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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


VINCULO DE SANGUE / Patricia Briggs
VINCULO DE SANGUE / Patricia Briggs

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

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Como acontece com a maior parte das pessoas que têm os seus próprios negócios, trabalho longas horas desde manhã cedo. Portanto, quando alguém me telefona a meio da noite, é bom que esteja a morrer.
— Olá, Mercy — disse-me Stefan no seu tom afável. — Gostava de te pedir um favor.
Stefan tinha batido as botas há muito tempo, portanto não vi qualquer razão para ser simpática.
— Atendi o telefone às — espreitei com a visão turva os números vermelhos no meu relógio de cabeceira — três da manhã.
OK, o que eu disse não foi exatamente isso. É possível que tenha acrescentado algumas daquelas palavras que uma mecânica aprende para depois dirigir a parafusos recalcitrantes e alternadores que lhe caem nos dedos dos pés.
— Até podias pedir um segundo favor — continuei —, mas preferia que desligasses e me voltasses a telefonar a uma hora mais civilizada.
Riu-se. Talvez tivesse pensado que estava a tentar ter graça.
— Tenho um trabalho em mãos, e creio que os teus talentos especiais seriam um elemento muito valioso na garantia do sucesso da tarefa.
As velhas criaturas, pelo menos segundo a minha experiência, gostam de ser um pouco vagas quando pedem a alguém para fazer alguma coisa. Sou uma mulher de negócios, e acredito na ideia de ir aos elementos concretos o mais depressa possível.
— Precisas de uma mecânica às três da manhã?
— Sou um vampiro, Mercedes — replicou suavemente. — Três da manhã ainda é horário nobre. Mas não preciso de uma mecânica, preciso de ti. Deves-me um favor.
Tinha razão, para o diabo com ele. Tinha-me ajudado quando a filha do lobisomem Alfa local fora raptada, e avisara-me que iria cobrar o favor.
Bocejei e sentei-me, abdicando de qualquer esperança de voltar a dormir.
— Muito bem. O que é que eu posso fazer por ti?
— Tenho de transmitir uma mensagem a um vampiro que está aqui sem a autorização da minha senhora — disse, indo direto ao assunto. — Preciso de uma testemunha da qual ele não se aperceba.

 


 


Desligou sem obter uma resposta, e sem sequer me dizer quando me ia buscar. Era bem feito para ele que eu simplesmente voltasse a dormir.
Resmoneando comigo mesma, vesti-me à pressa: umas calças de ganga, a t-shirt do dia anterior adornada com uma mancha de mostarda e duas peúgas com apenas um buraco. Depois
de estar mais ou menos vestida, segui para a cozinha a arrastar os pés e enchi um copo com sumo de arando.
Era noite de Lua cheia, e o meu colega de casa, o lobisomem, estava na rua com o bando local, portanto não tinha de lhe explicar por que razão ia sair com Stefan. O que era
bom.
Samuel não era um mau companheiro de casa, mas tinha tendência para se tornar possessivo e ditatorial. Não que o deixasse levar a dele avante, mas discutir com lobisomens
requer uma certa subtileza que me faltava. Espreitei o relógio de pulso: 03:15.
Apesar de ter sido criada por eles, não pertenço à espécie dos lobisomens, não sou lobi-nada. Não sou uma serva das fases da Lua, e na forma de coiote, que é a minha segunda
forma, pareço-me com qualquer outro canis latrans: tenho as cicatrizes de chumbo grosso no rabo a prová-lo.
Os lobisomens não podem ser confundidos com os lobos: os lobisomens são muito maiores do que os seus homólogos não preternaturais — e muito mais assustadores.
O que eu sou é uma caminhante, embora esteja certa de que em tempos tenha existido outro nome para me designar — um nome índio perdido quando os europeus devoraram o Novo
Mundo. Talvez o meu pai me pudesse ter dito qual era se não tivesse morrido num acidente de carro antes de saber que a minha mãe estava grávida. Portanto tudo o que sei resume-se
ao que os lobisomens me souberam dizer, que não foi muito.
O termo «caminhante» provém dos mutantes caminhantes das tribos índias do sudoeste, mas tenho menos em comum com um mutante caminhante, pelo menos daquilo que li, do que com
os lobisomens. Não faço magia, não preciso de uma pele de coiote para mudar de forma — e não sou malévola.
Beberiquei o meu sumo e olhei lá para fora, através da janela da cozinha. Não conseguia ver a Lua propriamente dita, apenas a luz prateada que tocava a paisagem noturna. Pensamentos
malévolos pareciam de algum modo apropriados enquanto esperava que o vampiro me fosse buscar. Se não por outra razão, impedir-me-ia de adormecer: o medo tem esse efeito em
mim. Tenho medo do mal.
No nosso mundo moderno, até a palavra parece… antiquada. Quando sai por momentos de um Charles Manson ou de um Jeffrey Dahmer, tentamos justificá-lo através do consumo de
drogas, de uma infância infeliz ou de uma doença mental.
Os americanos em particular são invulgarmente inocentes na sua fé de que a ciência tem explicações para tudo. Quando os lobisomens, vários meses antes, finalmente admitiram
ao público o que eram, os cientistas puseram-se imediatamente à procura de um vírus ou de uma bactéria que pudesse causar a Transformação — sendo a magia algo que os seus
laboratórios e computadores não tinham como explicar. Ao que fiquei a saber da última vez que ouvira falar no assunto, John Hopkins tinha toda uma equipa dedicada ao estudo
dessa questão. Não tinha dúvidas de que descobririam alguma coisa, mas aposto que nunca conseguirão explicar como é que um homem de oitenta quilos se transforma num lobisomem
de cento e dez quilos. A ciência não considera a magia, da mesma maneira que não considera o mal.
A crença devota de que o mundo é explicável é simultaneamente uma terrível vulnerabilidade e uma sólida proteção. O mal prefere que as pessoas não acreditem. Os vampiros,
enquanto exemplo não aleatório, raramente saem para matar pessoas na rua. Quando vão à caça, encontram alguém cuja falta não será sentida e levam-no para casa, onde será tratado
e mantido numa situação de conforto — como uma vaca numa fazenda de confinamento de gado. Segundo as regras da ciência, não é permitido queimar bruxas, matar por afogamento
ou executar linchamentos públicos. Em troca, o cidadão comum respeitador da lei e sensato não tem de se preocupar com as coisas do sobrenatural. Há alturas que gostava de
ser um cidadão comum.
Os cidadãos comuns não recebem a visita de vampiros.
E tão-pouco se preocupam com um bando de lobisomens — pelo menos não propriamente da mesma maneira que eu.
Ir a público foi um passo corajoso da parte dos lobisomens; um passo que facilmente se poderia virar contra eles. De olhos fixos na noite iluminada pela Lua, pensei, inquietada,
sobre o que iria acontecer se as pessoas começassem novamente a ter medo. Os lobisomens não são maus, mas também não correspondem propriamente à imagem de heróis pacíficos
e respeitadores da lei que estão a tentar passar.
Alguém bateu à minha porta.
Os vampiros são maus. Eu tinha consciência disso — mas Stefan era mais do que simplesmente um vampiro. Havia alturas em que estava absolutamente certa de que era meu amigo.
Portanto, na verdade não estava com medo até ao momento em que abri a porta e vi o que me esperava no alpendre.
O cabelo escuro do vampiro estava puxado para trás, deixando-lhe a pele muito pálida exposta ao luar. Vestido de preto da cabeça aos pés, seria de esperar que se parecesse
com um refugiado de um filme mau do Drácula, mas de certo modo todo o conjunto, desde a sobrecasaca de couro preto às luvas de seda, parecia mais autêntico em Stefan do que
a sua habitual combinação de t-shirt de cor viva e calças de ganga sujas. Como se tivesse tirado um traje de fantasia, e não tanto o contrário.
Tinha ar de quem seria capaz de matar com a mesma facilidade com que eu seria capaz de mudar um pneu, com o mesmo grau de ponderação ou remorso.
Depois as sobrancelhas treparam-lhe a testa — e subitamente era o mesmo vampiro que tinha pintado a sua carrinha VW de modo a ficar idêntica à Máquina Mistério do Scooby Doo.
— Não pareces contente por me ver — disse, com um rápido sorriso rasgado que não lhe pôs os colmilhos a descoberto. Na escuridão, os seus olhos pareciam mais pretos do que
castanhos; mas a verdade é que o mesmo acontecia com os meus.
— Entra. — Afastei-me da porta para que pudesse fazê-lo; em seguida, porque me tinha assustado, acrescentei em tom mal-humorado: — Se queres ser bem recebido, tenta aparecer
por cá a uma hora decente.
Hesitou na soleira, sorrindo-me, e disse:
— A convite teu. — E a seguir entrou em minha casa.
— Aquela coisa na soleira funciona mesmo? — perguntei.
O seu sorriso voltou a ampliar-se, e daquela vez vi um brilho branco.
— Não depois de me teres convidado a entrar.
Passou por mim e encaminhou-se para a sala de estar, virando-se como um manequim numa passarela. As dobras da sua sobrecasaca abriram-se com o seu volteio num efeito que se
assemelhava ao girar de uma capa.
— Então, o que é que achas do meu aspeto à la Nosferatu?
Suspirei e admiti.
— Assustou-me. Pensava que evitavas tudo o que fosse gótico. — Raramente o tinha visto com outra roupa que não calças de ganga e t-shirts.
O sorriso dele ampliou-se ainda mais.
— Normalmente evito. Mas o look à Drácula ocupa o seu lugar. Por estranho que pareça, se usado com moderação assusta outros vampiros quase tanto quanto assusta a singular
menina-coiote. Não te preocupes, também tenho um traje para ti.
Enfiou a mão dentro do casaco e sacou de um arnês de couro ornamentado com prata.
Fitei-o por momentos.
— Vamos a um clube de striptease sadomasoquista, é? Não sabia que havia disso por estas bandas. — Não havia, pelo menos não que fosse do meu conhecimento. Washington oriental
é mais puritana do que Seattle ou Portland.
Gargalhou.
— Hoje não, querida. Isto é para o teu outro eu. — Sacudiu as tiras para que eu percebesse que se tratava de um arnês para cão.
Tirei-o das mãos dele. O couro era de boa qualidade, macio e flexível, com tanta prata que parecia peça de joalharia. Se fosse estritamente humana, sem dúvida que me recusaria
a usar semelhante coisa. Mas quando se passa uma parte considerável do tempo a correr de um lado para o outro como coiote, coleiras e quejandos são bastante úteis.
O Marrok, líder dos lobisomens norte-americanos, faz questão que todos os lobos usem uma coleira quando correm pelas cidades, com uma etiqueta que os identifique como animais
de estimação de alguém. Também faz questão que os nomes nas etiquetas correspondam a algo inócuo como Fred ou Mancha, nada de Assassinos ou Presas. Dessa forma é mais seguro
— tanto para os lobisomens como para os agentes da autoridade que com eles se possam cruzar. Escusado será dizer que, quando essa prática se concretizou, se tornou tão popular
entre os lobisomens como a lei do uso obrigatório de capacete entre os motociclistas. Não que algum deles sequer sonhasse em desobedecer ao Marrok.
Não sendo mulher-loba, não tenho de obedecer às regras do Marrok. Por outro lado, também não gosto de correr riscos desnecessários. Tinha uma coleira na gaveta de tralhas
da cozinha — mas não era feita de couro preto de qualidade.
— Então eu faço parte da tua máscara? — perguntei.
— Digamos apenas que acho que este vampiro é capaz de precisar de mais intimidação do que a maior parte — respondeu de forma ligeira, embora algo nos seus olhos me tivesse
feito pensar que se passava mais alguma coisa.
A Medea apareceu, vinda de onde quer que tivesse estado a dormir. Provavelmente na cama de Samuel. Ronronando furiosamente, roçou o seu pequeno ser em volta da perna esquerda
de Stefan e depois esfregou a cabeça na sua bota para o demarcar como propriedade dela.
— Os gatos e os fantasmas não gostam de vampiros — disse Stefan, olhando para baixo na direção dela.
— A Medea gosta de tudo o que lhe possa dar de comer ou acariciar — expliquei-lhe. — Não é esquisita.
Agachou-se e pegou nela. Ser pegada ao colo não é propriamente a coisa que a Medea mais aprecia, por isso miou-lhe várias vezes até voltar a ronronar enquanto afundava as
garras na sua dispendiosa manga de couro.
— Não estás a cobrar-me o favor só para pareceres mais intimidatório — disse, levantando a vista do arnês de couro macio para o olhar diretamente nos olhos. Uma coisa pouco
sensata a fazer com os vampiros, ele próprio mo tinha dito, mas tudo o que vi foi uma escuridão opaca. — Disseste que querias uma testemunha. Uma testemunha de quê?
— Não, não preciso de ti para parecer intimidatório — concordou Stefan num tom suave, depois de ter estado fixada nele durante alguns segundos. — Mas ele vai pensar que a
intimidação é a razão pela qual eu levo um coiote na minha trela. — Hesitou, e a seguir encolheu os ombros. — Este vampiro já esteve por cá antes, e eu acho que ele conseguiu
enganar um dos nossos novatos. Por causa daquilo que és, és imune a muitos poderes vampíricos, especialmente se o vampiro em questão não sabe o que tu és. Ao pensar que és
um coiote, provavelmente nem sequer vai desperdiçar a magia dele em ti. É pouco provável, mas é possível que consiga enganar-me tão bem como enganou o Daniel. Mas não me parece
que seja capaz de te enganar a ti.
Só há pouco tempo tinha ficado a saber dessa pequena vantagem de ser resistente à magia vampírica. Não me era particularmente útil uma vez que um vampiro tem força suficiente
para me partir o pescoço com o mesmo esforço que eu teria de investir para partir um pedaço de aipo.
— Ele não te vai fazer mal — disse Stefan depois de eu ter permanecido demasiado tempo calada. — Dou-te a minha palavra de honra.
Não sabia que idade tinha Stefan, mas usou aquela frase como um homem que falava muito a sério. Às vezes fazia com que fosse difícil lembrarmo-nos de que os vampiros são maus.
Mas na verdade isso não tinha grande importância. Estava em dívida para com ele.
— Está bem — repliquei.
Olhando para baixo na direção do arnês, pensei que seria melhor eu própria arranjar a coleira. Podia mudar de forma com a coleira posta — quando estava na forma humana, o
meu pescoço não era maior do que quando estava na forma de coiote. O arnês, adequado a um coiote de treze quilos, seria demasiado apertado quando quisesse readquirir a forma
humana. A vantagem do arnês, todavia, era que não estaria presa a Stefan pelo pescoço.
A minha coleira era lilás com flores cor-de-rosa bordadas. Não era lá muito Nosferatu.
Entreguei o arnês a Stefan.
— Vais ter de mo pôr depois de eu me transformar — indiquei-lhe. — Volto já.
Mudei de forma no meu quarto porque, para o fazer, tinha de me despir. Na verdade não sou tão pudica quanto isso, um metamorfo ultrapassa isso com bastante rapidez, mas tento
não me pôr nua em frente a alguém que possa confundir a minha nudez necessária com necessidades noutras áreas.
Embora Stefan tivesse pelo menos três carros de que eu tivesse conhecimento, aparentemente tinha optado por uma «via mais rápida», palavras suas, para chegar a minha casa,
pelo que entrámos no meu Rabbit para seguirmos viagem rumo ao seu encontro.
Durante alguns minutos, não tinha a certeza de que iria conseguir pô-lo a funcionar. O velho carro a diesel, tal como eu, não gostava de se levantar tão cedo. Stefan murmurou
entre dentes alguns palavrões em italiano, e por fim arrancou e partimos.
Nunca viajem num carro ao lado de um vampiro que está com pressa. Não sabia que o Rabbit pudesse andar daquela maneira. Virámos para a via rápida com as rpm no vermelho; o
carro manteve-se sobre as quatro rodas, mas à rasca.
Na verdade, o Rabbit parecia gostar mais do condutor do que de mim; a irregularidade do motor da qual me vinha tentando livrar há anos desapareceu e transformou-se num ruído
surdo. Fechei os olhos e desejei que as rodas não se soltassem.
Quando Stefan atravessou o rio na ponte de cabos que desembocava no meio de Pasco, estava a conduzir sessenta km/h acima do limite de velocidade. Sem abrandar muito, atravessou
o coração da zona industrial rumo a um aglomerado de hotéis erigido na orla mais distante da cidade, perto da rampa de acesso à auto-estrada que seguia para Spokane e outros
pontos a norte. Por um qualquer milagre — provavelmente ajudado pela hora — não fomos apanhados por excesso de velocidade.
O hotel para o qual Stefan nos levou não era nem o melhor nem o pior. Estava pensado para camionistas, embora só houvesse um camião no parque de estacionamento. Talvez as
terças fossem pouco movimentadas. Stefan estacionou o Rabbit ao lado do único carro que se encontrava no parque, um BMW preto, apesar da grande quantidade de lugares vazios.
Pulei do carro através da janela aberta e fui atingida pelo cheiro a vampiro e sangue. O meu olfato é muito bom, especialmente quando estou na forma de coiote, mas, como acontece
com qualquer outra pessoa, nem sempre distingo aquilo que estou a cheirar. Na maior parte das vezes é como tentar ouvir todas as conversas num restaurante apinhado. Mas aquele
odor era impossível deixar escapar.
Talvez fosse mau ao ponto de afugentar humanos normais, e fosse esse o motivo para o parque de estacionamento estar praticamente vazio.
Olhei para Stefan de modo a perceber se também ele tinha sentido o cheiro, mas a sua atenção estava concentrada no carro ao lado do qual tínhamos estacionado. Assim que atraiu
a minha atenção para o dito carro, percebi que o cheiro vinha do BMW. Como era possível que o carro cheirasse mais a vampiro do que Stefan, o vampiro?
Captei um outro odor, mais subtil, que fez com que os dentes me assomassem por entre os lábios, apesar de não conseguir perceber a que correspondia o cheiro amargo e misterioso.
No momento em que me chegou ao focinho, como que me embrulhou, sobrepondo-se a todos os outros cheiros ao ponto de não conseguir farejar mais nada.
Stefan contornou o carro apressadamente, pegou na trela e puxou-a com força para esganar a minha rosnadela. Cheguei-me para trás com uma sacudida e mostrei-lhe os dentes.
Eu não era um raio de uma cadela. Podia ter-me pedido para eu não fazer barulho.
— Acalma-te — disse, mas não estava de olhos postos em mim. Estava a observar o hotel. Foi então que senti um novo cheiro, um odor ténue logo sufocado pelo outro. Mas mesmo
aquela breve baforada foi suficiente para identificar o familiar cheiro do medo, do medo de Stefan. O que poderia assustar um vampiro?
— Anda — pronunciou, voltando-se para o hotel e puxando-me para fora da minha confusão.
Depois de ter deixado de oferecer resistência ao seu puxão, falou comigo de modo rápido e baixo.
— Não quero que faças nada, Mercy, independentemente do que vires ou ouvires. Não estás à altura de uma luta com este. Só preciso de uma testemunha imparcial que não faça
nada que ponha a sua vida em risco. Portanto, age como um coiote com toda a tua força e se eu não escapar daqui vivo, vai contar à Senhora aquilo que eu pedi que fizesses
por mim e relata-lhe o que viste.
Como é que ele podia esperar que eu escapasse a algo que podia matá-lo? Não tinha falado assim anteriormente, nem estava com medo. Talvez conseguisse cheirar o mesmo que eu
— e soubesse do que se tratava. No entanto, não lhe podia perguntar o que era, porque um coiote não está equipado com a fala humana.
Indicou o caminho para uma porta de vidro fumado. Estava trancada, mas nela havia uma caixa para cartões-chave com uma luzinha de LED vermelha a piscar. Bateu com o dedo ao
de leve na caixa e a luz ficou verde, como se tivesse passado um cartão magnético através dela.
A porta abriu sem qualquer protesto e fechou-se atrás de nós com um estalido final. Não havia nada de sinistro no vestíbulo, mas ainda assim inquietava-me. Provavelmente seriam
os nervos de Stefan a contagiar-me. O que poderia assustar um vampiro?
Algures alguém bateu uma porta e eu dei um salto.
Ou Stefan sabia onde estava o vampiro, ou o seu olfato não estava a ser estorvado pelo odor daquela alteridade, como acontecia comigo. Bruscamente, levou-me através de um
longo corredor e parou mais ou menos a meio. Bateu à porta com os nós dos dedos, embora eu, e presumivelmente também Stefan, tivesse conseguido perceber através da audição
que quem quer que estivesse à nossa espera no interior do quarto tinha avançado em direção à porta no preciso momento em que paráramos diante dela.
Depois de toda a tensão crescente, o vampiro que abriu a porta serviu quase de anticlímax — como se se estivesse à espera de ouvir Pavarotti a cantar Wagner e aparecessem
o Bugs Bunny e o Elmer Fudd.
O novo vampiro estava impecavelmente barbeado e tinha o cabelo penteado e preso atrás num pequeno e bem arranjado rabo-de-cavalo. As roupas eram elegantes e limpas, embora
um pouco engelhadas como se tivessem estado numa mala — todavia, de um modo que não sei explicar, a impressão que tive foi de desalinho e imundície. Era significativamente
mais baixo do que Stefan e muito menos intimidatório. Primeiro ponto a favor de Stefan, o que era bom considerando o esforço empreendido no seu traje de Príncipe das Trevas.
A camisa do homem desconhecido, de malha com mangas compridas, ficava-lhe pendurada, como se pousada em ossos em vez de carne. Quando se mexeu, uma das mangas deslizou para
cima, revelando um braço tão descarnado que se lhe conseguia ver a cavidade entre os ossos do antebraço. Andava ligeiramente corcovado, como se não tivesse a energia suficiente
para se endireitar.
Já tinha conhecido outros vampiros além de Stefan: vampiros assustadores com olhos e colmilhos reluzentes. Aquele parecia um toxicodependente tão doente que nele já nada restava
da pessoa que em tempos fora, como se a qualquer momento pudesse definhar, deixando apenas o corpo para trás.
Stefan, contudo, não se sentia tranquilizado pela aparente fragilidade do outro — dir-se-ia até que a sua tensão tinha aumentado. A impossibilidade de detetar cheiros no meio
daquela amargura desagradável e penetrante estava a incomodar-me mais a mim do que ao vampiro que não parecia ser grande oponente.
— A notícia da sua chegada chegou aos ouvidos da minha senhora — disse Stefan, num tom firme e de forma um pouco mais articulada do que era habitual nele. — Ela está muito
desapontada por não a ter informado que viria ao seu território.
— Entre, entre — disse o outro vampiro, afastando-se da porta para que Stefan passasse. — Não há necessidade de ficarmos no corredor a acordar pessoas que estão a tentar dormir.
Não sabia ao certo se ele tinha percebido que Stefan estava com medo. Nunca soube muito bem até que ponto os vampiros têm um olfato apurado — embora seja claramente superior
ao dos humanos. Não parecia intimidado por Stefan e pelas suas roupas pretas, todavia; aliás, parecia quase distraído, como se tivéssemos interrompido alguma coisa importante.
A porta da casa de banho estava fechada quando passámos por ela. Levantei as orelhas, mas não consegui ouvir nada atrás da porta fechada. O meu faro era inútil. Stefan levou-me
até ao lado oposto do quarto, para perto das portas de vidro deslizantes que estavam quase completamente tapadas por pesadas cortinas que iam do chão ao teto.
Stefan esperou que o outro vampiro fechasse a porta e depois disse num tom frio:
— Ninguém está a tentar dormir neste hotel.
Parecia um comentário estranho, mas o homem desconhecido deu indicações de perceber o que Stefan queria dizer porque deu uma risadinha, levando à boca uma mão em concha num
jeito que parecia mais conforme a uma rapariga de doze anos do que a um homem de qualquer idade. Foi um pouco estranho eu ter demorado algum tempo a avaliar a observação de
Stefan.
Certamente não queria dizer o que a sua entoação indicava. Nenhum vampiro são teria matado toda a gente no hotel. Os vampiros eram tão inabaláveis quanto os lobisomens no
cumprimento da sua regra de não atrair para si qualquer atenção indesejada — e a chacina geral de humanos atrairia a atenção. Mesmo que não houvesse muitos hóspedes, haveria
os empregados do hotel.
O vampiro deixou cair a mão da face, deixando para trás um rosto sem centelha de divertimento. Não fez com que me sentisse minimamente melhor. Era como observar Dr. Jekyll
e Mr. Hyde, tal era a mudança.
— Ninguém para acordar? — perguntou, como se não tivesse reagido de mais nenhuma forma ao comentário de Stefan. — Talvez tenha razão. Ainda assim não é de bom-tom deixar alguém
plantado à porta, pois não? Qual dos subordinados é você? — Levantou uma mão. — Não, espere, não me diga. Deixe-me adivinhar.
Enquanto Stefan esperava, com a sua habitual animação completamente sumida, o desconhecido contornou-o, parando precisamente atrás de nós. Sem nada a constranger-me para além
da trela, virei-me para o observar.
Quando estava diretamente atrás de Stefan, o outro vampiro curvou-se e coçou-me atrás das orelhas.
Normalmente não me importo que me toquem, mas assim que os dedos dele roçaram o meu pelo, percebi que não queria que me tocasse. Involuntariamente, afastei-me dele e encostei-me
à perna de Stefan. O meu pelo impediu que a pele dele tocasse a minha, mas isso não impediu que o seu toque me parecesse imundo, impuro.
O seu cheiro permaneceu no meu pelo e apercebi-me de que o odor desagradável que me vinha obstruindo o olfato era proveniente dele.
— Cuidado — advertiu Stefan sem olhar para trás. — Ela morde.
— Os animais adoram-me. — O comentário dele provocou-me um arrepio. Era tão desadequado vindo daquele… monstro rasteiro. Agachou-se e voltou a esfregar-me as orelhas. Não
sabia se Stefan queria que o mordesse ou não. Optei por não o fazer porque não queria o sabor dele na minha língua. Podia sempre mordê-lo mais tarde se quisesse.
Stefan não fez qualquer comentário, nem olhou para outro sítio que não diretamente em frente. Perguntei-me se teria perdido pontos em termos do seu estatuto acaso se virasse.
Os lobisomens também fazem jogos de poder, mas conheço-lhes as regras. Um lobisomem jamais teria permitido que um lobo desconhecido caminhasse atrás dele.
Parou de me fazer festas, levantou-se e rodeou Stefan até ficar novamente frente a frente com ele.
— Então você é o Stefan, o soldadinho da Marsilia. Eu já ouvi falar de si, embora a sua reputação já não seja a mesma de outros tempos, verdade? Fugir de Itália daquela maneira
mancharia a honra de qualquer homem. Ainda assim, de certo modo esperava mais. Todas aquelas histórias… Estava à espera de encontrar um monstro entre monstros, uma criatura
de pesadelos que assustasse inclusive outros vampiros… e tudo o que vejo é uma criatura acabada e mirrada. Suponho que é isso que acontece quando uma pessoa se esconde numa
cidadezinha no fim do mundo durante alguns séculos.
Fez-se uma ligeira pausa depois das últimas palavras do outro vampiro.
Stefan riu-se e disse:
— Ao passo que você nem reputação tem. — A sua voz era mais leve do que o habitual, soando quase apressada, como se o que estava a dizer não pertencesse a nenhum momento.
Afastei-me dele um passo sem intenção de o fazer, de algum modo assustada por aquela voz leve e divertida. Sorriu tenuemente ao outro vampiro e o seu tom suavizou-se ainda
mais quando disse: — É isso que acontece quando se é feito e logo abandonado.
Aquilo devia ser alguma espécie de super-insulto entre os vampiros, porque o segundo vampiro entrou em erupção, reagindo como se as palavras de Stefan tivessem sido uma ferroada
elétrica. No entanto não se lançou a Stefan.
Em vez disso, curvou-se e agarrou na base da enorme cama box e levantou-a, juntamente com tudo o que estava em cima dela, acima da cabeça. Girou-a na direção da porta de acesso
ao corredor e depois rodou-a mais um pedaço de modo a que as extremidades da cama box, o colchão e a roupa da cama se mantivessem equilibrados por um momento.
Agarrou-a noutro sítio e lançou-a através da parede até ao quarto anexo, que estava vazio, onde aterrou no chão, levantando uma nuvem de pó de gesso acartonado. Duas das vigas
da parede ficaram estilhaçadas, suspensas algures no interior da parede, dando ao buraco nela criado o aspeto de um sorriso de abóbora do Dia das Bruxas. A cabeceira falsa,
permanentemente instalada na parede onde a cama tinha estado, parecia desamparada e estúpida, pendurada trinta centímetros ou mais acima do suporte da cama.
A rapidez e a força do vampiro não me surpreenderam. Tinha visto alguns lobisomens a ter acessos de fúria, os suficientes para saber que se o vampiro estivesse verdadeiramente
zangado, não teria tido o controlo necessário para gerir os aspetos da Física implicados no lançamento dos dois colchões que não estavam ligados através da parede. Aparentemente,
à semelhança do que acontece nas lutas entre lobisomens, as batalhas entre vampiros têm muito fogo-de-artifício impressionante antes do espetáculo principal.
No silêncio que se seguiu, ouvi algo, um ruído enrouquecido e choroso oriundo de detrás da porta fechada da casa de banho — como se o que quer que o tivesse emitido já tivesse
gritado tanto que apenas conseguia produzir um barulho pequeno, porém um barulho que continha muito mais terror do que um grito dado a plenos pulmões.
Perguntei-me se Stefan saberia o que estava na casa de banho e se essa seria a razão pela qual tinha sentido medo quando estávamos no parque de estacionamento — havia coisas
das quais até um vampiro devia ter medo. Respirei fundo, mas não conseguia sentir outro cheiro além do da escuridão amarga — e esse cheiro estava a intensificar-se. Espirrei,
tentando desimpedir o nariz, mas não funcionou. Ambos os vampiros se mantiveram quietos até que o barulho terminasse. Depois, o desconhecido sacudiu o pó das mãos levemente,
com um sorriso ligeiro na cara, como se não tivesse existido fúria nele instantes antes.
— Sou remisso — disse, mas as palavras antiquadas soavam falsas vindas dele, como se estivesse a fingir ser um vampiro da mesma forma que os antigos vampiros tentavam ser
humanos. — Obviamente não sabe quem eu sou.
Inclinou a cabeça a Stefan num gesto fútil. Era óbvio, até para mim, que aquele vampiro tinha nascido num tempo e num lugar onde inclinar a cabeça era um gesto feito nos filmes
de Kung Fu e não na vida quotidiana. — Sou Asmodeus — anunciou imponentemente, parecendo uma criança que finge ser rei.
— Eu disse que você não tem qualquer reputação — replicou Stefan, ainda com aquela voz ligeira e descuidada. — Não disse que não sabia o seu nome, Cory Littleton. Asmodeus
foi destruído há séculos.
— Kurfel, então — disse Cory, nada infantil no modo.
Eu conhecia aqueles nomes, Asmodeus e Kurfel, ambos, e assim que me lembrei de onde os tinha escutado, percebi o que tinha vindo a cheirar. No momento em que me ocorreu a
ideia, conclui que o cheiro não podia ser outra coisa. Subitamente, o medo de Stefan deixou de ser surpreendente ou alarmante. Os demónios eram suficientes para assustar qualquer
um.
«Demónio» é uma expressão abrangente, como «ser feérico», utilizada para descrever seres que são incapazes de se manifestar no nosso mundo de forma física. Em vez disso, possuem
as suas vítimas e alimentam-se delas até não restar mais nada. Kurfel não seria o nome daquele, nem Asmodeus: o conhecimento do nome de um demónio dá ao conhecedor um poder
sobre ele. Nunca antes tinha ouvido falar num vampiro possuído pelo demónio. Tentei meditar em torno do conceito.
— Também não és o Kurfel — disse Stefan. — Embora alguma coisa semelhante a ele o esteja a permitir usar alguns dos seus poderes sempre que você o diverte. — Olhou para a
porta da casa de banho. — O que é que tem andado a fazer para o divertir, feiticeiro?
Feiticeiro.
Pensava que não passavam de fábulas — quer dizer, quem é que seria estúpido ao ponto de convidar um demónio para entrar nele? E por que é que um demónio, que podia possuir
a alma corrupta que quisesse (e alguém oferecer-se a um demónio de certo modo pressupõe uma alma corrupta, não é verdade?), haveria de fazer um acordo com quem quer que fosse?
Não acreditava em feiticeiros; certamente não acreditava em feiticeiros vampiros.
Seria de supor que alguém criado por lobisomens deveria ter uma mente mais aberta — mas tinha de estabelecer o limite nalgum sítio.
— Não gosto de si — disse Littleton friamente, e o pelo atrás do meu pescoço eriçou-se à medida que a magia se concentrava em volta dele. — Não gosto mesmo nada de si.
Esticou o braço e tocou Stefan no meio da testa. Esperei que Stefan lhe desse um safanão no braço, mas não fez nada para se defender, limitou-se a cair sobre os joelhos, aterrando
com um baque pesado.
— Pensei que fosse mais interessante, mas não é — continuou Cory, mas tanto a sua dicção como o seu tom eram diferentes. — Nada divertido. Vou ter de tratar disso.
Deixou Stefan de joelhos e encaminhou-se para a porta da casa de banho.
Gemi a Stefan e estiquei-me sobre as patas traseiras para lhe conseguir lamber a face, mas nem sequer olhou para mim. Os seus olhar era vago e descentrado; não estava a respirar.
Os vampiros não precisavam de respirar, claro, mas Stefan a maior parte das vezes precisava.
O feiticeiro tinha-o enfeitiçado de alguma forma.
Dei um puxão à trela, mas a mão de Stefan ainda estava fechada em volta dela. Os vampiros são fortes, e mesmo quando me lancei com todos os meus quinze quilos, a mão dele
nem se mexeu. Se tivesse meia hora, poderia ter mastigado o couro, mas não queria ser apanhada quando o feiticeiro regressasse.
Arquejando, olhei através do quarto para a casa de banho com a porta aberta. Que novo monstro estava à espera no interior? Pensei que se saísse daquela situação viva, nunca
mais ia deixar ninguém puxar-me por uma trela. Os lobisomens têm força, garras semi-retrácteis e presas com centímetros de comprimento — Samuel não teria ficado preso pelo
estúpido do arnês e da trela de couro. Uma mordidela e estava resolvido. Tudo o que eu tinha era rapidez — algo que a trela limitava com eficácia.
Estava preparada para uma visão horrífica, uma visão de algo que pudesse destruir Stefan. Mas o que Cory Littleton arrastou daquele compartimento deixou-me estupefacta com
um tipo de terror completamente diferente.
A mulher vestia um daqueles uniformes estilo anos cinquenta que os hotéis dão às suas empregadas; aquele verde-menta com um espesso avental azul. As cores que vestia jogavam
com as dos cortinados e dos tapetes do corredor, mas a corda à volta dos seus pulsos, escurecida com sangue, não.
Excluindo os pulsos ensanguentados, parecia, de um modo geral, incólume, embora os sons que estava a produzir me tivessem feito duvidar disso. O seu peito palpitava em resultado
do esforço para gritar, mas mesmo sem a porta da casa de banho entre nós, não estava a fazer muito barulho, antes emitia uma série de grunhidos.
Voltei a puxar a trela e, ao ver que Stefan continuava sem se mexer, mordi-o, com força, fazendo sangue. Nem reagiu.
Não aguentava ouvir o terror daquela mulher. Respirava com arquejos roucos e engasgados e debatia-se nos braços de Littleton, tão concentrada nele que não creio que nos tenha
visto, a mim e a Stefan.
Puxei novamente a trela. Ao ver que isso não funcionava, rosnei e movi-me rapidamente, virando-me para conseguir mastigar o couro. A minha coleira estava equipada com um fecho
de segurança que eu podia ter partido, mas o arnês de couro de Stefan estava apertado com fivelas metálicas antiquadas.
O feiticeiro deixou cair a sua vítima no chão, à minha beira, um pouco para lá do meu alcance — embora não esteja certa do que poderia ter feito por ela, mesmo que estivesse
ao meu alcance. Ela não me viu; estava demasiado ocupada a tentar não ver Littleton. Mas os meus esforços tinham atraído a atenção do feiticeiro e ele pôs-se de cócoras para
ficar mais próximo do meu nível.
— O que é que será que tu farias se eu te libertasse? — perguntou-me — Estás com medo? Fugias? Atacavas-me, ou o cheiro do sangue dela excita-te como excita um vampiro? —
A seguir olhou para cima, na direção de Stefan. — Estou a ver as tuas presas, Soldado. O esplêndido perfume do sangue e do terror: chama por nós, não chama? Prende-nos com
a mesma firmeza com que prendes o teu coiote. — Usou a pronunciação espanhola, três sílabas em vez de duas. — Exigem que bebamos apenas um gole de cada quando os nossos corações
anseiam por muito mais. O sangue na verdade não sacia sem a morte, não é verdade? És suficientemente velho para te lembrares dos Tempos Antigos, não és, Stefan? Quando nós,
vampiros, comíamos a nosso bel-prazer e nos divertíamos no terror e nos últimos estertores da nossa presa. Quando nos alimentávamos verdadeiramente.
Stefan produziu um ruído e arrisquei olhá-lo de relance. Os seus olhos tinham mudado. Não sei por que é que essa foi a primeira coisa que reparei nele, quando tantas outras
coisas estavam diferentes. Os olhos de Stefan normalmente tinham o tom da madeira de nogueira encerada, mas naquele momento reluziam como rubis sangue. Os lábios estavam puxados
para trás, revelando presas mais curtas e delicadas do que as de um lobisomem. A sua mão, que tinha apertado a minha trela, ostentava garras curvas nas extremidades dos dedos
alongados. Depois de um vislumbre, tive de virar a cara, com quase tanto medo dele como do feiticeiro.
— Sim, Stefan — disse Littleton, rindo-se como um vilão num filme antigo a preto e branco. — Vejo que te lembras do sabor da morte. Benjamin Franklin em tempos disse que aqueles
que abdicam da sua liberdade em favor da sua segurança não merecem nenhuma delas. — Aproximou-se. — Sentes-te seguro, Stefan? Ou sentes falta daquilo que tiveste em tempos,
daquilo que permitiste que roubassem de todos nós?
Em seguida, Littleton virou-se para a sua vítima. Esta não produziu praticamente nenhum ruído quando tocada por ele, os seus lamentos eram de tal modo enrouquecidos que teriam
sido inaudíveis a um humano fora daquele quarto. Esforcei-me por me libertar do arnês, tentando que ele rasgasse nos meus ombros, mas não me serviu de nada. As minhas garras
rasgaram o tapete, todavia Stefan era pesado de mais para que o fizesse mexer.
Littleton demorou imenso tempo a matá-la: ela desistiu de lutar antes de mim. No fim, o único barulho no quarto era o dos vampiros; o que estava à minha frente alimentava-se
humidamente e o que estava ao meu lado emitia ruídos impotentes e ansiosos, embora sem se mover.
O corpo da mulher entrou em convulsões e os seus olhos cruzaram-se com os meus, apenas por instantes, antes de ficarem ausentes com a sua morte. Senti o ímpeto da magia no
momento em que ela se imobilizou e a amargura fétida, o cheiro do demónio, abandonou o quarto, deixando atrás de si apenas um ténue rasto.
Recuperei o olfato, e quase desejei que isso não tivesse acontecido. Os odores da morte não são muito melhores do que o cheiro do demónio.
A arfar, a tremer e a tossir por ter ficado à beira de me estrangular, baqueei no chão. Agora não havia nada que eu pudesse fazer para ajudá-la, se é que alguma vez essa possibilidade
tivesse existido.
Littleton continuava a alimentar-se. Lancei um olhar de soslaio a Stefan, que tinha parado de produzir aqueles ruídos perturbadores. Abandonara a sua postura petrificada.
Mesmo sabendo que ele tinha observado aquela cena com desejo e não tanto com horror, Stefan era infinitamente preferível a Littleton, e recuei até a minha anca tocar a sua
coxa.
Acostei-me a ele enquanto Littleton, cujo branco da camisa tinha desaparecido quase por completo debaixo do sangue da mulher que matara, levantava os olhos da sua vítima para
examinar o rosto de Stefan. Dava risadinhas entre arquejos nervosos. Tinha tanto medo dele, da coisa que o dominava, que mal conseguia respirar.
— Oh, querias aquilo — trauteou, estendendo uma mão e esfregando-a nos lábios de Stefan. Instantes depois, Stefan lambeu os beiços.
— Deixa-me partilhar — disse o outro vampiro num tom suave. Inclinou-se na direção de Stefan e beijou-o apaixonadamente. Fechou os olhos, e apercebi-me de que estava finalmente
ao meu alcance.
Às vezes a diferença entre a raiva e o medo é mínima. Pulei com a boca escancarada e cerrei-a em redor do pescoço de Littleton, sentindo, em primeiro lugar, o sabor do sangue
humano da mulher na sua pele, e, depois, uma outra coisa, amarga e horrível, que viajou da minha boca através do meu corpo como um relâmpago. Esforcei-me por fechar o maxilar,
mas tinha-o deixado escapar e as minhas presas superiores atingiram-lhe o osso da coluna vertebral e ressaltaram.
Não era uma mulher-loba ou uma bulldog, portanto não tinha a capacidade de esmagar osso; limitei-me a afundar os dentes na carne enquanto o vampiro me agarrava pelos ombros
e se libertava, arrancando a trela da mão de Stefan com o esforço empreendido.
Do seu pescoço começou a derramar sangue, desta vez o seu sangue, porém o golpe começou a fechar-se imediatamente, e o vampiro curou-se mais depressa do que um lobisomem.
Desesperada, apercebi-me de que não lhe tinha causado ferimentos sérios. Lançou-me ao chão e afastou-se às arrecuas, tapando com as mãos o golpe que lhe fizera. Senti a magia
dele a flamejar e, quando as mãos lhe caíram da garganta, o golpe tinha desaparecido.
Rosnou-me, com os colmilhos à vista, e eu rosnei-lhe em resposta. Não me lembro de o ver mexer-se, apenas da sensação momentânea das suas mãos nos meus flancos, um breve momento
em que fui arremessada pelo ar e depois nada.
2
Acordei no meu sofá com cadenciadas carícias de língua na cara e o rumor distinto da Medea. A voz de Stefan serviu-me de alívio porque significava que estava vivo, tal como
eu. Todavia, quando Samuel respondeu, pese embora o seu tom de voz surdo se parecesse bastante com o barulho que a minha gata estava a fazer, não havia como sentir qualquer
alívio com a ameaça glacial existente por baixo da sua voz suave.
Perante o som, fui invadida por um assomo de adrenalina. Afugentei a memória dos terrores noturnos. O importante agora era que aquela noite seria de Lua cheia e havia um lobisomem
enraivecido a menos de meio metro de mim.
Tentei abrir os olhos e levantar-me, mas deparei com vários problemas. Em primeiro lugar, um dos meus olhos parecia recusar-se a abrir. Em segundo lugar, uma vez que raramente
durmo na forma de coiote, tinha-me tentado sentar como um humano. O meu modo desajeitado piorou porque o meu corpo, hirto e dorido, não estava a reagir muito bem a qualquer
espécie de movimento. Finalmente, assim que mexi a cabeça, fui recompensada com uma dor aguda e um sentimento de náusea a acompanhar. A Medea repreendeu-me com palavrões felinos
e, toda zangada, pulou para fora do sofá.
— Chiu, Mercy. — O tom ameaçador desapareceu por completo da voz de Samuel enquanto trauteava e se ajoelhava ao lado do sofá. As suas mãos dóceis e competentes deslizaram
sobre o meu corpo dorido.
Abri o meu olho funcional e fixei-me nele prudentemente, não confiando que o tom da sua voz indicasse o seu estado de espírito. Os olhos dele não eram visíveis, mas a sua
boca larga mostrava-se meiga debaixo do nariz longo e aristocrático. Reparei vagamente que precisava de um corte; o cabelo castanho-acinzentado tapava-lhe as sobrancelhas.
Havia tensão nos seus largos ombros, e agora que estava completamente desperta, conseguia cheirar a agressividade que se vinha acumulando no compartimento. Virou a cabeça
para acompanhar o movimento das mãos enquanto estas se moviam delicadamente sobre as minhas patas traseiras e consegui ver-lhe os olhos.
Azul-claros, não brancos, como estariam se o lobo estivesse na iminência de emergir.
Relaxei o suficiente para me sentir francamente grata por, apesar de maltratada e deprimida, estar deitada no meu próprio sofá e não morta — ou pior, ainda na companhia de
Cory Littleton, vampiro e feiticeiro.
As mãos de Samuel tocaram-me na cabeça e eu gani.
Para além de lobisomem, o meu companheiro de casa era médico, um médico muito bom. Como é evidente, suponho que devesse ser. Há muito tempo que era médico e tinha pelo menos
três licenciaturas em medicina em dois séculos diferentes. Os lobisomens podem ser criaturas com uma grande longevidade.
— Está tudo bem com ela? — perguntou Stefan. Havia qualquer coisa na sua voz que me causou incómodo.
A boca de Samuel comprimiu-se.
— Não sou veterinário, sou médico. Posso dizer-lhe que não tem nenhum osso partido, mas até que ela possa falar comigo, é tudo quanto sei.
Tentei transformar-me de modo a ajudar, mas o único resultado foi uma dor ardente através do peito e em volta das costelas. Soltei um pequeno ruído de pânico.
— O que foi? — disse Samuel, passando o dedo suavemente ao longo do contorno da minha maxila.
Também doeu. Estremeci e ele afastou as mãos.
— Espere — anunciou Stefan da extremidade do sofá.
A voz dele não soou como devia. Depois do que o vampiro possuído pelo demónio lhe tinha feito, tinha de me certificar de que Stefan estava bem. Contorci-me, gemendo de desconforto,
até conseguir observar atentamente o vampiro com o meu olho funcional.
Estivera sentado no chão ao fundo do sofá, mas, quando olhei para ele, ergueu-se até ficar de joelhos — tal como tinha estado quando o feiticeiro o tinha dominado. Do canto
do olho vi Samuel lançar um golpe súbito na direção de Stefan. Porém, este esquivou-se da mão de Samuel. Mexeu-se de forma estranha. A princípio, pensei que estivesse magoado,
que Samuel já lhe teria batido, depois apercebi-me de que se movia como Marsilia, a Senhora do ninho local — como um fantoche, ou um vampiro muito velho que se tivesse esquecido
de como é ser-se humano.
— Calma, lobo — disse Stefan, e compreendi o que havia de errado na sua voz. Estava morta, esvaziada de qualquer emoção. — Tente tirar-lhe o arnês. Acho que ela estava a tentar
transformar-se, mas não pode fazê-lo enquanto estiver com o arnês.
Não me tinha dado conta de que ainda o tinha colocado. Samuel produziu um ruído sibilante quando tocou nas fivelas.
— São de prata — indicou Stefan sem se aproximar. — Posso desapertá-las, se me permitir.
— Quer-me parecer que de repente já lhe sobram as palavras, vampiro — grunhiu Samuel.
Samuel era o lobisomem mais calmo e sereno que conhecia — embora isso não diga lá grande coisa — mas era capaz de distinguir na gravidade da sua voz os prenúncios de violência
que fizeram a minha caixa torácica vibrar.
— Fez-me perguntas às quais não posso responder — replicou Stefan calmamente, todavia a sua voz tinha-se animado em cadências mais humanas. — Espero sinceramente que a Mercedes
seja capaz de satisfazer a sua curiosidade e a minha. No entanto, antes de mais, é preciso que alguém lhe tire o arnês para que ela possa regressar à forma humana.
Samuel hesitou, após o que se afastou de mim.
— Faça-o você — rosnou em vez de falar.
Stefan avançou lentamente, à espera que Samuel se desviasse antes de me tocar. Cheirava ao meu champô e tinha o cabelo húmido. Teria tomado um duche — e encontrado roupas
lavadas algures. Nada naquele quarto de motel tinha escapado ao sangue da mulher assassinada. As minhas próprias patas ainda estavam cobertas dele.
Tive uma súbita e visceral recordação da forma como o tapete ficara empapado, supersaturado com fluido escuro e viscoso. Teria vomitado, mas a repentina dor aguda na minha
cabeça perfurou a náusea, uma distração bem-vinda.
Stefan não demorou muito tempo a desafivelar o arnês, e logo depois de este ter sido retirado, transformei-me. Stefan afastou-se e deixou que Samuel regressasse para o seu
lugar ao meu lado.
Uma fúria comprimiu os limites da boca de Samuel no instante em que me tocou no ombro. Olhei para baixo e apercebi-me de que a minha pele estava pisada e esfolada dos sítios
onde o arnês tinha roçado, e que por todo o meu corpo havia pequenas manchas de sangue seco, cor de ferrugem. Parecia que tinha sofrido um acidente de carro.
Pensar em carros fez com que me lembrasse do trabalho. Olhei lá para fora através da janela, mas o céu ainda estava escuro.
— Que horas são? — perguntei. A voz saiu-me num crocito rouco.
Foi o vampiro que respondeu.
— Cinco e quarenta e cinco.
— Preciso de me ir vestir — disse, levantando-me abruptamente, o que foi um erro. Agarrei-me à cabeça, praguejei, e sentei-me antes que caísse.
Samuel afastou as minhas mãos da minha testa.
— Abre os olhos, Mercy.
Esforcei-me ao máximo, mas o meu olho esquerdo não queria de forma alguma abrir. No momento em que consegui abrir os dois, ele cegou-me com uma caneta luminosa.
— Porra, Sam — disse, contorcendo-me para me libertar da sua mão.
— Só mais uma vez. — Foi implacável, desta vez abrindo ele próprio o meu olho magoado. Depois pousou a lanterna ao lado e percorreu a minha cabeça com as mãos. Sibilei assim
que os dedos dele tocaram numa ferida. — Não tens um traumatismo craniano, Mercy, embora tenhas um galo considerável na nuca, uma pisadura dos diabos no olho, e, se não estou
enganado, o resto do lado esquerdo da tua cara vai estar roxo antes do romper do dia. A saber, por que é que estás inconsciente há quarenta e cinco minutos, segundo diz o
chupador de sangue?
— Há perto de uma hora, agora — interveio Stefan. Encontrava-se novamente sentado no chão, mais longe de mim do que tinha estado, mas observava-me com uma atenção predatória.
— Não sei — respondi, e a voz saiu-me mais trémula do que tencionava.
Samuel sentou-se ao meu lado no sofá, puxou bruscamente o pequeno cobertor que escondia os danos que Medea tinha provocado nas suas costas, e envolveu-me nele. Começou a estender
as mãos na minha direção e eu afastei-me. O desejo de proteção de um lobo dominante era um instinto forte — e Samuel era muito dominante. Dêem-lhe algum espaço e ele tomará
conta do mundo, ou da minha vida se eu o permitir.
Ainda assim, cheirava a rio, deserto e pelagem — e ao familiar odor adocicado que só lhe pertencia a ele. Desisti de lhe oferecer resistência e deixei a minha cabeça dorida
pousar no ombro dele. A resiliência e o calor da sua carne contra a minha têmpora ajudaram a amenizar a minha dor de cabeça. Talvez se não me mexesse a minha cabeça não caísse.
Samuel emitiu um som suave e tranquilizador e percorreu o meu cabelo com os seus dedos hábeis, evitando a parte dorida.
Não tinha esquecido nem o tinha perdoado pela lanterna, mas ficámos quites quando me comecei a sentir melhor. Já se tinha passado muito tempo desde a última vez em que me
tinha encostado a alguém, e, mesmo sabendo que era estúpido permitir que Samuel me visse tão débil, não fui capaz de me forçar a afastar-me.
Ouvi Stefan a dirigir-se para a cozinha, a abrir o frigorífico, e a remexer os armários. Em seguida, o odor do vampiro aproximou-se e ele disse:
— Ela que beba isto. Vai ajudar.
— Ajudar a quê? — A voz de Samuel soou bastante mais austera do que o habitual. Se a cabeça me doesse um pouco menos, tinha-me afastado.
— À desidratação. Ela foi mordida.
A sorte de Stefan foi que eu estava encostada a Samuel. O lobisomem levantou-se de um pulo, mas parou a meio caminho quando soltei um gemido perante o seu movimento súbito.
OK, estava a fazer jogo sujo, mas isso impediu Samuel de atacar. Stefan não era o vilão. Se se tivesse alimentado de mim, tinha a certeza de que teria sido por necessidade.
Não estava em condições de separá-los, portanto optei por assumir o papel de indefesa. Só desejei que tivesse sido um bocadinho mais difícil fazê-lo.
Samuel voltou a sentar-se e afastou o cabelo do meu pescoço. Com as pontas dos dedos, passou ao de leve por uma parte dorida de um dos lados, que se juntou às minhas outras
dores e aflições. Assim que tocou nela, contudo, senti ardor e dor até à clavícula.
— Não fui eu — disse Stefan, mas havia um quê de vacilante na sua voz, como se não tivesse inteira certeza do que dizia. Desenterrei a cabeça de modo a vê-lo. Todavia, o que
quer que estivesse na sua voz não lhe tinha tocado a expressão terna que o rosto exibia.
— Não corre nenhum risco para além de anemia — disse a Samuel. — É preciso mais do que uma mordidela para transformar um humano num vampiro… E, seja como for, não tenho a
certeza de que a Mercy pudesse ser transformada. Se ela fosse humana, teríamos de nos preocupar com a possibilidade de ele a chamar e ordenar a sua obediência, mas os caminhantes
não são tão vulneráveis à nossa magia. Ela apenas precisa de se hidratar e descansar.
Samuel lançou um olhar lancinante ao vampiro.
— Agora está cheiinho de informações, não é verdade? Se não foi você que a mordeu, o que é que foi?
Stefan sorriu tenuemente, não como tencionava, e entregou a Samuel o copo com sumo de laranja que tinha tentado dar-lhe antes. Percebi o porquê de o ter dado a Samuel e não
a mim. Samuel estava a tornar-se territorial — fiquei impressionado com o facto de um vampiro ser capaz de o ler tão bem.
— Acho que a Mercy seria uma narradora melhor — replicou Stefan. Havia na sua voz indícios de uma ansiedade incaracterística que me distraíram da preocupação em relação à
possessividade de Samuel.
Por que razão estava Stefan tão ansioso para ouvir o que eu tinha a dizer? Ele também tinha lá estado.
Peguei no copo que Samuel me entregou e endireitei-me até me desencostar dele. Não me tinha apercebido quão sedenta estava até ter começado a beber. Não sou grande apreciadora
de sumo de laranja — quem o bebia era Samuel — mas naquele preciso instante soube-me a ambrósia.
Não era magia, contudo. Quando acabei, a cabeça ainda me doía, e a única coisa que queria era enfiar-me na minha cama e tapar-me por completo com os cobertores, todavia não
ia ter nenhum descanso enquanto Samuel não tivesse conhecimento de tudo — e Stefan aparentemente não ia falar.
— O Stefan telefonou-me há umas horas — comecei. — Devia-lhe um favor por nos ter ajudado quando a Jesse foi raptada.
Ambos ouviram atentamente, com Stefan a acenar com a cabeça de vez em quando. Quando cheguei à parte em que entrámos no quarto do hotel, Stefan sentou-se no chão, próximo
dos meus pés. Recostou-se no sofá, desviou a cabeça de mim e tapou os olhos com uma mão. Talvez estivesse simplesmente a ficar cansado — os estores começavam a iluminar-se
com os primeiros vestígios da alvorada na altura em que terminava a descrição da minha tentativa falhada de matar Littleton e o meu subsequente impacto contra a parede.
— Tens a certeza de que foi isso que aconteceu? — inquiriu Stefan sem destapar os olhos.
Franzi-lhe o sobrolho, endireitando as costas.
— Claro que tenho a certeza. — Ele tinha lá estado, portanto o que é que o levava a falar como se eu pudesse estar a inventar?
Esfregou os olhos e fitou-me, e depois notei alívio na sua voz.
— Sem ofensa, Mercy. As memórias que tens da morte da mulher são muito diferentes das minhas.
Carreguei o cenho.
— Diferentes como?
— Dizes que me limitei a ficar ajoelhado no chão enquanto o Littleton assassinava a empregada do hotel?
— Exatamente.
— A minha recordação não é essa — replicou num sussurro. — Lembro-me de o feiticeiro ter trazido a mulher, de o sangue dela me chamar e de eu ter respondido. — Lambeu os lábios
e a combinação de horror e fome nos seus olhos fizeram-me desviar a atenção dele. Continuou num sussurro, quase de si para si: — Há imenso tempo que não era dominado pela
sede de sangue.
— Bom — disse, sem estar certa de que o que tinha para lhe dizer ajudaria ou prejudicaria —, o teu aspeto não era lá muito agradável. Os teus olhos brilhavam e viam-se-te
os colmilhos. Mas não fizeste nada à mulher.
Por instantes, um pálido reflexo do brilho vermelho-rubi que tinha visto no quarto do hotel cintilou-lhe nas íris.
— Lembro-me de me deleitar com o sangue da mulher, de pintar as minhas mãos e a minha cara com ele. Ainda o tinha quando te trouxe para casa e tive de o tirar com água. —
Fechou os olhos. — Há uma velha cerimónia… proibida há muito tempo, mas eu lembro-me… — Abanou a cabeça e concentrou a atenção nas próprias mãos, que estavam frouxamente enlaçadas
em redor de um joelho. — Ainda consigo sentir o sabor dela.
Aquelas palavras pairaram desconfortavelmente no ar por um momento, antes de ele prosseguir:
— Estava absorto no sangue. — Pronunciou aquela frase como se as palavras pertencessem umas às outras e pudessem significar algo mais complexo do que o seu significado literal.
— Quando voltei a mim, o outro vampiro tinha desaparecido. A mulher jazia conforme me lembro de a ter deixado, e tu estavas inconsciente.
Engoliu em seco e depois cravou os olhos na janela iluminada, a sua voz baixou uma oitava, como por vezes pode acontecer com a dos lobos.
— Não me conseguia lembrar do que te tinha acontecido.
Esticou o braço e tocou-me no pé, que era a parte do meu corpo mais próxima dele. Quando voltou a falar, a sua voz soou quase normal.
— Um lapso de memória não é inconsistente com a sede de sangue. — A mão dele moveu-se até se fechar cuidadosamente em volta dos meus dedos dos pés, a sua pele fria contra
a minha. — Mas a sede de sangue normalmente só tem o efeito de entorpecer as coisas sem importância. Tu és importante para mim, Mercedes. Ocorreu-me que não serias importante
para o Cory Littleton. E esse pensamento deu-me esperança enquanto te trazia de carro até aqui.
Eu era importante para Stefan? Não era mais do que a sua mecânica. Tinha-me feito um favor, e na noite anterior tinha-o retribuído em grandes proporções. Possivelmente seremos
amigos — embora eu pensasse que os vampiros não tivessem amigos. Pensei no assunto durante algum tempo e cheguei à conclusão de que Stefan era importante para mim. Se alguma
coisa lhe tivesse acontecido esta noite, algo permanente, teria ficado sentida. Talvez ele sentisse o mesmo.
— Achas que ele interferiu na tua memória? — perguntou Samuel enquanto eu ainda estava a pensar. Tinha-se aproximado lestamente e lançado um braço em redor dos meus ombros.
Foi uma sensação boa. Boa de mais. Deslizei para a frente no sofá, para longe de Samuel — e Stefan deixou a mão cair do meu pé quando me mexi.
Stefan acenou afirmativamente com a cabeça.
— É óbvio que algo de errado se passa ou com a minha memória ou com a da Mercy. Não me parece que ele conseguisse afetar a da Mercy, mesmo sendo um feiticeiro. Esse tipo de
coisa simplesmente não funciona em caminhantes como ela, a menos que ele se tenha esforçado mesmo muito.
Samuel produziu um som de hesitação.
— Não estou a ver por que razão haveria de querer que a Mercy pensasse que você era inocente de um assassinato, especialmente se pensava que ela era apenas um coiote. — Cravou
os olhos em Stefan, que encolheu os ombros.
— Os caminhantes só foram uma ameaça durante um par de décadas, e isso foi há séculos. O Littleton é muito novo; ficaria surpreendido se ele sequer tivesse ouvido falar em
algo parecido com a Mercy. É possível que o demónio saiba, nunca se sabe ao certo o que os demónios sabem. Mas a melhor prova de que o Littleton pensa que a Mercy não passava
de um coiote é o facto de ela ainda estar viva.
Ainda bem para mim.
— Muito bem. — Samuel esfregou a face. — É melhor ligar ao Adam. Ele precisa de enviar a equipa de limpeza dele ao hotel antes que alguém veja a bagunça e comece a gritar
«lobisomem». — Ergueu uma sobrancelha a Stefan. — Embora ache que podíamos simplesmente dizer à polícia que foi um vampiro.
Tinham-se passado menos de seis meses desde que os lobisomens tinham seguido os seres feéricos na opção de ir a público. Não tinham contado tudo à população humana, e apenas
os lobisomens que optaram por fazê-lo se revelaram — a maioria estava no exército, pessoas já separadas da população geral. Mantivemo-nos em suspenso, à espera de ver o que
daí resultaria, mas, até à data, não se registaram quaisquer distúrbios, contrariamente ao que acontecera aquando da exposição dos seres feéricos algumas décadas antes.
Parte da reação serena deveu-se ao planeamento cuidadoso do Marrok. Os americanos sentem-se seguros no nosso mundo moderno. Bran fez tudo o que estava ao seu alcance para
proteger essa ilusão, apresentando os seus lobos públicos como vítimas que suportaram a sua aflição e a usaram corajosamente para proteger os outros. Os lobisomens — queria
ele que o público acreditasse, pelo menos durante algum tempo — eram simplesmente pessoas que ficavam peludas aquando da Lua cheia. Os primeiros lobos a vir a público eram
heróis que colocavam a sua vida em risco para proteger os humanos mais frágeis. O Marrok, à semelhança do que sucedera com os seres feéricos que o antecederam, optou por manter
os aspetos mais negros dos lobisomens escondidos da forma mais cuidadosa que lhe era possível.
Todavia, penso que o grosso do mérito pela aceitação pacífica da revelação pertence aos seres feéricos. Durante mais de duas décadas, os seres feéricos tinham tido a capacidade
de se apresentar como frágeis, amáveis e dóceis — e qualquer pessoa que tenha lido os Irmãos Grimm ou Andrew Lang compreenderá a dimensão de tamanha proeza.
Independentemente da ameaça de Samuel, o seu pai, o Marrok, jamais concordaria com a exposição dos vampiros. Não havia como suavizar o facto de que os vampiros se alimentavam
de humanos. E assim que as pessoas se apercebessem de que de facto existiam monstros, era bem possível que se apercebessem de que os lobisomens, também eles, eram monstros.
Stefan sabia tão bem quanto Samuel o que o Marrok diria. Sorriu desagradavelmente ao lobisomem, mostrando os colmilhos.
— Já se tratou da bagunça. Telefonei à minha senhora antes de trazer a Mercy para casa. Não precisamos de lobisomens para nos fazer a limpeza. — Normalmente, Stefan era mais
amável, mas também ele tinha tido uma noite má.
— O outro vampiro provocou-te memórias falsas — disse para distrair os homens do seu antagonismo. — Isso aconteceu por ele ser um feiticeiro?
Stefan inclinou a cabeça, como se estivesse embaraçado.
— Nós conseguimos fazer isso aos humanos — disse, dando-me uma informação que eu dispensava. Ele viu a minha reação e explicou: — Isso significa que podemos deixar vivos aqueles
de quem nos alimentamos despreocupadamente, Mercedes. Ainda assim, os humanos são uma coisa, e os vampiros outra. Supostamente, não conseguimos fazer isso uns aos outros.
No entanto, não tens com que te preocupar. Nenhum vampiro consegue transformar a tua memória, provavelmente nem mesmo um que seja feiticeiro.
Uma sensação de alívio trepou-me pelo corpo. Se tivesse de escolher coisas que não queria que um vampiro me fizesse, desordenar os meus pensamentos estaria numa posição cimeira
da minha lista. Toquei no meu pescoço.
— Por isso é que querias que estivesse contigo. — Endireitei as costas. — Disseste que o tinha feito a outro vampiro. O que é que ele levou o outro vampiro a pensar que tinha
feito?
Stefan exibiu um ar cauteloso… e culpado.
— Tu sabias que ele ia matar alguém, não sabias? — acusei-o. — Foi isso que ele fez ao outro vampiro? Levá-lo a pensar que tinha matado alguém? — A recordação da morte lenta
que eu não tinha sido capaz de impedir fez-me cerrar os punhos.
— Não sabia o que ele ia fazer. Mas sim, acreditava que tinha matado antes e levado o meu amigo a pensar que tinha sido ele o responsável. — Falou como se as palavras lhe
deixassem um sabor amargo na boca. — Mas não podia agir sem provas. Portanto morreram mais pessoas que não deviam ter morrido.
— Você é um vampiro — disse Samuel. — Não tente fazer-nos acreditar que se importa com a morte de pessoas inocentes.
Stefan fitou Samuel olhos nos olhos.
— Já tolerei mortes de sobra em tempos que já lá vão, mas acredite no que quiser. Tantas mortes ameaçam os nossos segredos, lobisomem. Mesmo que eu não me importasse minimamente
com a morte de qualquer humano, não ia querer que tantos morressem e comprometessem os nossos segredos.
Que tantos morressem?
A sua certeza de que, na altura em que Littleton nos tinha convidado para entrar, nenhum barulho incomodaria quem quer que fosse no hotel tornou-se subitamente clara. A coisa
que eu tinha visto a matar a mulher não teria hesitado em matar as pessoas que fosse necessário.
— Quem mais é que morreu esta noite?
— Quatro. — Stefan não desviou o olhar de Samuel. — O rececionista do turno da noite e três hóspedes. Por sorte o hotel estava quase vazio.
Samuel praguejou.
Eu engoli em seco.
— Portanto os corpos vão simplesmente desaparecer?
Stefan suspirou.
— Tentamos não fazer desaparecer pessoas cuja falta será sentida. Os cadáveres serão explicados de modo a causar o menor espalhafato possível. Uma tentativa de assalto, uma
discussão de amantes que ficou descontrolada.
Abri a boca para dizer algo temerário, mas contive-me. As regras segundo as quais todos tínhamos de viver não eram da responsabilidade de Stefan.
— Pôs a Mercy em risco — grunhiu Samuel. — Se ele já tinha feito outro vampiro matar involuntariamente, podia ter feito com que você matasse a Mercy.
— Não. Ele não me podia ter forçado a fazer mal à Mercy. — A voz de Stefan continha tanta raiva quanto a de Samuel, o que conferia alguma dúvida à firmeza da sua resposta.
Também ele devia ter notado, porque voltou a concentrar a atenção em mim. — Eu jurei-te, pela minha honra, que nenhum mal te seria feito esta noite. Subestimei o inimigo,
e sofreste por causa disso. Falhei com o prometido.
— «Para que o mal triunfe basta que os homens bons nada façam» — murmurei. Tivera de ler Reflexões Sobre a Revolução Francesa, de Edmund Burke, três vezes na universidade;
algumas das suas observações tinham-me parecido especialmente relevantes, para mim que fora educada com a compreensão da dimensão do mal que realmente existia no mundo.
— O que queres dizer com isso? — inquiriu Stefan.
— A minha presença naquele quarto de hotel vai ajudar-te a destruir aquele monstro? — perguntei.
— Espero que sim.
— Então o pouco que me magoei valeu a pena — disse com firmeza. — Não te martirizes por causa disso.
— A honra não é reposta assim tão facilmente — interveio Samuel, fixando-se em Stefan.
Stefan pareceu concordar, mas não havia mais nada que eu pudesse fazer por ele a esse respeito.
— Como é que sabias que havia algo de errado no Littleton? — perguntei.
Stefan interrompeu a sua competição de olhar fixo com Samuel, baixando os olhos na direção da Medea que tinha deslizado para o seu colo e ali se agachara, ronronando. Se ele
fosse humano, teria dito que tinha um ar cansado. Se tivesse baixado os olhos daquela maneira diante de um lobisomem menos civilizado, poderia ter tido problemas, porém Samuel
sabia que o facto de um vampiro baixar o olhar não era sinónimo de admitir submissão.
— Tenho um amigo chamado Daniel — disse Stefan passado um bocado. — Ele é muito novo, para os da nossa espécie, e pode dizer-se que é um bom rapaz. Há um mês, quando um vampiro
se registou num hotel local, enviaram o Daniel para verificar a razão pela qual ele não nos tinha contactado para as habituais permissões.
Stefan encolheu os ombros.
— É uma coisa que fazemos com muita frequência; não era de esperar que fosse perigoso ou invulgar. Era uma missão apropriada para um vampiro novato. — Acontece que havia na
sua voz um toque de desaprovação que me indicou que ele não teria enviado Daniel para confrontar um vampiro desconhecido. — O Daniel foi de alguma maneira desencaminhado,
não se lembra como. Uma coisa qualquer despertou-lhe a sede de sangue. Nunca chegou a ir ao hotel. Havia um pequeno grupo de trabalhadores sazonais que estavam a acampar no
pomar de cerejeiras, à espera de começar a colheita. — Trocou um olhar com Samuel sobre a minha cabeça. — Como aconteceu hoje à noite, a bagunça não foi bonita, mas foi solucionável.
Pegámos nas caravanas e nos veículos deles e fizemo-los desaparecer. O proprietário do pomar ficou a pensar que eles se tinham fartado de esperar e se puseram a andar. O Daniel
foi… punido. Não de forma demasiado dura, porque é novo e a sede é extraordinariamente forte. Mas agora, por vontade própria, não come de todo. Está a morrer de culpa. Tal
como te disse, é um bom rapaz.
Stefan inspirou, uma inalação profunda e de limpeza. Stefan em tempos dissera-me que a maior parte dos vampiros respirava porque não respirar atraía a atenção humana. No entanto,
penso que alguns deles o fazem porque não respirarem é tão perturbador para eles como é para nós. Seja como for, é evidente que se eles querem falar têm de respirar um pouco.
— No meio do frenesim — prosseguiu Stefan —, ninguém investigou o vampiro visitante que, afinal de contas, passou apenas uma noite na cidade. Nem sequer me passou pela cabeça
questionar o que tinha acontecido até ter tentado ajudar o Daniel há uns dias. Ele falou comigo sobre o que tinha acontecido, e havia qualquer coisa que simplesmente não batia
certo na história dele. Eu conheço a sede de sangue. Ele não se conseguia lembrar da razão pela qual tinha decidido viajar até Benton City, a mais de trinta quilómetros do
hotel onde devia estar. O Daniel é muito obediente, como um dos vossos lobos submissos. Não se teria desviado das suas ordens sem instigação. Ele não tem a capacidade de se
deslocar como eu, teria de ter conduzido todo o percurso: e conduzir não é uma coisa que um vampiro no auge da sede de sangue faça bem. Decidi investigar um pouco o vampiro
com quem devia ter ido ter. Não foi difícil sacar o nome dele ao rececionista do hotel onde tinha ficado. Não consegui descobrir nada sobre um vampiro chamado Cory Littleton,
mas havia um homem com esse nome a oferecer os seus serviços em assuntos de magia na Internet.
Stefan sorriu ligeiramente de face voltada para o chão.
— Estamos proibidos de transformar alguém que não seja totalmente humano. De qualquer das formas não iria funcionar, mas há histórias… — Encolheu os ombros descontente. —
Já vi o suficiente para saber que esta é uma boa regra. Quando fui em perseguição, esperava encontrar uma bruxa que tinha sido transformada. Nunca me ocorreu que pudesse ser
um feiticeiro: há séculos que não via um feiticeiro. Nos dias de hoje, a maior parte das pessoas não tem a crença no mal e o conhecimento necessário para fazer um pacto com
o demónio. Portanto pensava que Littleton era uma bruxa. Uma bruxa poderosa, contudo, para ser capaz de afetar a memória de um vampiro, mesmo sendo um novato como o Daniel.
— Por que é que foi atrás dele só com a Mercy? — perguntou Samuel. — Não podia ter arranjado outro vampiro para ir consigo?
— O Daniel tinha sido punido, o assunto foi dado por terminado. — Stefan bateu com a mão no joelho, impaciente em relação ao julgamento. — A Senhora não quis voltar a ouvir
falar nisso.
Tinha conhecido Marsilia, a Senhora do ninho de Stefan. Ficara com a impressão de que não era do tipo de se preocupar particularmente com a morte de alguns humanos, ou mesmo
de algumas centenas de humanos.
— Estava a ponderar agir ao arrepio da decisão dela, quando o vampiro regressou. Não tinha nenhuma prova das minhas suspeitas, compreendem? Na opinião de todos os outros,
o Daniel tinha sido vítima da sua sede de sangue. Portanto voluntariei-me para eu próprio falar com este desconhecido. Pensei que talvez pudesse ver se ele era alguém capaz
de fazer com que o Daniel se lembrasse de fazer coisas que na verdade não tinha feito. Levei a Mercy comigo como precaução. De facto não esperava que ele me pudesse afetar
como tinha afetado o Daniel.
— Então achas que o Daniel não matou as pessoas que achava que tinha matado? — perguntei.
— Uma bruxa que também fosse vampira talvez fosse capaz de implantar memórias, mas não seria capaz de levar o Daniel a matar. Um feiticeiro… — Stefan esticou as mãos. — Um
feiticeiro podia fazer muitas coisas. Considero-me sortudo por ele ter sentido tanta ânsia de matar que nem usou a sede de sangue a que me induziu para me levar a matar a
arrumadora de quarto, como estava meio convencido que tinha feito. Fui-me tornando arrogante ao longo dos anos, Mercedes. Na verdade, não acreditava que ele me pudesse fazer
alguma coisa. O Daniel, afinal de contas, é muito novo. A tua função era servires de salvaguarda, mas não estava à espera de precisar de ti.
— O Littleton era um feiticeiro — disse-lhe. — Um vampiro idiota qualquer escolheu transformá-lo. Quem é que fez isso? Foi alguém destas bandas? E se não, por que é que ele
está aqui?
Stefan sorriu novamente.
— Essas são perguntas que haverei de fazer à minha senhora. A transformação pode ter sido um erro, como a nossa bela Lilly.
Tinha conhecido Lilly. Era louca quando era humana, e ter-se transformado em vampira não tinha alterado isso. Era também uma pianista incrível. O seu criador tinha-se deixado
envolver tanto pela sua música que não tinha arranjado tempo para reparar em qualquer outra característica dela. À semelhança dos lobisomens, os vampiros tendem a livrar-se
de alguém que possa atrair para si uma atenção indesejada. O extraordinário dom de Lilly tinha-a protegido, embora o seu criador tivesse sido morto por ser tão descuidado.
— Como é que pode ter sido um erro? — perguntei. — Eu vi a tua reação. Cheiraste o demónio antes de termos entrado no hotel.
Abanou a cabeça.
— Os demónios não são propriamente comuns nos dias de hoje. Os possuídos pelo demónio são rapidamente enjaulados em hospitais psiquiátricos onde são dominados por drogas.
A maior parte dos vampiros mais novos nunca se cruzou com um feiticeiro. Tu própria disseste que não sabias o que tinhas cheirado até eu te dizer.
— Por que é que o demónio não impediu que esse feiticeiro se tornasse vítima do vampiro? — inquiriu Samuel. — Normalmente protegem os seus simbiontes até não quererem mais
nada com eles.
— Por que é que havia de o fazer? — intervim, varrendo mentalmente tudo o que tinha ouvido acerca de feitiçaria, que não era muito. — O único desejo dos demónios é gerar o
máximo de destruição possível. O vampirismo não faria outra coisa senão aumentar a capacidade de Littleton de criar o caos.
— Sabe alguma coisa sobre demónios, Samuel Cornick? — perguntou Stefan.
Samuel abanou a cabeça.
— Não o suficiente para servir de ajuda. Mas eu ligo ao meu pai. Se ele não souber, conhecerá alguém que saiba.
— Este é um problema que diz respeito aos vampiros.
As sobrancelhas de Samuel ergueram-se rapidamente.
— Não se o feiticeiro estiver a deixar estragos e sangue pelo caminho.
— Nós tratamos dele… e dos estragos dele. — Stefan virou-se para mim. — Tenho mais dois favores para te pedir, embora já não me devas nada.
— De que é que precisas? — A minha esperança era que não fosse nada imediato. Estava cansada e mais do que preparada para lavar o sangue das minhas mãos, tanto figurativa
como literalmente, embora temesse que a primeira se afigurasse difícil.
— Importas-te de ir até junto da minha senhora e relatar-lhe o que me contaste sobre os acontecimentos desta noite? Ela não vai querer acreditar que um vampiro recém-transformado
tivesse sido capaz de fazer o que ele fez. A notícia de um feiticeiro entre nós nunca mais será bem acolhida por nenhum dos membros do ninho.
Não tinha particular vontade de reencontrar Marsilia. Ele deve ter notado isso na minha cara, porque continuou:
— É preciso pôr-lhe travão, Mercy. — Respirou fundo uma vez mais, mais fundo do que o necessário se apenas fosse usar o ar para falar. — Vão-me interrogar ao pormenor sobre
esta noite. Vou dizer-lhes o que vi e ouvi, e eles vão perceber se o que eu digo é verdadeiro ou falso. Posso contar-lhes os acontecimentos que tu dizes que tiveram lugar,
mas não têm como saber se são verdade a menos que tu, tu própria, fales por mim. Sem a tua presença lá, vão assumir a minha recordação da morte da empregada como um facto
e as palavras que me disseste como boato.
— O que é que eles vão fazer se não acreditarem em ti? — perguntei.
— Não sou um vampiro novato, Mercedes. Se eles decidirem que pus em risco a nossa espécie ao matar aquela mulher, destroem-me, da mesma maneira que o líder do teu bando teria
de destruir um lobo para proteger os restantes.
— Está bem — concordei vagarosamente.
— Só se eu puder ir com ela — emendou Samuel.
— Uma companhia à escolha dela — aquiesceu Stefan. — Talvez o Adam Hauptman ou um dos seus lobos. Dr. Cornick, por favor não fique ofendido, mas não me parece que deva ir.
A minha senhora ficou encantada por si da última vez, e o autocontrolo nessa matéria não é o forte dela.
— Quando precisares de mim, diz-me — apressei-me a dizer antes que Samuel pudesse começar a discutir. — Eu arranjo alguém para servir de escolta.
— Obrigado — replicou Stefan, e depois hesitou: — É perigoso para ti lembrar ao ninho aquilo que tu és.
Os caminhantes não são populares entre os vampiros. Tinha concluído isso quando os vampiros vieram pela primeira vez para esta parte do Novo Mundo. Os caminhantes por estas
bandas tinham-se tornado uma praga e os vampiros exterminaram praticamente todos. Stefan recusava-se a contar-me mais pormenores. Algumas coisas tinha descoberto sozinha —
como, por exemplo, o facto de a maior parte da magia dos vampiros não ter efeito sobre mim. Contudo, não conseguia perceber em que medida é que eu representava qualquer perigo
para eles — contrariamente, por exemplo, a um lobisomem.
Stefan sabia o que eu era há quatro anos, mas mantivera segredo do seu ninho até à altura em que fui ao encontro deles para pedir ajuda. Tinha-se metido em sarilhos por causa
disso.
— Eles já sabem o que eu sou — disse-lhe. — Eu vou. Qual é o segundo favor?
— Já está muita claridade lá fora para me poder deslocar — disse, acenando vagamente com a mão em direção à minha janela. — Tens algum sítio escuro onde eu possa passar o
dia?
O único sítio onde Stefan podia dormir era o meu armário. Os armários do quarto de Samuel e do terceiro quarto tinham portas venezianas que permitiam a passagem de muita luz.
Todas as minhas janelas tinham estores, mas nada que permitisse a escuridão necessária para manter um vampiro em segurança.
O meu quarto ocupava uma das extremidades da caravana — o quarto de Samuel era na extremidade oposta. Abri a minha porta e acenei a Stefan para que entrasse, mas Samuel também
entrou. Suspirei e não barafustei. Samuel não me ia deixar a sós com Stefan sem uma discussão da qual o meu abatimento extremo não me permitiria desfrutar.
O meu quarto estava atulhado de peças de roupa, algumas sujas, algumas limpas. As peças limpas estavam dobradas em pilhas que ainda não me tinha decidido a guardar nas gavetas.
Espalhados por entre a roupa estavam livros, revistas e correio que ainda não tinha separado. Se soubesse que ia ter um homem no quarto, tinha-o arrumado.
Abri o armário e tirei do interior algumas caixas e dois pares de sapatos. Depois disso ficou vazio — com exceção dos quatro vestidos pendurados a uma lado. Era um armário
grande, suficientemente comprido para que Stefan se deitasse confortavelmente.
— O Samuel pode arranjar-te uma almofada e um cobertor — disse, pegando em peças de roupa ao mesmo tempo que falava. A minha necessidade de estar limpa vinha-se intensificando
desde que acordara, e agora era já uma necessidade desesperada. Precisava de remover da minha pele o cheiro da morte da mulher porque não conseguia tirá-lo da cabeça.
— Mercedes — disse Stefan num tom amável —, não preciso de um cobertor. Não vou estar a dormir, vou estar morto.
Não sei por que é que aquilo foi a última gota. Talvez por se tratar de uma insinuação de que não compreendia o que ele era — numa altura em que acabara de presenciar um exemplo
gráfico do que os vampiros podiam fazer. Ia a meio caminho da casa de banho, mas dei meia volta e pus-me a olhar fixamente para os dois homens.
— O Samuel vai arranjar-te um cobertor — disse-lhe com firmeza. — E uma almofada. Vais dormir no meu armário. Pessoas mortas não ficam no meu quarto.
Fechei a porta da casa de banho atrás de mim e deixei cair a manta afegã que tinha vestido no chão. Ouvi Samuel dizer «Vou buscar roupa de cama» antes de abrir a torneira
do chuveiro para que aquecesse.
A porta da minha casa de banho está totalmente revestida com um espelho. Um daqueles baratos com a imitação de um caixilho de madeira. Quando me virei para colocar a roupa
por cima do lavatório, onde não ficaria molhada, olhei para mim atentamente.
A princípio, não conseguia ver mais nada a não ser sangue ressequido. No meu cabelo, na minha cara, nos ombros, nos braços e nas ancas. Nas minhas mãos e nos meus pés.
Vomitei na sanita. Duas vezes. Em seguida lavei as mãos e a cara e passei a boca por água.
O sangue não me é completamente estranho. Afinal de contas por vezes sou coiote. Já matei a minha quota-parte de coelhos e ratos. No inverno passado matei dois homens — lobisomens.
Mas esta morte foi diferente. Malévola. Não a tinha matado por comida, vingança ou autodefesa. Tinha-a matado, a ela e a mais quatro pessoas, porque gostava disso. E eu não
tinha sido capaz de o impedir.
Olhei novamente para o espelho.
Nas minhas costelas e pescoço destacavam-se nódoas negras. Marcas roxo-escuras traçavam o percurso que o arnês tinha percorrido em torno do meu peito e costelas. Devo ter
feito isso enquanto me tentava libertar da mão de Stefan cerrada na minha trela. A pisadura na parte lateral do meu ombro direito era mais negra do que roxa. O lado esquerdo
da minha cara estava inchado da maçã do rosto até ao maxilar com um vermelho que prometia uma nódoa negra verdadeiramente espetacular.
Inclinei-me para a frente e toquei na minha pálpebra intumescida. Parecia uma vítima de violação — com exceção das duas marcas escuras no meu pescoço.
Assemelhavam-se a uma mordedura de cascavel, duas crostas escuras quase formadas rodeadas por pele inchada e avermelhada. Tapei-as com a minha mão e perguntei-me até que ponto
confiava no que Stefan dissera em relação ao facto de nem me vir a transformar em vampira nem vir a ficar sob o controlo de Littleton.
Peguei na água oxigenada e apliquei-a nos meus ferimentos, sibilando com as dores agudas. Não me fez sentir de todo mais limpa. Levei o frasco comigo para o duche e verti
o conteúdo no meu pescoço até que ficasse vazio. Depois esfreguei.
O sangue depressa desapareceu, embora por segundos a água aos meus pés ficasse da cor da ferrugem. Todavia, por muito sabonete e champô que usasse, ainda me sentia suja. Quanto
mais esfregava, mais nervosa me sentia. Littleton não me tinha estuprado, mas ainda assim tinha-me violado o corpo. O pensamento da boca dele em mim embrulhou-me novamente
o estômago.
Permaneci debaixo do chuveiro até que a água ficasse fria.
3
O meu quarto estava vazio e a porta do armário estava fechada quando finalmente emergi da casa de banho. Relanceei os olhos ao relógio. Quinze minutos para chegar à oficina
se quisesse abri-la a horas.
Ainda bem que não estava ali ninguém para me ouvir grunhir e resmungar enquanto me vestia. Pelo menos ninguém vivo.
Todos os músculos do corpo me doíam, especialmente no meu ombro direito, e assim que me curvei para enfiar as meias e os sapatos, a face maltratada do meu rosto começou a
latejar. No entanto, doer-me-ia ainda mais se perdesse clientes por não ter a oficina aberta à hora do costume.
Abri a porta do quarto e Samuel olhou para cima a partir do lugar do sofá onde estava sentado. Também ele tinha passado toda a noite acordado; devia ter ido para a cama em
vez de se pôr à minha espera para me franzir o sobrolho. Levantou-se e tirou um saco de gelo do congelador.
— Toma, põe isto na cara.
A sensação foi boa e encostei o peso do meu corpo à porta para desfrutar do adormecimento que provocou na minha bochecha latejante.
— Telefonei ao Zee e contei-lhe o que se passou — anunciou Samuel. — Podes ir para a cama. O Zee vai trabalhar na oficina por ti. Disse que amanhã pode fazer o mesmo, se precisares
dele.
Siebold Adelbertsmiter, Zee para os amigos, era um bom mecânico, o melhor. Tinha-me ensinado tudo o que sei e depois vendera-me a oficina. Também era uma criatura feérica
— e a primeira pessoa a quem tencionava recorrer para conseguir informações acerca dos feiticeiros.
Apesar de por vezes me substituir quando eu estava doente, nem sequer me tinha ocorrido telefonar-lhe para me ajudar na oficina — o que prova que provavelmente seria melhor
eu não ir trabalhar naquele dia.
— Estás trôpega — disse Samuel passado um momento. — Vai para a cama. Vais-te sentir melhor quando acordares.
— Obrigada — respondi entre dentes antes de me voltar a fechar no quarto.
Caí na cama de cara virada para baixo e soltei um grunhido porque voltei a sentir dor. Virei-me até me sentir confortável, tapei a cabeça com a minha almofada e dormitei algum
tempo, talvez uma meia hora.
Conseguia sentir o cheiro de Stefan.
Não que ele cheirasse mal — simplesmente tinha o seu cheiro, uma espécie de misto de vampiro com pipoca. Porém, não conseguia tirar da cabeça o que ele dissera acerca de estar
morto durante o dia. Uf. De maneira alguma ia ser capaz de dormir com um homem morto no meu armário.
— Obrigado, Stefan — proferi carrancudamente ao mesmo tempo que levantava a custo o meu corpo dorido da cama. Se não conseguia dormir, mais me valia ir trabalhar. Abri a porta
de acesso à sala de estar, contando que estivesse vazia, uma vez que Samuel também tinha passado a noite acordado.
Em vez disso, estava sentado à mesa da cozinha a beber café com Adam, o lobisomem Alfa local, que por acaso vivia do outro lado da minha vedação traseira.
Não tinha ouvido Adam entrar. A partir da altura em que comecei a partilhar a minha casa com Samuel, tornei-me descuidada. No entanto, devia ter percebido que ele iria aparecer
logo que Samuel lhe telefonasse — e, como é evidente, Samuel tinha de lhe telefonar por causa do banho de sangue no hotel. Adam era o Alfa, e responsável pelo bem-estar de
todos os lobisomens da zona.
Ambos olharam para mim quando abri a porta.
Senti-me tentada a dar meia volta e regressar ao meu quarto com o homem morto no armário. Não que eu seja muito vaidosa. Se alguma vez o tivesse sido, o facto de ganhar a
vida besuntada com toda a espécie de misturas de lubrificantes e porcaria ter-me-ia curado rapidamente. Ainda assim, não estava em condições de encarar dois homens sensuais
tendo um olho inchado e praticamente fechado e metade da cara preta e azul.
Stefan, estando morto, dificilmente repararia no meu aspeto — e eu nunca tinha andado com Stefan. Não que estivesse a andar com Adam ou Samuel no momento presente.
Não andava com Samuel desde os dezasseis anos.
Conheço Samuel desde sempre. Cresci no bando do Marrok, na parte noroeste de Montana, sendo um bando de lobisomens aquilo que a minha mãe encontrou como mais próximo daquilo
que eu era. Foi mero acaso o tio-avô dela pertencer aos Marrok. Um acaso afortunado, vim mais tarde a acreditar. Muitos lobisomens simplesmente ter-me-iam matado sem pensar
duas vezes — da forma que um lobo mata um coiote que invada o seu território.
Bran, o Marrok, para além de ser o governante de todos os lobos norte-americanos, era um bom homem. Acolheu-me e criou-me quase como se pertencesse ao bando. Quase.
Samuel era o filho do Marrok. Tinha estado presente enquanto lutava para viver num mundo sem lugar para mim. Tinha sido criada pelo bando, mas não era um deles. A minha mãe
amava-me, mas também não pertencia ao seu mundano universo humano.
Quando tinha dezasseis anos, acreditava ter encontrado o meu lugar junto de Samuel. Só quando o Marrok me fez ver que Samuel queria filhos — e não o meu amor —, é que finalmente
compreendi que tinha de criar o meu próprio caminho na vida em vez de me juntar ao de outra pessoa.
Deixei Samuel e o bando e não voltei a vê-los durante mais de quinze anos, quase metade da minha vida. Tudo isso mudou no passado inverno. Agora tinha o número de telemóvel
do Marrok na minha lista de acesso rápido e Samuel tinha decidido mudar-se para Tri-Cidades. Mais especificamente, tinha decidido mudar-se para a minha casa.
Ainda não tinha a certeza absoluta do motivo. A minha casa, de que muito gosto, é uma caravana com seis metros por vinte e sete, tão velha quanto eu. Samuel, sendo um médico,
está acostumado a um alojamento de qualidade ligeiramente superior.
O seu pesadelo à volta de papelada tinha demorado muito tempo a ser resolvido. Apenas no mês anterior obtivera finalmente a sua licença para exercer medicina em Washington,
bem como em Montana e no Texas. Largara o seu trabalho como funcionário no turno da noite numa loja de conveniência e começara a trabalhar nas urgências do hospital de Kennewick.
Todavia, mesmo com o aumento dos seus rendimentos, não tinha dado qualquer indício de sair. A sua breve estadia temporária em minha casa tinha-se transformado em seis meses
e algumas mudanças.
A princípio, tinha recusado a sua permanência.
— Por que não na casa do Adam? — perguntara-lhe. Como Alfa do bando de lobisomens local, Adam estava habituado a ter hóspedes por breves períodos de tempo e tinha mais quartos
do que eu. Não perguntei por que razão Samuel não comprou a sua própria casa — Samuel já me tinha dito que passara demasiado tempo sozinho nos últimos anos. Os lobisomens
não se dão bem sozinhos. Precisam de alguém, de um bando ou de uma família, senão começam a comportar-se de forma estranha. Os lobisomens que se tornam estranhos tendem a
acabar mortos — e por vezes arrastam muitas outras pessoas nessa morte.
Samuel erguera as sobrancelhas e dissera:
— Queres mesmo que nos matemos um ao outro? O Adam é o Alfa, e eu sou um dominante mais forte do que ele. É verdade que ambos vivemos tempo suficiente para nos controlarmos
até certo ponto, mas, se estivéssemos a viver juntos, mais cedo ou mais tarde íamos mandar-nos à goela um do outro.
— A casa do Adam fica a menos de cem metros da minha — afirmei secamente. O que Samuel dissera seria acertado em relação a qualquer outro lobo, mas Samuel estabelecia as suas
próprias regras. Se quisesse viver em paz com Adam, seria capaz de fazê-lo.
— Por favor. — O seu tom estava o mais distante possível do suplicante.
— Não — repliquei.
Fez-me uma nova e mais longa pausa.
— Então como é que vais explicar aos teus vizinhos o facto de teres um homem estranho a dormir no teu alpendre?
Teria sido capaz de fazer isso, portanto deixei-o mudar-se para minha casa.
Disse-lhe que da primeira vez que se fizesse a mim sairia porta fora. Expliquei-lhe que já não o amava, embora talvez tivesse tido mais impacto se eu própria estivesse inteiramente
certa disso. Era uma ajuda para mim saber que ele não me amava e não me tinha amado quando tentara fugir de casa comigo na altura em que eu tinha dezasseis anos e ele tinha
sabe-se lá quantos.
Na verdade, não era tão mau como parecia. Ele foi criado numa altura em que as mulheres casavam muito antes dos dezasseis anos. É difícil aos lobisomens mais velhos adaptarem-se
às maneiras de pensar modernas.
No entanto, quem me dera poder usar isso contra ele. Ajudava-me a manter presente na minha cabeça que ele ainda me queria apenas por causa daquilo que eu lhe podia dar: filhos
que vivessem.
Os lobisomens são feitos, não nascidos. Para que alguém se torne lobisomem, é necessário que sobreviva a um ataque tão violento que o ponha às portas da morte — o que permite
que a magia do lobisomem derrote o sistema imunitário. Muitos dos parentes do lobisomem que tentam tornar-se, também eles, lobisomens morrem durante a tentativa. Samuel tinha
vivido mais tempo do que todas as suas mulheres e filhos. De entre os seus filhos, todos aqueles que tinham tentado tornar-se lobisomens haviam morrido.
As mulheres-lobas não podem ter filhos; abortam espontaneamente durante a mudança da Lua. As mulheres humanas podem ter filhos com lobisomens, mas apenas podem transportar
até ao nascimento bebés que tenham ADN exclusivamente humano.
Todavia eu não era nem humana nem mulher-loba.
Samuel estava convencido de que eu seria diferente. Não obedecendo ao apelo da Lua, as minhas transformações não são violentas — ou sequer, na verdade, necessárias. Em tempos
permaneci três anos sem me transformar em coiote. Se os lobos e os coiotes se podem cruzar na vida selvagem, por que não lobisomens e caminhantes?
Desconheço a resposta biológica para isso, mas a minha é que não estava interessada em ser parideira, muito obrigada. Portanto, nada de Samuel para mim.
Os meus sentimentos por Samuel deviam estar impecável e ordenadamente arrumados no passado — mas acontece que não tinha sido inteiramente capaz de me convencer de que o que
sentia por ele era o afeto duradouro que qualquer pessoa sentiria por um velho amigo.
Talvez tivesse chegado a alguma conclusão em relação a Samuel — que, afinal de contas, vinha vivendo em minha casa havia mais de meio ano — se não fosse Adam.
Adam fora a minha cruz durante a maior parte do tempo que vivera em Tri-Cidades, onde governava com mão de ferro. À semelhança do Marrok, tinha uma tendência marcada para
me tratar como um dos seus subordinados quando lhe convinha, e como um vadio humano quando não lhe convinha. Ele era tirânico, para não dizer pior. Tinha-se declarado meu
companheiro diante do bando — e depois teve o descaramento de me dizer que era para a minha própria proteção, para que os lobos dele não me incomodassem, uma coiote a viver
no território deles. Assim que o disse, passou a ser verdade — e nada do que eu pudesse dizer alteraria isso aos olhos do seu bando.
No entanto, no passado inverno, tinha precisado de mim, e as coisas entre nós mudaram.
Fomos sair juntos três vezes. Durante o primeiro, eu tinha um braço partido e ele fora muito cuidadoso. No segundo, ele a sua filha adolescente, Jesse, levaram-me à apresentação
do O Rei dos Piratas pela Companhia de Ópera Ligeira de Richland. Diverti-me imenso. No terceiro encontro, o meu braço estava quase curado e não havia Jesse, como não havia
nenhum auditório de escola preparatória para refrear quaisquer impulsos apaixonados que possamos ter tido. Fomos dançar e só a filha dele que o esperava em casa e Samuel que
me esperava na minha é que nos impediram de tirar a roupa.
Depois de ele me ter levado a casa, recuperei ao ponto de me sentir assustada. Apaixonar-se por um lobisomem não é uma coisa segura — mas apaixonar-se por um Alfa é pior.
Especialmente para alguém como eu. Tinha lutado durante demasiado tempo por pertencer a mim mesma para me permitir agir em conformidade com o resto do seu bando.
Portanto, na vez seguinte que me convidou para sair, eu estava inesperadamente ocupada. Evitar alguém que vive na porta ao lado requer muito esforço, mas consegui. Ajudou-me
o facto de, com a vinda dos lobisomens a público, Adam ficar com o tempo subitamente ocupado por viagens constantes entre Washington D.C. e Tri-Cidades.
Embora ele fosse um dos cem, ou número parecido, de lobisomens que se tinham revelado ao público, Adam não era um dos testas-de-ferro de Bran — não tinha o temperamento necessário
para ser uma celebridade. Mas depois de trabalhar com o governo durante quarenta e tal anos, primeiro no exército e mais tarde como consultor de segurança, desenvolvera uma
rede de contactos bem como um entendimento da política que fazia dele um elemento inestimável para o Marrok — e para o governo, que tentava decidir como lidar com mais um
grupo de criaturas preternaturais.
Entre a sua agenda e a minha inteligente tática de fuga, não o via há quase dois meses.
Mesmo para a minha visão monocular, ele estava belo, mais belo ainda do que me lembrava. Queria demorar-me nas suas maçãs do rosto eslavas e na sua boca sensual, raios partam.
Desviei a atenção para Samuel — o que não era propriamente mais seguro. Não era tão bonito, mas isso era indiferente para as minhas hormonas estúpidas.
Samuel foi o primeiro a quebrar o silêncio.
— Por que é que não estás na cama, Mercy? — pronunciou de modo lento e arrastado. — Estás com pior aspeto do que a vítima de acidente que me morreu na mesa de operações a
semana passada.
Adam pôs-se de pé e atravessou a sala de estar em quatro longos passos enquanto eu esperava como um rato numa armadilha, consciente de que devia fugir, mas impossibilitada
de me mexer. Parou à minha frente, assobiando suavemente entre os dentes ao mesmo tempo que examinava os danos. Quando se inclinou para mais perto de mim e me tocou no pescoço,
ouvi um barulho proveniente da cozinha.
Samuel acabara de partir a chávena de café. Não levantou os olhos na minha direção enquanto limpava a porcaria.
— Isso está mau — disse Adam, voltando a atrair a minha atenção para ele. — Consegues ver desse olho?
— Não tão bem como vejo do outro — respondi. — Mas vejo suficientemente bem para perceber que não estás a caminho de Washington como era suposto. — Tivera de regressar para
a Noite da Lua, mas eu sabia que ele tinha chegado de avião ontem à tarde e estava previsto embarcar há uma hora.
Ergueu o canto da boca, e eu estava capaz de cortar a minha própria língua à dentada ao perceber que ele tinha acabado de ficar a saber que lhe andava a controlar os movimentos.
— Os planos foram mudados. Devia ter apanhado um avião para Los Angeles há umas horas. Washington foi a semana passada e será na próxima.
— Então por que é que ainda estás aqui?
O ar de divertimento desapareceu-lhe do rosto e estreitou os olhos, dizendo secamente:
— A minha ex-mulher chegou à conclusão de que está outra vez apaixonada. Ela e o novo namorado partiram para Itália por tempo indefinido. Quando telefonei, a Jesse já estava
sozinha há três dias. — Jesse era a sua filha de quinze anos que estava a viver com a mãe em Eugene durante o verão. — Comprei-lhe um bilhete de avião e deve chegar daqui
a umas horas. Disse ao Bran que não estou de serviço. Vai ter de endrominar políticos sozinho durante algum tempo.
— Pobre Jesse — repliquei. Jesse era uma das razões pelas quais sempre respeitara Adam, mesmo quando me deixava mais frustrada. Nunca tinha permitido que nada, nem negócios,
nem o bando, estivessem antes da sua filha.
— Portanto vou andar por aqui durante uns tempos. — Não foram as palavras, foi o modo como me olhou quando as pronunciou que me forçou a recuar um passo. Detesto quando isso
acontece.
Decidi mudar de assunto.
— Ainda bem. O Darryl é um tipo impecável, mas é um bocado duro com o Warren quando não estás por perto.
Darryl era o número dois de Adam e Warren o número três. Na maior parte dos bandos, as duas posições estavam tão próximas que existia sempre alguma tensão entre os lobos que
as detinham, especialmente quando o Alfa não estava por perto. A orientação sexual de Warren aumentava ainda mais a tensão.
Ser-se diferente entre os humanos é difícil. Ser-se diferente entre os lobos é normalmente mortal. Não há muitos lobisomens homossexuais que sobrevivam muito tempo. Warren
era duro, autoconfiante e o melhor amigo de Adam. A combinação era suficiente para mantê-lo vivo mas nem sempre confortável no seio do bando.
— Eu sei — disse Adam.
— Ajudava se o Darryl não fosse tão giro — interveio Samuel despreocupadamente enquanto atravessava a sala de estar para se postar ao lado de Adam.
Tecnicamente, deveria ter permanecido atrás dele, uma vez que Adam era o Alfa e Samuel era um lobo solitário, fora da hierarquia do bando. Mas Samuel não era um lobo solitário
qualquer. Era o filho do Marrok e ainda mais dominante do que Adam se quisesse testar isso.
— Atreve-te a dizer isso ao Darryl — desafiei.
— Não — cortou Adam com um sorriso, mas voz séria. Embora falasse com Samuel, nunca tinha desviado os olhos de mim. A mim disse: — O Samuel disse-me que vais precisar de uma
companhia para ir ao ninho de vampiros algures num futuro próximo. Liga-me e eu arranjo alguém que vá contigo.
— Obrigada, farei isso.
Tocou com um dedo ao de leve na minha bochecha maltratada.
— Eu próprio estaria disposto a ir, mas não me parece que fosse sensato.
Concordei inteiramente com ele. Um acompanhante lobisomem serviria simultaneamente de guarda-costas e como declaração de que não estava sem amigos. A companhia do Alfa transformar-se-ia
num jogo de poder entre ele e os líderes dos vampiros, com Stefan apanhado no meio.
— Eu sei — repliquei. — Obrigada.
Não podia permanecer naquele compartimento com aqueles dois homens nem mais um minuto. Mesmo uma mulher humana corria o risco de se afogar na testosterona que circulava no
ar, de tão forte que era. Se não me fosse embora, iam pegar-se — não me escapara a forma como os olhos de Samuel tinham embranquecido quando Adam me tocou na bochecha.
Depois havia a necessidade que eu tinha de enterrar o meu nariz no pescoço de Adam e inalar o aroma exótico da sua pele. Desviei o olhar dele e dei por mim a fitar os olhos
brancos de Samuel. Estava tão perto de se transformar que o distinto anel negro em redor das pupilas era claramente visível. Era de esperar que me assustasse.
As narinas de Samuel dilataram-se — também senti o cheiro. Excitação.
— Tenho de ir — disse, num pânico apropriado.
Acenei-lhes apressadamente enquanto saía de casa disparada, fechando prontamente a porta atrás de mim. O alívio de ter uma porta entre mim e ambos os homens foi intenso. Respirava
com dificuldade, como se tivesse acabado de fazer uma corrida, e a adrenalina afastou a dor provocada pelo ataque do feiticeiro. Inalei profundamente o ar matutino, tentando
limpar qualquer indício de lobisomem dos pulmões, antes de me dirigir para o meu carro.
Abri a porta do Rabbit e o súbito cheiro a sangue fez-me recuar abruptamente. O carro estava estacionado onde costumava deixá-lo: tinha-me esquecido de que Stefan o devia
ter usado para me trazer de volta a casa. Havia manchas em ambas as capas dos bancos dianteiros — ambos devíamos estar bastante ensanguentados. Mas a coisa mais impressionante
foi a amolgadela com a forma de um punho no tablier, mesmo acima do rádio.
Stefan ficara chateado.
Segui até à minha oficina e estacionei na extremidade do parque, ao lado da velha carrinha de Zee. Nunca se deve confiar num mecânico que conduza carros novos. Ou está a cobrar
demasiado dinheiro pelo seu serviço ou não é capaz de manter um carro velho a funcionar — talvez ambos.
O VW são carros bons. Costumavam ser carros baratos de boa qualidade; agora são carros caros de boa qualidade. Mas todas as marcas têm alguns fiascos. A VW tinha o 181 (que
pelo menos de aspeto era fixe), o Fox e o Rabbit. Calculei que num par de anos o meu Rabbit seria o único ainda a circular em toda a área de Tri-Cidades.
Deixei o Rabbit a trabalhar em ponto morto e ponderei entrar. Tinha parado na loja de peças automóveis mais próxima e escolhido capas de bancos para substituir aquelas que
tivera de deitar fora. A julgar pelos olhares enojados que o funcionário me tinha lançado, a minha cara maltratada tão cedo não ia animar o negócio.
No entanto havia quatro carros estacionados no parque, o que significava que estávamos atarefados. Se eu permanecesse na oficina, ninguém veria a minha cara.
Saí do carro, devagar. O calor seco do final da manhã envolveu-me e fechei os olhos por momentos para desfrutar dele.
— Bom dia, Mercedes — disse uma doce e velha voz. — Que belo dia.
Abri os olhos e sorri.
— Sim, Sra. Hanna, é verdade.
Tri-Cidades, contrariamente a Portland ou Seattle, não tem uma grande população permanente de sem-abrigo. As nossas temperaturas sobem bem acima dos trinta e oito graus nos
verões e descem abaixo de zero nos invernos, pelo que a maior parte dos nossos sem-abrigo apenas estão de passagem.
A Sra. Hanna parecia uma sem-abrigo, com o seu carrinho de compras maltratado, cheio de sacos plásticos com latas e outros itens úteis, mas em tempos alguém me disse que ela
vivia numa pequena caravana no parque ao pé do rio e dera aulas de piano até a artrite a impossibilitar de continuar. Depois disso, começou a calcorrear as ruas na baixa de
Kennewick, apanhando latas de alumínio e vendendo ilustrações que ela pintava em livros para colorir para poder comprar comida para os seus gatos.
O seu cabelo branco-acinzentado estava entrançado e recolhido no velho boné gasto de basebol que impedia o Sol de lhe bater no rosto. Vestia uma saia evasé de lã com soquetes
e sapatilhas com um número demasiado grande. A t-shirt dela celebrava um Spokane Lilac Festival passado há muito tempo, e a sua cor de alfazema fazia um contraste interessante
com a camisa de flanela preta e vermelha folgadamente pendurada nos seus ombros.
A idade tinha-lhe curvado as costas ao ponto de ter praticamente a mesma altura que o carrinho que empurrava. As suas mãos bronzeadas e ossudas ostentavam um verniz vermelho
lascado a condizer com o batom. Cheirava a rosas e aos gatos dela.
Franziu-me o cenho e semicerrou os olhos.
— Os rapazes não querem raparigas que tenham mais músculos do que eles, Mercedes. Os rapazes gostam de raparigas que saibam dançar e tocar piano. O Sr. Hanna, que Deus o tenha,
costumava dizer-me que eu flutuava numa pista de dança.
Esta era uma velha discussão. Ela crescera numa época em que o único lugar apropriado para uma mulher era ao pé do seu homem.
— Desta vez não foi o karaté — expliquei-lhe, tocando na minha cara ao de leve.
— Ponha umas ervilhas congeladas nisso, minha querida — disse. — Impede que o inchaço aumente.
— Obrigada — repliquei.
Acenou bruscamente com a cabeça e partiu rua fora com o carrinho a chiar. Estava demasiado calor para se usar flanela e lã, mas ela morrera numa tarde fria de primavera, alguns
meses antes.
A maior parte dos fantasmas desvanece-se passado algum tempo, portanto dali a alguns meses não teríamos mais oportunidade de conversar. Não sei por que é que ela apareceu
para falar comigo, talvez ainda estivesse preocupada com a minha condição de solteira.
Ainda estava a sorrir quando entrei no escritório.
Gabriel, o meu dispensador de ferramentas/rececionista em part-time, estava a trabalhar a tempo inteiro no verão. Relanceou os olhos para cima quando entrei e olhou uma segunda
vez, sobressaltado.
— Karaté — menti, inspirada pela suposição da Sra. Hanna, e vi como ficou mais relaxado.
Era um bom miúdo e cem por cento humano. Sabia que Zee era uma ser feérico, evidentemente, porque Zee tinha sido forçado a vir a público há alguns anos pelos Senhores Cinzentos,
que governam os seres feéricos (à semelhança dos lobisomens, os seres feéricos tinham-se revelado aos poucos para evitar alarmar o público).
Gabriel sabia de Adam porque também isso foi uma questão do domínio público. Não tinha a menor intenção de lhe abrir mais os olhos, contudo — era demasiado perigoso. Portanto,
nada de histórias de vampiros ou feiticeiros se conseguisse evitá-lo — especialmente considerando que havia alguns clientes por perto.
— Xi — disse ele. — Espero que o outro gajo esteja com pior aspeto.
Abanei a cabeça.
— Cinturão branco estúpido.
Havia dois homens sentados nas puídas mas confortáveis cadeiras no canto do escritório. Perante as minhas palavras, um deles inclinou-se para a frente e disse:
— Preferia lutar com uma dúzia de cinturões negros ao mesmo tempo do que com um cinturão branco.
O facto de estar tão bem arranjado fazia-o atraente, apesar de um nariz um tudo-nada largo e dos olhos encovados.
Iluminei o sorriso como qualquer boa mulher de negócios e repliquei com convicção:
— Eu também.
— Suponho que seja a Mercedes Thompson? — inquiriu, pondo-se de pé e acercando-se do balcão com a mão estendida.
— A própria. — Estendi a mão e ele apertou-ma com uma firmeza que faria jus a um político.
— Tom Black. — Sorriu, exibindo os dentes cor de pérola. — Ouvi falar muito de si. Mercedes, a mecânica de Volkswagens.
Como se nunca tivesse ouvido aquilo antes. Ainda assim, não soou desagradável, apenas ligeiramente atiradiço.
— Prazer em conhecê-lo. — Não estava interessada em flirts, portanto voltei a concentrar a atenção em Gabriel. — Algum problema hoje de manhã?
Sorriu.
— Com o Zee aqui? Olhe uma coisa, Mercy, a minha mãe disse-me para lhe perguntar se quer que elas venham este fim-de-semana para voltar a fazer a limpeza.
Gabriel tinha um generoso punhado de irmãs — a mais nova na pré-primária e a mais velha à beira de entrar no ensino secundário —, todas sustentadas pela mãe viúva que trabalhava
como despachante do Departamento de Polícia de Kennewick, uma carreira não muito bem remunerada. As duas raparigas mais velhas vinham aparecendo de forma mais ou menos regular
para fazer a limpeza do escritório. Também elas faziam um bom trabalho. Não me tinha apercebido de que a película na minha janela da frente era massa lubrificante — pensava
que Zee lhe tinha feito alguma espécie de tratamento para bloquear a entrada do Sol.
— Parece-me bem — disse-lhe. — Se não estiver aqui, podem usar a tua chave.
— Eu digo à minha mãe.
— Muito bem. Vou meter-me na oficina, longe da vista dos outros. Não quero afugentar os clientes.
Dirigi a Tom Black um aceno rápido, amigável mas distante. Em seguida, parei para trocar algumas palavras com o outro homem que estava à espera. Era um velho cliente que gostava
de conversar. Depois entrei à sorrelfa na oficina antes que mais alguém pudesse entrar.
Deparei com Zee deitado de costas por baixo de um carro, portanto só o via da barriga para baixo.
Siebold Adelbertsmiter, o meu antigo patrão, é uma velha criatura feérica, um metalúrgico — o que é invulgar para os seres feéricos, que na sua maioria, não conseguem manusear
ferro frio. Auto-denomina-se gremlin, embora seja bastante mais velho do que o nome, criado por aviadores na Primeira Guerra Mundial. Sou licenciada em História, portanto
sei coisas inúteis como essa.
Tinha aspeto de um homem cinquentão, a pender para o magro (com uma pancinha) e mal-humorado. Apenas a parte do mal-humorado era verdadeira. Graças ao glamour, um ser feérico
pode escolher a aparência que quiser. O glamour é o elemento que distingue um ser feérico — em contraste com, por exemplo, uma bruxa ou um lobisomem.
— Ei, Zee! — exclamei ao constatar que não dava quaisquer sinais de ter notado a minha presença. — Obrigada por teres vindo hoje.
Saiu de debaixo do carro e franziu-me acentuadamente o sobrolho.
— Tens de te manter longe dos vampiros, Mercedes Athena Thompson. — Tal como a minha mãe, só usava o meu nome completo quando estava zangado comigo. Jamais lho diria, mas
de certo modo sempre gostei da forma como soa quando pronunciado com um sotaque alemão.
Analisou o meu rosto num único soslaio e continuou:
— Devias estar em casa a dormir. De que serve teres um homem em casa se ele não é capaz de tomar conta de ti durante algum tempo?
— Hmmm — pronunciei. — Desisto. De que serve ter um homem em casa?
Não sorriu, mas já estava habituada a isso.
— Adiante — continuei bruscamente, embora continuasse a falar em voz baixa para que as pessoas no escritório não ouvissem nada. — Estão dois lobisomens e um vampiro morto
na minha casa e achei que estava suficientemente cheia para poder passar sem a minha presença durante algum tempo.
— Mataste um vampiro? — Lançou-me um olhar de respeito, o que era bastante impressionante considerando que ainda estava deitado de costas na prancha.
— Não. Foi o Sol. Mas o Stefan deve recuperar a tempo de enfrentar a Marsilia esta noite.
Pelo menos supunha que seria esta noite. Não sabia grande coisa sobre os vampiros, mas os julgamentos dos lobisomens tendem a ter lugar imediatamente e não seis meses após
um crime. Também terminam numa questão de horas, por vezes minutos, em vez de meses. Não consegues convencer o Alfa do teu bando de que representas menos sarilhos para ele
vivo do que morto? Azar. A lei do bando, necessariamente brutal, era uma daquelas coisas terríveis que Bran vinha mantendo em segredo há algum tempo.
— O Samuel disse-me que vais estar num julgamento do vampiro.
— Telefonou-te — reagi indignada. — O que é que ele fez? Pediu-te que lhe ligasses quando eu chegasse aqui sã e salva?
Zee esboçou um sorriso pela primeira vez e sacou do telemóvel. Com os dedos manchados de óleo, marcou o meu número.
— Ela está aqui — indicou. — Chegou impecável.
Desligou sem esperar por uma resposta e ampliou o sorriso enquanto marcava outro número. Também conhecia aquele. Mas, não fosse ele escapar-me, usava nomes.
— Olá, Adam — disse. — Ela está aqui. — Pôs-se a ouvir por um momento; fiz o mesmo, mas ele devia ter o volume em baixo porque a única coisa que conseguia ouvir era o rumor
prolongado de uma voz masculina. O sorriso de Zee transformou-se num esgar malévolo. Olhou para mim e disse:
— O Adam que saber por que é que demoraste tanto tempo.
Comecei a revirar os olhos, mas isso fez com que o ferimento que me ocupava metade da cara doesse ainda mais, pelo que parei.
— Diz-lhe que fiz sexo selvagem e apaixonado com um completo desconhecido.
Não me mantive por perto para ouvir se Zee transmitia a minha mensagem ou não. Tirei o meu fato-macaco do cabide e afastei-me a passos largos em direção à casa de banho.
Os lobisomens são obcecados pelo controlo, lembrei a mim mesma ao mesmo tempo que me vestia para trabalhar. O facto de serem obcecados pelo controlo permite-lhes dominar o
lobo que têm neles — o que é bom. Se não gostasse dos efeitos secundários, não devia andar com lobisomens. Coisa que não faria se não tivesse um a viver comigo e outro a viver
do outro lado da minha vedação traseira.
Contudo, sozinha na casa de banho, fui capaz de admitir a mim mesma que embora estivesse mesmo muito zangada… teria ficado desapontada se não tivessem verificado como eu estava.
Que tal a minha incoerência?
Quando saí, Zee confiou-me o trabalho de reparação seguinte. Posso ter-lhe comprado o negócio, mas quando trabalhávamos juntos, era ele quem ainda dava as ordens. Em parte
devido ao hábito, creio, mas sobretudo porque, embora eu seja uma boa mecânica, Zee é mágico. Literal e figurativamente.
Se não fosse a sua tendência para se aborrecer com coisas fáceis, jamais me teria contratado. Nesse caso, teria de ter tirado o meu curso em artes liberais e arranjado um
emprego no McDonald’s ou no Burger King, como acontece com todos os restantes licenciados em História.
Trabalhámos solidariamente em silêncio durante algum tempo até eu deparar com um trabalho que requeria quatro mãos em vez de duas.
Enquanto fazia rodar o roquete, Zee, que estava a segurar-me numa peça, disse:
— Dei uma espreitadela por baixo daquela cobertura — e acenou em direção ao canto da oficina, onde o meu mais recente projeto de restauro repousava à minha espera.
— Bonito, não é? — perguntei-lhe. — Ou pelo menos vai ficar quando o arranjar. — Tratava-se de um Karmann Ghia de 1968, num estado quase prístino.
— Vais restaurá-lo ou transformá-lo?
— Não sei — respondi. — A pintura ainda é a original e só tem uma rachadelazinha no capô. Detestava fazer-lhe alterações a menos que me visse obrigada. Se conseguir pô-lo
a andar bem com as peças originais e o Kim puder remendar os bancos, fico-me por aí.
Há três grupos de entusiastas de carros antigos: pessoas que acham que um carro devia permanecer tão intacto quanto possível; aqueles que o põem melhor do que quando saiu
da fábrica; e as pessoas que o esventram e substituem os travões, o motor e a suspensão por equipamentos mais modernos. Zee insere-se declaradamente no último.
Ele não é sentimental — se alguma coisa funciona melhor, é isso que se deve usar. Suponho que quarenta ou cinquenta anos não tenham para ele o mesmo significado que têm para
todos nós — a antiguidade de uma pessoa é calhambeque enferrujado de uma outra.
Considerando que uma boa parte do meu rendimento provém do restauro de calhambeques enferrujados, não sou esquisita. Tenho uma parceria com um génio do estofamento, Kim, e
um pintor que também gosta de conduzir por aí a exibir os carros para que possamos vendê-los. Depois de deduzirmos o custo material do restauro e das exibições, dividimos
os lucros de acordo com as horas dispendidas no projeto.
— Sendo arrefecido a ar implica muitas despesas de conservação — disse Zee.
— Uma pessoa que queira um Ghia conforme saído da fábrica não se vai importar com isso — repliquei. Grunhiu, não muito convencido, e voltou a pôr mãos ao trabalho.
Gabriel tinha saído com o meu Rabbit para comprar sandes, e depois apareceu na oficina para comer connosco. Destapei o Ghia, e os três pusemo-nos a comer e a discutir a melhor
coisa a fazer ao carro até se meter a hora de regressar ao trabalho.
— Zee — chamei enquanto ele erguia um Passat no ar para dar uma olhadela ao escape.
Começou a resmungar ao mesmo tempo que batia ao de leve com o dedo indicador na zona do tubo de escape que estava bastante dentada, mesmo em frente do primeiro silencioso.
— O que sabes tu sobre feiticeiros?
Parou de bater com o dedo e suspirou.
— Os velhos gremlins desviam-se do seu caminho para se manterem longe dos hospedeiros do demónio, e já lá vai algum tempo desde que os humanos acreditavam no diabo ao ponto
de lhes venderem a alma.
Fiquei um pouco atordoada. Não que não acreditasse no mal — bem pelo contrário. Tive provas mais que suficientes da existência de Deus, portanto aceitava que o Seu oponente
também existisse. Simplesmente não tinha particular interesse em saber que alguém que tinha feito um acordo com Satanás andava escondido a quinze quilómetros da minha casa
a matar empregadas de hotel.
— Pensava que era apenas um demónio — disse com a voz frouxa.
— Ja — replicou; em seguida, voltou-se e viu a minha cara. — Diabo, demónio… O português é uma língua imprecisa nestas coisas. Há coisas que servem a Grande Besta da escritura
cristã. Espíritos, demónios ou diabos, maiores ou menores, e todos servem o mal. Os serventes maiores estão ausentes do nosso mundo, mas podem ser convidados a integrá-lo,
do mesmo modo que um vampiro não pode entrar numa casa sem um convite.
— Muito bem. — Respirei fundo. — Que mais é que sabes?
Zee levantou o braço e colocou a mão no tubo.
— Não muito, Liebchen. Os poucos homens com que me cruzei que afirmavam ser feiticeiros não passavam de homens tentados pelo demónio quando os conheci.
— Qual é a diferença?
— A diferença está em quem detém as rédeas. — O tubo de escape começou a emanar uma brilhante luz vermelho-cereja debaixo da mão de Zee. — Os demónios apenas servem a um mestre,
e aqueles que esquecem isso tendem a tornar-se escravos bastante depressa. Aqueles que se lembram podem permanecer em controlo mais algum tempo.
Franzi-lhe o sobrolho.
— Portanto todos os possuídos pelo demónio começam como feiticeiros?
Zee abanou a cabeça.
— Há muitos tipos de convites, intencionais ou não. Feiticeiro, possuído pelo demónio, não interessa. No fim de contas o demónio está em controlo.
O tubo de escape produziu um ruído estrondoso e recuperou a forma apropriada. Os olhos de Zee encontraram-se com os meus.
— Esta criatura anda a brincar com os vampiros, Mercy. Mantém-te afastada disso. O ninho está mais bem equipado do que tu para lidar com a situação.
Às cinco e meia tinha o braço enfiado até ao cotovelo numa Transporter para lhe afinar o motor, portanto disse a Gabriel que fechasse o escritório e tentei mandá-lo a ele
e a Zee embora. A minha cara maltratada tornou-os mais relutantes do que o habitual em deixar-me a trabalhar sozinha, mas acabei por conseguir persuadi-los a ir.
Enquanto Zee lá tinha estado, mantivera o ar condicionado a funcionar e as portas da oficina fechadas, mas ao contrário dos lobisomens, gosto do calor do verão. Pelo que,
assim que fiquei sozinha, desliguei o ar frio e abri as portas basculantes.
— Isso ajuda?
Olhei para cima e constatei que o cliente que ali estivera de manhã se encontrava postado no limiar da porta basculante.
— Tom Black — relembrou-me.
— Isso o quê? — perguntei enquanto limpava as mãos e bebia um gole de água da garrafa precariamente equilibrada no para-choques do carro.
— Sussurrar — respondeu. — Estava aqui a perguntar-me se ajudaria.
Houve qualquer coisa no modo como o disse que me incomodou — como se fosse um grande amigo meu em vez de alguém com quem apenas tinha trocado umas breves palavras. O seu comentário
anterior em relação aos cinturões brancos não fazia dele um praticante de artes marciais, mas o seu movimento corporal ao entrar na minha oficina sim.
Mantive uma expressão amável, embora o coiote em mim quisesse levantar o lábio. Ele estava a invadir o meu território.
— Não me tinha apercebido de que estava a sussurrar — disse-lhe. — Este é o último carro em que vou trabalhar hoje. — Sabia que não era o carro dele, porque se tratava de
um em que trabalhava regularmente. — Se o Gabriel não lhe telefonou, é porque provavelmente só vamos ver o seu carro amanhã.
— Como é que uma mulher bonita como você se tornou mecânica? — perguntou.
Inclinei a cabeça de modo a conseguir vê-lo melhor através do meu olho funcional. Gabriel dissera-me que se eu tivesse mantido um saco de gelo sobre ele durante mais tempo,
não teria inchado tanto. Em dias bons, a minha aparência era sofrível, hoje hedionda e horrível seriam mais apropriadas.
Se estivéssemos em território neutro, provavelmente tinha-lhe dito algo como «Eh pá, não sei. Como é que um homem bem-parecido como você consegue ser um idiota tão metediço?»
No entanto, aquele era o meu local de trabalho e ele era um cliente.
— Da mesma maneira que todos os outros mecânicos bonitos, suponho — respondi. — Ouça, tenho de acabar isto. Por que é que não telefona amanhã de manhã e nessa altura o Gabriel
pode dar-lhe uma estimativa de quando o seu carro estará pronto?
Caminhei em frente ao mesmo tempo que o disse. Era de esperar que o movimento o tivesse feito recuar, porém manteve-se quieto, portanto tive de parar sob pena de me aproximar
demasiado dele. Cheirava a protetor solar de coco e fumo de cigarro.
— Na verdade já tinha vindo buscar o meu carro — explicou. — Passei por cá esta noite para falar consigo.
Era humano, mas distingui nos seus olhos o mesmo olhar predador que os lobos tinham quando estavam numa caçada. Estar na minha própria oficina tinha-me feito sentir segura
de mais e deixara-me chegar demasiado perto dele. Tinha armas de sobra na forma de chaves de porcas e pés-de-cabra, mas estavam todas fora do meu alcance.
— Ah, sim? — repliquei. — Porquê?
— Queria perguntar se gosta de andar com um lobisomem. Sabia que ele era um lobisomem quando começou a andar com ele? Teve relações sexuais com ele? — A sua voz adquiriu um
súbito tom lancinante.
Era uma mudança tal de assunto que pestanejei estupidamente por momentos.
Este homem não tinha o cheiro de um fanático — o ódio tem o seu odor característico. Quando Zee se revelou pela primeira vez, houve um grupo de pessoas que fez uma marcha
em volta da oficina com placards. Alguns deles apareceram uma noite e pintaram com spray PAÍS DAS FADAS em letras vermelhas e furiosas nas portas da minha oficina.
Tom Black exalava um cheiro intenso — como se as respostas para as suas perguntas fossem verdadeiramente importantes para ele.
Lá fora, um motor Chevy 350 penetrou no meu parque de estacionamento e reconheci o seu ruído surdo. Os meus receios desapareceram ao aperceber-me de que só havia uma razão
para as questões que me tinha colocado.
Semicerrei-lhe os olhos.
— Raios partam — disse repugnada. — Você é um repórter.
Algumas das revelações dos lobisomens atraíram deliberadamente a atenção, de acordo com as ordens do Marrok: heróis do exército ou da polícia e corpos de bombeiros, bem como
uma ou outra estrela de cinema. Adam não era um deles. No entanto, conseguia perceber por que é que alguém enviaria um repórter para farejar em volta dele. Não só era um Alfa
como era um Alfa bonito. Mal podia esperar para ouvir o que Adam diria quando descobrisse que alguém se andava a intrometer na sua vida amorosa.
— Posso fazer de si uma mulher rica — disse-me Black, encorajado, creio, pelo meu sorriso. — Quando chegarmos ao fim do que tiver para me dizer, será uma celebridade com a
mesma notoriedade que a dele. Pode vender a sua história às estações de televisão.
Resfoleguei.
— Vá-se embora.
— Problemas, Mercy? — O tom de voz arrastado e lento do Texas fez com que o repórter desse meia volta. Presumo que não tivesse ouvido Warren e a sua companhia entrar na oficina.
— Nenhum problema — respondi a Warren. — O Sr. Black estava de saída.
Warren parecia saído de um anúncio aos «Genuínos Vaqueiros do Oeste», com o remate de um par de botas puídas e um chapéu de palha gasto. Tinha direito a isso: fora um vaqueiro
genuíno no velho oeste na altura em que sofrera a Transformação. Era o meu favorito entre os lobos de Adam e ao seu lado estava Ben, uma recente importação da Grã-Bretanha
— e o candidato em melhor posição para vencer o título de lobo de que menos gosto. Nenhum deles estava entre os lobos «tornados conhecidos», não ainda. No caso de Ben, provavelmente
nunca. Escapara por um triz à prisão na sua terra natal e fora discretamente enviado para a América para desaparecer.
O repórter sacou da carteira e estendeu o seu cartão. Peguei nele porque a minha mãe me ensinou a ser educada.
— Vou estar por estas bandas — disse. — Ligue-me se mudar de ideias.
— Farei isso — retorqui.
Ambos os lobisomens se viraram para observar a sua partida. Só depois de o carro dele estar bem longe é que voltaram a concentrar a atenção em mim.
— Gosto do que fizeste à tua cara — comentou Ben, batendo com a mão no próprio olho.
Podia ter-me salvado a vida uma vez e levado com uma bala por Adam, mas isso não significava que eu tinha de gostar dele. Não era tanto pelo facto de ter sido enviado para
o bando de Adam de forma a impedir que fosse interrogado pela possível ligação a uma série de violações violentas em Londres. Acredito na inocência até prova em contrário.
Era antes pelas características que tinham feito com que a polícia londrina o procurasse a ele em primeiro lugar: era um homem mesquinho, mau e violento. Tudo aquilo que dizia
saía na forma de sarcasmo ou ameaça, tudo no seu elegante sotaque britânico. Se fosse uma pessoa só um nadinha melhor, talvez tivesse falado com ele só para lhe ouvir a voz,
gostando ou não gostando dele.
— Não fui eu que decorei a minha cara, mas de qualquer forma obrigada. — Regressei à carrinha para fechá-la. Tinha perdido o balanço que me mantinha a trabalhar, e a única
coisa que queria era encontrar um sítio para dormir. Um sítio sem um vampiro morto no armário. Raios partam. Onde é que eu ia dormir?
— O que fazem vocês os dois por cá? — perguntei enquanto fechava a porta traseira da carrinha.
— O Adam disse para ficarmos contigo até teres notícias dos vampiros. Ele acredita que vai ser pouco depois de anoitecer. Não quer que vás ter com eles sozinha.
— Não tens de trabalhar hoje à noite? — Warren trabalhava numa bomba de gasolina/loja de conveniência aberta vinte e quatro horas por dia, não muito longe da minha casa —
tinha arranjado um emprego lá para Samuel na altura em que foi viver comigo.
— Não, despedi-me a semana passada. Mudaram outra vez de gerente e este queria limpar a casa. Por isso pensei em despedir-me antes de ser despedido. — Fez uma pausa e depois
prosseguiu: — Tenho andado a trabalhar para o Kyle. Ganho mais em part-time do que ganhava na loja de conveniência a tempo inteiro.
— Para o Kyle? — perguntei esperançosamente.
Conhecia Warren há muito tempo e tinha conhecido talvez uma dúzia dos seus namorados. A maior parte deles não tinha valido a pena conhecer — mas gostava de Kyle. Era um advogado
bem-sucedido, vestia-se magnificamente e era montes de divertido. Vinham vivendo juntos há algum tempo quando Kyle finalmente descobriu que Warren era um lobisomem. Kyle saiu
de casa. Sabia que tinham saído juntos algumas vezes desde então, mas nada mais sério.
Warren baixou os olhos.
— Sobretudo algum trabalho de vigilância e, uma vez, servi de guarda a uma mulher que tinha medo do seu quase ex-marido.
— O Kyle tem medo de nós — interveio Ben, mostrando os dentes num sorriso rasgado.
Warren olhou para ele e Ben parou de sorrir.
— Obviamente nunca conheceste o Kyle — virei-me para Ben. — Qualquer pessoa que seja advogado de divórcios há tanto tempo como o Kyle tem medo de poucas coisas.
— Menti-lhe — disse-me Warren. — Uma coisa como essa aloja-se na cabeça de um homem.
Era altura de mudar de assunto. Ben podia estar dominado de momento, mas isso não ia durar.
— Vou lavar as mãos e a cara e mudar de roupa. Volto já.
— O Samuel disse que a noite passada não dormiste nada — comentou Warren. — Tens algumas horas até que os vampiros te chamem. Paramos para jantares alguma coisa e depois vamos
para a tua casa para poderes dormir um bocado?
Abanei a cabeça.
— Não consigo dormir com um homem morto no meu armário.
— Mataste alguém? — perguntou Ben com interesse.
Warren exibiu um sorriso rasgado, uma expressão que lhe desenhou pequenas rugas à beira dos olhos.
— Não, desta vez não. O Samuel disse que o Stefan tinha de passar o dia no armário da Mercy. Tinha-me esquecido disso. Queres dormir uma soneca em minha casa? Lá não há pessoas
mortas. — Lançou um olhar de relance a Ben. — Pelo menos ainda não.
Estava cansada, doía-me a cara, e o ímpeto de adrenalina que o repórter me causara estava a abrandar.
— Melhor ideia seria impossível. Obrigada, Warren.
A casa de Warren ficava em Richland, metade de um duplex que já tinha conhecido melhores dias. O interior estava em melhor estado do que o exterior, mas ainda tinha aquela
aura de estudante universitário, definida por montes de livros e móveis em segunda mão.
O quarto vago em que Warren me pôs tinha o seu cheiro — devia andar a dormir lá e não no quarto que partilhara com Kyle. Achei o perfume dele reconfortante; ele não jazia
morto no armário. Não tive dificuldade em adormecer ao som suave dos dois lobisomens a jogar xadrez no piso de baixo.
Acordei na escuridão com o cheiro de pimentos e óleo de sésamo. Alguém tinha ido buscar comida chinesa. Passara-se muito tempo desde o almoço.
Saí da cama e desci as escadas em passo rápido na esperança de que não tivessem comido tudo. Quando cheguei à cozinha, Warren ainda estava a distribuir por três pratos comida
acondicionada em embalagens de esferovite.
— Oba — disse, inclinando-me sobre Warren para ver melhor a comida. — Carne de vaca com pimentos. Acho que estou apaixonada.
— O coração dele já tem dono — comentou Ben atrás de mim. — E mesmo que não tivesse, ele não está interessado no teu género. No entanto, eu estou disponível e disposto.
— Tu não tens coração — disse-lhe. — Apenas um grande buraco onde ele devia estar.
— Mais uma razão para me dares o teu.
Bati com a testa nas costas de Warren.
— Diz-me que o Ben não se está a fazer a mim.
— Ei — cortou Ben, soando ofendido. — Estava a falar de canibalismo, não de romance.
Era quase engraçado. Se gostasse mais dele, tinha-me rido.
Warren deu pancadinhas leves no meu cocuruto e disse:
— Está tudo bem, Mercy. É só um pesadelo. Assim que comeres, vai passar.
Despejou o que restava do arroz num dos pratos.
— O Adam telefonou há uns minutos. Disse-lhe que estavas a dormir e ele pediu-me para não te acordar. Contou-me que o Stefan saiu da tua casa há coisa de meia hora.
Olhei de relance através da janela e constatei que já estava a escurecer.
Warren reparou no meu soslaio e disse:
— Alguns dos vampiros antigos acordam cedo. Não acredito que vás receber um telefonema antes de ser noite cerrada.
Distribuiu os pratos cheios e entregou-nos talheres e guardanapos, após o que nos enxotou da cozinha para a sala de jantar.
— Muito bem — disse Ben depois de termos estado a comer durante alguns minutos. — Então por que é que não gostas de mim, Mercy? Sou bonito, inteligente, espirituoso… Para
não mencionar o facto de te ter salvado a vida.
— Não voltemos a mencionar isso — repliquei, enfiando carne picante pela goela abaixo. — Ainda fico doente.
— Detestas mulheres — disparou Warren.
— Não é verdade — retorquiu Ben num tom indignado.
Engoli em seco, ergui uma sobrancelha e cravei a atenção nele até que desviasse os olhos. Assim que se apercebeu do que tinha feito, voltou a levantar a cabeça com uma sacudidela
e os nossos olhares encontraram-se novamente. Mas era tarde de mais, eu tinha ganhado, e ambos sabíamos disso. Com os lobos, coisas como estas têm importância. Se algum dia
me cruzasse sozinha com ele num beco escuro, talvez fosse capaz de me comer — mas primeiro teria hesitado.
Exibi-lhe um sorriso presunçoso.
— Qualquer pessoa que tenha falado contigo mais do que dois minutos sabe que detestas mulheres. Acho que sou capaz de contar pelos dedos de uma mão as vezes que disseste a
palavra «mulher» em vez de a substituíres por um epíteto referente aos genitais femininos.
— Ei, não é assim tão mau — interveio Warren. — Às vezes chama-lhes vacas e pegas.
Ben apontou um dedo a Warren — suponho que a mãe nunca lhe tenha ensinado boas maneiras.
— Diz isso alguém que não gosta de… — Na verdade teve de fazer uma pausa e alterar a palavra que ia usar — … hum, mulheres.
— Eu gosto muito de mulheres — disse-lhe Warren, reunindo o arroz que lhe restava para colocá-lo no garfo. — Mais do que gosto de homens. Apenas não quero dormir com elas.
O meu telemóvel tocou, e eu inalei, aspirando um grão de pimenta para a minha traqueia. A tossir, engasgada e com os olhos lacrimejantes, encontrei o meu telemóvel e acenei-o
a Warren para que o atendesse enquanto eu bebia água.
— Está bem — disse. — Nós levamo-la lá. Ela sabe onde fica? — Olhou para mim e com os lábios disse «ninho».
Fiz que sim com a cabeça e senti um aperto no estômago. Sabia onde ficava.
4
Atravessámos de carro os portões abertos de ferro forjado e entrámos num pátio brilhantemente iluminado em frente à gigantesca casa de adobe, estilo casarão de herdade, que
servia de residência ao ninho de Tri-Cidades. Warren estacionou a sua carrinha maltratada atrás de um BMW num caminho circular que já estava repleto de carros.
Da última vez que lá tinha estado, fora com Stefan. Tinha-nos levado pelo caminho de trás em direção a uma casa de hóspedes mais pequena, erigida no jardim das traseiras.
Desta vez caminhámos diretamente até à porta frontal da casa principal e Warren tocou à campainha.
Ben inalou o ar nervosamente.
— Eles estão a observar-nos. — Também eu lhes sentia o cheiro.
— Sim. — De nós os três, Warren era visivelmente o menos preocupado. Não era o tipo de pessoa que se enervasse por causa de coisas que ainda não tinham acontecido.
O que me incomodava não era ser observada. O que iria acontecer se os vampiros não acreditassem em mim? Se acreditassem que Stefan de facto tinha perdido o controlo, iam executá-lo.
Esta noite. Os vampiros não tolerariam ninguém que ameaçasse a segurança e o secretismo do seu ninho.
Não sendo eu uma vampira, a minha palavra não ia valer grande coisa aqui — era possível que nem sequer me ouvissem.
Nunca tivera a certeza do que Stefan realmente sentia por mim. Fora educada segundo o princípio de que os vampiros não são capazes de sentir afeição por alguém que não eles
próprios. Podem fingir que gostam de alguém, mas haveria sempre uma motivação ulterior para as suas ações. Mas mesmo que ele não fosse meu amigo, eu era amiga dele. Se a morte
dele acontecesse por culpa minha, por não ter dito ou feito alguma coisa da forma certa… Simplesmente tinha de fazer tudo da forma certa, tinha de fazer com que me dessem
ouvidos.
A porta abriu-se de par em par, produzindo um curioso gemido. Não estava ninguém na entrada.
— Só falta a música assustadora — disse eu.
— De facto parecem estar a fazer de tudo — concordou Warren. — Pergunto-me por que é que se estão a esforçar tanto por te intimidar.
Ben tinha-se acalmado um bocado, provavelmente por Warren estar tão tranquilo.
— Se calhar têm medo de nós.
Lembrei-me dos vampiros que tinha visto da última vez que aqui estivera e achei que Ben estava enganado. Eles não tinham tido medo de Samuel. Eu vira Stefan levantar a carrinha
VW sem macaco, e o ninho encontrava-se cheio de vampiros. Se quisessem desfazer-me em pedaços conseguiam fazê-lo, e não havia absolutamente nada que Warren e Ben (se assim
o quisesse) pudessem fazer para o impedir. Eles não tinham medo de nós. Talvez apenas gostassem de amedrontar as pessoas.
Warren deve ter pensado a mesma coisa, porque disse:
— Ná, estão só a divertir-se connosco.
Entrámos cautelosamente na casa, primeiro Warren, depois eu, e Ben na retaguarda. Teria ficado mais contente com Ben à minha frente. Podia estar disposto a levar com uma bala
por Adam, mas a mim, tinha a certeza absoluta, não se importava nada de comer.
Não havia vivalma na entrada, ou na salinha de estar onde desembocava, portanto continuámos a caminhar através do vestíbulo. Um dos lados do vestíbulo tinha três portas com
topos em arco, todas fechadas, mas o outro lado dava para um compartimento muito amplo e arejado, com um pé-direito alto e iluminação encastrada. As paredes estavam guarnecidas
com quadros reluzentemente coloridos, alguns deles com uma altura que ia do chão ao teto. As paredes estavam pintadas num tom amarelo suave que lhes conferia luminosidade
e alegria, apesar de não haver janelas.
O chão era feito de tijoleira de argila escura numa série de castanhos avermelhados. Tapetes finos de cores neutras estavam espalhados quase ao acaso. Três sofás e cinco cadeiras
de aspeto confortável, com um tom coral bastante aterrador que de certo modo funcionava com o resto do ambiente típico do sudoeste, estavam dispostos em redor de uma enorme
cadeira de madeira — que dava a impressão de pertencer a uma mansão gótica, em vez de estar rodeada por todas as cores luminosas da sala.
Warren tinha começado a caminhar, mas eu não o segui. Havia qualquer coisa naquela cadeira…
A madeira era escura, porém os veios pareciam-me de madeira de carvalho. Estava toda entalhada, desde as pernas em forma de pata de leão à gárgula agachada no topo das altas
costas. Cada uma das pernas tinha um anel de latão a cerca de um terço da sua altura. Os braços eram inteiramente feitos de latão forjado com videiras, florezinhas e espinhos
de aparência delicada. Na extremidade de cada braço, um dos espinhos estava espetado para cima com uma ponta afiada.
Quando estava próxima dela, à beira de tocá-la, apercebi-me de que estava a sentir a presença da sua magia desde a entrada — simplesmente não sabia o que era. Para mim, a
magia normalmente desperta-me uma sensação de formigueiro, como se estivesse a mergulhar a minha pele em água com gás. Esta manifestava-se num tamborilar lento e grave, como
se alguém estivesse a bater num tambor muito grande e eu tapasse os ouvidos de modo a sentir, mas não ouvir.
— Mercy? — perguntou Warren do limiar da porta. — Não acho que devêssemos andar a explorar.
— Conseguem sentir o cheiro disto? — inquiriu Ben à altura do meu joelho. Olhei para baixo e reparei que ele estava de quatro com a cabeça estendida e ligeiramente levantada.
Fechou os olhos e inspirou profundamente. — Há sangue velho naquela cadeira — concluiu.
Ia perguntar-lhe sobre aquilo, mas o primeiro vampiro entrou. Nunca o tinha visto. Em vida tinha sido um homem de estatura média, irlandês, a julgar pelo cabelo ruivo. Os
seus movimentos eram rígidos e graciosos ao mesmo tempo, lembrando-me a forma como um opilião se move. O vampiro passou por Warren e atravessou a sala sem olhar para nenhum
de nós. Sentou-se num banquinho que não tinha notado, próximo da parede mais distante.
A chegada do vampiro pareceu responder a quaisquer dúvidas que Warren tivesse. Acompanhando os movimentos do vampiro, adotou uma apropriada postura de guarda-costas à minha
direita. Ben pôs-se de pé e colocou-se mesmo atrás e à minha esquerda, portanto estava flanqueada pelos lobisomens.
No espaço de poucos minutos, os restantes lugares da sala estavam repletos de vampiros. Nenhum deles olhou para nós ao entrar. Entendera o gesto como um insulto, mas acontece
que também não se olharam entre si.
Contei baixinho: quinze vampiros. Davam um espetáculo impressionante, quanto mais não fosse pelas suas vestimentas. Sedas, cetins, brocados em todas as cores do arco-íris.
Um ou dois vestiam modernos fatos de negócios, mas a maioria vestia trajes de época, tudo desde o período medieval até ao presente.
De certo modo esperava cores mais escuras, mas não vi nada preto ou cinzento. Os lobisomens e eu não estávamos trajados à altura da ocasião. Não que eu me importasse com isso.
Assim que entrou na sala, reconheci a mulher que tinha confiscado a cruz de Samuel da última vez em que eu aqui tinha estado. Sentou-se numa das cadeiras corais como se fosse
um banco, as costas esticadas como as de uma dama vitoriana num espartilho apertado, embora envergasse um vestido de seda verde-água com contas nas orlas, da década de 1920,
que parecia estranhamente frívolo para o seu porte rígido. Procurei Lilly, a pianista, mas ela não apareceu.
Os meus olhos passaram por um homem velho com madeixas cinzentas a decorar-lhe a cabeça. Contrariamente aos lobisomens, os vampiros mantinham a aparência que tinham quando
morriam. Embora ele parecesse muito velho, era possível que estivesse a olhar para o vampiro mais novo da sala.
Relanceei os olhos ao seu rosto e apercebi-me de que, ao contrário do que acontecia com os restantes vampiros presentes na sala, estava a observar-me. Lambeu os lábios e dei
um passo na direção dele antes de conseguir baixar os olhos para o chão.
Os lobisomens podem cravar os olhos para propósitos de dominação, mas não seriam capazes de se apoderar da mente de alguém que mantivesse os olhos fixos neles. Ser uma caminhante
supostamente deveria impedir que isso acontecesse, mas de facto sentira a força atrativa do seu olhar.
Um homem de cabelo escuro e aparência jovem com ombros estreitos tinha entrado na sala enquanto eu estivera a jogar às escondidas com o velho. Tal como Stefan, parecia mais
humano do que a maioria. Foi da sua roupa, mais do que da sua cara, de que me lembrei. Se Andre não trazia vestida a mesma camisa de pirata que usara na noite em que o conhecera,
então estava com uma réplica. Assim que ocupou um lugar numa das cadeiras de pelúcia perto do centro da sala, André, ao contrário dos outros vampiros, olhou-me diretamente
e sorriu de forma amigável. Não o conhecia suficientemente bem para saber ser era um amigo ou um inimigo.
Antes de poder decidir de que forma retribuir a sua saudação, Marsilia, Senhora do Ninho de Mid-Columbia, entrou na sala. Vestia uma brilhante saia de montar a cavalo ao estilo
espanhol, de cor vermelha, uma blusa branca com folhos e um xaile preto que combinava bem com o seu cabelo loiro e os seus olhos escuros, mais do que eu poderia imaginar.
Caminhava com fluida graciosidade, contrariamente à última vez em que a vira. De entre todos os vampiros presentes na sala, Marsilia era a única bonita. Deteve-se algum tempo
a arranjar a saia antes se sentar na cadeira que estava no centro do semicírculo. A sua saia vermelha destoava consideravelmente com o tecido coral da cadeira. Não sei por
que motivo isso me fez sentir melhor.
Cravou os olhos em nós — não, nos lobisomens, de um modo ávido, quase faminto. Lembrei-me do comportamento dela com Samuel e perguntei-me se teria uma predileção por lobisomens.
Tinha sido por causa de um lobisomem, contara-me Stefan, que fora exilada de Itália. Os vampiros não tinham quaisquer regras que os impedissem de se alimentar de um lobisomem,
mas o lobo que ela escolhera era propriedade de um vampiro mais poderoso e com uma posição mais elevada.
Tanto Ben como Warren tiveram o bom senso de manter os olhos afastados dos dela. Teria sido instintivo olhá-la nos olhos e tentar fazer com que ela os baixasse, instintivo
e desastroso.
Finalmente a voz de Marsilia, intensa e com um ligeiro sotaque, quebrou o silêncio.
— Vão buscar o Stefan. Digam-lhe que o animal de estimação dele já chegou e estamos cansados de esperar.
Eu não consegui perceber com quem estava a falar, ainda estava de olhos fitos em Warren — em quem se foi gradualmente concentrando em detrimento de Ben — mas Andre levantou-se
e disse:
— Ele vai querer trazer o Daniel.
— O Daniel está a ser punido. Não pode ser trazido. — O vampiro que falou sentou-se diretamente à esquerda de Marsilia. Vestia um fato de negócios do século XIX de cor bege,
completado com um relógio de bolso e um colete de seda com tiras azuis. Tinha o bigode listrado como o colete, embora em tons de castanho e cinzento. Penteara o cabelo para
trás, por cima de uma pequena zona careca no cocuruto.
Marsilia comprimiu os lábios.
— Apesar de ambicionares o contrário, ainda governo aqui, Bernard. Andre, traz também o Daniel. — Lançou um olhar de relance pela sala. — Estelle, vai com ele. É possível
que seja difícil trazer o Daniel.
A mulher de meia-idade no seu vestido de contas nas orlas pôs-se abruptamente de pé como se alguém em cima dela tivesse puxado um fio. Ao mexer-se, as suas contas produziram
um ligeiro chocalhar que me sugeriu o som de uma cascavel. Não me conseguia lembrar de terem produzido qualquer ruído quando tinha entrado na sala.
Andre, ao passar por mim, dirigiu-me um ligeiro sorriso tranquilizador que mais ninguém conseguiu detetar. Estelle ignorou-nos novamente ao passar. Era rudeza deliberada,
concluí, embora a preferisse ao olhar zangado de Marsilia. Tive de resistir ao ímpeto de dar um passo em frente e bloquear-lhe a visão de Warren.
Se não tivesse como missão ajudar Stefan, teria saído de onde estava e arrastado algumas cadeiras para nós, ou talvez simplesmente me sentasse no chão; mas não queria hostilizar
ninguém antes de Stefan estar a salvo. Portanto mantive-me onde estava e esperei que ele chegasse.
Arrastaram-se dez minutos. Não sou muito boa a esperar, e tive de fazer um esforço para não dar sinais de impaciência. Pensava que Ben fosse pior do que eu, mas nem ele nem
Warren parecerem ter quaisquer problemas em manterem-se quietos enquanto esperávamos, nem mesmo sob o olhar fixo de Marsilia.
No entanto, os lobos não eram tão estáticos como os vampiros. Nenhum dos vampiros se incomodava com os pequenos gestos que Stefan adotava para pôr os humanos mais à vontade,
como piscar os olhos ou respirar.
Um a um, como se a partida de Andre fosse alguma espécie de sinal, os vampiros concentraram-se em mim, inexpressivos. As únicas exceções eram Marsilia e o vampiro à sua direita,
que aparentava ser um rapaz com cerca de quinze anos — portanto olhei para eles.
Marsilia estava de olhos postos em Warren, dobrando ocasionalmente os dedos que ostentavam unhas longas e muitíssimo bem tratadas. O rapaz simplesmente fitava o vazio, balançando-se
um tudo-nada. Perguntei-me se ele, tal como a musical Lilly, teria algum problema mental. Depois percebi que se balançava na cadência da batida do meu coração e dei um passo
rápido para mais perto de Warren. O rapaz baloiçou-se um pouco mais depressa.
Na altura em que ouvi movimento no vestíbulo atrás de nós, baloiçava-se com bastante rapidez. Nada como estar presa numa sala repleta de vampiros para manter o coração a bater
alegremente a toda a velocidade.
Ouvi Stefan e a sua escolta encaminhando-se para a sala bem antes de lá chegarem.
Estelle foi a primeira a passar por nós, e retomou o seu lugar. Andre ocupou um lugar no sofá perto da invulgar cadeira de madeira. Não tive de virar a cabeça para saber que
Stefan parara alguns metros atrás de mim — conseguia sentir-lhe o cheiro. Virei-me, ainda assim.
Ainda trazia vestida a roupa que usava na última vez em que o tinha visto, mas parecia incólume. Transportava nos braços um rapaz que não podia ser senão o seu jovem amigo
Daniel, a primeira vítima de Littleton.
Calças de ganga e uma t-shirt a dizer «Tens Leite?» pareciam incongruentes em alguém com aspeto de quem tinha acabado de ser libertado de um campo de concentração nazi. A
cabeça dele tinha sido rapada, e o curto pelo escuro azulava-lhe o couro cabeludo. Fez-me pensar se o cabelo dos vampiros crescia.
As bochechas de Daniel eram tão chupadas que quase lhe conseguia distinguir os dentes através delas. Parecia ter olhos de cego, com as íris de um branco assustador e sem pupilas.
Era difícil avaliar com precisão a idade com que tinha morrido, mas de certeza que não mais do que vinte anos.
O homem com o colete às riscas, Bernard, pôs-se de pé — e finalmente Marsilia parou de olhar para Warren, concentrando a atenção no assunto a resolver.
Bernard aclarou a garganta e, a seguir, num tom apropriadamente formal, disse:
— Estamos aqui presentes porque esta manhã Stefan nos contactou, solicitando que tratássemos da desordem que ele criou num motel em Pasco. Cinco humanos estão mortos e registaram-se
danos materiais consideráveis. Vimo-nos forçados a chamar a Elizaveta Arkadyevna — não sabia que Elizaveta, para além de trabalhar para Adam, prestava serviços ao ninho, mas
suponho que fizesse sentido. A velha bruxa russa era a profissional mais poderosa do Pacífico Noroeste — porque não conseguimos vislumbrar nenhum cenário em que a polícia
não fosse chamada. As autoridades locais aceitaram a história que fabricámos e, de acordo com os nossos contactos, o caso não vai ser investigado. Excetuando o custo monetário
da contratação da bruxa, o ninho não sofreu nenhum dano permanente. — Pronunciou a última parte de forma um tanto ríspida, como se quisesse discordar com a sua afirmação.
— Stefan — disse Marsilia. — Puseste o ninho em perigo. O que te tens a responder a isso?
Stefan deu um passo em frente, e depois hesitou, olhando para o vampiro que segurava nos braços.
— Eu posso pegar nele — voluntariou-se Warren.
Stefan abanou a cabeça.
— O Daniel já não se alimenta há imenso tempo, seria um perigo para si. Andre?
Andre carregou o cenho, mas levantou-se para pegar o vampiro faminto nos braços de modo a que Stefan se pudesse colocar diante dos outros. Esperava que Stefan se postasse
onde Bernard tinha estado, mas em vez disso sentou-se na cadeira de madeira. Deslizou até se apoiar nas costas da cadeira, e depois colocou as mãos nos braços graciosamente
curvos e ornamentados com latão, fechando-as nas extremidades como se não tivesse visto os espinhos espetados para cima.
Ou talvez tivesse visto. O tamborilar da magia que vinha sentindo aumentou de velocidade e intensidade, fazendo com que a minha caixa torácica zumbisse de tanta energia. Tentei
disfarçar o meu ofego, mas Marsilia voltou-se para olhar para mim como se eu tivesse feito alguma coisa interessante.
Fitou-me não mais do que um instante, concentrando a sua atenção em Stefan.
— Optas por dizer a Verdade de boa vontade?
— Sim.
A cadeira de algum modo reagiu à declaração dele. Mas antes que conseguisse perceber o que a manifestação de energia tinha significado, o vampiro de aspeto jovem, aquele que
ainda balançava ao ritmo do meu batimento cardíaco, disse:
— Verdade.
A maioria dos vampiros tinha a capacidade de perceber quando alguém estava a mentir, mas com base no cheiro do suor e no batimento cardíaco — coisas que nenhum vampiro tinha.
Sabia que também havia formas mágicas de se saber se alguém estava a mentir. Era apropriado que os feitiços de verdade do vampiro implicassem sangue.
— Fala. — Não consegui perceber, a partir da voz de Marsilia, se ela tinha esperança de que ele fosse capaz de se desculpar do banho de sangue no hotel ou não.
Stefan começou por revelar as suas suspeitas de que havia algo de estranho na história da sede de sangue de Daniel. Explicou que quando o vampiro Daniel regressou em vez de
ter contactado, como devia, viu ali uma oportunidade para descobrir mais.
— Ocorreu-me — disse com um tipo de voz de quem conta histórias lentamente — que se eu tivesse razão nas minhas suspeitas estava prestes a confrontar um vampiro capaz de enfeitiçar
um dos da nossa espécie, embora o Daniel seja muito novo. Na altura pensei que o vampiro pudesse ter sido uma bruxa antes de ser convertido.
— Tão perigoso que a levaste a ela em vez de levares outro vampiro? — O tom de Bernard estava carregado de desdém.
Stefan encolheu os ombros.
— Tal como disse, pensava que o Littleton era uma bruxa. Nada com que não tivesse lidado antes. Na verdade, não achava que ia enfrentar alguém que não fosse capaz de controlar.
A Mercedes era a minha salvaguarda, mas não achei que ela viesse a ser necessária.
— Sim — interveio Marsilia bruscamente. — Expliquemos à sala por que razão é que a Mercedes Thompson é alguém a quem recorrerias para pedir ajuda. — Tinha os olhos semicerrados
e os dedos entretinham-se na orla do xaile espanhol de cor preta que trazia. Não percebia por que é que estava tão zangada, ela sabia o que eu era.
— A Mercedes é uma caminhante — respondeu Stefan.
O nível de energia na sala intensificou-se de forma notável, embora nenhum deles se tenha mexido. Pensava que todos os vampiros já tinham sido informados em relação a mim,
mas aparentemente não. Talvez estivesse zangado porque Stefan a tinha forçado a revelar a minha existência aos restantes vampiros. Adorava saber exatamente o motivo pelo qual
estavam tão preocupados comigo — talvez aí não me sentisse como uma galinha no meio de um antro de raposas.
O rapaz ao lado de Marsilia parou de se baloiçar. Quando olhou para mim, senti-o, como gelo que atravessasse a pele exposta.
— Deveras interessante — disse ele.
Stefan falou apressadamente, como se estivesse a tentar distrair o rapaz de mim.
— Ela concordou ir comigo na forma de coiote para que o vampiro não suspeitasse que era mais do que um elemento acessório. Achei que o estratagema ia protegê-la e que a imunidade
parcial dela me ia ajudar. Estava simultaneamente certo e errado.
A sua narração desse ponto foi muito detalhada. Quando lhes contou que, após ter estacionado o carro, tinha cheirado o perfume do demónio, indicando-lhe que Littleton era
um feiticeiro, Bernard interveio:
— Os feiticeiros não existem.
O rapaz ao lado de Marsilia abanou a cabeça e, com uma suave voz de tenor que nunca desceria aos tons de um adulto, disse:
— Existem, sim. Já me cruzei com eles, como se cruzou a maior parte de nós que tem mais do que alguns séculos de idade. Seria muito mau, Senhora, se um de nós fosse feiticeiro.
Fez-se um silêncio pesado, uma reação ao comentário do rapaz, mas não consegui perceber o que significava.
— Continua, por favor — disse Marsilia por fim.
Stefan obedeceu. Sabia que toda a gente no hotel estava morta quando entrámos no edifício. Foi esse o motivo pelo qual encontrou Littleton tão facilmente: era o único quarto
onde permanecia alguém com vida. Stefan tomara conhecimento da presença da mulher na casa de banho antes de mim. Ao que parecia, os sentidos dos vampiros eram mais apurados
do que os meus.
Estava a contar que Stefan terminasse o relato das suas ações quando chegasse à parte em que Littleton o detivera e lhe alterara a memória, mas não o fez. Continuou como se
a falsa memória fosse a verdadeira até ser interrompido pelo rapaz ao lado de Marsilia:
— Espera.
Stefan calou-se.
O rapaz inclinou a cabeça e fechou os olhos, murmurando suavemente. Finalmente, sem abrir os olhos, disse:
— É disso que te lembras, mas não acreditas no que dizes.
— Sim — concordou Stefan.
— O que é isto? — perguntou Bernard. Começava a ficar com a clara impressão de que Bernard não era amigo de Stefan. — Qual é o propósito de te ofereceres para ir para a cadeira
se vais pura e simplesmente mentir?
— Ele não está a mentir. — O rapaz inclinou-se para a frente. — Continua. Conta as coisas conforme te lembras delas.
— Conforme me lembro delas — concordou Stefan, e depois prosseguiu. A memória que tinha do assassinato da empregada era pior do que a que nos tinha relatado de manhã, pior
ainda do que aquilo que eu tinha visto, porque na versão dele ele era o assassino, mergulhando na sua morte tanto quanto no seu sangue. Parecia fazer um esforço para se lembrar
de cada momento. Eu dava-me por satisfeita com a versão curta que ele me tinha dado antes. Algumas das imagens que descreveu iriam regressar nos meus pesadelos.
Após ter terminado, Marsilia fixou-se nele, tamborilando com os dedos no braço da cadeira, embora o resto do seu corpo estivesse muito quieto.
— Estas são as tuas recordações do que aconteceu, embora o Wulfe acredite que já não confies que sejam verdadeiras. Devemos então aceitar que acreditas que esse… esse feiticeiro
interferiu na tua memória e na do Daniel? Tu, que nunca tiveste de prestar contas ao teu criador, tu acreditas que um vampiro novato, peço desculpa, um feiticeiro fosse capaz
de te dominar?
Bernard acrescentou:
— E por que é que não te implantou recordações das outras pessoas que morreram no hotel? Se ele quisesse colocar a culpa em ti, certamente também te teria atribuído essas
mortes?
Stefan inclinou a cabeça e, prudentemente, respondeu:
— Não sei por que é que não me implantou a memória de ter matado as outras pessoas. Talvez fosse preciso eu estar presente para as mortes delas. Contudo, tenho provas da sua
capacidade de alterar as memórias de outros vampiros. Gostaria que o Daniel falasse.
Os olhos de Marsilia estreitaram-se em duas fendas, porém acenou afirmativamente com a cabeça.
Stefan retirou cuidadosamente as mãos da cadeira. Os espinhos de latão cintilavam negros com o seu sangue.
Andre avançou e colocou o corpo esquelético de Daniel na cadeira antes ocupada por Stefan. Daniel pôs-se numa posição fetal, mantendo protetoramente as mãos afastadas dos
braços da cadeira, e virou o ombro quando Stefan o ia tocar.
— Andre? — chamou Stefan.
Andre lançou-lhe um olhar fulminante, mas virou-se para Daniel.
— Daniel, senta-te direito e ocupa o teu lugar na Cadeira de Interrogatório.
O jovem vampiro começou a chorar. Com a rapidez de um velho inválido, endireitou-se na cadeira. Tentou levantar as mãos duas vezes até que Andre pegou nelas e ele próprio
as empalou nos espinhos. Daniel começou a tremer.
— Ele está demasiado debilitado para isto — disse Andre a Stefan.
— Tu és o criador dele. — A voz de Marsilia era fria. — Resolve disso.
Andre cerrou os lábios, mas colocou o pulso em frente da boca de Daniel.
— Alimenta-te — disse.
Daniel virou a cabeça.
— Alimenta-te, Daniel.
Nunca tinha visto o golpe de um vampiro. O rápido movimento da cabeça de Daniel levou-me a pressionar a mão contra as ligaduras que cobriam as marcas dos colmilhos de Littleton
no meu pescoço. Andre fez uma careta no momento em que o outro vampiro o mordeu, mas não o afastou.
Daniel sugou-lhe sangue durante muito tempo. Durante esse período, nenhum dos outros se mexeu, excetuando o impaciente tamborilar das unhas brilhantes de Marsilia nos braços
almofadados da sua cadeira. Ninguém mudou de posição nas respetivas cadeiras ou mexeu os dedos dos pés. Recuei, colocando-me mais perto de Warren, e ele pôs a sua mão no meu
ombro. Olhei para Stefan, que normalmente vibrava como um cachorro, todavia parecia afetado pelo mesmo feitiço que todos os outros.
— Para. — Andre começou a puxar o braço, mas os dentes de Daniel ainda estavam cravados no seu punho. Daniel arrancou as mãos da cadeira, abrindo um grande rasgão na mão que
consegui ver, e com elas envolveu o antebraço de Andre.
— Daniel, para.
O vampiro lamentou-se, mas afastou o rosto. As mãos ainda agarravam Andre. Tremia enquanto olhava para o sangue que saía aos borbotões das marcas dos colmilhos com olhos que
reluziam como diamantes. Andre afastou o braço, torcendo-o, e agarrou as mãos de Daniel para as arremessar novamente contra a cadeira, empalando-as uma vez mais.
— Fica aqui — silvou Andre.
Daniel inspirava grandes quantidades de ar, o peito subia-lhe e descia-lhe de forma inconstante.
— Faz as perguntas que tens a fazer, Stefan — disse Marsilia. — Estou farta deste espetáculo.
— Daniel — começou Stefan —, quero que te lembres da noite em que acreditas ter matado aquelas pessoas.
A voz de Stefan soou amena, mas as lágrimas voltaram a verter dos olhos de Daniel. Tinham-me dito que os vampiros não conseguem chorar.
— Não quero — replicou.
— A Verdade — interveio Wulfe.
— Eu compreendo — disse Stefan. — Ainda assim, diz-nos a última coisa de que te lembras antes de a sede de sangue atacar.
— Não — respondeu o rapaz.
— Preferes que seja o Andre a interrogar-te?
— De estacionar no hotel. — A voz de Daniel era rouca, como se não a usasse há muito tempo.
— O hotel em Pasco, onde o Cory Littleton, o vampiro que devias interrogar, estava instalado.
— Sim.
— A sede de sangue começa com uma causa. Tinhas-te alimentado naquela noite?
— Sim. — Daniel fez que sim com a cabeça. — Andre deu-me uma das ovelhas dele quando acordei para a noite.
Mas não me parece que estivesse a falar do tipo de ovelha que tem quatro patas.
— Então o que te fez ter fome? Lembras-te?
Daniel fechou os olhos.
— Havia tanto sangue. — Deu um soluço. — Eu sabia que era errado. Stefan, era um bebé. Uma bebé que chorava… cheirava tão bem.
Relanceei os olhos em volta a tempo de ver o vampiro velho lamber os lábios. Voltei a concentrar-me rapidamente em Daniel. Não queria saber quantos vampiros tinham ficado
famintos com o relato de Daniel.
— O bebé que mataste no pomar? — perguntou Stefan.
Daniel acenou com a cabeça e sussurrou:
— Sim.
— Daniel, o pomar fica fora de Benton City, a meia hora de carro de Pasco. Como é que chegaste lá?
Marsilia parou de tamborilar. Lembrei-me de que Stefan tinha dito que um vampiro sob o efeito da sede de sangue jamais seria capaz de conduzir um carro. Aparentemente, Marsilia
concordava com ele.
— Devo ter conduzido o carro. Estava lá quando eu… quando voltei a ser eu.
— Por que é que foste a Benton City, Daniel?
Daniel manteve-se calado um instante. Finalmente, disse:
— Não sei. Só me lembro de sangue.
— Que quantidade de gasolina é que tinhas no carro quando chegaste ao hotel em Pasco? — inquiriu Stefan.
— Estava na reserva — respondeu Daniel lentamente. — Lembro-me porque ia atestar o depósito… depois.
Stefan virou-se para o público silencioso.
— Bernard, que quantidade de gasolina é que estava no carro que o Daniel conduzia quando o encontraste?
Não queria responder.
— Meio depósito.
Stefan olhou para Marsilia e pôs-se à espera.
De repente ela sorriu, um sorriso doce que a fez parecer-se com uma rapariga inocente.
— Está bem. Acredito que estivesse alguém com o Daniel naquela noite. Tu, estou em crer, eras capaz de conduzir trinta quilómetros e meter gasolina no carro sob o efeito da
sede de sangue, mas um vampiro novato como o Daniel, jamais.
Daniel espetou a cabeça na direção de Stefan.
— Isso não significa que não matei aquelas pessoas. Eu lembro-me, Stefan.
— Eu sei que sim — concordou. — Podes sair da cadeira… isto é, se o Wulfe estiver convencido da tua verdade. — Olhou para cima.
O adolescente ao lado de Marsilia, que com os dentes tinha estado a limpar uma coisa qualquer de debaixo das unhas, fez que sim com a cabeça.
— Senhor? — sussurrou Daniel.
Andre estivera de olhos fitos no chão, mas em resposta às palavras de Daniel disse:
— Podes sair da cadeira, Daniel.
— Isto não prova nada a não ser que havia mais alguém com o Daniel naquela noite. Alguém que conduziu o carro e lhe meteu gasolina — disse Bernard.
— É verdade — concordou Stefan calmamente.
Quando Daniel tentou pôr-se de pé, as pernas não o sustentavam. As suas mão também pareciam presas. Stefan ajudou-o a libertar as mãos e depois levantou-o da cadeira quando
se tornou evidente que, apesar de se ter alimentado, Daniel ainda estava demasiado debilitado para se manter de pé.
Stefan deu um passo na direção de Andre, mas depois hesitou e trouxe-o para o local onde eu e os lobos estávamos.
Pousou-o no chão a poucos metros de Warren.
— Fica aqui, Daniel — disse. — Podes fazer isso?
O rapaz acenou afirmativamente com a cabeça.
— Sim. — No entanto, agarrou-se ao braço de Stefan, e este viu-se obrigado a desdobrar os dedos do outro vampiro antes de poder regressar à cadeira. Retirou um lenço do bolso
de trás e limpou os braços da cadeira até as tachas de latão brilharem. Ninguém se queixou do tempo que demorou.
— Mercy — disse Stefan, recolocando o lenço no bolso. — Importas-te de vir até aqui e dizer a tua verdade diante da minha senhora?
Ele queria que eu fosse meter as mãos naqueles espinhos afiados. Não só me parecia de certo modo sacrílego, espinhos e palmas perfuradas, como também ia doer. Não que constituísse
uma horrível surpresa, não depois de Stefan e Daniel.
— Anda — disse. — Limpei-os para que não sofras nenhuma contaminação.
A madeira era fria e o assento um tudo-nada grande, como fora a cadeira favorita do meu pai adotivo. Depois de ele ter morrido, passei horas naquela cadeira, cheirando o seu
odor, impregnado na madeira encerada pelos anos de uso. Pensar nele aquietou-me, e eu precisava de toda a calma que pudesse convocar.
Os espinhos eram mais longos e afiados do que tinham parecido quando não estava prestes a enfiá-los na minha carne. Era melhor fazê-lo depressa do que me enervar. Fechei as
mãos nas extremidades dos braços e apertei-as com força.
No princípio não doeu. Depois, gavinhas quentes de magia serpentearam através do rasgão na minha pele, seguindo pelas veias dos meus braços e fechando-se em volta do meu coração
como um punho ardente.
— Estás bem, Mercy? — perguntou Warren, com a voz a ressoar com o primeiro vestígio de desafio.
— Os lobos não têm palavra no nosso tribunal — disparou Bernard. — Se não são capazes de permanecer em silêncio, terão de sair.
Fiquei aliviada por Bernard ter dito alguma coisa. Deu-me tempo para compreender que a magia não me estava a magoar. Era desconfortável, mas não dolorosa. Não era merecedora
de causar a luta que Warren estava pronto a começar. Adam tinha-o enviado para me servir de escolta, não para iniciar uma guerra por causa de um desconfortozinho.
— Está tudo bem — respondi.
O adolescente agitou-se.
— Não é verdade — afirmou.
Verdade, hem? Muito bem.
— Dói-me a cara, doem-me os ombros, dói-me o pescoço no sítio onde o maldito vampiro possuído pelo demónio me mordeu, e a magia desta cadeira é tão suave como um relâmpago,
mas não estou a sofrer de nada que cause danos irreparáveis.
O rapaz, Wulfe, voltou ao seu baloiçar catatónico.
— Sim — disse. — Verdade.
— O que é que aconteceu ontem à noite? — perguntou Stefan. — Por favor, começa com o meu telefonema.
Dei por mim a contar a história de forma muito mais detalhada do que tencionava. Certamente não precisavam de saber que a condução de Stefan me tinha assustado, ou os cheiros
da morte da mulher. Mas estava incapaz de filtrar os pensamentos, as memórias saíam-me pela boca ao mesmo tempo que desfilavam velozes na minha cabeça. Ao que parecia, alguma
da magia vampírica não tinha dificuldades em lidar com o meu sangue de caminhante.
Isso não impediu Bernard de afirmar que tinha.
— Você não pode escolher uma coisa ou outra, conforme for mais conveniente — disse depois de eu terminar. — Não podemos acreditar que a cadeira tem poder sobre ela e, ao mesmo
tempo, que ela foi capaz de resistir a um vampiro que conseguiu implantar memórias no Stefan. Stefan, de entre todos nós, é o único capaz de resistir às ordens da Senhora,
a sua criadora.
— A cadeira não está dependente do nosso poder — disse Stefan. — Funciona através do sangue, mas foi uma bruxa quem trabalhou a magia. E eu não sei se o feiticeiro podia ter
feito à Mercedes o mesmo que fez a mim. Ele não sabia o que ele era, portanto não tentou.
Bernard começou a dizer algo, mas Marsilia levantou a mão.
— Basta. — Virando-se para Stefan, disse: — Mesmo há quinhentos anos os feiticeiros eram raros. Não vejo um desde que viemos para este deserto. A cadeira mostrou-nos que acreditas
que existe um feiticeiro, um feiticeiro que um vampiro qualquer transformou. Mas terás de me perdoar por não acreditar em ti.
Bernard quase sorriu. Quem me dera perceber melhor como funcionava a justiça no ninho. Não sabia o que dizer para manter Stefan a salvo.
— O testemunho da caminhante é convincente, mas tal como Bernard, tenho de questionar até que ponto a cadeira funciona com ela. Já vi caminhantes mostrarem-se indiferentes
a magias bem mais perigosas.
— Eu consigo sentir as verdades dela — sussurrou o rapaz enquanto baloiçava. — De forma mais clara que os outros. Dura e pungente. Se esta noite matar o Stefan, é bom que
a mate também. Os coiotes cantam tanto de dia como de noite. Estas são as verdades que ela traz consigo.
Marsilia levantou-se e caminhou em passada larga até onde me encontrava, ainda presa na cadeira.
— Seria capaz de fazer isso? De nos caçar enquanto dormimos?
Abri a boca para negar, como faria qualquer pessoa sã cara a cara com um vampiro zangado, e depois voltei a fechá-la. A cadeira prendeu-me à verdade.
— Isso seria estúpido da minha parte — disse finalmente, de forma sentida. — Eu não caço à procura de sarilhos.
— Wulfe? — Olhou o rapaz de viés, mas ele limitava-se a baloiçar. — Não interessa — disse por fim, dispensando-me com um aceno de mão ao mesmo tempo que se virava para observar
cuidadosamente a sua gente. — O Wulfe acredita no que ela diz. Seja verdade ou mentira, não podemos ter vampiros, quaisquer vampiros — olhou Stefan brevemente para passar
a sua mensagem —, a andar por aí a matar sem permissão. Não podemos correr esse risco. — Fitou os vampiros sentados por instantes e depois voltou-se para Stefan. — Muito bem.
Acredito que foi esse tal vampiro quem matou, não tu. Dou-te quatro septamanas para encontrares esse feiticeiro e o trazeres até nós, a ele ou ao seu cadáver. Se não fores
capaz disso, partiremos do pressuposto de que isso aconteceu porque ele não existe, e iremos responsabilizar-te por colocares o ninho em perigo.
— De acordo — respondeu Stefan, inclinando a cabeça enquanto eu me tentava lembrar o que septamanas significava. Sete manhãs, pensei, quatro semanas.
— Podes escolher alguém para te ajudar.
Os olhos de Stefan percorreram os vampiros sentados sem se deterem.
— O Daniel — disse por fim.
Andre, surpreendido, protestou:
— O Daniel mal tem condições para andar.
— Está acordado — afirmou Marsilia. Esfregou as palmas das mãos, como se para se ver livre de todo o assunto, e depois levantou-se e saiu da sala.
Comecei a sair da cadeira, mas não conseguia retirar as mãos: estavam presas com firmeza, e mexê-las doía. Não fui capaz de me obrigar a puxar com a força suficiente para
me libertar. Stefan reparou no meu problema e levantou-me suavemente as mãos, como fizera a Daniel. O calor súbito provocado pelo desaparecimento do feitiço fez-me arquejar.
Quando me pus de pé, o meu olhar deteve-se em Wulfe, que era o único vampiro na sala ainda sentado. Fitava-me com um olhar esfomeado. Estar a sangrar numa sala pejada de vampiros
não era muito inteligente, pensei.
— Obrigado por teres vindo — disse-me Stefan, colocando uma mão no meu cotovelo e desviando-me dos olhos de Wulfe.
— Não acho que tenha sido uma grande ajuda — repliquei. Não sei se foi a cadeira ou o contacto visual com Wulfe, mas uma dessas coisas provocou-me tonturas, pelo que me encostei
a Stefan com um pouco mais de força do que tencionava. — Ainda tens de perseguir e capturar um feiticeiro.
Stefan sorriu-me.
— Ia ter de fazer isso de qualquer das maneiras. Assim, terei ajuda.
Andre, que estava postado perto de nós, aproximou-se.
— Não vai servir de grande ajuda. O Daniel, mesmo saudável, não é muito melhor do que um humano, e, esfomeado como tem andado, está fraco como um gatinho.
— Podias ter evitado isso. — Não havia qualquer indício de reprovação na voz de Stefan, mas algo me dizia que ele estava zangado com Andre por causa da situação de Daniel.
Andre encolheu os ombros.
— Havia comida para ele. Se ela não a queria, não ia forçá-lo. Um dia ia acabar por se sentir impelido a alimentar-se.
Stefan encaminhou-me para junto de Warren e depois curvou-se para ajudar Daniel a levantar-se.
— Uma vez que foste tu quem o converteu, é teu dever protegê-lo, inclusive dele mesmo.
— Tens andado a conviver demasiado com os lobisomens, amico mio — comentou Andre. — Os vampiros não são tão frágeis. Se tivesses querido transformá-lo, tinhas tempo de sobra
para o fazer.
O rosto de Stefan desviou-se do de Andre enquanto aquele equilibrava Daniel sobre os pés, no entanto consegui ver o brilho vermelho avivando-se no castanho-chocolate dos olhos.
— Ele era meu.
Andre encolheu os ombros.
— Isso é uma velha discussão, e acho que nunca discordei contigo. Foi um acidente. Não tencionava transformá-lo, mas não tive outra opção senão deixá-lo morrer. Creio que
já me desculpei vezes suficientes por isso.
Stefan acenou afirmativamente com a cabeça.
— Desculpa ter voltado a falar no assunto. — Não parecia lamentar. — Devolvo-te o Daniel quando tiver cumprido a vontade da Senhora.
Andre não se foi embora connosco. Não consegui perceber se estava zangado ou não. Sem odores corporais normais, era-me difícil ler os vampiros.
Warren esperou até que chegássemos à sua carrinha para falar.
— Stefan, gostava de o ajudar. Acho que o Adam concordará que um vampiro possuído pelo demónio não é uma coisa que deva ser encarada de ânimo leve.
— Eu também — disse Ben, inesperadamente. Viu o meu ar e riu-se. — Ultimamente, as coisas têm andado aborrecidas por estas bandas. O Adam tem estado demasiado na ribalta.
Só nos deixou fazer uma caçada em dia de Lua cheia por mês desde o início do ano.
— Obrigado — reagiu Stefan, soando verdadeiro.
Abri a boca, mas antes que pudesse dizer alguma coisa, Stefan colocou um dedo frio nos meus lábios.
— Não — disse ele. — O Samuel tem razão. Esta noite quase morreste por minha causa. Se o Littleton tivesse a mais pequena suspeita do que tu és, jamais te deixaria viver.
És demasiado frágil, e eu não tenho a menor vontade de começar uma guerra com o Adam; ou pior, com o próprio Marrok.
Revirei os olhos — como se eu fosse importante para o Marrok ao ponto de ele enfrentar o ninho numa altura em que se esforçava ao máximo por manter uma boa imagem dos lobisomens.
Bran era demasiado pragmático para isso. Mas Stefan tinha razão; além disso, não havia nada que eu pudesse fazer que um par de vampiros e lobisomens não pudesse fazer melhor.
— Apanha-o por ela — disse-lhe. — Por aquela criada e pelos outros que esta noite deviam estar juntos dos seus e não enterrados na terra fria.
Stefan pegou-me na mão e curvou-se sobre ela, tocando com os lábios nas suas costas. O seu gesto elegante fez-me perceber quão áspera a minha pele estava — o trabalho de mecânica
é implacável para as mãos.
— Seja feita a vontade da minha querida — replicou num tom extremamente sério.
5
— Sim? — atendeu Adam numa voz apressada.
— Passou quase uma semana — disse eu. — O Littleton não vem atrás de mim. Está ocupado a fazer joguinhos com o Warren e o Stefan. — Warren vinha-me mantendo mais ou menos
a par da caça ao vampiro-feiticeiro, embora não estivessem a ter muito sucesso. Desta ou daquela maneira, Littleton estava sempre um passo à frente deles. — Manda embora os
guarda-costas.
Fez-se um breve silêncio do outro lado da linha telefónica, e depois Adam disse:
— Não. Não vamos discutir isto por telefone. Se quiseres falar comigo, aparece e falamos. Veste qualquer coisa para andar à pancada, eu vou estar na garagem a fazer exercício
físico. — Depois desligou.
— E se fossem outros guarda-costas? — perguntei ao telefone, queixosamente. — Alguém com quem me desse bem talvez não fosse pedir muito.
Pousei o auscultador e fitei-o.
— Que seja. Lá terei de lidar com ela.
Quando cheguei a casa do trabalho no dia seguinte, vesti decididamente o quimono e voltei a ligar-lhe.
— Ganhaste — disse-lhe.
— Encontramo-nos na minha garagem. — Para seu mérito, não soou presunçoso, prova de que Adam é um homem com um autocontrolo tremendo.
Enquanto caminhava com dificuldade através do meu terreno nas traseiras, disse a mim mesma que era estúpido estar tão preocupada com o facto de falar com ele. Dificilmente
me ia saltar para à espinha sem permissão. Tudo o que eu tinha de fazer era manter as coisas no plano profissional.
Dei com Adam a praticar high kicks num saco do dojo em que tinha transformado metade da garagem, completado com uma parede de espelhos, chão almofadado e ar condicionado.
Os pontapés dele eram uma imagem perfeita — os meus também seriam se os andasse a praticar há trinta ou quarenta anos. Talvez.
Terminou as sequências e depois veio ter comigo e tocou-me na face. O seu odor, intensificado pelo exercício, envolveu-me; tive de fazer um esforço para não pressionar a minha
cabeça contra a mão dele.
— Como está a tua cabeça? — perguntou. As nódoas negras tinham-se esbatido um bocado, o suficiente para que os clientes não ficassem com ar embaraçado quando me viam.
— Ótima. — Aquela tinha sido a primeira manhã em que acordara sem uma dor de cabeça lancinante.
— Está bem. — Afastou-se de mim, colocando-se no centro do chão almofadado. — Luta comigo um bocado.
Vinha tendo aulas de karaté no dojo mesmo em frente da minha oficina, do outro lado da via-férrea, há já alguns anos, mas, ainda assim, fiquei reticente. Não sou, nem de longe
nem de perto, tão forte quanto um lobisomem. No entanto acabou por se revelar o parceiro de luta perfeito.
O meu professor, o Sensei Johanson, não ensina o karaté «bonito» que a maioria dos americanos aprende para exibições e torneios. Shisei kai khan é uma forma excêntrica de
karaté que o Sensei gosta de chamar «desferir um golpe e partir alguém». Foi originalmente desenvolvido para soldados que lutassem com mais do que um oponente. A ideia é colocar
os atacantes fora de combate o mais cedo possível e garantir que eles não regressem. Eu era a única mulher na minha turma.
O meu maior problema era ter de abrandar o suficiente para não suscitar questões, mas não ao ponto de permitir que me magoasse. Isso não era um problema enquanto lutava com
Adam. Pela primeira vez na minha vida, pude combater à velocidade máxima e adorei.
— Estás a usar aikido? — perguntei, recuando depois de uma veloz troca de golpes.
Aikido é um método mais dócil e brando de lutar. Também pode ser usado para partir pessoas, mas a maior parte dos movimentos tem uma versão mais leve. Portanto, pode-se aplicar
uma chave de braços no cotovelo do adversário e imobilizá-lo, ou imprimir um pouco mais de força e, em vez disso, partir-lhe o braço.
— Ao gerir um negócio na área da segurança com um monte de ex-soldados fiquei a perceber que é necessário fazer uma lutazinhas de vez em quando. Desanuvia — disse. — O aikido
permite-me derrubá-los sem os magoar ou, até este ano, informar que já não sou propriamente humano.
Atacou-me novamente, exibindo um sorriso rasgado por ter defendido o meu golpe e o ter desviado por cima do seu ombro. Deixei-me cair e varri-lhe a perna, forçando-o a afastar-se
de mim antes que pudesse fazer alguma coisa perigosa. Quando se voltou a levantar, reparei que também ele estava ofegante. Interpretei aquilo como o elogio que era.
Embora lutássemos com a máxima velocidade, ambos tínhamos o cuidado de medir a força que utilizávamos. Os lobisomens curam-se depressa, mas ainda assim os seus ossos partem
e um murro dói na mesma. Se Adam me atingisse com toda a sua força, tenho para mim que não me levantaria tão cedo, se é que alguma vez me levantaria.
— Querias que eu dispensasse os guarda-costas que arranjei para ti? — perguntou Adam no meio de uma rápida troca de socos de bloqueio fácil.
— Sim.
— Não.
— O feiticeiro acha que eu sou um coiote — expliquei impacientemente. — Ele não vai andar à minha procura.
— Não.
Atingi-o com um golpe que o fez perder o equilíbrio, mas não caí na armadilha de me aproximar demasiado dele. Lutar agarrado a um lobisomem seria verdadeiramente estúpido
— sobretudo quando esse lobisomem pratica aikido.
— Olha lá, não me importei com o Warren ou a Mary Jo. A Mary Jo até sabe distinguir as duas extremidades de uma chave de porcas e deu uma mãozinha. Mas a Honey… O parceiro
dela não precisa desesperadamente que ela se sente e se ponha bonita para os clientes?
O parceiro-e-marido de Honey tinha uma empresa de canalização e chamava-se Peter Jorgenson. Era um homem seco e duro, rústico e calado que numa hora trabalhava aquilo que
a maior parte das pessoas trabalha a sua vida inteira. Apesar de ser uma cabeça-oca que não valorizava outra coisa senão aquilo que via ao espelho, Honey amava o seu marido.
No entanto, quando o dizia, fazia sempre uma nota prévia indicando que não se importava que ele, ao contrário dela, não fosse um lobo dominante. Não que ela falasse comigo:
gostava tanto de mim como eu dela.
— O Peter segue as minhas ordens — afirmou Adam.
O Adam era Alfa, portanto, Peter seguia as suas ordens. Honey era a mulher de Peter, portanto, Peter dava-lhe ordens — às quais ela obedecia. Os lobisomens tratam as suas
parceiras como escravas amadas. Esse pensamento retesou-me as costas.
Não era culpa de Adam ou de Peter que os lobisomens ainda não tivessem saído da Idade da Pedra. Mesmo. O facto de eu não ser mulher-loba era bom, caso contrário haveria uma
rebelião de escravos.
Desferi um pontapé direcionado ao joelho de Adam, mas ele apanhou-me a perna e puxou-me para a frente, desequilibrando-me. A seguir fez um movimento complicado e eu acabei
de cara no colchão, torcida como uma rosquilha enquanto ele me mantinha presa com uma mão e um joelho.
Ele tinha o cheiro da floresta à noite.
Dei de imediato uma palmada no colchão e ele deixou que eu me levantasse.
— Adam, fecha os olhos e visualiza a Honey na minha oficina. Ela hoje estava com uns saltos de oito centímetros. — Pensar nela foi como levar com um balde de água fria na
cabeça, coisa de que aliás precisava.
Riu-se.
— Estava deslocada, era?
— Passou o dia todo de pé porque não queria correr o risco de manchar a saia em nenhuma das minhas cadeiras. O Gabriel tem um fraquinho por ela. — Franzi-lhe o sobrolho quando
se riu novamente. — O Gabriel é um rapaz de dezasseis anos e meio. Se a mãe descobre que ele anda a lançar charme para uma mulher-loba, proíbe-o de trabalhar mais na oficina.
— Ela não vai descobrir que a Honey é uma mulher-loba. A Honey ainda não se revelou publicamente. E ela está habituada à atenção masculina, não vai levar o Gabriel a sério
— disse Adam, como se a questão fosse essa.
— Eu sei isso, o Gabriel sabe isso, mas à mãe isso não vai fazer diferença nenhuma. E ela vai descobrir. Simplesmente é assim que a minha sorte funciona. Se o Gabriel se for
embora, vou ter de tratar da minha própria papelada. — Não era minha intenção lamentar-me, mas eu odiava papelada e a papelada odiava-me a mim.
Sylvia, a mãe de Gabriel, acabara de descobrir que Zee era um ser feérico. Tinha lidado bem com isso, porque já conhecia Zee e gostava dele antes de ter tomado conhecimento.
No entanto, duvidava que ela aceitasse tão bem os lobisomens, especialmente mulheres-lobas bonitas que pudessem andar atrás do seu menino.
— Não quero perder o Gabriel só porque tu estás paranoico. Acabaram-se os guarda-costas, Adam. E, verdade seja dita, a Honey não seria uma proteção por aí além.
Suspirou tristemente.
— O Stefan anda à caça desse feiticeiro a tempo inteiro. Com o Warren, o Ben e mais alguns lobos a ajudá-lo, não há de demorar muito tempo até que tratem dele e tu estejas
livre. No que à competência da Honey enquanto guarda-costas diz respeito, ela é uma lutadora excecional. Derrubou o Darryl uma ou duas vezes nos treinos. — A maior parte dos
bandos não tem «treinos». Por vezes, o passado de Adam como soldado é bem visível. — Se a Honey não fosse mulher, seria o número dois ou três de alguém.
Não me surpreendeu que Honey fosse uma lutadora excecional. Surpreendeu-me um pouco que lutasse bem ao ponto de derrubar Darryl, mesmo sendo uma ou duas vezes. Como número
dois, por certo tinha imensa experiência em combates reais, não apenas em treinos.
Eu sabia a razão pela qual Adam apenas me enviava guarda-costas do sexo feminino — pelo mesmo motivo que enviou Warren e Ben para me acompanharem até ao ninho. Warren não
ia fazer-me propostas de índole sexual porque não estava interessado — e Adam sabia o quanto eu detestava Ben.
Os lobisomens são muito territoriais. Desde que — supostamente para a minha proteção — Adam me tinha anunciado ao bando como sua parceira, eu era território dele. No que ao
bando dizia respeito, a palavra de Adam era lei. O facto de eu ter discordado não alterou o que o bando aceitava como verdade. Adam tinha conseguido chegar a uma espécie de
acordo com Samuel em relação a isso. Na verdade não queria saber o que era porque só me ia chatear.
Calhou-me Honey porque Mary Jo estava a fazer turnos de vinte e quatro horas nos bombeiros e a companheira de Darryl, Auriele, o último elemento do sexo feminino no bando
de Adam, estava em Ellensburg a frequentar umas aulas para manter o certificado que lhe permitia ensinar. Queixar-me de Honey não ia fazer com que tivesse um novo guarda-costas
— não havia mais ninguém que Adam pudesse enviar.
— O Littleton é um vampiro — disse-lhe, tentado infundir alguma lógica na situação. — Não vai atacar durante o dia. Podia meter-me em casa antes de escurecer até que ele fosse
apanhado. Ele não pode entrar em minha casa a menos que eu o convide. Não que ele o fizesse, uma vez que não tem nenhuma razão para pensar que eu pudesse ser mais do que um
adereço de Stefan.
— Tive uma conversa com o Marrok sobre feiticeiros — disse Adam num tom ameno. — Foi ele quem me disse para pôr alguém a proteger-te, dia e noite. Ninguém sabe que tipo de
monstro é que um vampiro dominado pelo demónio se pode revelar, disse ele.
— Eu sei isso — disparei. Se Bran tinha dado ordens para que eu fosse protegida, estava condenada. E Adam também sabia disso.
— A Elizaveta disse-me que lhe telefonaste e fizeste perguntas sobre feiticeiros.
— Sim. Aliás, devias estar contente. Tudo o que ela me disse foi que tu lhe tinhas dado ordens para não me revelar nada. — O que não correspondia exatamente à verdade.
O que a bruxa tinha dito fora «O Adam diz que deve esquecer esse assunto. É um homem inteligente, aquele sujeito. Deixe que os lobos apanhem esse feiticeiro, Mercedes Thompson.
Um coiote não está à altura de um demónio.»
— Warren e Stefan vão tratar do Littleton — afirmou Adam. Havia compaixão na sua voz. Podia dar-se ao luxo de ser solidário porque sabia que me tinha roubado qualquer possibilidade
de argumentar.
— O Stefan e o Warren andam à caça de tigres com fisgas — disse-lhe. — Talvez consigam um disparo de sorte, e talvez o tigre se vire e mate os dois, enquanto a Honey, vestindo
as suas calças brancas, me observa a afinar carros.
Caminhei até um dos sacos pendurados e comecei a praticar socos. Não tencionava dizer aquilo, não me tinha apercebido quão preocupada estava. Adam podia estar confiante, mas
não tinha estado no mesmo quarto com aquela coisa.
— Mercy — chamou Adam depois de me observar durante algum tempo.
Passei a treinar side kicks.
— Uma chave de fendas é uma ferramenta muito útil, mas não a usas quando aquilo de que precisas é um maçarico — comentou. — Eu sei que estás frustrada. Eu sei que queres participar
na caça depois do que viste o Littleton fazer. Mas, se fosses com eles, alguém seria morto ao tentar proteger-te.
— Achas que eu não sei isso? — disparei. Era assustador ele conhecer-me ao ponto de perceber que o que mais me incomodava era ficar à espera enquanto outros iam atrás de Littleton.
Parei de dar pontapés e pus-me a olhar para o saco preto a baloiçar, combatendo o ímpeto de pontapear Adam em vez do saco.
Eu podia transformar-me em coiote. Era mais rápida do que um humano. Era parcialmente imune a algumas das magias dos vampiros, mas nem sequer tinha a certeza de quais. Esse
era o alcance das minhas capacidades preternaturais. Não era suficiente para ir atrás de Littleton.
Se tivesse sido capaz de romper o arnês naquela noite, o feiticeiro tinha-me matado. Tinha consciência disso, mas não atenuava a culpa que sentira ao observar a criada lutar
sozinha. Eu queria ir atrás do feiticeiro.
Queria sentir o pescoço dele debaixo das minhas presas e sentir-lhe o sabor do sangue. Respirei fundo e estremeci. O que eu queria mesmo, o que eu ansiava, era matar aquele
filho da puta sorridente e cadavérico.
— A Elizaveta não vai atrás dele — referiu Adam. — Os demónios pelos vistos têm um efeito estranho sobre a bruxaria. Não és a única posta à margem.
— Sabes, hoje uma das estações de televisão entrevistou a irmã do homem que os vampiros incriminaram pelos assassinatos. — Dei dois pontapés no saco. — Ela chorou. Admitiu
que o irmão dela vinha tendo problemas conjugais, mas que nunca tinha imaginado que ele pudesse fazer uma coisa daquelas. — Pontapeei novamente o saco, rosnando com o esforço.
— Sabes por que é que ela nunca tinha imaginado isso? Porque o pobre desgraçado não fez nada a não ser estar no sítio errado à merda da hora errada.
— Nenhum de nós pode permitir que os vampiros venham a público agora — afirmou Adam.
Consegui perceber que as mentiras também o incomodavam a ele. O Adam era uma pessoa íntegra — mas compreendia a importância da necessidade. Tal como eu. Isso não significava
que tinha de gostar dela.
— Eu sei que os vampiros têm de esconder a sua presença — disse para o saco. — Eu sei que as pessoas não estão preparadas para tomar conhecimento de todas as coisas que se
escondem na escuridão. Compreendo que mantê-los escondidos nos poupa a todos a histeria em massa que conduziria à morte de muitas mais pessoas. Mas… aquele camionista… Tu
lembras-te, aquele a quem montaram uma cilada para que fosse considerado o assassino… Ele tinha filhos. Vão ter de crescer com a ideia de que o pai deles lhes matou a mãe.
— Tinha anotado o nome deles. Um dia, quando fosse seguro, haveria de garantir que soubessem a verdade.
A dor deles, os assassinatos, e todas as vezes que acordava com a memória do cheiro da morte da pobre mulher, e o som do riso sarcástico de Littleton, todas essas coisas eram
por causa do feiticeiro. Eu queria fazer parte do comité de cobrança.
— Ele brincou com ela. — Pus o saco a balançar com um pontapé circular, o meu melhor pontapé, na esperança de que se falasse do pior daquela noite não me apareceria nos sonhos.
— Aposto que ela sabia que ele já tinha matado aquelas outras pessoas. Aposto que sabia que ele a ia matar. Torturou-a, cortando-a um bocado de cada vez para que demorasse
mais tempo a morrer.
— Mercy — a voz de Adam era um ronrom, pronta a confortar, mas não ia cair nessa. Para os lobisomens, tudo significava muito, e ao mesmo tempo muito pouco. Se deixasse que
Adam me confortasse, poderia — e provavelmente era o que faria — encarar o gesto como uma admissão de que o reconhecia como meu líder, talvez até como meu parceiro. Não era
culpa dele, os instintos de lobisomem são muito fortes. Com Samuel podia estar mais segura, embora ele fosse um dominante poderoso, porque ele não era Alfa de um bando.
Ser Alfa era mais do que ser dominante. Há, nas ligações de um bando, uma magia que dá poder ao seu líder. Pode valer-se da força dos seus elementos e devolver-lhes alguma
dessa mesma força. Tinha visto o bando de Adam a curá-lo e a dar-lhe o poder para exercer o seu domínio sobre um outro grupo de lobisomens.
Ser Alfa também confere a um lobo a necessidade de proteger — e controlar — todos aqueles que ele entende estarem sob o seu comando. Eu não estava. Porém, Adam tinha-me declarado
sua parceira, portanto discordava de mim. Não podia dar-me ao luxo de afrouxar minimamente a minha posição.
Percorri toda a garagem às arrecuas e depois corri em direção ao saco. Um back kick no ar, em rotação, é um daqueles movimentos que o meu sensei disse ter um propósito — intimidar.
Claro que, se acertar, o pontapé é devastador, mas qualquer praticante de artes marciais que seja minimamente bom não permite que acerte porque os pontapés vistosos são demasiado
lentos. Normalmente.
Atirei-me com o máximo de força que consegui, fazendo a rotação com uma rapidez que me deixou tonta. O meu calcanhar atingiu o saco mesmo abaixo da extremidade no topo, como
devia. Se o saco fosse uma pessoa, tinha-lhe partido o pescoço. Talvez até fosse capaz de cair de pé.
A corrente que mantinha o saco suspenso impedia-o de cair para trás, como aconteceria com uma pessoa, e não estava à espera de gerar toda aquela força: aterrei de rabo com
toda a violência.
Deitei-me rapidamente, esticando-me no chão, mas Adam apanhou o saco antes que este balançasse para trás e me atingisse. Assobiou suavemente no momento em que de um pequeno
rasgão na costura do saco começou a cair areia.
— Belo pontapé.
— Adam — disse, de olhos fixos no teto — ele guardou-a para a sobremesa.
— O quê? Guardou quem?
— A criada. O Littleton guardou-a como uma criança guarda o seu coelhinho de chocolate da Páscoa. Pôs a criada na casa de banho, escondida, porque não queria matá-la cedo
de mais. Estava à espera do Stefan. — Poderiam existir outras razões para a ter escondido na casa de banho, como a possibilidade de já se ter alimentado das outras pessoas
que tinha matado, mas quando a retirou da casa de banho havia algo no seu rosto que dizia «finalmente».
— Estava à espera do Stefan, em particular? Ou de quem a Marsilia enviasse, fosse quem fosse? — perguntou Adam, vendo a parte importante da questão antes de mim.
Pensei no quanto Littleton parecia saber acerca de Stefan, coisas íntimas, apesar de Stefan nunca o ter visto antes. Porém não foi apenas o que disse que me fez ter a certeza,
foi a forma como parecia tão satisfeito — como se tudo estivesse a acontecer conforme o esperado.
— Do Stefan — respondi, depois passei para a questão óbvia. — Quem lhe terá dito que ia o Stefan?
— Vou telefonar ao Warren a dizer-lhe que tu achas que alguém disse ao Littleton que o Stefan ia ter com ele — disse Adam. — O Stefan terá uma melhor noção de como o Littleton
pode ter ficado a saber, e se isso significa que ele tem um traidor no seio do seu grupo.
Mantive-me no mesmo lugar enquanto Adam pegava no auscultador da parede e premia os botões.
Tínhamos passado anos como adversários, dois predadores partilhando o território e uma certa atração indesejável. De certo modo, durante todos aqueles anos que passei a transparecer
uma aceitação das suas exigências ao mesmo tempo que garantia que me mantinha fiel às minhas, tinha conquistado o seu respeito. Tivera lobos a adorar-me e a odiar-me, mas
nunca conhecera um que me respeitasse. Nem mesmo Samuel.
Adam respeitava-me ao ponto de dar ouvidos às minhas suspeitas. Isso significava muito.
Fechei os olhos e deixei que a corrente da sua voz me rodeasse e afugentasse a frustração. Adam tinha razão. Não era a pessoa indicada para ir atrás de um vampiro, de qualquer
vampiro, e seguramente não um ajudado por um demónio. Teria de me limitar a ficar satisfeita quando Warren e Stefan o fizessem. No entanto, se Ben matasse Littleton… Não sabia
se isso me deixaria satisfeita. Detestaria dever a Ben mais do que já devia.
Adam desligou o telefone. Escutei o som suave dos seus pés a caminhar em direção a mim, sobre o chão almofadado, e o silvo produzido pelo tapete no momento em que se sentava
ao meu lado. Passados instantes, desapertou a parte de cima do meu quimono e despiu-mo rapidamente, deixando-me em t-shirt e calças brancas do quimono. Deixei que ele o fizesse.
— Isso de ser passiva não parece teu — disse ele.
Grunhi-lhe, apesar de não ter aberto os olhos.
— Está calado. Estou completamente angustiada. Tem um bocadinho de respeito.
Riu-se e fez-me rodar sobre mim mesma até a minha cara ficar espalmada contra o colchão que cheirava a suor. Senti-lhe as mãos quentes e fortes enquanto mexiam nos músculos
tensos do fundo das minhas costas. Quando afundou as mãos nos meus ombros, fiquei mole.
A princípio agiu como um profissional, encontrando os inchaços provocados por noites sem dormir e dias de trabalho fisicamente exigente. Depois as suas mãos ficaram mais leves
e as esfregadelas rápidas tornaram-se carícias ligeiras.
— Cheiras a óleo queimado e WD-40 — comentou com um sorriso na voz.
— Então tapa o nariz — retorqui. Para meu espanto, saiu-me mais adocicado do que avinagrado.
Era tão fácil. Uma massagem nas costas e eu era dele. A minha susceptibilidade a ele era a razão pela qual o vinha evitando. De certo modo, deitada sobre a cara com as mãos
dele nas minhas costas, isso não me parecia uma razão suficientemente boa.
Ele não cheirava a óleo queimado, mas a floresta, a lobo, e àquele exótico cheiro selvagem que pertencia apenas a ele. As suas mãos resvalaram para debaixo da minha t-shirt
e expandiram-se no fundo das minhas costas, após o que tocaram ao de leve no meu sutiã. Podia ter-lhe dito que os sutiãs desportivos não têm fecho, mas assim teria de desempenhar
um papel ativo na minha própria sedução. Queria que fosse ele o agressor — uma pequena parte de mim, a parte ínfima de mim que não se estava a transformar em gelatina nas
suas mãos, perguntou-se porquê.
Não queria delegar responsabilidades, decidi indolentemente. Estava mais do que disposta a aceitar a responsabilidade pelas minhas próprias ações — e permitir que ele fizesse
deslizar as suas mãos quentes e calejadas pelo meu cabelo era certamente uma ação minha. Adorava as mãos de um homem no meu cabelo, decidi. Adorava as mãos de Adam.
Mordeu-me o cachaço e eu gemi.
A porta que separava a garagem da casa abriu-se subitamente.
— Olá, pai. Olá, Mercy.
Água gelada não teria sido mais eficaz.
As mãos no meu rabo detiveram-se no momento em que os passos rápidos da filha de Adam pararam. Abri os olhos e fitámo-nos. Tinha mudado o corte de cabelo desde a última vez
que a vira, passando de exuberante a ainda mais exuberante. Não tinha mais do que um centímetro de comprimento e estava amarelo — não loiro, mas amarelo-vivo. O efeito era
fascinante, mas um pouco bizarro. Não o que se esperaria do aspeto de uma salvadora.
O rosto dela ficou sem expressão quando se apercebeu do que tinha interrompido.
— Eu, hum, vou lá para cima ver um programa — disse num modo que não soava de todo ao seu.
Deslizei de debaixo de Adam.
— E a Jesse salva o dia — comentei em tom ligeiro. — Obrigada, aquilo estava a ficar descontrolado.
Ela estacou e pôs a observar — surpresa.
Perguntei-me, de forma pouco indulgente, quantas vezes teria apanhado a mãe em situações semelhantes e qual teria sido a reação da mãe. Nunca gostara da mãe de Jesse e acreditava
de bom grado em toda a espécie de maldade a seu respeito. Permiti que a raiva em relação aos jogos que a mãe dela pudesse ter engendrado me envolvesse. Quando se vive com
lobisomens, aprende-se truques para se esconder deles aquilo que se está a sentir — a raiva, por exemplo, encobre o pânico bastante bem — e, saída de debaixo das mãos sensuais
de Adam, estava num estado de pânico considerável.
Adam resfolegou.
— Essa é uma forma de colocar as coisas. — Para meu alívio, permanecera onde tínhamos estado, deixando-se afundar no colchão com a cara virada para baixo.
— Mesmo com a minha força de vontade, o engodo dele foi forte de mais — disse eu melodramaticamente, levando o pulso à testa. Se eu fizesse daquilo uma piada, ele jamais perceberia
quão verdadeira eu estava a ser.
Um sorriso lento alastrou-se pelo rosto dela e parou de olhar, como se estivesse pronta para voltar para casa.
— O meu pai é um borracho, não há dúvida.
— Jesse — avisou Adam, a voz um pouco abafada pelo colchão. Ela deu risadinhas.
— Sou forçada a concordar — repliquei num tom excessivamente sério. — Um borracho capaz de beber até mais não.
— Mercedes — vociferou Adam, pondo-se de pé repentinamente.
Pisquei o olho a Jesse, segurei a parte de cima do meu quimono sobre o meu ombro esquerdo com um dedo e saí naturalmente pela porta traseira da garagem. Não tencionava fazê-lo,
mas quando me virei para fechar a porta, olhei para trás e vi a cara de Adam. A expressão dele provocou-me calafrios.
Não estava zangado ou magoado. Parecia pensativo, como se alguém tivesse acabado de lhe dar a resposta a uma pergunta que o vinha incomodando. Ele sabia.
Ainda estava a tremer quando atravessei cautelosamente a vedação de arame farpado entre o terreno de Adam e o meu.
Toda a minha vida me tinha integrado bem com aqueles que me rodeavam. É o dom do coiote. É o que nos ajuda a sobreviver.
Aprendi cedo a como imitar os lobos. Agia segundo as suas regras desde que eles também o fizessem. Se passassem os limites do razoável por acharem que eu era menos do que
eles, sendo coiote em vez de mulher-loba, ou porque tinham inveja do facto de eu não ter de ter cuidado com o apelo da Lua, nesse caso não havia cá tretas. Usava as minhas
forças contra as suas fraquezas. Mentia com o corpo e com os olhos, lambendo-lhes as botas — atormentando-os em seguida da forma que fosse capaz de conceber.
A etiqueta do lobo tinha-se tornado um jogo para mim, um jogo com regras que eu entendia. Pensava que era imune àquela coisa estúpida da dominação/submissão, imune ao poder
do Alfa. Acabara de ter uma lição bastante visceral de que não era. Isso não me agradava. Não me agradava mesmo nada.
Se Jesse não tivesse entrado, ter-me-ia rendido a Adam, como uma heroína qualquer de romance em série dos anos setenta, do tipo que a minha madrasta passava a vida a ler.
Safa.
Atravessei o meu terreno traseiro até chegar ao pé do meu decrépito Rabbit, que me servia de carro para tirar peças, para além de veículo para me vingar de Adam quando se
tornava demasiado ditatorial. Se olhasse através da sua janela traseira, o carro ficava exatamente no centro do seu campo de visão.
Tinha-o tirado da oficina vários anos antes, quando Adam se tinha queixado que a minha casa móvel lhe estragava as vistas. Depois, de cada vez que ele me chateava, tornava
a coisa ainda mais feia. Neste momento faltavam-me três rodas e o para-choques traseiro, tudo devidamente armazenado na minha oficina. No capô lia-se em garrafais letras vermelhas:
PARA PASSAR UM BOM BOCADO, seguido do número de telefone de Adam. O grafito fora sugestão de Jesse.
Deixei-me cair na terra ao lado do Rabbit e inclinei a cabeça contra o guarda-lamas, tentando descobrir por que motivo tinha sido subitamente dominada pelo desejo de me subjugar
a Adam. Por que não me sentira assim antes — ou teria sido esse o motivo pelo qual me esforçara tanto por fugir? Tentei recuar na memória, mas a única coisa de que me lembrava
era estar preocupada com a ideia de me envolver tanto com um lobisomem.
Poderia ele ter-me subjugado de propósito? Era fisiológico ou parapsicológico, ciência ou magia? Se eu soubesse que ia acontecer, seria capaz de resistir?
A quem poderia perguntar?
Olhei para o carro estacionado na rampa de entrada. Samuel tinha chegado a casa do seu turno nas urgências.
Se alguém sabia, esse alguém era Samuel. Apenas teria de arranjar maneira de lhe perguntar. Ter-me levantado e seguido para casa com a intenção de fazer perguntas a um lobisomem
— que tinha tornado claro que só estava à espera da altura certa para se fazer a mim — sobre a forma como outro lobisomem tinha feito com que o desejasse era uma prova do
quanto eu estava abalada. Normalmente não sou tão estúpida.
Já começava a ter dúvidas sobre a sabedoria dos meus planos quando alcancei o alpendre da frente. Abri a porta e ao meu encontro veio um sopro de ar glacial.
O meu velho painel de parede mantinha o meu quarto cerca de doze graus mais fresco do que o exterior, o que para mim não constituía problema. Gosto do tempo quente, mas a
maior parte dos lobos não se dá bem com ele, razão pela qual Samuel tinha instalado a nova bomba de calor e pagado a despesa. Como companheiro de casa atencioso que era, normalmente
deixava a temperatura conforme eu a definia.
Dei uma olhadela ao termostato e constatei que Samuel o tinha regulado para o mínimo. Não estavam seis graus no interior, mas andava lá perto. Um esforço bastante assinalável,
considerando que lá fora estavam mais de trinta e oito graus e a minha caravana tinha sido construída em 1978, antes dos dias das casas manufaturadas com bom isolamento. Rodei-o
para uma temperatura mais razoável.
— Samuel? Por que é que puseste a temperatura tão baixa? — gritei, atirando a parte de cima do meu quimono para o sofá.
Não houve resposta, embora não houvesse possibilidade de ele não me ter ouvido. Atravessei a cozinha em direção ao vestíbulo. A porta de Samuel estava encostada, mas não fechada.
— Samuel? — Toquei na porta e esta abriu cerca de trinta centímetros, o suficiente para conseguir ver Samuel esticado sobre a cama, ainda com as vestes do hospital e cheirando
a produtos de limpeza e sangue.
Tinha o braço sobre os olhos.
— Samuel? — Parei no limiar da porta para que o meu olfato me pudesse indicar o que estava a sentir. Porém, não sentia o cheiro dos suspeitos do costume. Não estava zangado,
nem assustado. Havia qualquer coisa… Ele cheirava a dor.
— Samuel, está tudo bem contigo?
— Cheiras ao Adam. — Baixou o braço e fitou-me com olhos de lobo, pálidos como a neve e com um anel negro.
O Samuel hoje não está aqui, pensei, tentando não entrar em pânico ou fazer qualquer outra coisa estúpida. Tinha brincado com o lobo que existe em Samuel quando era uma criança,
juntamente com todas as outras crianças de Aspen Springs. Só quando era muito mais velha é que me apercebi do quanto isso teria sido perigoso com outro lobo qualquer. Ter-me-ia
sentido melhor naquele momento se aqueles olhos de lobo estivessem no corpo de lobo. Olhos de lobo num rosto humano são sinal de que o lobo está em comando.
Já tinha visto lobos novatos a perder o controlo. Se isso acontecesse com muita frequência, eram eliminados em prol do bando e de todos aqueles que com eles contactassem.
Quanto a Samuel, só o tinha visto perder o controlo uma vez — e isso foi depois de um ataque de um vampiro.
Agachei-me, certificando-me de que a minha cabeça estava abaixo da dele. Era sempre uma sensação interessante a que me invadia quando me fazia de indefesa diante de alguém
que me podia cortar a goela. Pensando nisso, a última vez em que isso tinha acontecido também fora com Samuel. Pelo menos estava a agir por uma questão de auto-preservação,
não por uma qualquer compulsão oculta de submissão perante um lobo dominante — estava a fingir, não estava a subjugar-me por causa de uma porcaria de um instinto oculto.
Depois de ter dito isso a mim mesma, percebi que era verdade. Não tinha a menor vontade de me agachar diante de Samuel. Noutra circunstância, menos incómoda, ter-me-ia sentido
animada.
— Desculpa — sussurrou Samuel, recolocando o braço sobre os olhos. — Tive um dia mau. Houve um acidente na estrada 240, perto do sítio onde estava a antiga bifurcação. Dois
putos num dos carros, dezoito e dezanove anos. Uma mãe e o filho bebé no outro. Todos eles ainda em estado crítico. Talvez sobrevivam.
Era médico há muito tempo. Não fazia ideia do que o poderia ter perturbado neste acidente em particular. Produzi um som encorajador.
— Havia imenso sangue — acabou por dizer. — O bebé ficou com muitos cortes do vidro, levou trinta pontos. Uma das enfermeiras nas urgências é nova, acabou agora mesmo de sair
da faculdade comunitária. A meio teve de sair. Mais tarde perguntou-me como é que eu aprendi a aguentar-me tão bem sendo as vítimas bebés. — Ao prosseguir, a sua voz ficou
carregada com um azedume que raramente ouvira nele. — Estive quase para lhe dizer que já tinha visto pior. E comido, também. O bebé teria sido apenas um lanche.
Podia-me ter ido embora naquela altura. Samuel tinha controlo suficiente para não vir atrás de mim — provavelmente. Mas não podia deixá-lo assim.
Gatinhei cautelosamente, observando-o à espera de um espasmo muscular que me indicasse que ele estava prestes a atacar. Levantei a mão lentamente até que tocasse na dele.
Não teve qualquer reação.
Se ele fosse um lobo novato, teria sabido o que dizer. Mas ajudar lobos novatos a ultrapassar este tipo de situação tinha sido uma das funções de Samuel no bando onde eu crescera.
Não havia nada que eu pudesse dizer que ele ainda não soubesse.
— O lobo é uma besta pragmática — disse-lhe finalmente, pensando que pudesse ter sido o pensamento de comer o bebé que tanto o incomodava. — Tens mais cuidado com o que comes.
Não te estou a ver lançares-te para cima de uma mesa de operações e comeres alguém se não tiveres fome. — Reproduzi quase palavra por palavra o discurso que o tinha ouvido
usar com os lobos novatos.
— Estou tão cansado — desabafou, eriçando-me os pelos da nuca. — Cansado de mais. Acho que é altura de descansar. — Não se referia a descansar fisicamente.
Os lobisomens não são imortais, apenas imunes à idade. Mas, de qualquer forma, o tempo é inimigo deles. Passado um longo período de tempo, explicou-me um lobo, nada mais importa
e a morte parece melhor do que viver mais um dia. Samuel era muito velho.
O Marrok, pai de Samuel, tinha adquirido o hábito de me telefonar uma vez por mês para «saber como iam as coisas», disse. Ocorreu-me pela primeira vez que não me vinha controlando
a mim, mas o filho.
— Há quanto tempo é que te sentes assim? — perguntei, subindo para a sua cama, lentamente de modo a não o assustar. — Saíste de Montana por não poderes esconder isto do Bran?
— Não. Eu quero-te — disse resolutamente, afastando o braço para que eu pudesse ver que os seus olhos tinham recuperado o azul acinzentado humano.
— Queres? — perguntei, sabendo que não era completamente verdade. — Pode ser que o lobo em ti ainda me queira, mas não me parece que tu me queiras. Por que razão é que deixaste
o Marrok para vir para aqui?
Rebolou, pondo-se de costas voltadas para mim. Não me mexi, tendo cuidado para não lhe dar um encontrão. Tão-pouco me afastei, limitei-me a esperar pela sua resposta.
Ela acabou por surgir.
— Foi mau. Depois do Texas. Mas quando voltaste para junto de nós, desapareceu. Até ao bebé.
— Falaste com o Bran sobre isso? — O que quer que fosse o isso. Levei a cara de encontro à sua região lombar, aquecendo-o com o sopro da minha respiração. Samuel de certeza
que encarava o suicídio como uma cobardice, disse a mim mesma para me tentar tranquilizar, e Samuel detestava cobardes. Talvez não quisesse amar Samuel — não depois da forma
como em tempos nos tínhamos magoado mutuamente — mas também não o queria perder.
— O Marrok sabe — sussurrou. — Ele sabe sempre. Todos os outros achavam que eu estava igual, tal como acontecia sempre. O meu pai percebeu que algo estava errado, que eu não
estava bem. Eu ia-me embora… mas depois tu apareceste.
Se Bran não era capaz de tratar dele, o que podia eu fazer?
— Deixaste o bando durante muito tempo — disse-lhe, procedendo cautelosamente. Ele tinha abandonado o bando pouco tempo depois de mim, há mais de quinze anos. Tinha-se mantido
fora durante a maior parte desses quinze anos. — O Bran contou-me que foste um lobo solitário no Texas. — Os lobos precisam do seu bando, de outro modo começam a agir de forma
um pouco estranha. Os lobos solitários eram, de um modo geral, bizarros, perigosos para si mesmos e para os outros.
— Sim. — Todos os músculos do seu corpo se puseram tensos, à espera de uma continuação. Entendi que isso significava que eu estava a ir na direção certa.
— Não é fácil estar sozinho, não durante anos. — Deslizei um tudo-nada até conseguir envolvê-lo, enfiando as minhas pernas atrás das dele. Coloquei o braço sobre o qual não
estava deitada em volta da sua ilharga e conduzi a mão contra o seu estômago, mostrando-lhe que não estava sozinho, não enquanto vivesse na minha casa.
Começou a tremer, fazendo com que toda a cama vibrasse. Apertei o braço, mas não disse nada. Tinha ido o mais longe que estava disposta a ir. Algumas feridas precisam de ser
furadas para que possam drenar, outras simplesmente precisam de que não se lhes mexa — eu não tinha as habilitações necessárias para saber a diferença.
Colocou ambos os braços por cima do meu.
— Eu escondi-me dos lobos. Escondi-me entre os humanos. — Fez uma pausa. — Escondi-me de mim mesmo. O que eu te fiz foi errado, Mercedes. Disse a mim mesmo que não podia esperar,
que não podia correr o risco de outra pessoa te tirar de mim. Tinha de te tornar minha para que os meus filhos pudessem viver, mas eu sabia que me estava a aproveitar de ti.
Não tinhas idade suficiente para te defenderes de mim.
Esfreguei o meu nariz contra as costas dele num gesto de consolo, mas não falei. Ele tinha razão, e eu respeitava-o demasiado para mentir.
— Violei a tua confiança, e a do meu pai também. Não conseguia viver com isso: tive de me ir embora. Viajei para o extremo oposto do país e tornei-me outra pessoa: Samuel
Cornick, caloiro, vindo do campo com um diploma do liceu acabadinho de forjar. Só na noite de Lua cheia é que permitia a mim mesmo lembrar-me do que era.
Os músculos debaixo das minhas mãos convulsionaram duas vezes.
— Na escola de medicina, conheci uma rapariga. Era parecida contigo: calma e com um sentido de humor astuto. E no aspeto físico também tinha semelhanças contigo. A sensação
que eu tive foi a de uma segunda oportunidade, uma oportunidade de fazer a coisa bem feita. Ou então simplesmente já não me lembro. No princípio éramos amigos que partilhavam
o plano de estudos na escola. Depois tornou-se algo mais. Fomos viver juntos.
Eu sabia o que vinha a seguir, porque me ocorreu a pior coisa que poderia ter acontecido a Samuel. Conseguia cheirar-lhe as lágrimas, embora a sua voz se mantivesse cuidadosamente
uniforme.
— Tomámos precauções, mas não fomos suficientemente cuidadosos. Ela engravidou. — O seu tom era rígido. — Estávamos a fazer os nossos internatos. Andávamos tão ocupados que
mal tínhamos tempo para dizer «olá» um ao outro. Ela não se apercebeu até estar grávida de quase três meses porque presumiu que os sintomas eram resultantes do stress. Fiquei
tão feliz.
Samuel adorava crianças. Tinha algures uma fotografia dele usando um boné de basebol e Elise Smithers, de cinco anos, montada nele como se ele fosse um pónei. Tinha deitado
por terra tudo aquilo em que acreditava porque pensava que eu, ao contrário de uma humana ou de um mulher-loba, lhe podia dar filhos que viveriam.
Tentei que ele não percebesse que também eu estava a chorar.
— Nós estávamos a fazer internatos. — Neste momento falava calmamente. — Absorve muito tempo e é stressante. Horas longas e irregulares. Eu estava a trabalhar com um cirurgião
ortopedista, a quase duas horas de carro do nosso apartamento. Uma noite cheguei a casa e encontrei um bilhete.
Abracei-o com mais força, como se tivesse podido impedir o que aconteceu.
— Um bebé teria interferido com a instrução dela — disse. — Podíamos tentar outra vez, mais tarde. Depois… depois de ela se ter estabelecido. Depois de haver dinheiro. Depois…
— Continuou a falar mas numa língua estrangeira, com o seu tom líquido a transmitir a sua angústia melhor do que as palavras inglesas.
A maldição de uma vida longa é que toda a gente à nossa volta morre. É preciso ser-se forte para sobreviver, e mais forte para querer fazê-lo. Bran em tempos dissera-me que
Samuel tinha visto muitos dos seus filhos morrer.
— Aquele bebé de hoje…
— Ele vai viver — disse-lhe. — Por tua causa. Vai crescer forte e saudável.
— Vivi como era de esperar que um estudante vivesse, Mercy — afirmou. — Fingi ser pobre como todos os outros estudantes. Se ela soubesse que eu tinha dinheiro, será que ainda
assim teria matado o meu bebé? Eu teria abandonado os estudos para tomar conta da criança. Será que a culpa foi minha?
Samuel enrolou o corpo todo em volta do meu braço como se alguém lhe tivesse dado um soco no estômago. Limitei-me a abraçá-lo.
Não havia nada que eu pudesse dizer para melhorar a situação. Sabia melhor do que eu quais as possibilidades de o seu bebé nascer saudável. Não importava, o filho dele nunca
tinha tido nenhuma possibilidade.
Abracei Samuel enquanto o Sol se punha, consolando-o o melhor que podia.
6
Deixei Samuel a dormir e fiz sandes de atum para o jantar, algo que podia deixar no frigorífico para ele no caso de acordar com fome, porém permaneceu no quarto até depois
da hora de eu ir para a cama.
Pus o despertador para cerca de duas horas depois da altura a que normalmente acordava. No dia seguinte era sábado, quando a oficina estava oficialmente fechada. Tinha trabalho
para fazer, mas nada urgente, e Gabriel só ia aparecer depois das dez.
Quando me ajoelhei para rezar antes de me deitar, pedi a Deus para ajudar Warren e Stefan a apanhar o demónio, naquela que se vinha tornando a minha prece habitual. Desta
vez também acrescentei uma oração para Samuel. Depois de pensar uns instantes, também rezei por Adam. Na verdade, não achava que o facto de me ter transformado numa pateta
submissa fosse culpa dele.
Apesar de estar preparada para me levantar tarde (por mim), levantei-me mesmo antes do alvorecer porque alguém estava a bater à minha janela. Puxei a almofada para cima da
cabeça.
— Mercy. — O agressor da minha janela falou em voz baixa, mas ainda assim reconheci-a. Stefan.
Esfreguei os olhos.
— Vens pedir uma moedinha? Não me sinto particularmente dada a mercês. — Posso fazer pouco do meu nome, mas mais ninguém pode. A não ser que eu esteja mesmo muito bem-disposta.
Ou se for eu a começar a brincadeira.
Ouvi-o a rir-se.
— Moedinhas, talvez. Mas desde que não me ataques, não preciso de me render.
Uma das coisas boas em relação a Stefan era o facto de normalmente perceber as minhas piadas, por muito secas que fossem. Melhor ainda, ele alinhava nelas.
— Precisas de dinheiro? — perguntei num tom de surpresa fingida. — Posso passar-te um cheque, mas só tenho dois dólares na carteira.
— Preciso de um sítio para dormir durante o dia, meu amor. Dás-me abrigo?
— Está bem. — Lancei os cobertores para a frente e encaminhei-me para a porta principal. Lá se tinham ido os meus planos de dormir até mais tarde.
O céu estava listrado com os primeiros indícios do nascer do Sol quando abri a porta.
— Deixaste mesmo para a última da hora, Stefan — disse, acrescentando o seu nome para que Samuel, que me teria ouvido a abrir a porta, não ficasse alarmado.
Stefan não pareceu apressar-se, mas tão-pouco permaneceu muito tempo na soleira.
Não o via desde a noite do seu julgamento. Estava com ar cansado. Tinha os ombros caídos e não se mexia com a sua habitual energia efervescente.
— Mandei o Daniel para casa, mas tinha de ir verificar uma informação. Pensei que ia ter tempo, mas os meus poderes diminuem à medida que a alvorada se aproxima e quando dei
por mim estava à tua porta — exibiu um sorriso rasgado — a pedir mercê.
Acompanhei-o até à porta do meu quarto.
— Pensava que o Warren e o Ben estavam a trabalhar contigo. Por que é que não lhes disseste para irem eles verificar?
— Mandei-os para casa mais cedo. Têm trabalhar hoje, e até os lobisomens precisam de dormir.
— Vão trabalhar num Sábado?
— O Warren tem de fazer um trabalho para o amigo advogado, e o Ben tinha de fazer umas coisas que não podia fazer enquanto as outras pessoas estivessem a trabalhar.
Ben era um fanático dos computadores que trabalhava no Pacific Northwest Nation Laboratory, que estava ligado de uma forma obscura à Central Nuclear de Hanford. Darryl, o
número dois de Adam, tinha-lhe arranjado o emprego — e, a fazer fé em todos os relatos, Ben era um fanático bastante competente. Acho que isso surpreendeu Darryl, que não
estava acostumado a ser surpreendido.
Abri a porta do armário — a almofada e o cobertor de Stefan ainda lá estavam desde a última vez que ali passara o dia.
— Tens a certeza de que o feiticeiro ainda anda por estas bandas? Ele pode ter ido para outro sítio.
Stefan ficou com o semblante carregado.
— Vê o noticiário da manhã. — Foi tudo quanto disse antes de entrar no meu armário e fechar a porta.
O acidente de carro que tanto tinha incomodado Samuel fez parte das primeiras notícias. Como também fizeram parte as mortes violentas de três rapazes que se tinham envolvido
numa discussão. Há duas semanas que éramos assolados por uma vaga de calor que não dava sinais de desaparecer tão cedo. Havia mais um festival de arte no Howard Amon Park
naquele fim-de-semana.
Presumi que Littleton não teria nada a ver com o festival de arte ou com a meteorologia (pelo menos esperava que um feiticeiro não fosse poderoso ao ponto de afetar o tempo),
portanto prestei muita atenção à reportagem sobre os homens mortos.
«As drogas são um problemas crescente», disse o pivô do noticiário, enquanto atrás dele os paramédicos transportavam em macas corpos envoltos em mortalhas pretas. «Especialmente
as metanfetaminas. Nos últimos seis meses, a polícia fechou três laboratórios de metanfetaminas na área de Tri-Cidades. De acordo com testemunhas, a violência da noite passada
aparentemente ter-se-á desencadeado num laboratório de metanfetaminas quando um homem fez um comentário sobre a namorada de um outro. Todos os homens estavam sob o efeito
de drogas, e a discussão rapidamente degenerou num estado de violência que deixou três homens mortos. Dois outros homens estão detidos na polícia por ligação às mortes».
Olhando para o lado positivo das coisas, todos os pacientes de Samuel aparentemente ainda estavam vivos, embora o bebé estivesse em estado crítico.
Desliguei a televisão, enchi uma taça de cereais, e depois sentei-me à secretária do computador no quarto vago enquanto comia o pequeno-almoço e fazia pesquisas na Internet.
A versão online tinha ainda menos detalhes do que a do noticiário da manhã. Por capricho, procurei o nome de Littleton e encontrei a sua página pessoal, onde anunciava as
suas leituras de cartas de tarot via Internet por uns meros $19.95, aceitando-se o pagamento através de todos os principais cartões de crédito. Nada de cheques. Não era uma
alma dada a confiar, o nosso feiticeiro.
Agindo por impulso, uma vez que Elizaveta não me contava nada, escrevi no Google «demónios e feiticeiros» e dei por mim atolada num monte de lixo contraditório.
— Qualquer idiota pode fazer uma página — grunhi, desligando o computador. A Medea miou solidariamente, lambendo o resto de leite que estava na minha taça de cereais e limpando
o focinho com uma pata em seguida.
De taça suja em punho, fui ver Samuel, mas o seu quarto estava vazio. Ao não se ter levantado aquando da chegada de Stefan, devia ter percebido que ele não estava em casa.
Ele não tinha de trabalhar hoje.
Isso deixou-me preocupada, mas não era a mãe dele. Não tinha de me dizer aonde ia, da mesma maneira que eu não tinha o hábito de partilhar com ele os meus planos. Portanto
não podia intrometer-me, por muito preocupada que estivesse. Com esse pensamento em mente, escrevi-lhe um bilhete.
O S está a dormir no meu armário.
Vou estar no trabalho até às?
Aparece se precisares de alguma coisa.
Eu
Deixei o bilhete na cama dele e depois passei a taça por água e deixei-a na máquina de lavar loiça. Dirigi-me para a porta, mas a visão do telefone na mesinha ao lado da porta
deteve-me.
Samuel tinha passado mal na noite anterior; eu sabia que o pai dele ia querer tomar conhecimento disso. Fixei-me no telefone. Não era uma bufa. Se Samuel quisesse que o Marrok
soubesse dos seus problemas, teria ficado em Aspen Creek. Samuel tinha telemóvel — podia telefonar a Bran se precisasse de ajuda. O que aconteceria no dia de São Nunca à tarde.
Samuel tinha-me ensinado muitas coisas sobre independência, o que na verdade era um traço invulgar num lobisomem.
Talvez Bran fosse capaz de ajudar. Mas não seria correto da minha parte telefonar-lhe sem que Samuel soubesse. Hesitei, e depois lembrei-me que Samuel tinha telefonado a Zee
para saber como eu estava.
Peguei no telefone e fiz a chamada de longa distância para Montana.
— Sim?
A menos que fosse intencional, a voz de Bran não parecia pertencer ao lobisomem mais poderoso da América do Norte. Parecia pertencer a um rapaz simpático. Bran usava esse
modo, todo simpático e educado, para iludir. A encenação enganava muitos lobos, fazendo-os passar por estúpidos. Quanto a mim, sabia o que a encenação escondia.
— Sou eu — disse-lhe. — É sobre o Samuel.
Pôs-se à espera.
Comecei a dizer uma coisa e depois a culpa travou-me a língua. Sabia muito bem que o que Samuel me tinha contado era confidencial.
— Mercedes. — Desta vez, Bran não parecia um rapaz simpático.
— Ontem à noite ele não estava lá muito bem — acabei por dizer. — Sabes o que lhe aconteceu no Texas?
— Ele não fala sobre Texas.
Tamborilei com os dedos no balcão da cozinha e depois parei quando o gesto me trouxe à memória a senhora dos vampiros.
— Precisas de lhe perguntar o que se passou no Texas — repliquei. Bran por norma não fazia perguntas às pessoas sobre o passado. Tinha algo que ver com o facto de ser muito
velho, mas mais ainda com o facto de ser lobo. Os lobos são muito centrados no aqui e agora.
— Ele está bem?
— Não sei.
— Há cadáveres envolvidos? — inquiriu secamente.
— Não. Nada disso. Não devia ter telefonado.
— O Samuel é meu filho — disse Bran num tom suave. — Fizeste bem em ligar. Mercy, viver numa cidade com um feiticeiro não vai fazer dele o companheiro de casa mais fiável
se alguma coisa o estiver a incomodar. Talvez devesses considerar a hipótese de te mudares para a casa do Adam até darem com o escravo do demónio.
— Escravo do demónio? — perguntei, embora estivesse a pensar no que dissera.
— Feiticeiro, por contraposição com escravo do demónio, como o são os possuídos; embora não haja grande diferença entre eles, excetuando o facto de os escravos do demónio
serem mais fáceis de detetar. Estão no meio da carnificina em vez de se manterem à margem.
— Queres dizer que os feiticeiros atraem violência? — perguntei. Devia ter telefonado mais cedo a Bran para pedir informações sobre o feiticeiro.
— A água com açúcar atrai vespas? Violência, sangue e mal de todas as espécies. Achas que ordenei ao Adam que enviasse os lobos dele para ajudar os vampiros na caça porque
gosto de vampiros? — Na verdade, pensava que Warren e Ben se tinham voluntariado. — Se houver um feiticeiro por perto, todos os lobos se vão ter de agarrar com força à sua
capacidade de autocontrolo. Portanto não te ponhas para aí a acicatar, querida. Especialmente os lobos mais novos. Vais acabar por te magoar… ou morrer.
Vinha-me avisando sobre isso de «acicatar» desde sempre. Não sei porquê. Não sou estúpida. Tenho sempre cuidado quando atormento os lobisomens… Depois lembrei-me dos olhos
de Samuel na noite anterior.
— Não vou fazer isso — prometi de forma sentida.
Mas depois ele disse «Linda menina», e desligou.
Como se em momento algum tivesse tido a menor dúvida de que eu agiria de acordo com o que me dissera. Bran raramente tinha de se preocupar com a eventualidade de as pessoas
não seguirem as suas ordens — excetuando eu própria. Presumo que se tivesse esquecido disso.
O facto de não haver lobos por perto para chatear era uma coisa boa. Gostava de pensar que era suficientemente crescida para não provocar um confronto só porque Bran me tinha
dito para não o fazer, mas ainda assim… Não me teria mandado a Samuel, não no estado em que atualmente se encontrava, mas provavelmente o facto de Ben não estar por perto
era positivo.
Apesar de ainda não serem oito da manhã, um carro esperava-me no parque de estacionamento, um Miata descapotável azul-céu. Mesmo depois da nossa conversa na noite anterior,
Adam tinha enviado Honey para tomar conta de mim novamente.
Por vezes perguntamo-nos o que passa pelas cabeças dos pais quando dão nomes aos filhos. Conheci uma rapariga chamada Helga que cresceu até ao metro e meio de altura e pesava
quarenta e três quilos. Às vezes, contudo, às vezes, os pais acertam.
Honey tinha ondas de reluzente cabelo castanho-dourado que lhe caíam sobre os ombros até às ancas. O seu rosto era todo ele curvas suaves e lábios cheios, o tipo de rosto
que se espera ver nas vestes de uma líder de claque profissional, embora nunca tenha visto Honey vestir nada que não tivesse classe.
— Estou aqui à espera há uma hora e meia — disse numa voz chateada enquanto saía do carro. Hoje trazia uns calções de linho de cor creme nos quais se conseguiria ver o mais
pequeno indício de sujidade. Se hoje me irritasse muito, podia sempre atingi-la com a minha pistola de lubrificação.
— É sábado — retorqui afavelmente, animada pelos meus pensamentos. — Ao sábado entro às horas que quiser. No entanto, acredito que se deve ser justo. Uma vez que tiveste de
esperar por mim, por que é que não encaras isso como um esforço razoável e vais para casa?
Ergueu uma sobrancelha.
— Porque o Adam me mandou vir vigiar-te e garantir que o bicho-papão não te vem comer. E por muito que gostasse que isso acontecesse, eu não desobedeço ao Alfa.
Havia imensas razões pelas quais não gostava de Honey.
O carro no qual estava a trabalhar precisava de um motor de arranque novo. Foi assim que tudo começou. Três horas depois ainda estava à procura no meio de caixas poeirentas
sem etiqueta no barracão de armazenamento que antedatava do reinado de Gabriel nas encomendas ao meu fornecedor de peças.
— Algures por aqui devia haver três motores de arranque que cabem num Fox de 1987 — disse a Gabriel, limpando a testa com a manga. É verdade que normalmente não me importo
com o calor, mas o termómetro na parte exterior do barracão marcava quarenta e dois graus.
— Se me dissesse que algures por aqui tinha a Excalibur e o Santo Graal, eu acreditava em si. — Exibiu-me um sorriso rasgado. Só tinha aparecido depois de ter acabado de encomendar
as peças do fornecedor, portanto ainda lhe restava energia para estar alegre. — Tem a certeza de que não quer que eu vá à loja de peças buscar um?
— Pode ser — respondi, deixando cair uma caixa de parafusos diversos no chão do barracão. Fechei a porta e tranquei-a, embora se a tivesse deixado aberta talvez uns ladrões
simpáticos pudessem aparecer e limpar o barracão por mim. — Por que é que não aproveitas para trazer almoço para nós? Há uma roulotte de tacos porreira ao lado da lavagem
automática de carros.
— Para a Honey também?
Relanceei os olhos ao carro dela e vi-a sentada no conforto do ar condicionado, exatamente como se mantivera desde que eu tinha chegado. Ocorreu-me que seria bom ela ter mudado
o óleo recentemente — ter o carro a trabalhar em ponto morto durante horas podia ser mau para um motor.
Viu-me a olhar para ela e sorriu desagradavelmente, ainda sem um único cabelo fora do sítio. Eu tinha estado a suar num barracão poeirento e gorduroso toda a manhã e as nódoas
que Littleton me deixara na cara hoje estavam num belo tom de amarelo.
— Sim — respondi relutantemente. — Para pagar o almoço pega no dinheiro de reserva. Usa o cartão de crédito da loja para o motor de arranque.
Gabriel regressou ao escritório e já estava de saída quando cheguei à porta. A sensação do ar condicionado foi divinal e bebi dois copos de água antes de regressar ao trabalho.
A oficina não estava tão fresca como o escritório, mas estava bem melhor do que lá fora.
Honey seguiu-me através do escritório, ignorando-me. Reparei, com uma certa satisfação, que pouco depois de ter saído do escritório, começou a suar.
Pouco depois de começar a trabalhar na reparação de uns travões, ela falou.
— Está alguém no escritório.
Não tinha ouvido nada, mas também não tinha estado atenta. Limpei as mãos apressadamente e regressei ao escritório.
A oficina não estava oficialmente aberta, mas muitos dos meus clientes habituais sabem que são mais as vezes que estou aqui aos sábados do que as que não estou.
Por acaso, a cara era-me familiar.
— Sr. Black — disse. — Mais problemas no carro?
Começou a olhar para mim, mas os seus olhos meteram-se em sarilhos quando atingiram Honey e se recusaram a desviar-se dela. Não era uma reação incomum. Mais uma razão para
detestar Honey — não que precisasse de mais alguma.
— Honey, este é o Tom Black, um jornalista que quer informações pormenorizadas sobre como é andar com o Adam Hauptman, príncipe dos lobisomens. — Disse isso para acicatá-la,
mas Honey dececionou-me.
— Sr. Black — pronunciou, estendendo-lhe a mão friamente.
Ele deu-lhe um aperto, ainda de olhos fixos nela, e depois pareceu recompor-se. Aclarou a garganta.
— Príncipe dos Lobisomens? Ai é?
— Ela não pode falar consigo, Sr. Black — disse-lhe Honey, embora me tenha olhado de soslaio para tornar bem claro que as palavras se dirigiam a mim. Se não tivesse mais cuidado,
quando desse por ela, a sua condição de mulher-loba era revelada. Se não fosse burra como uma porta, teria percebido que eu não recebo ordens. Não de Bran, não de Adam, nem
de Samuel — e certamente não de Honey.
— Nunca ninguém me disse para não falar com jornalistas — repliquei honestamente. Todos partiam do pressuposto de que eu seria suficientemente inteligente para não o fazer.
Estava tão absorvida em arreliar Honey que ignorei aquilo que o sinal implícito na minha afirmação provocaria no repórter.
— Vai ver que não se arrependerá — declarou Black numa expressão clássica digna de um vendedor de carros usados. Levou a mão ao bolso interior do casaco de fato, sacou de
um maço de notas presas por um grampo dourado e pousou-o no balcão. Se não estivesse tão chateada com Honey — e com Adam por me obrigar a estar com ela —, tinha-me rido. Mas
Honey estava ali, portanto lambi os lábios e mostrei um ar interessado.
— Bom… — comecei.
Honey virou-se para mim, a vibrar de fúria.
— Espero que o Adam permita que seja eu a partir-te esse pescoço escanzelado.
Pois é. Não ia demorar muito até que todos ficassem a saber que Honey era uma mulher-loba. Ela era demasiado fácil. Devia ter-me sentido culpada por picá-la.
Mas, em vez disso, revirei-lhe os olhos.
— Por favor.
Black ignorou Honey.
— Gostava de saber o que pensa dele a nível pessoal. Como é ter um relacionamento com um lobisomem? — Dirigiu-me um sorriso encantador, embora ainda mantivesse os olhos vigilantes.
— O público quer saber.
Aquela última afirmação era demasiado à jornalista de livros de banda desenhada para ser ignorada. Desviei a atenção de Honey. Prestei ponderada atenção a Black por momentos.
Exalava um cheiro a ansiedade — e a fúria. Não serão propriamente as emoções de um repórter prestes a obter a história que desejava.
Empurrei o maço de notas na direção dele.
— Guarde isso. Neste momento estou bastante chateada com o Adam, portanto gostava muito de desabafar consigo. — Especialmente estando Honey presente. — Poderá não me citar,
mas a verdade é que, sendo ele um maníaco do controlo tirânico, é mesmo impecável. É honesto, trabalhador e generoso. É um bom pai. É leal para com os seus e cuida deles.
Não é material para uma história muito boa, mas isso é problema seu, não meu. Se está à procura de podres do Adam Hauptman, permita-me que lhe poupe um grande esforçou infrutífero.
Não há podres.
Não sei que tipo de reação esperava, mas não correspondeu à que obtive. Ignorou as notas pousadas no balcão e inclinou-se sobre ele, invadindo o meu espaço.
— É um bom pai? — perguntou atentamente. O sorriso fingido desapareceu-lhe da cara. Conseguia sentir o cheiro da sua ansiedade a sobrepor-se ao da raiva.
Não respondi. Não ia ser responsável por direcionar os olhos da imprensa para Jesse quando Adam tinha tido o máximo cuidado para mantê-la fora de tudo. Além disso, as reações
estranhas do jornalista fizeram-me pensar que algo mais se passava.
Black fechou os olhos por breves instantes.
— Por favor — disse. — É importante.
Respirei fundo e senti o cheiro da verdade nas suas palavras. A primeira verdade completa que tinha verbalizado na minha presença. Isto era muito importante para ele.
Percorri várias possibilidades e depois perguntei:
— Quem é que conhece que seja lobisomem?
— Você é uma mulher-loba? — perguntou.
— Não. — Não que ele percebesse se eu tivesse mentido, porque era decididamente humano.
O mesmo pensamento deve ter-lhe passado pela cabeça. Descartou impacientemente a última pergunta com um aceno de mão.
— Não interessa. Se não se importar de me explicar por que é que diz que ele é um bom pai… eu falo-lhe dos lobisomens que conheço.
Medo. Não o tipo de medo que se sente quando confrontado inesperadamente por um monstro na escuridão, mas o medo mais lento, mais forte, de que algo terrível ia acontecer.
O medo e a dor de uma ferida antiga, o mesmo tipo de ferida a que Samuel cheirava na noite anterior. Não tinha sido capaz de ajudar Samuel, não o suficiente.
Atentei em Sr. Black, que tanto podia ser como podia não ser jornalista.
— Dê-me a sua palavra em como não vai usar isto para nenhuma notícia — disse, ignorando as sobrancelhas erguidas de Honey.
— Tem a minha palavra.
— Você é jornalista? — perguntei.
Fez que sim com a cabeça, um rápido sobe e desce seguido de um olhar que dizia para eu me despachar.
Pensei durante uns instantes.
— Deixe-me dar-lhe um exemplo. O Adam tem de falar com oficiais do governo sobre legislação respeitante aos lobisomens. Está metido numa série de negociações sensíveis. Quando
a filha precisou dele, largou tudo e regressou para aqui, apesar de conhecer muitas pessoas de confiança a quem podia ter ligado para tomarem conta dela.
— Mas ela é humana, certo? A filha dele. Li que eles não podem ter filhos lobisomens.
Franzi-lhe o sobrolho, tentando perceber o propósito da sua pergunta.
— Isso tem importância?
Esfregou o rosto fatigadamente.
— Não sei. Tem? Ele tratava-a de forma diferente se ela fosse uma mulher-loba?
— Não — interveio Honey. Black estava a ser tão interessante que me tinha esquecido de Honey. — Não. O Adam cuida dos seus. Lobos, humanos ou seja o que for. — Olhou para
mim severamente. — Mesmo quando não querem que ele o faça.
Era uma sensação estranha trocar um sorriso com Honey, portanto parei assim que pude. Julgo que ela terá sentido o mesmo porque virou a cabeça para se pôr a olhar através
da janela.
— Ou quando não lhe pertencem — afirmei, dirigindo-me a ela. Em seguida, voltei-me para Black. — Fale-me então dos lobos que conhece.
— Há três anos, a minha filha sobreviveu a um ataque de um lobisomem marginal — disse, falando rapidamente, como se assim lhe fosse mais fácil lidar com o que narrava. — Ela
tinha dez anos.
— Dez? — sussurrou Honey. — E sobreviveu?
Tal como Honey, nunca tinha ouvido falar em ninguém que tivesse sobrevivido a um ataque em tão tenra idade — especialmente uma rapariga. O sexo feminino não sobrevive à transformação
tão bem quanto o masculino. Essa era a razão pela qual o bando de Adam apenas tinha três fêmeas e quase dez vezes mais homens.
Perdido naquela história trágica, Black não pareceu ter ouvido o comentário de Honey.
— Havia outro lobisomem. Matou o que a tinha atacado antes que ele pudesse acabar com ela. Trouxe-a novamente para junto de nós e disse-nos o que devíamos fazer por ela. Disse-me
para a esconder. Disse que para uma rapariga nova as coisas podiam… podiam ser duras num bando.
— Sim — afirmou Honey ferventemente. Perante o meu olhar interrogativo, ela disse: — As fêmeas sem parceiro pertencem ao Alfa. Os instintos lupinos entram em ação, portanto
não é terrível — os seus olhos diziam o contrário — mesmo se não se gostar particularmente do Alfa. Mas uma rapariga tão nova… Não tenho a certeza se um Alfa a ia poupar.
— Respirou fundo e sussurrou, quase de si para si — Eu sei que alguns deles até iam gostar.
Black acenou afirmativamente com a cabeça, como se aquilo não fosse novidade para ele — embora para mim fosse. Pensava que sabia tudo o que havia para saber sobre lobisomens.
— E como é que foi quando ela se transformou pela primeira vez? — perguntei. Os humanos não estão equipados para lidar com um lobisomem acabado de se converter.
— Construí uma jaula na cave — respondeu. — E sempre que é Lua cheia acorrento-a e prendo-a lá dentro.
Sempre que é Lua cheia, mesmo passados três anos?, pensei. Por esta altura já deveria ter adquirido controlo sobre a loba dentro dela.
— Há dois meses ela partiu a corrente presa à coleira. — Black estava com mau aspeto. — Arranjei uma corrente mais grossa, mas desta vez… A minha mulher disse-me que ela escavou
um buraco no cimento. Estava em Portland a fazer a cobertura de uma conferência sobre comércio. Telefonei ao lobisomem. Ao que a tinha salvado. Ele disse-me que ela estava
a ficar mais forte, que tinha de encontrar um bando onde pudesse ficar. Disse-me que o nosso Alfa local seria uma má escolha. Quando soube que eu estava em Portland, deu-me
o nome de Hauptman… e o seu.
Tive pena da filha dele — e dele. Mais pena ainda porque encontrar um Alfa que não abusasse dela poderia ser o mais pequeno dos seus problemas se ela ainda não tinha sido
capaz de controlar a loba dentro de si. Os lobos que não têm controlo sobre si próprios são mortos pelo seu Alfa para garantir que não magoam mais ninguém.
Não queria atribuir a Adam a responsabilidade pela morte de uma rapariga.
— Pode haver alguém mais perto do sítio onde você mora — disse-lhe. — Deixe-me fazer um telefonema.
— Não — disse Black, recuando dois passos. Podia não ser um lobisomem, mas era rápido. Não tinha reparado na arma até ela estar nas mãos dele. — Está carregada com balas de
prata — afirmou. O assomo de medo que senti nele fez-me querer afagar-lhe as costas e dizer-lhe que tudo ia ficar bem — ou que assim seria se ele não me desse um tiro e Honey
não o matasse.
Não me parece que ele estivesse habituado a situações de combate, porque ignorou Honey e manteve a arma apontada a mim.
— Ele não vai disparar contra ninguém, Honey — disse-lhe a ela assim que se moveu. — Está tudo bem, Sr. Black, eu não vou mencionar o seu nome. O seu contacto disse-lhe alguma
coisa sobre o Marrok?
Abanou a cabeça.
Honey manteve-se à espera, de olhos cravados na arma dele.
— OK. O Marrok é uma espécie de Alfa de todos os Alfas. — O facto de haver um lobisomem-chefe era uma espécie de segredo aberto. Toda a gente sabia que existia alguém à frente
dos lobisomens, e havia muita especulação sobre quem podia ser. Portanto não tinha desvendado nenhum grande segredo.
Bran não se tinha revelado ao público — se as coisas corressem mal, queria garantir que o refúgio que estabelecera em Montana continuasse a ser um porto seguro. Mesmo que
ele se tivesse revelado, ninguém pensaria que ele era o Marrok. Ser pouco notável era um dos talentos favoritos de Bran e era bom nisso.
— Ele saberá melhor do que qualquer outro lobo quais os Alfas que tomarão conta da sua filha e quais aqueles de que se deve manter longe. A função dele é cuidar dos lobisomens,
Sr. Black, é garantir que aqueles como a sua filha estão em segurança.
E garantir que aqueles que não eram capazes de controlar o seu lado lupino fossem mortos de forma rápida e indolor antes de começarem a matar pessoas, pessoas como os seus
pais e familiares.
— Está bem — disse ele por fim. — Telefone-lhe. Mas se disser alguma coisa que eu não goste, mato-a.
Acreditei nele; tinha o olhar de um homem que tivesse sido encostado à parede. Honey aproximou-se, o suficiente para provavelmente conseguir impedi-lo antes que ele pudesse
premir o gatilho. Provavelmente. Se quisesse mesmo muito fazê-lo.
Saquei do telemóvel e fiz a chamada.
— Sim? — Era a voz de uma mulher.
Raios partam. A mulher de Bran não gostava de mim. Não da mesma maneira que Honey não simpatizava comigo, mas mais do género mato-te-se-tiver-oportunidade-para-isso. Tentou
fazê-lo um par de vezes. Ela era a razão pela qual ligava sempre para o telemóvel de Bran e não para a sua casa.
— Daqui fala a Mercedes — respondi. — Estou a telefonar por questões profissionais. Preciso de falar com o teu marido. — Ouvi a voz de Bran, mas estava a falar demasiadamente
baixo para que conseguisse perceber outra coisa que não a autoridade do seu tom. Escutei alguns cliques e ruídos inidentificáveis e depois Bran apareceu do outro lado da linha.
— Em que é que te posso ser útil? — perguntou numa voz aparentemente calma, embora conseguisse ouvir a voz rude da parceira dele ao fundo.
Expliquei-lhe a situação resumidamente. Não lhe disse que estava preocupada com uma loba que não tinha capacidade de autocontrolo ao fim de três anos, mas deve ter ouvido
isso na minha voz porque me interrompeu.
— É normal, Mercy. Uma criança acorrentada na cave não aprende a controlar-se porque não é de se esperar que o faça. Com alguma ajuda ela há de ficar bem. Qualquer criança
que sobreviva ao ataque de um lobisomem antes da adolescência tem força de vontade para dar e vender. Onde é que ele vive?
Transmiti a pergunta de Bran.
Black abanou a cabeça. Ainda estava de arma em punho, apontada a mim.
Soltei um suspiro exagerado.
— Ninguém quer mal à sua filha.
— Muito bem — disse Bran. — Há mais ou menos três anos? Um lobisomem marginal morto por um lobo solitário. Houve dois incidentes que podem encaixar, mas só um dos lobos solitários
é que tomaria a iniciativa de ajudar a rapariga. Diz aí ao teu cavalheiro que ele vive algures perto de Washington D.C, provavelmente na Virgínia, e que o lobisomem amigo
dele se chama Josef Riddlesback.
— Não me parece uma boa ideia — disse a Bran enquanto olhava Black diretamente nos olhos. Era difícil censurá-lo pelo uso da arma considerando o medo que lhe conseguia ler
na cara. — Está preocupado com a filha dele. Ela tem treze anos e ele não quer que ela se magoe. — Tive de infletir a voz para transmitir quão preocupado Black estava. Preocupado
de mais para o surpreender com os poderes dedutivos de Bran.
— Estou a ver. Um bocadinho para o paranoico, é?
— Completamente — concordei.
Fez-se uma breve pausa, após a qual Bran disse:
— Tens uma folha de papel à mão?
— Sim.
— Muito bem. O Josef tem razão, eu não confiaria um filho a nenhum dos dois líderes dos bandos daquela zona. Vou dar-te os nomes dos líderes de bandos a quem é seguro confiar
uma criança. Líderes que não se importariam que um repórter soubesse quem são. A lista é muito curta e nenhum deles está nem pouco mais ou menos perto da Virgínia. Há outros.
Acreditas na história dele?
— Sim — respondi.
— Então vou indicar-te sítios onde os Alfas não vieram a público e não querem fazê-lo, mas que estariam dispostos a tomar conta de uma rapariga. Se ele quiser arriscar, pode
lá ir e ver se o Alfa se encontra com ele.
Anotei os nomes que Bran me indicou, quatro homens, incluindo Adam, juntamente com números de telefone. Depois anotei quinze cidades. Dezanove Alfas, de entre talvez uns cento
e cinquenta, nos quais Bran achava que se podia confiar para ajudar uma criança sem abusarem dela.
Fez-me reconhecer quão sortuda eu tinha sido pelo facto de o parente lobisomem a quem a minha mãe recorrera para pedir ajuda, assim que se apercebera de que eu me podia transformar
em coiote, pertencer ao bando do Marrok e não a outro bando qualquer.
— Também podes mandá-los vir ter comigo — disse depois de ter terminado.
— Mas… — Mordi a língua. Não ia dizer a um repórter que o Marrok era um dos lobos que ainda não tinha vindo a público.
— Confio no teu discernimento, Mercy… e eu já eduquei alguns transviados. — Como eu.
— Eu sei.
Ele deve ter ouvido a gratidão na minha voz porque eu ouvi o sorriso na dele.
— Um ou dois. Seja como for, Mercy, diz aí ao cavalheiro que ele precisa de encontrar alguém que o ajude o quanto antes. A menos que use prata, o que a irá magoar, duvido
que seja capaz de a manter na jaula para sempre. Já para não falar no facto de ela não precisar que a Lua mude. Um dia ela vai magoar-se ou assustar-se com a transformação
e depois vai matar alguém. — Bran desligou.
Dei a Tom Black a lista e expliquei o que significava. Depois transmiti-lhe o aviso de Bran. À medida que foi absorvendo as palavras, baixou a arma, mas não creio que tenha
sido de propósito. Era mais uma questão de se ver afundado no desespero e nada mais ter importância.
— Ouça — disse-lhe. — Não há nada que possa fazer quanto ao facto de ela ser mulher-loba…
— Ela tentou cometer suicídio — contou-me com as lágrimas a caírem-lhe dos olhos. — No dia a seguir à Lua cheia. Ela tem receio de magoar alguém. Usou uma faca no pulso, mas
os cortes saravam depressa de mais. Eu levava-a a um maldito psiquiatra, mas não quero arriscar contar a ninguém o que ela é. Ela já acha que é um monstro, não precisa que
mais ninguém lhe diga isso.
Vi os olhos de Honey a abrirem-se mais quando Black mencionou a palavra «monstro». A avaliar pela expressão na sua cara, também ela se achava um monstro.
Franzi-lhe o sobrolho. Não queria sentir compaixão por Honey — era tão mais fácil não gostar dela. Em resposta, também me franziu o sobrolho.
— Guarde a arma — disse a Black com a voz firme que por vezes surtia efeito nos lobisomens. Presumo que também funcionasse com pais desolados, porque recolocou a pistola no
coldre de ombro.
— Ela não precisa de um psiquiatra — afirmei. — Todas as raparigas de treze anos se querem matar neste ou naquele momento.
Lembrei-me dos meus treze anos. Quando tinha catorze, o meu pai adotivo tinha-se suicidado, e isso removeu permanentemente o impulso. Jamais faria isso a pessoas de quem gostava.
— Suponho que prendê-la na cave uma vez por mês não ajude — continuei. — O Marrok disse-me que existem todas as razões para acreditar que ela vai controlar a loba dentro dela
se encontrar um Alfa que a oriente.
Virou-se e levou as mãos à cara. Quando se voltou novamente as lágrimas tinham desaparecido, embora os olhos estivessem húmidos. Pegou na folha de papel em que eu tinha escrito,
e, só depois de eu lho ter dado, no maço de notas.
— Obrigado pela sua ajuda.
— Espere — disse, olhando Honey de viés. — Sr. Black, aquele lobisomem que fala consigo, alguma vez se mostrou a si na forma de lobo?
— Não.
— E à sua filha?
— Só o vimos uma vez, na noite em que a trouxe novamente para junto de nós. Na noite do ataque. Deixou um número através do qual podíamos contactá-lo.
— Portanto, o único lobo que viu foi a sua filha, acorrentada e fora de controlo na jaula dela, e o único lobo que ela alguma vez viu foi aquele que a atacou?
— Isso mesmo.
Honey era ainda mais bonita na forma de loba do que na forma humana. Olhei para ela. Os lobos comunicam muito bem sem palavras; ela percebeu o que lhe pedi para fazer. Também
foi por demais claro que não percebeu o porquê, embora não se tivesse oposto. Black tinha os seus próprios segredos; não iria contar a ninguém que Honey era uma mulher-loba.
Após uns instantes de discussão silenciosa enquanto Black ficava cada vez mais desconcertado, acabei por dizer:
— Honey, por muito que me custe admiti-lo, a tua loba é gloriosa. Jamais alguém pensaria que tu eras um monstro, és tão monstro quanto um tigre siberiano ou uma águia dourada.
A boca dela abriu-se e fechou-se, depois olhou Black de relance.
— Está bem — disse numa voz curiosamente tímida. — Posso usar a tua casa de banho?
— Vai demorar algum tempo — expliquei a Black depois de ela ter saído. — Quinze minutos, mais ou menos, e é capaz de esperar alguns minutos para além disso. A transformação
é dolorosa e os lobisomens acabados de se transformar podem ficar um bocadinho mal-humorados.
— Você sabe imensas coisas sobre os lobisomens — comentou.
— Fui criada por eles — repliquei. Esperei algum tempo, mas não me perguntou porquê. Presumo que naquela altura estivesse mais preocupado com outras questões.
— Se eu fosse você — disse-lhe —, trazia a sua filha para aqui, para junto do Adam. — Bran achava que a rapariga talvez se safasse com alguma ajuda, que ela não era um caso
perdido. Adam era muito forte, e tinha o Samuel por cá, que era competente com os lobos novatos. As hipóteses dela no bando de Adam eram melhores do que em qualquer outro
sítio. — O Adam tem uma casa grande porque os membros do bando e outros lobos têm a tendência de lhe aparecerem sem avisar. Grande ao ponto de você e a sua mulher poderem
lá ficar durante algum tempo. — Adam honraria o meu convite. Conhecia-o suficientemente bem para saber que nem sequer ia levar a mal. — Com o Adam por perto, a sua filha não
teria de ser enjaulada, e eu acho que ela, assim como o resto da sua família, ia colher benefícios ao estar num bando de lobos durante algum tempo. São perigosos e assustadores,
mas também podem ser belos. — Adam impediria que o seu bando assustasse os humanos.
— Josef, o lobisomem que eu conheço, disse-me que ser lobisomem tem benefícios. Ele disse… — A voz de Black como que se comprimiu e teve de parar de falar por instantes. —
Ele disse que a sensação de caçar foi a melhor que já alguma vez teve. A matança. O sangue.
Lobisomem estúpido, pensei. Que raio de coisa para se dizer ao pai de uma rapariga de treze anos, sendo ou não verdade.
— Os lobisomens curam-se com uma rapidez incrível — expliquei-lhe. — São fortes, graciosos. Ela nunca vai envelhecer. E o bando… Não sei como lhe explicar isto, eu própria
não tenho a certeza se compreendo, mas um lobo num bom bando nunca está sozinho.
Olhei-o diretamente nos olhos e disse:
— Ela pode ser feliz, Sr. Black. Pode estar em segurança e ser feliz, sem ser um perigo para ela própria ou para qualquer outra pessoa. É horrível ela ter sido atacada e um
milagre ter sobrevivido. Nunca ouvi falar de uma criança tão nova que tivesse sobrevivido a um ataque. Ser-se lobisomem é diferente, mas não é terrível.
Senti o cheiro a pelagem de animal e virei-me para olhar para a porta antes de Honey entrar. Era uma mulher-loba pequena, aproximadamente da altura de um Pastor Alemão, embora
mais forte de corpo e patas. A sua pelagem era castanho-amarelada sobre uma base mais escura e a percorrer-lhe o dorso tinha uma lista prateada, quase da mesma cor que os
seus olhos cinza cristal.
Os ombros de um lobisomem estão articulados mais como os de um tigre ou um urso do que os de um lobo, permitindo-lhe movimentar-se para os lados e dando-lhe a capacidade de
usar as suas impressionantes garras. No caso de alguns dos machos de maior porte, o efeito pode ser quase grotesco, mas Honey apresentava uma figura equilibrada. Quando se
movia, tinha um ar grácil e forte, não inteiramente canídeo.
Sorri-lhe — ela agitou a cauda e baixou a cabeça. Precisei de algum tempo até perceber o motivo pelo qual tinha feito aquilo. Uma vez que Adam me tinha anunciado como seu
parceiro, eu ocupava uma posição mais elevada do que ela na hierarquia.
No entanto, não tinha memória de mais nenhum membro do bando de Adam agir de forma submissa perante mim. Mas a verdade é que normalmente não me cruzava com os elementos do
bando de Adam na forma de lobos — e na forma humana… bom, em teoria o comportamento deles devia ser o mesmo. Mas algumas coisas eram mais difíceis numa mente humana do que
numa mente de lobo. Imagino que todos tivessem dificuldade em ser submissos perante um coiote, especialmente porque todos eles sabiam que eu era companheira de Adam apenas
por cortesia.
Todavia senti o meu sorriso ampliar-se ao pensar nos estragos que eu podia causar se insistisse que todos me tratassem de acordo com a etiqueta do bando. Não funcionaria;
na verdade estava surpreendida com o facto de a afirmação de Adam ter funcionado tão bem ao ponto de impedir que alguns deles me incomodassem, mas talvez valesse a pena tentar
só para ver a cara de Adam.
A pelagem de verão de Honey não era tão esplêndida quanto a de inverno, mas revelava a sua atividade muscular de uma forma que a pelagem mais densa não permitiria. Ela também
sabia isso e arranjou um espaço onde batia a luz solar para se colocar.
Black recuou um passo quando ela se acercou, mas, depois desse primeiro passo, manteve-se firme. Honey deu-lhe tempo para se adaptar antes de continuar a avançar, sentando-se
ao alcance do seu toque.
— Ela é linda — disse, com a voz um tudo nada presa. Se não conseguisse ouvir a velocidade da sua pulsação, não teria percebido quão assustado ele estava. Se reagisse desta
forma à filha, não era de admirar que ele estivesse com problemas.
Honey, contudo, era mulher-loba há imenso tempo e o seu controlo era excelente. Não deu qualquer indício que pudesse levar Black a suspeitar o quanto o odor do seu medo a
excitava, e, passados poucos minutos, o seu medo começou a desaparecer.
— A minha filha pode ficar assim? — perguntou-me, soando mais cristalino do que seria aconselhável a um homem quando rodeado de desconhecidos.
Fiz que sim com a cabeça.
— Daqui a quanto tempo?
— Sozinha? Isso depende dela. Mas na presença de um Alfa, imediatamente.
— Acabaram-se as jaulas — sussurrou.
Não podia deixá-lo pensar isso.
— As de metal sim — disse-lhe. — Mas assim que se tornar membro de um bando, ela deixará de estar sob o seu controlo e passará a estar sob o controlo do Alfa. Isso pode ser
uma jaula de várias espécies, embora seja uma jaula mais confortável.
Respirou fundo e de forma trémula.
— Ela consegue perceber o que eu digo? — perguntou, acenando com a cabeça para Honey.
— Sim, mas não consegue falar.
— Está bem. — Olhou-a diretamente nos olhos sem ter consciência de que a estava a desafiar. Estive à beira de lhe dizer alguma coisa, mas Honey não parecia estar incomodada,
portanto não disse nada.
— Se tivesses uma filha — perguntou-lhe —, trazia-la para aqui? Confiava-la ao Hauptman?
Ela sorriu-lhe, não de forma tão rasgada ao ponto de exibir os afiados dentes brancos, e agitou a cauda.
Black olhou para mim.
— Se eu a trouxer para aqui, ele vai tirá-la de nós?
Não sabia ao certo como lhe responder. Adam não veria as coisas nesses termos, para ele os lobos eram todos elementos da sua família, mas transmitir isso a alguém que nunca
tivesse estado num bando era difícil — e não tenho a certeza que um pai achasse isso melhor. Como é que se abre mão de um filho, mesmo que seja para o seu próprio bem? Essa
era uma questão que eu nunca tinha colocado à minha mãe.
— Ela vai estar sob a proteção dele — disse por fim. — Ele vai assumir a responsabilidade pelo bem-estar dela, e não vai abdicar dessa responsabilidade de ânimo leve. Nunca
se iria recusar a permitir que você a visse. Se ela for infeliz no bando de Adam, há outras opções, especialmente depois de ela conseguir adquirir autocontrolo.
— Pode tornar-se uma loba solitária — disse, relaxando.
Abanei a cabeça. Não lhe ia mentir.
— Não. Nunca iriam deixar uma fêmea partir sozinha. Por um lado, são muito poucas, e, além disso, os machos… são demasiado protetores para permitir que uma fêmea se separe
deles. Mas ela podia pedir para mudar de bando.
As linhas do seu rosto tornaram-se mais vincadas e soltou um palavrão. Três vezes. Honey ganiu. Talvez estivesse a ser solidária, ou simplesmente estava a protestar contra
a linguagem obscena. Já não era capaz de prever as ações de Honey.
— Quais são as suas alternativas? — perguntei-lhe. — Se ela matar alguém, os lobos vão ter de ir atrás dela. Como é que ela se ia sentir se o magoasse a si ou à mãe?
Sacou do telemóvel e pôs-se a olhar fixamente para ele.
— Não — disse, após o que remexeu o bolso à procura do papel com o número de Adam. Fitou-o por instantes e depois, num quase sussurro, anunciou: — Vou ligar-lhe esta noite.
7
— Ei, Mercy, em qu’é que ‘tás a trabalhar? Parece um Corvette em miniatura.
Olhei para cima e vi Tony, polícia e velho amigo — normalmente nessa ordem —, inclinando-se sobre uma das minhas bancadas de trabalho. Hoje estava vestido de forma informal,
com uma camisa fina e calções caqui apropriados ao dia quente de verão. Tony parecia estar com os nervos um pouco alterados. Tinham-se passado pouco mais de duas semanas desde
que o feiticeiro tinha aparecido na cidade e, de acordo com o noticiário local, o índice de criminalidade tinha subido em flecha.
— Tens bom olho — disse-lhe. — É um Opel GT de 71, desenhado pelo mesmo gajo que desenhou o Corvette. Um amigo meu comprou-o a um tipo qualquer que substituiu o motorzinho
de caca original por um motor Honda.
— Não fez a coisa bem feita?
— Fez. Aliás, fez um excelente trabalho de reparação. Eu própria não teria sido capaz de fazer melhor. — Exibi-lhe um sorriso rasgado. — O único problema é que um motor Honda
gira para a direita e o Opel foi feito para um canhoto.
— E isso significa…?
Dei uma palmadinha no para-choques lustroso e sorri-lhe.
— A andar para a frente só atinge os trinta quilómetros por hora, mas em marcha atrás consegue ultrapassar os cento e sessenta se se usar as quatro velocidades.
Riu-se.
— Um carro engraçado. — Manteve-se de olhos fixos nele durante algum tempo e o sorriso sumiu-lhe do rosto. — Ouve. Posso levar-te a almoçar fora? Questões profissionais, portanto
eu pago a conta.
— O Departamento de Polícia de Kennewick precisa de um mecânico? — perguntei.
— Não. Mas acho que nos podes ajudar.
Lavei as mãos e a cara, mudei de roupa e fui ter com ele ao escritório. Honey olhou para cima quando entrei. Na semana passada, a sua segunda semana de serviço enquanto guarda-costas,
tinha aparecido em calças de ganga (justas) e com uma cadeira desdobrável, uma pequena secretária, um portátil e um telemóvel. Trabalhar fora do meu escritório era quase tão
bom, afirmara, quanto trabalhar fora do seu próprio escritório. Desde o incidente com Black, vínhamo-nos tratando com cautelosa simpatia.
— Vou almoçar com o Tony — anunciei. — Daqui a mais ou menos uma hora estou de volta. Gabriel, ligas ao Charlie por causa do Opel dele e dizes-lhe o preço do motor daquele
Mazda RX7 usado? O custo não o vai deixar feliz, mas o RX vai caber.
Honey olhou para cima na minha direção, mas não protestou por eu sair, como eu estava mais ou menos à espera que acontecesse.
— Espero que não te importes que vamos a pé — disse Tony no momento em que saímos para o calor abrasador. — Penso melhor quando me estou a mexer.
— Por mim tudo bem.
Fomos por um atalho que desembocava na baixa de Kennewick, através da linha férrea e alguns lotes de terreno vazios. Honey seguiu no nosso encalço, mas ela era suficientemente
boa para que Tony não a detetasse.
A baixa é uma das zonas mais antigas da cidade, pequenos negócios em edifícios antigos rodeados por casas de estilo Craftsman1 e vitoriano, na sua maioria construídas nos
anos vinte e trinta. Foram feitos esforços no sentido de tornar a zona comercial convidativa, mas o número de lojas vazias impedia que tivesse um ar próspero.
Esperei que falasse comigo enquanto caminhávamos, mas não o fez. Mantive-me em silêncio e deixei-o pensar.
— Está um calor dos diabos para andar — disse finalmente.
— Eu gosto do calor — repliquei. — E do frio. Gosto de viver num sítio que tenha as quatro estações. Em Montana só existem duas. Nove meses de inverno, três meses em que o
tempo quase aquece, depois novamente o inverno. Às vezes as folhas chegam a mudar de cor antes da primeiras quedas de neve. Lembro-me que uma vez nevou a 4 de Julho.
Não disse mais nada, portanto supus que não estivesse a tentar fazer conversa — mas também não sabia que outra intenção poderia ele ter com o seu comentário.
Levou-me a um pequeno café-restaurante onde fizemos os pedidos ao balcão e depois fomos encaminhados para uma sala escura e fria repleta de mesinhas. A atmosfera que os proprietários
tentavam recriar era provavelmente a de um pub inglês. Nunca tendo eu estado em Inglaterra, não podia dizer até que ponto tinham sido felizes na tentativa, todavia achei o
espaço apelativo.
— Então por que é que eu estou aqui? — perguntei-lhe finalmente, depois de uma sopa e uma sandes gigantesca terem sido colocadas à minha frente e a empregada de mesa se ter
ido embora. Era tarde para almoçar e cedo para o jantar, portanto tínhamos a sala só para nós.
— Olha uma coisa — disse passado algum tempo. — Aquele velhote carrancudo que foi teu patrão, aquele que ainda aparece por cá de vez em quando… ele é um ser feérico, não é?
Zee tinha reconhecido publicamente a sua herança há muito tempo, por isso assenti com a cabeça e dei uma trinca na sandes.
Bebeu um gole de água.
— Vi o Hauptman, o lobisomem, na tua oficina pelo menos duas vezes.
— Ele é meu vizinho — repliquei. A sandes era bastante boa. Estava capaz de apostar que fabricavam o seu próprio pão. No entanto já tinha comido sopas melhores. Sal a mais.
Tony franziu-me o sobrolho e, de forma intensa, disse:
— És a única pessoa que sabe sempre quem eu sou, seja qual for o disfarce que eu use. — Tony era um polícia sob disfarce com talento para mudar de aparência. Ficámo-nos a
conhecer depois de eu o ter reconhecido e quase lhe ter estragado o disfarce.
— Hem? — A minha interjeição tinha um propósito específico, porque não queria dizer mais nada até que ele fosse direto ao assunto que lhe interessava.
— Supostamente, os seres feéricos têm a capacidade de mudar a sua aparência. É por isso que me reconheces sempre?
— Não sou uma criatura feérica, Tony — disse-lhe depois de ter engolido a comida. — O Zee é que é. Os seres feéricos mudam de aparência através de magia: glamour, como lhe
chamam. Não tenho a certeza absoluta de que os seres feéricos sejam capazes de perceber o glamour uns dos outros. Eu é que não sou de certeza.
Fez-se um breve silêncio enquanto Tony ajustava o que ia dizer.
— Mas tu sabes coisas sobre os seres feéricos. E sabes coisas sobre os lobisomens.
— Porque o Hauptman é meu vizinho?
— Porque andaste a sair com ele. Um amigo meu viu-vos num restaurante.
Olhei para ele e depois em volta, percorrendo o restaurante.
Ele percebeu.
— Disse-me que vocês os dois pareciam bastante íntimos.
Derrotada, concedi.
— Saí com ele duas vezes.
— Continuas a sair?
— Não — respondi, colocando demasiada ênfase na palavra.
Tinha decidido manter-me longe de Adam desde a altura em que quase me enrolara com ele na sua garagem. Recordar isso fez-me sentir uma cobarde. Não queria falar sobre Adam
se o pudesse evitar. A verdade era que não sabia o que havia de fazer em relação a ele.
— Eu não sou um ser feérico. — Decidi não comer o resto da sopa, mas abri a embalagem de biscoitos salgados e comecei a comê-los. — Não sou uma mulher-loba.
Deu ares de não querer acreditar em mim, mas optou por não confrontar diretamente a minha resposta.
— Mas conheces alguns. Alguns seres feéricos e alguns lobisomens.
— Sim.
Tony pousou a colher e agarrou a borda da mesa com ambas as mãos.
— Olha, Mercy. Os crimes violentos aumentam sempre no verão. O calor põe as pessoas mais irritadiças. Nós sabemos disso. Mas nunca tinha visto nada assim. Começou com aquele
assassinato-suicídio no hotel em Pasco há umas semanas, mas não parou por aí. Estamos a fazer turnos duplos para tentarmos dar conta do recado. Ontem à noite prendi um gajo
que conheço há anos. Tem três filhos e uma mulher que o adora. Ontem chegou a casa do trabalho e tentou espancá-la até à morte. Isto simplesmente não é normal, nem mesmo no
meio de uma vaga de calor.
Encolhi os ombros, sentindo-me tão impotente quanto indubitavelmente aparentava. Sabia que as coisas estavam mal, mas não tinha noção da dimensão.
— Eu pergunto ao Zee, mas não me parece que os seres feéricos tenham alguma coisa a ver com isso. — Tinha de anular a mais pequena suspeita. Poderia ser perigoso para Tony
se começasse a sondar. Os seres feéricos não gostam que os polícias metam o nariz nos assuntos deles. — A última coisa que eles querem é assustar a população. Se algum deles
estivesse a fazer uma coisa dessas, toda a comunidade ia atrás dele e tratava do assunto.
Não falava com Zee há alguns dias. Talvez lhe devesse telefonar e indicar que a polícia estava inclinada a ir à procura deles para obter explicações em relação ao surto de
violência — sem mencionar o nome de Tony. Não sabia o que podiam fazer contra um vampiro que também era feiticeiro. Os seres feéricos não eram muito organizados, e tendiam
a ignorar os problemas das outras pessoas. Eles tinham conhecimento de Littleton — porque Zee sabia — mas pareciam contentar-se em deixar que os vampiros e os lobos andassem
à procura dele. No entanto, se a situação começasse a colocar alguma pressão sobre eles, talvez ajudassem a encontrá-lo — Warren e Stefan não estavam a fazer grandes progressos.
O truque seria garantir que os seres feéricos aplicassem os seus esforços contra o vilão, e não contra a polícia.
— O quê? — perguntou Tony rispidamente. — Onde é que tens a cabeça?
Ups.
— Pensei que contar ao Zee aquilo que acabaste de me dizer talvez pudesse ser uma boa ideia. Na eventualidade de haver alguma coisa que eles possam fazer. — Sei mentir, mas
o facto de viver no meio de lobos, muitos dos quais capazes de sentir o cheiro da falsidade, fizera de mim adepta do uso da verdade para meu benefício.
— E os lobisomens?
Abanei a cabeça.
— Os lobisomens são criaturas muito simples, é por isso que dão bons soldados. Se existisse um lobisomem marginal à solta por aí, poderia haver — improvisei um substituto
para corpos — animais mortos, mas não pessoas normais a perder o tino sem nenhuma razão forte para isso. Os lobos não são mágicos como os seres feéricos.
Bati com as palmas das mãos ao de leve nas coxas e inclinei-me para a frente.
— Ouve, é com todo o gosto que te ajudo com o pouco que sei sobre seres feéricos e lobisomens. Faço questão de falar com o Zee, mas, tal como disseste, estamos no meio de
uma vaga de calor. As temperaturas andam acima dos quarenta há muito tempo, sem sinais de tempo mais fresco. É o suficiente para endoidecer qualquer um.
Abanou a cabeça.
— O Mike não. Não perdeu a cabeça quando a mulher lhe espatifou o T-Bird de 57. Ouve, eu conheço este gajo. Joguei basquetebol com ele no liceu. Ele não é de perder a cabeça.
Não ia pura e simplesmente passar-se e espancar a mulher porque o ar condicionado lhe avariou.
Detesto a culpa. Detesto-a ainda mais quando sei que não tenho por que sentir culpa. Eu não era responsável por Littleton.
Ainda assim, como é que seria magoar alguém que se amava? Consegui perceber que a situação do seu amigo estava a consumir Tony — e senti um forte assomo de compaixão, e culpa.
Também eu não podia fazer nada.
— Arranja um bom advogado para o teu amigo, e leva-o a ele e à família a um terapeuta. Se precisares de nomes, tenho um amigo que é um advogado especializado em divórcios.
Eu sei que ele conhece uns conselheiros que costuma recomendar aos clientes.
Tony inclinou a cabeça num movimento que interpretei como um aceno e terminámos o almoço em silêncio. Tirei duas notas de um dólar do bolso e enfiei-as debaixo do prato como
gorjeta. Estavam húmidas de suor, mas esperei que a empregada de mesa estivesse habituada a isso no verão.
Assim que saímos do restaurante, senti o cheiro de um lobisomem — e não era Honey. Relanceei os olhos às pessoas em nosso redor e reconheci um dos lobos de Adam a olhar para
a montra de uma loja de artigos em segunda mão. Uma vez que não parecia ser o tipo de sujeito que se interessasse verdadeiramente por carrinhos de bebé antigos, o mais certo
era que estivesse a servir de meu guarda-costas. Perguntei-me o que teria acontecido a Honey.
— Que se passa? — perguntou Tony enquanto passava pelo segurança que me tinha sido destacado.
— Um pensamento difuso — respondi. — Acho que o calor também me está a deixar afetada.
— Ouve, Mercy, agradeço-te por teres vindo comigo. E gostava de aceitar a tua proposta de nos ajudares. Seattle e Spokane têm especialistas que lidam com os seres feéricos
por eles. Alguns desses polícias são seres feéricos. Nós não temos ninguém assim. Também não temos nenhum lobisomem — tinha, sim. Pelo menos o Departamento de Polícia de Richland
tinha, mas se eles não sabiam isso, não ia ser eu a contar-lhe — e seria bom não andar a vaguear de um lado para o outro completamente às cegas, para variar.
A minha intenção não tinha sido oferecer-me para ajudar a polícia — isso seria demasiado perigoso. Abri a boca para dizer isso mesmo, e depois detive-me.
O truque para uma pessoa evitar sarilhos, tinha-me dito Bran, consiste em não meter o bedelho nos assuntos das outras pessoas. Se se viesse a saber que eu andava a trocar
informações com a polícia, podia meter-me num belo sarilho.
Com Adam podia eu bem, eram os seres feéricos que me preocupavam, eles e os vampiros. Eu sabia de mais e não estava à espera que confiassem em mim para julgar o que contar
à polícia.
Ainda assim, não me parecia justo que a polícia fosse responsável por manter a paz quando apenas sabia as coisas que os seres feéricos e os lobisomens queriam que ela soubesse.
Havia demasiadas maneiras por via das quais isso se poderia revelar mortal. Se acontecesse alguma coisa a Tony ou a algum dos bons da fita que eu pudesse ter evitado, nunca
mais voltaria a dormir uma noite inteira. Não que eu andasse a dormir particularmente bem nos últimos tempos.
— Muito bem — disse. — Vou dar-te um conselho de borla. Certifica-te de que nenhum dos teus colegas de trabalho se mete com os seres feéricos por causa disto.
— Por que não? — perguntou.
Dei o meu primeiro passo em direção ao abismo, e disse-lhe algo que me podia meter num verdadeiro sarilho. Olhei em volta, mas se o lobisomem ainda nos estivesse a seguir,
estava a fazer um excelente trabalho. Uma vez que os lobos de Adam eram por norma mais do que competentes, baixei o volume da voz até ao sussurro.
— Porque os seres feéricos não são tão afáveis e fracos como tentam fazer passar. Não seria bom se eles achassem que alguém andava de olhos postos neles por causa deste surto
de violência.
Tony deu um passo em falso e quase tropeçou numa chulipa.
— O que queres dizer com isso?
— Quero dizer para nunca te colocares numa posição em que o mal para ti tornasse a comunidade local de seres feéricos mais segura. — Dirigi-lhe um sorriso tranquilizador.
— Eles não têm o menor interesse em fazer mal a quem quer que seja, e normalmente policiam-se a eles mesmos para que tu não tenhas de o fazer. Se algum deles infringir a lei,
eles próprios tratam do assunto. Apenas precisas de ter o cuidado de não te tornares uma ameaça para eles.
Absorveu as minhas palavras durante meio quarteirão.
— O que é que me podes dizer em relação à forma de lidar com os lobisomens?
— Aqui? — perguntei, acenando vagamente com a mão para a cidade à nossa volta. — Fala com o Adam Hauptman antes de tentares fazer perguntas a alguém que aches que possa ser
um lobisomem. Noutra cidade, descobre quem é que está à frente e fala com eles.
— Obter permissão do Alfa antes de falar com eles? — perguntou um tanto incredulamente. — Queres dizer, da mesma maneira que temos de falar com os pais antes de interrogarmos
um menor? — Bran tinha permitido ao público saber da existência de Alfas, mas não propriamente quão rígida a estrutura de um bando é de facto.
— Hmmm. — Olhei para o céu à espera de inspiração. Não apareceu nenhuma, por isso tentei desenrascar-me sozinha. — Uma criança não te arranca o braço, Tony. O Adam pode garantir
que eles respondem às tuas perguntas sem magoar ninguém. Os lobisomens podem ser… voláteis. O Adam pode ajudar nisso.
— O que tu queres dizer é que eles nos dizem aquilo que ele quer que nós ouçamos.
Respirei fundo.
— É importante que acredites nisto: o Adam é um dos bons da fita. É mesmo. Isso não se aplica a todos os líderes de bandos, mas o Adam está do teu lado. Ele pode ajudar-te,
e desde que não o ofendas, vai fazê-lo. Mantém-se como líder do bando daqui há muito tempo porque é bom na função dele. Deixa que ele a cumpra.
Não sei se Tony decidiu acreditar em mim ou não, mas pensar sobre o assunto manteve-o ocupado até pararmos junto ao seu carro no parque de estacionamento da minha oficina.
— Obrigado, Mercy.
— Eu não ajudei — disse, encolhendo os ombros. — Vou falar com o Zee. Que diabo, talvez ele conheça alguém que possa fazer com que o tempo nos dê tréguas. — Pouco provável.
O tempo implicava Grande Magia, não era algo que a maioria dos seres feéricos tivesse capacidade de alterar.
— Se fosses uma índia genuína, podias fazer uma dança da chuva.
Tony podia pegar comigo porque a sua metade venezuelana era sobretudo índia.
Abanei a cabeça solenemente.
— Em Montana, os índios não têm uma dança da chuva, têm uma dança que se chama Para-Com-Esta-Neve-E-Este-Vento-Malditos. Se já foste a Browning, Montana, no inverno, saberás
que não funciona.
Tony riu-se enquanto entrava no carro e o ligava. Deixou a porta aberta para deixar sair o calor, colocando uma mão em frente à saída de ar para apanhar o primeiro sopro de
ar frio.
— Provavelmente vai arrefecer na altura em que chegar à esquadra — disse.
— Põe-te rijo — aconselhei-o.
Mostrou-me um sorriso rasgado, fechou a porta e arrancou. Só nessa altura percebi que o carro de Honey não estava no parque.
Gabriel olhou para cima quando cheguei.
— O Sr. Hauptman telefonou para falar consigo. Disse para verificar as mensagens no seu telemóvel.
Encontrei o telemóvel onde o tinha deixado, em cima de uma caixa de ferramentas giratórias na oficina.
— Acabei de ir buscar o Warren. — A voz de Adam tinha aquele ritmo calmo e intenso que apenas usava quando as coisas estavam mesmo mal. — Vamos levá-lo agora para a minha
casa. Vai lá ter connosco.
Liguei para a casa de Adam, mas fui atendida pelo atendedor de chamadas. Liguei, então, para o telemóvel de Samuel.
— Samuel?
— Estou a caminho da casa do Adam — indicou. — Só quando lá chegar é que vou ficar a saber alguma coisa.
Não perguntei se Warren estava ferido. A voz de Adam já mo tinha dito.
— Daqui a dez minutos estou lá. — Não que isso fizesse grande diferença, pensei, carregando no botão de desligar. Não havia nada que eu pudesse fazer para ajudar.
Disse a Gabriel para guardar a fortaleza, e para fechar às cinco da tarde.
— Problemas com os lobisomens? — perguntou.
Assenti com a cabeça.
— O Warren está ferido.
— Está em condições para conduzir? — inquiriu.
Assenti novamente e saí porta fora. Estava a meio caminho entre a oficina e o carro quando me apercebi de que provavelmente ninguém teria pensado em telefonar a Kyle. Hesitei.
Warren e Kyle já não eram um casal — mas não me parecia que fosse por falta de amor de cada uma das partes. Portanto procurei o número do escritório de Kyle na memória do
meu telemóvel e entrei em contacto com a sua secretária hiper-eficiente.
— Lamento — disse-me. — De momento não está disponível, mas pode deixar o seu nome e o seu número?
— O meu nome é Mercedes Thompson. — Pôr o cinto com uma mão não era tarefa fácil, mas acabei por conseguir. — O meu número de telefone…
— Menina Thompson? Só um momento, eu passo-lhe já a chamada.
Ah. Kyle deve ter-me colocado na sua lista de pessoas importantes. Enquanto virava para a Chemical Drive e acelerava, comecei a escutar música clássica do outro lado da linha.
Tinha quase a certeza de que o condutor do Taurus verde atrás de mim era o lobisomem que me vinha seguindo.
— Então, Mercy? — A voz relaxante de Kyle substituiu Chopin antes de eu chegar à placa que indicava BEM-VINDO A FINLEY.
— O Warren está ferido. Não sei em que grau, mas o Adam convocou as tropas.
— Estou no meu carro perto da 27ª e da 395 — disse. — Onde é que está o Warren?
Atrás de mim, vi luzes intermitentes. O carro da polícia que normalmente estava escondido logo a seguir à ponte que atravessava a via-férrea mandava encostar o Taurus. Carreguei
mais no acelerador.
— Na casa do Adam.
— Eu vou lá ter daqui a nada. — Quando se preparava para desligar, ouvi a aceleração do enorme V-12 do seu Jaguar.
Não chegou antes de mim, mas ainda estava a discutir com o imbecil postado na porta principal quando Kyle parou com uma derrapagem, espalhando gravilha por toda a parte.
Saquei do telemóvel e mostrei a mensagem de Adam ao sentinela.
— Ele está à minha espera — disse, enervada.
O idiota abanou a cabeça.
— As ordens que eu tenho são para só deixar entrar membros do bando.
— Ela pertence ao bando, Elliot, meu imbecil — disse Honey, abrindo a porta atrás do homenzarrão. — O Adam anunciou-a como parceira dele, estás farto de saber. Deixa-a entrar.
— A mão de Honey prendeu o braço de Elliot e arrastou-o para longe da porta.
Agarrei no braço de Kyle, puxando-o, e ambos passámos pelo sentinela-idiota. Havia lobisomens em todo o lado. Sabia que o bando de Adam apenas tinha cerca de trinta lobos,
mas estava capaz de jurar que naquela sala estavam o dobro disso.
— Este é o Kyle — disse a Honey, conduzindo Kyle até às escadas.
— Olá, Kyle — pronunciou Honey suavemente. — O Warren falou-me de si. — Não sabia que era amiga de Warren, mas o seu rímel manchado indicou-me que tinha estado a chorar.
Não nos seguiu escada acima — sem dúvida que teria de passar por uns quantos momentos pouco simpáticos com Elliot antes de poder fazer o que quer que fosse. Imbecil ou não,
Elliot era um dominante, e portanto numa posição mais elevada na hierarquia do bando do que Honey, que ocupou a posição do seu marido submisso. Já mencionei que as regras
dos lobisomens ficaram paradas noutro século? Honey tinha-se colocado numa situação bastante vulnerável por nós.
A casa de Adam tem cinco quartos, mas não tinha de adivinhar onde estava Warren. Consegui cheirar o sangue a partir do topo das escadas, e Darryl, o número dois de Adam, estava
de vigia junto à porta como um núbio a proteger o Faraó.
Franziu-me o sobrolho de forma carregada. De certeza que era por ter metido um humano num assunto dos lobisomens. Mas agora não estava com paciência para isso.
— Vai salvar a Honey daquele idiota que estava a tentar impedir-me de entrar.
Hesitou.
— Vai. — Não consegui ver Adam, mas foi depois da sua ordem que Darryl passou por nós e seguiu escada abaixo.
Kyle foi o primeiro a entrar no quarto, e depois parou abruptamente, bloqueando a minha visão do quarto. Tive de me aninhar debaixo do braço dele e avançar até conseguir ver
bem.
A coisa era má.
Tinham tirado toda a roupa da cama, deixando apenas o lençol de baixo, e Samuel estava furiosamente de volta da coisa maltratada e sangrenta que era Warren. Não censurei Kyle
por hesitar. Se não lhe tivesse sentido o cheiro, nunca teria como saber quem era o homem deitado na cama. Era muito pouco o que nele restava de reconhecível.
Adam encostou-se à parede, sem estorvar Samuel. Por vezes, quando um membro de um bando está gravemente ferido, a carne e o sangue do Alfa podem ajudar a curá-lo. O braço
esquerdo de Adam tinha uma ligadura recente. Olhou para nós, detendo-se em Kyle. Quando olhou para mim, acenou uma vez com a cabeça em sinal de aprovação.
Samuel viu Kyle e, sacudindo o queixo, indicou que este fosse até à cama, para junto da cabeça de Warren.
— Fale com ele — disse Samuel. — Ele consegue se quiser mesmo muito. Precisa apenas de lhe dar uma razão. — Depois a mim disse: — Mantém-te longe de mim a menos que eu te
peça para fazeres alguma coisa.
Kyle, usando umas calças que custavam mais do que o que eu ganhava num mês, sentou-se sem hesitação no chão manchado de sangue ao lado da cama e começou a falar baixinho sobre
basebol, de entre todos os temas possíveis. Descentrei-me dele e concentrei-me em Warren, como se o conseguisse manter preso ao lado de cá pela simples força da vontade. A
sua respiração era superficial e inconstante.
— O Samuel acha que os ferimentos foram feitos a noite passada — murmurou-me Adam. — Tenho pessoas à procura do Ben, que estava com o Warren, mas ainda não há sinal dele.
— E o Stefan? — perguntei.
Os olhos de Adam estreitaram-se um pouco, mas fitei-o na mesma, demasiado transtornada para me preocupar com o maldito do domínio ou qualquer outra espécie de jogo.
— Nem sinal de nenhum vampiro — disse por fim. — Quem quer que tenha ferido o Warren deixou-o no Tio Mike. — O Tio Mike era um bar misto em Pasco, um sítio onde os seres feéricos
locais iam. — O homem que abriu o bar hoje deu com ele no contentor quando levava o lixo para fora. Telefonou ao Tio Mike, que me telefonou a mim.
— Se foi feito ontem à noite, por que é que não está a sarar melhor? — perguntei, abraçando-me a mim mesma com firmeza. Uma coisa capaz de fazer isto a Warren poderia ter
feito o mesmo ou pior a Stefan. E se Warren morresse? E se Stefan já estivesse morto — morto-para-nunca-mais-se-levantar — e tivesse sido deixado noutro sítio, num contentor
do lixo qualquer? Pensei no júbilo de Littleton ao matar a criada. Por que é que eu me tinha permitido convencer que os lobos e os vampiros estariam à altura dele?
— Grande parte dos estragos foi provavelmente provocada por uma lâmina de prata — disse-me Samuel numa voz ausente: estava a prestar atenção ao que estava a fazer. — Os outros
ferimentos, os ossos partidos, estão a sarar mais lentamente porque o corpo dele está a sofrer uma sobrecarga ao tentar curar tudo ao mesmo tempo.
— Sabes onde foram ontem à noite? — perguntei. As mãos de Samuel eram tão rápidas com a agulha. Não conseguia perceber como é que ele sabia onde dar os pontos porque a mim
Warren parecia-me ser só carne exposta.
— Não sei — respondeu Adam. — O Warren telefonou-me a relatar o que tinham feito, não o que planeavam fazer.
— Telefonaste para a casa do Stefan?
— Mesmo que esteja lá, ainda não acordou.
Saquei do meu telemóvel, marquei o número de Stefan e esperei que chegasse ao atendedor de chamadas.
— Daqui é a Mercedes Thompson — disse claramente, na esperança de que alguém estivesse a ouvir. Sabia que Stefan não vivia no ninho, mas provavelmente não vivia sozinho. Os
vampiros precisam de dadores de sangue, e ter vítimas dispostas a dá-lo era muito mais seguro do que tirar alguém das ruas.
— Ontem à noite o Stefan saiu para caçar. Um dos camaradas dele está num estado absolutamente lastimável e não sabemos onde está o outro. Preciso de saber se o Stefan voltou
para casa ontem à noite.
Escutei um clique no momento em que alguém, uma mulher, pegou no telefone e sussurrou «Não», desligando em seguida.
Adam dobrou os dedos, como se os viesse mantendo cerrados há demasiado tempo.
— O Littleton dominou dois lobisomens e um velho vampiro…
— Dois vampiros — disse eu. — Pelo menos o Stefan tinha outro vampiro para o ajudar.
— O Warren disse que o segundo vampiro não servia para grande coisa.
Encolhi os ombros.
— Dois lobisomens e dois vampiros, então. — Adam parecia estar a congeminar alguma coisa. — O Stefan já tinha fraquejado perante ele uma vez; isso faz do Warren o mais forte
do grupo. Não foi por acaso que foi ele o devolvido. O que o Littleton nos está a dizer é «Vejam. Enviem-me o que têm de melhor e vejam o que eu vos devolvo.» O Littleton
não acabou com ele porque queria que nós soubéssemos que não considerava o Warren uma ameaça. Ele não quer saber se o Warren sobreviveu para ir atrás dele ou não. Esta… —
a voz de Adam foi-se tornando mais grave até se transformar num resmoneio áspero —… coisa desenhou um risco na areia e desafiou-me a atravessá-lo.
Adam dominava as manobras psicológicas. Acho que é um requisito para se ser Alfa. Ou talvez fosse simplesmente do tempo que passara no exército, que, segundo as suas histórias,
não era assim tão diferente, politicamente falando, do bando.
— E os outros? — perguntei.
Não disse nada, limitou-se a abanar a cabeça. Voltei a envolver os braços em mim mesma, sentindo frio.
— Então, o que é que vais fazer?
Sorriu sem centelha de alegria.
— Vou entrar no jogo do Littleton. Não tenho opção. Não posso deixá-lo a andar à solta pelo meu território.
Nesse preciso momento, a respiração de Warren, que parte de mim estava a ouvir com profunda atenção, parou. Adam também se apercebeu, aninhando-se como se estivesse um inimigo
presente no quarto. Talvez estivesse. A morte é um inimigo, verdade?
Samuel praguejou, mas foi Kyle quem se levantou do chão, tocou Warren no queixo e começou a fazer RCP em desesperado silêncio.
Não tinha conseguido ouvir o coração de Warren, mas também ele devia ter parado, porque Samuel começou a fazer-lhe compressões no peito.
Impotente uma vez mais, observei-os a lutar pela vida de Warren. Estava verdadeiramente farta de não ser capaz de fazer nada enquanto as pessoas estavam a morrer.
Depois do que pareceu ser um longo período de tempo, Samuel afastou Kyle, dizendo:
— Está tudo bem, ele está a respirar. Pode parar. — Teve de se repetir várias vezes até que Kyle compreendesse.
— Ele vai ficar bem? — perguntou, soando bastante diferente do seu habitual tom descontraído.
— Está a respirar sozinho e o coração dele está a bater — disse Samuel.
Não era propriamente o assentimento, mas Kyle não pareceu ter reparado. Voltou a afundar-se no tapete e começou a contar uma história como se nunca tivesse sido interrompido.
Na sua voz não transparecia nenhuma da tensão que se lhe via no rosto.
— Diz-me o que eu preciso de saber sobre demónios — disse a Adam, embora não conseguisse tirar os olhos de Warren. Tinha a estranha sensação de que se deixasse de olhar para
ele, ele morreria.
Fez-se uma longa pausa. Ele sabia o motivo pelo qual eu queria saber. Se não me dissesse o que sabia agora — se não me ajudasse naquilo que eu tencionava — então não era o
homem certo para mim.
— Os demónios são maus, sórdidos e impotentes a menos que se consigam ligar-se como um parasita ao raio de um idiota qualquer. Ou são convidados como hóspedes, que é o que
faz deles feiticeiros, ou entram à socapa porque alguém fraco de espírito faz uma coisa malévola. Uma simples possessão demoníaca não dura muito tempo porque os homens possuídos
não conseguem integrar-se de forma normal: um demónio em controlo quer só uma coisa, a destruição. Um feiticeiro, alguém que controla o demónio através de uma negociação,
é incomparavelmente mais mortal. Um feiticeiro é capaz de viver no seio da população humana durante anos sem ser detetado por esta. A partir de uma dada altura, o feiticeiro
perde o controlo e o demónio apodera-se.
Nada que eu não soubesse.
— Como é que se mata um demónio? — perguntei. As mãos de Samuel estavam uma vez mais a fazer deslizar agulha e linha através de carne sangrenta.
— Não se mata — respondeu Adam. — A única coisa que se pode fazer é matar o hospedeiro. Neste caso, o Littleton, que é um vampiro, estimulado pela magia do demónio. — Respirou
fundo. — Não é o tipo de presa para um coiote. Podes deixar-nos tratar disso, Mercy. Faremos tudo para o matar. — Ele tinha razão. Eu sabia. Eu era inútil.
Reparei que Kyle estava de olhos cravados em nós, embora não tivesse parado de contar a sua história relacionada com basebol, qualquer coisa sobre quando ele estava na Little
League.
— Achavas que os lobisomens eram os piores monstros do mundo? — perguntei a Kyle num tom maldoso. Só quando falei é que percebi quão zangada estava. Não era correto descarregar
em Kyle, todavia parecia incapaz de travar a minha boca. Ele tinha rejeitado Warren por ser um monstro. Talvez devesse aprender mais coisas sobre monstros. — Há coisas bem
piores por aí. Vampiros, demónios, e toda a espécie de criaturas sórdidas, e a única coisa que se interpõe entre os humanos e eles são pessoas como o Warren. — Mesmo enquanto
o dizia, sabia que não estava a ser justa. Sabia que o facto de lhe terem mentido tinha magoado Kyle tanto quanto descobrir que Warren era um lobisomem.
— Mercy — interveio Adam. — Chiu.
Parecia que as suas palavras transportavam um vento fresco de paz que passou por mim, levando toda a raiva, toda a frustração e todo o medo, o lobisomem Alfa a acalmar a sua
loba — sucede que eu não era uma loba. Tinha conseguido outra vez.
Virei-me para olhar para ele; observava Warren intensamente. Se me tinha feito isto de propósito, não estava preocupado. Mas eu tinha a certeza de que o tinha feito por uma
questão de hábito, porque não era de esperar que fizesse efeito em mim.
Merda.
Warren produziu um ruído, o primeiro que tinha ouvido dele desde que tínhamos entrado no quarto. Teria sido mais feliz se ele soasse assustado.
— Calma, Warren — disse-lhe Adam. — Aqui estás seguro.
— Se nos morreres, não vais estar — disse Kyle com um grunhido que faria jus a qualquer um dos lobisomens no quarto.
Podiam estar maltratados, escoriados e sangrentos, mas os lábios de Warren ainda conseguiam sorrir. Mas apenas um nadinha.
Samuel, com o trabalho aparentemente terminado, pegou na velha cadeira de baloiço do corredor e colocou-a aos pés da cama de Warren, deixando o espaço à cabeceira da cama
para Kyle. Samuel inclinou-se para a frente na cadeira, de cotovelos apoiados nos braços, e pousou o queixo nas mãos entrelaçadas. Parecia estar a olhar para os sapatos, mas
eu sabia que não. A sua atenção estava no paciente, atento a uma eventual alteração na respiração ou no batimento cardíaco que pudessem indiciar problemas. Era capaz de permanecer
ali sentado, imóvel, durante horas — Samuel tinha a reputação de caçador muito paciente.
Todos nós lhe imitámos a quietude silenciosa enquanto Warren caía no sono — com exceção de Kyle, que continuava com a narração das suas tribulações enquanto terceiro-base
de dez anos de idade.
Enquanto Warren dormitava inquietamente, houve um fluxo constante, porém silencioso, de visitantes durante a hora seguinte. Alguns deles eram amigos, mas a grande parte estava
ali apenas para examinar os estragos. Se Adam — ou Samuel — ali não estivessem, teria sido perigoso para Warren. Os lobisomens, quando fora de um bando bem dirigido, matam
os feridos ou os fracos.
Adam encostou-se à parede, observando os visitantes com uma intensidade grave. Consegui perceber o efeito do seu olhar à medida que os seus lobos (e, embora estivessem na
forma humana, continuavam a ser os seus lobos) entravam no quarto. Assim que o viam, silenciavam ainda mais os passos. Baixavam as cabeças, enfiavam as mãos sob o outro braço,
lançavam um olhar rápido e perscrutador aos ferimentos de Warren e saíam.
Quando Honey entrou, ostentava numa das faces uma nódoa negra que estava a sarar de forma visivelmente rápida. Dali a meia hora, teria desaparecido por completo. Lançou um
olhar rápido a Adam a partir do corredor. Este acenou com a cabeça — foi a primeira ocasião em que reagiu a um visitante.
Honey contornou a cadeira de Samuel e depois sentou-se no chão ao lado de Kyle. Olhou novamente para Adam, e, ao constatar que este não objetou, apresentou-se discretamente
a Kyle, tocou-o no ombro, e depois encostou-se à parede com a cabeça inclinada para trás e os olhos fechados.
Após a passagem de alguns visitantes, um homem loiro com uma barba curta e arruivada entrou no quarto. Não o conhecia de vista, embora tivesse reconhecido o seu cheiro como
pertencendo a um dos do bando de Adam. Tinha deixado de prestar atenção aos visitantes — e também teria ignorado este se não fossem duas coisas.
A sua postura não se alterou quando atravessou a porta — e a de Adam mudou. Adam encostou os ombros à parede, pondo-se completamente vertical. Em seguida, deu dois passos
em frente até se colocar entre Warren e o homem desconhecido.
O homem de barba ruiva era um palmo mais alto do que Adam, e por instantes tentou usar esses centímetros a mais como uma vantagem — mas não estava à altura do Alfa. Sem qualquer
palavra ou gesto agressivo, Adam fê-lo recuar.
Aparentemente, Samuel não se tinha apercebido de nada. Duvido que mais alguém tivesse visto prontidão na lenta contração dos músculos dos seus ombros.
— Quando ele estiver bom — disse Adam —, se fizeres um desafio justo, Paul, eu não impeço a luta.
Sob o domínio do Alfa, eram muito poucas as lutas autorizadas — lutas verdadeiras, não um par de estalos e uma mordidela ou duas. Essa era uma das razões pelas quais havia
mais lobisomens no Novo Mundo do que na Europa, de onde o lobisomem, tal como o ser feérico, era originário.
Normalmente consigo hierarquizar o bando do mais dominante até ao menos dominante (ou o inverso) só com base na linguagem corporal. Os lobos são melhores nisso do que eu.
Os humanos, se prestarem atenção, fazem a mesma coisa — embora isso não seja, nem de longe nem de perto, tão importante para eles como para os lobisomens. Para um humano isso
pode significar ser promovido ou não, ou sair vencedor de uma discussão renhida. Para um lobisomem, a sobrevivência depende do bando — e um bando é uma complexa hierarquia
social e militar que depende de cada membro saber exatamente qual é o seu lugar.
O domínio entre os lobos consiste numa combinação de força de personalidade, força de vontade, aptidão física e uma outra componente que não sou capaz de explicar a ninguém
sem os olhos, os ouvidos e o nariz para a sentir — e aqueles que tivessem os sentidos apurados não iriam precisar que fosse explicada. A predisposição para lutar é a definição
mais próxima que consigo encontrar. É por causa dessa outra componente que, fora de um bando, o domínio natural de um lobo se altera num grau razoavelmente amplo. Tal como
acontece com todos nós, nalguns dias estão cansados, deprimidos ou felizes — todos estes aspetos afetam o domínio natural.
Num bando, é feita a triagem gradual destas oscilações naturais. No caso de lobisomens que são quase dominantes, por vezes uma luta entre eles permitirá que a força determine
a posição hierárquica no bando. Os números dois e três de um Alfa eram os dois machos mais dominantes num bando, a seguir a este último.
Warren, entre inimigos, era calmo e vigilante, em vez de adotar a agressividade mais típica de um macho dominante. As suas competências em termos de linguagem corporal nem
sequer eram tão boas como as minhas porque tinha passado muito pouco tempo com o bando quando se transformara pela primeira vez. Andava ao lado do bando e não tanto no seio
do bando. Por causa disso, era vulnerável a desafios de lobisomens que achavam que podiam ser mais fortes, melhores e mais rápidos.
Eu sabia que tinha sido Adam a contar aos restantes elementos que Warren era o seu número três. Se Adam fosse menos dominante, menos apreciado ou respeitado, teria havido
sangue derramado em resultado da sua declaração. Sabia que a determinação de Adam era acertada — mas eu era uma das poucas pessoas por quem Warren baixava a guarda.
Uma minoria significativa de lobos sentia que Warren não era suficientemente forte para a posição que ocupava. Sabia — por via de Jesse e não de nenhum dos lobos envolvidos
— que alguns dos lobos queriam Warren fora do bando, ou, melhor ainda, morto.
Este Paul era, evidentemente um deles, e suficientemente dominante para desafiar Warren. Algo que Adam acabara de lhe dar permissão para fazer.
Paul fez um pequeno aceno de satisfação e abandonou o quarto em passada rápida, inconsciente de que Warren o ia arrumar em três tempos. Isto se Warren sobrevivesse — a avaliar
pela cuidadosa atenção de Samuel, percebi que isso ainda não era certo.
Adam observou o homem sair com um olhar pensativo. Quando por fim levantou o olhar reparou que eu o observava. Semicerrou os olhos, encaminhou-se para mim e pegou-me no braço,
puxando-me para fora do quarto atrás de si.
Conduziu-me até ao quarto de Jesse, hesitou e largou-me o braço. Bateu à porta uma vez, ao de leve, e depois abriu-a. Estava sentada no chão com as costas encostadas à cama,
de nariz vermelho e com lágrimas a correrem-lhe lentamente pelo rosto.
— Ele está-se a aguentar — disse-lhe Adam.
Levantou-se prontamente.
— Posso ir vê-lo?
— Não faças barulho — indicou-lhe.
Anuiu com a cabeça e dirigiu-se para o quarto de Warren. Quando me viu, hesitou, depois exibiu-me um sorriso que foi como um raio de luz a espreitar das nuvens do estado de
Warren. Em seguida, passou por mim apressadamente.
— Anda. — Adam pegou-me no braço novamente, o que não me agradou mesmo nada, e acompanhou-me até junto de uma outra porta fechada. Esta ele abriu sem bater.
Agarrei-me firmemente à minha irritação enquanto me libertava com uma sacudidela e caminhei até ao interior do quarto. Se estivesse irritada, não teria medo. Detestava verdadeiramente
o facto de agora ter medo de Adam.
Cruzei os braços e mantive-me de costas voltadas para ele. Só depois me apercebi de que me tinha levado para o seu quarto.
Tê-lo-ia reconhecido como o quarto de Adam, mesmo que não tivesse o seu cheiro. Ele adorava texturas e cores quentes e o quarto refletia isso desde o tapete berbere castanho-escuro
até ao estuque veneziano nas paredes creme. Havia uma pintura a óleo da minha altura e com o dobro da largura numa das paredes, uma cena numa floresta montanhosa. O artista
tinha resistido ao impulso de acrescentar uma águia no ar ou um veado no curso de água.
Para um humano o quadro talvez fosse desinteressante.
Toquei na tela sem me ter apercebido de que me tinha mexido. Não conhecia o nome do artista, que estava gatafunhado de forma quase ilegível no canto inferior direito e numa
plaquinha de latão no centro da moldura. O título da obra era Santuário.
Desviei a atenção do quadro para deparar com Adam de olhos fixos em mim. Tinha os braços cruzados e foram as manchinhas brancas distribuídas ao longo das suas largas maçãs
do rosto que me indicaram que estava furioso. Isso por si só não era invulgar. Tinha um temperamento irascível e eu era bastante boa a enervá-lo — embora não ultimamente.
E não, estava capaz de jurar, hoje.
— Não tive alternativa — disparou.
Olhei-o fixamente sem a mais pálida ideia sobre de que é que estava a falar.
O meu ar indubitavelmente estúpido pareceu enfurecê-lo ainda mais.
— Isto vai impedir que o Paul lhe arme uma emboscada. Tem de ser um duelo verdadeiro, à frente de testemunhas.
— Eu sei — disse-lhe. Por acaso achava que eu era estúpida?
Adam observou-me durante alguns segundos e em seguida virou costas e começou a andar para trás e para a frente em passada rápida. Quando parou, encarou-me novamente e disse:
— O Warren tem mais controlo sobre o lobo que existe nele do que qualquer outro dos meus, e o Ben, apesar do modo de estar dele, é quase tão bom. São o melhor que tenho para
mandar perseguir um feiticeiro.
— Alguma vez disse o contrário? — disparei. O quadro tinha-me distraído, mas Adam relembrou-me que eu estava a tentar estar zangada com ele. Felizmente, isso não foi difícil.
— Estás zangada comigo.
— Estás a gritar comigo — disse-lhe. — Claro que estou chateada.
Acenou com as mãos impacientemente.
— Não me refiro a agora. Refiro há bocado, no quarto do Warren.
— Estava zangada com o lobo estúpido que apareceu para desafiar o Warren assim que ele estava deitado de costas. — O que me fez lembrar do quanto Adam me tinha assustado quando
usara a coisa do Alfa para me acalmar. Mas ainda não estava capaz de falar sobre isso. — Não estava zangada contigo até me teres agarrado pelo braço e me teres arrastado pelo
quarto fora para berrares comigo.
— Raios — disse. — Desculpa. — Olhou para mim e depois desviou os olhos. Sem a sua fúria defensiva, parecia cansado e preocupado.
— A questão do Warren e do Ben não é culpa tua — opinei. — Ambos se voluntariaram.
— Não teriam ido se eu não tivesse permitido. Eu sabia que era perigoso — vociferou, voltando a ficar furioso com a mesma velocidade com que tinha deixado de ficar.
— Pensas que és o único com o direito de te sentires culpado em relação ao Warren… e em relação ao Ben?
— Não foste tu quem os enviou. Fui eu.
— Eles só ficaram a saber do feiticeiro por minha causa — disse. Depois, porque consegui perceber que ele se sentia de facto culpado, revelei-lhe a minha pior ação. — Eu rezei
para que eles conseguissem apanhar o feiticeiro.
Olhou para mim incredulamente, após o que se riu, um ruído áspero e amargo.
— Achas que o facto de teres rezado faz de ti responsável pelo estado de Warren?
Não acreditou. Não sei por que é que isso me chocou tanto. Conhecia muitas pessoas que não acreditavam em Deus, em nenhum Deus. Mas todos os lobisomens com quem tinha crescido
eram crentes. Adam olhou para a minha cara e voltou a rir-se da minha expressão.
— És tão inocente — afirmou num tom baixo e furioso. — Há já muito tempo que aprendi que Deus é um mito. Rezei a todas as horas durante seis meses num pântano fedorento no
estrangeiro antes de abrir os olhos, e um lobisomem louco deu-me a lição final de que não existe nenhum Deus. — Os seus olhos iluminaram-se de um castanho quente para um amarelo
frio enquanto falava. — Não sei. Talvez exista. Se assim é, Ele é um sádico que observa os Seus filhos a darem tiros uns aos outros e a mandarem-se pelos ares sem mexer uma
palha.
Estava bastante enfurecido porque nem sequer estava a fazer sentido — e Adam normalmente fazia sentido, mesmo quando estava a gritar a plenos pulmões. Também ele tinha noção
disso, porque se virou abruptamente e caminhou em direção ao janelão panorâmico com vista sobre Columbia.
O rio tinha cerca de quilómetro e meio de largura nesta zona. Por vezes, em alturas de tempestade, a água chegava a parecer quase preta, mas hoje o Sol dava-lhe uma cor azul
brilhante e viva.
— Tens andado a evitar-me — disse, soando mais calmo.
A outra janela tinha vista para a minha casa. Fiquei satisfeita ao constatar que o Rabbit parcialmente dissecado estava enquadrado no centro do seu campo de visão.
— Mercy.
Eu simplesmente continuava a olhar através da janela. Mentir seria inútil e dizer a verdade conduziria à pergunta seguinte, a que eu não queria responder.
— Porquê? — perguntou, ainda assim.
Olhei por cima do meu ombro, mas ele ainda estava a olhar para o exterior através da outra janela. Voltei-me e encostei a anca ao parapeito da janela. Ele sabia porquê. Tinha
percebido isso nos olhos dele quando saí da garagem. E se não sabia… bom, não lhe ia explicar.
— Não sei — acabei por responder.
Rodou sobre si mesmo e fitou-me, como se tivesse acabado de detetar uma presa inesperada, os olhos ainda de um amarelo de caçador. Tinha-me enganado. Mentir era pior do que
inútil.
— Sabes, sim — replicou. — Porquê?
Esfreguei a cara.
— Ouve, simplesmente hoje não estou à altura do teu peso de combate. Isso não pode esperar até que o Warren esteja fora de perigo?
Observou-me com os seus olhos âmbar semicerrados, mas pelo menos não me espicaçou mais.
Desesperada para mudar de assunto, disse:
— O repórter entrou em contacto contigo? Aquele que tem aquela filha.
Fechou os olhos e respirou fundo. Quando os reabriu estavam da cor de uma barra de chocolate.
— Sim, e obrigado por me teres metido nessa sem antes me avisares. Ele pensava que tu já me tinhas ligado: ainda demorámos algum tempo até percebermos que eu não fazia a mais
pálida ideia sobre o que é que ele estava a falar.
— Então, eles vêm para cá?
Adam acenou com a mão na direção do quarto de Warren.
— Numa altura em que anda por aí uma coisa capaz de fazer aquilo a um dos meus lobos? Supostamente viriam. Vou ter de lhe telefonar e dizer que não é aconselhável. No entanto,
não sei para quem os enviar. Não há nenhum Alfa que eu conheça a quem confiaria a minha filha, e a dele é ainda mais nova do que a Jesse.
— Diz-lhe para ir ter com o Bran — sugeri. — Ele disse-me que já criou alguns transviados.
Adam lançou-me um olhar avaliativo.
— Confiavas uma criança ao Marrok?
— A mim não me fez mal — repliquei. — E muitos Alfas teriam feito.
Subitamente, Adam exibiu um sorriso rasgado.
— E isso quer dizer muito. É mesmo verdade que espatifaste o Lamborghini dele contra uma árvore?
— Não era isso que eu queria dizer — pronunciei ardorosamente. — Muitos Alfas teriam matado uma coiote posta ao cuidado deles.
Atravessei o quarto em passada larga até à porta. Parei aí.
— Era um Porsche — disse com dignidade. — E a estrada estava coberta de gelo. Se foi o Samuel quem te contou isso, espero que te tenha contado que foi ele quem me incitou
a levar o carro. Vou voltar para ver como é que está o Warren.
Adam ria-se baixinho no momento em que fechei a porta atrás de mim.
Passadas algumas horas, fui para casa sozinha. Samuel ia ficar toda a noite para garantir que nada corresse mal — pelo menos nada pior do que já tinha acontecido. Kyle também
ia ficar: tinha praticamente a certeza absoluta de que seria preciso mais do que um bando de lobisomens para o tirar daquele quarto.
Não havia nada que eu pudesse fazer por Warren, ou por Stefan. Ou por Ben. Por que é que as pessoas de quem gostava não podiam simplesmente precisar de alguém que lhes reparasse
os carros? Isso eu podia fazer. E desde quando é que me preocupava com Ben? Ele era um filho da mãe da pior espécie.
Mas a sensação de mal-estar no meu estômago também era em parte por causa dele. Para o diabo. Para o diabo com tudo.
Havia duas mensagens no telefone à minha espera quando cheguei a casa. Uma da minha mãe e outra de Gabriel. Liguei a Gabriel e contei-lhe que Warren tinha ficado gravemente
ferido, mas que devia ficar bem. Quanto à minha mãe, não era capaz de enfrentá-la. Não sem chorar, e não fazia tenção de chorar até descobrir com toda a certeza o que tinha
acontecido.
Jantei ramen e dei a maior parte à Medea, que ronronava enquanto lambia o caldo. Arrumei a louça da minha refeição e depois aspirei e limpei o pó. É possível avaliar o estado
da minha vida mediante o grau de limpeza da minha casa. Quando estou chateada, cozinho ou limpo. Não conseguia comer mais, portanto pus-me a limpar.
Desliguei o aspirador para arrastar o sofá e apercebi-me de que o telefone estava a tocar. Teria acontecido mais alguma coisa má?
Levantei o auscultador e premi o botão de atender.
— Ligou para a casa de Mercedes Thompson.
— Mercedes Thompson, a Senhora gostaria de falar consigo. — A voz era polida e feminina, uma voz de secretária. Olhei através da janela e constatei que o Sol se estava a pôr,
banhando as Colinas de Horse Heaven com uma brilhante luz laranja.
Toda a ira frustrada da qual me vinha desfazendo regressou com toda a pujança. Se a senhora de Stefan tivesse enviado todos os seus servos em busca do feiticeiro, em vez de
entrar em jogos de poder inúteis, Warren não estaria a lutar para se manter vivo.
— Lamento — disse de modo insincero. — Por favor informe a sua Senhora que não estou interessada em visitá-la. — Desliguei o telefone. Quando voltou a tocar, pu-lo no silêncio
e tirei as almofadas do sofá para poder limpar debaixo delas.
Quando o meu telemóvel tocou, também quase o ignorei, porque não reconheci o número. Mas podia ser um dos membros do bando de Adam, ou Stefan.
— Estou, sim?
— Mercedes Thompson, preciso que me ajude a encontrar o Stefan e a matar o feiticeiro — disse Marsilia.
Eu sabia o que devia fazer. Se ela tivesse dito mais alguma coisa, podia ter-lhe desligado o telefone na cara, tê-lo-ia feito, por muito estúpido que fosse desligar na cara
da Senhora do ninho de vampiros. Mas ela precisava de mim, precisava que eu fizesse alguma coisa.
Que matasse o feiticeiro.
Mas isso era ridículo — o que podia eu fazer que dois vampiros e um par de lobisomens não podiam?
— Porquê eu?
— Explico-lhe isso cara a cara.
Ela era boa, tinha de reconhecer isso — se não estivesse atenta a isso, não creio que tivesse ouvido a satisfação na sua voz.
1 Estilo arquitetónico americano popular entre as décadas de 1900 e 1920, desenvolvido a partir dos conceitos de design encontrados numa revista publicada por Gustav Stickley
chamada The Craftsman (O Artífice). (N. do T.)
8
Embora fosse quase meia-noite, o parque de estacionamento do Tio Mike estava cheio e tive de estacionar no parque do armazém ao lado. O meu pequeno Rabbit não estava sozinho,
mas parecia preocupado entre os SUV e as carrinhas de caixa aberta. Não sei por que motivo os seres feéricos gostam de veículos grandes e nunca se vê um a conduzir um Metro2.
Há vários bares perto da reserva dos seres feéricos em Walla Walla, cerca de dez quilómetros mais à frente na auto-estrada, que dizem ser pontos de encontro para criaturas
feéricas com o propósito de atrair publicidade. Havia um bar novo, não muito longe da minha oficina, que se auto-publicitava como antro de lobisomens. Todavia não se vê o
Tio Mike a fazer publicidade para os clientes, nem se vê muitos humanos por lá. Se algum humano estúpido, atraído pelo número de carros no parque, decidir parar, um feitiço
subtil trata de o pôr a andar. O Tio Mike é para os seres feéricos — embora seja tolerada a entrada a qualquer espécie de criatura preternatural, desde que não cause nenhum
problema.
Tinha-me recusado a ir ao ninho sem Stefan. Podia ser teimosa, mas não era estúpida. Também não a ia convidar para ir a minha casa — é muito mais fácil convidar o mal a entrar
do que mantê-lo afastado depois. Nem sequer tinha a certeza de como se convidava um vampiro, apenas sabia que era possível. Portanto tinha sugerido o Tio Mike como ponto de
encontro neutro.
Contava com menos gente, considerando que amanhã era dia de trabalho. Aparentemente, a clientela do Tio Mike não se preocupava com a ideia de se levantar de manhã, contrariamente
a mim.
Abri a porta e fui atingida pelo barulho como se fosse água a jorrar de uma barragem. Apanhada de surpresa pelo volume intenso do ruído, hesitei — depois senti uma mão firme
no meu esterno a empurrar-me, enviando-me novamente para o exterior aos cambaleios. A porta foi fechada, ficando eu sozinha no parque de estacionamento com o meu agressor.
Dei um segundo passo atrás, criando espaço entre nós, e desejei ter trazido uma arma. Em seguida olhei com atenção e relaxei. Vestia uma túnica e umas meias verde-vivas, com
um aspeto não muito diferente do dos seguidores do Robim dos Bosques, o uniforme dos funcionários do Tio Mike.
Parecia ter uns dezasseis anos, alto e magro apenas com um quase impercetível vestígio de pelo em redor da boca — que dali a alguns anos poderia vir a ser um bigode. Os seus
traços eram vulgares, nem muito grandes nem muito pequenos, mas não suficientemente bem distribuídos para ser considerado atraente.
Fez-me um pequeno gesto e senti o distinto cheiro adstringente da magia dos seres feéricos. Depois rodou sobre si mesmo e encaminhou-se para a porta. Era um segurança. Para
o diabo com tudo, esta era a segunda vez hoje que alguém me tentava expulsar de algum lugar.
— Não sou humana — disse-lhe impacientemente, seguindo-o. — O Tio Mike não se importa que eu cá venha. — Não que o Tio Mike tivesse reparado muito em mim.
O rapaz emitiu um silvo e virou-se para me encarar, os seus traços tornados sombrios pela fúria. Levantou as mãos entre nós e uniu-as em concha. Desta vez o cheiro da magia
era tão forte quanto o do amoníaco, penetrando através dos meus seios nasais. Tossi engasgada com a força inesperada do odor.
Não sei o que tencionava fazer-me porque a porta atrás dele abriu-se novamente e o Tio Mike em pessoa saiu.
— Calma lá, Fergus, não vais fazer isso, ‘tás a ouvir? Para com isso. De todas as… És mais inteligente do que isso. — A Irlanda fluía-lhe, espessa como o mel, na língua e
a voz dele exerceu a sua própria espécie de magia sobre o segurança, que deixou cair as mãos à primeira palavra.
O Tio Mike parecia-se com aquilo que o dono de uma taberna devia parecer. Como se tivesse entrado na minha mente e retirado todos os proprietários de tabernas de todos os
livros e filmes e histórias que tinha lido, visto e ouvido, e depois os tivesse destilado para produzir a caricatura perfeita. O seu rosto era agradável, mas mais carismático
do que bonito. Era de estatura média e tinha ombros largos, braços grossos, e mãos poderosas com dedos curtos. O seu cabelo era castanho-arruivado, mas não tinha quaisquer
sardas no seu rosto bronzeado. O seus olhos, sabia-o, embora a noite lhes roubasse a cor, eram cor de avelã e utilizou o poder deles no desgraçado do empregado.
— Agora, Fergus, faz-te útil e diz à Biddy para ficar a guardar a porta o resto da noite. Depois vais ter com o Cook e dizes-lhe que eu quero que te mantenhas ocupado até
meteres na cabeça que matar clientes não é bom para o negócio.
— Sim, senhor. — Completamente aterrorizado, o segurança entrou pela porta e desapareceu no interior. Era capaz de ter sentido pena dele, não fora a parte de «matar clientes».
— Ora muito bem — disse o Tio Mike, voltando-se para mim. — Vai ter de desculpar a minha ajuda. Aquele demónio anda-nos a causar todo o tipo de estragos, deixando as pessoas
com impulsos assassinos, como viu. Julgo que esta talvez não seja a melhor noite para alguém da sua espécie se juntar a nós na pândega.
Era mais educado do que um feitiço de morte, talvez, mas ainda mais eficiente no que dizia respeito a manter-me afastada. Merda.
Engoli o meu grunhido e tentei manter a voz tão polida quanto a dele.
— Se eu não sou bem-vinda, pode pedir a alguém que procure a Marsilia e lhe diga para se encontrar comigo aqui fora?
A sua cara pôs-se inexpressiva de surpresa.
— E por que é que se vai encontrar com a rainha vampira? Caminha sobre gelo demasiado fino para nele se aguentar muito tempo, menininha.
Acho que foi a expressão «menininha» a responsável. Ou talvez tenha sido a mudança do sentido do vento que trouxe o cheiro a lixo, lobo e sangue até ao meu nariz, assim como
o odor distinto que pertencia apenas a Warren — fazendo-me lembrar que ele tinha sido despejado aqui, a sangrar e a morrer, há apenas umas horas.
— Talvez se os seres feéricos mexessem o cu de vez em quando, eu não tivesse de caminhar sobre o gelo — disse, atirando para o ar qualquer tentativa de ser polida. — Eu conheço
as histórias antigas. Eu sei que vocês têm poder, raios partam. Por que é que estão todos parados a ver o feiticeiro matar pessoas? — Estava a tentar não incluir Stefan nos
mortos, mas parte de mim estava já a fazer o luto. Isso acrescentou um vigor temerário à minha língua. — Suponho que se têm receio que vos possa deixar com «impulsos assassinos»,
talvez faça mais sentido esperarem até que acabe. — Warren também podia ter feito isso. Se assim fosse, estaria a salvo em casa em vez de estar a sangrar no quarto de hóspedes
de Adam. — Especialmente por se tratar de uma questão de vampiros. As pessoas que morrem pelo caminho são meros eflúvios e nada com que uma pessoa se deva preocupar.
Sorriu, apenas um nadinha, e isso inflamou ainda mais a minha ira.
— Tudo bem, sorria à vontade. Suponho que já tenha matado o seu quinhão. Bem, isto também vos afeta. Os humanos não são estúpidos, eles sabem que isto é algo fora do normal,
algo malévolo, e as únicas pessoas que eles sabem ser capazes de fazer isto são vocês.
Agora ostentava um sorriso rasgado, mas levantou uma mão.
— Desculpe, querida. É apenas a imagem. Uma pessoa não pensa em mecânicos que utilizem a palavra eflúvios, não é verdade?
Cravei os olhos nele. Talvez houvesse algo no facto de ser velho, e eu suspeitava que o Tio Mike era muito velho, que lhe desse uma nova perspetiva, mas…
— Peço desculpa — disse-lhe, e até eu conseguia perceber que a minha voz estava carregada de raiva. — Tentarei cingir-me a palavras vulgarmente usadas e muitos pequenas quando
estiver a discutir algo que vai numa contagem de corpos que ascende aos… — Tentei fazer a soma na minha cabeça, embora estivesse de certo modo desorientada porque não sabia
quantas pessoas tinham morrido enquanto Daniel tinha estado sob o controlo do feiticeiro. — Quinze?
O sorriso desapareceu-lhe completamente do rosto, e deixou de se parecer com um proprietário de taberna.
— Acho que o mais provável é serem quarenta, embora não tenha dúvidas de que ainda há mais por descobrir. Nem todos aqui em Tri-Cidades. Os demónios negoceiam na morte e na
podridão. Nada que dê para sorrir ou para deixar passar. As minhas desculpas. — Inclinou-se num gesto tão rápido que não tinha a certeza absoluta se de facto o tinha visto.
— Estava a divertir-me com o seu uso da linguagem. Mesmo passado todo este tempo, esqueço-me sempre que os heróis podem ser encontrados em sítios e pessoas improváveis, como
mecânicas que têm a capacidade de se transformar em coiotes. — Fixou-se em mim durante algum tempo e um sorriso maldoso deslizou-lhe para os olhos numa expressão completamente
diferente de qualquer uma das que tinha exibido.
— Portanto, como tem esse direito, sendo uma heroína à beira de se transformar numa granada para todos nós, vou-lhe dizer por que é que não estamos a fazer nada em relação
ao assunto. — Acenou com a cabeça na direção da taberna. — Nós, seres feéricos, estamos agarrados à sobrevivência pelas pontas dos dedos, Mercedes Thompson. Estamos a morrer
mais depressa do que estamos a procriar, mesmo incluindo os nossos meio-irmãos. Começou na primeira vez que um humano forjou uma lâmina de ferro frio, mas o chumbo de uma
bala mata-nos com a mesma rapidez que o aço, sendo os gremlins como Siebold Adelbertsmiter a exceção entre nós.
Fez uma pausa, mas mantive-me à espera. Sabia tudo o que me estava a dizer, como o sabiam todos aqueles que se dessem ao trabalho de ligar a televisão ou ler um jornal.
— Há seres poderosos aqui — disse. — Seres que, pelo medo provocado na população humana, fariam com que esta iniciasse uma onda de genocídio que iria limpar da face da Terra
todos os seres feéricos. Se o feiticeiro concentrar a atenção dele em nós, se fizer com que um de nós mate humanos em frente às câmaras, coisa que é capaz de fazer, deixará
de haver seres feéricos.
— Os lobisomens enfrentam os mesmos constrangimentos — repliquei. — Isso não impediu Adam de agir. Podíamos ter deixado que fossem os vampiros a resolver o assunto. Aposto
que agora mesmo estão quatro pessoas dentro daquele bar capazes de destruir este monstro antes que ele tivesse sequer oportunidade de perceber que andavam atrás dele.
Cerrou os punhos e virou costas, mas não sem que eu antes lhe visse algo novo no seu rosto, algo faminto.
— Não. Está a subestimar o poder dele, Mercy. A maior parte de nós tem a mesma resistência aos poderes vampíricos do que qualquer humano, e tão-pouco há muitas almas suficientemente
puras para resistir ao demónio. Acredite que não ia querer que ele controlasse um de nós. — Virou-se novamente para mim, e estava com o ar que sempre tivera, aquele instante
de algo mais tinha desaparecido como se nunca tivesse existido.
De qualquer modo recuei um passo porque os meus instintos me diziam que eu não era a maior predadora aqui.
A sua voz era aveludada e suave quando me disse:
— Mas se por acaso alguém se sentisse demasiadamente tentado a fazer frente a este feiticeiro, os Senhores Cinzentos declararam que este assunto é exclusivamente dos vampiros
e que devemos manter-nos afastados dele. Os Senhores Cinzentos na verdade consideram os humanos como eflúvios, Mercy. Eflúvios muito perigosos. Não tendem a preocupar-se em
demasia com a morte de alguns humanos.
Olhando-o nos olhos, compreendi três coisas. A primeira foi que o Tio Mike era um dos poucos que teria ido atrás do feiticeiro. A segundo foi que sentia simultaneamente ódio
e medo em relação aos Senhores Cinzentos. A terceira foi que de modo algum considerava os humanos eflúvios.
Não tinha a certeza de qual das três me surpreendia mais.
— Então — disse —, isso significa que me vai deixar entrar e procurar a Marsilia?
Assentiu lentamente com a cabeça.
— Não vou impedir que isso aconteça. — Estendeu o braço num gesto antiquado. Coloquei os dedos levemente em volta dele e deixei que me conduzisse de regresso ao bar.
Contudo, mesmo antes de alcançarmos a entrada, parou.
— Não leve os lobos consigo quando for atrás do feiticeiro.
— Por que não?
— Aquele rapaz, o Fergus, trabalha para mim há três vintenas de anos. Durante esse tempo nunca, em circunstância alguma, levantou a mão a um cliente meu. Aquele demónio que
o feiticeiro carrega arrasta a violência como uma corrente arrasta peixinhos. A sua simples presença suga todo o autocontrolo e encoraja a fúria e a luta. O efeito de um demónio
num lobisomem é como o da vodka numa fogueira.
Soava à recitação de Tony relativamente à crescente inquietação que a polícia estava a combater. Bran também tinha mencionado algo parecido, mas não tinha feito com que soasse
tão terrível. Agora que penso nisso, embora o acesso de Adam esta noite possa ser facilmente explicado por uma combinação de mau génio e preocupação, Samuel vinha-se mostrando
mais volátil do que era habitual nos últimos tempos.
— Por que é que não disse ao Adam que o Warren e o Ben corriam perigo? — perguntei.
— Só depois de terem despejado aquele desgraçado à minha porta é que fiquei a saber que o Adam tinha mandado os rapazes dele à caça, embora devesse ter percebido antes.
Será que Bran sabia do perigo quando Adam enviou Warren e Ben juntamente com Stefan? Pus-me a pensar nisso. Provavelmente. Mas nunca tinha sido apanágio de Bran dizer aos
seus quais os limites que tinham. Provavelmente tinha tomado uma decisão acertada. A preocupação e o medo de saber que o demónio lhes podia sugar o autocontrolo faria metade
do trabalho do demónio.
Também não lhe ia contar, decidi. O que queria dizer que não lhes podia contar que eu andava à caça — e, independentemente do que Marsilia tivesse em mente, estava farta de
ficar sentada à espera. Os coiotes são bons a esquivar-se e eram capazes de derrotar presas muito maiores do que a maior parte das pessoas poderia pensar. Se Marsilia pudesse
ajudar, ótimo. Se não, iria atrás dele sozinha.
Entrei no bar com o Tio Mike. Uma banda heavy metal estava a dar um concerto e o matraquear da bateria e da guitarra distorcida fez com que a minha cabeça latejasse ao ritmo
da batida e os meus ouvidos atingissem o seu limite. Conhecia alguns lobos que adoravam sítios como este, onde os seus sentidos apurados se desligam durante algum tempo. Acham
que é repousante. Eu não. Põe-me agitada porque não consigo ouvir o que está a acontecer atrás de mim.
O Tio Mike manteve-se ao meu lado enquanto passávamos pela mulher atrás do balcão de pagamento, e ela lançou-me um olhar de surpresa que ele ignorou. Curvou-se até os seus
lábios estarem próximos do meu ouvido e disse:
— Tenho de ir gerir o bar, mas vou estar atento a si enquanto aqui estiver.
Abri a boca para lhe agradecer, mas ele levou os dedos à minha boca antes que eu dissesse alguma coisa.
— Nada dessas coisas, rapariga. Eu sei que o Zee a ensinou. Nunca agradeça a um ser feérico, senão quando der por si vai estar a lavar-lhe as peúgas e a pagar-lhe a renda
antes de conseguir dizer eflúvios dez vezes.
Tinha razão. Eu sabia isso, e provavelmente ter-me-ia lembrado antes de dizer alguma coisa. Mas ainda assim fiquei grata pela cortesia dele.
Ergui as sobrancelhas e, com inocência fingida, disse:
— Mas você não ia fazer isso.
Sorriu de forma rasgada e fez-me um sinal com a mão para que me fosse embora.
— Vá à procura dos seus vampiros, rapariga. Eu tenho de ir ganhar dinheiro.
Ninguém me criou problemas, mas sentia o peso dos olhares das criaturas feéricas nas minhas costas enquanto avançava cuidadosamente por entre a multidão. Era difícil não esbarrar
contra as pessoas num edifício tão sobrelotado como este, mas mantive o aviso do Tio Mike em mente e evitei ao máximo tocar em alguém. A disposição da multidão era bastante
má. Os meus ouvidos não me estavam a servir de muito, mas as emoções que o meu nariz detetava não eram alegres.
Encontrei os vampiros no lado oposto da pista de dança. Marsilia estava com um vestido branco estilo anos cinquenta que evocava imagens da Marilyn Monroe, embora a vampira
não tivesse nenhuma das suas delicadas curvas. Mesmo na luz débil, a sua pele era demasiado pálida em comparação com o branco do vestido.
Alguém devia dizer a Marsilia que o estilo não a favorecia. Talvez ela me viesse a chatear o suficiente para eu própria o dizer.
Também eu parecia estar um bocado para o irritada.
Assustada com esse pensamento, parei onde estava e rodei sobre mim mesma lentamente, mas não vi Littleton em sítio nenhum. Nem tão-pouco lhe senti o cheiro. Retomei o passo
em direção aos vampiros.
Marsilia tinha trazido apenas um acompanhante, e não fiquei minimamente surpreendida ao perceber que era Andre, o amigo e rival de Stefan. Perfurar a multidão deu-me algum
tempo para pensar sobre como desempenhar o meu papel. Marsilia sabia que já me tinha prendido pelo anzol, a única coisa que faltava decidir era quem ficaria à frente das operações.
Uma vez que era quase certo que seria eu a arriscar a minha pele, era do meu interesse garantir que tinha controlo sobre a caça. Puxei o colar que usava sempre de debaixo
da t-shirt para que pudessem ver bem o cordeiro de prata estilizado à medida que me aproximava.
Não ando com uma cruz. Quando era criança, tinha tido uma experiência má com uma. Além disso, o crucifixo era o instrumento da morte do Nosso Senhor — não sei por que motivo
é que as pessoas acham que um instrumento de tortura deve ser um símbolo de Cristo. Cristo era um sacrifício de boa vontade, um cordeiro, não uma cruz onde nos pudéssemos
pendurar; ou pelo menos essa é a minha interpretação. Talvez outras pessoas pensem a religião e Deus de forma diferente da minha.
Seja como for, o meu cordeirinho funciona pelo menos tão bem com vampiros como é de esperar que uma cruz funcione — e Marsilia sabia isso.
Quando alcancei a mesa, sorri-lhes, mostrando os dentes. Em seguida peguei na cadeira que tinham deixado para mim e virei-a ao contrário de modo a poder sentar-me de frente
para as suas costas com os braços cruzados sobre o topo. Num bando de lobos, uma certa arrogância pode poupar-nos muitas nódoas negras.
Não ia mostrar mais fraquezas a estes predadores, disse a mim mesma. Agora não estava no território deles, e não tinham qualquer poder sobre mim. Bom, não a menos que eu considerasse
quão mais fortes eles eram, e quão mais traquejados eram no ato de matar. Portanto, tentei não considerar isso. Pelo menos o barulho ia impedi-los de ouvirem o meu coração
a bater como o de um coelho.
— Então — disse —, querem que eu vá à caça do vosso vampiro?
A cara de Marsilia dificilmente poderia estar mais imóvel, mas Andre ergueu uma sobrancelha.
— Caça ao feiticeiro, bem entendido — murmurou. À semelhança de Marsilia, estava vestido de branco. A cor natural da sua pele, embora pálida como a de todos os vampiros por
causa da falta de Sol, era suficientemente escura para que o branco lhe ficasse bem. A sua camisa era de seda de qualidade, com um corte vagamente oriental com bordado branco
sobre pano branco. Ficava-lhe melhor do que as camisas de pirata.
— Hmmm. — Dirigiu um novo sorriso a Marsilia. — Mas precisam de mim porque eu sou uma caminhante, e supostamente nós somos bons a matar vampiros. E este feiticeiro é exatamente
isso. Um vampiro.
Marsilia retribuiu o sorriso numa expressão que me pareceu mais humana do qualquer outra coisa que lhe tivesse visto no rosto — provavelmente estava a fazer um esforço.
Rodou o copo quase vazio entre as mãos, fazendo com que o líquido negro carregado redemoinhasse. Não sabia se no Tio Mike serviam sangue em copos de vinho, mas considerando
que todos os cheiros que sentia correspondiam a diferentes aromas de álcool, calculei que não. No entanto, como estava a causar tão boa impressão, tinha a certeza absoluta
de que o objetivo era que eu pensasse que poderia ser sangue e ficar desencorajada.
— Obrigado por se ter encontrado comigo aqui — disse por fim.
Encolhi os ombros e exagerei só um bocadinho.
— Eu ia atrás dele de qualquer das formas. — Só depois de o ter dito é que me apercebi de que era a verdade. — Contudo, uma vez que se trata de um vampiro, ter a sua aprovação
para esta caça torna-a… — Fingi que procurava uma palavra. — Mais segura, para ambas.
Estava a embarcar num jogo perigoso. Se ela de facto achasse que eu representava um perigo para o ninho, tinha-me matado. Mas se não me respeitasse, provavelmente também acabaria
morta.
Marsilia suspirou e pousou o copo sobre a mesa.
— Foi criada com os lobos, Mercedes, portanto percebo a necessidade de entrar em jogos de domínio. Mas dois dos meus vampiros estão desaparecidos e temo por eles. Stefan estava
entre os mais fortes, mas a devolução dos restos de um dos companheiros dele diz-me que ele fracassou.
Toda a sua linguagem corporal parecia pouco natural. Talvez estivesse de facto preocupada com os vampiros, mas a sua representação pôs-me enfurecida. Para os lobos, a linguagem
corporal é mais importante do que as palavras — e tudo na sua linguagem corporal estava errado, enviando mensagens que não batiam certo com as da sua voz. Não sabia a qual
delas dar atenção.
— «Restos» é um bocado forte — disse-lhe. — O Warren não está morto.
Manteve-se calada por instantes, tamborilando na mesa ao de leve no mesmo ritmo que tinha usado da última vez que a vira. Ocorreu-me que talvez não tivesse reagido exatamente
como ela esperava — era de esperar que aceitasse ajudá-la com uma vontade ávida?
Finalmente disse:
— Eu sei que acha que a culpa é minha por ter enviado o Stefan sozinho. Havia razões para pensar que se tratava de um castigo, mas Stefan era um soldado. Sabia o que era uma
missão. Ele sabia que eu acreditava nele, da mesma maneira que sabia que não tinha outra opção senão mandá-lo ir atrás daquela criatura.
Nisso eu conseguia acreditar.
— A intenção de Marsilia era que ele me pedisse ajuda — interveio Andre. — Não o fez por culpa minha. O Stefan e eu fomos… somos amigos há muito tempo. Mas eu cometi um erro
e ele zangou-se comigo. — Olhou para mim e mantivemo-nos de olhos fitos um no outro por instantes, porém olhou para o lado assim que desviei a vista. Perguntei-me o que é
que ele teria feito se tivesse permitido que me enredasse.
Prosseguiu como se nada se tivesse passado. Se calhar não tinha.
— O Daniel pertencia ao Stefan quando era humano. Era mais frágil do que aparentava e morreu enquanto eu me alimentava dele. A escolha de trazer alguém de volta tem de ser
feita num instante, Mercedes Thompson. No espaço de menos de cinco batimentos cardíacos humanos. Pensei em minimizar o custo a toda a gente trazendo-o de volta como vampiro
em vez de o deixar morrer permanentemente.
Marsilia tocou-o na mão, e percebi que o seu discurso não tinha sido para mim, mas para ela.
— Deste um dom ao Daniel — disse Marsilia. — Uma ampla recompensa pelo teu erro.
Andre inclinou a cabeça.
— O Stefan não achou o mesmo. Trazê-lo de volta fez com que o Daniel passasse a ser meu, e o Stefan convenceu-se de que tinha feito isso de propósito.
Os vampiros eram mesmo difíceis de decifrar, mas entendi que Stefan provavelmente tinha razão. Andre tinha ficado por de mais agradado com a ideia de se fazer alguma coisa
a Daniel e a Stefan na noite do julgamento de Stefan.
— Indelicado da parte dele — comentou Marsilia.
— Eu tê-lo-ia devolvido — explicou Andre. — Mas estava à espera que Stefan pedisse.
Estão a ver? Também os vampiros entram em jogos estúpidos de domínio.
Marsilia abanou a cabeça.
— Talvez tenha sido bom o Stefan não te ter levado. Se assim fosse, talvez estivesse aqui a falar com esta caminhante com os meus dois melhores soldados mortos. — Voltou a
concentrar a atenção em mim. — Portanto, eis a minha proposta para tornar o seu trabalho mais fácil, Mercedes. Empresto-lhe o meu braço esquerdo para a proteger — disse, acenando
para Andre —, já que não tenho o direito. E dou-lhe todas as informações que tiver.
— Em troca de quê? — perguntei, embora a minha pergunta fosse automática. No entender dela, Stefan estava morto.
Fechou os olhos por um momento e em seguida fixou-se na minha testa. A versão vampírica de cortesia, acho. Fez-me sentir que tinha uma nódoa na testa.
Respondeu:
— Em troca de você encontrar esta coisa maldita. Uma vez que matou o Stefan, tenho de aceitar que qualquer vampiro que mande atrás dele provavelmente será destruído. Você
é a maior esperança que temos para o eliminar.
— Mais — acrescentei secamente. — Se eu não for bem-sucedida, o que é que você ficou a perder? — Não respondeu, mas não precisava de fazê-lo. — Diga-me lá, como é que eu mato
esse feiticeiro?
— Da mesma maneira que mataria qualquer outro vampiro — respondeu.
— A maior parte daquilo que sei aprendi no Drácula. Suponha que eu sou totalmente ignorante, por favor.
— Muito bem — concordou. — Uma estaca de madeira no coração funciona. Imersão em água benta ou exposição direta à luz solar. Diz-se que os grandes santos nos conseguiam matar
com a sua fé, mas não me parece, apesar do seu cordeiro — fez um gesto com a mão na direção do meu colar —, que a sua fé seja suficiente para isso. Mas leve o seu cordeirinho
consigo, Mercedes, porque deve funcionar tão bem com demónios como funciona com vampiros.
— O que é que os caminhantes conseguiam fazer que levava a que os vampiros os temessem? — perguntei.
Tanto ela como Andre se puseram imóveis. Não achei que me fosse responder. Mas respondeu. Mais ou menos.
— A primeira coisa você já sabe — disse. — Muitos dos nossos poderes não têm efeito em si. A maior parte da nossa magia é inútil.
— O vosso feitiço da verdade funcionou — salientei.
— A magia daquela cadeira não é vampírica, Mercedes, não inteiramente. Embora toda a magia, creio, veja em si uma presa difícil. Mas a magia do sangue tem um poder muito seu,
como o têm as coisas muito antigas. Aquela cadeira é uma coisa muito antiga.
— Não tencionava distraí-la do assunto — comentei educadamente, convidando-a a regressar ao cerne da questão.
Sorriu-me tenuemente.
— Não. Não creio que o tenha feito. Os caminhantes também falam com fantasmas.
Pisquei-lhe o olho.
— E depois? — Muitas pessoas, mesmo humanos perfeitamente normais, excetuando este pormenor, conseguem falar com fantasmas.
Puxou o cabelo para trás.
— Acho que já respondi a perguntas que bastassem. — Lançou um olhar a Andre, e fiquei a perceber que não me ia clarificar em relação a nada. — Acho que deve começar por descobrir
onde é que o Stefan foi ontem à noite.
— O Warren não vai conseguir falar, pelo menos durante um bom tempo — informei-a. A sua garganta tinha sido esmagada. Samuel achava que podia demorar vários dias até sarar.
— O Stefan tinha o hábito de falar com as pessoas dele — informou-me. — Elas estão com medo. Não falam comigo nem com os meus. Mas julgo que falarão consigo. O Andre leva-a
até à casa do Stefan, onde pode falar com a coleção de animais presos.
Depois desapareceu. Suponho que se pudesse ter dissipado em sombra como alguns dos seres feéricos fazem, mas não consegui cheirá-la, não consegui senti-la em lado nenhum.
— Detesto quando ela faz isto — comentou Andre, dando um gole do seu copo. — Acho que é sobretudo por inveja. O Stefan também conseguia fazer isso. Foi o único a receber esse
dom.
Mantive-me em silêncio durante algum tempo, a contemplar Marsilia. Tinha feito um esforço para parecer humana esta noite — embora só tivesse sido parcialmente bem-sucedida.
Hesitantemente, decidi que no essencial tinha sido honesta em relação ao que pretendia de mim e porquê. Tinha a certeza de que ela achava que eu tinha a chave para descobrir
o feiticeiro — ou através da minha resistência à magia dos vampiros, ou através da minha «capacidade» de falar com fantasmas.
Não que eu visse fantasmas a todo o momento ou coisa parecida.
Eu já era uma aberração, uma metamorfa não dependente da Lua que se transformava em coiote. Nem humana nem mulher-loba nem criatura feérica. Não gostava de pensar que poderia
ser ainda mais estranha do que já pensava.
Olhei para cima e dei com Andre a observar-me pacientemente. Aos meus olhos acostumados a lobisomens, não me parecia alguém que estivesse entre os guerreiros mais capazes
de Marsilia. Não tinha largura de ombros, faltava-lhe substância nos músculos. Podia ser que estivesse a lisonjeá-lo, uma vez que ele estava presente, mas não me pareceu que
fosse isso.
— Ela teletransportou-se? — perguntei. Tinham-me dito que o fogo-fátuo era a única criatura realmente capaz de se teletransportar.
Sorriu e encolheu os ombros.
— Não sei como é que é feito. Mas é uma das razões pelas quais temos a certeza de que o Stefan morreu. Se ainda estivesse entre nós, dificilmente podia ser aprisionado.
— Não parece estar transtornado — disse. Não queria pensar na ideia de Stefan estar morto. Permanentemente morto, quero eu dizer.
Encolheu os ombros de uma forma que podia querer dizer qualquer coisa.
— Acho que o Stefan já não está entre nós, Mercedes Thompson. Estou vestido de branco para o honrar, tal como a Senhora. Mas não há nada que eu possa fazer em relação a esta
morte a não ser apanhar o assassino. — Fez uma pausa e pousou o copo delicadamente. — Não nos conhecemos ao ponto de eu chorar no seu ombro.
O vestígio de fúria na sua voz fez com que gostasse mais dele.
— Está bem — disse. — Por que é que não me mostra o caminho até à casa de Stefan?
Estávamos a meio caminho da porta quando a multidão parou de nos deixar passar. Andre era mais rápido do que eu. Parou a marcha enquanto eu tentava passar por uma mulher particularmente
volumosa que estava postada à minha frente.
— Alto lá, meus amores — disse numa voz tão grave que me fez os seios nasais vibrar. — Sinto o cheiro de um humano numa taberna de seres feéricos. — Depois de concluir as
suas palavras, a música parou de tocar e os sons de pessoas a falar e a mexer-se atenuaram-se.
Assim que percebi que estava a falar de mim, embora falasse para todo o espaço, ocorreram-me vários reparos inteligentes, mas ao mesmo tempo estúpidos, acerca da qualidade
do seu olfato — eu não era de todo humana, não no sentido a que ela se referia. Estúpidos porque só uma pessoa muito pouco sensata se põe a pular aos berros em cima de uma
colmeia.
Por vezes, quando um deles comete um crime terrível, todo o bando de lobos participa no castigo, desfazendo o lobo transgressor em pedaços. Mas antes de começar, há um momento
de quietude opressiva quando o réu está sozinho, rodeado pelo bando. Depois um lobo move-se e começa o ataque desenfreado. O espírito que perpassava esta multidão era esse,
como se estivessem à espera que alguém desse início a alguma coisa.
— Eu tenho a permissão do Tio Mike para estar aqui — disse calmamente, sem o menor tom de desafio. Não sabia que espécie de criatura feérica era, o que fazer para evitar uma
luta.
Abriu a boca, obviamente insatisfeita, quando alguém gritou.
— Compensação.
Pensei que o grito pudesse ter vindo do bar, mas foi imediatamente reproduzido por um coro de vozes. Quando se calaram, a mulher à minha frente olhou em volta e perguntou
a todos.
— Que tipo de compensação, meus amores?
Compensação, pensei, seria uma espécie de presente, talvez. Ou sacrifício.
O Tio Mike avançou por entre a multidão até se postar à minha frente, com o rosto pensativo. O facto de todos ficarem à espera da sua sentença era um sinal do seu poder.
— Música — disse por fim. — A minha convidada vai presentear-nos com música pela nossa hospitalidade.
A mulher forte suspirou quando o Tio Mike recuou, afastando os seres feéricos que estavam perto dele até eu conseguir ver claramente o pequeno palco onde permaneciam três
músicos. Havia dois guitarristas e um baixista. Não sei de onde tinham vindo os sons da bateria porque não estava nenhuma à vista.
Um dos guitarristas exibiu-me um sorriso rasgado, pulou do palco e fez um gesto aos outros para que fizessem o mesmo. Deixaram o palco só para mim.
Ergui a sobrancelha ao Tio Mike e comecei a caminhar em direção ao palco. Andre, tinha reparado, recuara entre a multidão. A ele não iam incomodar, não a um vampiro. Do mesmo
modo que não teriam incomodado um dos lobisomens. Eu, que não era nem mulher-loba nem vampira, era presa fácil.
Perguntei-me se o Tio Mike teria permitido que eles me desfizessem em pedaços se não estivesse consciente de que, pertencendo ou não ao bando, os lobos me vingariam — seria
uma vingança brutal. A ajuda suspeita do Tio Mike era mais útil.
Quando subi ao palco, um dos guitarristas tentou passar-me o seu instrumento com um gesto floreado.
— Aprecio o gesto — disse-lhe cuidadosamente —, mas não sei tocar. — Não sabia tocar nada a não ser piano, e mesmo assim muito mal. Felizmente, as aulas de piano incluíam
aulas de canto.
Olhei em volta à procura de inspiração. A resposta óbvia foi pegar numa canção celta, mas rejeitei-a com a mesma rapidez com que me surgiu na mente. As canções tradicionais,
na sua maioria, têm dezenas de variações e dezenas de pessoas a reivindicar a sua versão como a genuína. Num grupo constituído sobretudo por seres feéricos celtas que estavam
à espera de uma razão para me matar, cantar uma canção celta seria estúpido.
Havia alguns seres feéricos alemães presentes, e os alemães não eram nem de perto nem de longe tão picuinhas em relação à sua música, porém a única canção alemã que eu conhecia
era «O Tannenbaum», um cântico de Natal infantil que não iria impressionar ninguém — não que a minha voz fosse impressionar alguém. Tinha noção de tom e volume, mas não tinha
talento.
O que tornava a escolha da canção muito importante. Estávamos num jogo e se eu ficasse demasiadamente intimidada, nem mesmo o Tio Mike me podia salvar o coiro. Um insulto
subtil seria melhor. Não um estalo na cara, mas um toque no flanco.
Também precisava de uma canção potente, uma vez que a minha voz não é bonita nem suave. Algo que soasse bem a capella. Apesar do ar condicionado, estava um calor de abafar
e os meus pensamentos pareciam lentos — claro que isso podia ser resultante do medo.
Desejei que fosse inverno e o ar estivesse frio… Talvez fosse isso, talvez fosse o pensamento demorado em torno de «O Tannenbaum», mas eu sabia o que ia cantar. Senti os lábios
a contraírem-se.
Respirei fundo, com o auxílio devido do meu diafragma, e comecei a cantar. «Noite feliz, noite feliz…»
Portanto, no calor tórrido de uma noite de julho, cantei um cântico de Natal para uma sala repleta de seres feéricos, que tinham sido expulsos da suas terras de origem pelos
Cristãos e as suas espadas de ferro frio.
Já ouvi essa música cantada de forma suave, até a magia daquele primeiro Natal parecer pairar no ar. Quem me dera saber cantá-la dessa maneira. Em vez disso, cantei-a a plenos
pulmões, porque é isso que a minha voz faz melhor.
Fechei os olhos ao público e deixei que a simples fé das palavras me percorresse como uma oração até ter chegado à parte «Dorme em paz». Em seguida abri os olhos e fixei-os
na mulher que tinha começado tudo isto, cantando o resto da canção para ela.
Quando a última nota se desvaneceu, a mulher forte lançou a cabeça para trás e desatou a rir. Virou-se para o Tio Mike e deu-lhe uma palmada no ombro, atirando-o meio passo
para a frente.
— Bela compensação — disse. — Enfim. — Depois caminhou por entre a multidão em passo pesado e encaminhou-se para um canto do bar.
Se eu estivesse à espera de aplausos, teria ficado desapontada. Os ânimos na sala acalmaram e os seres feéricos voltaram a fazer o que tinham abandonado antes de eu me ter
tornado tão interessante. Ainda assim, não tinha sido pior do que cantar no espetáculo de sábado à noite à frente de Bran, em Aspen Springs.
Um dos músicos, o que me tinha passado a guitarra, mostrou-me um sorriso amplo quando trocámos de lugar.
— Um bocadinho esganiçado nas notas mais altas — disse. — Mas nada mau.
Retribuí-lhe o sorriso, de forma um pouco pesarosa.
— Público difícil.
— Ainda estás viva, meu amor, não estás? — disse, imitando as cadências da voz da mulher.
Fiz-lhe um meio aceno e saí encaminhando-me em linha reta para a saída. Não vi Andre, mas o Tio Mike encontrou-se comigo na porta e abriu-ma.
Já no átrio, segurei a porta e olhei para trás na direção dele.
— Como é que sabia que era capaz de cantar uma nota que fosse?
Sorriu.
— Foi criada por um galês, Mercedes Thompson. E esse nome, Thompson, não é galês? Além disso, um dos nomes para designar coiote é Ave Canora da Pradaria. — Encolheu os ombros.
— Mas, como é evidente, não era a minha vida que estava em risco.
Resfoleguei em sinal de agradecimento.
Levou um dedo à testa e fechou firmemente a porta entre nós.
2 Modelo extremamente compacto da Chevrolet. (N. do T.)
9
Andre estava à minha espera no parque de estacionamento, postado ao lado de um dos Mercedes pretos do ninho, pronto para me levar até à casa de Stefan — como se eu fosse estúpida
ao ponto de entrar num carro conduzido por um vampiro que não conhecia.
Apesar das objeções de Andre, segui-o no meu carro em vez de permitir que ele me levasse. Para além de ser mais seguro, depois de termos terminado, podia seguir diretamente
para casa em vez de esperar que ele me levasse novamente até ao Tio Mike.
Ele tinha razão, talvez tivesse sido útil falarmos e engendrarmos um plano — se tivesse confiado um pouco mais nele ou se não tivesse de ir trabalhar de manhã. As contas não
esperam só porque o meu amigo foi feito em picadinho e a Senhora dos vampiros quer que eu encontre um feiticeiro que matou mais de quarenta pessoas.
Agarrei com mais força o volante e tentei não olhar para o tablier partido onde Stefan, o calmo e reservado Stefan tinha colocado o punho. O que o teria posto tão furioso?
O facto de o feiticeiro o ter derrotado?
O que tinha Stefan dito? Que sabia que havia algo de errado nas suas memórias porque não se tinha lembrado de mim. Que eu não era insignificante para ele.
Stefan era um vampiro, lembrei a mim mesma. Os vampiros são malévolos.
Estendi o braço e toquei no tablier. Ele fez isto porque eu tinha sido ferida, pensei.
Também não era insignificante para mim — não queria que ele se fosse para sempre.
A casa de Stefan situava-se nas colinas de Kennewick, numa das novas subdivisões no lado ocidental da Auto-estrada 395. Era uma casa grande e irregular em tijolo-burro num
terreno amplo com um caminho de entrada circular, o tipo de casa que devia ter gerações de filhos a crescer dentro dela. Rodeada de edifícios com colunas falsas e janelas
de dois andares, devia parecer deslocada. Em vez disso, parecia satisfeita com o que era. Conseguia imaginar Stefan nesta casa.
— É melhor bater à porta — disse Andre enquanto saía do meu carro. — Já recusaram a minha entrada esta noite, com toda a razão. O Stefan pode ter-me perdoado por causa do
Daniel, mas o seu rebanho não se vai esquecer. — Soou ligeiramente arrependido, mais ou menos no mesmo grau que uma criança que tivesse partido uma janela com uma bola de
basebol.
Apesar da hora avançada, havia luzes ligadas por toda a casa. Quando pensei sobre isso, concluí que fazia sentido que os subordinados de um vampiro se mantivessem acordados
até tarde.
Vir aqui tinha parecido lógico nas palavras de Marsilia. No entanto, não tinha propriamente pensado em que é que isso se viria a traduzir.
Hesitei antes de bater à porta. Não queria conhecer os subordinados de Stefan, não queria saber que ele os mantinha da mesma forma que um criador mantém o seu gado. Gostava
de Stefan, e não queria que isso mudasse.
A cortina da janela ao lado da porta mexeu-se um tudo-nada. Já sabiam que aqui estávamos.
Toquei à campainha.
Escutei ruídos de agitação do outro lado da porta, como se muitas pessoas estivessem a andar de um lado para o outro, mas quando foi aberta, apenas uma pessoa se encontrava
na entrada.
Aparentava ser alguns anos mais velha do que eu, entre os trinta e cinco e os quarenta. Usava o cabelo escuro e encaracolado cortado à altura dos ombros. Estava vestida de
forma conservadora, com uma camisa de alfaiate e calças largas; parecia uma mulher de negócios.
Talvez em tempos tivesse sido atraente, mas tinha os olhos e o nariz inchados e vermelhos e o rosto demasiado pálido. Recuou num convite silencioso. Entrei, mas André estacou
abruptamente mesmo antes do limiar da porta.
— Vais ter de me voltar a convidar a entrar, Naomi — disse.
A mulher inspirou de forma tremente.
— Não. Não enquanto ele não regressar. — Olhou para mim. — Quem é você e o que deseja?
— O meu nome é Mercedes Thompson — respondi. — Ando a tentar descobrir o que aconteceu ao Stefan.
Acenou com a cabeça e, sem dirigir mais nenhuma palavra a Andre, fechou-lhe a porta na cara.
— Mercedes Thompson — repetiu. — O Stefan gostava de si, eu sei disso. Você defendeu-o à frente dos outros vampiros, e quando achou que ele estava em apuros, telefonou-nos.
— Relanceou os olhos à porta. — O Stefan proibiu a entrada do Andre na casa, mas não tinha a certeza se ainda ia funcionar com o Stefan… ausente. — Fitou a porta durante algum
tempo e em seguida virou-se para mim fazendo um visível esforço para se manter calma. O controlo encaixava mais confortavelmente no seu rosto do que o medo.
— O que posso fazer para a ajudar, menina Thompson?
— Não me parece o tipo de pessoa que… — Sem dúvida que havia um termo simpático para designar alguém que de livre vontade serve de alimento a um vampiro, mas eu não o sabia.
— De que é que estava à espera? — perguntou causticamente. — Crianças pálidas cobertas de tatuagens e marcas de mordidelas?
— Hum — pronunciei. — Eu conheci o Daniel.
Os seus olhos expressivos puseram-se sombrios.
— Ah, o Daniel. Sim. E temos mais alguns como ele. Portanto, o estereótipo está presente aqui, mas não representa o todo. Se fosse ao rebanho de outro vampiro, talvez encontrasse
aquilo de que estava à espera. O Stefan raramente é representativo seja no que for. — Respirou fundo. — Por que é não vamos até à cozinha e eu sirvo-lhe um chá enquanto faz
as suas perguntas?
Havia pelo menos dez pessoas além de Stefan a viver na casa: conseguia sentir-lhes o cheiro. Mantiveram-se escondidas enquanto Naomi me conduziu até à cozinha, mas distingui
alguém a sussurrar perto de nós. Por uma questão de educação, não enfiei a cabeça no compartimento de onde vinham os sussurros.
Uma mesa com um tampo de madeira que não teria cabido na maior parte das divisões da minha caravana ocupava lugar no centro da cozinha. Naomi puxou um banco alto e sentou-se,
gesticulando para que também eu me sentasse. Ao fazê-lo, o cabelo pôs-lhe a nu a pele imaculada do pescoço.
Reparou no meu olhar e puxou o cabelo para trás de modo a que eu pudesse ver que não tinha nenhuma marca vermelha.
— Satisfeita? — perguntou.
Respirei fundo. Ela queria-me desconfortável, mas o assomo de adrenalina que tinha sentido no Tio Mike desaparecera e estava apenas cansada.
Também eu puxei o cabelo para trás e virei-me para que ela pudesse ver as marcas de mordidela no meu pescoço. Já tinha praticamente sarado, por isso tinha deixado de usar
uma ligadura, mas a pele ainda estava vermelha e brilhante. Provavelmente ia ficar com uma cicatriz.
Inalou e inclinou-se para a frente para me tocar no pescoço.
— O Stefan nunca fez isso — disse, mas com bastante menos convicção no tom de voz do que nas palavras.
— Por que é que diz isso? — inquiri.
— Você foi basicamente roída por alguém. O Stefan tem mais cuidado.
Assenti com a cabeça.
— Isto foi feito pela coisa da qual o Stefan foi atrás.
A mulher relaxou.
— É verdade. Ele tinha dito que essa coisa a tinha atacado.
Stefan falava com ela, um sinal prometedor.
— Sim. — Puxei um segundo banco e sentei-me nele. — Sabe onde é que o Stefan foi ontem à noite?
Abanou a cabeça.
— Eu perguntei-lhe. Ele não me disse. Disse que não queria que nós fossemos à procura dele no caso de não regressar a casa.
— Ele estava preocupado consigo?
— Sim, mas não da maneira que está a pensar — afirmou uma nova voz atrás de mim.
Virei-me e vi uma rapariga de longos cabelos lisos enfiada em roupas largas. Não olhou para nós, simplesmente abriu o frigorífico e examinou o conteúdo.
— Como assim? — perguntei.
Olhou para cima e fez uma careta a Naomi.
— A preocupação dele era que ela acabasse por fazer com que todos nós morrêssemos ao tentar salvá-lo. É que, se ele morrer, ela também morre… não imediatamente, mas pouco
tempo depois.
— Não é por isso que eu estou preocupada — mentiu Naomi. Percebi-lhe isso na voz.
— O que se passa é que aqui a professora universitária tem leucemia. — A rapariga pegou num pacote de leite e pôs-se a beber diretamente dele. — Desde que ela continue a servir
de banco de sangue, a retribuição do Stefan pela doação mantém o cancro dela controlado. Se ele parar… — Emitiu um som sufocado e agonizante e depois dirigiu um olhar de contentamento
quase impercetível a Naomi. — Em troca, ela gere as coisas do Stefan, pagando as contas, tratando dos impostos… fazendo as compras. Ei Naomi, já não temos queijo. — Recolocou
o pacote no frigorífico e fechou-o.
Naomi deslizou para fora do banco e encarou a rapariga.
— Se ele estiver morto, isso significa que podes dizer adeus aos passeios de borla. Talvez seja melhor voltares para junto da tua mãe e do novo marido dela. Pelo menos até
que a Senhora te arranje um novo vampiro. Talvez o Andre te queira.
A adolescente limitou-se a olhá-la fixamente com um ar friamente trocista. Naomi voltou-se para mim e disse.
— Ela sabe tanto como eu.
Fitou a rapariga uma vez mais e depois saiu, indignada. A rapariga tinha saído claramente vitoriosa do confronto. Dei por mim a pensar que daria uma boa loba.
— Chamo-me Mercedes Thompson — disse, virando-me sobre o banco para poder colocar os cotovelos no tampo e recostar-me de uma forma não ameaçadora. — Ando à procura do Stefan.
Olhou em volta como se também estivesse à procura dele.
— Pois. Bem, ele não está aqui.
Acenei com a cabeça e contraí os lábios.
— Eu sei. Um dos lobos que estava com o Stefan ontem à noite foi-nos devolvido em muito mau estado.
Ergueu o queixo.
— Você não é uma mulher-loba. O Stefan disse-me.
— Não — concordei.
— Uma coisa capaz de derrotar o Stefan podia limpar o chão com o velho Andre que está lá fora, se quisesse. — Apontou o queixo para a porta principal. — O que é que a faz
pensar que é capaz de ajudar o Stefan?
— A Marsilia acredita que eu sou capaz. — Reparei no impacto que o nome exerceu sobre ela. Por instantes, mesmo com o véu de cabelo escuro que lhe tapava a face, vislumbrei
o medo oriundo das profundezas da casa. Todos os que aqui estavam tinham muito medo. A casa tresandava a isso.
— Se o Stefan não voltar — disse-me numa voz muito baixa, soando subitamente muito mais velha —, acho que vamos morrer todos, não apenas a Doutora Tightbritches. Mais cedo
ou mais tarde, vamos morrer todos. A Senhora não nos vais querer ver aí à solta a falar deles. Portanto vai mandar-nos para o resto dos vampiros dela, vai pôr-nos nos rebanhos
deles. A maioria não é tão cuidadosa com a comida como o Stefan. Não têm autocontrolo quando estão com fome.
Não me ocorreu nada que pudesse dizer sem que soasse a banalidade, portanto agarrei num fio do discurso dela e puxei-o.
— O Stefan mantém-vos vivos durante mais tempo do que os outros?
— Ele não mata os que pertencem ao rebanho dele — respondeu. Encolheu os ombros num gesto de casualidade estudada. — Na maior parte dos casos, pelo menos. Quando nos apanha,
temos de ficar durante dois anos, mas depois disso, com exceção da Naomi, e isso também não é por culpa do Stefan, somos livres de ir embora.
— Porquê dois anos? — perguntei.
Lançou-me um olhar do género «és estúpida ou quê?».
— É preciso esse tempo até que ele estabeleça uma ligação suficientemente forte para garantir que não contemos a ninguém que conhecemos vampiros.
— Há quanto tempo é que estás com o Stefan?
— Faz cinco anos em agosto — respondeu, embora não tivesse mais do que vinte anos. Disfarcei o choque que senti, mas não o suficiente porque ela me sorriu afetadamente. —
Doze. Tinha doze. O Stefan é bem melhor do que os meus pais, deixe-me que lhe diga.
Os vampiros são malévolos. Curioso como persistia em tentar esquecer isso em relação ao Stefan.
— Provavelmente sabes mais sobre vampiros do que eu — disse-lhe, mudando de estratégia para conseguir obter um pouco mais de informação. — Eu cresci com os lobisomens, e apesar
de conhecer o Stefan há muito tempo, a maior parte das nossas conversas gira à volta de carros. Importas-te que faça algumas perguntas?
— O que é que quer saber?
— O que é que sabes sobre a coisa atrás da qual foi o Stefan?
— Ele não fala muito connosco — informou. — Não como costumava falar com o Daniel. Disse que era um bicharoco tipo demónio vampiro.
Assenti com a cabeça.
— Anda lá perto. Ao que parece, se eu conseguir matar o vampiro, o demónio simplesmente desaparece. Acabou-se o bicharoco tipo demónio vampiro. A Marsilia disse-me como matar
vampiros. — Parei de falar e deixei-a pensar sobre aquilo durante um bocado. Era bastante inteligente, não precisou de muito tempo até chegar à mesma conclusão que eu tinha
chegado.
— Eh, pá, isso é mesmo assustador, entrar numa batalha tendo a Senhora como sua informadora. Claro, eu digo-lhe aquilo que precisar de saber. — Percorreu-me com os olhos e
pareceu pouco impressionada. — Ela acha mesmo que você é capaz de matar aquela coisa?
Comecei a acenar, mas depois parei.
— Não faço a menor ideia do que a Marsilia acha. — O Tio Mike não tinha achado estúpida a ideia de eu perseguir o feiticeiro. Não tinha a certeza se devia confiar nos seres
feéricos mais do que confiava na vampira. Finalmente encolhi os ombros e disse-lhe a verdade. — A verdade é que não me interessa. Vou matar o feiticeiro ou morrer a tentar.
— O que é que ela lhe disse?
— Disse que podia matar um vampiro espetando-lhe uma estaca de madeira no coração, mergulhando-o em água benta ou expondo-o à luz solar.
Encostou a anca ao frigorífico e abanou a cabeça.
— Ouça. A estaca de madeira funciona, mas é melhor se for de carvalho, madeira de freixo ou teixo. E se os matar dessa maneira, tem de lhes cortar a cabeça ou queimar o corpo
para garantir que permanecem mortos. Lembre-se, um vampiro morto são cinzas. Se houver um corpo, ele volta, e volta zangado consigo. Cortar-lhes a cabeça é bastante eficaz,
mas difícil. Não é muito provável que fiquem quietos à espera da motosserra. A luz solar também é eficaz. Mas a estaca e a luz solar é como dar um pontapé nos tomates a um
gajo, ‘tá a ver?
Abanei a cabeça, fascinada.
— Todos sabem disso. Não se vão pôr a jeito se puderem evitá-lo. E se você fizer asneira, a única coisa que vai conseguir é irritá-los ainda mais. A água benta é carta fora
do baralho. Ia precisar de uma piscina cheia de água benta para matar um.
— Então como é que matavas um vampiro permanentemente?
Contraiu os lábios.
— O fogo é a melhor maneira. O Stefan diz que eles ardem muito depressa depois de começarem.
— O Stefan contou-te estas coisas todas? — Tentei imaginar a conversa.
Anuiu com a cabeça.
— Claro. — Olhou-me atentamente. — Ouça, eu não sei onde é que ele foi, mas sei que andava de olhos atentos ao noticiário local e aos jornais. Tinha um mapa de Tri-Cidades
e assinalava os sítios onde havia violência. Ontem estava bastante excitado por causa de uma coisa que tinha notado no padrão.
— Tens o mapa? — perguntei.
— Não. — Ele levou-o com ele. E não o mostrou a nenhum de nós.
Deslizei para fora do banco.
— Obrigada…
— Rachel.
— Obrigada, Rachel.
Acenou com a cabeça e voltou a abrir o frigorífico num gesto de despedida. Caminhei lentamente em direção à porta principal, mas mais ninguém apareceu, portanto saí.
Andre estava à minha espera, sentado no capô do seu carro. Pulou para a frente e perguntou:
— Sabiam de alguma coisa?
Encolhi os ombros.
— Não sabiam onde é que ele estava, mas descobri como é que ele decidiu onde ir. Talvez isso ajude.
Olhei para Andre e perguntei-me se Marsilia não tinha mencionado a parte da decapitação do vampiro de propósito. Não foi preciso pensar muito até chegar à conclusão de que
sim.
— Como é que você matava o Littleton? — perguntei-lhe.
— Fogo — disse prontamente. — É a forma mais fácil. Enfiar uma estaca funciona, mas depois é preciso decapitá-lo.
Não significava nada. Por causa da minha pergunta tinha ficado a perceber que eu perguntara o mesmo aos subordinados de Stefan.
— Não foi isso que a Marsilia me disse.
Sorriu tenuemente.
— Se só lhe espetasse uma estaca, ela podia capturá-lo, torná-lo dela. Não há muitos vampiros, Mercy, e demora muito tempo a fazê-los. Se o Daniel não pertencesse ao Stefan
há tanto tempo, teria morrido permanentemente. A Marsilia não quer desperdiçar um vampiro, especialmente um que tem todos os poderes de um demónio ao seu alcance. Se ele for
ferido com bastante gravidade, há formas de o trazer de volta sob o controlo de um vampiro mais poderoso, como a Marsilia. Ele tornaria a posição dela inatacável.
— Então tenciona capturá-lo?
Andre abanou a cabeça.
— Quero o filho da mãe morto. Permanentemente.
— Porquê?
— Eu disse-lhe, eu e o Stefan, nós somos amigos há muito tempo. — Virou a cara para a luz que iluminava o caminho de entrada. — Temos as nossas divergências, mas é… como uma
querela familiar. Eu sei que desta vez o Stefan ficou mesmo furioso, mas ele teria ultrapassado isso. Por causa desse feiticeiro, nunca mais vou ter possibilidade de fazer
as pazes com ele.
— Tem assim tanta certeza de que o Stefan morreu?
A carrinha VW de Stefan estava estacionada ao lado da garagem, tapada com lona para proteger a sua invulgar pintura. Que tipo de vampiro conduzia uma velha carrinha pintada
como a Máquina Mistério? No último Natal tinha-lhe oferecido um Scooby Doo em tamanho humano para ele o levar no lugar do passageiro.
Deve ter ouvido a resposta que eu queria na minha voz porque abanou a cabeça lentamente.
— Mercedes, é difícil manter um humano preso. É quase impossível aprisionar um vampiro. O Stefan tem formas de… Não acredito que ele pudesse ser aprisionado, no entanto não
regressou a casa. Sim, acho que ele morreu. Farei tudo o que puder para garantir que esse Littleton tenha o mesmo fim.
Faziam demasiado sentido, ele e Adam. Eu tinha de acreditar que Stefan tinha morrido — e que Ben e o vampiro novato que só tinha visto uma vez também estavam mortos. Se não
queria começar a chorar à frente dele, tinha de me pôr a andar depressa.
Relanceei os olhos ao meu relógio.
— Tenho de me levantar daqui a três horas. — Se soubesse quanto tempo ia ser necessário para encontrarmos o feiticeiro, teria posto Zee a tomar conta da oficina, mas não tinha
possibilidade financeira para fazer isso durante mais do que uns dias por mês, não com a hipoteca e a comida para pagar.
— Vá para casa e deite-se. — Pegou numa fina mala de couro e de lá retirou um cartão, entregando-mo. — O meu número de telemóvel está aí. Telefone-me amanhã ao anoitecer e
aí podemos discutir para onde seguimos a partir daqui.
Enfiei o cartão no bolso de trás. Tínhamos parado à porta do meu carro portanto abri-a e ia a sentar-me quando me ocorreu uma outra pergunta.
— O Stefan disse que o Littleton era novato. Isso quer dizer que há outro vampiro a controlá-lo?
Andre inclinou a cabeça.
— Um vampiro novato está sob o controlo do criador dele. — Dirigiu-me um sorriso que tinha um quê de amargo. — Não é serviço voluntário. Todos nós temos de obedecer ao nosso
criador.
— Incluindo você?
Fez uma curta e triste vénia.
— Incluindo eu. No entanto, à medida que envelhecemos e acumulamos poder, o controlo diminui. Ou quando os nossos criadores morrem.
— Ou seja, o Littleton está a obedecer a outro vampiro?
— Se o vampiro que o criou não estiver morto, deve-lhe obediência.
— Quem foi o criador do Stefan?
— A Marsilia. Mas o Stefan nunca teve de fazer de escravo como todos nós. — Percebeu-se uma óbvia inveja na sua voz quando disse: — Ele nunca foi um servo. Acontece às vezes,
mas esses vampiros são sempre mortos depois da primeira insurreição. Qualquer outro vampiro teria matado o Stefan assim que se tornasse aparente que não estava sob o seu controlo,
mas a Marsilia estava apaixonada. Fez-lhe um juramento de obediência, todavia, e sei que nunca o quebrou. — Pôs-se a olhar para o céu da noite.
De repente, fechou a minha porta.
— Vá para casa e durma enquanto pode.
— A Marsilia também o criou a si? — perguntei, rodando a chave na ignição.
— Sim.
Que diabo, pensei, isto era tão estúpido. Eu não sabia nada sobre vampiros e eu ia fazer frente a um que tinha derrotado dois vampiros e um par de lobisomens? Mais me valia
dar um tiro na cabeça agora mesmo. Poupava-me tempo e esforço.
— Boa noite, Andre — disse-lhe, e depois segui de carro através da rampa de entrada da casa de Stefan rumo ao exterior.
Estava suficientemente cansada para dormir assim que a minha cabeça tocou a almofada. Sonhei com o pobre rebanho de Stefan, condenado, a acreditar nas palavras de Rachel,
pela morte de Stefan. Sonhei com Stefan a conduzir a sua carrinha com aquele pateta daquele Scooby Doo de peluche empoleirado no lugar do passageiro. Sonhei que ele tentava
dizer-me alguma coisa mas eu não o conseguia ouvir por causa do barulho.
Rebolei e enterrei a cabeça debaixo da almofada, mas o barulho continuava. Não era o meu despertador. Podia voltar a dormir. Estava tão cansada que até sonhar com pessoas
mortas era preferível a estar acordada. Afinal de contas, Stefan estava tão morto quando eu estava acordada como quando eu estava a dormir.
Não era um som verdadeiramente ruidoso. Se fosse menos irregular, acho que teria sido capaz de o ignorar.
Guincho. Guincho, guincho.
Era proveniente da janela perto da minha cama. O som era parecido com o da roseira que tinha crescido do lado de fora da janela da casa da minha mãe, em Portland. Às vezes
roçava na casa durante a noite e assustava-me. Já não tinha dezasseis anos. Não havia mais ninguém para além de mim que se pudesse levantar, ir lá fora e desviar o que quer
que fosse para eu poder ir dormir.
Apertei a almofada com mais força contra os ouvidos. Mas isso não bloqueava o barulho. Depois pensei — Stefan?
Num instante fiquei completamente desperta. Atirei a almofada para o chão, sentei-me apressadamente e virei-me para pressionar a cara contra a janela e olhar para o exterior.
Mas já estava alguém com a cara pressionada contra a janela. Alguém que não era Stefan.
Olhos iridescentes e cintilantes fixarem-se em mim através do vidro, a menos de quinze centímetros dos meus. Gritei pelo nome de Samuel e saltei da cama, para longe da janela.
Só quando estava aninhada e a tremer no centro do chão do meu quarto é que me lembrei de que Samuel ainda estava na casa de Adam.
O rosto não se mexeu. A cara estava de tal modo pressionada contra o vidro que o nariz e os lábios estavam distorcidos, todavia não tive dificuldades em reconhecer Littleton.
Lambeu o vidro, depois inclinou a cabeça e produziu o ruído que me tinha puxado do sono. A sua presa deixava uma marca branca à medida que riscava o vidro com ela.
Havia imensas marcas brancas minúsculas, reparei. Já ali estava há muito tempo, a observar-me enquanto eu dormia. Fiquei horrorizada, como fiquei ao perceber que, a menos
que fosse mesmo muito alto, estava suspenso no ar.
Todas as minhas armas estavam guardadas no maldito cofre. Não havia a menor possibilidade de chegar até elas sem que ele irrompesse janela adentro antes disso. Não que estivesse
certa de que uma arma tivesse qualquer efeito sobre um vampiro.
Demorei muito tempo até me lembrar de que ele não podia entrar em minha casa sem ser convidado. De certo modo, essa crença não era tão tranquilizadora quanto deveria estando
ele com os olhos cravados em mim através de um vidro fino.
De repente, afastou-se da janela e desapareceu da vista. Pus-me à escuta, mas não consegui ouvir nada. Passado muito tempo, aceitei a ideia de que se tinha ido embora.
Não ia ser capaz de dormir naquela cama, todavia, a menos que a afastasse da janela. A minha cabeça estava a latejar por falta de sono e caminhei aos ziguezagues até à casa
de banho, pegando nalgumas aspirinas e enfiando-as pela goela abaixo.
Olhei-me fixamente no espelho, parecendo pálida e incolor na escuridão.
— Bom — disse —, agora que sabes onde ele está, porque é que não vais segui-lo?
Sorri com desprezo à minha cara cobarde, mas parte do efeito perdeu-se na escuridão, portanto estiquei o braço e liguei o interruptor da luz.
Não aconteceu nada.
Premi-o mais duas vezes.
— Maldita caravana. — Era frequente os disjuntores dispararem sozinhos. Um dia ia ter de renovar a instalação elétrica da caravana.
O quadro estava instalado do outro lado da caravana, a seguir aos janelões da sala de estar e à janela mais pequena da cozinha. A da cozinha não tinha cortina.
— Intrépida caçadora de vampiros o tanas — murmurei, sabendo que estava demasiado assustada para ir ligar o disjuntor desarmada. Saindo apressadamente da casa de banho, abri
o cofre das armas. Deixei as pistolas a favor da espingarda Marlin .444 que carreguei com balas de prata — embora não soubesse se a prata causaria mais danos a um vampiro
do que o chumbo. Menos é que não causaria de certeza.
De qualquer maneira, a Marlin dava-me a confiança necessária para voltar a dormir.
Enfiei impacientemente as balas do tamanho de um dedo na arma. Se aquelas coisas eram capazes de deter um elefante, tinha de acreditar que iriam amedrontar um vampiro.
Sabia que não devia ligar a luz do quarto. No caso improvável de Littleton ainda estar aqui, arruinaria a minha visão noturna e exporia a minha silhueta, fazendo de mim um
alvo fácil se Littleton, o vampiro e feiticeiro, decidisse usar uma arma — o que era pouco provável, considerando o quanto ele tinha gostado de matar aquela pobre criada lentamente.
Não era ameaça suficiente para o privar de tamanho gozo.
Ainda assim, carreguei no interruptor do quarto ao lado da porta da casa de banho. Não aconteceu nada. O quarto e a casa de banho estavam em circuitos diferentes, não podiam
ter disparado os dois ao mesmo tempo. Teria Littleton cortado a eletricidade da caravana?
Ainda estava de olhos fitos no interruptor quando alguém gritou pelo nome de Samuel. Não, não era uma pessoa qualquer a gritar — era eu. Mas acontece que eu não tinha voltado
a gritar.
Enfiei um cartucho na Marlin e tentei encontrar alguma espécie de conforto no seu peso familiar e na consciência de que Littleton não podia entrar.
— Lobinha, lobinha, deixa-me entrar. — O sussurro preencheu-me o quarto, não conseguia distinguir de onde vinha.
Respirando profundamente pelo nariz para controlar o meu pânico, ajoelhei-me na cama e olhei cautelosamente lá para fora através da janela, mas não consegui ver nada.
— Sim, Mercy? — Desta vez, a voz de Samuel, leve e divertida. — Doce Mercy. Anda cá para fora brincar, Mercedes Thompson. — Também reproduzia a voz de Samuel. Onde tinha ele
ouvido Samuel falar?
Algo arranhou a parte lateral da minha caravana, ao lado da janela, rangendo com o inconfundível som de metal a ser dobrado. Produzi um gesto rápido e fiz mira com a Marlin,
à espera que a sombra dele passasse em frente à janela.
— Lobinha, lobinha, sai, sai estejas onde estiveres. — Desta vez, a voz de Warren. Depois gritou, o atroador som de uma dor insuportável.
Não tive a menor dúvida de que Warren tinha emitido aqueles barulhos, mas esperava que não estivesse a produzi-los mesmo ao lado da minha caravana. Esperava que ele estivesse
a salvo na casa de Adam.
Foi bom ele ter começado com a minha voz — se tivesse acreditado que Warren estava a gritar à porta da minha caravana jamais teria sido capaz de permanecer no interior. Onde
era seguro estar. Porventura.
O último grito de Warren dissipou-se, mas Littleton ainda tinha mais coisas em mente para mim. Caminhou ao longo da parede que constituía a extremidade da caravana. Também
nessa parede havia uma janela, mas não detetei qualquer sinal dele — embora parecesse que estava a bater no vidro novamente.
Ele não pode entrar, lembrei a mim mesma silenciosamente, mas ainda assim estremeci quando o revestimento metálico da minha casa chiou e a caravana balançou um bocadinho.
Depois fez-se um breve silêncio.
Voltou a bater, embora agora o som parecesse mais de socos do que de pequenas pancadas. De cada vez que batia nas paredes, tanto a minha casa como eu éramos sacudidas. Continuou
a fazer o mesmo em redor da casa até chegar às traseiras, sendo que os sons que produzia se alteraram quando bateu na parede da casa de banho. Um dos azulejos caiu da parede
do chuveiro e despedaçou-se.
Mantive a Marlin apontada a ele, mas com o dedo fora do gatilho. Não conseguia ver para onde estava a apontar, e as casas dos meus vizinhos estavam dentro do alcance da Marlin.
Mesmo que eu conseguisse não matar nenhum deles, disparar uma arma iria certamente atrair a sua atenção. Os meus simpáticos vizinhos não teriam a menor hipótese contra um
vampiro, especialmente este vampiro.
Quanto aos meus outros vizinhos mais duros… estava surpreendida com o facto de o barulho que Littleton estava a fazer ainda não os ter atraído. Ainda assim, a casa de Adam
tinha um bom isolamento. Era possível que não ouvissem a voz de Littleton o suficiente para se preocuparem, mas um disparo de espingarda faria com que viessem a correr.
No entanto, lobisomens e feiticeiros são uma má combinação, no entender do Tio Mike. Acreditei nele — motivo pelo qual não tinha tentado telefonar a pedir ajuda. Começava
a pensar que Littleton não tinha mesmo como entrar. Podia assustar-me, mas não podia entrar e fazer-me mal a menos que o convidasse.
— Nem que a porca torça o rabo — murmurei.
Golpeou novamente a parede e eu dei um salto. Passaram-se segundos, um minuto, depois dois e nada aconteceu. Nada de gritos, nada de estrondos, nada de revestimentos rasgados
— como é que eu ia explicar isso à minha companhia de seguros?
«Sim, minha senhora», ensaiei. «A vampira rainha pediu-me para caçar uma mistura de vampiro com demónio. Ele acabou por descobrir e isso deixou-o chateado, por isso rasgou
o revestimento da minha casa.»
Sentei-me no meio do chão com a arma debaixo do braço.
«Parece que vou ter de ser eu a arranjá-lo. Pergunto-me quanto é que custará o revestimento. E todas as outras coisas que estragou lá fora.»
Não me conseguia lembrar se tinha posto a Medea dentro de casa antes de ir para a cama. Normalmente fazia isso, mas estava tão cansada… Assim que voltasse a reunir coragem,
sairia de onde estava e ia certificar-me de que a Medea estava a dormir no quarto de Samuel, onde preferia passar a noite. Podia telefonar a Andre — mas…
Os meus ombros estavam rígidos por causa da tensão e inclinei a cabeça para o lado, esticando-me. Subitamente, o chão debaixo do tapete subiu com um barulho tremendo. Levantei-me
de um salto e disparei contra o chão enquanto ainda vibrava. Posso não ser super-forte, mas sou rápida. Disparei duas vezes mais numa rápida sucessão. Depois esperei, de olhos
postos nos buracos no chão e nas marcas de pólvora no meu tapete berbere de cor creme.
Algo se mexeu num dos buracos e dei um salto para trás, disparando novamente enquanto vários objetos pequenos eram empurrados através de buracos para os quais eram muito grandes.
Instantes depois, ouvi a porta de um carro bater no meu caminho de entrada e um motor alemão ganhou vida, o motor de um BMW como o que Littleton levara para o hotel. Arrancou,
não de forma muito apressada, apenas mais um condutor na estrada, e eu cravei os olhos nas quatro balas de prata deformadas e cobertas de sangue que ele me tinha devolvido.
Quando o meu despertador tocou, estava sentada no centro do chão do meu quarto com a Medea enroscada no meu colo a ronronar. Por que é que em todos os filmes de aventura a
heroína não tem de se levantar para ir trabalhar?
Tinha demorado uma hora a convencer os meus vizinhos a regressar a casa. Dissera-lhes que os estragos deviam ter sido causados por um cliente irado qualquer — ou talvez um
dos gangs locais. Sim, tinha disparado os tiros para os afugentar — não pensava ferir nenhum deles. Talvez não soubessem que estava gente em casa. Claro que ia chamar a polícia,
mas não fazia sentido fazer com que viessem a esta hora. Ia ligar-lhes de manhã. A sério.
Já fazia tenção de falar com Tony de qualquer forma, embora duvidasse que viesse a dizer alguma coisa acerca do ataque de Littleton. Não havia nada que a policia pudesse fazer
em relação a ele.
Podia telefonar a Zee para me substituir, mas de qualquer maneira não ia dormir hoje. Mais me valia poupar a ajuda de Zee para outro dia. Desliguei o despertador, tirei uma
Medea rezingona do colo e vesti umas roupas para, à luz matutina, poder ver os estragos que Littleton causado na minha caravana.
Os danos eram piores do que me parecera na noite anterior. Não tinha arrancado o revestimento, tinha-o cortado às fatias do telhado até à base em segmentos com uma distância
de um dedo entre si. Também tinha como explicar o facto de ele se ter enfiado debaixo da caravana. As fundações de blocos de cimento tinham, nas traseiras, um buraco da dimensão
de uma pessoa.
A minha caravana era de 1978, modelo de seis metros por vinte e sete, longe dos seus melhores dias. Não era uma peça extraordinária, mas pelo menos era uma peça quando fui
para a cama a noite passada. Repará-la ia custar uma pipa de massa — se é que havia possibilidade de repará-la.
Para esse fim, era melhor preparar-me para ir trabalhar, caso contrário não ia haver dinheiro para arranjar nada, nem mesmo o pequeno-almoço.
Enquanto tomava um duche, pensei no que tinha ficado a saber e no que não tinha ficado a saber. Não sabia onde Littleton estava neste momento. Não sabia se uma arma era útil
contra um vampiro. Tinha três balas que me diziam que talvez não, mas estavam cobertas de sangue, portanto pelo menos tinham provocado algum estrago. Não sabia em que medida
é que o facto de eu ver fantasmas me tornava perigosa para os vampiros, ou em que medida é que ser imune à magia deles me ia ajudar contra um vampiro capaz de fazer o que
tinha feito à minha caravana. E, depois da demonstração que Littleton me tinha dado a noite passada, sabia que ia precisar de Andre para o destruir.
Telefonei para a casa de Adam antes de sair para o trabalho para saber como estava Warren. Também me perguntava por que razão é que ninguém tinha aparecido para verificar
os disparos. O telefone tocou dez vezes até que alguém atendesse.
— Olá, Darryl — disse. — Como é que está o Warren?
— Está vivo — respondeu o número dois de Adam. — Inconsciente mas vivo. Ouvimos os disparos ontem à noite, mas o lobo que enviámos disse que tinhas tudo sob controlo. O Samuel
está por aí?
— O Samuel passou a noite aí — repliquei.
Produziu um grunhido evasivo.
— O Samuel não está aqui, e pelos vistos o Adam saiu de casa por volta das duas da manhã. Não me passou pela cabeça perguntar ao guarda sobre o Samuel.
Darryl devia estar preocupado para me estar a contar tudo isto. Esfreguei a testa. Às duas foi poucas horas antes de ter recebido o meu visitante.
— Alguém perguntou ao Kyle sobre o que é que estavam a falar antes de se terem ido embora?
— O… amigo do Warren estava a dormir. O Warren acorda e adormece, mas fica muito agitado quando está acordado. Ele sabe de alguma coisa, mas as cordas vocais dele estão danificadas
e não conseguimos perceber nada do que tenta dizer.
Estava a responder-me como se eu tivesse alguma autoridade, dei-me conta, como se de facto estivesse a falar com a parceira de Adam.
— O que é que achas que aconteceu? — perguntei-lhe.
— Eu acho que o Adam, e o Samuel também, se não estiver por cá, descobriu onde está o maldito feiticeiro. Não estou a ver outra razão para o Adam deixar o Warren sozinho neste
estado.
Nem eu. Belisquei a cana do nariz.
— Isso pode ser mau.
— Como assim?
— Ontem à noite, o Tio Mike disse-me que juntar um demónio e um lobisomem podia ser muito perigoso. Os demónios têm um efeito pernicioso no autocontrolo, o que é muito muito
mau para os lobisomens. O Tio Mike estava muito preocupado.
Absorveu as minhas palavras por instantes.
— Isso pode ser mau. Talvez tivesse sido bom saber isso antes.
— Hmmm. — Inspirei fundo. Havia mais coisas que ele devia saber, mas a ideia de lhas contar não me agradava. No entanto, com Samuel e Adam desaparecidos, não era inteligente
esconder informações de um dos poucos aliados que me restavam.
Estamos a falar de Darryl, e, uma vez que me estava a tratar como se de facto eu ocupasse uma posição mais elevada do que a dele no bando — e considerando que, de uma maneira
ou de outra, era improvável ele gostar muito de mim —, não me ia proibir de nada.
— Encontrei-me com a Marsilia no Tio Mike. Ela quer que eu encontre o Littleton e mate o feiticeiro por ela.
Fez-se uma pausa muito longa e reveladora.
— Ela acha que és capaz de fazer isso? — A sua descrença podia não ser lisonjeadora, mas eu própria sentia isso, portanto tudo bem.
— Aparentemente. Ela destacou um dos seus vampiros mais importantes para me ajudar.
— Hmmm — pronunciou.
— Por acaso até o acho porreiro. É amigo do Stefan.
— O Adam não ia permitir que fizesses isso.
— Eu sei. Mas ele não está aí. Se o Warren recuperar a consciência, quero que me ligues. — Dei-lhe o meu número de telemóvel, o número de casa e o número da oficina.
Depois de ele ter apontado tudo, disse-lhe:
— Precisas de ligar ao Bran e contar-lhe tudo.
— Incluindo a tua situação? — perguntou. Ele sabia o que Bran iria pensar sobre a ideia de eu ir atrás de um feiticeiro com um vampiro.
— Sim — respondi. Não ia colocá-lo numa posição que fizesse com que Bran se chateasse com ele. Bran poderia chatear-se comigo. Em tempos adquirira muita experiência em lidar
com isso. Creio que me podia voltar a habituar a isso. O facto de ele estar a centenas de quilómetros e eu ter identificação do chamador no meu telemóvel ajudava.
Ainda assim…
— Mas só se ele perguntar — acrescentei prontamente.
Darryl riu-se.
— Sim, eu lembro-me de usar esse truque com a minha mãe. Espero que resulte melhor contigo do que comigo.
Desliguei.
Adam e Samuel tinham desaparecido antes de Littleton ter dado início à sua performancezinha na minha caravana.
Littleton sabia reproduzir a voz de Samuel. Passadas quatro horas, Adam não tinha telefonado para saber do estado de Warren, que ainda não estava fora de perigo — e Samuel
tão-pouco.
Littleton tinha-os aos dois. Se Littleton fosse como os outros vampiros, não teria atividade durante o dia. Existia a possibilidade de eles ainda estarem vivos. Littleton
gostava de saborear a sua presa.
Tinha de encontrá-lo antes do anoitecer.
Telefonei a Elizaveta e fui atendida pelo atendedor de chamadas.
«Ligou para Elizaveta Arkadyevna. De momento não estou disponível. Por favor, deixe a sua mensagem juntamente com o nome e número de telefone e eu devolvo-lhe a chamada.»
— Daqui fala a Mercy — disse para a máquina depois de ter apitado. — O Adam e o Samuel estão desaparecidos. Onde é que você se encontra? Ligue-me a mim ou ao Darryl assim
que puder.
O meu conhecimento de bruxaria não era suficiente ao ponto de saber se ela me podia ajudar ou não. Na pior das hipóteses, podia sacar-lhe o que sabia sobre vampiros e feiticeiros
— se conseguisse convencê-la de que as ordens de Adam para que não falasse comigo estavam desatualizadas.
Telefonei para os três números de Tony e deixei mensagem para que me ligasse para o telemóvel. Telefonei a Zee, mas fui atendida pelo atendedor de chamadas. Também deixei
uma mensagem detalhada no seu telefone. Dessa forma, tanto Darryl como Zee ficariam a par do que eu estava a fazer.
Em seguida peguei no telemóvel e dirigi-me para o trabalho. Ia dar folga a Gabriel e fechar a oficina.
O meu relógio indicava que tinha chegado quinze minutos antes do horário de abertura, portanto fiquei surpreendida ao ver a Sra. Hanna. Estava horas adiantava em relação ao
seu horário habitual.
Quando estacionei no lugar do costume, ela estava ao lado do meu carro. Nervosa como estava, a simples presença da Sra. Hanna exigia que eu fosse educada.
— Olá, Sra. Hanna. Hoje apareceu cedo.
Fez-se uma pausa até ela levantar os olhos na minha direção, e por instantes não fazia ideia de quem eu era. Mais um ou dois meses, pensei, e só lhe restaria uma parte muito
pequena da personalidade.
Mas hoje a sua face acabou por se iluminar.
— Mercedes, minha filha. Estava à espera de a ver hoje. Tenho um desenho especial só para si.
Remexeu o carrinho de compras sem sucesso, tornando-se visivelmente mais agitada.
— Tudo bem, Sra. Hanna — disse-lhe. — Tenho a certeza de que depois o vai encontrar. Por que é que não mo vem cá trazer amanhã?
— Mas estava aqui mesmo agora — afirmou, inquieta. — Um desenho daquele rapaz simpático que gosta de si. O moreno.
Adam.
— Amanhã dá-mo, Sra. Hanna. Sem problema. O que faz pela rua tão cedo?
Olhou em volta, como que desnorteada pela pergunta. Depois relaxou e sorriu.
— Oh, foi o Joe. Ele disse-me que era melhor eu mudar a minha rota se quisesse continuar a visitá-lo.
Sorri-lhe. Quando era viva, falava do John isto e do Peter aquilo. Nunca tivera a certeza se de facto tinha namorados ou se gostava de fingir que os tinha.
Inclinou-se para a frente confidencialmente.
— Nós, mulheres, temos sempre de mudar pelos nossos homens, não é verdade?
Surpreendida, olhei-a fixamente. Era exatamente isso. Eu sentia que Adam estava a mudar aquilo que eu era.
Reparou que as suas palavras tinham sido certeiras e acenou alegremente.
— Mas eles merecem, que Deus os preze. Eles merecem.
Depois, foi-se embora no seu habitual passo arrastado que abrangia uma surpreendente quantidade de terreno.
10
— Não, senhor, ela não está… — Gabriel olhou para cima quando entrei na oficina. — Espere. Acabou de chegar.
Peguei no telefone, pensando que poderia ser Tony ou Elizaveta.
— Daqui fala a Mercy.
— O meu nome é John Beckworth e estou a telefonar-lhe da Virgínia. Peço desculpa, esqueci-me de que aí é muito mais cedo.
A voz soou-me familiar, mas o nome não batia certo.
— Sr. Black? — perguntei.
— Sim — respondeu de forma um pouco acanhada. — Na verdade é Beckworth. Acabei de falar ao telefone com o Bran Cornick. Ele deu a entender que havia um problema qualquer em
Tri-Cidades.
— Sim, estamos com uma espécie de… situação delicada por estas bandas. — Ou Adam tinha telefonado a Bran ontem ou Darryl tinha-se lembrado dos Black/Beckworth e falado com
eles esta manhã.
— Foi o que o Sr. Cornick disse. Sugeriu que apanhássemos um avião para Montana no início da próxima semana. — Fez uma pausa. — Pareceu-me menos enérgico do que o Adam Hauptman.
Bran era assim, silencioso e calmo até arrancar a goela a alguém.
— Está a telefonar-me para saber se ele é confiável? — perguntei.
— Sim. Ele não estava na lista de homens que me deu.
— Se tivesse uma filha, não hesitava minimamente em deixá-la com o Bran — disse sinceramente, ignorando o comentário sobre o facto de Bran não estar na lista. — Ele vai tratar
bem de si e da sua família.
— Ele falou com a Kara, a minha filha — disse numa voz que era toda ela alívio. — Não sei o que é que ele disse, mas há anos que não a via tão feliz.
— Ainda bem.
— Menina Thompson, se houver alguma coisa que eu possa fazer por si, por favor não hesite em contactar.
Comecei a recusar automaticamente, mas depois parei.
— Você é mesmo repórter?
Riu-se.
— Sim, mas não faço reportagens sobre as vidas sexuais das celebridades. Sou um jornalista de investigação.
— Tem formas de descobrir coisas sobre as pessoas?
— Sim. — Soou intrigado.
— Preciso do máximo de informação que conseguir obter sobre um homem chamado Cory Littleton. Ele tem uma página na Internet. Diz ser um mágico. Seria particularmente útil
se conseguisse descobrir se ele tem alguma propriedade em Tri-Cidades. — Era uma tarefa com poucas hipóteses de sucesso, mas eu sabia que Warren tinha verificado todos os
hotéis e casas arrendadas. Se Littleton estava aqui, tinha algum sítio onde ficar.
Repetiu o nome que entretanto tinha anotado.
— Vou reunir as informações que conseguir. Pode demorar alguns dias.
— Tenha cuidado — adverti. — Ele é perigoso. Não pode saber que você anda a investigar.
— Isto está ligado ao problema de que o Sr. Cornick me falou?
— Sim.
— Diga-me como posso entrar em contacto consigo. Provavelmente o melhor será um endereço de correio eletrónico.
Dei-lhe aquilo de que precisava e agradeci-lhe. Ao desligar o telefone, reparei que os olhos de Gabriel estavam cravados em mim.
— Algum problema? — perguntou.
Talvez me devesse ter esforçado mais para manter Gabriel fora do meu mundo. Mas tinha a cabeça no lugar e não era estúpido. Decidi que seria mais fácil contar-lhe o que podia
— e mais seguro do que se ele fosse à procura.
— Sim. Um problema sério.
— O telefonema de ontem à noite?
— Isso é parte do problema. O Warren está gravemente ferido. O Samuel e o Adam estão desaparecidos.
— Porquê?
Encolhi os ombros.
— Não te posso contar. — Os vampiros não gostavam que falassem sobre eles.
— Ele é um lobisomem?
— Não, não é um lobisomem.
— Um vampiro como o Stefan?
Olhei-o fixamente.
— O que foi? Não posso encontrar uma explicação para as coisas? — Abanou a cabeça num gesto de reprovação. — O seu cliente misterioso que conduz a carrinha extravagante pintada
como a Máquina Mistério e só aparece depois de anoitecer? O Drácula não é, mas onde há lobisomens, de certeza que há vampiros.
Ri-me, não me consegui conter.
— Está bem. Sim. — Depois disse-lhe de forma séria: — Não digas a mais ninguém que sabes o que quer que seja sobre vampiros, especialmente ao Stefan. — Depois lembrei-me que
isso não seria um problema. Engoli em seco, com um nó na garganta, e continuei no mesmo tom sério: — Não é seguro nem para ti nem para a tua família. Eles não se metem contigo
desde que não saibam que tu acreditas que eles existem.
Puxou o colar para me mostrar uma cruz.
— A minha mãe obriga-me a usar isto. Era do meu pai.
— Isso ajuda — disse-lhe. — Mas fingir ignorância ajuda mais. Estou à espera de dois telefonemas. Um do Tony e um da Elizaveta Arkadyevna, vais perceber quem é pelo sotaque
russo. — Tencionava fechar a oficina, mas não tinha nada para fazer até que Tony ou Elizaveta me ligassem de volta. Se Stefan e Warren tinham demorado duas semanas a descobrir
o feiticeiro, era pouco provável que eu o encontrasse a conduzir pelas ruas ao acaso. Vivem mais de 200000 pessoas em Tri-Cidades. Não é Seattle, mas também não é Two Dot,
em Montana.
Não conseguia concentrar-me no meu trabalho. Demorei o dobro do tempo que devia a substituir uma bomba de direção assistida porque estava sempre a espreitar o telemóvel.
Finalmente concluí o que estava a fazer e telefonei novamente a Zee — mas não obtive resposta. Elizaveta também não atendia o telefone, nem Tony.
Comecei a trabalhar no carro seguinte. Estava de volta dele há apenas uns minutos quando Zee entrou na oficina. A julgar pelo semblante carregado, estava preocupado com alguma
coisa. Acabei de apertar a correia do alternador no Carocha de 1970 e lavei as mãos e os braços. Depois de ter tirado a maior parte da gordura das minhas mãos, encostei a
anca a uma bancada e disse:
— Então?
— Só um tonto é que se mete com vampiros — afirmou, o seu rosto cerrado em sinal de desaprovação.
— O Littleton fez o Warren em picadinho, Zee. Provavelmente matou o Stefan, e o Samuel e o Adam estão desaparecidos.
— Não sabia que o Alfa e o Samuel estavam desaparecidos. — A sua cara suavizou-se um bocado. — Isso é mau, Liebchen. Mas seguir as instruções da Senhora dos vampiros não é
inteligente.
— Eu estou a ser cuidadosa.
Rosnou.
— Cuidadosa? Eu vi o estado em que ficou a tua caravana.
— Eu também — repliquei lamentosamente. — Estava lá quando isso aconteceu. O Littleton deve ter descobrido que a Marsilia me pediu para o encontrar.
— Não há dúvida de que o encontraste ontem à noite… não que te tenha servido de muito.
Encolhi os ombros. Ele tinha razão, mas não podia simplesmente ficar parada à espera que Darryl me telefonasse e informasse que o Samuel e o Adam tinham sido encontrados mortos.
— A Marsilia parece acreditar que eu sou capaz de lidar com ele.
— E acreditas nela?
— O Tio Mike acreditou.
Isso surpreendeu-o; contraiu os lábios.
— Que mais é que o Tio Mike te disse?
O assunto dos heróis era demasiado embaraçoso, por isso contei-lhe que o Tio Mike me tinha falado do efeito dos demónios sobre os lobisomens.
— O Tio Mike fez-me uma visita esta manhã — disse-me Zee. — Depois saímos os dois e visitámos alguns amigos. — Sopesou uma mochila à minha frente.
Peguei nela e abri o fecho. No interior estava uma estaca afiada com o comprimento do meu antebraço e a faca que Zee me tinha emprestado da primeira vez que tinha ido visitar
o ninho. Era muito eficaz a cortar coisas — coisas que não era de esperar que uma faca cortasse, como correntes, por exemplo.
— Quem me deu a estaca foi uma criatura feérica que tem uma afinidade com árvores e coisas que crescem — disse. — É feita a partir da madeira de sorveira-brava, uma madeira
da luz. Ela disse que isto entraria no coração de um vampiro.
— Sinto-me comovida pela tua preocupação — repliquei, evitando um «obrigada» direto.
Sorriu, quase impercetivelmente.
— Tu és preocupação de sobra, Mercy. Mas normalmente o incómodo compensa. Não creio que essa faca tenha algum efeito no vampiro quando a magia dele estiver a funcionar. No
entanto, assim que a estaca lhe for espetada, vai ficar mais vulnerável a ela. Nessa altura podes usá-la para o decapitar. Zás.
Enfiei o braço até ao fundo da mochila, onde uma outra coisa estava escondida. Coloquei-a à luz e vi que era um disco liso de ouro. Na frente estava um lagarto e no verso
umas marcas quaisquer que podiam ser letras. Tanto o lagarto como a inscrição estavam gastos.
— Um vampiro só está morto quando o corpo dele estiver em cinzas — disse Zee. — Põe isto no corpo dele depois de lhe teres cortado a cabeça e a seguir diz o nome do medalhão.
— Pegou nele, passou os dedos por cima das letras inscritas, e, embora não creia que as letras tivessem de facto sofrido alguma alteração, consegui lê-las. Drachen.
Tinha sido há dez anos, mas eu tivera dois anos de alemão na faculdade.
— Papagaio? — disse incredulamente.
Riu-se, uma risada que lhe alargou a face estreita.
— Dragão, Mercy. Também significa dragão.
— Digo em alemão ou em inglês? — perguntei.
Puxou a minha mão e colocou-o na minha palma relutante, fechando em seguida em volta do objeto.
— Macht nichts, Liebling. — É indiferente.
— Portanto se alguém disser a palavra em qualquer uma das línguas o medalhão queima aquilo em que estiver a tocar até ficar reduzido a cinzas? — Não era minha intenção soar
tão chocada. Na verdade, com que frequência é que ouvia a palavra na vida quotidiana?
— Eu lá te dava uma coisa dessas? — Abanou a cabeça. — Não. O Tio Mike deu o teu nome ao medalhão, mais ninguém o pode invocar, e mesmo aí são necessários a palavra e a vontade.
— Portanto tenho de a dizer e de acreditar no que estou a dizer — repliquei. Imaginei que se estivesse a segurá-lo contra um vampiro, não seria difícil de reunir a vontade
de fazer com que a criatura ardesse até ficar em cinzas.
— Isso mesmo.
Inclinei-me para a frente e beijei-o na bochecha.
— Isto vai ajudar muito.
Franziu-me o sobrolho por causa do beijo.
— Gostava de fazer mais, mas é verboten. Mesmo o que fizemos já foi arriscado.
— Compreendo. O Tio Mike disse-me.
— Se só fosse arriscado para mim, ia contigo para lutar contra essa coisa. Mas toda a Reserva de Walla Walla ia sofrer.
Por causa da violência que teve lugar pouco depois de os seres feéricos se terem revelado ao público, a maior parte dos seres feéricos que já não estavam escondidos tinha-se
mudado voluntariamente para uma de várias reservas de criaturas feéricas, onde podiam viver em segurança. Zee vivia lá; quanto ao Tio Mike, não tenho a certeza. Mas sabia
que os Senhores Cinzentos eram capazes de matar um ser feérico para garantir o bom comportamento dos restantes.
— A sério que compreendo — disse-lhe. — Além disso, em tempos não me disseste que os teus talentos não servem de muito contra os vampiros?
As suas sobrancelhas baixaram ainda mais.
— A minha magia não ia ajudar. Mas força tenho, sou um ferreiro. Temo por ti, que tens fragilidades humanas.
— Por isso é que vou levar um dos vampiros da Marsilia comigo — expliquei-lhe.
O meu telemóvel tocou antes que ele tivesse oportunidade de dizer o que pensava sobre isso. Peguei nele e olhei para a identificação do chamador, esperando que fosse Tony
ou Elizaveta. Era Bran. Considerei a hipótese de não atender, mas ele estava bem longe, em Montana. O máximo que podia fazer era gritar comigo.
— Ei, Bran — disse.
— Não faças isso. Amanhã de manhã estou aí.
Bran dizia que não tinha poderes mediúnicos, mas a maioria dos lobisomens estava convencida do contrário. Momentos como este faziam-me concordar com eles.
Senti-me tentada a fazer-me inocente, mas dava demasiado trabalho. Estava cansada, e duvidava de que iria conseguir dormir enquanto Adam e Samuel não estivessem a salvo em
casa — ou enquanto Littleton não estivesse morto.
— Ainda bem — repliquei. — Fico contente por vires, mas tanto tu como o Tio Mike me disseram que os demónios são sinónimo de muito más notícias para os lobisomens. E se tu
perderes o controlo? — Nem sequer me ocorreu que Bran não soubesse quem era o Tio Mike. Bran simplesmente conhecia tudo e toda a gente.
Bran nada disse.
— Não temos tempo suficiente para esperar por ti — disse-lhe. — Se o Samuel e o Adam ainda estiverem vivos, tenho de encontrá-los antes do anoitecer.
Continuou em silêncio.
— Não interessa se te opões — disse-lhe gentilmente. — Seja como for, não me podes impedir. Com o Adam ausente, sou o lobisomem com a posição mais elevada na hierarquia aqui
na cidade. Passou a ser assim desde que me declarou sua parceira. — Imagine-se. E eu nem sequer era uma mulher-loba, não que eu esperasse que o posto mitológico se aguentasse
sem Adam por perto. Ainda assim, Bran, mais do que ninguém, ia ter de seguir as suas próprias leis.
— Não sou indefesa — disse-lhe. — Tenho o meu kit de chacina de vampiros/feiticeiros, e os vampiros disponibilizaram um dos dele para me proteger. — Ir atrás de Littleton
seria provavelmente suicida, mesmo com um vampiro a proteger-me — não tinha servido de nada a Warren — mas não ia ficar parada à espera que o corpo de Adam aparecesse no meio
do lixo do Tio Mike.
— Confias nesse vampiro?
Não. Mas não lhe podia dizer isso — e sabia que não podia mentir a Bran.
— Ele quer o Littleton permanentemente morto. — Disso tinha a certeza, tinha percebido a fúria na voz de Andre, a fome de vingança. — Era amigo de uma das vítimas do feiticeiro.
— Consegui dizer «vítimas do feiticeiro» com uma rapidez tal que os nomes «Stefan», «Adam» ou «Samuel» não me surgiram na mente. Uma vítima era alguém sem nome e sem rosto.
— Tem cuidado — disse-me por fim. — Não te esqueças de que pode ser verdade que os caminhantes tenham ensinado os vampiros a temê-los, mas ainda há muitos vampiros e apenas
um caminhante.
Desligou.
— Ele tem razão — comentou Zee. — Não te ponhas muito emproada.
Ri-me. O meu riso soou cansado e triste.
— Tu viste a minha caravana, Zee. Não me vou pôr emproada. Nenhum dos seres feéricos sabe onde ele está?
Zee abanou a cabeça.
— O Tio Mike anda à procura, mas tem de ser cuidadoso. Se descobrirmos alguma coisa, dizemos-te.
O telefone tocou novamente e atendi sem olhar para o número.
— Daqui fala a Mercy.
— Tens de vir aqui. — Kyle falou muito baixinho, como se quisesse evitar que alguém o ouvisse, todavia estava numa casa de lobisomens.
— Eles conseguem ouvir-te — disse-lhe. Consegui ouvir Darryl a dizer qualquer coisa em chinês. O facto de Darryl estar a falar em chinês era muito mau sinal porque ele só
fazia isso quando estava mesmo chateado. — Vou já para aí.
Virei-me para Zee.
— Eu fico a trabalhar na oficina hoje. E amanhã, talvez mais tempo — anunciou Zee. — E não tens de me pagar.
Quando comecei a objetar, levantou uma mão.
— Não. Não posso caçar o Littleton, mas esta ajuda posso dar.
Reparar a caravana já ia fazer com que o mês seguinte fosse um mês de macarrão com queijo. Se Zee doasse o seu tempo, pelo menos não seria um mês de ramen. Beijei-o novamente
na bochecha e corri para o meu carro.
Ao lembrar-me do destino do lobo que me tinha seguido ontem, conduzi exatamente cinco quilómetros acima do limite de velocidade na auto-estrada. Apanhar uma multa iria roubar-me
muito tempo.
O meu telemóvel tocou uma vez mais enquanto passava pelo polícia de trânsito que estava estacionado do outro lado da ponte por cima da via-férrea. Desta vez o telefonema era
de Tony.
— Ei, Mercy — disse. — Recebi as seis mensagens. De que é que precisavas?
— Existe alguma maneira de me arranjares uma lista de todos os incidentes violentos a que a polícia acorreu no último mês? Precisava de uma lista relativa a todas as zonas
de Tri-Cidades, não apenas a Kennewick.
— Porquê? — A simpatia tinha-lhe desaparecido da voz.
— Porque é possível que haja alguma coisa que os esteja a causar, e é possível que possa ajudar a pôr fim à situação se descobrir os sítios onde os incidentes estão a acontecer.
— Vejo televisão. Já vi a forma como a polícia segue a pista dos assassinos em série — pelo menos nos programas de detetives. Fazia sentido que os problemas causados pelo
demónio se centrassem à volta do demónio. Aparentemente, Stefan tinha tido sucesso ao usar esse método.
Se algum dia me tornar assassina em série, vou ter o cuidado de matar as pessoas segundo um padrão que se centre à volta de uma esquadra de polícia — e não da minha casa ou
do meu local de trabalho.
— Nós temos um mapa — disse-me enquanto metia para a rua de Adam e carregava no acelerador. O limite de velocidade era de cinquenta quilómetros por hora, mas nunca tinha visto
um agente da polícia nesta zona. — Por que é que não apareces na esquadra e eu mostro-te? Se responderes a umas perguntas.
— Está bem — respondi. — Primeiro tenho de tratar de umas coisas. Posso ir ter contigo daqui a mais ou menos uma hora?
— Lá estarei — disse, desligando em seguida.
Honey abriu a porta da casa de Adam antes de eu chegar ao alpendre.
— Eles estão lá em cima — informou desnecessariamente. Darryl ainda estava a dizer qualquer coisa rude em chinês.
Não, não falo chinês, mas algumas coisas não precisam de tradução.
Subi as escadas com Honey atrás de mim.
— Convenci o Darryl a vir cá para baixo depois de o Kyle te ter telefonado — disse Honey. — Mas há coisa de poucos minutos o Warren tentou sair da cama e o Kyle gritou com
ele. Por isso o Darryl voltou lá para cima.
Teria procurado saber mais pormenores — como, por exemplo, a razão pela qual Warren e Darryl estavam a discutir, partindo do pressuposto que a discussão não era entre Kyle
e Darryl — mas não havia tempo.
A porta do quarto de hóspedes estava aberta. Parei mesmo antes do limiar e respirei fundo. Quando se entra num quarto com dois lobisomens zangados (e conseguia ouvir dois
grunhidos distintos), é boa ideia estar calmo. A raiva só exacerba a situação — e o medo pode fazer com que ambos ataquem.
Atirei o último pensamento para um espaço recôndito da mente, procurei ter pensamentos serenos e entrei.
Warren estava transformado em lobo — e não estava com melhor aspeto do que na noite passada. Havia salpicos do seu sangue espalhados pelos lençóis, pelas paredes e pelo chão.
Darryl ainda estava na forma humana e debatia-se com Warren. Parecia que estava a tentar segurá-lo na cama.
— Deita-te — rugiu.
No bando, Darryl ocupava uma posição superior à de Warren; era o número dois de Adam, e Warren o número três. Isso significava que Warren tinha de fazer o que Darryl lhe mandava.
Mas Warren, ferido e confuso, com a sua metade humana submersa no lobo, tinha-se esquecido de que devia submeter-se à autoridade de Darryl. Devia ter sido uma coisa instintiva.
O facto de Warren não estar a dar ouvidos a Darryl significava uma coisa — Darryl na verdade não era mais dominante, Warren vinha fingindo o tempo todo.
Nestas circunstâncias, isso era uma coisa mesmo muito má. Um lobisomem ferido é perigoso, a natureza lupina sobrepõe-se ao controlo humano — e o lobisomem é uma criatura nefasta.
Muitíssimo mais nefasta do que o seu homólogo natural.
A única razão pela qual Warren não tinha matado toda a gente da casa era que estava meio morto e Darryl era muitíssimo forte.
Kyle estava de pé contra a parede, o mais longe que conseguia estar da cama. A sua camisa roxa de seda estava rasgada e a pele debaixo dela cortada e a pingar sangue. Tinha
uma expressão de preocupação no rosto, mas não cheirava a medo nem a raiva.
— Tu és o lobo com a posição mais alta na hierarquia — sussurrou Honey. — Disse ao Kyle para te ligar quando o Darryl pareceu ter irritado o Warren. Ele estava bem com o Kyle
ainda há poucos minutos.
Não tinha acabado de dizer a Bran que ocupava uma posição superior à de Darryl? Mas Honey, à semelhança do resto dos lobos de Adam, sabia que eu na verdade não era parceira
de Adam — e mesmo que fosse, a minha autoridade seria estatutária, não real. Não real ao ponto de ajudar Warren a controlar o seu lobo. Contudo Honey observava-me com fé nos
olhos, por isso tinha de tentar.
— Warren — disse firmemente. — Deita-te.
Se eu era a pessoa mais surpreendida do quarto quando Warren obedeceu imediatamente, Darryl não teria ficado muito menos surpreendido do que eu. Sempre achei estúpida a forma
como as fêmeas de um bando adquirem a sua posição através do parceiro. Achava que era uma daquelas coisas estúpidas que as metades humanas dos lobos acrescentavam à natureza
para tornar a vida difícil, algo a que a parte humana dos lobisomens prestava atenção, não a parte lupina.
Darryl foi largando Warren lentamente e sentou-se na extremidade da cama. Warren manteve-se deitado, sem energia, no sítio onde antes estivera, com a sua esplêndida pelagem
castanha esfarrapada e coberta de sangue, parte antigo, parte recente.
— Bom — disse para dissimular a minha confusão. — É bom sinal que ele se consiga transformar. E na forma de lobo vai sarar mais depressa. — Olhei para Kyle. — Ele disse alguma
coisa sobre o porquê de o Samuel e o Adam terem saído?
— Não. — Kyle franziu-me o sobrolho. — O que é que fizeste?
Encolhi os ombros.
— Política lupina — respondi.
— Como é que fizeste aquilo se eu não conseguia? — inquiriu Darryl.
Virei-me para ele e constatei que os seus olhos escuros tinham amarelecido — e que estava com eles cravados em mim.
— Não tenho culpa — disse-lhe. — O Adam nem sequer me disse nada antes de me ter declarado parceira dele diante do bando. Podes acreditar que eu não achava que fosse mais
do que uma forma de impedir que eu fosse comida. Quanto à questão do domínio, tu e o Warren vão ter de resolver as coisas quando o Adam chegar. — Olhei novamente para Kyle
e perguntei-lhe: — Estás muito ferido?
Kyle abanou a cabeça.
— É só um arranhão. — Ergueu a face na minha direção. — Também vou uivar para a Lua?
Abanei a cabeça.
— Não é assim tão fácil tornares-te lobisomem. Para isso, ele precisava de te ter deixado à beira da morte. Um arranhão nunca ia provocar isso.
Kyle era advogado — no seu rosto não transparecia nada. Não conseguia perceber se estava aliviado ou desapontado. Talvez nem ele próprio soubesse.
— Vamos ter de levá-lo lá para baixo para o quarto de segurança — disse a Darryl.
O quarto de segurança era um quarto na cave cuja porta estava reforçada para manter um lobisomem. Se Darryl não era suficientemente dominante para garantir que Warren permanecesse
calmo, a cela era a única alternativa.
— Podemos mantê-lo no colchão — sugeriu Honey. — O Darryl e eu podemos transportá-lo lá para baixo.
E foi o que fizeram. Kyle e eu fomos atrás deles e expliquei o que estávamos a fazer com a máxima rapidez.
Warren não se opôs a ser aprisionado, mas tivemos problemas em impedir que Kyle ficasse com ele.
— Ele não me magoou de propósito — disse, postado do lado de dentro da porta da cela. — Eu estava a tentar ajudar o Darryl a mantê-lo deitado.
— Ele ainda vai piorar antes de começar a melhorar — informei-o.
— Ele nunca me tinha magoado antes.
O que fez toda a gente presente no quarto, exceto Kyle, perceber o quanto Warren gostava dele. Nem um lobisomem enlouquecido é capaz de magoar a parceira ou o parceiro.
— Não quero ter de explicar ao Warren por que é que deixámos que ele te comesse — disse. — Olha, podes sentar-te neste sofá e ficar aqui o dia todo.
Havia uma salinha de estar fora da cela, com um sofá, poltrona a condizer e uma televisão com ecrã gigante.
— Vai ser só durante o dia — disse Darryl com a voz ainda um pouco resmungona, fazendo-me dar graças por não estarmos perto de uma Lua cheia. — Hoje à noite já vai estar suficientemente
bom para se desenrascar sozinho.
Warren e o seu lobo podiam ter-me aceitado como parceira de Adam, mas duvidava que o mesmo tivesse acontecido com Darryl — e descobrir que Warren era dominante em relação
a ele ia torná-lo irritável por uns tempos. Por uns bons tempos.
Deixámos Warren na cela, com Kyle encostado às grades revestidas a prata. Não era o sítio mais inteligente para ele esperar, mas pelo menos não estava no interior.
— Tenho de ir — anunciei a Darryl assim que chegámos ao piso térreo. — Ainda estou a tentar localizar o Adam e o Samuel. Tomas conta da situação a partir daqui?
Não me respondeu, limitou-se a olhar fixamente lá para baixo, na direção da cela.
— Nós ficamos bem — disse Honey, suavemente. Afagou o braço de Darryl para o confortar.
— Não o vão aceitar como número dois — afirmou Darryl.
Provavelmente tinha razão. O facto de Warren ter sobrevivido tanto tempo sendo ele um lobisomem homossexual era um tributo à sua força e inteligência.
— Podes resolver isso com o Adam quando ele voltar — disse-lhe. Relanceei os olhos ao meu relógio. Ainda tinha tempo para fazer um telefonema a Elizaveta antes de ir para
a esquadra de polícia.
Não deixei uma terceira mensagem no seu atendedor de chamadas. Isso poderia vir a irritá-la.
Quando tirei o telefone da cara, Darryl disse:
— A Elizaveta saiu da cidade depois de o Adam ter encontrado o Warren. Disse que era muito perigoso para ela ficar aqui. Se o demónio se aproximasse muito dela, talvez conseguisse
sair do Littleton e entrar nela, o que, segundo o que ela nos contou, seria um desastre. Pegou na família e foi para a Califórnia.
Eu sabia que Elizaveta não era uma bruxa wicca. Os seus poderes eram herdados e não tinham nada que ver com religião. O facto de ela ter tanto medo de um demónio dizia-me
que já tinha tido alguma espécie de ligação com os poderes das trevas — de outro modo o demónio não seria capaz de se apoderar dela sem um convite.
— Que diabo — disse. — Suponho que não tenhas nenhuma ideia sobre como matar o Littleton.
Sorriu-me, os seus dentes muito brancos na escuridão do rosto.
— Come-o.
— Que engraçadinho. — Dei meia volta para me ir embora.
— Mata o vampiro e o demónio vai-se embora — disse-me. — Foi o que a bruxa disse ao Adam. E a forma de matar um vampiro é espetar-lhe uma estaca, cortar-lhe a cabeça e depois
pegar-lhe fogo.
— Obrigada — repliquei, embora não fosse nada que eu já não soubesse. Tinha a esperança de que Elizaveta tivesse algum tipo de conhecimento do demónio que me facilitasse a
tarefa de matar Littleton.
Depois de fechar a porta atrás de mim, ouvi Darryl dizer:
— Claro que comê-lo também dava resultado.
A esquadra de polícia de Kennewick não ficava longe da minha oficina, mesmo ao lado da Escola Secundária de Kennewick. Havia imensos alunos do ensino secundário amontoados
na pequena entrada, a tomar de assalto a máquina de venda automática. Passei por entre eles a custo até alcançar a cabine envidraçada onde um rapaz, que tinha ar de quem estaria
mais na sua praia se estivesse com os putos do outro lado, tratava de papelada.
Anotou o meu nome e o de Tony e depois abriu a primeira porta e entrei numa sala de espera vazia. Nunca tinha estado no interior de uma esquadra de polícia, e senti-me mais
intimidada do que estava à espera. O nervosismo punha-me sempre claustrofóbica, portanto pus-me a andar de um lado para o outro na sala com ar condicionado. Cheirava intensamente
ao produto de limpeza que usavam, embora entendesse que isso não teria incomodado ninguém com um nariz menos sensível. Por baixo do odor a antissético, cheirava a ansiedade,
medo e raiva.
Devia estar com um aspeto um bocado esgazeado na altura em que Tony entrou para me ir buscar, porque olhou para mim e disse:
— Que se passa, Mercy?
Comecei a dizer qualquer coisa, mas ele levantou uma mão.
— Espera, esta sala não é privada. Anda comigo. — O que para mim era indiferente, porque não tinha a certeza do que lhe ia dizer.
Enquanto o seguia ao longo do corredor, cheguei à conclusão de que o problema da decisão de contornar as regras estava em tentar descortinar até que ponto as podia contornar.
Os seres feéricos não se iam chegar à frente para fazer frente a Littleton, pelo menos não ainda. Os lobisomens, segundo o Tio Mike e Bran, não tinham a menor hipótese. Se
os vampiros estavam a pedir a minha ajuda, era um bom indicador de que também eles não sabiam o que fazer em relação a ele.
Bran tinha dito que os feiticeiros acabam por se tornar vítimas do seu demónio e o diabo fica à solta. Talvez se desse o caso de o DPK vir a estar nas linhas da frente quando
isso acontecesse.
Por outro lado, se chegasse aos ouvidos do ninho que eu tinha falado à polícia da sua existência, mais me valia matar-me agora mesmo.
Tony conduziu-me até um escritório um tanto pequeno, e fechou a porta atrás de nós, fazendo desaparecer os ruídos do departamento. Não era o gabinete dele. Mesmo que não me
tivesse cheirado a outra pessoa, teria percebido com base na fotografia de casamento em cima da secretária. Tinha cerca de trinta anos, e ambos os jovens sorridentes que nela
figuravam eram loiros.
Tony sentou-se na beira da secretária, pousou o dossiê que trazia consigo ao seu lado e acenou vagamente para que eu me sentasse numa das cadeiras encostadas à parede.
— Parece que foste atropelada por um camião — disse.
Encolhi os ombros.
— Foi uma manhã difícil.
Suspirou e tamborilou com os dedos no dossiê.
— Ajudaria se te dissesse que tenho aqui o relatório de uma cidadã preocupada que telefonou para cá às 7:23 da manhã de hoje? Parece que a sua simpática e jovem vizinha, uma
tal de Mercedes Thompson, teve de disparar a sua espingarda para afugentar uns vândalos a noite passada ou no início da manhã de hoje. Um dos nossos polícias encarregados
do serviço de patrulha parou por lá para verificar os danos. — Lançou-me um olhar sombrio. — Ele trouxe fotografias.
Exibi-lhe um sorriso forçado.
— Também eu fiquei surpreendida hoje de manhã quando percebi o estado em que tinha ficado.
— Foi porque alguém te viu a falar comigo ontem?
Teria resolvido imensos problemas se o tivesse deixado pensar que tinha sido isso — mas eu prefiro não mentir. Especialmente quando essa mentira pode desencadear uma caça
aos seres feéricos.
— Não. Disse aos meus vizinhos que provavelmente tinham sido só miúdos, ou alguém zangado com o meu trabalho.
— Portanto foram à procura da tua caravana com abre-latas? Quanto tempo é que estiveram lá até tu ires atrás deles com a espingarda?
— Estou presa? — perguntei. Disparar uma espingarda na zona onde eu vivia podia ser ilegal, nunca tinha verificado isso.
— Por enquanto não — disse cuidadosamente.
— Ah. — Recostei-me na cadeira desconfortável. — Chantagem. Que divertido. — Tentei encontrar a melhor forma de sair da situação. A honestidade era sempre a melhor política.
— OK — disse finalmente, após decidir o quanto lhe podia contar. — Tens razão. Existe uma coisa que está a fazer com que as pessoas se tornem violentas. No entanto, se te
disser o que é, antes de amanhã estarei morta. Além disso, mesmo que soubesses o que é, não há nada que possas fazer para lhe pôr travão. Não é um lobisomem, não é um ser
feérico. Nem sequer é humano, embora possa ter aparência de humano.
Pareceu… surpreendido.
— Nós tínhamos razão?
Fiz que sim com a cabeça.
— Deixa-me que te diga isto. Apareceu ontem à noite e desfez a minha caravana em pedaços, mas não podia entrar porque não o convidei. Para que o mal entre na tua casa, tens
de convidá-lo, essa é uma das regras. Disparei contra ele quatro vezes com a minha Marlin .444, carregada com balas de prata. Atingi-o pelo menos três vezes e ele nem sequer
abrandou. Precisas de te manter longe dele. Neste momento anda escondido. O surto de violência é apenas um… um efeito colateral. Se tornares este assunto público, haverá muito
mais mortes. Estamos a tentar contê-lo sem que ninguém morra. Esperemos que muito em breve.
— Quem são esses «nós»? — perguntou.
— Alguns conhecidos meus. — Olhei-o diretamente nos olhos e rezei para que terminasse a conversa por ali. A forte ênfase que usei foi retirada diretamente de um filme de gangsters.
Ele não tinha de saber quão inferiorizados estávamos; a polícia seria ainda mais impotente do que Andre e eu.
— Prometo que não te minto em relação à comunidade preternatural — disse-lhe. — Posso omitir algumas coisas, porque sou obrigada a isso, mas não te minto.
Ele não gostou, não gostou mesmo nada. Bateu com os dedos de forma descontente no tampo da secretária, mas no final não fez mais perguntas.
Saiu da secretária e caminhou até ao armário embutido na parede atrás da minha cadeira. Desviei-me quando o abriu e puxou as portas para revelar um quadro branco no centro
e painéis de cortiça no interior de cada porta. Num dos painéis de cortiça, alguém tinha afixado um mapa de Tri-Cidades e colocado nele alfinetes coloridos de cabeça redonda.
A maior parte dos alfinetes era verde, alguns eram azuis e cerca de uma dezena eram vermelhos.
— Aqui não estão assinalados todos — informou. — Há coisa de duas semanas alguns de nós começámos a perguntar-nos se havia um padrão associado à violência, por isso pegámos
em todos os registos de violência desde abril. Os alfinetes verdes são as coisas comuns. Danos em propriedades, discussões que aquecessem um bocado e alguém telefona a denunciar,
alguém que maltrata a namorada. Esse tipo de coisas. Os azuis são as situações em que alguém acabou no hospital. Os vermelhos são as situações em que alguém acabou morto.
Alguns deles são suicídios. — Pôs o dedo num aglomerado de alfinetes vermelhos perto da auto-estrada em Pasco. — Este é o assassinato-suicídio no motel em Pasco o mês passado.
— Fez deslizar a mão até um alfinete verde isolado, perto da extremidade este do mapa. — Esta é a tua caravana.
Olhei para o mapa. Estava à espera de encontrar uma lista de endereços, mas isto era exatamente o que eu precisava — e não. Porque não conseguia distinguir nenhum padrão.
Os alfinetes estavam espalhados de forma uniforme por Tri-Cidades. Mais densamente onde o número de habitantes era maior, mais espaçadamente em Finley, Burbank e West Richland,
onde não havia tantas pessoas. Não havia nenhum anel de alfinetes bem desenhado como se vê nos filmes.
— Também não conseguimos encontrar um padrão — disse. — Não um padrão geral. Mas os incidentes tendem a ocorrer concentrados em zonas. Ontem foi em East Kennewick. Duas lutas
de punhos e uma confusão familiar que acordou a vizinhança. Na noite anterior tinha sido em West Pasco.
— Ele anda de um lado para o outro — comentei. Isso não era bom. Onde é que mantinha Adam e Samuel se andava de um lado para o outro? — Há alguma altura do dia em que a violência
seja pior? — perguntei.
— Depois do anoitecer.
Olhei novamente para os alfinetes, contando os vermelhos em silêncio. Eram menos do que o número avançado pelo Tio Mike — e não creio que nenhum deles sabia da família que
morrera durante a experiência de Daniel com Littleton.
— Descobriste alguma coisa? — perguntou.
— É mais fácil caçar assassinos em série na televisão — respondi azedamente.
— É com isso que estamos a lidar?
Encolhi os ombros, depois lembrei-me da cara de Littleton quando matou a mulher no motel.
— Acho que sim. De certa maneira. A violência episódica é mesmo má, Tony, mas este monstro gosta de matar. Se decidir que não precisa de se esconder mais, a coisa vai ficar
muito feia. O que é que me podes dizer sobre assassinos em série?
— Não vi nenhum por estas bandas — respondeu. — Isso não significa que não tenhamos um que desconheçamos. Mas há coisas às quais estamos atentos.
— Como por exemplo?
— A maior parte tem por hábito começar com vítimas fáceis.
Fáceis como o Daniel?, pensei.
— Tenho um amigo no Departamento de Polícia de Seattle que me disse que todo o departamento está à espera que alguém seja morto. Há três anos que lhes aparecem animais de
estimação mortos. Andam a fazer um patrulhamento reforçado perto das populações de risco: os sem-abrigo, os fugitivos e as prostitutas.
Estremeci. Será que Littleton era um assassino antes de se ter tornado feiticeiro e vampiro? Já era mau, ou tinha sido tornado mau? Não que isso fosse muito importante.
Alguém bateu à porta. Tony passou à minha frente para abri-la.
— Entre, Sargento — disse. — Já terminámos. Sargento, esta é a Mercedes Thompson. Mercy, este é o Sargento Owens, o nosso comandante de turno. Este é o gabinete dele.
O Sargento Owens era magro e estava em boa forma, uma versão mais velha e cínica do rapaz sorridente na fotografia de casamento. Estendeu a mão e apertei-a. Continuou a segurar
a minha durante algum tempo, examinando os vestígios de massa lubrificante que nunca conseguia remover completamente de debaixo das unhas.
— Mercedes Thompson — disse. — Ouvi dizer que teve uns problemas ontem à noite. Espero que não haja recorrência.
Acenei com a cabeça.
— Suponho que tenham tirado isso da ideia — repliquei com um sorriso ténue.
Não retribuiu o sorriso.
— O Tony disse-me que tem ligações com as comunidades de lobisomens e seres feéricos e que concordou ajudar-nos.
— Se puder — concordei. — Embora provavelmente esteja mais habilitada a afinar os vossos carros do que a dar-vos conselhos.
— É bom que seja uma boa mecânica — disse. — O meu pessoal arrisca a vida. Dispenso maus conselhos.
— Ela reparou o carro da Sylvia — interveio Tony. Para além de se ser mãe do Gabriel, Sylvia era despachante da polícia. — É uma mecânica muito boa, os conselhos dela vão
ser sólidos.
Na verdade, tinha sido Zee a consertar o carro de Sylvia, mas isso não era relevante.
O Sargento relaxou.
— Está bem, está bem. Vamos ver como corre.
Estávamos novamente no corredor quando parei.
— O que foi? — perguntou Tony.
— Tira os alfinetes relativos aos incidentes que acontecem à noite. Precisamos de saber da violência que ocorre durante o dia — disse-lhe. A sua simples presença causaria
violência. — Esta coisa move-se durante a noite, mas não acho que consiga mover-se durante o dia.
— Está bem — respondeu. — Vai demorar algum tempo. Vou pôr um recruta a tratar disso. Queres esperar?
Abanei a cabeça.
— Não posso. Ligas-me?
— Sim.
Pensava que me ia deixar na sala de espera, mas acompanhou-me até ao exterior. Desta vez a pequena entrada não tinha nenhum estudante.
— Obrigada — disse-lhe enquanto entrava no carro.
Segurou na porta e viu o que Stefan me tinha feito ao tablier.
— Alguém deu uma pancada nisso.
— Sim. Eu tenho esse efeito nas pessoas.
— Mercy — disse sombriamente. — Certifica-te de que ele não te bate assim.
Toquei no vinil partido que Stefan tinha esmurrado.
— Isso não vai acontecer — repliquei.
— Tens a certeza de que não te posso ajudar?
Acenei com a cabeça.
— Prometo que no caso de isso mudar te telefono imediatamente.
Parei num restaurante de fast food e pedi o almoço. Comi dois cheeseburgers e uma dose dupla de batatas fritas, embora não estivesse com muita fome. Não tinha dormido nada,
portanto permanecer alerta significava abastecer o corpo — o enorme refrigerante com cafeína também ia ajudar.
Depois de comer, entrei no carro e pus-me a conduzir de um lado para o outro, dando por mim a andar em círculos. Simplesmente não tinha informações suficientes para encontrar
o feiticeiro, e precisava de encontrá-lo antes do anoitecer. Antes que matasse Samuel e Adam — recusava-me a acreditar que já pudessem estar mortos. Littleton ainda não tinha
tido tempo para brincar com eles.
Por que razão é que Marsilia me tinha enviado em busca de Littleton sabendo que eu era demasiado estúpida para o encontrar?
Dei uma guinada no carro em direção à berma da estrada e estacionei-o abruptamente, demasiado ocupada por pensamentos para conduzir de forma segura.
Nunca confies num vampiro. Essa fora a primeira coisa que aprendera em relação aos vampiros.
Apesar da sua representação no julgamento de Stefan, Marsilia afirmava ter acreditado em Stefan quando este lhe disse que havia um vampiro que também era feiticeiro à solta
em Tri-Cidades. Ela podia ter enviado todo o ninho atrás dele — mas, em vez disso, tinha enviado Stefan e Daniel. Não, Stefan escolhera Daniel. Marsilia estava à espera que
ele escolhesse Andre, à semelhança do próprio Andre.
Mesmo depois de acreditar que Stefan estaria morto, não enviou o ninho atrás de Littleton. Em vez disso, mandou-me a mim e ao Andre. A mim. Cabia-me encontrar Littleton, ou
pelo menos era o que ela tinha dito. A Andre cabia manter-me viva enquanto eu o fazia — ou seguir-me para que Marsilia soubesse o que eu andava a fazer.
Andre achava que Marsilia tencionava arranjar maneira de controlar Littleton em vez de matá-lo. Seria isso o que Marsilia queria que ele fizesse? Seria essa a sua missão se
tivesse ido caçar com Stefan?
Se Marsilia lhe dissesse para não matar Littleton, ele não o faria. Ela era a sua criadora e ele não podia desobedecer-lhe — embora aparentemente Stefan pudesse.
Esfreguei a face e tentei arrumar os meus pensamentos. Saber o que Marsilia tinha em mente poderia ser importante a longo prazo, mas não me ia ajudar a encontrar Littleton.
Littleton não ia deixar um rasto para eu seguir.
— Então o que é se faz quando se anda à caça e não se encontra nenhum rasto ou cheiro? — perguntei em voz alta. Era uma pergunta básica, uma questão que Samuel colocava aos
lobisomens novatos que estivessem prontos para ir fazer a sua primeira caçada.
— Vai-se aos sítios que atraiam a presa — respondi. — Vá lá, Samuel, isso não vai ajudar. Nem sequer sei o que é que atraiu o feiticeiro para aqui.
Para saber como encontrá-la, precisas de compreender a tua presa.
Um breve pensamento chamou-me a atenção. Littleton não era de Tri-Cidades. Estava em viagem quando deparou com Daniel. Regressara, e Stefan e eu tínhamo-lo encontrado. Tinha
estado à espera de Stefan. Porquê?
Depois fez-se luz.
Tinha lido várias versões da história de Fausto, desde «Daniel Webster e o Diabo», de Benét, até à de Marlowe, passando pela de Goethe. Os feiticeiros vendem-se aos demónios
em troca de conhecimento e poder. Não havia nada nas ações de Littleton que pudesse encarar como uma procura de conhecimento ou poder.
Os demónios anseiam o caos, a violência e a morte. Littleton trazia disso em abundância, mas se o demónio estivesse a controlar totalmente as suas ações, haveria mais cadáveres.
Os demónios não são criaturas pacientes. O demónio não teria deixado Warren partir, não teria permitido que Stefan e eu nos tivéssemos ido embora naquela primeira noite.
Mas Littleton era um vampiro novato, e os vampiros novatos fazem o que os seus criadores lhes dizem para fazer.
Portanto o que é que um vampiro retiraria das ações de Littleton?
Littleton tinha quase de certeza matado Stefan e Ben, e quase matara Warren — mas estava bastante segura de que os lobos eram danos colaterais. Ninguém teria previsto que
os lobisomens se viessem a envolver, fosse de que maneira fosse.
Portanto, o que é que a desgraça de Daniel e a morte de Stefan poderiam dar a ganhar a um vampiro? Stefan era o preferido de Marsilia. Seria o feiticeiro um ataque indireto
a Marsilia?
Pus-me a tamborilar no volante. Se o ninho fosse um bando de lobos, seria capaz de interpretar melhor as ações dela. Ainda assim… enviou Stefan e fingiu que era castigo. Fingiu
em benefício de quem? Se todos os elementos do ninho eram dela, obedientes à sua vontade como Andre me dissera que os vampiros tinham de ser, não teria tido qualquer necessidade
de fingir. Portanto talvez estivesse com dificuldades em controlar os seus vampiros.
Talvez alguém tivesse enviado Littleton para a destruir, para se apoderar do ninho. Como é que um vampiro se tornava líder de um ninho? Poderia o criador de Littleton estar
em Tri-Cidades? Se estava, conseguiria ele esconder-se dos outros vampiros?
Precisava de mais informações. Mais informações sobre Marsilia e o seu ninho. Mais informações sobre como operavam os vampiros. E só conhecia um sítio onde poderia obtê-las.
Liguei o carro e segui em direção ao rebanho de Stefan.
11
No caminho de entrada estava uma Harley-Davidson de um vermelho reluzente que não tinha estado na noite anterior. Estacionei o carro atrás dela. O pobre e velho Rabbit parecia
deslocado numa zona tão luxuosa.
Toquei à campainha e esperei imenso tempo. A minha mãe tinha-me ensinado a ser educada e parte de mim sentia-se culpada por incomodá-los numa altura em que provavelmente tinham
por hábito dormir. A culpa não me impediu de tocar novamente à campainha.
Foi Rachel quem abriu a porta — e, tal como eu, estava com aspeto de quem tinha passado uma noite difícil. Vestia uma t-shirt curta, de um amarelo vivo, que deixava um intervalo
de dez centímetros entre a bainha e a parte de cima das calças de ganga caídas. Tinha um piercing no umbigo e a pedra cor de safira no anel cintilava quando ela se mexia.
Atraiu-me a atenção e tive de me forçar a olhar para a sua cara — que ostentava várias nódoas azuis ao longo do maxilar que na noite anterior não existiam. O seu braço tinha
a marca roxa de uma mão no local onde alguém a tinha agarrado.
Não disse nada, limitou-se a deixar que a olhasse à vontade enquanto me fazia o mesmo. Sem dúvida que via a pele inchada e os círculos escuros que evidenciavam a minha falta
de sono.
— Preciso de mais informações — disse-lhe.
Assentiu com a cabeça e afastou-se da porta às arrecuas para que eu pudesse entrar. Assim que entrei na casa, ouvi alguém a chorar: um homem. Parecia jovem e desamparado.
— O que é que se passou aqui? — perguntei enquanto a seguia rumo à cozinha, a origem do choro.
Naomi estava sentada no balcão com tampo de madeira, parecendo mais velha dez anos do que na noite anterior. Envergava as mesmas roupas conservadoras — e pareciam completamente
gastas. Olhou para cima por breves instantes no momento em que entrámos, mas depois voltou a concentrar a atenção na caneca de café que bebericava com uma calma deliberada.
Nem ela nem Rachel prestaram qualquer atenção ao rapaz encolhido a um canto, ao lado da banca. Não lhe conseguia ver a cara porque estava de costas voltadas para todas nós.
Estava a baloiçar num ritmo interrompido pelos soluços ocasionais que lhe lançavam os ombros para a frente. Murmurava qualquer coisa, e nem os meus ouvidos conseguiam perceber
exatamente o que ele estava a dizer.
— Café? — perguntou Rachel, ignorando a minha pergunta.
— Não. — A comida que eu tinha ingerido enchia-me o estômago. Se lhe acrescentasse café, não tinha a certeza de que ela fosse manter-se lá.
Tirou uma caneca para si e verteu café de uma cafeteira de tamanho industrial pousada no balcão. Cheirava bem, baunilha francesa, pensei. O odor era relaxante, melhor do que
teria sido o sabor. Puxei um banco ao lado de Naomi, o mesmo onde me tinha sentado na noite anterior, e, relanceando novamente os olhos ao homem encolhido a um canto, perguntei:
— O que é que vos aconteceu?
Naomi olhou para mim e exibiu-me um ar de desprezo.
— Vampiros. O que é que lhe aconteceu a si?
— Vampiros — respondi. O ar de desprezo de Naomi encaixava de forma estranha no seu rosto e parecia não condizer com ela, todavia não a conhecia ao ponto de ter a certeza.
Rachel arrastou uma cadeira para o outro lado da mesa de modo a ficar de frente para mim e Naomi.
— Não descarregues nela. É amiga do Stefan, não te esqueças disso. Não é um deles.
Naomi voltou a olhar para a caneca e apercebi-me de que não estava de todo calma, estava naquele sítio que fica para lá do medo, onde nada do que se faça importa porque o
pior já aconteceu e não há nada que se possa fazer. Reconheci aquele olhar. É uma expressão que vejo muito em redor dos lobisomens.
Foi Rachel quem me contou o que tinha acontecido.
— Ao ver que o Stefan não tinha regressado ontem de manhã, a Joey — é uma forma abreviada de Josephine — decidiu ir embora enquanto podia. — Rachel não bebia o café, apenas
virava a caneca de um lado para o outro. — Depois de você se ter ido embora, ouvi a mota dela no caminho de entrada. O som do maquinão da Joey é inconfundível. — Afastou as
mãos da caneca e limpou-as às coxas. — Fui estúpida. Eu devia ter aprendido, sobretudo depois do Daniel. Mas era a Joey…
— A Joey é quem está aqui há mais tempo — informou Naomi quando se tornou evidente que Rachel não ia falar mais. — Ela já estava vinculada ao Stefan.
Notou a minha perplexidade, porque explicou:
— Isso quer dizer que ela já é quase um deles. Em tudo exceto na transformação propriamente dita. Quanto mais tempo permanecerem vinculados antes de morrer, maior a probabilidade
de renascerem. O Stefan é paciente, as pessoas dele ressuscitam quase sempre porque ele espera mais anos do que a maioria dos vampiros.
Estava a dizer-me tudo isto para não ter de continuar com a história.
— O Daniel?
Fez que sim com a cabeça.
— Ele estava vinculado, embora escassamente. Não acontece a todos nós, mas o Daniel ainda era novo de mais para que a transformação fosse certa. Foi um milagre ele ter sobrevivido.
O Stefan estava tão zangado. — Deu um gole no café e fez uma careta. — Detesto café frio. — Ainda assim deu mais um gole. — O Andre fez de propósito, sabe? Um daqueles jogos
estúpidos de competição. Tinha uma inveja terrível do Stefan porque a Marsilia gostava mais dele, e ao mesmo tempo ele amava o Stefan como se fosse um irmão. Portanto, quando
estava zangado, atacava um de nós. Os vampiros normalmente não dão muita importância aos elementos dos seus rebanhos. Não creio que o Andre tivesse noção do quanto o Stefan
ficaria zangado.
— O que aconteceu à Joey? — perguntei.
— Está morta — disse Naomi à caneca de café.
— Permanentemente morta — acrescentou Rachel. — Pensava que era ela que estava na mota. Tinha o capacete posto, e não deixa que ninguém, nem mesmo o Stefan, toque na sua máquina.
Quando finalmente me apercebi de que a condutora não era suficientemente alta para ser ela, tentei correr de volta para casa.
— Agarrou-a pelo braço? — sugeri. Não era um palpite difícil, considerando a braçadeira que usava.
Rachel assentiu com a cabeça.
— E tapou-me a boca para que eu não pudesse gritar. Nessa altura, apareceu um carro, um dos carros do ninho.
Como o que Andre conduzira a noite passada. Trabalhava neles de tempos a tempos em vez de fazer um pagamento em dinheiro ao ninho. Todos os negócios na zona de Tri-Cidades
que não são consórcios de grupos mais poderosos pagavam uma dada quantidade de dinheiro aos vampiros em troca de proteção. Foi assim que conheci Stefan. Ele tinha-me ajudado
a negociar a minha forma de pagamento. Em vez de dinheiro (que eu não tinha), pagava com trabalho — sobretudo na sua carrinha, embora também tratasse da manutenção dos carros
do ninho. Eram Mercedes e BMW, sedans grandes e pretos com vidros fumados — precisamente aquilo que se esperaria que um vampiro conduzisse.
— Abriram a mala, e pensei que me iam enfiar lá dentro, mas foi pior do que isso. Já tinham a Joey lá dentro. — Saltou abruptamente e saiu da cozinha a correr. Ouvi-a vomitar.
— Mataram a Joey, cortaram-lhe a cabeça para que ela nunca se viesse a tornar um deles. — Naomi falava calmamente, mas teve de pousar o café para não o entornar. — Disseram
à Rachel que tínhamos de ficar dentro desta casa até decidirem o que fazer connosco. Não tinham de matar a Joey para passar essa mensagem. Podiam simplesmente tê-la trazido
de volta, ou um deles podia tê-la convertido, tal como o Andre converteu o Daniel.
— A Rachel falou numa «ela». Era a Marsilia? — perguntei.
Naomi abanou a cabeça.
— Era a Professora. A Marsilia… O Stefan era o favorito dela. Não acredito que ela matasse um de nós.
— A Professora? — inquiri.
— O verdadeiro nome dela é Estelle. Faz-me lembrar a Mary Poppins versão malévola.
Conhecia a pessoa a quem se referia.
— Todos têm nomes entre eles — explicou. — O Stefan era o Soldado, o Andre é o Cortesão. O Stefan disse que tinha a ver com uma velha suspeita, a de que se se dissesse o nome
do mal, atraía-se a sua atenção. O Stefan não acreditava nisso, mas alguns dos vampiros mais velhos não usam nomes verdadeiros quando falam dos outros.
— Portanto a Estelle — disse o seu nome deliberadamente — agiu contra a vontade da Marsilia?
— Não. Bem, provavelmente, mas não contra as suas ordens.
— Estou a tentar perceber como é que o ninho funciona — disse-lhe. — Por isso é que vim aqui.
Rachel voltou a entrar na cozinha com um aspeto ainda mais pálido do que aquele que tinha.
— Pensava que andava à procura do Stefan?
Fiz que sim com a cabeça. Por certo não quereriam saber de Samuel e Adam.
— Eu penso… Eu penso que se passa algo mais do que apenas um vampiro transformado em feiticeiro. Pergunto-me, por exemplo, quem transformou o feiticeiro em vampiro.
— Acha que há outro vampiro envolvido? — perguntou Naomi.
— O Stefan disse que o feiticeiro era um vampiro recém-transformado. Passou-me pela cabeça que o criador dele pudesse estar a manietar o monstro. Mas na verdade não sei o
suficiente sobre vampiros para fazer uma suposição fundamentada.
— Eu sei — disse Naomi lentamente, endireitando-se na cadeira. Algo no seu rosto mudou e vi a mulher competente de ontem assumir o controlo.
— Posso ajudá-la, mas há um preço.
— Que preço? — perguntei.
De certo modo duvidei que quisesse que eu cantasse para ela; não tinha o sentido de humor do Tio Mike. E no momento em que esse pensamento me ocorreu, finalmente compreendi
que uma vez que o Tio Mike me tinha declarado sua convidada, os seres feéricos não me podiam fazer nenhum mal sem antes o desafiarem — razão pela qual a mulher gorda tinha
suspirado de desilusão quando o Tio Mike lhe dissera que eu era sua convidada, mesmo tendo-me condenado a cantar diante de todos.
Estava tão perdida nos meus pensamentos que quase não dei pela resposta de Naomi.
— Você tem ligações aos lobisomens. Quero que peça ao Alfa que interceda por nós. Se o Stefan estiver morto, nós também estamos. A Marsilia vai distribuir-nos pelos rebanhos
dos outros vampiros, que nos vão aprisionar até à morte.
— Todos os outros vampiros matam a sua… — Quase disse «comida» e não me ocorria nenhuma forma mais diplomática de dizê-lo, portanto simplesmente parei de falar.
Ela abanou a cabeça.
— Não é de propósito, mas a maior parte deles não tem o controlo do Stefan. Mas nós pertencemos ao Stefan. Isso significa que os truques mentais deles não vão funcionar tão
bem connosco, e aqueles entre nós que estão vinculados como a Joey… Quando alguém vinculado é transformado por alguém a quem não está vinculado, coisas estranhas acontecem.
Ouvi pessoas a dizer que foi essa a razão pela qual o Stefan nunca foi devidamente subserviente em relação à Marsilia, porque estava vinculado a outro vampiro. Eles não nos
vão querer manter vivos por muito tempo.
— Portanto se o Stefan estiver permanentemente morto…
Sorriu-me tristemente.
— Estamos todos.
— E acredita que os lobisomens podiam fazer alguma coisa em relação a isso?
Anuiu com a cabeça.
— A Marsilia está em dívida para com eles. Este feiticeiro é um vampiro, o que faz dele responsabilidade da Marsilia. Quando os dois lobisomens se juntaram à perseguição,
tornaram-se responsabilidade dela. Considerando que um ficou ferido e o outro… — Encolheu os ombros expressivamente. — Se o vosso Alfa nos pedir como forma de compensação,
ela dá-nos a ele.
— E as preocupações em relação ao vosso silêncio? — perguntei.
— Se nós pertencermos aos lobisomens, o nosso silêncio torna-se problema deles.
— Vou falar com os lobisomens — prometi. — Mas eu não tenho muita influência. — Especialmente se Adam e Samuel também estivessem mortos. Conceber essa ideia tornou-me a respiração
difícil, por isso afastei-a. — Fale-me dos vampiros e do modo como o ninho opera.
Naomi concentrou-se visivelmente, e quando falou soou como a professora que aparentemente fora em tempos.
— Vou começar pelo geral e depois parto para o particular, pode ser? Decerto compreenderá que os aspetos gerais não explicam as variações. Só porque a maior parte dos vampiros
segue este padrão, isso não quer dizer que todos o façam.
— Está bem — disse-lhe, desejando ter comigo um bloco para poder tirar notas.
— Um vampiro gosta de manter víveres à mão, por isso vive com um grupo pequeno de humanos, normalmente entre três e sete. Três são suficientes para lhe dar alimento durante
um mês antes de morrerem, sete são suficientes para seis meses, porque se os vampiros se alimentarem de forma ligeira de cada uma das suas presas, elas duram mais tempo.
— Em Tri-Cidades não desaparecem quarenta pessoas por mês — protestei. — E eu sei que a Marsilia tem mais de dez vampiros.
Naomi sorriu sombriamente.
— Eles não caçam no próprio território. O Stefan encontrou-me em Chicago, onde era professora da Universidade Northwestern. A Rachel é de Seattle. Acho que a única pessoa
entre nós encontrada em Tri-Cidades foi o Daniel, e ele estava a viajar à boleia desde o Canadá.
Por uma razão qualquer, o facto de ela ter falado de Daniel fez-me relancear os olhos à zona da banca, mas algures durante a nossa conversa o rapaz devia ter saído. Quando
pensei sobre isso, apercebi-me de que há já algum tempo não o ouvia. Incomodou-me o facto de não o ter ouvido sair.
— Então os vampiros têm de reabastecer continuamente os seus rebanhos?
— A maioria, sim — respondeu Naomi, acenando com a cabeça. — O Stefan, como é do seu conhecimento, faz as coisas de maneira diferente. Aqui nesta casa vivemos catorze pessoas,
e talvez mais uma dúzia que aparece ocasionalmente. O Stefan normalmente não mata a sua presa.
— O Tommy — interveio Rachel numa voz fraca.
Naomi fez um gesto de desdém com a mão.
— O Tommy está doente, de qualquer das formas. — Olhou para mim. — Quando os seres feéricos vieram a público, o Stefan começou a preocupar-se com as mesmas coisas que levaram
os seres feéricos a revelar-se ao público. Disse ao ninho, e ao conselho dirigente dos vampiros, que já não podiam viver da mesma maneira e esperar sobreviver. Ele já vinha
mantendo um rebanho grande porque não matava os seus subordinados. Ele tem a reputação de ser bondoso. Disseram-me que a Marsilia acha que a preocupação que tem em relação
a nós é «simpática». — Lançou-me um olhar irónico. — Começou a fazer experiências. A procurar formas por intermédio das quais os vampiros podiam beneficiar a raça humana.
Encontrou-me a morrer de leucemia e ofereceu-me uma oportunidade de viver.
Juntei alguns dados na minha cabeça e franzi-lhe o sobrolho.
— A Rachel disse-me que você era professora e que ele a encontrou mais ou menos na altura em que os seres feéricos vieram a público. Que idade é que você tinha?
Sorriu.
— Quarenta e um. — Isso significava que agora estaria na casa dos sessenta. Não tinha aspeto disso. Não parecia muito mais velha do que eu. — O Stefan já sabia que a longevidade
era algo que ele podia oferecer: uma das crianças vinculadas a ele pertencia-lhe há mais de um século antes de outro vampiro a ter matado.
— Como é que alimentar um vampiro faz com que se viva mais tempo? — perguntei.
— É a troca de sangue — interveio Rachel. Colocou um dedo nos lábios e lambeu-o sugestivamente. — Ele tira e depois devolve um bocado. Desde que comecei a servir de alimento
para o Stefan, tenho a capacidade de ver no escuro. Até consigo dobrar um ferro de desmontar pneus. — Olhou-me para ver como é que eu reagia à sua revelação.
Chiça, pensei intensamente e ela franziu-me o sobrolho, como se a minha reação a tivesse desapontado. Talvez estivesse à espera que eu ficasse mais horrorizada — ou intrigada.
— E a minha leucemia tem vindo a perder força desde 1981 — acrescentou Naomi prosaicamente. — A Joey dizia que sempre teve alguns poderes paranormais, mas depois de se ter
tornado propriedade do Stefan adquiriu a capacidade de fazer as coisas mexerem-se sem tocar nelas.
— Não muito — disse Rachel. — A única coisa que ela conseguia fazer era mexer uma colher em cima de uma mesa.
— Então os vampiros conseguem curar doenças? — perguntei.
Naomi abanou a cabeça.
— Quando são doenças relacionadas com o sangue, os vampiros são uma grande ajuda. Coisas como depranocitose e uma série de coisas menos conhecidas. O Stefan teve algum sucesso
com algumas das doenças auto-imunes, como a esclerose múltipla e o VIH. Excetuando a leucemia, contudo, o Stefan descobriu que não podia ajudar pacientes com cancro, nem tão-pouco
pacientes com SIDA em fase adiantada, como o Tommy.
— Então o Stefan estava a tentar criar um vampiro politicamente correto? — questionei. A ideia era espantosa. — Parece que já estou a ver as manchetes: Vampiro Caluniado Apenas
Quer Salvar Pessoas. Ou melhor ainda: Herdade dos Vampiros — Venha ao nosso moderno complexo comunitário. Curaremos os seus males, pô-lo-emos mais forte e dar-lhe-emos vida
eterna.
— Venha almoçar connosco — contribuiu Rachel com um sorriso rasgado.
Naomi lançou-me um olhar sarcástico.
— Não me parece que ele seja assim tão ambicioso. E deparou com problemas.
— A Marsilia?
— Hum. — Naomi parecia pensativa. — Durante muito tempo, a Marsilia era mais uma testa-de-ferro do que uma líder. O Stefan disse que ela andava mal-humorada por ter sido exilada.
Depois do inverno passado, isso começou-se a tornar mais evidente. Ele tinha esperança de que ela o apoiasse nos seus esforços. Tinha esperança de que ela pudesse convencer
alguns dos outros a um tratamento mais humano dos seus rebanhos.
— Mas…? — comecei.
— Mas existem muitos problemas relacionados com o que o Stefan está a tentar fazer. Em primeiro lugar, não são muitos os vampiros que têm capacidade financeira para sustentar
tantas pessoas como ele, e se formos menos de doze começamos a morrer. E, além disso, a maioria dos vampiros não consegue controlar tantas pessoas como o Stefan. Não há muitos
vampiros capazes de fazer com que os seus rebanhos os amem. — Olhou de maneira contundente para Rachel enquanto dizia a última frase.
— O Stefan diz que o maior problema é o autocontrolo — disse Rachel, ignorando Naomi. — Os vampiros são predadores. Eles matam coisas.
Naomi acenou com a cabeça.
— Muitos deles optam por não se controlar, dizem que lhes arruína o prazer da refeição. Mas todos eles perdem o controlo ocasionalmente quando se estão a alimentar. Incluindo
o Stefan. — Por instantes, vi-lhe uma centelha de terror nos olhos, porém baixou as pálpebras e fê-la desaparecer. — Quanto mais tempo uma pessoa pertencer a um vampiro, mais
difícil se torna para o vampiro não matar essa pessoa. O Stefan diz que com os vinculados a ânsia de matar é mesmo muito forte, e que só piora com o tempo. Ele costumava mandar
a Joey para junto da família em Reno durante temporadas de meses. A ânsia afeta todos os vampiros, não apenas aquele a que a pessoa está vinculada. Foi por esse motivo que
o Stefan não matou o Andre imediatamente. O Daniel estava vinculado, podia ter sido acidental.
— Os rebanhos do Andre não duram muito tempo — explicou-me Rachel. — Ele nunca criou um vampiro, excetuando o Daniel, porque os mata antes da altura.
Não sei o que viu no meu rosto, apenas a ouvi começar a falar rapidamente — algo para explicar que Andre não era mau.
— … não como a Estelle ou alguns dos outros, que gostam de brincar com a comida deles.
Mas eu não estava a prestar-lhe atenção, estava a olhar para o rosto raiado de lágrimas de Daniel. Só o tinha visto daquela vez, e reconhecia-lhe mais o cheiro do que os traços.
Estava atrás de Rachel, de olhos postos em mim e a sussurrar. Demorei alguns segundos até perceber que ele era a pessoa que eu vira encolhida ao lado da banca. Na altura não
lhe tinha reconhecido o cheiro, mas os mortos nem sempre são detetáveis por todos os meus sentidos.
Depois compreendi o que estava a dizer e parei de me preocupar com o motivo pelo qual não me tinha apercebido de quem era na primeira ocasião em que o vira.
— Ele comeu-me — sussurrava numa voz discretamente nervosa. — Ele comeu-me. — Vezes sem conta.
— Onde? — perguntei, pondo-me de pé. — Onde é que ele está, Daniel?
Mas era inútil. Daniel não era uma Sra. Hanna, que tinha morrido calmamente e prosseguido com a sua habitual rotina. Alguns fantasmas têm assuntos urgentes a tratar — passar
nalgum sítio por uns minutos para deixar uma última mensagem de amor, ou de raiva, a alguém importante. Alguns deles, especialmente aqueles que morreram de formas traumáticas,
são apanhados no momento da sua morte. Esses são os mais comuns — como a quinta mulher de Henrique VIII, Catarina Howard, que corre aos gritos pelos corredores da Torre de
Londres.
— Daniel? — perguntei, embora a sua falta de reação me tivesse refreado alguma da urgência.
Rachel tinha parado de falar e pulado do banco, e estava agora de olhos cravados em Daniel. Naomi fitava-me.
Desvaneceu-se passado um momento, e mesmo depois de deixar de o ver a sua voz persistia.
— Você viu-o? — sussurrou Rachel.
— Isso é uma artimanha cruel — disparou Naomi, virada para mim.
Olhei-a.
— Vivem com vampiros e não acreditam em fantasmas? — perguntei.
— O Daniel está morto — murmurou Rachel.
Assenti com a cabeça. Perguntei-me como é que um vampiro se podia transformar em fantasma — ele não estava já morto? Começava a ficar mordaz por falta de sono.
Naomi voltou-se para a rapariga.
— Rachel…
— Eu também o vi — disse de forma quase impercetível. — Só por instantes, mas era ele. Se o Daniel estiver morto… O Stefan não ia permitir que nada lhe acontecesse, não se
estivesse vivo. — Olhou em volta de modo um tanto descontrolado e em seguida abandonou a cozinha. Ouvi os seus passos acelerados escada acima.
— O que é que ele lhe disse? — Não conseguia perceber, pelas suas palavras, se Naomi acreditava em mim ou não, mas na verdade isso não era importante.
— Nada. — Decidi não partilhar o que ele tinha dito. Não ia ajudar ninguém aqui presente, e não me tinha parecido que Rachel o ouvira. Levantei-me e abri armários ao acaso
até encontrar um copo. Enchi-o com água e bebi, fingindo que a minha garganta estava seca por ter sede, não por eu estar assustada. Será que o feiticeiro tinha mesmo comido
Daniel?
Indesejada, a recordação de Littleton a matar a mulher no hotel atingiu-me como um flashback avassalador: visão, cheiro e som. Apenas por instantes, mas durante esses instantes
estava de regresso ao quarto de hotel. Não devo ter agido de forma estranha, porque quando me virei novamente para Naomi ela não estava a olhar para mim como alguém que olhasse
para uma pessoa que tinha gritado. Pousei o copo cuidadosamente no balcão.
— Se os vampiros vivem nos seus rebanhos — disse, orgulhosa do meu tom constante —, quem é que vive no ninho?
— Só os vampiros mais fortes é que conseguem viver sozinhos e sobreviver unicamente à base de sangue humano. Todos os outros vivem no ninho. São o ninho da Senhora — explicou-me
Naomi passado um momento.
Percebi o esquema.
— Ela alimenta-se dos vampiros?
Naomi fez que sim com a cabeça.
— Dá-lhes pouco, muito pouco, sangue em troca. Sem esse sangue, os vampiros mais fracos morreriam, e só a Senhora é que pode alimentar outros vampiros e alimentar-se deles.
Ela mantém humanos lá, para servirem de alimento a todos eles, mas sem ela, os vampiros menores morreriam.
— Pode alimentar e alimentar-se deles? — questionei. — Se existe uma regra que o proíbe, isso deve querer dizer que ela ganha alguma coisa ao alimentar-se de vampiros.
— Sim. Não sei ao certo o que é. Força e poder, acho. E a capacidade de limitar as ações mesmo daqueles vampiros que não criou diretamente. Ela criou o Stefan e, acho, o Andre.
Mas a Estelle e a maior parte dos outros não lhe pertencem. Quando deixou de prestar atenção ao ninho, o Stefan e o Andre geriram as coisas por ela. Mas alguns dos vampiros
mais velhos tornaram-se desobedientes.
— A Estelle e o Bernard — sugeri, lembrando-me do homem no fato elegante.
Naomi acenou afirmativamente.
— Os quatro, o Stefan, o Andre, a Estelle e o Bernard são os únicos vampiros suficientemente fortes para viver fora do ninho. O Stefan diz que assim que são capazes de viver
sem se alimentarem da Senhora, os vampiros começam a tornar-se territoriais, por isso são mandados para fora do ninho para arranjarem os seus próprios rebanhos. — Fez uma
pausa. — Na verdade são cinco. O Mago vive sozinho.
— O Mago? — perguntei.
Fez que sim com a cabeça.
— O Wulfe. Você já o viu porque o Stefan disse que ele estava presente no julgamento. Parece mais novo do que o Daniel e tem cabelo loiro quase branco.
O rapaz que tinha manejado a magia na cadeira.
— Enquanto a Marsilia não estava a prestar atenção, a Estelle e o Bernard conseguiram criar alguns vampiros novos e ficaram com eles.
— Andam a alimentar-se dos vampiros novatos — disse no seguimento da sua narração. — Isso dá-lhes um poder que de outra forma não teriam.
— Pois. Dessa parte não tenho a certeza.
— OK.
— Existe uma razão para que a Marsilia não lhes consiga tirar os vampiros novatos. Eu acho que é porque depois de os vampiros novatos terem trocado sangue com o seu criador
algumas vezes, vão acabar por adoecer ou talvez morrer sem o sangue desse vampiro em particular. Os vampiros reproduzem-se muito lentamente, portanto são muito cuidadosos
com os novatos, mesmo que isso signifique que o Bernard e a Estelle adquiram um poder que a Marsilia não pode permitir que eles tenham. Portanto, existe dissensão na hierarquia.
O Stefan acreditava que a Marsilia estava a perder o controlo sobre o ninho. Ninguém está em rebelião declarada, mas a Senhora também não está com o controlo absoluto.
— O que é que a entrada do feiticeiro em cena provoca em termos da posição dela? — perguntei, e ela sorriu-me como uma aluna que tivesse chegado à conclusão acertada.
— Anda um vampiro pela cidade a causar problemas — disse. — É uma questão que cabe à Marsilia resolver, mas este provou ser mais forte do que o Stefan. Os vampiros… quanto
mais velhos ficam mais medo têm da morte. O Stefan disse-me que achava que a razão pela qual ela o tinha enviado apenas a ele atrás do feiticeiro não tinha a ver com uma forma
de o castigar, mas com o facto de não poder enviar mais ninguém, uma vez que não iriam. De entre os cinco vampiros mais poderosos, só o Stefan e o Andre é que são verdadeiramente
dela.
Então ela estava de facto desesperada quando me procurou.
— Por que é que a própria Marsilia não vai atrás dele? Ela é a Senhora e a mais poderosa de todos os vampiros.
Naomi contraiu os lábios.
— O seu Alfa ia atrás de uma criatura tão perigosa tendo ele guerreiros para lutar em vez dele?
— Sempre o fez — repliquei. — Um Alfa que dependa dos outros para travar as batalhas dele não permanece Alfa durante muito tempo.
— Ele não está morto. — Virei-me ao som de uma voz masculina atrás de mim.
O homem que preenchia a entrada aparentava estar algures na casa dos cinquenta, com uma força latente escondida debaixo da sua de certo modo engrossada região média. Relanceei
os olhos às suas mãos e fiquei surpreendida ao vê-las encrespadas por toda uma vida de trabalho duro. Tal como eu, este era um homem que tinha ganhado a vida com as mãos.
— Quem é que não está morto, Ford? — perguntou Naomi, mas ele ignorou-a por completo.
Com os seus olhos brilhantes cravados nos meus, deu um passo em frente. Não conseguia desviar-me do seu olhar.
— Ele não está morto — disse intensamente. — Se estivesse morto, o limiar teria desaparecido. Eu estava aqui quando o Andre não o conseguiu atravessar. Só o Stefan fazia disto
uma casa. Eu saberia se ele estivesse morto.
— Para com isso, Ford — disse Naomi bruscamente, e o cheiro do medo dela distraiu-me do olhar brilhante de cristal líquido de Ford.
Pestanejei e afastei os olhos. Ainda era de dia, portanto Ford não podia ser um vampiro — mas tinha para comigo que era a coisa mais próxima disso.
Agarrou-me pelo braço e puxou-me do banco com um esforço menor do que seria de esperar. Estava habituada a homens grandes — Samuel tinha mais de um metro e oitenta e cinco,
mas este homem fez-me sentir pequena. No entanto não sabia lutar, porque não tive a menor dificuldade em libertar-me dele.
Recuei dois passos e Naomi colocou-se entre nós.
— O Daniel morreu — disse-lhe. — Eu própria vi o fantasma dele. O Warren, um dos lobisomens que estava com o Stefan, ficou gravemente ferido e foi abandonado. Não sei como
é que está o nosso outro lobo, nem sei como é que está o Stefan. Tenciono descobrir.
Naomi aproximou-se dele e afagou-lhe o peito.
— Pronto. Está tudo bem. — O seu tom tranquilizante era muito parecido com o que Adam usava com os seus lobos novatos quando estes ficavam perturbados. — Talvez seja melhor
ir embora, Mercedes — disse no mesmo tom relaxante. — O Ford é um dos vinculados.
E, pelo que estava a ver, isso significava mais do que ser capaz de se tornar vampiro depois de morrer. A luminosidade nos seus olhos não era um acaso genético qualquer, mas
a precursora das gemas cintilantes que tinha visto os vampiros exibir em estados de fúria e cobiça.
Agarrou Naomi impacientemente, penso que para a atirar para o lado de modo a chegar a mim. No entanto ela inclinou a cabeça e presenteou-o com a parte lateral do pescoço.
Ele hesitou, claramente atraído pela visão da sua pulsação.
Se ela estivesse simplesmente com medo, teria permanecido ali e tentado ajudá-la — mas o intenso desejo que tinha por Ford era desconfortavelmente forte. Voltei-me e saí enquanto
ele se curvava sobre o pescoço dela.
Estava a um quilómetro da casa de Stefan quando finalmente respirei fundo. Tinha aprendido muito lá, mais do que esperava — e nada que me pudesse ajudar a encontrar Littleton.
Não fazia ideia de onde se situavam os rebanhos dos outros vampiros, e mesmo que fizesse, tinha dúvidas de que o feiticeiro estivesse a viver com o seu criador — assumindo
que o criador de Littleton era um dos vampiros de Marsilia.
Havia uma série de vampiros que podiam ter criado o feiticeiro para causar problemas a Marsilia. Ou podia ter-se dado o caso de um vampiro de outro ninho se ter apercebido
do sarilho em que ela estava metida e enviado o feiticeiro para abrandar o ninho tendo em vista um golpe hostil.
Tudo isso dizia respeito a Marsilia e não a mim. Precisava de descobrir onde estava o feiticeiro.
Estava completamente envolvida em especulações inúteis, e só quando conduzia o Rabbit através da tortuosa descida das colinas que desembocava na planície aluvial de Kennewick
é que me apercebi de que tinha percorrido metade do caminho até minha casa.
Talvez Warren soubesse o que tinha levado Adam e Samuel a irem atrás de Littleton. Dirigi-me para a casa de Adam. Só tinham passado algumas horas mas os lobisomens recuperam
muito depressa assim que readquirem a capacidade de transformação.
O lobisomem com quem tivera de discutir a noite passada estava novamente à porta, mas baixou os olhos e abriu-ma sem contestação. Havia alguns membros do bando espalhados
pelos sofás na sala de estar, mas ninguém com quem simpatizasse particularmente.
— Mercy?
Jesse estava na cozinha, com uma chávena de chocolate quente entre as mãos.
— O teu pai ou o Samuel telefonaram? — perguntei, embora a resposta fosse óbvia pela cara que ostentava.
Abanou a cabeça.
— O Darryl disse que andavas à procura deles. — O seu tom colocou-me uma chusma de perguntas. Em que tipo de perigo estava o pai dela envolvido? Por que razão estava eu à
procura dele e não o bando todo?
— Como é que está o Warren? — perguntei porque não tinha nenhumas respostas que quisesse contar à filha de Adam.
— Ainda está mal — informou-me. — O Darryl está preocupado com a possibilidade de ele não se safar porque não está a curar-se como devia, e não come.
— Preciso de ver se consigo falar com ele.
Deixei Jesse com o seu chocolate quente e as suas preocupações.
A porta de acesso à cave estava fechada, mas abri-a sem bater. Qualquer uma das pessoas que estava no quarto, com a possível exceção de Kyle, ter-me-ia ouvido a falar com
Jesse. Os olhos escuros de Darryl encontraram os meus a partir da cadeira de baloiço em que estava sentado. Mantive-me no limiar da porta e olhei-o fixamente.
— Mercy? — A voz de Kyle era tensa e soava quase tão cansado quanto eu me sentia.
— Só um momento — murmurei sem tirar os olhos de Darryl. Não sei por que motivo sentia que tinha de me desafiar agora, mas não queria estar a receber ordens dele hoje.
Finalmente Darryl olhou para baixo. Foi um gesto mais desdenhoso do que submisso, mas por mim tudo bem. Desviei a minha atenção dele sem dizer uma única palavra e caminhei
em direção à grade contra a qual Kyle ainda estava inclinado.
— O que se passa? — perguntou Kyle.
— Malditos jogos de lobisomens. — Aninhei-me em frente à porta da jaula. Warren tinha regressado à sua forma humana. Estava encolhido de costas voltadas para nós. Alguém tinha
atirado um cobertor para cima dele. — O Darryl só está um bocadinho confuso.
Darryl rosnou.
Não olhei para ele mas senti os meus lábios moverem-se num trejeito de solidariedade.
— Seguir um coiote punha qualquer lobo irritado — disse. — Ficar parado quando há coisas que precisam de ser feitas é pior. Se o Darryl fosse um lobo menor, tinha-me matado
quando entrei no quarto.
A rosnadela de Darryl evoluiu para um sorriso honesto.
— Comigo não corres qualquer perigo, Mercy. Por muito confuso que eu possa estar.
Arrisquei um soslaio e relaxei porque Darryl tinha perdido o ar de prontidão preguiçosa e simplesmente parecia exausto.
Sorri-lhe.
— O Warren consegue falar?
Darryl abanou a cabeça.
— O Samuel disse que achava que ia demorar uns dias. Aparentemente tinha ferimentos na garganta. Não sei que efeito é que a transformação teve no prognóstico dele. Não come.
— Ele falou enquanto estava a dormir — disse-me Kyle.
Estava a observar Darryl sem esconder o seu desagrado. Darryl sempre tivera um problema com Warren, mesmo antes de ter descoberto que Warren não lhe era subserviente. Os lobos
dominantes ficavam sempre irritadiços na presença uns dos outros, a menos que um deles fosse o Alfa. Isso significava que Darryl tendia a ser indecentemente autocrático quando
Warren estava por perto.
— O que é que ele disse? — disparou Darryl, lançando-se abruptamente para a frente na cadeira.
— Nada que lhe interesse — replicou Kyle, pouco preocupado com o perigo de irritar um lobisomem.
Eu estava mais interessada na forma como os ombros de Warren se comprimiam.
— Vocês vão perturbá-lo se começarem a discutir — disse. — Darryl, o Bran entrou em contacto contigo?
Acenou afirmativamente, ainda com a atenção concentrada em Kyle.
— Ele vai aparecer aqui. Tem uns assuntos para acabar de tratar por isso só chega à noite.
— Ainda bem — repliquei. — Quero que vás até lá acima comer qualquer coisa.
Olhou para mim, surpreendido.
Sorri.
— Um lobisomem com fome é um lobisomem rabugento. Vai comer alguma coisa antes que comas alguém.
Pôs-se de pé e esticou-se. A rigidez do seu movimento disse-me que estava naquela cadeira há muito tempo.
Esperei que se fosse embora e depois abri a porta da cela.
— Passei a maior parte das últimas horas a ouvir o Darryl dizer-me que isso não era boa ideia — comentou Kyle.
— Provavelmente não é — concordei. — Mas o Warren deu-me ouvidos hoje de manhã.
Sentei-me na ponta do colchão e puxei o cobertor para que os pés de Warren ficassem bem cobertos. Depois avancei entre a parede e Warren.
A sua cara estava a escassos centímetros da minha e vi as suas narinas maltratadas agitarem-se um tudo-nada, inalando para que ficasse a saber que era eu. As horas que se
tinham passado desde a última vez que o vira não lhe tinham melhorado minimamente o aspeto, as suas nódoas negras tinham escurecido e os lábios e o nariz estavam mais inchados.
Darryl tinha razão: devia estar a sarar mais depressa.
Porém, Kyle dissera que ele tinha falado.
— Está tudo bem — disse a Warren. — Só estamos aqui o Kyle e eu.
As suas pestanas mexeram-se e um dos olhos abriu-se um nadinha, fechando-se logo a seguir.
— O Adam e o Samuel estão desaparecidos — disse-lhe. — O Daniel está morto.
O olho abriu-se um pouco e produziu um ruído suave.
— Ele estava vivo na última vez que o viste? — Uma deslocação do corpo que podia significar um assentimento. Estiquei o braço e toquei-lhe numa parte da bochecha que parecia
intacta e ele relaxou infinitesimalmente. Entre os lobos, a linguagem corporal tem a capacidade de me dizer quase tanto como as palavras.
— Disseste ao Adam e ao Samuel onde podiam encontrar o Littleton? — perguntei.
O batimento cardíaco de Warren acelerou e mudou de posição na cama. O olho abriu-se novamente e uma lágrima de pura frustração foi derramada.
Toquei-lhe nos lábios.
— Pronto. Pronto. Tu não. Estou a perceber. Mas alguém lhes disse.
Olhou-me fixamente, atormentado.
— Sabes onde é que eles foram?
— O Samuel recebeu um telefonema ontem à noite antes de terem saído — disse Kyle.
Estupefacta, levantei a cabeça para olhar para Kyle, que estava ajoelhado no chão do outro lado da cama de Warren.
— Por que é que não disseste a ninguém?
— O Darryl não perguntou — replicou. — Partiu do pressuposto de que eu tinha estado a dormir o tempo todo, e além disso não estava com disposição de me ouvir quando tentei
falar com ele. Devia ter-te dito mais cedo, mas, para te ser bastante franco, estava um bocado distraído.
Voltei a relaxar na cama. Malditos lobisomens. Presumo que nunca sequer tenha ocorrido a Darryl prestar atenção a um humano. Darryl era doutorado, que diabo. Era de esperar
que fosse suficientemente inteligente para prestar atenção a um homem com um cérebro que lhe permitia ser um dos melhores advogados do Estado, um advogado que, demais a mais,
se tinha formado na universidade da Ivy League.
— Se achas que para um humano é frustrante estar junto deles, devias tentar ser coiote — disse-lhe. — Então, o que é que o Samuel disse? — Não tinha grandes esperanças de
ouvir alguma coisa útil. Se ele tivesse dito para onde iam, por exemplo, Kyle não teria permitido que o orgulho o impedisse de dar a Darryl a informação.
— O Samuel não teve oportunidade de dizer nada a quem quer que tenha telefonado. Telefonaram, disseram algumas frases e desligaram. O Samuel agarrou no Adam e disse «Vamos».
Lancei-lhe um olhar pesaroso.
— Também te ignoraram.
Desta vez sorriu-me, um sorriso cansado.
— Não estou acostumado a ser ignorado.
— Também fico aborrecida quando me fazem isso. — Voltei a concentrar a atenção em Warren. — Ouviste o que a pessoa que telefonou disse?
Não esperava que tivesse ouvido, portanto a sua quietude apanhou-me de surpresa.
A sua boca maltratada tentou formular uma palavra. Escutei atentamente, mas foi Kyle, inclinado sobre a cama, quem a percebeu.
— Armadilha?
— Warren, eu sei que os lobisomens se têm de manter longe do Littleton — disse-lhe. — Ele telefonou-lhes e induziu-os a irem ter com ele?
Mexeu a cabeça o suficiente para compreender que se tratava de um gesto afirmativo.
— Conseguiste perceber onde? — Permaneceu imóvel. — Warren, não vou permitir que nenhum dos lobos se aproxime dele. Nem eu nem o Kyle vamos dizer ao bando onde eles estão,
não até que o Bran chegue. Só vou dizer aos vampiros. Aliás, é um problemas deles.
Tentou, mas nem eu nem Kyle conseguimos entender o que dizia. Finalmente Kyle falou:
— Ouve, obviamente não é um sim nem um não. Warren, meu querido, ouviste parte do que ele disse?
Claramente exausto por causa do esforço investido, Warren acenou afirmativamente. Relaxou e disse mais uma coisa.
— Igreja? — perguntei, e constatei pela cara de Warren que tinha acertado. — Só isso? — Toquei-lhe na face enquanto relaxava. — Volta a dormir, Warren. Vamos certificar-nos
de que o Bran saiba de tudo.
Deu um suspiro tremente e caiu na completa inconsciência.
— Kyle, quando o Bran chegar contas-lhe o que acabámos de ouvir? Deve aparecer hoje pela noite dentro ou amanhã bem cedo. — Saí da cama de Warren com o máximo de cuidado.
— Está bem. O que é que vais fazer?
Esfreguei a cara. Tinha sido necessária muita força de vontade para sair daquela cama quando a totalidade do meu corpo se queria encolher ao lado de Warren e dormir.
— Se conseguir descobrir onde está o Littleton antes de anoitecer, talvez consiga matá-lo. — Com o kit de matar vampiros guardado na mala do meu carro.
— Posso ajudar?
— Só ficando aqui com o Warren. Vê se consegues convencê-lo a comer quando se voltar a mexer.
Kyle olhou para Warren e no rosto dele não havia o menor resquício do seu habitual humor sardónico quando disse:
— Quando encontrares o filho da mãe que fez isto, mata-o e faz com que doa.
Obriguei-o a levantar-se e a sair da cela comigo. Não achava que Warren lhe pudesse fazer mal, mas não estava disposta a correr esse risco.
O meu telemóvel tocou. Era Tony.
— Não vais acreditar nisto — disse. — E não sei se ajuda.
— O que é? — perguntei.
— Os incidentes durante o dia, com alguns elementos atípicos, são em Kennewick. Há um padrão amplo que parece centrar-se em redor do DPK.
— Da esquadra de polícia? — perguntei.
— Isso mesmo. Embora eu creia que também se pudesse facilmente centrar em redor da Escola Secundária de Kennewick, ou da tua oficina. Mas a esquadra de polícia fica mesmo
no meio.
— Quão amplo é o padrão?
— Cerca de cinco, cinco quilómetros e meio. Alguns dos incidentes são do outro lado do rio, em Pasco. Há elementos atípicos. O nosso especialista disse-me que são em número
suficiente para serem considerados significativos. Algumas em Richland, Benton City e Burbank. Isto ajuda?
— Não sei — disse-lhe. — Talvez. Obrigada, Tony. Fico a dever-te alguns favores por isto.
— Simplesmente põe fim a esta coisa.
— Darei o meu melhor.
Cruzei-me com Darryl no cimo das escadas.
— Tinhas razão — disse-me. — A comida ajudou.
— Hum — pronunciei. — O Samuel recebeu um telefonema a noite passada. No entanto, o Warren não sabe onde eles foram.
— O Warren está desperto e a falar?
Abanei a cabeça.
— Não lhe chamaria propriamente falar, e está a dormir outra vez. Foi o Kyle quem ouviu o telefonema. Coisa que pelos vistos ele te tentou contar. — Esperei que apreendesse
as minhas palavras. — Devias ponderar a possibilidade de dar ouvidos ao Kyle — aconselhei-o em tom suave, e, em seguida, para o livrar, perguntei: — Sabes por que é que o
facto de eu ser capaz de falar com fantasmas poderia assustar os vampiros?
Grunhiu negativamente.
— Não estou a ver como é que isso podia ajudar. Segundo ouvi dizer, os fantasmas evitam o mal. — Passou por mim sem me tocar.
Não creio que se tenha sequer apercebido do que me tinha dado.
Os fantasmas não são pessoas. Independentemente de quão bem a Sra. Hanna conversava, ela não era mais do que uma memória da pessoa que tinha sido.
Fui tão estúpida.
Tinha-me dito que mudara a sua rotina e coisas que tais e a única coisa que me ocorreu foi quão triste isso era, porque sem os seus hábitos provavelmente iria esfumar-se rapidamente.
Não me tinha perguntado o porquê de ter alterado a sua rotina. Os fantasmas, os fantasmas padrão, simplesmente não fazem isso. Alguém lhe tinha dito para o fazer, dissera-me
— não me lembrava quem, apenas me recordava que era o nome de um homem. A rota dela passava por todas as zonas de Kennewick. Se o feiticeiro estava em Kennewick, é possível
que ela se tivesse cruzado com ele.
Jesse levantou os olhos da mesa da cozinha enquanto eu corria pelas escadas.
— Mercy? Descobriste alguma coisa?
— Talvez — respondi ao mesmo tempo que me encaminhava para a porta. — No entanto, tenho de encontrar uma pessoa. — Olhei para o meu relógio. Oito e vinte e sete. Restava-me
hora e meia até ao anoitecer. Se o feiticeiro tivesse de esperar pela noite cerrada para despertar.
12
Desde que eu vivia em Tri-Cidades, a Sra. Hanna empurrava o seu carrinho de compras ao longo do mesmo percurso da aurora até ao anoitecer. Nunca a tinha seguido, mas vira-a
numa série de lugares, portanto tinha uma ideia muito clara da maior parte da sua rota. Todavia não fazia a menor ideia da alteração que fizera, portanto vi-me obrigada a
procurar em todo o lado.
Quando passei pela primeira igreja, encostei à berma da estrada, saquei de um bloco de notas que mantinha no carro e anotei o nome da igreja e a morada. Uma hora depois tinha
uma lista de onze igrejas, razoavelmente próximas do DPK, sendo que nenhuma delas tinha um letreiro flamejante a dizer FEITCEIRO A DORMIR AQUI. O Sol estava já muito baixo
e sentia o estômago apertado pelo medo.
Se estivesse enganada quanto ao facto de a Sra. Hanna ter alterado a sua rota para evitar Littleton, então tinha desperdiçado a última hora. Se estivesse certa, ainda assim
carecia de tempo.
Também se estavam a esgotar os sítios onde procurar. Encostei o carro ao lado da Escola Secundária de Kennewick e tentei pensar. Se a Sra. Hanna não tivesse mudado a sua rota,
seria mais fácil encontrá-la. Se não tivesse morrido seria ainda mais fácil. Estava a fiar-me na possibilidade de a ver, mas os fantasmas muitas vezes só se manifestam a alguns
sentidos: vozes incorpóreas, sopros frios ou simplesmente uma lufada de perfume.
Se não a encontrasse em breve, iria escurecer e teria de enfrentar Littleton durante o auge da sua força — tanto enquanto demónio como enquanto vampiro.
Parei no semáforo entre a Garfield e a 10ª. Era um daqueles semáforos que permaneciam no vermelho durante muito tempo, mesmo quando não havia nenhum trânsito em sentido contrário.
«Pelo menos não ia ter de enfrentar o Littleton sozinha depois de escurecer porque podia telefonar ao Andre.» Golpeei o volante com as mãos, impaciente com o sinal vermelho.
«Mas se não encontrar a Sra. Hanna antes do anoitecer, não a vou encontrar mais.» A Sra. Hanna à noite ia para casa.
Disse-o em voz alta porque não podia acreditar quão estúpida tinha sido. «A Sra. Hanna à noite vai para casa.»
Continuava a não haver trânsito em sentido contrário por isso pus o pé no acelerador, e, pela primeira vez na minha vida adulta, passei um sinal vermelho. A Sra. Hanna tinha
vivido num pequeno parque de caravanas ao longo da margem do rio, a leste da Blue Bridge, e demorei cinco minutos e três sinais vermelhos a chegar a essa zona. Também passei
esses sinais vermelhos.
Dei com ela a empurrar o carrinho no passeio ao lado do concessionário da VW. Estacionando o carro do lado errado da estrada, pulei para fora, refreando a ânsia de gritar
o seu nome. Os fantasmas assustados tendem a desaparecer.
Com isso em mente, não disse absolutamente nada quando a alcancei. Em vez disso, pus-me a caminhar ao seu lado durante um quarto de quarteirão.
— Que belo fim de tarde — disse ela por fim. — Acho mesmo que vamos ter uma mudança no tempo.
— Espero que sim. — Respirei fundo duas vezes. — Sra. Hanna, perdoe-me a indelicadeza, mas estava aqui a pensar nessa mudança que fez ao seu percurso habitual.
— Com certeza, querida — disse de forma ausente. — Como tem passado aquele seu rapaz?
— O problema está aí. Acho que ele se meteu num sarilho qualquer. Podia explicar-me uma vez mais por que é que passou na minha oficina a uma hora diferente?
— Oh, sim. Muito triste. O Joe disse-me que o caminho que eu normalmente fazia não era seguro. A nossa pobre Kennewick está a transformar-se numa cidade tão grande, não está?
É terrível quando uma mulher já não pode caminhar em segurança durante o dia.
— Terrível — concordei. — Quem é o Joe e onde é que ele não quer que você ande?
Parou o carrinho e sorriu-me simpaticamente.
— Oh, você conhece o Joe, querida. É o auxiliar da velha igreja congregacional desde sempre. Está muito transtornado com o que aconteceu ao seu edifício, mas também quem é
que consulta o auxiliar?
— Onde é que fica? — perguntei.
Fitou-me com um olhar de desconcerto estampado no rosto.
— Eu conheço-a, querida? A sua cara parece-me familiar. — Antes que eu pudesse formular uma resposta adequada, olhou para cima na direção do Sol que se punha. — Receio que
tenha de ir. Depois de escurecer não é seguro, sabe?
Deixou-me sozinha, postada diante do parque de caravanas.
«Igreja congregacional» — disse, correndo para o carro. Sabia que nenhuma das igrejas que anotara tinha a palavra «congregacional» exposta, mas também tinha uma lista telefónica
guardada no carro.
Não havia nenhum registo de uma igreja congregacional nas páginas amarelas, por isso virei para as páginas brancas e encontrei uma única listagem em Pasco, o que não ajudava
em nada. A rota da Sra. Hanna não ultrapassava o leito do rio.
Saquei do telemóvel e liguei para o número de Gabriel. Uma das suas irmãs mais novas tinha uma maluqueira por fantasmas. Se a mãe não estivesse presente e a deixassem começar,
contava histórias de fantasmas durante todo o tempo que passava a limpar o escritório.
— Olá, Mercy — respondeu. — Então, o que se passa?
— Preciso de falar com a Rosalinda sobre algumas histórias de fantasmas locais — disse-lhe. — Ela está por aí?
Fez-se uma pequena pausa.
— Está a ter problemas com fantasmas?
— Não, preciso de encontrar um.
Afastou a boca do telefone.
— Rosalinda, chega aqui.
— Estou a ver televisão, não pode ser a Tia? Ela ainda não fez nada hoje.
— Não é trabalho. A Mercy quer fazer-te umas perguntas.
Ouvi alguns pequenos ruídos enquanto Gabriel passava o telefone a Rosalinda.
— Estou, sim? — A sua voz mostrava-se muito mais hesitante quando estava a falar comigo do que quando estava a falar com o irmão.
— Disseste-me que no ano passado fizeste um trabalho para a escola sobre fantasmas locais, não disseste?
— Sim — respondeu com um pouco mais de entusiasmo. — Tive a nota máxima.
— Precisava de saber se ouviste alguma coisa sobre o fantasma de um auxiliar chamado Joe que trabalhava numa igreja. — Ele não era necessariamente um fantasma, pensei. Afinal
de contas, eu falava com a Sra. Hanna e não era fantasma. E mesmo que ele fosse fantasma, isso não significava que houvesse histórias sobre ele.
— Ah, sim. Sim. — Gabriel não tinha qualquer sotaque, mas as vogais claramente espanholas da irmã acrescentavam-lhe cor à voz à medida que se animava. — O Joe é muito famoso.
Trabalhou toda a vida a limpar a igreja, até ao sessenta e quatro anos, acho. Um domingo, quando o padre… agora chamam-lhe uma coisa diferente. Pastor, acho, ou ministro.
Seja como for, quando chegou para abrir a igreja, encontrou o Joe morto na cozinha. Mas ele ainda assim continuou lá. Falei com pessoas que costumavam frequentar essa igreja.
Disseram-me que às vezes havia luzes ligadas à noite quando não estava ninguém lá dentro. E que as portas se trancavam sozinhas. Uma pessoa disse-me que o viram na escadaria,
mas não sei se acredite nisso. Essa pessoa gostava de contar histórias.
— Onde é que fica? — perguntei-lhe.
— Não fica muito longe do nosso apartamento — respondeu. — Na 2ª ou na 3ª, a dois quarteirões da rua Washington. — Também não era longe da esquadra de polícia. — Fui lá para
tirar fotografias. Já não é uma igreja. Os paroquianos construíram um edifício novo e venderam o antigo a outra igreja há mais ou menos vinte anos. Depois foi vendida a outras
pessoas que tentaram fazer daquilo uma escola privada. Faliram, houve um divórcio e um deles, não me lembro se foi o marido ou a mulher, matou-se. Da última vez que passei
lá, a igreja estava vazia.
— Obrigada, Rosalinda — disse. — É exatamente isso que eu preciso de saber.
— Acredita em fantasmas? — perguntou. — A minha mãe diz que acreditar neles é um absurdo.
— Talvez seja — disse, não querendo contrariar a sua mãe. — Mas há pessoas que acreditam em toda a espécie de absurdo. Fica bem.
Riu-se.
— Você também. Adeus, Mercy.
Premi o botão vermelho e olhei para o céu que começava a escurecer. Havia uma forma de saber se os vampiros estavam acordados. Tirei o cartão de Andre do bolso de trás e telefonei-lhe.
— Olá, Mercy — atendeu. — O que é que vamos fazer esta noite?
Assim que Andre atendeu o telefone, percebi que a hipótese de encontrar o feiticeiro num estado de letargia diurno se tinha esfumado. Podia esperar até à manhã seguinte. Nessa
altura podíamos ir atrás dele juntamente com Bran. Na minha mente, Bran era imune aos efeitos do demónio. Simplesmente não conseguia imaginar nada que pudesse quebrar a sua
calma glacial.
Mas se esperássemos por ajuda, se esperássemos até ao amanhecer, tinha quase a certeza de que tanto Adam como Samuel morreriam.
— Eu sei onde ele está — disse a Andre. — Vá ter comigo à minha oficina.
— Estupendo. Lá estarei assim que consiga — replicou. — Tenho de preparar uma coisas antes, mas não me demoro.
Dirigi-me para a oficina para esperar por ele. Liguei para o telemóvel de Bran e fui encaminhada para o voice mail. Entendi aquilo como um sinal de que chegaria tarde de mais
para ajudar. Disse-lhe para procurar no interior do cofre na minha oficina e dei-lhe a combinação. Em seguida, sentei-me ao computador e escrevi todos os aspetos relevantes
do que andava a fazer bem como o lugar para onde ia. Não ia deixar toda a gente a perguntar-se o que me tinha acontecido, como sucedera com todas as outras pessoas que tinham
ido atrás de Littleton.
Quando terminei, Andre ainda não tinha chegado, por isso fui ver o meu correio eletrónico. A minha mãe enviara-me duas mensagens, mas o terceiro era de um endereço desconhecido
com ficheiros anexados. Estava prestes a apagá-la quando reparei que em frente a «assunto» estava escrito CORY LITTLETON.
Beckworth, fiel à sua palavra, obtivera informações sobre Littleton e enviara-mas. A sua mensagem era breve e direta ao assunto.
Menina Thompson,
Aqui estão todas as informações que consegui reunir. Foram-me dadas por um amigo que trabalha com a polícia de Chicago e me deve alguns favores. O Littleton desapareceu de
Chicago há cerca de um ano, onde estava a ser investigado por suspeita de homicídio. O meu amigo disse-me que se eu soubesse onde esse gajo estava, agradecia que eu lhe dissesse
— e o FBI também anda à procura dele.
Uma vez mais, obrigado,
Beckworth
Tinha quatro ficheiros .pdf e dois em formato .jpg. Abri os ficheiro .jpg. A primeira imagem era uma fotografia a cores com Littleton na esquina da rua de uma cidade. No canto
inferior direito, estava estampada a data de abril do ano passado.
Estava uns bons quinze quilos mais gordo do que na última vez que o vira. Não havia como ter a certeza, mas algo no modo como estava postado fez-me acreditar que naquela altura
era humano.
Abri a segunda imagem. Littleton numa discoteca a falar com outro homem. O rosto de Littleton estava animado, como nunca o tinha visto na vida real. O homem com quem falava
estava virado, portanto só lhe conseguia ver o perfil. Mas bastava: era Andre.
Andre estacionou o carro precisamente na altura em que acabava de imprimir uma segunda carta para Bran. Lancei-a para o interior do cofre, agarrei na mochila de chacinar vampiros
de Zee e saí ao encontro do meu destino.
Saímos do meu parque de estacionamento no BMW Z8 preto de Andre. Adequava-se a ele da mesma forma que a versão de Stefan da Máquina Mistério se adequara a este. Surpreendeu-me
um pouco porque Andre nunca me tinha causado a impressão de ser tão elegante e poderoso. Lancei-lhe um olhar rápido e apercebi-me de que esta noite era ambas as coisas, fazendo-me
lembrar que ele era um dos seis vampiros mais poderosos do ninho.
Tinha transformado um feiticeiro em vampiro para poder vir a ser o mais poderoso. E estava capaz de apostar a minha vida em como tinha perdido controlo sobre o feiticeiro
na noite em que Stefan e eu fomos ao encontro de Littleton.
Andre era uma espécie de enigma para mim, por isso estava a fazer fé no juízo de Stefan e no juízo do rebanho de Stefan, segundo o qual ele era leal a Marsilia e tinha inveja
de Stefan.
Daniel tinha sido um ensaio, para ver o que Littleton era capaz de fazer contra um vampiro recém-convertido. Se não tivesse corrido bem, Andre poderia ter resolvido a situação
— afinal de contas, Daniel era dele. Porém, Littleton tinha dado provas do que era capaz, portanto, Andre tinha-o colocado contra Stefan. Mas se Andre ainda fosse homem de
Marsilia, não teria perdoado o banho de sangue no hotel. Era demasiado provável que atraísse a atenção para o vampiro. Mas o que me fazia acreditar que Littleton não estava
a seguir ordens naquela noite era o facto de Stefan ter sobrevivido. Andre, pensei, teria matado Stefan. Não por causa da afeição de Marsilia — mas porque Stefan era sempre,
de forma por de mais clara, o homem mais competente.
Por isso meti-me num carro com o vampiro que criara Littleton porque acreditava que ele queria o feiticeiro tanto como eu — não podia dar-se ao luxo de permitir que Littleton
continuasse à solta, causando-lhe problema atrás de problema. E entrei naquele carro porque sabia que Andre era a minha única possibilidade de manter Adam e Samuel vivos.
— Uma igreja é território sagrado — informou-me Andre quando lhe disse onde íamos. — Ele não pode estar numa igreja: é um vampiro.
Esfreguei a cara, ignorei a vozinha que não parava de repetir «temos de encontrá-los», e tentei pensar. Estava tão cansada. Estava acordada, apercebi-me, há mais de quarenta
horas.
— OK — disse. — Lembro-me de ouvir que os vampiros não conseguem suportar um território sagrado. — Entre uma dúzia de coisas que não eram verdade. Por exemplo, que os vampiros
eram capazes de passar por cima da água. — Mas se o Littleton estivesse numa igreja, como é que mo conseguia explicar?
Virou para a 3ª e abrandou consideravelmente para que pudéssemos procurar edifícios prováveis. A irmã de Gabriel não me tinha dito de qual dos lados de Washington ficava a
igreja. Uma vez que a minha oficina se localizava a este, foi por aí que começámos. Carreguei em vários botões e finalmente consegui abrir a janela para conseguir cheirar
o ar.
— Está bem — disse Andre. — Talvez o demónio mude as regras, mas também não é de esperar que os demónios suportem terreno sagrado. A menos que a igreja tenha sido profanada.
— Foi uma escola durante algum tempo — disse esperançosamente.
Abanou a cabeça.
— Só se tivesse sido uma casa de alterne. É preciso um dos grandes pecados para profanar uma igreja. Adultério, assassinato, alguma coisa dessa natureza.
— E o suicídio? — perguntei. A irmã de Gabriel não dissera que o suicídio tinha tido lugar na igreja, mas também não dissera que não tinha tido lugar ali.
Olhou para mim.
— Nesse caso creio que um demónio teria o maior prazer em viver numa igreja profanada.
Esta noite, o trânsito em Washington era reduzido e Andre espicaçou o pequeno carro desportivo através das quatro faixas sem parar no sinal Stop.
— Quando isto acabar — murmurei sombriamente por entre os dentes —, nunca mais me meto num carro com um vampiro ao volante.
Rosalinda tinha razão. A igreja ficava a dois quarteirões de Washington. Não havia placas em redor, mas era inconfundivelmente uma igreja.
Era maior do que eu esperava, quase três vezes maior do que a igreja a que ia aos domingos. A velha igreja em tempos tivera um pátio de dimensão razoável, mas pouco restava
dele para além de ervas daninhas queimadas pelo Sol, cortadas quase ao nível do chão. O parque de estacionamento pouco melhor estava, o asfalto estava desgastado ao ponto
de ser mais pedra do que alcatrão e das fendas na superfície emergiam ervas descoloradas. Olhei, mas não vi qualquer sinal do BMW que Littleton andava a conduzir.
Andre encostou assim que vimos a igreja, estacionando o carro do outro lado da rua, em frente a uma casa vitoriana de dois pisos que tinha aspeto de em tempos ter sido uma
casa de campo.
— Não vejo o carro dele — comentei.
— Talvez ele já ande à caça — disse Andre. — Mas acho que tem razão, ele esteve aqui. Este é um sítio onde ele ficaria. — Fechou os olhos e inalou. Isso fez-me perceber que
ainda não tinha respirado esta noite, excetuando um par de inalações quase impercetíveis antes de falar. Devia estar a começar a ficar habituada a conviver com vampiros. Livra.
Eu própria respirei fundo, mas havia muitos cheiros em volta. Cães, gatos, carros, asfalto que tinha apanhado sol todo o dia, e plantas. Percebi, sem olhar, que havia um roseiral
atrás da casa em frente à qual estávamos parados — e que alguém ali perto estava a adubar. Não me cheirava a lobisomem, demónio ou vampiro — excetuando Andre. Não me tinha
apercebido do quanto estava à espera de encontrar algum indício de que Adam ou Samuel tinham ali estado.
— Não me cheira a nada.
Andre ergueu uma sobrancelha e percebi que, nas circunstâncias certas, ele era muito bem-parecido — e que eu tinha razão, havia algo diferente nele esta noite, algo mais.
— Ele não é estúpido — replicou. — Só um vampiro estúpido é que deixa um rasto à porta. — Havia um quê de orgulho na sua voz.
Olhou para a igreja por um momento, depois começou a atravessar a rua e eu segui-o.
— Não devíamos estar a agir de forma furtiva? — perguntei.
— Se ele estiver em casa, vai perceber que estamos aqui de qualquer maneira — disse-me de forma prestável. — Se não estiver, isso não importa.
Concentrei-me nos meus sentidos o máximo que consegui, e desejei que as rosas não tivessem um perfume tão forte. Não conseguia cheirar nada. Desejei que Andre lutasse do meu
lado esta noite.
— Então se não estamos a tentar apanhá-lo de surpresa — inquiri —, por que é que estacionou do outro lado da rua?
— Paguei mais de cem mil dólares por aquele carro — disse-me Andre calmamente. — E gosto moderadamente dele. Ia detestar vê-lo destruído num acesso de mau génio.
— Por que é que não tem mais medo do Littleton? — perguntei. Eu tinha medo. Conseguia sentir o cheiro do meu medo acima do das rosas, que, estranhamente, aumentara de intensidade
depois de termos atravessado a rua.
Andre alcançou o passeio e parou completamente, olhando para mim.
— Alimentei-me imenso esta noite — anunciou com um sorriso extravagante. — A Senhora em pessoa concedeu-me essa honra. Com os laços que já nos uniam, e o sangue fresco dela
em mim, posso convocar os seus dons e poderes conforme as minhas necessidades.
Lembrei-me da facilidade com que Littleton tinha subjugado Stefan e tive as minhas dúvidas.
— Então por que é que a Marsilia pura e simplesmente não veio? — perguntei.
O queixo caiu-lhe em genuína perplexidade.
— A Marsilia é uma senhora. O lugar de uma mulher não é num combate.
— Por isso trouxe-me a mim?
Abriu a boca e fechou-a a seguir, um pouco embaraçado pelo que estivera à beira de dizer.
— O que foi? — perguntei, começando a divertir-me com a situação, o que era melhor do que me sentir apavorada. — Não é educado dizer a uma mulher que é dispensável por não
ser uma vampira?
Sem saber o que fazer, começou a subir os degraus de cimento que conduziam às desgastadas portas que não eram pintadas há demasiados anos. Fiz o mesmo, mas mantive-me um degrau
atrás.
— Não — acabou por dizer, já com a mão no puxador. — E prefiro ser educado. — Voltou e olhou para baixo na minha direção. — A minha senhora tinha a certeza de que você era
a única pessoa capaz de encontrar este vampiro. Ela por vezes tem vislumbres do futuro. Não com frequência, mas o que ela vê raramente está errado.
— Então, sobrevivemos todos? — perguntei.
Abanou a cabeça.
— Não sei. Sei, contudo, que correu um enorme risco pela honra do ninho. Você é tão frágil… — Esticou o braço e encostou as pontas dos dedos à minha bochecha. — Quase humana.
Prometo, pela minha honra, que farei tudo o que estiver ao meu alcance para garantir que nada lhe aconteça.
Os seus olhos encontraram-se com os meus por momentos, até que dei dois passos rápidos para trás, quase caindo escada abaixo. Na honra de Stefan confiava — a de Andre era
questionável.
Ambas as portas estavam trancadas, mas nenhuma delas fora concebida para impedir a entrada de um vampiro. Encostou o ombro a uma das portas e partiu o caixilho, o que fez
com que ela abrisse sem problemas. Aparentemente esta noite não íamos ser subtis.
Fiz deslizar a mochila de Zee pelos meus braços e saquei da estaca e da faca. Zee incluíra o cinto e a bainha para a faca, assim pelo menos não tinha de andar com a faca numa
mão e a estaca na outra. Esperei que Andre me perguntasse o que é que eu estava a fazer com uma faca, mas ignorou-me. Toda a sua atenção estava concentrada na igreja.
Andre estacou com ar sério antes do limiar da porta.
— O que é que acontece se ainda for território sagrado? — inquiri, apertando apressadamente o cinto.
— Se assim for, irrompo em chamas — respondeu. — Mas se fosse território sagrado já o devia ter sentido antes disto. — Enquanto falava, atravessou o limiar da porta e colocou-se
completamente no interior da igreja. — Isto não é campo santo — disse-me um tanto redundantemente.
Segui-o até um grande vestíbulo e depois olhei em volta. O vestíbulo era suficientemente grande para dez ou vinte pessoas se moverem à vontade. O pavimento era em tijoleira
revestida a linóleo, fendida e consumida pelo tempo. Havia uma ampla escadaria ascendente que tinha um corrimão impecavelmente cinzelado. Ao lado da escadaria estava um par
de portas duplas, abertas de par em par, pelo que conseguia ver a ampla sala vazia que se estendia para lá delas e que em tempos devia ter sido um santuário.
Toda a igreja era escura, mas havia janelas bem lá no alto que permitiam a entrada de alguma iluminação dos candeeiros no exterior. Um humano talvez tivesse dificuldade em
orientar-se, mas para Andre e para mim a luz era suficiente.
Encaminhou-se para as portas do santuário e pôs-se a cheirar.
— Chegue aqui, caminhante — disse numa voz sombria e rude. — Diga-me a que é que lhe cheira.
Podia ter-lhe dito a partir do sítio onde estava, mas enfiei a cabeça no santuário.
O teto erguia-se dois andares acima das nossas cabeças e ambas as paredes tinham janelas de vidro fosco que bruxuleavam numa cor prateada com a luz ténue da noite da cidade.
O chão era de madeira dura, com cicatrizes onde em tempos haviam estado aparafusados bancos fixos.
As paredes e algumas das janelas do santuário estavam tapadas com grafitos — provavelmente feitos pelos putos do bairro. Simplesmente não conseguia imaginar um vampiro ou
um demónio a escrever coisas como Para Um Telefonema de Prazer, ou Juan ama Penny. Também havia algumas designações de gangs.
Na extremidade oposta à que nos encontrávamos estava uma plataforma erguida. Como o resto da sala, estava escangalhada, com o pódio e o órgão há muito desaparecidos. Mas alguém
tinha construído uma mesa a partir de blocos de cimento. Não tive de me aproximar para saber que uso tinha sido dado àquela mesa.
— A sangue e a morte — disse. Fechei os olhos. Ajudava-me a detetar os odores mais ténues e a impedir que chorasse. — Ao Ben — disse. — Ao Warren. Ao Daniel. E ao Littleton.
Tínhamos encontrado o antro do feiticeiro.
— Mas não ao Stefan. — Andre estava postado atrás de mim e a sua voz ecoou nas traves da sala.
Não consegui interpretar nada na sua voz, mas não me sentia confortável com ele atrás de mim. Lembrei-me de Naomi me dizer que todos os vampiros perdiam por vezes o controlo
— e o quarto cheirava a sangue e a morte.
Passei por ele e regressei ao vestíbulo.
— Não ao Stefan — concordei. — Pelo menos não ali.
Havia um hall no outro lado do vestíbulo com portas que abriam para cada uma das paredes. Abri as portas e descobri três compartimentos e um armário com um aquecedor de água
e uma enorme caixa de fusíveis.
— Ele não vai estar aqui em cima — disse Andre. — Há demasiadas janelas. — Não me tinha seguido, ficara à espera no vestíbulo até que eu terminasse a minha busca.
Os seus olhos não estavam a brilhar, algo que interpretei como sendo um bom sinal.
— Há uma cave — disse-lhe. — Eu vi as janelas lá fora.
Encontrámos as escadas de acesso à cave enfiadas de forma arrumada atrás da escadaria de acesso à tribuna do coro. Não parecia importar-se com o facto de eu estar atrás dele,
mesmo tendo a estaca, portando segui-o escadas abaixo.
Os nossos passos, embora discretos, produziam um som surdo na caixa de escada. O ar era seco e poeirento. Andre abriu a porta ao fundo das escadas e os odores no ar alteraram-se
abruptamente.
Agora sentia o cheiro de Stefan, Adam e de Samuel, bem como o de Littleton — mas o odor mais forte de entre todos era o do demónio. Como tinha acontecido no hotel, após apenas
algumas inalações, o cheiro intenso e desagradável do demónio sobrepôs-se a tudo o resto. A porta ao fundo da escadaria mantivera os odores confinados.
Agora caminhávamos de forma ainda mais silenciosa, embora, como dissera Andre, se Littleton aqui estivesse, por certo já nos teria ouvido a chegar.
A cave era mais escura do que o piso de cima, e alguém sem visão preternatural provavelmente teria tido dificuldades em ver o que quer que fosse. Estávamos numa entrada, semelhante
ao vestíbulo do piso superior.
Havia duas casas de banho ao lado da escadaria; e o letreiro que indicava HOMENS caiu quando abri a primeira porta. As luzes da rua atravessaram as janelas em blocos de vidro,
permitindo-me ver que o espaço estava vazio com a exceção de um urinol partido encostado de través a uma parede.
Fechei a porta. Andre inspecionara a outra casa de banho e neste momento passava ao lado de um bengaleiro em direção a um hall, uma reprodução do piso superior, com portas.
Deixei-o entregue à sua tarefa e segui para o outro lado das escadas. A primeira divisão onde entrei era uma cozinha de dimensão generosa, embora só houvesse espaços vazios
onde em tempos tinham estado um frigorífico e um fogão. Os armários estavam com as portas abertas e vazios. Ao longo da parede interior havia uma meia-porta dobradiça no topo
do balcão. Quando estava aberta, os membros da igrejas serviriam comida da cozinha para a divisão do outro lado sem terem de percorrer o caminho através do vestíbulo.
Algo se moveu rapidamente atrás de mim e dei meia volta, mas era apenas um rato. Olhámos um para o outro por instantes antes de ele seguir caminho. O meu coração batia como
um tambor nos meus ouvidos — rato estúpido.
Saí e dei com Andre postado em frente à porta dupla ao lado da cozinha. A porta estava fechada com correntes e trancada com um brilhante cadeado novo.
Colocou a mão na porta e do outro lado ouviu-se um rosnar suave — um lobisomem.
— Ele deixou-os presos — disse Andre, embora não tivesse feito o menor esforço para quebrar as correntes. — Esta porta jamais conseguiria suster um lobisomem que quisesse
sair.
— Andre? — gritou Stefan. — És tu? Quem é que está contigo?
— Stefan? — sussurrou Andre, paralisado.
— Abre a porta. — Empurrei-lhe o ombro urgentemente. Stefan estava vivo. Se tivesse capacidade de arrancar as portas dos gonzos eu própria o teria feito. Stefan e pelo menos
um dos lobos estavam ainda vivos.
Andre agarrou cuidadosamente a corrente e puxou-a até um dos elos partir.
Pus-me em frente dele e sacudi a corrente, que caiu no chão enquanto empurrava uma das pesadas portas. Entrei à frente de Andre e dei por mim num ginásio do tamanho do santuário
no piso de cima. As janelinhas de um dos lados tinham sido tapadas com papel preto colado com fita adesiva, mas havia um candeeiro com uma lâmpada fraca ligada à bateria de
um carro que fornecia a luz suficiente para que houvesse visibilidade.
Precisamente no centro da sala, Stefan estava sentado de pernas cruzadas no interior de uma enorme jaula para cães, daquelas que se pode comprar numa loja de animais. A cerca
de três metros havia mais jaulas alinhadas lado a lado. Algo tenso e furioso suavizou-se no momento em que os meus olhos viram um lobo vermelho com patas altas e magras, um
lobo musculado, prateado e preto, e um enorme lobo branco com olhos cristalinos: Ben, Adam e Samuel.
Andre passou por mim apressadamente e ajoelhou-se diante da jaula de Stefan. Tocou no ferrolho e a lâmpada fraca tremeluziu. A magia por vezes tem um efeito na eletricidade
— escutei um zumbido e Andre afastou a mão com uma sacudidela brusca.
— As jaulas estão enfeitiçadas — disse Stefan secamente. — Se assim não fosse não achas que ali os meus companheiros as tinham desfeito em pedaços?
Reparei então que estava a ser muito cuidadoso para não tocar nas grades da jaula. Parecia esgotado e mais pálido do que alguma vez o vira. A t-shirt que habitualmente usava
estava salpicada com sangue ressequido, mas, para além disso, mantinha o mesmo aspeto.
— Muitas pessoas acham que tu estás morto — disse Andre.
— Ah — replicou Stefan, virando o seu olhar profundo e melancólico para mim. — Estão enganados.
Stefan estava vivo e bem, mas não tinha tantas certezas em relação aos restantes.
Dei um passo em direção aos lobos, e o lobo vermelho na jaula mais próxima atirou-se a mim. A luz apagou-se completamente por momentos e, quando regressou, Ben estava agachado
precisamente no meio da jaula, a produzir rosnadelas roucas, fitando-me com fome nos olhos. Apesar da ferocidade da sua investida e das leis da física, a sua jaula não se
tinha mexido. Magia.
Ben não tivera vontade de sair. Tivera vontade de me comer. O Tio Mike tinha razão. Os demónios tinham um efeito nefasto sobre os lobisomens.
— A magia do demónio faz com que seja praticamente impossível sair destas jaulas — afirmou Stefan atrás de mim. A sua voz era moderada, mas, não sei explicar como, tinha a
certeza de que estava mais zangado do que alguma vez o vira.
— Sam? — chamei, aproximando-me do lobo branco. Era grande de mais para a jaula e tinha de se curvar de forma um pouco estranha para evitar tocá-la. À medida que me aproximava,
começou a tremer. Ganiu-me e em seguida rosnou-me.
Na jaula mais distante, Adam rosnou, mas estava a olhar para Samuel, não para mim.
— Adam? — chamei, e olhou para mim. Estava zangado e não era pouco, o odor da raiva frustrada do lobisomem sobrepôs-se ao cheiro do demónio. Porém, os seus olhos castanhos
eram nítidos e frios. Era Adam em controlo. Quanto a Samuel, não tinha a certeza.
Estiquei o braço e toquei na jaula de Adam. Nada aconteceu. Nenhum clarão, nenhuma luz a piscar. A magia não me incomodava, embora sentisse as grades quentes debaixo dos dedos.
Pousei a estaca no chão e tentei usar a faca de Zee, mas não consegui fazer com que esta tocasse nas grades — a única coisa que fazia era apagar novamente a luz.
A porta estava trancada com um cadeado sólido, mas havia cavilhas de segurança em todos os cantos, segurando a jaula. Tentei retirar uma, mas não a consegui movê-la.
Adam ganiu. Enfiei o braço por entre as grades e toquei-lhe no pelo macio.
— Quando o Littleton está aqui, o Adam também perde o controlo — avisou Stefan. — Se eu soubesse do efeito que o demónio ia ter sobre os lobisomens, tinha-os deixado fora
disto. O Warren e o Daniel estão mortos.
— O Warren não está morto. Está gravemente ferido, mas está a recuperar em casa do Adam — disse-lhe. — E eu sei o que aconteceu ao Daniel.
Andre lançou-me um olhar estranho, e apercebi-me de que não lhe tinha dito que Daniel estava morto.
— Ainda bem que estava enganado em relação ao Warren. Estava à espera que o Andre aparecesse mais cedo ou mais tarde — Stefan inclinou-se na minha direção e a sua voz adquiriu
um tom de censura —, mas, Mercedes Thompson, por que raio é que estás aqui?
Subitamente, como se todos fossem marionetas movidas pelos mesmos fios, os lobisomens inclinaram as cabeças na direção de uma porta na qual não tinha reparado e que se encontrava
na parede exterior. Adam rosnou e Samuel embateu contra a grade da sua jaula. De forma lenta e cuidadosa, retirei os dedos da jaula de Adam, mas não prestou qualquer atenção.
Voltei a pegar na estaca, mas parecia uma arma pouco poderosa para usar contra um vampiro.
A porta abriu-se à noite lá fora, e uma figura escura hesitou um momento, entrando em seguida. A porta fechou-se com estrondo atrás dele.
— Andre, que bom ver-te — trauteou Littleton. À medida que o seu rosto se aproximava da luz, constatei que Zee tinha razão. Mais cedo ou mais tarde, todos os feiticeiros deixam
de ser veículos do demónio e passam a ser dominados pelo demónio. Littleton ainda estava em controlo, porque os seus prisioneiros ainda estavam vivos, mas não iria continuar
assim por muito tempo.
— Lamento que tenhas chegado enquanto me tinha ausentado para ir comer qualquer coisinha. — A t-shirt que vestia tinha uma nódoa escura. Parou antes de ter chegado a meio
da sala e sorriu a Andre. — Mas agora estou aqui, por isso, está tudo bem. Chega aqui.
Tinha deixado que Andre me convencesse de que ele tinha razão, de que Marsilia lhe tinha conseguido transmitir poder suficiente para lidar com Littleton. Estava tão certa
disso que achava que ele tinha um plano qualquer em mente quando contornou a jaula de Stefan.
Agarrei a estaca com mais força, escondendo-a de Littleton com o meu corpo enquanto deixava cair discretamente a mochila no chão, à espera que Andre fizesse alguma coisa.
Andre era mais baixo do que Littleton, portanto conseguia ver a cara dele apesar de Andre se encontrar entre nós. Ainda estava à espera que Andre tomasse a iniciativa, quando
Littleton inclinou a cabeça de Andre para o lado e se lançou ao seu pescoço enquanto Andre se limitava a permanecer parado.
Não se alimentou, apenas mordeu o pescoço de Andre e em seguida lambeu o sangue. Riu-se.
— Obrigado. Que coisa inesperada. Quem diria que a cabra egoísta ia partilhar o poder dela contigo? Ela achava que isso ia permitir que nos dominasses tendo nós o maravilhoso
e poderoso Stefan como alimento? — Beijou Andre na bochecha e sussurrou: — Ele sabe melhor do que tu.
Abraçou Andre por instantes.
— Sabes, se fosse só eu, permitia que nos servisses. No entanto, meu amigo, aquele que partilha a minha cabeça, o sem nome, tem andado muito aborrecido. Ontem tivemos o lobo
e o Daniel para nos entretermos. Hoje pensei em usar o Senhor dos lobos, mas depois apareceste para brincar.
Andre não ofereceu resistência, não se afastou. Simplesmente mantinha-se ali como acontecera com Stefan quando Littleton matara a criada.
O meu medo atraiu a atenção de Littleton.
Deixou Andre postado onde estava e caminhou em direção a mim, que estava agachada em frente à jaula de Adam.
— A rapariguinha que a Marsilia enviou para me caçar — disse. — Sim, eu sabia de si. Um vampiro mestre tem a capacidade de ouvir as conversas dos seus filhos, sabia disso?
Agora sou mestre, e ele o filho. Conheço todos os seus planos. — Só podia estar a falar de Andre.
Littleton inclinou-se até ficar demasiado perto de mim. As minhas mãos tremiam e conseguia sentir o cheiro do meu medo mesmo acima do odor do demónio. Devia ter usado a estaca,
mas o meu próprio medo paralisou-me.
— Por que é que a Marsilia achava que você me podia caçar? O que é uma caminhante? — perguntou.
Citar as escrituras não funciona bem com os vampiros, dissera-me Zee em tempos, embora por vezes seja eficaz em demónios e afins.
— Deus amou tanto o mundo que entregou o seu Filho Unigénito — disse, tão aterrorizada que só consegui sussurrar. Ele gritou, tapando os ouvidos. Agarrei no meu colar com
o cordeiro e tirei-o de debaixo da t-shirt. Estendi-o, um escudo ardente. Quando disse a parte seguinte, a minha voz estava com mais força. — Para que todo o homem que acredita…
— Tapar os ouvidos não deve ter funcionado porque deixou cair os braços, agarrou-me pelo ombro com uma mão e bateu-me com a outra.
Abri os olhos e tive a sensação de que não tinha passado tempo nenhum — mas acontece que estava estendida no chão cerca de quatro metros atrás da jaula de Stefan, de cara
contra a fria e escura tijoleira revestida a linóleo. Senti o sabor do meu próprio sangue quando lambi os lábios e o meu rosto estava húmido.
Alguém estava a lutar.
Mexi a cabeça até conseguir ver melhor.
Eram Andre e Ben. A pelagem de Ben parecia preta enquanto dançava nas sombras, à procura de uma abertura para atacar o vampiro. Lançou-se para a frente, mas Andre era mais
rápido, dando-lhe uma pancada no focinho com a mão aberta. Ben deslizou para o lado, praticamente ileso.
Acho que se estivessem a lutar na meio da terra ou de algo que permitisse às garras de Ben um aperto adequado, Ben teria vantagem. Mas na escuridão, em linóleo escorregadio,
estavam praticamente equilibrados.
Littleton permaneceu de costas voltadas para a luz, a observar.
— Esperem — disse, falando como um realizador insatisfeito. — Parem.
Ben rosnou furiosamente e virou-se para encarar o seu carrasco. Andre limitou-se a ficar quieto no mesmo sítio, como um brinquedo de corda que tivesse sido desligado de repente.
— Daqui não consigo ver bem — disse Littleton. — Venham lá para cima. Podem brincar na capela enquanto eu vejo da tribuna.
Voltou-se e seguiu em passada rápida na direção das portas que tínhamos deixado abertas. Não se virou para se certificar de que os outros o seguiam — embora o tivessem feito.
Andre caminhava alguns metros atrás do feiticeiro, com o sangue de Ben a pingar-lhe das pontas dos dedos. Ben foi menos obediente.
Parou para rosnar a Adam e Samuel, que lhe rosnaram em resposta. Samuel foi de encontro à sua jaula com um ímpeto violento que desligou a luz durante três segundos.
Quando a luz se ligou novamente, Ben estava à minha frente.
— Lobo — disse Littleton impacientemente já do lado de fora da sala.
Ben aproximou-se de mim um passo e lambeu os lábios.
— Anda, Lobo. — A sua voz tinha poder, eu própria conseguia senti-lo.
Ben mostrou as presas por entre os lábios, depois virou-se e saiu da sala a correr. Ouvi o som das suas garras nos degraus.
— Mercy, consegues vir até aqui? — perguntou Stefan num sussurro urgente.
Boa pergunta. Tentei mexer-me, mas algo de errado se passava com a articulação do meu ombro. O meu braço esquerdo não se mexia de todo. Tentei mexer as pernas e vi estrelas.
Apressei-me a deixar cair a cabeça para trás de encontro ao chão e concentrei-me em inspirar e expirar. Suores frios humedeciam-me as costas.
Depois de contar até vinte, tentei novamente. Desta vez acho que cheguei mesmo a desmaiar, mas não por mais do que um instante.
— Não — respondi. — Tão cedo não me vou conseguir mexer. Passa-se qualquer coisa com o meu ombro e nenhuma das minhas pernas está particularmente excitada com a ideia de se
mexer.
— Estou a ver — disse Stefan passado um momento. — Nesse caso consegues olhar para mim?
Inclinei o queixo e mantive a cabeça no chão, onde fazia tenção de permanecer. Estava virado para mim, de olhos reluzentes como um rio de fogo.
— Sim — repliquei, e era tudo quanto ele precisava.
— Mercy — chamou, e a sua voz penetrou nas células do meu corpo, enchendo-me de determinação. — Vem até mim.
O facto de o meu braço não funcionar ou de não me conseguir pôr de pé não tinha importância. Stefan queria-me e eu precisava de ir ter com ele.
Alguém estava a rosnar e a luz tremeluzia freneticamente. Reparei vagamente que Adam se atirava vezes sem conta contra a sua jaula.
A minha respiração saiu-me na forma de grunhidos de sofrimento quando arrastei o meu corpo não cooperante através do chão frio utilizando o cotovelo do meu braço funcional,
porque ainda tinha a estaca na mão.
— Cala-te, lobo. — A voz de Stefan era suave. — Quer que ele venha cá abaixo? Tenho um plano, mas se ele descer cedo de mais, estamos todos mortos, incluindo a Mercy.
Quando a sua voz parou de chamar por mim, descansei, mantendo os olhos cravados em Stefan. Quando mo pediu, comecei novamente a arrastar-me.
Demorou muito tempo, e doeu muito, mas finalmente encostei a bochecha à jaula de Stefan.
— Linda menina — disse. — Agora põe os dedos entre as grades. Não. Agora vais ter de pousar a estaca. Boa. Boa. Isso mesmo. Agora descansa.
Enquanto Adam rosnava baixinho, algo afiado fez-me um corte no dedo indicador. A dor desapareceu depressa de mais para que com ela me preocupasse — apenas uma dorzinha entre
muitas. Mas quando a boca de Stefan se fechou em volta do dedo, senti uma euforia súbita e toda a dor desapareceu.
13
Algo frio e amargo pingou-me para a boca. Teria cuspido mas isso implicava demasiado esforço. Dedos delicados, frios como o gelo, tocaram-me na bochecha e alguém sussurrou
palavras de amor aos meus ouvidos.
Uma rosnadela penetrou no meu mundo enquanto o líquido gélido se transformava em fogo e deslizou pela minha garganta até ao estômago, forçando-me a recuperar a consciência.
A fúria desvairada no tom daquele lobo provocou-me um assomo de medo que me despertou por completo.
Estava deitada e encolhida em redor da jaula de Stefan. A estaca tinha rolado debaixo de mim e alojara-se desconfortavelmente entre as minhas costelas e o chão. A luz estava
novamente desligada e sentia o cheiro a carne queimada, mais forte inclusive do que o do demónio.
Parte de mim sabia que não era expectável que eu estivesse a ver tão claramente, mas por alguma razão a minha visão noturna estava ainda melhor do que o habitual. Conseguia
ver Adam de olhos fixos sobre a minha cabeça, com o focinho enrugado e os olhos de um amarelo brilhante, iluminados por uma fúria que prometia morte.
Virei um pouco a cabeça para conseguir perceber para onde olhava Adam. Não vi mais nada além de Stefan.
O vampiro tinha enfiado os dedos através das grades alguns centímetros acima da minha mão. Tinha cortado a própria mão, um amplo rasgão do qual vertia sangue. Algum desse
sangue ficava nas grades, mas o grosso deslizava-lhe dos dedos até pingar no chão. O meu pescoço e a minha bochecha estavam molhados com ele.
Lambi os lábios e provei algo que talvez fosse sangue — ou que talvez fosse o melhor elixir de um qualquer alquimista medieval. Num momento sabia a sangue, um sabor a ferro
e adocicado, e no seguinte queimava-me a língua.
Faíscas cintilavam no sangue escuro que estava nas grades e crepitava-lhe na pele que tocava na jaula.
O seu rosto escondia-se contra o seu joelho.
— Já está — murmurou.
Afastei-me da jaula e depois, com a minha mão funcional, empurrei desastradamente o seu membro fumegante, que era muito frio ao toque, afastando Stefan para o interior da
jaula, longe das grades.
Com muita lentidão, levou a mão de encontro ao corpo e depois ergueu a cabeça, fechando os olhos quando a lâmpada de luz ténue, liberta do estranho efeito da feitiçaria da
jaula, se voltou a acender.
— Só vai durar um bocado — disse-me. — Ainda estás magoada, portanto tem cuidado para não causares mais danos em ti própria.
Comecei a colocar-lhe uma questão, mas Samuel uivou e Adam, desviando a atenção de Stefan e de mim, juntou-se a ele no gesto. Quando os seus gritos se desvaneceram, ouvi alguém
descer as escadas. Parecia que Littleton estava a arrastar alguma coisa.
Voltei a cair no chão, com o cabelo por cima da face para escondê-la — apercebendo-me só aí que me sentia melhor. Muito melhor. Incrivelmente melhor.
Uma das portas foi aberta com um estrondo. Através da cortina do meu cabelo vi Andre desde o limiar da porta, aterrando como um trapo no chão.
Littleton gostava de arremessar coisas.
— Não fizeste direito — queixava-se o feiticeiro enquanto arrastava um lobisomem vermelho frouxo por uma das patas traseiras. — Tens de fazer como eu te mando. Não te mandei
matar o lobo, ainda nem sequer é meia-noite. Não vais estragar o meu divertimento com uma morte prematura.
Olhou para nós, ou melhor, para Stefan. Mantive os olhos praticamente fechados, e desejei que o meu cabelos os escondessem bem ao ponto de ele não se aperceber de que eu estava
desperta.
— Peço desculpa — disse contritamente à medida que se acercava de Stefan, ainda a arrastar Ben. — Não estou a ser lá grande anfitrião. Não me apercebi de que tinhas sede senão
teria providenciado uma refeição. No entanto, bem vistas as coisas, acabei de fazê-lo.
Deixou cair Ben à minha frente e em seguida deu-me um toque com a ponta do pé.
— Podia ter brincado um bocado com esta — disse com um suspiro. — Mas, de qualquer maneira, os humanos não duram tanto tempo. Talvez traga mais alguns para servirem de alimento
para ti. Talvez seja divertido deixá-los andar aqui à solta e obrigar-te a chamá-los ao teu encontro.
Ben não estava morto, conseguia ver as suas costelas a subir e a descer. Tão-pouco estava em bom estado. Havia um pedaço de pele rasgada na sua anca de onde escorria sangue
e uma das patas dianteiras estava estranhamente curvada cerca de cinco centímetros abaixo da articulação. Não lhe conseguia ver a cabeça porque o resto do corpo ma tapava.
Littleton foi buscar Andre. Pegou nele e transportou-o como se fosse um amante até à luz no centro das jaulas.
Ainda com Andre nos braços, sentou-se ao lado da luz. Dispôs o outro vampiro no chão como se fosse uma boneca, puxando a cabeça de Andre para o seu joelho. O rosto de Andre
estava coberto de sangue.
Lambi o meu lábio inferior e tentei não desfrutar da sensação provocada pelo sangue de vampiro na minha língua.
Littleton mordeu o próprio pulso, permitindo-me um vislumbre dos seus colmilhos, e depois colocou a ferida aberta sobre a boca de Andre.
— Tu compreendes — murmurou a Andre. — Só tu. Tu compreendes que a morte é mais poderosa do que a vida. Mais poderosa do que o sexo. Se és capaz de controlar a morte, és capaz
de controlar o universo.
Deveria ter soado melodramático. Todavia, o sussurro excitado eriçou-me os pelos da nuca.
— O sangue — disse ao inconsciente Andre. — O sangue é o símbolo da vida e da morte.
Andre mexeu-se finalmente, agarrando o pulso de Littleton e aproximando-o de si, enrolando-se em volta dele. Tanto quanto um Daniel faminto se tinha enrolado em volta do pulso
de Andre durante o julgamento de Stefan. Desejei que o toque demorado do sangue de Stefan não soubesse tão bem.
Andre abriu os olhos e olhou para cima.
Esperava que os seus olhos estivessem a brilhar, como acontecera com os de Daniel. Em vez disso estavam concentrados. Como tinha acontecido com os de Adam, os seus olhos centravam-se
em Stefan.
Littleton murmurava por entre dentes no cabelo de Andre, de olhos fechados. Por isso aproveitei a oportunidade e mudei a posição do meu corpo um nadinha, atraindo a atenção
de Andre. Quando olhou para mim, mexi-me mais uns centímetros para que conseguisse ver a estaca.
Fechou os olhos novamente, e depois, de forma abrupta, deixou cair o braço de Littleton e rebolou até ficar sobre as mãos e os joelhos, conseguindo mudar de sítio para que
Littleton ficasse entre nós, de costas voltadas para mim.
— O sangue é vida — disse Andre numa voz que nunca o tinha ouvido usar. Flutuou através da sala como uma névoa e pousou na minha pele. — O sangue é morte.
— Sim. — Littleton soou siderado e lembrei-me do que tinha sentido quando Stefan se alimentara de mim. Até àquele momento quase me tinha esquecido de que se tinha alimentado
de mim.
Littleton, alheio aos meus medos, disse:
— O sangue é a vida e a morte.
— Quem comanda a morte? — perguntou Andre, a sua voz a pedir uma resposta que a minha boca queria formar.
Littleton ergueu-se sobre os joelhos e consegui distinguir o desenho da sua coluna vertebral nas costas da t-shirt que vestia.
— Eu! — guinchou. Esticou os braços e agarrou Andre por baixo do maxilar, puxando o vampiro para onde o queria. Mordeu exatamente por cima das feridas que provocara no pescoço
de Andre anteriormente.
Era a melhor oportunidade que ia ter. Tentei levantar-me e quase caí. Um dos tornozelos não suportava qualquer peso, embora não me doesse.
Não tinha de andar muito.
Curvado sobre Andre, as costelas de Littleton estavam claramente definidas na sua t-shirt. Alguém lhe devia dizer que as pessoas magras não devem usar tecidos que se colam
ao corpo. Escolhi um sítio entre os delicados ossos arqueados, mesmo à esquerda da coluna vertebral, e ataquei com todo o meu corpo, precisamente como o meu sensei me tinha
ensinado.
Se o meu tornozelo estivesse operacional, talvez tivesse conseguido. O treino jogou contra mim e tentei instintivamente usar o meu peso para ajudar a enfiar a madeira afiada.
A minha perna colapsou debaixo de mim e a estaca apenas penetrou três centímetros até ficar encravada entre as suas costelas em vez de perfurá-las.
Littleton pôs-se de pé de um pulo com um grito de fúria. Desferiu golpes às cegas, não me acertando porque já me afastava aos rebolões o mais depressa que conseguia. Afortunadamente,
era mais rápida do que um vampiro. Rebolei até esbarrar contra a bateria do carro que alimentava a lâmpada.
— Cabra — sibilou Littleton.
Lancei a mão ao pescoço mas o meu colar com o cordeiro tinha desaparecido, tendo-o perdido quando me tinha atirado através da sala. Enquanto tacteava à procura do colar, o
feiticeiro pulou em direção a mim.
Andre agarrou-o em volta da cintura e ambos se estatelaram no chão mesmo à minha beira. Littleton conseguiu colocar Andre por baixo e constatei que a estaca ainda estava enfiada
nas suas costas.
Agarrei na bateria do carro pela asa de plástico e sopesei-a na minha mão direita. Soltando um rugido por causa do esforço empreendido, ergui-a acima dos vampiros que lutavam
e fi-la descer contra a extremidade da estaca.
A lâmpada, ainda ligada à bateria, caiu no chão, deixando uma vez mais a sala às escuras. Desta vez tive dificuldade em ver claramente — os benefícios do sangue de Stefan
estavam a desaparecer.
Contorci-me até conseguir tirar a espada de Zee da bainha. Requereu mais esforço do que seria de esperar.
Littleton tinha ficado debilitado e o seu corpo caíra de costas quando Andre o empurrara. A estaca tinha atravessado Littleton por completo e projetara-se vários centímetros
para fora do seu peito. Tinha ferido Andre, mesmo acima da clavícula, mas ele não pareceu importar-se. Manteve-se estendido sobre as costas e riu-se, embora não soasse feliz.
A dor tinha regressado em força, provocando-me náuseas e vertigens. Engoli bílis e, com a ajuda do meu braço funcional, ergui-me até ficar numa posição útil. A faca na minha
mão produziu um estalido no chão.
Tinha matado ratos, coelhos e, uma vez, um veado enquanto corria na forma de coiote. Tinha matado dois homens — três, agora. Isso não me ajudou a enfrentar a tarefa seguinte.
Bryan, o meu pai adotivo, costumava caçar, tanto como lobo como com uma arma. Ele e Evelyn, a sua mulher, cortavam a carne enquanto eu a embrulhava em embalagens para o frigorífico.
Nunca tivera de cortar a carcaça.
A faca de Zee penetrou no pescoço de Littleton com um ruído húmido, como um sorver ruidoso. Pensei que Littleton estaria morto… mais morto do que antes, quero eu dizer. Mas
quando a faca o atravessou, o seu corpo começou a entrar em convulsões.
O movimento atraiu a atenção de Andre e ele sentou-se.
— O quê? Não, espere!
A sua mão fechou-se em volta da minha com força suficiente para deixar nódoas negras e puxou-ma para trás. A cabeça de Littleton tombou para o lado. O efeito foi de certo
modo mais sinistro do que se a cabeça tivesse sido completamente separada do corpo.
— Largue-me — disse, quase sem reconhecer o crocito rouco como a minha própria voz. Sacudi a mão, mas ele não a largava.
— A Marsilia precisa dele. Ela pode controlá-lo.
Escutei o metal que caiu com estrépito: o poder do feiticeiro estava a fraquejar, permitindo que os prisioneiros fugissem. Adam aninhou-se ao meu lado e, num piscar de olhos,
Samuel apareceu do meu outro lado. Ambos os lobisomens estavam a rosnar de forma quase impercetível e percebi, quase sem olhar para eles, que as suas partes humanas tinham
desaparecido, ficando apenas as do predador.
O facto de essa perceção não me ter provocado um susto de morte é indicador de quão traumatizada estava.
— Largue-me — disse novamente, desta vez numa voz suave de modo a não alarmar os lobisomens que estavam a tremer de avidez e por causa do cheiro a sangue fresco. Não sabia
ao certo por que razão não tinham simplesmente atacado.
Andre fixou-se primeiro em Adam, depois em Samuel. Não sei se estava a tentar controlá-los, mas se era esse o caso, não foi bem-sucedido. Adam rosnou e Samuel ganiu avidamente
e aproximou-se meio passo.
Andre largou o meu pulso. Não esperei mais, pressionando a faca contra carne, cartilagem e osso até a cabeça de Littleton rebolar e a faca penetrar o linóleo.
Tinha-me enganado: foi pior quando a cabeça foi completamente separada do corpo.
Vomita mais tarde, pensei. Destrói o corpo agora.
A mochila estava à distância de não mais do que um corpo, mas não consegui reunir a energia para ir buscá-la.
— De que é que precisas? — perguntou Stefan, que estava aninhado do outro lado do corpo, ao lado de Andre. Não tinha reparado que também ele tinha saído da sua jaula — ou
sequer que se tinha mexido. Simplesmente de repente estava à minha frente.
— A mochila — disse-lhe.
Levantou-se como se isso lhe doesse e caminhou sem nenhuma da energia que lhe é habitual, regressando com a mochila na mão. Ambos os lobos se retesaram quando me estendeu
a mochila por cima do corpo de Littleton. Stefan estava a mexer-se lentamente porque estava em má forma — mas provavelmente isso era bom. Fazer movimentos súbitos perto dos
lobisomens teria sido uma má ideia, mesmo que eles tivessem relaxado, apenas um bocado, quando removera a cabeça do feiticeiro.
No momento em que estiquei o braço para pegar na mochila, Andre falou novamente.
— A Marsilia precisa dele, Stefan. Se tiver um feiticeiro às ordens dela, os outros vão encolher-se de medo na sua presença.
— A Marsilia pode intimidá-los sozinha — respondeu Stefan fatigadamente. — Um feiticeiro não é um animal de estimação fiável. A Marsilia permitiu que a ganância se sobrepusesse
ao senso comum.
O medalhão não era um objeto muito grande e escondia-se dos meus dedos. No entanto era pesado, por isso finalmente acabei por encontrá-lo no fundo. Tirei-o e coloquei-o no
peito de Littleton.
— O que é isso? — perguntou Stefan.
Em vez de lhe responder, Inclinei-me sobre o peito de Littleton e sussurrei:
— Drachen.
Arde, cabrão, arde.
O disco de metal começou a brilhar num tom vermelho-cereja. Por instantes pensei que não faria mais do que aquilo. Contudo, passado um momento, o corpo irrompeu em chamas,
a quase invisível chama azul de um bico de Bunsen com o gás ajustado de forma perfeita. Por um instante pasmei perante o caráter súbito da coisa, mas depois Stefan saltou
por cima do corpo, agarrou-me pelas axilas e puxou-me para trás antes que eu fosse apanhada pelas chamas ávidas.
O facto de ele me ter agarrado relembrou-me, da pior maneira, que tinha um ombro magoado. A dor súbita foi tão intensa que gritei.
— Pronto — tranquilizou-me Stefan, ignorando os lobisomens que o miravam com olhos famintos. — Vai acalmar daqui a nada.
Sentou-me e colocou a minha cabeça entre os meus joelhos. As suas mãos ainda estavam frias, como as de um cadáver. Que na verdade era o que ele era.
— Respira — disse-me.
Não consegui evitar uma risada soluçada por ter um homem morto a dizer-me para respirar.
— Mercy? — perguntou.
Não tive de explicar por que razão me estava a rir uma vez que as portas exteriores foram abertas de par em par com o guincho do metal a ser curvado.
Stefan virou-se para encarar esta nova ameaça, um lobisomem de cada um dos lados. Andre também se levantou. Impediam-me de ver a entrada, mas conseguia sentir-lhes o cheiro.
Darryl e outros dois. A criança amedrontada dentro do meu coração, não tranquilizada pela imolação de Littleton, relaxou por fim.
— Vens tarde, Bran — disse-lhe ao mesmo tempo que a luz do vampiro em chamas tremeluzia e se dissipava.
Não foi o Marrok quem me respondeu, mas o seu segundo filho, Charles.
— Eu disse ao Darryl que não devia acelerar. Se a policia não nos tivesse mandado encostar, tínhamos chegado aqui há dez minutos.
Bran passou pelos vampiros como se estes não existissem. Tocou em Samuel e depois em Adam.
— O Charles trouxe roupas para vocês — informou-os, e eles desapareceram na escuridão, presumivelmente para se transformarem e vestirem. A presença de Bran contribuiu para
que recuperassem o controlo necessário para regressarem à forma humana tanto quanto contribuíra a morte de Littleton. A sua morte permanente, bem entendido.
A luz débil vinda do exterior colocava Bran em contraluz, portanto era difícil ver-lhe o rosto.
— Tens andado ocupada — disse-me num tom neutro.
— Não tinha alternativa — repliquei. — Leste os papéis que te deixei? — Sabes que nem todos os vilões são cinzas?
— Sim — respondeu Bran, e algo dentro de mim relaxou. Não tinha como saber qual dos vampiros era Andre. Mas arranjaria maneira de saber, estava certa disso.
Indiferente ao pó do vampiro — ou ao que quer que fossem os restos de Littleton espalhados pelo chão — Bran ajoelhou-se à minha frente para se poder curvar e beijar-me na
testa.
— O que fizeste foi uma grandessíssima estupidez — afirmou numa voz tão suave que era quase inaudível.
— Achava que só ias conseguir chegar de manhã — repliquei.
— Despachei-me. — Colocou uma mão no meu ombro.
— Ai — pronunciei, afundando-me mais no chão.
— Samuel — gritou. — Vê se te consegues despachar, acho que tens uma paciente.
O meu ombro estava apenas deslocado e Bran recolocou-o com o máximo cuidado. Ainda assim doeu imenso. Estremeci e dei uma sacudidela ao corpo, e consegui não vomitar em cima
de ninguém, enquanto Adam, numa voz áspera que não dissimulava a sua raiva, contava a toda a gente o que tinha acontecido depois de Andre e eu termos aparecido.
Andre parecia aturdido com a morte de Littleton. Stefan ajoelhou-se ao seu lado colocando-lhe uma mão no ombro e lançando um olhar cauteloso a todos os lobos em volta.
Esperei até ter a certeza de que conseguiria falar sem soar demasiadamente vacilante — e até que Adam terminasse o seu relato. Depois olhei para Stefan e disse:
— Foi o Andre que criou o Littleton.
Andre olhou para mim chocado, e em seguida lançou o seu peso para a frente — não sei se me teria atacado, ou se simplesmente ia tentar fugir, mas Stefan agarrou-o. Antes que
se transformasse numa verdade luta, Charles e Darryl ajudaram a segurá-lo.
— Ia perguntar-te se tinhas a certeza — disse Stefan, deixando que os lobisomens, obviamente em melhor condição física, segurassem Andre. — Mas o Andre acabou de me dar a
resposta.
— Tenho provas — disse-lhe.
— Gostava de vê-las — replicou Stefan. — Quanto mais não seja para mostrá-las à Senhora. No entanto, neste momento gostava de saber se há aqui algum telemóvel que eu possa
usar para ligar ao meu ninho? Por muito que agradeça a sua ajuda, Adam, acho que seria má ideia levar os seus lobos para o ninho nesta altura em que ainda não se sabe bem
como estão os ânimos.
Os vampiros apareceram e fizeram desaparecer Andre por artes mágicas. Esperava que Stefan fosse com eles, mas não foi. Samuel insistiu em levar-me para o hospital, embora
Charles e Darryl tivessem levado Ben, que estava em pior estado do que eu, para a casa de Adam no carro de Darryl.
— Por que é que eu não posso simplesmente ir para casa? — lamuriei-me. O meu ombro doía e só queria ir para o meu quarto e lançar os cobertores para cima da cabeça.
— Porque não és uma mulher-loba — explicou Stefan. — Se tens o tornozelo partido, precisas de ser engessada.
Os lobisomens que não estavam a conduzir (Adam e Samuel) lançaram-lhe olhares glaciais. Bran trouxera o SUV de Adam e estar encafuada dentro dele com os três lobisomens e
o vampiro era uma nova experiência em termos de testosterona. Na altura em que Samuel e Adam tinham entrado para o banco traseiro juntamente comigo, Stefan deslizara para
o banco da frente. Bran continuava a ignorar o vampiro, portanto Stefan manteve-se calado.
Entrámos os cinco nas urgências. O único com uma aparência remotamente respeitável era Bran, que me levava em braços. Só quando estávamos debaixo das luzes intensas do hospital
é que percebi quão péssimo era o nosso aspeto. Eu estava coberta de sangue, Stefan estava coberto de sangue. Tinha um rosto abatido e cansado, embora a expressão nele estampada
fosse pacífica. Não queria saber qual era o meu aspeto.
Samuel, apesar de enfiado em roupas lavadas, parecia ter passado uma semana inteira na farra e Adam… A enfermeira no balcão de triagem olhou para Adam e carregou no discreto
botão preto debaixo da secretária.
Não foi o mau aspeto que a fez entrar em pânico, mas o seu olhar. Senti-me verdadeiramente satisfeita por Bran estar connosco.
— Está tudo bem, Elena. — Samuel exprimiu-se num rosnar que pouco tinha de humano. — Eu levo-os lá para dentro.
Olhou-o novamente e a estupefação espalhou-se pelo seu rosto.
— Dr. Cornick? — Não o reconhecera quando tínhamos entrado.
— Telefone para a polícia de Kennewick — disse-lhe. — Pergunte pelo Tony Montenegro. Diga-lhe que a Mercy tem novidades para lhe dar se ele vir cá ter.
Samuel seria questionado pela administração do hospital, pensei. Não sabia se tinha faltado a um turno ou não, mas eles não iriam ignorar o facto de ele ter aparecido no hospital
com esta malta. A polícia trataria de o safar — e achava que Tony beneficiaria ao constatar que os lobisomens tinham levados as preocupações dele a sério. Também permitiria
aos lobos saber que tinham aliados no seio da polícia. Pessoas nas quais podiam confiar. Isso era importante se algum dia quisessem integrar-se na cidadania.
Havia algumas pessoas na sala de espera e todas elas pararam o que estavam a fazer para olhar para Adam. O cheiro do medo sobrepôs-se ao da doença e do sangue. Até Bran se
retesou um pouco perante a torrente de cheiros desencadeada.
Samuel atravessou a sala, ignorando a mulher que corajosamente se aproximou de nós para obter informações relativas ao seguro de saúde.
Bran parou antes de seguir Samuel através de um par de portas pivotantes.
— Não se preocupe, minha querida — disse à mulher num tom delicado. — O Dr. Cornick encarregar-se-á do devido preenchimento dos formulários.
Tony entrou nas urgências como se já lá tivesse estado uma ou duas vezes antes. Estava vestido à civil, calças de ganga e t-shirt, mas o rapaz de pele rosada que o acompanhava
trajava o uniforme.
Entrou no meu cubículo rodeado por cortinas e olhou em volta. Samuel estava ausente a tratar de assuntos de médico, mas os outros estavam todos presentes. Stefan e eu tínhamos
lavado as mãos e os braços. Eu estava enfiada numa daquelas batas estúpidas de hospital, mas as roupas de Stefan ainda estavam cobertas de sangue. Bran encontrava-se sentado
na cadeira do médico, movendo-se em círculos lentos, com ar de adolescente aborrecido. À semelhança das pessoas na sala de espera, Tony e o seu acompanhante ignoraram Bran
e puseram-se a olhar para Adam, que estava encostado a uma parede. Stefan estava curvado a um canto e foi alvo de um olhar rápido e perscrutador antes de ambos os polícias
voltarem a concentrar a atenção em Adam.
— Tony, este é o Adam Hauptman, estávamos a falar nele no outro dia. Adam, este é o meu amigo Tony. — Não me dei ao trabalho de apresentar os outros.
O rosto de Tony imobilizou-se e deteve o passo. Suponho que não tivesse reconhecido Adam das fotografias no jornal até eu ter mencionado o seu nome. As imagens publicitárias
de Adam mostravam um homem de negócios conservador. Esta noite não havia nada de conservador ou profissional nele. Dele irradiava uma fúria em vagas que até os humanos deviam
ser capazes de sentir.
— Olha uma coisa, John — disse Tony de forma natural, após desviar rapidamente os olhos do Alfa. Presumo que a ficha informativa sobre lobisomens que tinha sido distribuída
explicava que não era boa ideia iniciar uma competição de olhar fixo com eles. — Por que é que não vais buscar dois cafés para nós?
O outro polícia semicerrou os olhos a Tony, mas apenas perguntou:
— Quanto tempo devo demorar?
Tony relanceou-me os olhos. Encolhi os ombros e arrependi-me instantaneamente.
— Isto não vai demorar mais do que dez minutos.
Quando o outro polícia se foi embora, Tony fechou as cortinas. Não nos permitia ter muita privacidade, mas os barulhos cacofónicos de dezenas de máquinas misteriosas impediria
que qualquer humano ouvisse o que tivéssemos a dizer.
— Pareces a morte aquecida — disse-me.
— Não era na esquadra de polícia — expliquei-lhe, demasiado cansada para a nossa habitual arreliação. — Mas não era a mais de um quilómetro de distância.
— Encontraste-o.
— Matei a coisa — informei. — Acho que te vais aperceber de que a vida noturna vai acalmar um bocado daqui em diante.
Tony franziu o sobrolho.
— A coisa?
— Sim. — A voz de Stefan soava fatigada. — Uma coisa que devia ter sido impedida de andar pelas ruas. Não foi assassinato, senhor. Foi autodefesa.
— Não se preocupe — interveio Bran docilmente. — Não existe um corpo. — Apenas porque Bran tinha reparado na cabeça de Littleton algures no chão e também usámos o medalhão
de Zee para nos livrarmos dela. Tinha-me esquecido completamente disso. Presumivelmente não teria feito mais nada a não ser pregar um susto de morte a quem quer que a encontrasse
— uma vez que o corpo tinha desaparecido —, todavia sentia-me aliviada por também termos tratado dessa última tarefa.
Tony olhou mais atentamente para Bran.
— Devo perguntar quem são todos vocês?
— Não — disse-lhe.
— Então por que é que me chamaram até aqui? — inquiriu Tony.
Abri a boca para responder e Samuel abriu as cortinas e entrou com um raio X nas mãos.
— Dr. Cornick. — Tony saudou-o como se fosse um velho amigo. Supus que os polícias devessem ver muitos médicos dos serviços de urgência. Depois algo na circunspeção de todos
os presentes na sala pô-lo ao corrente.
— O Samuel precisa de um escudo da polícia atrás do qual se possa esconder — disse antes que ele tivesse oportunidade de perguntar se Samuel também era um lobisomem.
Tony franziu o sobrolho, observando atentamente todas as pessoas presentes, mas evitando o contacto visual.
— Está bem — disse lentamente. — Tens a certeza de que tudo vai voltar ao normal?
Ia encolher os ombros, mas em vez disso acenei afirmativamente com a cabeça.
— O mais normal possível.
— Ótimo. — Olhou para Samuel. — Garanta-me que não constitui perigo para os seus pacientes.
Esperei ansiosamente por um comentário mordaz, mas também Samuel estava cansado. Apenas disse:
— Não constituo perigo para os meus pacientes.
— Está bem — disse Tony. — Está bem. Dr. Cornick, se alguém lhe perguntar alguma coisa sobre isto, responda simplesmente que se tratou de um assunto de polícia no qual você
colaborou. — Sacou da carteira e retirou um cartão. — Dê o meu número se for preciso.
Samuel pegou no cartão.
— Obrigado.
Depois Tony voltou-se novamente para Adam.
— Sr. Hauptman — começou —, a Mercy disse-me que você era a primeira pessoa com quem devia falar a propósito de questões relacionadas com os lobisomens.
Adam esfregou a cara cansadamente. Demorou tanto tempo a falar que comecei a ficar preocupada. Finalmente, num tom quase civilizado, disse:
— Sim. A Mercy deu-lhe o meu número?
— Não chegámos a esse ponto.
Adam acalmou-se e exibiu um sorriso discreto que o fazia parecer-se com um tigre faminto. Tony recuou um passo discretamente.
— Hoje não trago os meus cartões comigo, mas se ligar para o meu escritório, darei indicações para que lhe facultem o meu número de telemóvel. Ou então, a Mercy normalmente
sabe como entrar em contacto comigo.
Não passava de uma entorse. Stefan saiu enquanto Tony falava com Adam. Aparentemente, fui a única a dar-me conta disso. Não sei se fez algum truque de vampiro ou se mais ninguém
se importava.
Adam queria que eu ficasse em casa dele. No entanto, estavam lá alojados metade do bando local, parte do bando de Montana e Kyle. Não fazia qualquer tenção de me juntar à
multidão.
Depois de os outros terem partido para a casa de Adam, Samuel levou-me em braços até à minha caravana maltratada e encaminhou-se para o meu quarto, mas eu não queria dormir.
De todo.
— Podes antes levar-me para o escritório? — perguntei.
Continuava parco em palavras, mas mudou de direção obedientemente e levou-me para o minúsculo terceiro quarto que zumbia por causa dos vários equipamentos eletrónicos.
Pousou-me numa cadeira e em seguida pôs-se de joelhos à minha frente. As suas mãos tremiam quando as fechou em volta dos meus joelhos e os afastou para ocupar o espaço no
meio. Senti-lhe o corpo quente quando se encostou a mim e enterrou a cara no meu pescoço.
— Eu sabia que tu ias aparecer — sussurrou, e o poder do seu lobo despenteou-me o cabelo ao passar por mim. — Estava preocupado. E depois… e depois o lobo veio. O Adam manteve
o controlo. Tentou ajudar-me, mas estava em pior estado do que o Ben, que já lá estava há muito mais tempo. Estou a perder o controlo sobre o meu lobo, sou um perigo para
ti. Disse ao meu pai que mal fiques bem, volto para Montana.
Abracei-o com o meu braço funcional.
— Os demónios não são bons para o controlo de um lobisomem.
— De entre nós os três — disse-me ao pescoço —, eu era o que tinha menos controlo.
Não era verdade. Tinha lá estado e vira como ainda lutava numa altura em que Ben já se tinha entregado completamente ao lobo. Mas antes de expor esse argumento, apercebi-me
de uma coisa.
— Aquela igreja fica a menos de um quilómetro do hospital — disse-lhe. — O Tio Mike disse-me que a presença do demónio causa violência em tudo o que o rodeia, e os relatórios
da polícia confirmam isso. Quando o Tony me mostrou o mapa dos incidentes, descobrimos que a zona de impacto tinha mais de cinco quilómetros de diâmetro. Tu tens andado a
combater o demónio desde a noite em que eu vi o Littleton pela primeira vez. Ele tinha o Ben há alguns dias. A ti já te atingia há semanas.
Imobilizou-se, pensando sobre o assunto.
— Na noite em que perdeste o controlo depois daquele acidente com o bebé — disse. — Não foste tu, foi o demónio.
Os braços da minha cadeira protestaram com um chio debaixo das minhas mãos. Samuel respirou fundo, inalando o meu cheiro, e depois chegou-se um pouco atrás para poder olhar
para o meu rosto. De forma muito lenta, dando-me tempo de sobra para o afastar, beijou-me.
Pensava que talvez pudesse amar Adam. Samuel tinha-me magoado no passado — muitíssimo. Sabia que era provável que me quisesse agora pela mesma razão que me tinha querido na
altura. Ainda assim, não fui capaz de afastá-lo.
Tinha ficado tão perto de perdê-lo.
Retribui o beijo com interesse, inclinando-me sobre o corpo dele e fazendo passar os dedos pelo seu belo cabelo. Foi Samuel quem pôs fim ao beijo.
— Vou buscar-te um chocolate quente — disse, deixando-me na cadeira.
— Sam? — chamei.
Parou à porta, de costas voltadas para mim e cabeça virada para baixo.
— Vai ficar tudo bem, Mercy. Por hoje, deixa-me só ir preparar chocolate quente para os dois.
— Não te esqueças das gomas — disse-lhe.
14
— Ainda não foi a julgamento?
— Não. — Stefan bebericou o chá que tinha pedido. Não fazia ideia de que os vampiros podiam beber chá. — Como é que está o tornozelo?
Emiti um som rude.
— Está tudo bem com o meu tornozelo. — O que não era exatamente verdade, mas não ia permitir que ele mudasse de assunto. — Só precisaram de um dia para te levarem a julgamento
e em relação ao Andre já lá vão duas semanas.
— Semanas que o Andre passa nas celas debaixo do ninho — disse Stefan suavemente. — Ele não está a passar férias. Quanto ao tempo que está a demorar, receio que seja por minha
culpa. Tenho estado em Chicago para ver o que é que consigo deslindar sobre as atividades do Andre por aquelas bandas. Para me certificar de que Littleton foi a única pessoa
que conseguiu transformar.
— Achava que o Andre não tinha controlo suficiente para transformar os membros do rebanho dele em vampiros.
Stefan pousou o chá na mesa e lançou-me um olhar interessado.
— A Rachel disse-me que apareceste por lá. Não fazia ideia de que tinhas ficado a saber tanto.
Revirei-lhe os olhos.
— Cresci com lobisomens, Stefan, a intimidação não vai funcionar. Explica-me como é que o Andre conseguiu transformar um feiticeiro quando não tem capacidade para transformar
um dos elementos do seu rebanho.
O seu rosto iluminou-se num dos seus sorrisos generosos.
— Não sei. Vou dizer-te aquilo que sei. O Cory Littleton desde pequeno que andava a namoriscar o mal. O apartamento dele em Chicago, que o Andre pagou até dezembro próximo,
tinha um compartimento secreto que eu andei a farejar. Estava cheio de coisas interessantes como velas de cera pretas e livros sobre cerimónias antigas que seria melhor não
estarem catalogadas. Queimei-os, como queimei os blocos de notas onde escrevia os seus diários, redigidos em escrita especular. Pelo menos não era em grego.
— O Andre sabe como é que o Littleton se tornou feiticeiro? Ele conseguiria criar mais? — perguntou Samuel, a sua voz enrouquecida pelo sono a emergir da entrada.
— Olá, Samuel — disse Stefan. A Medea foi a primeira a emergir da escuridão da entrada, miando pequenas queixas enquanto atravessava o chão da cozinha e pulava para o colo
de Stefan.
A seguir veio Samuel, meio vestido e ostentando barba de um dia. Samuel não era o mesmo desde que Littleton o capturara — ou talvez desde aquela noite em que me contara do
bebé que a namorada dele abortara. Andava mais irritável e demasiado sério — quando tentava trazer à baila o assunto daquele beijo que tínhamos partilhado, ele não o discutia.
Estava preocupada com ele.
— O Andre sabe como criar um feiticeiro?
Stefan assentiu lentamente com a cabeça.
— Segundo os diários do Littleton, sim. Foi o Littleton que lhe disse.
Samuel puxou uma cadeira e deu-lhe meia volta para se sentar virado para as suas costas.
— O facto de Littleton ter sobrevivido à transformação teve alguma coisa a ver com ele ser feiticeiro?
A Medea bateu com a pata nas mãos de Stefan e este, em vez de pegar na sua chávena, afagou a gata atrás da orelhas. Ela ronronou e instalou-se com mais firmeza no seu colo.
— Não sei — respondeu Stefan finalmente. — Nem sequer tenho a certeza se o Andre sabe. Alimentou-se do Littleton durante vários anos antes de o transformar. No entanto, não
me parece que tenha mais Littletons à espera de entrar em ação. Não é assim tão fácil encontrar alguém disposto a vender a alma ao diabo.
Samuel relaxou.
— Ele era feiticeiro antes de ser vampiro? — perguntei.
— Sim. — Stefan mexeu os dedos à frente do focinho da Medea e esta bateu-lhes com a pata. — Ele era feiticeiro antes de ter conhecido o Andre. Achava que ao transformar-se
num vampiro se tornaria mais poderoso. O Andre disse-lhe isso. Nem ele nem o demónio ficaram satisfeitos ao descobrir que ser vampiro significava ter de obedecer às ordens
de Andre.
— Ele não estava a seguir as ordens do Andre naquela noite na igreja. — Samuel esticou-se para pegar numa chávena e serviu-se do bule que estava na mesa.
— Não. É possível quebrar o laço de controlo que o criador tem sobre os seus filhos, simplesmente é difícil. — Stefan bebericou o seu chá e perguntei-me o que é que a sua
expressão cuidadosa estaria a esconder.
— Por falar em laços — disse eu, colocando finalmente a questão que me andava a perseguir desde a noite em que tinha matado Littleton —, vai haver alguma consequência permanente
por teres partilhado sangue comigo naquela noite?
Queria que ele respondesse «não». Em vez disso, encolheu os ombros.
— Provavelmente não. Uma troca de sangue não é uma grande ligação. Qualquer efeito que possa surgir vai desaparecer. Notaste alguma coisa diferente?
Abanei a cabeça — nada de truques de telecinesia.
— Como é que conseguiu chamá-la para junto de si? — perguntou Samuel. — Pensava que ela era imune aos truques dos vampiros.
— No geral é imune — murmurou Stefan. — Mas não tem de se preocupar com isso. O chamamento é um dos meus talentos. Se a Mercy não estivesse praticamente inconsciente, e disposta
a ir, não teria conseguido chamá-la. Ela não vai ficar de repente incapaz de resistir ao meu chamamento ou ao chamamento de qualquer outro vampiro.
Não lhe perguntei acerca da recordação que tinha dele a murmurar-me palavras amorosas aos meus ouvidos. Tinha a esperança de que fosse apenas algo que tivesse a ver com o
modo como me tinha chamado.
— Por que é que vieste até aqui esta noite? — perguntei em vez daquilo.
Stefan sorriu-me com um poder tal que não tive a certeza se estava a ser verdadeiro quando disse:
— Tinha de fortalecer o meu estômago. As visitas que te faço são sempre revigorantes, Mercedes, senão mesmo completamente confortáveis. — Olhou para baixo, na direção do seu
relógio. — Mas está na hora de eu me ir embora enquanto ainda tens possibilidade de dormir a noite inteira. A Senhora está à espera de um relatório exaustivo.
Pousou a gata com uma última carícia e levantou-se para ir embora. Já com a porta aberta, hesitou, e, sem olhar para mim, disse:
— Não te preocupes, Mercy. Reuni todas as informações que podia, e ela não vai voltar a adiar o julgamento. O Andre vai enfrentar a justiça.
Esperei que Stefan saísse para perguntar a Samuel:
— Eles têm aquela cadeira, a que obriga uma pessoa a dizer a verdade. Por que é que ele foi investigar?
Samuel lançou-me um olhar sombrio.
— Às vezes esqueço-me de como és nova — disse.
Fitei-o com ar zangado.
— Não penses que lá por me chateares te vais livrar de responder. Porque é que ele atrasou o julgamento?
Samuel deu um gole no chá, fez uma careta e pousou a chávena. Não era um consumidor habitual de chá.
— Eu acho que ele está preocupado com as perguntas que vão ser feitas e com as que não vão ser feitas. Se souber o suficiente, ele próprio pode depor.
Parecia-me bem, mas não conseguia perceber por que motivo tinha tentado não me dizer isso. Devia haver mais alguma coisa.
Olhou para o meu rosto e soltou uma risada cansada.
— A cada dia basta o seu mal. Vai para a cama, Mercy. Preciso de me preparar para ir trabalhar.
— O meu pai disse-me para te perguntar se ias arranjar aquele caos em que o feiticeiro transformou a tua casa — disse Jesse, subindo a uma bancada da minha oficina.
— Quando ganhar a lotaria — respondi-lhe secamente, e voltei a concentrar-me na tarefa de apertar a correia do velho BMW em que estava a trabalhar.
Jesse riu-se.
— Ele disse-me que tu ias responder isso.
O meu ombro ainda estava bastante dorido e continuava a coxear, mas pelo menos agora conseguia trabalhar. Zee tinha ficado à frente da oficina durante duas semanas — não queria
que lhe pagasse. No entanto tinha-me salvado a vida com o seu kit contra vampiros, estava em dívida para com ele. Com sorte, depois de lhe pagar ainda conseguiria pagar as
contas, mas não muito mais. Iria ter de esperar alguns meses até poder dar-me ao luxo de sequer considerar a hipótese de substituir o revestimento da minha caravana.
— Mas o que é que fazes por aqui? — perguntei.
— Estou à espera que o Gabriel saia do trabalho.
Olhei para cima na direção dela.
Riu-se mais ainda.
— Se pudesses ver a tua cara agora. Estás preocupada com quem, com ele ou comigo?
— Quando partires o coração dele, quem vai ter de aturar o choro sou eu. — Se existia um medo real na minha voz era apenas porque o filho de Zee, Tad, o predecessor de Gabriel,
tinha tido uma vida amorosa muito tumultuosa.
— Quando ela partir o meu coração? Se o coração de alguém partir, vai ser o dela — informou-me Gabriel imponentemente a partir da entrada para o escritório. — Incapaz de resistir
aos meus encantos, vai ficar devastada com a minha insensibilidade quando lhe disser que tenho de ir para a faculdade. A perda fará com que ela se resigne a uma longa e solitária
vida sem mim.
Jesse soltou risadinhas.
— Se o meu pai passar por aqui, diz-lhe que eu estou em casa por volta das dez.
Lancei um olhar severo a Gabriel.
— Tu sabes quem é o pai dela.
Riu-se.
— Um homem que não arrisque nada por amor não é um homem. — Depois piscou o olho. — Mas, pelo sim pelo não, deixo-a em casa antes das dez.
Sozinha, fechei o BMW com cuidado e encerrei a oficina. Stefan não me tinha ligado de manhã antes de ir trabalhar, portanto não sabia se tinha acontecido alguma coisa a Andre.
Não havia com que me preocupar. Andre era claramente culpado por ter criado um monstro. Ainda assim, a noite passada tinha notado no modo de Stefan uma lassidão que me deixara
um pouco preocupada. Se era um caso simples, por que razão tinha passado semanas em Chicago a investigar?
Tinha companhia à minha espera no parque de estacionamento. Warren perdera algum peso e ainda coxeava, ainda mais do que eu. Todavia, isso não o tinha impedido de limpar o
chão com Paul, que agora se encolhia de cada vez que Warren passava por ele. E se tivesse pesadelos ocasionais, ainda assim parecia muito mais feliz do que tinha sido.
Muito disso devia-se ao homem atraente encostado ao para-choques da carrinha maltratada de Warren que vestia um traje de vaqueiro lilás e um chapéu roxo. A única coisa boa
que resultara do problema de Littleton era o facto de Warren e Kyle estarem novamente juntos.
— Quem é que te deu cabo do juízo? — perguntei a Kyle, que tinha um gosto requintado.
— Tive um encontro com o marido de uma cliente e o seu todo-poderoso advogado de Seattle. Quanto mais tempo ficarem a pensar que eu sou um paneleiro sem estofo, mais alto
os enforco em tribunal.
Ri-me e beijei-o na bochecha.
— É bom ver-vos.
— Vamos ver um programa a minha casa — disse Kyle. — Ocorreu-nos que talvez gostasses de nos fazer companhia.
— Só se mudares de roupa — disse-lhe seriamente.
A carrinha abanou um bocado e Ben colocou a cabeça por cima da parte lateral da cama onde estivera a descansar. A sua pelagem vermelha tinha um aspeto áspero e os olhos estavam
mortiços. Deixou-me tocar-lhe no focinho antes de se voltar a enroscar na cama da carrinha.
Quando entrei no cabina, Warren disse:
— O Adam achou que ia fazer bem ao Ben sair. Achámos que também te ia fazer bem.
— Ainda não se está a transformar — afirmei em jeito de pergunta.
— Não. E não vai caçar connosco nas noites de Lua cheia.
Olhei através da janela traseira, mas, embora sem dúvida nos conseguisse ouvir a falar sobre ele, Ben não levantava a cabeça das patas dianteiras.
— Ele anda a comer?
— O suficiente.
O que significava que não era provável que perdesse o controlo e me comesse como tinha comido Daniel — era isso que Daniel me tinha estado a dizer. Os vampiros, incluindo
os vampiros possuídos por demónios, não comem outros vampiros.
Surpreendeu-me um pouco que Ben estivesse a passar por tantas dificuldades. Sempre me parecera o tipo de pessoa capaz de estrangular a própria avó por causa das suas pérolas
e depois disso comer uma sandes de manteiga de amendoim na cozinha dela. Talvez estivesse enganada — ou então comer alguém era mais duro. Warren tinha-me contado que Ben e
Daniel tinham iniciado uma amizade improvável enquanto andavam à caça de Littleton. Não tinha sido suficientemente forte para salvar Daniel, mas poderia ter sido suficiente
para destruir Ben.
Vimos anime japonesa, comemos comida mexicana comprada num take-away e fizemos piadas grosseiras enquanto Ben nos observava com os olhos vazios. Warren levou-nos a ambos a
casa ao início da noite, deixando-me em primeiro lugar.
Havia um bilhete de Samuel no frigorífico. Tinha sido chamado para o trabalho porque um dos outros médicos estava doente. O telefone tocou enquanto estava a ler o bilhete
de Samuel.
— Mercedes — disse a voz de Stefan ao meu ouvido. — Senta-te.
— O que se passa? — Não sou muito boa a receber ordens: permaneci onde estava.
— O Andre foi ontem a julgamento — explicou. — Confessou ter transformado o Littleton, confessou tudo: a criação do Littleton, o incidente com o Daniel, ter-me armado uma
cilada para eu me encontrar com o Littleton no hotel.
— Era por tua causa — disse. — Ele tinha inveja de ti.
— Sim. Foi durante uma conversa com ele que percebi que havia algo de estranho em relação à experiência do Daniel. Certificou-se de que alguém me dissesse que o Littleton
tinha dado entrada no hotel.
— O plano era que o Littleton te matasse — afirmei.
— Sim. Ele devia matar-me, mas essa foi a noite em que quebrou o controlo do Andre. O Andre acha que toda aquela matança fortaleceu o demónio, portanto o Littleton já não
tinha de lhe dar ouvidos. O Andre não conseguiu encontrá-lo depois dessa noite. Mas só começou a ficar verdadeiramente preocupado quando o Littleton lhe começou a deixar presentes
à porta.
— Presentes?
— Partes de corpos. — Ao ver que eu não dizia nada, Stefan continuou. — O Andre estava a ficar mesmo desesperado, e quando o Littleton me capturou a mim, ao Daniel, ao Warren
e ao Ben, convenceu a Marsilia de que tu eras a única esperança de encontrar o Littleton. Ele estava por cá quando os caminhantes quase expulsaram os vampiros dos territórios
ocidentais. É capaz de te agradar o facto de ele ter ficado verdadeiramente estupefacto por teres encontrado o Littleton em tão pouco tempo.
— Ele confessou — disse-lhe. — Portanto, o que é que te está a incomodar?
— O ninho não sofreu nenhum dano permanente — replicou, pronunciando as palavras a custo.
Sentei-me no chão da cozinha. Já tinha ouvido aquelas palavras.
— Ela libertou-o. — Não podia acreditar. — Simplesmente deixou-o ir?
Samuel sabia que isso podia acontecer, pensei. Tanto ele como Stefan sabiam que havia boas possibilidades de ele ser libertado: por isso é que Stefan se tinha esforçado tão
afincadamente para reunir provas.
— Eu disse-lhes que, ao chamar-te para a caçada, o ninho era responsável pelos danos causados na tua caravana e por teres faltado ao trabalho durante quase duas semanas. O
ninho assegurou os serviços de um empreiteiro para substituir o revestimento, embora isso possa demorar algum tempo: estão na época de mais trabalho. No entanto, nos próximos
dias os nossos contabilistas vão passar-te um cheque para te compensar pela perda de trabalho.
— Simplesmente deixaram-no ir.
— Ele enviou o Littleton para aqui, na esperança de destruir aqueles que ele entendia como sendo inimigos da Marsilia. A cadeira atestou a veracidade das palavras dele.
— Tu não és inimigo da Marsilia.
— Não. Simplesmente estava entre ele e aquilo que ele queria. O ninho compreende essas coisas.
— Então e as pessoas que morreram? — perguntei. — A família de ceifeiros, as pessoas no hotel? — A pobre mulher cujo único crime tinha sido estar a fazer um trabalho miserável
no sítio errado à hora errada. Então e Warren, a gritar de agonia, e Ben, que se recusava a ser novamente humano?
— O ninho não considera a vida humana particularmente valiosa — explicou Stefan suavemente. — A Marsilia está intrigada com a ideia de um feiticeiro que é também um vampiro.
Ela acha que um ser como esse poderá pôr fim ao seu exílio aqui. Tri-Cidades não é a terra desolada que era há duzentos anos quando foi enviada para aqui por ofensas contra
o Velho Ser que governa em Itália, mas também não é Milão. O Velho Senhor ficaria intrigado pelo poder de uma criatura capaz de fazer com que um vampiro tão velho como eu
se curve diante da sua vontade. Talvez intrigado ao ponto de nos chamar de regresso a casa.
— Ela quer que ele crie outro — sussurrei.
— Sim.
Samuel telefonou-me do trabalho na manhã seguinte. Ben tinha sido aprisionado na cela da casa de Adam. Atacara outro lobisomem sem ter sido provocado — uma tentativa de suicídio
ao estilo lobisomem. Estava gravemente ferido, mas era expectável que recuperasse.
Pensei nos olhos mortiços de Ben, na coxeadura de Warren e na mulher morta que me perseguia nos sonhos. Pensei nas «aproximadamente quarenta» mortes que o Tio Mike tinha atribuído
a Littleton; muitas dessas pessoas tinham sido mortas enquanto Andre ainda estava em controlo. Lembrei-me daquilo que Stefan tinha admitido, que os vampiros não consideravam
a vida humana particularmente valiosa.
Com o julgamento do vampiro terminado, se os humanos fizessem alguma coisa a Andre isso seria visto como um ataque ao ninho e implicaria participar numa guerra que custaria
muitas vidas a todas as partes. Portanto, embora Bran e Adam estivessem furiosos, encontravam-se de mãos atadas. Se Samuel não fosse o filho do Marrok, podia ter feito alguma
coisa.
Stefan não podia fazer nada, mesmo que quisesse. Tinha de obedecer a Marsilia. Também ele se encontrava de mãos atadas.
Mas eu não.
Ainda bem que não tinha devolvido a Zee o kit de caçar vampiros. Ia precisar dele. A primeira coisa que tinha de fazer era encontrar a casa de Andre, e dispunha de tudo aquilo
de que precisava para fazê-lo — um olfato apurado e tempo.
Corri atrás da bola e apanhei-a, correndo lentamente para que os rapazes que me perseguiam achassem que tinham alguma hipótese. Riam-se enquanto corriam, o que não era muito
eficiente da parte deles se tinham como propósito apanhar-me. Corri entre eles, e através do pátio, deixando cair a bola aos pés do pai deles, com a cauda a abanar — algo
que os coiotes selvagens não costumam fazer.
— Linda menina — disse, e em seguida fingiu atirar a bola.
Lancei-lhe um olhar reprovador, o que o fez rir.
— Atenção, seus arruaceiros — gritou aos rapazes. — Vou mandá-la para o vosso lado.
Lancei-me por entre as árvores atrás da bola, e depois apercebi-me de que os gritos excitados das crianças se tinham desvanecido por completo. Dei meia volta para perceber
o que se tinha passado, mas ambas estavam bem. Apenas estavam de olhos fixos no homem que tinha saído do SUV preto.
Adam tinha esse efeito sobre as pessoas.
Virei costas e pus-me à procura da bola, encontrando-a escondida debaixo de uma roseira. Com ela na boca, atravessei o pátio e deixei-a cair aos pés de Adam.
— Obrigado — disse-me secamente. Depois voltou-se para o homem que me tinha chamado.
— Agradeço-lhe muito por me ter informado onde ela estava. A minha filha levou-a até à casa do namorado e esqueceu-se de ficar de olho nela.
— Ora essa.
Deram um cumprimento de mão, um daqueles apertos masculinos fortes-mas-não-dolorosos.
— Convém que a mantenha debaixo de olho — disse o homem a Adam. — Ela é muito parecida com um coiote. Se se tivesse afastado mais alguns quilómetros, podia ter levado um tiro
antes que alguém reparasse na coleira.
— Eu sei. — Adam soltou uma risada triste. — Ela é metade coiote, achamos, embora a mãe dela fosse uma Pastora Alemã.
Pulei para o interior do SUV quando Adam abriu a porta. Depois entrou e acenou amigavelmente à pequena família que me tinha «encontrado». Ligou o carro e arrancou.
— É a terceira vez este mês que te vou buscar — repreendeu-me. Duas vezes em Richland e hoje em Benton City. Estava a custar-lhe uma pequena fortuna em combustível e recompensas.
Tinha-o o visto a dar dinheiro aos rapazes discretamente.
Abanei-lhe a cauda.
— Desta vez trouxe roupas — anunciou. — Salta para a parte de trás e transforma-te para podermos falar.
Abanei-lhe novamente a cauda.
Ergueu uma sobrancelha.
— Mercy, tens evitado falar comigo há tempo de mais. É altura de parar de fugir e falar. Por favor.
Embora relutantemente, pulei para o banco traseiro. Ele tinha razão. Se não estivesse pronta para falar, não tinha andado a correr por Tri-Cidades trazendo ao pescoço uma
coleira com o número de telefone dele inscrito. Claro que ter fugido do Abrigo de Animais talvez também tivesse tido alguma coisa a ver com isso.
Tinha trazido um fato de treino que cheirava a ele. Era grande, mas consegui apertar o cordão das calças de modo a não me caírem. Arregacei as mangas e depois regressei ao
banco da frente.
Esperou que eu colocasse o cinto de segurança e a seguir falou. Estava à espera que me desancasse por causa do meu hábito recente de vaguear pela cidade na forma de coiote.
No entanto, disse:
— Eu meto-te medo.
— Não, não metes — repliquei, zangada e indignada.
Olhou para mim e depois para a estrada. Reparei que estava a fazer o trajeto mais longo até casa, seguindo pela estreita via rápida paralela ao Rio Yakima que desembocaria
na parte norte de Richland.
Tinha um sorriso estampado no rosto.
— OK. E se eu dissesse que as tuas reações a mim te assustam?
O meu batimento cardíaco disparou. Aquilo simplesmente não era justo; supostamente, as mulheres são um mistério para os homens.
— És obcecado pelo controlo — disse ardorosamente. — Terás de me perdoar por eu não gostar de ser controlada.
— Eu não te controlo — replicou naquela voz profunda como a noite que conseguia usar quando queria. O filho da mãe manhoso. Mesmo estando eu tão perturbada, tinha efeito sobre
mim. — Tu é que escolheste subjugar-te.
— Eu não me subjugo a ninguém — disparei, olhando através do vidro lateral para lhe mostrar que queria pôr fim àquela conversa.
— Mas queres.
Não tinha resposta para aquilo.
— Demorei este tempo todo a encontrar uma resposta para o nosso problema — disse. — E se eu deixar que sejas tu a determinar as coisas?
Lancei-lhe um olhar desconfiado.
— O que queres dizer com isso?
— Quero dizer apenas o que disse. Quando sairmos, tu escolhes os sítios onde vamos. Se nos beijarmos, ou outra coisa qualquer, será porque tu começaste. Dessa forma, mesmo
que te queiras subjugar a mim, não podes porque eu não estou a pedir nada.
Cruzei os braços sobre o peito e olhei fixamente o rio.
— Dá-me um tempo para pensar nisso.
— Parece-me justo. Então, queres-me contar o que estiveste a fazer em Benton City?
— A caçar.
Inalou profundamente.
— Assim não o vais encontrar.
— Encontrar quem? — perguntei inocentemente.
— O vampiro. O Andre. Assim não o vais encontrar. Eles têm maneiras de adulterar o cheiro deles e magia para ocultar os seus locais de repouso diurnos, inclusive de outros
vampiros. É por isso que o Warren e o Ben não conseguiam localizar o Littleton quando foram à procura dele.
— As magias deles não são tão eficazes comigo — expliquei-lhe.
— E consegues falar com fantasmas que mais ninguém vê — disparou impacientemente. — Razão pela qual a Marsilia te pôs atrás do Littleton. — Ainda estava zangado comigo por
eu ter feito isso, mesmo sendo verdade que, ou talvez especialmente porque, tinha resultado. — Há quanto tempo é que andas à procura do Andre? Desde que a Marsilia o libertou?
Não lhe dei uma resposta. Não lhe quis dar uma resposta. Ocorreu-me que aquela era a primeira ocasião em que me sentia eu própria na sua presença desde que tínhamos saído
juntos pela primeira vez. Talvez fosse do sangue do vampiro.
— O que é que eu fiz para merecer esse olhar? — perguntou-me.
— Por que é que agora não me apetece obedecer-te? — perguntei-lhe.
Sorriu-me e virou para a variante que percorria os arrabaldes de Richland. Eram quatro e meia e a estrada estava cheia de trânsito.
— Ser Alfa é diferente de ser apenas dominante — disse Adam.
Resfoleguei.
— Eu sei disso. Não te esqueças do sítio onde eu cresci.
— Se estiver longe do bando, pode acontecer o Alfa ficar dormente. O Bran pode fazer isso as vezes que lhe apetecer, mas para os restantes é preciso um enorme esforço.
Não sei como é que esperava que eu reagisse àquilo, mas não me fez sentir feliz.
— Então foi deliberado, como me fizeste sentir?
Abanou a cabeça, e eu libertei o ar que não me tinha apercebido que estava a conter. Não gosto mesmo nada de ser manipulada, e ser manipulada por vias paranormais é pior.
— Não. Eu disse-te que era preciso um esforço. E o… impacto que tens em mim torna as coisas mais difíceis. — Agora não estava a olhar para mim. Ele era um produto do seu tempo.
Podia ter aspeto de quem está na casa dos vinte e muitos, mas tinha nascido depois da Segunda Guerra Mundial, e um homem educado nos anos cinquenta não falava dos seus sentimentos.
Era interessante vê-lo embaraçado. De repente, senti-me muito mais alegre.
— Não consigo evitar sentir-me tão elétrico — disse passado um momento. — Nem sequer sei se é mais por causa do lobisomem Alfa ou por causa de mim, mas estar perto de ti faz
com que o predador dentro de mim venha ao de cima.
— E portanto tiveste de me obrigar a querer agradar-te? — Fiz questão que ouvisse como me sentia em relação a isso.
— Não! — Inspirou fundo e depois disse: — Por favor não sejas hostil comigo. Tu queres uma explicação. Queres que eu pare de te influenciar. Estou a tentar fazer ambas as
coisas, mas não é fácil. Por favor.
Foi o «por favor» que me atingiu. Encostei as costas à porta para ficar o mais longe possível dele.
— Diz-me lá, então.
— O Bran consegue controlar o efeito do seu Alfa ao ponto de fazer com que os lobisomens não saibam quem é e o que é. Eu não sou tão talentoso, consigo escondê-lo de modo
a que não interfira com a minha vida quotidiana. Quando negoceio contratos, não gosto de exercer influências indevidas sobre as pessoas com quem estou a negociar. Mesmo no
bando não uso muito essa capacidade. A cooperação é sempre melhor do que a coerção, especialmente quando essa coerção apenas dura até à altura em que deixam de estar na minha
presença. Só uso a artilharia pesada quando há problemas no bando que não podem ser resolvidos através da conversa. — Olhou para mim e quase bateu no carro da frente quando
o trânsito parou inesperadamente.
Se a minha audição não fosse tão boa, não o teria ouvido quando disse:
— Quando estou contigo, o meu controlo dispara. Acho que é isso que tens vindo a sentir.
Ou seja, podia comandar a minha obediência sempre que quisesse. Só porque escolheu não o fazer é que continuei a ter livre arbítrio.
— Consigo cheirar antes de agires de acordo com esse medo — de forma mais confiante. — Gostaria de realçar que não tiveste problemas em rejeitar o Samuel quando tinhas dezasseis
anos, e ele é mais dominante do que eu.
— Ele não é um Alfa e, além disso, não o rejeitei olhos nos olhos. Fui-me embora sem falar com ele.
— Eu vi-te a fazer frente ao Bran e a não recuar.
— Não, não viste. — Eu não era estúpida. Ninguém confrontava Bran.
Riu-se.
— Eu ouvi-te. Lembras-te quando o Bran te disse para seres uma linda menina e deixares que os lobos tratassem da coisa assustadora, garantindo assim que tu fosses atrás do
cabrão que tinha levado a Jesse e o encontrasses?
— Não discuti com ele — fiz notar.
— Porque não querias saber se tinhas a permissão dele ou não. A única razão por que te subjugas a mim é porque uma parte qualquer de ti quer. Estou disposto a admitir que
o facto de eu ser um Alfa faz com que essa parte de ti sobressaia, mas és tu que baixas a guarda ao pé de mim.
Não falei com ele durante o resto do caminho até casa. Fui suficientemente justa para admitir a mim mesma que estava zangada porque tinha a certeza de que ele tinha razão,
mas não justa o suficiente para lho dizer.
Sendo um estratega excecional, deixou-me ansiosa. Nem sequer saiu do carro para me abrir a porta — gesto que normalmente tinha. Pulei para fora e mantive-me parada com a porta
aberta durante algum tempo.
— Parece que vai estrear um filme bom — murmurei. — Gostavas de ir comigo no sábado à tarde? — Não era minha intenção perguntar-lhe aquilo. O convite simplesmente saiu-me.
Sorriu, aquele sorriso lento que começava nos seus olhos e que nunca chegava propriamente à boca. Mexi-me inquietamente porque aquele sorriso tinha um efeito desnorteante
sobre mim.
— Em que cinema?
Engoli em seco. Isto não era uma boa ideia. De todo.
— O que fica atrás do centro comercial, acho. Eu confirmo.
— OK. Depois liga-me a dizer as horas.
— Eu levo o carro.
— OK. — Nos seus lábios desenhava-se agora um sorriso.
Idiota, pensei, ovelha idiota a caminho do matadouro. Fechei a porta sem dizer nada mais e entrei em casa.
Saída da frigideira para me meter na fogueira, pensei, olhando para Samuel.
— Vais ao cinema? — perguntou, tendo obviamente ouvido o que eu dissera a Adam.
— Sim. — Levantei o queixo e recusei-me a ceder à sensação de aperto no meu estômago. O Samuel não me iria magoar. O problema é que eu também não o queria magoar a ele.
Com os olhos semicerrados, inspirou.
— Cheiras outra vez a ele.
— Ele foi-me buscar quando eu estava a correr na forma de coiote, por isso levou-me roupas.
Samuel moveu-se com a rapidez de um predador e colocou a mão na minha nuca. Mantive-me muito quieta quando colocou o nariz debaixo da minha orelha. Não consegui deixar de
cheirá-lo também. Como é que o odor dele podia ter sobre mim um efeito tão poderoso quanto o sorriso de Adam? Não estava certo.
— Quando fores com ele — rosnou com o corpo a tremer de prontidão ou dor. Não consegui perceber qual delas era porque sentia o cheiro de ambas —, quero que te lembres disto.
Beijou-me. Foi profundamente sério, belo — e, considerando a raiva nos seus olhos quando começou, surpreendentemente suave.
Recuou e dirigiu-me um ténue sorriso de agrado.
— Não fiques tão preocupada, Mercy, meu amor.
— Não sou uma vaca parideira — disse-lhe, tentando não hiperventilar.
— Não — concordou. — Não te vou mentir em relação ao que eu sinto. A ideia de ter filhos que não vão morrer antes de nascerem é poderosa. Mas quero que saibas que o lobo que
existe em mim não quer saber dessas coisas. Só te quer a ti.
Saiu enquanto eu ainda estava a tentar formular uma resposta. Não em direção ao seu quarto, mas para fora de casa. Ouvi o seu carro a ser ligado e a arrancar.
Sentei-me no sofá e abracei uma das almofadas. Estava a esforçar-me tanto por não pensar em Samuel ou em Adam que tive de pensar noutra coisa. Algo como encontrar Andre.
Marsilia tinha-me dito que a razão pela qual os vampiros temiam os caminhantes era que nós éramos resistentes à magia dos vampiros e conseguíamos falar com fantasmas.
Mas conforme Darryl me tinha lembrado, os fantasmas evitam o mal — como os vampiros. Posso não ser suscetível a alguma da magia dos vampiros, mas evidentemente a magia que
me impedia de farejar os covis deles funcionava na perfeição. Talvez os outros caminhantes tivessem sido mais poderosos do que eu.
A Medea saltou para o meu lado no sofá.
Marsilia não se podia estar a referir a algo como a forma através da qual tinha usado a Sra. Hanna para encontrar Littleton. Esse era um caso especial. A maior parte dos fantasmas
não é capaz de comunicar.
Não há muitos fantasmas em Tri-Cidades, é demasiado recente para isso. Não havia muitas pessoas aqui até à Segunda Guerra Mundial, quando os esforços para desenvolver uma
bomba nuclear originaram o Projeto Hanford. Apesar da, ou se calhar por causa da, causa militar por detrás do crescimento das cidades, não havia muita violência em Tri-Cidades
no passado — e a morte violenta e sem sentido era a principal causa da existência de fantasmas.
As mortes violentas e sem sentido aconteciam num rebanho de um vampiro.
Pousei a almofada e a Medea trepou para o meu colo.
Eu não era a única pessoa que conseguia ver fantasmas. Há montes de sítios assombrados em Portland, onde eu tinha feito o liceu — e as pessoas normais do quotidiano vêem-nos.
Como é evidente, a maior parte dos humanos não os vê tão bem como eu, e vê-os sobretudo à noite. Nunca compreendi isso. Os fantasmas circulam durante o dia com a mesma frequência
que circulam durante a noite, embora haja muitas coisas que não consigam suportar a luz do dia.
Como os vampiros.
Não ia ser assim tão fácil.
No dia seguinte, depois do trabalho, fui à procura de Andre em cima de duas pernas em vez de quatro patas. Não estava certa de que procurar fantasmas iria funcionar. Em primeiro
lugar, os fantasmas não são assim tão comuns. Podiam morrer mil pessoas numa batalha e delas não resultar nenhum fantasma. E mesmo que houvesse fantasmas, não existia nenhuma
garantia de que os ia ver — ou perceber que eram fantasmas se os visse. Alguns dos mortos, como a Sra. Hanna, apareciam conforme tinham aparecido em vida.
Estava à procura de uma agulha num palheiro para poder matar Andre.
Percebi que não seria como matar Littleton — e isso já tinha sido mau quanto bastasse. Andre estaria a dormir e indefeso. Mesmo que conseguisse encontrá-lo, não sabia se conseguiria
de facto executá-lo.
E se de facto o matasse, o ninho de Marsilia viria atrás de mim.
Pelo menos aí não teria de fazer uma escolha entre Adam e Samuel. Em tudo existe um lado bom.
Andei à caça toda a tarde e regressei mesmo antes do anoitecer. Samuel estava poucas vezes em casa, mas tinha começado a deixar-me refeições no frigorífico. Às vezes comida
do take-away, mas normalmente coisas cozinhadas por ele. Quando estava em casa, agia como se nunca me tivesse beijado, como se nunca me tivesse dito que ainda estava interessado
em mim. Não sabia se isso era tranquilizador ou assustador. Samuel era um caçador muito paciente.
Levei Adam ao cinema no sábado. Comportou-se muito bem. Depois fomos de carro até à Reserva de Hanford e corremos nas formas de lobo e coiote através de campo aberto. Ele
não tinha a capacidade de Samuel de pôr de parte todo o seu lado humano e divertir-se na alegria de ser uma coisa selvagem. Em vez disso, brincou com a mesma intensidade que
usava para tudo o resto. O que significava que, de cada vez que o perseguia, não tinha verdadeiramente a certeza de que o queria apanhar — e quando ele me perseguia, sentia-me
como um coelho.
Estávamos ambos cansados quando o deixei em sua casa antes de jantar. Não me beijou, mas dirigiu-me um olhar que foi quase tão bom.
Não queria ir para casa e ver Samuel depois daquele olhar. Por isso conduzi novamente até Kennewick e simplesmente passeei de um lado para o outro. Observar Adam a fazer de
besta submissa tinha sido… confrangedor. Adam não era como Bran, que gostava de dramatizações. Não fiquei a gostar muito de mim mesma por ter obrigado Adam a fazê-lo. A brincadeira
na Reserva tinha sido melhor, aí não lhe foi tão fácil subjugar o lobo.
Parei num sinal Stop numa das muitas urbanizações novas que tinham surgido nos últimos anos, e ali estava ele. De olhos encovados e triste, o homem de meia-idade estava postado
no alpendre de uma casa de aspeto respeitável e pôs-se a olhar para mim.
Encostei o Rabbit e estacionei-o, pondo-me também a olhar para ele. Enquanto eu ali estava, um outro apareceu ao seu lado: uma velhota. Quando o terceiro fantasma apareceu,
saí do carro. A casa tinha apenas uns dois anos: três pessoas era uma perda um pouco excessiva para uma família alojada numa casa há dois anos — especialmente três pessoas
que se tinham tornado fantasmas em vez de passarem para o outro lado, como acontece com a maior parte das pessoas que morrem.
Peguei na mochila que tinha o kit de caçar vampiros de Zee e atravessei a rua. Só quando comecei a subir para o alpendre é que me apercebi que ele teria algumas pessoas em
casa. Por uma qualquer razão, tinha-me esquecido de que teria de tratar do rebanho do vampiro antes de matar o vampiro.
Toquei à campainha e esforcei-me ao máximo para não olhar para os fantasmas, que agora eram bem mais do que três: conseguia cheirá-los mesmo que não conseguisse vê-los.
Ninguém veio à porta, embora os conseguisse escutar no interior. Não havia qualquer odor a medo ou raiva, apenas corpos sem asseio. Quando rodei a maçaneta, a porta abriu-se.
No interior o cheiro era mau. Se é verdade que os vampiros têm um olfato quase tão bom quanto o meu, não sei como é que algum vampiro conseguiria estar aqui. Mas, bem vistas
as coisas, os vampiros não têm de respirar.
Tentei usar o olfato para perceber a quem pertencia a casa onde estava. O seu odor era parcialmente mascarado pelo cheiro desagradável a suor e morte, pelo que não tinha como
ter a certeza de que tinha acertado no vampiro, apenas sabia que era do sexo masculino.
Os fantasmas seguiram-me. Conseguia senti-los a roçarem-se em mim, a empurrarem-me para a frente como se soubessem a razão pela qual estava aqui e estivessem determinados
a ajudar. Empurraram e puxaram até eu ter chegado a uma porta ao lado da casa de banho no piso principal. Era mais estreita do que as restantes portas, obviamente construída
para servir de armário de roupa. Mas, perante o incitamento dos meus guias, abri a porta e não fiquei surpreendida ao ver umas escadas em caracol que desciam para um buraco
negro.
Nunca tive medo do escuro. Mesmo quando não consigo ver, o meu nariz e os meus ouvidos guiam-me bem. Não sou claustrofóbica. Ainda assim, descer através daquele buraco foi
uma das coisas mais difíceis que algum dia fiz porque, mesmo sabendo que ele estaria inativo durante o dia, a ideia de tentar matar um vampiro assustava-me imenso.
Não tinha trazido lanterna. Não estava à espera de vir a precisar de uma: afinal de contas era dia. Havia alguma luz da escadaria. Consegui perceber que o compartimento não
era muito grande, apenas um pouco maior do que a casa de banho comum. E havia algo, uma cama ou um sofá, que se estendia no lado oposto do quarto.
Fechei os olhos e contei um minuto inteiro. Quando reabri os olhos, conseguia ver um pouco melhor. Era uma cama e o vampiro nela deitado não era Andre. O seu cabelo era mais
claro. O único macho loiro do ninho que tinha o seu próprio rebanho era Wulfe, o Mago. Não tinha qualquer contenda com ele.
Tive de lutar com os fantasmas enquanto subia a escadaria. Eles sabiam o motivo pelo qual estava ali e queriam o vampiro morto.
— Desculpem — disse-lhes depois de ter alcançado o corredor. — Não posso simplesmente matar sem razão.
— Então por que é que veio?
Assustei-me e dei meia volta, à espera de ver o vampiro atrás de mim, mas apenas via a escadaria escura. No entanto não podia ter interpretado a voz como fruto da minha imaginação
porque todos os fantasmas se tinham ido embora. Toquei no cordeiro do colar que tinha comprado para substituir o que Littleton tinha partido.
Riu-se.
— Anda atrás do Andre? Ele não vive aqui. Mas podia matar-me a mim.
— Devia? — perguntei, zangada por ele me ter assustado.
— Eu sei como é que um feiticeiro é feito — disse. — Mas ninguém me perguntou.
— Então por que é que não criou um feiticeiro e o transformou? — perguntei, mais confiante. A iluminação do corredor era fraca, mas consegui perceber que ainda entrava luz
na casa através das janelas. Se Wulfe estivesse acordado, estaria confinado ao quarto escuro onde estava em segurança.
— Porque não sou um imbecil. A Marsilia também não é, mas está obcecada com o regresso a Milão.
— Então não tenho razões para o matar — afirmei.
— Seja como for, talvez não tivesse sido capaz de me matar — disse, emergindo da escadaria. Movia-se muito lentamente, como um lagarto demasiado frio.
Ouvi um lamento vindo de detrás de uma das portas fechadas ao lado da casa de banho e senti-me solidária. Também eu me queria lamentar.
— Eu não ando atrás de si — disse-lhe firmemente, embora tenha andado às arrecuas até alcançar um círculo de luz na extremidade do corredor.
Parou meio dentro meio fora da escadaria. Os seus olhos eram vagos como os de um homem morto.
— Ainda bem — replicou. — Se matar o Andre, não conto a ninguém. E ninguém irá perguntar.
E desapareceu, retirando-se do corredor e descendo as escadas com uma velocidade tal que mal me apercebi do movimento, embora estivesse a olhá-lo fixamente.
Saí da sua casa a passo porque, se me tivesse movido mais depressa, teria desatado a correr aos gritos.
15
Encontrei o covil de outro vampiro em Pasco, mas desta vez fui mais inteligente. Regressei ao meio-dia do dia seguinte quando o Sol estava a pino e transformei-me em coiote
porque o meu olfato era mais apurado quando andava sobre quatro patas.
Pulei a vedação e pus-me à procura, mas fosse lá o que os vampiros fizessem para esconder os seus covis quase funcionava. Não consegui detetar nenhum odor em redor da casa,
mas o carro cheirava a uma vampira, Estelle.
O terceiro rebanho que encontrei uns dias depois era o de Andre.
Vivia numa bela casinha praticamente escondida atrás de um enorme celeiro. Estava localizada num terreno de dois hectares ao lado da área selvagem protegida perto do Hood
Park, mesmo na zona limítrofe de Pasco.
Nunca me teria ocorrido procurar tão longe uma vez que os vampiros, ao contrário dos lobisomens, são criaturas da cidade. Foi só por mera sorte que fui fazer um test-drive
com uma carrinha VW para aquelas bandas. Encostei para fazer uns ajustes e, assim que saí da carrinha, percebi que dentro daquela casa tinham morrido pessoas, muitas pessoas.
Fui para a mala da carrinha para me transformar em coiote.
Ou Andre era descuidado ou não era tão bom quanto Estelle ou Wulfe, porque detetei o seu cheiro por toda a propriedade. Ele gostava de se sentar numa mesa para piqueniques
e contemplar a área protegida. Era uma bela paisagem. Não vi nenhum fantasma, mas conseguia senti-los, dezenas deles, à espera que eu fizesse alguma coisa.
Em vez disso, regressei para a oficina e fui trabalhar.
Se o pudesse ter matado no dia em que Marsilia o libertara, ou mesmo na noite em que matara Littleton, teria sido mais fácil. Tinha matado animais para os comer, e apenas
porque era da natureza do coiote alimentar-se de ratos e coelhos. Tinha matado três vezes, em autodefesa ou em defesa de outros. Assassinato a sangue frio era mais difícil.
Uma hora antes de fechar, deixei que Gabriel ficasse a tomar conta da oficina e conduzi até casa. Samuel uma vez mais não estava lá, o que provavelmente era bom. Sentei-me
no quarto e escrevi uma lista das pessoas que sabia que Littleton e Andre, entre si, tinham matado. Não sabia todos os nomes, mas incluí Daniel duas vezes, dado que Andre
o tinha matado uma vez — e Littleton era responsável pela sua segunda morte. No final da lista anotei o nome de Warren. Depois, por baixo, acrescentei os nomes de Samuel,
Adam, Ben e Stefan. Todos eles tinham sido atacados pelo feiticeiro.
Andre tencionava criar outro monstro como Littleton. Seria eu capaz de matá-lo enquanto ele estava indefeso durante o dia?
Stefan não lhe podia tocar porque estava vinculado a Marsilia por juramento. Os lobos não lhe podiam tocar senão muitas pessoas morreriam.
Se eu matasse Andre, a única pessoa a sofrer seria eu. Mais cedo ou mais tarde, Marsilia iria descobrir quem o tinha matado mesmo que Wulfe não lhe contasse — e a confiança
que tinha em Wulfe tinha mais ou menos a extensão da distância a que seria capaz de atirá-lo. Quando Marsilia descobrisse, mandaria alguém matar-me. Restava-me apenas confiar
que não seria estúpida ao ponto de o fazer de um modo que envolvesse Samuel ou Adam: também não ia querer uma guerra, não com o ninho preparado para a rebelião.
Valia a pena arriscar a minha vida para matar Andre?
Recordei deliberadamente o rosto da criada e o som dos seus gritos roucos enquanto Littleton a matava lentamente à minha frente. Lembrei-me da expressão despedaçada que Adam
tentara esconder atrás da raiva nas luzes brilhantes do hospital, e os longos dias a seguir àquela noite até que Samuel conseguisse articular duas palavras. Depois havia Daniel,
enfraquecido e faminto, no julgamento de Stefan. Andre tinha-o sacrificado duas vezes, uma por vingança e uma segunda vez para ver quão poderoso era o seu monstro.
Fui ao meu cofre das armas e peguei em ambos os revólveres, a SIG Sauer de 9 mm e a Smith & Wesson de calibre .44. Tive de vestir um casaco de linho por cima da minha t-shirt
para poder colocar a SIG no seu coldre de ombro. A arma de calibre .44 teria de ir na mochila juntamente com os restantes tesouros de caçar vampiros. Tinha praticamente a
certeza de que as armas não iriam servir de nada contra Andre, mas iriam derrubar qualquer uma das suas ovelhas humanas — embora se eu considerasse o rebanho de Wulfe como
exemplo, era bem possível que não tivesse de me vir a preocupar com os dadores de sangue de Andre.
A minha esperança era a de que não se interpusessem no caminho. A ideia de matar mais pessoas fez-me sentir fisicamente mal, especialmente porque o rebanho de Andre não tinha
culpa de nada para além de serem vítimas.
Mesmo com as armas, quando cheguei ao Rabbit, não estava inteiramente convencida de que ia atrás de Andre. Virei impulsivamente para a rua de Adam e segui de carro em direção
à sua casa.
Jesse abriu a porta.
— Mercy? O meu pai ainda não voltou do trabalho.
— Ainda bem — disse-lhe. — Preciso de falar com o Ben.
Desviou-se da porta, convidando-me a entrar.
— Ele ainda está confinado — informou-me. — De cada vez que o meu pai não está por perto para o impedir, lança-se ao lobo que está mais perto.
Segui-a escada abaixo. Ben estava o mais longe possível da porta, encolhido e de costas voltadas para nós.
— Ben? — chamei.
As suas orelhas mexeram e esticou-se um pouco mais sobre o chão. Sentei-me no chão em frente às grades e encostei a testa à porta.
— Estás bem? — perguntou Jesse.
A miséria de Ben exalava um odor desagradável, quase como uma doença.
— Estou ótima — respondi. — Podes deixar-nos a sós por uns minutos?
— Claro. De qualquer forma, estava a meio de um programa. — Exibiu-me um breve sorriso rasgado. — Estava a ver Um Lobisomem Americano em Londres.
Esperei até que Jesse se fosse embora e depois sussurrei para que nenhum dos outros lobisomens cujo cheiro eu sentia na casa pudesse ouvir.
— Encontrei o Andre — disse-lhe. Não tinha certeza até que ponto tinha cedido ao lobo, mas, ao ouvir a menção do nome do vampiro, pôs-se sobre as quatro patas a rosnar.
— Não, não podes ir comigo — informei-o. — Se a Marsilia achar que um dos lobisomens está envolvido na morte do Andre, vai haver retaliação. Eu vim aqui… Acho que vim aqui
porque estou com medo. Não sei como é que eu vou conseguir matar o Andre enquanto está a dormir e depois continuar a ser eu mesma.
Ben deu dois passos lentos em direção a mim. Estiquei o braço e toquei na jaula com as pontas dos dedos.
— Não importa. Tem de ser feito e eu sou a pessoa mais indicada para o fazer.
Abruptamente impaciente comigo mesma, levantei-me.
— Não deixes que eles levem a melhor, Ben. Não permitas que eles também te destruam a ti.
Ganiu, mas não fiquei mais tempo para conversar. Tinha um vampiro para matar.
O homem da meteorologia tinha previsto uma mudança no tempo que ia durar três dias, e quando saí da casa de Adam as nuvens escuras que tinham andado a mover-se todo o dia
adensaram-se de forma impressionante. Um vento quente atingiu-me o cabelo e despenteou-mo de encontro ao rosto.
Quando entrei no carro, tive o cuidado de segurar na porta para que o vento não a empurrasse contra o reluzente Toyota novo ao lado do qual tinha estacionado.
Ainda não tinha começado a chover quando entrei com o meu Rabbit no caminho de gravilha que desembocava na casa de Andre, estacionando em frente à porta da garagem do celeiro
que tinha a dimensão de uma autocaravana. Havia casas ali perto, mas estavam mais próximas da auto-estrada do que da casa de Andre, e o celeiro, juntamente com vegetação estrategicamente
plantada, protegia a sua privacidade.
Qualquer pessoa que por ali passasse conseguiria ver o meu carro, mas na verdade não estava preocupada com os vizinhos. Eu ia destruir o corpo de Andre, e os vampiros jamais
permitiriam que a polícia humana descobrisse os despojos de alguém — incluindo os meus.
A erva chegava-me aos joelhos e produzia um ruído de mastigação a cada passo meu. Ninguém regava o relvado há um mês ou mais. Havia flores plantadas em redor do limite da
casa, há muito mortas. Suponho que Andre não se importasse com o aspeto da sua casa à luz do dia.
Coloquei a mochila aos ombros e contornei o celeiro para bater à porta. Ninguém atendeu e a porta estava bem trancada. Caminhei em volta da casa e encontrei uma porta de acesso
ao pátio do outro lado. Também estava trancada, mas a utilização adequada de uma pedra do pavimento resolveu o assunto na perfeição.
Ninguém apareceu para investigar o som do vidro a partir.
A sala de jantar onde entrei estava imaculadamente limpa e tresandava a Pine-Sol3, cujo cheiro me fez espirrar para além de disfarçar qualquer outro odor que pudesse estar
presente.
À semelhança da casa, a divisão era pequena mas bonita. O chão era de madeira de carvalho, antiquado através de uma branqueação que fazia a sala parecer maior do que na verdade
era. Num dos lados da sala estava uma lareira de tijolo. Fotografias de família cobriam o grosso da superfície da prateleira sobre ela. Curiosa, pus-me a observá-las. Filhos
e netos, pensei, e nenhum deles da família de Andre. Quanto tempo é que ia demorar até que um deles de apercebesse de que não ouvia notícias dos avós há demasiado tempo? Há
quanto tempo é que ele aqui estava para deixar tantos fantasmas?
Talvez os proprietários da casa estivessem a fazer uma viagem pelo interior na autocaravana para a qual fora construído o celeiro. Assim esperava.
Comecei a virar-me e algo tombou uma das fotografias da prateleira. Vidros espalharam-se pelo chão e uma brisa gélida atingiu-me a face.
Saí da sala de jantar e caminhei até à cozinha, que era surpreendentemente grande considerando a dimensão da casa. Alguém tinha pintado de branco os móveis de madeira, e por
cima do branco estavam pintadas flores e trepadeiras. A janela por cima da banca estava tapada com sacos de lixo verde-escuros presos com fita adesiva para que não entrasse
nenhuma luz.
Também não havia vampiros na sala de estar, embora não estivesse tão limpa como a sala de jantar ou a cozinha. Alguém tinha deixado um copo sujo numa das extremidades da mesa
— e havia manchas escuras no tapete bege. Sangue, pensei, mas o Pine-Sol ainda me estava a incapacitar o olfato.
A porta da casa de banho estava aberta, mas as duas portas a seguir não. Não achava que Andre estaria atrás de qualquer uma delas, porque alguém tinha colocado brilhantes
trincos novos no exterior para manter preso quem quer que estivesse no interior.
Abri a primeira porta cautelosamente e tive de dar um passo rápido para trás, mesmo com o meu olfato disfuncional, por causa do forte cheiro a dejetos humanos.
O homem estava encolhido por cima de uma pilha imunda de sacos-cama. Encolheu-se ainda mais quando abri a porta e, aos soluços, murmurou:
— Eles vêm atrás de mim, Senhor. Não deixe que eles venham. Não deixe que eles venham.
— Chiu — disse. — Eu não lhe vou fazer mal.
O cheiro era horrível, mas teria de ser muito mais forte para me afugentar. Gritou quando o toquei no ombro.
— Venha — disse-lhe. — Vamos sair daqui.
Rebolou até ficar de costas e agarrou a minha cabeça com ambas as mãos.
— Vampiro. — Com olhos de tresloucado, abanou-me lentamente. — Vampiro.
— Eu sei. Mas agora é de dia. Venha comigo lá para fora, onde ele não o pode apanhar.
Pareceu ter compreendido essa parte e cooperou comigo enquanto o ajudava a levantar-se. Coloquei o braço dele por cima do meu ombro e seguimos numa dança bêbada até à sala
de estar. Destranquei a porta e levei-o para o exterior.
O céu estava mais escuro, dando a ideia de que o dia tinha avançado umas horas. Sentei-o na mesa de piquenique e dei-lhe ordens para que permanecesse ali, mas não tinha a
certeza se me teria ouvido porque estava a murmurar palavras sobre o homem escuro. Não tinha importância. Não estava em condições físicas de ir muito longe.
Deixei a porta da sala de estar aberta e apressei-me ao segundo quarto. Desta vez o ocupante era uma mulher mais idosa. Marcas de mordidelas desenhavam-se em ambos os braços.
Se os ferimentos não fossem aos pares, teria parecido uma drogada. Estava mais alerta do que o homem. Não cheirava tão mal, e, embora o que ela dizia não fizesse mais sentido
do que as palavras do homem, foi cooperante na saída do quarto. Tive mais dificuldades em fazer com que me largasse assim que a sentei na mesa de piquenique.
— Fuja — disse ela. — Fuja.
— Eu vou tratar dele — disse-lhe. — Está tudo bem.
— Não — replicou, embora me tivesse largado. — Não.
A casa protegia-os do vento mais forte, e ainda não tinha começado a chover, embora tivesse escutado o estrépito de um trovão. Se não começasse a chover em breve, alguns incêndios
iriam resultar desta tempestade.
A preocupação mundana acalmou-me enquanto regressava ao interior da casa para caçar Andre. Deixei os quartos para o fim. Em parte porque não estava com a menor pressa de regressar
a qualquer um deles, mas também porque tinha a certeza de que Andre tinha de estar do lado de fora dos quartos de modo a poder trancá-los.
Não havia passagens secretas que conseguisse vislumbrar na casa de banho, e o armário ao lado estava ocupado por um forno e um aquecedor de água: não havia espaço para um
vampiro. Encaminhei-me novamente para a sala de estar e ouvi um novo estrondo vindo da sala de jantar.
Cheguei lá no momento em que a última fotografia encaixilhada caía no chão, mesmo em frente a um pequeno tapete. Algo me empurrou pelas omoplatas e dei mais um passo em frente.
— Debaixo do tapete? — disse eu. — Que falta de originalidade. — O sarcasmo, descobri, torna o pavor mais suportável. Alimentava a esperança de que Andre estivesse indefeso
durante o dia, mesmo considerando que isso não acontecera com Wulfe. Andre tinha a mesma idade de Stefan, e Stefan tinha-me dito que morria durante o dia.
Desviei o tapete e vi um alçapão com um puxador anelar de ferro inserido. Saquei da lanterna antes de abrir o alçapão.
Aqui não havia nada tão sofisticado como a escadaria circular de Wulfe. Um escadote de madeira estendia-se diretamente a partir da abertura. Enfiei a cabeça no buraco, esperando
que o fantasma que me tinha empurrado antes não fizesse o mesmo enquanto eu estava de cabeça virada para baixo.
Não era uma cave mas antes um buraco muito profundo escavado na terra para permitir o acesso à canalização debaixo da casa. Havia algumas estantes antigas encostadas a uma
parede com alicerces e alguns materiais para construção de cercas. Do outro lado da divisão encontrava-se um dossel saído diretamente de uma novela romântica.
A minha lanterna descortinou um padrão bordado sobre o veludo que envolvia a cama, escondendo o seu ocupante, se é que lá estava um.
Coloquei-me no topo da escada e, com o máximo cuidado, desci dois degraus. Daí em diante foi uma descida fácil até ao chão. Abri a mochila e retirei a estaca e uma marreta
que tinha pegado da oficina: tinha aprendido que enfiar uma estaca através do coração de um vampiro era mais difícil do que eu pensava.
Deixei a mochila e o resto do seu conteúdo aos pés da escada. Não me ia servir de nada enquanto não tivesse espetado a estaca em Andre e, além disso, não conseguia transportar
mais nada para além da marreta, da estaca e da lanterna.
Acima de mim, um raio caiu algures perto do sítio onde me encontrava, fazendo-me saltar. Se não me acalmasse, ia ter um ataque cardíaco antes de matar Andre — e não seria
isso um desperdício?
Mantive-me o mais distante possível da cama e usei a estaca para abrir as cortinas da cama.
Andre estava lá. Quando o feixe de luz da lanterna lhe atingiu a face, abriu os olhos. Tal como Wulfe, tinha os olhos vagos e cegos. Recuei um passo, pronta para correr, mas
Andre simplesmente permaneceu ali deitado com os olhos abertos. Estava completamente vestido, com uma camisa rosa e calças de cor bege.
Com o coração na garganta, forcei-me a caminhar em frente e pousei a lanterna na cama, num sítio que me desse alguma luz mas onde não fosse provável que rodasse e me cegasse.
Pousei a ponta da estaca no seu peito. Provavelmente teria sido mais inteligente abrir-lhe a camisa, mas não fui capaz de me forçar a tocá-lo. A estaca tinha atravessado a
roupa de Littleton, portanto também devia atravessar a de Andre.
Embora tivesse passado o dia sufocada com náuseas, ter descoberto os prisioneiros dele tinha-me finalmente libertado da minha consciência. Andre precisava de morrer.
As suas mãos começaram a mexer, o que me assustou e fez com que o primeiro golpe fosse ao lado e a estaca deslizasse ao longo das costelas em vez de entrar. Abriu a boca,
pondo os colmilhos a descoberto, e as suas mãos foram conduzidas ao encontro do seu peito.
Recoloquei a estaca rapidamente e desta vez acertei em cheio na extremidade da estaca com a marreta. Senti a madeira a bater em osso e a abrir caminho através dos tecidos
mais moles por baixo. Dei uma nova martelada e estaca foi completamente enterrada no seu peito.
À semelhança do que tinha acontecido com Littleton, o corpo de Andre começou com espasmos. Corri em direção à mochila a entoar «faca, faca, faca» e tropecei numa parte desnivelada
no chão de terra. Ainda estava de quatro quando Andre atirou a lanterna para o chão e esta rolou para debaixo da cama, deixando-nos na escuridão.
Rastejei para a frente, encontrando a mochila com a ajuda do meu faro e dos meus dedos. Com a faca de Zee numa das mãos, caminhei lentamente em direção ao agora silencioso
canto escuro. A luz tapada da lanterna mostrou-me onde estava a cama, mas agora era mais difícil ver o interior do dossel cujas cortinas escudavam o vampiro.
Achavas mesmo que ia ser assim tão fácil?
A voz inexpressiva queimava-me a cabeça. Tentei bloqueá-la instintivamente colocando as mão por cima dos ouvidos, mas foi inútil.
Achavas que eu ia ser uma presa fácil como o meu pobre Cory, que não passava de um bebé.
Queria dar meia volta e fugir. Queria esconder-me o mais longe possível do vampiro. Eu não estava à altura de um vampiro, especialmente não deste vampiro. A velha mordida
no meu pescoço começou a latejar, a dor começou a espalhar-se até ao ombro que Littleton me tinha lesionado.
Esse foi o seu erro, porque a dor aniquilou o medo e permitiu-me perceber que o medo me era imposto, provinha do exterior de mim. Assim que percebi isso, tornou-se mais fácil
ignorá-lo.
Continuei a avançar, parando quando os meus joelhos bateram na beira da cama. Os meus dedos encontraram o seu peito, em seguida a estaca, e depois movi a mão na escuridão
até encontrar a sua garganta.
Virou a cabeça, rápido como uma cobra, e mordeu-me o pulso. A dor brotou como um cogumelo na minha cabeça. Afastei a mão e a cabeça dele acompanhou-a. Andre esticou-a para
cima como se o único controlo muscular que tinha estivesse na sua mandíbula.
A faca de Zee não teve qualquer problema em cortar-lhe a cabeça. Usei-a com mais cuidado para libertar o meu pulso da sua mordidela — não me queria cortar mais do que Andre
já me tinha cortado. Tive de cortar a partir da sua mandíbula para libertar o meu pulso.
Depois de ter terminado, vomitei e em seguida usei a faca de Zee uma vez mais para cortar tiras da manga do meu casaco de linho de modo a envolver o pulso. De qualquer maneira,
o casaco nunca mais ia ficar limpo, fizesse eu o que fizesse.
Estava desorientada e abalada, por isso demorei algum tempo a encontrar novamente a mochila. O medalhão do dragão estava mais quente do que os meus dedos.
Desta vez foi mais fácil encontrar a cama. Os meus olhos tinham-se acostumado à escuridão e o feixe da lanterna, por muito fraco que fosse, era a única luz do quarto.
Coloquei o medalhão sobre o seu peito.
— Drachen — disse, e, de repente, fez-se mais luz do que os meus olhos eram capazes de suportar.
Cegada, tive de permanecer no mesmo sítio durante algum tempo. Na altura em que recuperei a visão, o fogo tinha-se alastrado do vampiro para a cama e o quarto ficou cheio
de fumo. Não tinha como esperar e recuperar o medalhão e a estaca sem sufocar com a inalação de fumo. Portanto deixei-as para trás e subi o escadote. A faca de Zee ainda estava
na minha mão.
O céu estava escuro, a fervilhar de energia, e quando saí pela porta do pátio aos trambolhões, o vento arrancou um ramo grosso de uma árvore ali perto. O vento, ou uma outra
coisa qualquer, arrastou-me para longe da casa. Tive de tapar os olhos porque o ar estava repleto de pó e pedaços de plantas.
Encaminhei-me para a mesa de piquenique e toquei o homem no ombro.
— Venha — disse-lhe. — Precisamos de ir para o carro.
Mas ele tombou do banco e estatelou-se no chão. Só então é que o meu cérebro compreendeu o que o meu olfato e a minha audição me vinham tentando dizer. Ele estava morto. A
mulher estava tombada de bruços sobre a mesa, como se tivesse pousado a cabeça e adormecido. O meu coração era o único que batia. Também ela estava morta.
Enquanto estava ali pasmada, apercebi-me de que faltava alguma coisa. Durante todo o tempo que aqui tinha estado sentira o peso dos mortos a espicaçar-me os sentidos. Agora
não havia fantasmas aqui.
O que significava que havia vampiros por perto.
Olhei em volta, à procura, mas nunca o teria visto se ele não o tivesse querido.
Wulfe estava encostado à parede da casa, de olhos postos no céu, batendo cadenciadamente com a cabeça na parede da casa ao ritmo do batimento furioso do meu coração.
Depois parou e olhou para mim. Tinha os olhos embaciados, mas não tinha a menor dúvida de que me conseguia ver.
— É de dia — disse-lhe.
— Alguns de nós não são tão limitados como os outros — respondeu. — Os gritos de morte do Andre por esta altura já despertaram o ninho. A Marsilia vai perceber que ele está
morto. Estão vinculados há muito tempo, ela e o Andre. Não vai tardar muito até que o outros vampiros apareçam. Precisas de levá-la daqui.
Cravei os olhos nele, e então percebi que não estava a falar comigo — porque uma mão gélida agarrou-me o braço.
— Anda — disse Stefan com a voz tensa. — Precisas de ir embora daqui antes que os outros apareçam.
— Mataste-os — disse-lhe de forma determinada. Não olhei para ele porque não queria vê-lo com o mesmo aspeto que Andre e Wulfe tinham à luz do dia. — Estavam em segurança
e tu mataste-os.
— Não foi ele — interveio Wulfe. — Ele disse-me que você jamais o perdoaria se o fizesse. Foi uma morte imediata, eles não estavam assustados, mas tinham de morrer. Não podia
permitir que andassem por aí a gritar «vampiro». E precisamos de culpados para apresentar à Senhora. — Sorriu-me e aproximei-me um passo de Stefan. — Quando cheguei aqui encontrei
a casa a arder — disse — e dois humanos, o rebanho atual do Andre, fora da casa. Eu sempre disse ao Andre que a forma como ele mantinha as ovelhas um dia ia ser a causa da
morte dele. — Riu-se.
— Anda lá — incitou Stefan. — Se estiveres longe daqui nos próximos dez minutos ou coisa parecida, nunca ninguém vai saber que estiveste aqui.
Deixei que me afastasse de Wulfe, ainda sem o olhar.
— Tu sabias que eu andava à caça do Andre.
— Sabia. Sendo tu quem és, não irias fazer outra coisa.
— Ela vai interrogar-te na cadeira — disse. — Ela vai ficar a saber que eu fiz isto.
— Ela não me vai interrogar porque estive preso nas celas debaixo do ninho durante a semana passada por causa da minha «atitude infeliz» em relação aos planos da Marsilia
para criar mais um monstro. Ninguém pode fugir das celas porque a magia do Wulfe garante que o que ali está preso, preso fica.
— E se ela interrogar o Wulfe?
— A cadeira é uma criação do Wulfe — replicou Stefan, abrindo a minha porta. — Ele vai dizer-lhe que nenhum vampiro, lobisomem ou caminhante é responsável pela morte do Andre
e a cadeira vai confirmar isso, porque o Andre causou a sua própria morte.
Olhei-o nessa altura, porque não consegui deixar de fazê-lo. Estava com o mesmo aspeto de sempre, excetuando uns óculos de sol pretos impenetráveis que lhe escondiam os olhos.
Inclinou-se e beijou-me em cheio na boca, um breve beijo suave que me deu provas de que não tinha imaginado as palavras apaixonadas que me tinha murmurado enquanto lhe bebia
o sangue na noite em que matara Littleton. Alimentava mesmo a esperança de que tivesse sido imaginação minha.
— Dei-te a minha palavra de honra em como não te seria feito mal — disse. — Não fui capaz de manter completamente a minha palavra, mas pelo menos não vais perder a vida por
eu te ter envolvido nisto. — Sorriu-me. — Não te aflijas, Lobinha — disse, e em seguida fechou a porta.
Liguei o carro e zarpei do caminho de entrada da casa de Andre, a fugir de Stefan mais do que da ira de Marsilia.
A casa de Andre ardeu completamente antes que os bombeiros conseguissem acudir ao local. O repórter entrevistou o comandante dos bombeiros enquanto a chuva caía em força.
A chuva, explicara o comandante, tinha impedido que o fogo se alastrasse à erva seca. Tinham encontrado dois corpos no interior da casa. Os proprietários tinham sido contactados.
Estavam a passar férias na sua cabana em Coeur d’Alene. Os corpos provavelmente pertenciam a vagabundos que tinham descoberto que a casa estava vazia.
Estava a ver a reportagem especial no noticiário das dez quando alguém me bateu violentamente à porta.
— Se a amolgares — disse, sabendo que Adam me conseguiria ouvir, apesar da porta fechada —, obrigo-te a substituí-la.
Desliguei a televisão e abri a porta.
— Tenho biscoitos com pepitas de chocolate — disse-lhe. — Ou brownies, mas ainda estão muito quentes para comer.
Estava a tremer de raiva, com os olhos de um brilhante amarelo lupino. As bochechas tinham vincos brancos por causa da força que estava a fazer para cerrar as mandíbulas.
Dei mais uma trinca no meu biscoito.
— Por onde é que tens andado? — perguntou numa voz suavemente ameaçadora. A força do seu poder envolveu-me e compeliu-me a responder.
Lá se ia a promessa dele de não exercer influência indevida.
Felizmente, tendo eu ficado apavorada e traumatizada bem para lá dos meus limites, não havia mais nada a responder à exigência do Alfa. Acabei de comer o meu biscoito, lambi
o chocolate morno dos dedos e acenei para que entrasse.
Agarrou-me a mão e puxou-me pela manga. Tinha-me servido do kit de primeiros socorros de Samuel, que estava muito mais bem apetrechado do que o meu. Tinha desinfetado o ferimento
que Andre me deixara no pulso com peróxido de hidrogénio — devia uma garrafa nova a Samuel. Com uma ligadura nova e limpo o ferimento não parecia tão mau. No entanto, a sensação
que tinha era que me tinha arrancado o braço à dentada.
— O Ben contou-me que encontraste o Andre — disse-me Adam enquanto olhava para o meu pulso. Um músculo vibrou na sua bochecha. — Ele estava à minha espera na forma humana.
Mas não lhe disseste onde o tinhas encontrado e por isso fomos à caça, o Ben e eu… até a Jesse me telefonar a dizer que o teu carro estava outra vez aqui.
— O Andre foi-se — disse-lhe. — Não vai regressar mais.
Segurou o meu pulso numa mão e levou a outra em concha à minha face, o seu polegar repousando mesmo acima da pulsação no meu pescoço.
— Se eu te matasse, pelo menos era rápido e indolor. A Senhora vai demorar muito mais tempo se te deitar as mãos.
— Por que é que ela haveria de fazer isso? — disse calmamente. — Dois membros do rebanho do Andre pegaram fogo à casa enquanto ele estava a dormir.
— Ela nunca vai acreditar nisso — disse-me.
— O Stefan acha que vai.
Fitou-me até que eu baixasse os olhos. Depois puxou-me para junto de si e limitou-se a abraçar-me.
Não lhe disse que ainda estava assustada — porque ele sabia. Não lhe disse que tinha vomitado quatro vezes desde que tinha chegado a casa. Não lhe disse que tinha de ligar
todas as luzes da casa, que não podia memorizar as caras das duas pobres almas que o Mago tinha matado porque Stefan me queria proteger da minha própria cabeça. Não lhe disse
que não parava de pensar na sensação da estaca a perfurar a carne, ou que nunca mais ia voltar a dormir. Não lhe disse que Stefan me tinha beijado — Stefan, que tinha matado
duas pessoas para me salvar. Tinha tido razão quando dissera que eu não o ia perdoar se o fizesse — simplesmente não se tinha apercebido de que continuava a achá-lo responsável
independentemente de quem o tivesse feito. A Wulfe pouca ou nenhuma diferença fazia se eu morresse ou vivesse. Se estava na casa de Andre, era uma espécie de troca de favores
com Stefan.
Adam cheirava tão bem. Ele nunca mataria uma pessoa inocente — nem mesmo para me salvar. Enterrei o meu nariz entre o seu ombro e o maxilar e deixei que o calor do corpo dele
se afundasse na minha alma.
Depois dei-lhe biscoitos e leite até Samuel chegar a casa.
Acordei na manhã seguinte porque alguém estava a bater no revestimento da minha casa. Estava a vestir as calças de ganga quando ouvi a porta da frente a abrir-se e os golpes
a calarem-se.
Também tinham acordado Samuel.
Dois enormes camiões vermelhos estavam estacionados à minha porta, com CONSTRUÇÕES HICKMAN escrito nos lados em garrafais letras brancas. Três homens enfiados em macacões
e com sorrisos amplos estampados nos rostos conversavam com Samuel.
— Diabos me levem se eu sei como é que eles fizeram isto — disse Samuel. — Eu não estava cá. A minha namorada afugentou-os com uma espingarda, mas não há dúvida que puseram
a casa num lindo estado, verdade?
Todos nós olhámos obedientemente para a caravana.
— Talvez ficasse mais barato comprar uma caravana nova e desfazerem-se desta — opinou o homem mais velho. Usava um chapéu que dizia Patrão e nas mãos tinha calos em cima de
calos.
— Os pais dos putos vão pagar o conserto — intervim. — E consertar esta caravana causa-nos muito menos complicações do que mudarmo-nos para uma nova.
O Patrão cuspiu uma porção de tabaco de mascar para o chão.
— Lá isso é verdade. OK. Temos isto pronto num ou dois dias, dependendo dos estragos na estrutura que está por baixo. A empreitada também diz qualquer coisa sobre buracos
no chão? Tenho de repará-los e substituir o tapete.
— É no meu quarto — informei. — Não queria correr o risco de ferir os meus vizinhos, por isso disparei para o chão.
Grunhiu. Não consegui perceber se era um sinal de aprovação ou não.
— Fazemos isso amanhã. Podemos entrar na casa?
— Eu posso ficar aqui — disse Samuel. — Esta semana trabalho à noite.
— Onde?
— No hospital.
— Sempre é melhor do que uma loja de conveniência — disse o Patrão.
— Também já fiz isso — concordou Samuel. — Pagam melhor no hospital, mas a loja de conveniência era menos stressante.
— A minha Joni é enfermeira no Kadlec Hospital — disse um dos outros homens. — Ela diz que é horrível trabalhar com aqueles médicos de lá.
— Horrível — concordou o Dr. Samuel Cornick.
Levantei os olhos da carrinha em que estava a trabalhar e vi a Sra. Hanna a empurrar o seu carrinho. Não a via desde a noite em que me tinha ajudado a encontrar Littleton,
embora lhe tivesse sentido o cheiro uma ou outra vez. Limpei as mãos e fui ter com ela.
— Olá — disse-lhe. — Está um belo dia, não está?
— Olá, Mercedes — cumprimentou-me com o seu habitual sorriso afável. — Adoro o cheiro do ar logo a seguir a uma chuvada, você não?
— Absolutamente. Vejo que está de regresso ao seu horário habitual.
O seu rosto pôs-se um tudo-nada vago.
— O que disse, querida? — Depois sorriu novamente. — Encontrei aquele desenho de que andava à procura.
— Que desenho?
Mas já tinha terminado a sua conversa comigo.
— Agora tenho de ir, minha querida. Fique bem.
— Adeus, Sra. Hanna — disse-lhe.
Desapareceu, mas consegui ouvir o barulho do seu carrinho e os estalidos dos seus saltos no pavimento durante algum tempo depois de se ter ido embora.
Acabei de trabalhar na carrinha por volta da hora de almoço, e a seguir dirigi-me para o escritório. Gabriel desviou os olhos do monitor do computador para olhar para cima.
— Correio para si na sua secretária — disse.
— Obrigada.
Peguei na caixa. Não tinha remetente, mas tinha visto a caligrafia de Stefan vezes suficientes para a reconhecer. Por isso esperei que Gabriel saísse para nos ir buscar o
almoço e só depois a abri.
Havia três objetos embrulhados com papel do Scooby Doo: uma estaca chamuscada, um pequeno medalhão de ouro com um dragão e uma sólida carrinha VW castanho-chocolate.
Peguei no papel e na caixa e coloquei-os no lixo, reparando só nessa altura que havia uma outra coisa na secretária, um desenho a lápis do rosto de um homem. Pus a folha direita
e vi que era Adam, de olhos alerta mas com a insinuação de um sorriso na boca. No fundo da página, a artista colocara o seu nome: Marjorie Hanna.
3 Marca de produto de limpeza feito à base de óleo de pinho. (N. do T.)
EXTRAS
Uma entrevista com Patricia Briggs
Agrada-me muito o facto de a Mercy ser mecânica. Cria o contexto para que ela conheça uma série de pessoas diferentes, proporcionando boas oportunidades para o desenvolvimento
de um enredo, mas ao mesmo tempo é uma inflexão no enquadramento habitual do detetive privado/investigador, para além de reforçar o estatuto da Mercy enquanto mulher bastante
invulgar e independente. Qual foi a inspiração por detrás da escolha da carreira da Mercy?
Escreve aquilo que conheces, certo? Bem, pensei nos tipos de carreira que colocam as pessoas em perigo: advogado, agente da polícia, detetive privado. Todos eles são divertidos,
mas não sei praticamente nada sobre eles. Uma altura, enquanto dava voltas à cabeça, pus-me a olhar para o jardim nas traseiras da minha casa onde o meu marido tinha dois
Opel GT que estava a tentar usar para construir um carro de corrida.
Não sou mecânica, mas já segurei ferramentas para o meu marido e para o meu filho enquanto eles tentavam manter os nossos vários VW velhos a funcionar. Também tínhamos um
amigo próximo que era mecânico de VW e era uma espécie de herói local para todas as pessoas de Tri-Cidades que tinham Volkswagens.
Sendo ela uma mecânica, não ia ser colocada em perigo da mesma forma que se fosse uma agente da polícia, mas por essa altura precisava de uma forma de a manter ligada às questões
humanas. E fazê-la dona de um pequeno negócio que tinha de ser gerido enquanto o pandemónio se instalava servia-me de força motriz para manter a tensão nas suas histórias.
Os seus livros pertencem a um género que foi designado de fantasia urbana, romance paranormal, de mistério e de terror, entre outros. Tem uma descrição preferida para o que
escreve? E, se sim, porquê?
Trata-se, claro, de uma fusão de terror, mistério noir, mistério policial e fantástico com elementos romanescos à mistura. Aqui, nos Estados Unidos, um romance paranormal
é um romance com elementos paranormais: a história romanesca é a parte mais importante. Normalmente chamo-lhe fantasia urbana para que assim os leitores de romances não fiquem
à espera de uma coisa que não é. Existe uma história romanesca, porque me agrada, mas as histórias são, em última análise, sobre as interações dos universos humanos com os
monstros e não sobre o aspeto romanesco. Além disso, conforme é evidenciado pela parte «urbana» do título do género, o local onde as histórias têm lugar é importante. Não
tanto como um livro de viagens, mas como uma forma de situar a história na realidade.
Considera frustrante o facto de, apesar de atualmente estar a ser produzido tanto trabalho excelente no universo da Ficção Científica e do Fantástico, ele continuar, de uma
maneira geral, a ser ignorado pelos literatos?
Não. Escrevo os livros que quero escrever – e leio os livros que são apelativos para mim. Ultrapassei a questão de ter de ler/escrever Grande Literatura quando era adolescente.
Seja como for, no fim de contas é o cidadão comum quem determina o que é um clássico, não os literatos. Tolkien e Rowling vão ser lidos daqui a cem anos. Não aspiro a voos
tão altos, contudo. Fico satisfeita por escrever histórias de que gosto – e parece que também há mais algumas pessoas a gostar.
Também me agrada que os literatos vejam publicados livros que gostam de ler. Dessa forma, todos podemos ficar satisfeitos.
Por que é que acha que as pessoas procuram a ficção fantástica?
É frequente essa pergunta surgir, desta ou daquela maneira, como tópico de discussão de um painel nas convenções de ficção científica, e cheguei a ser membro desses painéis
algumas vezes – e acho que a resposta varia consoante o autor, o livro e o leitor. A função mais óbvia da literatura fantástica é o escapismo. Permitir que as pessoas ponham
de lado as preocupações das suas vidas para viverem num mundo diferente é algo valioso para a nossa sociedade. A arte escapista lembra-nos de que há beleza no mundo numa altura
em que as nossas vidas parecem bastante desoladoras. A melhor arte, quer sejam livros, quadros ou música, eleva as nossas expetativas. Quando estava no liceu, costumava levar
comigo o maravilhoso romance de Christopher Stasheff, The Warlock In Spite of Himself, quando ia às consultas no dentista – ou em qualquer outra situação de muito stress.
Desgastei cinco ou seis exemplares, mas isso foi antes de ele começar a ser um sucesso, portanto esses exemplares eram difíceis de arranjar. Por muito nervosa que estivesse,
conseguia rir-me de todas as vezes que lia aquele livro.
Um outro papel tradicional do fantástico (e da ficção científica) é disfarçar uma problemática atual qualquer e examiná-la em abstrato. A Quinta dos Animais, de George Orwell,
é uma fantasia sombria concebida para nos fazer examinar as nossas vidas. A fábula animada de Voltaire, Cândido, faz pouco da complacência e do espírito auto-congratulatório
generalizado da era em que foi escrito. O brilhante At Sword’s Point, de Ellen Kushner, pede-nos discretamente que avaliemos o nosso lugar na sociedade. Às vezes, retirar
as normas familiares do nosso mundo permite-nos ver as coisas sob uma perspetiva diferente.
O que me leva a outra coisa importante que a ficção, seja de que género for, faz: A ficção, a boa ficção, permite ao leitor ver o mundo através dos olhos de outra pessoa.
Quando leio, posso ser um homem negro ou uma criança. Posso ser uma velha ou um veado chamado Bambi. Compreender o modo como outra pessoa pensa é o primeiro passo para aceitar
as suas diferenças. Num mundo que, entre uma comunicação mais rápida e uma população crescente, diminui de tamanho a cada dia, e à luz dos acontecimentos do 11 de Setembro,
é importante que sejamos capazes de nos colocar na pele de outra pessoa. Os livros são, na minha opinião, o melhor meio para desenvolver o entendimento necessário para se
viver conjuntamente no nosso planeta.
Ainda encontra tempo para ler por prazer? E, se sim, gosta de se cingir ao género ou opta por uma mudança completa?
Se não lesse, não acredito que fosse capaz de escrever. Quanto mais depressa tenho de escrever, mais tenho de ler. Não sei por que é que isso acontece.
No entanto, depois da publicação do meu primeiro livro, Masques, passou-se quase um ano até que conseguisse voltar a ler livros fantásticos (com exceção de velhos livros de
eleição, ou autores prediletos). Ou procurava neles falhas ou sentia inveja porque eram muito melhores do que o meu livro [risos].
Atualmente, leio muita ficção fantástica, mas também leio muitos romances genéricos, de mistério e ficção científica. Gosto de ler uma grande variedade de géneros e leio muito,
normalmente pelo menos um livro por dia (antes de ter filhos lia três por dia). Juntei-me a um grupo de leitura no ano passado para alargar os meus horizontes naquilo que
gosto de chamar «Os Livros do Grupo de Leitura», títulos como The Kite Runner e Reading Lolita in Tehran. São grandes livros que de outro modo nunca conheceria.
Alguns autores falam sobre como as suas personagens os «surpreendem» através das suas ações; isso já lhe aconteceu?
Completamente. Embora na verdade eu pense que a questão tem, sobretudo, a ver com o facto de que quanto mais escrevo sobre uma personagem, mais a conheço. Portanto quando
lhe coloco um problema, às vezes ela ataca-o de uma forma diferente daquela que eu esperava. É nessa altura que sei que a personagem se desenvolveu e o resto da história será
bom.
Esta é uma pergunta clássica, portanto calculo que já lhe tenha sido feita muitas vezes. No entanto, é sempre interessante saber se tem autores de eleição que influenciaram
o seu trabalho.
Andre Norton escreveu tanto o primeiro livro fantástico que li (The Year of the Unicorn) como o primeiro romance de ficção científica (Beastmaster). Com ela aprendi que as
melhores histórias são as que se centram no desfavorecido, nas pessoas que sofrem dificuldades e sobrevivem.
Quando estava a aprender a escrever, recorria com bastante frequência a autores da minha preferência sempre que estava a ter dificuldades com alguma coisa. Aprendi a escrever
diálogos com Dick Francis e Jayne Anne Krenz, por exemplo.
Sei, com base em anteriores entrevistas suas, que o seu primeiro amor quando era criança foram os livros sobre cavalos, e que depois foi levada para os livros de ficção científica/fantásticos
pela sua irmã mais velha. Está-lhe eternamente grata, ou acha que a conversão era inevitável?!
Estou-lhe eternamente grata. Suponho que ia acabar por ler livros de ficção científica/fantásticos sem ela, mas poupou-me imenso tempo ao indicar-me os melhores livros para
começar.
Leia nas próximas páginas um excerto do 3º Volume da série Mercy Thompson
Beijo do Ferro
A fantasia urbana tem uma nova heroína: Mercy Thompson. Ela é forte e independente, mas num mundo repleto de perigos, será isso suficiente?
Mercy Thompson é mecânica de automóveis e uma rapariga tão bela quanto independente. O seu segredo? Consegue mudar de forma. A sua perdição? Não consegue mudar de lealdade.
Como tal, quando o seu antigo mentor é preso por assassínio e deixado a apodrecer atrás das grades pela sua própria espécie, Mercy está disposta a arriscar a vida numa missão
solitária para limpar o nome dele. Mas a sua lealdade também vai ser testada de outros lados: os lobisomens não são conhecidos pela sua paciência e, se Mercy não se decide
entre os dois de quem gosta, Sam e Adam podem fazer aescolha por ela... Com enredos tortuosos, personagens inesquecíveis e uma escrita dinâmica, Patricia Briggs eleva a fantasia
urbana a novos patamares de qualidade.Criada por lobisomens, Mercy Thompson prepara-se para a aventura da sua vida.
Mais informações em
www.saidadeemergencia.com
1
— Um vaqueiro, um advogado e uma mecânica a verem A Rainha dos Malditos — murmurei.
Warren — que muito tempo antes fora um vaqueiro — soltou um risinho abafado e meneou os pés descalços.
— Podia ser o princípio ou de uma piada má ou de uma história de terror.
— Não — disse Kyle, o advogado, cuja cabeça estava apoiada na minha coxa. — Se quiseres uma história de terror, tens de começar com um lobisomem, o seu amante deslumbrante
e uma caminhante…
Warren, o lobisomem, riu-se e abanou a cabeça.
— É demasiado confuso. São muito poucas as pessoas que ainda se lembram do que é um caminhante.
Sobretudo confundiam-nos com os mutantes caminhantes. Uma vez que tanto os caminhantes como os mutantes caminhantes são metamorfos ameríndios, era mais ou menos capaz de compreender
a confusão. Especialmente porque tenho a certeza que o rótulo «caminhante» surgiu de um qualquer branco idiota que não conseguia perceber a diferença.
Mas eu não sou uma mutante caminhante. Em primeiro lugar, sou da tribo errada. O meu pai tinha sido um Blackfoot, de uma tribo da zona norte de Montana, e os mutantes caminhantes
são oriundos das tribos do sudoeste, sobretudo a Hopi ou a Navajo.
Em segundo lugar, os mutantes caminhantes têm de vestir a pele do animal em que se transformam, normalmente um coiote ou um lobo, mas não conseguem mudar os seus olhos. São
magos malévolos que espalham a doença e a morte por onde quer que passem.
Quando me transformo em coiote, não preciso de uma pele ou — olhei para baixo, na direção de Warren, em tempos um vaqueiro e agora um lobisomem — da Lua. Quando sou uma coiote,
pareço-me com todos os outros coiotes. Bastante inofensiva, na verdade, ocupando a posição mais baixa possível na escala de poder das criaturas mágicas que viviam no estado
de Washington. Que é um dos aspetos que costumava ajudar-me a manter-me em segurança. Simplesmente nem era digna de alguém se preocupar comigo. Isso tinha vindo a mudar ao
longo do passado ano. Não que eu me tivesse tornado mais poderosa, mas porque começara a fazer coisas que atraíam a atenção. Quando os vampiros descobriram que eu tinha matado
não um, mas dois dos da sua espécie…
Como se chamado pelos meus pensamentos, um vampiro atravessou o ecrã da televisão, uma televisão tão grande que não caberia na sala de estar da minha caravana. Estava em tronco
nu e as calças pendiam-lhe centímetros abaixo das ancas sensuais.
Melindrei-me ao sentir um arrepio de medo que me percorreu o corpo em vez de sentir desejo. É curioso ver como depois de os ter matado, os vampiros se tinham tornado mais
assustadores. Sonhava com vampiros que saíam a rastejar de buracos no chão e que me sussurravam coisas a partir de sombras. Sonhava com a sensação de uma estaca a deslizar
através da carne e de colmilhos a afundarem-se no meu braço.
Se quem tivesse a cabeça no meu colo fosse Warren em vez de Kyle, teria notado a minha reação. Mas Warren estava esticado no chão e firmemente concentrado no ecrã.
— Sabes — disse, aconchegando-me mais no sofá de couro obscenamente confortável da sala de estar do piso de cima da gigantesca casa de Kyle, e tentando soar descontraída —,
estava aqui a perguntar-me por que é que o Kyle escolheu este filme. Não estava à espera que aparecessem tantos peitos masculinos nus num filme chamado A Rainha dos Malditos.
Warren deu uma risada abafada, comeu uma mão cheia de pipocas da taça pousada no seu estômago liso e depois, com a sua voz áspera e de um modo lento e arrastado típico do
Texas, disse:
— Estavas à espera de mais mulheres nuas e menos homens semi-nus, era, Mercy? Devias conhecer o Kyle melhor do que isso. — Riu-se baixinho uma vez mais e apontou para o ecrã.
— Olha lá, não sabia que os vampiros eram imunes à gravidade. Já viste algum a baloiçar do teto?
Abanei a cabeça e vi enquanto o vampiro caía em cima das suas duas vítimas groupies.
— Mas acho que não são capazes. Também ainda não os vi a comer pessoas. Livra.
— Cala-te. Eu gosto deste filme — Kyle, o advogado, defendeu a sua escolha. — Montes de rapazes bonitos enroscados em lençóis e a andar de um lado para o outro com calças
de cinta baixa e sem camisolas. Pensei que também talvez fosses gostar, Mercy.
Olhei para ele — para cada adorável e artificialmente bronzeado centímetro dele — e ocorreu-me que era mais interessante do que qualquer um dos homens bonitos no ecrã, mais
real.
Na aparência era quase um estereótipo de um homem gay, desde o gel no seu cabelo castanho-escuro cortado semanalmente até às roupas caras e de bom gosto que vestia. Se as
pessoas não fossem cuidadosas, não se davam conta da inteligência perspicaz que se escondia por baixo do exterior bonito. Que era, porque se tratava de Kyle, o propósito da
fachada.
— De facto, isto não é suficientemente mau para uma noite de cinema mau — continuou Kyle, sem se preocupar com o facto de estar a interromper o filme: nenhum de nós o estava
a ver por causa dos seus brilhantes diálogos. — Eu teria trazido o Blade III, mas, estranhamente, já tinha sido alugado.
— Qualquer filme com o Wesley Snipes vale a pena ver, mesmo se tiveres de tirar o som. — Virei-me e curvei-me para roubar uma mão cheia de pipocas da taça de Warren. Ainda
estava demasiado magro; isso e o facto de coxear eram lembretes de que há apenas um mês tinha ficado tão gravemente ferido que pensara que ia morrer. Os lobisomens são duros,
louvados sejam, senão tê-lo-íamos perdido para um vampiro que transportava o demónio. Esse tinha sido o primeiro vampiro que eu matara — com o total conhecimento e permissão
da senhora dos vampiros locais. O facto de ela, na verdade, não querer que eu o tivesse matado não negava que o tinha feito com a sua bênção. Não me podia fazer nada por causa
da morte dele — e não sabia que eu era responsável pela outra.
— Desde que não esteja vestido de travesti — disse Warren entre risinhos.
Kyle desatou a rir em sinal de concordância.
— O Wesley Snipes pode ser um homem bonito, mas dá uma mulher feia como o diabo.
— Ei — objetei, voltando a concentrar-me na conversa. — Os Três Mosqueteiros do Amor é um bom filme. — Tínhamo-lo visto em minha casa a semana passada.
Um ligeiro zumbido subiu pelas escadas e Kyle rebolou para fora do sofá e pôs-se de pé num movimento gracioso, parecido com um passo de dança, que escapou aos olhos de Warren.
Ainda estava concentrado no filme, embora o seu sorriso rasgado provavelmente não fosse a reação que os realizadores tinham em mente para a cena do banho de sangue. Os meus
sentimentos estavam muito mais em consonância com a reação desejada. Era demasiado fácil imaginar-me no papel da vítima.
— Os brownies estão prontos, meus queridos — anunciou Kyle. — Alguém quer beber mais alguma coisa?
— Não, obrigada. — Era só faz-de-conta, pensei enquanto observava o vampiro a alimentar-se.
— Warren?
A verbalização do seu nome finalmente desviou os olhos de Warren do ecrã da televisão.
— Um pouco de água era bom.
Warren não era tão bonito como Kyle, mas tinha um aspeto robusto. Observou Kyle a descer as escadas com olhos famintos.
Sorri de mim para mim. Era bom ver Warren finalmente feliz. Mas o olhar que me lançou assim que Kyle desapareceu da vista era sério. Utilizou o telecomando para aumentar o
volume e depois sentou-se direito e encarou-me, sabendo que Kyle não nos ouviria.
— Precisas de escolher — disse-me de forma intensa. — Ou o Adam ou o Samuel, ou nenhum dos dois. Mas não podes continuar indecisa entre um e outro.
Adam era o Alfa do bando de lobos locais, meu vizinho, e às vezes a minha companhia em encontros. Samuel tinha sido o meu primeiro amor, a minha primeira desilusão amorosa,
e atualmente era o meu companheiro de casa. Apenas o meu companheiro de casa — embora ele gostasse de ser mais do que isso.
Não confiava em nenhum dos dois. O exterior despreocupado de Samuel mascarava um paciente e implacável predador. E Adam… bem, Adam simplesmente assustava-me. E sentia muito
medo da possibilidade de amar ambos.
— Eu sei.
Warren baixou os olhos, um claro sinal de que se sentia desconfortável.
— Não lavei os dentes de manhã com pólvora para poder andar a disparar com a boca, Mercy, mas isto é sério. Eu sei que tem sido difícil, mas não é possível haver dois lobisomens
dominantes atrás da mesma mulher sem que isso implique derramamento de sangue. Não conheço mais nenhum que te tivesse permitido tanta liberdade de movimentos como eles, mas
em breve um deles vai ceder.
No meu telemóvel começou a tocar The Baby Elephant Walk. Saquei-o do bolso e olhei para a identificação do chamador.
— Acredito no que dizes — repliquei a Warren. — Simplesmente não sei o que fazer em relação a isso. — Em relação a Samuel, a questão não se reduzia a um amor eterno da minha
parte, mas isso era entre mim e ele e Warren não tinha nada a ver com isso. E Adam… pela primeira vez perguntava-me se não seria mais fácil eu simplesmente ir-me embora.
O telefone continuou a tocar.
— É o Zee — disse. — Tenho de atender.
Zee era o meu antigo patrão e mentor. Tinha-me ensinado a reconstruir um motor a partir do nada — e tinha-me dado os instrumentos para matar os vampiros responsáveis pela
coxeadura de Warren e pelos pesadelos que lhe deixavam ligeiras rugas à volta dos olhos. Entendi que isso dava a Zee o direito de interromper a Sessão de Cinema de Sábado
à Noite.
— Pensa nisso.
Dirigi-lhe um sorriso ténue e abri o telemóvel.
— Ei, Zee.
Fez-se uma pausa do outro lado.
— Mercedes — disse, e nem o seu carregado sotaque alemão lhe disfarçou o tom hesitante da voz. Algo estava errado.
— De que é que precisas? — perguntei, sentando-me de forma mais vertical e colocando os pés no chão. — O Warren está aqui — acrescentei para que Zee soubesse que tínhamos
uma plateia. Os lobisomens fazem com que seja difícil ter uma conversa privada.
— Vens comigo à reserva?
Podia estar a falar da Reserva de Umatilla, que era a uma distância curta de Tri-Cidades. Mas era Zee, portanto estava a falar da Reserva de Seres Feéricos Ronald Wilson Reagan,
mesmo do lado de cá de Walla Walla, mais conhecida nestas bandas por Fairyland.
— Agora? — perguntei.
Além disso… Relanceei os olhos ao vampiro na televisão de ecrã gigante. Ainda não tinham feito a coisa certa, não tinham capturado o verdadeiro mal — mas, de qualquer modo,
estava perto de mais para servir de consolo. De certo modo, não me sentia particularmente triste por perder o resto do filme — ou mais conversas sobre a minha vida amorosa.
— Não — disse Zee irritadamente. — Para a semana que vem. Jetzt. Agora, claro. Onde é que estás? Eu vou buscar-te.
— Sabes onde fica a casa do Kyle? — perguntei.
— Kyle?
— O namorado do Warren. — Zee conhecia Warren; não me tinha apercebido de que não conhecera Kyle. — Estamos em West Richland.
— Dá-me a morada. Eu dou com a casa.
A carrinha de Zee ronronava através da autoestrada apesar de ser mais velha do que eu. Pena é que os estofos não estivessem em tão bom estado como o motor — desviei o traseiro
alguns centímetros para evitar que uma mola caprichosa se afundasse demasiado.
As luzes do painel de instrumentos iluminavam o rosto de feições irregulares que Zee apresentava ao mundo. O seu fino cabelo branco estava ligeiramente desarranjado, como
se tivesse estado a esfregá-lo com as mãos.
Warren não dissera mais nada acerca de Adam ou Samuel depois de eu ter desligado o telefone porque Kyle, graças a Deus, tinha regressado com os brownies. Não que a interferência
de Warren me incomodasse — eu tinha interferido quanto bastasse na sua vida amorosa e entendia que ele tinha o direito de fazê-lo. Simplesmente não queria mais pensar sobre
o assunto.
Zee e eu seguimos a maior parte do caminho, desde West Richland, passando por Richland até Pasco, em silêncio. Sabia que não devia tentar sacar nada do velho gremlin até que
ele estivesse pronto a falar, portanto deixei-o em paz até se decidir a abrir a boca — pelo menos após as primeiras dez ou quinze perguntas a que não tinha respondido.
— Alguma vez foste à reserva? — perguntou abruptamente enquanto atravessávamos o rio mesmo à saída de Pasco na autoestrada para Walla Walla.
— Não. — A reserva de seres feéricos no Nevada acolhia visitantes com prazer. Tinham construído um casino e um pequeno parque temático para atrair turistas. A reserva de Walla
Walla, contudo, desencorajava ativamente a entrada de quem não fosse um ser feérico. Não sabia ao certo se eram os agentes federais ou os próprios seres feéricos os responsáveis
pela reputação pouco simpática.
Zee, num gesto triste, deu pancadas ao de leve no volante com mãos que pertenciam a um homem que passara toda a vida a reparar carros, robustas e marcadas com cicatrizes e
com óleo tão entranhado que nem pedra-pomes o removeria.
Eram as mãos indicadas para o humano que Zee fingira ser. Quando os Senhores Cinzentos, os poderosos e impiedosos seres que governavam as criaturas feéricas em segredo, o
forçaram a admitir ao público o que era há alguns anos, uma década ou mais após a primeira criatura feérica ter vindo a público, Zee não se preocupara minimamente em alterar
o seu aspeto exterior.
Conhecia-o há um pouco mais de dez anos, e o rosto de velho carrancudo fora o único que lhe vira. Ele tinha outro; eu sabia disso. A maior parte dos seres feéricos vivia no
seio de humanos através do seu glamour, mesmo que admitissem o que eram. As pessoas simplesmente não estão preparadas para lidar com a verdadeira aparência de uma criatura
feérica. Claro, algumas delas tinham um aspeto suficientemente humano, mas também não envelhecem. O cabelo a começar a rarear e a pele enrugada e manchada pela idade eram
sinais inequívocos de que Zee não ostentava a sua verdadeira face. A sua expressão carrancuda, todavia, não era nenhum disfarce.
— Não comas nem bebas nada — disse abruptamente.
— Eu li todos os contos de fadas — lembrei-o. — Nada de comida, nada de bebida. Nada de favores. Nada de agradecer a ninguém.
Grunhiu.
— Contos de fadas. Malditas histórias para crianças.
— Também li Katherine Briggs — indiquei. — E os livros originais dos Irmãos Grimm. — Sobretudo à procura de alguma menção a um ser feérico que pudesse ter sido Zee. Não falava
sobre o assunto, embora eu pense que ele tivesse sido Alguém. Portanto descobrir quem tinha sido ele tinha-se tornado uma espécie de passatempo para mim.
— É melhor. É melhor, mas não é grande coisa. — Pôs-se a tamborilar com os dedos no volante. — Briggs era uma arquivista. Os seus livros são tão corretos como as suas fontes
e são, sobretudo, perigosamente incompletos. As histórias dos Irmãos Grimm dizem mais respeito ao entretenimento do que à realidade. Ambos são nur Schatten… apenas sombras
da realidade. — Olhou para mim, um breve olhar perscrutador. — O Tio Mike sugeriu que talvez pudesses ser útil aqui. Entendi que seria uma retribuição melhor do que aquela
que de outro modo te poderia calhar.
Para matar o vampiro feiticeiro, que estava a ser gradualmente dominado pelo demónio que o tornara feiticeiro, Zee tinha arriscado a ira dos Senhores Cinzentos ao conceder-me
um par de preciosidades dos seres feéricos. Tinha matado, e bem matado, aquele feiticeiro, e depois tinha matado aquele que o criara. Como acontece nas histórias, se se usar
uma dádiva feérica mais vezes do que as permitidas, há consequências.
Se soubesse que esta ia ser a retribuição pelos favores prestados, teria ficado mais apreensiva desde o início: a última circunstância em que tivera de retribuir um favor
não tinha acabado bem.
— Não vai haver problema — disse-lhe apesar do nó frio de pavor no meu estômago.
Lançou-me um olhar maldisposto.
— Não tinha pensado sobre o que pode significar trazer-te para a reserva depois do anoitecer.
— As pessoas vão para a reserva — afirmei, apesar de na verdade não ter a certeza disso.
— Não pessoas como tu, e nenhum visitante depois de escurecer. — Abanou a cabeça. — Um humano entra e vê o que deveria ver, especialmente à luz do dia, quando os seus olhos
são mais fáceis de enganar. Mas tu… Os Senhores Cinzentos proibiram a caça aos humanos, mas temos o nosso quinhão de predadores e é difícil contrariar a natureza. Especialmente
quando os Senhores Cinzentos que definem as nossas regras não estão aqui. Sou só eu. E se vires o que não deverias, haverá quem diga que estava apenas a proteger aquilo a
que é obrigado…
Apenas quando mudou para o Alemão é que me apercebi de que estava a falar consigo mesmo durante a última metade do discurso. Graças a Zee, o meu Alemão era melhor do que o
tinha aprendido em dois anos de faculdade, mas não bom ao ponto de conseguir acompanhá-lo quando ia embalado.
Passava das oito da noite, mas o sol ainda lançava o seu olhar quente sobre as árvores nos contrafortes ao nosso lado. As árvores maiores ainda estavam verdes, mas alguns
dos arbustos mais pequenos davam indícios das gloriosas cores do outono.
Perto de Tri-Cidades, as únicas árvores encontravam-se na cidade, onde as pessoas as mantinham regadas ao longo dos brutais verões, ou ao longo de um dos rios. Mas à medida
que nos acercávamos de Walla Walla, onde as Blue Mountains ajudavam a espremer um pouco mais de humidade do ar, a região rural tornava-se lentamente mais verde.
— O pior é que — disse Zee, mudando finalmente para o Inglês — não me parece que nos possas vir a dizer alguma coisa que nós já não saibamos.
— Em relação a quê?
Fitou-me acanhadamente, algo que encaixava de forma estranha no seu rosto.
— Ja, estou a misturar isto. Deixa-me começar de novo. — Inalou uma porção de ar e libertou-a com um suspiro. — Dentro da reserva, fazemos a nossa própria aplicação da lei.
Temos esse direito. Fazemo-lo discretamente porque o mundo humano não está preparado para as formas que temos de aplicar a lei. Não é lá muito fácil prender um de nós, não
é verdade?
— Os lobisomens têm o mesmo problema — comentei.
— Ja, aposto que sim. — Assentiu com um aceno de cabeça brusco. — Ora, tem havido mortes na reserva ultimamente. Nós achamos que se trata da mesma pessoa em todos os casos.
— Pertences à força policial da reserva? — perguntei.
Abanou a cabeça.
— Nós não temos isso. Não nesses moldes. Mas o Tio Mike está no Conselho. Ele achou que o teu olfato apurado poderia ser útil e mandou-me ir buscar-te.
O Tio Mike era dono de um bar em Pasco que servia os seres feéricos e algumas das outras pessoas mágicas que viviam na cidade. Que ele era poderoso, sempre soubera — de outro
modo como conseguiria ele encobrir tantas criaturas feéricas? Não fazia ideia de que pertencia ao Conselho. Talvez se tivesse conhecimento da existência de um conselho pudesse
ter suspeitado.
— Nenhum de vocês é capaz de fazer o mesmo que eu? — Levantei uma mão para impedi-lo de responder de imediato. — Não que eu me importe. Consigo imaginar formas bem piores
de pagar a minha dívida. Mas porquê eu? O gigante do Jack não sentiu o cheiro do sangue de um inglês por causa do Pete? E a magia? Nenhum de vocês é capaz de encontrar o assassino
com magia?
Não sei muito sobre magia, mas tenderia a acreditar que uma reserva de seres feéricos teria alguém cuja magia seria mais útil do que o meu olfato.
— Talvez os Senhores Cinzentos fossem capazes de fazer magia para descobrirem o culpado — disse Zee. — Mas não queremos chamar a atenção deles, é muito arriscado. Tirando
os Senhores Cinzentos… — Encolheu os ombros. — O assassino está a revelar-se surpreendentemente esquivo. No que diz respeito ao olfato, a maior parte de nós não é dotada a
esse nível. Foi um talento em grande medida dado apenas às bestas. Assim que determinaram que seria mais seguro para todos nós misturarmo-nos com os humanos em vez de vivermos
à parte, os Senhores Cinzentos mataram a maior parte das bestas entre nós que tinham sobrevivido à chegada de Cristo e do ferro frio. Talvez haja uma ou duas aqui com a capacidade
de farejar pessoas, mas são tão impotentes que não são fiáveis.
— Como assim?
Dirigiu-me um olhar carregado.
— Os nossos procedimentos são diferentes dos vossos. Se alguém não tem poder para se proteger, não se pode dar ao luxo de ofender ninguém. Se o assassino for poderoso ou bem
relacionado, nenhuma das criaturas feéricas capaz de lhe sentir o cheiro se mostrará disposta a acusá-lo.
Sorriu, num pequeno e amargo movimento subtil dos lábios.
— Podemos não ter a possibilidade de mentir… mas a verdade e a honestidade são bastante diferentes.
Eu tinha sido criada por lobisomens que conseguiam, na sua maioria, cheirar uma mentira a noventa metros. Conhecia bem a diferença entre verdade e honestidade.
Havia algo em relação ao que tinha dito…
— Hum. Eu não sou poderosa. O que é que acontece se eu disser alguma coisa que ofenda?
Sorriu.
— Estarás aqui como minha convidada. É possível que não sirva para te manter fora de perigo no caso de veres de mais. As nossas leis são claras em relação a como lidar com
mortais que vagueiam por Underhill e veem mais do que deviam. O facto de teres sido convidada pelo Conselho, que sabe o que tu és, e que não és propriamente humana, deve dar-te
alguma imunidade. Mas quem se sentir ofendido quando falares a verdade terá, segundo as nossas leis para convidados, de vir atrás de mim e não de ti. E eu sei proteger-me.
Acreditei no que me disse. Zee auto-denomina-se gremlin, o que provavelmente é mais preciso do que impreciso — à exceção do facto de a palavra gremlin ser muito mais recente
do que Zee. Ele é um dos poucos tipos de seres feéricos que têm uma afinidade com o ferro, o que lhe dá toda a espécie de vantagens em relação aos outros seres feéricos. O
ferro é fatal para a maior parte deles.
Não havia qualquer tabuleta que indicasse a bem preservada estrada do distrito para a qual metera depois de sair da autoestrada. A estrada serpenteava através de pequenas
colinas arborizadas que me faziam lembrar mais Montana do que o território árido, coberto de bromo e artemísias em redor de Tri-Cidades.
Contornámos uma esquina, seguimos através de uma parcela de terreno povoada de álamos, e emergimos entre duas paredes de blocos de cimento cor de canela que se erguiam de
ambos os lados, com cinco metros de altura e arame de concertina ao longo do topo para fazer com que os convidados se sentissem ainda mais bem-vindos.
— Parece uma prisão — comentei. A combinação de estrada estreita e paredes altas fez-me sentir claustrofóbica.
— Sim — concordou Zee com um tom sombrio. — Esqueci-me de perguntar, tens a carta de condução contigo?
— Sim.
— Ótimo. Mercy, quero que mantenhas presente que há muitas criaturas na reserva que não gostam de humanos, e tu estás suficientemente próxima de um humano para não caíres
nas graças deles. Se ultrapassares demasiado os limites, matam-te primeiro e depois deixam-me a tarefa de fazer justiça.
— Eu vou ter cuidado com o que digo — repliquei.
Grunhiu num gesto de divertimento pouco lisonjeiro.
— Só acredito quando vir. Quem me dera que o Tio Mike também estivesse aqui. Nesse caso não se atreveriam a incomodar-te.
— Pensava que isto tinha sido ideia do Tio Mike.
— E foi, mas ele está a trabalhar e esta noite não pode sair da taberna.
Devemos ter percorrido um quilómetro até finalmente a estrada fazer uma curva abrupta à direita e revelar uma casa de guarda e um portão. Zee parou a carrinha e abriu o vidro
à manivela.
O guarda vestia um uniforme militar com um emblema enorme do GAF no braço. Não estava suficientemente familiarizada com o GAF (Gabinete de Assuntos Feéricos) para saber que
unidade militar estava associada a ele — se é que estava alguma. O guarda tinha aquele ar de segurança contratado, como se se sentisse um pouco deslocado no uniforme mesmo
apreciando o poder que este lhe dava. No crachá que tinha ao peito lia-se O’DONNELL.
Inclinou-se para a frente e senti um bafo de alho e suor, embora não cheirasse a não lavado. Simplesmente o meu olfato é mais sensível do que o da maior parte das pessoas.
— Identificação — disse.
Apesar do seu nome irlandês, parecia mais italiano ou francês do que irlandês. Tinha traços bem marcados e o cabelo começava a rarear.
Zee abriu a carteira e entregou-lhe a carta de condução. O guarda perscrutou a fotografia com grande zelo e olhou para Zee. Depois acenou afirmativamente com a cabeça e grunhiu:
— A dela também.
Já tinha tirado a carteira da bolsa. Entreguei a minha carta a Zee para que ele a passasse ao guarda.
— Não tem designação — disse O’Donnell, passando o polegar no canto da minha carta.
— Ela não é um ser feérico, meu senhor — explicou Zee num tom deferente que nunca lhe tinha escutado.
— Deveras? O que a traz por cá?
— Ela é minha convidada — respondeu Zee, falando rapidamente como se soubesse que eu estava prestes a dizer ao imbecil que não tinha nada a ver com isso.
E ele era, de facto, um imbecil, ele e quem quer que estivesse à frente da segurança. Identificações com fotografias para os seres feéricos? A única coisa que todos os seres
feéricos têm em comum é o glamour, a capacidade de alterarem a sua aparência. A ilusão é tão boa que afeta não só os sentidos humanos, como a realidade física. É por isso
que um ogre de duzentos e trinta quilos e três metros de altura é capaz de usar um vestido tamanho 36 e conduzir um Mazda MX-5. Não é uma metamorfose, segundo me disseram.
Mas no que me diz respeito, pouca diferença me faz.
Não sei que tipo de identificação os teria obrigado a usar, mas uma identificação com fotografia era inútil. É claro que os seres feéricos tentavam ao máximo fingir que apenas
conseguiam assumir uma forma humana sem nunca dizerem exatamente isso. Talvez tivessem convencido um burocrata qualquer a acreditar nisso.
— Por favor, importa-se de sair da carrinha, minha senhora? — disse o imbecil, saindo da casa de guarda e contornando a carrinha pela parte da frente até chegar ao meu lado
do veículo.
Zee fez um aceno com a cabeça. Saí do carro.
O guarda rodeou-me e tive de reprimir a minha rosnadela. Não gosto de ter pessoas que não conheço a andar atrás de mim. Não era tão estúpido como tinha parecido inicialmente
porque se apercebeu disso e voltou a caminhar em meu redor.
— O Brass não gosta de visitantes civis, especialmente depois do anoitecer — disse a Zee, que tinha saído da carrinha para se postar ao meu lado.
— Eu tenho permissão, meu senhor — replicou Zee, ainda naquele tom deferente.
O guarda resmoneou e folheou algumas páginas do seu bloco de notas com mola, embora na verdade não creia que estivesse a ler nada.
— Siebold Adelbertsmiter. — Pronunciou mal o nome de Zee, fazendo com que este soasse a Seabold em vez de Zeebolt. — Michael McNellis e Olwen Jones. — Michael McNellis podia
ser o Tio Mike, ou não. Não conhecia nenhuma criatura feérica chamada Olwen, mas podia contar pelos dedos de uma mão, e ainda sobravam, as criaturas feéricas que conhecia
pelo nome. Na sua maioria, os seres feéricos guardavam-nos para si.
— Isso mesmo — disse Zee com uma falsa paciência que soava genuína; apenas sabia que era falsa porque Zee não tinha paciência para imbecis — nem para mais ninguém, diga-se.
— Eu sou o Siebold. — Pronunciou-o do mesmo modo que O’Donnell.
O tirano insignificante ficou-me com a carta e regressou ao seu pequeno escritório. Permaneci no mesmo sítio, portanto não conseguia ver exatamente o que fazia, embora escutasse
o som de teclas de computador. Regressou passados uns minutos e devolveu-me a carta.
— Não se meta em sarilhos, Mercedes Thompson. Fairyland não é um lugar para menininhas bem comportadas.
Obviamente O’Donnell tinha estado doente no dia de formação em sensibilidade. Por norma não sou muito picuinhas, mas havia algo de insultuoso no modo como dissera «menininha».
Consciente do olhar circunspecto de Zee, peguei na carta e enfiei-a no meu bolso, tentando guardar para mim aquilo que estava a pensar.
Não creio que a minha expressão tenha sido suficientemente agradável, porque espetou a cara dele na minha.
— Ouviu o que eu disse, menina?
Senti o cheiro a pernil assado com mel e a mostarda da sandes que tinha comido ao jantar. Quanto ao alho, provavelmente tinha-o comido na noite anterior. Talvez tivesse jantado
piza ou lasanha.
— Ouvi o que disse — respondi no tom mais neutro que consegui, mas que claramente não foi bem conseguido.
Tateou a arma que tinha na anca. Olhou para Zee.
— Ela pode ficar duas horas. Se depois disso não tiver saído, vamos à procura dela.
Zee inclinou a cabeça como fazem os lutadores nos filmes de karaté, sem desviar os olhos da cara do guarda. Esperou até que o guarda regressasse ao seu escritório antes de
voltar a entrar no carro, e eu segui-lhe o gesto.
O portão de metal abriu-se de par em par com uma relutância que espelhava a postura de O’Donnell. O aço de que era feito foi o primeiro sinal de competência que vi. A menos
que houvesse vergalhão nas paredes, o cimento poderia impedir que pessoas como eu entrassem, mas jamais impediria os seres feéricos de sair. O arame de concertina era demasiado
brilhante para ser feito de outra coisa que não alumínio, e o alumínio não incomoda minimamente os seres feéricos. É claro que, aparentemente, a reserva tinha sido feita para
delimitar a zona onde os seres feéricos viviam bem como para protegê-los, portanto não devia fazer diferença que eles pudessem entrar e sair conforme lhes aprouvesse, com
ou sem portão guardado.
Zee atravessou os portões e entrou em Fairyland.
Não sabia o que esperar da reserva; habitações militares de alguma espécie, talvez, ou pequenas casas de campo inglesas. Em vez disso, havia fileiras atrás de fileiras de
casas de rancho bonitas e bem preservadas com anexos de garagens para um carro, dispostas com pátios de dimensão semelhante e vedações idênticas, redes metálicas em redor
do pátio da frente, cedros de um metro e oitenta em redor do jardim das traseiras.
A única diferença de uma casa para a outra estava na cor e na folhagem nos pátios. Sabia que a reserva existia aqui desde os anos oitenta, mas parecia ter sido construída
há um ano.
Havia carros espalhados aqui e acolá, sobretudo SUV e carrinhas, mas não vi nenhuma pessoa. O único indício de vida, excetuando Zee e eu própria, era um grande cão preto que
nos fitava com olhos inteligentes do pátio de uma casa amarelo-pálida.
O cão elevou o efeito Stepford4 a um nível über sinistro.
Virei-me para comentar isso com Zee quando me apercebi de que o meu olfato me estava a comunicar coisas estranhas.
— Onde é que está a água? — perguntei.
— Que água? — replicou, erguendo uma sobrancelha.
— Cheira-me a pântano: água e putrefação e coisas a crescer.
Dirigiu-me um olhar que não consegui decifrar.
— Isso foi o que eu disse ao Tio Mike. O nosso glamour funciona melhor para a visão e o tato, é muito bom para o paladar e a audição, mas não tão bom para o olfato. A maior
parte das pessoas não tem um olfato apurado ao ponto de o cheiro ser um problema. Percebeste que eu era um ser feérico através do olfato logo que me conheceste.
Na verdade, ele estava enganado. Nunca conheci duas pessoas que tivessem exatamente o mesmo cheiro — pensara que aquele odor terroso que ele e o seu filho Tad partilhavam
era apenas parte das suas essências individuais. Só muito tempo depois é que aprendi a distinguir entre seres feéricos e humanos. A menos que se viva a uma hora de carro de
uma das quatro reservas de criaturas feéricas dos Estados Unidos, a probabilidade de deparar com uma não é muito elevada. Até me ter mudado para Tri-Cidades e começado a trabalhar
para Zee, nunca tinha conhecido conscientemente um ser feérico.
— Então onde fica o pântano? — perguntei.
Abanou a cabeça.
— Espero que consigas perceber os meios, sejam eles quais forem, que o nosso assassino usou para se disfarçar. Mas para o teu próprio bem, Liebling, espero que deixes cá dentro
os segredos da reserva se conseguires.
Meteu para uma rua que descia e que se parecia exatamente com as primeiras quatro que tínhamos percorrido — à exceção de uma rapariga com cerca de oito ou nove anos que brincava
com um ioió num dos pátios. Observava o brinquedo giratório e baloiçante com uma atenção solene que não se alterou quando Zee estacionou o carro em frente à sua casa. Quando
Zee abriu o portão, pegou o ioió numa mão e fitou-nos com olhos adultos.
— Não entrou ninguém — disse.
Zee assentiu com a cabeça.
— Este é o local do último crime — explicou-me. — Encontrámo-lo esta manhã. Há mais seis. Os restantes têm muitas pessoas a entrar e a sair, mas excetuando esta — indicou
a rapariga com um aceno de cabeça —, que é um membro do Conselho, e o Tio Mike, não houve mais nenhum intruso desde a morte dele.
Olhei para a criança que era um dos membros do Conselho e ela dirigiu-me um sorriso e fez rebentar o balão que fizera com a pastilha elástica.
Decidi que era mais seguro ignorá-la.
— Queres ver se eu consigo sentir o cheiro de alguém que tenha estado em todas as casas?
— Se conseguires.
— Não existe propriamente uma base de dados onde os odores estão armazenados como acontece com as impressões digitais. Mesmo que eu lhe sinta o cheiro, não vou ter a mais
pálida ideia de quem possa ser, a menos que sejas tu, o Tio Mike ou aqui o teu membro do Conselho. — Acenei com a cabeça na direção da Rapariga do Ioió.
Zee sorriu sem humor.
— Se conseguires detetar um cheiro que esteja em todas as casas, acompanho-te pessoalmente ao longo de toda a reserva ou de todo o Estado de Washington até encontrares o assassino
filho de uma puta.
Foi então que percebi que se tratava de uma questão pessoal. Zee não era muito de dizer palavrões e nunca o fazia em Inglês. Puta, em particular, era uma palavra que nunca
tinha usado na minha presença.
— Nesse caso é melhor eu fazer isto sozinha — disse-lhe. — Para que os cheiros que trazes contigo não contaminem o que já lá está. Importas-te que eu use a carrinha para me
transformar?
— Nein, nein — respondeu. — Vai-te transformar.
Regressei à carrinha e senti o olhar fixo da rapariga atrás de mim durante todo o percurso. Tinha um ar demasiado inocente e indefeso para ser outra coisa que não um ser verdadeiramente
ruim.
Entrei na carrinha, no lado do passageiro para conseguir o maior espaço possível, e tirei toda a minha roupa. Para os lobisomens, a transformação é muito dolorosa, especialmente
se esperarem demasiado tempo para se transformarem numa noite de Lua cheia e a Lua os impelir a transformar-se.
A mim a transformação não causa qualquer dor — na verdade, a sensação é boa, como um alongamento completo depois de fazer exercício físico. Fico com fome, contudo, e se passar
de uma forma para a outra com demasiada frequência, canso-me.
Fechei os olhos e passei de humana à minha forma de coiote. Cocei uma orelha com a pata traseira para pôr fim ao zumbido e em seguida pulei pela janela que tinha deixado aberta.
Os meus sentidos enquanto humana são apurados. Quando mudo de forma, melhoram um pouco, mas é mais que isso. Na forma de coiote, a informação que os meus ouvidos e o meu nariz
me estão a dar concentra-se melhor do que quando estou na forma humana.
Pus-me à procura no passeio mesmo a seguir ao portão, tentando sentir os cheiros da casa. Na altura em que alcancei o alpendre, já conhecia o cheiro do macho (não era com
certeza um homem, embora não conseguisse determinar com exatidão o que era) que tinha feito desta a sua casa. Consegui também detetar os cheiros das pessoas que a visitavam
com maior frequência, pessoas como a rapariga, que entretanto brincava novamente com o seu ioió giratório e agitado — embora estivesse de olhos postos em mim e não no brinquedo.
Com exceção da sua primeira afirmação, ela e Zee não tinham trocado uma palavra que eu tivesse escutado. Podia significar que não gostavam um do outro, mas a linguagem corporal
deles não era rígida ou hostil. Talvez simplesmente não tivessem nada para dizer.
Zee abriu a porta no momento em que parei diante dele, e um sopro de morte foi expelido para o exterior.
Não consegui evitar recuar um passo. Ao que parecia, nem mesmo um ser feérico estava imune às indignidades da morte. A cautela que me fez rastejar sobre o limiar até à entrada
não era necessária, mas algumas coisas, especialmente na forma de coiote, são instintivas.
4 Do romance Mulheres Perfeitas (The Stepord Wives), de Ira Levin, que narra a história de um grupo de donas de casa assustadoramente submissas que se suspeita serem robots
criados pelos maridos. (N. do T.)
2
Não foi difícil seguir o cheiro a sangue até à sala de estar, onde o ser feérico tinha sido morto. Havia generosos salpicos de sangue espalhados por diversas peças de mobiliário
e pelo tapete, com uma mancha maior no local onde o corpo evidentemente se imobilizara de vez. Os seus restos mortais tinham sido removidos, mas não fora feito qualquer esforço
para limpar o local.
Aos meus olhos leigos, não parecia que tivesse oferecido muita resistência uma vez que não havia nada partido ou revirado. Dava mais a ideia de que alguém se tinha deleitado
ao dilacerá-lo.
Tinha sido uma morte violenta, perfeita para criar fantasmas.
Não tinha a certeza se Zee e o Tio Mike sabiam dos fantasmas. Embora eu nunca o tivesse tentado esconder — durante muito tempo não me tinha apercebido de que não era algo
que toda a gente pudesse fazer.
Fora assim que eu matara o segundo vampiro. Os vampiros têm a capacidade de esconder os seus locais de descanso diurno, mesmo do olfato de um lobisomem — ou coiote. Nem mesmo
os bons utilizadores de magia conseguem quebrar os seus feitiços de proteção.
Mas eu consigo encontrá-los. Porque as vítimas de mortes traumáticas tendem a perdurar como fantasmas — e os vampiros têm vítimas traumatizadas de sobra.
Essa é a razão pela qual não há muitos caminhantes (nunca conheci outro) — os vampiros mataram-nos a todos.
No entanto se o ser feérico cujo sangue pintou o chão e as paredes se transformara em fantasma, não tinha qualquer desejo de me ver. Não ainda.
Aninhei-me na ligação entre o vestíbulo e a sala de estar e fechei os olhos, para me concentrar mais naquilo que cheirava. O odor da vítima de homicídio, pu-lo de lado. Cada
casa, à semelhança de cada pessoa, tem um odor. Começaria por aí e discriminaria os odores que não pertenciam ali. Detetei o cheiro essencial da sala, neste caso sobretudo
fumo de cachimbo, fumo de madeira queimada e lã. O cheiro de madeira queimada era estranho.
Abri os olhos e olhei em volta por via das dúvidas, mas não havia qualquer indício de uma lareira. Se o cheiro fosse mais ténue, teria presumido que alguém entrara com ele
entranhado na roupa — mas o cheiro era dominante. Talvez ele tivesse arranjado algum incenso ou coisa parecida que cheirasse a fogueira.
Uma vez que descobrir a misteriosa causa do cheiro a madeira queimada provavelmente seria inútil, voltei a colocar o queixo sobre as patas dianteiras e fechei os olhos novamente.
Depois de saber qual o cheiro da casa, foi-me mais fácil separar os odores ligeiros que corresponderiam às coisas vivas que tinham entrado e saído. Como prometido, descobri
que o Tio Mike tinha estado aqui. Também distingui o cheiro apimentado da Rapariga do Ioió, tanto recente como antigo. Ela tinha estado aqui muitas vezes.
Absorvi todos os cheiros restantes até sentir que poderia relembrá-los quando quisesse. A minha memória olfativa é um pouco melhor do que a visual. Posso esquecer-me da cara
de alguém, mas raramente me esqueço do seu cheiro — ou da voz.
Abri os olhos para investigar a casa mais a fundo e… tudo tinha mudado.
A sala de estar em que entrara era um tanto pequena, bem arranjada e tão insípida quanto o exterior da casa. A sala em que agora me encontrava tinha quase o dobro do tamanho.
Em vez de placas de reboco, almofadas de carvalho polido forravam as paredes, cheias de pequenas tapeçarias intrincadas ilustrando cenas na floresta. O sangue da vítima, que
tinha acabado de ver espalhado num tapete bege, cobria, agora, um tapete de trapilho e estendia-se ao chão de madeira lustrosa.
Contra a parede da frente onde existia uma janela sobranceira à rua estava disposta uma lareira feita de seixos. Agora não havia janelas naquele lado da sala, mas havia imensas
janelas no outro lado, e através do vidro conseguia ver uma floresta que nunca crescera no clima seco de Washington oriental. Era grande de mais para caber no pequeno jardim
das traseiras que estava cercado por uma vedação de cedros.
Coloquei as patas no peitoril da janela e fitei a floresta, e o pasmo substituiu a infantil desilusão de descobrir que a reserva era um subúrbio particularmente vulgar.
O coiote queria ir explorar os segredos que sabíamos que se escondiam na profunda floresta verde. Mas tínhamos um trabalho a fazer. Portanto afastei o focinho do vidro e pulei
através das partes do chão que estavam secas até regressar à entrada — que mantinha o mesmo aspeto.
Havia dois quartos, duas casas de banho e uma cozinha. O meu trabalho foi facilitado porque apenas estava interessada em odores recentes, pelo que a procura não me levou muito
tempo.
Quando voltei a olhar para a sala de estar, estava eu a sair da casa, a sua janela ainda dava para a floresta e não para o jardim das traseiras. Os meus olhos detiveram-se
um momento na poltrona que estava posicionada de modo a que dela se olhasse diretamente para as árvores. Quase conseguia vê-lo ali sentado, desfrutando da natureza enquanto
fumava o seu cachimbo num nevoeiro de fumo com cheiro forte.
Mas não o vi, não de facto. Não era um fantasma, apenas uma invenção resultante da minha imaginação, do cheiro a fumo de cachimbo e da floresta. Ainda não sabia o que tinha
sido, para além de poderoso. Esta casa iria lembrar-se dele durante muito tempo, mas não guardava quaisquer fantasmas inquietos.
Saí pela porta da frente, aberta, e regressei ao insípido mundinho que os humanos tinham construído para os seres feéricos para mantê-los fora das suas cidades. Perguntei-me
quantas mais daquelas vedações de cedros opacas esconderiam florestas — ou pântanos — e dei graças por a minha forma de coiote me impedir de fazer perguntas. Duvido que de
outro modo tivesse a força de vontade para ficar de bico calado, e ocorreu-me que a floresta era uma daquelas coisas que eu não devia ver.
Zee abriu-me a porta da carrinha e pulei para o interior de modo a que me pudesse levar ao local seguinte. A rapariga observou-nos partir, ainda sem falar. Não fui capaz de
lhe ler a expressão no rosto.
A segunda casa em que parámos era um clone da primeira, até ao pormenor da cor da moldura em volta das janelas. A única diferença era que o pátio da frente tinha um pequeno
lilás e um canteiro de flores a um lado do passeio, um dos poucos canteiros de flores que tinha visto desde que tinha chegado. As flores estavam todas mortas e a relva estava
amarelecida e a necessitar desesperadamente de ser cortada.
Não havia nenhum guardião neste alpendre. Zee colocou a mão na porta e parou sem a abrir.
— A casa onde estiveste foi onde se deu a última morte. Esta foi onde se deu a primeira e imagino que desde então muita gente tenha entrado e saído.
Sentei-me e olhei para cima na direção da sua cara: esta dizia-lhe alguma coisa.
— Ela era minha amiga — disse lentamente à medida que a mão que tinha na porta se cerrava num punho. — O nome dela era Connora. Tinha sangue humano como o Tad. O dela era
mais antigo, mas deixou-a fraca. — Tad era o filho dele, meio humano e atualmente na universidade. O seu sangue humano não tinha, ao que me era dado a ver, diminuído a afinidade
com metais que partilhava com o pai. Não sei se tinha herdado a imortalidade do pai: tinha dezanove anos e uma aparência equivalente à idade.
— Era a nossa bibliotecária, a nossa arquivista e colecionadora de histórias. Conhecia todas as lendas, todos os poderes que o ferro frio e o Cristianismo nos roubaram. Ela
odiava ser fraca; odiava e desprezava ainda mais os humanos. Mas era bondosa para o Tad.
Zee virou a cara para que eu não conseguisse vê-la e, abrupta e furiosamente, abriu a porta principal.
Uma vez mais entrei na casa sozinha. Se Zee não me tivesse dito que Connora fora uma bibliotecária, talvez tivesse adivinhado. Havia livros empilhados em todo o lado. Em prateleiras,
no chão, em cadeiras e em mesas. A maior parte deles não correspondia aos tipos de livros que tinham sido feitos no último século — e nenhum dos títulos que vi estava escrito
em Inglês.
Tal como na última casa, o cheiro da morte estava presente, embora, conforme Zee dissera, fosse antiga. A casa cheirava sobretudo a mofo com um ténue odor a comida podre e
produtos de limpeza.
Não me tinha dito quando é que ela morrera, mas supus que ninguém tinha entrado aqui durante um mês ou mais.
Há cerca de um mês, o demónio tinha causado toda espécie de violência através da sua simples presença. Tinha a certeza que os seres feéricos tinham tido isso em conta, e estava
razoavelmente convicta de que a reserva se encontrava a uma distância suficientemente segura para ter escapado a essa influência. Ainda assim, quando readquirisse a minha
forma humana, talvez inquirisse Zee em relação a isso.
O quarto de Connora era agradável e feminino ao estilo de casa de campo inglesa. O chão era de pinho ou outra madeira branda qualquer, coberto com tapetes dispersos tecidos
à mão. A colcha da sua cama era um daqueles tecidos brancos finos com nós que sempre associei a hotéis com estadia e pequeno-almoço e avós. O que é estranho, considerando
que nunca conheci nenhum dos meus avós — ou dormi num hotel com estadia e pequeno-almoço.
Sobre uma mesinha ao lado da cama estava uma rosa morta numa jarra — e não havia ali um único livro.
O segundo quarto correspondia ao seu escritório. Quando Zee disse que ela colecionava histórias, de certo modo estava à espera de encontrar blocos de notas e papel, mas a
única coisa existente era uma pequena estante com uma embalagem de discos compactos graváveis por abrir. As restantes prateleiras estavam vazias. Alguém lhe tinha levado o
computador — embora tivessem deixado a impressora e o monitor; talvez tivessem levado também o que quer que estivesse nas prateleiras.
Saí do escritório e continuei a explorar.
A cozinha fora recentemente esfregada com amoníaco, embora ainda houvesse algo a apodrecer no frigorífico. Talvez fosse esse o motivo pelo qual no balcão repousava um daqueles
odiosos ambientadores. Espirrei e recuei. Não ia conseguir detetar nenhum cheiro naquele compartimento — tentar fazê-lo teria como único resultado insensibilizar o meu nariz
por causa do ambientador.
Percorri o resto da casa, e por exclusão de partes deduzi que ela tinha morrido na cozinha. Uma vez que a cozinha tinha uma porta e um par de janelas, o assassino podia perfeitamente
ter entrado e saído sem deixar cheiros em mais nenhum lado. Registei isso mentalmente, mas ainda assim passei a casa em revista uma segunda vez. Detetei o cheiro de Zee, e,
mais vagamente, também o de Tad. Havia três ou quatro pessoas que visitavam esta casa com frequência, e algumas que eram visitas menos frequentes.
Se esta casa guardava segredos como a anterior, não fui capaz de desvendá-los.
Quando saí pela porta principal, a luz do dia tinha quase desaparecido. Zee esperava-me no alpendre de olhos fechados, o rosto ligeiramente virado para os últimos raios de
luz que desvaneciam. Tive de ganir para atrair a sua atenção.
— Já acabaste? — perguntou numa voz que era um pouco mais sombria, um pouco mais outra do que o habitual. — Uma vez que o homicídio da Connora foi o primeiro, por que é que
não vamos aos locais do crime por ordem cronológica? — sugeriu.
O local do segundo homicídio não cheirava de todo a morte. Se alguém tinha morrido aqui, o local fora tão bem limpo que não lhe conseguia sentir o cheiro — ou o ser feérico
que aqui tinha vivido estava tão longe da humanidade que a sua morte não deixou nenhum dos familiares indicadores de cheiro.
Havia, contudo, uma série de visitantes comuns a esta casa e às primeiras duas e alguns que tinha encontrado apenas na primeira e terceira casas. Mantive-os na lista de suspeitos
porque não tinha sido capaz de detetar cheiros distintos na cozinha da bibliotecária. Além disso, considerando que esta casa estava tão limpa, não podia eliminar por completo
nenhuma das pessoas que tivesse estado apenas na primeira casa. Daria jeito conseguir manter presente onde tinha cheirado quem, mas nunca tinha descortinado nenhuma forma
de registar um cheiro com papel e caneta. Simplesmente teria de fazer o melhor que conseguisse.
A quarta casa a que Zee me levou não possuía na aparência nada que a destacasse das restantes. Uma casa bege insipidamente ornamentada em tons de branco com mais nada para
além de erva morta ou em vias disso no pátio.
— Esta não foi limpa — disse carrancudamente enquanto abria a porta. — Depois de haver uma terceira vítima, os esforços deixaram de ser no sentido de esconder o crime dos
humanos e passaram a centrar-se na tentativa de descobrir quem é o assassino.
Não estava a brincar quando dissera que não tinha sido limpa. Pulei sobre jornais velhos e roupas espalhadas que tinham sido deixados na entrada.
Este ser feérico tinha sido morto na sala de estar ou na cozinha. Ou no quarto principal onde uma família de ratos estabelecera residência. Fugiram precipitadamente assim
que entrei.
A casa de banho principal, por uma qualquer razão que não consegui perceber, cheirava como o oceano e não a rato como o resto deste canto da casa. Impulsivamente, fechei os
olhos, tal como fizera na primeira casa, e concentrei-me no que os meus outros sentidos tinham a comunicar-me.
Ouvi-o primeiro, o som da rebentação e do vento. Em seguida, uma brisa gelada agitou-me a pelagem. Dei dois passos em frente e a tijoleira fria amaciou, convertendo-se em
areia. Quando abri os olhos, encontrava-me no topo de uma duna arenosa na orla de um oceano.
O vento levantava areia, que me feria o nariz e os olhos e se enfiava na minha pelagem enquanto fitava, abismada, a água ao mesmo tempo que a minha pele murmurava com a magia
do lugar. Também aqui o Sol se estava a pôr e a luz transformava o mar em mil tons de laranja, vermelho e cor-de-rosa.
Escorreguei através da vegetação afiada até parar na praia de areia compacta. Ainda não conseguia ver o fim da água cujas ondas cresciam e amansavam até se arrastarem através
da praia. Observei as ondas o tempo suficiente para permitir que a maré se aproximasse e me tocasse nos pés.
A água gelada lembrou-me que estava ali para trabalhar, e, por muito belo e impossível que isto fosse, era improvável que encontrasse o assassino aqui. Não sentia qualquer
outro cheiro para além do mar e da areia. Voltei-me para percorrer o caminho inverso antes que ficasse noite cerrada, mas atrás de mim apenas via infindáveis dunas de areia
com pequenas colinas erguendo-se atrás delas.
Ou o vento tinha apagado da areia a marca das minhas patas enquanto observava a paisagem, ou elas nem sequer tinham chegado a existir. Nem sequer tinha a certeza de qual a
encosta que tinha descido.
Congelei, de certo modo convencida de que se me mexesse um passo que fosse nunca mais encontraria o meu caminho de volta. O pacífico feitiço do oceano tinha-se dissipado por
completo, e a paisagem, ainda bela, apresentava sombras e uma ameaça.
Sentei-me lentamente, tremendo na brisa. A única coisa que me restava fazer era esperar que Zee me encontrasse, ou que esta paisagem desaparecesse tão rapidamente quanto aparecera.
Para esse fim, baixei-me até a minha barriga pousar na areia com o oceano atrás de mim.
Coloquei o queixo sobre as patas, fechei os olhos, e pensei casa de banho e em como devia cheirar a rato, tentando ignorar o mar salgado e o vento que me despenteava a pelagem.
Mas não desapareceu.
— Ora, ora — disse uma voz masculina —, o que temos nós aqui? Nunca ouvi falar num coiote a errar por Underhill.
Abri os olhos e dei meia volta, aninhando-me como preparação para fugir ou atacar conforme me parecesse apropriado. A cerca de três metros, entre mim e o oceano, um homem
observava-me. Pelo menos tinha aspeto de homem. A sua voz soara tão normal, num tom à professor de Harvard, que demorei um momento a aperceber-me do quanto este homem estava
longe de ser normal.
Os seus olhos eram mais verdes do que o verde-azeitona com que o Tio Mike vestia os seus empregados de mesa, tão verdes que nem mesmo a escuridão da noite lhes esmorecia a
cor. Um longo cabelo claro, humedecido com água salgada e emaranhado com pedaços de plantas marítimas, caía-lhe até à dobra dos joelhos. Estava completamente nu, e confortável
com isso.
Não vislumbrei nenhuma arma. Não havia qualquer agressividade na sua postura ou voz, mas os meus instintos estavam aos gritos. Baixei a cabeça, mantendo o contacto visual,
e consegui não rosnar.
Permanecer na forma de coiote pareceu-me a coisa mais segura a fazer. Podia pensar que eu era simplesmente um coiote… que tinha vagueado até ao interior da casa de banho de
um ser feérico morto e daí até ao sítio onde se encontrava. Pouco provável, tive de admitir. Talvez houvesse outros caminhos para chegar aqui. Não tinha visto nenhum indício
de qualquer outra coisa viva, mas talvez ele viesse a acreditar que eu era exatamente aquilo que aparentava.
Mantivemo-nos fixos um no outro durante muito tempo, sem que nenhum de nós se mexesse. A sua pele era bastante mais clara do que o seu cabelo. Conseguia ver o tom azulado
das veias mesmo por baixo da pele.
As suas narinas agitaram-se enquanto captava o meu odor, mas eu sabia que cheirava a coiote.
Por que é que Zee não o tinha usado? Obviamente este ser feérico usava o seu olfato, e não me parecia impotente.
Talvez fosse por eles pensarem que ele pudesse ser o assassino.
Passei em revista o folclore enquanto me observava, tentando pensar em todos os seres feéricos de aparência humana que viviam no ou perto do mar. Havia muitos, mas poucos
sobre os quais soubesse muita coisa.
Os selkies eram os únicos de que eu me lembrava como sendo neutros. Não me pareceu que fosse um selkie — sobretudo porque não era possível eu ter tanta sorte — e não cheirava
a algo que se transformasse num mamífero. Cheirava a algo frio e relacionado com peixe. Havia coisas mais simpáticas em lagos, mas no mar imperam sobretudo histórias de terror,
não brownies gentis que mantêm as casas limpas.
— Cheiras a coiote — disse por fim. — Tens aspeto de coiote. Mas nenhum coiote alguma vez vagueou por Underhill até ao Reino do Rei dos Mares. Quem és tu?
— Gnädiger Herr — disse Zee cautelosamente a partir de um sítio algures atrás de mim. — Esta está a trabalhar para nós e perdeu-se.
Às vezes sentia um amor enorme por aquele velhote, mas nunca me tinha sentido tão feliz por ouvir a sua voz.
A criatura feérica do mar não se mexeu exceto para levantar os olhos até eu ter a certeza praticamente absoluta de que olhava para o rosto de Zee. Não queria desviar o olhar,
mas recuei um passo até o meu quadril tocar na perna de Zee de modo a certificar-me de que ele não era apenas fruto da minha imaginação.
— Ela não é um ser feérico — disse o ser feérico.
— Nem tão-pouco é humana. — Havia algo na voz de Zee que se aproximava muito da deferência, e percebi que o meu medo tinha razão de ser.
O ser desconhecido avançou abruptamente e apoiou-se sobre um joelho diante de mim. Agarrou-me o focinho pouco preocupado em ter permissão para isso e passou a mão livre pelos
meus olhos e orelhas. As suas mãos gélidas não eram bruscas, mas, ainda assim, sem o incentivo de Zee eu era capaz de ter protestado. Largou a minha cabeça abruptamente e
levantou-se novamente.
— Ela não usa unguento de elfo, nem tresanda às drogas que ocasionalmente deixam aqui alguém perdido para vaguear e morrer. Que seja do meu conhecimento, embora rara, a sua
magia não era tal que pudesse fazer semelhante coisa. Portanto, como veio ela aqui parar?
À medida que falava, apercebi-me de que não era Harvard que lhe escutava na voz, mas a Alegre Inglaterra Antiga.
— Não sei, mein Herr. Suspeito que ela também não saiba. Você sabe melhor que ninguém que Underhill é inconstante e solitária. Se a minha amiga quebrou o glamour que esconde
as passagens, ele não tinha como a impedir de entrar.
A criatura do mar pôs-se muito quieta — e as ondas do oceano caíram vagarosamente como um gato que se preparasse para um ataque súbito. As nuvens no céu escureceram.
— E como é que — disse ele num tom muito baixo — ela ia conseguir quebrar o glamour?
— Trouxe-a para nos ajudar a descobrir um assassino porque ela tem um faro muito bom — explicou Zee. — Se o glamour tem uma fraqueza, é o cheiro. Assim que quebrou essa parte
da ilusão, o resto aconteceu. Ela não é nem poderosa nem uma ameaça.
O oceano atacou sem aviso. Uma onda gigante esbofeteou-me, tirando-me o equilíbrio e a vista. Por momentos roubou-me o calor do corpo e não me parece que tivesse sido capaz
de respirar mesmo que o meu nariz não estivesse mergulhado em água.
Uma mão forte agarrou-me a cauda e puxou-ma com força. Doeu, mas não protestei porque a água estava a recuar, e se não estivesse a ser agarrada, ter-me-ia arrastado consigo.
Assim que o nível da água baixou até aos meus joelhos, Zee largou-me.
Tal como eu, estava encharcado, embora não estivesse a tremer. Tossi para expelir a água salgada que tinha engolido, sacudi a pelagem e depois olhei em volta, mas o ser feérico
do mar tinha desaparecido.
Zee tocou-me no lombo.
— Vou ter de te levar ao colo para regressarmos. — Não esperou por uma resposta, simplesmente pegou em mim. Houve um momento nauseante quando senti tudo à roda, e em seguida
ele pousou-me no azulejo do chão da casa de banho. A divisão estava negra como breu.
Zee ligou a luz, que era amarela e parecia artificial depois das cores do pôr do Sol.
— Consegues continuar? — perguntou-me.
Olhei para ele, mas abanou a cabeça contundentemente. Não queria falar sobre o que tinha acontecido. Fiquei chateada, mas tinha lido contos de fadas suficientes para saber
que por vezes falar sobre um ser feérico de forma demasiado direta permite que ele ouça o que é dito. Quando o tirasse da reserva, obteria respostas nem que tivesse de o obrigar
a dar-mas.
Até lá, pus a minha curiosidade de lado para ponderar a sua pergunta. Espirrei duas vezes para desimpedir o nariz e depois aproximei-o do chão para descobrir mais pessoas
que tinham estado nesta casa.
Desta vez Zee veio comigo, mantendo-se atrás de mim de modo a não interferir, mas seguindo-me de perto. Não disse mais nada e ignorei-o ao mesmo tempo que me esforçava por
encontrar uma explicação para o que acabara de me acontecer. Esta casa era real? Zee dissera ao outro ser feérico que eu tinha quebrado o glamour — isso não significaria que
a outra paisagem seria a real? Mas isso significaria que havia aqui um oceano inteiro, o que parecia altamente improvável — embora ainda conseguisse cheirá-lo se tentasse.
Sabia que Underhill era o reino das fadas, mas as histórias em relação a ele eram bastante vagas quando não eram absolutamente contraditórias.
O Sol tinha-se posto completamente e Zee foi ligando luzes à medida que avançávamos. Embora eu conseguisse ver perfeitamente na escuridão, fiquei grata pelo facto de haver
luz. O meu coração ainda tinha a certeza de que íamos ser comidos, e martelava com o dobro da sua velocidade habitual.
O desagradável perfume da morte atraiu a minha atenção para uma porta fechada. Se estivesse sozinha, poderia ter aberto facilmente a porta, mas acredito na ideia de fazer
uso dos outros. Gani (os coiotes não conseguem ladrar, não como um cão) e Zee abriu obedientemente a porta, revelando as escadas que desciam para uma cave. Era a primeira
casa que tinha cave — a menos que as outras tivessem sido de alguma maneira escondidas.
Desci as escadas aos saltos. Zee ligou as luzes e seguiu-me. O grosso da cave tinha o aspeto que as caves normalmente têm: tralha armazenada sem critério, paredes inacabadas
e chão de cimento. Percorri lentamente o chão, seguindo a morte até uma porta, completamente fechada. Zee abriu-ma sem que lho pedisse e descobri, finalmente, o sítio onde
o ser feérico que aqui vivera tinha sido assassinado.
Contrariamente ao resto da casa, esta divisão encontrava-se imaculada até o residente ter sido assassinado. Por baixo das manchas cor de ferrugem do sangue do ser feérico,
o chão de azulejo brilhava. Volumes com capas de couro fendidas, possuindo a verdadeira granulosidade dos livros anteriores à era da impressão, encontravam-se misturados com
livros brochados em mau estado e textos universitários de Matemática e Biologia em estantes alinhadas com as paredes.
Esta divisão era a mais sangrenta de todas as que tinha visto até ao momento — e considerando o primeiro homicídio, isso queria dizer alguma coisa. Mesmo seco e velho, o sangue
era avassalador. Tinha formado poças, manchas e fora projetado enquanto o ser feérico lutara com o seu atacante. As prateleiras de baixo de três estantes estavam salpicadas
com ele. Mesas tinham sido tombadas e no chão estava um candeeiro partido.
Talvez não me tivesse apercebido disso se não tivesse pensado neles instantes antes, mas a criatura feérica que aqui morrera era um selkie. Nunca tinha conhecido um, pelo
menos conscientemente, mas tinha ido a jardins zoológicos e sabia qual era o cheiro das focas.
Não queria entrar no compartimento. Por norma não era dada a sentir náuseas, mas recentemente tinha caminhado em cima de sangue suficiente. Nos locais onde o sangue tinha
formado poças — na argamassa entre azulejos, num livro aberto e contra a base de uma das estantes onde o chão não estava nivelado — tinha apodrecido em vez de secado. O compartimento
cheirava a sangue, foca e peixe apodrecido.
Evitei as zonas piores onde consegui e tentei não pensar de mais sobre as que não consegui evitar. Gradualmente, o que o meu olfato me indicou distraiu-me da natureza desagradável
da minha tarefa. Atravessei a divisão movendo-me de um lado para o outro enquanto Zee me esperava mesmo à entrada.
Quando me encaminhava para a porta, detetei algo. A maior parte do sangue que aqui se encontrava pertencia ao ser feérico, mas no chão, mesmo em frente à porta, havia algumas
gotas de sangue que não lhe pertenciam.
Se Zee fosse um agente da polícia, tinha-me transformado ali naquele momento para lhe dizer o que tinha encontrado. Mas se apontasse o dedo a um suspeito, sabia exatamente
o que aconteceria à pessoa a quem o tinha apontado.
Os lobisomens lidavam com os seus criminosos da mesma maneira. Não me oponho a que se mate assassinos, mas se sou eu a fazer a acusação gosto de ter a certeza absoluta do
que estou a dizer, considerando as consequências. E a pessoa que estaria a acusar era uma hipótese improvável como assassino de tantos seres feéricos.
Zee seguiu-me escadas acima, desligando as luzes e fechando as portas à medida que avançávamos. Não me dei ao trabalho de procurar mais. Havia apenas dois odores no compartimento
da cave para além do do Tio Mike. Ou o selkie não tinha recebido ninguém na sua biblioteca ou tinha-a limpo desde a última vez em que isso acontecera. O mais incriminatório
de tudo era o sangue.
Zee abriu a porta principal e saí para a noite cerrada onde a Lua prateada tinha subido completamente. Quanto tempo teria eu ficado de olhos cravados no mar impossível?
Uma sombra mexeu-se no alpendre e transformou-se no Tio Mike. Cheirava a malte e asinhas de frango fritas, e consegui ver que ainda envergava as suas roupas de taberneiro:
calças de caqui largas cor de marfim e uma t-shirt verde com o seu próprio nome inscrito no peito em letras reluzentes. Não se tratava de egocentrismo; Tio Mike era o nome
da sua taberna.
— Ela está molhada — disse com um sotaque irlandês mais carregado do que o sotaque alemão de Zee.
— Água do mar — explicou-lhe Zee. — Ela vai ficar bem.
O rosto belo do Tio Mike comprimiu-se.
— Água do mar.
— Pensava que esta noite estavas a trabalhar. — Havia um aviso na voz de Zee ao mudar de assunto. Não tinha a certeza se não queria falar do meu encontro com o ser feérico
do mar ou se me estava a proteger — ou ambos.
— O GAF andava a fazer patrulha à vossa procura. A Cobweb ligou-me porque estava preocupada com a possibilidade de eles interferirem. Mandei o GAF embora com as orelhas a
arder. Eles não têm qualquer autoridade para te dizer quanto tempo podes manter um visitante. No entanto, temo que tenhamos atraído a atenção deles para si, Mercy. É possível
que lhe causem problemas.
As suas palavras não diziam nada de extraordinário, mas havia algo de mais sombrio na sua voz que não tinha nada que ver com a noite e tudo que ver com poder.
Olhou novamente para Zee.
— Correu bem?
Zee encolheu os ombros.
— Vamos ter de esperar até que ela se transforme. — Olhou para mim. — Acho que é altura de pôr fim a isto. Vês demasiado, Mercy, quando isso não é seguro.
O pelo na parte de trás do meu pescoço indicou-me que algo nos estava a vigiar a partir das sombras. Aspirei o vento pelo nariz e percebi que eram mais que dois ou três. Olhei
em volta e rosnei, enrugando o nariz para cima para pôr as presas a descoberto.
O Tio Mike, fitando-me, ergueu as sobrancelhas, e depois também relanceou os olhos em volta. Tocou com as pontas dos dedos no queixo e, de olhos postos em mim, disse:
— Vão todos para casa agora.
Pôs-se à espera e depois pronunciou algo rigidamente em gaélico. Ouvi um estrondo e alguém abalou pelo passeio num estrépito de cascos.
— Agora estamos sozinhos — disse-me. — Pode-se transformar.
Olhei-o e relanceei os olhos a Zee. Satisfeita por ter a sua atenção, pulei do alpendre e trotei na direção da carrinha.
A presença do Tio Mike aumentava os riscos. Talvez tivesse sido capaz de convencer Zee a esperar por mais alguma prova que confirmasse as minhas suspeitas — mas não conhecia
o Tio Mike tão bem.
Pensei furiosamente, mas na altura em que cheguei à carrinha estava tão certa quanto podia estar sem o ter visto matar de que o sangue que encontrara pertencia ao assassino.
Desconfiava dele mesmo antes de ter encontrado o sangue. O seu odor estava por toda a parte nas restantes casas, mesmo na que tinha sido limpa — como se tivesse andado a revistar
as casas à procura de alguma coisa.
Zee seguiu-me até à carrinha. Abriu a minha porta, depois fechou-a atrás de mim antes de se voltar a juntar ao Tio Mike no alpendre. Transformei-me e enfiei-me nas minhas
roupas quentes. O ar da noite era quente, mas ainda sentia o frio do meu cabelo molhado contra a pele húmida. Não me dei ao trabalho de voltar a calçar as sapatilhas, saindo
da carrinha completamente descalça.
No alpendre, esperaram pacientemente, fazendo-me lembrar a minha gata, que era capaz de fitar o buraco de um rato durante horas sem se mexer.
— Há alguma razão para o GAF ter enviado alguém a todas as cenas do crime? — perguntei.
— O GAF pode fazer buscas aleatórias — explicou-me Zee. — Mas não foram chamados aqui.
— Está a dizer que um elemento do GAF esteve em todas as casas? — perguntou o Tio Mike. — Quem é e como é que o conheceu?
Os olhos de Zee semicerraram-se subitamente.
— Ela só conhece um agente do GAF. O O’Donnell estava no portão quando a trouxe.
Assenti com um aceno.
— O cheiro dele estava em todas as casas e o sangue dele estava no chão da biblioteca desta. — Indiquei a casa com a cabeça. — O único cheiro na biblioteca era o dele, para
além do do selkie e do seu, Tio Mike.
Sorriu-me.
— Não fui eu. — Ainda com aquele sorriso encantador, olhou para Zee. — Gostava de falar contigo a sós.
— Mercy, por que é que não levas a minha carrinha? Podes deixá-la na casa do teu amigo que eu vou buscá-la amanhã.
Dei um passo fora do alpendre antes de me virar.
— O que eu conheci ali dentro… — Apontei para a casa do selkie com a cabeça.
Zee suspirou.
— Não te trouxe aqui para pôr a tua vida em risco. A dívida que tens para connosco não é assim tão grande.
— Ela está metida nalgum sarilho? — perguntou o Tio Mike.
— Trazer uma caminhante para a reserva talvez não tenha sido tão boa ideia como pensavas — respondeu Zee secamente. — Mas acho que está tudo resolvido… a menos que continuemos
a falar sobre o assunto.
O rosto do Tio Mike adquiriu aquela agradável inexpressividade que usava para esconder os seus pensamentos.
Zee olhou para mim.
— Acabou, Mercy. Desta vez contenta-te com o facto de não saberes.
Não me contentava, como é evidente. Porém, Zee não tinha qualquer intenção de me contar mais.
Dirigi-me para a carrinha e Zee aclarou a garganta muito baixinho. Olhei-o, mas limitou-se a fixar-se em mim. Tal como fizera quando me estava a ensinar a montar um carro
e eu me tinha esquecido de um dos passos. Esquecido um dos passos… pois.
O meu olhar cruzou-se com o do Tio Mike.
— Isto salda a minha dívida para consigo e os seus por ter matado o segundo vampiro com os vossos artefactos.
Dirigiu-me um sorriso lento e malicioso que me fez sentir feliz pelo que Zee me tinha relembrado.
— Claro.
De acordo com o meu relógio de pulso, tinha passado seis horas na reserva, partindo do pressuposto, claro está, de que não tinha passado um dia inteiro. Ou cem anos. Visões
de Washington Irving à parte, se tivesse, presumivelmente, lá ficado um dia inteiro — ou mais — o Tio Mike ou Zee ter-mo-iam dito. Se calhar tinha passado mais tempo do que
pensava a olhar para o oceano.
De qualquer modo, era muito tarde. Não estava nenhuma luz ligada na casa de Kyle quando cheguei, portanto decidi não bater. Havia um lugar vazio na rampa de entrada da casa,
mas a carrinha de Zee era velha e preocupava-me a possibilidade de deixar manchas de óleo no cimento (razão pela qual tinha deixado o meu Rabbit estacionado no asfalto). Portanto
encostei e estacionei-a na rua atrás do meu carro. Devia estar cansada, porque só depois de ter desligado a carrinha e saído me apercebi de que qualquer veículo pertencente
a Zee jamais verteria o que quer que fosse.
Parei para dar umas palmadinhas no para-choques como forma de pedir desculpa quando alguém pôs a mão sobre o meu ombro.
Agarrei a mão e fiz uma rotação, executando uma bela chave de pulso. Usando isso como vantagem conveniente, fi-lo rodar alguns graus para fora e prendi-lhe o cotovelo com
a minha outra mão. Mais alguma rotação e a articulação do seu ombro também passou a ser minha. Estava pronto para ser pulverizado.
— Que diabo, Mercy, já chega!
Ou para receber um pedido de desculpas.
Soltei Warren e inspirei fundo.
— Da próxima vez, diz alguma coisa. — Na verdade, devia ter pedido desculpa. Mas não estaria a fazê-lo de forma sentida. Apanhou-me de surpresa, foi culpa dele.
Esfregou o ombro pesarosamente e disse.
— Direi. — Fulminei-o com o olhar. Não o tinha magoado — mesmo que ele fosse humano, não lhe teria provocado qualquer dano.
Parou de fingir e exibiu um sorriso rasgado.
— OK, OK. Ouvi-te a chegar de carro e quis certificar-me de que estava tudo bem.
— E não resististe a seguir-me às escondidas.
— Não te estava a seguir às escondidas. Precisas de estar mais alerta. Que se passou?
— Desta vez não foram vampiros possuídos pelo demónio — disse-lhe. — Apenas um trabalhinho de detetive. — E uma viagem até à costa.
Uma janela foi aberta no segundo piso e Kyle pôs a cabeça e os ombros de fora de modo a conseguir olhar para nós cá em baixo.
— Se vocês os dois já acabaram de brincar aos índios e vaqueiros, há quem gostasse de dormir o seu sono de beleza.
Olhei para Warren.
— Tu ouvires ele, Kimo Sabe. Eu ir para a minha cabana dormir.
— Por que é que és sempre tu a fazer de índia? — queixou-se Warren, impassivo.
— Porque ela é a índia, cara-pálida. — disse Kyle. Levantou a janela completamente e encostou uma anca ao caixilho. Vestia pouco mais do que a maior parte dos homens do filme
que tínhamos estado a ver, e ficava-lhe melhor a ele.
Warren bufou e despenteou-me o cabelo.
— Ela só é metade índia, e já conheci mais índios do que ela.
Kyle sorriu maliciosamente e, com a sua melhor imitação de Mae West, disse:
— Quantos índios é que conheceste, rapazola?
— Podem parar por aí. — Fiz o gesto de tapar os ouvidos. — Lalalala. Esperem até eu entrar no meu fiel Rabbit e arrancar em direção ao nascer do Sol. — Pus-me em bicos de
pés e beijei Warren algures na região do queixo.
— É bastante tarde — disse Warren. — Alguém quer ir ter connosco ao Tumbleweed amanhã?
O Tumbleweed era o festival anual de música tradicional que tinha lugar no fim de semana do Dia do Trabalhador. Tri-Cidades era suficientemente próxima da costa para a nata
da cena musical de Seattle e Portland normalmente aparecer em força: cantores de blues, jazz, música celta, e todos os restantes géneros. Entretenimento barato e de qualidade.
— Não podia deixar de ir. O Samuel ainda não conseguiu livrar-se da atuação e tenho de lá estar para o gramar.
— Às dez da manhã junto ao River Stage, então — disse Warren.
— Lá estarei.

 

 

                                                   Patricia Briggs         

 

 

 

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