Criar um Site Grátis Fantástico
Translate to English Translate to Spanish Translate to French Translate to German Translate to Italian Translate to Russian Translate to Chinese Translate to Japanese

  

 

Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


VIGDIS, A INDOMÁVEL / Sigrid Undset
VIGDIS, A INDOMÁVEL / Sigrid Undset

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblio "SEBO"

 

 

 

   

Havia na Islândia, estranha ilha do Atlântico Norte, um homem de nome Veterlide que era oriundo do Ostfjord e se ausentava com frequência para longe, durante o Verão, a fim de tratar dos seus negócios.

Seu sobrinho Hauksson, filho de sua irmã, chamava-se Ljot. Este era o filho de Gissur Hauksson de Skomedal, que foi assassinado quando Ljot era ainda pequenito. Veterlide encarregou-se de vingar o trágico fim de Gissur, conquistando assim grande honra, mas isto é uma outra história. A mãe de Ljot chamava-se Steinvor, e morreu muito nova. O pequeno Ljot acolheu-se em casa de Torbjorn, no Eyre, onde se criou, e mais tarde foi para junto de Veterlide, que lhe queria como se ele fosse seu filho. Muito jovem ainda, Ljot começou a conduzir-se com a maturidade dum homem feito. Desde os quinze anos, dera-se a acompanhar os filhos do seu protector Torbjorn nas expedições de «vikings» e depressa adquiriu grande renome pela bravura e destreza nos combates. Tinham-no na conta de moço invulgarmente dotado e com as qualidades dum chefe. Muito consciencioso, não faltava nunca à palavra. Mas, pouco loquaz, era a custo, morosamente, que estabelecia quaisquer convívios, e preferia em geral estar só. Por uma ou outra razão o apelidavam de Viga Ljot.

No Verão em que perfizera os vinte anos, Ljot acompanhou Veterlide à Noruega. Possuíam em comum (sendo de um terço a parte de Ljot) um magnífico barco perfeitamente adequado à navegação no alto mar.

Veterlide tinha família no Romerike, e pensava em pedirhospitalidade a esses parentes. Na realidade, era sua intenção empregar alguns dias na compra de madeira de construção na Noruega.

O Verão ia já bastante adiantado quando eles chegaram à baía de Folden. Ajudando-se com os remos, fizeram passar o barco por entre as ilhas da embocadura do rio Frysja, no fiorde, porquanto o vento amainara. Ao anoitecer, o nevoeiro dissipou-se, agarrando-se às vertentes das montanhas. Veterlide e Ljot, em pé à proa, contemplavam a costa altaneira, que naqueles tempos estava recoberta duma densa floresta. Nas vizinhanças do rio havia algumas quintas, na quase totalidade pouco importantes.

Na foz, algumas canoas de pesca sustidas pelas fateixas balouçavam nas ondas. Os pescadores observavam o grande barco que, esfumado pela névoa, deslizava por entre as ilhas. Veterlide gritou-lhes uma saudação e perguntou-lhes donde vinham. Os pescadores, compreendendo que estavam na presença de navegadores pacíficos, responderam que trabalhavam de jorna por conta de Gunnar de Vadin. Este era proprietário do domínio mais extenso perto da ribeira. Veterlide pediu aos homens dos barquitos que os conduzissem a casa de Gunnar. Já fazia escuro quando eles lá chegaram. Gunnar encontrava-se na sala, sentado num elevado cadeirão. Era homem de boa presença e de elevada estatura, de cabelos compridos e barba grisalha que lhe cobria todo o peito. Junto da lareira estavam duas mulheres. Uma delas fiava à luz da chama do lume. Não era nova e envergava vestes negras, mas o seu rosto era belo e claro. A outra, uma rapariga bastante jovem, conservava-se sentada, com as mãos juntas, imóvel.

Veterlide avançou para saudar o dono da quinta, e, antes de ter acabado de explicar ao que vinha, Gunnar ergueu-se, deu-lhe as boas-vindas e à gente que o acompanhava, e disse às mulheres que fossem buscar comida e bebida.

A mulher mais idosa levantou-se, chamou as criadas e pôs-se ela própria a tratar dos preparativos do repasto, entrando e saindo incessantemente, enquanto a mais nova, de pé junto da lareira, se limitava a olhar os forasteiros. Vendo-a em melhor exposição à luz, os visitantes notaram que ela era formosíssima, esbelta e sólida. O seu peito era alto, os olhos acinzentados, e a exuberante cabeleira pendia-lhe até aos joelhos como manto brilhante e espesso, dum louro carregado. As suas longas mãos brancas estavam ornadas de anéis. Vestia um trajo de lã de cor acastanhada, ricamente bordado. Prendia-lhe os cabelos uma estreita faixa de oiro, e tinha sobre si mais jóias e anéis do que é costume uma mulher exibir em dia de semana. Nesse momento, reapareceu a outra mulher, que trazia uma grande comucopia cheia de hidromel. Entregando-lhe a rude vasilha com a bebida, a mulher disse para a jovem:

É a ti, Vigdis, que cumpre dar as boas-vindas nesta casa.

A rapariga pegou na comucopia e, perpassando ao longo dos bancos, ofereceu de beber primeiro a Veterlide e depois aos restantes homens. Ljot foi o último a quem ela se dirigiu. O moço, que começara por se sentar no extremo do banco junto da porta, havia-se aproximado seguidamente da lareira, a fim de se enxugar ao calor do lume, pois estava molhado. Aconchegava com uma das mãos a capa em que se envolvera. A sua escura grenha cobria-lhe a fronte, de modo que Vigdis apenas lhe viu, por assim dizer, do rosto os olhos dum azul sombrio, profundamente enterrados nas órbitas. Quando a jovem lhe apresentou o hidromel, ele deixou de segurar o manto e, enquanto bebia, pôs-se a olhar Vigdis por cima da vasilha. A maneira como o rapaz a contemplava pareceu não lhe agradar e, agarrando no recipiente que ele lhe restituía, foi sentar-se outra vez na banqueta donde se erguera pouco depois da chegada dos visitantes.

Ljot sentou-se também, mas de maneira a poder ver Vigdis. Decorridos instantes, ela lançou disfarçadamente um olhar na sua frente e encontrou os olhos do rapaz. Então, Vigdis corou e voltou-se. Daí a um momento, porém, ergueu de novo a cabeça e pôs-se a mirar insistentemente o moço estrangeiro até que ele baixou a vista.

Nessa conjuntura, trouxeram um repasto tão opulentamente servido que bem poderia chamar-se-lhe um banquete.

Gunnar manifestou a intenção de mandar os criados ao cais para trazerem a tripulação do barco. E acrescentou que, a fim de aquela gente poder repousar das fadigas da viagem, não se opunha a que o seu próprio pessoal olhasse pelo barco naquela noite. Veterlide agradeceu, mas ainda não tinha acabado de falar quando Ljot, vendo-o titubeante, disse para o parente:

A noite vai já avançada, os nossos homens podem, sem risco algum, permanecer a bordo. Assim, escusamos de incomodar os serviçais do dono da casa.

Vigdis soltou uma risada sonora:

Oh! exclamou ela. Este islandês parece receoso pelos seus bens!

Gunnar repreendeu-a, embora sem cólera, e disse:

O islandês teve uma boa ideia em querer poupar o nosso pessoal, mas os homens que remaram hoje contra o mau tempo necessitam dum tecto por cima das suas cabeças e de comida fresca. De resto, não é conveniente, minha filha, responder dessa forma ao hóspede que está na tua casa.

Ljot riu-se, e observou:

Ela não teve certamente má intenção. Além de que não se deve conceder demasiada importância às palavras duma rapariga nova.

A outra mulher falou por seu turno, mas em voz baixa, para Vigdis, que não lhe prestou atenção, contentando-se com sorrir, sentada no pequeno banco. Gunnar enviou então a sua gente à praia e os outros comeram e beberam. A conversação incidiu sobre o péssimo tempo de nevoeiros que fazia de há uns dias àquela parte. O dono da herdade sofrera também com tal tempo um grande prejuízo, visto que as searas já deviam estar a ser ceifadas, o que não fora possível. Gunnar ajuntou:

Na minha mocidade, eu ia também para o mar durante o Verão, e detestava acima de tudo os dias de chuva, de nevoeiro e de calmaria podre...

Ljot interveio com um comentário em forma de canção que, na realidade, nada tinha que ver com a fala do anfitrião daquele solar:

 

             Falaste certo,

             Ó hospitaleiro Gunnar.

             Escura de breu era a noite,

             As filhas de Rans dormitavam;

             Não é bom brincar com elas.

             Doce é o repousar

             Na casa que nos acolhe amistosa.

             Deusas adornadas de jóias

             Põem a mesa.

             Formosas como ela outras não vi no mundo.

             Foi próximo dela,

             A mais bela,

             Que jubiloso me sentei

             Esta noite,

             Em aprazível conversa.

 

 

 

 

O rapaz disse em voz mais baixa as últimas linhas da cantilena, e Gunnar, que começava a estar um pouco toldado pela bebida, não fez reparo nisso. Mas Veterlide notou-o, e para distrair a atenção de Gunnar pôs-se a falar-lhe da viagem.

Momentos depois, Vigdis e as restantes mulheres subiram para os seus aposentos.

Quando os homens cessaram de conversar e se foram deitar, Veterlide disse para o sobrinho:

Não compreendo a tua maneira de proceder, meu filho. Não pareceu bem que, tendo-nos Gunnar recebido com tanta generosidade, dirigisses, logo na primeira noite, poemas a sua filha.

Ljot não deu qualquer resposta, e Veterlide continuou:

Vendo que não tiraste os olhos de cima de Vigdis durante todo o serão, concluí que estás um homem a quem as mulheres entusiasmam. Convém, todavia, não perderes a cabeça à vista duma mulher, pois de nada teriam servido as nossas longas e duras viagens por mar, se não aprendeste a dominar-te.

Também desta vez Ljot nada respondeu e, voltando-se para o outro lado, fez menção de dormir.

 

No dia seguinte, depois do almoço, Gunnar e Veterlide dirigiram-se a cavalo para a praia. Ljot estendeu-se no banco, pretextando que estava fatigado. Mas, assim que os outros deixaram a quinta, ergueu-se, pois estava decidido a ir à procura de Vigdis e a falar-lhe.

Ljot vestia um trajo de viagem, porquanto todas as suas outras vestimentas haviam ficado no barco. Envergava um longo manto com capuz fechado no peito por um travessão de oiro. Sob a capa, cingia-se-lhe ao corpo uma espécie de gibão bordado a prata e a lã azul em todas as costuras, porque Ljot gostava de luxo. Por este motivo e em conformidade com os usos da sua ilha, usava ricas pulseiras nos braços e nos pulsos. Fazia vista, o, rapaz! De elevada estatura, peito largo, de cintura estreita, os seus membros eram robustos e bem conformados. No seu rosto delgado, um pouco crestado pelas intempéries, uma boca rasgada de lábios pálidos atraía o olhar. Tinha, como já dissemos, os olhos azul-escuros, e cabeleira castanha atada atrás com uma fita de seda azul.

O sol brilhava, o tempo estava bom naquele dia, e, quando Ljot saiu para o exterior da casa, descobriu Vigdis, que caminhava no prado ao norte dos edifícios.

Seguiu-a com passo rápido e alcançou-a na orla do bosque. Ele saudou-a e perguntou-lhe se ia desempenhar-se de qualquer tarefa. Vigdis, respondeu-lhe que o seu único desígnio era ir até ao bosque para comer bagas.

Então you acompanhar-te disse Ljot. Não é prudente que vás sozinha. Ouvi dizer que os ursos frequentam os recantos onde crescem as bagas.

Se eu tivesse medo, poderia ter trazido o meu criado respondeu Vigdis. De resto, venho armada.

E, dizendo isto, mostrou uma grande faca presa à cintura. Em torno do cabo enrolava-se um fio doirado e sobre a lâmina viam-se caracteres rúnicos.

Ljot apoderou-se da faca, examinou-a e disse:

Que curiosa faca; deve ser muito velha. Donde a obtiveste?

Pertenceu sempre a minha família respondeu Vigdis. Conta-se que os meus antepassados iam realizar sacrifícios lá no cimo da floresta. Mas isto foi há muito tempo. Ninguém sabe já grande coisa a este respeito. Os nossos escravos vão lá matar galos e suínos, mas meu pai apenas crê no seu próprio poder, na sua própria força, e meu avô também não acreditava em mais nada, segundo me disseram.

A mim sucede-me o mesmo disse Ljot, rindo. Contudo, eu recebi um dia o baptismo dos cristãos.

É uma estranha crença a sua observou Vigdis. O seu Cristo branco não pode ser de grande ajuda, pois ouvi dizer que ele não conseguiu libertar-se a si mesmo, e que os inimigos o mataram no País Azul.

Não sei exactamente o que se passou volveu Ljot e também não creio muito no seu poder. Mas you contar uma coisa que se deu comigo. Havia um homem que levava vida pura e que vivia no Sul da Dinamarca. Ele socorreu-me, curando-me duma grave ferida que eu tinha na perna. Não quis aceitar-me qualquer paga, e acedi a que me baptizassem para não o contrariar.

Tu deves ter viajado muito disse Vigdis. Mas como se explica que não tivesses ido com o teu parente, a fim de veres o que se leva do barco? com certeza hás-de possuir, também, a bordo alguns bens, despojos... Doutra forma como se compreenderia que te chamassem Viga Ljot?

Oh! tenho arranjado, de facto, alguma coisa de bastante valor disse Ljot , mas parece-me que o que tenho a intenção de obter é ainda mais precioso.

É possível respondeu Vigdis. Diz-se, porém, que os islandeses são avaros dos bens e pródigos nas palavras.

Ljot retrucou:

Sempre ouvi dizer que todos os homens desejam ser ricos. Talvez porque, se lhe seguram as dele, o dinheiro dá asas... Mas o que nunca me tinham afirmado é que eu fosse avaro.

Vigdis pôs-se a rir e, evocando uma frase depreciativa que lhe ouvira na véspera, disse:

Não se deve ligar importância às palavras duma rapariga nova como eu.

Acabo de crer que me detestas, Vigdis. Nem um olhar me concedeste desde que nos encontrámos.

Vigdis respondeu:

Não é costume nesta terra olhar muito para os estrangeiros.

Ljot riu-se:

Mas por certo não ornaste a tua cabeleira com um aro de oiro para te ocultares atrás das tuas criadas, Vigdis.

Porque não havia eu de usar o oiro que meu pai me dá?

Tinham chegado ao lugar dos sacrifícios, situado numa clareira. A floresta cercava-o estreitamente. Em torno da ara de sacrifício haviam cravado pedras a prumo, mas muitas delas estavam derrubadas e, em toda a clareira até ao cimo do montículo, cresciam pequenos carvalhos, bétulas e sorveiras. Entre os altos pedregosos elevavam-se hastes de flores, algumas das quais começavam já a ter sementes. O vento arrebatava a sua branca penugem felpuda, que ia aderir às vestes e aos cabelos de Vigdis e de Ljot. Enquanto caminhava, ela sacudia o vestido e os cabelos.

Ljot disse a Vigdis:

Meu tio tenciona pedir a Gunnar que nos dê guarida durante todo o tempo que nos seja necessário para encontrarmos a madeira de construção, que vimos procurar a estes sítios. Mas quer-me parecer que ficarias contente de nos ver partir assim que chegámos aqui. Em suma, creio que não simpatizas nada connosco.

É meu pai quem elege as pessoas que recebe em casa.

Não costuma pedir a minha opinião. Porém, deixa-me tomar as decisões que me dizem respeito.

Acredito sem dificuldade exclamou Ljot, rindo. Tens um ar decidido, não há dúvida.

Dizem que sim. Mas olha que tu, por teu lado, pareces-me um rapaz desembaraçado a valer.

Tenho essa reputação aquiesceu Ljot, com irónica modéstia. Espero, no entanto, que não seremos inimigos um do outro.

Não, certamente, não leva jeitos disso respondeu Vigdis.

Sentaram-se num rochedo e puseram-se a comer umas raízes de polipódio que Vigdis tinha desenterrado. Quando se levantaram, Vigdis esqueceu-se da sua faca. Ljot apanhou-a sem que ela desse por tal e escondeu-a no peito. Depois voltaram juntos para casa, trocando impressões amenas, num entendimento perfeito.

Veterlide comprou madeira a Gunnar. Este não quis que os islandeses pagassem a hospedagem. Pediu-lhes, pelo contrário, que se deixassem estar o tempo que quisessem, e, quando Veterlide falou da sua intenção de ir mais adiante, Gunnar objectou que, se era por causa do alojamento, não valia a pena apressarem-se. Ljot, por seu turno, era da mesma opinião e procurava ver Vigdis o mais frequentemente possível.

Veterlide falou-lhe daquelas conversas um dia em que estavam sós, e Ljot declarou então:

O que mais desejo no mundo é fazer de Vigdis minha mulher. Nunca encontrei outra com quem me fosse tão agradável passar a vida. É mais bela do que a maioria das raparigas que encontrei até agora. Tem elevação de espírito e fala com bom critério. Nem poderia arranjar casamento mais rico, visto ela ser filha única de Gunnar. Suponho, também, que não desagradei a Gunnar.

Não obstante, não podemos dizer de certeza que o contrato lhe convenha observou Veterlide visto que lhe levarias a filha para muito longe de casa. Mas, se o coração de Vigdis se inclina para ti, isso será o essencial, dado que ela quererá por certo decidir por si própria no que respeita ao seu casamento. E tu deves conhecer bem as suas ideias a teu respeito, porque vocês os dois têm passado muitas horas juntos.

Ljot ficou pensativo. Daí a um momento disse:

Não é fácil conhecer o estado de espírito duma mulher.

Por vezes, pareceu-me que ela gostava deveras de mim; mas encoleriza-se com facilidade e as palavras ternas podem ser enganadoras.

Não creio que haja qualquer fingimento em Vigdis respondeu Veterlide , mas a rapariga é muito nova e pode ser que não lhe sorria a ideia de casar, de curvar a cabeça diante dum esposo. Parece-me fortemente obstinada. Aconselho-te, por conseguinte, a prosseguir no teu intento com toda a paciência e discrição que o caso aconselha. Nós vamos partir para o Norte, e visitar os nossos parentes. No regresso, ver-se-á bem quais os sentimentos que nutre por ti e se a tua ausência lhe foi penosa.

Mas Ljot retorquiu:

Não me irei desta casa sem saber no que virá a dar este assunto.

 

Naquela mesma tarde, ao anoitecer, Ljot foi ter com Vigdis que, sentada num banco, estava a coser nos seus aposentos. Ela envergava um vestido azul ricamente bordado, os cabelos louros desatados flutuavam-lhe em torno do busto, e na lareira um braseiro lucilava brandamente.

Vendo Ljot, a moça pousou o trabalho para ir ao encontro do visitante. Mas Ljot não lhe deu tempo, e foi sentar-se ao lado dela, em cima dumas peles. Então Vigdis falou-lhe nestes termos:

Que é que te obriga a vir tão sem-cerimónia ao meu quarto, numa altura em que começa a escurecer e meu pai se encontra fora de casa?

Pouco te tenho visto nestes últimos dias explicou Ljot e preocupam-me muitas coisas que eu gostaria de discutir contigo.

No entanto, temos falado todos os dias.

Tenho ainda muito que te dizer. É por isso que prefiro falar contigo a sós. Veterlide disse-me hoje que eu deveria conhecer os teus sentimentos e saber se tens amizade por mim. Por vezes, creio que me queres bem, mas os teus critérios são frequentemente tão estranhos, e mostras-te tão pronta a zangar-te comigo, que quase receio que me queiras mal no íntimo.

Porque te quereria mal? disse Vigdis, que ficou um momento silenciosa, sem olhar Ljot. Depois, continuou: É curioso que fales assim. Porque mais de uma vez me pareceu, quando estávamos juntos, teres um feitio arrebatado. E, em várias ocasiões, não pude compreender porque nos zangávamos, ou se zombavas de mim. Passei toda a minha vida nesta floresta, e raras pessoas aparecem por estes sítios, Mas tu viajaste por países distantes e viste muitas coisas. É verdade que, por vezes, me irritei contra ti.

Falta-me a prática de conversar com mulheres disse Ljot lentamente. Mas nunca encontrei nenhuma com quem me fosse tão aprazível estar como contigo, nem com quem eu mais desejasse viver.

Como Vigdis não respondesse, acrescentou:

Se isto for do teu agrado, pedirei a tua mão a Gunnar, e tomar-te-ei por esposa.

Vigdis continuava silenciosa, e, então, Ljot rodeou-lhe o pescoço com os braços e premiu os lábios contra os dela. Como a jovem não o repelisse, ele entusiasmou-se e pô-la sobre os joelhos. No mesmo instante, ela desatou a chorar e, repelindo-o, correu a sentar-se no escabelo diante da lareira. A sua doirada juba envolveu-a como um véu, que a chama do lume fazia cintilar. Ljot pensou que jamais um tão belo espectáculo se oferecera a olhos de homem. Aproximou-se de Vigdis e, com a mão pousada no mantel da chaminé, contemplou-a em silêncio, e depois disse:

Sinto-me bem triste por te haver feito chorar, a ti que és a mais bela das mulheres. Mas responde, suplico-te, à pergunta que te fiz.

Concede-me algum tempo implorou Vigdis. Vai ver a tua família, lá às Terras Altas, visto ser essa a tua intenção, e, quando voltares aqui, onde a tua barca está ancorada, responder-te-ei. Creio que a minha resposta será tal como a desejas, mas assim terei de ir viver para muito longe de meu pai e de o deixar só. Acho também que tudo isto sucedeu muito depressa.

Não tão depressa como dizes exclamou Ljot. Há três semanas já que eu estou aqui. Ignoro quais são as potestades que decidem do destino dos homens. Mas os acontecimentos juntaram estreitamente os fios dos nossos destinos. Convenci-me disto a partir do dia em que nos falámos lá em cima na clareira dos sacrifícios.

Vigdis exclamou:

Vejo no teu semblante que estás encolerizado. Lembra-te de que sou muito nova e de que é cedo para mim o pensar no casamento.

Ljot afastou-se e quis sair do quarto:

Oh! já temos idade bastante para nos casarmos, e noto que não sabes o que queres...

Vigdis ergueu-se, aproximou-se dele e disse

Espera algum tempo, como te pedi. Desejo deveras que não me tenhas feito a tua proposta em vão. Mas acho que ainda não te conheço bem, e, se me levares contigo, será para bem longe de tudo o que me pertence.

Dizendo isto, ela lançou-lhe os braços em volta do pescoço, beijou-o e, seguidamente, empurrando-o com suavidade para a porta, pediu-lhe que se retirasse.

 

Depois dos sucessos descritos, Vigdis não saiu do quarto durante dois dias. Nesta conjuntura, deu-se a chegada dum novo visitante à herdade. Era Kare de Grefsin.

Este último voltava para a sua terra após uma viagem ao norte de Trondhjem, e contava muitas coisas acerca de Hakon de Lade, que tinha sido morto recentemente pelo seu servo Kark, e a respeito do rei Olav. Vigdis compareceu na sala no decurso do serão. Sentou-se próximo de Kare e puseram-se ambos a conversar amigavelmente. O recém-chegado era muito jovem, loiro, alto e de bom parecer.

Ljot viu, contrariado, Vigdis sentar-se ao lado do visitante e beber com ele. E disse-lhe o desgosto que aquilo lhe causou, quando, por um instante, pôde encontrar-se junto dela.

Parece que sabes muito bem o que deves pensar de Kare de Grefsin?

Ela respondeu:

É verdade o que dizes. Kare e eu fomos criados juntos e é para mim uma grande alegria tornar a vê-lo.

Mas, depois deste incidente, Ljot olhou Kare com antipatia, e a cada palavra que ele pronunciou naquela noite, a qualquer elogio que ele fizesse, Ljot encontrava logo meio de opor um objecto mais digno de louvor. Por fim, a conversação incidiu sobre cavalos. Kare fez o panegírico do seu cavalo, um animal de boa raça a que tinham dado o nome de Slongve. Fora criado nas terras de Gunnar, que presenteou com ele Kare por amizade. Ljot respondeu que tinha visto Slongve, porque dias antes haviam trazido cavalos da floresta para as lavras de Outono. Entendia que um cavalo que ele próprio comprara ao filho de Arne de Grimelundare era superior a Slongve. O cavalo tinha o nome de Arvak.

Não há afirmou Ljot melhor corredor em todo o país.

Tem realmente boa estampa opinou um velho que estava sentado junto de Ljot mas o cavalo de Kare venceu-o este ano e no ano passado. E não é nada airoso acrescentou gabar nesta casa um animal adquirido ao filho de Arne.

Mas porquê? interrogou Ljot.

Existe uma grande inimizade entre Vadin e Grimelundare desde que Eyolf Arnesson pretendeu contrair matrimónio com Vigdis, e viu recusada a sua proposta.

Nunca tinha ouvido falar nisso esclareceu Ljot. E, então, o velho prosseguiu:

Gunnar estava disposto a aceitar Eyolf como genro, mas diz-se que Vigdis não queria. Não deve surpreender tal atitude, atendendo a que os filhos de Arne são acusados de mais de uma malfeitoria; e diz-se, também, que uma grande amizade une, desde a infância de ambos, Vigdis a Kare. A partir de então, os filhos de Arne proferem ameaças contra Gunnar, mas abstêm-se por enquanto de as pôr em prática, porque, embora velho, Gunnar ainda tem bons dentes.

Ljot não disse mais nada. Observava Kare e Vigdis com ar pensativo. Daí a momentos, acercou-se de Kare e observou:

Têm-se trocado muitas palavras esta noite. Não achas que seria conveniente que tu e eu submetêssemos os nossos cavalos a uma prova? Assim, todos poderiam ver qual deles merece o primeiro lugar.

Aceito de bom grado a tua proposta replicou Kare, rindo , mas não há pressa, porque o resultado da prova é antecipadamente evidente para toda a gente destes sítios.

Vigdis interveio:

Não exponhas a danos, Ljot, o precioso cavalo que compraste. Ele pode ser excelente ainda mesmo que se dê o caso de haver outro melhor.

Ouvindo isto, Ljot ficou possuído de furor.

Não tenho tanto receio como julgas de arriscar quaisquer valores que me pertençam. Desejo que Kare nos mostre o que vale o seu cavalo na corrida! Façamos correr os nossos cavalos amanhã. Não levarei Arvak para a Islândia, se ele não vencer.

Eyolf não aceitará a devolução comentou Vigdis, rindo.

Não lhe pedirei certamente semelhante coisa. Matarei o cavalo se ele ficar vencido.

O assomadiço Ljot tirou, acto contínuo, uma argola de oiro do seu braço, e lançou-a para o braseiro da chaminé, clamando:

Não te rirás de mim, Vigdis, dizendo que eu tenho excessivo apego ao que possuo.

Mas a jovem, inclinando-se para a frente, retirou o bracelete do braseiro e, apresentando-o a Ljot, disse:

Não adiantas nada em proceder como um insensato. Então, Ljot, cego de cólera, pegou no bracelete e atirou-o para o meio do grupo dos servos amontoados ao pé da porta, e declarou que a pesada argola de oiro ficaria sendo propriedade daquele que a apanhasse. Elevou-se logo grande tumulto. Um dos servos derrubou, com um murro, outro que se apossara primeiro da pulseira.

Tornava-se manifesto que o repasto tendia a acabar numa desordem.

Veterlide correu para o sobrinho, agarrou-o pelo braço, e repreendeu-o severamente, mas Ljot limitou-se a soltar uma risada.

No fim da conversa, ficou resolvido que Kare e Ljot fariam lutar os seus cavalos no dia seguinte.

 

No campo destinado à corrida, juntou-se gente de toda a região para ver lutar os cavalos. Entre a multidão viam-se também muitas mulheres. Os animais deveriam medir-se num terrapleno não longe de Vadir.

Ljot chegou antes de Kare. Conduzia o seu cavalo e tinha uma chibata na mão esquerda. Armado duma espada recurva e com um capacete na cabeça, ostentava, pendente das espáduas, um esplêndido manto escarlate bordado a oiro. Colocou o manto sobre uma pedra à margem do campo, e apareceu vestido com um curto gibão vermelho. Os filhos de Arne achavam-se entre os assistentes. Saudaram Ljot e apertaram-lhe a mão.

O magnífico cavalo a que Ljot dera o nome de Arvak, robusto e de boa linha, era de facto uma estampa.

É um animal de grande valor diziam na assistência.

Manifestamente indiferente àqueles elogios, o cavalo relinchava, vendo os outros cavalos amarrados em redor do campo.

Decorreram uns momentos antes da chegada de Kare. Os filhos de Arne trocavam comentários sarcásticos, dizendo que ele se arrependera sem dúvida de ter aceite o desafio, e Ljot ria com tais ditos.

Mas Kare chegou, acompanhado de Gunnar e de Vigdis. Kare vinha completamente armado e trazia couraça. Lançara sobre as espáduas uma pele de urso e tinha na mão uma espécie de chuço, além da chibata.

Assim que Arvak descobriu o outro cavalo, reconheceu-o logo e, lembrando-se verosimilmente do seu recontro anterior, arrancou-se, numa upa, da mão de Ljot e tentou safar-se para fora do círculo dos assistentes.

Estes ulularam risos por toda a volta da praça, mas Ljot foi-lhe no encalço, e, agarrando-se-lhe com a mão esquerda pelas crinas, fustigou com a chibata os flancos e a garupa do animal. O rosto de Ljot estava vermelho, congestionado de raiva. Reconduziu o cavalo ao local donde se evadira, puxando-o com violência.

Iniciada a corrida, Slongve, o cavalo de Kare, depressa ganhou vantagem. Aplicava fortes pancadas, com as ferraduras das patas dianteiras, no espavorido Arvak, que corria à sua frente, e mordia-o de forma tão cruel que o outro equídeo tentou pôr-se a salvo.

Ljot puxou então da espada que tinha à cintura na intenção de atirar uma cutilada a Arvak, mas escorregou na erva e deu um profundo golpe na pele do ventre de Slongve.

Na queda, ficou debaixo dos cavalos e a situação adquiriu um aspecto grave. Vigdis gritava com voz agudíssima, pedindo que separassem os cavalos. Kare correu para o seu, e bateu-lhe com o couto da lança. O quadrúpede levantou-se a pino instantaneamente e largou Arvak. Este, vendo-se livre, fugiu para a floresta, a sangrar e bastante deprimido. Mas os intestinos de Slongve saíam pela ferida que Ljot lhe fizera. Estendendo a mão a Ljot para o ajudar a levantar-se, porque o rapaz apanhara um coice na cabeça e o sangue corria-lhe para os olhos, Kare disse-lhe:

Nunca vi ninguém proceder como tu num combate de cavalos. Tens de me dar uma indemnização pelo que me estropiaste.

Aí tens a indemnização disse Ljot, fazendo voar para cima dele uma porção de terra com um pontapé. Assustaste o meu cavalo com a tua pele de urso; dir-se-ia, ao ver-te, que és um duende dos bosques.

Tu não nos metes medo, Ljot disse Kare , mesmo se tiveres morto inimigos na Islândia.

E, brandindo a sua lança, dirigiu-lhe a ponta na direcção de Ljot.

 

Este último, que tinha a espada na mão, atirou uma cutilada sobre a lança de Kare, atingindo-o levemente no braço. Kare deitou fora os fragmentos da lança partida, puxou da espada e dirigiu-a contra Ljot. Mas este no mesmo instante caiu para trás e perdeu os sentidos, vomitando sangue. Os cavalos tinham-no pisado de maneira assaz perigosa.

 

Veterlide avançou, e, agarrando Kare pelo ombro, disse-lhe:

 

E pagarei o teu curativo e o teu cavalo.

 

Não aceitarei de ti qualquer indemnização, ó islandês, porque vejo que teu sobrinho quer a minha morte.

 

Mas eu não quero que nós tenhamos uma desavença com os amigos de Gunnar volveu Veterlide. Ele não o merece, em atenção ao bom gasalhado que nos dispensou. E Veterlide afastou-se com o jovem Kare, para lhe falar.

 

Gunnar brandiu a sua curta lança e traspassou com ela o peito de Slongve, que agonizava devido ao golpe que recebera.

 

Koll e Eyolf, os filhos de Arne, ergueram Ljot, que recuperou os sentidos ao fim de uns momentos. Kare conversava à parte com Veterlide. Enxugando o sangue que lhe corria pelo rosto, Ljot procurou Vigdis com o olhar. Acocorada junto do cavalo morto, ela acariciava-o, chorando. Ljot dirigiu-se para onde ela estava e, rindo-se, perguntou-lhe:

 

Que pensas desta batalha de cavalos, Vigdis?

 

A jovem pôs-se a chorar ainda com mais força, e replicou:

 

Não quero falar contigo.

 

Recearás tu que aconteça a Kare de Grefsin o mesmo que aconteceu ao seu cavalo? perguntou Ljot.

 

Não foi Kare quem se cobriu hoje de vergonha ripostou Vigdis desviando as crinas do cavalo e afagando-lhe o focinho. Já não quero tornar a falar contigo. Ela chorava, e ambos se separaram.

 

Os filhos de Arne lembraram-se de convidar Ljot a acompanhá-los a sua casa.

 

É impossível respondeu Ljot , não convém que eu quebre assim a amizade que me liga a Gunnar.

Falta saber se Gunnar não teme acima de tudo perder a amizade do genro.

 

A quem te referes?

 

Koll interveio, então, dizendo:

 

A quern há-de ser senão a Kare, embora se não tenha a certeza de que ele queira comprar Vigdis, posto que ela já se lhe entregou.

 

Mentes protestou Ljot.

 

Eu sustento o mesmo que Koll insistiu Eyolf. O nosso pegureiro contou-nos que tinha visto Kare atravessar a ribeira, a cavalo, esta Primavera, para se encontrar com Vigdis no alto das sebes. E acrescentou até que os tinha visto deitados ao lado um do outro.

 

Esse teu pastor é um grande mentiroso volveu ainda Ljot, que se desviou para se ir embora. Mas Eyolf inquiriu junto dos outros que tinham ficado a pouca distância:

 

Para onde teria ido Kare de Grefsin? Viga Ljot quer falar-lhe.

 

Foi a Vadin com o outro islandês responderam os interpelados.

 

Ljot deteve-se um instante, com o olhar magoado dirigido para a herdade. O seu rosto desfigurado e lívido estava maculado de sangue. Um momento depois cambaleou, e teria caído por terra se os filhos de Arne não o amparassem, em seguida ao que o içaram para um cavalo, dirigindo-se todos para oeste na direcção de Grimelundar.

 

Veterlide não ficou nada contente com a ida de Ljot para Grimelundar. Foi lá passados poucos dias, e encontrou o sobrinho deitado no quarto do piso alto.

 

Indemnizei Kare disse Veterlide e por consequência peço-te que evites quebrar a paz com ele.

 

Ljot não respondeu, mas daí a um instante perguntou.

 

Que dizem em Vadin de tudo o que se passou?

 

Quase se não fala nisso respondeu Veterlide , como era de esperar da parte de Gunnar, porque é um homem de espírito elevado e eu não teria prazer algum em ouvir-lhe dizer o que pensa da tua conduta.

 

Ljot pôs-se momentaneamente a arrancar os pêlos da sua cobertura de peles felpudas, e por fim contou a Veterlide os mexericos que os filhos de Arne pretendiam ter ouvido ao seu pegureiro.

 

Isso que diz o pastor de Eyolf não vale grande coisa, nem valeria mais ainda que fosse repetido por todos os guardas de suínos. São as mulheres enciumadas que têm o costume de espalhar semelhantes balelas, meu sobrinho. Fizeste mal em ligar-te com tal gente.

 

Peço-te que tentes ver a disposição em que se encontra Gunnar a meu respeito, para o assunto que sabes volveu Ljot.

 

É difícil fazer-lhe essa pergunta enquanto permaneceres aqui. Gostaria que regressasses comigo para Vadin imediatamente.

 

Doem-me as costas disse Ljot e não suportaria o trajecto, a cavalo.

 

Enfim, já que vieste para aqui, saberás também abandonar estes sítios observou Veterlide. Evidentemente, ninguém se admira com o teu pouco interesse em voltar para Vadin, dado que toda esta história não te prestigia, mas é necessário, no entanto, que aceites este regresso. É o conselho que te dou. Os filhos de Arne desejam provocar o desacordo entre ti e Gunnar. Receiam abordá-lo sozinhos e querem empurrar-te à frente. Deixa-os por conseguinte ruminando maldades junto à lareira, e não te metas nos seus assuntos.

 

Ljot insistiu em afirmar que não tinha forças para montar a cavalo. Os filhos de Arne pediram a Veterlide que se demorasse ali para o repasto, mas ele recusou e partiu logo para Vadin.

 

Sucedeu, na herdade, o que Veterlide tinha previsto. Quando ele contou a Gunnar que Ljot estava enamorado de Vigdis, Gunnar respondeu:

 

Podes ter a certeza de que eu não desejo, ó islandês, que a inimizade se instale entre nós, por que sinto grande simpatia por ti e quero crer que Ljot Gissursson seja melhor do que a sua maneira de proceder. Mas não me entusiasma a ideia de ver ir minha filha para além dos mares, com ele, e também não me agrada procurar genro em Grimelundar.

 

Quem se admiraria dessa atitude? limitou-se a responder Veterlide.

 

A partir de então, não se voltou a falar daquelas coisas entre eles. Vigdis nada soube desta conversa.

 

Veterlide foi diversas vezes saber do estado de Ljot e conversar com ele. Tentava persuadi-lo a deixar Grimelundar, mas Ljot objectava sempre que se sentia muito mal. Disse também que não podia acompanhá-lo ao Romerike; e quando Veterlide regressou e fazia os seus preparativos de embarque para a Islândia, Ljot manifestou a determinação de ficar na Noruega. Veterlide renunciou então ao seu regresso a penates, porque, se ele, o sobrinho, ficasse com os filhos de Arne explicou-lhe , os outros arrastá-lo-iam a acções de que ele poderia envergonhar-se.

 

Parte sem receio, meu tio respondeu Ljot. Agora já me sinto com forças bastantes para me pôr a caminho para o Norte até Romerike, e depois disso irei procurar o rei Olav e ver as pessoas da nossa terra que estão junto dele. Os filhos de Arne não me pediram jamais que os ajudasse, têm-se limitado a testemunhar-me amizade.

 

Prometes-me que partirás para o Norte? perguntou Veterlide.

 

Ljot assim o prometeu, e, quando o sobrinho abandonou a região, Veterlide tratou do seu próprio regresso à Islândia. Separou-se de Gunnar em termos de grande estima, e ambos trocaram ricos presentes. Veterlide ofereceu a Vigdis uma fibula de oiro e um espelho importado dos países do Sul. Ela ofereceu-lhe, no momento da partida, uma capa bordada, de seda vermelha.

 

Já se notavam prenúncios de Outono. Dizia-se na região que Viga Ljot tinha voltado. Habitava em casa dum camponês chamado Torbjorn, em Hestlokken, na zona florestal entre Grimelundar e Vadin. Mas encontrava-se frequentemente com os filhos de Arne.

 

Certo dia, ao anoitecer, apareceu em Vadin um rapazito que vinha para falar a Vigdis. Chamava-se Helge; era filho duma pobre mulher que vivia nos bosques perto da quinta. Contou que a mãe estava doente e que Vigdis praticaria uma boa acção, acompanhando-o para a socorrer. Vigdis respondeu que Aesa (era o nome de sua mãe adoptiva que governava a casa em Vadin) conhecia bem melhor a maneira de curar enfermidades, e que seria preferível para a doente que Aesa a fosse ver. Mas o pequeno insistiu, sua mãe desejava falar a Vigdis, tinha umas coisas a dizer-lhe.

 

Então Vigdis abrigou-se num manto e seguiu Helge.

 

Era já noite quando saíram. Caminharam pela vereda durante uns momentos, depois o garoto dirigiu-se para a orla do bosque, pretextando que não era possível passar pelos campos, em virtude de se encontrarem encharcados pelas chuvas.

 

Assim que penetraram na floresta, veio um homem ao encontro de ambos. Vigdis perguntou quem era aquele homem.

 

O recém-chegado, respondendo pelo rapaz, disse:

 

Sou eu, Ljot.

 

Helge tentou desprender a mão da de Vigdis, para se pôr em fuga, mas a jovem reteve-o, e exclamou:

 

Foi este quem te deu ordem para me ires chamar? O rapazelho conservou-se mudo, mas Ljot interveio:

 

Sim, fui eu. Ele dirigia-se a tua casa em busca de Aesa, e pedi-lhe que, seguindo o plano que lhe indiquei e cumpriu, manobrasse de modo a trazer-te até aqui, para eu poder falar-te. Pareceu-me que não serviria de nada ir eu a Vadin para tentar falar contigo a sós.

 

Tens uma forma de procurar por mim deveras curiosa obtemperou Vigdis.

 

Não achei outra melhor. Há muito tempo que deambulo em volta da tua quinta na esperança de te ver.

 

O rapazito tentou mais uma vez pôr-se em fuga, mas Vigdis não lhe largava a mão. Então, Ljot pediu à moça:

 

Deixa que o petiz se vá embora; não deves ter receio de ficar só comigo, e eu próprio irei acompanhar-te até às casas.

 

Bem, podes ir-te embora! disse Vigdis a Helge, que logo se pôs a caminho. E a jovem acrescentou, falando para Ljot: Que intenção é, pois, a tua para me atraíres assim a esta floresta?

 

Conheces perfeitamente a minha intenção a teu respeito redarguiu Ljot. Como Vigdis se mantivesse silenciosa, ele ajuntou: Agora já sei que quanto mais me afasto de ti mais me custa estar sem ti. Jamais, enquanto viver, chegará o dia em que eu te esqueça.

 

Vigdis desatou a chorar:

 

Oh! porque te conduziste de maneira tão pouco amistosa para com meu pai?

 

you dizer-te a razão da conduta que me censuras. Corre na região que Kare de Grefsin te obterá para esposa.

 

Crês então que, se assim fosse, eu te teria recebido quando foste falar-me aos meus aposentos naquela noite? A primeira coisa que fizeste foi destruir tudo que nos era caro a ambos.

 

Sim, tens razão, as coisas tomaram uma feição adversa aquiesceu Ljot. Mas neste assunto com Kare é de facto teu pai quem decide?

 

Gunnar não conseguiria nunca impor-me um marido que não fosse escolhido por mim própria. Ele prometeu-me, aliás, que não me obrigaria.

 

Queres-me então a mim? fez Ljot num alvoroço de esperança.

 

E Vigdis respondeu:

 

Quero, se isso for possível.

 

Seria bem estranho que o não fosse exclamou Ljot, abertamente jubiloso, atraindo a jovem a si. Depois, ele sentou-se num tronco de árvore, e Vigdis, sentada nos seus joelhos, abraçou-se-lhe ao pescoço e beijou-o.

 

Ljot não tinha alma de a largar, e cobriu a jovem de beijos tão apaixonados que ela teve medo e disse que lhe era indispensável regressar a casa.

 

Será melhor que eu te acompanhe, e assim poderia falar a teu pai esta noite mesmo. Desejo arrumar imediatamente todo este assunto com Gunnar.

 

Não faças isso suplicou Vigdis , estás só, e sem mais armas do que esse pequeno estoque.

 

Ljot pôs-se a rir.

 

E pensas que eu não saberia defender-me com ele? Mas seria muito lamentável que nós trocássemos cutiladas, Gunnar e eu.

 

Vigdis reflectiu um instante e sugeriu:

 

Ouvi dizer que há muitos islandeses no Norte, junto do rei. Não conheces nenhum deles?

 

Certamente que conheço. Por exemplo, Toralv e Gissur, os filhos de Torbjorn, meu pai adoptivo.

 

Não poderias ir falar-lhes? Se eles anuíssem a servir-te de intermediários, isso facilitaria as coisas com meu pai.

 

Tens uma pressa enorme de me expulsar dos teus sítios objectou Ljot, abraçando-a e pondo-a novamente nos joelhos.

 

Vigdis desfez-se em lágrimas.

 

Receio que sejas mal sucedido, se fores apresentar-lhe sozinho a tua pretensão. Dominas-te com dificuldade, e a cólera de Gunnar contra ti é grande. Seria preferível que fosses acompanhado por um homem capaz de te apoiar e dar conselhos.

 

Ljot repeliu então Vigdis, e ela começou a descer a vereda, sem cessar de chorar. Ljot seguia-a a um passo de distância. Decorridos instantes, ele disse-lhe:

 

Procederei conforme desejas, Vigdis, se bem que a viagem, como não ignoras, seja longa no Inverno. E não é absolutamente certo que os filhos de Torbjorn mostrem grande entusiasmo em acompanhar-me a Vadin. Que farei eu em tal caso?

 

Decidirás tu próprio a dificuldade redarguiu Vigdis, voltando-se e pegando-lhe na mão. Caminharam juntos até às vizinhanças da casa da herdade. Ljot prometeu a Vigdis que partiria para o Norte, e que iniciaria a viagem em dia pouco distante. Separaram-se diante do portão, mas Ljot ajuntou ainda que, antes de encetar a viagem, desejava tornar a vê-la mais uma vez. Agarrou com as duas mãos a cabeleira da jovem e envolveu com ela o próprio pescoço.

 

Volta amanhã ao alto dos sacrifícios, porque não te vejo há imenso tempo e esta noite mal pude ver-te por causa da escuridão. Eu estarei lá antes do pôr-do-sol. Tu perdeste um objecto por ocasião do nosso primeiro encontro lá em cima, e quero restituir-to. Guardei-o por me parecer que poderia proporcionar-me uma oportunidade para te voltar a ver, se tanto fosse necessário.

 

Não sei de que objecto se trata disse Vigdis.

 

Ljot pôs-se a rir, e afirmou-lhe que ela teria ensejo de o ver bem, após o que se despediram.

 

Quando Vigdis chegou a casa, era já muito tarde e todos que nela residiam estavam deitados. A jovem foi direito ao seu quarto e Aesa, que se levantara, veio trazer-lhe pão e leite. Enquanto Vigdis comia e bebia, Aesa perguntou-lhe como estava Astrid.

 

Deves ir vê-la amanhã disse Vigdis que, um momento depois, acrescentou: Não consegui ir tão longe esta noite.

 

Perdeste-te talvez nos bosques?

 

Não.

 

Houve um silêncio e Vigdis continuou:

 

Encontrei Ljot na colina e falei-lhe.

 

Uma mulher que se chamava Torbjorg e desposara o feitor do dono da herdade, enquanto ia e vinha ao quarto com toda a espécie de utensílios apanhou aquelas palavras no ar, e exclamou:

 

É pois verdade que Ljot ronda em volta da quinta? com má intenção, sem dúvida?

 

Oh! as suas intenções não devem ser tão más como isso retorquiu Vigdis, rindo.

 

Acautela-te bem com ele, Vigdis tornou a serviçal. Não tardará muito que não digam que ele te seduziu, também.

 

Aesa pediu-lhe que se calasse.

 

Não tornes a falar a Viga Ljot recomendou ela a Vigdis , nunca se sabe o que pode acontecer com semelhante homem.

 

A menina já não é uma criança interveio Torbjorg por seu turno , visto que já fez dezoito anos. E vale mais que ela saiba que deve acautelar-se, manter-se de pé atrás. Seria mau que se acreditasse como papalvos em tudo o que se diz. Corre que ele se conserva por estes sítios e que escreveu cantigas alusivas todas elas a Vigdis. Foi Ljot quem espalhou o rumor de que ela tinha sido desonrada por Kare. É verdade que ninguém das redondezas lhe liga o menor crédito, pois todos sabem que ele procede como as crianças que depreciam aquilo que não podem obter!...

 

Ljot não inventou nada disso emendou Aesa. A calúnia veio dos filhos de Arne, pois são eles que percorrem os lugares dizendo mentiras.

 

Vigdis, sentada num escabelo, corava e empalidecia alternadamente, com as emoções que lhe dava aquela troca de palavras.

 

Não posso crer que Ljot levantasse esse falso testemunho contra mim declarou ela.

 

Então, Torbjorg repetiu, cantarolando, duas quadras e uma quintilha com alusões despeitadas do bardo a pueris derretes que teria tido com Vigdis. No fim da sua cantilena a meia voz, a mulher fez o seguinte comentário:

 

Ora nunca me constou que Eyolf Arnesson fizesse versos.

 

Bem; já ouvi o que baste das tuas cantigas esta noite rematou Vigdis, que se retirou para se ir deitar.

 

Aesa dormiu junto de Vigdis e teve ocasião de notar que ela não conciliou o sono nessa noite, conservando-se no entanto imóvel e sem proferir palavra.

 

No dia seguinte, Vigdis dirigiu-se aos aposentos de Gunnar, sentou-se perto dele e perguntou:

 

Que darias tu a Ljot Gissursson, o sobrinho de Veterlide, se ele viesse aqui pedir tua filha em casamento?

 

Aguarda a sua vinda à herdade disse Gunnar e dar-lhe-ei uma resposta que ele não esquecerá. Ele, porém, terá o cuidado de não aparecer aqui nesta altura.

 

Mas não se fizeram já as pazes entre ele e Kare? insistiu Vigdis.

 

Veterlide reconciliou-se com Kare, mas Ljot não. Ninguém retribuiu jamais tão mal a minha amizade.

 

Ele ignorava o que se tinha passado entre Eyolf e nós.

 

Agora já sabe o que se passou e muitas outras coisas que não se passaram. Mas Kare e eu temos a intenção de ir procurá-lo a Hestlokken, e hei-de arrancar-lhe os dentes da boca. Veremos, depois, que poemas difamatórios poderá ele ainda compor.

 

Oh! Não se deve fazer uma coisa dessas exclamou Vigdis tomada de terror.

 

Mas Gunnar ripostou:

 

O que não deves fazer, por teu lado, é tornar a falar-lhe; e também não quero que me digas, daqui em diante, nem mais uma palavra sobre este assunto.

 

Vigdis calou-se e saiu.

 

Vigdis conservou-se todo o dia no seu quarto, mergulhada em grande angústia, e incerta sobre o caminho a seguir. Deveria ir ter com Ljot ou não? Porém, quando o sol se aproximou do ocaso, ela lançou sobre os ombros um manto escuro e saiu de casa.

 

Caíra geada toda a noite da véspera, e o nevoeiro estendia-se agora como branca mortalha sobre o fiorde. Mas, para o sul, o sol brilhava com luz bastante clara por cima das montanhas. No pátio da casa não havia ninguém. Vigdis hesitou um momento, e depois afastou-se precipitadamente da herdade, dirigindo-se para o norte, em demanda da floresta. A sua partida não fora notada por pessoa alguma. Ljot encontrava-se já no outeiro dos sacrifícios quando ela chegou. O rapaz estava em trajo de viagem, mas depusera a capa e as armas e amarrara o cavalo a uma árvore. Correu para Vigdis e, pondo a mão em pala sobre os olhos, saudou-a com um madrigal:

 

Eis agora que o sol zeloso me impede de ver a tua beleza! Sê bem-vinda, Vigdis.

 

Pôs as mãos na cintura da jovem e arrastou-a para o lado da sombra. Ela, no entanto, soltou-se-lhe dos braços, cruzou as mãos atrás das costas e disse:

 

Compareci aqui, mas tenho sérias perguntas a fazer-te. Dize-me se é verdade que correm atoardas por estes sítios acerca de Kare e de mim?

 

Ljot respondeu corando intensamente:

 

Perguntei-te ontem se era certo que ele te obteria em casamento.

 

Nesse caso eu preferia não ter vindo aqui disse Vigdis, porque receio que tenham falado verdade aqueles que eu supunha mentirem a teu respeito.

 

Não sei o que queres dizer redarguiu Ljot. Mas Vigdis insistiu:

 

Ou falaste do que se passou entre nós e eu pensava que jamais seria revelado por ti a ninguém, ou então foste tu quem compôs as cantigas que por aí correm.

 

Ljot manteve-se silencioso. Então, Vigdis afastou-se dele e tentou ir-se embora. Mas Ljot seguiu-a e disse:

 

Desejaria que tais canções não houvessem sido feitas. Não podes imaginar quanto me senti desesperado durante todo aquele tempo em que acreditei haver-te perdido. Em casos assim, mais de um homem profere coisas que depois lastima ter dito.

 

Tens razão exclamou Vigdis e arrependo-me de quase tudo que porventura te tenha dito.

 

Não fales desse modo suplicou Ljot. Nunca mais tornarás a ter ocasião de te queixar de mim.

 

Plenamente de acordo, porque esta é a última vez que nos falamos.

 

É, então, coisa tão grave ter composto uma cantiga ou duas, e queres abandonar-me só por isso? Na realidade, tens bem pouco amor por mim.

 

Vigdis exclamou, com expressão de dor:

 

Tu não me tiveste mais amor do que eu por ti. Deste ouvidos a maledicências contra mim e ainda por cima as espalhaste.

 

Não espalhei qualquer maledicência ripostou Viga Ljot e não acreditei em nenhuma.

 

Não posso crer no que afirmas disse ela, tentando repeli-lo.

 

Não digas isso exorou Ljot, ao mesmo tempo que a cobria de beijos. Esqueceste o que ontem me prometias quando estavas sentada nos meus joelhos?

 

Ela mordiscou-o no pescoço e durante um momento os seus rostos confundiram-se, deixando de se afrontar.

 

Mudei de tenção disse ela.

Kare não te obterá nunca por tua livre vontade resmoneou Ljot entre dentes. Eu não poderia viver se te perdesse. Proferidas estas palavras, o rapaz tomou Vigdis nos braços, a despeito da sua resistência, e levou-a para detrás duns arbustos, onde abusou dela, apesar da energia com que durante bastante tempo a rapariga se defendeu. Por fim ficou muda e o seu pranto cessou.

 

Ljot tocou-lhe a mão e o rosto. Estava como que gelada.

 

O rapaz ergueu-se, foi buscar a capa e cobriu Vigdis. Depois beijou-a. O frio era tanto que a respiração condensava-se, branquejando, nos seus lábios.

 

O sol havia desaparecido no poente, mas divisava-se o clarão dum vermelho de sangue do céu por detrás da floresta.

 

É tempo de nos irmos embora daqui disse Ljot, tentando ajudar Vigdis a erguer-se. Chegaremos a Storvannet esta noite, e lá teremos um abrigo.

 

Vigdis quebrou enfim o seu mutismo:

 

Se meu pai te perseguisse e abatesse à machadada, homem perverso, terias ainda assim uma morte bem melhor do que a que mereces.

 

Dizendo isto, endireitou o busto e pôs-se a descer a encosta do cômoro. Ljot foi caminhando à retaguarda, e a certa altura disse:

 

O melhor que há a fazer é acompanhares-me. Sei que procedi mal para contigo, mas a maior desgraça para nós ambos seria a separação.

 

Vigdis não se voltou uma única vez para ele, e Ljot pressentiu que o seu silêncio e os seus olhos secos eram piores do que tudo. Seguiu-a até Vadin.

 

Chegada à sebe da herdade, Vigdis baixou-se, apanhou uma pedra do chão e atirou-a a Ljot.

 

Vai-te embora, cão! gritou ela.

 

A pedra atingiu-o na boca, embora ao de leve, mas com violência bastante para o ferir nos lábios e fazê-los sangrar. Ele disse, então:

 

Voltarei ainda uma vez a pedir-te em casamento, mas agora quero deixar-te tempo para reflectires. No solsticio do Estio tornarei a procurar-te para saber se me queres ou não.

 

Hás-de ver, Viga Ljot respondeu Vigdis , que a minha vontade é tão dura como a tua.

 

Dizendo isto, voltou costas, fechou o portão da quinta e foi direita ao quarto, onde se meteu na cama.

 

Aesa notou perfeitamente que Vigdis dormiu pouco nessa noite, e que ela gemia em sonhos, porém a rapariga não lhe contou nada do que lhe tinha sucedido.

 

Ljot voltou ao alto dos sacrifícios, desprendeu o cavalo, saltou-lhe para a sela e partiu. Jornadeou toda a noite e chegou a Hakedal; dali endireitou a montada para a travessia do Romerike e prosseguiu a viagem até Trondhjem, sem se importar com o mau tempo que começou a fustigá-lo naquela conjuntura. A travessia das montanhas foi-lhe em extremo penosa. Os seus irmãos adoptivos, os filhos de Torbjorn, consideraram um verdadeiro milagre que ele tivesse saído vivo de tal jornada.

 

Vigdis continuou a viver em sua casa em Vadin. Andava muito triste e nada a alegrava. Mal tinha ânimo para beber, comer, vestir-se ou pentear os cabelos. Não podia tirar da ideia o mal que Ljot lhe fizera com a sua violência. À noite, estremecia com a ideia de se deitar só, na companhia dos seus pensamentos; de madrugada sentia medo de se levantar, e mortificava-a a lembrança de ter de passar todo o dia a lidar e a conversar com as outras pessoas da casa. Dizia para consigo: «Sinto-me como a ave que, tombada no solo, agita as asas partidas. Que não pode afastar-se do lugar onde caiu, nem ver, prostrada por terra, mais além do rasto deixado pelo sangue que perdeu. Se tento pensar no que foi o passado, apenas me ocorre o que está sendo o presente. Se recordo o tempo em que vivia contente e sem cuidados, afigura-se-me que esse tempo só existiu para preparar a minha desgraça de hoje.»

 

Pensava com frequência que o melhor que tinha a fazer era deitar-se a afogar. Quando se aproximou o Inverno, Vigdis compreendeu que se agitava nela uma vida, almejando pela luz, que só da sua vida dependia.

 

Certa noite em que se conservou acordada enquanto Aesa e as outras mulheres dormiam, levantou-se, envolveu-se num manto e saiu para o pátio do solar. Dali enfiou pela vereda que descia para o ribeiro. Não saía nunca só; por isso a noite e as trevas pareceram-lhe muito mais medonhas do que imaginava. Estava-se na época do equinócio, chovia e o temporal açoitava furioso tudo o que encontrava à sua frente.

A obscuridade profunda não lhe consentia distinguir o céu da terra. Mas, por vezes, rasgava-se uma estreita aberta entre as nuvens, e as estrelas apareciam. Ao fim de certo tempo de marcha, Vigdis deixou de ver qualquer vestígio do caminho por onde seguia.

 

Achava-se no meio dos campos, mas não conseguia ver onde punha os pés.

 

Tão depressa se enterrava em camadas de neve mole, como era detida por algum buraco. A maior parte do tempo, porém, caminhava sobre um solo coberto de espessa geada, em virtude de a neve ter deslizado ao longo das vertentes que iam dar a Frysja. Não tardou muito que Vigdis não se perdesse no trajecto que fazia, sem saber onde se encontrava, onde ficava o rio, nem sequer onde era a herdade. Vadin estava situada muito perto da água, mas na escuridão a distância parecia-lhe infinita. Ao cabo de mais algum tempo daquela dura caminhada, Vigdis escorregou no gelo, caiu e foi rolando pelo declive até esbarrar, momentos depois, com um objecto a que se agarrou com ambos os braços. Adivinhou que era um pinheiro, porque os ramos arranhavam-lhe a face. Enquanto rolara, na queda, sentira agitar-se-lhe o filho no seio.

 

Agachou-se, então, debaixo da árvore. A chuva e o frio traspassavam-na como se tivesse estado deitada na neve. Enroscando-se um pouco sob os ramos, procurou abrigar-se da chuva. O vento uivava e fazia um ruído medonho nas árvores que havia à sua volta, e da noite elevavam-se rumores sinistros. Vigdis, meia alucinada, perguntava a si mesma que seres eram aqueles que rugiam e tão furiosamente se agitavam em torno dela.

 

Conservou-se no seu abrigo até que as trevas diminuíram um pouco. Viu então que, precisamente por baixo do sítio onde se encontrava, o terreno descia em rampa para a ribeira, dum negrume de tinta e cuja corrente arrastava grandes pedaços de gelo. Vigdis acabou por perder toda a coragem e voltou para a quinta. À claridade do dia que despontava, apercebeu-se, então, de que se tinha afastado menos do que supunha. Despojou-se das vestes e meteu-se na cama. Sentia-se mal a ponto de crer que tinha contraído qualquer afecção de morte durante a sua digressão nocturna. «Tanto melhor», pensou ela para consigo.

 

No dia seguinte de manhã, Aesa perguntou-lhe:

 

Porque está a tua roupa tão molhada, minha filha?

 

Vigdis respondeu que se lembrara de ir ao estábulo durante a noite. (O gado fora atacado de moléstia naquele ano). E esclareceu que a escuridão era tamanha que só a custo achara o caminho do regresso a casa.

 

Aesa não lhe dirigiu mais nenhuma pergunta, contentando-se com pensar que Vigdis não deixaria de ser mais explícita quando assim o entendesse.

 

Um dia, convenceu-se de que Vigdis, atenta a maneira como descorava e se mantinha enroscada no banco, devia estar doente. Insistiu para que a jovem lhe confiasse o segredo daquele seu estado. Mas Vigdis limitou-se a dizer a Aesa que não se apoquentasse por causa dela.

 

A saúde de Gunnar não era boa naquele ano. Por esse motivo, apareceram poucos visitantes na herdade, e, como o Inverno se aproximava, Aesa decidiu dispensar as outras mulheres e ficar só com Vigdis, em Vadin. A rapariga começara a usar sob o vestido um corpete acolchetado, e conservava-se a maior parte do tempo em casa. Assim, ninguém se apercebeu do que se passava nela, exceptuando Aesa, que não se atrevia a dizer nada.

Quando chegou a Primavera, Vigdis declarou que ficaria no chalé durante o Verão, com Aesa. E assim foi, embora Gunnar não se mostrasse nada satisfeito com tal decisão. Aesa insistiu tanto tempo com ele, para que acedesse ao desejo da filha, que o homem acabou por aceitar as razões que ela lhe apresentava. Elas partiram cedo para os bosques, levando na sua companhia um homem de nome Skofte. Era filho de Aesa, e Gunnar dera-lhe a alforria. Tinha a seu cargo a guarda dos cavalos e do gado contra os animais ferozes.

 

Uma tarde, Aesa achava-se à porta do estábulo reunindo as vacas, quando Vigdis correu para ela muito assustada, dizendo:

 

Gunnar atravessa o prado e dirige-se para cá, e eu não sei o que se vai passar; matar-me-á se descobre o estado em que me encontro.

 

Vai meter-te na cama aconselhou Aesa , dir-lhe-ei que estás doente. Ele não deve demorar-se por aqui muito tempo.

 

Vigdis obedeceu e não se levantou durante os dois dias que Gunnar passou no chalé. Disse que não admirava que ela estivesse doente, atendendo à escassez de leite que havia na casa.

 

com efeito, as duas mulheres tinham ido tão prematuramente para o chalé que a geada caía ainda todas as noites, e a floresta oferecia pouco pasto ao gado.

 

Depois desta visita, Aesa não cessou de pensar que o seu dever era falar a Vigdis e dar-lhe alguns conselhos. Um dia, pois, achando-se a rapariga de pé junto da mesa, limpando umas vasilhas de leite, Aesa disse-lhe:

 

Deixa isso, que eu faço esse trabalho. É demasiado violento para o teu estado.

 

Vigdis atirou com a vasilha ao chão, e a mãe adoptiva assustou-se notando o seu olhar desvairado.

 

Se me falas nisto, nem sei o que sou capaz de te fazer. Aesa não teve ânimo para voltar a referir-se àquele assunto e o Estio avançava.

 

Uma noite, Vigdis levantou-se e saiu do chalé. Já tinha passado o solstício do Verão, o tempo estava sombrio e sem vento. A rapariga atravessou o prado. Quando chegou à sebe da propriedade, faltaram-lhe as forças e deitou-se no chão. Pela orla da floresta ia passando um cavalo negro. Não seguira a manada, detendo-se nas proximidades das casas. Gostava de ser acariciado, principalmente por Vigdis. O cavalo acercou-se dela e cheirou-a. Não a deixou mais. Quando as dores se acalmaram, a rapariga ergueu-se para se afastar um pouco. O animal seguiu-a. Cada vez que o sofrimento tornava a pungi-la, ela abraçava-se ao pescoço do cavalo, amparando-se ao animal. Este voltava então a cabeça, mordiscava, afectuoso, o ombro e as costas de Vigdis e ficava imóvel junto dela. Por fim, ela chegou junto dum extenso pego de água sombria.

 

No mais alto do céu, aparecia uma aberta entre as nuvens e o lago reflectia-lhe o azul; tudo o mais em redor era negro.

 

Em certo momento, Vigdis soltou um grande grito, respondendo-lhe um eco lúgubre dos rochedos da outra margem. Aterrorizada, fincou os dentes no seu manto, dilacerando-lhe, em tiras, um bocado. Encheu-se-lhe a boca de fios de lã, e por pouco não vomitou. Próximo dela, ouviu murmurar um regato. Abrindo os olhos, viu que o dia ia nascer; pequenas ondas escuras enrugavam a superfície do lago, mas Vigdis já não teve forças para se arrastar até lá, e a noite foi-se escoando naquela espécie de agonia.

 

O sol veio, por fim, ferir-lhe a vista. Momentos depois, a sua luz caía como uma bênção sobre um novo ser.

 

Vigdis ficou como morta durante grande parte de tempo, mas, ao cabo do seu desmaio, sentindo-se reanimar pelo calor do astro fecundo, ouviu o choro do seu filho. Olhou-o. Era um rapaz. A mãe não ousava tocar-lhe, mas pegou num man tele te com que tinha coberto a cabeça e as espáduas. Desdobrou-o e envolveu com ele a criança, depois colocou esta no meio de duas pedras e cobriu-a com musgo e ramitos de árvore. Em seguida, arrastou-se até ao regato e bebeu. À beira da água havia uma extensa laje já aquecida pelo sol. Vigdis deitou-se sobre ela, para descansar um instante. Depois, erguendo-se, tomou o caminho do chalé.

 

Encontrou ali Aesa possuída de grande angústia. Skofte partira em busca de Vigdis. A rapariga dirigiu-se para o quarto e deitou-se ardendo em febre.

 

Durante vários dias esteve muito mal. Aesa tratou dela e deu-lhe massagens no peito com manteiga quente, mas nem uma nem outra disse palavra acerca do que se tinha passado.

 

Vigdis nunca mais quis voltar à floresta, conservava-se em casa, donde nunca saía. Aesa tinha a impressão de que ela não estava menos cheia de desespero do que antes do que acaba de ser descrito.

 

O Verão foi muito quente, as vacas não se recolhiam à noite deitando-se pelos bosques. Aesa e Skofte viam-se obrigados a fazer grandes percursos nas montanhas e nos brejos para as descobrir e para as trazer novamente para o estábulo. Vigdis não gostava de ficar sozinha no chalé. Mas a floresta causava-lhe temor e resignava-se a permanecer em casa. Sentada no limiar da porta, deixava errar a vista pelos declives verdejantes O chalé estava situado num ponto muito alto, cercado por todos os lados por montanhas e florestas. Ao sul, porém, Vigdis conseguia divisar um trecho do fiorde. Uma tarde, estando ela assim sentada, a passar tempo, o seu cão, que apoiava o focinho nos joelhos da dona, mostrou-se subitamente inquieto. O animal interrompeu a sua posição de repouso sobre as patas traseiras, ergueu-se de um salto e, latindo, pôs-se a descer a encosta do prado.

 

Vigdis distinguiu um cavaleiro que, um instante depois, se apeou do cavalo e foi prendê-lo à sebe. A jovem teve medo, ergueu-se e pensou em fugir para os bosques, a fim de procurar nas suas espessuras um esconderijo, mas ao mesmo tempo o homem voltou-se e ela reconheceu Ljot. Este chamou-a, dizendo-lhe que nada tinha a recear dele. Vigdis conservou-se de pé, à porta.

 

Sei bem disse ela que não devo arrecear-me de ti. Ljot deteve-se para a contemplar e depois disse lentamente:

 

Que pretendes significar com essas palavras?

 

Vigdis teve um riso mau, mas não deu qualquer resposta. Ljot veio encostar-se ao umbral da porta. O seu olhar errava pela pradaria em declive, e, enquanto falava a Vigdis, raspava o solo com a ponta da sua curta lança.

 

Chegou a altura explicou ele de eu voltar para a Islândia. Em Tunsberg espera-me, ancorado, um navio que pertence a parentes meus. Não ignoro que a súplica que you dirigir-te é temerária, pedindo-te, aliás, que me perdoes todo o mal que te fiz. Contudo, é certo que, se te decidires a acompanhar-me, serás venerada e amada como nunca o foi qualquer outra mulher antes de ti.

 

Vigdis ria ainda ao responder:

 

As tuas promessas não valem grande coisa, Ljot. Seduziste-me um dia com belas palavras, após o que me infligiste a mais cruel das afrontas e me causaste uma dor intolerável. Nenhuma mulher sofreu transes semelhantes aos que sofri. Acho que a que casar contigo poderá gloriar-se da tua forma de te insinuares junto das pessoas, de lhes matar os cavalos, de abusar das raparigas e de espalhar por toda a parte as tuas canções e as tuas mentiras. Não me pareces capaz para realizar grandes proezas, Viga Ljot.

 

Ljot desviou a vista e disse:

 

Não há dúvida de que tens boas razões para me falar assim. Mas eu realizei outrora outras acções melhores. E houve um tempo em que gostavas de me ouvir descrever-tas. Eu não te parecia tão repulsivo naquela época, visto que não te recusavas a beijar-me repetidas vezes. Mas a alegria fugiu-me desde a nossa última conversa, e as horas pareceram-me horrivelmente longas sem te tornar a ver.

 

Talvez julgasses ripostou Vigdis que eu fiquei à espera doutro próximo encontro entre nós!

 

Ljot ergueu os olhos e encarou-a:

 

Sim confirmou ele.

 

Ambos ficaram silenciosos durante uns momentos. Depois, Ljot acrescentou:

 

Diz-me, Vigdis, não terei eu porventura um filho por estes sítios?

 

Vigdis respondeu, rindo:

 

É possível que sim, mas desconheço-o. Não me apoquentei mais com os teus feitos e atitudes.

 

Uma onda de sangue avermelhou o rosto de Ljot, que guardou silêncio.

 

Vigdis prosseguiu:

 

Vai agora compor canções sobre a tua força máscula e não te esqueças de a gabar prolixamente. Conta aos outros como és corajoso e ousado quando te encontras com uma mulher. Mas não esperes que alguém dê crédito às tuas palavras nesta região. Aqui ninguém se interessa muito pelo palavreado dum pretendente despeitado...

 

Ljot ficou imóvel, sem já saber o que lhe havia de objectar, e não tinha ânimo para se ir embora. Compreendia claramente, não obstante, que Vigdis não mudaria de disposições a seu respeito, e que nunca mais conseguiria reconquistá-la. Mas a ideia de a perder para sempre fazia-o sofrer imenso. De repente lembrou-se da faca que a rapariga um dia deixara cair e que ele guardou sem que ela o notasse. Tirou-a de sob a roupa do peito e apresentou-a a Vigdis:

 

Recordas-te de teres perdido esta faca na primeira vez que estivemos juntos no alto dos sacrifícios, o ano passado?

 

Vigdis pegou na faca, e, num gesto brusco, inclinou-se e vibrou um golpe na direcção da garganta de Ljot. Atingiu-o no alto da clavícula. O golpe cortou-lhe a roupa, passou de raspão pela pele e o sangue correu. Ljot agarrou Vigdis, apertou-a um instante contra si e declarou:

 

Ser-me-ia agora fácil raptar-te, Vigdis; mas desta vez não quero agir contra tua vontade. Suplico-te: não me deixes; por todo o mal que me fizeste, só bem te farei.

 

Vigdis respondeu, nos braços de Ljot:

 

Não lograrás fazer-me atravessar viva as ondas do mar. Ele beijou-a e respondeu:

 

Desejo, então, que encontres muita felicidade neste mundo; eu não esquecerei nunca o meu desgosto.

 

Vigdis gritou-lhe:

 

Oxalá que morras da mais cruel das-mortes, que vivas muito tempo uma vida desgraçada, tu e todos aqueles cuja presença possa ser regozijo para o teu coração. Que possas, enfim, ver morrer os teus filhos duma morte horrorosa diante dos teus olhos!

 

Ljot largou-a e desceu o declive relvoso. Mas, depois de ter desprendido o cavalo da árvore a que o atara, voltou-se e ficou durante alguns instantes com os olhos erguidos para o chalé. Em seguida levou o cavalo para a floresta, saltou para a sela e afastou-se. Muito tempo se passou e numerosos foram os acontecimentos que se deram antes que Vigdis o tornasse a ver.

 

Nas proximidades do Outono, as mulheres deixaram o chalé. O Inverno que se seguiu também não foi muito feliz para a filha de Gunnar. A rapariga inquietava-se por ver Kare de Grefsin e os homens da família respectiva em conversações com seu pai a respeito do casamento que pretendiam concluir entre ela e Kare.

 

Vigdis pediu a Gunnar que deixasse aquele assunto em suspenso, por mais algum tempo ainda. Pretextava que não era seu desejo casar-se tão nova. Gunnar prometeu a Kare que lhe seria dada uma resposta definitiva no Outono. Vigdis, entretanto, via bem que o pai queria aquele casamento.

 

A rapariga declarou que não iria ao chalé no Verão. Ao cair da tarde dum dia de Primavera, saiu e pôs-se a caminhar através dos campos. O Sol ia sumir-se no ocaso, e o tempo estava bom. Era na época em que rebentam os botões das bétulas, em que as aves cantam. Um suave perfume evolava-se da ervagem. Vigdis sentiu o desejo de esquecer o seu desgosto.

 

Uma mulher habitava uma pequena casa ao sul da herdade. Era casada com um dos criados de Gunnar. Quando Vigdis passou pela frente do casebre, a mulher estava sentada à porta e fiava. Vigdis deteve-se para conversar com ela. Uma criança tamanina chorava dentro da casa. Vigdis observou:

 

Esta criança chora como se tivesse um grande desgosto. Não deve já ser muito pequena, pois notei que os gritos dos recém-nascidos são muito feios: dir-se-ia que se ouve um gato ou um mocho e não um rapazinho.

 

A mulher entrou na casota e voltou trazendo a criança nos braços. Era uma pequenita de dois anos ou pouco mais. Assim que se viu sentada nos joelho de sua mãe, passou-lhe a amargura e deixou de chorar.

 

Daí a instantes, deixou-se escorregar do colo materno para o chão e pôs-se a cirandar pelo prado, colhendo flores. Era ainda tão pequena que, ao pisar o vestidito, caiu. Vigdis foi levantá-la e a criança deu-lhe as flores que segurava na mão e que tinha arrancado sem as hastes respectivas, de modo que Vigdis logo as deixou cair.

 

Então, a mãe da pequenita disse:

 

Essas flores chamam-se «noites e dias». Pega numa delas e dá-ma, Vigdis; revelar-te-ei a tua sina.

 

Vigdis aquiesceu e a outra prosseguiu:

 

Vejo duas pétalas escuras, depois duas muito claras, a última é clara em cima, mas escura nos rebordos. Isto quer dizer que, a princípio, terás grandes desgostos, mas que mais tarde não te faltarão bastas alegrias. Contudo, o rebordo escuro da última pétala é inquietante, e não pressagia nada de bom para a tua velhice.

 

Vigdis respondeu:

 

Eis aí uma predição pouco fagueira, ao que parece, e eu não te pedi para me vaticinares o meu futuro. Não obstante, quero recompensar-te do trabalho que tiveste.

 

Desprendeu do corpete um alfinete de prata, deu-o à mulher e em seguida retirou-se.

 

A meio do prado elevava-se uma pequena colina onde cresciam arbustos. A erva achava-se recamada de flores iguais às que a camponesa denominara «noites e dias». Vigdis sentou-se, cruzou as mãos nos joelhos, e contemplou o fiorde que brilhava, ao sul, em toda a sua beleza enquanto o sol ia descendo para as montanhas.

 

A rapariga conservou-se assim absorta muito tempo; os seus pensamentos não eram alegres, quer fossem para Ljot quer voassem para o ser que deixara lá em cima nos bosques. com frequência se interrogava sobre se dele restaria alguma coisa entre as pedras ou se tudo teria sido devorado pela bicharada daquele matagal. Lembrava-se de que, no local onde se estendera contorcida de dores naquela noite, saíam formigas e outros bichos rastejando de todos os lados. Apesar de não sentir qualquer ternura pela criança que dera ao mundo, custava-lhe imaginá-la coberta de formigas a correrem-lhe sobre o corpo ainda vivo.

 

Ao cair da noite, Vigdis levantou-se e meteu-se a caminho para regressar a casa. Fez a correr grande parte do trajecto, para não chegar muito tarde. Quando chegou à herdade, encontrou Aesa, que lhe disse:

 

Assustaste-me terrivelmente, minha filha. Já não sabia que pensar da tua longa ausência, pois não ignoro que a noite te aterroriza agora mais do que nunca.

 

Vigdis respondeu:

 

Tenho medo da noite e tenho medo da floresta. Na minha própria casa tenho medo. A minha vida é sem ventura e melhor seria para mim pôr termo a esta existência.

 

Não fales dessa maneira disse Aesa , tu podes ser ainda feliz. Não és tão idosa que te seja impossível esquecer a tua dor. Ninguém a conhece, e toda a gente te crê pura como nasceste. Kare gosta de ti, e junto dele serás rica e venerada.

 

Essa perspectiva é justamente a pior para mim tornou Vigdis. Agora afigura-se-me que melhor do que isso seria que a minha vergonha fosse conhecida de todos, ainda mesmo que meu pai me expulsa-se de casa. O mais atroz é dissimular, parecer que sou ditosa como outrora. Acompanha-me sempre o pensamento da minha desdita. E de pouco serve que as criaturas destes sítios me julguem diferentemente, porquanto eu conheço o meu opróbrio, e nem sei onde hei-de meter-me desde que Kare pretende obter a minha mão.

 

Aesa e Vigdis tornaram a reunir-se ao serão na mesma casa, e Vigdis perguntou-lhe:

 

Não te seria agradável, ó minha mãe adoptiva, partir para o país do Sul a fim de tornares a ver a tua família? Disseste-me, não é verdade, que não era gente menos bem nascida do que nós?

 

Aesa respondeu:

 

Ignoro se vivem ainda as pessoas de minha família ou se morreram, e é demasiado tarde para ir procurá-las e mudar as condições da minha vida. Mas porque me fazes essa pergunta?

 

Vigdis manteve-se silenciosa por longos momentos e depois disse:

 

Noutro tempo, quando eu tinha qualquer dissabor, ia para junto de ti e sentava-me nos teus joelhos. Mas hoje, Aesa, oculto-me mais de ti do que de qualquer outra pessoa.

 

Aesa não respondeu, e Vigdis continuou:

 

Lastimo, agora, ter abandonado aquela criança, porque ele desperta-me todas as noites soltando gritos pavorosos. Desejaria que o meu destino me tornasse implacável; que o filho de Ljot se convertesse no seu castigo e que o pai não pudesse escapar à vingança do filho.

 

Aesa, vivendo num ambiente primitivo e bárbaro e imbuída dos preconceitos que nele predominavam, não manifestou nenhum espanto ao ouvir aquelas palavras dementadas, e murmurou em voz baixa:

 

Desejaria saber se é esse realmente o fundo do teu pensamento.

 

Vigdis respondeu afirmativamente. A aia revelou-lhe, então:

 

É tempo de o saberes. A criança que nasceu de ti, no ano passado, foi recolhida por meu filho Skofte.

 

Vigdis ergueu-se bruscamente. Ficou um instante muda, pálida de morte, e depois, deixando descair a cabeça sobre a mesa, desfez-se em lágrimas.

 

Aesa disse:

 

Não há necessidade de tornar conhecida a tua desventura. E, na minha opinião, seria de bom aviso que continuasse ignorada como até aqui. Falei-te nisto apenas para o caso de teres o desejo de ver teu filho.

 

Vigdis continuou a lamentar-se:

 

Julgava-me suficientemente infortunada para crer impossível uma existência ainda mais cruel. Mas falta-me o ânimo para continuar a viver aqui, exposta a encontrar essa criança. Oh! porque não tive eu a coragem precisa para a lançar ao

 

lago naquela noite! Apesar de tudo, não posso crer que me tenhas dito a verdade.

 

Aesa foi abrir o seu armário, e retirou dele um mantelete de pano forte que entregou a Vigdis. Esta viu imediatamente que era o mesmo em que ela abrigava a cabeça naquela noite sombria. Ainda se notavam nele as manchas de sangue, e nas dobras havia restos de raminhos e de musgos. Vigdis atirou-o para longe de si, chorando e disse:

 

É necessário contar tudo isto a meu pai. Não poderei viver se tiver de partilhar com Skofte ou com quem quer que seja este segredo. Nunca pensei que tu me abandonasses desta maneira.

 

Aesa respondeu:

 

Naquela manhã, quando despertei e não te encontrei a meu lado no leito, assustei-me e mandei Skofte à tua procura. Ele achou o pequenito e trouxe-o. Pareceu-nos um lindíssimo garoto e Skofte ofereceu-se para o criar. Revelo-te esta noite tudo isto, na intenção de te proporcionar algum consolo, sabendo que tens um filho que é o mais belo petiz destas redondezas.

 

Pois sim; mas seja como for exclamou Vigdis , estou farta desta vida.

 

Aesa respondeu:

 

Não digas isso. Um nascimento ilustre não serve de grande coisa neste mundo. Bem ou mal nascida, a pessoa vergada pela vergonha, vergada fica. Fui obrigada a aprender isto, e you contar-te como o aprendi, depois decidirás o que quiseres fazer.

Aesa começou assim a sua história:

 

Meu pai, que era conhecido por Harald «Barba de Oiro», habitava no Sul, em Seeland. Já te contei um pouco da minha infância, que decorreu feliz e alegre como a das minhas irmãs. Ingrid e Astrid eram já raparigas muito crescidas quando eu contava apenas treze anos. Uma tarde fomos até ao Sund com as nossas criadas para tomarmos banho. Barcos à vela passaram a certa distância. Eram tripulados por «vikings» de Oeland, que acostaram os barcos e nos levaram para bordo. Nenhuma de nós conseguiu fugir. Os navios pertenciam a três irmãos e eles raptaram-nos, a mim e a minhas irmãs, por se terem apercebido à primeira vista de que nós éramos filhas de senhor importante. O mais velho dos três irmãos chamava-se Arngrim. Dormi a primeira noite no seu leito, e reteve-me durante dois anos.

 

Os irmãos separaram-se pouco depois da nossa captura, os outros dois regressaram à sua terra, mas Arngrim continuou a correr os mares, tanto no Inverno como no Verão. Ele era destemido, robusto e de agradável semblante, porém mostrou-se ríspido a meu respeito porque me recusei sempre a manifestar-lhe amor. Não tornei a ver minhas irmãs e não soube jamais qual foi o seu destino. Arngrim não queria responder-me quando lhe perguntavam qualquer coisa a tal respeito. Como temia que eu me evadisse, tirara-me todas as minhas roupas, mas dava-me muitos abafos preciosos, túnicas e jóias. Havia a bordo um moço de nome Asbjorn. Persuadi-o a fugir comigo e a levar todo o oiro do navio. Mas Arngrim descobriu os nossos projectos. Matou Asbjorn, e tornou-se ainda mais duro no seu trato para comigo do que era anteriormente.

 

Um dia em que estávamos ao largo das ilhas Soder, fomos abordados por «vikings» noruegueses, e Arngrim foi morto. Gunnar, teu pai, era o chefe dos «vikings» noruegueses.

 

Quando ele me mandou sair do camarote do barco, pude ver na ponte o cadáver de Arngrim. Ajoelhei-me ao lado dele e molhei as minhas tranças esparsas no sangue que lhe corria das feridas, por me lembrar de que o corsário costumava, à noite, atar os meus cabelos em redor do seu pescoço, para dificultar a minha fuga.

 

Gunnar perguntou-me o nome, e interrogou-me acerca de minha família, «porque se me afigura disse ele que o teu nascimento está de harmonia com a tua beleza». Contei-lhe o que se tinha passado na noite da minha captura e de minhas irmãs.

 

Gunnar prometeu-me que me levaria para a Dinamarca. Deu-me as vestes mais belas e dignas da minha estirpe e manifestou-me tanta amizade que me apaixonei por ele. Confessou-me então que tencionava separar-se de sua mulher. E pedir-me-ia oportunamente, na Dinamarca, em casamento aos meus pais. Mas eu preferia ficar junto de Gunnar a voltar para a minha família. Fiquei portanto no seu navio até que lancei ao mundo um filho. Desde então, Gunnar tornou-se ainda mais meu amigo, porque Alvsol, sua mulher, era estéril.

 

Conduziu-me a Vadin, mas naquela época o Jarl chamava os senhores às fileiras do exército e Gunnar foi obrigado a deixar-me. Recomendou a Alvsol que olhasse por mim e que cuidasse da criança como se fosse sua. Separámo-nos, pois, e eu senti-me, mais uma vez, infinitamente desditosa.

 

Alvsol e a mãe adoptiva estavam à minha beira quando me nasceu o filho. Elas pegaram imediatamente na criança e mandaram-na expor, pedindo a todas as pessoas da herdade que dissessem a Gunnar que o bebé era nado-morto, e ameaçaram-me com a mais cruel das mortes se eu ousasse queixar-me.

 

Um pouco mais tarde soubemos que Gunnar estava gravemente ferido e que durante muito tempo não devíamos contar com o seu regresso. Alvsol fez-me então conduzir para a casa onde viviam os seus escravos. Um deles chamava-se Svart. Defendeu-me contra os outros e mostrou-se bom para mim em todas as coisas, mas tomou-me como sua mulher. Alvsol deu-lhe habitação na floresta, na casa onde reside hoje Skofte, e fez constar por toda a parte que eu me tornara mulher dum escravo do seu domínio.

 

Quando Gunnar voltou, ela contou-lhe que eu me juntara voluntariamente a Svart, e Gunnar ficou possuído de tal furor que nos quis matar a ambos. Porém, eu disse-lhe a verdade sobre o meu filho, que ela mandara abandonar, e sobre o mais que tinha ocorrido.

 

Então, ele expulsou Alvsol de sua casa e propôs-me que deixasse Svart para ser a administradora de sua casa. Mas eu aconselhei-o a que antes de mais nada tomasse uma outra mulher. E ele desposou, então, Herdis, tua mãe, que era mais nova e mais bela do que eu naquela época. Não ignoras que ela morreu quando tu nasceste. Pedi a Gunnar que me permitisse cuidar da tua educação, e ele acedeu ao meu desejo. Desde então governei esta casa, como sabes. Gunnar tomou conta dos meus filhos e deu-lhes a alforria. Ele só me fez bem desde o dia em que o encontrei.

Vigdis disse:

 

O que me parece mais estranho é que tenhas ficado em casa do escravo à mercê do qual te haviam posto. Eu teria pedido a Gunnar que o mandasse esquartejar por cavalos fogosos.

 

Aesa respondeu:

 

Gunnar honrou-se muito mais trazendo ao domínio uma esposa rica e bem nascida do que mantendo-me junto dele. Mas o que principalmente me decidiu foi o facto de ter filhos de Svart. Não desejava que me tirassem mais uma vez os meus filhos.

 

Tu não tens o mesmo carácter que eu, minha mãe adoptiva disse Vigdis, acrescentando após uma pausa: Meu pai também não foi muito feliz por ter desposado minha mãe, e ainda o será menos quando souber que eu tenho este filho.

 

Deixa o pequeno onde está enquanto Gunnar for vivo disse Aesa. Mais tarde, poderás então trazê-lo para junto de ti e alegrar-te com a sua presença. Poderemos, por nosso lado, arranjar-nos sem inquietações com Kare.

 

Vigdis colocara as mãos sobre os joelhos e olhava o lume na lareira:

 

Não posso continuar a viver na angústia e no desespero, procurando incessantemente escapar às adversidades. Acho preferível arriscar-me ao pior, que não será, aliás, mais temeroso do que a minha condição presente.

 

Ela pegou no mantelete, correu à porta, e, chamando um homem que rachava lenha no pátio, disse-lhe:

 

Leva isto a Skofte, e dize-lhe para vir aqui esta noite mesmo, e que me traga o que achou ao mesmo tempo que este mantelete.

 

Depois meteu-se na sala de estar da casa, e sentou-se próximo do lume, à chaminé. Aesa sentou-se a seu lado. As duas mulheres conservaram-se em longo mutismo, e por fim Aesa exclamou:

 

Só daqui a muitas horas Skofte chegará a esta casa. Seria melhor deitarmo-nos.

 

Vai-te deitar tu respondeu Vigdis. Eu ainda me demoro aqui.

 

Aesa calou-se e não respondeu. Um pouco mais tarde Vigdis repetiu:

 

Vai-te deitar, Aesa.

 

A mãe adoptiva compreendeu, pelo torn de voz de Vigdis, que seria inútil tentar resistir-lhe. Meteu-se portanto no leito, mas não dormiu. Vigdis conservou-se no mesmo ponto, e apenas se movia para deitar lenha no lume quando este tendia a apagar-se. Depois, retomava a sua posição imóvel. A noite passou-se assim até ao momento em que os galos se puseram a cantar.

 

Então, alguém bateu à porta:

 

Vai abrir, Aesa disse Vigdis.

 

Aesa foi abrir e entrou Skofte. Transportava nos braços a criança embrulhada em peles que a aqueciam. Vigdis ergueu-se e acendeu um pau resinoso. Skofte libertou o pequenito dos abafos em que o envolvera e elevou-o até junto da luz, o que o fez começar a chorar, pois acordara naquele mesmo instante.

 

Vigdis contemplou-o um momento, sem ousar tocar-lhe. De pouca altura e delgadito para a sua idade, o rapazito tinha compridos cabelos negros e olhos azuis e luminosos. Parecia-se muito com Ljot. Skofte pô-lo no chão, para mostrar que o petiz já sabia manter-se de pé quando se lhe pegava na mão, mas não podia andar. E não cessava de chorar, agarrando-se à vestia do pai adoptivo.

 

Vigdis atirou o pau resinoso para o lume, e tornou a sentar-se no lugar onde estava antes.

 

Skofte disse, vendo que o rapazinho não se calava:

 

Ele chora porque tem sono, pois costuma portar-se bem. Vai, então, deitá-lo respondeu Vigdis senão é capaz

 

de acordar toda a herdade.

 

Aesa tomou-o nos braços e quis levá-lo para o leito, mas Vigdis interveio:

 

Não o quero nesse leito. Procura outro canto para ele. E tu, Skofte, vai-te deitar na sala. Recompensar-te-ei pelo que fizeste, com uma dádiva de mais valor do que vale esta criança.

 

Aesa estendeu o menino em cima do banco e deitou-se ela própria ao lado dele. Vigdis ficou a pé toda a noite.

 

Aesa Haraldsdatter foi ter com Gunnar logo de manhã cedo, mas ele estava ainda deitado. Pediu então aos criados que se retirassem e sentou-se à beira do leito. Gunnar e ela conversaram durante muito tempo a sós. Depois da conversa, Gunnar levantou-se, vestiu-se e dirigiu-se à casa onde estava Vigdis.

 

Esta ergueu-se precipitadamente quando o pai entrou; estava muito pálida e em profunda ansiedade. Mas Gunnar pouco disse, e Aesa não se tirou de ao pé dele.

 

Por fim, foi contemplar o pequenito:

 

Vê-se bem quem é o pai disse ele. Vigdis guardou silêncio e Gunnar continuou:

 

Até agora parecia-me bem punível o destino que tão-só me dera uma filha e nenhum filho, Mas julgava ter-te sempre testemunhado carinho, e nunca ter sido duro para contigo. Desejava ver-te feliz e respeitada antes da minha morte. Teria sido preferível ver-me sem filhos a ouvir alguém chamar-te dissoluta e ver crescer o teu bastardo na herdade, na minha velhice.

 

Vigdis respondeu:

 

Dizes bem, pai. Mais valera que não tivesses filha. Gunnar não disse mais nada e saiu.

 

O tempo passava e o silêncio reinava em Vadin. Recebiam-se ali poucas visitas, e as pessoas da casa evitavam todo o convívio com gente da região. Gunnar ficara seriamente acabrunhado com a aventura da filha. Envelheceu depressa, a estatura curvou-se-lhe ao peso da vida e dos dissabores e a saúde tornou-se-lhe precária.

 

O rapazito vivia na herdade. Aesa tratava dele e tributava-lhe grande carinho. Mas Vigdis não lhe manifestava a menor ternura e ainda não lhe dera sequer um nome. Mostrava-se sempre triste e não abandonava o recinto da espécie de eremitério em que Vadin se convertera.

 

Um dia, Vigdis e Aesa preparavam pão na cozinha; o pequeno ia e vinha dum lado para outro, pois já tinha dois anos naquela época. Aesa amassou dois pães pequenos e mostrou-os ao petiz, dando-lhe a perceber que ia enforná-los para ele. Ficou de tal forma contente que, não podendo conter o júbilo, corria duma mulher para a outra, pedindo incessantemente os pãezinhos, e na sua agitação esbarrou no taleigo da farinha, derrubando-o. Vigdis agarrou a criança, sacudiu-a rudemente e bateu-lhe.

 

Não fazes senão maldades disse ela.

 

O pequeno gritava e chorava. Vigdis pegou nele e foi sentá-lo no banco.

Deixa-te estar aí, e cala-te; não quero ouvir-te chorar por tão pouco.

 

Voltou à amassadura e consagrou-se uns momentos ao trabalho. Depois disse a Aesa:

 

Este rapaz não me dá alegria, e temo que ele não seja o instrumento da minha vingança. Não se parece comigo.

 

Não fales assim volveu Aesa.

 

Vigdis calou-se e continuou o trabalho. O garoto não cessava de chorar, mas cobriu o rosto com as mãos e, quando a mãe o olhava, estendia-se no banco e ocultava a cabeça nuns sacos que ali se encontravam.

 

Pouco depois, Aesa saiu da cozinha. Vigdis pegou então nos dois pequeninos pães e deu-os ao filho.

 

Cala-te e come disse ela, colocando os pães em cima dos joelhos do petiz.

 

Este calou-se e olhou para a mãe, ao mesmo tempo que tocava nos pães com a extremidade do dedo. Mas achou-os quentes de mais e o temor paralisou-o. Então, de repente, ela acariciou-lhe o cabelo repetidas vezes, e depois mandou-o ir ter com Aesa.

 

O Inverno passou sem que se dessem quaisquer acontecimentos que valha a pena narrar. Já se transpusera o equinócio; o sol ganhava dia a dia mais força por aquelas paragens e a água caía em gotas dos tectos durante o dia. O pessoal abatia árvores nas florestas. Numa bela manhã, Gunnar partiu sozinho, a cavalo, para ir ver os seus servos que trabalhavam nos bosques.

 

Cerca do meio-dia, Aesa e Vigdis preparavam-se para pôr o almoço na mesa, quando Aesa lançou um olhar para a porta.

 

Olha disse ela , ali vem Gunnar já de volta; mas aguenta-se a muito custo na sela. Ou bebeu de mais ou está doente.

 

Proferidas estas palavras, correu ao seu encontro. Vigdis tirou do lume a marmita cheia de cozido, e começou a distribuir os talheres. De repente, ouviu gritar Aesa. Um instante depois, Skofte e um outro homem entraram na sala, amparando Gunnar. Aesa seguia-os erguendo os braços ao céu. Vigdis notou que o pai estava lívido e que a sua barba branca se encontrava coberta de sangue à altura do peito.

 

A jovem deixou cair por terra tudo que tinha na mão. Correu para o pai e perguntou-lhe o que lhe sucedera.

 

Gunnar fez sinal a pedir que o transportassem para junto do banco. Ficou ali sentado alguns instantes, com a nuca apoiada contra a parede.

 

Aconteceu que falei a Eyolf de Grimelundar disse ele por fim e depois da conversa que tivemos não voltaremos a trocar uma palavra.

 

Vigdis inquiriu:

 

Eyolf foi morto?

 

Não respondeu Gunnar , mas o meu próprio destino está cumprido; acho-me ferido mortalmente.

 

Aesa e Vigdis libertaram Gunnar da roupa para lhe examinarem o ferimento, e compreenderam que as suas palavras eram exactas. Vigdis exclamou:

 

É preciso dizer-nos, pai, como as coisas se passaram. Gunnar esclareceu:

 

Encontrámo-nos na floresta das grandes árvores, Eyolf e eu. Eyolf falou-me de ti, Vigdis. Não consenti que zombasse de mim à custa da desonra de minha filha.

 

Vigdis guardou silêncio. Meteram Gunnar na cama. Ele mandou sem demora Skofte em direcção ao norte para se avistar com os seus criados e trazê-los à herdade, porquanto ninguém sabia o que seriam capazes de empreender os filhos de Arne, e, disse ele, «Eyolf afirmou-me que Vigdis seria sua amante».

 

Aesa sentou-se cerca de Gunnar; entretanto Vigdis levou Olav, o homem que viera trazer seu pai a casa, para um canto da sala, e interrogou-o sobre o que se tinha passado.

 

Como defendeste tu o teu amo, Olav?

 

O melhor que pude. E Gunnar defendeu-se como era de esperar. Cada um de nós matou um dos agressores. Mas eles eram seis. Quando Gunnar, mortalmente ferido, caiu do cavalo, corri para ele e recebi-o nos meus braços; os outros puseram-se então em fuga.

 

Sabes em que direcção?

 

Sei que Grimelundar se encontra próximo da lagoa da floresta de Gautesstad, a que chamam Lagoa da Criança. Abatem troncos por aqueles sítios na vertente da montanha.

 

Vigdis ficou silenciosa. Mas, instantes após, acrescentou:

 

Eyolf imagina sem dúvida que praticou uma bela acção esta manhã.

 

Depois dirigiu-se ao seu quarto, abriu o armário, tirou de lá a faca, atou um mantelete negro sobre a cabeça e envolveu-se num manto escuro. Desceu em seguida ao pátio, muniu-se dos dois esquis e das competentes varas, no corredor, e deslizou através dos campos em direcção à floresta. Seguiu constantemente pela orla dos bosques até Gautesstad, contornou as casas e o sopé da pequena colina que se encontra por detrás das herdades. A neve era dura sob as árvores, e os esquis deslizavam sem esforço e tão bem que Vigdis distinguiu a breve trecho a superfície branca do lago e a cabana de troncos construída pelos homens de Grimelundar.

 

Parecia ter trabalhado muita gente naquele lugar. O solo estava juncado de pedaços de madeira, de cascas de árvores, de porções de feno arrancados pelas carretas. Mas Vigdis não viu ninguém. Manteve se ao abrigo das árvores e descobriu um esconderijo precisamente contíguo à cabana. Tirando os esquis, a jovem lançou um olhar para o interior da cabana. Perto da porta achavam-se um machado e um escudo que ela reconheceu como sendo os de Eyolf. A cabana era alta e muito estreita, e Vigdis tratou de penetrar-lhe no interior. Descobriu ali dois homens adormecidos. Um deles era Eyolf. Ela dirigiu-se primeiro à cama do outro; levantou com uma das mãos o manto que o cobria e envolveu-lhe a cabeça com ele. com a outra mão ergueu a faca, enterrando-a na garganta do homem. Em seguida, Vigdis voltou-se para o lado de Eyolf. Colocou-lhe a mão no peito para o despertar.

 

Acorda, Eyolf. Obtiveste o que desejavas há tanto tempo. Aqui tens Vigdis de Vadin que vem conversar contigo.

 

Eyolf acordou em sobressalto. Fazia escuro na cabana, e ele divisava a custo Vigdis. Ela continuou:

 

É verdade que sou uma rapariga sem pudor, atendendo a que venho procurar-te no teu próprio leito.

 

E dizendo isto, atirou-lhe um terrível golpe com a faca, golpe que ainda daquela vez atingiu certeiramente a vítima. Eyolf caiu para trás, deitando sangue em borbotões pela garganta. Ela enterrou-lhe a faca na garganta mais duas vezes, mas da segunda não a retirou e, abandonando-a na ferida, inclinou-se para a frente para ver morrer Eyolf. Enxugou as mãos, que mergulhara no sangue, aos cabelos da vítima, que soltava o último suspiro. Então, Vigdis saiu da cabana.calçou novamente os esquis para deslizar sobre a neve e tornou a descer através da floresta o caminho que a conduziria a casa.

 

O frio era cada vez maior. Vigdis ia depressa, porque deslizava por uma ladeira abaixo. Por vezes, era obrigada a deter-se, tremiam-lhe as pernas e continuava a ter diante dos olhos a imagem de Eyolf morrendo sob as suas punhaladas. Parecia-lhe haver feito mais do que vingar Gunnar do ferimento mortal. Tivera à sua mercê um homem tão incapaz de se defender como ela fora incapaz de se defender contra Ljot. Sentia-se perturbada a ponto de não notar que deslizava sobre a terra coberta de neve sem ver sequer aonde ia. Ao subir uma colina que lhe interceptava o caminho, encontrou-se numa encruzilhada com Koll Arnesson e alguns dos seus homens. Conduziam encosta acima alguns trenós vazios e, vendo Vigdis, saudaram-na à passagem. Koll e um outro homem perseguiram-na na neve, mas esta não estava suficientemente dura, e eles enterraram-se nela, porque não iam munidos de esquis. Vigdis dirigiu-se através da ervagem para uma ribeira que corria na baixada do terreno. Conseguiu deslizar sobre o gelo, apesar de este ser frouxo, entrecortado de charcos e quebrar atrás dos seus esquis. Contudo, pôde alcançar a outra margem e escapar assim à perseguição dos dois homens.

 

Não tardou a parar no trajecto até ao pátio da propriedade, e, uma vez ali, dirigiu-se imediatamente para os aposentos de Gunnar e aproximou-se do leito, onde o encontrou dormindo. Aesa estava sentada à cabeceira. Vigdis gritou:

 

Acorda, pai, para ouvires a notícia que mais alegria poderia dar-te. Agora, o nosso vilipêndio foi diminuído da melhor maneira que pude. Matei Eyolf, filho de Arne.

 

Gunnar pediu que o sentassem no leito e Vigdis contou a sua façanha. Depois, Gunnar disse-lhe que se inclinasse para ele poder beijá-la, e pronunciou estas palavras:

 

Acabas de mostrar que és uma mulher intrépida e digna de respeito. Sempre esperei que serias um dia uma mulher assim resoluta. E já não sinto nenhuma cólera contra ti por te haveres deixado seduzir por esse islandês. Desejo-te e a teu filho todo o bem possível.

 

Vigdis contou-lhe também o seu encontro com Koll, e Gunnar perguntou-lhe se este a reconhecera.

 

Não sei respondeu Vigdis , mas ele não deixará de reconhecer a faca com que matei Eyolf. Deixei-a ficar na garganta do nosso inimigo.

 

Então, Gunnar disse:

 

Eu já não estou capaz para as defender, e passar-se-á talvez muito tempo antes que Skofte regresse com os nossos homens. O melhor que tens a fazer é agarrar no teu filho e partir imediatamente para Grefsin. Estou certo de que Kare não esquecerá a amizade que tive por ele. Olav tomará todos os objectos preciosos da casa e irá escondê-los na gruta da ribeira que corre para o sul, no sopé da encosta onde está a granja.

 

Não quero deixar-te, pai disse Vigdis. Mas Gunnar volveu:

 

Quero que tenhas um refúgio para ti e para a criança, pois não desejo que a minha família se extinga. Restam-me muito poucas forças. De resto, a minha vida foi assaz longa. Partam imediatamente para Grefsin, Aesa e tu.

 

Aesa disse:

 

Não sei andar em esquis, e recuso-me a abandonar-te agora, Gunnar. Tu foste um bom amo para os meus e para mim. Não é certo, aliás, que Koll venha aqui esta noite. Mas é necessário que Vigdis parta para Grefsin. Kare não deixará de vir socorrer-nos o melhor que possa.

 

E fez-se como Aesa desejava. Ela ficou junto de Gunnar. Nada a demoveu a abandoná-lo. Vigdis foi ao pequeno quarto do filho, despertou-o e vestiu-o.

 

Meteu quanto possuía de precioso em oiro e jóias num saquitel de couro. Preparou um farnel de pão e carne fumada, porque não tinha tempo para dar de comer ao filho antes de partir. Em seguida tomou-o nos braços, e foi aos aposentos de seu pai para se despedir dele. Gunnar beijou a filha e o neto. Vigdis disse seguidamente adeus a Aesa com uma viva afeição.

 

Oxalá que possamos tornar a encontrar-nos.

No pátio calçou os esquis, fixando-os aos pés por meio de sólidas correias. Escolheu um «alpenstock», ou seja um pau munido duma longa ponta de ferro e duma rodela. Depois, utilizando umas faixas à guisa de alforje, pôs o filho às costas e abandonou a toda a pressa a herdade na direcção do norte. O sol estava quase a desaparecer no horizonte, e a neve era tão dura que os esquis mal a raspavam, apesar de Vigdis transportar a criança sobre o dorso. Foi seguindo a ribeira para montante até achar um ponto onde o gelo resistia. Depois subiu a colina, tornando-se a marcha penível. A corrida precedente fatigara Vigdis. Quando se viu no topo do planalto, deteve-se e lançou um olhar para a retaguarda. O céu estava vermelho por cima do fiorde. Não divisou alma viva em toda a extensão que a sua vista abarcava, pois naqueles tempos a região achava-se coberta de florestas e matagais.

 

Vigdis subiu para Grefsin. A marcha não foi rápida e as estrelas acenderam-se no céu antes de ela chegar às casas. Não viu uma única luz e achou todas as portas fechadas. Avançou e bateu com o seu pau ferrado, mas ninguém apareceu para a receber e não ouviu o menor ruído. Compreendeu que não havia um único ser humano na granja.

 

Indecisa sobre o que havia de fazer, pôs o pequeno na neve para tomar fôlego. Então, o petiz puxou-lhe por uma aba do manto e apontou com o dedo a região da retaguarda, ao longe. E Vigdis viu o céu esbraseado para as bandas de Vadin. O clarão aumentava e por cima dele distinguia-se uma coluna de fumo negro. A criança estava cheia de medo, batia os dentes e escondia a cabeça nas saias de Vigdis. Ela tomou o filho nos braços e disse:

Teu avô está na iminência de ser calcinado vivo com Aesa, tua ama. Olha bem, meu filho, para nunca mais esqueceres.

 

Vigdis via lavrar o incêndio. Elevavam-se chamas e a fumarada tinha tons vermelhos ou dourados. O fogo ganhara a granja, e os fenos e cereais que ardiam projectavam para o céu feixes de centelhas. O clarão iluminava tudo como se fosse dia, até mesmo no lugar distante onde Vigdis se encontrava. Ela divisou, então, um grande número de homens em esquis, que se precipitavam através dos campo, do lado da ribeira, e julgou prudente afastar-se para achar um refúgio na floresta. Levantou o filho e partiu tão velozmente quanto lho permitiram os seus esquis. Ò melhor partido a tomar, sem dúvida, era seguir durante algum tempo a pista que, nascendo no aldeamento, se perdia nos campos. Assim, aqueles que pretendessem ir-lhe no encalço teriam dificuldade em achar o seu rasto confundido com os outros. Dirigiu-se para o norte, sabendo que a periferia do grande lago por cima do vale era habitada. Não iriam, por certo, procurá-los tão longe.

 

Fazia escuro quando ela se embrenhou nos bosques, guiando-se, apenas, pela brancura da neve. O terreno subia para a montanha e Vigdis avançava com dificuldade. Caiu para a frente várias vezes, ferindo-se profundamente no rosto e nas mãos. A noite estava fria; mas Vigdis não dava por isso, porque se encontrava coberta de suor e o coração batia como se quisesse saltar-lhe do peito. O que principalmente a embaraçava era o petiz, que se lhe agarrava ao pescoço e quase a estrangulava enquanto ela subia a encosta.

 

Por fim, alcançou o cimo e foi-lhe mais fácil avançar, mas tudo dava a impressão de que jamais passara alguém por aquelas paragens. Voltando-se, Vigdis viu o reflexo avermelhado do incêndio por entre os abetos, mas o clarão já havia empalidecido bastante.

 

Um pouco mais tarde, o pequeno começou a bater os dentes, tiritava e tinha fome.

 

Não chores, meu filho disse a mãe , não tardará que encontremos gente. Terás a tua papinha e cama para dormir.

 

E ainda falta muito, mãe?

 

Não, não tarda nada.

 

Vigdis tirou o manto, fez uma espécie de saco com que embrulhou o filho, e fixou-o solidamente sobre o dorso. Uma vaga claridade aparecia numa baixada da vertente. Equilibrando-se o melhor que pôde com a ajuda do pau ferrado, foi descendo na direcção da claridade, saltando dum ponto de apoio para outro, mas a ladeira era tão ruim que, a cada paragem dos esquis, sentia tremer os joelhos e correr o suor ao longo do corpo. As estrelas brilhavam no céu, mas nos bosques reinava uma obscuridade sinistra. A Lua só nasceria pela madrugada alta. De repente, uma extensão branca surgiu ante os olhos de Vigdis; devia ser um lençol de água. Tentou abrir uma passagem para a alcançar, mas esbarrou com uma árvore e, caindo, escangalhou a fixação de um dos esquis. Como estava munida de uma faca, serviu-se dela para cortar uns ramos de salgueiro, com a ajuda dos quais reparou o esqui o melhor que lhe foi possível. Durante todo esse tempo, assentou a criança na neve. Só ao fim de considerável lapso de tempo concluiu aquele trabalho, e ficou apta a pôr-se novamente em marcha. Então, disse ao pequeno, levantando-o do chão:

 

Tens frio, meu filho?

 

Não disse ele.

 

Vigdis tocou-lhe nas mãos, estavam geladas e a criança ficou insensível quando ela lhas cerrou entre as suas. Sentou-o nos joelhos e friccionou-as com neve até que o petiz começou a chorar, dizendo que lhe doía.

 

Em seguida, a mãe voltou a envolver a criança ainda mais estreitamente no manto e, aventurando-se sobre o gelo do lago, tomou a direcção do noroeste, para onde, segundo as suas vagas recordações, deveria encontrar casas habitadas.

 

Foi tão-só naquele instante que Vigdis se apercebeu de que fora seriamente afectada pelo frio enquanto se ocupava do filho.

 

O vento norte glacial soprava com força-por cima do lago.

 

Vigdis caminhava contra o vento, cujo açoite lhe retalhava as carnes através das vestes encharcadas de suor. Tinha a impressão de se encontrar nua. Manteve-se na zona esquerda do lago, mas, por mais que escrutasse com a vista o horizonte, não divisava nenhuma casa. Não obstante, acabou por descobrir numa vertente branca algo que lhe pareceu ser uma habitação. Dirigiu-se para lá rapidamente. Era uma granja, Mas Vigdis achava-se esgotada a ponto de não poder dar mais um passo. A porta, que encontrou sem grande dificuldade, estava aberta.

 

Tirando os seus esquis, a jovem avançou para o interior do casebre, duma obscuridade fuliginosa. Não fazia ali menos frio do que no exterior. Mas Vigdis, tacteando o solo e as paredes, topou a um canto com um pequeno montão de ervas secas. Abriu um buraco naquele feno e anichou-se-lhe no interior, mas a palha estava gelada e não a aquecia.

 

A criança perguntou:

 

Já chegámos? Vão dar-nos caldo?

 

Os habitantes desta casa não estão cá disse Vigdis. Mas é natural que te sintas muito fatigado. Por isso deitar-nos-emos, esperando pelo seu regresso, que não deve demorar.

 

Tenho fome disse o pequenito.

 

Vigdis retirou do taleigo pão e carne, que mastigou e meteu na boca da criança. O rapazito acalmou-se um pouco depois de ter comido. Mas tanto ele como ela tremiam de frio. Abrindo o vestido à frente, a rapariga abrigou o filho, unindo-o ao seu corpo. Depois estendeu cuidadosamente o manto sobre ambos e pôs feno em redor e por cima daquele improvisado cobertor. O pequenito adormeceu. Ao contacto do seu bafo sobre o peito, ela sentiu também diminuir um pouco o frio que a atormentava. Por instantes, Vigdis dormitou, mas nesses momentos sonhava que estava caminhando nas trevas por entre pântanos e soerguia-se em sobressalto. A criança acordou e ela tratou de a tranquilizar. As palavras que as mães dizem aos filhos tamaninos subiam-lhe aos lábios com naturalidade perfeita.

 

Estiveram assim muito tempo, e Vigdis ouvia os estalidos dos muros de madeira sob o gelo. Por uma fenda, viu que a lua começava a brilhar sobre a neve. O pequeno despertou, dizendo que tinha sede. Também ela sentia sede; tentou sair para apanhar neve e ao mesmo tempo para verificar se lhe era possível mover os membros paralisados pelo frio. Mas o garotinho pôs-se a chorar por não querer separar-se dela. Ela tomou-o então nos braços para ir abrir a porta.

 

Vêm além os homens que habitam aqui notou o rapazito. Vigdis divisou, de facto, uns homens que avançavam pela margem, bastante longe, ao sul; vinham munidos de archotes.

 

A rapariga saiu, tornou a pôr os seus esquis e, após um momento de marcha, sentiu-se melhor do que no casebre. Entretanto, começava a interrogar-se sobre qual seria o fim daquela aventura. Um curso de água barrou-lhe o caminho, e tratou de seguir ao longo dele, pois ouvira dizer que havia uma ribeira que se lançava no lago de Hakedal, e decidiu continuar até encontrar lugares habitados, se ainda lhe restassem forças para isso. Porém, ela ignorava a que distância se encontravam esses lugares. A fadiga de Vigdis aumentava a cada passo. «Acabarei por ser obrigada a deitar-me debaixo dum abeto dizia ela para consigo , mas que importa, a desgraça não será grande.»

 

Apesar de tudo, continuava a sua marcha. Atravessou sobre o gelo uma vasta lagoa, e começou de novo a caminhar contra o vento. De repente, ouviu uivar lobos ao longe. Apressou o passo, calculando que o frio excessivo não permitiria aos lobos farejar a sua presença.

 

A breve trecho, com efeito, deixou de os ouvir; apenas o sussurrar da ribeira no sopé da encosta quebrava o silêncio ambiente. A lua brilhava com uma claridade fria, e as sombras alongavam-se escuras sobre a neve. Então, Vigdis distinguiu sob as árvores uma grande mancha negra. Daquela vez não pôde mais. Deslizou para aquele abrigo, partiu a maior quantidade que lhe foi possível de ramos de abeto, fez o melhor que soube um ninho para ela e para o filho, que deitou sobre si a fim de que ele aproveitasse ao menos todo o calor que lhe podia dar. Apoiou em seguida o queixo sobre a cabeça do filho e, quase inconsciente, apertando contra si o pequenito, mergulhou numa espécie de sonolência.

 

Veio o dia, e Vigdis observou que estava ao pé dum despenhadeiro abrupto. Por cima dela a muralha de rocha subia direita para o céu, e por baixo uma ribeira impetuosa corria num vale estreito. O pequenito dormia. Não parecia ter passado mal a noite a despeito do trágico desconforto, e Vigdis decidiu pôr-se a pé e ir em busca de qualquer habitação. Mas onde encontrá-la? Sentia-se tão alquebrada e tão cheia de cansaço que se deixou ficar sentada. Mas, no instante em que se preparava para se mover, ouviu-se um zunido próximo dela, passou uma flecha por entre as árvores e cravou-se no tronco dum abeto, um pouco acima da jovem. A flecha vibrava ainda quando um homem em esquis surgiu do bosque e avançou na direcção da rapariga. Deteve-se ao vê-la, e a sua surpresa era tão grande que não disse coisa alguma. Por fim, conseguiu, vencendo o assombro, pronunciar algumas palavras:

 

Está aqui alguém?!

 

Vigdis não sentiu forças para responder. Ele caminhou para ela, e, notando que estava acompanhada duma criança, pareceu ficar ainda mais estupefacto. Era um homem de elevada estatura. Tinha os cabelos e a barba loira anelados e muito compridos. As suas vestes consistiam apenas em peles de animais. Da cintura pendia-lhe um machado, trazia um saco sobre a espádua e uma flecha na mão.

 

Dirigiu-se a Vigdis e perguntou-lhe como conseguira ela chegar àquele sítio. Vigdis, incapaz de falar, contentou-se com olhar para o interpelante. Foi a criança que respondeu:

 

Eles queimaram a casa de meu avô.

 

De verdade? exclamou o homem. E onde era essa casa?

 

Eu venho de Vadin pôde esclarecer, enfim, Vigdis. A casa foi incendiada esta noite.

 

O outro disse, espantado:

 

Tu chegaste aqui esta noite? Nunca até hoje ouvi dizer que uma mulher fosse capaz de efectuar semelhante trajecto.

 

Um momento depois, continuou:

 

A minha casa não tem nada de extraordinário, mas sempre se está melhor do que cá fora.

 

O homem ajudou Vigdis a erguer-se, amparou-a e quis levar ao colo o pequenito. Mas este resistiu, agarrando-se à mãe, e não quis que o desconhecido lhe pegasse. Vigdis disse, então, que poderia ainda conduzi-lo ela própria. O homem enlaçou-a com o braço e desceu com ela na direcção do ribeiro. Depressa notou que ela mal podia ter-se de pé, e, então, tirou-lhe os esquis, e agarrou ao mesmo tempo nestes, em Vigdis e no filho e afastou-se com toda esta sobrecarga. Vigdis só recuperou os sentidos quando chegaram a uma espécie de garganta estreita na montanha, onde se elevava uma pequena casa.

 

O homem depôs o seu fardo e disse:

 

A tua mão não está nada boa. E dizendo isto levantou a mão esquerda de Vigdis, apercebendo-se então a rapariga de que ela se lhe pusera dum branco esverdeado de gelo. O seu hospedeiro tirou-lhe igualmente as meias e o calçado e friccionou-a durante muito tempo com neve. Mas uma das mãos continuava a ter um aspecto inquietante. Cansado dos seus esforços, o homem fez entrar Vigdis na cabana e indicou-lhe um leito.

 

Ele deu-lhe uma bebida tonificante, e a moça adormeceu quase imediatamente, apesar de lhe doer muito a mão gelada. Durante a noite, Vigdis acordou. Viu que tinham acendido lume. Perto da lareira estavam sentados três homens, vestidos de andrajos, mas bem armados. Um deles era o que ela havia encontrado na floresta.

 

A dor de Vigdis passara a tomar-lhe a mão toda, e mal pôde tocar nos alimentos que os homens lhe ofereceram. Os seus sofrimentos não cessaram de aumentar durante a noite. A breve trecho, doía-lhe todo o braço e até o peito.

 

De manhã, o homem que ela tinha visto primeiro e que se chamava Illuge informou-se do seu estado. Vigdis respondeu que nunca sofrera tanto.

 

Achas que a minha mão poderá pôr-se boa? perguntou ela.

 

O interpelado examinou detidamente a mão tolhida e opinou que esta tinha muito mau aspecto.

 

Nesse caso, ajudem-me a cortar estes três dedos disse Vigdis.

 

Illuge olhou-a durante um momento, e depois acabou por dizer que talvez ela tivesse razão. E fez o que Vigdis propusera. Um dos homens pô-la nos joelhos e manteve-a firme, de modo que ela não pudesse mover-se. Então, Illuge cortou-lhe com o machado os três dedos do meio da mão esquerda. Vigdis não soltou um gemido. Disse simplesmente, quando tudo terminou:

 

És dotado de grande força, Illuge, e tens a mão ligeira.

 

Illuge aplicou pensos às feridas e amparou Vigdis até ao leito. A rapariga sentiu-se mal durante uns momentos, mas pôde depois contar aos três companheiros todos os pormenores da sua aventura.

Os três homens que habitavam a cabana eram caçadores das florestas. Vigdis lembrava-se bem deter ouvido falar daquela espécie de malteses armados que tornavam pouco segura a travessia das florestas nas regiões do Norte. Dois destes homens eram irmãos, tinham os nomes de Ille Hermod e Einar Hadelending. Illuge, o terceiro, vinha de regiões mais setentrionais. Era um homem de boa presença, nariz aquilino, olhos azuis, compridos cabelos loiros e barba anelada.

 

Uma manhã em que Vigdis se sentiu muito melhor, Illuge veio procurá-la quando ela estava só com o filho. Trocaram algumas palavras, e a seguir Illuge comunicou:

 

Os meus companheiros e eu já falámos do que quero dizer-te. Não é fácil ter uma mulher em casa, por aqui, na floresta. A tua situação também não é melhor do que a nossa, visto que não podes regressar aos teus sítios. É, pois, necessário que tu e eu façamos em vida comum e, na Primavera, construirei uma casa um pouco mais ao norte, próximo do lago. Hermod e Einar desejam também ter, cada um deles, a sua companheira.

 

Vigdis conservou-se sentada, com o filho nos joelhos, e respondeu:

 

Tenho confiança em ti, Illuge e espero que não penses em forçar-me.

 

Illuge respondeu ao fim dum instante de reflexão:

 

Não penso em forçar-te a aceitar o que proponho, mas não sei bem o que podes esperar, porque, em suma, terás de acabar por te juntar a um de nós, e parece-me que sou eu quem tem mais di-

92

reito à tua preferência. O lago, à que chamamos o Lago dos Ursos, e as suas cercanias são excelentes para a pesca e para a caça; assim, as condições de vida que te ofereço são melhores do que aquelas em que te encontravas quando te topei com teu filho. Vigdis respondeu apenas, após longo silêncio:

 

Apesar de eu não ser senão uma mulher jovem e só, não tenho a intenção de permitir a Koll Arnesson, que queimou vivo meu pai na sua casa, que nos expulse, a meu filho e a mim, da nossa herdade. Eu sei bem onde meu pai ocultou o seu oiro antes de morrer, e conto poder reavê-lo. Se vocês quiserem ajudar-me, tu e os teus companheiros, repartirei os meus bens convosco, como é de uso entre amigos, e teremos um só e idêntico destino.

 

És uma mulher de coração intrépido respondeu Illuge , mas a cidade de Aslo fica muito próxima e os nossos assaltos para conseguirmos mantença são ali perfeitamente conhecidos. O rei Olav não está em Hadeland este Inverno?

 

Vigdis tornou:

 

Isso seria uma sorte para nós todos. Tenho sérias queixas a expor ao rei. E ouvi dizer que ele prega a nova fé e que se mostra muito bom para aqueles que se fizeram baptizar. Entre nós, contudo, são numerosos aqueles que estão apegados fortemente aos deuses e aos sacrifícios no bosque sagrado de Tor. Entendo, portanto, que devo ir procurar o rei Olav, e, se nenhum de vós se atrever a acompanhar-me, bastará que me indiqueis o caminho através das florestas. Depois disso, espero que as possibilidades serão maiores, e prometo-vos que as minhas serão as vossas.

 

Vigdis falou destes projectos aos outros dois exploradores dos bosques. Einar Hadelending, que era o mais jovem dos três, tinha grande vontade de tentar reconquistar o domínio que fora de seus pais e Hermod disse que estava farto da sua existência de proscrito. Queria embarcar e partir para longe daquelas terras. Illuge menos disposto do que os outros a abandonar a floresta, falava frequentemente a Vigdis, quando estavam sós, do desejo de a tomar por mulher. Ela respondia-lhe que voltariam a tratar do assunto, quando reentrasse na posse das suas propriedades em Vadin. Illuge decidiu-se por fim a acompanhar Vigdis até junto do rei, em Hadeland.

 

Vigdis e Illuge chegaram à corte no dia em que o rei e a sua guarda celebravam o Domingo de Ramos.

 

Foram alojados numa casa vizinha. Depois da hora de noa, dirigiram-se ao palácio, e Vigdis pediu audiência ao rei. Vestira-se o melhor que pudera e, avançando com um porte distinto, em harmonia com o ambiente que a cercava, expôs as suas queixas. Enquanto ela ia falando, o rei observava-a, e, quando Vigdis terminou, disse-lhe:

 

Fizeram-te grande iniquidade, Vigdis, se as coisas se passaram como contas. De resto, já me constou que esses filhos de Arne eram homens de ruins acções. Mas quem vem a ser esse homem que te acompanha?

 

Illuge aproximou-se e disse:

 

Chamam-me Illuge o loiro, Senhor, e nestes últimos anos tenho vivido na floresta para as bandas do sul.

 

O rei franziu os sobrolhos:

 

O teu nome já foi citado na minha presença.

 

E voltando-se para Vigdis, acrescentou: Lastimo que não tenhas escolhido outros companheiros em vez deste tunante e de malteses dos bosques.

 

Sire respondeu a rapariga , estes homens acudiram-me e salvaram-me a vida e a meu filho, quando me expulsaram da minha terra. E quando lho pedi, Illuge indicou-me o caminho que conduz aqui, apesar de ele ser um proscrito e de arriscar a vida cedendo ao meu rogo. Por conseguinte, não estaria bem, Senhor, que eu aceitasse de vós o mínimo socorro se não me concederdes a promessa de que Illuge encontrará benevolência perante vós, ou ficará livre para voltar para as florestas se não quiserdes, outorgar-lhe direitos e liberdades.

 

O rei disse, então, que Illuge fruiria de direito de asilo enquanto durassem as férias da Páscoa, e que consentiria em que Vigdis voltasse a expor-lhe noutra audiência toda a sua história. Acrescentou que os recém-chegados seriam seus hóspedes até que se tomasse uma decisão. Nos dias seguintes o rei trocou, com frequência, algumas impressões com Vigdis. Esta não hesitou em contar-lhe todos os pormenores da morte de Eyolf, filho de Arne, e bem assim as peripécias das suas próprias aventuras. Na Segunda Feira de Páscoa, o rei mandou-a chamar. Encontrava-se só na sala, e convidou Vigdis a sentar-se a seu lado no banco. Anoitecia. O rei fez, então, algumas perguntas a respeito de Illuge. Era ele o pai da criança com que ela aparecera na corte?

 

Vigdis respondeu negativamente, e disse que não havia qualquer ligação daquele género entre ela e Illuge.

 

O rei Olav perguntou, seguidamente, a quem pertencia a criança, onde estava o progenitor e porque não se tinha Vigdis casado.

 

Pouco sei a seu respeito, Sire disse Vigdis. Ele não era deste país. Eu era nova e inexperiente, e por isso me deixei seduzir. É com grande repulsa que falo dele e peco-vos, Senhor, que não me interrogueis sobre este assunto.

 

O rei cercou Vigdis com o braço, e disse-lhe:

 

Não hás-de ficar viúva por muito tempo, Vigdis, bela e inteligente como és.

 

Vigdis tentou erguer-se, mas o rei Olav reteve-a e sentou-a nos joelhos. Ela observou, então:

 

A minha vida não é de molde a que eu me sinta tentada a procurar o amor de quaisquer homens. Peco-vos, Sire, que me deixeis partir, porque se está fazendo tarde.

 

E como ele insistisse e pretendesse forçá-la, a rapariga colocou a mão sobre o peito do rei e exclamou:

 

O Deus em que tu crês padeceu por ti maiores sofrimentos do que os que poderás sentir, consentindo que eu me retire.

 

Ouvindo aquelas palavras, o rei Olav largou-a, e levantando-se disse a Vigdis que a autorizava a partir quando ela o desejasse. Decorrido um instante, Vigdis ergueu-se e saiu da sala, dirigindo-se à casa reservada às mulheres.

 

Vieram em seguida os três grandes dias de festa. Durante os dois primeiros, o rei não falou a Vigdis, mas ao terceiro dia mandou-a chamar. A jovem achou-o cercado, de grande número de cortesãos.

 

Dirigindo-se a ela, o rei declarou que a faria acompanhar até Grefsin por uma escolta numerosa e que estava disposto a ajudá-la para que ela pudesse readquirir todos os seus direitos. Prometeu ajudar Illuge e os seus companheiros a desquitarem-se do pagamento dos direitos de resgate. Depois, afastou-se um pouco com Vigdis e, olhando-a bem de frente, inquiriu:

 

Diz-me a verdade, Vigdis, tens a tenção de desposar Illuge o loiro quando houveres reentrado na posse dos teus domínios?

 

A interpelada levantou os olhos e respondeu:

 

Senhor, tu não tens por mim a menor estima se pensares que eu prefiro divertir-me com o lobo em vez de o fazer com o leão. Mas agora demonstras-me uma tão grande bondade, que eu não posso deixar de reconhecer que não tens par entre todos os senhores e desejo fazer-te uma súplica: Permite que um padre me acompanhe a Vadin e manda-me instruir e baptizar na tua fé. Meu pai punha toda a confiança nas suas próprias forças, e eu pensei como ele; mas agora vejo bem que aquilo em que tu crês é melhor.

 

O rei pareceu abalado, as palavras de Vigdis agradaram-lhe. Illuge também se fez baptizar, ficou em casa do rei e Einar Hadelending fez o mesmo, quando acabou de regular a sua situação, mas Hermod comprou um barco e abandonou o país.

 

O rei mandou alguns dos seus homens na direcção do sul com Vigdis seguindo também um padre no séquito que a acompanhou. Foram a Grefsin, onde Kare os acolheu. Ele informou Vigdis de que, no dia em que incendiaram a herdade, todos os habitantes de Grefsin tinham ido assistir a um banquete. Distinguindo o clarão do fogo, Kare reunira a sua gente e fora na perseguição de Koll, filho de Arne. Encontrara-o e tirara-lhe a vida. Desde então, todos tinham procurado Vigdis sem nunca a encontrarem, e acreditaram por isso que ela tinha morrido.

 

O assunto foi discutido na reunião da Assembleia local, e não se concedeu qualquer indemnização pela morte dos filhos de Arne. E aqueles a quem cabia o direito de os vingar tiveram de pagar um resgate pelo assassínio de Aesa, e uma pesada multa pelos estragos causados no domínio e no gado de Vadin.

 

Vigdis fez reconstruir as casas no Verão. Depressa se apercebeu das suas capacidades e do seu ânimo. Fez baptizar o filho e deu-lhe o nome de Uivar, porque o levara naquela noite para a floresta dos lobos. Mais tarde, mandou edificar uma capela com formosas madeiras em Frysja, nas cercanias da ribeira ao sul.

 

A população ligou-se à nova fé em toda a região de Aslo, e Vigdis manteve-se fiel ao baptismo, se bem que não mostrasse grande fervor, pois as suas terras davam-lhe muitos cuidados. Passaram alguns anos de calma sobre Vadin.

 

Chegados a este ponto da narrativa, voltemos a falar de Ljot e das suas aventuras.

 

Já dissemos que foi Torbjorn Haleg de Eyre quem educou Ljot Gissursson. Era um senhor opulento e considerado. Torbjorn teve muitos filhos de sua mulher, mas esta história não lhes diz respeito. O mais velho chamava-se Lyting e morreu muito novo. A mulher de Lyting chamava-se Gudrun, mas conheciam-na pelo nome de «Sol de Ostfjord», e era tida como umas das mais formosas mulheres da Islândia. Era muito rica, muito inteligente e muito capaz, boa e fiel para as suas amizades, afável para os que dela dependiam, mas tinha um carácter fogoso e obstinado e uma boa dose de orgulho.

 

Lyting e Gudrun tinham tido uma única vergôntea, uma filha chamada Leikny. Dizia-se que ela se parecia com a mãe, mas apenas pelas suas qualidades. Toda a gente gostava de Leikny Lytingsdatter. O pai, Lyting, prometera-lhe que ela não seria jamais dada em casamento contra sua vontade. Muitos homens tinham pedido a mão de Leikny, mas ela respondera com o não a todos.

 

No mesmo Outono em que falara a Vigdis no chalé, Ljot regressou à Islândia. A primeira coisa que soube ao chegar foi que Veterlide e Gudrun estavam noivos. O casamento deveria realizar-se seis semanas depois do solstício de Inverno. Ljot foi direito às suas terras de Skomedal, e ali permaneceu todo o Inverno sem ver ninguém. Não assistiu ao casamento do tio e não faltou quem se admirasse por isso.

 

No Verão, quando toda a gente seguiu para a Assembleia, Ljot não abandonou Skomedal, mas Veterlide e Gudrun compareceram e, no regresso, passaram por Skomedal. Não mostraram má cara a Ljot por causa da sua ausência ao casamento de ambos, mas insistiram tanto para que ele os acompanhasse a Holtar que por fim acedeu, após longa recusa.

 

Veterlide deu uma grande festa a que afluiu muita gente. O ágape foi esplêndido e tudo decorreu bem. Contudo, muitas das visitas notaram o ar triste e nostálgico de Ljot. Não dizia palavra e não tomou parte nos jogos dos outros rapazes.

 

Num dos primeiros dias da festa, Veterlide vestia um magnífico manto bordado. Era aquele que lhe oferecera Vigdis. Os olhares de Ljot fixaram-se repetidas vezes naquele manto. Pelo dia adiante, Veterlide tirou o manto e pô-lo em cima do banco. Ljot sentou-se e, pegando no manto, cobriu os joelhos. Quando, um pouco mais tarde, Veterlide se aproximou dele, Ljot disse:

 

Façamos uma troca, estimado tio, dá-me este manto e dize-me o que queres por ele.

 

Eu não vendo um presente que me deram respondeu Veterlide.

 

Então dá-mo exclamou Ljot , é a primeira coisa que te peço.

 

A princípio Veterlide não deu resposta, mas Gudrun veio juntar-se aos dois homens, e, tendo ouvido algumas palavras da conversa, disse:

 

Não seria digno de ti, Veterlide, recusar um favor a teu sobrinho quando ele to solicite. Cumpre-nos ser hospitaleiros para quem nos visita. E vê por isto, Ljot, até que ponto nós desejamos o teu bem. Deixa essa melancolia e diverte-te com os outros rapazes, mostra-nos as proezas de que és capaz.

 

Seguidamente, pediu-lhe que se levantasse e pôs-lhe o manto nos ombros.

 

Fica-te às mil maravilhas comentou ela , como se tivesse sido feito para ti.

 

Depois Gudrun saiu. Ljot ficou de pé, com o manto pelos ombros, e Veterlide assegurou-lhe:

 

Não terias obtido esse manto sem a intervenção de Gudrun. Melhor fora que tu o houvesses merecido doutra maneira, mas agora o que é preciso é arredar da tua memória aquela que o bordou. Ljot respondeu:

 

Eu gostava daquela rapariga, mas desta vez é o próprio manto que me agrada, porque me fica bem. Agradeço-te este presente que me ofereces contrariado, meu bom tio.

 

Ljot sorriu sem alegria dizendo estas palavras, e, pegando na capa, foi guardá-la. Momentos depois, dirigiu-se ao terreiro da casa onde outros mancebos jogavam, em alardes de destreza e valentia, como era frequente entre gente moça. Havia ali dois homens, os irmãos Odd e Sigur Bernesson, notavelmente hábeis em todos os exercícios físicos. Odd passava por ser o homem mais forte daquela banda da ilha.

 

Ljot era também muito hábil no manejo das armas e fez boa figura na competição, se bem que se encontrasse um pouco destreinado em exercícios daquela índole. Mas aqueceu enquanto lutava, e no fim os espectadores comentaram que Ljot era mais apto do ponto de vista de rapidez e finura, sendo Odd, porém, melhor nas provas de força.

 

Gostaria no entanto de ver disse Ljot , se Odd é homem para me fazer morder o pó.

 

E os dois fanfarrões, cedendo ao atiçamento dos que pretendiam vê-los maltratar-se reciprocamente, decidiram sem demora medir forças. Ljot compreendeu depressa que a sua força não se comparava com a do outro. Mas, chamando a si toda a energia, e dado que Odd se fiava de mais na própria força e não se precavia por esse motivo, foi Ljot quem, por fim, pregou com o outro no chão. E os jogos terminaram assim naquele dia.

 

Ljot passou a noite numa dependência da herdade. De manhã, sentiu-se sem vontade de abandonar o leito. E ouviu mulheres que falavam numa quadra vizinha. Uma delas disse:

 

Que te pareceu ver o Odd Bernesson ir-se a terra? Já não se poderá gabar de não encontrar quem lhe ponha o pé à frente.

 

A outra mulher pôs-se a rir, e volveu:

 

Pouco me importa que Odd tenha encontrado ou não quem o vença, mas alegrou-me o triunfo deste belo rapaz.

 

É a Ljot que chamas belo rapaz? continuou a primeira voz de mulher. O seu rosto é pálido como o de um fantasma.

 

Não obstante, é precisamente dele que eu quero falar; não conheço outro que tenha triunfado de Odd.

 

Ljot levantou-se, vestiu-se e entrou na sala contígua ao quarto onde dormira. Viu ali muitas mulheres, e entre elas havia uma que ele não notara nos dias precedentes. A rapariga envergava um vestido bordado verde-claro. Era uma mulher bastante atraente, de estatura um tanto baixa mas bem modelada e robusta, com as mãos e os pés pequenos; um rosto lindíssimo, de tez clara, com olhos azuis de alegre brilho. O que mais impressionava nela era a farta cabeleira, muito comprida, fúlgida e loira como o linho, na qual ela podia envolver-se completamente. A rapariga estava precisamente a pentear-se quando ele entrou.

 

Ljot, momentaneamente liberto da sua melancolia, pôs-se a conversar com as raparigas, mas os seus olhares não cessavam de procurar a bela dos cabelos de linho. Quando a moçoila acabou de se pentear, Ljot dirigiu-se-lhe e pediu-lhe que lhe permitisse também uma rápida penteadela na própria trunfa, ao que ela acedeu. E o rapaz inquiriu, então:

 

Foste tu quem me chamou belo moço? Corando um pouco, a rapariga pôs-se a rir e observou:

 

Como poderia eu adivinhar que estavas a ouvir? Mas não ignoras que se é favorável àquele a quem se conhece desde a infância, e que de bom grado se diz bem dele.

 

Estas palavras surpreenderam Ljot, que, passado um instante, continuou:

 

Diz-me então o teu nome, porque não te conheço, que eu saiba.

 

Oh! pouco importa exclamou a jovem, em torn que lhe deu a perceber que já estava enfadada. Então, o moço tornou:

 

Não eras nem metade tão bonita como és agora, na época em que vivemos juntos, pois já adivinhei, enfim, que és Leikny Lytingsdatter.

 

E vocês não olhavam para min, tu e os outros rapazes,

 

no tempo em que vivíamos em Eyre em casa do meu avô comentou Leikny enquanto as outras raparigas riam.

 

Soube que ela passara algum tempo junto de Torbjorn e que tinha voltado na véspera. Ljot pediu-lhe notícias de Eyre e conversou longamente com Leikny, que era inteligente e falava bem. Ao serão, sentou-se-lhe ao pé e bebeu com ela. E, entre outras coisas, disse-lhe:

 

É curioso que não tenhas casado, Leikny, e creio que não achas nenhum homem digno de ti.

 

Não, não é por isso respondeu Leikny. Mas não prejudica ninguém pensar um pouco antes de realizar um contrato desses. Não quero por preço nenhum agir de forma tal que necessite um dia de recomeçar... uma nova experiência.

 

Ljot pôs-se a rir:

 

Deves ser difícil de contentar, e eu por mim, não me arriscarei a enfileirar entre os teus pretendentes.

 

Leikny nada objectou, e ambos começaram a falar doutra coisa.

 

No dia seguinte Ljot voltou para as suas terras.

Pelos fins do Outono, Gudrun deu ao mundo um filho. Veterlide deitou água sobre a criança e pôs-lhe o nome de Atle. Naquela altura dos acontecimentos, Gudrun continuava ainda de cama. Uma bela manhã, Leikny estava próximo da cabeceira do leito da mãe, e entretinha-se a enfaixar o bebé. Quando terminou, pôs o pimpolho nos joelhos, e, beijando-o, começou a acariciá-lo. E, de súbito, observou:

 

Como é belo e gracioso este bebé! Preferia, minha mãe, que ele fosse meu e não teu.

 

Gudrun respondeu em torn de ralho:

 

Dá-mo cá, e não estejas para aí a dizer tolices. Não seria precoce, aliás, que fosses mãe tu própria. Já fizeste vinte anos. Não sei o que esperas, nem o motivo por que não te casarias, como toda a gente. Devias ter desposado Odd Bernesson, e a tua situação teria sido excelente desde todos os pontos de vista, quer-me parecer.

 

Leikny replicou:

 

Já te disse que não desposarei um homem que não tenha, pelo menos, hábitos corteses.

 

Então, porque não atendeste a proposta de casamento sincera que te dirigiu Runolf? volveu a mãe.

 

Leikny exclamou, por entre grandes risadas:

 

Não estás a falar a sério, mãe! Consta que os criados têm de meter na cama esse pobre velho e de levantá-lo na manhã seguinte.

Também hás-de envelhecer um dia, se viveres, minha filha, e os homens cansar-se-ão dentro em breve de te ver zombar deles quando te pedem para esposa.

 

Oh! acabarei por achar marido respondeu Leikny, ajuntando daí a um instante:

 

«Se Viga Ljot viesse pedir-me em casamento, submeter-me-ia aos teus desígnios, e desposá-lo-ia. Assim, deixarias de ter a preocupação da minha presença aqui em casa.»

 

A mãe respondeu:

 

Tens ideias quase tão falsas como as que passavam às vezes pela cabeça de Lyting. Se eu fosse uma rapariga, os sítios onde vive Ljot seriam os últimos em que, à falta de melhor, consentiria em me instalar: é um vale deserto e tristonho onde não aparece vivalma.

 

Porém, eu ouvi dizer que a herdade é bem bonita objectou Leikny. O meu padrasto e toda a minha família haviam de regozijar-se com a minha decisão. O que há de melhor no mundo é estar de acordo com a família, não é verdade?

 

Não há dúvida de que um tal casamento daria muita satisfação a Veterlide disse Gudrun. Esse consórcio agradar-lhe-ia para o filho de sua irmã. Mas tenho tido sempre em mira ver-te casar com homem mais rico e mais poderoso.

 

A fortuna não seria assim tão medíocre, juntando uns aos outros os nossos bens, e, além disso, tenho ouvido dizer que Ljot tem naturais condições para ser um chefe.

 

Dizendo isto, Leikny conservou-se ainda uns momentos sentada, sem dizer palavra, e, por fim, insistiu:

 

Fala nisto a Veterlide, mãe, mas não digas que fui eu quem to pediu.

 

Ljot encontrava-se em casa em Skomedal quando Veterlide veio fazer-lhe uma visita, uns tempos antes do solstício de Inverno. O moço acolheu muito bem o tio, e ambos se mostraram contentes por se tornarem a ver.

 

A propriedade era situada num vale que tinha o mesmo nome de Skomedal. Ladeiam-no, a um lado e outro, altas montanhas. Da banda da ribeira onde se estendia a herdade, havia naquele tempo bosques povoados de bétulas. As pastagens da região, e bem assim o peixe da ribeira, eram abundantes. Ljot conseguia criar assim grande número de cabeças de gado. Veterlide examinou atentamente a maneira por que Ljot dirigia os seus bens. E compenetrou-se de que o rapaz era um proprietário diligente, com capacidade administrativa bastante superior ao que se poderia esperar da sua idade.

 

Disse-o ao seu anfitrião, num dia em que percorreram juntos os campos.

 

Tudo se encontra bem cultivado e organizado na tua herdade, estimado sobrinho, e só te falta uma coisa. Chegou o tempo de te casares, de tomar mulher que trate da tua casa, porquanto assim, sob as vistas da dona de casa, tudo prospera com mais facilidade. A governanta que tens pode possuir todas as qualidades possíveis, mas está muito velha. Acrescentarias também os teus domínios, reforçando-os com os bens dum casamento vantajoso.

 

Ljot respondeu que a idosa mulher que lhe governava a casa cumpria muito satisfatoriamente a missão. E acrescentou:

 

Além de que, tenho muito tempo para me casar.

 

É o que tu dizes respondeu Veterlide. Ljot calou-se, e o tio continuou:

 

Não posso crer que penses ainda em Vigdis Gunnarsdatter! Ljot corou, e volveu precipitadamente:

 

Não sei aonde dirigir-me para encontrar uma esposa...

 

Falaste a Leikny Lytingsdatter este Verão lembrou Veterlide. Que pensas a seu respeito?

 

Muito bem respondeu Ljot com lentidão. É bela, tem uma conversa agradável e judiciosa, mas nunca pensei em figurar entre os seus pretendentes.

 

Leikny prosseguiu Veterlide é tão inteligente como amável, equitativa para o pessoal, hábil para dirigir a casa, e laboriosa. Falei-lhe de ti, e não me parece que recebas um não daquele lado. Será, de resto, Torbjorn quem decidirá do casamento, além da própria Leikny e de Gudrun. Para falar verdade, estimado sobrinho, acho que tanto Leikny como tu estão bem um para o outro, e muitas pessoas se alegrarão com o vosso acordo mútuo.

 

Vejo bem, estimado tio, que os teus conselhos são bons disse Ljot e é grande fineza da tua parte querer ajudar-me a fazer este casamento. Mas não sinto ainda desejo de me casar.

 

Veterlide pediu-lhe que pensasse no assunto, mas naquela ocasião não tornou a insistir. Limitou-se então a vigiar Ljot e apercebeu-se de que ele dormia mal à noite e que parecia, a maior parte do tempo, acabrunhado por tristes pensamentos.

 

No último dia que Veterlide passou em Skomedal, perguntou a Ljot se tinha reflectido na possibilidade de desposar Leikny. O rapaz volveu:

 

Agradeço imensamente a tua solicitude, estimado tio. E quero pedir o teu apoio nesta questão, porque reconheço perfeitamente que o teu conselho é bom.

 

Ljot acompanhou, portanto, seu tio Veterlide até ao lar onde o esperava a família. Gudrun e Leikny acolheram-no com bondade, e celebraram-se os acordos de esponsais. O casamento realizou-se na Primavera. Veterlide organizou as festas com magnificência. Depois, Ljot e Leikny partiram para Skomedal e a sua vida conjugal decorreu feliz.

 

Num dia do Verão seguinte, Ljot subiu a vertente do vale para ceifar uns prados que possuía no cimo da mesma encosta. Fazia um sol esplêndido e ardente. Ljot foi acompanhado por dois homens, que se incumbiram de ceifar de um lado da ribeira, enquanto ele trabalhava na outra margem. Havia-se desembaraçado das vestes exteriores, ficando em mangas de camisa e calções. Os prados estavam demasiado longe da casa, facto que não permitia aos ceifeiros a ida até lá para tomarem os repastos. Por isso, à hora de nona, Ljot dispôs-se a reunir-se à sua gente e a comer alguma coisa com eles. Nesse momento, porém, lobrigou Leikny, que caminhava ao longo da ribeira. Vestira-se com cuidado, e trazia na mão um grande embrulho atado com um pano. Chegada junto dos trabalhadores, deteve-se um instante a falar com eles, e deu-lhes qualquer coisa do volume que transportava. Em seguida atravessou a corrente do arroio, por cima dumas pedras elevadas, a fim de se reunir a Ljot.

 

Minha mãe enviou-me hidromel disse ela ao marido e pareceu-me que seria agradável a vocês os três beberem uns goles dele após uma ceifa com este calor.

 

Mas escusavas de vir aqui trazer-no-lo: podias ter encarregado alguém desse trabalho observou Ljot.

 

Oh, a canseira não é assim tão terrível! bom tempo é coisa rara e além disso eu desejava ver até onde vão os nossos prados.

 

Ljot propôs então a Leikny atravessarem o ribeiro para irem ter com os ceifeiros que tinham as provisões. Mas Leikny pôs-se a rir e disse, indicando o embrulho que trouxera:

 

Devias logo calcular que eu trago comida, visto que venho procurar-te aqui no fundo do vale. Assentemo-nos acolá em cima no prado, deve correr fresco e o tempo está bom. Dizendo isto, pôs-se a trepar a encosta. De vez em quando inclinava-se sobre o feno, e tomava uma mancheia dele para lhe aspirar o perfume. No cimo do prado havia um maciço de bétulas, e Leikny não resistiu ao desejo de descansar naquele sítio. O olor das folhas novas era deveras agradável. A jovem conseguiu descobrir um abrigo recatado entre uns rochedos. Havia ali sombra, arbustos e erva, e o vão entre as rochas era suficientemente espaçoso para caberem lá ambos. Leikny convidou o marido a tomar lugar a seu lado.

 

Poderás deitar-te e dormir quando tiveres acabado de comer.

 

Comeram e beberam ambos. Leikny não cessava de rir e gracejar.

 

Terminado o repasto, Ljot estendeu-se na ervagem, no desejo de dormir a sesta. Colocou um braço sobre a fronte para se proteger do sol. Mas Leikny tirou o lenço da cabeça e cobriu com ele os olhos de Ljot. Pouco depois ela sugeriu:

 

Se queres, deita-te de modo a poderes reclinar a cabeça nos meus joelhos. Ficarás assim com mais espaço.

 

Ljot obedeceu. Ergueu a vista para o rosto de Leikny, cuja cabeleira o sol iluminava, e observou:

 

Pareces-me neste momento exactamente como te vi quando nos encontrámos em Holtar.

 

Leikny sorriu e exclamou:

 

Dize-me, meu Ljot, se crês que esse encontro foi para a nossa felicidade; dize-me se estás contente por me teres trazido para Skomedal?

 

Bem sabes que estou contente respondeu Ljot. Leikny insistiu:

 

Como posso eu saber isso? Muitas vezes cismo que trazes o coração acabrunhado por um grande peso. Eras muito diferente quando te conheci em criança. Naquele tempo eras capaz de fazer todas as farsas, não pensavas senão em rir e brincar. Mas agora tudo mudou e vejo-te, em regra, bem taciturno.

 

Seria deplorável objectou Ljot que ficássemos sempre nas tolices que se fazem quando se é rapaz.

 

Leikny obstinava-se na sua ideia:

 

Ouvi dizer que sabias muito bem compor e cantar canções. Não és capaz de me deixar ouvir uma delas?

 

Quem tal te disse, apenas te contou mentiras. As minhas canções não têm nada de notável.

 

Mas, a mim, podes repeti-las, isso interessar-me-ia deveras.

 

Não me lembro de nenhuma agora, pois há muito tempo que deixei de compor cantigas.

 

Leikny, à guisa de resposta, tomou entre as mãos o rosto de Ljot e pôs-se a embalar-lhe a cabeça, ao mesmo tempo que cantava:

 

Quando eu penso na jovem de loiros cabelos

 

Afogam-me tristezas e não posso dormir;

 

Todas as noites meus pensamentos voam,

 

Por cima e para além das escuras ondas

 

Até repousarem suas asas fatigadas

 

Nos altos aposentos onde ela, tão gentil, dorme,

 

Onde ela está deitada e sem cuidar

 

Das aves que voam no seio da noite.

 

Sinto durante o dia a lassidão

 

Do tormento das minhas noites.

 

Disseram-me disse Leikny ao terminar que foste tu quem escreveu esta canção.

 

Talvez respondeu Ljot , mas podes crer que já não me lembro dela.

 

Quem é esta rapariga? interrogou Leikny. Era uma pequena que te queria para marido?

 

Oh! compreendes bem que, quando se vive só, pensa-se muitas coisas. Faz-se na mente uma espécie de misturada e os versos que se compõem tanto podem dirigir-se a uma como a outra.

 

Leikny calou-se, e depois inquiriu ainda:

 

Era talvez uma rapariga com quem gostarias mais de casar do que comigo?

 

Não retorquiu Ljot. Ouvindo aquela negativa, ela inclinou-se para a face do marido e beijou-o. Em seguida, tirando do colo a cabeça de Ljot, exclamou:

 

Bem, sinto também vontade de repousar estendida a teu lado.

 

Tens razão disse ele, afastando-se um pouco para lhe dar lugar. É agradável descansar aqui. E dizendo isto, tornou a cobrir o rosto com o lenço de cabeça da mulher.

 

Leikny estirou-se ao lado dele, no feno, mas conservou-se apoiada num cotovelo para o observar. Ao cabo de instantes, exclamou:

 

Estás, na verdade, cheio de sono. O que precisas é de dormir.

 

Ljot pôs-se a rir:

 

Sim, se puderes estar tranquila um momento. Eu julgava que tinhas sono, também.

 

Sentes-te fatigado?

 

Muito fatigado, sem dúvida.

 

Estiraram-se lado a lado e Ljot adormeceu, mas a mulher ficou a contemplá-lo enquanto ele dormia.

 

Já dissemos que o vale era deserto. Por baixo de Skomedal, havia algumas habitações de trabalhadores do campo e de libertos, e mais ao sul erguia-se um lugarejo chamado Svartabakke. Nas casas daquela pequena courela habitava um camponês de nome Asbrand. Era pobre e só com grandes dificuldades ia vivendo, com os seus dez filhos, dos quais apenas o primogénito estava em idade de o ajudar no trabalho. O rapaz chamava-se Halstein. Era alto e forte, muito laborioso e muito bom para o pai, mas em contrapartida tinha um temperamento conflituoso, impaciente e desconfiado. Não gostavam dele na região.

 

Mais de uma vez implicara com Ljot, porque o irritava ver alguém numa abastança que lhe faltava a ele e aos seus.

 

Porém, Ljot suportava-lhe os destemperas, com serenidade, por ver no outro um simples rapazola. Asbrand fazia-lhe dó, e este sentimento levava-o a fechar os olhos quando Halstein se apossava duma parte maior do que a que lhe correspondia na ceifa, na pesca ou na caça.

 

Ora a ribeira de Svarta penetra profundamente nas terras de Skomedal, coleia por desfiladeiros e ravinas, e ao sul de Skomedal dilata-se em esteiro, depois, mais adiante, forma uma cascata. As melhores terras de Ljot ficavam próximo desta cascata. Era o único tracto onde amadureciam cereais. A pluviosidade era reduzida no vale embainhado nas muralhas de rochedos e Ljot teve a ideia de construir uma barragem na barreira, a fim de poder irrigar os seus campos e prados. E começou os trabalhos, em determinado ano, antes das cheias primaveris. Halstein enfureceu-se e disse que a barragem prejudicaria enormemente Svartabakke. Percorreu a região, contando a toda a gente o dano que Ljot lhes causava com aquela iniciativa. O rumor daqueles falatórios chegou aos ouvidos de Ljot, que se pôs a rir e comentou que o rapazote tinha desculpa porque não sabia o que dizia.

 

Um dia, Halstein apareceu no local da barragem quando se trabalhava na construção desta última. Dirigiu-se a Ljot e disse-lhe que suspendesse aquela obra, pois, de contrário, exporia o assunto perante a Assembleia, e esta lhe faria ver que ele não tinha o direito de causar prejuízo à courela de pobres rurais.

 

Está bem, Halstein respondeu Ljot rindo , trata de ir à Assembleia. Teu pai sabe perfeitamente que lucrará com a barragem tanto como eu próprio, visto que poderá servir-se da água por mim captada, na medida em que dela necessite. E agora, segue o teu caminho, que não tenho tempo para perder a tagarelar contigo.

 

Falas com tanta soberba, Ljot Gissursson exclamou Halstein , porque és o homem mais rico destes sítios. Mas espera algum tempo, e hás-de ver que nós temos quem nos coadjuve, pessoas que examinem esta questão e que não valem menos do que tu.

 

Isso é verdade? volveu Ljot, continuando a rir. Vai então ter com esses teus aliados, dá-lhes cumprimentos da minha parte, e dize-lhes que terei prazer em encontrá-los.

 

Leikny chegou naquele momento. Vinha à lagoa para lavar umas lãs, e, tendo ouvido as palavras de Halstein, observou:

 

Asbrand não tem nenhum motivo para se queixar de Ljot, a meu ver, pois sempre foi por ele tratado com generosidade. Por exemplo, este Outono quando reunimos os carneiros na montanha.

 

Halstein corou intensamente e gritou:

 

Pretendes acusar-nos de roubo, Leikny?

 

Não tornou ela , mas lembro-me bem de que foi Ljot quem encontrou os carneiros que tu procuravas em vão, e que efectuou a partilha de tal forma que nessa ocasião vocês mostravam-se muito satisfeitos com este homem tão rico... Halstein ripostou:

 

Congratulamo-nos, Leikny, de te ver tão desvanecida do esposo que tens, já que tanto desejaste casar-te com ele.

 

Leikny quis responder-lhe, mas Ljot não lho consentiu:

 

Não dês ouvidos a este garoto, tanto mais que temos mais que fazer do que tagarelar com ele. Halstein, não te demores mais aqui, e trata de te ir embora.

 

Halstein afastou-se alguns passos, depois, voltando-se de repente, gritou:

 

Tu casaste bem, Ljot e tens sorte em possuir esta mulher, porquanto ouvi dizer que, em Nidaros, sofrias por causa duma rapariga da Noruega tão pouco admiradora das tuas proezas viris que tomou outro homem mesmo nas tuas barbas.

 

Ljot soltou uma espécie de rugido, agarrou num venábulo que se encontrava perto dele no solo, e atirou-o contra Halstein. A ponta da lança penetrou nos olhos do rapaz, que, como fulminado, caiu por terra, morto.

 

Ljot mandou um dos seus homens anunciar a morte do rapaz a Svartabakke, e em seguida regressou a casa acompanhado por Leikny.

 

Em certo momento do dia, a esposa inquiriu:

 

A que se referia Halstein? Ele aludiu a uma mulher norueguesa.

 

Oh! é um assunto que o tempo deliu, e com que não deves preocupar-te. Não me digas mais nada, porque não desejo falar nisso.

 

Asbrand ficou fora de si quando soube da morte de Halstein. A dor e o desespero fizeram-lhe perder todo o domínio sobre si mesmo. Persuadiu-se de que Ljot lidava por despojá-lo inteiramente, quer com a barragem, quer pelos seus restantes actos. No dia seguinte, Ljot foi a Svartabakke, mas Asbrand havia-se ausentado e dirigira-se a casa dos parentes e amigos para lhes implorar auxílio. Apresentou-se em casa dos filhos de Beine ligados a sua mulher por um parentesco afastado e pediu-lhes que se encarregassem da vingança.

 

Odd respondeu que Ljot não era com certeza homem para pagar o preço do sangue, e que provavelmente trataria de meditar nas piores acções.

 

No entanto acrescentou Odd eu gostaria deveras de ensinar Ljot a conduzir-se melhor.

 

Ora, Odd conhecia a lei e tinha muitos amigos. Aceitou, portanto, o encargo de tratar do assunto.

 

Asbrand ficou em casa de Odd até ao momento de partir para a Assembleia.

 

Ljot quis estar também ali presente e Leikny decidiu acompanhá-lo, embora ele lhe pedisse que o não fizesse. Ela esperava um filho e a viagem era longa e perigosa. Mas Leikny chorou, suplicou, e disse que não poderia estar sossegada em casa, sem saber o que se passaria com Odd. Por fim, partiu com o marido. Levaram consigo o filho, que se chamava Lyting e contava apenas dois anos. Por causa do rapazito, a viagem foi morosa e chegaram à Assembleia com algum atraso. Instalaram-se na casa que Veterlide habitava, porque este tinha vindo a Allting com sua mulher, Gudrun. No dia seguinte ao da chegada de Ljot, o velho Asbrand saiu sozinho, de manhã, e deu um passeio por entre as lojas. Em dado momento topou com Gjest Oddleivsson, e pôs-se a conversar com ele. Asbrand disse ao outro quem era e contou-lhe as razões de queixa que tinha contra Ljot. Gjest contou-lhe, então:

 

Soube que Ljot tivera a intenção de pagar uma compensação pela morte de Halstein, mas que na altura presente se encontrava zangado e disposto a não ceder por causa de Odd.

 

Falaram ainda algum tempo deste assunto, e depois Gjest retirou-se.

 

Asbrand continuou o seu passeio solitário, deambulando por um lado e por outro e reflectindo em toda aquela questão. E sentiu receio de perder tudo por causa de Odd. Ocorreu-lhe, então, a ideia de ir a casa de Veterlide e de ter uma conversa com Ljot; e, sem mais hesitações, executou o projecto.

 

Ljot e Veterlide tinham acabado de se levantar, e estavam sentados à mesa para o desjejum acompanhados por alguns homens das suas relações. Gudrun e Leikny achavam-se também na sala. Asbrand arrependeu-se de ter entrado e quis partir, mas Ljot chamou-o:

 

Que fizeste do teu protector, Asbrand? Acaso Odd se aborreceu desta história, e renunciou a ajudar-te?

 

Asbrand mantinha-se de pé no limiar, gaguejando e balbuciando. Por fim, conseguiu dizer que era sua intenção perguntar, a sós, a Ljot, se ele estava disposto a pagar indemnização pelo assassínio de Halstein.

 

E dizendo isto, pôs-se a chorar.

 

Ljot respondeu:

 

Se bem que Halstein me provocasse incessantemente, e a ninguém possa surpreender a minha cólera contra ele, lamento tê-lo morto, por saber que ele era para ti, tão velho e pobre, uma boa ajuda. Por isso, a minha intenção era oferecer-te toda a indemnização exigível por morte de homem. E se quiseres aceitar imediatamente a minha oferta, mantenho-a. Mas, se consultares Odd, nada ganharás com isso, porque, a ele, não cederei. Se queres aceitar um acordo, mandarei gente minha para te ajudar e dar-te-ei o que necessitares. Nem tu nem os teus filhos ficarão prejudicados com este acordo. Farás, pois, como entenderes, mas lembra-te de que eu não ofereci jamais, até hoje, indemnização por um homem.

 

Asbrand aceitou imediatamente a oferta de Ljot, a quem Veterlide logo facilitou a soma necessária. No momento da partida, ofereceu a Asbrand um cinto de prata. Asbrand voltou para casa, conformado. Mas Odd ficou furioso ao saber o que se tinha passado e encheu Asbrand de insultos.

 

Falou-se muito desta história. Todos acharam que Viga Ljot se tornara singularmente complacente desde uns tempos àquela data. Mas Leikny louvou a grandeza de alma de Ljot diante de quem quer que a escutasse. Ele não se reconciliara nunca de maneira semelhante com qualquer indivíduo, e acabara de o fazer com aquele pobre velho que não tinha condições para lhe resistir. Mas riam-se dos argumentos de Leikny, e comentava-se que, fizesse Ljot o que fizesse, já era sabido que sua mulher se declararia sempre concorde.

 

Depois da Assembleia, Ljot e Leikny acompanharam Veterlide e Gudrun a Holtar, onde permaneceram algum tempo. Um dia, Ljot partiu a cavalo para ir examinar uma das éguas que Veterlide criava na campina. A certa altura do trajecto encontrou Odd Bernesson, que ia acompanhado por um dos servos. Odd saudou Ljot e disse-lhe:

 

Uma vez que seguimos o mesmo caminho, poderíamos percorrê-lo juntos nos nossos cavalos. E pois que te reconciliaste com o pobre velho Asbrand, seria natural que nós também fôssemos amigos.

 

Ljot limitou-se a responder que não via inconveniente em que jornadeassem juntos, se o seu interlocutor assim o desejava. Odd pediu notícias dos habitantes de Holtar, e, depois, da saúde de Leikny. Ljot respondeu laconicamente às perguntas que o companheiro de viagem lhe dirigiu. Ao fim de certo tempo, desceram dos cavalos e comeram os lanches que traziam consigo. Odd, enquanto comia, disse:

 

Admiro-me do que se passou entre Halstein e tu, Ljot, que és um homem de espírito tão conciliador e pacífico. Será verdade o que se conta duma velha história de casamento, de que não queres que te falem?

 

Uma vez que pareces tão desejoso da minha amizade volveu Ljot, melhor será que não procures saber dessas coisas. Ou dar-se-á o caso de seres tu próprio quem anda a espalhar tais histórias por toda a região?

 

Os que te encontraram em Nidaros na época em que
choravas por amor duma rapariga da Noruega, é que contaram isso. Foi o velho Asbrand quem pagou por ela.

 

Ljot, ao ouvir tais palavras, irritou-se e deitou a mão ao machado.

 

Odd fez o mesmo e, protegendo-se com o escudo, empunhou o seu venábulo para se defender.

 

Creio que não vai ficar nada para os teus aliados exclamou Ljot, partindo-lhe o cabo do venábulo com uma machadada. Como escumas de inveja contra mim, aqui me tens.

 

Após estas palavras, despedaçou o escudo do adversário com outra machadada que o foi atingir no ombro. Odd, mortalmente ferido, caiu de costas por terra. O criado que acompanhava Odd era muito jovem e, cheio de terror, desatou a fugir.

 

Ljot regressou a Holtar e contou o que se passara. Veterlide perguntou-lhe o que tencionava fazer depois daquela tragédia.

 

Nada respondeu Ljot ; porém, creio que não terão ensejo para grandes regozijes, aqueles que quiserem vingar Odd.

 

Veterlide saiu momentos depois da sala, e Ljot ficou só com Leikny e as duas crianças, que brincavam junto da bancada. Ljot atirou-se para cima da cama, a fim de descansar. Leikny pôs-se a arrumar as suas coisas espalhadas pela quadra. Enquanto procedia àqueles arranjos domésticos, interrogou Ljot acerca da morte de Odd, mas apenas obteve repostas lacónicas. Então, a mulher acabou por dizer:

 

Acho que poderias repetir-me as palavras que tu e Odd trocaram antes de chegarem a bater-se.

 

Oh! não foi coisa importante volveu Ljot. É certo que Odd começou a provocar-me assim que nos encontrámos.

 

Não foi certamente a meu respeito que vocês disputaram aventou Leikny num torn seco.

 

Não retorquiu Ljot , mas era em ti que pensava. Leikny foi sentar-se na borda do leito, olhou Ljot e, obseryou:

 

Não creio que tu fizesses outro tanto, que pensasses em mim.

 

Ljot estremeceu, abriu a boca para responder, mas a esposa colocou-lhe a mão no peito e continuou:

 

Sei o bastante para compreender que não foi por minha causa que vocês se bateram. Tu, depois do regresso da Noruega, tornaste-te muito taciturno e melancólico, e não sou eu quem ocupa os teus pensamentos dia e noite. Mas nada sei do teu desgosto, nem do que se passou entre Odd e tu, ou entre ti e outra pessoa.

 

Ljot protestou:

 

Alegrar-me-ia que o teu casamento te desse a felicidade, Leikny, e fiz quanto pude para te ver contente. Todavia, se sofri um desgosto que tentei ocultar de todos, fui o primeiro a sofrer com isso, e darias provas de boa vontade não me atormentando a este respeito.

 

Enquanto procurava uma resposta ao que ele acabara de lhe dizer, Leikny pousou a vista no manto bordado de Vigdis e que esta oferecera a Veterlide, de quem Ljot o houvera por dádiva amistosa. A rapariga deitou a mão ao manto, que estava aos pés da cama, e atirou-o para o chão com violência, clamando:

 

Pensas dez vezes mais na rapariga da Noruega, que te repudiou, do que em mim, que nunca te fiz senão bem.

 

Ljot saltou da cama e quis apanhar o manto, mas sua mulher, mais prestes, passou-lhe à frente na intenção de o atirar ao lume, para o que se dirigiu, correndo, na direcção da chaminé. O marido foi-lhe no encalço e tentou tirar-lhe a peça de vestuário que ela segurava, frenética, com as duas mãos. Ljot enlaçou-a fortemente com um dos braços e com a outra mão livre torceu-lhe os pulsos, o que a fez gritar. A mulher, porém, não largava o abafo, e apenas cedeu quando o marido lhe bateu na mão com o punho fechado. Leikny, desesperada, atirou-se ao chão, chorando. Ljot saiu levando o manto consigo.

 

A mulher foi, acto contínuo, sentar-se no limiar da porta. Chorava, com a cabeça entre as mãos, e não deu pela chegada da mãe. Gudrun interrogou-a acerca do motivo das suas lágrimas. Entretanto, acercou-se Atle, que subiu a pedra da soleira da porta e disse:

 

Ela chora, mãe, porque o marido lhe bateu. Espancou-a indecorosamente, perto da chaminé.

 

Isso não é verdade desmentiu Leikny vivamente.

 

Mas Gudrun penetrou na casa e topou com Lyting em lágrimas sobre o pavimente, porque o pai fora violento para Leikny. Gudrun sentiu-se dominada por terrível cólera, e expandiu-se em palavras violentas contra Ljot. Regougava:

 

Egil, meu primeiro marido, aprendeu à sua custa que não devia levantar a mão contra mim, que sou quase uma pomba sem fel, e a prova é que, após ter sido espancada por ele, fugi, e pouco depois ele foi morto por se ter recusado a restituir-me os meus bens, coisa evidentemente mesquinha. Os outros com quem sucessivamente me casei tiveram o bom critério de renunciar a semelhantes abusos, tanto Lyting durante toda a nossa vida de casados, como agora Veterlide.

 

Vê se te calas, mãe exclamou Leikny , meu marido não me bateu e apenas fez com que eu me atirasse ao chão, além de que fui eu quem provocou o incidente.

 

Ljot entrou naquele instante. Não ouvira o que Gudrun tinha dito e, inclinando-se para a esposa, murmurou:

 

Não procedi bem para contigo, minha Leikny; o que disseste é verdade: fizeste-me sempre todo o bem que te foi possível.

 

Leikny desfez-se em lágrimas. Tapou o rosto com o avental e saiu, correndo, de casa. O marido seguiu-a, e não tardou muito que regressassem. Leikny deixara de chorar e, com expressão de felicidade, apertava-se estreitamente contra o corpo do esposo.

 

No dia seguinte, encetaram a jornada de regresso a casa. A sua estadia deveria prolongar-se por mais tempo, porquanto Gudrun desejava que a sua filha se demorasse até que esta desse ao mundo o terceiro filho. Gudrun dizia que este projecto seria bom, de todos os pontos de vista. Mas os dois esposos decidiram, de repente, de comum acordo, voltar ao seu lar em Skomedal. Veterlide e Gudrun propuseram educar Lyting com o seu próprio filho Atle, que tinha mais um ano de vida do que o outro pequenito. Ljot e Leikny aceitaram aquela oferta. Em seguida, deixaram Holtar.

 

Durante a viagem para penates, reinou perfeita concórdia entre ambos. Foi o último dia de claridade. Ljot e Leikny cavalgavam ao longo dum desfiladeiro rochoso. O pessoal havia-lhes tomado a dianteira. Ljot conduzia o cavalo de Leikny à brida por entre as pedras, e soltara o seu próprio cavalo, que o ia seguindo sozinho. Fazia um tempo baço e tristonho, e durante momentos uma tempestade de neve vergastava o rosto dos viageiros. Enquanto iam caminhando daquele modo, Leikny teve de súbito a ideia seguinte, que logo expressou:

 

Não me passa da cabeça o que me disseste em Holtar. Mas se me falaste verdade contando-me que o teu maior desgosto foi ver-te repelido por aquela gente, poderias achar compensação consoladora pensando no facto de que fomos nós, aqui, que te procurámos. O casamento que fizeste era considerado como um bom casamento, e a mulher que desposaste havia sido, antes, pedida por muitos.

 

Não se trata de desgosto respondeu Ljot , mas deves compreender que eu não posso deixar de me encolerizar sabendo que os filhos de Beine e os seus amigos espalham esta história por toda a região.

 

Não percebo continuou Leikny passados instantes porque conservas tão empenhadamente esse manto bordado, uma vez que já não pensas naquela que o bordou.

 

Oh! por achar que me fica bem.

 

A neve cegava-os, e ambos seguiram silenciosos durante algum tempo. Logo que a borrasca amainou, Leikny inquiriu:

 

Essa rapariga da Noruega era mais bela do que eu?

 

Não volveu Ljot sem olhar para a esposa , não; a maioria das pessoas, se pudessem comparar, diriam que és mais bela.

 

Seria mais rica do que eu? perguntou ainda Leikny.

 

Oh! creio que os bens se equivalem respondeu Ljot no mesmo torn.

 

Contudo, ela continua a ser, nos teus pensamentos, superior a mim murmurou Leikny, com mau humor.

 

Superior em nada, a não ser, talvez, em fazer menos perguntas do que tu tornou Ljot, que não pôde impedir-se de rir, daquela vez.

 

A esposa inclinou-se na sela para observar melhor a cara do marido. O rosto dela estava branco como as pedras do caminho.

 

Jornadearam, então, algum tempo sem que qualquer dos dois proferisse palavra.

 

A neve deixara de cair quando saíram, enfim, do desfiladeiro. Haviam desembocado num vasto plaino encharcado e cheio de turfa. Ljot entregou as rédeas à mulher e preparava-se já para subir para a sela do cavalo, quando lhe chegaram aos ouvidos estas palavras que Leikny murmurou em voz baixa:

 

Este assunto não tornará a ser jamais evocado entre nós, daqui em diante, assim to prometo. Mas peço-te que não me recuses uma coisa: dize-me o nome dela.

 

Ljot apoiou-se contra a montada e ficou um largo espaço de tempo sem responder; o seu olhar não incidia sobre a esposa, errava ao longe. Por fim, disse muito baixo: «Vigdis».

 

Acto contínuo saltou para a sela, e Jornadearam muito tempo lado a lado sem trocar palavra; quando chegaram a casa, Leikny conservou-se triste e silenciosa, o seu humor não melhorou no transcurso do Verão. No Outono deu ao mundo um filho. Ljot aspergiu a criança com água e pôs-lhe o nome de Gissur.

 

Depois daquele período, Leikny retomou o carácter habitual.

 

No decorrer do Outono seguinte, ao conduzirem os carneiros a Skomedal, aperceberam-se de que lhes faltavam alguns. Ljot, com um dos criados, foi à procura dos animais. Três dias depois, estando Leikny no pátio de sua casa, viu chegar o criado, que trazia à frente os carneiros. Como Ljot não aparecesse, perguntou ao servo onde tinha ficado o amo. O homem respondeu que ele partira para o chalé, a fim de efectuar ali umas reparações na cerca. O tempo estava bom e duma invulgar claridade. A neve nova, na encosta, brilhava ao sol. Ao fim de momentos, Leikny disse ao pessoal que ia subir ao chalé. Uma vez que Ljot decidira fazer arranjes no cercado, aproveitaria a oportunidade para lhe falar numas coisas que ela desejava instalar na vivenda. Os criados trocaram um sorriso ao ouvir aquelas palavras. Após algum tempo de conversa com a sua gente, a dona da casa declarou que já era tempo de se pôr a caminho, e acrescentou:

 

Não vale a pena que vocês me acompanhem.

 

Seguidamente, chamou um velho servo que vivera junto dela desde a infância e que lhe era fiel como um cão, e pediu-lhe que a acompanhasse ao chalé.

 

Ao pôr-do-sol, chegaram à cerca mas não viram Ljot. Notaram que ele havia arrancado quantidades de turfa do lameiro durante o dia, pois que a pá e a picareta estavam ainda encostadas à parede do chalé. Este era construído de pedra e tinha uma cobertura de turfa. No interior fora preparado um leito, por cima do qual, um pouco à margem, corria uma corda donde pendiam peles de abafo e vastos tapetes para protegerem quem ali dormisse contra as correntes de ar e o fumo.

 

Leikny esperou longo tempo, mas Ljot não apareceu. Ordenou, então, ao velho criado que se fosse deitar no estábulo. E como fazia frio e a provisão de lenha da lareira lhe pareceu muito pequena para activar o lume até à chegada do marido, tratou de se meter na cama e puxou sobre si a manta, a fim de ter menos frio. Momentos depois, adormeceu.

 

Pela noite adiante, foi despertada por um ruído de vozes. Espreitou por entre os tapetes suspensos, que a ocultavam, e viu lume aceso na lareira. Ljot encontrava-se sentado num banco em frente. Mas havia um outro homem na quadra. Quando ele falou, reconheceu que era a voz do padrasto, e ouviu-o dizer:

 

Acho que és pouco prudente, caro sobrinho, ficando aqui só, nestes sítios desertos, enquanto durar a questão com Sigurd Beinesson e os seus aliados. Leikny sofreria um terrível desgosto se te perdesse, tanto mais que os filhos são ainda muito pequenos.

 

Ljot apoiou a nuca na parede, e respondeu:

 

Os meus inimigos não são dignos, quer-me parecer, de que eu lhes ligue qualquer importância, rodeando-me de pessoal numeroso. Sei que não será deles que me virá o golpe mortal. Há só uma pessoa, que eu saiba, que me deseja a morte mais cruel, mas creio que ambos nos encontraremos ainda antes do fim. Já vês que pouco me importa o que possa acontecer daqui até lá.

 

Veterlide exclamou:

 

Mas do que é que estás a falar?

 

Ljot não respondeu a esta pergunta do tio. Porém, decorridos momentos, acrescentou:

 

Melhor seria para Leikny ficar viúva assaz jovem para poder ainda consolar-se.

 

Conheces mal o seu carácter, se supões que ela pudesse consolar-se observou Veterlide. Não creio que ela se casasse com outro homem, se te perdesse, de tal maneira aprecia a honra daquele a quem ama.

 

Ljot calou-se, e Veterlide insistiu:

 

Compreendes, não é assim, que poderias dar a volta ao mundo sem achar uma esposa que valha a tua?

 

É verdadeiro o que dizes declarou por fim Ljot. Mas prefiro um sinalzinho que ela tem no seio a toda a graça de Leikny. Eu tinha-lhe mais amor quando ela me feriu no pescoço com o punhal do que tenho a Leikny quando me rodeia o pescoço com os braços. Sentia-me menos desgraçado na época em que, vagueando pelas montanhas do Dovre, em pleno Inverno, pensava nas palavras de maldição que ela me dirigiu, do que quando entro em Skomedal sabendo que Leikny me acolherá com palavras de afecto, no limiar da nossa casa. Mais grato me seria que um urso me partisse os ossos num amplexo feroz do que pensar que Kare possa tê-la sentada nos joelhos.

 

Veterlide estava encolerizado:

 

Colocaste-te numa posição bem desagradável, estimado sobrinho. Mas a tua pior acção foi a de nada haveres dito antes de tornares Leikny tua mulher.

 

Sim aquiesceu Ljot ; mas por essa época julguei possível expulsar a outra do meu espírito, casando-me com a tua enteada. Reconheço agora que o mal que lhe fiz é um mal ainda maior para mim. Porque sofrerei, enquanto durar a minha vida, por ter possuído um dia aquela rapariga de cabeleira doirada e por a haver assim perdido.

 

Receio, estimado sobrinho, que tenhas pago bem mal a hospitalidade de Gunnar.

 

Pior ainda do que supões confessou Ljot ao ouvir aquelas palavras do tio. A mais bela hora da minha vida foi aquela em que Vigdis e eu, sentados lado a lado no alto a que chamam dos sacrifícios, nos entretivemos a comer amoras vermelhas. Sentia-me mais feliz naquele dia do que no dia em que, sendo ainda rapaz, matei o assassino de meu pai nas proximidades do Hauketind. Mas, quando ela me deixou após a nossa última entrevista, levava consigo uma grande dor. Todavia, soube-o mais tarde, a minha tristeza ainda era maior.

 

Veterlide comentou, com dolorosa indignação:

 

Tu violaste, pois, a filha de Gunnar? Nesse caso cometeste um acto infame de que jamais te julgaria capaz.

 

Ljot teve um sorriso breve e respondeu:

 

Talvez nem eu próprio me supusesse também capaz de semelhante coisa.

 

Vê ter lide insistiu:

 

Portaste-te muito mal, nesse caso.

 

Mal, sem dúvida.

 

Os dois homens ficaram silenciosos. Por fim, Ljot ergueu-se e começou a preparar-se para se ir deitar. E perguntou a Veterlide se não lhe pareciam já horas de dormir. Entretanto, Leikny coseu-se o mais que pôde com a parede, tremendo, como uma folha; porém, com os olhos fechados, tentou simular que dormia a sono solto. Ljot desembaraçando-se das vestes, procurou fazer deslizar o tapete na corda, para se meter na cama. Descobriu, então, Leikny. Subiu-lhe ao rosto uma onda de sangue, largou o tapete e em seguida inclinou-se sobre a esposa, chamando-a, baixinho, pelo nome.

 

Leikny não respondeu, respirava profundamente como alguém que está dormindo.

 

Ljot aproximou-se de Veterlide e disse:

 

you preparar uma cama para ti em cima daquele banco, estimado tio. Acabo de ver Leikny, que veio aqui esta noite.

 

Veterlide soltou um grito, mas Ljot fez-lhe sinal para se calar, e murmurou:

 

Parece que tem estado toda a noite a dormir.

 

E sem dizer mais nada, Ljot ocupou-se da instalação do tio. Logo que lhe aprontou a cama, voltou para junto de Leikny; mas, antes de se deitar, quis certificar-se se ela dormia, colocando-lhe a mão sobre o peito. E sentiu-a a tremer toda sob os dedos. O coração de Leikny saltava como um peixe na rede.

 

Ljot estendeu-se ao lado da mulher, sem saber o que dizer-lhe. Manteve-se, pois, silencioso; contudo, naquela noite, nenhum dos dois dormia, embora tanto ele como ela simulassem o contrário.

 

Ao romper do dia, Ljot deixou-se vencer pelo sono. Então, Leikny pôs-se a chorar brandamente, e assim chorando acabou por adormecer também. Quando despertou, viu que os dois homens, já levantados, estavam em preparos para fazerem o primeiro almoço. Leikny vestiu-se rapidamente, e foi-lhes dar os bons-dias. Veterlide perguntou-lhe em que altura tinha ela chegado ao chalé. Não tinha dado pela presença deles na véspera, à noite? Enquanto Veterlide falava, Ljot ergueu-se precipitadamente, e saiu, dizendo que ia ver se os cavalos tinham sido convenientemente tratados.

 

Leikny expôs, entretanto, a Veterlide que chegara ao chalé quase à hora da ceia, e que, tendo-se metido na cama para esperar o marido, adormecera e só naquele instante acordara.

 

E, dirigindo-se a, Ljot, já de volta da inspecção às cavalariças, perguntou:

 

Mas onde estavas tu, Ljot, e donde veio Veterlide? Ljot respondeu que tinha ido examinar as suas armadilhas

 

de caça e que em Gaglemyr encontrara Veterlide a caminho para Skomedal. Os companheiros de Veterlide haviam partido à frente para a herdade. Ljot deitou seguidamente a mão a umas perdizes que pendurara à porta e rogou a Leikny que as fizesse assar para o almoço.

 

Ao mesmo tempo que obedecia, a mulher contou ao marido o motivo que a trouxera ao chalé. Ljot prometeu fazer as estantes com que ela desejava guarnecer a vivenda, e instalá-la conforme ela queria. Pouco tempo depois do almoço, Leikny voltou para casa na companhia de Veterlide, a fim de cuidar do pessoal chegado na véspera.

 

Ao anoitecer, Ljot regressou, a cavalo, a Skomedal. Leikny achava-se à entrada do solar, mas, assim que lobrigou o esposo, deu-se pressa em retirar-se para a sala de tecelagem. Ljot seguiu-a, e colocou as mãos nos ombros da mulher para a obrigar a olhar para ele. Leikny tinha o rosto banhado em lágrimas. Ele beijou-a, e disse:

 

Sei quanto poderia ser feliz se o teu amor me enchesse o coração de alegria. Nenhuma mulher no mundo te ganha em bondade.

 

Leikny respondeu:

 

Não lamento ter ouvido a tua conversa da noite passada com meu padrasto. Sofri muito mais no dia em que me disseste o nome dela, quando íamos atravessando o lameiro.

 

Que vai ser de nós, agora? perguntou Ljot. E ela respondeu:

 

Será como quiseres. Podes fazer sempre de mim o que quiseres.

 

Ljot voltou-se durante instantes. Depois, num ímpeto, dirigiu-se à mulher, beijou-a e saiu.

 

Assim é a vida. Todos os desgostos se atenuam com o tempo, e o mesmo se deu em Skomedal. Durante anos, os dois esposos, absorvidos por outras preocupações, pensaram menos nas suas agruras e desse modo sofreram menos. Eram, de resto, muito dedicados um ao outro e viveram em boa harmonia. Conservavam-se de preferência na herdade, e ninguém os via fora daquele âmbito. Tinham três filhos. O mais velho, Lyting, fora educado em casa da avó, em Holtar. Morreu quando era ainda pequeno. Depois vieram Gissur e Steinvor. Ljot gostava mais da sua filhinha Steinvor do que dos dois rapazes. Tanto Gissur como Steinvor morreram num desastre da seguinte maneira:

 

Numa noite de Primavera, as crianças de Skomedal brincavam no campo. Havia no gárrulo bando alguns rapazes em serviço na propriedade. Entre tinham-se a atirar ao arco e Gissur imitava-os. Este contava, então, sete anos e a pequena Steinvor quatro. A pequerrucha brincava sozinha perto do arroio que corre ao longo da cerca na direcção de Svarta. O regato era tão pouco importante que secava no Verão, mas, como se estava na Primavera, a corrente tornava-se assaz volumosa. Os rapazes haviam construído uma barragem semelhante à que tinham visto na grande ribeira. Arranjaram uma represa em que um homem de estatura pouco elevada teria água pelas joelhos.

 

Steinvor cirandava dum lado para outro, falando sozinha. De repente, viu na outra margem do arroio a-encosta nua dourada pelo sol poente. Era ainda tão novinha que já não se lembrava do Estio precedente e julgou, notando aquele colorido, que a terra estava coberta de flores. E tratou de atravessar o regato um pouco a montante, onde as águas eram mais baixas.

 

Sentia-se tão contente no declive cheio de sol, que decidiu fazer um montículo de pequenos ramos e pedras, com a intenção de construir uma «quinta» em que não faltariam muitos carneiros, vacas e cavalos.

 

Eu devia obrigar estes cavalos a recolher ao cercado disse ela, designando um pequeno amontoado de pedras amarelas. Ajuda-me a recolher este cavalo, é doido, e não consigo ter mão nele.

 

Dizendo isto, a falar sozinha atirou sobre a encosta a pedra maior do montículo que reunira, e correu atrás dela. Gissur, que aparecera entretanto, quis tomar parte na brincadeira. Mas a «quinta» construída por Steinvor pareceu-lhe bastante mesquinha.

 

Eu you partir para a Noruega, para comprar madeira de construção disse o petiz. Apoderou-se de um dos sapatos de Steinvor, encheu-o de raminhos secos colhidos duma exígua mata de salgueiros e fez vogar o seu barco na água da represa. Em seguida construiu, ajudado pela irmã, uma casa magnífica; mas, quando terminaram o seu trabalho, o sol tinha desaparecido. As duas crianças estavam molhadas, tinham frio e só pensavam em voltar a casa, para que lhes dessem de comer. Mas onde estava o sapato de Steinvor? Esta estremeceu com a ideia de ter de entrar com os pés nus na água gelada.

 

Levar-te-ei ao colo, para atravessarmos o ribeiro, irmãzinha disse o garoto e, erguendo-a do chão, pôs-se a patinhar na água.

 

Olha, está além o pai, na charneca gritou Steinvor. Levantaram ambos a vista e tentaram fazer-lhe sinal. Mas Gissur escorregou num pequeno bloco de gelo imerso, e caiu com a pequenita.

 

Ljot acabara de chegar, a cavalo, pelo cerrado do gado, ao outro lado do ribeiro. Lobrigou as crianças e fez-lhes um gesto afectuoso com a mão, mas entretanto elas caíram na água da presada e não tornaram a levantar-se. O pai saltou do cavalo para o chão e desceu a direito por entre o cascalho. Atingindo a outra margem, correu pela encosta até ao arroio. As crianças jaziam, inertes, na represa. Ljot notou que Gissur batera com a têmpora numa pedra, e que ele tinha a irmã tão estreitamente apertada nos braços que esta lhe ficara debaixo do corpo. Ambos se tinham afogado. Ljot compreendeu imediatamente que tanto um como outro estavam mortos. No entanto, regressou a casa com os dois filhos nos braços e ordenou que trouxessem cobertores e que fervessem leite.

 

Leikny tornou-se duma palidez mortal ao ver os dois pequenitos. Porém, disse que o seu estado talvez não fosse muito grave, e que eles não tardariam a recuperar os sentidos. Tudo que se tentou para reanimar as duas crianças não serviu de nada. Gissur e Steinvor já não eram deste mundo. Ljot acabou por ir sentar-se ao pé do lume, com a cabeça entre as mãos, mas Leikny não queria renunciar à luta. Não cessava de lhes introduzir à força leite entre os lábios, e de os friccionar com panos de lã, embora todos os presentes lhe afirmassem que os seus esforços eram inúteis. Por fim, tomou nos braços os dois pequenos corpos, dizendo:

 

Hei-de restituir-lhes a vida, you deitar-me sobre eles e aquecê-los até que recuperem a consciência. E deitou-se na cama com os filhos, soprando-lhes na boca o seu bafo quente. Ljot ergueu-se, e atraiu-a a si.

 

Deixa-os repousar em paz disse ele , não se deve proceder assim com os mortos.

 

Mas ela soltou-se-lhe dos braços, dando gritos terríveis. Atirou para longe o lenço, arrancou os cabelos, depois dirigiu-se a correr para a porta, a fim de se ir afogar também na ribeira. Ljot precipitou-se sobre ela, ergueu-a nos braços e levou-a para a cama. Teve de empregar toda a força para a libertar das roupas e para a deitar. Toda a noite se viu obrigado a segurá-la; chegou a crer que ela ia enlouquecer. Pela madrugada, a pobre mãe acalmou-se e, quando se levantou, já dia alto, mostrava-se tranquila, não teve mesmo grandes crises de choro, dir-se-ia uma defunta saída do ataúde.

 

O tempo passava tristemente em Skomedal. Depois veio o dia da Assembleia. Ljot devia ali comparecer e quis levar consigo Leikny, mas ela recusou-se a acompanhá-lo, dizendo que não tinha ânimo para sair. E Ljot viu-se obrigado a partir sozinho.

 

Quando ele regressou, Leikny disse-lhe que ficara muitas noites na sala de tecelagem e suplicou-lhe que a deixasse dormir só durante algum tempo. O marido respondeu àquele pedido assegurando-lhe que não se opunha, se tal fosse o seu desejo. Mas o Estio aproximava-se do seu termo; Leikny conservava-se na sala de tecelagem, e ali dormia. Deixara de cuidar do arranjo dos caseiros e vagueava pela sala sem fazer nada. Ia todas as noites à capela que Ljot mandara construir perto da casa e ali passava em oração grande parte da noite.

 

Uma vez, quando a mulher se preparava para sair, Ljot entrou ha sala de tecelagem e pediu-lhe uns momentos de atenção.

 

Quando tencionas voltar para junto de mim, Leikny? Como ela não respondesse à pergunta, Ljot acrescentou:

 

Creio que nem tu nem eu temos qualquer vantagem em ir cada um para o seu lado, suportando sozinhos o nosso desgosto. Acho que seria melhor dedicares-te à tua casa, e viver com todos nós, atendendo aos cuidados que o lar requer. Talvez assim o teu sofrimento se atenuasse.

 

Já não tenho ânimo para velar pela casa disse ela. Parece-me a cada momento que perdi qualquer coisa, e, quando tento lembrar-me, apercebo-me de que foram os meus filhos que perdi e que eles nunca mais necessitarão de mim. O marido volveu:

 

Queres voltar para tua casa, para junto de tua mãe? Se assim é, irei levar-te a Holtar.

 

Leikny murmurou:

 

Há uma coisa que eu desejaria, se concordares em deixar-me seguir a minha vontade.

 

Estou pronto a aceder a tudo que me peças. Nada te recusarei.

 

E se fosse nunca mais coabitar contigo? Permite-me que eu saia daqui e que vá viver na pureza e no jejum, como fazem outras mulheres nos países cristãos.

 

Ljot franziu o sobrolho e disse:

 

Sei que a tua vida não foi muito feliz junto de mim, e eu nunca te teria trazido para Skomedal, se adivinhasse o que ia suceder. Mas uma vez perguntei-te que vida seria a nossa daí em diante, e tu escolheste não me abandonar jamais, a despeito do passado. Depois, fiz quanto pude para que tivesses uma existência feliz, e desde então não trocámos nunca uma palavra colérica, nem jamais tornei a usar de violência contra ti. Fruíste nesta casa tanta autoridade como eu, e sempre me abstive de te contrariar. Também não me diverti com outras mulheres, e os meus filhos foram os que me deste.

 

Tu também não tens filhos meus exclamou Leikny, que cobriu o rosto com as mãos, debulhando-se em lágrimas.

 

O meu desgosto por isso foi tão grande como o teu, e admiro-me, portanto, de que pretendas quebrar a nossa vida conjugal.

 

Leikny ergueu-se e respondeu:

 

Deverás pedir o divórcio. A minha recusa de viver contigo será uma razão suficiente. Poderás ainda desposar outra mulher e afastares-te para longe destes sítios desertos. Nunca te vi contente um só dia, durante todos os anos que passámos juntos.

 

Ljot perguntou em voz sumida:

 

Dize-me a verdade, Leikny. Desejas verdadeiramente deixar esta terra, ou pretendes sobretudo que não partilhemos o mesmo leito?

 

Dizendo isto, atraiu-a a si, e ela tremia de tal forma que não podia falar. Ljot acrescentou, então:

 

Disseste-me um dia que farias tudo que eu quisesse. Leikny apoiou a face contra a mão do marido e balbuciou por entre soluços:

 

Pensava que querias deixar-me. Ljot inclinou-se para ela:

 

Isso foi há imenso tempo, Leikny. Eu ignorava nessa altura que não poderia viver sem ti.

 

Nessa mesma noite, Leikny voltou para a sala comum e retomou o seu antigo lugar à mesa. Ninguém a ouviu jamais dizer que desejava fazer-se freira. Viveu com o marido em perfeita união; e demonstravam um pelo outro um grande amor. Leikny continuava a chorar os filhos, mas já não falava nisso.

 

Um dia em que se encontravam juntos na casa de Lanhos, Leikny deixou os cabelos soltos para os secar.

 

Ljot juntou entre as suas mãos aquela cabeleira esparsa e exclamou:

 

Os teus cabelos são ainda mais fúlgidos e mais belos do que dantes, Leikny.

 

Esta, ouvindo o cumprimento, fez-se vermelha como uma papoila e deitou a cabeça para trás. Mas Ljot reparou então que os cabelos grisalhos eram tão numerosos como os cabelos de oiro. Próximo das têmporas haviam-se mesmo tornado completamente brancos.

Passou-se um ano. Ljot notou que Leikny chorava com frequência à noite. Interrogada ternamente por ele sobre o motivo daquela tristeza, recusou-se a elucidá-lo. Um dia, o marido disse-lhe:

 

Creio que não tornarás a reencontrar alegria enquanto não tiveres dado ao mundo a criança que trazes no seio.

 

Leikny pôs-se a chorar ainda com mais força. Um dia, Ljot entrou na despensa das provisões, e viu a mulher, de joelhos, ocupada a despejar o conteúdo duma grande caixa. Pediu-lhe que não se cansasse com aquele trabalho, visto que, a seu ver, não era coisa de urgência.

 

É, sim respondeu ela. Quero deixar a casa em ordem quando se me acabar a vida, e devo fazer, agora, o que me for possível.

 

Vamos, põe de parte semelhantes ideias disse Ljot, tentando aparentar um ar risonho. Julgas acaso que vais morrer?

 

E fê-la sentar-se a seu lado no banco. Então, Leikny respondeu:

 

Vejo Gissur e Steinvor atravessar a sala todo os dias. Os nossos pobres filhos vêm escorrendo em água, e querem subir para a nossa cama. Ou, ainda, que eu me deite ao lado deles e que os cinja nos meus braços. Explico-lhes que não posso por causa dum seu irmãozinho que espero. E eles respondem-me: «Quando ele nascer, mãe, vem dar-nos um pouco de calor, como nos prometeste.»

 

Tu sonhaste disse Ljot. Sabes perfeitamente que as crianças estão junto de Nosso Senhor. Só os pagãos não podem ser lá admitidos; porém, os nossos filhos foram baptizados, e demos-lhes sepultura em terra cristã. Não fales, portanto, dessa maneira, e afasta do espírito esses pensamentos concluiu ele em voz suplicante.

 

Vi-os tão nitidamente, como te estou vendo a ti. Acercaram-se de mim e tocaram-me; o seu contacto era tão frio que me senti gelar até aos ossos.

 

Vejamos, deve ter sido qualquer corrente de ar que te transiu desse modo observou Ljot sentando-a nos joelhos.

 

you mandar arranjar a parede que fica por detrás do leito. Mas não digas que vais morrer. As crianças não sofrem onde estão, e eu necessito mais de ti do que eles.

 

Algumas semanas depois, Leikny deu ao mundo um bebé. Ljot interrogava incessantemente as parteiras acerca do estado de Leikny, e elas respondiam sempre que tudo caminhava bem. Mas, quando mostraram o recém-nascido ao pai, aquele apresentava-se tão raquiticamente conformado, que todos os da casa aconselharam Ljot a expô-lo.

 

Porque este desgraçadinho nunca há-de ser um homem

 

diziam-lhe. Será um aborto para o qual a vida jamais terá qualquer alegria.

 

Seria um acto indigno dum cristão como eu replicou Ljot e não o farei. Deus poderá vir em socorro desta criança e melhorar o seu estado. Movido daqueles humanos sentimentos, mandou pouco depois baptizar o pequenito e deu-lhe o nome de Torbjorn.

 

Leikny chorou ao inteirar-se da mísera conformação física do filho. Pensou, influenciada pelos inconscientes que nisso lhe falaram, que seria preferível, para ele, não viver. O recém-nascido tinha um rostozito alongado em bico de lebre, e faltava-lhe o palato. A sua mão direita, pequena e como que ressequida, metia dó a quem a olhava. Quando Leikny falou nisto a Ljot este riu-se e disse que a mão esquerda também não era muito grande.

 

A parturiente levantou-se decorridos dez dias, mas nessa mesma noite foi salteada pela febre e teve de recolher novamente ao leito. No dia seguinte, o seu estado piorou. Ljot sentou-se-lhe à beira da cama. De súbito, a enferma disse:

 

Temo que venha a suceder o que eu receava, se bem que tenha orado ardentemente para que a morte não nos separe ainda. Duas coisas me enchem de tristeza: primeiro, o facto de vires a ficar só com esta pobre criança doente, e depois pensar que melhor fora ter morrido na época em que não me prantearias.

 

Ljot afagou-a e disse:

 

Acho absurdos os teus sonhos e visões, e conheci as maiores alegrias da minha vida durante os dias felizes que temos passado juntos. Coisa alguma pode fazer esquecer este sentimento.

 

Leikny adormeceu. Ljot conservou-se junto dela, de vigília, toda a noite. Ao avizinhar-se a manhã, a enferma ergueu-se de repente no leito e estendeu as mãos para a porta, no gesto de quem acolhesse seres invisíveis. Em seguida, rodeou o pescoço do marido com os braços, e caiu para trás, arrastando-o consigo na queda. Mas no mesmo instante largou-o, estirou os membros, e morreu.

 

Ljot chorou sentidamente a esposa, mas os que o cercavam acharam que ele suportou com ânimo a sua dor, não se excedendo em lástimas. Entretanto, tratou de cuidar ele próprio da criança, com grande carinho. Continuava sempre esperançado em que o pequenito venceria o estado enfermiço, mas os outros eram de opinião contrária, e o seu pessimismo acertou. com efeito, passado o Inverno e a Primavera, a criança foi salteada por convulsões que lhe causaram a morte. Nesse mesmo ano, Ljot fez saber à Assembleia da gente da região que desejava vender as propriedades. Tempos depois, comprou uma barca e abandonou a Islândia. Chegado à Normandia, separou-se de alguns conterrâneos que tinham partido na sua companhia. Na ilha nunca mais se ouviu falar dele.

 

Depois da morte, em combate, do rei Olav Trygvesson, da Noruega, Illuge, o loiro partiu para Aslo. Não queria servir mais nenhum suserano após a morte daquele homem, o maior entre todos os que viveram nos países do Norte. Illuge pensava em instalar-se na vida e em consorciar-se. Voltou ainda a pedir casamento a Vigdis. Esta acolheu-o benevolamente, e deu em sua honra uma grande festa para a qual convidou também Kare de Grefsin. Testemunhou aos dois homens a maior estima. Um dia, pediu-lhes que a acompanhassem ao depósito de provisões, porque desejava falar-lhes a sós, e disse-lhes:

Ambos vós me haveis pedido que fosse vossa mulher, e eu não esperava a honra de semelhantes propostas, vindas de dois homens tão considerados e de tão grande valor. Mas não pretendo casar-me. Tudo o que ambiciono é que meu filho possa viver em condições de fortuna e de posição tais que a ausência dum pai não seja para ele motivo de infortúnios. Torna-se, então, necessário que não se veja obrigado a partilhar os seus bens com filhos legítimos que eu pudesse vir a ter. Além disso, devo a vós ambos tanto reconhecimento que não saberia a qual escolher. Ocorre-me, porém, aconselhar-vos o seguinte: tu, Kare, darás tua irmã Helga como esposa a Illuge e ele comprará a propriedade de Baugstadir que fica por detrás da serra. Kare pedirá em casamento Ragna Gjotgardsdatter, minha prima, que vós haveis visto aqui hoje. São as mais belas raparigas da região e as mais ricas e, se vós ambos fordes amigos, como cunhados, dominareis por todas as redondezas dêsta terra. Dizei-me agora se porventura tomastes bem nota do que vos sugeri, e o que pensais dos meus conselhos. Kare tomou a palavra:

Por mim, estou disposto a ter Illuge por cunhado, se ele quiser, por seu turno, fazer o que dizes. Acho que a conclusão dum tal acordo seria vantajosa tanto para um como para outro. Garanto que não me mostrarei avaro, quanto a dote, casando minha irmã.

Illuge respondeu:

Assentemos, então, que casarás com Ragna no mesmo dia em que Helga e eu bebermos pela nossa boda.

Kare não respondeu, mas Vigdis acrescentou:

 

Ficai absolutamente certos de que eu não me casarei jamais, mas vós ambos aumentareis as vossas riquezas e o vosso poderio realizando este acordo. Sois aproximadamente iguais em tudo, nenhum de vós ganhará grande coisa tentando ultrapassar o outro. Unindo-vos como cunhados, redobrareis as vossas possibilidades.

Kare estendeu então a dextra a Illuge que lha apertou, e seguidamente começaram a examinar os pormenores do assunto. Vigdis foi, entretanto, abrir um grande cofre cheio de objectos preciosos, e pediu aos hóspedes que escolhessem o que lhes agradasse.

Permiti-me ainda acrescentou ela que recorra à vossa amizade, pois tenho um pedido a fazer. Ensinai meu filho Uivar a servir-se das armas, e a comportar-se como é próprio dum rapaz brioso, a fim de que, quando for mais crescido, se pareça convosco.

Ambos prometeram o que ela desejava, e agradeceram-lhe os magníficos presentes que lhes ofereceu.

Terminada assim a recepção, os dois homens regressaram a suas casas com as valiosas dádivas com que ela os obsequiara, e que contribuíram para aumentar a boa conta em que era tida naqueles sítios.

 

Vigdis havia mandado construir uma igreja, que foi confiada a um sacerdote de nome Eirik. O padre viera da Dinamarca, e Vigdis tributava-lhe grande estima, sendo por ele com frequência visitada, em Vadin.

Numa noite em que ambos se haviam sentado em redor do lume da lareira, após as cerimónias da Ceia do Senhor, Vigdis pediu ao padre que lhe contasse uma lenda, porquanto ele sabia grande número delas, e, acedendo, o pastor Eirik narrou-lhe a seguinte:

Houve, em tempos que já lá vão, num lugar chamado Odinso, uma mulher de nome Tora. A sua formosura era extrema. Mas um dia deixou-se seduzir e aconteceu-lhe ter um filho que ela ocultou de todos, resolvendo, por fim, atirá-lo ao mar.

Mais tarde, realizou um bom consórcio, e viveu feliz e considerada. Certo dia, adoeceu gravemente, teve um delíquio e chegaram a julgá-la morta. No seu delírio de enferma, imaginou que a vestiam, que a adornavam e que lhe haviam dado o corpo à sepultura. Ouvia os filhinhos chamarem por ela, chorando por toda a casa, e sentiu o angustiado desejo de ir ter com eles para os consolar. No mesmo instante, notou que alguém penetrava no túmulo onde ela jazia. O desconhecido, que estava envolto num manto negro, pegou-lhe na mão e disse: «Levanta-te, Tora, e acompanha-me.» A partir de então, ela deixou de pensar que estava morta, e pediu ao homem que a levasse para junto dos filhos, que choravam a sua ausência. O homem do manto fez um gesto de assentimento e conduziu-a para mais longe. «Não é por este caminho que devemos seguir» observou ela. «Enganas-te, é exactamente por aqui» murmurou o guia.

Depois de terem caminhado durante muito tempo, chegaram a um vale profundo e obscuro. Ao fundo do vale, achava-se um lago de águas negras para o qual o terreno descia em pendor abrupto. A margem do outro lado era também fortemente escarpada. Mas, no cimo da montanha, brilhava um castelo com tal fulgor que dir-se-ia de oiro puro. Diante desta edificação, viam-se cavaleiros revestidos de armaduras de oiro, e no interior havia gente que cantava e tocava em instrumentos de cordas. A enferma jamais havia sonhado coisa alguma de tanta beleza; e perguntou ao seu condutor a quem pertencia aquele castelo de oiro. «É meu informou o homem , queres ir até lá para ver o meu domínio?» Desejava-o, sem dúvida, mas o que ela queria acima de tudo era tornar a ver os filhos no lar. Começaram, entretanto, a descer a encosta, e, ao aproximar-se do fim do vale, Tora julgou ver uma quantidade de cordeiros brancos. Apertavam-se uns contra os outros como num redil e, atropelando-se, tentavam escalar as muralhas rochosas que os cercavam. Vendo-os de mais perto, apercebeu-se de que se tratava de crianças tamaninas. Havia ali muitos milhares delas, em completa nudez e com aspecto de recém-nascidos; mas os seus rostos eram velhos, e algumas das crianças apresentavam ferimentos sangrentos, parecendo terem sofrido maus tratos, e outras estavam encharcadas. Procuravam subir para fora daquele vale, mas quase no mesmo instante rolavam até ao sopé da encosta, de tal forma eram pequenas e débeis. A mulher achou aquele espectáculo tão triste que se pôs a chorar. Perguntou ao homem do manto de quem eram aquelas infelizes crianças e como tinham chegado àquele lugar.

«Foram os pais que ali as meteram porque assim lhes deu na vontade» disse o homem. «Eis uma coisa que me custa a crer» ,exclamou Tora. As crianças conservavam o dom da fala, e intervieram: «Mas é verdade, e estamos condenados a ficar aqui. Gostaríamos de ir ver o vasto mundo para além deste vale, mas somos muito pequeninos, e temos de nos conservar onde estamos e onde tudo é feio e desolado e padecemos muito frio.»

Então, a mulher tirou o seu agasalho de peles e rasgou-o, envolvendo nos largos pedaços do manto as crianças que se encontravam mais perto dela. Todas se aglomeravam à sua volta, e Tora continuou a despojar-se das roupas, com que foi cobrindo muitas dentre elas, até ficar ela própria também completamente nua. Subsistiam sempre, porém, tantas crianças sem vestuário que o seu número ascendia a milhares. Enquanto ela ia caminhando ao lado do homem, as crianças assediavam-na com as suas súplicas, pedindo-lhe que as tomasse nos braços, para poderem ver o mundo.

«Este espectáculo é horrível» disse Tora.

«Não obstante, todos os que se encontram aqui não desejam renunciar à vida, todos querem voltar para o mundo como tu própria o desejas.»

«Eu apenas aspiro a regressar para junto dos meus filhos» volveu a triste mulher.

Seguidamente, o guia e ela penetraram na água, que estava igualmente cheia de criancinhas. Estas viam-se cobertas pela água até ao pescoço, aperta das umas contra as outras como um cardume de arenques. Tremiam de frio e todas tentavam agarrar-se à companheira do homem do manto negro. Tora sentia dó delas a ponto de chorar, e tomou nos braços tantas quantas lhe foi possível. Depois, pediu ao homem que lhe permitisse levá-las consigo até ao castelo de oiro. «Sim, permito-o» respondeu o interpelado. Todavia, o número de crianças que ela podia transportar nos braços era reduzido. Solicitou, então, ao seu guia que lhe emprestasse o manto para as enrolar. Quando ele o tirou, a mulher pôde ver que o desconhecido vestia uma magnífica armadura toda de oiro, ornada no peito duma cruz de pedrarias. Sobre a cabeça brilhava-lhe uma coroa resplandecente, mas o brilho da sua face era ainda mais vivo. «Nunca pensou Tora vi um personagem mais belo e majestoso.»

O homem disse-lhe: «A encosta é tão áspera neste local que te será impossível subi-la; é necessário que eu te leve. Devo transportar-te em primeiro lugar, ou preferes que comece pelas crianças?»

«Leva primeiro as crianças solicitou ela. Se não podes transportá-las todas ao mesmo tempo, eu permanecerei aqui à espera.»

«Longo tempo terás então de esperar observou o rútilo cavaleiro. Repara como são numerosas, e que outras vão chegando incessantemente. Não me disseste que tinhas grande desejo de ver o meu castelo de oiro, após o que tencionavas regressar a casa para junto dos teus filhos? Ora, em tais condições, poderias ser obrigada a ficar aqui até ao fim do mundo, antes de eu ter levado todas estas crianças para o meu domínio.»

«Bem! esperarei todo o tempo que for preciso exclamou a companheira do cavaleiro resplandecente. Não tenho ânimo de abandonar estes pequeninos desventurados. Os meus estão bem abrigados em casa, e estes têm mais necessidade de nós.»

 

Ouvindo isto, o homem acrescentou:

 

«Devo dizer-te, em todo o caso, que é o teu filho mais velho a criança que apertas contra o peito. Todas estas crianças foram privadas da vida antes de terem vivido, ou de terem conhecido o caminho que leva ao meu castelo.»

Tora caiu de joelhos e exclamou, assombrada:

«Mas quem és tu, Senhor, como te chamas?»

«Eu sou o Cristo» disse ele. E ao mesmo tempo emanou da sua presença uma claridade tão deslumbrante que dir-se-ia ter nascido o Sol por sobre o vale e aquecido todas as crianças. Tora foi obrigada a fechar os olhos ofuscados por tamanha luz. Quando os reabriu, achou-se deitada no seu leito, em casa.

Mandou chamar imediatamente o marido e a família, e contou-lhes a visão que tivera, sem nada ocultar da sua vergonha passada, dizendo-lhes que tinha morto o fruto das suas entranhas. O marido ficou de tal maneira encolerizado que lhe ordenou que se levantasse e que saísse de casa naquele mesmo instante, apesar de estarem a meio da noite.

Tora fugiu através da localidade, ladrando-lhe os cães à passagem, e sentia-se bem desditosa por haver pecado tão gravemente. Na sua confusão, não descortinando como continuar a viver, correu para a ribeira. Chegada à beira da corrente, ouviu alguém chorar entre dois grandes pedregulhos. Orientando-se pelo ruído, descobriu um garotinho recém-nascido, que vivia ainda. Envolveu-o nas suas vestes, aproximou-o do peito e deu-lhe o seio. E logo ali tomou a resolução de criar aquela criança. Embrenhou-se nas florestas e caminhou muito tempo até chegar a um lugar onde ninguém a conhecia. Depois, por suas próprias mãos, construiu uma cabana e instalou-se nela com o pequenito. Mais tarde, restituíram-lhe o oiro e o dinheiro que lhe pertenciam por herança, e então fez saber por aquelas redondezas que criaria os bebés expostos pelos respectivos progenitores. Comprava alimentos para as crianças com o produto da venda dos seus bens e do seu oiro, mas ela própria nutria-se apenas da erva que nascia na terra e só bebia água dos regatos.

Quando os frades vieram pregar a verdadeira fé naquela região, ficaram muito surpreendidos vendo que Tora conhecia Deus e o honrava nos seus actos. Baptizaram-na e baptizaram as crianças, e quando ela morreu proclamou-se que, pela sua penitência, adquirira a santidade.

Vigdis agradeceu ao padre a história que ele lhe acabara de contar, e ficou pensativa durante o resto da noite.

Quando chegou a hora de recolher ao leito, tendo-se os criados já retirado, chamou Uivar para junto de si. O rapaz contava por aquela altura nove anos de idade e era amicíssimo da mãe. Sentando-se-lhe nos joelhos, o pequeno abraçou-se a ela:

Mãe, serias capaz de me esperar a mim naquele vale até ao fim do mundo? perguntou ajuntando: Estou certo que sim.

Vigdis apertou-o contra o coração e disse:

Certa noite, como sucedeu a Tora, aprendi o que devia fazer. Eu iria até ao fim do mundo para te proteger no momento em que necessitasses de tua mãe.

O rapazito beijou-a e acariciou-a. E pouco depois acrescentou:

Nunca quiseste dizer-me quem é meu pai.

Não evoques a sua recordação quando estou contente respondeu-lhe a mãe e não quero que me faças perguntas a seu respeito.

Uivar insistiu:

Quando eu for mais homem, partirei em busca dele e obrigá-lo-ei a desposar-te, pois de contrário arrepender-se-á.

Vigdis esboçou um ligeiro sorriso:

Há-de passar ainda uma boa temporada antes de seres homem feito, meu filho disse ela e muito tempo até que tu me deixes. Não falaremos dele jamais, ele nunca te verá e não te causará dano. Mas farei tudo o que puder pelo teu bem e esquecerei mesmo aquilo de que se me tornou insuportável a recordação.

 

Uivar crescia e ia-se tornando um esplêndido moço sobre o qual se podiam fundar grandes esperanças. Era de estatura elevada, mas um tanto escorrido de formas. Tinha olhos azul-claros, e compridos cabelos escuros a atirar para ruços. Desde muito novo, mostrou invulgar sisudez, porque a mãe, sendo ele ainda bastante jovem, industriava-o praticamente em tudo que respeitava à administração das suas terras e outros bens, e ao relativo bem-estar dos seus dependentes. Vigdis não hesitava até mesmo em pedir-lhe conselho, e falava-lhe como a um adulto, cuja opinião pudesse ser-lhe de grande vantagem. Em consequência, o rapaz era grave e taciturno, mas afável e cortês no trato, e toda a gente o estimava. A mãe e ele viviam numa grande ternura recíproca. Mas sempre que o mancebo perguntava quem era o pai, Vigdis não lhe respondia, afirmando que nada de bom tinha a dizer de tal homem, cujo nome não queria tornar a ouvir pronunciar. Depois de perguntas desta índole, a sua progenitora mostrava-se triste e Uivar não ousava continuar a interrogá-la.

Kare, Illuge e Vigdis haviam-se ligado por firme amizade, e todos três se convidavam mutuamente, todos os anos, para um grande festim. Os dois homens ensinaram com todo o cuidado a Uivar os exercícios físicos dignos de um homem.

O rapaz ia com frequência a Grefsin, a herdade mais vizinha da de sua mãe; mas rejubilava sobretudo com as suas digressões, a cavalo, a Baugstadir, onde vivia Illuge que tinha viajado muito e visto muitas coisas. Agradavam-lhe em especial as narrativas que Illuge por vezes, lhe fazia.

Numa tarde em que Uivar se encontrava em casa de Illuge o padre apareceu em Baugstadir, e o dono da casa lembrou-se de lhe pedir que contasse uma história para se distraírem. O sacerdote Eirik contou-lhes, então, a história de São Gregório, que matou o dragão de Capadócia, e Illuge no fim da narrativa, disse-lhe:

Depois da de Cristo, que venceu o diabo, essa é a mais bela façanha executada por um homem. Só conheço duas que se lhe possam comparar. A de Sigurd Sigmundsson, que matou Fafne, e a de Olav Trygvesson, que não fugiu, em Svold, diante de três exércitos. Tão-só em tempos muito antigos se poderiam achar proezas semelhantes, na época das lendas, jamais tornará a existir suserano que se lhe equipare, enquanto o mar bater nas costas da Noruega.

O padre Eirik observou:

Não ha dúvida que Olav foi o maior homem de guerra que existiu neste país, mas agora quero contar-lhes as acções dos santos mártires que, nas regiões do Sul, padeceram com coragem e com um coração viril os piores sofrimentos pela sua fé. A fim de que vocês conheçam a valentia destes crentes, you contar-lhes o que sei acerca da firmeza duma rapariga.

E contou-lhes a lenda de Santa Ágata. Illuge exclamou:

Essa rapariga era verdadeiramente dotada dum espírito magnânimo. A sua fama jamais se apagará. Mas agora you falar-lhes da mulher mais notável que encontrei neste mundo. Por tua parte, Uivar, deves ter ouvido falar um pouco do que lhes contarei, mas penso que precisas de saber ainda muita coisa que ignoras.

E fez a narrativa da viagem de Vigdis através dos mil obstáculos da floresta, na noite em que os inimigos de seu pai incendiaram Vadin. Absteve-se, porém, de citar o nome dela, e, quando terminou a narração, disse ao rapaz:

Sabes a quem se refere a história que acabei de lhes contar? Conheces uma mulher a quem faltam três dedos da mão esquerda?

Uivar fez um sinal afirmativo e apertou com afecto a mão de Illuge. Este prosseguiu:

Se te pareceres com tua mãe, falar-se-á um dia dos teus altos feitos.

No dia seguinte de manhã, quando Uivar entrou no pátio de Vadin, distinguiu Vigdis, que se entretinha a dar de comer aos frangos. Uivar saltou abaixo da montada, correu para a mãe e passou-lhe o braço em redor da cintura. Vigdis pôs-se a rir:

Que tens, meu filho?

Nada volveu ele , mas creio, minha querida mãe, que não há no mundo outra mulher com tanto valor como tu.

Dizendo estas palavras, agarrou na mão esquerda de Vigdis e beijou-lhe as falanges mutiladas.

Não podes adivinhar no que penso, mãe. Teria sido admirável se houvesses desposado Olav Trygvesson. Foram feitos um para o outro.

Vigdis corou, sem responder. Beijou o filho na face e conduziu-o consigo a casa, a fim de que ele tomasse algum alimento.

 

Certo dia, ao sol-posto, dois negociantes islandeses que se dirigiam a Tunsberg pediram, em Vadin, hospitalidade para aquela noite. Vigdis recebeu-os bem, e ofereceu-lhes um repasto abundante. Eram homens de espírito conceituoso e tinham maneiras nobres. Vigdis veio sentar-se perto deles no decurso do serão e travaram conversa.

Ela acabou por lhes perguntar se tinham ouvido falar dum homem chamado Viga Ljot e se ele vivia ainda.

Responderam que em Raudasand tinha vivido um homem com aquele nome. Mas fora morto quando eles eram ainda crianças.

Vigdis observou que não podia ter sido há tanto tempo, porquanto o homem a quem se referia estivera naqueles sítios numa época de que ela ainda se lembrava.

Então, um dos negociantes disse para o outro:

Não se dava ainda o nome indicado pela dona da casa a Ljot Gissursson, de Skomedal, na época em que vingou o pai. Ele era por então um rapazote que guardava ovelhas nas terras de Eyre Torbjorn.

Vigdis esclareceu:

Aquele a quem aludi chamava-se Ljot Gissursson. Sabeis se ele é vivo ainda?

Uivar, que estava sentado no banco, inclinou-se sobre a mesa, e pediu em torn suplicante:

Oh! contem-nos isso; contem-nos como ele vingou o pai quando era ainda um pastorinho que guardava gado!

Vigdis olhou para o filho, mas não disse nada. Um dos comerciantes tomou a palavra:

Dize o que sabes, Helge, visto que a nossa hospedeira deseja ouvir-te.

Helge principiou a narrativa deste modo:

Esse Ljot era o filho único de Gissur, que foi morto por Gunnar, senhor de Geitabakke e seus aliados. Oito sicários auxiliaram Gunnar, e um deles chamava-se Arne Kollson. Fora ele o principal autor do assassínio. Gunnar pagou a indemnização e todos consideraram o assunto arrumado da parte daqueles que se tinham incumbido de vingar Gissur. Nesse tempo, eram homens de pouco peso em comparação com Gunnar e os seus. Ninguém podia medir-se com Arne. Ljot contaria, por então, apenas dois ou três anos de idade.

Num dia de Inverno, tendo Ljot já feito treze anos, encontrou-se, na companhia de alguns companheiros, no alto de uma montanha. Tinham-se sentado todos num rochedo, donde se dominava o horizonte e onde eles resolveram comer os lanches, depois de haverem dado inúmeras voltas para acharem e reunirem alguns ovinos extraviados pelas cercanias. Cada um dos rapazes gabava-se, enquanto comiam os lanches, das suas façanhas respectivas. Ljot pretendia ser um atirador de venábulo excepcional e que nunca errava o alvo. Um dos companheiros, que perscrutava os horizontes enquanto Ljot falava, disse de repente:

« Vês aquele grupo de cavaleiros que segue pelo vale ao pé de Hauketind? Se não me engano é Arne Kollsson que vai passando ali em baixo. Se fosses capaz de atingir aquele alvo, Ljot, a indemnização assim paga pela morte de teu pai teria mais valor do que todo o oiro desembolsado por Gunnar.

«Os rapazes tinham trazido três venábulos. Ljot apoderou-se de todos eles e correu na direcção do norte por cima das rochas cobertas de musgo. A senda da colina que atravessava o vale estreitava pouco a pouco até se converter numa exígua vereda. No ponto mais estreito havia um desfiladeiro, que dum lado era limitado por uma muralha e do outro por terreno pedregoso e escarpado.

«Ljot foi esconder-se atrás duma grande pedra, e entretanto Arne entrou no desfiladeiro. Vinha acompanhado por quatro homens. A vereda subia por um relevo áspero. Quando aqueles homens chegaram ao ponto que ficava por baixo do local onde Ljot se ocultava, o rapazelho saltou para cima do rochedo e disparou o primeiro venábulo, que atingiu um cavaleiro que cavalgava ao lado de Arne. Ljot voltou a ocultar-se com a rapidez do relâmpago. Os homens não tiveram tempo de ver quem lançara o venábulo. Detiveram-se para olhar à volta. Ljot saltou imediatamente para cima da pedra e atirou os outros dois venábulos. Uma das flechas não atingiu o alvo, mas a outra matou um homem que seguia à frente de Arne. Ljot gritou então:

« Aqui estou em melhor posição do que se viu meu pai, porque ele teve de lutar contra oito homens, e vocês são apenas três contra mim!

«Da cintura pendia-lhe uma machada de lenhador. Como Arne se inclinasse para ele, o rapaz deu-lhe uma machadada que lhe fendeu a maxila. Um dos companheiros de Arne atirou a sua lança contra Ljot, mas este apanhou a arma no voo e desatou a correr através do declive pedregoso, abrigando-se de rochedo em rochedo de tal sorte que os outros não puderam atingi-lo. Chegado à beira do barranco, saltou por cima do abismo apoiando-se na lança, e correu ao longo do rebordo do alcantil, do outro lado do desfiladeiro. Os cavalos dos homens que tinham sido derrubados espantaram-se e fugiram até ao extremo do caminho. Ljot conseguiu agarrar um deles pela brida no momento em que o animal, em corrida desordenada, ia precipitar-se no fundo barranco. O rapaz saltou-lhe logo para a sela e regressou a cavalo ao lugar do Eyre, onde então habitava.

«Toda a gente do sítio se admirou com a proeza do rapaz, e muitos vaticinaram que Ljot se tornaria um dia célebre por toda a parte com as suas façanhas. E puseram-lhe por tal motivo o nome de Viga Ljot.

Neste momento da narrativa do islandês, Vigdis fez-lhe uma nova pergunta:

Sabes, Helge, o que foi feito dele depois dessa época?

Nunca mais se ouviu falar dele, nos últimos anos. Desde que casou, o seu viver tornou-se tranquilo.

Ah! Casou-se? murmurou Vigdis.

Simrespondeu Helge.

Conheces a mulher dele?

Mal a vi, uma vez. Passava por ser a rapariga mais bonita daqueles sítios. É uma mulher de boa índole e abastada. Depois de se consorciar com ela, Ljot tem-se conservado em sossego na sua herdade.

Vigdis calou-se um momento, e a seguir acrescentou:

Sabes se tiveram filhos?

Sim, ouvi dizer que têm uns três ou quatro.

Após este esclarecimento, Vigdis não fez quaisquer outras perguntas. Mas, quando os islandeses se foram deitar, ela ficou junto à lareira, a olhar para o lume. De repente, sem erguer a vista para o filho, disse-lhe:

Ouviste bem o que estes homens contaram? Estiveram a dar-te notícias de teu pai.

Uivar saltou do seu lugar e exclamou:

É então meu pai aquele que matou três homens no desfiladeiro da serra, quando contava a idade que tenho agora?

Sim, é teu pai, o que tem aquela linda esposa de que falou Helge.

Uivar insistiu:

Que te fez ele, mãe? Deve ser, apesar de tudo, um homem valente. Gostava de o encontrar um dia e mostrar-lhe-ei que tem um filho que se lhe assemelha.

Se te pareces com ele, és no entanto meu filho, e o vosso encontro apenas poderia terminar duma única maneira: seria necessário que viesses depor a cabeça de Ljot sobre os meus joelhos.

Uivar, perante tamanha ferocidade, empalideceu. E acabou por declarar:

Jamais se ouviu dizer que um filho matasse o pai.

Vigdis ergueu as mãos e cruzou-as no peito:

Não queres, pois, vingar-me como eu vinguei meu pai? Fica sabendo que por amor de ti passei tormentos indescritíveis. Ele procedeu de tal maneira comigo que, se eu te dissesse tudo, não mais terias repouso até me trazeres a prova, a que aludi, da minha vingança. De contrário, ter-me-ias menos amor do que eu julgava. Mas faltam-me as forças para continuar a falar destas coisas.

Uivar correu para a mãe e abraçou-se a ela. Então, Vigdis desfez-se em lágrimas e o rapazito exclamou:

Bem sabes que farei sempre o que quiseres que faça.

 

Uivar ia fazer dezassete anos. E disse, um dia, à mãe que tinha grande desejo de viajar um pouco fora da ilha, e de ver mundo. Vigdis achou tal aspiração legítima e prometeu comprar-lhe uma barca boa e grande, mas com a condição de que ele viajaria acompanhado por homens de idade e com experiência.

Informado destes projectos, Illuge a quem tinha morrido a mulher, disse que não lhe desagradaria fazer nova viagem, e falaram muitas vezes, depois daquele dia, nas possibilidades de partida.

Certa vez, pelos fins do Inverno, Illuge deslocou-se a Vadin. Ficou só na sala com Vigdis, e esta perguntou-lhe para que país tencionava dirigir-se. Illuge respondeu:

Não ignoras que é acima de tudo para a Islândia que Uivar deseja fazer-se de vela.

Como Vigdis não desse qualquer resposta, Illuge continuou:

Calcularás com que fim quer ir àquela ilha, mas não deve causar-te surpresa que eu te diga que não me sinto tentado a acompanhá-lo em semelhante aventura.

Vigdis murmurou:

Uivar foi falar contigo a tua casa muitas vezes. Deve ter conversado contigo a respeito de muitas coisas. Falou-te do pai?

Sim, muitas vezes. Só tem um desejo: encontrar o pai, ver o que ele vale, qual a sua maneira de ser. Que dizes, concordas com isto? Foste tu quem deu este conselho a teu filho?

Não disse Vigdis. Após uma pausa, ajuntou: Ljot não sabe que tenho um filho. Preferia que Uivar renunciasse a esta expedição.

Uivar ia passando naquele instante pela frente da porta. IIluge chamou-o e disse-lhe, quando o moço entrou na sala:

Falávamos, tua mãe e eu, da tua expedição à Islândia. Uivar corou e disse precipitadamente:

Não deves surpreender-te, mãe, do meu desejo de encontrar o homem que me deu o ser, e de ver como ele me receberá.

Ele nunca se preocupou connosco exclamou Vigdis, colérica e tem mulher e filhos nessa ilha. Só encontrarás zombarias, se fores a casa dele.

Uivar zangou-se:

Mas eu sou teu filho, mãe, e por conseguinte não permitirei que se zombe de mim. Outrora, incitavas-me à vingança. Não me disseste um dia que a melhor maneira de te vingar consistiria em que eu te trouxesse a cabeça de Ljot e a depusesse nos teus joelhos?

E, dizendo estas palavras, o rapaz saiu da sala. Vigdis exclamou com violência:

Desejaria nunca mais tornar a ouvir o seu nome. Illuge olhou-a e respondeu:

Como deves ter amado esse Ljot para lhe teres tanto ódio ainda hoje! Quase se é levado a pensar que continuas a amá-lo.

Tenho-lhe tanto amor como ao lobo da floresta. Se um dia nos encontrássemos, um de nós teria de morrer.

Illuge pensou para consigo que dificilmente se encontraria debaixo do Sol uma ferazinha daquela força, e perguntou:

Desejarias, então, vingar-te de Ljot?

Sim, é verdade isso.

Nesse caso observou Illuge , acompanharei Uivar à Islândia e velarei por ele como se fosse meu filho. Mas, para tanto, peço-te que te cases comigo quando nós regressarmos.

Vigdis não respondeu imediatamente, e Illuge insistiu:

Não achas que permaneceste já muito tempo viúva, a sofrer pelo abandono desse homem? És ainda nova e bela, podes esperar que a vida te dê muitos dias felizes. Bem o sabes. Eu serei bom e cheio de atenções por ti, e ajudarei o teu filho com todo o meu poder.

Vigdis estendeu-lhe a mão, e ele beijou-lha. Depois, discutiram as possibilidades do casamento. Vigdis falou naquilo a Uivar, que se limitou a dizer que a mãe era o único juiz em semelhante assunto.

 

Mas Uivar não chegou a ir à Islândia. No mar do Norte encontraram nevoeiros e ventos contrários, depois desencadeou-se uma tempestade tão violenta que os viajantes foram obrigados a atirar pela borda fora a maior parte da carga que transportavam, a fim de não naufragarem. Acabaram por perder o leme, e na tormenta que os açoutava tornou-se-lhes impossível dirigir o barco, o qual, levado ao sabor das vagas, foi dar a uma costa rochosa, llluge calculou que aquela costa era a da Escócia. Os homens içaram uma vela e, ajudando-se com os remos, navegaram por entre ilhas, onde a tempestade se fazia sentir com menos fúria.

À boca da noite, deitaram âncora numa enseada. No estuário da ribeira havia uma praia arenosa. Fragas altíssimas elevavam-se em toda a volta daquele local. Tão longe quanto a vista alcançava, não se descobria uma casa. Durante a noite, a tempestade tornou a soprar, a âncora foi arrancada e o barco encalhou, porém a tripulação pôde alcançar terra firme. llluge declarou que, se fossem encontrados por gente com direito aos destroços, perderiam a vida às suas mãos. Opinou, consequentemente, que o melhor seria tentarem reparar o barco de maneira a pô-lo novamente a flutuar, e fazerem-se seguidamente ao largo. Trabalharam todo o dia, e ao anoitecer achavam-se prontos para a partida. Mas, como já não havia alimentos a bordo, Uivar propôs que se fizesse uma incursão pela margem. Para além da enseada, apercebia-se um vale cultivado. Os náufragos dirigiram-se ali, entraram na primeira grande quinta que encontraram, expulsaram os habitantes e tomaram as provisões e vestes de que careciam. Ninguém lhes resistiu, nem eles pensaram pagar o saque feito.

Ao voltarem para a praia, viram uma multidão de homens no seu barco. Illuge disse que deviam ser escoceses, vindos por outro caminho e que, pelo seu número, venceriam os marinheiros que tinham ficado de guarda ao navio.

No mesmo instante, um grupo de cavaleiros desembocou do vale pela entrada que eles haviam, pouco antes, palmilhado.

Illuge observou:

Que pensas desta aventura, Uivar?

Parece-me que sempre uma pessoa se aborrece menos assim do que a pairar ao largo e a ser encharcado pelas vagas! respondeu Uivar, rindo. Mas tratemos de subir sem demora a bordo e de atirar estes intrusos pela borda fora antes de sermos atacados por forças mais importantes.

Illuge entendia que era mais prático expulsar primeiro os escoceses que desciam o vale, e tentarem, depois, a escalada do barco.

Os que estão no barco farão o possível para nos cortarem as mãos com os machados, ao passo que os cavaleiros que vêm avançando para nós não são tantos que nos infundam temor.

Também os não receio disse Uivar , mas o pior que poderia suceder-nos era roubarem-nos o nosso barco, pois ficaríamos aqui como numa ratoeira.

Dizendo isto, o moço meteu-se à água com a maior parte dos seus homens. Protegiam-se com os escudos contra as flechas que lhes atiravam os que se tinham apoderado do barco. Uivar compreendeu a breve trecho que não era coisa tão fácil como supôs trepar a bordo. Os escoceses tinham a vantagem de brandir os machados da parte de cima.

Apesar de os noruegueses se defenderem com bravura, reenviando à origem os venábulos que eram lançados contra eles, só avançavam a muito custo e, entretanto, os cavaleiros escoceses já começavam a entrar na água. Uivar e os companheiros estavam cercados pelos inimigos, e, como a água ainda apenas lhes dava pela cintura, lutavam duramente. Então, Uivar confessou a Illuge:

O teu conselho era bom, pai adoptivo.

Vales bem por dois homens, Uivar respondeu Illuge , e seria muito lastimável que Vigdis perdesse um filho tal como tu.

Assim dizendo, Illuge atirou-se contra o flanco do barco. Próximo da pavesada, achava-se um homem de elevada estatura, de cabelos ruivos, que era o chefe do bando que se apossara do navio. Illuge atirou-lhe com o seu escudo e, num salto, agarrou o escocês pelas pernas. Este último deu-lhe uma machadada na cabeça. Os dois homens rolaram por cima da borda do barco, e Uivar matou o chefe dos assaltantes, ao mesmo tempo que, dentre os restantes, desorientados, uns recuavam e outros se atiravam à água. Deste modo, muitos dos noruegueses conseguiram trepar até ao convés. Uivar foi o último a subir, porque queria içar Illuge para bordo. Mas este disse-lhe:

Isso já não servirá de nada. Trata de te salvar tu próprio. Gostaria que saudasses tua mãe por mim, e que ela soubesse como perdi a vida.

Será com grande desgosto que ela me verá voltar sem ti, Illuge.

Uivar conseguiu escalar os paveses da balaustrada de resguardo e os seus homens ajudaram-no a içar Illuge para bordo, mas este tombou no convés assim que ali chegou. Estava morto.

Uivar achou-se a bordo com treze homens, todos mais ou menos feridos. Os escoceses eram mais de cinquenta, e aglomeravam-se em torno do barco. Enquanto uns vibravam machadadas no costado do veleiro, dando passagem à água que lhe penetrava em ondas no interior, os outros protegiam os companheiros com os escudos e atiravam nuvens de flechas sobre os noruegueses,

Uivar distinguiu naquele instante um grande navio que entrava por entre as ilhas e foi deter-se junto do seu barco. Ao mesmo tempo o rapaz gritou para os companheiros:

A nossa expedição durou pouco, mas devemos estar satisfeitos com o trabalho feito esta tarde. Dez escoceses acabavam de tombar sob os seus golpes.

 

O navio desconhecido lançou âncora, e a equipagem saltou para bordo do barco de Uivar. À frente vinha um homem abaçanado, de elevada estatura, que atirou uma corda sobre os paveses e subiu a bordo, correndo para o mastro contra o qual se apoiava Uivar.

Ao acercar-se, o homem gritou em norueguês:

Sabes bater-te admiravelmente, jovem senhor, e foi uma sorte termos podido vir em socorro de homens como tu e os teus.

Momentos depois, os seus homens enchiam o barco de Uivar, e as coisas tomaram outro aspecto. Os escoceses saltaram ao mar para alcançarem a margem, mas poucos foram os que lá puderam chegar.

Terminado o combate, o estrangeiro atirou os escoceses mortos pela borda fora, e tentou rebocar o barco de Uivar. Mas viu-se logo que o veleiro sofrera avarias demasiadamente grandes e que não poderia aguentar-se no mar. O desconhecido pediu então a Uivar e aos seus homens que se recolhessem a bordo do navio, e, concluído o transbordo, desfraldaram as velas e navegaram para o largo. Favorecia-os naquela altura uma brisa propícia, pois a tempestade acalmara.

O desconhecido mandou tratar dos ferimentos de Uivar e dos companheiros, e pediu que lhe descrevessem toda a batalha. Declarou chamar-se Uspak, que nascera na Islândia, mas que naquela ocasião vivia no Northumberland. A sua tripulação compunha-se de noruegueses e de dinamarqueses estabelecidos igualmente na região que tinha citado.

Quando veio a noite, lançaram âncora num canal e foram-se deitar. Uspak e Uivar partilhavam o mesmo beliche sob o convés. Uivar não conseguia conciliar o sono, porque os ferimentos enchiam-no de dores.

Uspak falou-lhe, então, e disse:

Lutaste como um valente, Uivar, e por certo vens de boa casta. Onde é a tua casa na Noruega, e quem é teu pai?

Uivar respondeu:

Sou da região de Vingulmark. A herdade onde vivo tem o nome de Vadin. Fica perto de Folden.

 

Uspak voltou-se bruscamente para o companheiro:

E teu pai? Como se chama teu pai? Uivar esclareceu:

Não devo ocultar-te, senhor, que sou bastardo. Por isso, uso o nome de minha mãe, Vigdisson: Uivar Vigdisson.

Uspak ficou longo tempo silencioso, e duas ou três vezes pareceu querer reatar a conversa, sem no entanto se decidir a fazê-lo. Uivar não deu por tais perplexidades. Por fim, Uspak disse muito baixo:

Que idade tens, Uivar Vigdisson?

Completarei dezoito anos no início do Verão.

O desconhecido calou-se, e só depois duma longa pausa acrescentou:

Tua mãe ainda vive? Não se casou, Vigdis de Vadin? Uivar respondeu que sua mãe se conservara só, e Uspak tornou:

Gostaria que me dissesses mais alguma coisa a respeito de tua mãe. Deve ser uma mulher de valor, como há poucas, a que soube educar sozinha o homem que tu és. Dize-me, tua mãe ama-te muito?

Uivar informou então:

Quando cheguei aos quinze anos, ela deu-me Vadin e metade dos seus restantes bens, para que ninguém pudesse zombar da pobreza e da fraqueza dum filho natural. Mandou desbravar para sua própria moradia um terreno florestal, e construiu ali um solar a que deu o nome de Berg. Continua, porém, a habitar Vadin. Tens razão dizendo que é uma mulher invulgar, não creio que tenha igual no mundo e, graças a ela, não sofri com a falta de meu pai.

Uivar contou mil pormenores sobre a pessoa e carácter da mãe e, quanto mais ele dizia, mais o interlocutor queria ouvir. Soube assim o que se passara no momento da morte de Gunnar e da vingança de Vigdis. Uivar narrou-lhe tudo. Daquele modo se passou metade da noite para os dois homens, um falando, o outro escutando.

Uma vez terminada a narrativa de Uivar, Uspak disse-lhe:

Deves uma gratidão infinita a tua mãe; ela merece que a estimes e a louves mais do que tudo no mundo. Não tem igual, quer-me parecer, pela coragem e pela inteligência, e nenhuma mulher mostrou querer mais a seu filho do que ela.

É verdade, e espero encontrar-me um dia em circunstâncias de poder compensar a sua bondade para comigo.

Uspak acrescentou ainda:

Perdeste o teu barco e os teus bens, mas, se quiseres passar o Verão junto de mim, não voltarás empobrecido para a Noruega este Outono. Serás dono deste barco em sociedade comigo, e metade da parte do chefe reverterá em teu benefício.

Uivar agradeceu-lhe vivamente, mas pouco depois disse que tencionava ir primeiro à Islândia.

Tens lá algum negócio a tratar? perguntou Uspak. Uivar volveu:

Talvez tu, que vens da Islândia, conheças um homem chamado Viga Ljot Gissursson, de Skomedal?

É com ele o negócio que tens a tratar? disse Uspak no mesmo torn anterior.

É a ele que desejo ver.

É talvez um amigo de tua mãe?

Não é por certo um amigo, e nós nada de bom esperamos dele. Mas gostaria de saber como me acolheria, porque se diz que é ele o meu pai.

Seria um homem bem singular disse Uspak, com um sorriso se não se alegrasse por ver um filho tão belo e corajoso como tu, e é impossível que tenha esquecido uma mulher como tua mãe.

Ele nunca tentou saber de nós disse Uivar e consta-me que tem mulher e filhos na Islândia. Mas desejo muito ir vê-lo da parte de minha mãe, a quem ele seduziu e abandonou.

Uspak explicou, após uma pausa:

Ljot já não está na Islândia. Ouvi dizer que ele deixou a ilha há muitos anos, e sua mulher e os filhos morreram.

Ele era teu amigo?

Não, não foi melhor amigo para mim do que para tua mãe.

Uivar, fatigado, adormeceu.

Horas depois, em dado momento, o outro aproximou-se dele, e pôs-lhe a mão no rosto. Uivar abriu os olhos. Uspak tinha aberto a vigia e o sol da manhã incidia em ondas sobre o rapaz. Uspak, inclinado sobre ele, olhava-o.

Adormeceste, Uivar disse e vim ver como te encontravas, mas torna a deitar-te e dorme, porque um pouco mais de repouso só poderá ser-te útil.

 

Uivar conservou-se junto de Uspak até quase ao fim do Outono, e, durante aquele período, realizaram com os «vikings»1 dinamarqueses incursões nas costas marítimas dos povos de Inglaterra, da região dos Kinnmare, e da França, amontoando assim grandes riquezas. Uivar Vigdisson demonstrou sempre em tais razias grande coragem, e isto deu-lhe largo renome.

No Outono, Uspak e Uivar estiveram uma temporada em casa de Jarl Sigvard, no Northumberland. Era um amigo de Uspak, e dispensou magnífico acolhimento a Uivar, a quem ofereceu ricos presentes, decerto influenciado pelas referências do seu amigo navegador.

Numa noite em que estavam reunidos na habitação de Uspak, este perguntou ao jovem companheiro:

Desejas realmente ver teu pai?

No tempo em que eu vivia em casa respondeu o rapaz era esse o meu maior desejo. Sentia-me profundamente infeliz por ser um bastardo, e pensava que valia menos que os outros que podiam dar-se a satisfação de respeitar e honrar os pais. Cismava constantemente em ir à sua procura e em exigir-lhe reparações por todos os danos que causou a minha mãe e a mim, e pela injustiça que lhe fez sofrer.

Pode muito bem ser que o encontres um dia disse Us-

 

  1. O nome de «vikings», segundo alguns eruditos, não tem qualquer significado racial, e designava apenas, em acepção de classe, os «comerciantes e navegadores» escandinavos. (N. do T.)

 

pak em voz baixa. Mas que sucederia se ele te recebesse com ternura, e exultasse com o facto de ter um filho como tu?

Não teria nada que imaginar-se merecedor de encómios por isso, e eu não lho agradeceria exclamou Uivar. Não lhe devo mais nada, que eu saiba, além da minha vida. E arrisquei com bastante frequência esta vida, pelo que não lhe ligo grande importância. Aprendi a teu lado que podia passar sem ele, e é a ti que devo esta convicção, tantas são as tuas bondades para comigo, Uspak. Não necessito de meu pai, nem do seu carinho, e pouco me importa que ele seja ou não um miserável.

Uspak escutava, com a cabeça oculta entre as mãos. Ao fim de momentos, perguntou:

E tua mãe? Que diria ela se teu pai, tendo ouvido falar de ti, fosse a Vadin pedi-la em casamento?

A falar verdade, creio que perderia o tempo, dirigindo-lhe tais interrogações. Um dia, minha mãe declarou-me que só considerava uma justa reparação ter a cabeça de meu pai, degolado, entre as suas mãos. Mas, em regra, ela nada dizia a respeito dele, e, quando eventualmente isso sucedia, ficava depois triste e melancólica por longo tempo. Devo dizer, não obstante, que minha mãe não concordou com a minha ida à Islândia em busca do meu progenitor.

Uspak mantinha-se sentado na mesma atitude, e por fim observou:

 

É bem duro o que acabo de te ouvir, Uivar! O rapaz ripostou:

 

Também foram bem cruéis as condições de vida que ele impôs a minha jovem mãe, quando se foi da região e a abandonou com um filho dele nas entranhas. Além de que, nunca mais procurou informar-se a respeito dela.

 

Mas sabes, com certeza, que ele nunca procurou notícias a seu respeito?

 

Minha mãe, pelo menos, repetiu-me várias vezes que ele era um homem mau e sem coração.

 

Essas palavras, vindas dum filho, são na verdade duras, Uivar suspirou Uspak.

 

Não sei dizer outras respondeu Uivar, rindo talvez por me parecer com ele.

 

Uspak olhou-o sem responder e não falaram mais de Ljot, mas Uspak man teve-se pensativo e taciturno naquela noite,

 

Antes de se ir deitar, o companheiro de Uivar tirou do cofre um manto de seda vermelha bordado a fio de oiro e entregou-o ao rapaz, dizendo:

 

Faço-te presente dele. Uivar aceitou e agradeceu-lhe a dádiva.

 

Pelos fins do Outono, quando Uivar manifestou vontade de regressar a casa, Uspak brindou-o com um navio completamente aparelhado, e deu-lhe ainda opulentos presentes, entre eles, em sinal de amizade, um manto de seda verde com fivelas de oiro e forrado com uma pele felpuda preciosa.

 

Em troca, Uspak pediu a Uivar que lhe restituísse um velho manto de seda vermelha que lhe havia emprestado.

 

Uspak agradeceu ao seu anfitrião todas as provas de estima que lhe dera, e pediu a Uspak que, dentre a presa acumulada por ele próprio no Estio, escolhesse o que mais lhe agradasse.

 

Tenho maior soma de bens do que preciso respondeu Uspak , mas ser-me-ia grato que me oferecesses o bracelete que tens no braço esquerdo, como lembrança tua.

 

Uivar tirou do braço a sua argola de oiro, e deu-a a Uspak, dizendo:

 

Não tem grande valor. Uso-o, porque foi minha mãe que mo deu, mas é um objecto excessivamente medíocre para ser oferecido, e peço-te que escolhas outro qualquer mais valioso.

 

Não quero mais nada respondeu Uspake o que me deste tem grande valor para mim por ser o que trazias no dia em que tão valentemente te defendeste no estuário escocês.

 

Uivar disse, então:

 

Certamente Vadin não é tão atraente como o domínio de Jarl. Mas dar-me-ás grande alegria aparecendo por lá e aceitando a minha hospitalidade em casa de minha mãe.

 

Não deixarei de ir visitar-te, podes estar certo disso, e não tardará muito que não nos tornemos a ver. Eu iria a Vadin ainda mesmo que não mo pedisses.

 

Dizendo estas palavras, Uspak abraçou e beijou Uivar, e desejou-lhe boa viagem.

 

O moço fez-se de vela para a Noruega, e quatro dias depois entrava no golfo de Folden.

 

Vigdis sentiu enorme alegria tornando a ver o filho, e não se cansava de lhe ouvir contar as aventuras. Uivar falava principalmente de Uspak, que, na sua opinião, era um homem extraordinário e o melhor dos amigos. Vigdis declarava com frequência que seria para ela uma grande honra receber a visita de Uspak, se bem que, acrescentava, nunca saberia agradecer bastante ao homem que lhe salvara a vida do filho e lhe dispensara tantas bondades.

 

Chorou muito a morte de Illuge e realizou uma cerimónia fúnebre em sua honra, prometendo que cuidaria da educação de Olav e Ingebjorg, os filhos de Illuge, como se fossem seus. A partir daquele momento, os dois rapazitos passaram a viver em Vadin. O ano estava no fim, e ia celebrar-se a festa do Natal. Durante a noite comemorativa do nascimento de Nosso Senhor, os habitantes da região dirigiram-se à capela para assistirem à missa. Vigdis e Uivar também lá compareceram, tendo saído de Vadin a cavalo, seguidos duma multidão de cavaleiros. Naquele ano caíra muita neve antes do Natal, fazia muito frio e a Lua cheia brilhou durante as festas. O luar era tão luminoso que a igreja pareceu obscura a Vigdis quando ela lhe transpôs o limiar com o filho, a despeito dos círios que brilhavam diante das imagens santas.

 

O padre cantou numa bela voz ante o altar, e os meninos de coro baloiçavam os turíbulos, que espalhavam um odor agradável. As pessoas que entravam dobravam o joelho e persignavam-se com água benta, murmurando orações.

 

Quando Vigdis ergueu a cabeça e se levantou, reparou num homem que se encontrava ao fundo da capela. Abrigava-se numa capa escura, que segurava por baixo do manto, e estava um pouco inclinado para a frente, de modo que Vigdis não lhe via do rosto senão os olhos sob a cabeleira negra que lhe caía sobre a fronte. Mas adivinhou no mesmo instante que aquele homem era Ljot. Os olhos dele fixavam-na insistentemente, e, quando ela encontrou o seu olhar, viu-lhe tremer as mãos a ponto de as deixar pender ao longo dos flancos. Estava pálido como um defunto.

 

Vigdis pôs-se a tremer, por seu turno, e foi-lhe necessário encostar-se ao umbral da porta. Parecia-lhe que o solo lhe oscilava sob os pés. Já não era o chão da capela, mas um rio vermelho que deslizava por entre a assistência. Diante do altar estendia-se um lago de sangue. De súbito, Uivar ergueu-se e, inclinando-se diante do forasteiro, estendeu-lhe a mão, sorrindo, cheio de prazer. Vigdis teve imediatamente a percepção de que Ljot havia adoptado o nome de Uspak.

 

Quis avançar pela igreja, mas as forças faltaram-lhe. Arrastou-se ao longo das paredes, segurando-se aos balaústres. Chegada a uma reintrância do muro, tentou ajoelhar-se, mas as mulheres que ali estavam afastaram-se para lhe abrirem passagem na direcção do altar. Voltando-se, então, viu Ljot, que continuava de pé junto da porta e que não cessava de a fitar. Uivar achava-se ao lado dele. Vigdis deu ainda alguns passos e caiu diante do santuário, ocultando o rosto com as mãos e descansando a cabeça de encontro ao muro.

 

Enquanto o cântico religioso se elevava e diluía à sua volta e temendo o encontro iminente que a enchia de terror, sentia-se percorrer de estremecimentos gélidos ou febris. Parecia-lhe que fora na véspera que se tinham encontrado pela primeira vez, e tudo que se passara entre eles surgia-lhe na memória como no primeiro dia. Os sentimentos, que nela se hipertrofiaram com o tempo, foram levados como a floresta e a vegetação da montanha é arrastada pela avalanche: o rochedo fica nu. Vigdis obteve a certeza de que, após tantos anos, não cessara de esperar uma solução para o drama que entre ela e Ljot se desenrolara.

 

Depois, manteve-se acabrunhada diante do altar, sentindo aumentar o pavor por ter de falar àquele homem. Havia uma abertura na parte inferior da parede, perto do lugar onde se ajoelhara.

 

Tinham retirado o tapume de madeira daquela exígua porta. Vigdis via cintilar a neve no exterior e ouvia o nitrir dos cavalos que faziam ressoar os cascos das patas no solo. Então, sem forças para continuar ali, ergueu-se a meio do ofício divino e fugiu da igreja.

 

A Lua vogava muito alto no céu. Vigdis correu sobre a neve para o lugar onde tinham amarrado os cavalos. Soltou o que lhe pertencia e conduziu-o até à paliçada do cemitério. Mas foi alcançada por dois homens vindos do templo com uma tal precipitação que lhe deixaram a porta aberta. O brilho das luzes das velas e o som dos cânticos jorraram no exterior com eles.

 

Ljot segurou o cavalo de Vigdis pela rédea, no momento em que a mulher, desorientada, ia fugir a galope, e rogou:

 

Concede-me uns momentos de atenção, Vigdis. Ela olhou-o do alto da sela, e retorquiu:

 

As tuas malfeitorias são agora tão numerosas, que se tenha tornado necessário ocultares o nome?

 

Antes de Ljot poder responder, ela fez recuar o cavalo tão bruscamente que o homem largou a rédea do animal.

 

Vigdis partiu na direcção do norte, fazendo galopar a montada até ao limite das suas forças. Chegada a Vadin, não se deteve, descreveu uma curva e continuou o galope até à sua vivenda de Berg. A casa era apenas habitada por um feitor, a mulher deste e alguns servos. Vigdis penetrou na sala quase vazia, porquanto as edificações haviam sido concluídas pouco tempo antes. O mobiliário compunha-se somente de bancos em redor da parede e uma mesa. Vigdis tratou de ir acender o lume na lareira e de barricar a porta da sala. Passou a noite de Natal completamente sozinha.

 

Após a fuga brusca de Vigdis, Ljot e Uivar ficaram um momento a segui-la com a vista. Ljot abraçou o filho, osculou-o na fronte e disse:

 

Que Deus te abençoe, meu querido filho, porque não sei se nos tornaremos a ver ainda.

 

Uivar beijou-lhe a mão e exclamou:

 

Não sei o que queres dizer, mas, se verdadeiramente és meu pai, não posso crer que desejes abandonar-nos.

 

Ljot respondeu:

 

Não me atrevo a esperar que tua mãe consinta em me falar, e tu não pronunciaste palavras excessivamente severas contra teu pai no dia em que evocaste o passado nesse dia eu queria dizer-te quem era. Depois, pareceu-me que seria melhor que tivesse uma conversa com Vigdis antes de te chamar meu filho. Mas fixa bem que eu ignorava a tua existência. Foi quando te ouvi dizer que Vigdis era tua mãe que a luz se fez no meu espírito. Dize a Vigdis que está bem vingada, visto que é forçoso separar-me de ti. Assegura-lhe, também, que eu não fui jamais feliz um só dia depois do nosso último encontro.

 

Uivar suspendeu-se do pescoço do pai e suplicou-lhe que o acompanhasse a Vadin. Sua mãe não deveria esquecer que Ljot tinha salvo a vida de Uivar, e que lhe dispensara um auxílio cheio de estima. Ljot acabou por ceder aos rogos do filho, e seguiram nos cavalos até Vadin, mas não encontraram Vigdis.

 

Ljot inclinou-se na sela e observou:

 

Bem vês, Uivar, que isso não servirá de nada. O nome de Uspak é realmente o que me convém, porque nenhum homem agiu com menos argúcia do que eu, e passou demasiado tempo para poder reparar o mal que fiz.

 

Uivar desceu da montada e insistiu para convencer Ljot a entrar na casa, dizendo:

 

Minha mãe foi provavelmente para Berg. Entra, peço-te, meu pai, a fim de tomares algum alimento e de repousar.

 

Porém, Ljot mal tocou no repasto, e não pronunciou uma palavra. No dia seguinte de manhã, Uivar anunciou a intenção de ir a Berg e de falar a sua mãe, enquanto Ljot o esperaria em Vadin.

 

Ljot ergueu-se, no entanto, e disse:

 

É necessário que este assunto termine como parece inevitável; nada poderá modificar o curso das coisas. Quero falar-lhe, eu próprio, que só este desejo tive durante dezassete anos.

 

Saiu acompanhado do filho e ambos saltaram para as selas dos cavalos, galopando seguidamente na direcção de Berg, com toda a celeridade que puderam obter das suas montadas.

 

Encontraram a porta da sala barricada, mas Uivar bateu, gritando:

 

Escuta, mãe, tenho que falar-te de coisas muito importantes.

 

Vens sozinho? perguntou Vigdis do interior da habitação.

 

Meu pai está junto de mim respondeu Uivar.

 

Não quero ouvi-lo.

 

Mas Uivar insistiu, em voz muito alta:

 

Exijo-te, mãe, e a ele igualmente, que me digam agora porque não tenho pai. Não me irei embora, nem permitirei a Ljot que se vá, sem que nos abras esta porta.

 

Vigdis correu o ferrolho e deixou-os entrar. Os olhares de Uivar iam de um a outro, e disse:

 

Meu pai tem os cabelos grisalhos, e tu envelheceste, mãe, como se nota pelas rugas que circundam os teus olhos. Haveis passado por muitas provações desde o vosso último encontro. Se o que então se partiu pudesse ser reparado, eu seria bem feliz, porque os amo a ambos com um grande amor. Vigdis ergueu a cabeça:

 

Os meus olhos envelheceram à força de chorar disse ela , ninguém me fez mal a não seres tu, Ljot.

 

Este respondeu:

 

No entanto, a tua sorte foi bem melhor do que a minha, Vigdis, pois que ficaste aqui com teu filho. Compreendo bem que não pudesses amar-me depois de haver traído a tua confiança, mas eu continuava a querer-te. O meu desgosto acompanhava-me todos os passos dado que não podia ir ao teu encontro.

 

Vigdis teve um riso duro:

 

E tua mulher, que diz ela de ti, que vás pelos caminhos do mundo para ver as tuas amantes?

 

Era a melhor das mulheres e a mais digna de ser amada. Actualmente, já não vive. Foi bem desditosa na nossa vida em comum. Era em ti que eu pensava incessantemente, e mostrei-lhe pouco amor. A sua lembrança pesa-me mais do que tudo, porque ela foi privada de toda a alegria sem ter disso culpa. Podes consolar-te sabendo que estás bem vingada; vi morrerem afogados dois filhinhos meus, perdi tudo que me era caro, conforme me tinhas desejado, quando me amaldiçoaste.

 

Vigdis repuxou com violência o seu manto, cuja fivela se lhe partiu sobre o peito, e gritou:

 

Que sabes tu, Ljot, da grandeza da minha dor; que sabes tu, meu filho, da paixão com que aspirei à vingança? Jamais sofreste, Ljot, o que sofri pela minha impotência, vendo crescer meu filho, na sua semelhança com o homem que eu desejaria ver arrastado e feito em pedaços por cavalos fogosos. Não foste tu quem correu para a corrente caudalosa do ribeiro, a fim de te afogares em certa noite fria do Inverno. Não havia, então, para mim outro meio de me libertar da minha desgraça. Achas que te deve um grande amor o rapaz que eu dei ao mundo em cima dum montão de pedras na floresta, sem ninguém ao pé de mim para me dar sequer uma gota de água em meio das dores que me torturavam? Tu navegavas, entretanto, para regiões longínquas, lamentando veres-te separado de mim. Belo socorro as tuas saudades, não haja dúvida, quando me trouxeram Gunnar coberto de sangue, ferido de morte, insultado e escarnecido pela vergonha que lhe fora infligida contra minha vontade. bom socorro o teu amor pela criança e por mim, quando os inimigos fizeram deflagrar em Vadin o fogo em que meu pai foi queimado vivo, na noite em que eu, transportando o pequenito, tive de fugir em esquis para a floresta selvagem onde, expulsada dali pelos lobos, me vi constrangida a refugiar-me numa cabana de malteses!

 

«Julgavas, talvez, que me oferecias uma reparação plena e completa na ocasião em que voltaste a procurar-me para me pedir que fosse contigo para a Islândia. Como não quis aceitar a tua proposta, casaste-te com outra rapariga cuja beleza e riqueza eram dignas de ti. Eu, durante esse tempo, para aqui estava, sem poder responder às recriminações de meu pai, às perguntas de meu filho, que me interrogava a respeito de seu pai, dado que jamais tive ânimo de falar da afronta que me fizeste. Recompensas mal aqueles que te estimaram, Ljot, e és certamente o pior e o menos compreensivo dos homens.

 

O semblante de Ljot pusera-se branco como a neve batida pela borrasca. E só após uma longa pausa conseguiu dizer:

 

As tuas palavras são mais cortantes do que a faca com que me golpeaste na ocasião do nosso último encontro. Eu poderia objectar relembrando-te coisas de que tu só, pela tua irreflexão e obstinação, foste culpada. Mas já não vale a pena e, para te dar satisfação, morreria hoje de bom grado. Repito-te, porém, Vigdis, que o peso da minha tristeza não era menor do que o da tua, porque ignoras a vida desgraçada que pode ter aquele cujo único desejo é reencontrar um ente querido.

 

É certo replicou Vigdis que apenas sei do amor o que me ensinaste naquela tarde em que estivemos no cabeço dos sacrifícios. Desde então, todos os homens que me pediram em casamento só pavor me inspiraram...

 

Uivar interrompeu-a:

 

Como quer que seja, parece que apenas vos haveis encontrado para desdita de ambos... Mas lembra-te, mãe, de que foi ele quem me salvou a vida. Nunca um pai demonstrou a seu filho maior carinho do que ele.

 

Dizendo estas palavras, Uivar rompeu a soluçar.

 

Vigdis olhou o filho e disse:

 

E tu não esqueças que, um dia, prometeste vingar-me. Ljot, sem esperar a resposta de Uivar, disse:

 

Pensava que seria possível reconciliarmo-nos por causa de Uivar, mas vejo perfeitamente que não me perdoarás, fiz-te um mal excessivo. Regressarei aos lugares donde venho, mas Uivar herdará todos os meus bens.

 

Vigdis exclamou, colérica:

 

Um dia prometeste-me tudo, e eis que voltas agora para me roubar o que possuo. Entreguei aos lobos e às águias esta criança que me forçaste a conceber. Os nossos servos encontraram-na e preservaram-lhe a vida. Mais tarde, tive piedade do inocente, sem defesa, tal como eu me vi na tua frente. Para salvar o meu filho, acho-me eu própria enferma e mutilada. Criei-o e amei-o durante dezoito anos. E agora pretendes tirar-mo!

 

Eu não penso em tirar-to objectou Ljot. É a ti que ele deve seguir, são os teus conselhos que ele deve escutar, porque não tenho nenhum direito sobre ele, mas podes perfeitamente consentir-lhe que me estime também. Podes igualmente permitir que eu lhe dê tudo que tenho de algum valor. E nunca mais tentarei tornar a vê-lo.

 

Não aceito quaisquer partilhas contigo tornou Vigdis erguendo a mão mutilada e não quero filho teu. Escolhe, Uivar, aquele de nós dois a quem queres pertencer.

 

Eu não posso escolher exclamou o rapaz, soluçando.

 

Nesse caso, escolheste Ljot observou a mãe, dirigindo-se para a porta. Uivar correu, porém, atrás dela e tomou-a nos braços.

 

Onde vais tu, mãe querida? Vigdis respondeu:

 

Não sei. Melhor fora que tu e eu não tivéssemos saído vivos da floresta naquela noite, se houver agora de me ver só na minha velhice e viver o momento em que me abandones por um estranho. Na verdade, pareces-te com teu pai, e não admira que o escolhas.

 

Mãe exclamou o filho , bem sabes que cumprirei a tua vontade e que não voltarei a ver meu pai.

 

Eu não sei se sou tua mãe suspirou Vigdis. Não se te assemelhava a criança que concebi no ódio e na dor. Deves ser antes aparentado com Aesa, e terás sangue de servos. Submetes-te se encontras mais forte do que tu...

 

Ljot avançou para ambos, e, com voz trémula disse por sua vez:

 

Sei eu também, porventura, se Uivar é meu filho ou de Kare de Grefsin? Faze o que tua mãe quer, Uivar!

 

Vigdis voltou-se vivamente para Ljot, mas este, agarrando Uivar pelo braço, levou-o consigo apressadamente para o exterior.

 

Ljot e Uivar marcharam através dos bosques nos cavalos, sem se olharem nem trocarem palavra. Mas, ao fim de algum tempo, Uivar acabou por dizer:

 

Certamente nunca esperei uma separação com palavras infamantes, após a vergonha que infligiste a minha mãe.

 

Oh! as coisas passam-se como ela quis respondeu Ljot. É natural que se cumpra agora a sua vontade.

 

Dizendo isto, apeou-se do cavalo e amarrou-o a uma árvore; depois pegou na sua espada e no seu escudo, e convidou Uivar a fazer o mesmo. Acrescentou que o cabeço dos sacrifícios a que Vigdis fizera referência se encontrava perto, e que podiam efectuar o recontro naquele lugar. Ali ninguém pela certa os perturbaria. Uivar seguiu-o sem responder e andaram um tracto de caminho sobre a neve.

 

Chegados ao cimo, Ljot escolheu o local que se lhe afigurou conveniente para o combate. Atirou a primeira estocada e atingiu o escudo de Uivar. Este exclamou:

 

Outrora, tive ensejo de te ver esgrimir com mais destreza, Ljot.

 

Estou cansado e fraco respondeu Ljot , mas tu és novo, e inexperiente num combate singular, e desta maneira as nossas possibilidades igualam-se. Trata de me atirar golpes decisivos, porque eu também não te pouparei. Porém, é necessário que este recontro a que Vigdis nos impeliu se cumpra segundo o seu desejo.

 

Uivar brandiu a sua arma, ao mesmo tempo Ljot deitou fora o escudo e pegou na espada com as duas mãos. Entretanto, Uivar atingia-o no ombro esquerdo e o braço de Ljot pendeu inerte. A violência do golpe obrigou o ferido a procurar, vacilante, apoio contra uma árvore vizinha. Uivar, vendo o sangue a correr do ferimento que lhe fizera, largou a sua espada e o escudo, e, muito pálido, exclamou:

 

Isso basta. Não continuarei a bater-me contra ti.

 

Não bastavolveu Ljot, resvalando até ficar de joelhos. Uivar, voltado para ele, com a vista ofuscada pela luz do Sol

 

que lhe batia no rosto, não viu bem o que se passava. Ljot tornara a deitar a mão à espada, apoiou o punho desta contra uma grande pedra, e voltou-lhe a ponta contra o próprio peito. Em seguida, atirou-se sobre ela num desesperado impulso, e no mesmo instante rolou sobre a neve.

 

Uivar correu para ele, soergueu-o, apoiou-o contra um rochedo e depois disse:

 

Eu não me teria jamais batido contra ti, se não tivesses dito o que disseste em relação a Kare de Grefsin.

 

Ljot sorriu na sua agonia, e murmurou:

 

Era precisamente o que eu previa, e só por essa razão pronunciei tais palavras. Mas não te aflijas, Uivar. Era preciso que isto acabasse assim. Queira Deus, meu filho, que não herdes um destino tão inclemente como o nosso. E, agora, faze a vontade a tua mãe. Há muito tempo que aspiro a repousar a minha cabeça nos seus joelhos.

 

Poucos instantes depois, dobrando-se sobre si próprio, Ljot morreu.

 

Vigdis andava dum lado para outro pela sala. Punha e tirava sucessivamente o manto. Mas gelava no exterior e a geada era tão forte que se ouvia o sussurro da queda nas paredes. Desistindo da ideia de sair em busca do filho, decidiu sentar-se junto da lareira. Mas, de momento a momento, erguia-se para ir à porta olhar o exterior. Entretanto, ia-se pondo o Sol e o seu disco vermelho esbatia-se na bruma gelada.

 

De súbito, viu um cavaleiro que marchava pela orla do bosque e reconheceu Uivar. Vinha só e avançava passo a passo. Vigdis sentiu tremer os joelhos, e voltou para o lugar junto do lume.

 

Não teve ânimo de levantar os olhos quando ouviu o filho abrir a porta. Trazia um embrulho que deixou cair pesadamente sobre os joelhos de Vigdis, em seguida ao que, sem proferir palavra, se afastou dela, indo meter-se no quarto, cujo ferrolho fechou por dentro.

 

Vigdis conservou-se sentada, pousando as mãos sobre o objecto que lhe repousava no regaço e que se encontrava envolto num manto de seda vermelha que ela reconheceu: era o que tinha bordado um dia e que oferecera a Veterlide.

 

O manto, endurecido pela geada, soltou como que um gemido quando ela tentou separar-lhe os rebordos para o abrir. Renunciou à tentativa e retomou a anterior imobilidade. Mas daí a momentos a geada começou a fundir, e do embrulho correu água e sangue, molhando os joelhos de Vigdis. Esta abriu então o embrulho e viu que tinha a cabeça de Ljot entre as mãos.

 

Primeiro, distinguiu a nuca, e depois voltou a cabeça para lhe poder ver o rosto. Os cabelos caídos sobre a fronte estavam colados à pele. Afastou-os e, com uma aba do manto, enxugou o sangue. Enquanto fazia isto, aflorou com os dedos a boca de Ljot, que lhe pareceu mesquinha e emagrecida, e lhe sobressaía, violácea, no rosto bacento. Tentou erguer-lhe as pálpebras e ver-lhe os olhos, mas estavam mortos e sem expressão.

 

Recordou-se do instante que passara a olhar o cadáver de Eyolf Arnesson, e de não ter então sentido qualquer pesar. Mas, quanto mais olhava a cabeça de Ljot, maior era a tristeza que a invadia. Aquele rosto estava bem envelhecido e marcado pelo sofrimento. Não encontrava qualquer consolo para a sua desdita naquela mísera cabeça decepada. Não era para isso que ela tinha sofrido e lutado durante tantos anos após a morte do pai.

 

Vigdis tornou a cobrir-lhe o rosto e colocou o embrulho a seus pés. Em seguida ergueu-se e foi bater à porta de Uivar.

 

Este não respondeu quando ela o chamou.

 

Insistiu em pedir-lhe que abrisse a porta, mas em vão, e ante aquela recusa decidiu ir novamente sentar-se, com as mãos apoiadas nos joelhos ensanguentados.

 

Veio a noite. Uivar abriu a porta e atravessou a sala, sem distinguir a mãe, pois o lume estava quase apagado. O moço, que envergava um trajo, de viagem, dirigiu-se para o pátio da casa. Vigdis levantou-se e seguiu-o. E quando o viu tirar o cavalo da cocheira e pôr-lhe a sela, aproximou-se do filho.

 

O luar era muito claro e ela notou naquele instante, com uma acuidade com que jamais o fizera, a grande semelhança de Uivar com Viga Ljot.

 

O rapaz estava pálido como um defunto. Vigdis desejava interrogá-lo sobre as circunstâncias do combate, mas não se atreveu, limitando-se a dizer:

 

Tencionas partir para alguma viagem?

 

Sim respondeu o filho.

 

Vais para Vadin? perguntou ainda.

 

Sim, mas irei para muito mais longe amanhã, porque não desejo continuar a viver nestes sítios.

 

Vigdis ergueu a vista, e acrescentou:

 

Não queres ficar junto de mim?

 

Mãe, demonstrei-te a minha gratidão pelo teu amor, conforme me tinhas pedido um dia que fizesse volveu Uivar. Doravante não me seria possível dar-te qualquer alegria, e melhor é que me deixes partir.

 

Não fales desse modo suplicou a mãe, que continuou após uma pausa: Se não desejas tornar a ver-me, eu ficarei em Berg até que queiras, mas não deixes esta terra em pleno Inverno.

 

Ser-me-ia insuportável permanecer nestes lugares. Passaram-se neles tantas coisas cruéis, que a sua lembrança impedir-me-ia de me sentir bem em Vadin.

 

Vigdis enlaçou nos braços o pescoço do cavalo e amparou-se de encontro ao animal. Não se atrevia a insistir para reter o filho, mas o coração pesava-lhe no peito como uma pedra, pois já não duvidava de que a resolução do moço era irrevogável. Enquanto se apoiava ao animal, lembrou-se de repente da noite em que dera o filho ao mundo sem ter junto de si nenhum ser vivo a não ser um humilde cavalo a que se amparara.

 

Já não gostas de mim, meu filho? murmurou ela.

 

Gosto respondeu Uivar. Mas agora é necessário que me deixes partir. E após uma pausa, acrescentou: Peço-te ainda uma coisa. Por amor de mim, esforça-te por fazer a Ljot um enterro decente.

 

Prometo fazer o que desejas disse Vigdis. Uivar disse ainda:

 

Não me agradeças a sua morte, foi ele próprio que se matou.

 

Já com as rédeas na mão, ocorreu-lhe de súbito inquirir:

 

Responde à pergunta que te faço, mãe: tiveste tu jamais amor a Viga Ljot?

 

Vigdis desatou a soluçar e ocultou o rosto no pescoço do cavalo. Depois, disse por entre lágrimas:

 

Como poderia eu odiá-lo durante tantos anos se... Ele era, entre todos os homens, o único a quem eu quereria dar o meu amor, e isto constituiu o meu tormento mais cruel...

 

Uivar inclinou-se na sela, ergueu o rosto de sua mãe e beijou-a. Então, ela perguntou-lhe:

 

Voltarás um dia para junto de mim?

 

Se eu viver respondeu Uivar , voltarei. Mas é tempo de abalar, mãe.

 

Vigdis largou o cavalo e Uivar deixou-a.

 

A partir daquele dia, Vigdis Gunnarsdatter passou a habitar na sua casa de Berg. Mandou sepultar Ljot Gissursson perto da igreja que mandara construir, e sobreviveu dez anos ao homem que por amor dela fez da vida um rosário de amarguras até que lhe pôs fim. Durante aquele período, viveu sempre só e não via ninguém.

 

Mas no último ano, quando ela adoeceu, Ingeborg Illugesdatter, a quem criara como filho, veio instalar-se junto dela e ficou em Berg até ao seu passamento. Olav e o irmão, Ingebjorg, tomaram posse de Vadin após a morte de Vigdis. Esta assim o decidira, mas, no caso de Uivar regressar, os dois irmãos obrigavam-se a entregar-lhe as propriedades ou a transferi-las para os seus herdeiros legítimos, se os houvesse.

 

Contudo, Uivar Ljotsson nunca mais deu notícias. Os habitantes da região de Aslo concluíram, uma vez que ele prometera a sua mãe que voltaria e nunca mais ninguém soube dele, que Uivar teria perecido em qualquer ponto do estrangeiro. Olav e Ingebjorg conservaram Vadin e fizeram amplas dádivas à igreja que se construiu próximo de Frysja em consequência de ter ardido a capela de madeira. Deram também grandes auxílios para a igreja, construída de pedra, que se edificou ao norte do grande lago. Foi consagrada a Santa Margarida e daí em diante o vale tomou o nome de Margretadal. Vigdis foi sepultada perto desta última igreja.

 

                                                                                Sigrid Undset 

 

 

                      

O melhor da literatura para todos os gostos e idades

 

 

              Biblio"SEBO"