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Você já ouviu falar da grande Floresta de Burzee? Quando eu era criança, minha babá cantava uma música sobre ela. Cantava a respeito dos grandes troncos das árvores, muito próximos, com as raízes entrelaçadas debaixo da terra e os galhos entrelaçados acima dela; da camada áspera de cascas e galhos retorcidos e esquisitos; da folhagem espessa que cobria toda a floresta, a não ser onde os raios do sol encontravam uma brecha para tocar o solo com pontinhos de luz e projetar sombras estranhas e curiosas sobre os musgos, liquens e montes de folhas secas.
A Floresta de Burzee é poderosa, grandiosa e impressionante para aqueles que se escondem à sua sombra. Sair dos prados ensolarados para os labirintos dessa mata parece, a princípio, uma experiência tenebrosa, depois agradável e, por fim, repleta de delícias intermináveis.
Por centenas de anos, ela floresceu em toda a sua magnificência. Nada abalava o silêncio de seu interior, a não ser a tagarelice dos esquilos animados, o rosnado das feras selvagens e o canto dos pássaros.
No entanto, apesar de tudo, Burzee tem outros habitantes. No começo, a natureza a povoou com fadas, nuques, rils e ninfas. Enquanto a floresta existir, será o lar, o refúgio e o local de lazer desses doces imortais, que se deleitam, imperturbáveis, nas suas profundezas.
A civilização ainda não chegou a Burzee. Será que um dia chegará?
Capítulo Dois
O filho da Floresta
Era uma vez, há tanto tempo que nem nossos bisavós ouviram falar disso, uma ninfa que vivia na grande Floresta de Burzee. Seu nome era Necile. Era parente próxima da poderosa Rainha Zurline, e sua morada ficava à sombra de um enorme carvalho. Uma vez por ano, no Dia dos Brotos, quando as árvores expunham seus novos rebentos, Necile levava o Cálice Dourado de Ak aos lábios da Rainha, que bebia dele em nome da prosperidade da floresta. Por isso, você entende que essa dríade era uma ninfa de certa importância e, além disso, dizem que era muito admirada em razão de sua beleza e graça.
Quando tinha sido criada, ela mesma não saberia dizer; a Rainha Zurline não saberia dizer; o próprio grande Ak não saberia dizer. Isso havia acontecido muito tempo atrás, quando o mundo era novo e precisava haver ninfas para proteger as florestas e cuidar das necessidades das árvores jovens. Então, em algum dia esquecido, Necile ganhou vida; radiante, encantadora, sincera e esbelta como o broto que fora criada para proteger.
Seu cabelo era da cor da casca da castanha, os olhos eram azuis à luz do sol e roxos à sombra, as faces floresciam com o rosado pálido que contorna as nuvens ao pôr do sol e os lábios eram de um vermelho vívido, fartos e belos. Ela vestia o verde das folhas de carvalho; todas as ninfas da floresta vestem essa cor e não conhecem nenhuma que seja mais cobiçada. Seus pés delicados calçavam sandálias, enquanto a cabeça estava sempre descoberta, a não ser pelas madeixas sedosas.
Os deveres de Necile eram poucos e simples. Ela impedia que plantas nocivas crescessem debaixo de suas árvores e sugassem a nutrição terrosa de que suas protegidas precisavam. Ela afugentava os gadgols, cujo prazer maldoso era voar contra os troncos das árvores e feri-los, de modo que murchassem e morressem desse contato venenoso. Nas estações secas, ela carregava água dos riachos e lagoas e umedecia as raízes das suas dependentes sedentas.
Isso foi no começo. Agora, as ervas daninhas haviam aprendido a evitar as florestas onde moravam as ninfas, os repugnantes gadgols não ousavam mais se aproximar, as árvores tinham ficado velhas e resistentes e aguentavam a seca melhor do que quando eram brotos. Assim, os deveres de Necile diminuíram e o tempo ficou vagaroso, enquanto os anos seguintes se tornaram mais cansativos e monótonos do que o espírito alegre da ninfa gostaria.
Na verdade, não faltava diversão aos moradores da floresta. A cada lua cheia eles dançavam no Círculo Real da Rainha. Havia também a Festa das Nozes, o Jubileu dos Matizes de Outono, a cerimônia solene da Queda das Folhas e a folia do Dia dos Brotos. Mas esses períodos de alegria eram distantes uns dos outros, e entre eles restavam muitas horas cansativas.
As irmãs de Necile nem imaginavam que uma ninfa poderia ficar descontente. A ideia só ocorreu a ela depois de passar muitos anos pensando. Porém, quando decidiu que a vida era um tédio, perdeu a paciência com sua condição; queria fazer alguma coisa verdadeiramente interessante e dedicar seus dias a atividades com as quais, até então, nenhuma ninfa jamais sonhara. Somente a Lei da Floresta a impedia de sair em busca de aventura.
Enquanto esse estado de espírito pesava sobre a bela Necile, aconteceu de o grande Ak visitar a Floresta de Burzee e deixar as ninfas fazerem o que sempre faziam, deitando-se aos pés dele e ouvindo as palavras de sabedoria que saíam de seus lábios. Ak é o Mestre Florestal do Mundo; ele vê tudo e sabe mais do que os filhos dos homens.
Naquela noite, ele pegou a mão da Rainha, pois amava as ninfas como um pai ama os filhos, e Necile deitou-se aos pés dele junto de suas irmãs, ouvindo com toda a atenção enquanto ele falava.
— Vivemos tão felizes, minhas crianças, nas nossas clareiras na floresta — disse Ak, acariciando a barba grisalha, pensativo —, que nada sabemos da tristeza e do sofrimento que cabem àqueles pobres mortais, habitantes dos espaços abertos da Terra. Eles não são da nossa raça, é verdade, mas a compaixão bem convém a seres tão favorecidos quanto nós. Muitas vezes, ao passar pela morada de algum mortal sofredor, fico tentado a parar e banir o tormento da pobre criatura. No entanto, o sofrimento, com moderação, é o fado natural dos mortais; não cabe a nós interferir nas leis da Natureza.
— Contudo — disse a bela Rainha, virando a cabeça dourada para o Mestre Florestal —, não seria uma suposição infundada dizer que Ak ajudou esses mortais desditosos muitas vezes.
Ak sorriu e respondeu:
— Às vezes, quando são muito jovens, ou “crianças”, como os mortais as chamam, eu me detenho e os poupo da dor. Com os homens e mulheres, não ouso interferir; eles devem carregar os fardos que a natureza lhes impôs. Mas os infantes desamparados, os filhos inocentes dos homens, têm o direito de ser felizes até se tornarem adultos e capazes de enfrentar as provações da humanidade. Então, sinto que é justo auxiliá-los. Há pouco tempo, cerca de um ano atrás, encontrei quatro crianças pobres aconchegadas numa cabana de madeira, morrendo de frio aos poucos. Os pais tinham ido a uma aldeia vizinha buscar comida e deixaram o fogo aceso para aquecer os pequeninos durante sua ausência. Mas caiu uma tempestade, jogando neve no caminho, de modo que eles passaram muito tempo na estrada. Enquanto isso, o fogo se apagou e a geada chegou até os ossos das crianças.
— Pobrezinhas! — murmurou a Rainha Zurline delicadamente. — O que você fez?
— Chamei Nelko, pedindo que trouxesse lenha das minhas florestas e a soprasse até o fogo voltar a arder, aquecendo o quartinho onde estavam as crianças. Assim, elas pararam de tremer e adormeceram até os pais voltarem.
— Alegra-me que você tenha agido assim — disse a boa Rainha, sorrindo para o Mestre; e Necile, que ouvia avidamente todas as palavras, ecoou num sussurro:
— Também me alegra!
— E, nesta mesma noite — continuou Ak —, quando cheguei à beira de Burzee, ouvi um choro fraco, que julguei ser de uma criança humana. Olhei à minha volta e encontrei, perto da floresta, um bebê nu e indefeso, deitado na grama e chorando do modo mais angustiado. Perto dali, oculta na mata, estava Shiegra, a leoa, pronta a devorar o bebê na ceia.
— E o que você fez, Ak? — perguntou a Rainha, sem fôlego.
— Não muito, pois tinha pressa em me encontrar com minhas ninfas. Mas ordenei a Shiegra que se deitasse perto do bebê e lhe desse seu leite para aplacar a fome do pequenino. E mandei que espalhasse uma mensagem por toda a floresta, a todas as feras e répteis, de que não deviam ferir a criança.
— Alegra-me que tenha feito isso — disse novamente a boa Rainha, aliviada. Mas, desta vez, Necile não repetiu suas palavras, pois a ninfa, tomada por uma estranha determinação, abandonou o grupo de repente.
Logo sua forma ágil disparava pelos caminhos da floresta até chegar à beira da poderosa Burzee, onde parou, curiosa, para olhar ao redor. Ela nunca havia se aventurado até essa área, pois a Lei da Floresta pusera as ninfas em seus recantos mais profundos.
Necile sabia que estava violando a Lei, mas esse conhecimento não deteve seus pés delicados. Decidira ver com os próprios olhos esse bebê de que Ak havia falado, pois nunca tinha visto um filho do homem. Todos os imortais são adultos, não há crianças entre eles. Olhando por entre as árvores, Necile viu a criança deitada na grama. Agora, porém, dormia um sono doce, confortada pelo leite de Shiegra. Não tinha idade para saber o que significava perigo; bastava não ter fome e estava contente.
A ninfa aproximou-se do bebê com cuidado e ajoelhou-se na relva, seu longo manto de folhas de roseira espalhando-se em torno dela como uma nuvem de seda. Seu lindo semblante expressava curiosidade e surpresa, mas, acima de tudo, uma compaixão terna e feminina. O bebê era recém-nascido, gorducho e rosado. Estava completamente indefeso. Enquanto a ninfa olhava, a criança abriu os olhos, sorriu para ela e esticou dois braços rechonchudos. No instante seguinte, Necile a segurava nos braços e corria com ela pelas trilhas da floresta.
Capítulo Três
A adoção
O Mestre Florestal levantou-se de repente, franzindo as sobrancelhas.
— Há uma presença estranha na floresta — declarou.
A Rainha e suas ninfas se viraram e viram Necile parar diante delas, estreitando a criança adormecida firmemente nos braços, com um ar desafiador nos olhos azul-escuros.
E assim permaneceram por um tempo, as ninfas surpresas e consternadas, mas a fronte do Mestre Florestal foi se desanuviando enquanto fitava com atenção a bela imortal que violara deliberadamente a Lei. Então, o grande Ak, para surpresa de todos, pôs a mão delicadamente nos cabelos esvoaçantes de Necile e a beijou na testa.
— É a primeira vez, pelo que sei — disse ele, gentilmente —, que uma ninfa desafia a mim e às minhas leis, mas em meu coração não encontro nenhuma palavra para repreendê-la. Qual é o seu desejo, Necile?
— Deixe-me ficar com a criança! — respondeu ela, começando a tremer e caindo de joelhos numa súplica.
— Aqui, na Floresta de Burzee, onde a raça humana nunca entrou? — questionou Ak.
— Sim, na Floresta de Burzee — respondeu a ninfa, atrevida. — É o meu lar, e estou cansada de não ter o que fazer. Deixe-me cuidar do bebê! Veja como é fraco e indefeso. Certamente, não fará mal nenhum a Burzee nem ao Mestre Florestal do Mundo!
— Mas a Lei, criança, a Lei! — gritou Ak, severo.
— Quem faz a Lei é o Mestre Florestal — retorquiu Necile. — Se ele me pedir que cuide do bebê que ele mesmo salvou da morte, quem, em todo o mundo, poderá se opor a mim?
A Rainha Zurline, que ouvira toda essa conversa, bateu palmas alegremente com a resposta da ninfa.
— Agora ela o pegou, ó Ak! — exclamou, rindo. — Eu lhe peço, responda ao pedido de Necile.
O Mestre Florestal, como geralmente fazia ao pensar, acariciou sem pressa a barba grisalha. Depois, disse:
— Ela ficará com o bebê e eu darei a ele minha proteção. Mas aviso a todos que, assim como esta é a primeira vez que afrouxo a Lei, também será a última. Nunca mais, até o fim do Mundo, um imortal adotará um mortal. Do contrário, trocaríamos nossa existência feliz por apuros e aflições. Boa noite, minhas ninfas!
Ak se retirou e Necile correu para o seu caramanchão na mata para se regozijar com o tesouro recém-encontrado.
Capítulo Quatro
Noel
O dia seguinte encontrou no caramanchão de Necile o lugar mais procurado da floresta. As ninfas se aglomeravam ao redor dela e da criança que dormia em seu colo, com expressões de curiosidade e alegria. Também não paravam de louvar a bondade do grande Ak ao permitir que Necile ficasse com o bebê e cuidasse dele. Até a Rainha foi olhar para o rostinho inocente do bebê e segurou o punho indefeso e gorducho na própria mão.
— Como devemos chamá-lo, Necile? — perguntou ela, sorrindo. — Ele precisa de um nome, sabe?
— Seu nome será Noel — respondeu Necile —, que significa “natal”1.
— Também podemos chamá-lo de Neclaus2 — respondeu a rainha —, que significa “o pequenino de Necile”.
As ninfas bateram palmas de felicidade, e Neclaus se tornou o nome da criança, embora Necile preferisse chamá-lo de Noel; com o passar do tempo, muitas das irmãs seguiram seu exemplo.
Necile juntou o musgo mais macio de toda a floresta para Noel se deitar e fez a cama dele em seu próprio caramanchão. Comida não faltou. As ninfas vasculharam a floresta em busca da flor-de-úbere, que cresce sobre a árvore-goa e, quando se abre, fica cheia de um leite doce. E foi de bom grado que as corças de olhos meigos cederam parte do seu leite para sustentar o pequenino, ao passo que Shiegra, a leoa, vinha furtivamente ao caramanchão de Necile, deitava-se ao lado do bebê, ronronando baixinho, e o alimentava.
Assim, o pequeno desabrochava e ficava grande e robusto, dia após dia, enquanto Necile o ensinava a falar, andar e brincar.
Os pensamentos e as palavras de Noel eram doces e gentis, pois as ninfas não conheciam o mal e tinham corações puros e amorosos. Ele se tornou o predileto da floresta, já que o decreto de Ak proibira as feras e os répteis de incomodá-lo, e andava sem medo por onde quer que sua vontade o guiasse.
A notícia de que as ninfas de Burzee haviam adotado um bebê humano e que o ato fora sancionado pelo grande Ak já havia chegado aos outros imortais. Portanto, muitos foram visitar o pequenino, olhando-o com grande interesse.
Primeiro chegaram os rils, primos em primeiro grau das ninfas, ainda que muito diferentes delas. É que os rils têm a função de proteger as flores e plantas, assim como as ninfas protegem as árvores da floresta. Eles procuram em todo o mundo os alimentos necessários às raízes das plantas que começam a florescer, enquanto as cores intensas das flores já abertas se devem às tinturas que os rils põem no solo, absorvidas pelas pequenas veias nas raízes e no corpo das plantas, à medida que atingem a maturidade. Os rils são um povo atarefado, pois suas flores desabrocham e murcham o tempo todo, mas são alegres, despreocupados e muito queridos pelos outros imortais.
Em seguida vieram os nuques, cujo dever é proteger os animais do mundo, tanto os mansos quanto os selvagens. O trabalho dos nuques é difícil, já que muitos animais são incontroláveis e se rebelam contra as restrições. Mas os nuques sabem como cuidar deles, e você descobrirá que certas leis desses guardiões são obedecidas até pelas criaturas mais ferozes. As aflições dos nuques os fazem parecer velhos, abatidos e encurvados, e eles têm uma natureza um tanto rude por se associarem constantemente a criaturas selvagens; no entanto, são muito úteis para a humanidade e o mundo em geral, já que suas leis são as únicas que os animais da floresta reconhecem, além das do Mestre Florestal.
Depois chegaram as fadas, guardiãs da humanidade, que se interessaram muito pela adoção de Noel porque suas próprias leis as proibiam de se relacionar com os humanos de que cuidavam. Há casos registrados em que as fadas se revelaram aos seres humanos e até conversaram com eles, mas o que devem fazer é proteger a vida da humanidade enquanto permanecem invisíveis e desconhecidas; se favorecerem mais certas pessoas do que outras, será porque tais pessoas conquistaram essa distinção de modo justo, já que as fadas são muito corretas e imparciais. Mas a ideia de adotar um filho dos homens nunca lhes ocorrera, porque era totalmente contrária às suas leis. Então, a curiosidade das fadas era imensa ao contemplar o pequenino adotado por Necile e suas irmãs ninfas.
Noel olhou para os imortais que se reuniam em torno dele com olhos destemidos e lábios sorridentes. Risonho, ele cavalgou os ombros dos alegres rils; maroto, puxou as barbas grisalhas dos nuques de cenho franzido; confiante, descansou a cabeça de fios encaracolados no peito delicado da própria Rainha das Fadas. E os rils adoraram o som de sua risada; os nuques, sua coragem; as fadas, sua inocência.
O garoto fez amizade com todos e aprendeu a conhecer intimamente suas leis. Seus pés não pisavam nenhuma flor da floresta, de modo a não entristecer os amigáveis rils. Ele nunca se intrometia com os animais, para que seus amigos, os nuques, não se zangassem. As fadas, ele amava profundamente, mas, como nada sabia da humanidade, não sabia que era o único de sua raça com permissão para ter relações amistosas com elas.
De fato, Noel passou a achar que ele, de todas as pessoas da floresta, era o único sem par nem semelhante. Para ele, a floresta era o mundo. Não tinha ideia de que existiam milhões de criaturas humanas labutando e lutando.
E vivia feliz e contente.
Capítulo Cinco
O Mestre Florestal
Os anos passam rapidamente em Burzee, pois as ninfas não precisam prestar a menor atenção ao tempo. Nem mesmo os séculos alteram tais criaturas delicadas; permanecem iguais para todo o sempre, imortais e imutáveis.
Noel, porém, sendo mortal, crescia dia após dia rumo à idade adulta. Necile ficou apreensiva ao descobrir que ele estava grande demais para se deitar no colo dela e desejava alimentos diferentes do leite. Suas pernas robustas o levavam até o coração de Burzee, onde ele juntava provisões de nozes e bagas, além de várias raízes doces e saudáveis, que assentavam melhor no seu estômago que as flores-de-úbere. Ele procurava o caramanchão de Necile com cada vez menos frequência, até que, finalmente, adquiriu o costume de voltar para lá apenas para dormir.
A ninfa, que passara a amá-lo profundamente, ficou intrigada ao entender a natureza transformada de seu tutelado e, sem perceber, alterou seu próprio modo de viver para se adaptar aos caprichos dele. Ela o seguia prontamente pelas trilhas da floresta, assim como muitas de suas irmãs ninfas, explicando, enquanto andavam, todos os mistérios da mata gigantesca, os hábitos e a natureza dos seres vivos que viviam à sua sombra.
O pequeno Noel passou a compreender a língua das feras, mas nunca conseguiu entender o temperamento zangado e rabugento delas. Só os esquilos, camundongos e coelhos pareciam ter uma natureza alegre e bem-disposta; ainda assim, o menino ria quando a pantera rugia e acariciava o pelo lustroso do urso enquanto a criatura rosnava e arreganhava os dentes, ameaçadora. Noel sabia muito bem que os rugidos e rosnados não eram para ele. Então, de que importavam?
Ele cantava as canções das abelhas, recitava a poesia das flores e contava a história de todas as corujas vigilantes em Burzee. Ajudava os rils a alimentarem suas plantas e os nuques a manterem a ordem entre os animais. Os pequenos imortais o consideravam privilegiado, sendo especialmente protegido pela Rainha Zurline e suas ninfas e favorecido pelo grande Ak.
Um dia, o Mestre Florestal voltou à Floresta de Burzee. Ele havia visitado todas as suas florestas pelo mundo, que eram muitas e amplas.
Ak entrou na clareira onde a Rainha e suas ninfas estavam reunidas para cumprimentá-lo e só então lembrou-se da criança que Necile havia adotado com sua permissão. Ele encontrou, sentado muito à vontade no círculo de lindas imortais, um jovem robusto e de ombros largos que, quando de pé, chegava à altura dos ombros do próprio Mestre.
Ak parou, franzindo a testa em silêncio, para fixar o olhar perspicaz em Noel. Os olhos límpidos encontraram os do Mestre com firmeza, e este deu um suspiro de alívio ao notar a plácida profundidade de tais olhos e ler o coração valoroso e inocente do jovem. No entanto, quando Ak sentou-se ao lado da bela Rainha e o cálice dourado, cheio de um raro néctar, passou de boca em boca, o Mestre Florestal caiu num silêncio estranho e reservado, acariciando a barba muitas vezes com gestos pensativos.
De manhã, ele chamou Noel gentilmente para conversar, dizendo:
— Diga adeus, por um tempo, a Necile e suas irmãs, pois você deve me acompanhar em minha jornada pelo mundo.
A empreitada agradou Noel, que estava muito ciente da honra que era fazer companhia ao Mestre Florestal do Mundo. Mas Necile chorou pela primeira vez na vida e agarrou-se ao pescoço do garoto como se não suportasse deixá-lo partir. A ninfa que fora mãe desse jovem robusto ainda era tão delicada, tão encantadora e bonita quanto no dia em que ousara enfrentar Ak com o bebê junto ao peito, e seu amor era igualmente grande. Ak viu os dois abraçados, parecendo irmão e irmã, e novamente adotou um olhar pensativo.
Capítulo Seis
Noel descobre a humanidade
Levando Noel para uma pequena clareira na floresta, o Mestre disse:
— Ponha a mão no meu cinto e segure-se com firmeza enquanto viajamos pelo ar, pois agora vamos circundar o mundo e observar as moradas dos homens de quem você descende.
Essas palavras causaram admiração em Noel, pois até agora ele se considerava o único de sua espécie na Terra; contudo, em silêncio, agarrou firmemente o cinto do grande Ak, o espanto impedindo-o de falar.
Então, a vasta Floresta de Burzee pareceu se afastar de seus pés, e o jovem se viu cruzando rapidamente pelo ar a uma grande altura.
Dentro em pouco, havia torres debaixo deles, enquanto edifícios de muitas formas e cores encontravam seu olhar. Era uma cidade dos homens, e Ak, parando para descer, levou Noel ao interior de seus muros. Disse o Mestre:
— Enquanto estiver segurando meu cinto, permanecerá invisível para toda a humanidade, embora possa ver tudo com clareza. Soltá-lo será o mesmo que se separar de mim e de seu lar em Burzee para sempre.
Uma das primeiras leis da floresta é a obediência, e Noel não pensou em desobedecer à vontade do Mestre. Agarrou o cinto com ainda mais firmeza e continuou invisível.
Depois disso, a cada momento que passava na cidade, o assombro do jovem crescia. Ele, que imaginara ter sido criado diferente de todos os outros, agora encontrava a terra repleta de criaturas da sua espécie.
— Na verdade, os imortais são poucos, mas os mortais são muitos — disse Ak.
Noel olhava avidamente para seus semelhantes. Havia rostos tristes, alegres e despreocupados, agradáveis, ansiosos e gentis, todos misturados numa desordem intrigante. Uns se dedicavam a tarefas tediosas; outros exibiam uma presunção insolente; uns eram pensativos e sérios, enquanto outros pareciam felizes e contentes. Homens de muitas naturezas havia ali, como em toda parte, e Noel viu muitas coisas que o agradaram e muitas que o entristeceram.
Mais do que tudo, notou as crianças — primeiro com curiosidade, depois com ansiedade e, por fim, com carinho. Pequeninos esfarrapados rolavam na poeira das ruas, brincando com sucatas e pedrinhas. Outras crianças, com trajes vistosos, descansavam em almofadas e comiam amêndoas drageadas. Para Noel, no entanto, os filhos dos ricos não pareciam mais felizes do que aqueles que brincavam com terra e pedras.
— A infância é a época de maior contentamento do homem — explicou Ak, seguindo os pensamentos do jovem. — É durante esses anos de alegria inocente que os pequeninos estão mais livres de preocupações.
— Diga, por que nem todas essas crianças vivem da mesma maneira? — perguntou Noel.
— Porque nascem tanto na cabana quanto no palácio — respondeu o Mestre. — A diferença na riqueza dos pais determina o fado da criança. Algumas recebem todos os cuidados e vestem seda e linho delicado; outras são negligenciadas e cobertas de trapos.
— Mas todas parecem ser igualmente bonitas e boas — disse Noel, pensativo.
— Enquanto são crianças, sim — concordou Ak. — A alegria delas é estar vivas, e não param para pensar. Com o passar dos anos, o destino da humanidade as domina, e elas acham que precisam lutar e se preocupar, trabalhar e temer para ganhar a riqueza que é tão cara aos corações dos homens. Essas coisas não são conhecidas na floresta onde você foi criado.
Por um momento, Noel ficou em silêncio. Depois, perguntou:
— Por que fui criado na floresta, entre aqueles que não são da minha raça?
Com voz gentil, Ak contou-lhe a história de sua primeira infância: como havia sido abandonado à beira da floresta e deixado como presa para os animais selvagens e como a amorosa ninfa Necile o resgatara e criara até a mocidade sob a proteção dos imortais.
— Mas não sou como eles — disse Noel, pensativo.
— Você não é como eles — concordou o Mestre. — A ninfa que foi sua mãe parece, agora, sua irmã; mais tarde, quando você estiver velho e grisalho, ela parecerá sua filha. Mais um breve período e você será apenas uma lembrança, enquanto ela permanecerá Necile.
— Então, se o homem deve perecer, por que nasce?
— Tudo perece, a não ser o próprio mundo e seus guardiões. Contudo, enquanto a vida durar, tudo na terra terá sua função. Os sábios procuram modos de serem úteis ao mundo, pois aqueles que são úteis viverão outra vez.
Noel não conseguiu entender completamente essas palavras, mas foi tomado pelo desejo de ser útil a seus companheiros; enquanto retomavam a jornada, ficou sério e pensativo.
Os dois visitaram muitas habitações de homens em várias partes do mundo, observando os agricultores trabalharem nos campos, os guerreiros se exaurirem em batalhas cruéis e os comerciantes trocarem seus produtos por pedacinhos de metal branco e amarelo. E em todos os lugares os olhos de Noel procuravam as crianças com amor e compaixão, pois a noção de sua própria infância desamparada era marcante em seu íntimo; tendo sido socorrido pela ninfa gentil, ele ansiava por ajudar os pequeninos inocentes de sua raça.
Dia após dia, o Mestre Florestal e seu pupilo atravessavam a Terra, Ak falando apenas raramente com o jovem que lhe segurava o cinto com firmeza, mas guiando-o por todos os lugares onde pudesse conhecer a vida dos seres humanos.
Por fim, voltaram à grande e antiga Floresta de Burzee, onde o Mestre deixou Noel no meio do círculo das ninfas, entre as quais a bela Necile o esperava, ansiosa.
Agora, a testa do grande Ak estava serena e tranquila, mas a de Noel se enrugara, carregada de pensamentos profundos. Necile suspirou ao notar a mudança em seu filho adotivo, que até então havia sido alegre e sorridente, e ocorreu-lhe que a vida do menino nunca mais seria como fora antes daquela jornada memorável com o Mestre.
Capítulo Sete
Noel deixa a floresta
Quando a boa Rainha Zurline tocou o cálice de ouro com seus belos lábios e o objeto passou pelo círculo de ninfas em homenagem ao retorno dos viajantes, o Mestre Florestal do Mundo, que ainda não havia falado, olhou para Noel e disse:
— E então?
O garoto entendeu e se levantou devagar ao lado de Necile. Uma única vez seus olhos passaram pelo círculo familiar de ninfas, de quem se lembrava como afetuosas camaradas, mas as lágrimas afloraram contra sua vontade, obscurecendo a visão; por isso, ele cravou o olhar no Mestre e disse:
— Eu era ignorante até que o grande Ak, em sua bondade, me ensinasse quem e o que eu sou. Vocês, que vivem com tanta doçura em seus caramanchões da floresta, sempre belas, jovens e inocentes, não são companhias adequadas para um filho da humanidade. Pois eu olhei para o homem e o vi condenado a viver por um breve período na Terra, trabalhar arduamente pelas coisas de que precisa, murchar até a velhice e depois morrer como as folhas no outono. No entanto, todo homem tem uma missão, que é deixar o mundo, de algum modo, melhor do que o encontrou. Sou da raça dos homens, e o fado do homem é o meu. Por seus ternos cuidados com o pobre bebê abandonado que vocês adotaram, bem como por sua companhia amorosa durante a minha infância, meu coração sempre transbordará de gratidão. E minha mãe adotiva — ele parou e beijou a testa branca de Necile — vou amar e valorizar enquanto a vida durar. Mas devo deixá-la, cumprir meu papel na luta sem fim à qual a humanidade está condenada e viver a vida à minha maneira.
— O que vai fazer? — perguntou a Rainha, muito séria.
— Devo me dedicar a cuidar dos filhos da humanidade e tentar fazê-los felizes — respondeu ele. — Como seu próprio carinho para com um bebê me trouxe felicidade e força, é justo e correto que eu dedique minha vida à felicidade de outros bebês. Assim, a memória da amorosa ninfa Necile será plantada no coração de milhares de minha raça por muitos e muitos anos, e seu gesto gentil será recontado em canções e histórias enquanto o mundo existir. Falei bem, ó Mestre?
— Falou bem — respondeu Ak, levantando-se e continuando: — Contudo, há uma coisa que não se deve esquecer. Tendo sido adotado como filho da floresta e companheiro de brincadeiras das ninfas, você ganhou uma distinção que o separa para sempre da sua espécie. Portanto, quando for para o mundo dos homens, continuará sob a proteção da floresta, e os poderes de que agora desfruta permanecerão com você para ajudá-lo em suas obras. Diante de qualquer necessidade, pode convocar as ninfas, os rils, os nuques e as fadas, e eles o servirão com alegria. Assim digo eu, o Mestre Florestal do Mundo, e minha Palavra é a Lei!
Noel olhou para Ak com gratidão.
— Isso me tornará poderoso entre os homens — respondeu ele. — Protegido por amizades tão gentis, talvez eu consiga fazer milhares de crianças felizes. Vou me esforçar ao máximo para cumprir meu dever e sei que o povo da floresta me dará seu amparo e socorro.
— Assim faremos! — disse a Rainha das Fadas, sinceramente.
— Assim faremos! — gritaram os alegres rils, rindo.
— Assim faremos! — berraram os nuques encurvados, carrancudos.
— Assim faremos! — exclamaram as doces ninfas, orgulhosas. Mas Necile não disse nada. Apenas estreitou Noel nos braços e o beijou com ternura.
— O mundo é grande — continuou o garoto, voltando-se mais uma vez para seus amigos leais —, mas os homens estão por toda parte. Começarei meu trabalho perto de meus amigos, para que, se encontrar o infortúnio, possa vir à Floresta de Burzee pedir conselhos ou ajuda.
Com isso, lançou um olhar amoroso a todos e se retirou. Não havia necessidade de se despedir, pois, para ele, a vida doce e selvagem na floresta terminara. Saiu corajosamente ao encontro do seu destino — o destino da raça humana — e da necessidade de se preocupar e trabalhar.
Mas Ak, que conhecia o coração do garoto, foi misericordioso e guiou seus passos.
Ao atravessar Burzee até a fronteira leste, Noel chegou ao Vale Risonho de Ho-ho-ho. Colinas verdes espalhavam-se dos dois lados, e um riacho serpenteava no meio delas até o fim do vale e além. Às suas costas estava a floresta sombria; do outro lado do vale, uma vasta planície. Os olhos do jovem, que até agora refletiam seus pensamentos sérios, ficaram mais radiantes enquanto ele estava ali, em silêncio, olhando para o Vale Risonho. De repente, seus olhos cintilaram como as estrelas numa noite clara, se alegraram e se arregalaram.
A seus pés, as prímulas e margaridas sorriam para ele, amistosas; a brisa assobiava contente ao passar e agitava os cachos caídos na sua testa; o riacho ria alegremente ao saltar sobre as pedrinhas e correr pelas curvas verdes de suas margens; as abelhas entoavam canções doces enquanto voavam do dente-de-leão para o lírio; os besouros zumbiam felizes no capim alto, e os raios do sol reluziam lindamente por todo o campo.
— Aqui será meu lar! — exclamou Noel, abrindo os braços como se quisesse abraçar o vale.
Isso foi muitos e muitos anos atrás. Desde então, o Vale Risonho é o lar de Noel, e é lá que ele mora até hoje.
Capítulo Um
O Vale Risonho
Quando Noel chegou ao vale, só havia o capim, o riacho, as flores silvestres, as abelhas e as borboletas. Se quisesse morar lá e viver à maneira dos homens, precisaria de uma casa. No começo, isso o deixou confuso. Mas, enquanto ficava ali, sorrindo para o sol, viu surgir ao seu lado o velho Nelko, servo do Mestre Florestal. Nelko carregava um machado firme e largo com uma lâmina que brilhava como prata polida. Ele o colocou na mão do jovem e desapareceu sem dizer uma palavra.
Noel entendeu e, voltando-se para a floresta, escolheu vários troncos caídos, dos quais começou a tirar os galhos mortos. Ele não cortaria uma árvore viva. Sua vida entre as ninfas que protegiam a floresta lhe ensinara que uma árvore viva é sagrada, sendo uma criatura dotada de sentimentos. Com as árvores mortas e caídas, era outra história. Elas haviam cumprido seu destino como integrantes ativas da comunidade da floresta; agora, era adequado que seus restos mortais atendessem às necessidades do homem.
O machado afundava mais nos troncos a cada golpe. A ferramenta parecia ter força própria, e Noel só precisava brandi-la e guiá-la.
Quando as sombras começaram a rastejar por sobre as montanhas verdes para passar a noite no vale, o jovem já havia cortado muitos troncos em partes iguais e formas corretas para construir uma casa como as que ele vira, habitadas pelas classes mais pobres dos homens. Então, resolvendo esperar o dia seguinte antes de tentar encaixar as toras nos lugares, Noel comeu algumas raízes doces que sabia muito bem como encontrar, bebeu deliciado do riacho risonho e deitou-se para dormir na grama, tratando de encontrar um lugar onde não houvesse flores, para que o peso de seu corpo não as esmagasse.
Enquanto ele dormia e inalava o perfume do vale magnífico, o Espírito da Felicidade entrou em seu coração e expulsou todo o terror, o receio e a apreensão. Nunca mais o rosto de Noel ficaria nublado de ansiedade; nunca mais as provações da vida pesariam como um fardo em suas costas. O Vale Risonho o tomou para si.
Quem dera todos nós vivêssemos naquele lugar maravilhoso! Mas aí, talvez, o lugar ficasse superlotado. Durante muito tempo, o vale esperou um morador. Foi o acaso que levou o jovem Noel a morar nesse vale feliz? Ou podemos adivinhar que seus amigos atenciosos, os imortais, dirigiram seus passos quando ele saiu de Burzee em busca de um lar no grande mundo?
O certo é que, enquanto a lua espiava por cima da montanha e cobria com seus raios o corpo do estranho adormecido, o Vale Risonho ficou repleto das silhuetas esquisitas e encurvadas dos amigáveis nuques. Eles não disseram nem uma palavra, mas trabalharam com habilidade e rapidez. Os troncos que Noel havia aparado com seu machado brilhante foram levados para um local ao lado do riacho e encaixados uns nos outros, e, durante a noite, uma moradia resistente e espaçosa se ergueu.
As aves vieram voar no vale ao amanhecer, e suas canções, tão raras na mata fechada, despertaram o estranho. Ele esfregou as pálpebras, afastando as teias do sono, e olhou em volta. Seu olhar encontrou a casa.
— Devo agradecer aos nuques por isso — disse ele. Então, foi até sua residência e entrou pela porta. Uma grande sala o encarava, com uma lareira no final e uma mesa com um banco no meio. Ao lado da lareira havia um armário. Depois dele, outra porta. Noel também entrou nela e viu um quarto menor com uma cama encostada na parede e um banquinho perto de uma mesinha. Na cama, muitas camadas de musgo seco trazido da floresta.
— Ora, é um palácio! — exclamou o sorridente Noel. — Devo agradecer novamente aos bondosos nuques por conhecerem as necessidades do homem e por todo o trabalho que fizeram por mim.
Ele saiu de sua nova casa com a sensação feliz de que não estava completamente só no mundo, embora tivesse escolhido abandonar a vida na floresta. A verdadeira amizade não se acaba assim, e os imortais estão por toda parte.
Ao chegar ao riacho, bebeu a água pura e sentou-se na margem para rir das cabriolas brincalhonas das ondulações, que se empurravam contra as pedras ou se juntavam desesperadamente para ver qual seria a primeira a alcançar a curva adiante. E, enquanto as ondas corriam, ele ouviu a música que cantavam:
“Corre, empurra, cola adiante!
Nenhuma onda vacilante —
Todas encantadas.
Cada gota, deliciada,
É feliz na brincadeira.
Canta o canto da ribeira!”
Em seguida, Noel procurou raízes para comer, enquanto os lírios erguiam os olhinhos para ele, rindo e ciciando sua canção delicada:
“E florescem lindamente
Tantas flores na sua beira!
Quanto aroma ao nos abrir,
Nossas cores a exibir!”
Noel começou a rir quando ouviu aquelas coisinhas expressarem sua felicidade, meneando graciosamente os caules. Mas outro som chegou a seus ouvidos quando os raios do sol, gentis, pousaram em seu rosto e sussurraram:
“Nossos raios, que alegria,
Vêm ao vale todo dia
P’ra felicidade trazer
A todos que vêm cá viver!”
— É verdade! — gritou Noel em resposta. — Há felicidade e alegria em todas as coisas aqui. O Vale Risonho é um lugar de paz e boa vontade.
Ele passou o dia conversando com as formigas e os besouros, trocando piadas com as borboletas descontraídas. À noite, deitou-se na cama de musgo macio e dormiu profundamente.
Nessa hora, chegaram as fadas, alegres mas silenciosas, trazendo caçarolas, tigelas, pratos e panelas e todas as ferramentas necessárias para preparar comida e confortar um mortal. Guardaram tudo no armário e em cima da lareira, deixando, por fim, um conjunto resistente de roupas de lã no banquinho ao lado da cama.
Quando Noel acordou, esfregou os olhos mais uma vez, riu e agradeceu em voz alta às fadas e ao Mestre Florestal que as enviara. Com grande alegria, examinou todas as suas novas posses, tentando imaginar para que algumas serviam. Mas, nos dias em que ele se agarrava ao cinto do grande Ak e visitava as cidades dos homens, seus olhos notaram todos os modos e costumes da raça à qual pertencia; assim, adivinhou, pelos presentes trazidos pelas fadas, que o Mestre esperava que ele vivesse, dali em diante, à maneira de seus semelhantes.
— O que significa que devo arar a terra e plantar milho — refletiu. — Assim, quando o inverno chegar, terei armazenado comida de sobra.
Mas, olhando o vale verdejante, viu que abrir sulcos na terra destruiria centenas de flores bonitas e indefesas, bem como milhares de folhas macias de capim. E isso ele não suportaria fazer.
Por isso, abriu os braços e emitiu um assobio peculiar que havia aprendido na floresta; depois, gritou:
— Rils das flores do campo... venham a mim!
Na mesma hora, uma dezena de rils pequenos e esquisitos apareceu agachada no chão diante dele, meneando a cabeça numa alegre saudação.
Noel olhou sério para eles e disse:
— Seus irmãos da floresta eu conheço e amo há muitos anos. Também amarei a vocês depois que nos tornarmos amigos. Para mim, as leis dos rils, sejam da floresta ou do campo, são sagradas. Nunca destruí intencionalmente nenhuma das flores de que vocês cuidam com tanto apreço, mas preciso plantar grãos para usar como alimento durante o frio inverno; como posso fazer isso sem matar as criaturinhas que cantam com tanta graça suas flores perfumadas?
O Ril Amarelo, que cuida das florezinhas desta cor, respondeu:
— Não se aflija, amigo Noel. O grande Ak falou-nos de você. Há um trabalho melhor para você do que cultivar comida e, ainda que Ak não tenha domínio sobre nós, pois não somos da floresta, ficamos felizes em cuidar de alguém que ele ama. Viva, portanto, para fazer o bom trabalho que está decidido a empreender. Nós, os rils do campo, supriremos sua necessidade de alimento.
Depois desse discurso, os rils desapareceram, e Noel afastou da mente a ideia de cultivar a terra.
A seguir, quando voltou para sua casa, havia uma tigela de leite fresco na mesa, pão no armário e um prato cheio de mel ao lado. Uma linda cesta de maçãs bem vermelhas e uvas recém-colhidas também o esperavam. Ele gritou para os rils invisíveis:
— Obrigado, meus amigos! — E logo começou a comer.
Depois disso, quando tinha fome, bastava olhar dentro do armário para encontrar boas provisões trazidas pelos bondosos rils. E os nuques cortaram e empilharam muita lenha para sua lareira. E as fadas levaram cobertores e roupas quentes.
Assim começou sua vida no Vale Risonho, com a graça e a amizade dos imortais para atender a todas as suas necessidades.
Capítulo Dois
Como Noel fez o primeiro brinquedo
Em verdade, nosso Noel era sábio, pois sua boa sorte apenas fortaleceu sua determinação de fazer amizade com os pequeninos de sua própria raça. Sabia que os imortais aprovavam seu plano; do contrário, não o teriam favorecido tanto assim.
Então, logo começou a fazer contato com a humanidade. Atravessou o vale até a planície além dele e cruzou a planície em várias direções para alcançar as moradas dos homens. As casas ficavam sozinhas ou em agrupamentos chamados de aldeias e, em quase todas as residências, fossem grandes ou pequenas, Noel encontrou crianças.
Os pequenos logo passaram a conhecer seu rosto alegre e risonho e a expressão gentil de seus olhos brilhantes; os pais, embora sentissem certo desdém pelo rapaz por gostar mais das crianças que dos adultos, ficaram contentes porque as meninas e os meninos encontraram um companheiro de brincadeiras que parecia disposto a entretê-los.
Assim, as crianças brincavam e jogavam com Noel; os meninos cavalgavam seus ombros, as meninas se aninhavam em seus braços fortes e os bebês se agarravam com carinho às suas canelas. Aonde quer que o jovem estivesse, as risadas infantis o seguiam; e, para entender isso melhor, você precisa saber que as crianças eram muito negligenciadas naquela época e recebiam pouca atenção dos pais, de modo que, para elas, foi uma maravilha que um homem tão bom quanto Noel se dedicasse a fazê-las felizes. E as que o conheciam eram muito felizes mesmo, pode ter certeza. Os rostos tristes dos pequenos pobres e maltratados se iluminaram pela primeira vez; o paraplégico sorriu, apesar de seu infortúnio; os enfermos deixavam de gemer e os aflitos de chorar quando seu amigo alegre se aproximava para confortá-los.
Só no belo palácio do Lorde Lerd e no castelo carrancudo do Barão Braun a entrada de Noel foi barrada. Havia crianças nesses dois lugares, mas os empregados do palácio fecharam a porta na cara do jovem desconhecido, e o feroz Barão ameaçou enforcá-lo num gancho de ferro na muralha do castelo. Com isso, Noel suspirou e voltou para as casas dos pobres, onde era bem-vindo.
Agora, o inverno estava chegando.
As flores viveram suas vidas, murcharam e desapareceram, os besouros enterraram-se bem fundo na terra quente, as borboletas abandonaram os prados e a voz do riacho ficou rouca, como se ele estivesse resfriado.
Um dia, flocos de neve tomaram todo o ar no Vale Risonho, dançando impetuosamente em direção à terra e cobrindo o telhado da casa de Noel com um manto branco imaculado.
À noite, Jack Frost bateu à porta.
— Entre! — gritou Noel.
— Saia! — respondeu Jack. — Você está com o fogo aceso aí dentro.
Noel saiu. Ele conhecera Jack Frost na floresta e gostava do malandro bem-humorado, apesar de não confiar nele.
— Esta noite vou me divertir como nunca, Noel! — gritou o duende. — Esse frio não é glorioso? Vou beliscar dezenas de narizes, orelhas e dedos antes do amanhecer!
— Se você me ama, Jack, poupe as crianças — implorou Noel.
— Por quê? — perguntou o outro, surpreso.
— Elas são delicadas e indefesas.
— Mas eu adoro beliscar os delicados! Os mais velhos são duros, meus dedos ficam cansados.
— Os jovens são fracos e não conseguem lutar contra você — disse Noel.
— Verdade — concordou Jack, pensativo. — Bom, não vou beliscar nenhuma criança hoje à noite... se eu conseguir resistir à tentação — prometeu. — Boa noite, Noel!
— Boa noite.
O jovem entrou e fechou a porta, e Jack Frost correu para a aldeia mais próxima.
Noel jogou lenha no fogo, que ardeu intensamente. Ao lado da lareira estava Piscadinha, uma gata grandona que Peter, o nuque, havia lhe dado. Seu pelo era macio e lustroso, e ela ronronava canções intermináveis de satisfação.
— Não voltarei a ver as crianças tão cedo — disse Noel à gata, que fez a gentileza de parar sua música para ouvir. — O inverno está chegando, a neve ficará alta por muitos dias e não poderei brincar com meus amiguinhos.
A gata levantou uma pata e coçou o nariz, pensativa, mas não respondeu. Enquanto o fogo ardesse e Noel estivesse sentado na poltrona diante da lareira, ela não se importaria com o clima.
Assim, passaram-se muitos dias e muitas noites longas. O armário estava sempre cheio, mas Noel ficou cansado de não ter nada para fazer além de alimentar o fogo com a lenha da grande pilha que os nuques haviam levado para ele.
Uma noite, ele pegou um pedaço de madeira e começou a cortá-lo com sua faca afiada. No começo, não pensou em nada, a não ser em ocupar seu tempo, e assobiou e cantou para a gata enquanto esculpia a madeira. A bichana ficou sentada, vendo-o trabalhar e ouvindo o assobio alegre de seu mestre, que ela adorava escutar ainda mais do que suas próprias canções ronronantes.
Noel olhava para a gata e depois para a madeira que estava talhando, até que o objeto começou a ganhar forma, e a forma era a mesma da cabeça de uma gata, com duas orelhas empinadas.
Noel parou de assobiar para rir, e ele e a gata olharam para a imagem de madeira, surpresos. Então, ele esculpiu os olhos e o nariz e arredondou a parte inferior da cabeça para que ela repousasse sobre o pescoço.
Agora, Piscadinha mal sabia o que pensar; ficou sentada, muito rígida, como se observasse com desconfiança o que viria a seguir.
Noel sabia. A cabeça esculpida lhe deu uma ideia. Ele manejou a faca com cuidado e habilidade, formando lentamente o corpo da gata, que ele fez sentada nos quartos traseiros como a gata de verdade, com o rabo enrolado nas patas da frente.
A obra lhe custou muito tempo, mas a noite era longa e ele não tinha nada melhor para fazer. Finalmente, deu uma gargalhada, encantado com o resultado de seu esforço, e colocou a gata de madeira, agora completa, em cima da lareira, de frente para a gata de verdade.
Piscadinha olhou para sua própria imagem, arrepiou os pelos com raiva e proferiu um miado desafiador. A gata de madeira não lhe deu atenção, e Noel, achando muita graça, riu novamente.
Então, Piscadinha avançou em direção à imagem de madeira para olhá-la de perto e cheirá-la em detalhes: os olhos e o nariz revelaram que a criatura era de madeira, apesar de sua aparência natural; então, a bichana retomou seu lugar e seu ronronar, mas, enquanto lavava o rosto com a patinha macia, lançou mais de um olhar de admiração a seu mestre inteligente. Talvez tenha sentido a mesma satisfação que temos quando ficamos bem numa fotografia.
Noel também estava feliz com sua obra, sem saber exatamente o porquê. Na verdade, tinha mesmo uma ótima razão para se felicitar naquela noite, e todas as crianças do mundo deveriam ter se juntado a ele nessa alegria, pois Noel havia feito seu primeiro brinquedo.
Capítulo Três
Como os rils coloriram os brinquedos
Agora, um silêncio pairava no Vale Risonho. A neve o cobria como uma colcha branca, e tufos de flocos felpudos voavam diante da morada onde Noel estava sentado, atiçando o fogo. O riacho borbulhava por debaixo de uma grossa camada de gelo, e todas as plantas e insetos vivos se aninhavam junto da Mãe Terra para se aquecer. A face da lua estava oculta por nuvens escuras, e o vento, deliciando-se na atividade invernal, empurrava e girava os flocos de neve em tantas direções que eles não tinham chance de cair no chão.
Noel ouviu o vento assobiar e gritar, brincalhão, e agradeceu mais uma vez aos bons nuques por seu abrigo confortável. Piscadinha lavava o rosto preguiçosamente e olhava para as brasas da lareira com ar de contentamento absoluto. A gata de brinquedo ficava sentada de frente para a gata de verdade e olhava adiante, como é próprio das gatas de brinquedo.
De repente, Noel ouviu um barulho diferente da voz do vento. Soava mais como um lamento de angústia e desespero.
Ele se levantou e prestou atenção, mas o vento ganhou ímpeto, sacudiu a porta e chacoalhou as janelas para distraí-lo. Ele esperou até o vento se cansar e, ainda prestando atenção, ouviu mais uma vez o grito estridente e aflito.
Vestiu rapidamente o casaco, puxou o gorro para proteger os olhos e abriu a porta. O vento entrou e espalhou as cinzas por cima da lareira, ao mesmo tempo em que soprava o pelo de Piscadinha com tanta fúria que ela correu para debaixo da mesa, assustada. A porta se fechou e Noel ficou do lado de fora, olhando ansioso para a escuridão.
O vento riu e ralhou com ele e tentou empurrá-lo, mas ele continuou firme. Os flocos indefesos esbarraram em seus olhos e atrapalharam a visão, mas ele os afastou e olhou outra vez. Havia neve por toda parte, branca e cintilante. Cobria a terra e tomava o ar.
O choro não se repetiu.
Noel se virou para entrar, mas o vento o pegou de surpresa, ele tropeçou e caiu sobre um monte de neve. Sua mão mergulhou no monte e tocou em alguma coisa que não era neve. Ele segurou na coisa e, puxando-a com cuidado em sua direção, descobriu que era uma criança. Na mesma hora, pegou-a nos braços e levou-a para dentro de casa.
O vento o seguiu porta adentro, mas Noel a fechou sem demora. Deixou a criança resgatada diante da lareira e, espanando a neve, descobriu que era Weekum, um menininho que morava numa casa fora do vale.
Noel envolveu o pequeno num cobertor quente e esfregou suas mãozinhas e pés para aquecê-los. Em pouco tempo, a criança abriu os olhos e, vendo onde estava, sorriu, feliz. Noel esquentou leite e deu ao garoto, bem devagar, enquanto a gata os observava com uma curiosidade contida. Finalmente, o pequeno andarilho, aninhado nos braços do amigo, suspirou e adormeceu, e Noel, cheio de alegria por tê-lo encontrado, o manteve nos braços enquanto dormia.
O vento, que não encontrou mais travessuras para fazer, subiu a montanha e seguiu para o norte. Isso deu aos flocos de neve cansados tempo para se acomodarem na terra, e a imobilidade voltou ao vale.
O menino, tendo dormido bem nos braços do amigo, abriu os olhos e sentou-se. Então, como fazem as crianças, olhou ao redor e viu tudo o que a sala continha.
— Sua gata é bonita, Noel — disse ele, finalmente. — Posso segurar?
Mas a bichana se opôs e fugiu.
— A outra gata não foge — continuou Weekum. — Posso segurar essa?
Noel colocou o brinquedo nos braços do menino, que o abraçou com carinho e beijou a ponta da orelha de madeira.
— Como você se perdeu na tempestade, Weekum? — perguntou Noel.
— Eu estava indo para a casa da minha tia e me perdi — respondeu ele.
— Teve medo?
— Estava frio e a neve entrou nos meus olhos, por isso não consegui enxergar. Então, continuei até cair na neve, sem saber onde estava, e o vento soprou os flocos por cima de mim e me cobriu.
Noel afagou gentilmente a cabeça do menino, que olhou para ele e sorriu.
— Agora estou bem — disse Weekum.
— Está, sim — respondeu Noel, feliz. — Agora vou colocá-lo na cama, que está quentinha, e você deve dormir até amanhã, quando o levarei de volta para sua mãe.
— A gata pode dormir comigo?
— Pode, se você quiser.
— Que gata boazinha! — Weekum sorriu enquanto Noel arrumava os cobertores em volta dele; logo o pequeno adormeceu com o brinquedo de madeira nos braços.
Quando a manhã chegou, o sol reivindicou o Vale Risonho e o inundou com seus raios; então, Noel se preparou para levar a criança perdida de volta para a mãe.
— Noel, posso ficar com a gata? — perguntou Weekum. — Ela é mais boazinha do que uma gata de verdade. Não foge, não arranha e não morde. Posso ficar com ela?
— Pode, sim — respondeu Noel, satisfeito porque o brinquedo que havia feito alegrava a criança. Ele envolveu o menino e a gata de madeira numa capa quente, apoiando o embrulho nos próprios ombros largos; depois, saiu marchando pelos caminhos e montes de neve do vale e atravessou a planície até a pobre choupana onde a mãe de Weekum morava.
— Olha, mamãe! — gritou o menino, assim que entraram. — Ganhei uma gata!
A boa mulher chorou lágrimas de alegria pela restituição de seu querido e agradeceu muitas vezes a Noel pelo ato gentil. Ele voltou de coração alegre e acalentado para sua casa no vale.
Naquela noite, disse a Piscadinha:
— Acredito que as crianças vão amar os gatos de madeira quase tanto quanto amam os gatos de verdade, e não podem machucá-los puxando as caudas e orelhas. Vou fazer mais um.
E esse foi o começo de sua grande obra.
O gato seguinte ficou mais bem-feito que o primeiro. Enquanto Noel o esculpia, o Ril Amarelo entrou para visitá-lo e ficou tão encantado com a habilidade do homem que saiu e, ao voltar, trouxe vários de seus companheiros.
O Ril Vermelho, o Ril Preto, o Ril Verde, o Ril Azul e o Ril Amarelo sentaram-se em roda no chão, enquanto Noel esculpia e assobiava e a gata de madeira tomava forma.
— Se ela pudesse ter a mesma cor que a gata de verdade, ninguém perceberia a diferença — comentou o Ril Amarelo, pensativo.
— Os pequeninos talvez não percebessem — respondeu Noel, feliz com a ideia.
— Vou lhe trazer um pouco do vermelho com o qual pinto minhas rosas e tulipas — gritou o Ril Vermelho. — Assim, você pode pintar os lábios e a língua da gata de vermelho.
— Trarei um pouco do verde com o qual dou cor a meu capim e minhas folhas — disse o Ril Verde. — Assim, você pode colorir os olhos da gata de verde.
— Vão precisar de um pouco de amarelo também — comentou o Ril Amarelo. — Vou pegar um pouco do amarelo que uso para colorir meus ranúnculos e virgáureas.
— A gata de verdade é preta — disse o Ril Preto. — Trarei um pouco do preto que uso para colorir os olhos dos meus amores-perfeitos. Assim, você pode pintar sua gata de madeira de preto.
— Vejo que você prendeu uma fita azul no pescoço de Piscadinha — acrescentou o Ril Azul. — Vou buscar a cor que uso para pintar os jacintos e miosótis. Assim, você pode esculpir uma fita de madeira no pescoço da gata de brinquedo e pintá-la de azul.
Os rils desapareceram e, quando Noel terminou de esculpir a forma da gata, todos já estavam de volta com as tintas e os pincéis.
Fizeram Piscadinha sentar-se em cima da mesa para que Noel pintasse a gata de brinquedo com as cores certas, e, quando a obra foi concluída, os rils declararam que estava exatamente igual a uma gata viva.
— Está mesmo, em todos os aspectos — acrescentou o Ril Vermelho.
Piscadinha ficou um pouco ofendida com a atenção dispensada ao brinquedo e, por não ser capaz de aprovar a gata de mentira, foi até o canto da lareira e sentou-se ali com ar de dignidade.
Mas Noel ficou encantado e, logo que amanheceu, saiu a andar pela neve, atravessando o vale e a planície, até chegar a uma aldeia. Ali, numa cabana humilde perto da muralha do belo palácio do Lorde Lerd, havia uma menininha deitada num berço miserável, gemendo de dor.
Noel se aproximou da criança, a beijou e confortou. Depois, tirou a gata de brinquedo de dentro do casaco, onde a escondera, e a colocou nos braços da menina.
Ah, como Noel se sentiu recompensado pelo trabalho e pela longa caminhada quando viu os olhos da pequena brilharem de alegria! Ela abraçou a gatinha com força, mantendo-a junto do peito como se fosse uma pedra preciosa, e não a soltou nem por um instante. A febre baixou, a dor diminuiu e ela caiu num sono doce e revigorante.
Noel riu e voltou para casa, assobiando e cantando por todo o caminho. Nunca tinha sido tão feliz quanto nesse dia.
Quando entrou em casa, encontrou Shiegra, a leoa, esperando por ele. Shiegra amava Noel desde a infância do jovem e, enquanto ele morava na floresta, ela o visitava com frequência no caramanchão de Necile. Depois que Noel fora morar no Vale Risonho, Shiegra ficara solitária e inquieta; agora, havia enfrentado os montes de neve, que todos os leões detestam, para vê-lo outra vez. Shiegra estava envelhecendo e seus dentes começavam a cair, enquanto os pelos na ponta das orelhas e da cauda haviam mudado de castanho-amarelado para branco.
Noel a encontrou deitada diante da lareira e a abraçou amorosamente. A gata havia se retirado para um canto distante. Não queria fazer companhia a Shiegra.
Noel contou à velha amiga sobre as gatas que havia feito e a alegria que deram a Weekum e à menininha doente. Shiegra não sabia muito sobre crianças; na verdade, se conhecesse uma delas, seria difícil não a devorar. Mas estava interessada no novo trabalho de Noel, e disse:
— Essas imagens são muito agradáveis. Mas não entendo por que você faz gatas, que são animais tão insignificantes. Imagino, agora que estou aqui, que você fará a imagem de uma leoa, a Rainha de todas as feras. Aí, sim, as crianças ficarão felizes... e, ao mesmo tempo, protegidas!
Noel gostou da sugestão. Pegou um pedaço de madeira e afiou a faca, enquanto Shiegra se agachava diante da lareira a seus pés. Com muito cuidado, ele esculpiu a cabeça à semelhança da leoa, até os dois dentes ferozes que se curvavam por cima do lábio inferior e as linhas profundas e franzidas acima dos olhos grandes.
Quando terminou, ele disse:
— Ficou com uma aparência terrível, Shiegra.
— Então a imagem é idêntica a mim — respondeu ela —, porque sou mesmo terrível para todos que não são meus amigos.
Agora, Noel esculpia o corpo com a cauda longa atrás. A imagem da leoa agachada era muito realista.
— Sua obra me agrada — disse Shiegra, bocejando e esticando o corpo graciosamente. — Agora, vou vê-lo pintar.
Ele tirou do armário as tintas que os rils haviam trazido e coloriu a imagem para se assemelhar mais à verdadeira Shiegra.
A leoa pôs as patas grandes e almofadadas na beira da mesa e se levantou para examinar atentamente o brinquedo que era seu retrato.
— Você é muito habilidoso! — disse ela, orgulhosa. — As crianças vão gostar mais disso do que das gatas, tenho certeza.
Então, rosnando para Piscadinha, que arqueou as costas, aterrorizada, e choramingou de medo, Shiegra saiu em direção à floresta onde morava com passos imponentes.
Capítulo Quatro
Como a pequena Mayrie se assustou
Agora, o inverno havia terminado e todo o Vale Risonho estava cheio de exaltação e alegria. O riacho estava tão feliz por se ver livre outra vez que borbulhava com mais ímpeto do que nunca e corria com tanta imprudência contra as rochas que jorrava respingos no ar. O capim empurrava suas folhinhas pontudas para cima, atravessando a camada de caules mortos onde se escondera da neve, mas as flores ainda estavam tímidas demais para se exibir, embora os rils alimentassem suas raízes. O sol estava extraordinariamente bem-humorado e punha seus raios a dançar por todo o vale.
Uma noite, Noel estava jantando quando ouviu uma batida tímida à porta.
— Entre! — gritou ele.
Ninguém entrou, mas, depois de um momento, veio outra batida.
Noel levantou-se e abriu a porta. Diante dele estava uma menininha segurando a mão do irmão menor.
— Cê é o Noel? — perguntou ela, acanhada.
— Sou, sim, minha querida! — respondeu ele, rindo, enquanto pegava as duas crianças nos braços e as beijava. — Sejam muito bem-vindos! Chegaram bem a tempo de jantar.
Ele os levou para a mesa e os alimentou com leite fresco e bolinhos de nozes. Quando já estavam satisfeitos, ele perguntou:
— Por que fizeram essa jornada tão longa para me visitar?
— Eu queio uma cata! — respondeu a pequena Mayrie, e seu irmão, que ainda não havia aprendido a falar muitas palavras, abanou a cabeça e exclamou como um eco:
— Cata!
— Ah, vocês querem minhas gatas de brinquedo, não é? — respondeu Noel, muito satisfeito ao descobrir que suas criações eram tão apreciadas pelas crianças.
Os pequenos visitantes assentiram, ansiosos.
— Infelizmente, só tenho uma gata pronta, pois ontem levei duas para as crianças na cidade. E a que tenho será entregue a seu irmão, Mayrie, porque ele é o menor, mas a próxima que eu fizer será para você.
O rosto do menino se iluminou com um sorriso quando ele recebeu o brinquedo precioso que Noel lhe oferecia, mas a pequena Mayrie escondeu o rosto com o braço e começou a soluçar, angustiada.
— E-e-eu queio uma c-c-cata acoia! — lastimou-se ela.
Por um momento, sua decepção deixou Noel muito infeliz. Então, de repente, ele se lembrou de Shiegra.
— Não chore, querida! — pediu com carinho. — Tenho um brinquedo muito melhor que uma gata, e será seu.
Ele foi ao armário e puxou a imagem da leoa, que deixou na mesa diante de Mayrie.
A menina tirou o braço do rosto, espiou os dentes ferozes e os olhos brilhantes da fera, deu um grito apavorado e fugiu da casa. O menino a seguiu, também gritando com todas as suas forças. Em seu medo, até deixou cair a preciosa gata.
Por um instante, Noel ficou imóvel, perplexo e surpreso. Depois, jogou a imagem de Shiegra no armário e correu atrás das crianças, pedindo que não tivessem medo.
A pequena Mayrie parou de correr e o irmãozinho se agarrou à saia dela, mas os dois lançaram olhares amedrontados à casa até Noel garantir muitas vezes que a fera estava trancada no armário.
— Mas por que vocês tiveram tanto medo ao vê-la? — perguntou. — É só um brinquedo para brincar!
— É má! — respondeu Mayrie, decidida. — E-e... é muito hoível, não é boa que nem cata!
— Pode ser que você tenha razão — disse Noel, pensativo. — Mas, se voltarem para casa comigo, logo farei uma linda gatinha para você.
Eles voltaram a entrar na casa, receosos, mas com fé nas palavras do amigo. Depois, tiveram a alegria de ver Noel esculpir uma gata num pedaço de madeira e pintá-la com cores naturais. Ele não demorou muito para fazer isso, pois tinha se tornado hábil em esculpir com a faca, e Mayrie adorou seu brinquedo ainda mais porque o viu ser feito.
Depois que os pequenos visitantes foram para casa, Noel passou muito tempo pensando. Então, decidiu que criaturas ferozes como sua amiga, a leoa, não deveriam servir como modelos para seus brinquedos.
— Não devo fazer nada para assustar os queridos pequeninos — refletiu. — Embora eu conheça Shiegra muito bem e não tenha medo dela, é natural que as crianças sintam pavor ao olhar para sua imagem. Daqui por diante, escolherei animais de comportamento meigo, como esquilos, coelhos, cervos e cordeiros para inspirar meus brinquedos, pois os pequeninos vão amá-los, não os temer.
Ele começou a trabalhar no mesmo dia e, antes de dormir, já havia feito um coelho e um cordeiro de madeira. Não eram tão realistas quanto as gatas, porque foram esculpidos a partir da memória, enquanto Piscadinha sentava-se bem quieta para Noel olhar enquanto trabalhava.
Mas os novos brinquedos agradaram as crianças, e a fama das criações de Noel se espalhou velozmente por todas as choupanas da planície e da aldeia. Ele sempre os levava como presentes para as crianças doentes ou acamadas, mas as que eram fortes iam até a casa no vale pedir os brinquedos; assim, logo apareceu uma trilha que ia da planície até a porta da casa do fabricante de brinquedos.
Primeiro vieram as crianças que brincavam com Noel antes de ele começar a fazer brinquedos. Estas ficaram bem abastecidas, pode ter certeza. Depois, as crianças que moravam mais longe ouviram falar das imagens maravilhosas e foram até o vale a fim de obtê-las. Todos os pequeninos eram bem-vindos e nenhum deles jamais foi embora de mãos vazias.
Essa demanda por suas obras mantinha Noel muito ocupado, mas ele ficou bem feliz em saber a alegria que dava a tantas crianças queridas. Seus amigos, os imortais, ficaram satisfeitos com seu sucesso e o apoiaram energicamente.
Os nuques escolhiam para ele pedaços de madeira macia, para que sua faca não perdesse o fio ao cortá-los; os rils o mantinham abastecido com tintas de todas as cores e pincéis feitos com as folhas mais finas de capim; as fadas descobriram que o artesão precisava de serras, formões, martelos e pregos, além de facas, e trouxeram um bom sortimento de tais ferramentas.
Noel logo transformou sua sala de estar numa oficina maravilhosa. Construiu uma bancada diante da janela e arrumou suas ferramentas e tintas de modo a alcançar todas enquanto estivesse sentado no banquinho. E, ao terminar brinquedo após brinquedo para encantar o coração das crianças, ele se via tão contente e feliz que não conseguia deixar de cantar, rir e assobiar o dia inteiro.
— É porque eu moro no Vale Risonho, onde tudo ri! — dizia Noel.
Mas não era esse o motivo.
Capítulo Cinco
Como Bessie Bacana chegou ao Vale Risonho
Um dia, quando Noel sentou-se diante da porta para aproveitar o sol enquanto esculpia a cabeça e os chifres de um cervo de brinquedo, ele olhou para cima e viu um grupo cintilante de cavaleiros chegando ao vale.
Quando se aproximaram, ele viu que o grupo consistia em vários soldados, paramentados com armaduras reluzentes, lanças e machados de guerra. À frente deles vinha a pequena Bessie Bacana, a linda filha do orgulhoso Lorde Lerd, que uma vez expulsara Noel de seu palácio. Seu palafrém era absolutamente branco, com rédeas cobertas de joias cintilantes e sela ornamentada com um tecido de ouro bordado. Os soldados a acompanhavam para protegê-la do mal quando ela viajava.
Noel ficou surpreso, mas continuou a esculpir e cantar até que o grupo parasse diante dele. Então a menininha se inclinou sobre o pescoço do palafrém e disse:
— Por favor, sr. Noel, quero um brinquedo!
Sua voz era tão suplicante que Noel se levantou na mesma hora e ficou ao lado dela, mas não sabia ao certo como responder ao pedido.
— Você é filha de um lorde rico e tem tudo o que deseja — disse ele.
— Menos brinquedos — respondeu Bessie. — Não existe nenhum brinquedo em todo o mundo, a não ser os seus.
— E eu os faço para as crianças pobres, que não têm mais nada com que se divertir.
— As crianças pobres gostam mais de brinquedos do que as ricas? — perguntou Bessie.
— Acho que não — respondeu Noel, pensativo.
— É culpa minha se meu pai é lorde? Devo viver sem os lindos brinquedos que anseio ter porque existem crianças mais pobres que eu? — inquiriu ela, muito séria.
— Receio que sim, querida, porque os pobres não têm mais nada com que se divertir. Você tem seu pônei para cavalgar, os servos para atendê-la e todo o conforto que o dinheiro puder comprar.
— Mas eu quero brinquedos! — gritou Bessie, enxugando as lágrimas que apareceram em seus olhos. — Se não puder tê-los, serei muito infeliz.
Noel ficou apreensivo, pois a tristeza de Bessie o fez se lembrar de que seu desejo era fazer todas as crianças felizes, sem considerar a condição de cada uma. Contudo, enquanto tantas crianças pobres clamassem por seus brinquedos, ele não suportaria dar um a Bessie Bacana, que já tinha muitas coisas para fazê-la feliz.
— Escute, minha filha — disse ele em tom gentil. — Todos os brinquedos que estou fazendo agora foram prometidos para outras crianças. Mas o próximo será seu, já que seu coração anseia por isso. Venha me visitar novamente daqui a dois dias e o brinquedo estará pronto para você.
Bessie gritou de alegria e, inclinando-se sobre o pescoço do pônei, beijou Noel na testa. Depois, chamando os soldados, ela partiu alegremente e deixou Noel retomar seu trabalho.
Se tiver que prover as crianças ricas assim como as pobres, não terei nem um momento livre durante o ano inteiro!, pensou ele. Mas é certo que eu dê aos ricos? Devo ir visitar Necile e conversar com ela sobre essa questão.
Quando terminou o cervo de brinquedo, muito parecido com um cervo que conhecera nas clareiras da floresta, Noel entrou em Burzee e foi até o caramanchão da bela ninfa Necile, que fora sua mãe adotiva.
Ela o cumprimentou terna e amorosamente, ouvindo com interesse a história da visita de Bessie Bacana.
— Agora, diga: devo dar brinquedos às crianças ricas? — perguntou ele.
— Nós, da floresta, não sabemos nada sobre riqueza — respondeu Necile. — Parece-me que uma criança é igual à outra, uma vez que todas são feitas do mesmo barro, e que as riquezas são como uma roupa, que se pode vestir e tirar sem modificar a criança. Mas as fadas são as guardiãs da humanidade e conhecem as crianças mortais melhor do que eu. Vamos chamar a Rainha das Fadas.
Foi o que fizeram, e a Rainha das Fadas sentou-se ao lado deles para ouvir Noel relatar suas razões para pensar que as crianças ricas poderiam viver bem sem os brinquedos que ele fazia, e também o que a ninfa havia dito.
— Necile tem razão — declarou a Rainha. — Seja rica ou pobre, é natural que uma criança deseje brinquedos bonitos. O coração da rica Bessie pode sofrer tanto quanto o da pobre Mayrie; ela pode estar igualmente solitária e descontente ou igualmente alegre e feliz. Penso, amigo Noel, que é seu dever alegrar todos os pequeninos, quer vivam em palácios ou em choupanas.
— Suas palavras são sábias, bela Rainha, e meu coração me diz que são tão justas quanto sábias — respondeu Noel. — De agora em diante, todas as crianças poderão pedir meus serviços.
Então, curvou-se diante da graciosa fada e, beijando os lábios vermelhos de Necile, voltou ao seu vale.
No riacho, parou para beber e, depois, sentou-se na margem e pegou um pedaço de argila úmida nas mãos enquanto pensava em que tipo de brinquedo deveria fazer para Bessie Bacana. Só percebeu que seus dedos trabalhavam a argila quando, olhando para baixo, descobriu ter moldado inconscientemente uma cabeça que se assemelhava um tanto à da ninfa Necile!
Ficou muito interessado. Recolhendo mais argila da margem, ele a levou para casa. Lá, com a ajuda da faca e de um pedaço de madeira, conseguiu moldar a argila na imagem de uma ninfa de brinquedo. Com movimentos habilidosos, formou cabelos longos e ondulados na cabeça e cobriu o corpo com um vestido de folhas de carvalho, enquanto os dois pés que saíam de baixo do vestido calçavam sandálias.
Mas a argila era mole, e Noel descobriu que precisava manuseá-la com cuidado para não arruinar seu belo trabalho.
Talvez os raios do sol extraiam a umidade e façam a argila endurecer, pensou. Então, apoiou a imagem numa tábua e a deixou ao sol.
Feito isso, Noel sentou-se no banquinho e começou a pintar o cervo de brinquedo; em pouco tempo, estava tão interessado nesse trabalho que esqueceu completamente a ninfa de argila. Mas, na manhã seguinte, ao vê-la em cima da tábua, ele descobriu que o sol havia cozido a argila até esta adquirir a dureza da pedra, ficando firme o bastante para ser manuseada com segurança.
Assim, Noel pintou a ninfa com muito cuidado à semelhança de Necile, dando-lhe olhos azul-escuros, dentes brancos, lábios rosados e cabelos castanho-avermelhados. O vestido era verde como as folhas do carvalho. Quando a tinta secou, o próprio Noel ficou encantado com o novo brinquedo. Claro que essa ninfa não era tão linda quanto a verdadeira Necile, mas, considerando o material de que era feita, Noel a achou muito bonita.
Quando Bessie voltou no dia seguinte, montada em seu palafrém branco, Noel a presenteou com o novo brinquedo. Os olhos da menina brilharam mais do que nunca enquanto examinava a bela imagem, e ela a amou no mesmo instante e a segurou junto ao peito, como as mães fazem com os filhos.
— Qual é o nome dela, Noel? — perguntou Bessie.
Noel sabia que as ninfas não gostavam que os mortais falassem delas; portanto, não podia contar a Bessie que ela havia ganhado uma imagem de Necile. Mas, como era um brinquedo novo, ele procurou na mente um novo nome e decidiu que a primeira palavra em que pensou serviria muito bem:
— Chama-se boneca, minha querida.
— Vou chamar a boneca de meu bebê e vou cuidar muito bem dela, assim como a babá cuida de mim — respondeu Bessie, beijando-a com carinho. — Muito obrigada, Noel! Seu presente me deixou mais feliz do que nunca!
E assim ela foi embora, abraçando o brinquedo, e Noel, vendo sua alegria, pensou em fazer outra boneca, melhor e mais natural que a primeira.
Pegou mais argila no riacho e, lembrando que Bessie havia chamado a boneca de bebê, decidiu moldar essa à imagem de um bebê. Não foi uma tarefa difícil para o artesão inteligente, e logo a boneca em forma de bebê estava deitada na tábua, secando ao sol. Com a argila que restou, Noel começou a fazer uma imagem da própria Bessie Bacana.
Isso não foi tão fácil, pois ele descobriu que não conseguia fazer a roupa de seda da filha do lorde com argila comum. Então, chamou as fadas para ajudá-lo e pediu que trouxessem sedas coloridas para fazer um vestido de verdade para a boneca de argila. As fadas logo partiram e, antes do anoitecer, voltaram com uma quantidade generosa de sedas, rendas e fios dourados.
Agora, Noel estava ansioso para completar a nova boneca e, em vez de esperar o sol do dia seguinte, colocou a imagem de argila na lareira e a cobriu com brasas incandescentes. De manhã, quando tirou a boneca das cinzas, ela havia cozido tão bem quanto se tivesse passado um dia inteiro no sol quente.
Nosso Noel se tornou costureiro, além de fabricante de brinquedos. Ele cortou a seda lilás e a costurou na forma de um lindo vestido que se encaixava perfeitamente na boneca. Acrescentou uma gola de renda ao pescoço e calçou sapatos de seda rosa nos pés dela. A cor natural da argila cozida era cinza-claro, mas Noel pintou o rosto para se assemelhar a uma cor de pele clara e deu à boneca os olhos castanhos, os cabelos dourados e as bochechas rosadas de Bessie.
Era mesmo uma coisa linda de se ver e certamente traria alegria a um coração infantil. Enquanto Noel a admirava, ouviu uma batida à porta, e a pequena Mayrie entrou. Estava triste e com os olhos vermelhos de tanto chorar.
— Ora, o que a aflige, minha querida? — perguntou Noel, abraçando a criança.
— E-e-eu... quebei mia cata! — soluçou Mayrie.
— Como? — perguntou Noel, os olhos cintilando.
— E-eu... deubei a cata e quebei o iabo deia; e... e... depois deubei e quebei a oieia deia! E... e... eia ficou toda quebada!
Noel riu.
— Não fique triste, Mayrie querida — disse ele. — O que acha de ficar com esta nova boneca, em vez de uma gata?
Mayrie olhou para a boneca com vestido de seda, e seus olhos se arregalaram de espanto.
— Ah, Noel! — gritou ela, batendo palmas, entusiasmada. — Eu pode ficá com essa moça biita?
— Você gostou? — perguntou ele.
— Adoiei! — respondeu ela. — É meió que cata!
— Então leve-a, querida, e tome cuidado para não quebrá-la.
Mayrie pegou a boneca com uma alegria quase reverente e não conseguia parar de sorrir quando tomou o caminho de volta para casa.
Capítulo Seis
A maldade dos óguas
Agora preciso lhe falar dos óguas, aquela raça terrível de criaturas que causou tantos problemas ao nosso bom Noel e quase conseguiu roubar das crianças do mundo seu primeiro e melhor amigo.
Não gosto de citar os óguas, mas eles fazem parte desta história e não podem ser ignorados.
Não eram mortais nem imortais; estavam no meio do caminho entre essas classes de seres. Os óguas eram invisíveis para as pessoas comuns, mas não para os imortais. Podiam passar rapidamente pelo ar de uma parte do mundo para outra e tinham o poder de influenciar a mente humana a fazer as maldades que quisessem.
Eram de estatura gigantesca e tinham o rosto rude e carrancudo, mostrando abertamente seu ódio por toda a humanidade. Não tinham consciência e se deliciavam apenas com más ações.
Seus lares ficavam em lugares montanhosos e rochosos, de onde saíam para cumprir seus propósitos malignos. Entre eles, o que conseguisse pensar no ato mais horrível para todos praticarem era sempre eleito o Rei Ógua, e toda a raça obedecia às suas ordens.
Às vezes, essas criaturas viviam até os cem anos de idade, mas geralmente brigavam com tanta ferocidade entre si que muitas eram destruídas em combate e, quando morriam, era mesmo o seu fim. Os mortais não tinham meios de combatê-los; os imortais estremeciam quando alguém falava dos óguas e sempre os evitavam. E assim eles prosperaram por muitos anos sem oposição e fizeram muito mal.
Fico feliz em garantir a você que essas criaturas vis pereceram e desapareceram da terra há muito tempo; mas, na época em que Noel fazia seus primeiros brinquedos, eram uma tribo numerosa e poderosa.
Uma das principais ocupações dos óguas era inspirar ímpetos raivosos no coração das crianças, para que discutissem e brigassem entre si. Eles tentavam os meninos a comerem frutas ainda verdes e se deliciavam com a dor de estômago dos pequenos; instavam as meninas a desobedecerem aos pais e depois riam quando as crianças eram castigadas. Não sei o que faz com que uma criança seja travessa hoje em dia, mas, quando os óguas viviam na terra, as travessas geralmente estavam sob sua influência.
Ora, quando Noel começou a fazer as crianças felizes, ele as tirou do alcance dos óguas, pois quem tinha brinquedos tão bons quanto aqueles que ele dava não queria obedecer aos maus pensamentos que os óguas tentavam pôr em sua mente.
Portanto, num ano em que a tribo maldosa elegeu um novo rei, escolheu um ógua que propôs afastar Noel das crianças e destruí-lo.
— Como vocês sabem, há menos crianças travessas no mundo desde que Noel chegou ao Vale Risonho e começou a fabricar brinquedos — disse o novo Rei, agachado em cima de uma pedra, olhando para os rostos carrancudos de seu povo. — Ora, Bessie Bacana não teimou e não bateu o pé nem uma vez este mês, e o irmão de Mayrie não bateu no rosto da irmã nem jogou o cachorrinho na água fria! O pequeno Weekum tomou banho ontem à noite sem gritar nem espernear, porque sua mãe havia prometido que ele poderia dormir com a gata de brinquedo! Esse estado das coisas é inaceitável para qualquer ógua, e o único modo de dirigirmos os atos impertinentes das crianças é afastar delas esse tal de Noel.
— Ótimo! Isso mesmo! — gritaram os grandes óguas, em coro, e aplaudiram o discurso do Rei.
— Mas o que faremos com ele? — perguntou uma das criaturas.
— Tenho um plano — respondeu o Rei maldoso; e qual era esse plano, você descobrirá em breve.
Naquela noite, Noel foi dormir muito feliz, pois havia completado nada menos que quatro belos brinquedos durante o dia e tinha certeza de que suas obras fariam a alegria de quatro criancinhas. Mas, enquanto ele dormia, o bando de óguas invisíveis cercou sua cama, o amarrou com cordas resistentes e o levou para o meio de uma floresta sombria na terra distante de Ethop, onde o deitaram e deixaram.
Quando amanheceu, Noel se viu a milhares de quilômetros de qualquer ser humano, prisioneiro numa selva desconhecida.
Do galho de uma árvore acima dele balançava uma enorme píton, um daqueles répteis capazes de se enrolar num homem até esmagar seus ossos. A alguns metros de distância estava uma pantera selvagem, agachada, com os olhos vermelhos e ferozes fixos no indefeso Noel. Uma daquelas aranhas monstruosas e pintadas, cuja picada é a morte, rastejava furtivamente na direção dele sobre as folhas caídas, que murchavam e escureciam ao toque da criatura.
Mas Noel fora criado em Burzee e não teve medo.
— Venham a mim, ó nuques da floresta! — gritou, dando o assobio baixo e peculiar que os nuques conhecem bem.
A pantera, que estava prestes a saltar sobre a vítima, virou-se e fugiu. A píton se jogou na folhagem da árvore e desapareceu. A aranha parou de repente e se escondeu debaixo de um tronco podre.
Noel não teve tempo de notá-las, pois estava cercado por um bando de nuques de feições severas. Sua aparência era ainda mais encurvada e deformada do que a dos nuques que ele já vira.
— Quem é você que nos chama? — inquiriu um deles, com voz rouca.
— Sou amigo de seus irmãos em Burzee — respondeu Noel. — Fui trazido por meus inimigos, os óguas, que me deixaram aqui para sofrer um fim terrível. Mas agora imploro que me ajudem a me libertar e me mandem de volta para casa.
— Você conhece o sinal? — questionou outro nuque.
— Sim!
Eles cortaram as cordas e, com os braços livres, Noel fez o sinal secreto dos nuques. Depois, ajudaram-no a se levantar e trouxeram comida e bebida para fortalecê-lo.
— Nossos irmãos de Burzee têm amizades esquisitas — resmungou um ancião nuque cuja barba esvoaçante era completamente branca. — Mas quem conhece nosso sinal secreto tem direito à nossa ajuda, seja quem for. Feche os olhos, estranho, e nós o levaremos para casa. Onde devemos procurá-la?
— Fica no Vale Risonho — respondeu Noel, fechando os olhos.
— Existe apenas um Vale Risonho no mundo, então, não há como errar — comentou o nuque.
Enquanto falava, o som de sua voz pareceu sumir aos poucos. Noel abriu os olhos para ver o que havia causado essa mudança e, para sua surpresa, se viu sentado no banco diante da própria casa, com o Vale Risonho esparramado à frente.
Naquele dia, visitou as ninfas da floresta e contou sua aventura à Rainha Zurline e a Necile.
— Os óguas se tornaram seus inimigos — disse a encantadora Rainha, pensativa. — Devemos fazer tudo o que pudermos para protegê-lo do poder deles.
— Foi covardia amarrá-lo enquanto ele dormia — afirmou Necile, indignada.
— Os maus são sempre covardes, mas o sono de nosso amigo não será mais perturbado.
A própria Rainha foi à casa de Noel naquela noite e aplicou seu Selo em todas as portas e janelas para impedir a entrada dos óguas. E debaixo do Selo da Rainha Zurline foram dispostos o Selo das Fadas, o Selo dos Rils e os Selos dos Nuques, para que o encantamento ficasse ainda mais poderoso.
E assim Noel voltou a levar brinquedos para as crianças, proporcionando felicidade a muitas delas.
Você pode imaginar como o Rei Ógua e seu bando feroz ficaram zangados ao saberem que Noel havia escapado da Floresta de Ethop. Passaram uma semana inteira furiosos; depois, fizeram outra reunião nas rochas.
— É inútil levá-lo para onde reinam os nuques, pois eles o protegem — disse o Rei. — Então, vamos jogá-lo numa caverna nas nossas montanhas, onde com certeza ele vai perecer.
Os óguas concordaram prontamente, e o bando maligno saiu naquela noite para capturar Noel. Mas encontraram sua casa protegida pelos Selos dos Imortais e foram obrigados a ir embora, aturdidos e decepcionados.
— Não importa — declarou o Rei. — Ele não vai dormir para sempre!
No dia seguinte, quando Noel foi até a aldeia do outro lado da planície, onde pretendia dar um esquilo de brinquedo a um menino coxo, foi atacado de repente pelos óguas, que o agarraram e o levaram para as montanhas. Lá, eles o empurraram para dentro de uma caverna profunda e rolaram muitas pedras enormes para bloquear a entrada e impedir sua fuga.
Privado, assim, de luz e comida, com pouco ar para respirar, nosso Noel estava, de fato, numa situação lamentável. Mas disse as palavras místicas das fadas, que sempre convocam o auxílio amistoso, e elas vieram socorrê-lo, transportando-o para o Vale Risonho num piscar de olhos.
Assim, os óguas descobriram que não poderiam destruir alguém que conquistara a amizade dos imortais; então, o bando malvado procurou outros meios de impedir que Noel desse felicidade às crianças e as tornasse obedientes.
Sempre que Noel saía para levar brinquedos para os pequeninos, um ógua que lhe vigiava os movimentos pulava sobre ele e arrancava os brinquedos de suas mãos. As crianças ficavam tão decepcionadas quanto Noel quando era obrigado a voltar para casa desconsolado. Ainda assim, ele perseverava, fazia muitos brinquedos para seus amiguinhos e saía com eles rumo às aldeias.
Mas os óguas sempre o roubavam assim que saía do vale, jogando os brinquedos roubados numa de suas cavernas soturnas, e uma boa pilha de presentes se acumulou antes que Noel desanimasse e desistisse de todas as tentativas de sair do vale.
Então as crianças começaram a visitá-lo, pois viram que ele não ia até elas; mas os malignos óguas voavam ao redor delas e desviavam seus passos e entortavam as trilhas, de modo que nenhum dos pequeninos conseguisse encontrar o caminho para o Vale Risonho.
Agora, Noel vivia dias solitários, pois era-lhe negado o prazer de levar felicidade às crianças que aprendera a amar. No entanto, ele não se deixou abalar, pois achava que certamente chegaria uma hora em que os óguas abandonariam o intento de lhe fazer mal.
Ele dedicava todo o tempo à fabricação de brinquedos e, quando terminava um, colocava-o numa prateleira que havia construído para esse fim. Quando a prateleira ficou cheia de fileiras de brinquedos, ele fez outra e a preencheu também. Assim, com o tempo, encheu muitas prateleiras de brinquedos bonitos e vistosos representando cavalos, cães, gatos, elefantes, cordeiros, coelhos e cervos, além de lindas bonecas de todos os tamanhos, bolas e bolinhas de gude feitas de argila e pintadas com cores alegres.
Muitas vezes, quando olhava para essa variedade de tesouros infantis, o coração do bondoso Noel se entristecia, tamanha era sua vontade de levar os brinquedos para as crianças. Finalmente, como não aguentava mais, foi falar com o grande Ak, a quem contou a história de como os óguas o perseguiam, e implorou ao Mestre Florestal que o ajudasse.
Capítulo Sete
A grande batalha entre o bem e o mal
Ak ouviu com muita seriedade o relato de Noel, acariciando a barba com os movimentos lentos e graciosos que sinalizavam pensamentos profundos. Ele assentiu, aprovando o gesto, quando Noel contou como os nuques e as fadas o salvaram da morte, e franziu a testa quando ouviu como os óguas haviam roubado os brinquedos das crianças. Por fim, disse:
— Desde o início, aprovei o trabalho que você está fazendo entre os filhos dos homens, e me incomoda que suas boas ações sejam frustradas pelos óguas. Nós, imortais, não temos nenhuma ligação com as criaturas maldosas que o atacaram. Sempre as evitamos, e elas, por sua vez, até agora tomaram o cuidado de não cruzar nosso caminho. Mas, nesse caso, vejo que os óguas perturbam um de nossos amigos; pedirei que abandonem a perseguição, pois você é nosso protegido.
Noel agradeceu ternamente ao Mestre Florestal e retornou ao seu vale, enquanto Ak, que nunca demorava a cumprir suas promessas, partia rumo às montanhas dos óguas.
Lá, ele parou no chão de pedras nuas e convocou o Rei e seu povo a aparecerem.
Na mesma hora, o lugar foi tomado por multidões de óguas carrancudos, e seu Rei, empoleirado numa ponta de rocha, inquiriu ferozmente:
— Quem se atreve a nos chamar?
— Sou eu, o Mestre Florestal do Mundo — respondeu Ak.
— Aqui não há florestas para você reivindicar! — exclamou o Rei, furioso. — Não devemos lealdade a você nem a nenhum imortal!
— Isso é verdade — respondeu Ak com calma. — Mas vocês se atreveram a interferir nas ações de Noel, que mora no Vale Risonho e está sob nossa proteção.
Ao ouvirem isso, muitos óguas começaram a murmurar, e seu Rei se voltou para o Mestre Florestal, ameaçador:
— Você governa as florestas, mas as planícies e os vales são nossos! — gritou. — Fique na sua floresta! Faremos o que quisermos com Noel.
— Vocês não farão nenhum mal ao nosso amigo! — respondeu Ak.
— Não faremos? — perguntou o Rei, insolente. — Você verá! Nossos poderes são imensamente superiores aos dos mortais e se equiparam aos dos imortais.
— Sua presunção os engana! — respondeu Ak, severo. — Vocês são uma raça transitória, que passa da vida para o nada. Nós, que vivemos para sempre, temos pena de vocês, mas também os desprezamos. Na terra, vocês são detestados por todos; no céu, não têm lugar! Até os mortais, após a vida na terra, chegam a outra existência eterna e, assim, são superiores a vocês. Como vocês, que não são mortais nem imortais, se atrevem a desobedecer minha vontade?
Os óguas se levantaram com gestos ameaçadores, mas seu Rei os fez recuar e, com a voz trêmula de raiva, gritou para Ak:
— Nunca um imortal se declarou mestre dos óguas! Mas nunca mais um imortal ousará se intrometer nos nossos atos, pois nos vingaremos de suas palavras de desdém matando seu amigo Noel em três dias! Nem você nem todos os imortais poderão poupá-lo de nossa ira. Desafiamos seus poderes! Vá embora, Mestre Florestal do Mundo! A terra dos óguas não é seu lugar!
— É guerra! — declarou Ak, com olhos flamejantes.
— É guerra! — retrucou o Rei, enfurecido. — Em três dias seu amigo estará morto.
O Mestre partiu de volta para a Floresta de Burzee, onde convocou uma reunião dos imortais e contou a eles sobre a audácia dos óguas e sua intenção de matar Noel dentro de três dias. O povo o ouviu em silêncio.
— O que faremos? — perguntou Ak.
— Esses seres não fazem bem nenhum ao mundo — disse o Príncipe dos Nuques. — Devemos destruí-los.
— Suas vidas são dedicadas apenas a más ações — acrescentou o Príncipe dos Rils. — Devemos destruí-los.
— Eles não têm consciência e se empenham em tornar todos os mortais tão ruins quanto eles — declarou a Rainha das Fadas. — Devemos destruí-los.
— Eles desafiaram o grande Ak e ameaçaram a vida de nosso filho adotivo — disse a bela Rainha Zurline. — Devemos destruí-los.
O Mestre Florestal sorriu, dizendo:
— Vocês falaram bem. Sabemos que os óguas são uma raça poderosa. Eles lutarão desesperadamente; ainda assim, o resultado é certo, pois nunca poderemos morrer, mesmo vencidos por nossos inimigos, enquanto todo ógua derrotado será um inimigo a menos para se opor a nós. Preparem-se, então, para a batalha, e não ofereceremos misericórdia aos malignos!
Assim começou a terrível guerra entre os imortais e os espíritos do mal que é cantada na Terra das Fadas até os dias de hoje.
O Rei Ógua e seu bando estavam determinados a concretizar a ameaça de destruir Noel. Agora, eles o odiavam por dois motivos: porque fazia as crianças felizes e porque era amigo do Mestre Florestal. Mas, desde a visita de Ak, eles tinham motivos para recear a oposição dos imortais e temiam a derrota. O Rei, então, enviou mensageiros velozes para todas as partes do mundo, chamando todas as criaturas malignas para socorrê-lo.
No terceiro dia após a declaração de guerra, um poderoso exército estava sob o comando do Rei Ógua. Havia trezentos dragões asiáticos cuspindo um fogo que consumia tudo em que tocava. Estes odiavam a humanidade e todos os bons espíritos. E havia os gigantes de Tatária, com três olhos; sozinhos, já eram um batalhão, e lutar era aquilo de que mais gostavam. A seguir, vieram os demônios sombrios da Patalônia, com as grandes asas abertas como as de um morcego, espalhando terror e sofrimento pelo mundo enquanto batiam no ar. E juntaram-se a eles os duendes-dózul, com garras longas e afiadas como espadas, com as quais arrancavam a carne dos inimigos. Finalmente, os óguas de todas as montanhas do mundo haviam chegado para participar da grande batalha contra os imortais.
O Rei Ógua olhou para aquele vasto exército e seu coração bateu forte, cheio de um orgulho maligno, pois acreditava que triunfaria sobre seus inimigos delicados, que nunca haviam lutado.
Mas o Mestre Florestal não estava parado à espera do conflito. Ninguém de seu povo estava acostumado à guerra; porém, agora que eram convocados a enfrentar as tropas maléficas, preparavam-se voluntariamente para o combate. Ak ordenou que se reunissem no Vale Risonho, onde Noel, que ignorava a terrível batalha a ser travada por sua causa, fabricava brinquedos com todo o sossego.
Logo todo o vale, de colina a colina, estava ocupado pelos pequenos imortais. O Mestre Florestal se apresentou primeiro, carregando um machado reluzente como prata polida. Em seguida surgiram os rils, armados com espinhos afiados de amoreiras-silvestres. Depois, os nuques, transportando as lanças que usavam quando eram forçados a domar suas feras selvagens. As fadas, com seus trajes de gaze branca e asas nos tons do arco-íris, portavam varinhas douradas, e as ninfas da floresta, de uniforme verde-folha, carregavam varas de freixo como armas.
O Rei Ógua soltou uma gargalhada sonora ao ver o tamanho e as armas de seus inimigos. É certo que o machado do Mestre era temível, mas as ninfas de delicadas faces e as belas fadas, os rils gentis e os nuques encurvados eram criaturas tão inofensivas que ele quase teve vergonha de ter convocado tropas tão terríveis para combatê-los.
— Já que esses tolos se atrevem a lutar — disse ele ao líder dos gigantes da Tatária —, vou subjugá-los com nossos poderes malignos!
Para começar a batalha, ele pegou uma grande pedra com a mão esquerda e a lançou contra a forma robusta do Mestre Florestal, que a desviou com o machado. Então, avançaram os gigantes de três olhos da Tatária contra os nuques, e os duendes-dózul contra os rils, e os dragões que cuspiam fogo contra as doces fadas. Como as ninfas eram o povo do próprio Ak, o bando de óguas investiu contra elas, imaginando derrotá-las facilmente.
Mas a Lei diz que, embora o Mal, sem oposição, possa realizar atos terríveis, os poderes do Bem são invencíveis quando se opõem ao Mal. Teria sido melhor para o Rei Ógua se ele conhecesse a Lei!
Sua ignorância custou-lhe a existência, pois um único golpe do machado carregado pelo Mestre Florestal do Mundo partiu o Rei maligno em dois e livrou a terra da criatura mais vil que já a habitara.
Imensamente espantados ficaram os gigantes de Tatária quando as lanças dos pequenos nuques perfuraram suas grossas muralhas de carne e os jogaram ao chão com uivos de agonia.
Ai dos duendes de garras afiadas quando os espinhos dos rils alcançaram seus corações brutos e deixaram o sangue vital salpicar toda a planície. Depois, de cada gota nasceu um cardo.
Os dragões pararam surpresos diante das varinhas das fadas, de onde saiu um poder que voltou seu hálito flamejante contra eles, fazendo-os secar e morrer.
Quanto aos óguas, tiveram pouco tempo para perceber que estavam acabados, pois as varas de freixo das ninfas tinham um encantamento que nenhum ógua conhecia e transformavam seus inimigos em torrões de terra ao menor toque!
Quando Ak se apoiou no machado reluzente e virou-se para olhar o campo de batalha, viu os poucos gigantes que conseguiram fugir desaparecendo entre as colinas distantes ao voltarem para a Tatária. Todos os duendes haviam morrido, assim como os terríveis dragões, enquanto tudo o que restava dos malvados óguas era um grande número de montinhos de terra pontilhando a planície.
E agora os imortais se dispersavam do vale como o orvalho ao nascer do sol para retomar seus deveres na floresta, enquanto Ak caminhava, lento e pensativo, até a casa de Noel, onde entrou, dizendo:
— Você já tem muitos brinquedos prontos para as crianças. Agora, pode levá-los pela planície até as casas e aldeias sem medo.
— Os óguas não vão me machucar? — perguntou Noel, ansioso.
— Os óguas pereceram!
Agora terei prazer em parar de falar dos espíritos maus, da guerra e do derramamento de sangue. Não foi por querer que falei dos óguas, seus aliados e sua grande batalha contra os imortais. É que eles faziam parte desta história, e não havia como evitá-los.
Capítulo Oito
A primeira viagem com as renas
Aqueles foram dias felizes para Noel, quando levou seus brinquedos para as crianças que os esperavam havia tanto tempo. Durante seu aprisionamento no vale, ele fora tão diligente que todas as suas prateleiras estavam cheias de brinquedos e, depois de abastecer rapidamente os pequenos que moravam perto, viu que agora deveria estender suas viagens a campos mais distantes.
Lembrando-se do tempo em que viajara pelo mundo com Ak, ele sabia que havia crianças por toda parte e queria que seus presentes levassem felicidade ao maior número possível delas. Então, encheu um grande saco com todos os tipos de brinquedos, o apoiou nas costas para poder carregá-lo com mais facilidade e começou a viagem mais longa que já havia empreendido.
Onde quer que mostrasse seu rosto alegre, fosse um vilarejo ou uma casa de fazenda, recebia cordiais boas-vindas, pois sua fama se espalhara por terras longínquas. Em cada aldeia, as crianças se reuniam em torno dele, seguindo seus passos aonde quer que fosse, e as mulheres agradeciam ternamente a alegria que ele trazia aos pequenos, e os homens o olhavam com curiosidade por dedicar seu tempo a uma atividade tão esquisita quanto fabricar brinquedos. Mas todos sorriam para ele e diziam-lhe palavras gentis, e Noel sentiu-se imensamente recompensado por sua longa jornada.
Quando o saco ficou vazio, ele voltou ao Vale Risonho e o encheu de novo até a borda. Desta vez, seguiu outro caminho, para uma parte diferente do país, e levou felicidade a muitas crianças que nunca tiveram um brinquedo nem imaginaram que existissem coisas tão bonitas para brincar.
Depois de uma terceira jornada, desta vez a um lugar tão distante que Noel passou muitos dias caminhando, o estoque de brinquedos se acabou e, sem demora, ele começou a fabricar mais.
Ao ver tantas crianças e estudar seus gostos, Noel havia tido várias ideias a respeito de brinquedos. As bonecas, pensava ele, eram as mais agradáveis de todos os brinquedos para bebês e menininhas, e muitas vezes quem não sabia dizer “boneca” pedia uma “muneca” em sua fala doce e infantil. Então, Noel decidiu fazer muitas bonecas, de todos os tamanhos, e vesti-las com roupas de cores vivas. Os meninos mais velhos — e até algumas das meninas — adoravam as representações de animais; por isso, ele ainda fazia gatos, elefantes e cavalos. Além disso, muitos dos pequenos tinham natureza musical e ansiavam por tambores, címbalos, apitos e cornetas. Assim, ele fez vários tambores de brinquedo, com pequenas baquetas para bater neles, e apitos de salgueiro, e cornetas de junco, e címbalos de metal moldado com martelo.
Tudo isso o manteve ocupado e, antes que percebesse, o inverno chegou, com camadas de neve mais altas do que o normal, e ele entendeu que não poderia sair do vale com uma carga tão pesada. Além disso, a próxima viagem o levaria mais longe de casa do que antes, e Jack Frost era travesso o bastante para beliscar seu nariz e suas orelhas se ele empreendesse a longa viagem enquanto o Rei Inverno reinava. O Rei Inverno era o pai de Jack e nunca o repreendia por suas travessuras.
E assim Noel continuou a trabalhar em sua bancada, mas assobiou e cantou com a mesma alegria de sempre, pois não permitiria que a decepção azedasse seu humor nem o entristecesse.
Certa manhã, ele olhou pela janela e viu dois dos cervos que conhecera na floresta vindo em direção à sua casa. Ficou surpreso; não porque os cervos amigáveis foram visitá-lo, mas porque caminhavam na superfície da neve com a mesma facilidade com que andariam na terra sólida, apesar de em todo o vale a neve ter chegado a vários metros de altura. Ele havia saído de casa um ou dois dias antes e afundado num monte até as axilas.
Então, quando os cervos se aproximaram, ele abriu a porta e disse:
— Bom dia, Felposo! Conte como vocês conseguem andar na neve com tanta facilidade.
— Está dura e congelada — respondeu Felposo.
— O Rei Inverno soprou nela e agora a superfície está sólida como gelo — acrescentou Lustroso, adiantando-se.
— Talvez agora eu possa levar minha carga de brinquedos para as crianças — comentou Noel, pensativo.
— É uma viagem longa? — perguntou Felposo.
— É, vai demorar muitos dias, pois a carga é pesada.
— Então a neve derreteria antes que você pudesse voltar, Noel. Terá que esperar até a primavera.
Noel suspirou.
— Se eu tivesse pés ligeiros como os seus, poderia fazer a viagem num só dia — disse ele.
— Mas não tem — retrucou Lustroso, olhando para as próprias pernas finas com orgulho.
— Talvez eu pudesse ir montado nas suas costas — Noel se atreveu a comentar, depois de um tempo.
— Ah, não, nossas costas não são fortes o bastante para aguentar seu peso — respondeu Felposo, decididamente. — Mas, se você tivesse um trenó e pudesse nos atrelar a ele, poderíamos transportá-lo sem dificuldade, e sua carga também.
— Vou fazer um trenó! — exclamou Noel. — Se eu fizer, vocês concordam em me transportar?
— Bom, primeiro, devemos pedir permissão aos nuques, que são nossos guardiões — respondeu Felposo. — Se eles consentirem e você conseguir fazer o trenó e os arreios, teremos prazer em ajudá-lo.
— Então, vão agora mesmo! — exclamou Noel, ansioso. — Tenho certeza de que os amigáveis nuques consentirão, e, quando vocês voltarem, estarei pronto com meu trenó.
Felposo e Lustroso, sendo cervos de grande inteligência, queriam ver o grande mundo havia muito tempo. Por isso, correram alegremente pela neve congelada para perguntar aos nuques se poderiam levar Noel naquela viagem.
Enquanto isso, o fabricante de brinquedos começou logo a construir o trenó, usando material de sua pilha de lenha. Fez duas lâminas compridas, com as pontas da frente curvadas para cima, e sobre elas pregou tábuas curtas para fazer uma plataforma. Logo o trabalho estava concluído, mas tinha a aparência mais rústica que um trenó poderia ter.
Os arreios foram mais difíceis de preparar, mas Noel torceu cordões resistentes e os atou com nós para que se ajustassem ao pescoço dos cervos na forma de um colar. Destes, saíam outros cordões para atrelar os cervos à frente do trenó.
Antes que o trabalho estivesse concluído, Lustroso e Felposo voltaram da floresta, tendo recebido permissão de Will Nuque para fazer a viagem com Noel, desde que estivessem de volta a Burzee ao amanhecer do dia seguinte.
— Não é muito tempo, mas somos rápidos e fortes; se partirmos ao anoitecer, podemos viajar muitos quilômetros durante a noite — disse Felposo.
Noel decidiu tentar e se dedicou aos preparativos com a maior rapidez possível. Depois de um tempo, pôs os colares ao redor do pescoço de seus corcéis e os prendeu ao trenó rústico. Por fim, colocou um banquinho na pequena plataforma, para servir de assento, e encheu um saco com seus brinquedos mais bonitos.
— Como pretende nos guiar? — perguntou Lustroso. — Nunca saímos da floresta, a não ser para visitar sua casa, por isso não conhecemos o caminho.
Noel pensou nisso por um momento. Depois, pegou mais cordões e prendeu dois deles às galhadas de cada cervo, um à direita e outro à esquerda.
— Estas serão minhas rédeas — disse Noel —, e, quando eu as puxar para a direita ou para a esquerda, vocês devem seguir nessa direção. Se eu não puxar as rédeas, podem seguir em frente.
— Muito bem — responderam Lustroso e Felposo. — Você está pronto?
Noel sentou-se no banquinho, acomodou o saco de brinquedos aos pés e pegou as rédeas.
— Tudo pronto! — gritou ele. — Lá vamos nós!
Os cervos se inclinaram para a frente, ergueram as patas delgadas e, no instante seguinte, fizeram o trenó voar sobre a neve congelada. A rapidez do movimento surpreendeu Noel, pois, com poucos passos, eles atravessaram o vale e deslizaram pela vasta planície além dele.
Quando começaram, o dia se desfizera em noite, pois, apesar de Noel ter trabalhado com grande rapidez, muitas horas se consumiram nos preparativos. Mas a lua brilhava intensamente para iluminar o caminho, e Noel logo decidiu que viajar de noite era tão agradável quanto de dia.
Os cervos gostaram mais, pois, embora quisessem ver o mundo, tinham receio de encontrar os homens, e agora todos os moradores das cidades e fazendas estavam dormindo profundamente e não podiam vê-los.
E lá foram eles, velozes, subindo as montanhas, cruzando os vales e atravessando as planícies até chegarem a uma aldeia onde Noel nunca estivera.
Lá, pediu que os cervos parassem, e eles obedeceram na mesma hora. Mas agora surgia uma nova dificuldade, pois as pessoas haviam trancado as portas quando foram dormir e Noel descobriu que não conseguia entrar para deixar os brinquedos.
— Infelizmente, meus amigos, acho que fizemos essa viagem por nada, pois serei obrigado a levar os brinquedos de volta para casa sem entregá-los às crianças desta aldeia — disse ele.
— Qual é o problema? — perguntou Felposo.
— As portas estão trancadas e não consigo entrar!
Lustroso olhou para as casas. A neve estava bem acumulada naquela aldeia e, logo à frente deles, havia um telhado poucos metros acima do trenó. No alto dele havia uma chaminé larga, que parecia suficientemente grande para comportar Noel.
— Por que não entra pela chaminé? — perguntou Lustroso.
Noel olhou para a chaminé.
— Seria fácil se eu estivesse no alto do telhado — respondeu.
— Então, segure-se firme, e nós o levaremos até lá — disse o cervo, e eles deram um salto rumo ao telhado, pousando ao lado da grande chaminé.
— Que ótimo! — gritou Noel, contente, e apoiou o saco de brinquedos nas costas, entrando na chaminé.
Havia muita fuligem nos tijolos, mas ele não se importou e, escorando as mãos e os joelhos nas paredes, rastejou para baixo até chegar à lareira. Pulando com leveza por cima das brasas, ele se viu numa grande sala de estar, onde uma luz fraca estava acesa. Da sala, duas portas levavam a quartos menores. Num deles, uma mulher dormia com um bebê no berço ao lado.
Noel riu, mas não muito alto, por medo de acordar o bebê. Então, tirou uma boneca grande do saco e a deixou no berço. O pequenino sorriu, como se sonhasse com o lindo brinquedo que encontraria na manhã seguinte, e Noel saiu em silêncio do quarto para entrar na outra porta.
Ali estavam dois meninos, dormindo profundamente com os braços em volta do pescoço um do outro. Noel olhou para eles com carinho por um momento e depois colocou sobre a cama um tambor, duas cornetas e um elefante de madeira.
Não se demorou mais; agora que seu trabalho nessa casa estava terminado, subiu na chaminé novamente e sentou-se no trenó.
— Conseguem encontrar outra chaminé? — perguntou às renas.
— Será fácil — responderam Lustroso e Felposo.
Até a beira do telhado eles correram e, sem parar, saltaram pelo ar até o alto da casa seguinte, onde havia uma enorme chaminé à moda antiga.
— Não demore tanto desta vez, ou não conseguiremos voltar à floresta até o amanhecer — avisou Felposo.
Noel desceu por essa chaminé também e encontrou cinco crianças dormindo na casa, todas as quais foram presenteadas rapidamente com brinquedos.
Quando ele voltou, os cervos saltaram para o telhado seguinte, mas, ao descer a chaminé, Noel não encontrou nenhuma criança. Contudo, isso era raro na aldeia, portanto, ele perdeu menos tempo do que se pode imaginar visitando as casas melancólicas onde não havia criancinhas.
Depois de descer as chaminés de todas as casas da aldeia e deixar um brinquedo para cada criança adormecida, Noel descobriu que o grande saco ainda não se esvaziara nem até a metade.
— Avante, amigos! — gritou para os cervos. — Vamos procurar outra aldeia.
Adiante seguiram, embora já passasse da meia-noite, e, num tempo espantosamente curto, chegaram a uma cidade grande, a maior que Noel já tinha visitado desde que começara a fazer brinquedos. Mas não ficou nem um pouco intimidado pela multidão de casas. Começou a trabalhar na mesma hora, e seus lindos corcéis o levaram rapidamente de um telhado para outro. Apenas o mais alto de todos estava fora do alcance dos cervos ágeis.
Por fim, o estoque de brinquedos acabou, Noel sentou-se no trenó, com o saco vazio aos pés, e fez Lustroso e Felposo virarem a cabeça na direção de casa.
Nessa hora, Felposo perguntou:
— O que é aquela faixa cinza no céu?
— É a aurora que se aproxima — respondeu Noel, surpreso ao descobrir que era tão tarde.
— Ora essa! — exclamou Lustroso. — Então não estaremos em casa ao amanhecer, e os nuques vão nos castigar e nunca mais nos deixarão voltar.
— Precisamos correr para o Vale Risonho à velocidade máxima — respondeu Felposo. — Segure-se, amigo Noel!
Noel segurou-se e, no momento seguinte, voava com tanta rapidez sobre a neve que não conseguia ver as árvores conforme passavam. Subindo as colinas e descendo os vales, velozes como uma flecha eles seguiam. Noel fechou os olhos para protegê-los do vento e deixou os cervos encontrarem seu próprio caminho.
Parecia que estavam se lançando no espaço, mas ele não teve medo. Os nuques eram mestres severos, que deviam ser obedecidos a todo custo, e a faixa cinza no céu ficava mais clara a cada momento.
Por fim, o trenó parou de repente, e Noel, pego de surpresa, caiu do banquinho num monte de neve. Ao se levantar, ouviu os cervos gritando:
— Rápido, amigo, rápido! Corte as rédeas!
Ele sacou a faca e cortou rapidamente os cordões, depois tirou a umidade dos olhos e olhou à volta.
O trenó havia parado no Vale Risonho, a apenas alguns metros, percebeu, de sua própria porta. A leste, o dia nascia; voltando-se para a beira de Burzee, ele viu Lustroso e Felposo desaparecerem na floresta.
Capítulo Nove
“Papai Noel!”
Noel achava que nenhuma das crianças jamais saberia de onde tinham vindo os brinquedos que encontraram ao lado da cama ao acordar na manhã seguinte. Mas as boas ações sempre trazem fama, e a fama tem muitas asas com as quais viajar a terras longínquas; assim, por quilômetros e quilômetros em todas as direções, as pessoas falavam de Noel e de seus presentes maravilhosos para as crianças. A doce generosidade de seu trabalho fez com que algumas pessoas egoístas escarnecessem dele, mas até elas foram forçadas a admitir seu respeito por um homem de natureza tão gentil que adorava dedicar a vida a agradar os pequeninos desamparados de sua raça.
Portanto, os habitantes de cada cidade e aldeia esperavam ansiosamente a chegada de Noel, e histórias impressionantes de seus belos brinquedos eram contadas às crianças para mantê-las pacientes e felizes.
Quando, na manhã seguinte à primeira viagem de Noel com os cervos, os pequenos correram até os pais com os brinquedos que haviam encontrado e perguntaram de onde tudo aquilo tinha vindo, havia apenas uma resposta à pergunta:
— O bom Noel deve ter vindo aqui, meus queridos, pois os brinquedos dele são os únicos que existem no mundo!
— Mas como ele entrou? — perguntaram as crianças.
Os pais balançavam a cabeça, incapazes de entender como Noel havia conseguido entrar nas casas; mas as mães, observando o rosto alegre de seus entes queridos, sussurravam que o bom Noel não era um homem mortal, e sim um santo, um santo pai, e abençoavam seu nome pela felicidade que concedera aos pequenos.
— Um santo não precisa destrancar a porta se quiser entrar na nossa casa — disse uma delas, abaixando a cabeça.
E, depois, quando uma criança era traquinas ou desobediente, a mãe dizia:
— Você deve rezar ao bom Papai Noel e pedir perdão. Ele não gosta de criança malcriada e, se você não se arrepender, ele não lhe trará mais brinquedos.
Mas o próprio Noel não teria aprovado essa fala. Ele levava brinquedos para as crianças porque elas eram pequenas e desamparadas e porque as amava. Sabia que, às vezes, até a melhor das crianças era malcriada e que, muitas vezes, as malcriadas se comportavam bem. Assim são as crianças em todo o mundo, e ele não teria mudado a natureza delas nem se tivesse o poder de fazê-lo.
E foi assim que nosso Noel se tornou Papai Noel. É possível a qualquer homem, por meio das boas ações, consagrar-se como santo e pai no coração das pessoas.
Capítulo Dez
A véspera de Natal
O dia que nasceu quando Noel voltou de seu passeio noturno com Lustroso e Felposo provocou um novo problema. Will Nuque, o mestre guardião dos cervos, foi falar com ele, aborrecido e mal-humorado, para reclamar que ele havia detido Lustroso e Felposo até depois do amanhecer, contrariando suas ordens.
— Mas não deve ter-se passado muito tempo depois do amanhecer — disse Noel.
— Foi um minuto depois, e é tão ruim quanto uma hora! — respondeu Will Nuque. — Vou pôr os mosquitos para picar Lustroso e Felposo e eles vão sofrer muito pela desobediência.
— Não faça isso! — implorou Noel. — A culpa foi minha.
Mas Will Nuque não quis escutar desculpas e foi embora, resmungando e rosnando à sua maneira rabugenta.
Por isso, Noel entrou na floresta para consultar Necile a respeito de poupar os bons cervos do castigo. Para sua alegria, encontrou seu velho amigo, o Mestre Florestal, sentado no círculo das ninfas.
Ak ouviu a história da jornada noturna até as crianças e do grande auxílio que os cervos haviam prestado a Noel puxando seu trenó sobre a neve congelada.
— Não quero que meus amigos sejam castigados se eu puder salvá-los — disse o fabricante de brinquedos, ao terminar o relato. — Eles chegaram apenas um minuto atrasados e foram mais rápidos que o voo de um pássaro, correndo para chegar em casa antes do amanhecer.
Ak acariciou a barba, pensativo, e mandou chamar o Príncipe dos Nuques, que governa todo o seu povo em Burzee, e também a Rainha das Fadas e o Príncipe dos Rils.
Quando todos estavam reunidos, Noel contou sua história outra vez, por ordem de Ak; depois, o Mestre se dirigiu ao Príncipe dos Nuques, dizendo:
— O bom trabalho que Noel está fazendo pela humanidade merece o apoio de todos os imortais honestos. Ele já é chamado de santo e de pai em algumas cidades; em breve, o nome Papai Noel será conhecido com amor em todos os lares abençoados com crianças. Além disso, ele é filho da nossa floresta, por isso devemos incentivá-lo. Você, governante dos nuques, o conhece há muitos anos; não estou certo ao dizer que ele merece nossa amizade?
O Príncipe, encurvado e carrancudo como todos os nuques, olhou apenas para as folhas mortas a seus pés e murmurou:
— Você é o Mestre Florestal do Mundo!
Ak sorriu, mas continuou, em tom brando:
— Parece que os cervos que são protegidos por seu povo podem ser de grande ajuda para Noel, e, como eles parecem dispostos a puxar o trenó, imploro que você o deixe empregar os cervos sempre que ele quiser.
O Príncipe não respondeu, mas bateu no bico curvo da própria sandália com a ponta da lança, como se pensasse.
Então, a Rainha das Fadas falou com ele assim:
— Se você concordar com o pedido de Ak, cuidarei para que seus cervos não sofram nenhum mal enquanto estiverem fora da floresta.
E o Príncipe dos Rils acrescentou:
— De minha parte, darei a todo cervo que ajude Noel o privilégio de comer minhas ervas-casa, que dão força, e minhas ervas-groule, que dão velocidade aos pés, e minhas ervas-marbonas, que dão vida longa.
E a Rainha das Ninfas disse:
— Os cervos que puxarem o trenó de Noel poderão se banhar na Lagoa de Nares, que lhes dará uma pelagem elegante e uma beleza extraordinária.
O Príncipe dos Nuques, ouvindo essas promessas, se remexeu no assento, inquieto, pois no fundo do coração detestava recusar um pedido de seus colegas imortais, embora estivessem solicitando um favor incomum e os nuques não tenham o hábito de conceder nenhum tipo de favor. Finalmente, ele se voltou para seus servos e disse:
— Chamem Will Nuque.
Quando o rude Will chegou e ouviu o pedido dos imortais, protestou energicamente:
— Cervo é cervo e nada além de cervo. Se fossem cavalos, seria correto tratá-los como cavalos. Mas ninguém põe rédeas num cervo, porque eles são criaturas selvagens e livres, que não devem nenhum tipo de serviço à humanidade. Para meus cervos, seria degradante trabalhar para Noel, que é apenas um homem, apesar da amizade com que os imortais o agraciaram.
— Você ouviu — disse o Príncipe para Ak. — Há verdade nas palavras de Will.
— Chamem Lustroso e Felposo — respondeu o Mestre.
Os cervos foram levados para a conferência, e Ak perguntou se eles se opunham a puxar o trenó de Noel.
— Não, não mesmo! — respondeu Lustroso. — Gostamos muito da viagem.
— E tentamos chegar em casa ao amanhecer, mas infelizmente chegamos um minuto atrasados — acrescentou Felposo.
— Um minuto perdido ao amanhecer não importa — disse Ak. — Estão perdoados por esse atraso.
— Desde que não volte a acontecer — acrescentou o Príncipe dos Nuques, severo.
— E você os deixará viajar comigo outra vez? — perguntou Noel, ansioso.
O Príncipe refletiu enquanto olhava para Will, que estava carrancudo, e para o Mestre Florestal, que sorria.
Então, levantou-se e dirigiu-se a todos da seguinte maneira:
— Como todos vocês insistem que eu conceda o favor, deixarei os cervos viajarem com Noel uma vez por ano, na véspera de Natal, desde que eles sempre voltem à floresta ao amanhecer. Ele pode escolher o número de cervos que preferir, até dez, para puxar seu trenó, e estes serão conhecidos entre nós como renas,3 para distingui-los dos outros. E vão se banhar na Lagoa de Nares, e comer as ervas-casa, groule e marbona, e ficarão sob a proteção especial da Rainha das Fadas. E agora pare de fazer careta, Will Nuque! Minhas palavras serão obedecidas!
Ele saiu mancando veloz entre as árvores, para evitar o agradecimento de Noel e a aprovação dos outros imortais, e Will, mais irritado do que nunca, o seguiu.
Mas Ak estava satisfeito, sabendo que podia confiar na promessa do Príncipe, por mais relutante que fosse; e Lustroso e Felposo correram para casa, pulando de alegria a cada passo.
— Quando é a véspera de Natal? — Noel perguntou ao Mestre.
— Daqui a dez dias.
— Então não posso usar os cervos este ano, pois não terei tempo para encher um saco inteiro de brinquedos — disse Noel, pensativo.
— O Príncipe sagaz previu isso e nomeou a véspera de Natal como o dia em que você poderia empregar os cervos, sabendo que isso o faria perder um ano inteiro — respondeu Ak.
— Se ao menos eu tivesse os brinquedos que os óguas roubaram de mim, seria fácil levá-los para as crianças.
— Onde estão? — perguntou o Mestre.
— Não sei, mas os óguas malvados devem tê-los escondido nas montanhas.
Ak voltou-se para a Rainha das Fadas e perguntou:
— Consegue encontrá-los?
— Vou tentar — respondeu ela, radiante.
Noel voltou ao Vale Risonho para trabalhar o máximo possível, e um bando de fadas voou imediatamente até a montanha que fora assombrada pelos óguas, começando a procurar os brinquedos roubados.
As fadas, como sabemos, têm poderes maravilhosos, mas os óguas astutos haviam escondido os brinquedos em uma caverna funda e tapado a entrada com pedras, para que ninguém conseguisse olhar o interior. Assim, por muitos dias, todas as buscas pelos brinquedos perdidos foram em vão, e Noel, que estava em casa esperando notícias das fadas, quase perdeu a esperança de reaver os brinquedos antes da véspera de Natal.
Ele trabalhava o dia todo, mas demorava um tempo considerável para esculpir e moldar cada brinquedo e pintá-lo corretamente, de modo que, na manhã anterior à véspera de Natal, só metade de uma pequena prateleira acima da janela estava ocupada por brinquedos prontos para as crianças.
Mas, naquela manhã, as fadas que vasculhavam as montanhas tiveram uma ideia. Deram as mãos e seguiram em linha reta entre as rochas que formavam a montanha, começando no pico mais alto e descendo, para que nenhum local passasse despercebido a seus olhos brilhantes.
Finalmente, descobriram a caverna onde os brinquedos haviam sido empilhados pelos maldosos óguas. Não demoraram muito para abrir a entrada. Cada uma delas pegou o máximo de brinquedos que conseguiu levar, e todas voaram até Noel, deixando o tesouro diante dele.
O bom homem se alegrou ao receber, bem a tempo, aquele estoque de brinquedos com que carregar o trenó, e mandou uma mensagem a Lustroso e Felposo, pedindo que se preparassem para viajar ao anoitecer.
Em meio a todos os outros trabalhos, ele conseguira arranjar tempo, desde a última viagem, para consertar as rédeas e os arreios e fortalecer o trenó; assim, ao entardecer, quando os cervos chegaram, não teve dificuldade para arreá-los.
— Hoje devemos ir em outra direção, onde encontraremos crianças que nunca visitei — disse ele. — E devemos ser rápidos na jornada e no trabalho, pois o saco está tão cheio de brinquedos que chega a transbordar!
Assim, quando a lua apareceu, eles saíram do Vale Risonho e atravessaram a planície e as colinas ao sul. O ar estava úmido e gelado, e a luz das estrelas tocava os flocos de neve, fazendo-os cintilar como incontáveis diamantes. As renas avançaram com saltos fortes e firmes, e o coração de Noel estava tão leve e alegre que ele riu e cantou enquanto o vento assobiava em seus ouvidos:
“Com um ho, ho, ho!
E um ha, ha, ha!
E um ho, ho!
Ha, ha, hi!
Vamos sempre adiante
Na neve radiante,
Assim fico tão contente!”
Jack Frost ouviu e veio correndo com seus alicates, pronto para beliscar alguém; mas, quando viu que era Noel, ele riu e seguiu seu caminho.
As mães corujas o ouviram quando passou perto de um bosque e espicharam a cabeça para fora dos buracos nos troncos das árvores; mas, quando viram quem era, sussurraram para os filhotes aninhados junto delas que era só o Papai Noel levando brinquedos para as crianças. É estranho o quanto essas mães corujas sabem!
Noel parou em algumas fazendas com casas esparsas e desceu as chaminés para deixar presentes para os bebês. Logo depois, chegou a uma aldeia e trabalhou alegremente por uma hora, distribuindo brinquedos entre os pequenos adormecidos. Por fim, foi embora, cantarolando sua alegre canção:
“Vamos sempre adiante
Na neve radiante
Com cervos tão excelentes!
Às crianças levar
Brinquedos p’ra dar
Alegria a toda gente!”
Os cervos gostavam do som de sua voz grave e seguiram o ritmo da música, batendo os cascos na neve; mas logo pararam em outra chaminé, e o Papai Noel, de olhos brilhantes e rosto corado pelo vento, desceu pelas paredes chamuscadas e deixou um presente para cada criança da casa.
Foi uma noite muito, muito feliz. Velozes correram os cervos, e o condutor trabalhou com afinco para espalhar seus presentes entre as crianças adormecidas.
Mas o saco finalmente se esvaziou, e o trenó seguiu para casa; agora, mais uma vez, começava a corrida contra o amanhecer. Lustroso e Felposo não tinham a menor intenção de serem repreendidos por se atrasarem pela segunda vez, por isso correram com uma rapidez que lhes permitiu passar o vendaval em que o Rei Inverno cavalgava e logo chegaram ao Vale Risonho.
É verdade que, quando Noel soltou os corcéis do trenó, o céu estava acinzentado no leste, mas Lustroso e Felposo chegaram às profundezas da floresta antes que o dia raiasse.
Noel estava tão cansado do trabalho que se jogou na cama e caiu num sono profundo. Enquanto dormia, o sol do Natal apareceu no céu e iluminou centenas de lares felizes, onde o som das risadas infantis proclamava que Papai Noel tinha feito uma visita.
Deus o abençoe! Foi sua primeira véspera de Natal e, desde então, há centenas de anos, ele tem cumprido a nobre missão de levar felicidade ao coração das criancinhas.
Capítulo Onze
Como as primeiras meias foram penduradas nas chaminés
Quando você se lembrar de que, até Papai Noel começar a viajar, nenhuma criança conhecia o prazer de ter um brinquedo, entenderá como a alegria se infiltrou nos lares daquelas que foram agraciadas com a visita desse homem bom e como falavam dele dia após dia com carinho e sincera gratidão por sua bondade. É verdade que os grandes guerreiros, reis poderosos e eruditos sábios daquela época eram muito comentados pelo povo, mas nenhum deles era tão amado quanto o Papai Noel, porque ninguém era tão altruísta a ponto de se dedicar a fazer os outros felizes. Pois um ato de generosidade tem vida mais longa do que uma grande batalha, o decreto de um rei ou o ensaio de um erudito, já que se espalha, deixa sua marca em toda a natureza e perdura por muitas gerações.
O acordo com o Príncipe Nuque mudou os planos de Noel para todo o futuro, pois, podendo usar as renas apenas uma noite a cada ano, ele decidiu dedicar todos os outros dias à fabricação dos brinquedos para levá-los, na véspera de Natal, às crianças do mundo.
Mas sabia que o trabalho de um ano resultaria num enorme acúmulo de brinquedos. Por isso, decidiu construir um novo trenó, maior, mais resistente e mais adequado para viagens rápidas do que o antigo, tão desajeitado.
Sua primeira atitude foi visitar o Rei Gnomo, com quem fez um acordo para trocar três tambores, um trompete e duas bonecas por um par de boas lâminas de aço, curvadas lindamente nas extremidades. Pois o Rei Gnomo tinha filhos que, vivendo em minas e cavernas debaixo da terra, precisavam de algo com que se divertir.
Em três dias, as lâminas de aço estavam prontas, e, quando Noel levou os brinquedos para o Rei Gnomo, Sua Majestade ficou tão satisfeita que o presenteou com um cordão de guizos de notas doces, além das lâminas.
— Isso vai agradar Lustroso e Felposo — disse Noel, tocando os guizos para ouvir o som alegre. — Mas eu deveria ter dois cordões de guizos, um para cada cervo.
— Traga-me mais um trompete e um gato de brinquedo e terá um segundo cordão de guizos igual ao primeiro — respondeu o Rei.
— Negócio fechado! — gritou Noel e foi para casa buscar os brinquedos.
O novo trenó foi construído com muito cuidado, e os nuques levaram muitas tábuas resistentes, porém finas, para sua construção. Noel fez um painel alto e arredondado para barrar a neve lançada pelos cascos dos cervos, ergueu bordas altas na plataforma para que ela pudesse conter muitos brinquedos e, finalmente, instalou o trenó em cima das lâminas de aço feitas pelo Rei Gnomo.
Com certeza era um trenó bonito, grande e espaçoso. Noel o pintou de cores vivas, embora provavelmente ninguém fosse vê-lo durante suas viagens noturnas, e, depois de terminar, mandou chamar Lustroso e Felposo para vê-lo.
Os cervos admiravam o trenó, mas declararam com toda a seriedade que era grande e pesado demais para eles puxarem.
— Podemos puxá-lo sobre a neve, é claro — disse Lustroso —, mas não o faríamos com a velocidade necessária para visitar as cidades e aldeias distantes e voltar à floresta ao amanhecer.
— Então devo acrescentar mais dois cervos à minha equipe — declarou Noel, após um momento de reflexão.
— O Príncipe Nuque o deixou usar até dez. Por que não usar todos eles? — perguntou Felposo. — Assim, poderíamos correr como os raios e pular para os telhados mais altos sem dificuldade.
— Um conjunto de dez renas! — exclamou Noel, encantado. — Será esplêndido. Por favor, voltem para a floresta agora mesmo e escolham mais oito cervos que sejam como vocês. E todos devem comer da erva-casa, para ficarem fortes, e da erva-groule, para terem pés ligeiros, e da erva-marbona, para que possam viver muito tempo e me acompanhar nas minhas viagens. Da mesma forma, será bom vocês tomarem banho na Lagoa de Nares, que a adorável Rainha Zurline declarou conferir uma beleza rara. Se vocês cumprirem esses deveres fielmente, não há dúvida de que na próxima véspera de Natal minhas dez renas serão os corcéis mais poderosos e belos que o mundo já viu!
Então Lustroso e Felposo foram à floresta para escolher seus companheiros, e Noel começou a pensar em como fazer arreios para todos eles.
No fim, pediu ajuda a Peter Nuque, pois seu coração é tão bondoso quanto seu corpo é encurvado e, além disso, ele é muito sagaz. Peter concordou em fornecer tiras de couro resistente para os arreios.
Esse couro foi tirado da pele de leões que chegaram a uma idade tão avançada que morreram naturalmente. De um lado havia pelos castanhos, enquanto o outro fora curtido pelos hábeis nuques até ficar macio como veludo. Quando Noel recebeu esse material, costurou-o na forma de arreios para as dez renas; os arreios se mostraram fortes e úteis e duraram muitos anos.
Os arreios e o trenó foram preparados nas horas vagas, pois Noel dedicava a maior parte do tempo à fabricação de brinquedos. Agora, eram muito melhores do que os primeiros, pois os imortais o visitavam com frequência para vê-lo trabalhar e dar sugestões. A ideia de Necile foi fazer com que algumas das bonecas dissessem “papai” e “mamãe”. Foi sugestão dos nuques inserir um balido dentro dos cordeiros, de modo que, quando uma criança os apertasse, eles dissessem “bééé!”. E a Rainha das Fadas aconselhou Noel a instalar apitos nos pássaros, para que pudessem piar, e rodas nos cavalos, para que as crianças pudessem brincar de puxá-los. Muitos animais pereciam na floresta, de uma causa ou de outra, e seus pelos foram levados a Noel para que pudesse usá-los para cobrir as pequenas imagens de animais que fabricava. Um alegre ril sugeriu que Noel fizesse um burro que balançasse a cabeça, e ele o fez; depois, descobriu que isso divertia imensamente os pequenos. E assim os brinquedos ficavam mais bonitos e interessantes a cada dia, causando admiração até mesmo aos imortais.
Quando mais uma véspera de Natal se aproximava, havia uma carga monstruosa de lindos presentes para as crianças, prontos para serem colocados no grande trenó. Noel encheu três sacos até a borda e ocupou cada canto do trenó com brinquedos.
Assim, ao anoitecer, as dez renas apareceram e Felposo apresentou todas a Noel. Elas eram Corredor e Marchador, Direta e Correta, Destemida e Preferida, e Primeiro e Certeiro, que, com Lustroso e Felposo, completavam as dez que percorreram o mundo nessas centenas de anos com seu generoso mestre. Eram todas extremamente bonitas, com patas esbeltas, galhadas imponentes, olhos escuros e doces e pelagem macia, de cor castanho-avermelhada com manchas brancas.
Noel passou a amar as renas na mesma hora, e as ama desde então, pois são amigas leais e prestam-lhe um serviço inestimável.
Os novos arreios se ajustaram muito bem e logo todas as renas estavam atreladas ao trenó em dupla, com Lustroso e Felposo na dianteira. Usavam os cordões com guizos e ficaram tão encantadas com a música que faziam que pulavam para lá e para cá, fazendo os guizos tocarem.
Em seguida, Noel sentou-se no trenó, pôs um manto quente sobre os joelhos, puxou o gorro de pele sobre as orelhas e estalou o longo chicote como sinal para começar.
No mesmo instante, as dez renas saltaram adiante e correram como o vento, enquanto o alegre Noel ria ao vê-las correr e cantava uma canção com a voz alta e calorosa:
“Com um ho, ho, ho!
E um ha, ha, ha!
E um ho, ho,
Ha, ha, hi!
Vamos sempre adiante
Na neve radiante,
Assim fico tão contente!
Elas vão brincar,
Vão sorrir e amar
Desta noite os bons presentes;
Sigamos velozes,
Cantando, altas vozes,
Na neve resplandecente!”
Nessa mesma véspera de Natal, a pequena Margot, seu irmão Dick e seus primos Ned e Sara, que estavam visitando a casa de Margot, entraram em casa depois de fazer um boneco de neve, com as roupas úmidas, as luvas pingando e os sapatos e meias completamente encharcados. Não foram repreendidos, pois a mãe de Margot sabia que a neve estava derretendo, mas foram mandados para a cama mais cedo, para que suas roupas pudessem ficar penduradas em cadeiras, secando. Os sapatos foram deixados nos ladrilhos vermelhos da lareira, onde o calor das brasas os aqueceria, e as meias foram penduradas com todo o cuidado numa linha em torno da chaminé, logo acima da lareira.
Essa foi a razão pela qual Papai Noel as viu quando desceu a chaminé naquela noite, enquanto toda a família dormia um sono profundo. Ele estava com uma pressa tremenda e, vendo que todas as meias pertenciam a crianças, deixou logo os brinquedos dentro delas e subiu a chaminé, aparecendo no telhado tão de repente que as renas se surpreenderam com sua agilidade.
— Eu gostaria que todas as crianças pendurassem as meias — pensou, enquanto se dirigia à próxima chaminé. — Isso me pouparia muito tempo, e assim eu poderia visitar mais crianças antes do amanhecer.
Quando Margot, Dick, Ned e Sara pularam da cama na manhã seguinte e correram escada abaixo para pegar as meias na lareira, ficaram encantados ao descobrir os brinquedos do Papai Noel dentro delas. Acho que ganharam mais presentes do que qualquer outra criança naquela cidade, pois o Papai Noel estava com tanta pressa que não parou para contar quantos deixou.
É claro que elas contaram isso a todos os amiguinhos e, é claro, todos decidiram pendurar as próprias meias na lareira na próxima véspera de Natal. Até Bessie Bacana, que fez uma visita à cidade com o pai, o grande Lorde Lerd, ouviu a história das crianças e pendurou as próprias meias bonitas na chaminé quando voltou para casa, na época do Natal.
Na viagem seguinte, o Papai Noel encontrou tantas meias penduradas à espera da sua visita que conseguiu enchê-las num instante e sair na metade do tempo que antes levava para procurar as crianças e deixar os brinquedos ao lado da cama.
O costume cresceu ano após ano e sempre ajudou muito o Papai Noel. Com tantas crianças para visitar, ele com certeza precisa de toda a ajuda que pudermos oferecer!
Capítulo Doze
A primeira árvore de Natal
Noel sempre cumpria sua promessa aos nuques, voltando ao Vale Risonho ao amanhecer, mas só a rapidez de suas renas permitia que fizesse isso, pois ele viajava pelo mundo todo.
Ele adorava o trabalho, o rápido passeio noturno de trenó e o tilintar alegre dos guizos. Na primeira viagem com as dez renas, apenas Lustroso e Felposo usavam guizos, mas, a cada ano depois disso, durante oito anos, Noel levou presentes para os filhos do Rei Gnomo, e esse monarca de boa índole lhe dava um cordão de guizos a cada visita, de modo que, por fim, todas as dez renas tinham os seus, e você pode imaginar que notas alegres os guizos tocavam quando o trenó deslizava na neve.
As meias das crianças eram tão compridas que precisavam de muitos brinquedos para enchê-las, e logo Noel descobriu que, além de brinquedos, há outras coisas que as crianças adoram. Então, ele mandou algumas fadas, que sempre foram grandes amigas, para os trópicos, de onde voltaram com sacolas enormes cheias de laranjas e bananas que haviam colhido das árvores. E outras fadas voaram até o maravilhoso Vale de Risolândia, onde doces e bombons deliciosos crescem fartamente nos arbustos, e voltaram carregadas com muitas caixas de guloseimas para os pequeninos. Em cada véspera de Natal, o Papai Noel deixava essas coisas nas meias compridas, com os brinquedos, e as crianças ficavam felizes ao ganhá-las, pode ter certeza.
Também existem países quentes onde não neva no inverno, mas Noel e suas renas os visitavam, assim como os de clima mais frio, pois havia rodinhas dentro das lâminas do trenó, o que lhe permitia correr tão suavemente no solo nu quanto na neve. E as crianças que viviam nos países quentes aprenderam o nome do Papai Noel assim como as que moravam mais perto do Vale Risonho.
Certa vez, quando as renas estavam prontas para começar a viagem anual, uma fada veio contar a Noel sobre três criancinhas que moravam numa barraca rústica de pele numa vasta planície onde não havia nenhuma árvore. Os pobres pequeninos eram muito infelizes e miseráveis, pois os pais eram pessoas ignorantes que os negligenciavam. Noel resolveu visitar essas crianças antes de voltar para casa e, durante a viagem, colheu a ponta espessa de um pinheiro que o vento havia quebrado e a colocou no seu trenó.
Era quase de manhã quando as renas pararam diante da barraca solitária onde as crianças dormiam. Noel plantou imediatamente a ponta de pinheiro na areia e prendeu muitas velas nos galhos. Depois, pendurou alguns de seus brinquedos mais bonitos na árvore, além de vários saquinhos de doces. Não demorou muito para fazer tudo isso, pois o Papai Noel trabalha depressa. Quando tudo estava pronto, ele acendeu as velas e, passando a cabeça pela abertura da barraca, gritou:
— Feliz Natal, pequeninos!
Com isso, pulou no trenó e sumiu de vista antes que as crianças, esfregando os olhos sonolentos, pudessem sair para ver quem as havia chamado.
Você pode imaginar a admiração e a felicidade dos pequeninos, que nunca haviam experimentado uma alegria verdadeira, quando viram a árvore iluminada com luzes que cintilavam na aurora cinzenta e enfeitada com brinquedos suficientes para fazê-los felizes por muitos anos! Eles deram as mãos e dançaram ao redor da árvore, gritando e rindo, até serem obrigados a parar para tomar fôlego. Os pais também ficaram admirados, e, a partir de então, tiveram mais respeito e consideração pelos filhos, já que o Papai Noel os havia agraciado com presentes tão bonitos.
A ideia da árvore de Natal agradou Noel e, no ano seguinte, ele carregou muitas delas no trenó e as instalou nas casas de pessoas pobres que raramente viam árvores, colocando velas e brinquedos nos galhos. É claro que ele não conseguia levar árvores suficientes de uma vez só para todos os que as queriam, mas, em alguns lares, os pais arranjaram árvores e as deixaram prontas para a chegada do Papai Noel, e ele sempre as decorava do modo mais bonito possível, pendurando brinquedos suficientes para todas as crianças que iam ver as árvores iluminadas.
Essas ideias inovadoras e a forma generosa como foram realizadas levaram as crianças a ansiarem por aquela noite do ano em que seu amigo Papai Noel ia visitá-las, e, como tal expectativa é muito agradável e reconfortante, os pequenos se alegravam imaginando o que aconteceria na próxima vez que o Papai Noel chegasse.
Lembra-se do severo Barão Braun, que uma vez expulsou Noel de seu castelo e o proibiu de visitar seus filhos? Bom, muitos anos depois, quando o velho Barão já havia morrido e seu filho herdara o título, o novo Barão Braun foi à casa de Noel com sua comitiva de cavaleiros, pajens e seguidores, e, desmontando do cavalo, tirou o chapéu humildemente diante do amigo das crianças.
— Meu pai não conhecia sua bondade e seu valor; por isso, ameaçou enforcá-lo na muralha do castelo — disse ele. — Mas tenho filhos que anseiam por uma visita do Papai Noel e vim implorar que você passe a favorecê-los como faz com as outras crianças.
Noel ficou feliz ao ouvir isso, pois o Castelo Braun era o único lugar que nunca tinha visitado, e foi com alegria que prometeu levar presentes aos filhos do Barão na próxima véspera de Natal.
O Barão foi embora contente e Noel cumpriu sua promessa.
Assim, esse homem, por meio da bondade, conquistou o coração de todos, e não é de se admirar que ele estivesse sempre alegre e feliz, pois não havia, em nenhum lugar no mundo, um lar onde não fosse mais bem recebido do que um rei.
Capítulo Um
O Manto da Imortalidade
Agora chegamos a um ponto de virada na carreira do Papai Noel, e é meu dever narrar os acontecimentos mais notáveis desde que o mundo começou ou a humanidade foi criada.
Seguimos a vida de Noel desde que ele foi encontrado, ainda um bebê indefeso, pela ninfa Necile e criado até a idade adulta na grande Floresta de Burzee. E sabemos como ele começou a fazer brinquedos para as crianças e como, com a ajuda e a boa vontade dos imortais, conseguiu distribuí-los aos pequeninos do mundo todo.
Por muitos anos ele cumpriu essa nobre missão, pois a vida simples e atarefada que levava deu-lhe força e saúde perfeitas. E, sem dúvida, um homem consegue viver mais tempo no lindo Vale Risonho do que em qualquer outra parte do mundo, pois lá não há aflições, e tudo é pacífico e alegre.
Mas, depois de muitos anos, o Papai Noel envelheceu. A barba comprida e castanho-alourada que cobria as bochechas e o queixo ficou cada vez mais grisalha, até, por fim, tornar-se totalmente branca. Seus cabelos também ficaram brancos e havia rugas nos cantos dos olhos, que apareciam claramente quando ele ria. Nunca tinha sido um homem muito alto; agora, estava gordo e, ao andar, bamboleava como um pato. Apesar disso, continuava animado como sempre e igualmente alegre, e seus olhos amáveis brilhavam com a mesma intensidade que tinham no dia em que chegou ao Vale Risonho.
No entanto, chega a hora em que todo mortal que já viveu e envelheceu precisa ir deste mundo para outro; portanto, não admira que, depois que o Papai Noel guiou suas renas em muitas e muitas vésperas de Natal, as amigas leais por fim tenham sussurrado umas às outras que provavelmente haviam puxado o trenó pela última vez.
Toda a Floresta de Burzee se entristeceu e todo o Vale Risonho silenciou, pois cada um dos seres vivos que conhecia Noel o amava e se animava com o som de seus passos e as notas de seu assobio alegre.
Sem dúvida, a força do velho finalmente havia se exaurido, pois ele não fazia mais brinquedos e ficava deitado na cama, como quem sonha.
A ninfa Necile, que fora sua mãe adotiva, ainda era jovem, forte e bonita, e pareceu-lhe que pouco tempo havia se passado desde que aquele homem de barba grisalha estivera em seus braços, sorrindo para ela com lábios inocentes de bebê. Aqui, vemos a diferença entre os mortais e os imortais.
Foi sorte o grande Ak ter chegado à floresta nesse momento. Necile o procurou, aflita, e contou-lhe o destino que ameaçava o amigo Noel.
O Mestre ficou sério, apoiou-se no machado e acariciou a barba grisalha, pensativo, por muitos minutos. Então, de repente, ele se levantou e ergueu a cabeça poderosa com firme determinação, esticando o grande braço direito como se estivesse decidido a realizar algum feito prodigioso. Pois um pensamento lhe ocorreu, tão grandioso em sua concepção que o mundo todo deveria se curvar diante do Mestre Florestal e reverenciar seu nome para sempre!
É fato conhecido que, quando o grande Ak se encarrega de fazer uma coisa, não hesita nem por um instante. Assim, ele convocou seus mensageiros mais velozes e os mandou para várias partes da terra. E, quando eles se foram, o Mestre se voltou para a ansiosa Necile e a confortou, dizendo:
— Acalme seu coração, minha filha; nosso amigo ainda vive. Agora, corra até sua Rainha e diga que convoquei um conselho de todos os imortais do mundo para se reunirem comigo aqui em Burzee hoje à noite. Se eles me obedecerem e derem ouvidos às minhas palavras, Noel guiará suas renas por muitas e incontáveis eras.
À meia-noite, viu-se uma cena extraordinária na antiga Floresta de Burzee, onde, pela primeira vez em muitos séculos, os governantes dos imortais que habitam a terra se reuniram.
Lá estava a Rainha dos Espíritos da Água, cuja linda forma era transparente como cristal, mas pingava água o tempo todo no monte de musgo onde estava sentada. E ao lado dela estava o Rei das Fadas do Sono, com uma varinha cuja ponta vertia um pó fino por toda parte, de modo que nenhum mortal conseguisse ficar acordado por tempo suficiente para vê-lo, pois os olhos mortais se fechavam, adormecidos, assim que o pó os preenchia. E ao lado dele estava o Rei Gnomo, cujo povo habita toda a região debaixo da terra, onde guarda os metais e as pedras preciosas que jazem enterradas em rochas e minérios. À sua direita estava o Rei dos Diabretes do Som, que tinha asas nos pés, pois seu povo transmite com ligeireza todos os sons produzidos. Quando estão ocupados, só carregam o barulho a distâncias curtas, pois existem muitos sons; mas, às vezes, viajam com os sons para lugares a quilômetros e quilômetros de distância de onde foram produzidos. O Rei dos Diabretes do Som tinha um rosto ansioso e aflito, pois a maioria das pessoas, principalmente as crianças, não tem consideração pelos diabretes e produz muitos sons desnecessários que eles são obrigados a levar quando poderiam fazer coisas mais importantes.
O próximo no círculo dos imortais era o Rei dos Demônios do Vento, de porte esbelto, inquieto e incomodado por ficar confinado no mesmo lugar por uma única hora que fosse. De vez em quando ele deixava seu lugar e circulava pela clareira, e, cada vez que fazia isso, a Rainha das Fadas era obrigada a desembaraçar as mechas de seus cabelos dourados e arrumá-los atrás das orelhas rosadas. Mas ela não se queixava, pois era raro o Rei dos Demônios do Vento entrar no coração da floresta.
Depois da Rainha das Fadas, que, como você sabe, residia na velha Burzee, veio o Rei dos Elfos da Luz, com seus dois Príncipes, Lampejo e Ocaso, a acompanhá-lo. Ele nunca ia a lugar nenhum sem seus Príncipes, pois os dois eram tão travessos que o pai não se atrevia a deixá-los passearem sozinhos. O príncipe Lampejo tinha um raio na mão direita e um chifre de pólvora na esquerda, e seus olhos brilhantes giravam constantemente, como se estivesse ansioso para usar seus flashes ofuscantes. O Príncipe Ocaso tinha um grande apagador de velas numa das mãos e uma grande capa preta na outra, e é fato conhecido que, se Ocaso não for vigiado com muita atenção, o apagador ou a capa lançam tudo na escuridão, e a Escuridão é o maior inimigo do Rei dos Elfos da Luz.
Além dos imortais que citei, estavam lá o Rei dos Nuques, que viera de sua casa nas selvas da Índia, e o Rei dos Rils, que vivia entre as flores alegres e os frutos saborosos de Valência. A doce Rainha Zurline, das ninfas da floresta, completava o círculo dos imortais.
Mas no centro do círculo estavam três outros, donos de poderes tão grandes que todos os reis e rainhas os reverenciavam.
Eram Ak, o Mestre Florestal do Mundo, que governa as florestas, os pomares e os bosques; Kern, o Mestre Agricultor do Mundo, que governa os campos de cereais, os prados e os jardins; e Bo, o Mestre Marinheiro do Mundo, que governa os mares e todas as embarcações que nele navegam. E todos os outros imortais estão mais ou menos subordinados a esses três.
Quando todos se reuniram, o Mestre Florestal do Mundo levantou-se para falar, já que ele mesmo os havia convocado para o conselho.
Com muita clareza, contou-lhes a história de Noel, começando no tempo em que fora adotado como filho da floresta, falando de sua natureza nobre e generosa e de sua vida empenhada em fazer as crianças felizes.
— E agora, depois de ter conquistado o amor de todo o mundo, o Espírito da Morte paira sobre ele — disse Ak. — De todos os homens que habitaram a terra, nenhum outro merece a imortalidade, pois tal vida não pode ser poupada enquanto houver filhos da humanidade para sentir saudades e lamentar sua perda. Nós, imortais, somos servos do mundo, e para servir ao mundo foi-nos permitido existir no Início. Mas qual de nós é mais digno da imortalidade do que esse homem, Noel, que com tanta doçura se dedica às criancinhas?
Ele parou, olhou para o círculo ao redor e viu que todos os imortais o ouviam ansiosos, balançando a cabeça, concordantes. Finalmente, o Rei dos Demônios do Vento, que vinha assobiando baixinho, gritou:
— Qual é o seu desejo, ó Ak?
— Dar a Noel o Manto da Imortalidade! — respondeu bravamente o Mestre.
Essa exigência foi totalmente inesperada; os imortais se levantaram e olharam uns para os outros com espanto e depois para Ak com espanto, pois ceder o Manto da Imortalidade era uma questão muito séria.
A Rainha dos Espíritos da Água falou com sua voz baixa e clara, e as palavras soaram como gotas de chuva caindo numa vidraça:
— Em todo o mundo, existe apenas um Manto da Imortalidade.
O Rei dos Diabretes do Som acrescentou:
— Ele existe desde o Início, e nenhum mortal jamais se atreveu a reivindicá-lo.
E o Mestre Marinheiro do Mundo levantou-se e esticou os membros, dizendo:
— Somente pelo voto de todos os imortais ele poderá ser concedido a um mortal.
— Sei de tudo isso — respondeu Ak com calma. — Mas o Manto existe, e, se foi criado, como vocês dizem, no Início, foi porque o Mestre Supremo sabia que algum dia seria necessário. Até hoje, nenhum mortal o mereceu, mas quem dentre vocês ousa negar que o bom Noel o mereça? Não votariam a favor de concedê-lo a ele?
Os imortais silenciaram, ainda se entreolhando em dúvida.
— De que serve o Manto da Imortalidade se não for usado? — inquiriu Ak. — Que bem fará a qualquer um de nós deixar que permaneça em seu santuário, isolado por toda a eternidade?
— Basta! — gritou de repente o Rei Gnomo. — Votaremos: sim ou não. Da minha parte, digo que sim!
— Assim como eu! — disse prontamente a Rainha das Fadas, e Ak a recompensou com um sorriso.
— Meu povo em Burzee diz que aprendeu a amá-lo; portanto, voto em dar o Manto para Noel — declarou o Rei dos Rils.
— Ele já é camarada dos nuques — anunciou o idoso Rei desse povo. — Que ele receba a imortalidade!
— Deem o manto a ele... deem! — suspirou o Rei dos Demônios do Vento.
— Por que não? — perguntou o Rei das Fadas do Sono. — Ele nunca perturba o sono que meu povo permite à humanidade. Que o bom Noel seja imortal!
— Não me oponho — respondeu o Rei dos Diabretes do Som.
— Nem eu — murmurou a Rainha dos Espíritos da Água.
— Se Noel não receber o Manto, é claro que ninguém jamais poderá reivindicá-lo — observou o Rei dos Elfos da Luz. — Então, vamos acabar com isso de uma vez.
— As ninfas da floresta foram as primeiras a adotá-lo — disse a Rainha Zurline. — É claro que voto por torná-lo imortal.
Ak se voltou para o Mestre Agricultor do Mundo, que ergueu o braço direito e disse:
— Sim!
O Mestre Marinheiro do Mundo fez o mesmo, e Ak, de olhos cintilantes e rosto sorridente, gritou:
— Agradeço a vocês, companheiros imortais! Pois todos votaram “sim” e, portanto, ao nosso querido Noel pertencerá o único Manto da Imortalidade que podemos conceder!
— Vamos buscá-lo agora mesmo — disse o Rei das Fadas do Sono. — Estou com pressa.
Eles se curvaram, concordando, e na mesma hora a clareira da floresta ficou deserta. Mas, num lugar a meio caminho entre a terra e o céu, havia uma cripta brilhante de ouro e platina, suspensa, iluminada por luzes suaves que as facetas de inúmeras joias refletiam. Dentro de uma cúpula alta pendia o precioso Manto da Imortalidade, e cada imortal tocou a barra do esplêndido traje e disse, como uma só voz:
— Concedemos este Manto a Noel, que é chamado de Santo Padroeiro das Crianças!
Com isso, o Manto foi tirado de sua cripta suspensa e eles o levaram para a casa no Vale Risonho.
O Espírito da Morte estava encurvado muito perto da cabeceira de Noel e, quando os imortais se aproximaram, ele se levantou e gesticulou para que recuassem, enraivecido. Mas, quando pôs os olhos no Manto que eles carregavam, foi a Morte quem recuou com um gemido baixo de decepção e abandonou a casa para sempre.
Com delicadeza, em silêncio, a comitiva imortal cobriu Noel com o precioso Manto, que se fechou em torno dele, aderiu aos contornos de seu corpo e desapareceu de vista. Tornou-se parte de seu ser, e nem mortal nem imortal jamais poderiam tirá-lo dele.
Então, os reis e rainhas que haviam realizado esse grande feito se dispersaram rumo a seus lares, todos satisfeitos por terem acrescentado mais um imortal a seu grupo.
E Noel continuou a dormir, o sangue vermelho da vida eterna correndo velozmente por suas veias, e em sua testa havia uma gotícula de água que caíra do vestido sempre liquefeito da Rainha dos Espíritos de Água, e em seus lábios pairava um beijo terno, deixado pela doce ninfa Necile. Pois ela havia entrado sorrateiramente depois que os outros saíram, para contemplar, encantada, a forma imortal de seu filho adotivo.
Capítulo Dois
Quando o mundo envelheceu
Na manhã seguinte, quando Papai Noel abriu os olhos e viu o quarto que conhecia tão bem e que havia temido nunca mais ver, ficou surpreso ao perceber sua antiga força renovada e sentir o sangue da saúde perfeita correndo em suas veias. Pulou da cama e ficou de pé onde a luz solar entrava pela janela, inundando-o com seus raios alegres e dançantes. Não entendeu o que havia acontecido para lhe restabelecer o vigor da juventude, mas, apesar de a barba permanecer da cor da neve e as rugas persistirem nos cantos dos olhos brilhantes, o velho Papai Noel estava animado e alegre como um garoto de dezesseis anos. Logo assobiava contente enquanto se ocupava de fabricar mais brinquedos.
Ak foi visitá-lo e contou sobre o Manto da Imortalidade e como Noel o conquistara por meio de seu amor pelas criancinhas.
Por um tempo, o velho Papai Noel ficou sério ao pensar que fora favorecido desse modo, mas também feliz por perceber que agora nunca mais precisaria ter medo de se separar de seus entes queridos. Começou imediatamente os preparativos para fazer uma série notável de brinquedos bonitos e divertidos em quantidades maiores do que nunca, pois agora, já que poderia se dedicar a esse trabalho para sempre, decidiu que dali por diante nenhuma criança no mundo, pobre ou rica, ficaria sem presente de Natal, se ele conseguisse fazê-lo.
O mundo era novo na época em que o querido Papai Noel começou a fabricar brinquedos e conquistou, por seus gestos de carinho, o Manto da Imortalidade. E a tarefa de oferecer palavras de ânimo, compaixão e brinquedos para todos os jovens da sua raça não parecia uma empreitada difícil. Mas todo ano, cada vez mais crianças nasciam no mundo, e estas, quando cresciam, começavam a se espalhar lentamente por toda a face da terra, buscando novos lares; assim, todo ano, Papai Noel descobria que deveria viajar para cada vez mais longe do Vale Risonho, e que os sacos de brinquedos deveriam ser cada vez maiores.
Por fim, aconselhou-se com seus colegas imortais sobre como seu trabalho poderia acompanhar o número crescente de crianças de modo a não negligenciar nenhuma. Os imortais se interessavam tanto por suas atividades que ficaram felizes em prestar auxílio. Ak lhe deu seu assistente Kilter, “o silencioso e ligeiro”. E o Príncipe Nuque lhe deu Peter, que era mais encurvado e menos rabugento do que qualquer um de seus irmãos. E o Príncipe Ril deu Nuter, o ril mais amável que já existiu. E a Rainha das Fadas deu Wisk, um menino-fada pequeno e travesso mas adorável, que hoje conhece quase tantas crianças quanto o próprio Papai Noel.
Com essas pessoas para ajudar a fazer os brinquedos, manter a casa em ordem e cuidar do trenó e das rédeas, o Papai Noel achou muito mais fácil preparar sua carga anual de presentes, e os dias começaram a passar com tranquilidade e alegria.
No entanto, após algumas gerações, suas preocupações se renovaram, pois era notável como o número de pessoas continuava crescendo e quantas crianças nasciam todos os anos. Quando as pessoas ocupavam todas as cidades e terras de um país, iam para outra parte do mundo, e os homens cortavam as árvores em muitas das grandes florestas que haviam sido governadas por Ak. Com a madeira, construíam novas cidades, e, onde antes havia florestas, viam-se plantações e rebanhos a pastar.
Você poderia imaginar que o Mestre Florestal se rebelou com a perda de suas florestas, mas não foi isso que aconteceu. A sabedoria de Ak era grande e previdente.
— O mundo foi feito para os homens, eu só protegi as florestas até que precisassem delas — disse ao Papai Noel. — Fico feliz que minhas árvores fortes possam fornecer abrigo para os corpos fracos dos homens e aquecê-los no frio do inverno. Mas espero que não cortem todas as árvores, pois a humanidade precisa do abrigo das florestas no verão tanto quanto do calor da lenha ardente no inverno. E, por mais lotado que o mundo possa ficar, não creio que os homens jamais venham a Burzee, nem à Grande Floresta Negra, nem à Mata de Braz, a menos que busquem a sombra de suas árvores gigantes por prazer e não as destruam.
Pouco a pouco, as pessoas fizeram navios com os troncos das árvores, atravessaram os oceanos e construíram cidades em terras longínquas, mas os oceanos não impediram as viagens do Papai Noel. Suas renas corriam sobre as águas com tanta velocidade quanto em terra, e seu trenó ia do leste ao oeste e seguia no rastro do sol. Assim, enquanto a terra girava devagar, o Papai Noel tinha 24 horas para dar a volta nela a cada véspera de Natal, e as rápidas renas gostavam cada vez mais dessas viagens maravilhosas.
Ano após ano, geração após geração e século após século, o mundo envelhecia, as pessoas se tornavam mais numerosas e as atividades do Papai Noel aumentavam sempre. A fama de suas boas ações se espalhou por todos os lares onde havia crianças. E todos os pequeninos o amavam muito, e os pais e as mães o reverenciavam pela felicidade que ele lhes tinha dado quando também eram jovens, e os avós idosos lembravam-se dele com terna gratidão e abençoavam seu nome.
Capítulo Três
Os representantes do Papai Noel
No entanto, houve um mal no caminho da civilização que causou uma enorme quantidade de problemas ao Papai Noel antes que ele descobrisse uma maneira de superá-lo. Mas, felizmente, foi a última provação a que ele precisou se submeter.
Numa véspera de Natal, depois que suas renas saltaram para o alto de um novo prédio, o Papai Noel ficou surpreso ao descobrir que a chaminé ali era muito menor que o normal. Mas não tinha tempo para pensar nisso, então respirou fundo para ficar o mais esguio que pudesse e desceu pela chaminé.
— A esta altura eu já deveria ter chegado ao chão — pensou enquanto continuava a descer, mas seu olhar não encontrou nenhuma lareira e, muito tempo depois, chegou ao fim da chaminé, que ficava no porão. — Que estranho! — refletiu, muito intrigado com essa experiência. — Se não há lareira, para que serve a chaminé?
Tentou sair subindo por onde tinha vindo e achou a tarefa difícil, já que o espaço era muito apertado. No caminho para cima, viu um cano fino e redondo atravessando a lateral da chaminé, mas não conseguiu adivinhar para que servia.
Finalmente, alcançou o telhado e disse às renas:
— Não havia necessidade de descer por essa chaminé, pois não consegui encontrar nenhuma lareira pela qual pudesse entrar na casa. Receio que as crianças que moram aqui vão ficar sem brinquedos neste Natal.
Então ele seguiu em frente, mas logo chegou a outra casa nova com uma chaminé pequena. Isso fez o Papai Noel balançar a cabeça, em dúvida, mas entrou pela chaminé mesmo assim e descobriu que era exatamente igual à outra. Além disso, quase ficou preso no cano estreito e rasgou o casaco ao tentar sair; portanto, embora tenha se aproximado de várias chaminés naquela noite, não se atreveu a descer mais nenhuma delas.
— O que as pessoas têm na cabeça para construir chaminés tão inúteis? — reclamou. — Em todos os anos em que viajei com minhas renas, nunca tinha visto nada assim.
Era bem verdade, mas o Papai Noel não havia descoberto que os fogões tinham sido inventados e todos já começavam a usá-los. Quando descobriu, ficou imaginando como os construtores daquelas casas poderiam ter tão pouca consideração por ele, quando sabiam muito bem que tinha o costume de descer pela chaminé e entrar numa casa por meio da lareira. Talvez os homens que construíram aquelas casas tivessem superado seu próprio amor pelos brinquedos e não se importassem se o Papai Noel presentearia seus filhos ou não. Qualquer que fosse a explicação, as pobres crianças tiveram que carregar o fardo da tristeza e da decepção.
No ano seguinte, o Papai Noel encontrou cada vez mais chaminés novas sem lareiras, e no outro ano ainda mais. No terceiro ano, as chaminés estreitas eram tantas que ele voltou para casa com alguns brinquedos que não conseguiu entregar, pois não conseguia chegar às crianças.
O assunto tinha se tornado tão sério que preocupou muito o bom homem, e ele decidiu conversar com Kilter, Peter, Nuter e Wisk.
Kilter já sabia alguma coisa sobre isso, pois fora encarregado de percorrer todas as casas, pouco antes do Natal, e reunir os bilhetes e cartas para o Papai Noel que as crianças haviam escrito, contando o que queriam encontrar nas meias ou pendurado nas árvores de Natal. Mas Kilter era um sujeito silencioso e raramente falava do que via nas cidades e aldeias. Os outros ficaram indignados.
— Essa gente age como se não quisesse a felicidade dos filhos! — disse o sensato Peter num tom irritado. — Imagine impedir a entrada de um amigo tão generoso com os pequeninos!
— Mas minha intenção é fazer as crianças felizes, quer seus pais concordem ou não — respondeu o Papai Noel. — Anos atrás, quando comecei a fazer brinquedos, as crianças eram ainda mais negligenciadas pelos pais do que são agora. Por isso, aprendi a não prestar atenção a pais descuidados ou egoístas, mas a pensar apenas nos anseios da infância.
— Tem razão, meu mestre — disse Nuter, o ril. — Muitas crianças não teriam um amigo se você não pensasse nelas e em fazê-las felizes.
— Então devemos abandonar a ideia de usar essas chaminés novas e passar a agir como ladrões, invadindo as casas de outro jeito! — declarou o risonho Wisk.
— Que jeito? — perguntou o Papai Noel.
— Ora, paredes de tijolo, madeira e reboco não são nada para as fadas. Posso atravessá-las quando quiser, assim como Peter, Nuter e Kilter. Não é verdade, camaradas?
— Atravesso muitas paredes quando recolho as cartas — respondeu Kilter, e essa foi uma frase bem comprida para ele, surpreendendo Peter e Nuter de tal forma que seus olhos redondos se arregalaram e quase pularam da cabeça.
— Portanto, você também pode nos levar na sua próxima viagem — continuou Wisk. — Quando chegarmos a uma dessas casas com fogões em vez de lareiras, distribuiremos os brinquedos para as crianças sem a necessidade de usar uma chaminé.
— É um bom plano — respondeu o Papai Noel, contente com a solução. — Vamos tentar no ano que vem.
Foi assim que o menino-fada, o elfo, o nuque e o ril viajaram no trenó com seu mestre na véspera de Natal seguinte e não tiveram nenhuma dificuldade para entrar nas casas novas e deixar brinquedos para as crianças que moravam nelas.
E seus serviços hábeis não só reduziram muito o trabalho do Papai Noel como permitiram que ele concluísse as próprias tarefas com mais rapidez, de modo que o grupo alegre voltasse para casa com o trenó vazio uma hora antes do amanhecer.
A única desvantagem da jornada foi que o travesso Wisk insistia em fazer cócegas nas renas com uma pena comprida, para vê-las pular, e o Papai Noel achou necessário vigiá-lo a cada minuto e dar uma ou duas puxadelas em suas longas orelhas para fazê-lo se comportar.
Mas, no todo, a viagem foi um grande sucesso, e até hoje os quatro pequeninos sempre acompanham o Papai Noel em sua jornada anual e o ajudam a distribuir os presentes.
Mas a indiferença dos pais, que tanto incomodou o bom santo, não continuou por muito tempo, e o Papai Noel logo descobriu que, na verdade, eles estavam ansiosos por sua visita e pelos presentes para os filhos.
Então, para facilitar a tarefa, que vinha se tornando muito difícil, o velho Papai Noel decidiu pedir que os pais o ajudassem.
— Preparem suas árvores de Natal para a minha chegada — disse ele. — Assim, poderei deixar os presentes sem perda de tempo, e vocês poderão colocá-los nas árvores quando eu partir.
E, para outros, disse:
— Cuidem para que as meias das crianças fiquem prontas para a minha chegada. Assim, posso enchê-las num piscar de olhos.
E, muitas vezes, quando os adultos eram gentis e tinham boa índole, o Papai Noel simplesmente largava o pacote de presentes e deixava os pais e as mães encherem as meias depois que ele disparava em seu trenó.
— Farei de todos os pais amorosos meus representantes! — gritou o velhinho alegre. — Eles me ajudarão a fazer meu trabalho, pois assim ganharei muitos minutos preciosos e menos crianças serão negligenciadas por falta de tempo para visitá-las.
Além de carregar os grandes sacos no trenó veloz, o velho Papai Noel começou a mandar pilhas enormes de brinquedos para as lojas, para que, se os pais quisessem mais presentes para os filhos, pudessem obtê-los com facilidade; e se, por acaso, o Papai Noel deixasse de atender alguma criança em sua ronda anual, os pais poderiam ir às lojas de brinquedos e comprar o suficiente para deixá-las felizes e contentes. Pois o amigo amoroso dos pequeninos decidiu que, se pudesse impedir, nenhuma criança ansiaria por brinquedos em vão. E as lojas de brinquedos também eram convenientes sempre que uma criança adoecia e precisava de um novo brinquedo para diverti-la; e às vezes, nos aniversários, os pais e as mães vão às lojas e compram bons presentes para os filhos em homenagem ao dia feliz.
Talvez agora você entenda como, apesar da grandeza do mundo, o Papai Noel consegue dar presentes a todas as crianças. Claro que é raro ver o velho cavalheiro nos dias de hoje, mas não é porque ele esteja se escondendo, isso eu garanto. O Papai Noel é o mesmo amigo amoroso das crianças que antigamente brincava com elas o tempo todo, e sei que ele adoraria fazer a mesma coisa agora, se tivesse tempo. Mas, veja só, Noel passa o ano todo tão ocupado fazendo brinquedos e está com tanta pressa na noite em que visita nossas casas com seus presentes que ele vem e vai como um raio, e é quase impossível vê-lo.
E, embora hoje existam milhões e milhões de crianças a mais no mundo, ninguém nunca ouviu o Papai Noel se queixar de seus números crescentes.
— Quanto mais, melhor! — diz ele, rindo com gosto. A única diferença para ele é o fato de que seus pequenos operários precisam fazer seus dedos ocupados trabalharem mais rápido a cada ano para satisfazer as demandas de tantos pequeninos. — No mundo inteiro não há nada mais lindo do que uma criança feliz — diz o bom e velho Papai Noel.
Se tudo fosse como ele quer, todas as crianças seriam lindas, pois todas seriam felizes.
Fim
Conto Extra!
O Sequestro do Papai Noel
L. Frank Baum, 1904
Tradução de Carol Chiovatto
Ilustrações de Frederick Richardson
O Papai Noel mora no Vale Risonho, onde fica o grande castelo errante em que seus brinquedos são fabricados. Seus trabalhadores, selecionados entre rils, nuques, duendes e elfos, vivem com ele, e todo mundo fica tão ocupado quanto é possível de um fim de ano até o outro.
O lugar é chamado de Vale Risonho porque tudo lá é feliz e alegre. O riacho ri para si mesmo quando pula, travesso, entre suas margens verdes; o vento assobia alegremente entre as árvores; os raios de sol dançam leves sobre a grama macia, e as violetas e flores silvestres têm um ar sorridente em seus ninhos verdes. Para rir é preciso ser feliz; para ser feliz é preciso estar contente. E, por todo o Vale Risonho do Papai Noel, o contentamento reinava supremo.
De um lado fica a poderosa Floresta de Burzee. Do outro, há a imensa montanha onde fica a Caverna dos Espíritos.4 Entre esses dois lugares está o Vale, sorrindo pacífico.
Você pode pensar que o nosso bom e velho Papai Noel, que dedica seus dias a fazer as crianças felizes, não tem nenhum inimigo em toda a Terra; e, na verdade, por muito tempo, ele não encontrou nada além de amor aonde quer que fosse. Mas os Espíritos que vivem nas cavernas da montanha começaram a odiar o Papai Noel, só porque ele faz as crianças felizes.
São cinco Cavernas de Espíritos. Um caminho largo leva até a primeira delas, que tem forma de abóbada e fica ao pé da montanha, com a entrada esculpida de um jeito muito bonito e bem decorada. Lá é onde mora o Espírito do Egoísmo.
Atrás desta, há outra caverna, habitada pelo Espírito da Inveja. A Caverna do Espírito do Ódio é a próxima, e depois dela fica o lar do Espírito da Maldade — localizado numa caverna escura e assustadora, bem no coração da montanha. Eu não sei o que existe depois de lá. Alguns dizem que há terríveis armadilhas que levam à morte e à destruição, e isso pode muito bem ser verdade.
No entanto, de cada uma das quatro cavernas mencionadas sai um túnel pequeno e estreito que leva até a quinta — um quartinho confortável ocupado pelo Espírito do Arrependimento. E, como o chão de pedra dessas passagens está bem gasto pelo uso, acredito que muitos viajantes perdidos nas Cavernas dos Espíritos tenham escapado pelos túneis para o lar do Espírito do Arrependimento, que dizem ser um camarada bem agradável, que abre uma portinha alegremente para deixar você alcançar o ar fresco e o sol outra vez.
Bem, esses Espíritos das Cavernas, achando que tinham muitos motivos para odiar o Papai Noel, fizeram uma reunião um dia para discutir o assunto.
— Já estou começando a me sentir solitário — disse o Espírito do Egoísmo —, porque o Papai Noel distribui muitos presentes de Natal bonitos para todas as crianças, e elas ficam felizes e generosas, e, por causa desse exemplo, ficam longe da minha Caverna.
— Estou tendo o mesmo problema — ajuntou o Espírito da Inveja. — Os pequenos parecem muito contentes com o Papai Noel, e só consigo persuadir poucos a ficarem invejosos.
— E isso deixa tudo muito difícil para mim! — declarou o Espírito do Ódio —, porque se nenhuma criança passa pelas Cavernas do Egoísmo e da Inveja, não podem chegar à minha caverna.
— Ou à minha — acrescentou o Espírito da Maldade.
— Quanto a mim — disse o Espírito do Arrependimento —, é fácil ver que se nenhuma das crianças visita as suas cavernas, não precisam visitar a minha, então estou sendo tão negligenciado quanto vocês.
— E tudo por causa dessa pessoa que chamam de Papai Noel! — exclamou o Espírito da Inveja. — Ele está simplesmente arruinando o nosso negócio e temos de fazer alguma coisa logo.
Concordaram com isso prontamente, mas o que fazer era outro assunto, e mais difícil decidir. Eles sabiam que o Papai Noel trabalhava o ano todo em seu castelo no Vale Risonho, preparando os presentes que seriam distribuídos na Véspera de Natal, e, a princípio, resolveram atraí-lo para suas cavernas, de modo a poderem levá-lo para as terríveis armadilhas que terminavam em destruição.
Assim, no dia seguinte, enquanto o Papai Noel estava ocupado trabalhando, cercado de seu pequeno grupo de assistentes, o Espírito do Egoísmo foi até ele e disse:
— Esses brinquedos são muito bonitos e alegres. Por que você não fica com eles? É uma pena dá-los àqueles meninos barulhentos e àquelas meninas resmungonas, que os quebram tão rápido.
— Bobagem! — exclamou o velho de barbas brancas, com seus olhos brilhantes reluzindo alegremente, enquanto se virava para o Espírito tentador. — Os meninos e meninas nunca ficam tão barulhentos e resmungões depois de ganharem meus presentes. Se eu puder fazê-los felizes por um dia no ano, estarei bastante contente.
Então o Espírito voltou para os outros, que o esperavam em suas cavernas, e disse:
— Eu falhei, porque o Papai Noel não é egoísta.
No dia seguinte, o Espírito da Inveja visitou o Papai Noel.
— As lojas de brinquedos são cheias de coisas tão bonitas quanto as que você está fazendo — disse ele. — Que vergonha eles interferirem no seu trabalho! Fazem brinquedos usando máquinas, muito mais rápido do que você consegue fazer à mão, e os vendem por dinheiro, enquanto você não ganha nada com o seu trabalho!
Mas o Papai Noel recusou-se a sentir inveja das lojas de brinquedos.
— Eu consigo fornecer aos pequenos apenas uma vez por ano, na Véspera de Natal — ele respondeu —, pois são muitas crianças, e eu sou só um. Como o meu trabalho é por amor e bondade, eu teria vergonha de ganhar algum dinheiro pelos meus presentinhos. Mas ao longo do ano, as crianças precisam se entreter de algum jeito, então as lojas de brinquedos são capazes de trazer muita felicidade aos meus amiguinhos. Eu gosto das lojas de brinquedos e fico feliz em vê-las prosperar.
Apesar da segunda recusa, o Espírito do Ódio pensou em tentar influenciar o Papai Noel. Assim, no dia seguinte, entrou na oficina atarefada e disse:
— Bom dia, Noel! Tenho más notícias para você!
— Então fuja, como um bom sujeito — respondeu o Papai Noel. — Más notícias são coisas que devem ser mantidas em segredo e nunca contadas.
— Mas você não pode escapar disso — declarou o Espírito —, pois no mundo há muitos que não acreditam no Papai Noel e estes você está fadado a odiar amargamente, por conta de tamanha ofensa.
— Quanta bobagem! — exclamou o Papai Noel.
— E há outros que ressentem o fato de você fazer as crianças felizes, pessoas que zombam de você e o chamam de velho tolo e tagarela! Você está certo em odiar esse monte de caluniadores e precisa ser vingado por tais palavras más!
— Mas eu não os odeio! — exclamou o Papai Noel, categoricamente. — Essas pessoas não me causam nenhum mal de verdade, apenas deixam a si mesmos e a seus filhos infelizes. Eu preferiria ajudá-los algum dia, em vez de machucá-los.
De fato, os Espíritos não conseguiram tentar o Papai Noel de nenhuma forma. Ao contrário, ele era sagaz o bastante para ver que o objetivo deles ao visitá-lo era fazer maldades e causar problemas, e sua risada alegre desconcertava os maus e lhes mostrava a tolice de tentar fazer isso. Então, abandonaram as palavras doces e decidiram usar a força.
Era bem sabido que não se podia causar mal ao Papai Noel enquanto ele estivesse no Vale Risonho, pois todos os elfos, rils e nuques o protegeriam. Mas na Véspera de Natal, ele guia suas renas pelo mundo afora, levando um trenó cheio de brinquedos e presentes bonitos para as crianças. Aquela seria a ocasião em que seus inimigos teriam a melhor chance de feri-lo. Assim, os Espíritos fizeram seus planos e esperaram pela chegada da Véspera de Natal.
A lua brilhava grande e branca no céu, e a neve estava fofa e reluzente no chão quando o Papai Noel estalou seu chicote e disparou para longe do Vale Risonho até o imenso mundo além. O amplo trenó estava cheio de sacos enormes de brinquedos, e quando as renas dispararam para a frente, nosso risonho velho Noel gargalhou, assoviou e cantou por todas as alegrias, pois em toda a sua vida feliz, aquele era o dia do ano em que ficava mais feliz — o dia em que amavelmente entregava os tesouros de seu trabalho para as criancinhas.
Seria uma noite cheia para ele, sabia bem. Enquanto assoviava, gritava e batia com o chicote outra vez, repassava em sua mente todas as cidades pequenas e grandes e as fazendas em que era esperado, e teve certeza de que tinha presentes o suficiente para fazer todas as crianças felizes. As renas sabiam exatamente o que era esperado delas, e correram tão velozes que suas patas mal pareciam tocar o chão coberto de neve.
De repente, uma coisa estranha aconteceu: uma corda atravessou a luz da lua e um laço grande — que estava na extremidade — passou por cima dos braços e do corpo do Papai Noel, amarrando-o. Antes que ele pudesse resistir ou gritar, foi arrancado do assento do trenó e bateu a cabeça num monte de neve, enquanto as renas continuaram adiante, com o carregamento de brinquedos, e logo sumiram de vista.
Tal acontecimento surpreendente confundiu o Papai Noel por um momento. Quando recuperou os sentidos, descobriu que os Espíritos malvados o haviam puxado do trenó e o tinham amarrado apertado com muitos rolos de corda grossa. Então levaram dali o Papai Noel sequestrado para a sua montanha, onde jogaram o prisioneiro numa caverna secreta e o acorrentaram a uma parede de pedra para que não pudesse escapar.
— Ha-ha! — Os Espíritos riram, esfregando as mãos com uma alegria cruel. — O que as crianças vão fazer agora? Como vão chorar, gritar e se enfurecer quando descobrirem que não há presentes embaixo de suas árvores de Natal! E quantos castigos elas vão receber de seus pais, e como vão vir em bando para as nossas Cavernas do Egoísmo, da Inveja, do Ódio e da Maldade! Nós, os Espíritos das Cavernas, fizemos algo muito esperto e poderoso.
Mas acontece que, naquela Véspera de Natal, o Papai Noel tinha levado consigo no trenó, Nuter, o ril; Peter, o nuque; Kilter, o duende e um elfo chamado Wisk — seus quatro assistentes preferidos. Aquelas pessoas pequeninas haviam sido muito úteis em ajudá-lo a distribuir os presentes para as crianças. No momento em que seu mestre foi arrancado do trenó tão de repente, eles estavam enfiados confortavelmente embaixo do assento para o vento não os atingir.
Os minúsculos seres imortais só perceberam que o Papai Noel tinha sido sequestrado depois de um tempo que ele desaparecera. Mas, finalmente, sentiram falta de sua voz alegre, e como seu mestre sempre cantava ou assoviava em suas viagens, o silêncio os avisou de que algo estava errado.
O pequeno Wisk pôs a cabeça para fora de onde estava sob o assento e descobriu que o Papai Noel havia sumido e ninguém controlava o voo das renas.
— Eia! — ele gritou, e os cervos obedientemente desaceleraram e pararam.
Peter, Nuter e Kilter pularam para cima do assento e olharam para a trilha deixada pelo trenó. Mas o Papai Noel havia sido deixado quilômetros e quilômetros para trás.
— O que vamos fazer? — perguntou Wisk ansioso, toda a alegria e diabrura abandonando seu rostinho por causa da grande calamidade.
— Devemos voltar imediatamente e encontrar o nosso mestre — disse Nuter, o ril, que pensava e falava com muita ponderação.
— Não, não! — exclamou Peter, o nuque, que, embora fosse rabugento e mal-humorado, era alguém com quem sempre se podia contar em uma emergência. — Se nos atrasarmos ou voltarmos, não teremos tempo de deixar os brinquedos para as crianças antes de amanhecer, e isso magoaria o Papai Noel mais do que qualquer outra coisa.
— Com certeza foi alguma criatura má que o capturou — acrescentou Kilter pensativamente. — E o objetivo dela deve ser deixar as crianças infelizes. Então nosso primeiro dever é entregar os presentes com tanto cuidado quanto se o Papai Noel estivesse conosco. Depois podemos procurar o nosso mestre e libertá-lo com facilidade.
Aquilo parecia um conselho tão bom e sensato que os outros logo resolveram segui-lo. Então, Peter, o nuque, dirigiu-se às renas, e os animais fiéis dispararam outra vez, por montanhas e vales, florestas e campos, até chegarem às casas onde as crianças dormiam, sonhando com os presentes bonitos que encontrariam na manhã de Natal.
Os pequenos imortais tinham assumido uma tarefa difícil, pois, embora ajudassem o Papai Noel em muitas de suas viagens, seu mestre sempre os guiava e lhes dizia exatamente o que gostaria que fizessem. Mas agora precisavam distribuir os presentes de acordo com seu próprio julgamento e não entendiam as crianças tão bem quanto o velho Noel. Então não é nenhuma surpresa que tenham cometido alguns erros engraçados.
Mamie Brown, que queria uma boneca, ganhou uma bateria, e uma bateria é inútil para meninas que gostam de bonecas. E Charlie Smith, que adorava correr e brincar do lado de fora, e queria botas de borracha novas para manter seus pés secos, ganhou uma caixa de costura cheia de lã, linha e agulhas, que o deixaram tão irritado que ele, sem pensar, chamou nosso querido Papai Noel de fraude.
Foram tantos os enganos que os Espíritos conseguiram alcançar seu propósito de fazer as crianças infelizes. Mas os amiguinhos do Papai Noel desaparecido trabalharam com lealdade e inteligência para pôr em prática as ideias de seu mestre, e erraram menos do que se poderia esperar naquelas circunstâncias.
E, embora tivessem trabalhado o mais rápido possível, o dia começava a raiar antes de todos os brinquedos e presentes serem entregues, então, pela primeira vez em muitos anos, as renas retornaram ao Vale Risonho em plena luz do dia, com o sol brilhante espreitando por sobre a beira da floresta, deixando claro que estavam bem depois de seu horário de costume.
Depois de colocarem as renas no estábulo, os pequenos começaram a se questionar sobre como poderiam resgatar seu mestre, e perceberam que precisavam descobrir, antes de tudo, o que tinha acontecido com ele e onde ele estava.
Assim, Wisk, o elfo, transportou-se para a cabana da Rainha dos Elfos, que ficava bem no coração da Floresta de Burzee, e lá não demorou muito a ficar sabendo sobre os Espíritos malvados e como tinham capturado o bom Papai Noel para que ele não conseguisse fazer as crianças felizes. A Rainha dos Elfos prometeu ajudar, e então, mais forte por causa da ajuda poderosa, Wisk voou de volta para onde Nuter, Peter e Kilter o esperavam, e os quatro se reuniram para fazer planos de resgatar seu mestre dos inimigos.
É possível que o Papai Noel não estivesse feliz como de costume durante a noite após sua captura, pois, embora tivesse fé no bom senso de seus amiguinhos, não conseguia evitar sentir um pouco de preocupação, e um olhar de ansiedade às vezes tomava seus olhos velhinhos e bondosos quando pensava na decepção que aguardava as criancinhas. E os Espíritos, que tomavam conta dele em turnos, um após o outro, não deixaram de zombar do bom velhinho com palavras maldosas sobre sua condição desamparada.
Quando raiou o Dia de Natal, o Espírito da Maldade vigiava o prisioneiro, e sua língua estava mais afiada do que a de qualquer outro.
— As crianças estão acordando, Noel! — ele exclamou. — Estão acordando e encontrando suas meias vazias! Ho, ho! Como vão brigar e espernear, e bater os pés de raiva! Nossas cavernas ficarão cheias hoje, velho Noel! Nossas cavernas com certeza vão ficar cheias!
Mas o Papai Noel não respondeu nem àquelas nem a outras provocações. Estava muito triste por ter sido capturado, é verdade, mas sua coragem não o abandonou. Percebendo que o prisioneiro não replicava suas chacotas, o Espírito da Maldade foi embora, e mandou o Espírito do Arrependimento para tomar o seu lugar.
Este último não era tão desagradável quanto os outros. Era gentil e culto e sua voz tinha um tom suave e agradável.
— Meus irmãos Espíritos não confiam muito em mim — ele disse, entrando na caverna. — Mas é manhã agora, e o mal está feito. Você só pode visitar as crianças outra vez daqui a um ano.
— Isso é verdade — respondeu o Papai Noel, quase alegre. — A Véspera de Natal passou, e pela primeira vez em séculos eu não visitei minhas crianças.
— Os pequenos ficarão muito decepcionados — murmurou o Espírito do Arrependimento, quase lamentando. — Mas não há nada a fazer agora. A mágoa provavelmente vai deixar as crianças egoístas, invejosas e cheias de ódio, e se vierem até as Cavernas dos Espíritos, terei uma chance de guiar algumas para a minha Caverna do Arrependimento.
— Você mesmo nunca se arrepende?
— Oh, sim — respondeu o Espírito. — Agora mesmo estou me arrependendo de ter ajudado na sua captura. Claro que é muito tarde para remediar o mal que foi feito, mas arrependimento, como você sabe, só pode vir depois de um pensamento ou ação ruim, pois no começo não há nada de que se arrepender.
— Eu entendo as coisas assim: aqueles que evitam o mal nunca visitam a sua caverna.
— Como regra, isso é verdade — respondeu o Espírito. — Ainda assim, você, que não fez mal algum, está prestes a visitar minha caverna, pois, como prova de que eu me arrependo sinceramente de minha participação na sua captura, vou permitir que você escape.
Aquele discurso surpreendeu muito o prisioneiro, até ele pensar que isso era justamente o que deveria esperar do Espírito do Arrependimento. O camarada logo se ocupou em desatar os nós que amarravam o Papai Noel e em destrancar as correntes que o prendiam à parede. Guiou-o, então, por um longo túnel, até chegarem à Caverna do Arrependimento.
— Espero que você me perdoe — disse o Espírito, em tom de súplica. — Eu não sou mau de verdade, sabe, e acredito que faço um grande bem ao mundo.
Com isso, ele abriu a porta dos fundos, que deixou a sala inundar-se de luz do sol, e o Papai Noel inspirou o ar fresco, agradecido.
— Eu não tenho maldade — disse ele ao Espírito, com uma voz gentil. — E tenho certeza de que o mundo seria um lugar sombrio sem você. Por isso, bom dia, e um Feliz Natal!
Com aquelas palavras, ele saiu para saudar a manhã clara, e um momento depois caminhava assoviando baixo para si mesmo, a caminho do Vale Risonho.
Marchando pela neve rumo à montanha encontrava-se um exército imenso, composto pelas criaturas mais estranhas imagináveis. Havia uma infinidade de nuques da floresta, de aparência tão desgastada e torta quanto os galhos retorcidos das árvores de que cuidavam. Atrás deles, havia muitas fileiras de duendes, gnomos e ninfas, e atrás mil elfos lindos flutuavam em um belo conjunto.
Aquele maravilhoso exército era guiado por Wisk, Peter, Nuter e Kilter, que o tinham reunido para resgatar o Papai Noel do cativeiro e punir os Espíritos que tinham ousado roubá-lo de suas amadas crianças.
Embora parecessem alegres e pacíficos, os pequenos imortais estavam armados com poderes que seriam terríveis para aqueles que despertassem sua raiva. Tragédia para os Espíritos da Caverna se aquele poderoso exército de vingança algum dia os encontrasse!
Mas, vejam! Vindo ao encontro de seus amigos leais apareceu a figura grandiosa do Papai Noel, com sua barba branca flutuando contra a brisa e seus olhos vivos brilhando com satisfação por aquela prova do amor e da veneração que havia inspirado nos corações das criaturas mais poderosas existentes.
Enquanto todos se amontoavam ao seu redor e dançavam felizes por ele ter voltado seguro, o bom velhinho lhes agradeceu muito pelo apoio. Já Wisk, Nuter, Peter e Kilter ele abraçou afetuosamente.
— É inútil ir atrás dos Espíritos — disse o Papai Noel ao exército. — Eles têm seu lugar no mundo, e nunca podem ser destruídos. Mas é uma pena, mesmo assim.
Com isso, os elfos, os nuques, duendes e rils acompanharam o Papai Noel de volta ao seu castelo e lá o deixaram para conversar sobre os acontecimentos da noite com seus pequeninos assistentes.
Wisk ficou invisível para voar pelo grande mundo e ver como as crianças estavam enfrentando aquela manhã clara de Natal, e, quando voltou, Peter já havia terminado de contar ao Papai Noel como tinham distribuído os brinquedos.
— Fizemos muito bem — exclamou o elfo em um tom satisfeito. — Pois encontrei pouca infelicidade entre as crianças nesta manhã. Mesmo assim você não deve ser capturado outra vez, querido mestre, pois pode ser que nós não tenhamos tanta sorte de conseguir executar suas ideias.
Relatou, então, os enganos que tinham cometido, e que não haviam descoberto até aquela viagem de inspeção. O Papai Noel imediatamente mandou Wisk com botas de borracha para Charlie Smith e uma boneca para Mamie Brown, para que até aqueles dois entristecidos ficassem felizes.
Quanto aos Espíritos das Cavernas malvados, eles ficaram cheios de raiva e desgosto quando descobriram que o hábil sequestro do Papai Noel chegara ao fim. Na verdade, ninguém naquele Dia de Natal parecia ter ficado egoísta, nem invejoso, nem cheio de ódio. E, percebendo que o santo das crianças tinha tantos amigos poderosos que era burrice lutar contra ele, os Espíritos nunca mais tentaram interferir na jornada do bom velhinho na Véspera de Natal.
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