia asas de morcego, salamandras secas e outros ingredientes de magia. Não havia dúvida de que o Sr. Larkins ficaria muito interessado em um par de brincos de diamantes. A Sra. Sharp arregalou os olhos gulosos e saltados, enquanto estendia a mão para pegar os brincos.
Gwendolen estendeu a mão para eles ao mesmo tempo. Não disse coisa alguma; tampouco a Sra. Sharp. Ambas ficaram com a mão parada no ar. Houve a sensação de um embate feroz e invisível, então a Sra. Sharp retirou sua mão.
- Obrigada - disse Gwendolen em tom frio, guardando os brincos no bolso do seu vestido preto.
- Entende o que quero dizer? - perguntou a Sra. Sharp, aceitando a situação. - Você tem talento de verdade, meu bem!
Ela voltou a remexer nas coisas dentro da caixa. Achou um cachimbo velho, algumas fitas, um raminho de urze seca, cardápios, entradas para concertos e, finalmente, um maço de cartas velhas. Deslizou o polegar pela borda do maço.
- Cartas de amor - declarou. - Dele para ela. Pousou o maço sem olhar para ele e pegou outro maço de cartas. - Dela para ele. Inúteis.
Gato, observando o polegar largo e roxo da Sra. Sharp deslizar por um terceiro maço de cartas, concluiu que ser bruxa devia economizar muito tempo.
- Cartas de negócios - informou a Sra. Sharp. Seu polegar estacou e novamente tornou a subir pelo maço. - Ora, que é que temos aqui?
Ela desenrolou a faixa cor-de-rosa que envolvia o maço e cuidadosamente retirou três cartas. Desdobrou-as.
- Crestomanci! - exclamou.
Mal acabou de pronunciar essa palavra, cobriu a boca com a mão, pondo-se a resmungar por trás dela. Tinha o rosto vermelho. Gato via que ela estava ao mesmo tempo surpresa, assustada e cobiçosa.
- Ora, que é que ele estava querendo ao escrever para o pai de vocês? - perguntou, assim que se recuperou.
- Vamos ver - disse Gwendolen.
A Sra. Sharp colocou as três cartas abertas sobre a mesa da cozinha, e Gwendolen e Gato inclinaram-se sobre elas. A primeira coisa que impressionou Gato foi a energia da assinatura em todas as três:
A próxima coisa que ele viu foi que duas das cartas eram escritas com a mesma caligrafia poderosa da assinatura. A primeira era datada de 12 anos antes, logo depois do casamento dos pais. Dizia:
Caro Frank:
Agora, não vá encher-se de arrogância. Só ofereci porque achei que teria condições de ajudar. Ainda pretendo ajudá-lo, da maneira que puder, se você me disser o que posso fazer. Sinto que você tem direito a isso. Sinceramente, Crestomanci
A segunda carta era ainda mais curta:
Caro Chant:
O mesmo para você. Vá para o inferno, Crestomanci
A terceira carta era datada de seis anos antes, e fora escrita por outra pessoa. Crestomanci limitara-se a assiná-la.
Senhor,
Há seis anos o senhor foi avisado de que algo como isso que o senhor relata poderia acontecer, e o senhor deixou bem claro que não desejava ajuda de minha parte. Não estamos interessados nos seus problemas.
E isto aqui não é uma instituição de caridade, Crestomanci
- Que será que o pai de vocês disse a ele? - perguntou-se a Sra. Sharp, entre curiosa e temerosa. - Bom... Que é que você acha, meu bem?
Gwendolen estendeu as mãos sobre as cartas, como se quisesse aquecer-se sobre um fogo. Os dedos mindinhos de ambas as mãos estremeceram.
- Não sei. Elas dão a sensação de serem importantes, especialmente a primeira e a última. Muito importantes.
- Quem é Crestomanci? - Gato perguntou. Era um nome difícil de pronunciar. Ele fez isso por partes, tentando lembrar-se do modo como a Sra. Sharp o dissera: CRES-TO-MAN-CI. - É assim que se pronuncia? - quis saber.
- Sim, é isso mesmo, e não interessa quem ele é, meu bem -respondeu a Sra. Sharp. - E importante é uma palavra fraca para isso, queridinho. Gostaria de saber o que seu pai disse. Alguma coisa que poucas pessoas ousariam dizer, pelo que parece. E veja o que ganhou em troca! Três assinaturas genuínas! O Sr. Nostrum daria os olhos da cara por elas, queridinha. Ah, você tem sorte! Ele vai ensinar-lhe em troca disto, ora se vai! Qualquer necromante deste país faria isso. 1
Cheia de entusiasmo, a Sra. Sharp pôs-se a recolocar as coisas dentro da caixa.
- Que é que temos aqui? - perguntou de repente. Uma carteira de fósforos de papel caíra do meio do maço das cartas de negócios. A Sra. Sharp abriu-a cuidadosamente. Continha menos do que a metade dos frágeis fósforos de papelão. E três deles haviam queimado sem terem sido arrancados da carteira. O terceiro estava tão queimado que Gato imaginou que ele tivesse incendiado os outros dois.
- Hum... - fez a Sra. Sharp. - Acho que é melhor você guardar isto, meu bem.
Passou a carteira de fósforos para Gwendolen, que a colocou no bolso do vestido junto com os brincos.
- E que tal você ficar com isto, meu querido? - a Sra. Sharp disse a Gato, lembrando-se de que ele também tinha direito.
Deu-lhe o raminho de urzes brancas. Gato usou-o na lapela até ele desmanchar-se.
Morando com a Sra. Sharp, Gwendolen aparentava florescer. Os cabelos pareciam de um ouro mais brilhante, os olhos, de um azul mais profundo, e todo o seu jeito era feliz e confiante. Talvez Gato tenha se encolhido um pouco para dar-lhe espaço - ele não sabia. Tampouco ele estava infeliz; a Sra. Sharp era tão boa para ele quanto para Gwendolen. Os Conselheiros Municipais e suas esposas vinham visitá-lo várias vezes por semana; entravam na sala de visitas e lhe faziam festinhas na cabeça. Gwendolen e ele foram mandados para a melhor escola de Wolvercote.
Gato era feliz ali. A única coisa ruim era que ele era canhoto, e os professores sempre o castigavam se o pegavam escrevendo com a mão esquerda. Mas haviam agido assim em todas as escolas que Gato já freqüentara, e ele estava acostumado com isso. Tinha dúzias de amigos; ainda assim, bem no fundo se sentia perdido e solitário. De modo que se agarrava a Gwendolen, pois ela era a única família que ele tinha.
Gwendolen muitas vezes mostrava-se impaciente com ele, embora em geral estivesse ocupada demais e feliz demais para ficar irritada de verdade. "Me deixe em paz, Gato", dizia, "senão... ". Ela então guardava seus cadernos num estojo de música e corria para a casa vizinha, para mais uma aula com o Sr. Nostrum.
O Sr. Nostrum ficou contentíssimo em dar aulas a Gwendolen em troca das cartas. A Sra. Sharp deu-lhe uma de cada vez, no final de cada série, começando pela última.
- Não vou dar todas de uma vez, ele pode ficar cobiçoso -explicou. - E vamos deixar a melhor por último.
O progresso de Gwendolen era excelente. Ela era, na realidade, uma bruxa tão promissora que não fez as provas da primeira série, passando logo para a segunda. Logo depois do Natal, cursou a terceira e a quarta séries juntas, e no verão seguinte estava iniciando Magia Avançada. O Sr. Nostrum considerava-a a sua aluna predileta - como informou à Sra. Sharp por cima do muro - e Gwendolen sempre voltava das aulas dele feliz, dourada e cintilante. Ela ia à casa do Sr. Nostrum duas noites por semana, com seu estojo de magia debaixo do braço, como as outras pessoas vão para uma aula de música. Aliás, foram aulas de música que a Sra. Sharp declarou que ela estava tendo, nos registros que mantinha para o Conselho Municipal. Como o Sr. Nostrum não era pago, a não ser com as cartas, Gato achava isso uma desonestidade da Sra. Sharp.
- Tenho que guardar alguma coisa para a minha velhice
- disse-lhe a Sra. Sharp em tom irritado. - Não sobra grande coisa para mim do dinheiro de manter vocês, não é mesmo? E não posso confiar que a sua irmã vá se lembrar de mim quando estiver crescida e famosa. Ah, meu bem, não tenho essa ilusão!
Gato sabia que a Sra. Sharp provavelmente tinha razão. E sentia um pouco de pena dela, pois certamente fora muito bondosa, e ele sabia, a essa altura, que ela própria não era uma bruxa muito eficiente. Na realidade, sendo uma Bruxa Registrada, conforme proclamava o cartaz na janela da sala de visitas da Sra. Sharp, ela pertencia à categoria mais elementar. As pessoas só vinham procurar feitiços com a Sra. Sharp quando não tinham dinheiro para procurar as três Bruxas Autorizadas que moravam na mesma rua. A Sra. Sharp aumentava seus rendimentos atuando como agente para o Sr. Larkins da loja de quinquilharias. Fornecia-lhe Mercadorias Exóticas - isto é, os ingredientes mais estranhos necessários aos feitiços - de lugares tão distantes quanto Londres. Tinha muito orgulho de seus contatos em Londres. Costumava dizer a Gwendolen:
- Ah, sim, tenho contatos, se tenho. Conheço quem consegue me arranjar uma boa quantidade de sangue de dragão sempre que eu quiser, por mais ilegal que seja. Enquanto você me tiver, não passará necessidade.
Apesar de não ter ilusões quanto a Gwendolen, a Sra. Sharp talvez acalentasse mesmo a esperança de tornar-se sua empresária quando a menina crescesse. Gato imaginava isso. E sentia pena da Sra. Sharp: ele tinha certeza de que Gwendolen ia descartar-se dela como de um casaco velho, quando ficasse famosa - pois, assim como a Sra. Sharp, Gato não tinha dúvida alguma de que Gwendolen ficaria famosa. Portanto disse:
- Mas eu estarei aqui para cuidar da senhora.
Essa idéia não lhe agradava muito, mas ele achava que devia dizer isso.
A Sra. Sharp ficou emocionada e grata. Como recompensa, providenciou para que Gato tivesse aulas de música de verdade.
- Então esse Prefeito não vai ter do que reclamar - ela disse. Acreditava em matar dois coelhos com uma só cajadada.
Gato começou a aprender a tocar violino. Achava que estava fazendo grande progresso. Estudava com dedicação e nunca conseguiu entender por que as pessoas que tinham se mudado para o andar de cima batiam no chão quando ele começava a tocar. A Sra. Sharp, que tinha um péssimo ouvido para música, ficava a assentir com a cabeça e sorrir quando ele tocava, e o incentivava muito.
Certa noite, ele estava ensaiando violino quando Gwendolen entrou de supetão e gritou-lhe um feitiço em tom esganiçado. Gato descobriu-se, para sua consternação, segurando pelo rabo um gato enorme e listrado. A cabeça do gato estava aninhada sob o queixo do garoto, que roçava as costas do animal com o arco do violino. Deixou-o cair apressadamente. Mesmo assim o gato mordeu-lhe o pescoço sob o queixo e deu-lhe arranhões dolorosos.
- Por que fez isto? - perguntou.
O gato tinha o corpo arqueado e o encarava com raiva.
- Porque o barulho que você fazia era exatamente igual ao que ele faz! - Gwendolen declarou. - Eu não conseguiria agüentar nem mais um instante. Venha cá, gatinho!
O gato também não gostou de Gwendolen e arranhou a mão que ela lhe estendeu. Gwendolen deu-lhe um tapa. O gato correu, perseguido por Gato, que gritava:
- Peguem esse gato! E o meu violino, segurem!
Mas o gato escapou, e aquele foi o fim das aulas de violino.
A Sra. Sharp ficou impressionada com aquela demonstração do talento de Gwendolen; subiu numa cadeira no quintal e contou tudo ao Sr. Nostrum por cima do muro. Dali a história espalhou-se para cada bruxa e cada necromante dos arredores.
Aquela vizinhança era cheia de bruxaria, pois as pessoas do mesmo ramo tendem a agrupar-se. Se Gato saísse pela porta da frente da casa da Sra. Sharp na Rua Sabá e virasse para a direita, passaria por vários cartazes: além daquele das três "Bruxas Autorizadas", havia dois de "Faz-se Magia Negra", um de "Profeta", um de "Adivinho" e um de "Bruxo As Suas Ordens". Se virasse para a esquerda, passaria por um cartaz de "Sr. HENRY NOSTRUM, A. R. C. M. - Aulas de Necromancia", por um de "Cartomante", um de "Bruxaria para Todos os Fins", um de "Clarividente" e, finalmente, pela loja do Sr. Larkins. Nessa rua, e em várias ruas ao redor, o ar era impregnado pelo odor da magia em ação.
Todas aquelas pessoas tinham um interesse profundo e amigável em Gwendolen. A história do gato impressionou-as imensamente. Fizeram da criatura um animal de estimação -que, naturalmente, se chamava Rabeca. Embora o gato continuasse mal-humorado, ardiloso e hostil, nunca passou sem comida. E Gwendolen tornou-se para a vizinhança um animalzinho de maior estimação ainda. O Sr. Larkins dava-lhe presentes; o Bruxo Às Suas Ordens, que era um rapaz musculoso e sempre de barba por fazer, surgia à porta da sua casa cada vez que via Gwendolen passar, e lhe deu de presente um olho-de-boi. As diversas bruxas estavam sempre buscando feitiços simples para ela fazer.
Gwendolen zombava daqueles feitiços:
- Eles pensam que sou um bebê ou coisa parecida? Já passei quilômetros dessa fase - dizia, descartando o feitiço mais recente.
A Sra. Sharp, que aceitava com prazer qualquer ajuda à sua bruxaria, em geral recolhia cuidadosamente o feitiço e o escondia. Porém uma ou duas vezes Gato encontrou um ou outro feitiço jogado por lá. Então não conseguia resistir, e o experimentava. Gostaria de ter só um pouco dos poderes de Gwendolen. Acalentava sempre a esperança de que o seu dom fosse daqueles que tardavam em se desenvolver, e de que algum dia um feitiço seu funcionasse. Mas nunca funcionaram - nem mesmo aquele que lhe agradava particularmente, usado para transformar botões de cobre em ouro.
Os diversos cartomantes também davam presentes a Gwendolen. Ela ganhou uma velha bola de cristal do Adivinho e um baralho de cartas do Profeta. O cartomante leu o seu futuro; Gwendolen saiu de lá exultante.
- Vou ficar famosa! Ele disse que eu poderia governar o mundo, se agir da maneira certa! - contou a Gato.
Embora Gato não duvidasse de que Gwendolen ficaria famosa, não conseguia entender como ela poderia governar o mundo, e lhe disse isso.
- Mesmo que se casasse com o Rei, você só governaria um país - ele objetou. - E o Príncipe de Gales casou-se no ano passado.
- Existem outras maneiras de governar além dessa, seu burro!
- Gwendolen retrucou. - Para começar, o Sr. Nostrum tem um monte de idéias para mim. Bom, é claro que existem algumas dificuldades. Há uma mudança para pior que eu preciso ultrapassar, e um Desconhecido Moreno dominante. Mas quando ele me disse que eu poderia governar o mundo, meus dedos todos tremeram, por isso sei que é verdade!
Parecia não haver limite para a exultante confiança de Gwendolen.
No dia seguinte, a Srta. Larkins, Clarividente, convidou Gato para ir à sua casa e ofereceu-se para ler a sorte dele também.
Gato tinha medo da Srta. Larkins. Ela era filha do Sr. Larkins, da loja de quinquilharias. Era jovem, bonita e ferozmente ruiva. Usava a cabeleira vermelha empilhada num coque no alto da cabeça, e dele escapavam cachos que se emaranhavam, causando um belo efeito, nos brincos de argolas que mais pareciam poleiros de papagaio. A Srta. Larkins tinha muito talento como clarividente e, até o caso do gato tornar-se conhecido, era a preferida da vizinhança. Gato lembrava-se de que até sua mãe dava presentes à Srta. Larkins. Ele sabia que a Srta. Larkins estava se oferecendo para ler a sua sorte por puro ciúme de Gwendolen.
- Não, muito obrigado - respondeu, recuando para longe da mesinha da Srta. Larkins, coberta de objetos de adivinhação. - Está tudo bem. Não quero ficar sabendo.
Mas a Srta. Larkins avançou para ele e agarrou-o pelos ombros. Gato tentou desvencilhar-se. A Srta. Larkins usava um perfume que gritava VIOLETAS! na cara dele, seus brincos balançavam-se como algemas e seu corpete estalava, quem estava perto dela conseguia ouvir.
- Ora, menino bobinho! - disse a Srta. Larkins em sua voz rica e melodiosa. - Não vou machucar você. Só quero saber.
- Mas... mas eu não quero - retrucou Gato, contorcendo o corpo para um lado e para o outro.
- Fique parado - a Srta. Larkins ordenou, e tentou olhar bem no fundo dos olhos de Gato.
Gato depressa fechou os olhos. Tentou desvencilhar-se, fazendo um esforço ainda maior. Poderia ter conseguido escapar, se a Srta. Larkins não tivesse entrado abruptamente numa espécie de transe. Gato encontrou-se agarrado por ela com uma força que o teria deixado surpreso até mesmo se viesse do Bruxo Às Suas Ordens; abriu os olhos e viu a Srta. Larkins a encará-lo com um olhar vazio. O corpo dela tremia e o corpete estalava como uma porta velha balançando ao vento.
- Ah, me solte, por favor! - Gato exclamou.
Mas a Srta. Larkins parecia não ouvir. Gato segurou os dedos que lhe agarravam os ombros e tentou erguê-los, para libertar-se; não conseguiu movê-los. Depois disso, a única coisa que pôde fazer foi ficar contemplando, sem ação, o rosto inexpressivo da Srta. Larkins.
A Srta. Larkins abriu a boca e dela saiu uma voz bem diferente. Era uma voz de homem, animada e bondosa.
- Você tirou um peso da minha mente, rapaz - ela disse. Parecia satisfeita. - Agora uma grande mudança virá para você. Mas foi terrivelmente descuidado: quatro já foram, e só restam
cinco. Tem que tomar mais cuidado. Está correndo perigo que vem de pelo menos duas direções, sabia?
A voz calou-se. A essa altura, Gato estava tão apavorado que não ousava mexer-se. Pôde apenas ficar esperando até que a Srta. Larkins voltou a si, bocejou e soltou-o, para poder esconder elegantemente a boca com uma das mãos.
- Pronto - disse, em sua voz normal. - Foi isso. Que foi que eu disse?
Gato ficou todo arrepiado quando percebeu que a Srta. Larkins não tinha a menor idéia do que havia dito. Tudo o que ele queria fazer era fugir dali. Disparou em direção à porta.
A Srta. Larkins saiu em sua perseguição, agarrou-o pelos braços outra vez e sacudiu-o.
- Fale! Fale! Que foi que eu disse? - Ela o sacudia com tamanha violência que seus cabelos ruivos se soltaram do coque. Seu corpete soava como lenha estalando no fogo. Ela estava aterradora. - Que voz eu usei? - exigiu saber.
- Uma... Uma voz de homem - gaguejou Gato. - Parecia boazinha, mas séria.
A Srta. Larkins mostrou-se atônita.
- Um homem? Não foi Bobby, ou Doddo... Quer dizer, não foi uma voz de criança?
- Não - confirmou Gato.
- Que coisa mais estranha! - a Srta. Larkins exclamou. - Nunca utilizo um homem. Que foi que ele disse?
Gato repetiu o que a voz dissera. Achava que nunca esqueceria aquilo, mesmo que vivesse até os 90 anos.
Sentiu um certo consolo ao perceber que a Srta. Larkins ficou tão perplexa quanto ele.
- Bom, imagino que seja um aviso - ela disse, em tom hesitante. Parecia também decepcionada. - E nada mais? Nada sobre a sua irmã?
- Não, nada - Gato afirmou.
- Ora, bem, então nada feito - disse a Srta. Larkins em tom descontente, soltando Gato para ajeitar o penteado.
Assim que ela ficou com ambas as mãos ocupadas prendendo o coque, Gato fugiu correndo. Disparou pela rua, sentindo-se muito perturbado.
E foi surpreendido por mais duas pessoas, quase ao mesmo tempo.
- Ah, eis o jovem Eric Chant - disse o Sr. Nostrum, avançando pela calçada. - Você conhece meu irmão William, não conhece, jovem Gato?
Gato mais uma vez viu-se agarrado por um braço. Tentou sorrir. Não que o Sr. Nostrum lhe desagradasse; o caso era, simplesmente, que o Sr. Nostrum sempre falava com aquele tom brincalhão e o chamava de "Jovem Chant" várias vezes, o que lhe tornava difícil conversar com o Sr. Nostrum. O Sr. Nostrum era pequeno e gorducho, com duas asas de cabelos grisalhos. Tinha também um desvio no olho esquerdo, que sempre olhava para o lado. Gato achava que isso aumentava a dificuldade de conversar com o Sr. Nostrum: ele estaria olhando e escutando, ou a sua atenção estava em outro lugar, juntamente com aquele olho errante?
- E... Já conheço o seu irmão - Gato lembrou ao Sr. Nostrum. O Sr. William Nostrum vinha regularmente visitar o irmão;
Gato o via quase que uma vez por mês. Era um mago com boa situação financeira e uma grande clientela em Eastbourne. A Sra. Sharp afirmava que o Sr. Henry Nostrum se aproveitava do irmão mais rico, tanto em questões de dinheiro quanto de feitiços eficazes.
Fosse qual fosse a verdade disso, Gato achava ainda mais difícil conversar com o Sr. William Nostrum do que com o irmão dele. Era ainda mais gordo do que o Sr. Henry e estava sempre de paletó preto e calça listrada, com uma enorme corrente de relógio de prata por cima do colete roliço. Fora isso, era o retrato do Sr. Henry Nostrum, à exceção dos olhos, que eram ambos vesgos. Gato sempre se perguntava como o Sr. William conseguia enxergar alguma coisa.
- Como vai, senhor? - disse-lhe educadamente.
- Muito bem - respondeu o Sr. William numa voz rouca e melancólica, como se o contrário fosse verdade.
O Sr. Henry Nostrum olhou para ele em tom de desculpas.
- O caso, jovem Chant, é que tivemos um pequeno problema - explicou. - Meu irmão está contrariado. - Baixou a voz, e seu olho errante errou por todo o lado direito de Gato. - E sobre aquelas cartas de... Você Sabe Quem. Não conseguimos descobrir coisa alguma. Parece que Gwendolen também não sabe. E você, jovem Chant, por acaso sabe por que seu estimado e saudoso pai era conhecido do... do... vamos chamá-lo de Respeitável Personagem que as assinou?
- Não faço a menor idéia, infelizmente - disse Gato.
- Poderia ser algum parente? - sugeriu o Sr. Henry Nostrum. - Chant é uma família tradicional.
- Tradicional e extinta, também. Não temos parentes - respondeu Gato.
- Mas... quanto à sua querida mãe? - persistiu o Sr. Nostrum, com o olho vesgo perambulando, enquanto seu irmão conseguia fixar o olhar melancólico no chão e nos telhados ao mesmo tempo.
- Dá para ver que o pobre garoto nada sabe, Henry - interpôs o Sr. William. - Duvido que ele seja capaz de nos dizer o sobrenome de solteira da sua querida mãe.
- Ah, isso eu sei - Gato afirmou. - Está na certidão de casamento. O sobrenome dela era Chant também.
- Bizarro - disse o Sr. Nostrum, girando um olho para o irmão.
- Bizarro e estranhamente inútil - concordou o Sr. William. Gato queria ir embora. Sentia que já tinha ouvido perguntas
esdrúxulas em quantidade suficiente até o Natal. Então sugeriu:
- Bom, se vocês têm tanta vontade assim de ficar sabendo, por que não escrevem para perguntar ao Sr.... hum... Sr. Cres...
- Psiu! - fez o Sr. Henry Nostrum com violência.
- O Respeitável Personagem, é o que quero dizer - Gato corrigiu, olhando alarmado para o Sr. William.
Os olhos do Sr. William tinham ido diretamente para os lados do seu rosto. Gato temia que ele pudesse estar entrando em transe, como a Srta. Larkins.
- Será suficiente, Henry, será suficiente! - exclamou o Sr. William. E, num gesto triunfal, ergueu a corrente de prata pousada sobre sua barriga e sacudiu-a. - Então será pela prata! - exclamou.
- Fico contente - disse Gato educadamente. - Agora tenho que ir.
Ele desceu correndo a rua, o mais rápido que conseguiu. Quando saiu de casa, naquela mesma tarde, teve o cuidado de virar para a direita e sair da Rua Sabá passando pela casa do Bruxo Às Suas Ordens. Aquilo era uma complicação, pois teria que dar uma grande volta para chegar até onde morava a maioria dos seus amigos, mas qualquer coisa era melhor do que encontrar de novo a Srta. Larkins ou os irmãos Nostrum. Aquilo quase que era suficiente para fazer Gato desejar que as aulas já houvessem recomeçado.
Quando Gato chegou a casa, naquela noite, Gwendolen acabara de chegar da sua aula com o Sr. Nostrum. Mostrava sua costumeira expressão feliz e exultante, mas parecia também misteriosa e importante.
- Foi uma boa idéia, a sua, de escrever para Crestomanci -disse a Gato. - Não entendo como não pensei nisso. De qualquer modo, foi o que acabei de fazer.
- Por que fez isso? O Sr. Nostrum não podia escrever? -Gato perguntou.
- Vindo de mim, seria mais natural - Gwendolen explicou. - E acho que não tem importância ele ficar com a minha assinatura. O Sr. Nostrum me ditou o que escrever.
- Afinal, por que ele tem tanto interesse nisso? - Gato perguntou.
- Ah, você bem que gostaria se saber, não é? - Gwendolen respondeu em tom satisfeito.
- Não gostaria, não - disse Gato.
Como isso lembrou-lhe as coisas que haviam acontecido naquela manha e que ainda quase lhe davam vontade de que o semestre do outono já houvesse começado, o menino acrescentou:
- Eu queria que as favas estivessem maduras...
- Favas? - Gwendolen repetiu, com o maior desprezo. - Que mente infantil você tem! Elas só estarão no ponto daqui a umas boas seis semanas.
- Sei disso - retrucou Gato.
Nos dois dias seguintes, ele fez questão de virar para a direita toda vez que saía de casa.
Foram dois dias lindos e ensolarados, como costuma acontecer quando agosto está passando para setembro. Gato e seus amigos saíram para brincar na margem do rio. No segundo dia, encontraram um muro e subiram nele. Do outro lado havia um pomar, e ali tiveram a sorte de encontrar uma árvore carregada de doces maçãs brancas, do tipo que amadurece cedo. Encheram os bolsos e os chapéus. Então um jardineiro furioso correu atrás deles brandindo um ancinho e eles fugiram.
Gato sentia-se muito feliz por estar levando para casa o seu. chapéu recheado e disforme com tantas maçãs, pois a Sra. Sharp adorava essa fruta.2 Ele só desejava que ela não o recompensasse fazendo biscoitos de gengibre. Em geral, os biscoitos em forma de homenzinhos eram divertidos. Eles pulavam do prato e saíam correndo quando se tentava comê-los, de modo que quando finalmente a pessoa os pegava, sentia-se justificada em devorá-los; era uma luta justa, e alguns escapavam. Mas os bonequinhos de gengibre da Sra. Sharp nunca faziam isso. Simplesmente ficavam deitados, sacudindo debilmente os braços, e Gato nunca tinha coragem de comê-los.
Gato estava tão entretido pensando em tudo isso que, embora tivesse percebido uma caleça de quatro rodas parada na rua quando ele virou a esquina da casa do Bruxo Às Suas Ordens, não deu atenção ao fato. Entrou pela porta lateral e irrompeu na cozinha, carregando seu chapéu cheio de maçãs e gritando:
- Pronto! Veja o que eu trouxe, Sra. Sharp!
A Sra. Sharp não estava lá. Em seu lugar, parado no meio da cozinha, ele encontrou um homem alto, vestido de maneira extraordinária.
Gato estudou-o com certo temor. Era obviamente um rico Conselheiro Municipal eleito recentemente. Ninguém, além daquelas pessoas, usava uma calça com listras peroladas, ou paletó de um veludo assim tão belo, ou levava uma cartola tão brilhante quanto as botas que calçava. Os cabelos do homem eram escuros, tão lisos quanto a cartola. Gato não tinha dúvida de que aquele era o Desconhecido Moreno de Gwendolen, que viera ajudá-la a começar a governar o mundo. E ele não deveria estar na cozinha; os visitantes sempre eram conduzidos diretamente para a sala de visitas.
- Oh, como vai o senhor? Quer me acompanhar, senhor? -ele disse com dificuldade.
O Desconhecido Moreno olhou para ele com curiosidade. E dá para entender o motivo, Gato pensou, olhando em volta de si, nervoso. Na cozinha reinava a bagunça de sempre. O fogão estava coberto de cinzas. Ao olhar para a mesa, Gato constatou, ainda mais nervoso, que a Sra. Sharp havia feito bonequinhos de gengibre. Os ingredientes para o feitiço estavam numa das pontas da mesa - pacotinhos de jornal amassado e vidrinhos sujos - e a massa de gengibre estava esticada no centro. A outra ponta, onde as moscas se aglomeravam sobre a carne para o almoço, estava igualmente suja e bagunçada.
- Quem é você? - o Desconhecido Moreno perguntou. -Tenho a sensação de que eu deveria conhecê-lo. Que é que está carregando no chapéu?
Gato estava ocupado demais examinando a cozinha para prestar atenção, mas ouviu a última pergunta. Seu entusiasmo retornou.
- Maçãs - disse, mostrando-as ao Desconhecido. - Maçãs doces, deliciosas. Peguei num quintal.
O Desconhecido assumiu uma expressão severa.
- Pegar frutas dos outros sem permissão também é uma forma de roubar - declarou.
Gato sabia disso tão bem quanto ele. Achou muito desagradável que alguém, mesmo sendo um Conselheiro Municipal, lhe dissesse isso.
- Sei disso. Mas aposto que o senhor fazia a mesma coisa quando tinha a minha idade.
O Desconhecido tossiu de leve e mudou de assunto.
- Você ainda não disse quem é.
- Desculpe. Eu não disse? Sou Eric Chant, só que sempre me chamam de Gato.
- Então Gwendolen é sua irmã? - o Desconhecido perguntou. A expressão dele era cada vez mais de desaprovação e pena.
Gato suspeitava que para ele a cozinha da Sra. Sharp era um antro de vício.
- Isso mesmo. Não quer passar para a sala? Lá está mais arrumado. - Gato convidou, na esperança de tirar o Desconhecido dali.
- Recebi uma carta da sua irmã - disse o Desconhecido, permanecendo onde estava. - Ela me deu a impressão de que você tinha se afogado com seus pais.
- O senhor deve ter lido errado - disse Gato distraidamente. - Não me afoguei porque me agarrei a Gwendolen e ela é bruxa. A sala está menos bagunçada.
- Entendo - disse o Desconhecido. - Bem, sou chamado de Crestomanci.
- Ah! - fez o Gato.
Então aquela era uma crise de verdade. Ele colocou sobre a mesa o chapéu com as maçãs, bem no meio do feitiço dos bonequinhos, com grandes esperanças de que aquilo fosse estragar o efeito.
- Então o senhor precisa vir para a sala imediatamente -insistiu.
- Por quê? - Crestomanci perguntou, parecendo um pouco perplexo.
- Porque o senhor é importante demais para ficar na cozinha - Gato explicou, completamente exasperado.
- Que é que faz você pensar que sou importante? - Crestomanci quis saber, ainda perplexo.
Gato estava começando a sentir vontade de sacudi-lo.
- Deve ser. Está usando roupas importantes. E a Sra. Sharp disse que era. Ela disse que o Sr. Nostrum daria os olhos da cara para ficar com as suas três cartas.
- E o Sr. Nostrum deu mesmo os olhos pelas minhas cartas? -perguntou Crestomanci. - Não acredito que elas valham tanto.
- Não. Em troca ele dá aulas a Gwendolen, só isso - Gato explicou.
- Como assim? Em troca dos olhos? Que coisa mais incômoda! - Crestomanci exclamou.
Felizmente nesse instante ouviram-se passadas fortes e Gwendolen irrompeu pela porta da cozinha, ofegante, dourada e cheia de júbilo.
- Sr. Crestomanci? - perguntou.
- Pode me chamar de Crestomanci - disse o Desconhecido. - Sim. E você é Gwendolen?
- Sim. O Sr. Nostrum me disse que havia uma caleça de aluguel aqui em frente - Gwendolen ofegou.
Atrás dela vinha a Sra. Sharp, quase tão sem fôlego quanto Gwendolen. As duas se encarregaram de fazer sala ao visitante, e Gato ficou aliviado. Crestomanci finalmente consentiu em ser levado para a sala de visitas, onde a Sra. Sharp ofereceu-lhe respeitosamente uma xícara de chá e um prato de seus bonequinhos de gengibre, que sacudiam os braços desanimadamente. Crestomanci, como Gato percebeu com muito interesse, também não parecia ter coragem de comê-los. Ele bebeu uma xícara de chá -austeramente, sem leite nem açúcar - e fez perguntas sobre os motivos que levaram Gwendolen e Gato a morarem com a Sra. Sharp. A Sra. Sharp tentou dar a impressão de que cuidava deles sem receber pagamento, apenas pela bondade do seu coração; tinha esperanças de que Crestomanci pudesse ser induzido a pagar-lhe para tomar conta deles, assim como o Conselho Municipal fazia.
Mas Gwendolen decidira ser radiantemente honesta.
- A Prefeitura paga, porque todos sentem muita pena de nós por causa do acidente - ela explicou.
Gato ficou feliz por ela ter revelado isso, mesmo desconfiando que Gwendolen já podia estar descartando a Sra. Sharp como se ela fosse um casaco velho.
- Então tenho que ir conversar com o Prefeito - Crestomanci declarou.
Ele ficou de pé, tirando o pó de sua esplêndida cartola na manga do seu elegante paletó. A Sra. Sharp suspirou e encolheu-se. Ela também percebia o que Gwendolen estava fazendo.
- Não fique preocupada, Sra. Sharp - disse Crestomanci. -Ninguém quer que a senhora fique sem dinheiro. - Então apertou a mão de Gwendolen e de Gato. - Eu devia ter vindo visitar vocês antes, é claro. Perdoem-me. É que o pai de vocês foi infernalmente grosseiro comigo. Vou vê-los de novo, espero.
Então foi embora na caleça, deixando a Sra. Sharp muito amargurada, Gwendolen radiante, Gato nervoso.
- Por que está tão feliz? - Gato perguntou a Gwendolen.
- Porque ele ficou comovido com o nosso estado de orfandade - Gwendolen explicou. - Vai nos adotar. Minha sorte está feita!
- Não diga tamanha besteira! - interpôs a Sra. Sharp. - A sua sorte é a mesma que sempre foi. Ele pode ter vindo aqui com toda a sua elegância, mas não disse coisa alguma e não fez qualquer promessa.
Gwendolen sorriu com confiança.
- A senhora não viu a carta comovente que eu lhe escrevi.
- Pode ser. Mas ele não tem um coração que possa se comover - retrucou a Sra. Sharp.
De certa maneira Gato concordava com a Sra. Sharp - principalmente porque tinha a inquietante sensação de que, antes de Gwendolen e a Sra. Sharp chegarem, ele de alguma forma conseguira ofender Crestomanci tão gravemente quanto seu pai o fizera certa vez. Esperava que Gwendolen não percebesse; sabia que ela ficaria furiosa com ele.
Mas, para seu espanto, afinal Gwendolen tinha razão: nessa mesma tarde o Prefeito apareceu e contou-lhes que Crestomanci pedira que Gato e Gwendolen fossem morar com ele, fazendo parte da sua própria família.
- E vejo que não preciso lhes dizer que vocês são pessoinhas de sorte - continuou, ao ver que Gwendolen soltava um gritinho de alegria e abraçava a circunspecta Sra. Sharp.
Gato sentia-me mais nervoso do que nunca. Puxou o Prefeito pela manga.
- Por favor, senhor, não entendo quem é Crestomanci. O Prefeito bondosamente deu-lhe uns tapinhas na cabeça.
- Um cavalheiro muito importante - disse. - Daqui a pouco vocês estarão proseando com todas as cabeças coroadas da Europa. Que tal isso, hein?
Gato não sabia o que pensar. Aquilo não lhe dizia absolutamente coisa alguma, e deixava-o ainda mais nervoso. Ele imaginava que Gwendolen escrevera uma carta realmente muito comovente.
Assim veio a segunda grande mudança na vida de Gato, uma que ele temia que fosse muito triste. Durante toda a semana seguinte, enquanto corriam de um lado para outro com as esposas dos Conselheiros, que lhes compravam roupas novas, e Gwendolen ficava cada vez mais entusiasmada e triunfante, Gato constatou que sentia saudade da Sra. Sharp e de todas as outras pessoas - até mesmo da Srta. Larkins - como se já tivesse ido para longe delas. Quando chegou a hora de embarcarem no trem, a cidade lhes fez um esplêndido bota-fora, com bandeiras e uma banda de música. Aquilo perturbou Gato. Ele ficou sentado, tenso, na beirada do assento, temendo estar prestes a enfrentar uma época de solidão e talvez até mesmo de sofrimento.
Gwendolen, no entanto, ajeitou seu elegante vestido novo e seu belo chapéu novo, e recostou-se elegantemente.
- Consegui! - exclamou, cheia de alegria. - Não é maravilhoso, Gato?
- Não - discordou Gato, cheio de tristeza. -Já estou com saudade. Que foi que você fez? Por que fica tão feliz o tempo todo?
- Você não compreenderia - Gwendolen declarou. - Mas vou lhe contar uma parte. Finalmente saí dessa Wolvercote morta-viva, com seus Conselheiros estúpidos e seus necromantes sem valor! E Crestomanci ficou encantado comigo. Você percebeu isso, não percebeu?
- Não percebi especialmente - Gato confessou. - Quer dizer, vi você ser gentil com ele...
- Ora, cale a boca, ou vou lhe dar uma coisa pior do que uma eólica! - Gwendolen ameaçou.
E enquanto o trem finalmente estremecia e começava a se afastar da estação, Gwendolen acenava para a banda com a mão enluvada, num gesto igual ao da Realeza. Gato entendeu que ela estava partindo para governar o mundo.
A viagem de trem durou aproximadamente uma hora; o trem entrou bufando em Bowbridge, onde eles deveriam saltar.
- É pequena demais! - Gwendolen exclamou em tom de crítica.
- Bowbridge! - gritou um carregador, correndo ao longo da plataforma. - Bowbridge! Os jovens Chant saltam aqui, por favor.
- Jovens Chant! - Gwendolen repetiu com desagrado. - Não podem me tratar com mais respeito?
Ainda assim, aquela atenção agradou-a. Gato via que, enquanto calçava suas luvas de dama, ela tremia de excitação. Ao desembarcarem, ele encolheu-se por trás dela e ficou a ver seus baús serem jogados na plataforma varrida pelo vento. Gwendolen marchou até o carregador que gritava.
- Nós somos os jovens Chant - disse-lhe majestosamente. Seu tom não causou impressão. O carregador limitou-se a
chamá-los com um gesto e entrou apressado na estação, onde ventava ainda mais do que na plataforma. Gwendolen precisou segurar o chapéu na cabeça. Ali um rapaz veio ao encontro deles ladeado pelas abas do seu sobretudo, que o vento inflava.
- Nós somos os jovens Chant - Gwendolen informou-lhe.
- Gwendolen e Eric? Prazer em conhecê-los - disse o rapaz. - Sou Michael Saunders. Serei o tutor de vocês e das outras crianças.
- Outras crianças? - Gwendolen ecoou, em tom arrogante. Mas evidentemente o Sr. Saunders era uma dessas pessoas que não conseguem ficar paradas, e já tinha ido em disparada cuidar da bagagem deles. Gwendolen ficou um pouquinho irritada. Mas quando o Sr. Saunders voltou e os levou para fora, para a frente da estação, havia um automóvel esperando - comprido, preto e brilhante. Gwendolen esqueceu sua contrariedade, achando aquilo inteiramente apropriado.
Gato queria que tivesse sido uma carruagem. O automóvel estremeceu, guinchou e soltou cheiro de gasolina. Ele ficou enjoado na mesma hora. Ficou ainda mais enjoado quando deixaram Bowbridge para trás e percorreram guinchando uma estrada de terra serpenteante. A única vantagem que ele via era que o automóvel viajava bem depressa. Depois de apenas dez minutos o Sr. Saunders anunciou:
- Vejam, ali está o Castelo Crestomanci. Daqui temos a melhor visão dele.
Gato virou o rosto nauseado e Gwendolen, seu rosto fresco, para onde ele apontava. O Castelo, no topo do morro defronte, era cinzento e cheio de torres. Depois de uma curva da estrada eles tornaram a avistá-lo, dessa vez com uma parte nova: uma extensão de janelões e uma bandeira tremulando acima. Viram árvores majestosas - cedros escuros e sólidos, olmos imensos - e vislumbraram gramados e flores.
- Parece maravilhoso - disse Gato enjoadamente, um pouco surpreso por Gwendolen não dizer nada. E torcendo para que a estrada não fizesse muitas curvas antes de chegar ao Castelo.
Não fez. O automóvel contornou velozmente a praça gramada de um povoado e entrou por um grande portão; depois dele havia uma alameda comprida, ladeada de árvores, e no final a grande porta da parte antiga do Castelo. O carro rodeou o canteiro em frente à porta, as rodas fazendo barulho no cascalho do chão. Gwendolen inclinou-se para a frente, ansiosa, pronta para ser a primeira a descer. Era evidente que haveria um mordomo, e talvez lacaios também - e ela mal podia esperar para fazer sua entrada triunfal.
Mas o automóvel seguiu em frente, deixando para trás as paredes cinzentas e irregulares do Castelo antigo, e parou diante de uma porta discreta, onde começava a parte mais recente. Era uma porta quase que secreta. Havia um agrupamento de rododendros que a escondiam de ambas as partes do Castelo.
- Estou trazendo vocês por este caminho porque é a porta que usarão mais - explicou alegremente o Sr. Saunders. -Achei que ficaria mais fácil aprenderem a se orientar aqui se já começassem como deve ser.
Gato não se importava; achava aquela porta mais simpática. Mas Gwendolen, roubada de sua entrada triunfal, lançou ao Sr. Saunders um olhar feroz e pensou em jogar nele um feitiço bem desagradável. Mas resolveu não fazer isso, pois ainda queria causar boa impressão. Desceram do automóvel e seguiram o Sr. Saunders - cujo sobretudo tinha o costume de infiar-se mesmo quando não havia vento - para dentro da casa até um vestíbulo quadrado, de piso encerado.
Uma dama muito imponente esperava ali para recebê-los. Usava um vestido justo lilás, e seus cabelos formavam uma pilha negra bastante alta. Gato achou que devia ser a Sra. Crestomanci.
- Esta é a Srta. Bessemer, a governanta - apresentou o Sr. Saunders. - Eric e Gwendolen, Srta. Bessemer. Infelizmente Eric enjoou um pouquinho na viagem.
Gato não percebera que seu problema era tão óbvio. Sentiu-se desconcertado. Gwendolen, muito contrariada por ser recebida por uma mera governanta, estendeu a mão para a Srta. Bessemer com frieza.
A Srta. Bessemer apertou-lhe a mão como uma imperatriz. Gato estava justamente pensando que ela era a dama mais intimidante que já conhecera, quando ela virou-se para ele com um sorriso muito bondoso.
- Pobre Eric - comentou. - Andar de automóvel também me faz mal. Você vai ficar bom, agora que já saiu daquela coisa, mas se não ficar, eu lhe darei um remedinho. Venham lavar as mãos e dar uma olhada nos quartos de vocês.
Seguindo o estreito triângulo lilás do vestido dela, os dois subiram alguns degraus, percorreram corredores, subiram mais outros degraus. Gato jamais, em parte alguma, tinha visto tanto luxo. Toda a extensão era coberta por uma passadeira - um tapete verde e macio como grama na manhã or-valhada - e o piso a cada lado dela era tão encerado que refletia a passadeira e as paredes brancas com os quadros nelas pendurados. Tudo estava em total silêncio. Eles nada escutaram durante todo o caminho, a não ser seus próprios pés e o ruge-ruge lilás da Srta. Bessemer.
A Srta. Bessemer abriu uma porta para um jorro de luz do sol da tarde.
- Este é o seu quarto, Gwendolen. Seu banheiro abre para ele.
- Obrigada - Gwendolen disse, e deslizou majestosamente para dentro, para tomar posse do quarto.
Gato, por trás da Srta. Bessemer, espiou para dentro e viu que o quarto era bem grande, com um tapete turco colorido e macio cobrindo a maior parte do assoalho.
A Srta. Bessemer informou:
- A Família janta cedo quando não há visitantes, para que possam jantar com as crianças. Mas imagino que mesmo assim vocês gostariam de um chá. Para qual dos quartos posso mandá-lo?
- Para o meu, por favor - Gwendolen disse no mesmo instante.
Depois de uma pausa curta a Srta. Bessemer disse:
- Bom, então está resolvido, não é? Seu quarto é lá, Eric. O caminho para "lá" era subindo uma escada em espiral.
Gato gostou. Pelo que parecia, seu quarto seria na parte antiga do Castelo. E tinha razão: quando a Srta. Bessemer abriu a porta, ele viu um quarto redondo, com três janelas que mostravam que a parede tinha quase um metro de espessura. Gato não conseguiu resistir e atravessou correndo o tapete brilhante para subir num dos largos bancos sob a janela e olhar para fora. Então olhou em volta do próprio quarto. As paredes curvas eram caiadas, assim como a lareira larga. A cama tinha uma colcha de retalhos. Havia uma mesa, uma cômoda e uma estante com livros de aparência interessante.
- Ora, estou gostando muito - disse à Srta. Bessemer.
- Infelizmente o seu banheiro é no corredor - a Srta. Bessemer explicou, como se isso fosse uma desvantagem.
Gato, que jamais tivera um banheiro privativo, não se importou nem um pouco.
Assim que a Srta. Bessemer foi embora, ele correu para dar uma olhada no banheiro. Ficou intimidado ao deparar com três toalhas vermelhas de tamanhos diferentes e uma esponja do tamanho de um melão. A banheira tinha pés de leão. Um dos cantos do banheiro era azulejado, com cortinas de borracha vermelha e um chuveiro. Gato não resistiu e foi experimentar. Quando terminou, o banheiro estava bastante molhado. Voltou para o quarto, ele próprio um pouco úmido. A essa altura, seu baú e sua mala já tinham chegado ao quarto, e uma criada ruiva estava guardando as suas roupas. Ela disse a Gato que se chamava Mary, e quis saber se estava colocando as coisas nos lugares devidos. Era muito simpática, mas Gato sentiu-se tímido diante dela. Os cabelos vermelhos lembravam-lhe a Srta. Larkins, e ele não atinava com alguma coisa para lhe dizer.
- Ha... Posso descer para tomar chá? - gaguejou.. - Fique à vontade - ela respondeu.
Seu tom foi um pouco frio, Gato pensou. Tornou a descer a escada correndo, sentindo que talvez tivesse cometido uma gafe com ela.
O baú de Gwendolen estava no meio do quarto. A própria Gwendolen estava sentada, como uma rainha, à mesa redonda perto da janela, diante de um grande bule de estanho, um prato com pão preto e manteiga, um prato com biscoitos.
- Eu disse à garota que eu mesma vou arrumar as minhas coisas - anunciou. - Tenho segredos no meu baú e na minha caixa. E pedi a ela para trazer logo o chá porque estou faminta. E veja só isto! Já viu uma coisa tão sem graça? Nem sequer trouxeram geléia!
- Talvez os biscoitos sejam gostosos - disse Gato esperançosamente.
Mas não eram - pelo menos, não especialmente.
- Vamos morrer de fome no meio do luxo! - Gwendolen suspirou.
Seu quarto certamente era luxuoso. O papel de parede parecia feito de veludo azul. A parte superior e a inferior da cama eram estofadas como uma poltrona, em veludo azul com botões, e a colcha de veludo azul tinha exatamente o mesmo tom. As cadeiras eram pintadas de dourado. Havia uma penteadeira digna de uma princesa, com gavetinhas douradas, escovas com cabos dourados e um comprido espelho oval numa moldura de flores douradas. Gwendolen admitiu que gostava da penteadeira, embora nem tanto do armário, que ostentava uma pintura de guirlandas e dançarinos em trajes típicos.
- Os armários servem para a gente pendurar roupas dentro, não para ficar olhando. Essas figuras me incomodam - reclamou. - Mas o banheiro é lindo.
O banheiro era coberto de azulejos azuis e brancos, e a banheira era embutida no piso de lajotas. Sobre ela, como o cortinado de um berço, pendiam cortinas azuis, para quando ela quisesse utilizar o chuveiro. As toalhas combinavam com os azulejos. Gato preferia o seu próprio banheiro, mas talvez por ter sido obrigado a passar muito tempo no de Gwendolen: ela o trancou lá dentro enquanto desfazia sua bagagem. Através do ruído do chuveiro (Gwendolen teria que culpar a si própria pelo estado de inundação do banheiro depois) Gato ouviu a voz dela altear-se com irritação, falando com alguém que viera retirar as coisas do chá e a surpreendera com o baú aberto. Quando Gwendolen finalmente destrancou a porta do banheiro, ainda estava zangada.
- Acho que os criados daqui não são muito educados - declarou. - Se aquela garota disser mais alguma coisa, vai ficar com um furúnculo no nariz, mesmo tendo o nome de Eufêmia! - E Gwendolen acrescentou, caridosamente: - Mas estou inclinada a achar que ser chamada de Eufêmia já é castigo suficiente para qualquer pessoa. Você tem que ir vestir seu terno novo, Gato. Ela disse que o jantar é daqui a meia hora e temos que nos vestir para ele. Já ouviu falar em alguma coisa tão formal e artificial?
- Pensei que você gostasse desse tipo de coisa - disse Gato, que certamente não gostava.
- Pode-se ser suntuoso sem deixar de ser natural - Gwendolen retrucou. Mas, ainda assim, a idéia da pompa que a esperava acalmou-a. - Vou usar meu vestido azul com a gola de renda - disse. - E acho mesmo que ter o nome de Eufêmia é uma carga suficientemente pesada para uma pessoa suportar, por mais grosseira que ela seja.
Quando Gato subia sua escada em caracol, o Castelo encheu-se com um ronco misterioso. Era o primeiro ruído que ele ouvia ali. Aquilo o assustou. Mais tarde, ele ficou sabendo que se tratava do gongo de vestir-se, para avisar à Família que eles tinham meia hora para preparar-se para o jantar. Gato, naturalmente, não precisaria de todo esse tempo para colocar seu terno, de modo que tomou outro banho de chuveiro. Sentia-se molhado, fraco e quase lavado de todas as suas energias quando a criada que tinha a infelicidade de se chamar Eufêmia veio buscá-lo, com Gwendolen, para levá-los à sala de estar onde a Família estava esperando.
Gwendolen, em seu lindo vestido azul, entrou confiante-mente; Gato esgueirou-se atrás dela. O aposento parecia cheio de gente. Gato não tinha idéia de como todas aquelas pessoas vieram a fazer parte da Família. Havia uma senhora idosa usando luvas de renda, e um homenzinho de sobrancelhas espessas e voz estridente que falava sobre ações e dividendos; o Sr. Saunders, que tinha os pulsos e os tornozelos compridos demais para seu brilhoso terno escuro; e pelo menos duas damas mais jovens, e pelo menos dois homens mais jovens. Gato avistou Crestomanci, esplêndido em seu traje de veludo de um vermelho muito escuro; e Crestomanci viu Gato e Gwendolen e contemplou-os com um sorriso vago e perplexo, que deu a Gato a certeza de que Crestomanci havia esquecido quem eles eram.
- Ah! - fez Crestomanci. - Hã... Esta é a minha esposa.
Os dois foram levados até uma senhora gorducha, de fisionomia plácida. Ela usava um vistoso vestido de renda - que os olhos de Gwendolen varreram de cima abaixo com considerável admiração - mas, fora isso, era uma das mulheres mais comuns que eles já tinham visto. Ela lhes dirigiu um sorriso amistoso.
- Eric e Gwendolen, não é mesmo? Podem me chamar de Millie, meus queridos.
Aquilo era um alívio, pois nenhum deles tinha idéia de como deviam dirigir-se a ela. Millie continuou:
- E agora, precisam conhecer minha Júlia e meu Roger. Duas crianças gorduchas entraram e postaram-se ao lado
dela. Ambas eram um tanto pálidas e tinham a tendência de respirar com força. A menina usava um vestido de renda como o da mãe, e o menino exibia um terno de veludo azul, mas roupa alguma poderia disfarçar o fato de que ambos tinham uma aparência ainda mais comum do que a mãe deles. As crianças olharam educadamente para Gwendolen e Gato, e todos os quatro disseram:
- Muito prazer. Pelo que parecia, nada mais havia a dizer.
Felizmente eles não ficaram parados ali muito tempo antes que um mordomo aparecesse e abrisse a porta dupla no extremo da sala, anunciando que o jantar estava servido. Gwendolen olhou para o mordomo com grande indignação.
- Por que ele não veio abrir a porta para nós? Por que tivemos que nos contentar com a governanta? - ela cochichou com Gato, enquanto os dois seguiam os outros, numa espécie de procissão desorganizada, para a sala de jantar.
Gato não respondeu. Estava ocupado demais agarrando-se a Gwendolen. As pessoas presentes estavam sendo distribuídas em redor de uma mesa comprida e encerada, e ele temia que, se alguém tentasse colocá-lo numa cadeira que não ficasse ao lado da de Gwendolen, ele acabaria desmaiando de medo. Felizmente ninguém tentou fazer isso. Ainda assim, a refeição foi aterrorizante. Lacaios insistiam em enfiar bandejas de prata com iguarias deliciosas por cima do ombro esquerdo de Gato. Cada vez que isso acontecia, pegava-o de surpresa, ele tinha um sobressalto e esbarrava na bandeja. Esperava-se que ele próprio se servisse da bandeja de prata, e o menino nunca sabia a quantidade que devia pegar. Mas a dificuldade pior era por ser canhoto. A colher e o garfo com que ele deveria pegar a comida da bandeja do lacaio para o seu próprio prato estavam sempre em lugares trocados. Ele tentou mudá-los por conta própria, e deixou cair uma colher; tentou deixá-los como estavam, e derramou o molho. O lacaio sempre dizia "Não se preocupe, senhor", e isso o fazia sentir-se pior que nunca.
A conversa era ainda mais apavorante. Em um dos extremos da mesa, o homenzinho de voz alta falava incessantemente de ações e dividendos; na extremidade de Gato, falava-se sobre Belas Artes. O Sr. Saunders, ao que parecia, havia passado o verão viajando no estrangeiro, e vira esculturas e pinturas por toda a Europa, para sua grande admiração. Estava tão entusiasmado que dava socos na mesa enquanto falava. Discursou sobre estúdios e Escolas, Quattrocento e Interiores Holandeses, até a cabeça de Gato girar. Gato olhou para as feições magras e angulosas do Sr. Saunders e maravilhou-se com todo aquele conhecimento que havia por trás delas. Então Millie e Crestomanci entraram na conversa. Millie recitou uma lista de nomes que Gato jamais tinha ouvido em sua vida. Crestomanci fazia comentários sobre eles, como se aqueles nomes fossem seus amigos íntimos. Gato pensava: fosse como fosse o resto da Família, Crestomanci não era comum. Tinha olhos muito negros e brilhantes, que eram notáveis até mesmo quando ele parecia vago e sonhador. Quanto ele estava interessado - como estava em Artes Plásticas - seus olhos se franziam de um modo que pareciam derramar seu brilho pelo resto do rosto. E, para espanto de Gato, as duas crianças mostravam-se igualmente interessadas. Mantinham um gorjear contínuo, como se realmente compreendessem o que os pais diziam.
Gato sentiu-se esmagadoramente ignorante. Com toda aquela conversa, e mais o problema do aparecimento súbito das bandejas de prata, e os biscoitos insossos que ele comera com o chá, o menino constatou que não tinha o menor apetite. Precisou deixar metade do seu bolo de sorvete. Invejou Gwendolen, que conseguia fartar-se de comida com tamanha calma e superioridade.
Finalmente a refeição chegou ao fim. Eles tiveram permissão de escapar para o luxuoso quarto de Gwendolen. Ali, Gwendolen sentou-se na cama estofada.
- Que truque infantil! - exclamou. - Estavam se exibindo, para nos fazer sentir inferiores. O Sr. Nostrum tinha me avisado disso. E para disfarçar a pobreza de alma deles. Que esposa chata e horrível! E já viu gente tão sem graça e estúpida quanto aquelas duas crianças? Sei que vou odiar este lugar. Este Castelo já está me oprimindo.
- Pode não ser tão ruim, depois que a gente se acostuma -Gato aventurou, sem esperanças.
- Vai ser pior - Gwendolen assegurou. - Existe alguma coisa neste Castelo. E uma influência ruim, mortificante. Está espremendo a vida e a bruxaria de dentro de mim. Mal consigo respirar.
- Está imaginando coisas, porque quer voltar para a Sra. Sharp - disse Gato.
Ele suspirou. Sentia muita saudade da Sra. Sharp.
- Não estou imaginando, não. Pensei que fosse uma coisa suficientemente forte, a ponto de até você sentir. Vamos, tente. Não consegue sentir a mortificação?
Na realidade, Gato não precisava tentar, pois entendia o que ela queria dizer: havia mesmo algo de estranho no Castelo. Ele achava que era simplesmente porque tudo era tão silencioso. Porém era algo mais que isso: havia uma suavidade na atmosfera, uma falta de peso, como se tudo o que diziam ou faziam fosse abafado sob um enorme edredom de plumas. Os ruídos normais, como a voz deles dois, pareciam sem substância - não produziam eco.
- E estranho, sim - concordou.
- É mais que estranho, é terrível - disse Gwendolen. - Terei sorte se sobreviver. - Então, para surpresa de Gato, acrescentou: - Portanto não me arrependo de ter vindo.
- Eu sim - retrucou Gato.
- Ah, naturalmente você precisa de quem tome conta de você! - Gwendolen exclamou. - Está bem. Há um baralho na penteadeira. Na verdade, são para adivinhação, mas se tirarmos as figuras poderemos jogar com ele, se você quiser.
Reinavam a mesma suavidade e o mesmo silêncio quando a ruiva Mary despertou Gato na manhã seguinte e lhe comunicou que era hora de se levantar. O sol da manhã recaía em raios brilhantes sobre as paredes do quarto. Embora já soubesse que o Castelo estava cheio de gente, ele não conseguia escutar qualquer sinal disso. Tampouco conseguia ouvir algum som vindo de fora das janelas.
Então lhe ocorreu: já sabia o que aquilo parecia! Certamente nevara durante a noite! Aquela idéia fez com que se sentisse tão feliz e aquecido que ele tornou a adormecer.
- Precisa mesmo levantar-se, Eric - Mary insistiu, sacudindo-o. - Já preparei o seu banho, e as suas aulas começam às nove. Apresse-se, senão não terá tempo para tomar o café da manhã.
Gato levantou-se. Tinha uma sensação tão forte de que havia nevado durante a noite que ficou bastante surpreso ao constatar que seu quarto estava quentinho, por causa do sol. Olhou pelas janelas e viu gramados verdes e flores, e gralhas voando ao redor das árvores verdes, como se houvesse acontecido algum equívoco. Mary havia se retirado; Gato alegrou-se com isso, pois não tinha certeza se gostava dela, e temia perder o café da manhã. Depois de vestir-se, foi para o banheiro e abriu o ralo da banheira, para esvaziá-la. Então desceu disparado a escada em caracol, para procurar Gwendolen.
- Onde vamos tomar café? - perguntou-lhe ansiosamente. Gwendolen nunca estava no melhor de sua forma de manhã.
Sentada em seu banquinho de veludo azul diante do espelho emoldurado, penteava os cabelos com a fisionomia contrafeita. Pentear os cabelos era outra coisa que sempre a deixava irritada.
- Não sei e não quero saber. Cale a boca! - exclamou.
- Ora, isto não é maneira de falar - disse a criada chamada Eufêmia atrás de Gato, entrando energicamente no quarto. Era uma moça bonitinha, e parecia não considerar seu nome um fardo, como deveria. - Estamos à espera para lhes dar o desjejum. Venham.
Gwendolen jogou o pente sobre a penteadeira num gesto expressivo, e os dois seguiram Eufêmia até um aposento no mesmo corredor. Era uma sala quadrada, arejada, com uma fileira de janelões, mas, comparada com o resto do Castelo, bastante modesta. As cadeiras de couro eram puídas; o tapete que parecia grama estava manchado. Nenhum dos armários fechava-se direito; coisas como trenzinhos de corda e raquetes de tênis transbordavam de dentro deles. Júlia e Roger estava sentados, à espera, a uma mesa perto das janelas, usando roupas tão surradas quanto a sala.
Mary, que também estava esperando ali, disse:
- Já estava na hora!
E pôs-se a fazer funcionar um interessante elevador dentro de um armário perto da lareira. Ouviu-se um clank; Mary abriu a porta do armário e retirou uma bandeja com pão e manteiga e um fumegante bule marrom de chocolate com leite. Levou essas coisas para a mesa e Eufêmia serviu a cada criança uma caneca de chocolate.
Gwendolen olhou da caneca para o prato de pão.
- Só isto?
- Que mais você quer? - Eufêmia perguntou. Gwendolen não conseguia encontrar palavras para exprimir o
que queria. Mingau, ovos com bacon, suco de laranja, torrada e peixe defumado vieram-lhe à cabeça ao mesmo tempo, e ela continuou de olhos fixos no prato de pão.
- Decida-se - disse Eufêmia finalmente. - Meu café da manhã também está esperando por mim, sabia?
- Não tem geléia? - Gwendolen perguntou. Eufêmia e Mary se entreolharam.
- Júlia e Roger não têm permissão para comer geléia -Mary explicou.
- A mim ninguém proibiu - disse Gwendolen. - Traga-me imediatamente um pouco de geléia.
Mary foi até uma espécie de interfone ao lado do elevador e, depois de muitos ruídos e outro clank, chegou um pote de geléia. Mary trouxe-o e colocou-o diante de Gwendolen.
- Obrigado - disse Gato com fervor. Sua opinião sobre o assunto era a mesma de Gwendolen, só que mais forte, pois odiava chocolate com leite.
- Não tem de quê! - Mary respondeu, num tom que certa-mente era sarcástico.
As duas criadas retiraram-se.
Durante algum tempo, ninguém disse coisa alguma. Então Roger pediu a Gato:
- Passe a geléia, por favor.
- Você não pode - disse Gwendolen, cujo humor não tinha melhorado.
- Ninguém vai saber, se eu usar uma das facas de vocês - Roger respondeu placidamente.
Gato passou-lhe a geléia e sua faca.
- Por que vocês estão proibidos de comer geléia? - quis saber. Júlia e Roger trocaram um olhar calmo e cheio de mistério.
- Estamos gordos demais - Júlia disse, pegando calmamente a faca e a geléia depois que Roger se serviu.
Gato não se surpreendeu cora isso, depois que viu a quantidade de geléia que cada um deles conseguira amontoar sobre o pão. Em cada fatia, a geléia parecia um rochedo marrom e pegajoso.
Gwendolen contemplou-os com repugnância, e então, de um modo complacente, olhou para seu vestido de linho. O contraste certamente era notável.
- O pai de vocês é um homem tão bonito, deve ser uma decepção para ele que vocês sejam gordos e feios como a sua mãe - comentou.
As duas crianças olharam-na placidamente por cima de suas montanhas de geléia.
- Ah, não tenho idéia - disse Roger.
- Ser gordo é confortável - Júlia opinou. - Deve ser bem chato parecer uma boneca de porcelana, como você.
Os olhos azuis de Gwendolen refletiram sua raiva. Ela fez um pequeno sinal por baixo da mesa; o pão e a geléia fugiram das mãos de Júlia e golpearam o rosto dela, com o lado da geléia para dentro. Júlia respirou forte.
- Como ousa me insultar? - disse Gwendolen.
Júlia despregou lentamente o pão do rosto e pôs-se a tatear em busca do lenço. Gato imaginou que ela iria limpar o rosto. Mas ela deixou a geléia onde estava, escorrendo-lhe pelas bochechas gorduchas, e simplesmente deu um nó no lenço. Foi apertando o nó lentamente, enquanto lançava para Gwendolen um olhar cheio de significado. Com o último apertão, o bule cheio 3até a metade de chocolate quente ergueu-se no ar. Pairou no lugar por um segundo, depois moveu-se para o lado, parando bem acima da cabeça de Gwendolen. Então começou a inclinar-se.
- Pare com isso! - Gwendolen gritou.
Ela ergueu a mão para empurrar o bule para longe; o bule evitou-a e continuou tombando, cada vez mais. Gwendolen fez outro sinal e murmurou palavras estranhas. O bule não ligou a mínima: continuou a inclinar-se até o chocolate ameaçar pingar pelo bico. Gwendolen tentou chegar para o lado; o bule simplesmente moveu-se no ar até estar novamente sobre a cabeça dela.
- Quer que eu faça o bule tombar mais? - Júlia perguntou. Havia um leve sorriso debaixo da geléia.
- Você não ouse! - Gwendolen gritou. - Vou contar tudo a Crestomanci. Vou... Ah!
Ela tornou a sentar-se ereta, e o bule seguiu-a fielmente. Gwendolen tentou de novo agarrá-lo, e ele tornou a fugir-lhe.
- Cuidado. Vai fazer o chocolate cair. E seria uma pena estragar seu lindo vestido - disse Roger, observando tudo com expressão complacente.
- Cale a boca, você! - Gwendolen gritou com ele, inclinando-se para o outro lado e colocando-se quase que no colo de Gato.
Gato ergueu os olhos ansiosamente para o bule, que vinha pairar sobre ele também. Parecia que o chocolate estava prestes a derramar-se.
Mas nesse momento a porta abriu-se e Crestomanci entrou, usando um roupão de seda florida. Era um roupão vermelho e roxo, com ouro na gola e nos punhos. Nele, Crestomanci parecia surpreendentemente alto, espantosamente magro e impressionantemente majestoso. Podia ser um Imperador, ou um Bispo particularmente severo. Estava sorrindo ao entrar, mas o sorriso desapareceu quando ele viu o bule.
O bule tentou desaparecer também: ao vê-lo, fugiu de volta para a mesa, com tanta rapidez que respingou chocolate sobre o vestido de Gwendolen - o que podia ser ou não ser um acidente. Tanto Júlia quanto Roger pareciam constrangidos. Júlia desfez o nó do lenço como se sua vida dependesse disso.
- Bom, eu vinha lhes desejar um bom dia, mas já vi que não será - Crestomanci declarou. Olhou do bule para a geléia no rosto de Júlia. - Se vocês dois quiserem tornar a comer geléia algum dia, é melhor fazerem o que lhe mandam - disse. - Isto serve para os quatro.
- Eu não estava fazendo nada de errado - Gwendolen afirmou, num tom mais doce do que a geléia.
- Estava sim - desmentiu Roger.
Crestomanci foi até a ponta da mesa e ficou a olhar para eles, com as mãos nos bolsos de seu nobre roupão. Parecia tão alto, nessa posição, que Gato ficou surpreso porque a cabeça dele ainda estava abaixo do teto.
- Neste Castelo há uma única regra absoluta, e será melhor para vocês se não a esquecerem: nenhuma bruxaria, de espécie alguma, pode ser praticada pelas crianças, a não ser que Michael Saunders esteja presente para supervisionar. Entendeu bem,
Gwendolen?
- Sim - respondeu a menina. Apertou os lábios e os punhos, mas continuou tremendo de raiva. - Recuso-me a obedecer a uma regra tão idiota!
Crestomanci parecia não ter escutado, ou não ter percebido a raiva dela. Virou-se para Gato.
- Você também entendeu, Eric?
- Eu? - disse Gato, surpreso. - Claro que sim!
- Ótimo - disse Crestomanci. - Agora vou lhes dar bom-dia.
- Bom dia, papai - disseram Júlia e Roger.
- Hã... Bom dia - disse Gato.
Gwendolen fingiu não ter ouvido; também sabia jogar aquele jogo. Crestomanci sorriu e saiu do aposento como se fosse uma comprida procissão de uma só pessoa.
- Dedo-duro! - Gwendolen disse a Roger assim que a porta se fechou. - E que truque sujo com o bule! Vocês dois estavam fazendo aquilo juntos, não estavam?
Roger deu-lhe um sorriso sonolento, nem um pouco perturbado.
- Na nossa família, a bruxaria está no sangue - disse.
- E nós dois herdamos - Júlia completou. - Tenho que ir me lavar.
Ela pegou três fatias de pão para alimentar-se enquanto fazia isso e saiu da sala, dizendo por cima do ombro:
- Diga a Michael que não vou demorar, Roger.
- Mais chocolate? - Roger perguntou educadamente, erguendo o bule.
- Sim, por favor - disse Gato.
Ele nunca tivera problema em comer ou beber coisas que haviam sido enfeitiçadas, e estava com sede. Achava que, se enchesse a boca de geléia e filtrasse o chocolate através dela, não sentiria o gosto da bebida. Gwendolen, no entanto, tinha certeza de que Roger estava tentando insultá-la. Girou bruscamente na cadeira e fixou os olhos na parede com expressão de desdém, até que de repente surgiu o Sr. Saunders, abrindo de supetão uma porta na qual Gato não tinha reparado até então, e anunciando com entusiasmo:
- Certo, todos vocês, hora da aula! Venham, vamos ver como se sairão num questionário.
Gato engoliu às pressas sua geléia com tempero de chocolate. Do outro lado da porta ficava uma sala de aula. Era uma sala de aula real, genuína, embora contivesse apenas quatro carteiras. Havia um quadro-negro, um globo, o piso manchado como o de uma sala de aula e cheiro de sala de aula. Havia aquele tipo de estante com portas de vidro sem a qual nenhuma sala de aula está completa, e os livros verde-acinzentados e azul-escuros, de aparência usada, sem os quais nenhuma estante de sala de aula está completa. Nas paredes havia grandes retratos das estátuas que o Sr. Saunders achara tão interessantes.
Duas das carteiras eram marrons e velhas; duas eram novas, amarelas e envernizadas. Gwendolen e Gato ocuparam silenciosamente as carteiras novas. Júlia entrou apressada, o rosto brilhando por causa do sabão, e foi sentar-se à carteira velha ao lado da de Roger, e o questionário teve início. O Sr. Saunders andava de um lado para outro, diante do quadro-negro, com expressão atoleimada, fazendo-lhes perguntas inteligentes. Seu paletó de tweed inflava-se por trás, como o sobretudo fizera ao vento - talvez fosse esse o motivo pelo qual as mangas do paletó fossem curtas demais para os braços compridos do Sr. Saunders. Ele estendeu um braço comprido e apontou para Gato 30 centímetros de punho ossudo tendo na ponta um dedo sagaz.
- Qual foi o papel da bruxaria nas Guerras das Rosas?
- Ha... - fez Gato. - Hum. Infelizmente ainda não estudei isso, senhor.
- Gwendolen? - disse o Sr. Saunders.
- Ah... Um papel muito importante - Gwendolen tentou adivinhar distraidamente.
- Errado - declarou o Sr. Saunders. - Roger?
O questionário trouxe à luz o fato de que Roger e Júlia tinham esquecido muita coisa durante o verão, mas ainda assim estavam muito à frente de Gato na maioria das matérias, e bem à frente de Gwendolen em todas.
- Afinal, que foi que você aprendeu na escola? - perguntou-lhe o Sr. Saunders, um tanto exasperado.
Gwendolen deu de ombros.
- Já me esqueci. Não era interessante. Eu me concentrava na bruxaria, e pretendo continuar fazendo isso, com a sua licença.
- Infelizmente não vai ser possível - declarou o Sr. Saunders. Gwendolen o encarou, mal conseguindo acreditar que tinha
ouvido corretamente.
- Como? - ela quase berrou. - Mas... Mas sou incrivelmente talentosa! Preciso continuar a aprender!
- Seu talento não vai fugir - disse o Sr. Saunders. - Você pode voltar a estudar bruxaria quando tiver aprendido outras coisas. Abra o seu livro de aritmética e faça os quatro primeiros exercícios. Eric, acho que vou lhe dar um pouco de História para estudar. Escreva-me um ensaio sobre o reinado do Rei Canuto.
Em seguida o Sr. Saunders dedicou-se a determinar deveres para Roger e Júlia.
Gato e Gwendolen abriram seus livros. O rosto de Gwendolen estava rubro, depois ficou branco. Enquanto o Sr. Saunders debruçava-se sobre Roger, o tinteiro dela ergueu-se do seu compartimento na carteira e esvaziou-se nas costas do inflado paletó de tweed do Sr. Saunders. Gato mordeu o lábio para não rir; Júlia ficou observando com plácido interesse. O tinteiro voltou silenciosamente para seu lugar.
Sem se voltar, o Sr. Saunders pediu:
- Gwendolen, pegue o vidro de tinta e o funil no fundo do armário e torne a encher esse tinteiro. E encha direito, por favor.
Gwendolen levantou-se, com jeito enérgico e desafiante; encontrou o vidro e o funil, e começou a encher seu tinteiro. Dez minutos depois, ainda estava fazendo isso. No princípio, sua expressão era de perplexidade, depois seu rosto ficou vermelho, depois pálido de raiva novamente. Ela tentou largar o vidro de tinta e constatou que não conseguia. Tentou murmurar um feitiço.
O Sr. Saunders virou-se e olhou para ela.
- O senhor está sendo muito perverso! - disse Gwendolen.
- Além disso, tenho permissão para praticar bruxaria quando o senhor estiver presente.
- Ninguém tem permissão para derramar tinta em seu tutor - disse o Sr. Saunders, bem-humorado. - E já lhe disse que você vai desistir da bruxaria por enquanto. Continue enchendo o tinteiro até eu mandar parar.
Gwendolen passou a meia hora seguinte derramando tinta no tinteiro, ficando com mais raiva a cada minuto.
Gato ficou impressionado. Supunha que o Sr. Saunders fosse um mago bem poderoso. Certamente, quando o menino tornou a olhar para o professor, não havia sinal de tinta nas costas dele. Gato olhava para o Sr. Saunders com bastante freqüência, para ver se era seguro mudar a caneta da mão direita para a esquerda. Tantas vezes fora castigado por escrever com a mão esquerda que agora tinha muita prática em ficar de olho nos professores: quando o Sr. Saunders virava-se para o seu lado, Gato usava a mão direita. Essa mão era lenta e relutante. Mas assim que o Sr. Saunders tornava a lhe dar as costas, Gato mudava a caneta de mão e passava a escrever com grande rapidez. O grande problema era que, para não borrar a tinta com a mão esquerda, ele precisava segurar o papel de lado. Mas conseguia, com grande habilidade, colocar o caderno reto sempre que parecia que o Sr. Saunders ia olhar para ele.
Terminada a meia hora, o Sr. Saunders, sem se voltar, disse a Gwendolen para parar de derramar a tinta e começar a fazer os exercícios de aritmética. Então, ainda sem se voltar, perguntou a Gato:
- Eric, que é que está fazendo?
- Uma redação sobre o Rei Canuto - respondeu o menino inocentemente.
Então o Sr. Saunders realmente virou-se para ele, mas a essa altura o caderno estava reto e a caneta, na mão direita de Gato.
- Com que mão você estava escrevendo? - o tutor perguntou. Gato estava acostumado com isso. Ergueu a mão direita com a caneta.
- Parecia que era com as duas - disse o Sr. Saunders, aproximando-se e olhando para a página. - Foi mesmo com as duas - constatou.
- Não parece - disse Gato, infeliz.
- Não muito - concordou o Sr. Saunders. - Você acha divertido alternar as mãos para escrever, ou coisa assim?
- Não. Mas sou canhoto - Gato confessou.
Então, como o menino temia, o Sr. Saunders teve um acesso de raiva. Seu rosto ficou vermelho. Ele esmurrou a carteira de Gato com a mão enorme e ossuda, por isso Gato deu um pulo e o tinteiro pulou também, jogando tinta sobre a mão enorme do Sr. Saunders e sobre a redação de Gato.
- Canhoto! - ele rugiu. - Então por que, era nome do Cavalheiro das Trevas, você não escreve com a mão esquerda, garoto?
- Eles... Eles me castigam quando faço isso - Gato gaguejou, muito perturbado e muito confuso ao constatar que o Sr. Saunders estava zangado por uma razão tão estranha.
- Então eles, sejam quem forem, merecem ser amarrados e assados! - rugiu o Sr. Saunders. - Está se prejudicando de maneira inimaginável ao obedecer-lhes, garoto! Se eu pegar você escrevendo com a mão direita outra vez, vai ter problemas realmente sérios!
- Está bem - disse Gato, aliviado, mas ainda muito perturbado.
O menino lançou um olhar melancólico para a sua redação suja de tinta, com a esperança de que o Sr. Saunders fosse usar um pouquinho de bruxaria ali também. Mas o Sr. Saunders pegou o caderno e arrancou a página borrada.
- Agora faça de novo, da maneira correta! - ordenou, colocando o caderno com violência na frente de Gato.
Gato ainda estava escrevendo tudo de novo sobre Canuto quando Mary entrou, trazendo uma bandeja com leite e biscoitos e uma xícara de café para o Sr. Saunders. E depois do leite com biscoitos o Sr. Saunders disse a Gato e Gwendolen que eles estavam livres até a hora do almoço.
- Embora não tenha sido uma boa manhã de trabalho - ressaltou. - Saiam e vão respirar ar fresco. - Enquanto os dois saíam, ele voltou-se para Roger e Júlia. - Agora vamos aprender um pouco de bruxaria - declarou. - Espero que vocês não tenham esquecido isso também.
Gwendolen parou à porta e olhou para ele.
- Você não - disse-lhe o Sr. Saunders. - Já lhe expliquei. Gwendolen girou e saiu correndo, através da surrada sala de brinquedos e ao longo do corredor. Gato correu atrás dela o mais velozmente que conseguia, mas só a alcançou quando chegaram a uma parte muito mais imponente do Castelo, onde uma grande escadaria de mármore descia em curva e a luz vinha de uma elegante clarabóia no telhado.
- O caminho não é este - Gato ofegou.
- E sim - Gwendolen contestou ferozmente. - Vou procurar Crestomanci. Por que aqueles dois gorduchos idiotas vão aprender bruxaria e eu não? Tenho o dobro dos poderes deles. Precisaram dos dois só para fazer um bule de chocolate levitar! Então quero falar com Crestomanci.
Por um lance de sorte, Crestomanci vinha pelo corredor do outro lado da escada, por trás de uma balaustrada de mármore. Vestia agora um terno castanho-amarelado em lugar do majestoso roupão, mas parecia ainda mais imponente, se isso fosse possível. Pela expressão de seu rosto, tinha os pensamentos a quilômetros dali. Gwendolen rodeou correndo o patamar da escadaria de mármore e postou-se diante dele. Crestomanci pestanejou, e olhou distraidamente para ela e depois para Gato.
- Algum de vocês estava me procurando? - perguntou.
- Sim, eu - disse Gwendolen. - O Sr. Saunders não quer me dar aulas de bruxaria, e quero que o senhor diga a ele para me ensinar.
- Ora, mas não posso fazer isso - Crestomanci objetou, ainda distraído. - Sinto muito, e assim por diante.
Gwendolen bateu com o pé no chão. Não produziu quase ruído, mesmo no piso de mármore, e não houve eco. Então ela foi forçada a gritar.
- Por que não? O senhor precisa fazer isso, precisa, precisai Crestomanci baixou os olhos para ela, de um modo curioso e surpreso, como se só então a tivesse visto.
- Parece que você está contrariada - comentou. - Mas infelizmente é inevitável. Instruí Michael Saunders a de maneira nenhuma ensinar bruxaria a qualquer um de vocês dois.
- Foi o senhor mesmo? Por quê?
- Porque fatalmente vocês usariam a bruxaria de maneira errada, é claro - Crestomanci explicou como se aquilo fosse um fato óbvio. - Mas daqui a um ano, mais ou menos, mudarei de idéia, se vocês ainda quiserem aprender.
Então sorriu bondosamente a Gwendolen, obviamente esperando que ela ficasse contente, e afastou-se, descendo os degraus de mármore com expressão sonhadora.
Gwendolen deu um pontapé na balaustrada de mármore e machucou o pé. Isso provocou-lhe uma raiva tão forte quanto a que sentia pelo Sr. Saunders. Ela pulou, saltou e guinchou, no topo da escada, até Gato ficar com bastante medo dela. Ela sacudiu os punhos na direção de Crestomanci.
- Espere só! O senhor vai ver! - berrava.
Mas Crestomanci já sumira de vista na curva da escada e provavelmente não estava ao alcance da voz dela. Até o berro mais alto de Gwendolen soava baixo e fino.
Gato sentia-se perplexo. Afinal, que era aquilo que acontecia naquele Castelo? Ele ergueu os olhos para a clarabóia, por onde a luz entrava, e pensou que os gritos de Gwendolen deveriam ter repercutido nela com toda a força; em vez disso, porém, o som era como um chiado. Enquanto esperava que ela se acalmasse, Gato fez uma experiência: levou os dedos à boca e assobiou com toda a sua força. Isso produziu apenas um barulho estranho, como o ranger de uma bota. Além disso, o assobio fez surgir a uma porta do corredor a velha dama enluvada.
- Vocês, crianças barulhentas! - ela disse. - Se quiserem gritar e assobiar, terão que ir fazer isso lá fora.
- Então vamos! - Gwendolen chamou Gato, em tom furioso. E os dois correram para a parte do Castelo a que estavam
habituados. Depois de procurarem um pouco, descobriram a porta por onde haviam entrado pela primeira vez, e saíram por ela.
- Vamos explorar tudo - Gato sugeriu.
Gwendolen deu de ombros e disse que para ela estava bem. Então partiram.
Atrás do agrupamento de rododendros, eles se viram no grande gramado com os cedros, que se estendia por toda a frente da parte mais nova do Castelo. Do outro lado dele Gato viu um muro interessantíssimo, batido pelo sol, com árvores que pendiam sobre ele. Obviamente fazia parte das ruínas de um castelo ainda mais antigo. Gato avançou para lá em passos apressados, passando diante dos janelões do Castelo novo, arrastando Gwendolen consigo. Mas na metade do caminho Gwendolen estacou e ficou a cutucar com o dedão do pé a grama aparada.
- Hum... Acha que isto aqui é considerado o Castelo? -perguntou.
- Imagino que sim - respondeu Gato. - Vamos. Quero explorar aquelas ruínas.
No entanto, o primeiro muro a que chegaram era muito baixo, e a porta que havia nele levou-os a um jardim bastante formal. Havia largas aléias de cascalho que se estendiam, muito retas, entre os canteiros. Havia árvores altas - teixos - por toda parte, podadas em forma de severas pirâmides, e todas as flores eram amarelas, em agrupamentos bem arrumados.
- Que monótono! - comentou Gato, seguindo para o muro em ruínas nos fundos do jardim.
Porém mais uma vez havia um muro mais baixo no caminho deles, e dessa vez eles chegaram a um pomar. Era um pomar muito bem organizado, no qual todas as árvores tinham sido obrigadas a crescer horizontalmente, como cercas-vivas, a cada lado das sinuosas alamedas de cascalho. Estavam carregadas de maçãs, algumas delas bastante grandes. Depois do que Crestomanci dissera sobre colher frutas sem permissão, Gato não ousou pegar uma, mas Gwendolen colheu uma bela maçã vermelha Worcester e mordeu-a.
Instantaneamente um jardineiro apareceu numa curva do caminho e lhes informou em tom de reprimenda que era proibido pegar as maçãs.
Gwendolen jogou a maçã no caminho.
- Então pegue. Estava bichada mesmo.
Eles seguiram em frente, deixando o jardineiro de olhos postos melancolicamente na maçã mordida. Só que, em vez de chegarem à ruínas, eles foram dar num lago de peixinhos dourados, e depois disso, num roseiral. Ali, Gwendolen, como experiência, tentou colher uma rosa; imediatamente apareceu outro jardineiro, que explicou respeitosamente que eles não tinham permissão para colher rosas. De modo que Gwendolen jogou também a rosa no chão. Então Gato olhou por cima do ombro e constatou que as ruínas, de algum modo, estavam agora atrás deles. Então ele fez meia-volta, mas parecia-lhe que nunca conseguiria alcançá-las. Era quase hora do almoço quando ele de súbito topou com uma trilha íngreme que subia um barranco entre dois muros; seguiu-a e encontrou as ruínas acima de si, no topo do barranco.
Gato subiu aos saltos, alegremente, a trilha escarpada. O muro batido pelo sol, à sua frente, era mais alto que a maioria das casas, e havia árvores assomando por cima dele. Ao chegar suficientemente perto, Gato avistou uma vertiginosa escadaria de pedra que se destacava do muro, mais parecida com uma escada de pintor do que com uma escada normal. Era tão velha que bocas-de-dragão e goiveiros amarelos haviam criado raízes nos degraus, e malvas cresciam pelas frestas onde a escada encontrava o solo. Gato empurrou para o lado uma alta malva vermelha para poder colocar o pé no primeiro degrau.
Mal ele fizera isso, outro jardineiro surgiu, galgando ofegante o barranco.
- Não podem subir aí! Lá em cima fica o jardim de Crestomanci!
- Por que não podemos? - Gato quis saber, profundamente decepcionado.
- Por que não é permitido, só por isso.
Devagar, com relutância, Gato deu meia-volta. O jardineiro postou-se ao pé da escada para ter certeza de que ele ia desistir.
- Droga! - Gato exclamou.
- Estou ficando cansada de Crestomanci proibir as coisas - Gwendolen declarou. - Está na hora de alguém lhe dar uma lição.
- Que é que você vai fazer? - Gato quis saber.
- Espere e verá - Gwendolen respondeu, apertando os lábios, com sua expressão mais tempestuosa.
Gwendolen recusou-se a revelar a Gato o que pretendia fazer. Isso fez com que Gato passasse momentos bastante melancólicos. Depois de um saudável almoço de verduras e carneiro cozido, houve mais aulas. Em seguida, Gwendolen afastou-se às pressas e não quis deixar que Gato fosse junto. Gato ficou sem saber o que fazer.
- Quer ir brincar lá fora? - Roger convidou.
Gato olhou para Roger e viu que ele estava simplesmente sendo educado.
- Não, obrigado - respondeu, educadamente.
Foi forçado a vagar sozinho pelo parque do Castelo. Mais abaixo havia um bosque cheio de pés de castanha-da-índia, mas as favas ainda não estavam maduras. Enquanto Gato, desanimado, contemplava a galharia de uma das árvores, percebeu que mais ou menos na metade da altura dela havia uma casa de brinquedo. Aquilo era animador. Gato estava prestes a subir na árvore quando ouviu vozes e avistou a saia de Júlia por entre as folhas. Então nada feito; aquela era a casa de brinquedo particular de Júlia e Roger, e eles estavam lá dentro.
Gato afastou-se. Chegou ao gramado e lá estava Gwendolen, agachada sob um dos cedros, ocupando-se em cavar um buraquinho.
- Que é que está fazendo? - Gato quis saber.
- Vá embora - Gwendolen respondeu.
Gato foi. Tinha certeza de que aquilo que Gwendolen estava fazendo era bruxaria e tinha a ver com a sua intenção de ensinar uma lição a Crestomanci, mas de nada adiantava fazer perguntas a Gwendolen quando ela queria manter um segredo. Gato teria que esperar. Ele esperou durante o jantar (mais uma vez apavorante) e depois, durante toda a noite muito, muito longa: terminado o jantar, Gwendolen trancou-se em seu quarto e quando ele bateu, mandou que fosse embora.
Na manhã seguinte, Gato acordou cedo e correu para uma das suas três janelas. Viu de imediato o que Gwendolen andara fazendo: o gramado estava inteiramente estragado. Não era mais a lisa extensão de veludo verde; era um campo de tocas de toupeira. Até onde a vista de Gato alcançava, em todas as direções, havia pequenos montículos verdes, morrinhos de terra em longas fileiras de terra nua e longos sulcos de grama arrancada. Certamente um exército de toupeiras trabalhara ali durante toda a noite. Cerca de doze jardineiros estavam parados, num grupo consternado, todos eles coçando a cabeça.
Gato vestiu-se apressado e disparou escada abaixo.
Gwendolen estava inclinada para fora da janela de seu quarto, vestida com sua camisola de algodão cheia de babados, inchada de orgulho.
- Veja só isso! - disse a Gato. - Não é maravilhoso? E são quilômetros! Ontem levei horas para ter certeza de que tudo ia ficar estragado. Isso vai fazer Crestomanci pensar um pouco!
Gato tinha certeza que sim. Não sabia quanto custaria para restaurar um gramado tão extenso, mas desconfiava que seria uma grande quantia. Temia que Gwendolen tivesse problemas sérios com aquilo.
Mas, para seu espanto, ninguém sequer mencionou o gramado. Eufêmia entrou um minuto depois, mas tudo o que disse foi:
- Vocês dois vão se atrasar de novo para o café da manhã. Também Roger e Júlia nada disseram. Aceitaram em silêncio a geléia e a faca de Gato, quando este as passou para eles, mas a única coisa que algum deles disse foi quando Júlia deixou cair a faca de Gato e pegou-a do chão cheia de poeira. Ela disse:
- Droga!
E quando o Sr. Saunders chamou-os à sala contígua para a aula, as únicas coisas sobre as quais falou relacionavam-se com a matéria que ele estava ensinando. Gato concluiu que ninguém sabia que Gwendolen tinha provocado o ataque das toupeiras. Ninguém poderia ter idéia da bruxa poderosa que ela era.
Nesse dia não houve aulas depois do almoço. O Sr. Saunders explicou que sempre tinham folga nas tardes de quarta-feira. E na hora do almoço todos os buracos tinham sumido: quando eles olharam pela janela da sala de brinquedos, o gramado era novamente um tapete de veludo.
- Não posso acreditar! - Gwendolen cochichou a Gato. - Deve ser uma ilusão. Estão tentando fazer eu me sentir pequenininha.
Depois do almoço os dois saíram para espiar. Eram obrigados a fazer isso com certo cuidado, porque o Sr. Saunders estava passando sua tarde de folga numa espreguiçadeira sob um dos cedros, lendo um livro de bolso de capa amarela que (parecia diverti-lo bastante. Gwendolen foi passeando até o centro do gramado e simulou estar admirando o Castelo. Fingindo amarrar o cadarço da bota, ela cutucou a terra com os dedos.
- Não entendo! - exclamou. Sendo bruxa, sabia que aquela grama lisa e densa não era uma ilusão. - Está realmente como antes. Como será que fizeram isto?
- Devem ter trazido a grama nova para cá enquanto estávamos em aula - Gato sugeriu.
- Não seja burro! - respondeu Gwendolen. - A grama nova estaria toda em quadrados, e esta não está.
O Sr. Saunders os chamou.
Por um segundo, Gwendolen parecia ainda mais apreensiva do que Gato jamais a vira. Mas disfarçou isso bastante bem, e seguiu à frente do irmão, com expressão casual, até a espreguiçadeira. Gato viu que o livro amarelo era em francês. Que coisa, poder rir de alguma coisa em francês! O Sr. Saunders devia ser um mago bastante culto, além de poderoso.
O Sr. Saunders colocou o livro aberto, com a capa para cima, sobre o gramado novamente perfeito, e sorriu para eles.
- Vocês dois saíram tão depressa que nem me deram tempo de lhes entregar a sua mesada. Aqui está.
Ele entregou a cada criança uma grande moeda de prata. Gato contemplou a sua. Era uma moeda de uma coroa - cinco xelins inteirinhos. Jamais em sua vida ele tivera tanto dinheiro para gastar. O Sr. Saunders aumentou ainda mais o seu espanto ao dizer:
- Vocês vão receber isso todas as quartas-feiras. Não sei se são poupadores ou gastadores; o que Júlia e Roger costumam fazer é ir ao povoado e gastar tudo em doces.
- Muito obrigado - disse Gato. - Vamos descer até o povoado, Gwendolen?
- Pode ser - Gwendolen concordou. Estava dividida entre o desejo do desafio, de ficar no Castelo e enfrentar as conseqüências do caso das toupeiras, fossem elas quais fossem, e o alívio por aquela desculpa para distanciar-se dali. - Imagino que Crestomanci vai mandar me chamar assim que concluir que fui eu - comentou, enquanto desciam a alameda ladeada de árvores.
- Acha que foi o Sr. Saunders quem consertou o gramado? - Gato perguntou.
- Ele não tinha condições para isso. Estava nos dando aula
- Gwendolen respondeu, franzindo a testa.
- Aqueles jardineiros - Gato sugeriu. - Alguns deles podem ser feiticeiros! Apareciam muito depressa para nos proibir as coisas.
Gwendolen soltou uma risada de zombaria.
- Lembre-se do Bruxo Ás Suas Ordens - disse.
Gato lembrou-se, mas continuou com dúvidas. O Bruxo Às Suas Ordens não tinha muitos poderes mais do que a Sra. Sharp. Geralmente era contratado para carregar coisas pesadas, ou para fazer um determinado cavalo vencer uma corrida.
- Mesmo assim, poderia ser uma especialidade: feiticeiros de jardim - argumentou.
Gwendolen limitou-se a dar outra risada.
O povoado ficava logo depois dos portões do Castelo, no sopé do morro onde este se erguia. Era um lugar bonito, ao redor de uma grande praça gramada. Do outro lado do gramado havia lojas: uma linda padaria com a frente em arco e uma igualmente linda loja de doces que também funcionava como correio. Gato queria visitar ambas, mas Gwendolen parou diante de uma terceira loja, que era um bazar de miudezas. Gato não se importaria de entrar ali também, pois o lugar parecia interessante. Mas Gwendolen balançou a cabeça com irritação e abordou um garoto que estava parado ali por perto.
- Soube que o Sr. Baslam mora nesta vila. Pode me dizer onde fica a casa dele?
O menino fez uma careta.
- Ele? Ele não presta. Se você faz questão de saber, é lá embaixo, no final daquele beco - informou, e ficou a olhar para os dois com a expressão de quem acaba de fazer jus a uma gratificação.
Tanto Gato quanto Gwendolen tinham apenas a moeda de uma coroa, e assim foram obrigados a ir embora sem lhe dar coisa alguma. O garoto gritou atrás deles:
- Bruxinha metida! Feiticeira sovina!
Gwendolen não ligou a mínima, mas Gato ficou tão envergonhado que sentiu vontade de voltar e explicar.
O Sr. Baslam morava numa casinha modesta, com um cartaz mal escrito preso numa vidraça: Mercedorias Esóxicas. Gwendolen ficou a contemplar o cartaz com certa pena, enquanto martelava a porta com a aldrava. Quando o Sr. Baslam veio abrir, as crianças viram que ele era um homem gordo, de olhos vermelhos e caídos como os de um São Bernardo, usando uma calça velha que se empapuçava em bolsas para dar lugar à gordura. Assim que os viu, ele fez menção de fechar a porta.
- Hoje não, obrigado - disse, e um forte cheiro de cerveja acompanhou essas palavras.
- O Sr. Nostrum me mandou - disse Gwendolen. - O Sr. William Nostrum.
A porta imobilizou-se.
- Ah! - fez o Sr. Baslam. - Então é melhor que entrem. Por aqui. - Levou-os para um aposento pequeno que continha quatro cadeiras, uma mesa e várias dúzias de caixas de animais empalhados. Mal havia lugar para todas as caixas. Elas estavam arrumadas em pilhas instáveis e muito empoeiradas.
- Sentem-se, então - convidou o Sr. Baslam com certa má vontade.
Gato sentou-se com cautela e tentou não respirar profundamente: além do bafo de cerveja do Sr. Baslam, havia um leve odor de podre e um cheiro parecido com o de picles. Gato imaginou que alguns dos animais empalhados não teriam sido mumificados adequadamente. O cheiro não parecia incomodar Gwendolen, que, ali sentada, era o retrato da menininha perfeita. O vestido engomado cor de creme espalhava-se ao seu redor, e o chapéu de abas largas sombreava os cabelos dourados com um belo efeito. Ela encarou o Sr. Baslam com sisudos olhos azuis.
- Acho que o seu cartaz está escrito errado.
O Sr. Baslam baixou os olhos de São Bernardo e fez uns gestos que tinham a intenção de serem brincalhões.
- Sei disso, sei disso. Mas não quero ser levado a sério, não é mesmo? Ainda mais estando bem na soleira, por assim dizer. Bem, que é que vocês desejariam? O Sr. William Nostrum não me fala muito dos seus planos. Sou apenas um humilde fornecedor.
- Quero algumas mercadorias, é claro - disse Gwendolen. Gato escutava, um pouco entediado, enquanto Gwendolen barganhava pelo material de bruxaria. O Sr. Baslam remexeu atrás das caixas de animais empalhados e pegou uns pacotinhos feitos de jornal que continham ingredientes - olhos de salamandra, línguas de serpente, cardamomo, heléboro, pigmento feito de betume e ossos (chamado "múmia"), nitro, sementes de móli (uma erva com propriedades mágicas) e várias resinas. Aquilo provavelmente era a causa do cheiro desagradável. O mercador queria receber mais pela mercadoria do que aquilo que Gwendolen estava disposta a pagar; ela estava decidida a empregar seus cinco xelins com o máximo de vantagem, e o Sr. Baslam parecia não estar gostando disso.
- Você sabe o que quer, não é? - disse ele, em tom rabugento.
- Sei quanto essas coisas deveriam custar - Gwendolen retrucou. Tirou o chapéu, arrumou os pacotinhos cuidadosamente dentro dele e colocou-o de volta na cabeça. - E, para terminar, acho que vou querer sangue de dragão - declarou.
- Oooh! - fez o Sr. Baslam, em tom lúgubre, e balançou a cabeça, sacudindo as bochechas pendentes. - O uso do sangue de dragão foi proibido, mocinha. Você devia saber disso. Acho que não conseguirei arranjar-lhe o que quer.
- O Sr. Nostrum, os dois, disseram-me que o senhor poderia conseguir qualquer coisa - Gwendolen declarou. - Disseram que o senhor é o melhor agente que eles conhecem. E não estou querendo o sangue de dragão para agora; quero deixar encomendado.
O Sr. Baslam pareceu ficar feliz por ser elogiado pelos irmãos Nostrum, mas continuava hesitante.
- Só um feitiço assustadoramente poderoso precisa de sangue de dragão - afirmou em tom melancólico. - Não pretende fazer uma coisa dessas por si só, ora, uma jovem senhorita como você!
- Ainda não sei, mas talvez faça - disse ela. - Estou estudando Magia Avançada, sabe? E quero o sangue de dragão para o caso de precisar dele.
- Vai custar caro - o Sr. Baslam advertiu. - É uma mercadoria cara. E o risco, entende? Não quero a lei em cima de mim.
- Posso pagar - Gwendolen afiançou. - Vou pagar em prestações. Pode ficar com o troco dos cinco xelins como entrada.
O Sr. Baslam não foi capaz de resistir. O modo como contemplou a moeda de uma coroa que Gwendolen lhe entregou trouxe à mente de Gato uma longa fila de espumejantes canecas de cerveja.
- Feito - disse o Sr. Baslam.
Gwendolen sorriu graciosamente e levantou-se para sair. Gato levantou-se também, aliviado.
- E quanto a você, jovem cavalheiro? Não vai tentar fazer uns feitiços também? - perguntou-lhe o Sr. Baslam em tom de adulação.
- Ele é só o meu irmão - disse Gwendolen.
- Oh. Ah. Hum. Sim, é aquele, naturalmente - disse o Sr. Baslam. - Bem, bom dia para os dois. Voltem quando quiserem.
- Quando é que vai ter o sangue de dragão? - Gwendolen perguntou, parada à porta.
- Digamos... uma semana?
Os olhos de Gwendolen brilharam.
- Tão rápido! Sabia que o senhor era um bom agente. Onde consegue isso tão depressa?
- Ora, isto é segredo, não é? - respondeu o Sr. Baslam. - Tem que vir de outro mundo, mas de qual, isto é um segredo profissional, senhorita.
Enquanto voltavam pelo beco, Gwendolen mostrava-se jubilante.
- Uma semana! E a coisa mais rápida que já vi! - exclamou. - Tem que ser contrabandeado de outro mundo, sabia? Ele deve ter excelentes contatos por lá.
- Ou então já tem a mercadoria, escondida dentro de um pássaro empalhado - sugeriu Gato, que não tinha gostado nem um pouco do Sr. Baslam. - E para que você quer sangue de dragão? A Sra. Sharp diz que custa 50 libras a onça.
- Fique quieto - disse Gwendolen. - Ah, depressa! Corra, Gato! Vamos entrar naquela loja de doces. Ela não pode saber onde eu estive.
Na praça gramada, uma senhora segurando uma sombrinha conversava com um clérigo. Era a esposa de Crestomanci. Gato e Gwendolen entraram apressados na loja, torcendo para que ela não os tivesse visto. Ali, Gato comprou um saco de caramelos para cada um. Millie ainda estava lá fora, de modo que ele comprou balas de alcaçuz também. Millie continuava conversando com o sacerdote, então ele comprou um mata-borrão para Gwendolen e para si mesmo um cartão do Castelo. Millie continuava lá fora. Mas Gato não conseguia pensar em outra coisa para comprar, de modo que os dois tiveram que sair da loja de doces.
Assim que o fizeram, Millie chamou-os com um gesto.
- Venham conhecer o nosso querido vigário.
O vigário, que era idoso e tinha o olhar fraco e vago, apertou tremulamente a mão deles e disse que os veria no domingo. Em seguida explicou que precisava mesmo ir.
- E nós também - Millie respondeu. - Vamos, meus queridos. Voltaremos juntos para o Castelo.
Não havia outra coisa a fazer senão seguir ao lado dela, sob a sombra do seu guarda-sol; atravessaram a praça e cruzaram os portões. Gato temia que ela lhes perguntasse o motivo de terem ido visitar o Sr. Baslam; Gwendolen, por sua vez, tinha certeza de que ela ia perguntar sobre as toupeiras no gramado. Mas o que Millie disse foi:
- Estou contente por ter esta oportunidade de conversar com vocês, meus queridos. Estão bem? Estão estranhando muito?
- Um... um pouco - Gato admitiu.
- Os primeiros dias são sempre os piores, em qualquer lugar - disse Millie. - Tenho certeza de que logo estarão ambientados. E não hesitem em usar os brinquedos do quarto de brinquedos, se quiserem. São para todos. Os brinquedos particulares ficam guardados no quarto de cada um. E o que estão achando dos seus quartos?
Gato ergueu os olhos para ela, espantado. Millie estava falando como se as toupeiras e a bruxaria não existissem. Apesar do seu elegante vestido de babados e da sombrinha de renda, era uma senhora comum, boazinha, simpática. Gato gostava dela. Assegurou-lhe que gostava do seu quarto e do banheiro - principalmente do chuveiro - e explicou que nunca em sua vida tivera um banheiro só para si.
- Ah, fico feliz. Tinha mesmo esperança de que gostasse -Millie declarou. - A Srta. Bessemer queria colocar você ao lado de Roger, mas eu acho aquele quarto tão monótono, e o banheiro não tem chuveiro. Numa hora dessas vá conhecê-lo e entenderá o que quero dizer.
Ela continuou tagarelando enquanto percorriam a alameda, e Gato encarregou-se de responder-lhe: assim que teve certeza de que Millie não iria mencionar gramados ou mercadorias exóticas, Gwendolen começou a desprezá-la e manteve um silêncio desdenhoso, deixando a conversa para Gato. Depois de algum tempo, Millie perguntou a Gato qual era a coisa que ele considerava mais estranha no Castelo.
Gato respondeu timidamente, mas sem hesitar:
- O modo como todos falam durante o jantar.
Millie soltou tamanho gemido de desespero que Gato deu um salto e Gwendolen sentiu seu desdém aumentar.
- Ah! Coitado do Eric! Vi você olhando! Não é horrível? Michael tem esses entusiasmos, e então não consegue falar de outra coisa. Mas daqui a um ou dois dias isso já deverá ter passado, e então poderemos voltar a ter conversas razoáveis e fazer algumas piadas. Gosto de rir no jantar, vocês não? Infelizmente, nada consegue impedir o coitado do Bernard de falar sobre ações e dividendos, mas vocês devem ignorar isso. Ninguém escuta Bernard. Aliás, vocês gostam de bomba de chocolate?
- Sim! - Gato exclamou.
- Ah, que ótimo! - disse Millie. - Mandei servir nosso chá no gramado, já que é a primeira quarta-feira de vocês e eu não queria desperdiçar este dia esplêndido. Não é engraçado como setembro costuma ser todo bonito? Se passarmos por aqui, por entre as árvores, chegaremos ao gramado juntamente com o chá.
E, realmente, eles seguiram Millie através do grupo de árvores e encontraram várias espreguiçadeiras em volta daquela que o Sr. Saunders ocupava, e alguns criados traziam mesas e bandejas. A maior parte da Família estava reunida no grupo de espreguiçadeiras. Gwendolen seguiu Millie e Gato até lá, parecendo nervosa e desafiante: sabia que Crestomanci ia aproveitar a 4ocasião para falar com ela a respeito do gramado, e, para piorar as coisas, ela não teria oportunidade de retirar as compras de dentro do chapéu antes disso.
Mas Crestomanci não estava presente, embora todos os outros estivessem. Millie espremeu-se entre as ações e os dividendos de Bernard e Júlia e passou pela anciã de luvas, para apontar energicamente o seu guarda-sol para o Sr. Saunders.
- Michael, você está absolutamente proibido de falar sobre Arte durante o chá - disse, com uma risada que dissipou sua severidade.
Era evidente que a Família partilhava da opinião de Gato; vários membros soltaram vivas, e Roger perguntou:
- Podemos começar, mamãe?
Gato gostou da refeição. Era a primeira vez que ele gostava de alguma coisa desde que chegara ao Castelo. Havia sanduíches de pepino em fatias de pão finas como papel, e grandes bombas de chocolate repletas de creme. Gato comeu ainda mais do que Roger. Estava cercado pela conversa alegre e casual da Família, com um zumbido de ações e dividendos ao fundo, e o sol brilhava morno e pacífico na grande amplidão do gramado. Gato achava bom que alguém tivesse, de um modo qualquer, restaurado o gramado; gostava mais dele assim. Começou a pensar que, com um pouco de prática, quase que poderia ser feliz no Castelo.
Gwendolen não estava tão feliz: os embrulhinhos de jornal pesavam sobre a sua cabeça, e o cheiro deles estragava o sabor das bombas de chocolate. E ela sabia que seria obrigada a esperar até o jantar antes que Crestomanci a repreendesse por causa do gramado.
Naquela noite o jantar foi atrasado, por causa do chá. O sol morria quando eles entraram em fila na sala de refeições. Em toda a extensão da mesa encerada havia velas acesas. Gato via as velas, e também a sala toda, refletidas nas vidraças da longa fila de janelas à sua frente. Era uma visão agradável, e útil: Gato conseguia vigiar a aproximação do criado. Dessa vez ele não foi pego de surpresa quando o homem enfiou uma bandeja de peixinhos e picles de repolho por cima do seu ombro. E, como estava proibido de usar a mão direita, Gato sentia-se justificado em trocar os talheres de lugar. Estava começando a sentir-se em casa.
Como não tivera permissão de falar sobre Arte durante o chá, o Sr. Saunders mostrou-se mais do que normalmente eloqüente durante o jantar. Falava sem parar. Monopolizou a atenção de Crestomanci, e dirigia-se a ele. Crestomanci parecia distraído e de bom humor; escutava e assentia com a cabeça. E a cada minuto Gwendolen ficava mais zangada. Crestomanci não disse uma palavra sobre gramados - nem ali, nem na sala de estar, antes disso. Era cada vez mais óbvio que ninguém ia mencionar aquele assunto.
E Gwendolen ficou furiosa. Queria que seus poderes fossem reconhecidos. Queria mostrar a Crestomanci que ela era uma bruxa de respeito. Sendo assim, a única coisa que lhe restava era começar outro feitiço. Estava um pouco prejudicada por não ter à mão os ingredientes, mas havia uma coisa que ela poderia fazer com facilidade.
O jantar prosseguia. O Sr. Saunders falava sem cessar. Os criados trouxeram o prato seguinte. Gato olhou para as vidraças para vigiar a aproximação da bandeja de prata. E quase soltou um grito.
Via lá fora uma criatura magra e branca. Ela apertava-se contra a escuridão do lado de fora da vidraça, movendo a boca e acenando. Parecia o fantasma perdido de um lunático. Era fraca, branca, nojenta. Era viscosa e suja de lodo. Mesmo tendo concluído de imediato que aquilo era coisa de Gwendolen, ele continuou de olhos fixos nela, horrorizado.
Millie percebeu o olhar dele; olhou naquela direção, estremeceu e deu um tapinha com sua colher nas costas da mão de Crestomanci. Este saiu de seu devaneio e virou-se para a janela também. Olhou para a pobre criatura com olhar entediado e suspirou.
- Assim, ainda acho que Florença é o melhor de todos os Estados Italianos - o Sr. Saunders declarou. - As pessoas geralmente mostram preferência por Veneza - Crestomanci respondeu-lhe. - Frazier, quer fechar as cortinas, por favor? Muito obrigado.
- Não, não. Na minha opinião, Veneza é exageradamente louvada - o Sr. Saunders afirmou, para em seguida explicar o motivo.
Enquanto isso, o mordomo corria as compridas cortinas cor de laranja, escondendo de vista a criatura.
- E, talvez tenha razão. Florença tem mais a oferecer - Crestomanci concordou. - Aliás, Gwendolen, quando falei no Castelo, naturalmente incluía o terreno do Castelo, além da construção em si. Bem, continue, Michael. Veneza...
Todos continuaram a conversar, com exceção de Gato. Ele ficava imaginando a criatura ainda movendo a boca e batendo na vidraça por trás das cortinas alaranjadas. Esse pensamento não permitiu que ele comesse.
- Está tudo bem, seu burro! Já mandei aquela coisa embora - disse-lhe Gwendolen. Sua voz estava rouca de raiva.
Gwendolen deu vazão à sua fúria dentro do quarto, depois do jantar. Deu pulos em cima da cama e jogou longe os travesseiros, aos gritos. Gato, prudentemente, ficou encostado à parede esperando que ela terminasse. Mas Gwendolen só terminou depois que jurou iniciar uma guerra contra Crestomanci.
- Odeio este lugar! - berrou. - Eles tentam esconder tudo por trás de uma capa de bondade, doçura e suavidade. Odeio, odeio! - Sua voz saía abafada por entre os veludos do quarto e engolida pela maciez que reinava no Castelo. - Está escutando? - Gwendolen berrava. - É um horrível edredom de bondade. Eu estrago o gramado deles, então eles me dão chá; conjuro uma bela de uma alma penada e eles mandam fechar as cortinas. Frazier, quer fechar as cortinas, por favor? Droga! Crestomanci me dá engulho!
- Não achei a aparição nada bela - Gato afirmou, estremecendo.
- Ha, ha! Não sabia que eu conseguia fazer isso, não é? - disse Gwendolen. - Não era para assustar você, seu idiota. Era para dar um choque era Crestomanci. Odeio Crestomanci! Ele nem sequer se interessou!
- Por que ele nos trouxe para viver aqui, se não está interessado em você também? - Gato quis saber.
Gwendolen levou um susto com isso.
- Não havia pensado nisso - disse. - Pode ser sério. Vá embora. Quero pensar sobre isso. - Quando Gato se encaminhava para a porta, ela gritou: - De qualquer maneira ele vai se interessar, mesmo que seja a última coisa que eu faça! Vou aprontar alguma confusão todos os dias, até ele perceber!
Mais uma vez Gato estava sozinho e melancólico. Lembrando-se do que Millie dissera, foi até a sala de brinquedos. Mas Roger e Júlia estavam lá, brincando com soldadinhos no tapete manchado. Os pequenos granadeiros de lata estavam marchando. Alguns empurravam canhões. Outros estavam deitados atrás de almofadas, disparando seus rifles com pequenos estalidos. Roger e Júlia voltaram-se, com ar de culpa.
- Não vai contar para ninguém, está bem? - Júlia pediu.
- Quer vir brincar também? - Roger convidou educadamente.
- Ah, não, obrigado! - Gato apressou-se a dizer.
Sabia que nunca poderia entrar naquele tipo de brincadeira, a não ser que Gwendolen o ajudasse. Mas não ousava perturbar Gwendolen no estado de espírito em que ela se encontrava. E não tinha coisa alguma para fazer. Então lembrou-se de que Millie obviamente esperava que ele passeasse pelo Castelo, mais do que fizera até então. Assim, partiu em exploração, sentindo-se bastante ousado.
À noite, o Castelo tinha uma aparência estranha. Havia fracas lâmpadas elétricas a intervalos regulares. O tapete verde cintilava suavemente, e as coisas se refletiam no chão encerado e nas paredes ainda com mais nitidez do que durante o dia. Gato caminhava com passos leves, acompanhado por vários fantasmas de si mesmo refletidos, até mal se sentir real. Todas as portas que viu estavam fechadas. Gato escutou junto a uma ou duas, e nada ouviu. Não conseguindo reunir coragem para abrir alguma delas, continuou seu caminho.
Depois de algum tempo, descobriu que, de um modo qualquer, tinha chegado à parte antiga do Castelo. Ali, as paredes eram de pedra caiada, e todas as janelas tinham um recesso de quase um metro até a vidraça. Então Gato chegou a uma escada que era gêmea daquela que subia em espiral para o seu quarto, com a diferença de que esta curvava-se na direção oposta. Gato subiu-a cautelosamente.
Estava justamente na última curva quando uma porta abriu-se no topo. Um quadrado de luz mais brilhante refletiu-se na parede, no alto da escada, e postou-se nele uma sombra que só poderia pertencer a Crestomanci. Nenhuma outra pessoa poderia ter uma sombra tão alta, com uma cabeça tão lisa e tantos babados na frente da camisa. Gato estacou.
- E vamos esperar que aquela menina desgraçada não tente outra vez - disse Crestomanci, lá em cima, fora de vista. Parecia bem mais alerta do que de costume, e zangado também.
A voz do Sr. Saunders respondeu, vinda de mais longe:
- Para ser franco, já estou farto dela. Imagino que ela logo vai criar juízo. Que foi que lhe deu, para denunciar desse modo a fonte do seu poder?
- Ignorância - disse Crestomanci. - Se eu achasse que ela tem a menor idéia do que estava fazendo, aquela seria a última coisa que ela teria feito, de magia ou de qualquer outra coisa.
- Eu estava de costas - disse o Sr. Saunders. - Qual foi? O número cinco?
- Não. O número três, a julgar pelos cabelos. Uma alma penada, ainda bem - disse Crestomanci. Ele pôs-se a descer os degraus. Gato estava assustado demais para mover-se. - Vou fazer a Junta Examinadora rever os Cursos de Magia Elementar, para incluir mais teoria - Crestomanci disse em voz alta, enquanto descia a escada. - Esses magos da roça ensinam práticas avançadas aos seus alunos talentosos sem lhes dar uma base. - Assim falando, Crestomanci surgiu na curva da escada e avistou Gato. - Ah, olá - disse. - Não fazia idéia de que você estava aí. Gostaria de subir e dar uma olhada no laboratório de Michael?
Gato assentiu; não ousaria fazer outra coisa.
No entanto, Crestomanci parecia bem amigável, assim como o Sr. Saunders quando Crestomanci fez Gato entrar no quarto no topo da escada.
- Olá, Eric - disse, com seus modos alegres. - Dê uma olhada por aí. Sabe para que serve alguma dessas coisas?
Gato negou com a cabeça. O aposento era redondo, como o seu próprio quarto, porém maior, e era um típico laboratório de magia, isso ele conseguia perceber: reconheceu a estrela de cinco pontas pintada no chão. E o cheiro que vinha da lamparina pendurada no teto era o mesmo cheiro que pairava sobre a Rua Sabá, lá em Wolvercote. Mas ele não fazia idéia de como eram usados os objetos colocados em cima das várias bancadas sobre cavaletes. Uma delas estava repleta de retortas e alambiques, alguns borbulhando, outros vazios; numa segunda bancada havia pilhas de livros e pergaminhos. A terceira tinha signos desenhados a giz sobre toda a sua superfície, e em meio aos signos jazia uma criatura mumificada.
Os olhos de Gato percorreram tudo aquilo, e os outros livros enfiados em prateleiras era todas as paredes, e mais prateleiras repletas de frascos de ingredientes - frascos grandes, como aqueles nas lojas de doces. Ele concluiu que o Sr. Saunders realizava grandes trabalhos. Seus olhos dardejaram por alguns dos rótulos nos imensos frascos: Olhos de Salamandra, Goma Arábica, Elixir de Erva de São João, Sangue de Dragão (seco). Esse último frasco estava quase totalmente cheio de um pó marrom-escuro. Os olhos de Gato voltaram para o animal mumificado estendido entre os signos desenhados a giz na terceira bancada: tinha patas como as de um cachorro e assemelhava-se a um grande lagarto - porém parecia ter asas nas costas. Gato tinha quase certeza de que a criatura tinha sido um pequeno dragão.
- Não faz a menor idéia, não é mesmo? - perguntou o Sr. Saunders.
Gato virou-se e viu que Crestomanci havia partido. Aquilo deixou-o um pouquinho mais calmo.
- Isto tudo deve ter custado muito caro - comentou.
- Os impostos pagam, felizmente - disse o Sr. Saunders.
- Gostaria de aprender sobre todas estas coisas?
- Quer dizer, aprender bruxaria? - Gato perguntou. - Não. Não, muito obrigado. Eu não ia conseguir.
- Bem, eu estava pensando em pelo menos duas outras coisas além de bruxaria - disse o Sr. Saunders. - Mas por que é que pensa que não ia conseguir?
- Porque não consigo - Gato explicou. - Os meus feitiços simplesmente não funcionam.
- Tem certeza de que faz as coisas da maneira correta? - perguntou o Sr. Saunders.
Ele foi até a múmia do dragão - ou fosse o que fosse - e cutucou-a distraidamente. Para horror de Gato, a criatura estremeceu; nas suas costas, asas finíssimas sacudiram-se e abriram-se. Então ela tornou a ficar sem vida. Essa visão fez Gato retroceder para a porta. Estava quase tão assustado quanto ficara na ocasião em que a Srta. Larkins de repente falara com voz masculina. E, pensando bem, a voz não tinha sido muito diferente da do Sr. Saunders.
- Tentei de todas as maneiras que pude imaginar - Gato explicou, recuando. - Não consegui sequer transformar botões em ouro. E isso era simples.
O Sr. Saunders riu.
- Talvez você não seja suficientemente ganancioso - disse. - Está bem. Pode ir, se quiser.
Gato saiu, para seu grande alívio. Enquanto percorria velozmente os estranhos corredores, pensava que deveria contar a Gwendolen que Crestomanci, afinal, tinha ficado interessado na aparição dela, e até mesmo zangado. Mas Gwendolen havia trancado a porta de seu quarto e não quis responder quando ele a chamou.
Na manha seguinte ele tentou novamente. Porém, antes que tivesse uma oportunidade de falar com Gwendolen, Eufêmia entrou, trazendo uma carta. Gato reconheceu no envelope a caligrafia irregular do Sr. Nostrum.
No instante seguinte, Gwendolen estava novamente furiosa.
- Quem fez isto? Quando foi que isto chegou? O envelope tinha sido aberto.
- Chegou hoje de manhã, pelo carimbo do correio - disse Eufêmia. - E não olhe para mim assim. A Srta. Bessemer me entregou o envelope aberto.
- Como foi que ela ousou? - disse Gwendolen. - Como é que ela tem a audácia de ler as minhas cartas? Vou agora mesmo falar com Crestomanci sobre isso!
- Vai se arrepender se fizer isso - disse Eufêmia, enquanto Gwendolen passava por ela em direção à porta.
Gwendolen girou na direção dela.
- Ora, cale a boca, sua garota idiota, cara de sapo!
Gato achou aquilo um pouco injusto; Eufêmia, embora tivesse mesmo os olhos um pouco saltados, era na verdade bem bonitinha.
- Vamos, Gato! - Gwendolen gritou, e saiu correndo pelo corredor com a carta na mão.
Gato, ofegante, correu atrás dela e, novamente, só conseguiu alcançá-la quando estavam no alto da escadaria de mármore.
- Crestomanci! - Gwendolen berrou, em voz fina, baixa e sem eco.
Crestomanci estava subindo a escadaria de mármore, metido num roupão largo que era em parte alaranjado e em parte rosa brilhante. Parecia o Imperador do Peru. A julgar pela expressão tranqüila e distraída do seu rosto, ele não percebera Gwendolen e Gato. Gwendolen gritou-lhe:
- Ei, senhor! Venha até aqui imediatamente! Crestomanci ergueu o rosto e franziu a testa.
- Alguém andou abrindo minhas cartas - Gwendolen prosseguiu. - Não me importo quem seja, mas não quero que isso aconteça! O senhor está escutando?
Gato engasgou-se por causa do modo como ela falou. Crestomanci parecia perplexo.
- Como assim, você não quer que isso aconteça? - perguntou.
- Não vou admitir! - Gwendolen berrou em resposta. - No faturo, minhas cartas serão entregues a mim fechadas!
- Está querendo dizer que deseja que eu as abra com vapor e torne a colar os envelopes depois? - Crestomanci perguntou, em tom de dúvida. - Vai dar mais trabalho, mas farei isso, se for para você ficar mais feliz.
Gwendolen o encarou.
- Está dizendo que foi o senhor quem fez isso? Leu uma carta endereçada a mim?.
Crestomanci assentiu calmamente.
- Naturalmente. Se alguém como Henry Nostrum escreve uma carta para você, tenho que me certificar de que ele não está escrevendo alguma coisa imprópria. É uma pessoa muito decadente.
- Era o meu professor! O senhor não tem o direito de fazer isso! - Gwendolen insistiu, furiosa.
- E uma pena que você tenha sido instruída por um mago caipira - disse Crestomanci. - Vai ter que desaprender muita coisa. E é uma pena também que eu não tenha o direito de abrir as suas cartas. Espero que não receba muitas, senão a minha consciência não vai me deixar em paz.
- Então o senhor pretende continuar fazendo isso? Então preste atenção, estou avisando!
- Isso é muita consideração da sua parte. Gosto de ser avisado - disse Crestomanci.
Ele subiu o resto dos degraus de mármore e passou por Gwendolen e Gato. As abas do roupão se abriram, revelando o forro vermelho. Gato pestanejou.
Gwendolen ficou vendo, furiosa, o exuberante roupão afastar-se pelo corredor.
- Ah, não, não me dê atenção, está bem? - gritou. - Faça piadinhas. Pode esperar! Gato, estou tão furiosa!
- Você foi muito grosseira - disse Gato.
- Ele mereceu - replicou Gwendolen, pondo-se a caminhar apressadamente em direção à sala de brinquedos. -Abrir a carta do coitado do Sr. Nostrum! Não que eu me importe que ele leia. Temos um código, de modo que esse Crestomanci horroroso nunca saberá o que a carta está dizendo realmente, mas a assinatura está ali. E é mais pelo insulto, o abuso. Estou à mercê deles, neste Castelo. Estou sozinha e aflita, e não consigo sequer impedir que leiam as minhas cartas. Mas vou mostrar a eles, pode esperar!
Gato era suficientemente sabido para não dizer coisa alguma. Gwendolen irrompeu na sala de brinquedos, jogou-se numa cadeira e começou finalmente a ler a carta.
- Eu avisei - comentou Eufêmia, enquanto Mary fazia funcionar o elevador.
Gwendolen olhou-a de soslaio.
- Você, também, pode esperar - disse, e continuou a ler. Depois de algum tempo, tornou a examinar o envelope. - Veio uma carta para você também - informou a Gato, jogando-lhe uma folha de papel. - Não vá deixar de responder.
Gato pegou-a, nervoso, perguntando-se por que o Sr. Nostrum lhe escreveria. Mas a carta era da Sra. Sharp, e dizia:
Meu qerido Gato:
Como vai indo docinho? To cum saudade dus dois pincipalment de você a casa ta muito queta. Pensei que ia gostar do sosego mas sinto farta da sua voz e queria qui você entrassi trasendo maçãs. Uma coisa conteceu qui veio um home e deu cinco libra pelo seu gato então tive idéia de fazer um pacote com bunequinhos de gingibre e talves levar pra você um dia desses mas o s. Nostrum diz que não. Imagino qui você ta vivendo nu luxo. Lembransa pra Gwendolen. Sinto saudadi sua Gato num é pelo dinheiro.
Com amor,
Ellen Sharp
Gato leu a carta com um sentimento cálido, ao mesmo tempo sorridente e choroso. Descobriu que sentia tanta saudade da Sra. Sharp quanto ela evidentemente sentia dele. Ficou tão saudoso que não conseguiu comer o pão e engasgou com o chocolate. Não escutou uma palavra do que o Sr. Saunders dizia.
- Está acontecendo alguma coisa com você, Eric? - o professor quis saber.
Enquanto Gato obrigava seus pensamentos a voltarem da Rua Sabá, a janela escureceu. O quarto ficou subitamente mergulhado na escuridão. Júlia soltou um guincho. O Sr. Saunders tateou até o interruptor e acendeu a luz. Quando ele fez isso, a janela tornou a ficar transparente, revelando Roger a sorrir, Júlia assustada, Gwendolen sentada com ar inocente e o Sr. Saunders, com a mão no interruptor, olhando para ela com expressão irritada.
- Imagino que a causa disto está fora do terreno do Castelo, certo? - perguntou.
- Fora dos portões - Gwendolen confirmou, com ar orgulhoso. - Coloquei lá hoje de manhã.
Diante disso, Gato ficou sabendo que a guerra dela contra Crestomanci havia começado. A janela tornou a escurecer.
- Quantas vezes isso vai acontecer? - perguntou o Sr. Saunders na escuridão.
- Duas vezes a cada meia hora - Gwendolen informou.
- Obrigado - o Sr. Saunders disse em tom de raiva, e deixou a luz acesa. - Agora que podemos enxergar, Gwendolen, escreva cem vezes: Devo obedecer ao espírito, e não a letra da lei. E, Roger, tire esse sorriso da cara.
Durante todo aquele dia, todas as janelas do Castelo escureceram regularmente duas vezes a cada meia hora. Mas se Gwendolen tinha esperanças de irritar Crestomanci, não conseguiu. Nada aconteceu, exceto que todos mantiveram as luzes acesas o tempo todo. Era um pouquinho inconveniente, mas ninguém parecia importar-se com isso.
Antes do almoço Gato saiu para o gramado, para ver como eram os blecautes do lado de fora. Era como se abrissem e fechassem duas cortinas negras diante de cada janela. Começavam no canto superior direito e percorriam toda a extensão da fachada até a extremidade esquerda, desciam para a fileira abaixo e a percorriam da esquerda para a direita, e na seguinte da direita para a esquerda, e assim por diante, até chegarem ao térreo. Então recomeçavam no alto. Gato ficou observando. Gato havia assistido a cerca da metade de um circuito completo quando percebeu Roger ao seu lado, contemplando o espetáculo com expressão crítica e as mãos gorduchas dentro dos bolsos.
- Sua irmã deve ser muito organizada - comentou.
- Acho que todos os bruxos são - Gato respondeu.
Aí ele sentiu-se embaraçado: estava conversando com um deles, naturalmente - ou, pelo menos, com um bruxo em formação.
- Acho que eu não sou - Roger comentou, nem um pouco preocupado. - Nem Júlia. E acho que na realidade Michael também não é muito organizado. Gostaria de brincar na nossa casa da árvore depois das aulas?
Gato sentiu-se lisonjeado. Ficou tão contente que esqueceu a saudade que sentia de casa. Passou uma tarde muito feliz no bosque, ajudando a restaurar o telhado da casa de brinquedo. Voltou para o Castelo quando ouviu o gongo de vestir-se, e constatou que o feitiço das janelas estava desaparecendo aos poucos: quando as janelas escureciam, produziam apenas uma espécie de crepúsculo cinzento dentro da casa. Na manha seguinte ele havia se dissipado totalmente, e Crestomanci não dissera uma única palavra de comentário.
Gwendolen voltou ao ataque na manhã seguinte. Pegou o menino da padaria quando este passou de bicicleta pelos portões com a cesta quadrada cheia de pães para o Castelo. O garoto chegou à porta da cozinha parecendo um pouco zonzo e dizendo que sua cabeça estava girando. Como conseqüência, as crianças tiveram que comer biscoitos no café da manha: quando o pão era cortado, aconteciam coisas interessantíssimas.
- Você está nos divertindo muito - Mary comentou, pegando os biscoitos no elevador. - Tenho que reconhecer isso nas suas travessuras, Gwendolen. Roberts pensou que tinha enlouquecido quando descobriu que estava cortando uma bota velha. Então a cozinheira cortou outro pão, e no momento seguinte ela e Nancy estavam trepadas na mesma cadeira, por causa de todos aqueles ratos brancos. Mas foi a cara do Sr. Frazier que me fez rir de verdade, quando ele disse "Deixem que eu corto" e quando viu, estava tentando cortar uma pedra. Então o...
- Você não deve incentivar a menina. Sabe como ela é - Eufêmia interpôs.
- Cuidado para eu não começar em você - Gwendolen ameaçou, irritada.
Roger ficou sabendo, em conversa particular com Mary, o que acontecera com os outros pães. Um deles transformara-se num coelho branco; outro, num ovo de avestruz - que explodiu violentamente sobre o menino encarregado de cuidar das botas - e outro, numa enorme cebola branca. Depois disso, a criatividade de Gwendolen se esgotara e ela transformara o resto em queijo.
- Mas queijo velho e estragado - Roger emendou, dando a Gwendolen o crédito merecido.
Não se sabia se Crestomanci também dera o crédito a quem merecia, porque, mais uma vez, ele não disse uma só palavra sobre isso a qualquer pessoa.
O dia seguinte era sábado. Gwendolen pegou o fazendeiro trazendo o leite que o Castelo consumia diariamente; o chocolate do café da manhã ficou com um gosto horrível.
- Estou começando a ficar zangada - Júlia comentou em tom irritado. - Papai é capaz de nem perceber, pois ele toma chá com limão.
Ela encarou Gwendolen com expressão significativa. Gwendolen encarou-a de volta, e houve aquela sensação de combate invisível que Gato percebera quando ela quis pegar os brincos de sua mãe da mão da Sra. Sharp. Dessa vez, no entanto, as coisas não aconteceram totalmente como Gwendolen queria; ela baixou os olhos e assumiu uma expressão rabugenta.
- Estou ficando cansada de me levantar cedo, de qualquer maneira - disse com raiva.
Isto, vindo de Gwendolen, significava simplesmente que ela faria alguma coisa no futuro, não tão no início do dia. Mas Júlia julgou que havia derrotado Gwendolen, e isso foi um erro.
Tiveram aulas na manha de sábado, o que deixou Gwendolen muito contrariada.
- E monstruoso - comentou com o Sr. Saunders. - Por que precisamos ser atormentados desse jeito?
- É o preço que tenho que pagar pela minha folga nas quartas-feiras - explicou o Sr. Saunders. - E, por falar em atormentar, prefiro que você vá enfeitiçar outra coisa que não seja o leite.
- Vou me lembrar disso - Gwendolen prometeu com voz doce.
Choveu sábado à tarde. Gwendolen trancou-se em seu quarto, e mais uma vez Gato ficou sem saber o que fazer. Escreveu para a Sra. Sharp nas costas do seu cartão-postal do Castelo, mas isso levou apenas dez minutos, e o tempo chuvoso não lhe permitia sair para levá-lo ao correio. Gato estava parado ao pé da sua escada, perguntando-se o que faria a seguir, quando Roger saiu da sala de brinquedos e o viu.
- Ah, que bom! Júlia não quer brincar de soldadinhos. Você quer? - ele perguntou.
- Mas não consigo. Não sei fazer o que vocês fazem - Gato objetou.
- Não faz diferença. Sinceramente.
Mas fazia. Por mais esperteza que Gato usasse para dispor seu exercito de lata, seus soldados tombavam como frutos maduros assim que os de Roger começavam a marchar. Caíam aos montes, aos batalhões. Gato movimentava-os furiosamente de uma direção para outra, agarrando-os aos punhados e recolhendo-os com a tampa da caixa, mas estava sempre batendo em retirada. Em cinco minutos ele estava reduzido a três soldados escondidos debaixo de uma almofada.
- Isso não tem graça - Roger desabafou.
- Não tem mesmo - Gato concordou com tristeza.
- Júlia! - Roger chamou.
- Que foi? - disse a menina.
Ela estava aninhada na poltrona mais estragada, conseguindo chupar um pirulito, ler um livro chamado "Nas Mãos dos Lamas" e tricotar, tudo ao mesmo tempo. Não era de surpreender que o seu tricô parecesse um colete de girafa tingido de seis tons de cinzento.
- Pode mover os soldadinhos de Gato para ele? - Roger pediu.
- Estou lendo - Júlia objetou, com o pirulito na boca. - É emocionante. Um deles se perdeu e os outros acham que ele morreu dolorosamente.
- Seja boazinha - Roger insistiu. - Se não me ajudar, vou lhe contar se ele morreu ou não.
- Se fizer isso, vou transformar sua cueca em gelo -Júlia respondeu em tom amigável. - Está bem.
Sem tirar os olhos do livro ou o pirulito da boca, ela tateou até encontrar seu lenço e deu um nó nele. Colocou o lenço no braço da poltrona e continuou a tricotar.
Os soldados caídos de Gato levantaram-se do chão e ajeitaram suas fardas de lata. Aquilo foi um grande progresso, embora ainda não inteiramente satisfatório; Gato não conseguia dizer aos soldados o que fazer. Tinha que empurrá-los com a mãos para as posições desejadas. Os soldados não pareciam felizes; olhavam com grande consternação para as imensas mãos movendo-se acima deles. Gato tinha certeza de que um deles desmaiara de terror. Mas finalmente conseguiu arrumá-los - com grande técnica, ele julgava.
A batalha começou. Os soldados pareciam saber como lutar. Gato tinha uma companhia de reserva atrás de uma almofada e, quando o combate estava mais feroz, empurrou-a para que os soldados caíssem sobre a ala direita de Roger. A ala direita de Roger virou-se e lutou - e todos os soldados que Gato tinha de re- serva viraram-se e fugiram. O restante do seu exército viu os companheiros fugindo e fugiu também. Dentro de três segundos estavam todos tentando esconder-se no armário de brinquedos, e os soldados de Roger os derrubavam em bandos. Roger ficou exasperado.
- Os soldados de Júlia sempre fogem! - reclamou.
- Por que é exatamente o que eu faria - Júlia interpôs, colocando uma agulha de tricô dentro do livro para marcar o lugar onde ela tinha parado de ler. - Não entendo por que todos não fazem isso.
- Bom, faça-os um pouco mais corajosos. Assim não é justo com Eric - Roger pediu.
- Você só disse para fazer eles se moverem - Júlia estava argumentando quando a porta se abriu e Gwendolen assomou a cabeça.
- Preciso do Gato - ela disse.
- Ele está ocupado - Roger respondeu.
- Não tem importância. Preciso dele.
Júlia estendeu uma agulha de tricô na direção de Gwendolen e desenhou uma pequena cruz no ar. Por um segundo a cruz flutuou, brilhando.
- Saia. Vá embora - Júlia ordenou.
Gwendolen recuou, afastando-se da cruz, e tornou a fechar a porta. Era como se ela não conseguisse deixar de fazer isso. Pela expressão do seu rosto, estava muito zangada. Júlia sorriu placidamente e apontou a agulha de tricô para os soldados de Gato.
- Pode continuar. Enchi o coração deles de coragem -anunciou.
Quando o gongo de vestir-se soou, Gato saiu e foi saber para que Gwendolen o queria. Gwendolen estava muito ocupada lendo um livro grosso, de aparência nova, e a princípio não pôde lhe dar atenção. Gato inclinou a cabeça e leu o título do livro. "Estudos do Além, Série III". Enquanto ele lia, Gwendolen pôs-se a rir.
- Ah, agora sei como funciona! - exclamou. - E ainda melhor do que eu pensava! Agora sei o que fazer!
Então baixou o livro e perguntou a Gato o que ele pensava que estava fazendo.
- Por que precisava de mim? Onde arranjou esse livro? - o menino perguntou.
- Na biblioteca do Castelo - Gwendolen revelou. - E não preciso mais de você. Ia lhe explicar os planos do Sr. Nostrum, e poderia até ter lhe contado os meus, mas mudei de idéia quando você ficou ali sentado e deixou aquela gorducha metida me mandar embora.
- Não sabia que o Sr. Nostrum tinha planos - Gato comentou. - O gongo de vestir-se já tocou.
- É claro que ele tem planos. Por que pensa que escrevi para Crestomanci?- disse Gwendolen. - Eu ouvi o gongo. E tentar me adular não vai adiantar. Não vou lhe contar, e você vai se arrepender. E aquela metida da Júlia vai se arrepender ainda mais, e mais cedo!
Gwendolen vingou-se de Júlia no início do jantar. Um criado estava passando uma terrina de sopa por cima do ombro de Júlia quando a saia do vestido dela transformou-se em serpentes. Júlia deu um guincho e um pulo. A sopa derramou-se sobre as serpentes e voou para todos os lados, e o criado exclamou, em meio ao ruído da terrina despedaçando-se no chão:
- Valha-me, Deus!
Então houve um silêncio mortal, rompido apenas pelo cicio das serpentes. Eram vinte, penduradas pelo rabo na cintura de Júlia, contorcendo-se e atacando. Todos ficaram paralisados, voltados rigidamente em direção a Júlia. Esta parecia uma estátua, os braços erguidos para longe do alcance das cobras. Ela engoliu e disse as palavras de um feitiço.
Ninguém a repreendeu. O Sr. Saunders exclamou:
- Garota esperta!
Sob o feitiço, as cobras ficaram rígidas e abriram-se em leque, formando como que uma saia de balé por cima da anágua de Júlia. Todos viram o local da anágua que Júlia havia rasgado quando construía a casa na árvore e depois costurado às pressas com linha vermelha.
- Você foi mordida? - Crestomanci quis saber.
- Não - Júlia respondeu. - A sopa deixou as cobras atordoadas. Se me derem licença, vou trocar o vestido.
Ela saiu da sala em passos lentos e cuidadosos, e Millie foi com ela. Enquanto os criados, todos com o rosto ligeiramente esverdeados, limpavam a sopa derramada, Crestomanci declarou:
- Briga é uma coisa que não admito à mesa do jantar. Gwendolen, faça-me o favor de ir para a sala de brinquedos.
Seu jantar será levado para lá.
Gwendolen levantou-se e saiu sem uma palavra. Como Júlia e Millie não retornaram, a mesa de jantar ficou bastante vazia nessa noite. Numa das extremidades só aconteciam as ações e os dividendos de Bernard, e na outra, mais uma vez as estátuas do Sr. Saunders.
Gato constatou depois que Gwendolen sentia-se triunfante; acreditava ter finalmente conseguido impressionar Crestomanci. Assim, no domingo ela voltou ao ataque.
No domingo, a Família vestia suas melhores roupas e caminhava até a igreja do povoado para o Culto Matinal. Dizem que os bruxos não gostam de igrejas e não conseguem fazer bruxaria nesses lugares. Mas isso nunca perturbou Gwendolen. A Sra. Sharp muitas vezes comentara esse fato como uma prova do talento excepcional de Gwendolen. Gwendolen estava sentada ao lado de Gato no banco privativo da família de Crestomanci, parecendo o retrato da inocência em seu vestido domingueiro de bordado inglês e chapéu, e encontrou o local correto em seu livro de orações como se fosse verdadeiramente piedosa.
As pessoas do povoado cutucavam-se e comentavam sobre ela. Aquilo deixou Gwendolen satisfeita: gostava de ser famosa. Manteve a pose de santidade até o sermão começar.
O vigário subiu tremulamente para o púlpito e iniciou o seu sermão, em voz insignificante e desconexa.
- "Pois havia muitos na congregação que não eram santificados" - recitou.
Aquilo decerto era apropriado. Infelizmente, nada mais do que ele disse era.
Com sua voz insignificante e desconexa ele relatou episódios insignificantes e desconexos da sua juventude e comparou-os com as coisas insignificantes e desconexas que ele achava que estavam acontecendo no mundo atual. Disse-lhes que era melhor que eles fossem santificados, senão aconteceriam todo tipo de coisas - que ele esqueceu-se de mencionar -, que lhe lembravam uma coisa insignificante e desconexa que suas tias costumavam lhe dizer.
A essa altura o Sr. Saunders estava cochilando, assim como Bernard das ações e dividendos. A velha senhora de luvas balançava a cabeça. Um dos santos nos vitrais das janelas bocejou, erguendo seu bastão para cobrir a boca, num gesto elegante. Depois virou-se para olhar para o vitral vizinho, onde havia uma freira enorme. O hábito dela caía em dobras rígidas, como um feixe de gravetos. O bispo estendeu o bastão de vitral e deu um tapinha no ombro da freira. Ela não gostou: marchou para a janela dele e pôs-se a sacudi-lo.
Gato percebeu. Viu o bispo colorido e transparente dar um sopapo no toucado da freira, e a freira devolver-lhe o golpe. Enquanto isso, o santo cabeludo ao lado deles mergulhou na direção do seu vizinho, que era um santo parecido com um rei e segurava na mão uma miniatura do Castelo. O santo deixou cair a miniatura e, movendo rapidamente os pés de vidro, fugiu para proteger-se atrás da túnica de uma santa dama que sorria com afetação. O santo cabeludo pôs-se a pisotear a miniatura do Castelo.
Um por um, todos os vitrais das janelas criaram vida. Quase todos os santos viraram-se para lutar com seus vizinhos. Aqueles que não tinham com quem lutar levantavam as vestes e faziam passos de dança engraçados, ou acenavam para o vigário, que continuava o sermão sem nada perceber. As figurinhas minúsculas que sopravam trombetas nos cantos das janelas saltavam e davam cambalhotas, fazendo caretas transparentes para quem quer que estivesse olhando para elas. O santo cabeludo arrancou o santo majestoso de trás das saias da santa dama de sorriso afetado e pôs-se a persegui-lo de uma janela para outra em meio aos contendores.
A essa altura, toda a congregação já percebera. Todos olhavam, ou cochichavam, ou se inclinavam, torcendo o pescoço para os lados para observar os dedos dos pés de vidro do santo majestoso.
A bagunça foi tamanha que o Sr. Saunders acordou, perplexo. Olhou para as janelas, compreendeu tudo e olhou para Gwendolen. Pista estava sentada de olhos baixos, o retrato da inocência. Gato olhou de relance para Crestomanci. Pelo que ele via, Crestomanci estava prestando atenção a cada palavra do vigário e sequer percebera as janelas. Millie sentava-se na beirada do banco, parecendo nervosa. E o vigário continuava falando, totalmente alheio ao tumulto.
Seu assistente, porém, achou que devia colocar um fim no comportamento censurável das janelas. Trouxe uma cruz e uma vela; seguido por um coroinha que dava risadinhas enquanto balançava o incensado, ele foi de uma janela para outra murmurando exorcismos. Gwendolen fazia cada santo estacar quando o padre chegava perto - o que fez com que o santo majestoso ficasse perdido na metade do caminho. Mas, assim que o padre virou as costas, ele pôs-se a correr novamente, e o tumulto continuou, ainda maior do que antes. A congregação, atônita, acompanhava tudo.
Crestomanci virou-se e olhou para o Sr. Saunders; o Sr. Saunders assentiu com um gesto. Houve uma espécie de um clarão que fez Gato estremecer, e, quando o menino tornou a olhar para as janelas, cada santo estava imóvel em seu lugar apropriado.
Gwendolen ergueu a cabeça, indignada. Depois deu de ombros. Nos fundos da igreja, um cruzado de pedra sentou-se em seu túmulo e, com grande ruído de pedra, fez uma careta para o vigário.
- Amados irmãos... - disse o vigário. Ele avistou o cruzado e calou-se, confuso.
O padre assistente correu a tentar exorcizar o cruzado. Uma expressão de irritação nublou o rosto do cruzado, que ergueu sua enorme espada de pedra. Mas o Sr. Saunders fez um gesto rápido. O cruzado, parecendo ainda mais irritado, baixou a espada e tornou a deitar-se, com um estrondo que sacudiu a igreja.
- Existem alguns nesta congregação que certamente não são santificados - o vigário declarou cora tristeza. - Oremos.
Quando todos saíram da igreja, Gwendolen saiu no meio dos outros, completamente indiferente aos olhares chocados que todos lhe dirigiam quando ela passou. Millie correu atrás dela e agarrou-a pelo braço. Parecia muitíssimo brava.
- Aquilo foi horrível, sua ateia! Nem ouso ir falar com o coitado do vigário. Às vezes podemos ir longe demais, sabia?
- Será que eu fui? - Gwendolen perguntou, realmente interessada.
- Quase - Millie respondeu.
Mas não chegara lá, ao que parecia. Crestomanci não disse coisa alguma a Gwendolen, embora tenha dito muita coisa, em tom tranqüilizador, ao vigário e seu assistente.
- Por que seu pai não briga com Gwendolen? - Gato perguntou a Roger, enquanto voltavam pela alameda. - Fingir que não está percebendo só piora as coisas.
- Não sei - Roger confessou. - Ele briga conosco quando usamos bruxaria. Talvez pense que ela vai acabar se cansando. Ela lhe disse o que vai fazer amanhã?
Era obvio que Roger mal podia esperar.
- Não. Está zangada comigo porque brinquei de soldadinho com você - Gato revelou.
- É culpa dela, por pensar que é a sua dona - disse Roger. - Vamos vestir roupas velhas e ampliar a casa na árvore.
Gwendolen ficou zangada quando Gato saiu novamente com Roger. Talvez tenha sido por isso que ela pensou naquilo que fez a seguir. Ou talvez, como ela alegou, tivesse outros motivos. De qualquer maneira, quando Gato acordou, na segunda-feira de manhã, estava escuro; parecia ser ainda muito cedo. Então o menino virou-se e tornou a adormecer.
Ficou atônito quando acordou, com Mary a sacudi-lo, um minuto depois.
- Faltam 20 minutos para as nove, Eric. Levante-se! - ela dizia.
- Mas está escuro! - Gato protestou. - Está chovendo?
- Não. Sua irmã andou fazendo das suas outra vez. Onde ela consegue esse poder, uma menininha como ela, eu não entendo!
Sentindo-se cansado e com humor de segunda-feira, Gato arrastou-se para fora da cama e descobriu que não conseguia enxergar através das janelas. Cada janela era um emaranhado escuro de galhos e folhas - folhas verdes, ramos azulados de cedro, agulhas de pinheiro e folhas amarelecidas. Uma janela tinha uma rosa pressionada contra ela, e havia cachos de uvas esmagados contra as outras duas. E atrás dessas coisas parecia haver uma floresta densa.
- Deus do Céu! - ele exclamou.
- E bom você olhar mesmo - disse Mary. - Aquela sua irmã trouxe todas as árvores do terreno e colocou-as coladas ao Castelo. Não dá para imaginar o que ela vai fazer depois.
A escuridão deixava Gato cansado e melancólico. Não tinha a menor vontade de vestir-se. Mas Mary obrigou-o, e fez com que se lavasse, também. Gato supunha que o motivo de Mary mostrar-se tão inflexível era que ela queria contar a alguém todas as dificuldades que as árvores estavam causando. Contou a Gato que os teixos do jardim formal estavam de tal maneira amontoados junto à porta da cozinha que os homens tiveram que abrir caminho a machado para pegar o leite. Havia três carvalhos na porta principal e ninguém conseguia movê-la.
- E as maçãs estão todas no chão, debaixo dos teixos, de modo que a cozinha está com o cheiro de uma destilaria de cidra - ela anunciou.
Quando Gato chegou, desanimado, à sala de brinquedos, estava ainda mais escuro ali. A luz fraca e esverdeada ele viu que Gwendolen, como era de esperar, estava pálida e abatida. Mas parecia muito satisfeita.
- Acho que não gosto dessas árvores - Gato cochichou-lhe, quando Roger e Júlia passaram para a sala de aula. - Por que você não podia fazer uma coisa menor e mais engraçada?
- Porque não sou palhaço! - Gwendolen sibilou. - E precisava fazer isso. Precisava saber de quanto poder posso dispor.
- De muito, pelo que vejo - disse Gato, olhando para a massa de folhas de castanheira-da-índia pressionadas contra a janela.
Gwendolen sorriu.
- Vai ser melhor ainda quando eu tiver meu sangue de dragão.
Gato quase revelou que havia visto sangue de dragão no laboratório do Sr. Saunders. Mas conteve-se a tempo. Não gostava daquelas proezas faraônicas.
Passaram outra manhã com as luzes acesas e, na hora do almoço, Gato, Júlia e Roger saíram para dar uma olhada nas árvores. Ficaram decepcionados ao descobrir que era muito fácil sair por sua porta particular. Os rododendros estavam a um mero de distância dela. Gato concluiu que Gwendolen deixara intencionalmente uma saída livre, até que olhou para cima e viu, pelos galhos curvados e pelas folhas esmagadas, que as plantas tinham realmente ficado apertadas contra a porta. Parecia que agora estavam recuando.
Depois dos rododendros eles tiveram que abrir caminho através do que parecia uma selva fechada. As árvores estavam tão juntas que não apenas ramos e folhas cobriam o chão, mas também galhos espessos tinham se partido e caído, emaranhados em rosas esmagadas, trepadeiras de clematites partidas e uvas esmagadas. Quando as crianças conseguiram esgueirar-se para o outro lado da floresta, a luz nua do sol atingiu-as como um golpe de martelo. Elas pestanejaram. Os jardins, a vila, e até mesmo os montes atrás dela, estavam pelados. O único lugar onde ainda conseguiam ver árvores era acima do velho muro em ruínas do jardim de Crestomanci.
- Deve ter sido um feitiço poderoso - Roger comentou.
- Parece o deserto. Nunca pensei que fosse sentir tanta falta das árvores! - disse Júlia.
Mas pelo meio da tarde já era óbvio que as árvores estavam voltando para seus lugares. Dava para ver o céu através da janela da sala de aula. Pouco mais tarde, as árvores tinham se espalhado e recuado tanto que o Sr. Saunders apagou a luz. Pouco depois disso, Gato e Roger repararam nos destroços da casa da árvore, feita em pedaços, pendurados numa castanheira.
- E agora, que é que estão olhando? O Sr. Saunders quis saber.
- A casa de brinquedo está quebrada - Roger revelou, olhando com raiva para Gwendolen.
- Talvez Gwendolen tenha a gentileza de consertá-la - o Sr. Saunders sugeriu sarcasticamente.
Se ele estava tentando incitar Gwendolen a praticar uma boa ação, fracassou. Gwendolen jogou a cabeça para trás.
- Casa de brinquedo é coisa de bebê - disse friamente. Estava muito contrariada por ver as árvores retrocedendo.
- É uma pena! - comentou com Roger pouco antes do jantar.
A essa altura, as árvores estavam quase de volta aos seus lugares originais. As únicas que estavam mais próximas do que deveriam estar eram aquelas no morro em frente. De certa maneira, a paisagem parecia menor.
- Eu tinha esperanças de que o de hoje servisse para amanhã também - ela prosseguiu, descontente. - Agora vou ter que pensar em outra coisa.
- Quem as mandou de volta? Os bruxos do jardim? - Gato perguntou.
- Por favor, não diga besteiras. E óbvio quem fez isso - ela respondeu.
- Está pensando no Sr. Saunders? Mas o feitiço não pode simplesmente ter se gastado ao puxar todas aquelas árvores para cá?
- Você não entende nada - Gwendolen declarou.
Gato sabia que não entendia nada de magia, mas de qualquer maneira achava aquilo estranho. No dia seguinte, quando ele foi verificar, não havia ramos caídos, galhos quebrados nem uvas esmagadas em parte alguma. Os teixos no jardim formal não pareciam ter se movido dali. E embora não houvesse um só traço de maçãs caídas em volta da cozinha, havia no pátio caixotes cheios de maçãs redondas e firmes. No pomar, as maças estavam penduradas em seus galhos ou sendo colhidas e guardadas em caixotes.
Enquanto Gato via essas coisas, teve que achatar-se às pressas contra a cerca-viva formada pelas macieiras para sair da frente de uma vaca Jersey em disparada, perseguida por dois jardineiros e um garoto que trabalhava no curral. Havia vacas galopando no bosque, quando Gato foi, cheio de esperanças, olhar a casa da árvore. Infelizmente ela ainda estava destruída. E as vacas faziam o possível para destruir os canteiros de flores, sem conseguirem causar grande estrago.
- Foi você quem fez aquilo com as vacas? - ele perguntou a Gwendolen.
- Foi sim. Mas foi só uma coisinha para mostrar a eles que ainda não desisti - Gwendolen revelou. - Amanhã vou buscar o meu sangue de dragão, e então poderei fazer alguma coisa realmente impressionante.
Na tarde de quarta-feira, Gwendolen desceu até o povoado para pegar o sangue de dragão. Estava felicíssima: haveria convidados naquela noite, para um grande jantar no Castelo. Gato sabia que todos haviam tomado a precaução de não revelar esse fato a Gwendolen, temendo que ela se aproveitasse. Mas na quarta-feira de manhã tiveram que contar-lhe, pois haveria modificações na rotina das crianças: elas jantariam na sala de brinquedos, e depois disso deveriam permanecer fora do caminho.
- Vou ficar fora do caminho, vou mesmo - Gwendolen prometeu. - Mas isso não vai fazer diferença.
Ela percorreu rindo quase todo o trajeto até o povoado. Quando lá chegaram, Gato sentiu constrangimento, pois todo o mundo evitava Gwendolen; as mães arrastavam os filhos para dentro de casa e arrancavam os bebês do caminho dela.
Gwendolen mal percebia, estava preocupada demais em chegar ao Sr. Baslam e pegar seu sangue de dragão. Gato não gostava do Sr. Baslam ou do cheiro de picles estragado que havia entre os animais empalhados. Deixou que Gwendolen fosse até lá sozinha, e foi até a loja de doces para enviar o cartão-postal para a Sra. Sharp. As pessoas na loja comportaram-se friamente com ele, mesmo tendo ele gasto quase dois xelins em balas, e na confeitaria vizinha foram positivamente hostis. Quando Gato saiu para a praça com seus pacotes, percebeu que as crianças estavam sendo retiradas do seu caminho também.
Isso deixou-o tão envergonhado que ele fugiu de volta para o Castelo sem esperar por Gwendolen. Dentro dos portões, ficou a vagar, melancólico, comendo caramelos e bolinhos de um centavo e desejando estar de volta com a Sra. Sharp. De vez em quando via Gwendolen à distância; às vezes ela estava correndo, às vezes estava agachada sob uma árvore fazendo alguma coisa cuidadosamente. Gato não se aproximou. Pensava: se estivessem de volta com a Sra. Sharp, Gwendolen não precisaria fazer o que quer que fosse a coisa impressionante que ela estava planejando. Ele desejava que ela não fosse uma bruxa tão poderosa e determinada. Tentou imaginar uma Gwendolen que não fosse bruxa, mas descobriu-se incapaz de fazer isso: ela simplesmente não seria Gwendolen.
Dentro de casa, o silêncio habitual no Castelo não era exatamente o mesmo. Havia pequenos ruídos tensos, e a sensação desafinada de pessoas muito ocupadas fora do alcance dos nossos ouvidos. Gato sabia que seria uma festa grande e importante.
Depois que jantou, foi postar-se à janela de Gwendolen para espiar os convidados que passavam pelo pedaço da alameda que ele conseguia ver dali. Eles chegavam em carros e carruagens, muito grandes e de aparência rica. Uma carruagem era puxada por seis cavalos brancos e era tão imponente que Gato perguntou-se se não seria do Rei.
- Tanto melhor - disse Gwendolen.
Ela estava agachada no meio do tapete, ao lado de uma folha de papel. Numa extremidade do papel havia uma tigela com ingredientes; na outra havia um medonho monte de coisas que rastejavam, contorciam-se ou ficavam imóveis. Gwendolen tinha recolhido dois sapos, uma minhoca, várias lacrainhas, um besouro preto, uma aranha e uma pequena pilha de ossos. As coisas vivas estavam enfeitiçadas e não conseguiam sair de cima do papel.
Assim que Gato certificou-se de que não chegariam mais carruagens, Gwendolen começou a esmagar os ingredientes da tigela. Enquanto fazia isso, resmungava coisas num gemido, e seus cabelos soltos estremeciam acima da tigela. Gato olhou para as pobres criaturas que se contorciam ou saltavam e teve esperanças de que elas não fossem também esmagadas junto com os outros ingredientes. Parecia que não: Gwendolen finalmente sentou-se sobre os calcanhares e disse:
- Agora!
Estalou os dedos acima da tigela; os ingredientes pegaram fogo, sozinhos, e arderam em chamas pequenas e azuis.
- Está funcionando! Agora, uma pitada de sangue de dragão - Gwendolen exclamou, animada. Pegou do chão ao seu lado um pacotinho de jornal e abriu-o cuidadosamente.
Retirou um pouquinho do pó marrom-escuro e polvilhou-o sobre as chamas. Houve um som de ar escapando, e um forte cheiro de queimado. Então as chamas se ergueram, 30 centímetros de violento fogo verde e violeta, colorindo todo o quarto com sua luz dançante.
O rosto de Gwendolen brilhava na luz verde e violeta. Ela oscilava sobre os calcanhares, entoando cânticos, coisas que Gato não entendia. Então, ainda cantando, ela inclinou-se e tocou na aranha. A aranha cresceu. E cresceu. E cresceu ainda mais. Tornou-se um monstro de um metro e meio - uma coisa redonda e gordurosa, com dois olhinhos na frente, pendurada como uma rede era oito pernas inclinadas e peludas. Gwendolen apontou; a porta do quarto abriu-se por si mesma - o que fez com que ela sorrisse, exultante - e a imensa aranha dirigiu-se silenciosamente naquela direção, balançando-se sobre as pernas peludas. Teve que recolher um pouco as pernas para conseguir passar pela porta, e seguiu em frente, pelo corredor.
Gwendolen tocou nas outras criaturas, uma por uma. As lacrainhas levantaram-se pesadamente, como brilhantes vacas chifrudas, de cor marrom-escuro cintilante. Os sapos cresceram, adquirindo o tamanho de um homem, e saíram andando, flape-flope, sobre os pés enormes, arrastando os braços, como fazem os gorilas. A pele manchada fremia, e nela pequenos orifícios abriam e fechavam incessantemente. A pele inflada debaixo da boca fazia movimentos de engolir. O besouro preto rastejava nas pernas em forquilha, com um casco preto tão grande que ele mal conseguiu passar pela porta. Gato viu o besouro e todos os outros animais numa procissão lenta e silenciosa descerem o corredor brilhante e forrado de verde-musgo.
- Aonde eles vão? - ele perguntou num cochicho. Gwendolen deu uma risadinha.
- Vou mandar todos para a sala de jantar, é claro. Acho que os convidados não vão ter muita fome.
Em seguida ela pegou um osso e bateu cada extremidade dele com força no chão. Assim que o soltou, ele ergueu-se no ar e ficou flutuando. Com estalidos suaves, mais ossos saíram do nada para juntar-se a ele. As labaredas verdes e roxas roncavam e produziam um desagradável som rascante.
Por último apareceu uma caveira, e o esqueleto completo ficou dançando no ar diante das chamas. Gwendolen sorriu de satisfação e pegou outro osso.
Mas os ossos, quando são enfeitiçados, conseguem lembrar-se de quem eram. O esqueleto no ar suspirou, numa voz oca e cantante:
- Coitada da Sarah Jane... Sou a coitada da Sarah Jane... Deixe-me descansar.
Gwendolen indicou a porta com um gesto impaciente. O esqueleto saiu do quarto, ainda suspirando, e um segundo esqueleto saiu atrás dele, suspirando também:
- Bob, o filho do jardineiro... Eu não fiz de propósito... Três outros esqueletos seguiram os primeiros, cada um entoando baixinho, melancolicamente, quem ele ou ela tinha sido, e todos os cinco partiram lentamente atrás do besouro preto. Gato ouvia os sons que vinham do corredor:
- Sarah Jane...
- Não fiz de propósito...
- Já fui Duque de Buckingham...
Gwendolen não deu atenção a eles, e voltou-se para a minhoca. Ela também cresceu. Tornou-se uma enorme coisa cor de rosa, grande como uma serpente marinha. Seu corpo arqueava-se e formava círculos convulsos por todo o quarto. Gato quase vomitou. A carne nua e rosada tinha pêlos como os de um porco. E anéis parecidos com as rugas nos nós dos dedos de Gato. A frente imensa e cega virava-se de um lado para outro até Gwendolen apontar para a porta. Então o animal partiu devagar atrás dos esqueletos, numa longa sucessão de arcos cor-de-rosa.
Gwendolen contemplou-o com olhar crítico.
- Não está mal - comentou. - Mas preciso de um último toque.
Cuidadosamente ela deixou cair uma pitada minúscula de sangue de dragão sobre as chamas. As labaredas fizeram um som de assobio e ficaram mais brilhantes, mais assustadoras, mais amarelas. Gwendolen voltou a entoar alguma coisa, dessa vez acenando com os braços. Depois de um instante, parecia que uma forma tomava corpo no ar agitado sobre as chamas. Algo branco borbulhava, movendo-se, transformando-se numa pobre coisa alquebrada, com uma cabeça enorme. Sob ela, três outras coisas iguais estavam surgindo e tomando consistência. Quando a primeira coisa saltou das chamas para o tapete, Gwendolen soltou uma exclamação de prazer. Gato ficou impressionado com a malignidade da aparência dela.
- Ah, não faça isso! - ele pediu.
As três outras coisas saltaram também para o tapete, e ele viu que eram a alma penada da janela e três outras iguais a ela. A primeira era como um neném novinho demais para andar - só que estava andando, balançando a cabeça enorme. A seguinte era um aleijado, tão retorcido e deformado que mal conseguia mover-se. A terceira era a aparição da janela, patética, engelhada e lodosa. A última tinha a pele branca com listras azuis. Todas eram etéreas, alvas, horríveis. Gato estremeceu violentamente.
- Por favor livre-se dessas coisas! - pediu. Gwendolen simplesmente tornou a rir, e gesticulou para as quatro aparições em direção à porta.
Elas puseram-se em movimento, avançando com dificuldade. Mas ainda não tinham chegado à porta quando Crestomanci entrou por ela, e o Sr. Saunders entrou atrás dele. Na frente deles veio uma chuva de ossos e pequenas criaturas mortas, caindo sobre o tapete e sendo esmagados sob os sapatos compridos e brilhantes de Crestomanci. As almas penadas hesitaram, gaguejando. Então fugiram de volta para a tigela em chamas e sumiram. As chamas desapareceram ao mesmo tempo, transformadas numa fumaça espessa, negra e fedorenta.
Gwendolen olhava para Crestomanci e para o Sr. Saunders através da fumaça. Crestomanci estava magnífico, vestido de veludo azul, com babados de renda nos punhos e na frente da camisa. O Sr. Saunders parecia ter feito um esforço para encontrar um terno que lhe cobrisse inteiramente as pernas e os braços, mas não alcançara totalmente o seu intento. Uma das suas grandes botas de verniz preto tinha o cadarço desatado. Ele enrolava lentamente um novelo de alguma coisa invisível em volta da ossuda mão direita, fazendo surgir partes da camisa e dos punhos. Tanto ele quanto Crestomanci devolviam o olhar de Gwendolen de maneira bastante desagradável.
- Você foi avisada. Vá em frente, Michael - disse Crestomanci.
O Sr. Saunders colocou o novelo invisível no bolso.
- Obrigado! Há uma semana estou doido para fazer isto -disse.
E dirigiu-se para Gwendolen, entre as abas infladas do paletó preto; segurou-a e colocou-a de pé, arrastou-a até uma cadeira e colocou-a de bruços sobre o joelho. Então descalçou a bota negra de cadarço desatado e começou a dar-lhe palmadas com o calçado, muitas e fortes.
Enquanto o Sr. Saunders trabalhava e Gwendolen gritava e chutava, Crestomanci marchou até Gato e lhe deu um tapa na orelha, duas vezes em cada lado. Gato ficou tão surpreso que teria caído se Crestomanci não lhe golpeasse o outro lado da cabeça, deixando-o novamente vertical.
- Por que fez isso? - o menino perguntou, indignado, segurando ambos os lados do rosto dolorido. - Eu não fiz nada!
- Por isso lhe bati - Crestomanci respondeu. - Você não tentou impedi-la, tentou?
Enquanto Gato ficava atônito com aquela injustiça, Crestomanci voltou-se para o diligente Sr. Saunders.
- Acho que já chega, Michael.
O Sr. Saunders, um pouco relutante, interrompeu as palmadas. Gwendolen deslizou dos joelhos dele para o chão, soluçando de dor e protestando aos gritos, entre os soluços, por ter sido tratada daquela maneira.
Crestomanci foi até ela e cutucou-a com seu sapato brilhante.
- Pare com isto. Levante-se e comporte-se.
E quando Gwendolen levantou-se do chão e ficou de joelhos, com um olhar patético e aparência de quem foi injustiçada, ele acrescentou:
- Você mereceu inteiramente as palmadas. E, como provavelmente imagina, Michael retirou seus poderes de bruxaria também. Você não é mais bruxa. No futuro, não vai fazer um único feitiço, a não ser que prove para nós dois que não vai fazer traves-suras com os seus poderes. Ficou bem claro? Agora vá para a cama, e por favor tente pensar sobre o que andou fazendo.
Ele chamou o Sr. Saunders com um gesto de cabeça e ambos saíram, o Sr. Saunders aos pulinhos, porque ainda estava calçando a bota, esmagando assim o restante das criaturas mortas.
Gwendolen deixou-se cair de bruços no chão e pôs-se a dar chutes no tapete com os dedos dos pés.
- Que animal! Que animais! Como ousam me tratar assim? Agora vou fazer coisa ainda pior que isso, e vai ser bem feito para
vocês todos!
- Mas você não consegue fazer coisas sem o seu poder - Gato objetou. - Aquilo que o Sr. Saunders estava enrolando era a sua bruxaria?
- Vá embora! - Gwendolen gritou para ele. - Deixe-me em paz. Você é tão ruim quanto o resto! - E, enquanto Gato dirigia-se para a porta, deixando-a chutando e soluçando, ela ergueu a cabeça e gritou atrás dele: -Ainda não fui derrotada! Você vai ver!
Como não podia deixar de ser, nessa noite Gato teve pesadelos. Foram sonhos terríveis, cheios de minhocas gigantescas e enormes sapos porosos e viscosos. Os sonhos ficavam cada vez mais febris. Gato suava e gemia, e finalmente despertou, sentindo-se úmido, fraco e raquítico, como a gente se sente depois de uma doença grave ou um sonho apavorante. O menino ficou acordado por algum tempo, sentindo-se infeliz. Então começou a sentir-se melhor e tornou a adormecer.
Quando Gato despertou outra vez, já era dia. Ele abriu os olhos no silêncio abafado do Castelo e de súbito convenceu-se de que Gwendolen fizera mais alguma coisa. Não tinha idéia do que era que lhe dava tanta certeza. Pensou que provavelmente estava imaginando coisas; se o Sr. Saunders realmente retirara de Gwendolen seus poderes de bruxaria, ela não conseguiria fazer coisa alguma. Mas ainda assim ele sabia que ela fizera.
Levantou-se e foi até as janelas, para ver o que era. Mas dessa vez nada havia de anormal na paisagem de qualquer uma delas. Os cedros espalhavam-se pelo gramado, os jardins coloriam a encosta do morro, o dia estava encharcado de sol e garoa, e nem uma única pegada marcava o verde-cinza perolado do gramado. Mas Gato ainda tinha tanta certeza de que alguma coisa, em algum lugar, estava diferente, que se vestiu e desceu a escada Para perguntar a Gwendolen o que era que ela havia feito.
Quando Gato abriu a porta do quarto dela, sentiu o odor doce, crestado e forte que acompanhava a bruxaria. Mas aquilo podia ter sido da véspera. O quarto estava perfeitamente arrumado. As criaturas mortas e a tigela queimada tinham sido retiradas. A única coisa fora do lugar era a caixa de Gwendolen, que tinha sido arrastada do armário pintado e estava ao lado da cama, com a tampa entreaberta.
Gwendolen estava dormindo encolhida sob a colcha de veludo azul. Gato fechou a porta suavemente atrás de si, para não perturbá-la. Gwendolen ouviu-o; sentou-se na cama com rapidez e o encarou.
Assim que ela fez isso, Gato entendeu que, fosse o que fosse que havia de errado, era com a própria Gwendolen. Ela havia vestido a camisola com a frente para trás: as fitas que geralmente eram amarradas nas costas agora pendiam na frente. Aquela era a única coisa obviamente errada, mas havia algo de estranho no modo como Gwendolen o encarava. Ela estava confusa, mais do que assustada.
- Quem é você? - perguntou.
- Sou Gato, é claro - Gato respondeu.
- Não é, não. É um menino - ela contestou. - Quem é você? - repetiu.
Gato concluiu então que as bruxas, quando perdem seus poderes de bruxaria, perdem também a memória. Percebeu que teria que ter muita paciência com Gwendolen.
- Sou Eric, o seu irmão - disse pacientemente, e aproximou-se da cama para que ela pudesse vê-lo. - Só que você sempre me chama de Gato.
- Meu irmão! - ela exclamou, com enorme espanto. - Ora, isso não pode ser ruim. Sempre quis ter um irmão. E sei que não posso estar sonhando. Estava frio demais na banheira, e dói quando eu me belisco. Então, você se importa de me dizer onde estou? E uma Mansão Senhorial de alguma espécie, não é?
Gato ficou a encará-la. Começava a desconfiar que a memória dela estava perfeita. Não apenas por causa do modo como ela falava e das coisas que dizia; ela estava mais magra do que deveria estar. O rosto era o rosto bonitinho de sempre, com os olhos azuis de sempre, mas a expressão deles não era a de sempre. E os cabelos louros caídos sobre os ombros eram alguns centímetros mais longos do que eram na véspera.
- Você não é Gwendolen! - ele exclamou.
- Que nome horroroso! - respondeu a menina na cama. - Ainda bem que não sou! Sou Janet Chant.
A essa altura, Gato estava tão desnorteado quanto a menina desconhecida parecia estar. Pensava: Chant? Chant? Então Gwendolen tinha uma irmã gêmea e nunca lhe contara?
- Mas o meu nome também é Chant - disse.
- E mesmo? - Janet ajoelhou-se na cama e esfregou as mãos nos cabelos pensativamente, uma coisa que Gwendolen jamais teria feito. - E Chant de verdade? Não é um nome tão comum assim. E você pensou que eu fosse sua irmã? Bem, já somei dois mais dois umas cem vezes desde que acordei na banheira, e o resultado continua sendo cinco. Onde é que nós estamos?
- No Castelo Crestomanci - Gato informou. - Crestomanci nos trouxe para morar aqui mais ou menos um ano depois que nossos pais morreram.
- Está vendo? Papai e mamãe estão bem vivos e cheios de saúde, ou, pelo menos, estavam quando eu lhes dei boa-noite ontem - disse Janet. - Quem é Crestomanci? Será que você pode me contar um pouco da sua vida?
Perplexo e inquieto, Gato descreveu como e por que ele e Gwendolen haviam ido morar no Castelo, e o que Gwendolen fizera então.
- Quer dizer que Gwendolen era mesmo bruxa! - Janet exclamou.
Gato teria preferido que ela não houvesse dito era; estava dominado por um pressentimento cada vez mais forte de que jamais tornaria a ver a verdadeira Gwendolen.
- Claro que é - respondeu. - Você não é, não?
- Deus do Céu, claro que não! - Janet exclamou. - Mas estou começando a me perguntar se não seria, se morasse aqui a minha vida inteira. As bruxas são bastante numerosas, não são?
- E os bruxos, e os necromantes - disse Gato. - Mas os magos não aparecem com tanta freqüência. Acho que o Sr. Saunders é um mago.
- Curandeiros, xamãs, benzedores, demônios, encantadores? - Janet perguntou, recitando com rapidez. - Jabiracas, faquires, feiticeiros? Também estão por toda parte?
- A maioria dessas coisas são para os selvagens. Jabiraca é uma palavra grosseira. Mas temos feiticeiros e encantadores. Os encantadores são muito fortes e importantes. Nunca conheci um deles.
- Estou entendendo - disse Janet. Ela ficou pensando por um momento e depois saiu da cama, com modos que eram mais de um menino do que de uma menina, e também bastante diferentes do jeito como Gwendolen teria feito isso. - É melhor darmos uma olhada por aí, caso a querida Gwendolen tenha tido a gentileza de nos deixar um bilhete.
- Não a chame desse jeito - Gato pediu, desolado. - Onde acha que ela está?
Janet olhou para ele e percebeu a sua infelicidade.
- Desculpe, não vou fazer isso de novo - prometeu. - Mas você entende que eu possa estar um pouquinho chateada com ela, não entende? Parece que ela me desovou aqui e partiu para algum lugar. Espero que ela tenha uma boa explicação.
- Eles lhe deram palmadas com uma bota e tiraram os poderes de bruxaria dela - disse Gato.
- É, você já contou isso - Janet respondeu, abrindo as gavetas da penteadeira dourada. - Já estou morrendo de medo de Crestomanci. Mas eles retiraram mesmo os poderes de bruxaria dela? Se for verdade mesmo, como é que ela conseguiu fazer isso?
- Também não consigo entender - disse Gato, juntando-se à busca. A essa altura, ele teria dado um dedo seu para ter notícias de Gwendolen, qualquer notícia. Sentia-se horrivelmente sozinho. - Por que você estava na banheira? - perguntou, imaginando se deveria procurar no banheiro.
- Não sei. Só sei que acordei lá - disse Janet, retirando da gaveta inferior um emaranhado de fitas de cabelo. - Parecia que eu tinha sido pega por um furacão, e estava sem roupa, de modo que quase morri de frio.
- Por que estava sem roupa? - Gato perguntou, remexendo nas roupas de baixo de Gwendolen, sem sucesso.
- Ontem à noite senti calor na cama - Janet explicou. -Por isso cheguei nua a este mundo. Fiquei andando por aí, me beliscando, especialmente depois que encontrei este quarto fabuloso. Cheguei a pensar que tinha sido transformada numa princesa. Achei esta camisola sobre a cama, então vesti...
- Com a frente para as costas - Gato interpôs.
Janet parou de examinar as coisas na prateleira acima da lareira e baixou os olhos para as fitas no chão.
- Foi mesmo? Pelo que estou vendo, não será a única coisa que vou usar com a frente para as costas. Experimente procurar nesse armário tão artístico. Então explorei o lado de fora do quarto, e tudo que encontrei foram quilômetros de um corredor comprido e verde, que me deu arrepios, e um parque imenso do lado de fora das janelas, de modo que voltei para cá e me deitei na cama. Tinha esperança de que quando acordasse, tudo isso tivesse ido embora. E, ao contrário, quando acordei você estava aqui. Encontrou alguma coisa?
- Não. Mas a caixa dela...
- Deve estar aí dentro - disse Janet.
Os dois agacharam-se e retiraram tudo o que havia na caixa. Não era grande coisa. Gato sabia que Gwendolen certamente teria levado consigo muitas coisas, para onde quer que tivesse ido. Havia dois livros, Feitiços Simples e Magia para Principiantes, e algumas páginas de anotações sobre eles. Janet estudou a caligrafia grande e redonda de Gwendolen.
- Ela escreve exatamente igual a mim. Por que deixou estes livros? Porque são para principiantes e ela já está mais adiantada, imagino.
Ela colocou de lado os livros e as anotações, e a pequena carteira de fósforos vermelha caiu do meio deles. Janet pegou-a e abriu-a, e viu que metade dos fósforos estavam queimados sem terem sido arrancados da carteira. - Para mim, isto tem toda a cara de ser um feitiço - comentou. - E esses maços de cartas, o que são?
- Acho que são cartas de amor dos meus pais - Gato respondeu.
As cartas ainda estavam em seus envelopes selados e endereçados. Janet agachou-se com um maço em cada mão.
- Estes selos são "pretos de um centavo"! Não, mostram uma cabeça de homem. Qual é o nome do seu Rei?
- Charles VII - disse Gato.
- Não é um dos Georges? - Janet perguntou. Mas em seguida viu que Gato estava perplexo, e tornou a olhar para as cartas. - Estou vendo que tanto a sua mãe quanto o seu pai tinham o sobrenome Chant. Eram primos? Os meus são. Vovó não queria que eles se casassem, porque dizem que não é bom.
- Não sei. Talvez fossem. Eles eram um pouco parecidos -disse Gato, sentindo-se mais solitário do que nunca.
Janet também parecia um pouco solitária. Ela enfiou cuidadosamente a pequena carteira de fósforos dentro da fita cor-de-rosa que prendia as cartas endereçadas à Srta. Caroline Chant (como Gwendolen, ela também era organizada) e disse:
- Os dois eram altos e louros, com olhos azuis? O nome da minha mãe também é Caroline. Estou começando a entender. Vamos, Gwendolen, estou esperando!
Assim dizendo, Janet jogou as cartas para um lado e, de maneira bastante desorganizada, recolheu o que restava na caixa: pastas, papéis, canetas, mata-borrões, e a sacola onde estava escrito Lembrança de Blaekpool. Bem no fundo da caixa havia uma folha de papel grande e cor-de-rosa, inteiramente coberta com a melhor e mais arredondada caligrafia de Gwendolen.
- Ah! - fez Janet, pegando depressa a folha. - Foi o que pensei! Ela gosta de segredos, igual a mim!
E abriu a folha de papel sobre o tapete, para que Gato pudesse ler também. Gwendolen havia escrito:
"Prezada Sobressalente:
Preciso ir embora deste lugar terrível. Ninguém aqui me compreende. Ninguém percebe os meus poderes. Você logo sentirá
isso, porque é a minha duplicata exata, de modo que será bruxa também. Tenho sido bastante esperta. Eles não conhecem todos os meus recursos. Descobri a maneira de ir para outro mundo e vou ficar lá para sempre. Serei a Rainha de lã, porque leram a minha sorte e me disseram isso. Há centenas de outros mundos, só que alguns são melhores que outros, eles são formados quando há um grande acontecimento histórico como uma batalha ou um terremoto quando o resultado pode ser duas ou mais coisas diferentes. Todas as duas coisas acontecem, mas não podem existir juntas, de modo que o mundo se separa em dois qu começam a se diferenciar daí em diante. Sei que deve haver Gwendolens em muitos mundos, mas não sei em quantos. Uma de vocês virá para cá quando eu for embora, porque quando eu sair vou deixar um espaço vazio que vai sugar você. Mas não fique triste se os seus pais ainda estiverem vivos. Alguma outra Gwendolen vai se mudar para o seu lugar e fingir que é você porque todas nós somos muito espertas. Você pode continuar aqui criando problemas para Crestomanci e ficarei muito cuntente sabendo que meu lugar está em boa mãos.
Com amor, Gwendolen Chant
Tendo lido isso, Gato, desalentado, ajoelhou-se ao lado de Janet, sabendo que realmente jamais tornaria a ver Gwendolen. Pelo que parecia, no lugar dela teria que aturar Janet. Quando a gente conhece uma pessoa tão bem quanto Gato conhecia Gwendolen, uma duplicata exata não é a mesma coisa. Janet não era bruxa. As expressões do rosto dela não tinham nada a ver com as de Gwendolen. Olhando para ela agora, Gato percebeu que, embora Gwendolen ficasse furiosa se fosse arrastada para outro mundo contra a sua vontade, Janet parecia estar tão desanimada quanto ele se sentia.
- Fico me perguntando como mamãe e papai estão se arranjando com a minha Prezada Sobressalente - ela comentou em tom amargo. Então controlou-se. - Você se importa se eu não queimar isto? E a única prova que tenho de que não sou a Gwendolen que de repente ficou maluca e pensa que é uma garota chamada Janet Chant. Posso esconder a carta?
- E dirigida a você - disse Gato.
- E ela é sua irmã - completou Janet. - Que Deus abençoe a alminha brilhante e açucarada dela! Não me entenda mal, Gato. Eu admiro a sua irmã. Ela pensa grande. Temos que admirá-la! Mesmo assim, gostaria de saber se ela pensou no esconderijo inteligente onde vou guardar a carta. Vou me sentir melhor se ela não tiver pensado.
Janet ficou de pé, com seus modos tão diferentes dos de Gwendolen, e levou a carta para a penteadeira dourada. Gato levantou-se num salto e seguiu-a. Janet aproximou-se do espelho emoldurado, segurou-o pela guirlanda dourada e girou-o em sua direção. O lado das costas do espelho era de compensado. Ela enfiou as unhas sob a beirada do compensado e forçou; o fundo soltou-se com facilidade.
- Faço isso com o meu espelho, em casa - Janet explicou. -Ê um bom esconderijo, talvez o único lugar em que meus pais jamais pensariam. Mamãe e papai são maravilhosos, mas são terrivelmente abelhudos. Acho que é porque sou filha única. E gosto de ter a minha privacidade. Escrevo histórias particulares, só para mim, e eles ficam tentando ler. Ah, dálmatas de manchas roxas!
Ela ergueu a madeira e mostrou a Gato os signos pintados nas costas vermelhas do vidro do espelho.
- É Cabala, eu acho - disse Gato. - É um feitiço.
- Então ela pensou neste esconderijo! - Janet exclamou. -Realmente, é um inferno ter uma duplicata. As duas têm as mesmas idéias. E, levando isso em conta, aposto que sei para que serve o feitiço - acrescentou, deslizando a carta de Gwendolen para o espaço entre o compensado e o vidro, e pressionando o compensado no lugar original. - É para Gwendolen poder dar uma olhada de vez em quando e ver como vai indo a Prezada Sobressalente. Espero que ela esteja olhando agora.
Janet girou o espelho de volta à posição costumeira e fez uma careta horrível para ele: envesgou os olhos e puxou-os para os lados com os dedos, e5 esticou a língua para fora o máximo possível; então levantou a ponta do nariz com um dedo e contorceu a boca para um lado. Gato não conseguiu deixar de rir.
- Gwendolen não consegue fazer isto? - Janet perguntou pelo canto da boca.
- Não - Gato respondeu com uma risada.
Foi nesse momento que Eufêmia abriu a porta. Janet deu um salto violento. Estava muito mais nervosa do que Gato imaginara.
- Eu lhe agradeço se você parar de fazer caretas e tirar a camisola, Gwendolen - disse Eufêmia.
Ela entrou no quarto para certificar-se de que Gwendolen obedeceria; então soltou um guincho rouco e desmanchou-se, formando um torrão marrom.
Janet tapou a boca com as mãos. Ela e Gato ficaram observando, horrorizados, o torrão marrom que havia sido Eufêmia ficar cada vez menor. Quando tinha uns dez centímetros de altura, ele parou de encolher e estendeu dois pés grandes, com os dedos unidos por membranas. Nesses pés de palmípede ele rastejou para a frente e ficou a encará-los com um olhar de censura nos olhos amarelos e protuberantes que ficavam próximos ao topo da cabeça.
- Ai, ai, ai! - Gato exclamou.
Ao que parecia, o ultimo ato de Gwendolen havia sido transformar Eufêmia em sapo.
Janet pôs-se a chorar. Gato ficou surpreso: ela parecia ser bastante controlada. Com fortes soluços Janet ajoelhou-se e pegou carinhosamente nas mãos a criatura marrom e rastejante que era Eufêmia.
- Coitada de você! - chorava ela. - Sei exatamente como se sente. Gato, que é que nós vamos fazer? Como é que vocês transformam as pessoas de volta?
- Não sei - Gato confessou em tom lúgubre.
De repente ele se via cheio de enormes responsabilidades. Era óbvio que Janet, apesar de seus modos confiantes, precisava de quem cuidasse dela. Quanto a Eufêmia, era óbvio que precisava ainda mais. Se não fosse por Crestomanci, Gato teria saído correndo naquele momento para pedir ajuda ao Sr. Saunders - mas de repente deu-se conta de que, se Crestomanci chegasse a ficar sabendo o que Gwendolen fizera dessa vez, as coisas mais terríveis aconteceriam. Ele deu-se conta também de que tinha pavor de Crestomanci; durante todo o tempo sentira medo dele sem ter consciência disso. Sabia que, de um modo qualquer, teria que manter tanto Janet quanto Eufêmia em segredo.
Sentindo-se desesperado, Gato correu ao banheiro, encontrou uma toalha úmida e trouxe-a para Janet.
- Coloque Eufêmia sobre isto. Ela precisa ficar sempre molhada. Vou pedir a Roger e Júlia para transformá-la de volta. Vou dizer a eles que você se recusa. E por favor não conte a ninguém que não é Gwendolen. Por favor!
Janet pousou Eufêmia delicadamente sobre a toalha. Eufêmia moveu-se sobre ela e continuou a olhar acusadoramente para Janet.
- Não olhe para mim desse jeito. Não fui eu - disse esta, fungando. - Gato, vamos ter que escondê-la. Será que ela ficará confortável dentro do armário?
- Vai ter que ficar - disse Gato. - É melhor você se vestir. Uma expressão de pânico passou pelo rosto de Janet.
- Gato, que é que Gwendolen costuma usar?
Gato julgava que todas as garotas sabiam o que as garotas usavam.
- As coisas de sempre. Anágua, meia, vestido, botas, você sabe.
- Não sei não - disse Janet. - Eu sempre uso calça comprida.
Gato sentiu que seus problemas cresciam. Pôs-se a procurar algumas roupas. Pelo que parecia, Gwendolen tinha levado consigo suas melhores coisas, mas ele encontrou as botas velhas, as meias verdes com as ligas combinando, as anáguas em pior estado, o vestido de cashmere verde com bordado em casa-de-abelha e, com certo constrangimento, a calcinha.
- Pronto - disse.
- Ela usa mesmo duas anáguas? - Janet quis saber.
- Usa sim. Pode vestir.
Mas Janet não conseguiu vestir-se sem a ajuda dele; se ele a deixasse colocar qualquer coisa sozinha, ela fazia isso de trás para a frente. Ele teve que enfiar-lhe as anáguas, abotoar o vestido dela nas costas, prender suas ligas, atar suas botas e colocar o vestido pela segunda vez, com a frente para a frente, e depois amarrar o laço da faixa da cintura. Quando terminou, a aparência de Janet estava correta, mas ela ostentava um estranho ar de estar arrumada demais. A menina estudou-se criticamente ao espelho.
- Obrigada, você é um anjo. Estou parecendo uma criança da época do Rei Edward.
- Vamos, está na hora do café da manhã - disse Gato. Levou Eufêmia, que coaxava furiosamente, para o armário, e envolveu-a com firmeza na toalha. - Fique calada - pediu. - Vou dar um jeito de desvirar você assim que puder, então pare com esta barulheira, por favor!
Ele fechou a porta e colocou nela uma cunha feita com uma página de anotações de Gwendolen, para que ficasse firmemente presa. De trás da porta veio um coaxo abafado: Eufêmia não tinha intenção de ficar calada. E Gato não podia culpá-la.
- Ela não está feliz ali dentro - Janet comentou, ficando com pena. - Não pode ficar solta dentro do quarto?
- Não - Gato declarou.
Embora fosse um sapo, Eufêmia ainda tinha cara de Eufêmia; ele sabia que Mary a teria reconhecido no minuto em que pusesse os olhos nela. Então pegou Janet pelo cotovelo e levou-a para a sala de brinquedos.
- Vocês dois sempre se levantam no último minuto? - Júlia perguntou. - Estou cansada de bancar a educada e esperar vocês para tomar o café.
- Eric está acordado há horas - Mary informou, andando em volta deles. - De modo que não sei o que vocês dois andaram aprontando. Ah, e o que Eufêmia está fazendo?
- Mary está um pouco fora de si esta manhã - disse Roger, com uma piscadela.
Por um instante havia duas Marys: uma real e uma etérea e fantasmagórica. Janet deu um pulo; aquele era apenas o segundo ato de bruxaria que ela já vira, e não estava achando fácil acostumar-se.
- Imagino que a culpa seja de Gwendolen - Júlia declarou, dirigindo a Janet um daqueles olhares significativos.
Janet ficou bastante sem graça. Gato esquecera-se de avisar a ela do quanto Júlia a detestava depois do episódio das cobras. E um olhar significativo vindo de uma bruxa é pior do que um olhar significativo vindo de uma pessoa comum. O de Júlia empurrou Janet para trás, fazendo com que ela atravessasse todo o aposento de costas, até que Gato colocou-se entre as duas.
- Não faça isso, ela está arrependida - ele disse.
- Está mesmo? - Júlia quis saber. - Você está arrependida? -perguntou, tentando fazer seu olhar rodear Gato para atingir Janet de novo.
- Estou, sim, muitíssimo arrependida - Janet declarou com fervor, sem ter a menor idéia do motivo do arrependimento. - Mudei completamente de sentimentos.
- Só vou acreditar vendo - Júlia declarou.
Mas interrompeu seu olhar para observar Mary trazendo a refeição de sempre: o pão, a geléia, o bule de chocolate quente.
Janet também olhava; ela cheirou a fumaça do chocolate saindo do bule e fez uma expressão consternada, parecida com a de Gwendolen no primeiro dia.
- Ai, ai, detesto chocolate - disse. Mary fez uma careta de impaciência.
- Você e seus caprichos e manias! Nunca tinha dito quê detestava.
- Eu... tive uma reviravolta de gosto - Janet inventou. -Quando mudei de sentimentos, todas os meus gostos para comida mudaram, também. Eu... Você não tem café, tem?
Gato esperou o momento certo e, quando o Sr. Saunders os chamou para a aula, ele pegou Roger pelo braço e cochichou-lhe:
- Escute, Gwendolen transformou Eufêmia num sapo, e... Roger soltou uma sonora gargalhada. Gato teve que esperar até que ele parasse de rir.
- E não quer transformar em gente outra vez. Você consegue fazer isso? - concluiu finalmente.
Roger tentou parecer sério, mas não conseguia conter uns risinhos.
- Não sei. Provavelmente não, a não ser que ela lhe conte qual feitiço usou. Descobrir qual é o feitiço sem informação é Magia Avançada, e ainda não cheguei lá. Ah, que coisa engraçada!
Ele dobrou-se sobre a mesa e pôs-se a dar gargalhadas.
Naturalmente, o Sr. Saunders apareceu à porta, comentando que a hora de contar piadas era depois da aula. Tiveram que passar para a sala de aula. Naturalmente, Gato viu que Janet estava sentada no seu lugar, por engano. Fez com que ela fosse para a carteira que lhe cabia, o mais discretamente possível, e sentou-se ele próprio, perguntando-se, perturbado, como poderia descobrir qual feitiço Gwendolen havia usado.
Foi a manhã mais incômoda que Gato já passara. Esquecera-se de contar a Janet que o único assunto que Gwendolen conhecia um pouco era a bruxaria. Janet, como ele desconfiava, sabia muito sobre um monte de coisas - mas tudo se aplicava apenas ao mundo dela; a única matéria em que ela não despertaria suspeitas era a aritmética simples. E o Sr. Saunders escolheu aquela manhã para lhe aplicar um teste de História. Gato, enquanto escrevia com a mão esquerda uma redação em inglês, via a crescente expressão de pânico no rosto de Janet.
- Como assim, Henrique V? - o Sr. Saunders perguntou com impaciência. - Ricardo III ficou no trono até muito depois de Agincourt. Qual foi a sua maior façanha de magia?
- Derrotar os franceses - Janet arriscou. O Sr. Saunders ficou tão exasperado que ela continuou: - Bom, acho que foi. Ele deixou os franceses pesados, transformando as ceroulas deles em ferro, e os ingleses usavam ceroulas de lã, de modo que não ficaram presos na lama, e provavelmente seus arcos também eram encantados. Isso explica eles não errarem o alvo.
- Quem você imagina que tenha vencido a batalha de Agincourt?
- Os ingleses - Janet respondeu.
Naturalmente aquilo era verdade no mundo dela, mas a expressão de pânico no seu rosto enquanto ela fazia essa afirmação sugeria que ela desconfiava que neste mundo havia ocorrido o contrário. E, naturalmente, havia mesmo. O Sr. Saunders levou as mãos à cabeça.
- Não! Não! Não! Os franceses!. Será que você não sabe nada de nada, garota?
Janet parecia à beira das lágrimas. Gato ficou apavorado: a qualquer momento ela iria descontrolar-se e contar ao Sr. Saunders que não era Gwendolen. Não tinha os motivos de Gato para guardar segredo.
- Gwendolen nunca sabe de nada - comentou em voz alta, na esperança de que Janet entendesse a indireta.
Ela entendeu: soltou um suspiro de alívio e relaxou.
- Tenho conhecimento disso - disse o Sr. Saunders. - Mas em algum lugar dentro dessa cabeça de mármore deve haver uma pequena célula de massa cinzenta. De modo que continuo a procurar.
Infelizmente, Janet, em seu alívio, ficou quase exuberante.
- Gostaria de abrir a minha cabeça e dar uma olhada? - perguntou.
- Não me tente! - exclamou o Sr. Saunders, de um modo que deixou tanto Gato quanto Janet inquietos.
Finalmente - depois de muito tempo - chegou a hora de Mary trazer o leite com biscoitos, e ela o fez, com uma expressão muito agourenta. Agachada na bandeja ao lado da xícara de café do Sr. Saunders havia uma coisa marrom, grande e de aparência molhada. Gato teve a sensação de que seu estômago o abandonava e mergulhava nos porões do Castelo. Pela cara de Janet, o dela estava fazendo a mesma coisa.
- Que é isso aí? - o Sr. Saunders quis saber.
- A boa ação diária de Gwendolen - Mary explicou em tom grave. - É Eufêmia. Olhe para o rosto do bicho.
O Sr. Saunders inclinou-se e olhou. Então girou, virando-se para Janet tão ferozmente que Janet quase caiu do banco.
- Então era por isso que vocês estavam rindo!
- Não fui eu! - Janet protestou.
- Eufêmia estava no quarto de Gwendolen, trancada no armário, se arrebentando de tanto coaxar - Mary contou. -Acho melhor chamar Crestomanci - disse o Sr. Saunders, indo em direção à porta.
Mas a porta abriu-se antes que ele chegasse até ela, e Crestomanci em pessoa entrou, alegre e apressado, com alguns papéis na mão.
- Michael, será que cheguei em boa... ? - Ele interrompeu o que dizia ao ver o rosto do Sr. Saunders. - Alguma coisa errada?
- O senhor por favor dê uma olhada neste sapo - Mary pediu. - Estava no armário de Gwendolen.
Crestomanci estava usando um extraordinário terno cinzento com listras de um lilás desbotado. Afastou para o lado sua gravata de seda lilás e inclinou-se para inspecionar o sapo. Eufêmia ergueu a cabeça e coaxou para ele suplicantemente. Houve um momento de gélido silêncio - um tipo de momento que Gato esperava nunca mais viver.
- Mas que coisa! - Crestomanci exclamou, com a suavidade com que os flocos de neve cobrem uma janela. - É Eugênia!
- Eufêmia, papai - Júlia corrigiu.
- Eufêmia, é claro. Ora, quem fez isto?
Gato perguntou-se como uma voz tão suave podia fazer os cabelos de sua nuca arrepiarem-se.
- Gwendolen, senhor - disse Mary. Mas Crestomanci balançou a cabeça.
- Não. Não dê nome errado aos bois. Não poderia ter sido Gwendolen. Ontem à noite Michael retirou os poderes de bruxaria dela.
- Ah, é, que cabeça, a minha! - disse o Sr. Saunders, um tanto ruborizado.
- Então, quem pode ter sido? - Crestomanci perguntou. Houve outro silêncio gélido. Para Gato, ele pareceu durar
tanto quanto a Era Glacial. Durante esse tempo, Júlia pôs-se a sorrir. Tamborilou sobre a carteira com os dedos e olhou pensativamente para Janet. Janet percebeu e deu um salto; inspirou profundamente, preparando-se para dizer alguma coisa. Gato entrou em pânico. Tinha certeza de que Janet ia contar o que Gwendolen aprontara. Então fez a única coisa que julgou que poderia impedi-la.
- Fui eu - declarou sonoramente.
Gato mal conseguiu suportar o modo como todos olharam para ele: Júlia, com repugnância, Roger, atônito; o Sr. Saunders ficou furioso. Mary olhou para o menino como se ele próprio fosse um sapo. Mas Crestomanci ficou cético, embora com delicadeza - e isso foi o pior de tudo.
- Desculpe-me, Eric, mas foi você mesmo quem fez isto? Gato encarou-o com uma estranha umidade em volta dos olhos. Achou que isso se devia ao medo.
- Foi um engano - explicou. - Eu estava experimentando um feitiço. Não... não imaginava que fosse funcionar. E então... e então Eufêmia entrou e virou sapo. Sem mais nem menos.
Crestomanci disse:
- Mas você já sabia que é proibido praticar magia sozinho.
- Está certo. - Gato baixou a cabeça, sem precisar fingir-- Mas sabia que não ia funcionar. Só que funcionou, é claro.
- Bem, terá que desmanchar o feitiço imediatamente - Crestomanci declarou.
Gato engoliu em seco.
- Não posso. Não sei fazer isso - confessou. Crestomanci deu-lhe outro olhar tão educado, tão pungente e tão incrédulo, que Gato teria adorado rastejar para baixo da sua carteira, se tivesse condições de mover-se.
- Muito bem - disse Crestomanci. - Michael, será que pode fazer este favor?
Mary estendeu a bandeja. O Sr. Saunders pegou Eufêmia e colocou-a sobre a mesa da sala de aula. Eufêmia grasnou agitadamente.
- Só um minutinho - disse o Sr. Saunders em tom tranqüilizador.
Colocou as mãos em concha em volta dela. Nada aconteceu. Parecendo um tanto espantado, o Sr. Saunders começou a resmungar umas coisas. Ainda assim nada aconteceu: Eufêmia continuava sapo e sacudia a cabeça ansiosamente acima dos dedos ossudos do rapaz. O Sr. Saunders passou do espanto a uma total perplexidade.
- E um feitiço muito estranho - admitiu. - Que foi que você usou, Eric?
- Não me lembro - disse Gato.
- Bem, ele não reage a qualquer coisa que eu possa fazer - o Sr. Saunders continuou. - Você mesmo vai ter que fazer isso, Eric. Venha até aqui.
Gato lançou a Crestomanci um olhar de desespero, mas Crestomanci limitou-se a assentir, como se dissesse que achava que o Sr. Saunders tinha toda razão. Gato levantou-se. Suas pernas estavam fracas e pesadas, e parecia que seu estômago tinha se mudado definitivamente para os porões do Castelo. Ele arrastou-se em direção à mesa. Quando Eufêmia viu o menino aproximar-se, mostrou sua opinião sobre o assunto dando um salto frenético para fora da mesa. O Sr. Saunders pegou-a no ar e colocou-a de volta sobre a mesa.
- Que é que devo fazer? - Gato perguntou, com uma voz que soou como os coaxos de Eufêmia.
O Sr. Saunders pegou Gato pelo pulso esquerdo e plantou a mãos dele nas costas viscosas de Eufêmia.
- Agora, tire o feitiço dela - ordenou.
- Eu... Eu... - fez Gato. Imaginava que devia fingir que tentava. - Pare de ser sapo e vire Eufêmia de novo - disse, perguntando-se, com infelicidade, o que fariam a ele quando aquilo não acontecesse.
Mas, para seu espanto, Eufêmia transformou-se. O sapo ficou quente sob seus dedos e começou a crescer. Gato lançou um olhar para o Sr. Saunders enquanto o torrão marrom crescia furiosamente, cada vez mais. Ele teve quase certeza de ter flagrado um sorriso secreto no rosto do Sr. Saunders. No segundo seguinte, Eufêmia estava sentada na borda da mesa. Tinha as roupas um pouco amassadas e marrons, mas nada mais havia de sapo nela.
- Nunca sonhei que tivesse sido você! - disse a Gato. Em seguida cobriu o rosto com as mãos e pôs-se a chorar. Crestomanci aproximou-se e abraçou-a.
- Pronto, pronto. Deve ter sido uma experiência terrível. Acho que é melhor você ir deitar-se.
E levou Eufêmia para fora do aposento.
- Puxa! - disse Janet.
Mary, com expressão soturna, serviu o leite e os biscoitos. Gato não quis; seu estômago ainda não havia voltado dos porões. Janet recusou os biscoitos.
- Acho que a comida aqui é tremendamente engordativa -disse, imprudentemente.
Júlia tomou aquilo como um insulto pessoal; pegou seu lenço e deu-lhe um nó. O copo de leite de Janet escorregou entre os dedos dela e despedaçou-se no chão.
- Limpe - mandou o Sr. Saunders. - Depois saia, você e Eric. Já estou cansado de vocês dois. Júlia e Roger, peguem suas cartilhas de magia, por favor.
Gato levou Janet para o jardim. Parecia mais seguro lá. Os dois vagaram pelo gramado, ambos sem forças, depois das experiências daquela manhã.
- Gato, você vai ficar muito chateado comigo, mas é absolutamente essencial que eu fique agarrada a você como um carrapato durante todo o tempo em que estivermos acordados, até eu aprender como me comportar. Hoje você já salvou minha pele duas vezes. Pensei que ia morrer quando ela entrou com aquele sapo. O rigor mortis já estava se manifestando quando você desvirou a mulher! Não sabia que você também era bruxa, quer dizer, bruxo. Ou é um mago?
- Não - disse Gato. - Não sou nenhuma dessas coisas. O Sr. Saunders fez aquilo para me dar um susto.
- Mas Júlia é bruxa, não é? - perguntou a esperta Janet. - Que foi que eu fiz para ela me odiar tanto? Ou é só um caso de gwendolenite generalizada?
Gato contou o caso das serpentes.
- Nesse caso não a culpo - disse Janet. - Mas é duro de aceitar que neste momento ela esteja na sala de aula aperfeiçoando a sua bruxaria e eu esteja aqui, sem um fiapo de feitiço para me defender. Você não conhece um professor de caratê que esteja disponível, conhece?
- Nunca ouvi falar - disse Gato cautelosamente, perguntando-se o que poderia se esse caratê.
- Ora, muito bem - suspirou Janet. - Esse tal de Crestomanci é maravilhosamente criativo para se vestir, não é mesmo?
Gato riu. - Espere até vê-lo de roupão!
- Mal posso esperar. Deve ser uma coisa extraordinária! Por que ele é tão apavorante?
- Ele simplesmente é - Gato respondeu.
- Sim, ele simplesmente é - Janet repetiu. - Quando ele viu que o sapo era Eufêmia e ficou todo bonzinho e espantado daquele jeito, me deu arrepios na nuca. Eu não conseguiria dizer a ele que não sou Gwendolen, mesmo sob as torturas modernas mais refinadas, e é por isso que sou obrigada a ficar grudada em você. Acha isso muito ruim?
- Nem um pouco - Gato assegurou-lhe.
Mas achava sim. Se Janet estivesse montada em seus ombros com as pernas em volta do seu peito ela não atrapalharia mais do que já estava atrapalhando. E, para coroar tudo, parecia que não houvera necessidade da sua confissão falsa. Ele levou Janet até as ruínas da casa da árvore, porque queria pensar em qualquer outra coisa. Janet ficou encantada com a casinha de brinquedo. Subiu agilmente na castanheira-da-índia para examiná-la, e Gato sentiu-se como quando uma pessoa desconhecida senta-se ao nosso lado no trem.
- Tome cuidado - ele gritou, zangado.
Ouviu-se um forte ruído de pano rasgado, vindo da folhagem.
- Droga! Estas roupas são ridículas para subirmos era árvores.
- Não sabe costurar? - Gato perguntou, subindo também.
- Eu desprezo a costura, é uma prisão para a mulher - Janet explicou. - É, mas na verdade, sei sim. E vou ter que fazer isso. Rasguei as duas anáguas. - Testou com o pé o piso irregular, que era tudo o que havia restado da casa, e ficou de pé sobre ele, deixando aparecer babados de duas cores abaixo da bainha do vestido de Gwendolen. - Daqui dá para ver o povoado. Uma carroça de açougueiro está entrando na alameda do Castelo.
Gato subiu para o lado dela e ambos observaram a carroça e o cavalo malhado que a puxava.
- Vocês não têm automóvel? - Janet quis saber. - No meu mundo, todos têm automóvel.
- As pessoas ricas têm. Crestomanci mandou o dele nos buscar na estação do trem - Gato explicou.
- E vocês têm luz elétrica. Mas todo o resto é antiquado, em comparação com o meu mundo. Imagino que as pessoas conseguem o que desejam por meio de bruxaria. Vocês têm fábricas, discos, arranha-céus, ou televisão, ou aviões? - Janet perguntou.
- Não sei o que são aviões - Gato respondeu. Ele tampouco fazia idéia do que era a maioria das outras coisas, e estava ficando entediado com aquela conversa.
Janet percebeu isso. Olhou em volta, procurando outro assunto, e viu os cachos de grandes vagens verdes pendurados nas pontas dos galhos ao redor deles. As folhas já se mostravam um pouco escuras nas bordas, sugerindo que não demoraria muito para as favas amadurecerem. Janet arrastou-se por um galho e tentou alcançar o cacho mais próximo. As vagens verdes sacudiam-se pertinho das pontas dos dedos dela, que por pouco não as alcançava.
- Ah, bassês! - ela exclamou. - Parecem quase maduras.
- Mas não estão - disse Gato. - Bem que eu gostaria que estivessem.
Ele pegou uma chave de fenda entre os destroços da casa e arremessou-a na direção das vagens. Não conseguiu atingi-las, mas deve tê-las sacudido, pois cerca de uma dezena delas se desprenderam da árvore e caíram no chão com um plomp.
- Quem foi que disse que não estão maduras? - disse Janet, inclinando-se na direção do solo.
Gato espichou o pescoço e viu, lá embaixo, as favas marrons e brilhantes dentro das vagens verdes rachadas.
- Ora, viva! - exclamou.
Desceu da árvore como um macaquinho, e Janet desceu atrás dele aos arrancos, com os cabelos cheios de gravetos. Os dois puseram-se a catar avidamente as favas - que estavam perfeitas, com desenhos como os contornos em um mapa.
- Um espeto! - gemeu Janet. - Meu reino por um espeto! Podemos enfiá-las nos cadarços das minhas botas.
- Aqui está um espeto - Gato mostrou.
Havia um no chão, perto da mão esquerda dele. Certamente tinha caído da casa na árvore.
Ambos puseram-se a furar furiosamente favas. Usaram os cadarços retirados do segundo melhor par de botas de Gwendolen. Descobriram que as regras do jogo de favas eram as mesmas nos dois mundos, e foram para o jardim formal, onde travaram uma batalha feroz nas aléias de cascalho. Janet empurrou com firmeza a última fava de Gato e gritou:
- É minha! A minha agora vale um sete!
Nesse instante, Millie apareceu junto a um teixo e ficou a sorrir para eles.
- Sabem, eu não tinha imaginado que as favas já estivessem maduras. Mas este verão está maravilhoso.
Janet olhou para ela, consternada. Não tinha idéia de quem fosse aquela senhora gorducha num lindo vestido de seda estampado com flores.
- Olá, Millie! - Gato cumprimentou. Aquilo não foi de grande ajuda para Janet. Millie sorriu e abriu a bolsa que carregava.
- Aqui estão três coisas de que Gwendolen precisa, eu creio. Pronto. - Entregou a Janet dois alfinetes de segurança e um pacote de cadarços. - Faço questão de estar sempre prevenida.
- Ob... obrigada - Janet gaguejou.
Ela estava terrivelmente cônscia das botas desatadas, dos cabelos cheios de gravetos e dos dois babados dependurados sob o vestido. Achava-se ainda mais confusa porque não sabia quem Millie era.
Gato percebia isso. Sabia, a essa altura, que Janet era uma dessas pessoas que só ficam felizes se tiverem uma explicação para tudo. Assim, dirigiu-se a Millie, falando com bastante clareza:
- Acho que Roger e Júlia têm sorte de ter uma mãe como você, Millie.
Millie sorriu amplamente, e Janet entendeu. Gato sentiu-se um refinado hipócrita; tinha realmente essa opinião, mas não teria sequer sonhado em externá-la se não fosse por Janet.
Tendo compreendido que Millie era a esposa de Crestomanci, Janet não foi capaz de resistir à tentação de extrair o máximo de informações que conseguisse. Então perguntou:
- Millie, os pais de Gato eram primos-irmãos, como... Quer dizer, eles eram? E qual é o parentesco de Gato com você?
- Está parecendo um daqueles testes para ver se somos inteligentes - Millie comentou. - E não sei a resposta, Gwendolen. Vocês são aparentados com a família do meu marido, entende? Não sei muita coisa sobre eles. Precisamos de Crestomanci para explicar isso.
Aconteceu que nesse momento Crestomanci saiu pela porta no muro do jardim. Millie foi até ele, sorridente.
- Meu amor, precisamos de você.
Janet, que estava de cabeça baixa tentando prender os babados das anáguas com os alfinetes, ergueu os olhos e olhou de relance para Crestomanci, depois olhou pensativamente para o caminho, como se as pedras e a areia houvessem se tornado de repente muito interessantes.
- E bastante simples - disse Crestomanci, depois que Millie explicou-lhe a questão. - Frank e Caroline Chant eram meus primos, e primos-irmãos um do outro também, é claro. Quando insistiram era se casar, minha família criou um grande caso, e meus tios os deserdaram sem um xelim, como se usava fazer antigamente. E ruim que primos se casem quando existe bruxaria na família. Não que deserdar os dois tenha feito alguma diferença, naturalmente. - Ele sorriu para Gato. Parecia totalmente amigável. - Isto responde à pergunta?
Gato teve um vislumbre de como Gwendolen se sentia: o modo como Crestomanci mostrava-se amistoso quando deveria estar furioso deixava-o confuso e exasperado. Não conseguiu resistir, e perguntou:
- Eufêmia está bem?
Então arrependeu-se de ter perguntado, pois o sorriso de Crestomanci apagou-se como uma lâmpada.
- Sim, ela está se sentindo melhor agora. A sua preocupação é comovente, Eric. Pelo que entendi, você sentiu tanta pena dela que a escondeu dentro de um armário, não foi?
- Meu amor, não seja tão assustador - Millie interveio, enlaçando o braço no de Crestomanci. - Foi um acidente, e está tudo bem, agora.
Ela levou-o pela alameda de cascalho. Porém, logo antes de sumirem de vista por trás de um teixo, Crestomanci virou-se e olhou para Gato e Janet por cima do ombro. Seu olhar era de perplexidade, mas estava longe de ser tranqüilizador.
- Putzgrila! Santa periquita! - Janet cochichou. - Estou começando a ficar com medo até de me mover neste lugar!
Ela terminou de prender as anáguas. Quando Millie e Crestomanci já haviam tido quase um minuto para distanciar-se, continuou:
- Ela é um doce, a Millie, uma gracinha. Mas ele! Gato, é possível que Crestomanci seja um mago bem poderoso?
- Acho que ele não é - Gato respondeu. - Por quê?
- Bom... - fez Janet. - E um pouco por causa dessa sensação que ele dá...
- Não sinto sensação nenhuma. Simplesmente tenho medo dele - Gato respondeu.
- É isto mesmo - Janet concordou. - De qualquer maneira, você provavelmente está confuso, por ter passado a vida inteira com bruxas. Mas não é só uma sensação. Já reparou que ele aparece quando alguém fala nele? Já fez isso duas vezes.
- As duas vezes foram por acaso. Não podemos criar teorias em cima de acasos - Gato objetou.
- Ele disfarça bem, isto eu admito - disse Janet. - Aparece como se estivesse fazendo alguma outra coisa, mas...
- Ah, por favor, fique quieta! Você está ficando igualzinha a Gwendolen. Ela não conseguia passar um minuto sem estar pensando nele - disse Gato em tom irritado.
Janet bateu com o pé direito no cascalho.
- Eu não sou Gwendolen! E na verdade não sou sequer parecida com ela! Enfie isso na sua cabeça dura, está bem?
Gato pôs-se a rir.
- De que é que está rindo? - Janet quis saber.
- Gwendolen também sempre bate o pé quando está zangada - ele explicou.
- Bah! - fez Janet.
Quando Janet terminou de recolocar os cadarços nas botas, Gato tinha certeza de que já era hora do almoço, de modo que levou depressa a menina de volta à porta que costumavam usar. Haviam quase chegado a ela quando uma voz pastosa chamou, entre os rododendros: - Mocinha! Venha aqui um minuto! Janet lançou um olhar assustado a Gato e ambos correram para a porta. A voz não era simpática. Os rododendros sacudiram-se ruidosa e indignadamente perto das duas crianças, e um homem gordo, usando uma capa de chuva suja, surgiu do meio deles. Antes que Janet e Gato conseguissem recuperar-se da surpresa de vê-lo, ele havia se colocado entre os dois e a porta, e ali ficou, olhando para eles com olhar de reprovação nos olhos vermelhos e caídos, e soltando em cima deles um bafo de cerveja.
- Olá, Sr. Baslam - disse Gato, para Janet ouvir.
- Não me escutou, mocinha? Perguntou o Sr. Baslam. Gato via que Janet estava com medo dele, mas ela respondeu com a mesma frieza que Gwendolen teria usado.
- Sim, mas pensei que era a árvore falando.
- A árvore falando! - ecoou o Sr. Baslam. - Depois de todo o trabalho que tive por sua causa, você me confunde com uma árvore! Três litros de cerveja escura tive que comprar para aquele açougueiro para que me trouxesse naquela carroça que ele tem, e foram tantos solavancos que estou todo quebrado!
- Que é que o senhor quer? - Janet perguntou, nervosa.
- E o seguinte - começou o Sr. Baslam.
Ele abriu a capa de chuva e pôs-se a remexer demoradamente nos bolsos das calças largas.
- Temos que entrar para almoçar - Gato declarou.
- Tudo a seu tempo, meu jovem. Pronto - disse o Sr. Baslam, estendendo para Janet a mão encardida onde havia duas coisas que cintilavam. - Estão aqui.
- São os brincos de mamãe! - Gato exclamou, por causa da surpresa e também por causa de Janet. - Como foi que conseguiu essas coisas?
- Sua irmã me deu os brincos para pagar uma pequena transação de sangue de dragão - disse o Sr. Baslam. - E até acredito que tenha sido de boa-fé, mocinha, mas eles não me servem.
- Por que não? - Janet quis saber. - Parecem ser... Quer dizer, são diamantes de verdade.
- Tem razão - concordou o Sr. Baslam. - Mas você não me disse que eram encantados, disse? Eles têm um feitiço horrível para impedir que se percam, ora se têm. Um feitiço horrivelmente barulhento. Passaram a noite toda dentro do coelho empalhado gritando "Eu pertenço a Caroline Chant", e hoje de manhã fui obrigado a embrulhar os dois num lençol antes de ter coragem de levar para um conhecido meu. E ele se recusou a tocar neles. Disse que não ia se arriscar a ter coisas gritando o nome de Chant. De modo que vou lhe entregar os brincos de volta, mocinha. E você está me devendo 55 mangos. Janet engoliu em seco.
- Sinto muitíssimo - disse. - Realmente eu não fazia idéia. Mas... mas infelizmente não tenho de onde tirar dinheiro. Não pode mandar retirar o feitiço?
- E despertar curiosidade? Esse feitiço está bem impregnado - objetou o Sr. Baslam.
- Então por que não estão gritando agora? - Gato quis saber.
- Quem você pensa que sou? - retrucou o Sr. Baslam. -Acha que eu poderia ficar sentado num lugar público apregoando aos berros que pertenço à Srta. Chant? Não. Esse meu conhecido me fez o favor de fornecer um pequeno encantamento fiado. Mas ele me disse: "Só consigo calar os brincos durante uma hora, mais ou menos. E um feitiço realmente forte. Se quiser que ele seja retirado de maneira permanente, vai ter que levar para um bruxo. E isso ia custar o preço dos brincos, além de provocar perguntas". Os bruxos são pessoas importantes, mocinha. Então eu fico aqui sentado nessa moita, morrendo de medo de que o encanto acabasse antes de vocês aparecerem, e agora você vem me dizer que não tem dinheiro! Não, vai ter que pegar os brincos de volta, mocinha, e me dar alguma coisa por conta.
Janet olhou nervosamente para Gato. Gato suspirou e enfiou as mãos nos bolsos. Tudo que tinha era uma moeda de meia coroa. Ofereceu-a ao Sr. Baslam.
O Sr. Baslam recuou ao ver a moeda, com um olhar caído e magoado, como um São Bernardo depois de levar uma surra.
- Eu peço 55 mangos e você me oferece meia coroa! Filho, está de brincadeira comigo?
- Isto é tudo que nós dois temos no momento - Gato asseverou. - Mas cada um de nós ganha uma moeda de uma coroa por semana. Se lhe dermos isso, vamos pagar tudo em...
Ele pôs-se a fazer contas apressadamente. Dez xelins por semana, 52 semanas num ano, vinte e seis libras por ano.
- Vai levar só dois anos - completou.
Dois anos era tempo demais para ficar sem mesada. No entanto, o Sr. Baslam conseguira o sangue de dragão para Gwendolen, e Gato achava justo que ele fosse pago.
Mas o Sr. Baslam parecia mais magoado do que nunca. Deu as costas a Gato e Janet e ficou a contemplar melancolicamente os muros do Castelo.
- Moram num lugar como este e vêm me dizer que só conseguem arranjar dez xelins por semana! Não façam piadas de mau gosto comigo. Sei que têm condições de botar as mãos em muito dinheiro, se quiserem de verdade.
- Não temos, acredite - Gato protestou.
- Acho que deveriam tentar, meu jovem - insistiu o Sr. Baslam. - Não sou irredutível. Tudo o que estou pedindo é uma entrada de 20 mangos, incluindo juros de dez por cento, e mais o preço do feitiço para silenciar os brincos. Isso deve ser moleza para vocês.
- Sabe perfeitamente que não é! -Janet retrucou, indignada. - E melhor ficar com estes brincos. Seu coelho empalhado pode ficar bonitinho com eles.
O Sr. Baslam lançou-lhe um olhar de cachorro surrado. Ao mesmo tempo, um ruído fino e cantado começou a sair da palma da sua mão, onde estavam os brincos. Era baixo demais para Gato entender as palavras, mas era o suficiente para desmentir qualquer hipótese de que o Sr. Baslam estivesse inventando aquilo tudo. O olhar magoado do Sr. Baslam ficou menos parecido com o de um cão surrado e mais parecido com o de um cão de caça farejando a presa; ele deixou que os brincos deslizassem de seus dedos gordos e caíssem sobre o cascalho.
- Aí estão eles, se quiserem se dar ao trabalho de abaixar para pegar - declarou. - Quero lembrar, mocinha, que o comércio de sangue de dragão é ilícito, ilegal e proibido. Eu lhe fiz um favor e você me passou a perna. Agora estou lhe dizendo que preciso de 20 mangos até a próxima quarta-feira. E tempo suficiente. Se eu não receber o dinheiro até quarta-feira à noite, então na mesma hora Crestomanci ficará sabendo do sangue de dragão. E, quando ele souber, eu não gostaria de estar em seu lugar, mocinha, nem por vinte mil mangos e uma tiara de diamantes. Estou sendo claro?
Sim: claro e assustador.
- E se lhe devolvermos o sangue de dragão? - Gato sugeriu, desesperado.
Naturalmente Gwendolen levara consigo o sangue de dragão do Sr. Baslam, mas havia aquele vidro enorme no laboratório do Sr. Saunders.
- Que é que eu faria com sangue de dragão, meu filho? - perguntou o Sr. Baslam. - Não sou feiticeiro. Sou apenas um pobre fornecedor, e nesta região não há procura por sangue de dragão. É do dinheiro que preciso. Vinte mangos até a próxima quarta-feira, não se esqueçam.
Ele fez um gesto de cabeça que lhe sacudiu os olhos e as bochechas, como um cão de caça, e recuou de volta para dentro do agrupamento de rododendros. Os meninos escutaram o ruído da folhagem à sua passagem.
- Que velho horroroso! - Janet exclamou, num cochicho abalado. - Eu gostaria de ser mesmo Gwendolen; ia transformar esse homem num inseto de quatro cabeças. Argh!
Ela inclinou-se e pegou os brincos no cascalho.
Imediatamente o ar nas imediações da porta encheu-se de vozes cantando alto: "Pertenço a Caroline Chant! Pertenço a Caroline Chant!".
- Ai, ai! Eles sabem! - exclamou Janet.
- Me dê os brincos, depressa. Alguém pode ouvir - disse Gato. Janet deixou os brincos caírem na palma da mão de Gato.
As vozes cessaram de imediato.
- Não consigo me acostumar com toda esta magia - queixou-se Janet. - Gato, que é que devo fazer? Como posso pagar a esse homem horrível?
- Deve haver alguma coisa que podemos vender - Gato sugeriu. - No povoado há uma loja de quinquilharias. Vamos. Temos mesmo de ir almoçar.
Os dois se encaminharam às pressas para a sala de brinquedos, onde constataram que Mary já tinha servido para eles pratos de ensopado com bolinhos.
- Ora, vejam só! - exclamou Janet, que sentia a necessidade de aliviar seus sentimentos, de alguma forma. - Um almoço nutritivo e engordativo. Que bom!
Mary lançou aos dois um olhar zangado e saiu da sala sem nada dizer. A expressão de Júlia era bastante antipática. Enquanto Janet se sentava diante do seu ensopado, Júlia tirou seu lenço da manga, já com o nó, e o colocou no colo. Janet enfiou o garfo num bolinho; o garfo ficou preso. O bolinho era uma pedrinha branca, com mais duas, num prato cheio de lama.
Janet pousou com cuidado o garfo com a pedra empalada e colocou a faca caprichosamente em cima do prato. Estava tentando controlar-se, mas, por um instante, ficou parecida com Gwendolen quando esta estava furiosa.
- Estou faminta - disse.
Júlia sorriu.
- Que pena! - exclamou com ironia. - E você nem tem mais a bruxaria para se defender, tem? - Ela deu outro nó, menor, na ponta do lenço. - Você está cheia de coisas nos cabelos, Gwendolen - comentou, enquanto apertava o nó.
Os gravetos emaranhados nos cabelos de Janet contorceram-se e começaram a cair sobre a mesa e a saia da menina. Cada um deles era uma lagarta grande e listrada.
Janet tinha tão pouco medo quanto Gwendolen de coisas que se contorciam; assim, catou as lagartas e colocou-as num montinho diante de Júlia.
- Minha vontade é de chamar o seu pai - declarou.
- Ah, não seja dedo-duro - interveio Roger. - Deixe Gwendolen era paz, Júlia.
- Claro que não - retrucou a irmã. - Esta aí não vai conseguir almoçar.
Depois do encontro com o Sr. Baslam, Gato não estava com muita fome.
- Pronto - disse, trocando seu prato de picadinho pelo prato de lama de Janet.
Janet fez menção de protestar; mas, assim que o prato de lama estava diante de Gato, transformou-se novamente num picadinho fumegante. E o montinho de lagartas tornou-se simplesmente uma pilha de gravetos.
Júlia, nem um pouco contente, virou-se para Gato.
- Não se intrometa. Você é muito chato. Ela trata você como um escravo, e você só fica do lado dela.
- Mas simplesmente troquei os pratos! - Gato protestou, perplexo. - Por que...
- Pode ter sido Michael - Roger sugeriu. Júlia olhou para ele com raiva também.
- Foi você? - perguntou.
Roger balançou a cabeça em negativa, e Júlia encarou-o, hesitante. Finalmente disse:
- Se eu tiver que ficar outra vez sem geléia, Gwendolen vai ver uma coisa. E espero que você se engasgue com o picadinho.
Nessa tarde, Gato teve dificuldade em concentrar-se na aula. Tinha que vigiar Janet como um falcão. Janet decidira que a única coisa segura a fazer seria mostrar-se totalmente burra - de qualquer maneira, ela achava que Gwendolen era mesmo bastante burra - e Gato via que ela estava exagerando: até mesmo Gwendolen sabia a tabuada de multiplicar por dois. Gato preocupava-se, também, com a possibilidade de Júlia começar a dar nós naquele lenço dela quando o Sr. Saunders estivesse de costas. Felizmente Júlia não teve coragem de fazer isso. Mas a maior preocupação de Gato era arranjar 20 libras até a quarta-feira seguinte. Mal suportava pensar no que poderia acontecer se não conseguisse. Sabia que no mínimo Janet confessaria que não era Gwendolen. Imaginou Crestomanci lançando-lhe aquele olhar ferino e dizendo: "Você foi com Gwendolen comprar sangue de dragão, Eric? Mas sabia que é ilegal. E tentou esconder isso, fazendo Janet fingir que é Gwendolen? Você se preocupa mesmo com a sua irmã, Eric!"
Essa perspectiva fazia Gato encolher-se por dentro. Mas ele nada possuía para vender a não ser um par de brincos que gritavam que pertenciam a outra pessoa. Se escrevesse para o Prefeito de Wolvercote perguntando se poderia receber 20 libras do Fundo, o Prefeito iria simplesmente escrever para Crestomanci perguntando por que Gato queria aquele dinheiro. E então Crestomanci ia encará-lo com aquele olhar ferino e diria: "Você foi com Gwendolen comprar sangue de dragão, Eric?". A situação era irremediável.
- Está se sentindo bem, Eric? - o Sr. Saunders perguntou várias vezes.
- Ah, estou sim - Gato respondia, todas as vezes.
Ele tinha quase certeza de que ter o pensamento em três lugares diferentes ao mesmo tempo não era considerado uma doença, embora se sentisse doente.
- Vamos brincar de soldadinhos? - Roger sugeriu depois das aulas.
Gato até que gostaria, mas não ousava deixar Janet por sua própria conta.
- Tenho uma coisa para fazer - disse.
- Com Gwendolen. Eu sei - Roger completou, aborrecido. - Até parece que você é a perna esquerda ela, ou qualquer coisa assim.
Gato sentiu-se magoado. E o pior era que ele sabia que Janet poderia ficar sem a perna esquerda com mais facilidade do que ficar sem ele. Enquanto a seguia às pressas até o quarto de Gwendolen, desejava, de todo coração, que fosse realmente de Gwendolen que ele estava correndo atrás.
Dentro do quarto, Janet dedicava-se febrilmente a reunir algumas coisas: os livros de feitiço de Gwendolen, os enfeites sobre a lareira, o conjunto de escova de cabelos e espelho de costas douradas que ficava em cima da penteadeira, o frasco na mesa de cabeceira e metade das toalhas do banheiro.
- Que é que está fazendo? - ele quis saber.
- Juntando coisas que podemos vender - Janet respondeu. - No seu quarto há alguma coisa que você não se importaria em perder? Não olhe para mim desse jeito. Sei que isso é roubar, mas fico tão desesperada quando penso que aquele horrível Sr. Balão vai procurar Crestomanci, que nem me importo mais. - Ela foi até o armário e sacudiu as roupas penduradas. - Este casaco aqui é de ótima qualidade.
- Você vai precisar dele no domingo, se fizer frio - Gato objetou com desânimo. - Vou lá ver o que tenho. Mas me prometa que vai ficar aqui até eu voltar.
- Craro, num arredo daqui sem o sinhozinho. Mas ande depressa!
No quarto de Gato havia menos coisas, mas ele reuniu o que conseguiu encontrar e foi buscar a esponja grande no banheiro. Sentia-se um criminoso. Ele e Janet embrulharam os objetos em duas toalhas e esgueiraram-se escada abaixo com suas trouxas, imaginando a cada momento que alguém iria descobri-los.
- Sinto-me como um ladrão carregando a muamba - Janet cochichou. - A qualquer momento alguém vai ligar um holofote e então a polícia vai fechar o cerco. Existe polícia aqui?
- Existe sim. Fique de boca fechada - disse Gato.
Mas, como de costume, ninguém estava por perto da porta lateral que costumavam usar. Eles desceram o corredor brilhante e espiaram para fora. O espaço perto dos rododendros estava vazio. Os dois esgueiraram-se naquela direção. As árvores que haviam escondido o Sr. Baslam iriam esconder os dois e o produto do roubo.
Haviam dado três passos para fora da porta quando um coro de ressonante fez-se ouvir.
- Nós pertencemos ao Castelo Crestomanci! Nós pertencemos ao Castelo Crestomanci! - trovejaram 40 vozes.
Janet e Gato quase tiveram um ataque.
Algumas das vozes eram roucas, outras eram estridentes, mas todas eram muito altas. Faziam um barulho ensurdecedor. Eles levaram alguns segundos para entender que as vozes saíam das trouxas.
- Filhote de cachorro com dentifrício! - Janet praguejou. Os dois deram meia-volta e tornaram a correr para a porta, com as 40 vozes berrando em seus ouvidos.
A Srta. Bessemer abriu a porta. Postou-se ali, alta, esguia e lilás, esperando que eles entrassem. Nada havia que Janet e Gato pudessem fazer, a não ser tornar a entrar no Castelo passando por ela, colocar no chão do corredor as trouxas repentinamente silenciosas e preparar-se para enfrentar problemas sérios.
- Que algazarra horrível, meus queridos! - a Srta. Bessemer exclamou. - Eu não ouvia uma coisa igual desde que um bruxo tolo tentou nos roubar. Que era que vocês estavam fazendo?
Janet não sabia quem era aquela mulher imponente e lilás. E estava assustada demais para falar, de modo que Gato foi obrigado a dizer alguma coisa.
- Estávamos querendo brincar de casinha na casa da árvore - inventou. - Precisávamos de algumas coisas.
Ele próprio se surpreendeu com a naturalidade com que disse aquilo.
- Deviam ter-me dito, seus bobinhos - disse a Srta. Bessemer. - Eu teria lhes dado algumas coisas que não se importam de serem levadas para fora. Vão correndo colocar tudo isso aí de volta no lugar, e amanhã vou lhes arranjar belos móveis.
Os dois voltaram, desalentados, para o quarto de Janet.
- Simplesmente não consigo me acostumar ao modo como tudo aqui é enfeitiçado - Janet queixou-se. - Isto está me fazendo mal. Quem é aquela mulher comprida e lilás? Aposto um bom dinheiro que é uma bruxa.
- A Srta. Bessemer. A governanta - Gato explicou.
- Alguma esperança de que ela nos dê quinquilharias esplêndidas, que valham 20 mangos na feira? - Janet perguntou.
Ambos sabiam que isso era bastante improvável. Ainda não haviam se aproximado um só milímetro da solução do problema de encontrar outra maneira de ganhar 20 libras quando tocou o gongo de vestir-se.
Gato já havia explicado a Janet como era o jantar. Ela prometera não pular quando os criados passassem coisas por cima do seu ombro, e jurara não tentar conversar sobre estátuas com o Sr. Saunders. E assegurou que não se importaria em ouvir Bernard falar de ações e dividendos. De modo que Gato achou que pelo menos dessa vez ele poderia relaxar. Ajudou Janet a vestir-se e chegou até a tomar um banho de chuveiro, e enquanto se encaminhavam para a sala de jantar ele pensava que ambos faziam bela figura.
Mas o Sr. Saunders mostrou que finalmente tinha superado sua paixão por estátuas. Em vez disso, todos puseram-se a falar sobre gêmeos idênticos, e depois sobre duplos perfeitos que não eram parentes. Até mesmo Bernard esqueceu-se de falar sobre ações, interessado naquele novo assunto.
- A parte realmente difícil é como esse tipo de pessoa se adapta a uma série de outros mundos - declarou com sua voz possante, inclinando-se para a frente, com as sobrancelhas subindo e descendo.
E, para desespero de Gato, a conversa voltou-se para outros mundos. Em qualquer outra ocasião ele poderia ficar interessado; agora, não ousava olhar para Janet, podendo apenas desejar que todos ficassem quietos. Mas as pessoas conversavam animadamente, todas elas, principalmente Bernard e o Sr. Saunders. Gato ficou sabendo que muita coisa se conhecia sobre outros mundos. Vários deles tinham sido visitados. Aqueles que eram mais conhecidos haviam sido classificados em conjuntos, chamados de séries, segundo os acontecimentos na História que eram iguais neles. Era bastante incomum que as pessoas não tivessem pelo menos um duplo exato num mundo da mesma série - geralmente cada pessoa tinha uma fileira de duplos ao longo do conjunto.
- Mas e quanto aos duplos em série diferentes? - perguntou o Sr. Saunders. - Tenho pelo menos um duplo na Série III, e desconfio da existência de outro na...
Janet endireitou-se na cadeira com um movimento brusco, exclamando.
- Gato, socorro! E como estar sentada em alfinetes! Gato olhou para Júlia. Viu o sorrisinho no rosto dela e a ponta do lenço em cima da mesa.
- Vamos trocar de lugar - sussurrou, sentindo-se bastante cansado.
Ficou de pé, e todos olharam para ele.
- E tudo isso me dá a sensação de que uma classificação satisfatória ainda não foi encontrada - declarou o Sr. Saunders virando-se para o lado de Gato.
- Será que posso trocar de lugar com J... Gwendolen, por favor? Ela não está conseguindo escutar direito o que o Sr. Saunders está dizendo.
- Sim, e é muitíssimo interessante - Janet ofegou, dando um pulo da cadeira.
- Se você acha indispensável... - disse Crestomanci, um pouco a contragosto.
Gato sentou-se na cadeira de Janet. Nada conseguia sentir de errado nela. Júlia baixou a cabeça e dirigiu-lhe um olhar demorado e desagradável, e ele viu que os cotovelos dela moviam-se enquanto ela, furiosa, desamarrava o lenço. Gato entendeu que por causa disso ela ia odiá-lo também. Ele suspirou. Era uma coisa atrás da outra...
No entanto, quando adormeceu, naquela noite, Gato não estava se sentindo desesperado. Não conseguia acreditar que as coisas pudessem piorar ainda mais - portanto, teriam que melhorar. Talvez a Srta. Bessemer lhes desse alguma coisa muito valiosa, que eles pudessem vender. Ou, melhor ainda, talvez Gwendolen estivesse de volta quando ele despertasse, e já tivesse resolvido todos os problemas dele.
Mas quando foi até o quarto de Gwendolen, na manhã seguinte, ainda era Janet, lutando para prender as ligas e dizendo por cima do ombro:
- Estas coisas provavelmente nos fazem muito mal. Você também usa isso? Ou são uma tortura feminina? E uma coisa útil que a magia poderia fazer é segurar as meias da gente. Dá para imaginar que as bruxas não sejam muito práticas.
Gato era da opinião de que ela falava demais. Porém isso era melhor do que não ter ninguém no lugar de Gwendolen.
No café da manhã, nem Mary, nem Eufêmia mostraram-se simpáticas, e assim que elas saíram da sala uma das cortinas enrolou-se ao redor do pescoço de Janet e tentou estrangulá-la. Gato retirou a cortina, que lutou contra ele como se fosse uma coisa viva, pois Júlia estava segurando duas pontas do lenço e puxando os nós com força.
- Ah, pare com isso, Júlia! - ele implorou.
- É isso mesmo, pare - Roger concordou. - E bobo e chato. Preciso me alimentar em paz.
- Estou mais do que disposta a sermos amigas - disse Janet.
- Me inclua fora disso - recusou-se Júlia.
- Então seremos inimigas! - Júlia exclamou, quase como Gwendolen teria feito. - No princípio pensei que você era boa, mas agora vejo que é somente uma jabiraca, chata, idiota, burra, desalmada, verruguenta e vesga!
Naturalmente aquilo havia sido calculado para fazer Júlia adorá-la.
Por sorte o Sr. Saunders apareceu mais cedo do que de costume. Houve apenas tempo suficiente para a geléia de Janet transformar-se em bichos-de-laranja e tornar a ficar normal quando Gato lhe deu a sua porção, e para o café de Janet virar um molho marrom e voltar a ser café quando Gato o bebeu, antes que o Sr. Saunders assomasse a cabeça pela porta. Pelo menos, Gato achou que aquilo era uma sorte, até o Sr. Saunders dizer:
- Eric, Crestomanci quer ver você agora, no escritório dele. Gato levantou-se. Seu estômago, cheio de geléia enfeitiçada, desceu para os porões do Castelo com inusitada rapidez. Ele imaginou: Crestomanci descobrira tudo! Sabia do sangue de dragão e de Janet! Iria olhar educadamente para ele e... Ah, como Gato tinha esperanças de que Crestomanci não fosse mesmo feiticeiro!
- Onde... onde fica? - conseguiu perguntar.
- Roger, leve-o até lá - disse o Sr. Saunders.
- E... E para quê? - Gato perguntou. O Sr. Saunders sorriu.
- Você verá. Agora vá.
O escritório de Crestomanci era um aposento amplo e ensolarado, com prateleiras em toda a volta, cheias de livros. Havia uma escrivaninha, mas Crestomanci não estava sentado atrás dela; estava estendido num sofá, tomando sol, lendo um jornal e usando um roupão verde com dragões dourados. Os fios dourados dos dragões cintilavam e reluziam ao sol. Gato não conseguia desviar o olhar deles. Ficou parado junto à porta, sem ousar avançar mais, e pensava: ele realmente descobriu sobre o sangue de dragão.
Crestomanci ergueu os olhos e sorriu.
- Não fique com essa cara assustada - disse, pousando o jornal. - Venha até aqui e sente-se.
Ele apontou para uma grande poltrona de couro. Mostrava-se muito amistoso, mas ultimamente Gato tinha certeza de que aquilo não significava coisa alguma. Tinha certeza de que, quanto mais simpático Crestomanci se mostrava, mais zangado ele estava. Gato esgueirou-se até a poltrona e sentou-se nela. Era uma daquelas poltronas fundas e inclinadas para trás; Gato escorregou para trás no assento até ficar numa posição em que era obrigado a olhar para Crestomanci por entre os joelhos. Sentiu-se totalmente indefeso. Achou que devia dizer alguma coisa, portanto sussurrou:
- Bom dia.
- Não está parecendo que você pense assim - Crestomanci observou. - Sem dúvida tem suas razões. Mas não se preocupe. Não se trata exatamente do sapo outra vez. Sabe, andei pensando sobre você...
- Não precisava! - Gato exclamou.
Em sua posição quase deitada, ele pensava: se Crestomanci pretendia fixar seus pensamentos em algo no outro lado do universo, não seria longe demais.
- Não doeu muito. Mas, mesmo assim, obrigado - disse Crestomanci. - Como eu estava dizendo, o caso do sapo me fez começar a pensar. E embora eu tema que você provavelmente tenha tão pouco senso moral quanto a infeliz da sua irmã, fico me perguntando se poderia confiar em você. Acha que posso confiar em você?
Gato não tinha idéia de aonde aquilo poderia estar levando, exceto que, pelo modo como Crestomanci colocava as coisas, ele parecia não confiar muito em Gato.
- Ninguém jamais confiou em mim antes - disse o menino cautelosamente, pensando: a não ser Janet, e só porque ela não tem escolha.
- Mas pode ser que valha a pena tentar, não acha? - Crestomanci sugeriu. - Pergunto isso porque vou deixar você começar a ter aulas de bruxaria.
Gato simplesmente não esperava isso. Ficou horrorizado. Com o choque, suas pernas balançaram-se na cadeira. Ele conseguiu contê-las, mas continuava horrorizado. No momento em que o Sr. Saunders começasse a tentar ensinar-lhe magia, ficaria óbvio que Gato não tinha dom algum. Então Crestomanci começaria a pensar no sapo outra vez.
Gato amaldiçoou o acaso que fizera Janet fazer menção de falar e o obrigara a confessar.
- Ah, não deve fazer isso! Seria fatal! Quer dizer, o senhor não pode confiar em mim. Tenho o coração negro. Sou mau. Isso aconteceu porque morei com a Sra. Sharp. Se eu aprender bruxaria, não há como saber as coisas que eu faria. Veja o que fiz com Eufêmia!
- Aquele foi exatamente o tipo de incidente que estou ansioso para evitar - disse Crestomanci. - Se você aprender como e o que fazer, terá menos chances de cometer novamente aquele tipo de erro.
- É, mas provavelmente eu faria de propósito - Gato asseverou. - O senhor estaria me colocando as armas nas mãos.
- De qualquer maneira, vai tê-las nas mãos - disse Crestomanci. - O dom da bruxaria sempre vem à superfície, sabe? Quem o tem não consegue resistir para sempre à vontade de usá-lo. Que é que lhe faz pensar que é tão mau?
Aquela pergunta deixou Gato em apuros.
- Eu roubo maçãs - disse. - E adorei algumas das coisas que Gwendolen fez.
- Ah, eu também - Crestomanci concordou. - Ficava imaginando em que ela pensaria em seguida. Que tal achou aquela procissão de monstruosidades? Ou aquelas quatro almas penadas?
Gato estremeceu; sentia náuseas só de pensar nelas.
- Precisamente - disse Crestomanci, e, para desespero de Gato, sorriu carinhosamente para ele. - Certo. Vamos deixar que Michael comece a ensinar-lhe bruxaria elementar na segunda-feira.
- Ah, por favor, não faça isso! - Gato lutou para sair da poltrona escorregadia, para implorar melhor. - Vou trazer uma praga de gafanhotos. Vou ser pior do que Moisés e Arão.
Crestomanci disse, pensativamente:
- Seria bastante útil se você abrisse as águas do Canal da Mancha. Imagine a quantidade de gente que ia deixar de enjoar nos navios. Não fique tão assustado, não temos intenção de ensinar-lhe a fazer as coisas do modo como Gwendolen fazia.
Gato voltou melancolicamente para a sala de aula, onde encontrou os outros estudando Geografia. O Sr. Saunders estava brigando com Janet porque ela não sabia onde ficava a Atlântida.
- Como é que eu ia saber que é o que eu chamo de América? - Janet perguntou a Gato na hora do almoço. - Mas sabe de uma coisa? Foi sorte eu ter acertado quando arrisquei que ela era governada pelos incas. Qual é o problema, Gato? Você parece que vai desatar a chorar. Ele não descobriu sobre o Sr. Balofo, descobriu?
- Não, mas a coisa é tão ruim quanto isso - Gato respondeu, e explicou-lhe tudo.
- Era só o que me faltava! - Janet exclamou. - A ameaça de sermos descobertos está em toda parte. Mas pode não ser tão ruim quanto parece, pensando bem. Você pode ser capaz de fazer bruxarias pequenas, se praticar primeiro. Vamos ver o que podemos fazer depois das aulas com os livros que Gwendolen, aquela menina tão simpática, teve a gentileza de deixar para nós.
Gato ficou alegre quando as aulas recomeçaram. Estava cansado de trocar de pratos com Janet, e o lenço de Júlia devia estar em frangalhos, tal a quantidade de nós que ela fizera nele.
Terminadas as aulas, ele e Janet pegaram os dois livros de magia e levaram-nos para o quarto de Gato. Janet olhou em volta com admiração.
- Gosto muito mais deste quarto do que do meu. É alegre. O meu me faz sentir como a Bela Adormecida e Cinderela, e as duas eram tão boazinhas que me dão engulho. Agora, vamos ao trabalho. O que é, na verdade, um feitiço simples?
Os dois se ajoelharam no chão, cada um folheando um livro.
- Tomara que eu possa descobrir como transformar botões em moedas. Assim poderíamos pagar ao Sr. Baslam - Gato comentou.
- Não toque neste assunto. Já estou com a cabeça quente - Janet pediu. - Que tal isto? - E ela pôs-se a ler: - "Exercício simples de levitação. Pegue um espelho pequeno e coloque-o deitado de modo que o seu rosto fique visível nele. Mantendo o rosto visível, mova-se em sentido anti-horário três vezes, as duas primeiras fazendo um desejo silenciosamente, a terceira dizendo em voz alta: levante-se, espelhinho, levante-se no ar, levante-se até a minha cabeça e fique ali. O espelho vai erguer-se..." Acho que você conseguirá fazer isto, Gato.
- Vou tentar - Gato declarou, em tom de dúvida. - Que é que quer dizer "anti-horário"?
- Sei o que é. Na direção contrária ao movimento dos ponteiros do relógio - disse Janet.
- Pensava que fosse para andar depressa - Gato confessou. Janet encarou-o pensativamente.
- Você ainda é muito novo, eu acho, mas fico preocupada quando vejo você se acovardando. Alguém lhe fez alguma coisa?
- Acho que não. Por quê? - Gato quis saber, um pouco surpreso.
- Bom, nunca tive irmão - Janet disse. - Traga um espelho.
Gato pegou o espelho de mão era sua cômoda e colocou-o cuidadosamente no chão, no centro do quarto.
- Assim está bom? Janet suspirou.
- É isto que estou querendo dizer. Sabia que você ia pegar o espelho se eu ordenasse. Será que você se importaria de não ser tão bonzinho e obediente? Isso me deixa nervosa. De qualquer maneira... - Ela pegou o livro. - Está conseguindo ver o seu rosto nele?
- E praticamente a única coisa que vejo - disse Gato.
- Que engraçado, eu vejo o meu. Será que também consigo fazer o feitiço?
- É mais fácil você conseguir que funcione do que eu -disse Gato.
Então os dois puseram-se a andar em círculos ao redor do espelho, e disseram as palavras em coro. A porta se abriu e Mary entrou, e Janet apressou-se a esconder o livro atrás das costas.
- Sim, aqui está ele - disse Mary, postando-se de lado para deixar um rapaz desconhecido entrar no quarto. - Este é Will Suggins - apresentou. - É o namorado de Eufêmia. Ele quer falar com você, Eric.
Will Suggins era alto, troncudo e até bonitão. Quanto às suas roupas parecia que ele havia passado o dia inteiro com elas trabalhando numa padaria e depois as escovara cuidadosamente. Não parecia simpático.
- Foi você quem transformou Eufêmia num sapo, não foi? - perguntou a Gato.
- Fui eu sim - disse Gato. Não ousou dizer outra coisa, com Mary ali.
- Você é bem pequeno - disse Will Suggins; parecia decepcionado. - De qualquer maneira, pequeno ou grande, não admito que transforme Eufêmia em alguma coisa. Não aceito isso. Está entendendo?
- Sinto muito - disse Gato. - Não vou fazer de novo -prometeu.
- E não vai mesmo! - exclamou Will Suggins. - Você escapou muito fácil, pelo que Mary me contou. Vou lhe ensinar uma lição que você não vai esquecer muito depressa.
- Não vai não! - disse Janet. Ela marchou até Will Suggins e brandiu o Magia para Principiantes na direção dele ameaçadora-mente. - Você tem três vezes o tamanho dele, e ele já disse que não vai fazer de novo. Se tocar em Gato, eu vou... - Ela afastou o livro do peito de Will Suggins para folheá-lo às pressas. - Vou induzir completa imobilidade nas pernas e no tronco!
-Vou ficar bem bonitinho assim, tenho certeza! - respondeu Will Suggins, achando muita graça. - Posso perguntar como é que vai fazer isso sem bruxaria? E, mesmo que fizesse, eu poderia me livrar do feitiço muito facilmente. Também sou bruxo, e dos bons. Se bem que... - Voltou-se para Mary. - Você poderia ter me avisado que ele era tão novinho.
- Não é tão novinho na hora de fazer bruxaria e travessuras - respondeu Mary. - Nenhum dos dois é. São um par de baderneiros de verdade.
- Bem, então vou usar bruxaria. É fácil - declarou Will Suggins, remexendo nos bolsos de seu casaco ligeiramente enfarinhado. - Ah! - exclamou, e retirou algo que parecia ser uma bola de massa de pão.
Por um momento sovou-a vigorosamente com as mãos poderosas. Então fez uma bola e jogou-a aos pés de Gato. A bola de massa caiu sobre o tapete com um plop suave. Gato ficou a olhar para ela com grande apreensão, perguntando-se o que ela faria.
- Isso vai ficar aí no chão até as três horas da tarde de domingo - Will afirmou. - Domingo é um dia ruim para bruxaria, mas é o meu dia de folga. Estarei esperando por você no campo Bedlam, na forma de tigre. Faço um ótimo tigre. Você pode se transformar em alguma coisa do tamanho que desejar, bem grande ou pequena e rápida se preferir, e vou lhe dar uma lição, seja qual for a sua forma. Mas se não aparecer no campo de Bedlam em forma de alguma coisa, essa bola de massa vai começar a funcionar e você vai se transformar num sapo, e ficará assim enquanto eu quiser. Pronto, Mary, já acabei.
Will Suggins virou-se e marchou para fora do quarto. Mary acompanhou-o, mas não conseguiu resistir e, voltando e assomando a cabeça pela porta, disse:
- Quero ver se você vai gostar disso, Eric! Aí então saiu de vez e fechou a porta atrás de si.
Gato e Janet entreolharam-se e depois tornaram a olhar para a bola de massa.
- Que é que vou fazer? - Gato perguntou.
Janet jogou o livro em cima da cama e tentou pegar a bola de massa. Mas esta estava grudada ao tapete, e a menina não conseguiu movê-la.
- A única maneira de tirar isso daí é fazer um buraco no chão - declarou. - Gato, a situação está ficando cada vez pior. Desculpe-me por dizer isso, mas já deixei de gostar um bocadinho que seja da sua irmãzinha tão boazinha.
- A culpa é minha - Gato respondeu. - Não devia ter mentido sobre Eufêmia. Foi isso que me colocou nesta confusão, e não Gwendolen.
- Confusão não é uma palavra suficientemente forte - Janet retrucou. - No domingo você será devorado por um tigre; na segunda-feira, descobre-se que você não tem poder de magia. E se a história inteira não vier à tona então, virá na quarta-feira, quando o Sr. Besta vier buscar o dinheiro. Acha que o Destino . tem alguma carta na manga para terça-feira também? Imagino que, se você vai ao encontro no domingo na sua própria forma, ele não vai poder machucá-lo muito, vai? E melhor do que ficar esperando ser transformado em sapo.
- É melhor fazer isso mesmo - Gato concordou, de olhos fixos na sinistra bola de massa. - Eu queria poder me transformar mesmo em coisas. Então iria como uma pulga. Ele ia se coçar até morrer, tentando me encontrar.
Janet riu.
- Vamos ver se existe um feitiço para isso. - Ela voltou-se para pegar o Magia para Principiantes e bateu com a cabeça no espelho, que flutuava no ar na altura da testa da menina. - Veja, Gato, um de nós dois conseguiu! Veja!
Gato olhou, sem muito interesse. Tinha coisas demais na cabeça.
- Imagino que tenha sido você. Gwendolen e você são iguais, de modo que certamente você é capaz de fazer feitiços. Mas transformar-se em coisas não deve estar era nenhum destes dois livros. É Magia Avançada.
- Então vou fazer o feitiço para baixar o espelho – Janet decidiu.
- Não que eu queira ser bruxa; quanto mais bruxarias vejo, mais isso me parece uma maneira fácil de fazer maldade.
Ela abriu o livro e nesse momento ouviu-se uma batida na porta. Janet pegou a cadeira ao lado da cama de Gato e subiu nela, para esconder o espelho. Gato depressa ajoelhou-se sobre a bola de massa. Nenhum dos dois queria mais encrenca.
Janet dobrou o Magia para Principiantes ao contrário, escondendo a capa, e acenou com ele para Gato.6
- Venha para o jardim, Maud - declamou.
Tomando isso como um convite, a Srta. Bessemer abriu a porta e entrou. Carregava muitas coisas nos braços, e um velho bule de chá pendurado num dedo.
- As coisas que lhes prometi, queridos - disse.
- Ah! Muito obrigada! Estávamos lendo poesias, sabe? -disse Janet.
- E eu pensei que estivesse falando comigo! Meu nome é Maud - declarou a Srta. Bessemer com uma risada. - Será que posso colocar estas coisas sobre a cama?
- Sim, obrigado - disse Gato.
Nenhum dos dois ousava mover-se; giraram o corpo para ver a Srta. Bessemer deixar as coisas sobre a cama e, ainda tortos, agradeceram-lhe profusamente. Assim que a Srta. Bessemer partiu, ambos saltaram para ver se, por uma bênção da sorte, havia algo de valor na pilha. Não encontraram coisa alguma. Como Janet disse, se realmente quisessem brincar de casinha, dois banquinhos e um tapete velho seriam o ideal, mas, do ponto de vista de conseguir o dinheiro, continuavam na mesma.
- Foi bondade dela se lembrar - disse Gato, guardando o monte de coisas dentro do armário.
- Mas agora vamos ter que nos lembrar de brincar de casinha com isto - disse Janet com desânimo. - Como se já não tivéssemos tanta coisa para fazer. Agora, vou baixar este espelho, ora, se vou!
Mas o espelho recusava-se a baixar. Janet tentou todos os três feitiços em ambos os livros, mas ele continuou pairando no ar, na altura da cabeça dela.
- Tente você, Gato. Não podemos deixar isso aí - disse ela. Gato, que até então olhava melancolicamente para a bola de massa, virou-se para a menina. A bola continuava redonda - não mostrava sinais de que ele se ajoelhara sobre ela, e isso o assustou. Sabia que devia ser um feitiço muito poderoso. Mas quando Janet chamou o seu nome, ele suspirou e ergueu a mão para baixar o espelho. Sua experiência com Júlia ensinara-lhe que geralmente um feitiço simples poderia ser rompido com simplicidade.
O espelho recusou-se a descer um centímetro sequer, mas deslizou pelo ar. Gato ficou interessado. Pendurou-se nele com ambas as mãos, deu um impulso com os pés e saiu voando pelo quarto de maneira muito agradável.
- Parece divertido! - Janet exclamou.
- E é mesmo. Tente você - Gato convidou.
Depois disso, passaram algum tempo brincando com o espelho, que suportava facilmente o peso dos dois e movia-se com a velocidade que eles lhe imprimissem com os pés. Janet descobriu que a melhor maneira era ficar de pé sobre a cômoda e saltar. Então, se ela mantinha os pés erguidos, conseguia atravessar o quarto e aterrissar sobre a cama de Gato. Os dois estavam rolando juntos no ar, abraçados e rindo muito, quando Roger bateu na porta e entrou.
- Ei, que boa idéia! - exclamou. - Nunca tínhamos pensado nisso. Posso experimentar? Encontrei um homem vesgo muito estranho no povoado, Gwendolen, e ele me deu esta carta para você.
Gato deixou-se cair sobre o tapete e pegou a carta. Era do Sr. Nostrum, Gato reconheceu a caligrafia. Ficou tão feliz que disse a Roger:
- Pode experimentar 20 vezes, se quiser!
E correu para Janet com a carta.
- Leia, depressa! Que é que ela diz? O Sr. Nostrum poderia livrá-los dos problemas. Podia não ser um grande mago, mas certamente conseguiria transformar Gato em pulga, se Janet lhe pedisse com delicadeza. Ele certamente teria um feitiço que poderia fazer com que Gato aparentasse ter poderes de bruxaria.
E embora o Sr. Nostrum não fosse rico, seu irmão William era; ele poderia emprestar 20 libras a Gato, se fosse para ajudar Gwendolen.
Gato sentou-se na cama ao lado de Janet e ambos leram a carta, enquanto Roger passeava pelo quarto pendurado no espelho, dando risadinhas de alegria por aquela brincadeira tão divertida. O Sr. Nostrum escrevera:
Minha aluna querida e favorita: Estou aqui, hospedado na Estalagem do Cervo Branco. E muito importante - repito, é da maior importância - que você venha me ver aqui no sábado à tarde, trazendo o seu irmão para ser instruído por mim. Seu professor orgulhoso e saudoso, Henry Nostrum
Ao ler isso, Janet mostrou-se nervosa e perplexa, e gemeu baixinho.
- Espero que não sejam más notícias! - disse Roger, passando por eles a flutuar, os pés encolhidos.
- Não, é a melhor notícia que poderíamos ter! - Gato declarou.
Ele cutucou Janet nas costelas para que ela sorrisse. Ela sorriu obedientemente, mas ele não conseguiu fazer com que ela entendesse que as notícias eram boas, mesmo quando teve a oportunidade de explicar.
- Se ele foi professor de Gwendolen, saberá que eu não sou • ela - objetou a menina. - E, se não souber, não vai compreender por que você quer se transformar era pulga. É um pedido esquisito, mesmo neste mundo. E ele vai querer saber por que eu não consegui fazer isso para você. Não podemos contar a verdade a ele?
- Não, porque é de Gwendolen que ele gosta - Gato explicou. Alguma coisa lhe dizia que o Sr. Nostrum ficaria tão pouco
satisfeito quanto Crestomanci ao descobrir que Gwendolen partira para outro mundo.
- Ele tem um plano qualquer para ela - completou ele.
- É, essas instruções que ele quer lhe dar... - disse Janet com irritação. - Ele obviamente pensa que eu sei tudo a respeito disso. Para seu governo, Gato, isso é mais uma droga de problema!
Nada conseguia convencer Janet de que a salvação estava próxima. Gato tinha certeza de que estava mesmo. Foi dormir alegre e acordou feliz. Continuou sentindo-se feliz, mesmo quando pisou na bola de massa e constatou que ela era fria e parecia um sapo sob seu pé. Ele a encobriu com o Magia para Principiantes. Então teve que voltar sua atenção para o espelho, que teimava em deslizar para o centro do quarto. Finalmente, Gato precisou amarrá-lo à estante com os cadarços das suas botas de ir à igreja.
Encontrou Janet mais infeliz do que nunca. A mais recente idéia de Júlia para irritá-la tinha sido um mosquito: ele começou a persegui-la quando ela entrou para tomar o café da manhã, e ficou a atazaná-la, zumbindo e picando, durante toda a aula, até Gato matá-lo com o livro de aritmética.
Isso, e mais os olhares hostis de Júlia e Mary, e ainda por cima ter que ir encontrar-se com o Sr. Nostrum, deixaram Janet rabugenta e infeliz.
- Para você, está tudo bem - disse melancolicamente, enquanto desciam a alameda em direção ao povoado, naquela tarde. - Você foi criado com toda essa magia, e está acostumado. Mas eu não estou. E o que me assusta é que é para sempre. E me assusta ainda mais que não seja para sempre; e se Gwendolen se cansar do seu mundo novo e resolver mudar-se para outro? Se isso acontecer, lá vamos nós arrastados, uma fila de duplos dela, e eu terei que me virar no mundo onde ela está agora, e você terá todos os problemas novamente com uma nova irmã.
- Ah, tenho certeza de que isso não vai acontecer - Gato afirmou, um pouco assustado com essa possibilidade. - Ela vai voltar logo.
- Ah, vai mesmo?
Os dois atravessaram os portões, e mais uma vez as mães puxaram os filhos para longe da vista de ambos, e a praça do povoado esvaziou-se quando eles chegaram.
- Eu queria estar de volta a casa! - Janet lamentou, quase chorando por causa do modo como todos fugiam deles.
Na Estalagem do Cervo Branco, as duas crianças foram levadas para uma saleta privativa. O Sr. Henry Nostrum chegou pomposamente para recebê-las.
- Meus caros jovens! - exclamou, colocando as mãos nos ombros de Janet e beijando-a.
Janet recuou, derrubando o chapéu sobre uma orelha. Gato ficou um pouco perturbado. Esquecera-se da aparência decrépita e surrada do Sr. Nostrum, e do efeito estranho da vesguice do seu olho esquerdo.
- Sentem-se, sentem-se! - convidou o Sr. Nostrum animadamente. - Querem gengibirra?
Eles se sentaram. Bebericaram gengibirra, que nenhum dos dois apreciava.
- Por que queria me ver também, além de Gwendolen? - Gato perguntou.
- Indo direto ao ponto sem fazer rodeios, foi porque descobrimos, como de certo modo temíamos descobrir, que não somos capazes de utilizar aquelas três assinaturas que vocês tiveram a bondade de me doar em troca dos serviços prestados em termos de instrução. A Pessoa que Mora Naquele Castelo, cujo nome desdenho pronunciar, assina seu nome sob proteções invencíveis. Não se pode negar que foi prudente da parte dele. Mas temo que seja necessário usarmos o nosso Plano Número Dois. Foi esta a razão, meu caro Gato, por que achamos tão oportuno providenciar para que vocês dois fossem morar no Castelo.
- Qual é o Plano Número Dois? - Janet perguntou.
O olho vesgo do Sr. Nostrum deslizou de lado pelo rosto de Janet. Ele não dava mostras de ter percebido que não se tratava de Gwendolen; talvez seu olho vesgo não enxergasse muito bem.
- O Plano Número Dois é exatamente como o descrevi para você, minha querida Gwendolen - ele declarou. - Não mudamos uma única vírgula dele.
Janet teria que tentar outra maneira de descobrir sobre o que ele estava falando. Ela estava ficando muito boa isso.
- Mas quero que descreva o plano para Gato - disse. - Ele não conhece, e pode precisar conhecer, porque... porque infelizmente eles tiraram os meus poderes de bruxaria.
O Sr. Nostrum ergueu um dedo na direção dela.
- Sim, sua menina sapeca. Andei ouvindo coisas sobre você no povoado. E uma perda triste, mas vamos torcer para que seja apenas temporária. Agora, quanto a explicar ao jovem Gato, como devo fazer isso?
Ele ficou pensando, alisando os cabelos ondulados, como era seu costume. De algum modo, a maneira como ele o fazia mostrava a Gato que, fosse o que fosse que o Sr. Nostrum estava prestes a lhe dizer, não seria exatamente a verdade. Isso estava óbvio no movimento das mãos do Sr. Nostrum e no próprio posicionamento da corrente de prata do relógio por sobre o colete surrado e roliço.
- Bem, jovem Chant, eis a questão, em resumo: há um grupinho, uma panelinha, uma turminha de pessoas, chefiadas pelo Dono do Castelo, que estão se comportando muito egoisticamente em relação à bruxaria. Estão guardando as melhores coisas para si mesmos, o que, naturalmente, os torna muito perigosos. Uma ameaça para todos os bruxos e bruxas, e um desastre iminente para as pessoas normais. Por exemplo, o sangue de dragão. Vocês sabem que está proibido. Essa gente, com Aquela Pessoa à frente, fez com que ele fosse proibido; no entanto, preste bem atenção nisto, jovem Gato, eles próprios o usam diariamente. Aonde quero realmente chegar é que eles mantêm um controle rígido sobre os meios de chegarmos aos mundos de onde vem o sangue de dragão. Um necromante comum, como eu, só consegue essa substância correndo grandes riscos e a um custo enorme, e nossos fornecedores de mercadorias exóticas são obrigados a correr perigo para consegui-las para nós. E o mesmo acontece com quase qualquer produto vindo de outro mundo.
Ele fez uma pequena pausa antes de continuar: - Agora eu lhe pergunto, jovem Gato: isso é justo? Não. E vou lhe dizer por que não, jovem Eric: não é justo que os caminhos para outros mundos estejam nas mãos de uns poucos. Este é o xis da questão: os caminhos para outros mundos. Queremos que eles sejam abertos, liberados para todas as pessoas. E é aí que você entra, jovem Chant. A maneira melhor e mais fácil, o mais amplo Portão para o Além, se é que posso dizer assim, é um certo jardim fechado, no terreno desse citado Castelo. Imagino que vocês tenham sido proibidos de penetrar lá...
- Fomos sim - Gato confirmou.
- Vejam só que injustiça! - continuou o Sr. Nostrum. - O Dono Daquele Lugar usa-o todos os dias e viaja para onde quiser. Portanto, o que quero que você faça, jovem Gato, e este é o propósito do Plano Dois, é entrar no jardim exatamente às duas e meia da tarde de domingo. Pode me prometer que vai fazer isso?
- De que adiantaria? - Gato perguntou.
- Isso romperia o lacre de feitiço que essas pessoas danadas colocaram nos Portões para o Além - explicou o Sr. Nostrum.
Janet, franzindo a testa de maneira muito convincente, comentou:
- Nunca entendi direito como é que Gato romperia esses lacres simplesmente entrando no jardim.
O Sr. Nostrum mostrou-se levemente irritado. - Por ser um menino normal e inocente, é claro. Minha querida Gwendolen, muitas e muitas vezes mencionei a você, com veemência, a importância de ter um garoto inocente no centro do Plano Número Dois. Você certamente já entendeu.
- Ah, entendi sim - Janet apressou-se a afirmar. - E tem que ser no próximo domingo às duas e meia?
- Como sempre - respondeu o Sr. Nostrum, tornando a sorrir. - E um horário bom e forte. Fará isso para nós, jovem Gato? Você, com esse ato simples, tornará sua irmã e as pessoas como ela livres para agir como acharem necessário na prática da magia?
- Vou ficar encrencado se me pegarem - Gato observou.
- Uma certa astúcia juvenil vai livrá-lo. Então, não se preocupe, depois tomaremos conta de você - argumentou o Sr. Nostrum.
- Acho que posso tentar - Gato concordou. - Mas será que pode me dar uma ajuda, em troca? Acha que seu irmão poderia ter a bondade de nos emprestar 20 libras antes da próxima quarta-feira?
Um olhar vago, embora afável, dominou o olho esquerdo do Sr. Nostrum, que apontou benevolamente para o canto mais distante da saleta.
-Tudo que você quiser, caro menino. Simplesmente entre naquele jardim, e os frutos de todos os mundos estarão à sua disposição.
- Preciso ser uma pulga meia hora depois, e quero que na segunda-feira pareça que sou capaz de fazer mágica - Gato continuou. - Preciso de tudo isso, além das 20 libras.
- Qualquer coisa! Qualquer coisa! Mas entre naquele jardim para nós - disse o Sr. Nostrum, expansivo.
Ao que parecia, Gato e Janet teriam que se contentar com isso. Gato fez várias tentativas de comprometer o Sr. Nostrum numa promessa definida, mas tudo o que este dizia era "Entre naquele jardim". Janet olhou para Gato e ambos levantaram-se para ir embora.
- Vamos bater um papo - sugeriu o Sr. Nostrum. - Tenho pelo menos dois itens do interesse de vocês.
- Não temos tempo agora - Janet mentiu em tom firme.
- Vamos, Gato.
O Sr. Nostrum estava acostumado com os modos igualmente firmes de Gwendolen; levantou-se e levou-os majestosamente até a porta da Estalagem, de onde ficou a acenar-lhes enquanto eles saíam para a praça gramada.
- Vejo vocês no domingo! - gritou atrás deles.
- Não vê não! - Janet sibilou. Mantendo a cabeça baixa para que as abas largas do chapéu a escondessem do Sr. Nostrum, ela cochichou a Gato: - Gato, se fizer uma única coisa que esse homem inacreditavelmente desonesto deseja, você será um idiota! Eu sei que ele lhe disse um monte de mentiras. Não sei de que ele realmente está atrás, mas por favor não faça isso.
- Eu sei... - Gato começou, quando o Sr. Nostrum levantou-se do banco que ficava do lado de fora da Estalagem do Cervo Branco e saiu bamboleando atrás deles.
- Esperem! - bufou, soprando cheiro de cerveja em cima deles. - Senhorita, meu jovem, espero que não tenham esquecido as minhas palavras. Quarta-feira. Não se esqueçam de quarta-feira.
- Não se preocupe. Isso faz parte dos meus pesadelos - Janet assegurou. - Com licença, estamos com pressa, Sr. Bule.
Os dois afastaram-se depressa, atravessando a praça. A única outra alma viva à vista era Will Suggins, que surgiu dos fundos da padaria para encará-los ameaçadoramente.
- Acho que temos que fazer o que ele quer - disse Gato.
- Não! Embora eu não tenha a menor idéia do que mais poderíamos fazer...
- Acho que a única coisa que nos resta é fugir correndo -Gato sugeriu.
- Então é isso que vamos fazer. Imediatamente.
Eles não fugiram correndo, exatamente: saíram do povoado caminhando depressa pela estrada que, segundo Gato, apontava mais diretamente para Wolvercote. Quando Janet objetou que Wolvercote seria o primeiro lugar onde qualquer pessoa do Castelo pensaria em procurar, Gato falou-lhe dos contatos importantes que a Sra. Sharp tinha em Londres. Ele sabia que a Sra. Sharp iria escondê-los em algum lugar, e sem fazer perguntas. Falando da Sra. Sharp, acabou ficando cheio de saudades. Sentia muita falta dela. Caminhava arrastando os pés pela estrada rural desejando que ela fosse a Rua Sabá e desejando que Janet não estivesse caminhando ao seu lado, desfiando objeções.
- Bom, pode ser que você tenha razão, e não sei para onde mais poderíamos ir - disse ela. - Como chegaremos a Wolvercote? Espichando o dedo?
Como Gato não entendesse, ela explicou que isso significava ficar parado na estrada pedindo carona com o gesto de levantar a mão e esticar o polegar.
- Isso iria economizar muita caminhada - Gato concordou. A estrada que ele escolhera logo transformou-se praticamente
numa trilha esburacada, cheia de capim e ladeada por altas cercas-vivas com frutinhas de briônia penduradas. Não havia movimento de espécie alguma.
Janet conseguiu não comentar esse fato. O que disse foi:
- Uma coisa: se vamos levar isso até o fim, prometa que não vai mencionar casualmente Você Sabe Quem. - Como Gato não entendesse isso também, ela explicou: - O homem que o Sr. Nostrum ficou chamando de Aquela Pessoa e Dono do Castelo, você sabe!
- Ah, está falando de Cres...
- Quieto!- Janet vociferou. - E dele mesmo que estou falando, e você não deve dizer esse nome. Ele é mago, e aparece quando a gente o chama, seu burro! Lembre-se de que o Sr. Nostrum tem pavor de dizer o nome dele.
Gato pensou sobre a questão. Por mais melancólico e saudoso que se sentisse, ele não estava disposto a concordar com tudo que Janet dissesse. Afinal, ela não era sua irmã coisa nenhuma. Além disso, o Sr. Nostrum não havia dito a verdade. E Gwendolen jamais havia dito que Crestomanci era mago. E certamente jamais ousaria ter feito todas as mágicas que fez se pensasse que ele era.
- Não acredito em você - declarou.
- Está bem, então não acredite. Só não diga o nome dele.
- Tudo bem. De qualquer maneira, espero nunca mais o ver - Gato concordou.
O caminho ficava cada vez mais agreste. Era uma tarde quente. Havia amêndoas nas cercas-vivas, e grandes moitas de amoras silvestres. Antes de terem caminhado mais um quilômetro, Gato percebeu que seus sentimentos haviam mudado inteiramente. Estava livre; seus problemas tinham ficado para trás. Ele e Janet colheram amêndoas, que estavam maduras, bem no ponto de serem saboreadas, e riram muito, tentando quebrá-las. Janet tirou o chapéu - como repetira muitas vezes a Gato, odiava chapéus - e os dois o encheram de amoras para mais tarde. Riram quando o sumo escorreu através do chapéu e pingou no vestido de Janet.
- Estou achando divertido fugir - disse Gato.
- Espere até passarmos a noite num celeiro cheio de ratos -Janet retrucou. - Com bichos esvoaçando e guinchando. Será que neste mundo existem assombr... Ah, veja! Vem um carro! Espiche o dedo... Não, faça um aceno. Provavelmente não vão entender o dedo.
Os dois puseram-se a acenar freneticamente para o grande carro preto que vinha era sua direção sacolejando sobre os buracos. Para sua alegria, o carro parou sem ruído ao lado deles. A vidraça da janela mais próxima desceu e eles tiveram um choque muito grande quando Júlia enfiou a cabeça por ela.
Estava pálida e agitada.
- Ah, voltem, por favor! - pediu. - Sei que fugiram por minha causa, e peço desculpas! Juro que nunca mais vou fazer isso!
A cabeça de Roger assomou pela janela traseira do carro.
- Eu disse a ela muitas vezes que vocês iam acabar fugindo, e ela não acreditou em mim - declarou. - Voltem sim. Por favor.
A essa altura, o motorista abrira a porta do carro. Era Millie, que veio correndo, rodeando o comprido capô. Parecia ainda mais dona-de-casa do que de costume, porque dera um nó na saia para conseguir dirigir e usava sapatos pesados e um chapéu velho. Estava tão agitada quanto Júlia. Quando alcançou Janet e Gato, lançou um braço em volta de cada um deles e puxou-os contra si com tanta força e tanto fervor que Gato quase caiu.
- Meus pobrezinhos! Na próxima vez que se sentirem infelizes, têm que vir me contar imediatamente! E que coisa! Fiquei com tanto medo de que vocês tivessem problemas sérios, e então Júlia me contou que foi ela. Estou extremamente aborrecida com ela. Uma menina fez isso comigo, certa vez, e sei como aquilo me deixou infeliz. Agora, por favor, por favor, voltem. Tenho uma surpresa esperando por vocês no Castelo.
Gato e Janet nada podiam fazer exceto entrar no banco traseiro do carro e voltar para o Castelo. Estavam muito infelizes. A infelicidade de Gato tornou-se anda maior porque ele começou a ficar enjoado desde o momento em que Millie partiu em marcha a ré aos solavancos para chegar a um trecho da estrada onde pudesse manobrar. O cheiro de amoras vindo do chapéu úmido de Janet fazia com que ele se sentisse ainda pior.
Millie, Roger e Júlia, sentindo um grande alívio por terem encontrado os dois, tagarelaram animadamente durante todo o percurso. Das profundezas do seu enjôo, Gato ficou com a impressão de que, embora nenhum deles confessasse, o que os deixava particularmente aliviados era o fato de terem encontrado Janet e Gato antes que Crestomanci ficasse sabendo que eles tinham fugido. Aquilo em nada melhorava o estado de espírito de Gato, nem de Janet.
Em cinco minutos o carro já havia subido a alameda e estacionado em frente à porta principal do Castelo. O mordomo abriu-a para eles, e Gato pensou com tristeza: exatamente como Gwendolen teria desejado. Além disso, o mordomo pegou cerimoniosamente o chapéu respingante de Janet.
- Vou providenciar para que sejam entregues à cozinheira - disse.
Millie assegurou a Janet que daria para disfarçar a sujeira no vestido dela, e levou-os às pressas para o que era chamado de Saleta de Estar.
- O que significa, naturalmente, que tem apenas 20 metros de lado - disse. - Entrem. O chá estará esperando por vocês.
Eles entraram. No meio do aposento amplo e quadrado, uma mulher baixa e franzina, usando roupas pretas enfeitadas com contas, estava sentada nervosamente na beirada de uma cadeira dourada. Quando a porta se abriu, ela ficou de pé num salto e virou-se.
Gato esqueceu-se do enjôo.
- Sra. Sharp! - gritou, e correu para abraçá-la.
A Sra. Sharp não cabia em si de contentamento, apesar do nervosismo.
- Então é o meu Gato! - Vamos, dê um passo para trás, quero olhar para você, e você também, Gwendolen, meu amor. Ora, estão usando belas roupas para irem brincar! Está mais gordo, Gato. E, Gwendolen, você emagreceu. Compreendo isso, querida, pode acreditar! E olhem só o chá que trouxeram para nós três!
Era um chá maravilhoso, ainda melhor do que o chá no gramado. A Sra. Sharp, gulosa como sempre, pôs-se a comer tudo quanto podia, e relatar muitos mexericos.
- E, sim, viemos no trem ontem, o Sr. Nostrum e eu. Depois que recebi o seu cartão, Gato, não consegui sossegar até vir dar uma olhada em vocês dois, e como os meus contatos e outras coisas andam me pagando bem, achei que merecia isso. E aqui, quando apareci na porta, eles me trataram como uma rainha. Não posso dizer nada de mal deles. Mas só queria gostar deste Castelo. Diga-me, Gwendolen, minha querida, este lugar afeta você como afeta a mim?
- Como é que ele afeta a senhora? - Janet perguntou cautelosamente.
- Estou uma pilha de nervos - disse a Sra. Sharp. - Sinto-me fraca e assustada como um gatinho, e isso me lembra, Gato... mas depois eu conto. Aqui é quieto demais. Antes de vocês aparecerem, e olhem que vocês demoraram muito, meus queridos, fiquei tentando entender o que era, e finalmente entendi. E um feitiço, é isso, e um feitiço terrivelmente forte, contra nós, bruxas. Eu disse a mim mesma: este Castelo não gosta de bruxas, é isto que é! E senti pena de você, Gwendolen. Dê um jeito para ele mandar você para uma escola em outro lugar. Você vai ficar mais feliz.
Ela continuou tagarelando. Estava deliciada por ver os dois, e lançava a Gato incessantes olhares de orgulho e afeição. Gato achava que ela se convencera de tê-lo criado desde o berço. Afinal, ela o conhecia desde que ele nascera.
- Conte alguma coisa da Rua Sabá - pediu, ansioso.
- Eu ia chegar lá. Lembram-se da Srta. Larkins? Uma ruiva de mau humor que lia a sorte? Nunca achei que fosse grande coisa. Mas alguém achou. Um cliente agradecido montou um Salão para ela numa rua elegante do centro. A Rua Sabá não era suficientemente boa para ela. Que sorte algumas pessoas têm! Mas eu também tive um golpe de sorte. Eu lhe contei na carta, não contei, Gato? Que ganhei cinco libras por aquele gato velho que era o violino do Gato que você transformou, Gwendolen. Bom, foi um homenzinho muito engraçado que comprou. Enquanto estávamos esperando para pegar o gato, pois vocês se lembram que ele nunca vinha quando a gente chamava, ele ficou me falando de ações e dividendos e capital, investimento, coisas assim. Coisas que eu nunca consegui entender. Ele me disse o que eu devia fazer com aquelas cinco libras que ele estava me dando, e fez minha cabeça rodar com tantas palavras. Bom, não achei grande coisa, mas resolvi fazer uma tentativa. Fiz o que ele disse, pelo menos o que eu entendi. E sabem que aquelas cinco libras me trouxeram cem! Cem libras, ele me conseguiu!
- Devia ser um mago das finanças - disse Janet.
Ela fez esse comentário como uma piada para melhorar seu próprio estado de espírito. Precisava disso, por vários motivos. Mas a Sra. Sharp levou o comentário ao pé da letra.
- Era mesmo, querida! Você continua inteligente... Sei que ele era porque contei ao Sr. Nostrum, e o Sr. Nostrum fez exatamente o que eu fiz com cinco libras dele mesmo, ou talvez com mais, e perdeu até o último centavo. E outra coisa...
Enquanto a Sra. Sharp tagarelava, Gato a observava. Ele se sentia triste e confuso. Ainda gostava da Sra. Sharp como antes, mas sabia que de nada teria adiantado fugir para a casa dela. Era uma pessoa fraca, desonesta. Não os teria ajudado; teria mandado os dois de volta para o Castelo e tentado tirar dinheiro de Crestomanci por isso. E os contatos em Londres, de que ela estava a gabar-se naquele momento, eram apenas gabolices. Gato perguntava-se quanto ele teria mudado interiormente - e por que tinha mudado - para chegar a saber de tudo isso. Mas sabia, com toda a certeza como se a própria Sra. Sharp tivesse se virado em sua cadeira dourada e reconhecido todas essas coisas. E isso o perturbava.
Quando a Sra. Sharp liquidou a comida, pareceu ficar bastante aflita. Talvez o Castelo estivesse mesmo lhe dando nos nervos. Finalmente ela levantou-se e foi, num passinho nervoso, até uma janela distante, levando consigo distraidamente a xícara de chá.
- Venham me explicar esta vista - chamou. - E tão grandiosa que eu não consigo entender.
Gato e Janet delicadamente foram até ela. Nesse momento a Sra. Sharp mostrou-se atônita ao descobrir que levava na mão uma xícara vazia.
- Ah, olhem para isto! - exclamou, tremendo de nervosismo. - Se eu não prestar atenção, vou acabar levando isto comigo.
- É melhor não fazer isso - disse Gato. - Certamente está encantada. Tudo que a gente leva para fora grita que pertence ao Castelo.
- É mesmo? - disse a Sra. Sharp, muito inquieta. Ela entregou a Janet a xícara e em seguida, com ar culpado, duas colheres de prata e as pinças de açúcar, que tirou da bolsa.
- Pronto, querida. Importa-se de colocar estas coisas de volta na mesa?
Janet afastou-se até o outro extremo da sala e, assim que ela ficou fora do alcance da sua voz, a Sra. Sharp inclinou-se e cochichou:
- Conversou com o Sr. Nostrum, Gato?
Gato assentiu.
De imediato a Sra. Sharp ficou muito mais genuinamente nervosa.
- Não faça o que ele quer, queridinho - sussurrou. - De jeito nenhum. Está me escutando? É uma coisa horrível, maldosa, e você não pode fazer!
Então, como Janet estava voltando devagar - porque percebia que a Sra. Sharp tinha algo para dizer a Gato em particular - a Sra. Sharp exclamou, em tom forçado:
- Ah, esses grandes carvalhos imemoriais! Devem ser mais velhos do que eu!
- São cedros - foi tudo o que ocorreu a Gato dizer.
- Bem, foi um ótimo chá, meus amores, e adorei ver vocês -declarou a Sra. Sharp. - E fico feliz por terem me avisado sobre as colheres. Sempre achei que enfeitiçar os nossos pertences é um truque maldoso. Agora tenho que ir andando. O Sr. Nostrum está me esperando.
E ela se foi, atravessando o saguão do Castelo e descendo a alameda com tal rapidez que era óbvio que estava feliz em ir embora.
- Dá para perceber que o Castelo realmente a perturba - Janet comentou, observando a figura negra da Sra. Sharp caminhando depressa. - Existe mesmo esse silêncio. Sei o que ela quer dizer. Mas acho que é alegre, ou seria, se o resto todo não fosse tão infeliz. Gato, não iria adiantar fugir para a casa dela, infelizmente.
- Sei disso - Gato concordou.
- Imaginei que soubesse - disse Janet.
Ela tinha vontade de dizer mais coisas, mas foram interrompidos por Roger e Júlia. Júlia estava tão arrependida e tentando tanto ser amigável que nem Janet, nem Gato tiveram coragem de se afastar deles. Em vez disso, ficaram brincando com espelhos de mão. Roger foi buscar o espelho preso à estante de Gato e pegou o seu e o de Júlia, e o de Gwendolen também. Júlia deu um nó pequeno e firme em seu lenço e mandou os quatro para o alto, na sala de brinquedos. Até a hora do jantar eles se divertiram muito voando pela sala, além de descerem e subirem o corredor pelos ares.
Nessa noite o jantar foi na sala de brinquedos, pois mais uma vez haveria convidados para jantar no andar térreo. Roger e Júlia sabiam disso, mas ninguém mencionara esse fato a Gato e Janet, temendo que a suposta Gwendolen pudesse tentar estragar a festa outra vez.
- Eles sempre recebem muitos convidados, no mês antes do Dia das Bruxas - Júlia contou, enquanto acabavam com a torta de amoras silvestres que a cozinheira fizera especialmente com as frutinhas do chapéu de Janet. - Vamos brincar de soldadinhos agora, ou de espelhos outra vez?
Janet fazia tantos sinais de que tinha algo urgente a dizer, que Gato foi obrigado a recusar.
- Sinto muitíssimo. Precisamos conversar sobre umas coisas que a Sra. Sharp nos disse. E não diga que Gwendolen é minha dona. Não é nada disso.
- Nós perdoamos você - disse Roger. - Com sorte, podemos perdoar Gwendolen também.
- Voltaremos depois que conversarmos - disse Janet. Foram apressados para o quarto dela, e Janet trancou a porta, para o caso de Eufêmia tentar entrar.
- A Sra. Sharp disse que eu não devia de maneira alguma fazer o que o Sr. Nostrum pediu - Gato contou. - Acho que ela veio especialmente para me dizer isso.
- E, ela gosta de você - disse Janet. - Ai, ai... Droga! Com as mãos juntas atrás das costas, ela pôs-se a marchar de um lado para outro, de cabeça baixa. Parecia tanto com o Sr. Saunders dando aula que Gato começou a rir.
- Droga! - ela repetiu. - Droga, droga, droga droga droga droga droga! - Marchou mais um pouco pelo quarto. - A Sra. Sharp é uma pessoa altamente desonesta, quase tão ruim quanto o Sr. Nostrum, e provavelmente pior do que o Sr. Bisca, de modo que, se ela acha que você não devia obedecer, deve ser alguma coisa muito ruim mesmo. De que você está rindo?
- Você nunca acerta o nome do Sr. Baslam - Gato respondeu
- Ele não merece que eu acerte - disse Janet, pondo-se a marchar novamente. -Ah, a Sra. Sharp que se estrepe! Depois que vi que ela não serve para nos ajudar, fiquei tão desesperada que de repente encontrei a saída ideal... e ela atrapalhou tudo. Sabe, se aquele jardim é uma maneira de ir para outros mundos, você e eu podíamos voltar para o meu mundo, e você poderia morar comigo lá. Não acha que é uma boa idéia? Você ficaria a salvo de Crestomanci e do Sr. Balaio, e tenho certeza de que, lá, Will Suggins não poderia transformar você em sapo, poderia?
- Não - Gato concordou, hesitante. - Mas não acredito que o Sr. Nostrum estivesse dizendo a verdade total. Muita coisa pode ter sido mentira.
- E eu não sei? Especialmente depois da Sra. Sharp. Mamãe e papai também seriam outra dificuldade, embora eu tenha certeza de que iriam gostar de você depois que compreendessem. A essa altura, devem estar horrivelmente confusos com a minha Prezada Sobressalente. E eu já tive um irmão, que morreu ao nascer, de modo que talvez eles pensassem que você era o Prezado Sobressalente dele.
- Que coisa engraçada, eu quase morri ao nascer também! - Gato contou.
- Então você deve ser ele - disse Janet, dando meia-volta no final da sua marcha. - Eles vão adorar... eu espero. E o melhor de tudo é que Gwendolen seria arrastada de volta para cá e seria obrigada a enfrentar a situação. E bem feito para ela. Tudo isso é culpa dela.
- Não é não - Gato contestou.
- E sim! - Janet insistiu. - Ela fez mágicas quando estava proibida disso, e deu ao Sr. Babão brincos sem valor em troca de uma coisa que ela não poderia ter comprado, e me arrastou para cá, e virou Eufêmia em sapo, e botou você numa encrenca ainda maior do que a minha. Quer parar de ser leal por um momento e prestar atenção?
- Ficar zangada não adianta nada - Gato declarou, e deu um suspiro. Sentia saudade de Gwendolen, ainda mais do que sentira da Sra. Sharp.
Janet suspirou também, mas de impaciência. Sentou-se com violência diante da penteadeira e ficou olhando para o próprio rosto zangado. Levantou o nariz e envesgou os olhos. Costumava fazer isso em cada instante de folga; aliviava um pouco seus sentimentos com relação a Gwendolen.
Gato pensou um pouco.
- Acho que é uma boa idéia - disse tristemente. - É melhor irmos para o jardim. Mas acho que é preciso algum tipo de magia para podermos passar para outro mundo.
- Portanto, estamos ferrados - disse Janet. - É perigoso, e não iríamos conseguir mesmo. Mas eles tiraram os poderes de Gwendolen e ela conseguiu ir mesmo assim. Como? Isso é que anda me desnorteado...
- Imagino que ela tenha usado sangue de dragão - Gato sugeriu. - Ela ainda tinha um pouco. O Sr. Saunders tem um jarro cheio, no laboratório dele.
- Por que não contou isso antes? - Janet berrou, dando saltos em cima do banquinho.
Realmente se parecia com Gwendolen. Vendo a expressão dela, Gato sentiu mais saudades do que nunca de Gwendolen. Ficou com raiva de Janet: ela passara o dia lhe dando ordens e depois ainda tentou insinuar que era tudo culpa de Gwendolen. Ele deu de ombros, teimoso, e continuou a mostrar má vontade.
- Porque você não me perguntou.
- Mas você consegue arranjar um pouco?
- Talvez - disse Gato. - Mas na verdade não quero ir para outro mundo - acrescentou.
Janet respirou lenta e profundamente, e conseguiu não dizer a ele para ficar e virar sapo. Ela fez uma careta muito engraçada e contou até dez.
- Gato, estamos realmente numa encrenca tão grande que não consigo enxergar outra saída. Você consegue? - ela disse cuidadosamente.
- Não - Gato admitiu a contragosto. - Eu disse que iria.
- E muito obrigado pelo gentil convite, querida Janet - disse ela. Para seu alívio, Gato sorriu. - Mas vamos ter que fazer isso com o máximo cuidado, pois desconfio que, mesmo que Crestomanci não saiba o que estamos fazendo, Millie saberá -prosseguiu.
- Millie?
- Millie. Acho que ela é bruxa - disse Janet, baixando a cabeça e pegando a escova de costas douradas. - Sei que você pensa que eu ando por aí vendo bruxaria em toda parte por causa da minha cabeça maliciosa e cheia de suspeitas, como você sobre Crestomanci, mas realmente tenho certeza, Gato. Uma bruxa boazinha e doce, se você preferir, mas é bruxa. Senão, como ela saberia que estávamos fugindo, esta tarde?
- Porque a Sra. Sharp apareceu, e nos procuraram - disse Gato, confuso.
- Mas tínhamos ficado fora durante uma hora, mais ou menos, e podíamos muito bem estar apenas colhendo amoras. Nem nossas roupas de dormir tínhamos levado - Janet explicou. - Está entendendo agora?
Embora Gato tivesse realmente certeza de que Janet estava com mania de bruxaria, e ainda se sentisse deprimido e impaciente, não podia deixar de concordar que ela tinha razão.
- Uma bruxa muito boa, então - admitiu. - Não me importo.
- Mas Gato, você entende que ela vai dificultar as coisas, não entende? Sabe, seu apelido devia ser Mula, e não Gato - Janet prosseguiu. - Quando você não quer saber alguma coisa, não adianta. Aliás, por que é que seu apelido é Gato?
- Era uma gracinha que Gwendolen fazia. Ela sempre dizia que eu tenho nove vidas - ele explicou.
- Gwendolen fazendo gracinhas? - Janet perguntou, incrédula. Calou-se, com expressão sobressaltada, e com um movimento rígido virou-se de costas para o espelho.
- Muito raramente - Gato respondeu.
- Céus! Que idéia me veio agora! - disse Janet. - Neste lugar, onde quase tudo é enfeitiçado, ele certamente é também! Se for mesmo, que coisa horrível! - Girou o espelho da penteadeira até que ele ficasse virado para o teto, saltou do banquinho e correu para o armário. Arrastou para fora a caixa de Gwendolen e remexeu ferozmente dentro dela.
- Ah, como estou torcendo para estar enganada! Mas tenho quase certeza de que eram nove!
- Nove o quê? - Gato quis saber.
Janet encontrou o maço de cartas endereçadas à Srta. Caroline Chant. A carteira de fósforos vermelha estava enfiada na fita que as prendia. Janet pegou-a cuidadosamente e devolveu as cartas para a caixa.
- Nove fósforos - disse, abrindo a carteira. - E são mesmo! Ah, meu Senhor! Gato, cinco deles estão queimados, veja!
Ela estendeu a carteira de fósforos para o menino, que constatou: realmente havia nove fósforos. Os dois primeiros tinham a cabeça queimada; o terceiro estava crestado até a base. A cabeça do quarto fósforo também estava queimada. E o quinto se incendiara com tanta força que o papel por trás dele estava enegrecido e havia um buraco na lixa abaixo dele. Era incrível que os fósforos todos não tivessem pegado fogo - ou pelo menos os quatro últimos. No entanto, estes encontravam-se como novos. Tinham a cabeça vermelha, abaixo dela um trecho de haste de papel oleoso amarelado e abaixo disso, papelão branco brilhante.
- Parece mesmo algum tipo de feitiço - Gato admitiu.
- Sei que é. Estas são as suas nove vidas, Gato. Como foi que perdeu tantas assim?
Gato simplesmente não conseguia acreditar. De qualquer maneira, sentia-se irritado e relutante, e aquilo era demais. - Não pode ser - afirmou.
Ainda que ele tivesse mesmo nove vidas, sabia que só poderia ter perdido três, contando com a ocasião em que Gwendolen lhe dera cólicas. As outras duas teriam sido quando ele nasceu e quando a barca afundou. Mas, enquanto pensava sobre isso, Gato percebeu que estava recordando aquelas quatro almas penadas que saíram da tigela para juntar-se à horrenda procissão de Gwendolen. Uma tinha sido um bebê, a outra estava molhada. A figura aleijada parecia estar com cólicas. Mas por que elas eram quatro, se havia cinco fósforos queimados?
Gato começou a tremer, e isso deixou-o ainda mais decidido a provar que Janet estava enganada.
- Você não pode ter morrido durante a noite uma ou duas vezes sem perceber? - ela perguntou.
- Claro que não. - Gato estendeu a mão e pegou a carteira de fósforos. - Olha, vou lhe provar.
Arrancou o sexto fósforo e raspou-o na lixa.
Janet deu um salto, gritando para que ele parasse. O fósforo pegou fogo.
E a mesma coisa, quase que instantaneamente, aconteceu com o próprio Gato.
Gato soltou um grito. As labaredas cresceram por todo o seu corpo. Ele tornou a gritar, e começou a estapear-se com as mãos em chamas, ainda aos berros. Eram labaredas pálidas, cintilantes, transparentes. Brotavam através das roupas, dos sapatos, dos cabelos, no rosto, de modo que em poucos segundos ele estava envolto da cabeça aos pés numa chama pálida. Gato caiu no chão, gritando, e pôs-se a rolar, envolto em chamas.
Janet manteve a calma. Ergueu a ponta do tapete mais próxima e jogou-o em cima de Gato, pois ouvira dizer que isso abafava as chamas. Mas não abafou aquelas, pois, para seu horror, as labaredas pálidas e fantasmagóricas atravessavam o tapete como se ele não estivesse ali, e passeavam pelo forro escuro, mais ferozes do que nunca. Não queimaram o tapete, nem as mãos de Janet enquanto ela, frenética, rolava Gato dentro do tapete.
Porém, por mais camadas de tapete que houvesse em volta de Gato, as chamas mesmo assim as atravessavam, e Gato continuava a arder e a gritar. Metade de sua cabeça estava para fora do rolo em chamas que Janet fizera dele. Ela via dentro do fogo o rosto dele, contorcido pelos gritos.
Janet fez a única coisa em que conseguiu pensar: ficou de pé num salto e começou a gritar ela própria:
- Crestomanci! Crestomanci! Venha depressa!
A porta abriu-se de supetão enquanto ela ainda gritava. Janet esquecera-se de que a tinha trancado, mas pelo visto a tranca não atrapalhou Crestomanci; quando ele escancarou a porta, ela viu a lingüeta sobressaindo da madeira. Esquecera-se também de que havia convidados para jantar. Lembrou-se de quando viu os babados de Crestomanci, e o terno de veludo preto, todo furta-cor: azul, carmim, amarelo, verde. Mas também isso não parecia atrapalhar Crestomanci. Ele deu uma olhada na trouxa em chamas no chão e exclamou:
- Meu Deus!
Então caiu sobre os joelhos elegantes e pôs-se a desenrolar o tapete com a mesma rapidez frenética com que Janet o enrolara.
- Lamento muitíssimo. Pensei que fosse ajudar - ela gaguejou.
- Deveria ter funcionado, sim - respondeu Crestomanci, rolando Gato no chão, com as chamas subindo por seus braços de veludo. - Como foi que ele fez isto?
- Ele acendeu um dos fósforos. Eu tinha avisado...
- Seu menino burro! - exclamou Crestomanci, tão furioso que Janet rompeu a chorar.
Ele puxou o resto do tapete e Gato surgiu rolando, em chamas como um feixe de palha. Na realidade, não estava mais gritando; estava fazendo um som longo e fino, que obrigou Janet a tapar os ouvidos. Crestomanci mergulhou no meio das chamas e encontrou a carteira de fósforos. Estava dentro da mão direita de Gato, firmemente fechada.
- Graças a Deus não estava na esquerda! Vá abrir o chuveiro.
Depressa! - ele ordenou.
- Claro. Claro - Janet soluçou, e saiu correndo para obedecer.
Ela lutou com as torneiras, mas finalmente conseguiu um forte jato de água fria sibilando para dentro da banheira azul embutida no chão, quando Crestomanci irrompeu, carregando Gato numa bola de violento fogaréu. Colocou o menino dentro da banheira e segurou-o ali, virando-o para um lado e outro a fim de molhá-lo por inteiro.
Gato fumegava e chiava. A água que caía brilhava como a chuva ao sol, dourada como o próprio sol. Descia como um jorro de luz. A banheira foi enchendo, e Gato rolava e se debatia numa poça de sol, fervendo dentro dela, formando bolhas douradas. O banheiro estava cheio de vapor. Espirais de fumaça, de cheiro espesso e doce, erguiam-se da banheira. Era o mesmo cheiro que Janet recordava da primeira manhã em que se encontrara ali. Pelo que ela conseguia enxergar através da fumaça, Gato parecia estar ficando negro na poça dourada. Mas a água era molhada, naturalmente, e Crestomanci estava ficando ensopado.
- Não compreende? - ele perguntou, dirigindo-se a Janet por cima do ombro enquanto segurava Gato, mantendo a cabeça do menino sob o jorro. - Você não devia contar a ele esse tipo de coisa até que o Castelo tenha tido tempo de exercer sua influência. Ele não estava preparado para entender. Você lhe deu um choque apavorante.
- Juro que estou profundamente arrependida - disse Janet, chorando muito.
- Vamos ter que remediar a situação da melhor maneira possível - Crestomanci continuou. - Vou tentar explicar a ele. Corra para o tubo de comunicação no final do corredor e peça para mandarem conhaque e um bule de chá forte.
Enquanto Janet afastava-se correndo, Gato sentia-se encharcado, a água despencando em cima dele. Tentou desviar-se rolando, mas alguém o segurou sob o jorro. Uma voz dizia insistentemente em seu ouvido:
- Gato, Gato, escute-me. Está entendendo? Gato, você agora só tem mais três vidas.
Gato conhecia aquela voz.
- O senhor me disse que eu tinha cinco, quando falou comigo através da Srta. Larkins - ele balbuciou.
- Sim, mas agora só tem três. Vai ter que tomar muito cuidado - Crestomanci avisou.
Gato abriu os olhos e olhou para ele. Crestomanci estava todo molhado. Os cabelos negros, normalmente lisos, pendiam-lhe sobre a testa em caracóis, com goteiras nas pontas.
- Ah, era o senhor? - perguntou.
- Era sim. Você demorou a me reconhecer, não é? Mas, por outro lado, eu também não o reconheci logo, quando o vi pela primeira vez. Acho que agora você pode sair da água.
Gato estava fraco demais para sair da banheira sozinho. Mas em pouquíssimo tempo Crestomanci pegou-o no colo, carregou-o para o quarto, despiu-lhe as roupas molhadas, enxugou-o e embrulhou-o era outra toalha. As pernas de Gato dobravam-se quando ele se apoiava nelas.
- Vamos lá - disse Crestomanci, e carregou-o para a cama de veludo azul, onde o deitou e o cobriu. - Está se sentindo melhor, Gato?
Gato, sentindo-se fraco, porém confortável, assentiu.
- Obrigado. O senhor nunca tinha me chamado de Gato.
- Talvez devesse ter chamado. Você poderia ter compreendido. - Crestomanci sentou-se ao lado da cama, com expressão muito séria. - Agora compreende?
- Os fósforos na carteira são as minhas nove vidas. E acabo de queimar uma - disse Gato. - Sei que foi burrice, mas eu não acreditava. Como posso ter nove vidas?
- Você tem três - Crestomanci corrigiu. - Enfie isso na cabeça. Mas realmente tinha nove. De uma maneira qualquer, por uma pessoa qualquer, elas foram colocadas nesta carteira de fósforos, que vou agora mesmo colocar dentro do meu cofre secreto, lacrado pelo mais forte dos encantos que conheço. Mas isso só vai impedir que outras pessoas as usem; não vai impedir que você próprio as perca.
Janet entrou correndo, ainda chorosa, mas muito grata por poder ajudar.
- Está vindo - disse.
- Obrigado - Crestomanci respondeu, lançando-lhe um olhar demorado e pensativo. Janet tinha certeza de que ele estava prestes a acusá-la de não ser Gwendolen, mas o que ele disse foi:
- Você pode ouvir isto também, para prevenir outros acidentes.
- Posso primeiro buscar uma toalha para o senhor? - Janet perguntou em tom humilde. - Está todo molhado.
- Estou secando, obrigado - ele respondeu, sorrindo para ela. - Agora escutem. As pessoas com nove vidas são muito importantes e muito raras. Só acontecem quando, por um motivo qualquer, não existem duplicatas delas vivendo em qualquer outro mundo. Então as vidas que seriam espalhadas por todo um conjunto de mundos ficam concentradas em uma só pessoa. E também todos os dons que aquelas outras oito pessoas poderiam ter possuído.
Gato objetou:
- Mas eu não tenho dom!
Ao mesmo tempo, Janet perguntou:
- Até que ponto essas pessoas são raras?
- Extremamente raras - Crestomanci respondeu. - Além de Gato, a única outra pessoa com nove vidas que conheço neste mundo sou eu mesmo.
- Verdade? Nove vidas? - Gato perguntou, feliz e interessado.
- Eu tinha mesmo nove. Agora só tenho duas. Fui ainda mais descuidado do que Gato - Crestomanci confessou, parecendo um pouquinho encabulado. - Agora tenho que tomar cuidado e guardar cada vida separadamente, no lugar mais seguro que possa imaginar. Aconselho Gato a fazer a mesma coisa.
O cérebro de Janet prontamente começou a trabalhar nisso.
- Neste momento uma vida está aqui e a outra está lá embaixo jantando?
Crestomanci riu.
- Não funciona desse jeito. Eu...
Para grande decepção de Janet, Eufêmia entrou apressadamente com uma bandeja e impediu que Crestomanci explicasse como funcionava. O Sr. Saunders entrou nos calcanhares de Eufêmia, ainda incapaz de encontrar roupas de gala que cobrissem seus pulsos e tornozelos.
- Ele está bem? - Eufêmia perguntou ansiosamente. - Meu namorado andou fazendo ameaças, mas se a culpa foi dele, o namoro está terminado. E o que foi que aconteceu com o tapete?
Também o Sr. Saunders estava contemplando o tapete amarfanhado e amontoado.
- Qual foi a causa? - quis saber. - Certamente este tapete tem encantos suficientes para impedir qualquer tipo de acidente.
- Eu sei. Mas esse foi espantosamente forte. Os dois trocaram um olhar cheio de significado. Então todos puseram-se a paparicar Gato. O menino adorou.
O Sr. Saunders colocou-o recostado nos travesseiros, e Eufêmia vestiu-lhe uma camisa de dormir e depois fez-lhe cafuné, como se ele nunca tivesse confessado que a transformara em sapo.
- Não foi Will. Fui eu - Gato lhe disse. Crestomanci deu-lhe um forte gole de conhaque e então fez com que bebesse uma xícara de chá açucarado. Janet também bebeu uma xícara de chá e sentiu-se muito melhor. O Sr. Saunders ajudou Eufêmia a endireitar o tapete e depois perguntou se devia endireitar os encantos que havia nele.
- Sangue de dragão talvez resolva - sugeriu.
- Francamente, acho que nada vai funcionar. Deixe assim mesmo - disse Crestomanci. Levantou-se e consertou a posição do espelho. - Você se importa de dormir no quarto de Gato esta noite? - perguntou a Janet. - Quero ficar de olho nele.
Janet olhou do espelho para Crestomanci, e seu rosto ficou ruborizado.
- Hã... Eu andei fazendo caretas...
Crestomanci achou graça. O Sr. Saunders riu tanto que precisou sentar-se no banquinho de veludo azul.
- Certamente foi bem feito para mim. Algumas das caretas eram altamente originais - disse Crestomanci.
Janet riu também, um pouco tolamente.
Gato, deitado, sentia-se confortável e quase feliz. Por algum tempo todos ficaram ali, acomodando-o; depois ficou apenas Janet, tagarelando como sempre.
- Estou tão feliz por você estar bem! - disse ela. - Por que eu tinha que abrir a boca sobre aqueles fósforos? Quase tive um treco quando você se incendiou de repente, e, quando vi que o tapete não apagava o fogo, a única coisa em que consegui pensar foi gritar por Crestomanci. Eu tinha razão: ele chegou antes que eu terminasse de chamar o nome dele, mesmo a porta estando trancada. Ainda estava trancada quando ele abriu, mas a tranca não está quebrada, porque eu experimentei. De modo que ele é mesmo mago. E estragou o terno por sua causa, Gato, mas parece que não ligou, de modo que acho que, quando ele não está, sei lá, congelando neblina em cima das montanhas da Escócia, até que é bonzinho. Não estou dizendo isso para o espelho ouvir. Estou sendo sincera. Imagino que este espelho seja o equivalente mágico do...
Gato pensou ter a intenção de dizer alguma coisa sobre congelar neblina era cima das montanhas da Escócia, mas adormeceu enquanto Janet falava, sentindo-se confortável e paparicado.
Acordou no domingo de manhã no estado exatamente oposto: friorento e trêmulo. Naquela tarde ele seria transformado em sapo ou enfrentaria um tigre - e um tigre bem grande e forte Will Suggins daria! Depois do tigre - se é que haveria um depois -vinha o horror das aulas de magia na segunda-feira, e ele sem magia. Júlia e Roger poderiam ajudar nisso, só que de nada adiantaria quando o Sr. Baslam chegasse, na quarta-feira, e exigisse as 20 libras que Gato sabia que não conseguiria arranjar. O Sr. Nostrum não serviria de ajuda. A Sra. Sharp, muito menos. A única esperança parecia ser levar Janet e um pouco de sangue de dragão para o jardim proibido e tentar fugir.
Gato saiu da cama para ir pegar um pouco de sangue de dragão no laboratório do Sr. Saunders. Eufêmia entrou trazendo numa bandeja o café da manhã de Gato, e ele teve que voltar para a cama. Eufêmia mostrou-se tão bondosa quanto na véspera. Gato sentiu-se muito mal. E, depois que ele terminou de comer, Millie apareceu. Ela ergueu Gato dos travesseiros e o abraçou.
- Meu querido menino bobinho! Graças aos céus você está bem. Eu estava doida para vir visitá-lo ontem à noite, mas alguém tinha que ficar com os nossos convidados, coitados. Agora você vai passar o dia inteiro na cama, e qualquer coisa de que precisar, é só pedir. De que é que gostaria?
- Você não poderia me dar um pouco de sangue de dragão, poderia? - Gato perguntou, esperançoso.
Millie riu.
- Ora, ora, Eric! Você sofre um acidente pavoroso e depois pede a coisa mais perigosa do mundo! Claro que não posso lhe dar sangue de dragão. E uma das poucas coisas no Castelo que são realmente proibidas.
- Como o jardim de Crestomanci? - Gato perguntou.
- Não exatamente - Millie respondeu. - O jardim é velho como as montanhas, e recheado de magia de todo tipo. Ele é perigoso de outra maneira: tudo lá é mais forte. Você será levado ao jardim quando conhecer o suficiente de magia para conseguir entender. Mas o sangue de dragão é tão 7nocivo que nunca me sinto bem quando Michael o usa. Você não pode, de modo algum, tocar nisso.
Em seguida vieram Júlia e Roger, vestidos para irem à igreja, com os braços cheios de livros e brinquedos, e com muitas perguntas interessadas. Foram tão simpáticos que, quando Janet chegou, Gato estava bastante infeliz. Ele não queria deixar o Castelo. Sentia que estava realmente se integrando ali.
- Aquela bola de massa ainda está pregada no seu tapete -Janet anunciou em tom sombrio, fazendo Gato sentir-se menos integrado. - Acabei de estar com Crestomanci, e é difícil ser castigada pelos erros dos outros, mesmo tendo sido recompensada com a visão de um roupão azul-celeste com leões dourados.
- Esse eu ainda não vi - Gato comentou.
- Acho que ele tem um para cada dia da semana. Tudo o que lhe faltava era uma espada flamejante. Ele me proibiu de ir à igreja. O vigário não me quer lá, por causa do que Gwendolen fez no domingo passado. E eu fiquei com tanta raiva de ter que assumir a culpa que cheguei a abrir a boca para dizer que não sou Gwendolen, mas me lembrei de que se eu fosse à igreja teria que usar aquela droga de chapéu branco cheio de buracos... Acha que ele consegue ouvir através deste espelho?
- Não, só enxergar - Gato respondeu. - Senão ele saberia tudo sobre você. Ainda bem que você não vai sair. Podemos ir pegar o sangue de dragão enquanto estão na igreja.
Janet ficou de vigia na janela para ver quando a Família saísse. Depois de mais ou menos meia hora ela anunciou:
- Lá vão eles, finalmente, descendo a alameda, todos juntos. Os homens estão de cartola, e Crestomanci parece que saiu da vitrine de uma loja. Quem é toda essa gente, Gato? Quem é a senhora idosa de luvas vermelhas, e o novinho de verde, e o homenzinho que não pára de falar?
- Não tenho a menor idéia - Gato respondeu.
Ele saltou da cama e correu até seu quarto para arranjar algumas roupas. Sentia-se perfeitamente bem - aliás, maravilhosamente bem. Enquanto vestia a camisa, dançava pelo quarto. E cantava enquanto vestia a calça.
Nem mesmo a bola de massa no tapete conseguiu estragar o bom humor de Gato, que assobiava enquanto amarrava os cadarços das botas.
Janet entrou no quarto exatamente quando Gato saía em disparada, enfiando o casaco e sorrindo, sentindo-se muito bem.
- Não sei não... - disse Janet, enquanto Gato passava por ela e descia os degraus pisando com força. - Morrer deve lhe fazer bem, ou coisa assim.
- Depressa! - Gato chamou, do andar inferior. - O laboratório fica do outro lado do Castelo. Millie diz que sangue de dragão é perigoso, então não toque nele. Eu posso gastar uma vida com isso, e você não pode.
Janet teve vontade de comentar que Gato tinha gasto a última com demasiada facilidade, mas não conseguiu chegar suficientemente perto dele. Gato disparou pelos corredores verdes e subiu velozmente a escada em caracol para o quarto do Sr. Saunders, e Janet só conseguiu alcançá-lo quando ele já estava dentro do aposento. Lá chegando, ela deparou com inúmeras outras coisas que lhe atraíam a atenção.
O aposento estava permeado pelo cheiro de magia velha. Embora o laboratório não estivesse muito diferente de quando Gato o vira antes, o Sr. Saunders o arrumara um pouco, para o domingo. A lamparina estava apagada. As retortas, os alambiques e os frascos estavam limpos. Os livros e pergaminhos tinham sido empilhados na segunda bancada. A estrela de cinco pontas ainda estava lá, brasonada no piso, mas havia um segundo conjunto de signos feitos a giz na terceira bancada, e o animal mumificado estava colocado numa das extremidades dela.
Janet ficou imensamente interessada.
- É como um laboratório, só que não é! - comentou. - Que coisas esquisitas! Ah, estou vendo o sangue de dragão. Será que ele precisa de todo este frasco enorme? Não vai sentir falta de um pouquinho, tendo tanto!
Ouviu-se um farfalhar na ponta da terceira bancada, e Janet voltou-se depressa para aquela direção. A criatura mumificada estava a debater-se e estender as asas diáfanas.
- Ele fez isso antes. Acho que é assim mesmo - Gato tranqüilizou-a.
Mas também ele ficou inquieto quando a criatura espreguiçou-se e colocou-se de pé sobre as patas caninas, bocejando. O bocejo mostrou-lhes dúzias de dentes pequenos e afiados, e deixou sair uma nuvem de fumaça azul. A criatura veio correndo ao longo da bancada na direção deles. As asinhas em suas costas sacudiam-se com o movimento, e duas pequenas lufadas de fumaça que saíam de suas narinas formavam uma esteira atrás dele. O animal estacou na beirada da bancada e ergueu para eles interrogativamente os olhos, que pareciam poças de faíscas douradas derretidas. As crianças recuaram, assustadas.
- Está vivo! Acho que é um dragãozinho - disse Janet.
- Claro que sou - disse o dragão.
Diante disso, ambos deram um salto violento. Ficaram ainda mais assustados por causa das diminutas labaredas que saíam da boca do dragão quando ele falou; de onde estavam, os dois sentiram o calor delas.
- Eu não imaginava que você falasse - disse Gato.
- Falo inglês muito bem - o dragão anunciou, soltando labaredas. - Por que querem meu sangue?
Ambos lançaram um olhar culpado para o grande frasco de pó sobre a prateleira.
- Aquilo tudo é seu? - Gato quis saber.
- Se o Sr. Saunders está obrigando você a lhe dar o seu sangue todo o tempo, acho isso muito cruel - Janet declarou.
- Ah, aquilo ali? Aquilo é sangue em pó, de dragões mais velhos. Eles vendem isso para as pessoas. Não é para vocês.
- Por que não? - Gato perguntou.
- Porque eu não quero - o dragão respondeu, e uma labareda maior saiu-lhe da boca, fazendo com que as crianças retrocedessem mais uma vez. - Que é que iam achar se me vissem pegando sangue humano para brincar?
Embora Gato achasse que o dragão tinha certa razão, Janet não concordava.
- Eu não ligaria - declarou. - De onde eu venho, temos transfusões de sangue e bancos de sangue. Uma vez papai me mostrou um pouco do meu sangue no microscópio.
- Mas eu ligo - disse o dragão, soltando outra labareda. - Mamãe foi morta por malfeitores ladrões de sangue.
Ele foi até a pontinha da bancada e encarou Janet. As faíscas em seus olhos dourados derreteram-se, mudaram de forma e tornaram a derreter-se. Era como ser encarada por dois pequenos caleidoscópios dourados.
- Eu era pequeno demais para ter bastante sangue, então me deixaram vivo - ele faiscou suavemente para ela. - Mas teria morrido se Crestomanci não tivesse me encontrado. Você entende por que me preocupo?
- Sim - Janet asseverou. - De que os filhotes de dragão se alimentam? De leite?
- Michael tentou me dar leite, mas não gostei - disse o dragão. - Agora como bife picadinho, e estou crescendo muito bem. Quando for suficientemente grande, ele vai me levar de volta, e enquanto isso eu o ajudo com sua magia. Sou de grande ajuda.
- É mesmo? Que é que você faz? - Janet quis saber.
- Encontro coisas antigas que ele não consegue encontrar sozinho. - O dragão passou para um sussurro faiscante. - Trago-lhe animais do abismo, velhas criaturas douradas, coisas aladas, monstros de olhos de pérolas das profundezas do mar, e plantas murmurantes de muito tempo atrás.
Ele silenciou e ficou olhando para Janet com a cabeça de lado.
- Foi fácil - comentou com Gato. - Sempre tive vontade de fazer isso, mas nunca me permitiram. - Ele suspirou com uma longa lufada de fumaça. - Eu queria ser maior. Ia poder comer ela agora.
Gato lançou um olhar alarmado para Janet e viu-a de olhos vazios, como uma sonâmbula, e um sorriso parado.
- Que truque mais baixo! - exclamou o menino.
- Acho que vou dar só uma mordidinha - disse o dragão, Gato compreendeu que ele estava brincando.
- Se fizer isso, torço o seu pescoço - ameaçou. - Não tem outra coisa para brincar?
- Você parece o Michael falando. Já estou cansado dos ratos - declarou o dragão, soltando um irritado rolo de fumaça.
- Diga a ele para levar você para passear.
Gato pegou o braço de Janet e sacudiu-o; Janet voltou a si com um sobressalto, parecendo totalmente ignorante de que alguma coisa lhe havia acontecido.
- Não posso fazer nada sobre o modo como você se sente, mas preciso de um pouco de sangue de dragão - continuou ele.
Para garantir, puxou Janet para fora do alcance do animal e pegou, na bancada vizinha, um pequeno cadinho de louça.
O dragão curvou-se num movimento irritado e coçou-se debaixo do queixo como um cachorro, fazendo as asas chacoalharem.
- Michael diz que sangue de dragão sempre causa algum mal em algum lugar, mesmo usado por um adepto - informou.
- Quem não tomar cuidado perde a vida.
Gato e Janet entreolharam-se através da fumaça que ele produzira juntamente com a informação.
- Bom, posso gastar uma - disse o menino.
Ele tirou a rolha de vidro do frasco grande e colocou um pouco do pó marrom dentro do cadinho. A substância tinha um cheiro forte e estranho.
- Imagino que Crestomanci consiga se sair muito bem com duas vidas - disse Janet, aflita.
- Mas ele é especial - retorquiu o dragão.
Estava parado bem na extremidade da bancada, chacoalhando de ansiedade. Seus olhos dourados seguiam as mãos de Gato enquanto este embrulhava o cadinho em seu lenço e enfiava a trouxinha no bolso cautelosamente. O animal parecia tão preocupado que Gato foi até ele e, um pouco nervoso, esfregou-o debaixo do queixo, onde ele havia se coçado. O dragão esticou o pescoço e encostou-se nos dedos dele. A fumaça saía de suas narinas em nuvenzinhas contentes.
- Não se preocupe. Ainda tenho três vidas, sabe? – disse Gato.
- Isso explica por que gosto de você - disse o dragão, quase caindo da bancada em seus esforços para acompanhar os dedos de Gato. - Não vá embora ainda!
- Temos que ir. - Gato empurrou o dragão de volta para cima da bancada e deu-lhe alguns tapinhas na cabeça. Depois que se acostumou, já não achava desagradável tocar naquele couro quente e caloso. - Adeus.
- Adeus - respondeu o dragão.
Os dois saíram, deixando o animal a olhar para eles como um cão olha para seu dono quando este sai para passear sem ele.
- Acho que ele está entediado - disse Gato depois de fechar a porta.
- E uma pena! Ele é só um bebê - Janet disse. Ela estacou na primeira volta da escada. - Vamos voltar e levar o dragãozinho para dar uma volta. Ele é tão engraçadinho!
Gato tinha certeza de que, se Janet fizesse uma coisa dessas, quando voltasse a si veria o dragão degustando as suas pernas.
- Ele não é bonzinho - rebateu. - E agora temos que ir direto para o jardim. Assim que tiver uma oportunidade, ele vai contar ao Sr. Saunders que pegamos um pouco do sangue de dragão.
- E, acho que ele falar faz uma diferença - Janet concordou. - E melhor andarmos depressa, então.
Gato percorreu o Castelo caminhando cuidadosamente, entrando e saindo de portas, sempre com a mão no bolso, para o caso de um acidente. Tinha medo de chegar ao jardim proibido com uma vida a menos; perdera três delas com muita facilidade.
Aquilo não cessava de confundi-lo. Pela aparência dos fósforos, perder a vida número cinco deveria ter sido um desastre tão grande quanto perder a sexta na noite anterior, mas ele nem percebera quando aconteceu. E não conseguia entender isso; parecia que as suas vidas não estavam adequadamente presas a ele, como nas pessoas comuns. Mas, pelo menos, ele sabia que não existiam outros Gato Chant correndo o risco de serem arrastados para uma grande encrenca neste mundo quando ele partisse.
Era um dia glorioso de início de outono, com tudo verde e dourado, quente e parado. Não havia vivalma à vista, e pouquíssimo ruído além dos passos solitários de Gato e Janet quando eles atravessaram apressados o jardim formal.
No meio do pomar, Janet declarou:
- Se o jardim que queremos parece as ruínas de um castelo, estamos nos afastando dele.
Gato poderia jurar que estavam se encaminhando diretamente para o lugar, mas, realmente, quando parou e olhou em volta, o velho muro alto e batido pelo sol estava bem atrás deles. E, pensando bem, ele não conseguia lembrar-se do modo como Gwendolen e ele tinham chegado lá.
Fizeram meia-volta e saíram andando na direção do muro alto. Tudo que encontraram foi o muro comprido e baixo do pomar. Não havia porta alguma nele, e o jardim proibido ficava do outro lado. Eles acompanharam o muro do pomar até a porta mais próxima; passando por ela, encontraram-se no roseiral, e o muro em ruínas estava novamente às costas deles, erguendo-se atrás do pomar.
- Isso não pode ser um encantamento para impedir que as pessoas cheguem até lá? - Janet perguntou, enquanto atravessavam o pomar mais uma vez.
- Acho que deve ser.
Estavam novamente no jardim formal, com o muro alto atrás deles.
- Desse jeito, eles estarão saindo da igreja antes de encontrarmos o caminho - Janet comentou ansiosamente.
- Vamos tentar manter o muro no canto do seu olho, e não irmos diretamente para ele - Gato sugeriu.
Fizeram isso: seguiram em ângulo com o jardim, sem realmente olhar para ele. Ele parecia acompanhá-los. E de repente, sem saberem como, eles saíram do pomar para um trilha íngreme e ladeada por muros que subia um barranco; no topo do barranco ficava o velho muro alto, com sua escada escondida pelos goiveiros amarelos e pelas bocas-de-dragão, bafejando o calor das suas pedras no rosto preocupado deles. Nenhum dos dois ousava olhar diretamente para as ruínas altas, mesmo enquanto subiam pela trilha. Mas o muro ainda estava ali quando chegaram ao final, assim como a escada coberta de flores.
A escada obrigava a uma subida apavorante. Eles tiveram que chegar duas vezes mais alto do que uma casa, com um dos lados do corpo apertado contra as pedras quentes do muro e um vazio profundo do outro lado. Os degraus eram assustadoramente antigos e irregulares. E eles sentiam um calor cada vez maior. Perto do final, Gato precisou manter a cabeça voltada para cima, para as árvores que pendiam por cima do topo das ruínas, porque olhar para qualquer outro lugar provocava-lhe vertigens. Ele teve alguns vislumbres do Castelo à distância, de mais ângulos do que ele julgava possível. E começou a desconfiar que as ruínas onde se encontrava estavam em movimento.
Havia uma fenda no alto do muro, em nada parecida com uma entrada normal. Eles se esgueiraram através dela, às escondidas, sentindo-se culpados, e constataram que o solo do outro lado estava liso de tanto uso, como se outras pessoas viessem passando por ali durante séculos.
Havia árvores, grossas, escuras, muito próximas umas das outras. O lugar era maravilhosamente fresco. A trilha serpenteava por entre elas, e Janet e Gato a seguiram. A sua passagem, as árvores aparentavam mover-se para um lado e outro e espalhar-se em distâncias diferentes, como costuma acontecer com árvores muito próximas quando andamos entre elas. Mas Gato não tinha total certeza de que aquilo era só aparência.
Uma nova paisagem abria-se num vale. E então eles se encontraram no vale.
- Que lugar lindo! -Janet exclamou. - Mas como é estranho! O pequeno vale era cheio de flores primaveris. Narcisos,
campânulas, galantos, jacintos e minúsculas tulipas cresciam ali em setembro na mais improvável profusão. No vale havia um pouco de frio no ar, o que talvez explicasse aquela abundância. Janet e Gato seguiram caminho entre as flores, tremendo de leve. Pairavam no ar aromas de primavera, frescos e embriagadores, limpos e silvestres, mas com forte magia. Antes que tivessem dado dois passos, Gato e Janet estavam sorrindo. Outro passo, e estavam rindo.
- Ah, veja! Um gato! - Janet exclamou.
Era um grande gato macho listrado. Estava ao lado de uma moita de prímulas, com o corpo arqueado, cheio de desconfiança, sem saber se fugia ou ficava. Olhou para Janet, olhou para Gato - e Gato o reconheceu. Embora fosse total e definitivamente um gato, havia uma leve sugestão de um violino no formato da cara.
O menino deu uma risada. Tudo naquele lugar lhe dava felicidade.
- E o velho Rabeca! Ele já foi o meu violino. Que é que está fazendo aqui?
Janet ajoelhou-se e estendeu a mão.
- Aqui, Rabeca. Aqui, gatinho...
A natureza de Rabeca certamente havia amansado durante a estada naquele vale; ele permitiu que Janet lhe esfregasse o queixo e o acariciasse. Então, de um modo inaudito, deixou que Janet o pegasse no colo e o abraçasse. Chegou até a ronronar. O rosto de Janet brilhava; ela estava idêntica a Gwendolen quando chegava de uma aula de bruxaria, com a diferença de que Janet parecia mais simpática. Ela piscou para Gato.
- Adoro todos os tipos de Gato!
Gato riu. Estendeu a mão esquerda e acariciou a cabeça de Rabeca. A sensação era estranha: ele sentia a madeira do violino. Retirou depressa a mão.
Os dois atravessaram um campo de narcisos que tinha o cheiro do paraíso, Janet ainda carregando Rabeca. Até então não haviam surgido flores brancas. Gato começou a ter quase certeza de que o jardim movia-se ao redor deles por sua própria conta. Quando ele chegou às campânulas azuis, e depois às grandes tulipas vermelhas, teve certeza disso. Ele quase que via - mas não inteiramente - as árvores deslizando com suavidade pelos cantinhos do seu campo de visão. Elas o transportaram por entre ranúnculos e ervas-cicutárias em direção a uma clareira ensolarada e em declive. E ali havia uma roseira-silvestre emaranhada com uma trepadeira coberta de grandes flores azuis. Agora Gato sentia claramente o movimento. De um modo qualquer, as duas crianças estavam sendo movidas em círculos e sempre descendo a ladeira. Se ficasse pensando no modo como o jardim também se movia perto do Castelo, começava a sentir-se enjoado, quase com a mesma intensidade que experimentara no carro. Concluiu que o melhor seria continuar andando e observando.
Quando deslizaram através das árvores por entre flores de verão, Janet também percebeu a mesma coisa.
- Não estamos fazendo um passeio rápido pelas estações do ano? - ela perguntou. - Tenho a sensação de estar descendo uma escada rolante.
Era mais do que um ano comum. Figueiras, oliveiras e tamareiras moveram os dois num círculo até um pequeno deserto, onde os cactos eram como pepinos atormentados ou poltronas verdes cheias de espinhos. Alguns ostentavam flores brilhantes. O sol ardia, mas eles mal tiveram tempo de sentir demasiado calor antes que as árvores novamente fizessem um círculo em volta deles e os levassem para uma luz mais rica e mais triste, com flores outonais. Eles mal haviam se acostumado a isso, quando as árvores puseram-se a dar frutos, ficaram marrons e perderam as folhas. Eles se moviam na direção de uma moita espessa, cheia de cerejas vermelhas. Estava ficando mais frio. Rabeca não gostou dessa parte; desvencilhou-se dos braços de Janet e fugiu correndo para climas mais amenos.
- Quais são as portas para outros mundos? -Janet perguntou, de volta ao propósito deles.
- Logo vamos encontrar, eu acho - Gato respondeu.
Nesse instante ele sentia que estavam chegando ao centro do jardim. Raramente sentira com tanta intensidade uma coisa mágica.
As árvores e os arbustos em volta deles encontravam-se agora cobertos de geada. As cerejas de cor viva estavam dentro de brilhantes invólucros de gelo. No entanto, Janet mal teve tempo de esfregar os braços e estremecer, quando chegou até eles uma árvore que era uma massa invernal de botões rosados. Da árvore seguinte pendiam caules retos de jasmim-de-inverno, em fileiras de pequenas estrelas amarelas. E então chegou uma imensa árvore espinhosa e contorcida em todas as direções. Ela estava começando a soltar alguns poucos botões brancos.
Enquanto ela os cobria com sua capa escura, Janet ergueu os olhos para os galhos negros e contorcidos.
- A de Glastonbury é parecida com esta. Dizem que ela floresce no Natal - Janet comentou.
Então Gato entendeu que estavam no coração do jardim. Encontravam-se numa pequena campina côncava. Todas as árvores estavam em volta da borda dessa clareira, com exceção de uma. E ali, a estação do ano parecia ser a correta, porque nessa única árvore as maçãs estavam começando a amadurecer. A árvore inclinava-se para o centro da campina, mas sem chegar a sombrear as estranhas ruínas que havia lá.
Ao passarem silenciosamente em direção às ruínas, encontraram, perto das raízes da macieira, uma pequena fonte que surgia borbulhando do nada e quase que de imediato tornava a enfiar-se borbulhando na terra. Janet achou que a água clara parecia extraordinariamente dourada. Lembrava-lhe a água do chuveiro que fizera Gato parar de queimar.
As ruínas eram os dois lados de um arco desabado. Havia uma pedra comprida que certamente caíra do topo do arco e agora jazia aos pés da árvore. Não havia outro sinal de uma porta.
- Acho que é aqui - disse Gato. O menino sentia-se triste por ter que deixar esse mundo.
- Também acho - Janet concordou, era voz abafada, um pouco assustada. - Na verdade, não estou gostando muito de ir embora. Como é que iremos?
- Vou tentar polvilhar uma pitada de sangue de dragão no meio do arco - Gato explicou.
Ele retirou do bolso o cadinho embrulhado em seu lenço. Sentiu o cheiro forte do sangue do dragão e percebeu que estava agindo de maneira errada. Era errado trazer aquele material maléfico para um lugar que era tão poderosamente mágico de um modo tão diferente.
Mas, já que não lhe ocorria outra coisa a fazer, Gato pegou cuidadosamente uma pitada do pó marrom e fedorento entre o polegar e o indicador da mão direita, tornou a embrulhar e guardar o cadinho com a mão esquerda, e então, tomando muito cuidado e sentindo-se culpado, polvilhou o pó entre os pilares de pedra.
O ar entre os pilares estremeceu, como acontece com o ar quente. O trecho de campina ensolarada que eles viam do outro lado tornou-se enevoado, depois alvo como leite, depois escuro. A escuridão dissipou-se lentamente, desaparecendo nos cantos daquele espaço, e eles perceberam que estavam vendo o interior de um salão enorme. Parecia ter muitos quilômetros de extensão. Todo ele era coberto por um tapete com um desenho bastante feio, parecendo cartas de baralho, em vermelho, azul e amarelo. O aposento estava cheio de gente. Gato achou que as pessoas também lembravam cartas de baralho, porque usavam roupas rígidas e volumosas em cores lisas e vivas. Todos andavam de um lado para outro, parecendo importantes e agitados. O ar entre as duas crianças e o jardim ainda estava estremecendo e, sem saber por quê, Gato tinha a certeza de que não conseguiriam entrar naquele imenso salão.
- Isso não está certo - disse Janet. - Onde é este lugar?
Gato estava prestes a dizer que também não sabia, quando avistou Gwendolen. Ela estava sendo carregada, bem perto deles, numa espécie de liteira com apoios para as mãos. Os oito homens que a carregavam usavam volumosas fardas douradas. A liteira era de ouro, com pendentes e almofadas de ouro. Gwendolen usava roupas ainda mais volumosas do que o resto, brancas e douradas, e tinha os cabelos presos numa tiara dourada que poderia ser uma coroa.
Pelo modo como ela se portava, era certamente uma rainha. Ela fez um gesto com a cabeça para algumas das pessoas importantes; estas aproximaram-se ansiosas da lateral da liteira e escutaram com febril atenção aquilo que ela estava dizendo. Ela acenou para outras pessoas e estas apressaram-se a fazer coisas. Ela fez um sinal para um homem e ele caiu de joelhos, a implorar misericórdia. Ainda estava implorando quando outras pessoas o arrastaram para longe. Gwendolen sorriu, como se achasse aquilo divertido. A essa altura, a liteira dourada estava bem ao lado do arco, e o espaço era um torvelinho de gente correndo para fazer aquilo que Gwendolen queria.
E Gwendolen avistou Gato e Janet. Gato sabia que ela os vira, por causa da expressão de surpresa e leve irritação no rosto dela. Talvez ela tenha feito alguma mágica própria, ou talvez a magia no sangue de dragão simplesmente gastara-se toda - fosse o que fosse, o arco desabado tornou a escurecer, depois ficou leitoso, depois cobriu-se de névoa; e, finalmente, nada havia além da campina entre os pilares, e o ar já não estremecia.
- Aquela era Gwendolen - Gato declarou.
- Imaginei que fosse mesmo - Janet respondeu, em tom desdenhoso. - Vai engordar, se continuar sendo carregada assim o tempo todo.
- Ela estava feliz - Gato comentou com certa tristeza.
- Eu percebi. Mas como encontraremos o meu mundo? Gato não tinha certeza.
- Vamos tentar rodear para o outro lado do arco? - sugeriu.
- Parece razoável - Janet concordou. Ela começou a rodear as colunas, mas parou. - É melhor fazermos tudo certo desta vez, Gato. Você tem condições de tentar só mais uma vez. Ou não perdeu uma vida nessa última tentativa?
- Não senti... - Gato começou.
Então, de repente, o Sr. Nostrum estava parado sob o arco quebrado. Segurava na mão o cartão-postal que Gato enviara para a Sra. Sharp, e parecia zangado e inquieto.
- Meu caro menino, eu disse duas e meia, não meio-dia -disse a Gato. - Foi por mero acaso que eu estava com a mão sobre a sua assinatura. Vamos torcer para que não esteja tudo perdido. - Ele virou-se e chamou por cima do ombro, aparentemente para a campina deserta: - Venha, William. Esse infeliz desse menino parece que me entendeu mal, mas é óbvio que o feitiço está funcionando. Não se esqueça de trazer o... ha... equipamento com você.
Ele avançou um passo, afastando-se das colunas, e Gato recuou diante dele. Tudo parecia ter ficado muito silencioso. As folhas da macieira não se moviam, e o borbulhar baixo da pequena nascente mudou para um gotejar suave e lento. Gato tinha fortes suspeitas de que ele e Janet haviam feito algo terrível. Janet, que estava do outro lado do arco com as mãos na boca, parecendo apavorada, foi subitamente escondida pela figura volumosa do Sr. William Nostrum, que surgiu do nada entre os dois pilares. Ele tinha um rolo de corda em volta de um braço, e havia coisas brilhantes sobressaindo dos bolsos do seu fraque. Ele movia os olhos de maneira agitada. Estava um pouco sem fôlego.
- Prematuro, mas bem-sucedido, Henry - ofegou. - O resto já foi convocado.
William Nostrum avançou imponentemente para debaixo da macieira, onde postou-se ao lado do irmão. O solo estremeceu de leve. O jardim estava em total silêncio. Gato tornou a recuar, e descobriu que a pequena fonte cessara seu fluxo; dela restava apenas um buraco barrento. Gato agora tinha certeza de que ele e Janet haviam feito alguma coisa terrível.
Outras pessoas surgiram apressadas através do arco quebrado. A primeira que passou foi uma das Bruxas Autorizadas da Rua Sabá, com o rosto escuro e muito assustada. Ela estivera na igreja, usando suas roupas de domingo: um chapéu monstruoso com frutas e flores, e um vestido de cetim vermelho e preto. A maioria das pessoas que a seguiram estavam usando também suas melhores roupas: feiticeiros de sarja azul e chapéus pontudos, bruxas usando seda e bombazina e chapéus de todos os tipos e tamanhos, necromantes de aparência respeitável vestindo fraque como o de William Nostrum, bruxos magrelas de preto e um bom grupo de magos impressionantes, que antes de surgirem ali haviam estado na igreja envergando sobretudos pretos ou jogando golfe metidos nas calças especiais para esse esporte.
Eles chegavam em bando por entre as duas colunas, primeiro aos pares e aos trios, depois seis ou sete de cada vez, todos apressados e espantados. Entre eles, Gato reconheceu a maioria das bruxas e cartomantes da Rua Sabá, embora não avistasse a Sra. Sharp ou a Srta. Larkins - mas isso poderia ser simplesmente porque, sem demora, ele estava sendo empurrado para todos os lados no meio de uma multidão numerosa que crescia cada vez mais.
William Nostrum gritava para cada grupo que chegava:
- Espalhem-se. Espalhem-se pela campina. Cerquem a porta aqui! Não deixem qualquer caminho de fuga!
Janet abriu caminho por entre eles e agarrou o braço de Gato.
- Gato, que foi que nós fizemos? Não me diga que estes aí não são todos bruxas e bruxos, porque não vou acreditar em você!
- Ah, minha cara Gwendolen! O Plano Número Dois está em ação - declarou o Sr. Henry Nostrum.
A essa altura, as encostas que cercavam a campina estavam repletas de bruxas e bruxos. O solo estremecia com seus passos e zumbia com sua conversa animada. Havia centenas deles -um mar agitado de chapéus chamativos e cartolas brilhantes, como os presentes na abertura de um mercado.
Assim que o último necromante passou apressado entre os pilares, Henry Nostrum colocou a mão, pesada e possessivamente, sobre o ombro de Gato. O menino perguntou-se, inquieto, se era apenas por acidente que se tratava da mesma mão que segurava o cartão-postal endereçado à Sra. Sharp. Ele percebeu que o Bruxo Às Suas Ordens postara-se perto de uma das colunas partidas, de barba por fazer e contente como sempre, em seu terno domingueiro apertado demais. O Sr. William Nostrum colocara-se o mais possível escondido atrás da outra coluna, e, por um motivo qualquer, tirara do bolso a pesada corrente de relógio de prata e estava a balançá-la para um lado e outro.
- Agora, querida Gwendolen, gostaria de ter a honra de convocar Crestomanci? - Henry Nostrum perguntou.
- Eu... prefiro não fazer isso - Janet respondeu.
- Então eu mesmo farei - Henry Nostrum respondeu, muito satisfeito. Pigarreou e gritou, em sua voz de tenor: -Crestomanci! Crestomanci! Venha a mim!
E Crestomanci surgiu, de pé entre os pilares. Crestomanci decerto estivera subindo a alameda, voltando da igreja, pois tinha numa das mãos a cartola cinzenta e com a outra estava colocando o livro de orações no bolso do seu belo paletó cinza-perolado. As bruxas e os necromantes reunidos saudaram-no com uma espécie de gemido suspiroso. Crestomanci pestanejou e examinou-os com expressão benigna e espantada. Tornou-se ainda mais vago e mais espantado quando avistou Gato e Janet.
Gato abriu a boca para gritar para Crestomanci ir embora. Mas o Bruxo As Suas Ordens saltou sobre Crestomanci no momento em que este apareceu. Ele rosnava; suas unhas transformavam-se em garras, e seus dentes, em presas.
Crestomanci enfiou o livro de orações no bolso e virou o olhar vago para o Bruxo Às Suas Ordens; o Bruxo Às Suas Ordens imobilizou-se em pleno ar e começou a murchar. Encolhia tão depressa que chegava a fazer um ruído. Então tornou-se uma pequena lagarta marrom. Caiu sobre a relva e ficou ali a contorcer-se. Mas enquanto ele ainda encolhia, William Nostrum assomou de um salto de trás da outra coluna e destramente enrolou a corrente de relógio em volta da mão direita de Crestomanci. - Olhe para trás! - Janet e Gato gritaram, tarde demais. Depois de mais uma contorção, a lagarta cresceu e tornou-se novamente o Bruxo Às Suas Ordens, um pouco despenteado, mas muito satisfeito consigo mesmo. Tornou a lançar-se sobre Crestomanci. Quanto a este, era evidente que de um modo qualquer a corrente de relógio o dominara por completo. Houve um segundo de luta furiosa sob o arco enquanto o Bruxo Às Suas Ordens tentava prender Crestomanci em seus braços musculosos, Crestomanci tentava arrancar a corrente de relógio de seu pulso usando a mão esquerda e William Nostrum agarrava-se ferozmente a ela. Nenhum deles usou magia, e Crestomanci parecia capaz apenas de empurrar fracamente o Bruxo Às Suas Ordens para o lado. Depois de duas tentativas, o Bruxo Às Suas Ordens abraçou Crestomanci por trás e William Nostrum tirou do bolso um par de algemas de prata, que prendeu nos dois pulsos de Crestomanci.
A platéia soltou um grito de triunfo - um grito de verdadeira bruxaria, que fez a luz do sol estremecer. Crestomanci, ainda mais descabelado do que o Bruxo Às Suas Ordens, foi arrastado para fora do espaço entre os pilares. Sua cartola cinzenta rolou até os pés de Gato, e Henry Nostrum pisoteou-a com a maior satisfação. Gato tentou desvencilhar-se das mãos de Henry Nostrum enquanto este se ocupava da cartola - e descobriu que não conseguia mover-se. O Sr. Nostrum decerto providenciara isso, através do cartão-postal da Sra. Sharp. Gato teve que enfrentar o fato de que estava tão indefeso quanto Crestomanci parecia estar.
- Então é verdade! - Henry Nostrum exclamou em regozijo, enquanto o Bruxo Às Suas Ordens empurrava Crestomanci na direção da macieira. - O toque da prata derrota Crestomanci! O grande Crestomanci!
- Sim. Não é uma chateação? - Crestomanci comentou.
Ele foi arrastado até a macieira e empurrado contra ela. William Nostrum correu até o irmão e puxou a corrente de relógio do colete roliço de Henry. Duas correntes de relógio de dois irmãos tão gordos foram mais do que suficientes para amarrar Crestomanci à árvore. William Nostrum apressou-se a prender as pontas com dois nós encantados e em seguida recuou um passo, esfregando as mãos. A platéia aplaudia, dando gargalhadas sinistras. Crestomanci relaxou o corpo, como se estivesse exausto. Seus cabelos pendiam sobre o rosto, a gravata estava sob a orelha esquerda e todo o seu paletó cinza-perolado mostrava vestígios verdes do tronco da árvore. Gato, de certa forma, sentiu-se constrangido ao contemplá-lo naquele estado. Mas Crestomanci parecia totalmente composto.
- Agora que me amarrou com prata, que é que pretende fazer? - perguntou.
William Nostrum olhou ao redor alegremente.
- Ora, o pior que pudermos, caro senhor. Pode ficar certo disso - respondeu. - Estamos cansados das restrições que o senhor nos impõe, compreende? Por que não podemos sair e conquistar outros mundos? Por que não podemos usar sangue de dragão? Por que não podemos ser tão malévolos quanto quisermos ser? Responda-me, senhor!
- Poderia encontrar por si mesmo a resposta, se pensasse um pouco - Crestomanci sugeriu.
Mas a voz dele foi abafada pelos gritos das bruxas e dos necromantes reunidos. Enquanto eles gritavam, Janet começou a esgueirar-se discretamente em direção à árvore. Imaginava que Gato não ousava mover-se, por causa da mão de Henry Nostrum em seu ombro, e sentia que alguém precisava fazer alguma coisa.
- Ah, sim - disse Henry Nostrum, inchado de satisfação. -Hoje vamos tomar em nossas mãos as artes mágicas. A noite, este mundo será nosso. Quando chegar o Dia das Bruxas, sairemos para conquistar todos os outros mundos que conhecemos. Vamos destruir o senhor, meu caro, e o seu poder. Mas antes de fazermos isso, naturalmente, será preciso destruir este jardim.
Crestomanci contemplou pensativamente suas mãos, que pendiam frouxas nas algemas de prata.
- Eu não aconselharia isso. Este jardim contém coisas da aurora de todos os mundos - afirmou. - Ele é muito mais forte do que eu. Você estaria golpeando as raízes da bruxaria, e vai descobrir, com um grande choque, que é uma coisa muito difícil de destruir.
- Ah, mas sabemos que não conseguiremos derrotá-lo se não conseguirmos destruir o jardim, meu astuto senhor - Henry Nostrum respondeu. - E não pense que não sabemos como destruir este jardim. - Ele ergueu a mão livre e deu um tapinha no outro ombro de Gato, afirmando: - Os meios estão aqui.
Nesse momento, Janet tropeçou num bloco de pedra que jazia na relva perto da macieira.
- Drogaria! - ela exclamou, caindo pesadamente no chão. A platéia apontava para ela e ria, o que a deixou bastante irritada. Ela olhou em volta do círculo de chapéus domingueiros.
- Fique de pé, cara Gwendolen. É o jovem Gato que tem que ir para lá - disse Henry Nostrum em tom alegre.
Ele passou o braço em torno do corpo do indefeso menino, ergueu-o do chão e carregou-o até o bloco de pedra. William Nostrum, sorrindo, desenrolava a corda agitadamente. O Bruxo Às Suas Ordens avançou de um salto, desejando ajudar também.
Gato estava tão apavorado que de alguma forma conseguiu romper o feitiço: desvencilhou-se dos braços de Henry Nostrum e correu com todas as forças das suas pernas em direção aos dois pilares, tentando, enquanto corria, tirar do bolso o seu sangue de dragão. A distância era de apenas uns poucos passos. Mas naturalmente, cada bruxa, bruxo, necromante e mago ali presente lançou imediatamente um feitiço. O cheiro forte de magia dominou a campina. As pernas de Gato pareciam dois postes de chumbo, seu coração batia como um tambor. Ele sentia-se correndo em câmera lenta, cada vez mais devagar, como um brinquedo com a corda acabando. Ouviu Janet gritar para que corresse, mas já não conseguia mover-se. Ficou imóvel bem diante do arco, e rígido como uma tábua. Mal conseguia respirar.
Os irmãos Nostrum e o Bruxo Às Suas Ordens retiraram-no dali e enrolaram a corda ao redor do seu corpo rígido. Janet fez o possível para impedi-los.
- Ah, parem, por favor! Que é que estão fazendo?
- Ora, ora, Gwendolen, você sabe perfeitamente! - disse Henry Nostrum, perplexo. - Já lhe expliquei cuidadosamente que o jardim tem que ser desencantado cortando-se a garganta de uma criança inocente naquele bloco de pedra que está ali. Você concordou que tem que ser assim.
- Eu não! Não fui eu! - Janet gritou.
- Fique quieta! - disse Crestomanci da árvore. - Quer ficar no lugar de Gato?
Janet o encarou e continuou a encará-lo enquanto compreendia todo o significado daquilo. Enquanto ela encarava Crestomanci, Gato, rígido como uma múmia e rodeado pela corda, era carregado pelo Bruxo Às Suas Ordens e jogado com violência sobre o bloco de pedra. Gato olhou com raiva para o Bruxo Às Suas Ordens, que sempre lhe parecera tão simpático. Fora isso, o menino não estava tão assustado quanto deveria estar. Naturalmente Gwendolen sabia que ele tinha vidas de sobra. Mas ele torcia para que sua garganta se recuperasse depois que a cortassem. Girou os olhos para Janet, tentando acalmá-la com um olhar.
Para seu espanto, Janet foi arrastada para trás e desapareceu. A única coisa que restou dela foi um berro de surpresa. E o mesmo berro ecoou pela campina. Todos ali ficaram tão atônitos quanto Gato.
- Ah, que bom, cheguei a tempo! - disse Gwendolen, do outro lado da pedra.
Todos a encararam. Gwendolen veio do espaço entre as colunas, limpando o pó de sangue de dragão dos dedos com uma das redações escolares de Gato. Gato conseguia ver sua assinatura no topo: Eric Emelius Chant, Rua Sabá 26, Wolvercote, Inglaterra, Europa, Terra, Universo - era mesmo dele.
Gwendolen ainda tinha os cabelos presos naquela estranha tiara, mas retirara as volumosas roupagens douradas. Usava o que deviam ser roupas de baixo em seu novo mundo. Eram mais magníficas do que qualquer dos roupões de Crestomanci.
- Gwendolen! - Henry Nostrum exclamou, e apontou para o espaço de onde Janet desaparecera. - O quê... quem...?
- Era só uma sobressalente - Gwendolen explicou, em seu tom mais casual. - Eu a vi com Gato aqui, de modo que entendi... - Ela então notou Crestomanci, amarrado à macieira. - Ah, que bom! Você o pegou! Espere só um momento.
Ela marchou até Crestomanci e ergueu as roupas douradas para chutá-lo com força em ambos os tornozelos.
- Tome isto! E isto!
Crestomanci não tentou fingir que aqueles chutes não doíam. Ele dobrou-se ao meio. As pontas dos sapatos de Gwendolen eram aguçadas como pregos.
- Agora, onde é que eu estava? - ela perguntou, tornando a virar-se para os irmãos Nostrum. - Ah, sim. Achei melhor voltar porque eu queria ver a festa, e lembrei-me de que tinha esquecido de lhe dizer que Gato tem nove vidas. Vai ter que matá-lo várias vezes.
- Nove vidas!- gritou Henry Nostrum. - Sua garota idiota! Depois disso, houve tamanha gritaria por parte de cada bruxa e bruxo na campina, que ninguém conseguiria escutar qualquer coisa. De onde Gato estava deitado, ele conseguia ver William Nostrum inclinando-se na direção de Gwendolen, de rosto vermelho, os dois olhos girando, berrando furiosamente com ela, e Gwendolen inclinando-se para a frente para berrar de volta. Quando o tumulto amainou um pouco, Gato ouviu a voz de William Nostrum gritando:
- Nove vidas! Se ele tem nove vidas, sua garota burra, isso significa que ele é bruxo!
- Não sou burra! - Gwendolen berrou de volta. - Sei disso tão bem quanto você! Uso a magia dele desde que ele era bebê. Mas não poderia continuar usando depois que você o matasse, poderia? Foi por isso que tive que ir embora. Acho que foi um gesto muito bondoso de minha parte voltar e lhe contar. Pronto!
- Como pode ter usado a magia dele? - quis saber Henry Nostrum, ainda mais perturbado do que o irmão.
- Simplesmente usando. Ele não se importa - Gwendolen declarou.
- Eu me importo sim - interpôs Gato, de sua posição incômoda. - Estou aqui, você sabe.
Gwendolen baixou os olhos para ele como se estivesse surpresa por ele estar ali. Mas antes que ela pudesse dizer alguma coisa a Gato, William Nostrum pediu silêncio. Estava muito nervoso. Tirou do bolso uma coisa comprida e brilhante e pôs-se a curvá-la nervosamente.
- Silêncio! - pediu. - Fomos longe demais para recuarmos agora. Simplesmente teremos que descobrir o ponto fraco do menino. Certamente não poderemos matá-lo se não encontrarmos. Ele deve ter um. Todos os bruxos têm.
Assim dizendo, William Nostrum aproximou-se de Gato e apontou para ele a coisa brilhante. Gato ficou apavorado ao ver que era uma comprida faca de prata. A faca apontava para o seu rosto, embora os olhos de William Nostrum não o fizessem.
- Qual é o seu ponto fraco, garoto? Despeje logo! Gato não pretendia dizer. Aquela parecia ser a única chance
que ele tinha de manter alguma das suas vidas.
- Eu sei! - Gwendolen exclamou. - Fui eu quem fez aquilo. Coloquei todas as vidas dele numa carteira de fósforos. Assim elas ficam mais fáceis de usar. Está no meu quarto no Castelo. Vou buscar, está bem?
Todos que Gato conseguia ver de sua incômoda posição pareciam aliviados ouvindo isso.
- Então está bem - disse Henry Nostrum. - Ele pode ser morto sem que se queime um fósforo?
- Ah, sim. Certa vez ele se afogou - disse Gwendolen. William Nostrum, muito aliviado, perguntou:
- Então a questão é, simplesmente: quantas vidas ele ainda tem? Quantas você tem, garoto?
A faca apontou novamente para Gato. Novamente, ele recusou-se a dizer.
- Ele não sabe! - Gwendolen explicou, impaciente. - Tive que usar algumas. Ele perdeu uma quando nasceu e outra quando se afogou. E eu usei uma para colocá-lo na carteira de fósforos. Por um motivo qualquer, isso lhe deu eólicas. Então essa lagartixa que está ali amarrada com prata não quis me dar aulas de magia e tirou os meus poderes de bruxaria, de modo que tive que pegar outra vida de Gato durante a noite para que ela me mandasse para o meu belo mundo novo. Ele mostrou muita má vontade em fazer isso, mas fez. E esse foi o fim daquela vida. Ah, quase me esqueci! Coloquei a quarta vida dele naquele violino que ele tocava sem parar, para transformá-lo num gato, Rabeca, lembra-se, Sr. Nostrum?
Henry Nostrum agarrou os cabelos. Na campina, a consternação voltou a reinar.
- Você é mesmo uma garota tola! Alguém levou aquele gato. Não poderemos matá-lo!
Por um instante Gwendolen parecia derrotada. Então uma idéia lhe ocorreu.
- Se eu for embora de novo, vocês poderão usar a minha sobres...
As correntes de relógio que prendiam Crestomanci tilintaram.
- Nostrum, você está se perturbando sem necessidade. Fui eu quem removeu o gato-violino. Aquela criatura está por aí, no jardim, em algum lugar.
Henry Nostrum girou para olhar para Crestomanci com suspeita, ainda agarrando os cabelos, como se isso mantivesse sua mente no lugar.
- Duvido das suas palavras, senhor. Tenho sérias dúvidas. Sabe-se que o senhor é uma pessoa muito astuta.
- Você me lisonjeia - Crestomanci respondeu. - Infelizmente não posso dizer coisa alguma que não seja verdadeira, amarrado pela prata desta maneira.
Henry Nostrum olhou para o irmão.
- Isso é correto - disse William, em tom hesitante. - A prata o obriga a dizer somente a verdade. Então imagino que a vida extraviada do menino deve estar em algum lugar por aí.
Aquilo bastou para Gwendolen, o Bruxo Às Suas Ordens e a maior parte das bruxas e dos necromantes.
- Então vou procurar - disse Gwendolen, subindo a encosta em direção às árvores o mais rápido que conseguia em seus sapatos pontudos.
O Bruxo Às Suas Ordens ia aos saltos na frente dela. Quando passaram por uma bruxa de chapéu alto verde, a bruxa disse:
- É isso mesmo, querida. Todos nós temos que caçar o gatinho. - Ela virou-se para a multidão com um estridente berro de bruxa: - Todo o mundo caçando o gatinho!
E todos saíram correndo para fazer isso, erguendo as saias e segurando os chapéus. A clareira ficou deserta. As árvores em volta dela sacudiam-se, ondulavam e batiam umas nas outras. Mas o jardim não deixava que alguém fosse muito longe; bruxas em cores vivas, magos de paletó e feiticeiros sombrios eram cuspidos das árvores de volta para dentro da campina. Gato ouviu Crestomanci dizer:
- Seus amigos parecem muito ignorantes, Nostrum. O caminho de saída é no sentido anti-horário. Talvez seja melhor você dizer isso a eles. O gato certamente estará no verão ou na primavera.
William Nostrum lançou-lhe um olhar rápido e saiu correndo, gritando:
- No sentido anti-horário, irmãos e irmãs! Anti-horário!
- Permita-me dizer que o senhor está começando a me irritar consideravelmente - Henry Nostrum declarou a Crestomanci.
Por alguns segundos ele ficou andando de um lado para o outro, mas como um grande número de pessoas, entre elas Gwendolen e o Bruxo Às Suas Ordens, estivessem sendo lançadas das árvores para dentro da campina e parecessem muito indignadas com isso, Henry Nostrum saiu trotando na direção delas, gritando:
- Não, meus caros amigos! Minha querida aluna! Anti-horário! Vocês precisam ir no sentido anti-horário!
Gato e Crestomanci ficaram sozinhos junto ao arco partido e à macieira.
- Gato! Gato! - chamou Crestomanci, atrás da cabeça do garoto.
Gato não tinha vontade de conversar. Ali deitado, olhava para o céu azul através das folhas da macieira. A todo momento a paisagem ficava turva; então Gato fechou os olhos, e as lágrimas correram por suas orelhas. Agora que sabia que Gwendolen o amava tão pouco, não tinha certeza de ainda querer possuir alguma vida. Ficou escutando os gritos e a algazarra por entre as árvores e quase desejou que Rabeca fosse pego logo. De vez em quando tinha uma sensação estranha de ser ele próprio o gato Rabeca - furioso e assustado, estendendo a pata e arranhando uma enorme bruxa gorda de chapéu florido.
- Gato! - Crestomanci chamou; parecia quase tão desesperado quanto Rabeca. - Gato, sei como está se sentindo. Tínhamos esperanças de que ainda demorasse anos para você descobrir a respeito de Gwendolen. Mas você é mesmo um mago. Suponho que vá ser um mago ainda mais poderoso do que eu, quando se decidir. Poderia usar um pouco da sua magia agora, antes que alguém capture o coitado do Rabeca? Por favor. Como um enorme favor. Simplesmente me ajude a me libertar desta maldita prata, para que eu possa invocar o resto dos meus poderes.
Enquanto Crestomanci falava, Gato estava sendo Rabeca de novo. Subiu numa árvore, mas o Bruxo As Suas Ordens e a Bruxa Autorizada sacudiram a árvore e ele caiu. Correu e correu, depois livrou-se das mãos do Bruxo Às Suas Ordens saltando entre elas, um salto enorme, de algum lugar imensamente alto. Foi um salto tão perturbador que Gato abriu os olhos. As folhas da macieira tremulavam de encontro ao céu. A maçã que ele conseguia enxergar estava quase madura.
- Que quer que eu faça? - perguntou. - Não sei fazer nada.
- Sei disso - disse Crestomanci. - Senti a mesma coisa quando me contaram. Você consegue movimentar a mão esquerda?
- Para a frente e para trás - disse Gato, tentando. - Mas não consigo livrar a mão da corda.
- Não precisa. Você tem mais capacidade no dedo mindinho desta mão do que a maioria das pessoas, inclusive Gwendolen, tem durante toda a vida - Crestomanci asseverou. - E a magia do jardim vai ajudar. Simplesmente finja que a corda é feita de prata e faça movimentos com a mão esquerda como se fosse serrá-la.
Gato inclinou a cabeça para trás e lançou um olhar incrédulo para Crestomanci. Crestomanci estava descomposto e pálido, e muito ansioso; certamente estava dizendo a verdade. Gato movimentou a mão esquerda contra a corda. A sensação era de aspereza. Ele disse a si mesmo que não era uma corda áspera, e sim prata. E a corda passou a dar a sensação de ser lisa. Mas serrar era um grande esforço. Gato ergueu a mão o máximo que pôde e encostou a lateral dela na corda de prata.
Clink - e a corda partiu-se.
- Obrigado - disse Crestomanci. - Lá se foram duas correntes de relógio. Mas parece que existe um feitiço forte nestas algemas. Pode tentar de novo?
A corda estava muito mais frouxa. Gato conseguiu desvencilhar-se dela com uma série de movimentos e muitos ruídos -sem ter certeza do que era a coisa em que tinha se transformado - e ajoelhou-se sobre a pedra. Crestomanci caminhou vacilante-mente até ele, as mãos ainda frouxas, presas nas algemas. Ao mesmo tempo, o Bruxo Às Suas Ordens irrompeu por entre as árvores, discutindo com a bruxa de chapéu florido.
- Estou lhe dizendo que o gato está morto. Ele caiu de uns bons 15 metros de altura.
- Mas estou lhe dizendo que eles sempre caem de pé.
- Então por que não se levantou?
Gato percebeu que não havia tempo a perder tentando imaginar coisas. Colocou ambas as mãos nas algemas e deu um puxão forte.
- Ai! - fez Crestomanci.
Mas as algemas se soltaram. Gato sentiu-se repentinamente muito feliz cora seu talento recém-descoberto. Separou as algemas e lhes disse para serem águias ferozes.
- Vão atrás dos Nostrum - ordenou.
A algema esquerda alçou vôo ferozmente, como ordenado, mas a direita ainda era uma algema de prata e caiu na relva. Gato teve que pegá-la na mão esquerda antes que ela obedecesse à sua ordem.
Gato olhou ao redor para ver o que Crestomanci estava fazendo. Ele estava parado sob a macieira, e o homenzinho tagarela chamado Bernard estava descendo a encosta aos tropeços, em sua direção. O nó da gravata domingueira de Bernard estava confortavelmente desfeito. Ele trazia um lápis e um jornal dobrado na página das palavras cruzadas.
- Encantamento, sete letras, começando com F... - murmurava.
Então ergueu os olhos e avistou Crestomanci, que estava verde, por causa do musgo da árvore. Bernard ficou a olhar para as duas correntes de relógio, para Gato, a corda e as pessoas que corriam por entre as árvores ao redor do alto da encosta que cercava a campina.
- Mas que coisa! - murmurou. - Sinto muito, não fazia idéia de que precisava de mim. Precisa dos outros também?
- E com bastante pressa - Crestomanci respondeu.
A bruxa de chapéu florido viu-o parado longe da árvore e ergueu a voz num grito de bruxa.
- Estão fugindo! Vamos pegá-los!
Bruxas, bruxos, necromantes e magos acorreram à campina, com Gwendolen entre eles, lançando feitiços apressadamente enquanto se aproximavam. Os murmúrios ecoavam pelo jardim. O cheiro de magia ficou forte. Crestomanci ergueu uma das mãos como se pedisse silêncio; em vez disso, o murmúrio cresceu e passou a soar com raiva. Mas nenhuma das pessoas que murmuravam chegou mais perto. As únicas que ainda se moviam eram William e Henry Nostrum, que a cada momento surgiam por entre as árvores, correndo velozmente e gritando em voz fraca, cada um deles sendo perseguido por uma enorme águia.
Bernard mastigava o lápis; seu rosto tinha uma aparência engelhada.
- Isto é horrível! Eles são tantos!
- Continue tentando. Estou lhe dando toda a ajuda de que posso dispor - disse Crestomanci, com um olhar ansioso para a multidão que murmurava.
As sobrancelhas hirsutas de Bernard ergueram-se.
- Ah! - fez ele.
A Srta. Bessemer estava parada acima dele, no topo da encosta. Tinha em uma das mãos o mecanismo de um relógio, e na outra, um pedaço de pano. Talvez por causa do aclive, ela aparentava ser mais alta do que de costume, e seu vestido parecia ainda mais lilás. Com um olhar ela tomou conhecimento da situação.
- Vai precisar de um contingente completo para lidar com este bando - ela comentou com Crestomanci.
Uma bruxa na multidão que murmurava (Gato achava que tinha sido Gwendolen) gritou:
- Ele está conseguindo ajuda!
O cheiro de magia intensificou-se, e os murmúrios transformaram-se numa longa trovoada. A multidão parecia estar avançando devagar, num mar ondulante de chapéus e de ternos escuros. A mão que Crestomanci mantinha erguida para detê-los começava a tremer.
- O jardim também está dando ajuda a eles - Bernard informou. - Dê o melhor de si, Bessie.
Ele voltou a mastigar o lápis, franzindo a testa com expressão de intensa concentração. A Srta. Bessemer embrulhou as peças do relógio no pedaço de pano e ficou perceptivelmente mais alta.
E, de repente, o resto da Família começou a aparecer em volta da macieira, todos no meio dos pacíficos afazeres de domingo a que estavam dedicados quando tinham sido convocados. Uma das damas mais jovens tinha entre as mãos uma meada de lã, e um dos rapazes mais jovens enrolava o fio em volta delas. Outro homem trazia um taco de sinuca, e a outra jovem segurava um pedaço de giz. A velha senhora enluvada tricotava um novo par de luvas. O Sr. Saunders apareceu ruidosamente; vinha com o dragão aninhado sob um braço, e ambos pareciam surpresos por terem sido transportados no meio de uma brincadeira.
O dragão avistou Gato. Contorcendo-se, ele se desvencilhou do braço do Sr. Saunders, atravessou depressa a relva e saltou, chacoalhando e flamejando, para os braços de Gato. Gato cambaleou sob a macieira, com aquele dragão pesado apertando seu peito e lambendo-lhe entusiasticamente o rosto com labaredas. Aquilo o teria queimado severamente se ele não tivesse se lembrado a tempo de ordenar às chamas que fossem frias.
Ele ergueu os olhos e viu Roger e Júlia aparecerem. Ambos tinham os braços estendidos rigidamente acima da cabeça, porque estavam outra vez brincando com os espelhos, e ambos ficaram atônitos.
- É o jardim! E um monte de gente! - Roger exclamou.
- O senhor nunca nos convocou antes, papai - disse Júlia.
- Isto é um caso especial - disse Crestomanci. A essa altura, ele mantinha a mão direita erguida com o auxílio da esquerda, e parecia exausto. - Preciso que busquem sua mãe. Depressa.
- Estamos conseguindo contê-los - afirmou o Sr. Saunders. Ele tentava ser encorajador, mas estava nervoso. A multidão estava se aproximando.
- Não estamos não! - retrucou a velha senhora enluvada. -Não conseguiremos fazer mais do que isto sem Millie.
Gato tinha a sensação de que todos estavam tentando trazer Millie. Achou que isso certamente ajudaria, já que precisavam tanto dela, mas não sabia o que fazer. Além disso, as labaredas do dragão eram tão quentes que ele precisava de toda a sua energia para não se queimar.
Roger e Júlia não conseguiam chamar Millie.
- Que é que está acontecendo de errado? Até hoje, sempre conseguimos! - disse Júlia.
- Os feitiços de toda essa gente estão nos impedindo - Roger explicou.
- Tentem outra vez - Crestomanci pediu. - Eu não consigo. Alguma coisa está me impedindo também.
- Você vai colaborar com a magia? - o dragão perguntou a Gato.
A essa altura, Gato estava realmente tendo problemas com o calor. Seu rosto estava vermelho e dolorido. Mas no momento em que o dragão disse isso, ele compreendeu: estava mesmo colaborando com a magia - só que estava colaborando com o lado errado, pois Gwendolen estava a usá-lo novamente. Ele estava tão acostumado a isso que mal se dava conta disso. Mas agora conseguia sentir o que ela estava fazendo: para impedir que Crestomanci buscasse Millie, ela estava usando uma parte tão grande da força dele que ele se sentia queimar.
Pela primeira vez na vida, isso deixou Gato zangado.
- Ela não tem esse direito! - declarou ao dragão.
E tomou seus poderes de volta. Foi como uma brisa fria em seu rosto.
- Gato! Pare! - gritou Gwendolen, no meio da multidão.
- Ora, cale a boca! Os poderes são meus! - Gato gritou de volta.
A seus pés, a pequena nascente tornou a jorrar do meio da relva. Gato estava olhando para ela, perguntando-se por que aquilo acontecia, quando percebeu uma espécie de alegria substituir a ansiedade da Família que o rodeava. Crestomanci estava olhando para o alto, e parecia que uma luz caía sobre seu rosto. Gato virou-se e constatou que finalmente Millie estava ali.
Imaginou que era algum truque da encosta que a fazia parecer tão alta quanto a macieira. Mas não parecia ser truque o fato de que ela também aparentasse ter a bondade do final de um longo dia. Trazia Rabeca nos braços. Rabeca estava sujo e parecia infeliz, mas ronronava.
- Sinto muito - disse Millie. - Eu teria vindo antes, se soubesse. Este pobre animal tinha caído de cima do muro do jardim, e eu só conseguia pensar nisso.
Crestomanci sorriu e baixou a mão. Pelo jeito, ele já não precisava mantê-la erguida para impedir que a multidão se aproximasse. Todos ficaram onde estavam, e o zumbido de seus murmúrios havia cessado.
- Não tem importância. Mas agora temos que pôr mãos à obra - ele disse.
Imediatamente a Família pôs-se a trabalhar. Mais tarde, Gato teria dificuldade em descrever ou recordar como foi que fizeram aquilo. Lembrava-se de estrondos e trovões, escuridão e névoa. Tinha a impressão de que Crestomanci ficara ainda mais alto do que Millie, tão alto quanto o céu - mas aquilo podia ter sido porque o dragão se mostrara extremamente assustado e Gato havia se ajoelhado sobre a relva para fazer com que ele se sentisse mais seguro. Dali, ele de vez em quando avistava os membros da Família andando de um lado para outro como gigantes. Bruxas gritavam sem parar; feiticeiros e magos rugiam e uivavam. Às vezes caía uma chuva branca com pingos que giravam, ou neve em flocos brancos girando, ou talvez apenas fumaça branca girando, girando. Gato tinha certeza de que o jardim inteiro estava girando cada vez mais rápido. Por entre os giros e a brancura surgiam necromantes a voar, ou Bernard caminhando a passos largos, ou o Sr. Saunders rolando com neve nos cabelos. Júlia passou correndo, com seu lenço nas mãos, dando nele um nó após outro. E Millie trouxera reforços consigo; Gato vislumbrou Eufêmia, o mordomo, outro criado, dois jardineiros e, com um sobressalto, viu uma vez Will Suggins avançando através da brancura naquele jardim que uivava, girava, gritava.
Tudo agora rodava tão rapidamente que Gato já não se sentia tonto. O jardim girava em ritmo regular e firme, e zumbia. Crestomanci surgiu da brancura sob a macieira e estendeu a mão para Gato. Estava molhado e acossado pelo vento, e Gato não conseguiu saber com certeza a estatura que ele tinha.
- Pode me dar um pouco do seu sangue de dragão? - Crestomanci perguntou.
- Como sabe que eu tenho isso? - Gato quis saber, sentindo-se culpado.
- Pelo cheiro - Crestomanci explicou.
Gato soltou o dragão para pegar o cadinho e o entregou.
- Pronto. Será que eu perdi uma vida por causa dele?
- Você não - Crestomanci respondeu. - Mas foi sorte não ter deixado Janet tocar nisso.
Ele entrou para o meio do redemoinho e esvaziou todo o cadinho dentro dele. Gato viu o pó espalhar-se e girar. A neblina tornou-se marrom-avermelhada e o zumbido transformou-se num terrível som de sino que doeu nos ouvidos de Gato. Ele escutava bruxas e feiticeiros uivando de horror.
- Deixe que gritem - disse Crestomanci. Ele estava recostado no pilar direito do arco. - Cada um deles agora perdeu seus poderes de bruxaria. Vão reclamar com os políticos que eles ajudaram a eleger e haverá investigações no Parlamento, mas ouso dizer que sobreviveremos a isso.
Ele ergueu a mão e fez um aceno.
Da brancura surgiram, girando, pessoas frenéticas, usando suas roupas domingueiras molhadas, que eram sugadas para o outro lado do arco em ruínas como folhas secas num vendaval. Vinham em número cada vez maior, atravessando a multidão. De toda aquela gente que girava, Crestomanci conseguiu, de alguma forma, recolher os irmãos Nostrum, e colocou-os por um instante diante de Gato e do dragão. Gato ficou encantado ao ver uma das suas águias empoleirada nos ombros de Henry Nostrum, dando bicadinhas na calva dele, e a outra esvoaçando em volta de William, bicando seu corpo nos locais mais gorduchos.
- Ordene que elas parem - disse Crestomanci.
Um pouco a contragosto, Gato ordenou que as águias parassem, e elas caíram na relva transformadas em algemas. As algemas foram sugadas juntamente com os irmãos Nostrum e atravessaram o arco girando com eles e com o que restava da multidão.
Por último veio Gwendolen. Crestomanci segurou-a também. Quando ele fez isso, a brancura dissipou-se, o zumbido cessou e o resto da Família começou a reunir-se na encosta ensolarada, um pouco ofegantes, mas não muito molhados. Gato tinha a impressão de que o jardim ainda estava girando - mas talvez sempre tivesse feito isso. Gwendolen olhava ao seu redor, horrorizada.
- Me solte! Tenho que voltar e reinar!
- Não seja tão egoísta - Crestomanci respondeu. - Você não tem o direito de ficar arrancando outras oito pessoas de um mundo para outro. Fique aqui e aprenda a fazer isso direito. E você sabe muito bem que na verdade aqueles seus cortesãos não fazem o que você manda. Só fingem que lhe obedecem.
- Não me importo! - Gwendolen gritou.
Ela ergueu a bainha das roupas douradas, chutou dos pés os sapatos pontudos e correu em direção ao arco. Crestomanci estendeu a mão para impedi-la. Gwendolen girou e jogou no rosto dele seu último punhado de sangue de dragão, e, enquanto Crestomanci era forçado a desviar o rosto e protegê-lo com a mão, Gwendolen passou depressa através do arco. Houve um estrondo poderoso; o espaço entre as colunas enegreceu. Quando todos conseguiram se recobrar, Gwendolen havia partido. Entre as colunas já não existia coisa alguma exceto a campina. Até mesmo os sapatos pontudos haviam desaparecido.
- Que foi que a criança fez? - perguntou a velha senhora de luvas, muito perturbada.
- Ela trancou-se naquele mundo - Crestomanci explicou. Estava mais perturbado ainda. - Não é isso mesmo, Gato? -perguntou.
Gato assentiu, decidido. Aquilo lhe parecia uma coisa boa; não tinha certeza de querer tornar a ver Gwendolen.
- E vejam o que isso provocou - interpôs o Sr. Saunders, indicando a encosta.
Janet descia a encosta aos tropeços, chorando, e passou por Millie. Millie entregou Rabeca a Júlia com um gesto cuidadoso e abraçou Janet. A menina soluçava fortemente. Os outros juntaram-se em torno dela. Bernard dava-lhe tapinhas nas costas e a velha senhora enluvada murmurava palavras de consolo.
Gato ficou sozinho perto das ruínas, com o dragão, que da relva lançava-lhe olhares interrogativos. Janet tinha sido feliz em seu próprio mundo. Sentia saudades da mãe e do pai. Agora era provável que estivesse presa para sempre neste mundo, e o culpado daquilo havia sido o próprio Gato. E Crestomanci chamara Gwendolen de egoísta!
- Não, na verdade não é bem assim - Janet afirmou, no centro do grupinho formado pela Família.
Ela tentou sentar-se no bloco de pedra, mas levantou-se logo, lembrando-se do modo como ele estava sendo usado quando ela o vira pela última vez.
Gato teve uma idéia muito galante: ordenou que uma cadeira de veludo azul viesse do quarto de Gwendolen e se colocasse na relva ao lado de Janet. A menina, ainda com lágrimas nos olhos, deu uma risada.
- Foi muita gentileza - disse. E fez menção de sentar-se.
- Eu pertenço ao Castelo Crestomanci! - disse a cadeira. -Eu pertenço ao Cas...
A Srta. Bessemer lançou à cadeira um olhar severo, e esta calou-se.
Janet sentou-se na cadeira, que não estava bem apoiada, por causa do solo irregular.
- Onde está Gato? - a menina perguntou ansiosamente.
- Estou aqui. Trouxe a cadeira para você.
Ele achou que era muito bondoso da parte de Janet parecer tão aliviada ao vê-lo.
- Que tal um almoço leve? - Millie perguntou à Srta. Bessemer. - Devem ser quase duas horas.
- Concordo - disse a Srta. Bessemer, e deu meia-volta com sua postura majestosa, virando-se para o mordomo.
Este assentiu. O criado e os jardineiros aproximaram-se, cambaleando ao peso de grandes cestas, parecidas com cestas de roupas sujas, que, quando as tampas foram retiradas, mostraram estar cheias de frangos, presuntos, tortas de carne, doces, frutas e vinho.
- Ah, que beleza! - Roger exclamou.
Todos se sentaram era círculo para comer. A maioria sentou-se na relva, e Gato teve a preocupação de sentar-se o mais longe possível de Will Suggins. Millie acomodou-se sobre o bloco de pedra. Crestomanci borrifou no rosto um pouco da água da nascente borbulhante - o que pareceu refrescá-lo maravilhosamente - e sentou-se com as costas apoiadas no bloco de pedra. A anciã enluvada produziu do nada um montículo que, segundo ela afirmou, era bastante confortável; e Bernard sacudiu pensativa-mente os restos da corda que Gato deixara perto da pedra. A corda transformou-se numa rede; Bernard prendeu-a entre as colunas do arco e deitou-se nela, parecendo estar confortável, mesmo experimentando a maior dificuldade para manter o equilíbrio e comer ao mesmo tempo. Rabeca ganhou uma asa de galinha e foi saboreá-la em cima da macieira, fora do caminho do dragão. O dragão sentia ciúmes de Rabeca; passou parte do tempo exalando fumaça ressentidamente para a copa da macieira e parte do tempo recostado pesadamente em Gato, a implorar pedaços de frango e de torta de carne.
- Quero lhe avisar, este é o dragão mais mimado do mundo - declarou o Sr. Saunders.
- Sou o único dragão do mundo - disse este, com ar de orgulho.
Janet ainda se sentia chorosa.
- Querida, nós compreendemos, e lamentamos muito - disse-lhe Millie.
- Posso mandá-la de volta - Crestomanci declarou. - Não vai ser muito fácil, pois o mundo de Gwendolen está fora da série, mas não pense que não pode ser feito.
- Não, não. Está tudo bem - afirmou Janet, engolindo em seco. - Pelo menos, vai ficar tudo bem quando eu me acostumar. Tinha mesmo esperanças de voltar para cá, mas é sempre um choque. Sabem...
Os olhos dela encheram-se de lágrimas. Seus lábios tremiam. Um lenço surgiu do ar e colocou-se em sua mão; Gato não sabia quem tinha feito isso, mas desejou que ele próprio tivesse tido essa idéia.
- Obrigada - disse Janet. - Sabem, mamãe e papai não notaram a diferença. - Assoou o nariz furiosamente. - Quando voltei, apareci no meu quarto, onde a outra menina, que na verdade se chama Romília, estava escrevendo em seu diário antes de ser arrastada de lá no meio de uma frase. O diário estava aberto, então eu o li. O que estava escrito era que ela tinha muito medo de que meus pais descobrissem que ela não era eu, e ficava muito feliz com sua esperteza em conseguir que eles não percebessem a troca. Estava totalmente apavorada de ser mandada de volta. No seu próprio mundo ela era órfã, e a sua vida era muito infeliz. Escreveu coisas que me deram pena. - Assumindo um tom de voz sério, ela continuou: - Ela estava correndo risco de ter problemas, tendo um diário na casa dos meus pais. Deixei nele um bilhete para ela dizendo isso, e acrescentei que, se ela precisava mesmo ter um diário, seria melhor guardá-lo era um dos meus esconderijos. E então... então fiquei ali sentada, desejando poder voltar para cá.
- Foi muita bondade sua - disse Gato.
- Foi mesmo, e você é muito bem-vinda, querida - Millie acrescentou.
- Tem certeza? - Crestomanci perguntou, dando a Janet um olhar perscrutador por cima da coxa de frango que ele estava comendo.
Janet assentiu com firmeza, embora o rosto ainda estivesse oculto no lenço.
- Você era a pessoa que mais me preocupava - Crestomanci continuou. - Infelizmente não percebi logo o que havia acontecido. Gwendolen tinha descoberto o poder do espelho, entende? E fez a mudança dentro do banheiro do quarto dela. E, de qualquer maneira, nenhum de nós tinha a menor idéia de que os poderes de Gato fossem tão fortes assim. A verdade só me ocorreu durante aquele infeliz incidente do sapo, e então, como era natural, fui imediatamente dar uma olhada no que havia acontecido a Gwendolen e às outras sete meninas. Gwendolen estava em seu elemento. E Jennifer, que vinha depois de Romília, é tão desalmada quanto Gwendolen e sempre desejou ser órfã; ao passo que a Rainha Caroline, que Gwendolen substituiu, era tão infeliz quanto Romília, e já havia fugido três vezes. A mesma coisa com as outras cinco: todas acabaram em situação muito melhor... a não ser, talvez, você.
Janet tirou o lenço do rosto e olhou para ele com grande indignação.
- Por que não podia me dizer que já sabia? Eu não teria ficado com tanto medo do senhor! E o senhor não acreditaria nas encrencas em que Gato se meteu por causa disso, e nos problemas que tive nas aulas porque não conhecia a Geografia e a História daqui, sem falar que fiquei devendo 20 libras ao Sr. Bagulho! E não precisam rir! - acrescentou, enquanto quase todos riam.
- Peço desculpas - disse Crestomanci. - Acredite, foi uma das decisões mais difíceis que já tive que fazer. Mas afinal quem é esse tal de Sr. Bagulho?
- É o Sr. Baslam - Gato explicou com relutância. - Gwendolen comprou dele um pouco de sangue de dragão e não lhe pagou.
- Ele está pedindo caro demais, é um abuso - disse Millie. - E é ilegal, você sabe.
- Amanhã vou até lá, ter uma palavrinha com ele - disse Bernard da sua rede. - Embora ele provavelmente já tenha sumido daqui. Sabe que estou de olho nele.
- Por que foi uma decisão difícil? - Janet perguntou a Crestomanci.
Crestomanci jogou a coxa de frango para o dragão e lentamente limpou os dedos num lenço que ostentava numa das pontas a letra C bordada a ouro. Aquilo lhe deu uma desculpa para virar-se na direção de Gato e fixar os olhos, de maneira vaga, no ar, acima da cabeça do menino. Como Gato a essa altura já entendia perfeitamente que quanto mais vago Crestomanci parecia a respeito de algum assunto, mais atento estava a esse assunto, não ficou surpreso quando Crestomanci declarou:
- Por causa de Gato. Ficaríamos muito mais tranqüilos se Gato pudesse permitir-se contar a alguém o que acontecera. Nós lhe demos muitas oportunidades para isso. Mas, como preferiu ficar de boca fechada, achamos que talvez ele não tivesse mesmo consciência da extensão dos seus poderes.
- E não tenho - Gato objetou.
E Janet, que estava ficando inteiramente alegre agora que lhe era permitido fazer perguntas, interpôs:
- Acho que o senhor estava totalmente errado. Nós dois ficamos tão assustados que penetramos neste jardim e quase provocamos a sua morte e a de Gato. O senhor devia ter falado.
- Talvez - Crestomanci concordou, descascando uma banana com ar pensativo. Ainda estava voltado na direção de Gato. - Normalmente nós aqui temos condições de enfrentar com facilidade pessoas como os Nostrum. Sabia que eles estavam planejando alguma coisa através de Gwendolen, e eu pensava que Gato também sabia. Peço-lhe desculpas, Gato. Eu não ficaria cora Gwendolen aqui nem por um minuto, mas precisávamos de Gato. Crestomanci tem que ser um mago com nove vidas. Ninguém mais é suficientemente poderoso para ocupar esse cargo.
- Cargo? - Janet ecoou. - Então é um título hereditário? O Sr. Saunders riu, e também ele jogou um osso de frango para o dragão.
- Ah, não! Todos aqui somos funcionários do Governo. O trabalho de Crestomanci é assegurar que este mundo não seja governado inteiramente por bruxas. As pessoas comuns também têm seus direitos. E ele tem que evitar que as bruxas saiam para mundos onde não existe tanta magia, para não criarem problemas lá. E um trabalho duro. E nós somos a equipe que o ajuda.
- E ele precisa de nós como precisa de duas pernas esquerdas - Bernard comentou, contorcendo-se na rede enquanto tentava comer um pouco de gelatina.
- Ah, deixe disso! - Crestomanci exclamou. - Hoje eu estaria perdido sem vocês.
- Eu estava pensando no modo como o senhor encontrou o próximo Crestomanci - Bernard continuou, retirando gelatina do colete com a colher. - Conseguiu fazer isso enquanto nós ficávamos apenas andando era círculos.
- Magos com nove vidas não são fáceis de encontrar - Crestomanci explicou a Janet. - Em primeiro lugar, são muito raros, e, em segundo lugar, precisam usar sua magia para que possam ser identificados. E Gato não usava a dele. Chegamos a pensar em trazer alguém de outro mundo, quando aconteceu de Gato cair nas mãos de uma clarividente. Mesmo assim só sabíamos onde ele estava, mas não quem ele era. Eu não tinha idéia de que se tratava de Eric Chant, ou de um parente meu, embora devesse ter me lembrado de que os pais dele eram primos, o que duplicava a chance de terem filhos bruxos. E devo confessar que Frank Chant me escreveu para dizer que sua filha era bruxa e parecia estar usando o irmãozinho de algum modo. Perdoe-me, Gato, mas ignorei aquela carta, porque seu pai tinha sido muito grosseiro quando me ofereci para fazer com que os filhos deles nascessem sem poderes de bruxaria.
- Ainda bem que ele foi grosseiro, sabe? - disse Bernard.
- Então as cartas eram sobre isso? - Gato perguntou.
- Não compreendo por que o senhor não contou isso a Gato. Qual foi o motivo, afinal? -Janet quis saber.
Crestomanci ainda olhava na direção de Gato com ar distraído; Gato percebia que ele estava muito atento.
- Pelo seguinte: lembre-se de que não nos conhecíamos de longa data. Gato aparenta não ter poder algum. No entanto, a irmã dele faz bruxarias muito além da sua própria capacidade, e continua fazendo, mesmo depois que seus poderes são retirados. Que é que devo pensar? Gato sabe o que ela está fazendo? Se não sabe, por que não sabe? E, se sabe, que é que está pretendendo? Quando Gwendolen foi embora e ninguém mencionou esse fato, tive a esperança de que algumas respostas emergissem. E Gato continuou sem fazer coisa alguma...
- Como assim? As favas ficaram maduras antes do tempo, e ele vivia atrapalhando os feitiços de Júlia - Janet objetou.
- É, e eu não conseguia atinar com o que estava acontecendo - Júlia comentou, um pouco encabulada.
Gato sentia-se magoado e constrangido.
- Me deixem em paz! - exclamou, levantando-se.
Todos, até mesmo Crestomanci, ficaram tensos. A única pessoa que não ficou foi Janet, e Gato não poderia esperar isso dela, pois ela não estava acostumada com magia. Ele percebeu que estava tentando não chorar, o que o deixou muito envergonhado.
- Parem de me tratar com tanta cautela! - exclamou. - Não sou idiota, nem sou bebê. Vocês todos estão com medo de mim, não estão? Não me contaram as coisas e não castigaram Gwendolen porque ficaram com medo de que eu fizesse alguma coisa terrível. E eu não fiz. Não sei fazer. Nem sabia que poderia fazer.
- Meu amor, o caso foi simplesmente que ninguém tinha certeza - Millie argumentou.
- Bom, podem ter certeza agora! - Gato respondeu. - As únicas coisas que fiz foram por engano, como vir para este jardim... e transformar Eufêmia em sapo, eu acho, mas não sabia que tinha sido eu.
- Não tem que se preocupar com isso, Eric - disse Eufêmia da encosta onde estava sentada com Will Suesins. - Foi o choque que me perturbou. E sei que os magos são diferentes de nós, bruxas. E vou conversar com Mary. Prometo.
- Aproveite e fale com Will Suggins também - Janet pediu. - Porque por vingança ele vai transformar Gato num sapo a qualquer minuto.
Eufêmia virou-se para encarar Will.
- Como é? - perguntou.
- Que história é essa, Will? - Crestomanci quis saber.
- Eu joguei um feitiço nele. Para as três horas, senhor, se ele não me enfrentasse como tigre - Will Suggins confessou, em tom apreensivo.
Crestomanci tirou do bolso um grande relógio de ouro.
- Hum... Está quase na hora. Se não se importa que eu diga, foi tolice da sua parte, Will. Agora, é melhor ir até o fim. Transforme Gato em sapo, ou você mesmo em tigre, ou as duas coisas. Não irei interferir.
Will Suggins pôs-se de pé pesadamente e postou-se de frente para Gato, com ar de que preferiria estar a vários quilômetros dali.
- Então, que a massa entre em ação - disse.
Gato ainda se sentia tão perturbado e choroso que não sabia se devia aceder a Will Suggins e transformar-se em sapo - ou, em vez disso, poderia tentar ser uma pulga. Mas tudo aquilo parecia muito bobo.
- Por que você não vira tigre? - sugeriu.
Como Gato imaginava, Will Suggins era um tigre lindo, de corpo longilíneo, esguio e de listras bem definidas. Devia ser muito pesado, mas ao andar de um lado para outro na encosta, suas pernas tinham tamanha agilidade que ele quase parecia leve. Porém o próprio Will Suggins estragou o efeito ao esfregar a pata sobre o focinho enorme num gesto de desânimo e olhar para Crestomanci com uma expressão implo-rante. Crestomanci simplesmente riu. O dragão subiu trotando a encosta para investigar aquele novo animal; Will Suggins estava tão nervoso que empinou, apoiando-se nas enormes patas traseiras, para distanciar-se dele. Aquela posição era tão ridícula para um tigre que Gato na mesma hora transformou-o de volta em Will Suggins.
- Não era de verdade? - o dragão quis saber.
- Não! - Will Suggins gritou, enxugando o rosto na manga do casaco. - Muito bem, garoto, você venceu. Como fez isso tão depressa?
- Não sei. Não tenho a menor idéia - Gato confessou, como se pedisse perdão. Voltou-se para o Sr. Saunders: - Será que vou conseguir aprender, quando o senhor me ensinar magia? -perguntou.
O Sr. Saunders parecia não saber o que responder.
- Bem... - começou.
- A resposta certa é "não", Michael - Crestomanci interveio. - Está bem claro que Magia Elementar não vai adiantar grande coisa para Gato. Eu mesmo terei que lhe ensinar, Gato, e começaremos com Teoria Avançada, eu acho. Pelo que estou vendo, parece que você começa onde a maioria das pessoas termina.
- Mas por que ele não sabia? - Janet perguntou. - Sempre fico com raiva quando não me contam as coisas, e estou especialmente com raiva agora, pois parece uma grande injustiça com Gato.
- É sim, eu concordo - Crestomanci respondeu. - Mas é alguma coisa na natureza da magia do mago, eu acho. Aconteceu comigo uma coisa igual. Eu também não conseguia fazer mágicas, não conseguia fazer coisa alguma. Mas descobriram que eu tinha nove vidas, porque as perdia com tanta rapidez que isso logo ficou óbvio, e me disseram que eu teria que ser o novo Crestomanci quando crescesse, o que me deixou completamente apavorado, porque não conseguia fazer sequer o feitiço mais simples. De modo que me mandaram para um tutor, um velho muito assustador, que, segundo diziam, iria descobrir qual era o problema. E ele olhou para mim e foi logo dizendo: "Esvazie os bolsos, Chant!". Eu fiz isso, estava assustado demais para desobedecer. Tirei dos bolsos o meu relógio de prata, um xelim e seis centavos, um amuleto de prata que minha madrinha havia me dado de presente, um alfinete de gravata de prata que eu havia me esquecido de colocar e um aparelho prateado que deveria estar usando nos dentes. E assim que fiquei sem aqueles objetos, fiz algumas coisas realmente espantosas. Pelo que me lembro, o telhado da casa do tutor sumiu!
- Então é verdade mesmo o que dizem da prata? - Janet quis saber.
- Para mim, é - Crestomanci respondeu.
- Sim, coitadinho - disse Millie, sorrindo para ele. - O dinheiro é para ele um problema muito grande. Ele só pode tocar nas notas, ou em moedas de cobre.
- E é obrigado a nos dar nossa mesada em centavos, quando Michael não tem trocado - Roger contou. - Imagine, 60 moedas no bolso!
- A parte realmente difícil é a hora das refeições - disse Millie. - Ele não consegue fazer coisa alguma com uma faca e um garfo nas mãos. E Gwendolen fazia coisas medonhas durante o jantar.
- Que burrice! Por que não usa talheres de aço inoxidável? - Janet perguntou.
Millie e Crestomanci trocaram um olhar.
- Nunca havia pensado nisso! Janet, minha querida, que bom que você vai ficar aqui! - disse Millie.
Janet olhou para Gato e riu. E Gato, embora ainda se sentisse um pouco solitário e choroso, conseguiu rir também.
Diana Wynne Jones
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