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71
O amanhecer foi uma profusão de majestosas nuvens cúmulos incendiadas pelos raios do sol nascente. O Pluma de Mar viajava veloz rumo a sul, sobre uma ondulação suave
e branda. A embarcação encontrava-se duzentas milhas marítimas a sul da Grande Caimão, mas não seguia uma rota direta de regresso a La Ceiba. nas Honduras.
Dirigia-se, ao invés, para o porto de Cartagena, na Colômbia. Era um ardil deliberado, por ordem de Carl e de Johnny Congo. O Pluma de Mar zarpou de La Ceiba apenas
com onze tripulantes a bordo. Deveria regressar com a mesma totalidade de tripulação, caso contrário poderiam incorrer nas suspeitas dos agentes portuários.
Assim que o Sol se ergueu sobre o horizonte, Miguel ordenou que as cativas fossem trazidas do castelo da proa para a cabina de pilotagem. Sacha estava completamente
confusa e desorientada. Não compreendia o que estava a acontecer-lhe, nem tão-pouco tinha consciência da própria nudez. Manteve-se ali especada, a pestanejar contra
a luz brilhante do sol, e não parava de perguntar a Bryoni pela mãe: - Quem são todos estes homens estranhos. Bree? Porque é que me estão a olhar daquela maneira?
Porque é que a mamã não veio connosco, Bree? - Tinha-se afundado de novo nos abismos da demência.
A tripulação tinha trazido algumas das almofadas de cores vivas dos bancos da cabina principal e espalhou-as, à laia de colchões pelo convés da cabina de pilotagem.
Todos tinham tirado os fatos de treino e os capuzes pretos, ficando de T-shirts e de calções. Agora que a incursão fora concluída com êxito, exibiam um estado de
espírito jovial e festivo. Trocavam piadas e riam, bebendo cerveja mexicana Corona enquanto se aglomeravam à volta das duas raparigas. Miguel desceu a escada da
ponte volante. Apontou para Bryoni. - Tirem a roupa a essa. Nada de segredos a bordo desta embarcação. Ora vejamos o que ela tem pra nos oferecer.
Enquanto Amaranthus filmava, os homens afastaram Bryoni da irmã e arrancaram-lhe das costas a fina camisa de noite. Um deles amarfanhou-a e lançou-a sobre a borda.
Os membros da tripulação apinharam-se à volta dela, de mãos estendidas para lhe apalparem as nádegas e os seios. Bryoni tentou afastá-los, contorcendo o corpo e
batendo-lhes nas mãos. Miguel interveio e empurrou-os para trás. - Nada de lutas! - admoestou-os. - Todos vão ter a sua vez. Quando chegarmos a Cartagena, já todos
vocês estarão tão fartos de lhe comerem a rata que até vão ficar enjoados só de a verem. - Mostrou-lhes uma série de cartas abertas em leque na mão. - Escolham as
vossas cartas, caballeros. O naipe vai do ás ao valete. Quem tirar o ás vai primeiro, e os valetes ficam para o fim. - Todos se acotovelaram para tirar uma carta.
Um deles soltou um grito de triunfo e mostrou o ás de espadas.
- Façam lá melhor, seus filhos da mãe! - desafiou os companheiros.
- Para trás! - ordenou-lhe Miguel por entre risadas. - O primeiro a ir é o Feliciano. Qual delas queres, amigo?
- Quero a gorda. - Feliciano abriu caminho à cotovelada em direção a Sacha. Ela sorriu-lhe quando ele a tomou pela mão. Continuava sem compreender o que estava a
acontecer-lhe. Seguiu-o docilmente enquanto ele a conduzia para o amontoado de almofadas no convés, e depois o homem obrigou-a a deitar-se.
- Não, Sacha! Não deixes que ele te toque. - Bryoni debatia-se com os homens que a sujeitavam. - Ele vai fazer-te mal.
Sacha sorria agora, feliz. As suas alterações de humor eram repentinas e imprevisíveis. - Não fiques preocupada, Bree. Ele agrada-me. É tão simpático.
Feliciano ajoelhou-se à frente dela e baixou os calções. O cérebro danificado de Sacha estabeleceu outra ligação instantânea ao seu irmão Carl numa pose similar
e retraiu-se, apavorada. Foram precisos quatro membros da tripulação para a imobilizarem no chão, até Feliciano conseguir penetrá-la. Sacha continuava a gritar quando
Feliciano rolou de cima dela e grunhiu: - Fantástica.' Mejores de la historia! Fabulosa! A melhor de sempre! Adoro quando elas tentam resistir e se põem a guinchar.
Bryoni foi arrastada e atirada para cima das almofadas de estampado florido quando o homem seguinte na fila se aproximou com avidez. Também ela começou a gritar
e a debater-se, mas os mesmos quatro homens imobilizaram-na e abriram-lhe as pernas. Amaranthus continuou a filmar.
Por volta do meio da tarde, enquanto o Pluma de Mar prosseguia velozmente, rumo a sul, as duas irmãs já tinham caído num estado de estupor. Nenhuma delas tinha forças
nem vontade de continuar a opor resistência. Um dos elementos do bando ergueu-se depois de montar Bryoni pela terceira vez e queixou-se a Miguel: - Está morta e
fria como carne num talho.
- Bueno, eu resolvo já isso. Levem as duas lá pra baixo, pra cabina principal - ordenou-lhes Miguel.
Levaram Bryoni pelas escadas e deitaram-na em cima da mesa da cantina. Miguel prendeu-lhe uma tira de borracha cirúrgica em redor do antebraço e apertou-a até as
veias na curva do cotovelo se destacarem, azuis e nítidas. Deitou uma colher de chá cheia de pó branco de heroína dentro de um pequeno frasco de água destilada e
agitou-o até o pó se dissolver. Depois extraiu-o com uma seringa descartável e enfiou a agulha na veia distendida de Bryoni. Poucos segundos depois, Bryoni recuperou
a consciência assim que os efeitos da droga se fizeram sentir. Começou a gritar e a debater-se novamente. Arrastaram-na para a cabina de pilotagem, onde o homem
que esperava a sua vez se aproximou, baixando os calções enquanto esfregava o pénis com a mão.
Na cabina por baixo, Miguel concentrou a sua atenção em Sacha e preparou uma segunda injeção de heroína para ela. Amaranthus filmou todo esse processo.
Nessa noite, vinte milhas marítimas ao largo do porto colombiano de Cartagena, no breve crepúsculo tropical, o Pluma de Mar encontrou-se com um batelão vindo do
porto. As duas irmãs foram, uma vez mais, amarradas e amordaçadas com fita adesiva. Munido da sua câmara ubíqua, Amaranthus seguiu as raparigas enquanto eram transladadas
para o batelão e escondidas debaixo de uma velha lona manchada na popa. Tinha ordens para as acompanhar e continuar a filmar tudo até ao fim.
O Pluma de Mar inverteu a rota e dirigiu-se a uma velocidade de trinta nós rumo a La Ceiba. O batelão avançou lentamente para o porto de Cartagena.
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Havia uma velha carrinha Ford de três toneladas à espera do batelão num dos cais numa secção remota do porto de Cartagena. Uma nova equipa de homens aguardava-os:
um motorista, o seu companheiro e dois rufias. As raparigas foram rapidamente transferidas para terra e enfiadas na traseira da carrinha, onde foram tapadas com
outra lona. Amaranthus e os rufias treparam para a traseira do veículo. O motorista e o companheiro enfiaram-se na cabina. O motorista ligou o motor e avançou até
aos portões do porto. Um agente alfandegário saiu da sua guarita. Houve uma conversa abafada com o motorista e um maço de notas trocou de mãos. O agente recuou e
fez-lhes sinal para passarem, deixando-os entrar na Colômbia.
Avançaram para sul durante os seis dias seguintes, ao longo de estradas cada vez mais irregulares e de terra batida, através da selva e de montanhas. A certa altura,
saíram do estado da Colômbia e atravessaram outro rio, de ferry, para entrarem na Venezuela. A cada paragem ao longo do trajeto, o motorista trepava para a traseira
da carrinha e dava às raparigas uma injeção intravenosa de heroína. Por esta altura, assim que as irmãs viam a agulha, estendiam voluntariamente os braços direitos,
desejosas da consolação que a droga lhes proporcionava.
Assim que ficavam revivificadas, o companheiro do motorista fazia sinal de paragem aos outros veículos que passavam na estrada e levantava a lona na traseira da
Ford para mostrar as raparigas aos potenciais clientes. Se as raparigas tentavam resistir, eram espancadas e negavam-lhes a dose seguinte de heroína. Quando chegaram
a Minas de Ye, as duas irmãs tinham sido usadas tantas vezes que haviam perdido a conta de todos os homens que tinham trepado para a traseira da velha carrinha para
as violarem.
Minas de Ye situava-se no interior da selva da bacia amazónica. Era uma área ao longo de ambas as margens do rio de Oro, um afluente do Amazonas, que atravessava
as montanhas. Um exército de garimpeiros de ouro ilegais trabalhava nas escavações, arriscando as vidas por um punhado de grânulos do metal amarelo aluvial.
A carrinha parou finalmente junto a um grande edifício decrépito na margem do rio, onde um dos muitos compradores de ouro da cidade de Calabozo tinha montado negócio.
Era um vigarista gordo e hirsuto, chamado Goyo, que se sentava no alpendre, atrás das suas balanças de pesar o ouro, e regateava com os garimpeiros que lhe traziam
as minúsculas lascas e pepitas amareladas, recolhidas das suas caixas de eclusa no sopé das colinas.
A mulher de Goyo era uma criatura de mau génio, tão magra quanto o seu marido era gordo. Chamava-se Dolorita. Vendia marijuana, heroína e tequilha de fabrico caseiro
aos clientes do marido. Também geria um bordel nos quartos traseiros do edifício degradado. Sacha e Bryoni foram tiradas da carrinha e entregues a Dolorita, que
parecia desejosa de as receber. Obrigou de imediato as raparigas a despirem os trapos que as cobriam e examinou-as rapidamente.
- Já foram mais do que usadas. Elas nas fotos não estavam assim - queixou-se quando reparou nas equimoses delas. - Mas agora não há volta a dar. Já paguei mais de
cem dólares por cada uma delas. Seja como for, temos sempre necessidade de raparigas novas. - Virou-se para o seu capataz. Chamava-se Silvestre e era um bruto de
aspeto perverso que sofria de estrabismo agudo. Quando sorria, o que era raro, via-se-lhe um dente de ouro e outro todo preto na parte da frente do maxilar inferior.
- Vais ter que me ajudar a recuperar algum do meu dinheirinho, Silvestre. Estás a ouvir-me? Põe-nas a trabalhar no duro - ordenou-lhe.
Silvestre levou as duas irmãs para a traseira do edifício e enfiou-as numa pequena divisão obscura, onde iriam viver e trabalhar em cima de dois colchões imundos,
colocados lado a lado ao centro do chão de adobe. Não havia água corrente e as raparigas não tinham outra alternativa senão lavarem-se e beberem usando um balde
com água do rio num dos cantos do quarto. Havia um outro balde ao lado do primeiro. Era a latrina, que serviria não só para Sacha e Bryoni, mas também para qualquer
um dos seus clientes que sentissem necessidade de o usar. A água do rio contaminada provocou a ambas ataques intermitentes de disenteria pouco grave.
Dolorita fixava os seus preços tão baixos que havia sempre uma fila de três ou quatro homens à porta, à espera da sua vez. Todos eles eram garimpeiros e os seus
corpos tresandavam ao suor da labuta, ao passo que as suas bocas fediam devidos aos dentes podres e à tequilha baratucha. Os seus corpos e as roupas andrajosas estavam
cobertos de lama vermelha das escavações à procura de ouro.
Bryoni nunca chegou a perceber quantas raparigas trabalhavam nos quartos adjacentes, mas sabia que eram muitas. Dolorita alimentava as suas prostitutas à base de
uma dieta de quantidades mínimas de mandioca cozida e doses bastante elevadas de heroína de fraca qualidade. O ritmo de substituição das raparigas por motivos de
doença, desnutrição e overdose de drogas era elevado.
O telhado do barraco estava coberto de folhas de palmeira, As chuvas tropicais infiltravam-se e era raro as raparigas ficarem completamente secas. Após a primeira
semana, Sacha desenvolveu uma tosse persistente. Recusou-se a comer mais do que algumas colheradas daquela comida repugnante e começou a perder peso a um ritmo alarmante.
As paredes do seu quarto eram feitas de cartão de caixas de embalagem, tão fino que conseguiam ouvir praticamente tudo o que acontecia nos outros quartos em redor.
Duas ou três vezes por semana, Bryoni ouvia Dolorita chamar Silvestre e dizer-lhe: - Esta cadela está arrumada. Leva-a lá para a quinta.
Bryoni não fazia ideia do que ela queria dizer com aquilo. Há muito que se tinha afundado numa névoa de dor, exaustão e torpor induzidos pela heroína. Tal como Sacha,
começava a perder lentamente o contacto com a realidade.
De tantos em tantos dias, Amaranthus aparecia para beber tequilha com Silvestre e registar mais algumas imagens de Bryoni e Sacha no meio daquela sordidez. Bryoni
mal tinha consciência da presença dele. A única coisa que a fazia sofrer terrivelmente era a rápida deterioração da saúde de Sacha. Bryoni apercebera-se, por fim,
de que Sacha estava prestes a morrer.
Implorou a Dolorita e a Silvestre no seu espanhol rudimentar que chamassem um médico, mas ambos se riram na cara dela.
- E quem vai pagar o médico, querida? - perguntou Dolorita num tom trocista. - Se a tua irmã trabalhasse mais, podia ser que eu lhe comprasse um pouco de remédio
para a tosse, só que ela é uma vaca preguiçosa. Porque havia eu de gastar o meu bom dinheirinho com ela?
Três dias depois, Sacha desenvolveu uma febre muito alta e Bryoni voltou a suplicar a Dolorita que fosse buscar ajuda para a irmã.
- A minha irmã está muito doente. Veja só como o corpo dela arde de febre.
- Bueno! Os homens gostam delas assim. Gostam de enfiar os seus pães num forno bem quentinho. - Dolorita desatou às gargalhadas.
Sacha morreu ao início da madrugada seguinte. Bryoni segurava-a no colo enquanto sentia a vida esvair-se da irmã. O corpo dela começou a arrefecer e Bryoni mal teve
forças para chorar por ela.
Ao amanhecer, Dolorita e Silvestre entraram no pequeno quarto e inclinaram-se sobre o corpo nu e esquelético de Sacha.
- Si - disse Dolorita numa voz brusca. - Está arrumada. Leva-a lá para a quinta, Silvestre.
Bryoni continuava sem saber onde ou o que era a quinta, mas também não lhe interessava descobrir. Tinha perdido Sacha e já nada lhe importava mais. Desistira finalmente
de lutar. Só desejava morrer e juntar-se a Sacha, onde quer que ela estivesse.
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Amaranthus, o operador de câmara, veio na tarde seguinte e enfureceu-se ao saber que Sacha tinha morrido. Bryoni ouviu-o gritar a Silvestre no alpendre. - Porque
é que não me mandaste chamar? Agora eles vão ficar furiosos comigo. Isto vai-me custar dinheiro. A minha tarefa é filmar tudo, principalmente se uma dessas cabras
morrer. Agora vão-me reduzir o pagamento. Devias ter-me enviado uma mensagem.
Um dos garimpeiros de ouro estava com Bryoni enquanto esta conversa se desenrolava no exterior da janela. O sujeito arquejava de cio em cima dela, grunhindo como
um animal junto ao seu ouvido. de modo que ela teve alguma dificuldade em perceber aquilo que Amaranthus disse, mas ouviu claramente a resposta de Silvestre. - Não
te preocupes, Amaranthus, meu amigo. A outra gaja não tardará a segui-la. E vou chamar-te quando isso acontecer. E agora - vais pagar-me um copo de tequilha. - Tomou
Amaranthus pelo braço e levou-o para a sala do bar. Sentaram-se a uma das pequenas mesas sujas e beberam a primeira rodada de tequilha. O humor de Amaranthus melhorou
e ofereceu uma segunda rodada a Silvestre
- Gostava de ver essa tal quinta de que tu e a Dolorita estão sempre a falar. Gostava de fazer algumas filmagens lá. Podes levar-me, lá, Silvestre?
- Paga-me mais outro copo primeiro. Silvestre esvaziou o seu copo e levantou-se. - Bueno, amigo. Anda comigo, que vou mostrar-te a nossa famosa quinta.
Conduziu Amaranthus pelo meio da plantação de bananas, em direção à margem do rio, e de seguida viraram para um pomar de árvores de caju. De repente, Amaranthus
farejou o ar e exclamou com repugnância: - Que nojo! O que é este cheiro horrível?
- Vem do nosso açougue e das pocilgas. - É uma quinta de criação de porcos, então? - Sim, as nossas salsichas de carne de porco são as melhores da América do Sul.
Enviamos toda a nossa produção para as grandes cidades.
Saíram do pomar e desembocaram numa ampla clareira no meio da selva. Silvestre conduziu-o ao longo de um trilho entre duas fileiras de pocilgas. Os animais que continham
eram porcos pretos ibéricos.
Silvestre parou ao lado de uma das pocilgas onde havia oito enormes varrascos. Cada um deles era tão corpulento que dava pela coxa de um homem. Dentes curtos e afiados
projetavam-se das suas mandíbulas. Os pelos ásperos nos dorsos curvados formavam uma densa juba. Farejaram o ar, esfomeados, e bateram as maxilas, grunhindo excitados
enquanto olhavam Silvestre com olhos brilhantes e ávidos.
- Eles reconhecem-te. Estão bem contentes por te verem - comentou Amaranthus.
- São os meus animais de estimação - anuiu Silvestre. - Sou eu que lhes dou de comer. - Apontou para o animal maior. - Aquele ali chama-se Hannibal. Quando for lá
pro açougue pra ser feito em salsichas, vai pesar aí uns trezentos quilos.
- Que monstro - concordou Amaranthus. - O que é que lhes dás de comer? Mandioca? - Sim, mandioca. - Silvestre bateu numa narina com a ponta do dedo e a sua expressão
tornou-se maliciosa e conspiratória. Baixou a voz dele. - E carne também. Damos-lhes a comer muita carne. - E onde é que arranjas a carne para lhes dar de comer?
- perguntou Amaranthus. - Pouca gente aqui de Minas de Ye se pode dar ao luxo de comer carne mais do que uma vez ao mês. A carne é muito cara.
- Não para quem tem um bordel em Minas de Ye. - Silvestre continuava a sorrir.
Amaranthus olhou-o fixamente. - Não! - exclamou, ao perceber a insinuação de Silvestre. - Não. Não acredito. - Depois também começou a sorrir. - As raparigas? É
isso?
- Si! - Silvestre fungava e grunhia de felicidade, como um dos seus próprios porcos. - Si! Quando já não servem pra trabalhar lá no bordel, a Dolorita envia-as aqui
pra quinta.
- Foi isso que fizeste com a primeira vaca Yanqui quando ela morreu? - perguntou Amaranthus. - Deste-a de comer aos porcos?
Silvestre ria-se tanto que não foi capaz de responder. Amaranthus virou-se e inclinou-se sobre o muro baixo da pocilga. Os pensamentos sucediam-se velozmente na
sua mente. Enquanto enrolava um charro de marijuana, as mãos tremiam-lhe de excitação. Acendeu o charro e virou-se para Silvestre. - Gostavas de ganhar cem dólares
americanos?
Silvestre parou abruptamente de rir. Pensou no que poderia fazer com cem dólares. Concluiu que podia fazer muitas coisas com essa quantia de dinheiro. Era quase
o dobro daquilo que Dolorita lhe pagava por uma semana de trabalho árduo.
- Que queres que faça? - Quero que me deixes filmar quando trouxeres a outra Yanqui puta aqui à quinta pra fazer uma visitinha ao teu amiguinho Hannibal.
Silvestre grunhiu, aliviado. - Não há problema, amigo. Mando-te chamar assim que ela morrer. Não me parece que ela vá durar muito mais. Não para de chorar pela irmã.
Não tarda nada e desiste da vida. Por cem americanos, podes filmar tudo o que quiseres.
- Não! - contrapôs Amaranthus. - Não estás a perceber. Quero que a tragas aqui para a quinta antes que ela morra. Querc que a tragas a ver o Hannibal enquanto ainda
consegue lutar. Quero-a filmar enquanto ainda consegue gritar.
O próprio Silvestre ficou desconcertado com a enormidade daquela proposta. O seu rosto empalideceu e olhou fixamente para Amaranthus. - Viva, queres tu dizer? -
perguntou, gaguejando. - Queres que deixe os meus porcos comê-la enquanto ainda está viva? - Mal conseguia acreditar no que estava a ouvir.
- Si, amigo. Viva! - Pela Virgem Maria! Sempre pensei que já tinha visto e ouvido de tudo. Deixa-me dar aí uma passa no gorro. - Silvestre precisava de tempo para
recuperar a compostura. Amaranthus passou-lhe o charro para a mão. Silvestre inalou fundo e susteve o fumo nos pulmões enquanto falava.
- Cem dólares não chega! - disse numa voz arquejante. - Quero quinhentos. - Trezentos e cinquenta - contrapôs Amaranthus. - Quatrocentos. - Combinado! Quatrocentos
- concordou Amaranthus com um ar satisfeito. Já tinha ouvido falar de alguém que ganhara cem mil dólares com um filme de seis minutos que vendera no mercado negro.
E tinha visto o filme. Não era nada em comparação com aquilo que a sua gravação seria.
Um milhão!, devaneou. Podia render-me um milhão, talvez mais, quem sabe.
74
Era segunda-feira de manhã e Silvestre sabia que Dolorita e o seu marido Goyo estariam trancados no escritório por trás do bar. Estavam a contar os ganhos da semana
antes de Goyo os levar para depositar no banco na cidade. Silvestre bateu à porta.
- Quem é? - guinchou Dolorita. - Que quer? Estamos ocupados!
- Sou eu, o Silvestre. A segunda Yanqui puta, a mais atrevida. morreu durante a noite.
- Sim, e que queres que faça? Leva-a lá pra quinta e deixa-nos mas é em paz. Já sabes que estamos ocupados.
- Perdóname, sei-ora. Não volto a incomodá-la. Silvestre contornou a casa até às traseiras. Embora ainda fosse muito cedo, já havia dois mineiros à espera à porta
do quarto de Bryoni. A porta estava aberta e os homens fumavam e observavam com interesse o que estava a acontecer no interior. Silvestre escorraçou-os da beira
da porta e apontou para o alpendre.
- Vão lá ter com uma das outras raparigas - disse-lhes - Esta já terminou por hoje.
- Mas eu quero esta - começou por protestar um dos garimpeiros. - Já a conheço bem. Costuma dar luta. Não fica para deitada como um peixe morto... Silvestre virou-se
para ele de olhar irado. O sujeito apressou-se a retirar-se. A fama de Silvestre com a navalha era quase tão bruta quanto o seu próprio rosto.
Silvestre assestou um pontapé nas nádegas do garimpeiro deitado em cima de Bryoni. O tipo levantou-se de um salto, ergueu as calças do fato-macaco e apressou-se
a sair do quarto. Silvestre ajoelhou-se ao lado de Bryoni.
- Queres mais um pouquinho daquela coisa boa? - perguntou-lhe, tirando do bolso a caixa com o kit de heroína. Bryoni soergueu-se com ansiedade e estendeu-lhe o braço
esquerdo. Silvestre examinou-lho por instantes. A curva do cotovelo estava inflamada e ulcerada. Uma das veias maiores tinha colapsado e as úlceras infetadas escorriam
pus. O outro braço não estava em melhor estado.
- Vou-te injetar no pé - decidiu. Prendeu-lhe o tubo de borracha à volta da perna, logo acima do tornozelo, e torceu-o até as veias incharem. Injetou-lhe a droga
no pé. Bryoni fechou os olhos em expectativa. Abriu-os logo de seguida e sorriu a Silvestre. Tinha perdido dois dos dentes da frente algumas semanas antes, numa
discussão com Silvestre, mas isso já não importava mais. A única coisa que importava era a gloriosa onda de felicidade que lhe percorria o corpo.
- Obrigada, Silvestre - murmurou numa voz de devaneio entorpecido.
- Vou levar-te lá pra fora por um bocado - disse-lhe. - Está bem - concordou ela. Tinha desistido de se preocupar com o que poderia acontecer-lhe.
- Vou tapar-te com um cobertor, para que as pessoas não possam ver que estás sem roupa.
- Obrigada - voltou ela a murmurar. Embrulhou-lhe o cobertor manchado de lama e sémen em redor do corpo nu e tapou-lhe a cabeça com uma das dobras para lhe ocultar
o rosto. Carregou-a nos braços e levou-a pela porta das traseiras do edifício em direção às árvores. Quando chegou à quinta de criação de porcos, reparou que Amaranthus
já estava lá. Amaranthus empoleirara-se em cima do muro da pocilga de Hannibal e instalara a câmara no tripé. Os animais rondavam por baixo dele, grunhindo e guinchando.
Tinham visto Silvestre descer a colina carregando um volume que lhes era familiar.
- Estás pronto? - gritou-lhe Silvestre. - Não podemos perder demasiado tempo.
- A câmara já está a rolar! - Amaranthus riu-se, excitado. Por baixo do local onde ele estava especado, Hannibal ergueu-se nas patas traseiras e encostou as patas
dianteiras ao topo do muro da pocilga. Olhou por cima do muro enquanto Silvestre se aproximava.
- Como queres fazer isto? - perguntou Silvestre enquanto pousava Bryoni de pé no chão. Tirou-lhe o cobertor que a cobria. Bryoni olhou, perplexa, para a enorme cabeça
negra de Hannibal que espreitava por cima do muro da pocilga. Recuou contra o peito de Silvestre. Hannibal não parava de farejar com o focinho rosado. achatado e
manchado de sujidade, enquanto batia as mandíbulas.
- Estou pronto quando tu estiveres - assegurou-lhe Amaranthus.
- Acho que precisamos de um pouco de sangue para atiçar o Hannibal - disse Silvestre. Afastou-se de Bryoni. Ela estava tão fascinada com o enorme animal à sua frente
que não se apercebeu daquilo que Silvestre estava a fazer. Muito cedo nessa manhã, ele deixara uma pá de lâmina achatada encostada ao muro da pocilga. Pegou nela
com uma das mãos e disse numa voz suave: - Ei. Bryoni, vira-te pra mim.
Ela voltou-se para o olhar e Silvestre golpeou-a com a pá ao nível dos joelhos. O aço trespassou-a até ao osso e despedaçou-lhe a rótula. Jorrou sangue da ferida.
A perna cedeu sob o peso do corpo e Bryoni uivou de dor e pavor quando tombou.
Silvestre largou a pá e apanhou-a nos braços. Olhou por cima da cabeça dela para Amaranthus, que estava empoleirado no muro
- Continuo? - perguntou. - Sim. Atira-a lá pra dentro! - gritou-lhe Amaranthus. Com um impulso dos ombros, Silvestre lançou Bryoni por cima do muro. Caiu do outro
lado, no meio dos porcos.
Bryoni estava aturdida devido à queda, mas recuperou rapidamente. Ergueu-se, apoiada nos cotovelos, e começou a arrastar o corpo através da imundície negra da pocilga,
de regresso à segurança ilusória do muro.
Hannibal encabeçou a investida da massa de enormes corpos negros que se lançaram sobre ela. Abocanhou-lhe a perna ferida com os colmilhos. Começou a roer-lhe o membro
mutilado, tentando arrancar-lhe um grande pedaço de carne enquanto a arrastava de costas através da lama. Bryoni virou o rosto para a câmara.
- Alguém me ajude! - gritou. - Por favor, alguém me ajude! Depois, um dos outros animais mordeu-lhe o ombro e puxou com força, até que o corpo de Bryoni começou
a ser despedaçado entre ambos. Um terceiro varrasco lançou-se em frente, abocanhou-lhe a barriga e puxou, arrancando-lhe uma massa de entranhas emaranhadas.
Bryoni abriu a boca pela última vez. - Papá! - gritou num som lancinante que foi baixando lentamente enquanto os porcos lhe rasgavam sangrentos pedaços do corpo
e os devoravam.
75
Carl Bannock e Johnny Congo estavam sentados lado a lado na cela de Johnny, a ver o vídeo no televisor. Era a terceira vez que o viam, mas ambos se sentiam tão empolgados
e animados com as imagens como da primeira vez.
Amaranthus, com a sua experiência profissional, tinha montado um vídeo de quarenta minutos a partir das centenas de horas de filmagens. O resultado final era perverso
e atroz aos olhos de qualquer um, mas não para as mentes mais sádicas e retorcidas de todas. Carl e Johnny rejubilaram. Riam como loucos nas passagens mais horrendas,
como se fossem momentos de puro génio cómico.
- Puxa atrás! - pediu Johnny. - É tão divertido. Adoro quando eles afogam a velha bruxa da mãe. Adoro quando lhe sai água do nariz quando lhe puxam a cabeça pra
fora da água.
- Sim, é mesmo divertido. Mas a parte de que gosto mais é quando a Bryoni se ajoelha à frente do maioral a suplicar pela vida da mãe, e depois ele espeta-lhe um
pontapé na boca e ela fica ali sentada a cuspir sangue e dentes partidos. É mesmo uma cena muito fixe, pá.
No entanto, ambos estavam de acordo em que a cena final era de longe, a melhor parte do espetáculo. Inclinaram-se para a frente com expectativa, à espera do momento
em que Bryoni, estropiada e esventrada, ergueu a cabeça da lama e gritou pelo pai. Os dois imitaram-na em coro, emulando-lhe a voz chorosa e cada vez mais debilitada:
- Papá!
Ambos desataram a rir em gargalhadas deleitadas quando Bryoni ergueu os olhos para o céu em agonia e os porcos se amontoaram sobre ela.
- Essa cena é brutal - disse Carl, quase sufocando de riso. - Este tal Amaranthus que nos arranjaste devia receber um Óscar por isto. - Sim, pá, é um génio. Sempre
que vejo aquela parte do "Papá" fico cá com um tesão de todo o tamanho - admitiu Johnny.
- Grande coisa. Tudo te dá tusa, Negrão, até um autocarro a passar - provocou-o Carl.
- Um autocarro a passar dá-me tusa, sim - anuiu Johnny. - Desde que venha cheio de meninas colegiais. Mas não queres dar uma olhada ao que tenho aqui em baixo?
- Está bem - disse Carl, com o interesse despertado. - Mostra aí. - Quando Johnny se recostou na cadeira e expôs o membro completamente ereto, Carl riu alto. - Até
conseguias afundar um couraçado russo com esse teu enorme torpedo preto.
- E que pensas fazer acerca disso, lindinho? - Sabes muito bem o que vou fazer, Negrão - disse Carl, ajoelhando-se à frente dele.
Mais tarde, quando ambos recuperaram o fôlego, Johnny perguntou: - Diz-me cá uma coisa. Quando é que vais enviar o vídeo ao teu papá? - Usou a mesma inflexão de
voz nesta última palavra como a jovem moribunda fizera no vídeo, e ambos desataram a rir outra vez.
Depois, Carl disse numa voz séria: - Assim que arranjarmos um modo de o fazer sem que o Henry Bannock o possa associar a nós.
- O teu papá não ficou rico por ser estúpido - frisou Johnny. - Assim que ele receber aquilo, vai saber de onde veio a gravação.
- Sim, pá, é isso mesmo que quero. É o castigo dele por aquilo que me fez. Quero que ele perceba isso, mas nunca conseguirá provar que fui eu.
76
Ronnie Bunter e a sua mulher Jennie eram fãs de ópera. Raramente perdiam uma estreia na Grand Opera House de 1894, em Houston. La Bohème era uma das suas peças favoritas
e a produção itinerante do La Scala estava em turné no Texas. Ambos compareceram na noite da estreia. Depois do espetáculo, voltaram para o parque de estacionamento
subterrâneo, conversando de forma animada sobre a peça. Ronnie abriu a porta do lado do passageiro do Porsche 911 e ajudou a sua mulher a sentar-se. Contornou o
automóvel e, quando se preparava para se sentar ao volante, exclamou de repente: - Mas que deixaste tu ficar aqui, querida?
- Não deixei ficar nada, Ronald. Ronnie tateou atrás do seu assento e tirou uma pequena caixa de cartão oblonga. - Então como é que isto veio parar aqui?
- Cuidado! Pode ser uma bomba, Ronald - advertiu-o Jennie, alarmada.
- Se fosse, já estaríamos os dois mortos. - Examinou o pacote e leu a etiqueta escrita à mão na parte da frente: - À atenção Sr. Ronald Bunter. Para ser visto em
privado. Parece uma cassete de vídeo.
- Espero que não seja nada de horrível - disse Jennie num tom afetado.
- Duvido. - Então porque é que aí diz "em privado"? - Levo isto amanhã para o escritório e vejo lá no projetor, sala de reuniões.
- É melhor não deixares a tua nova assistente ver isso. Parece ser uma rapariga simpática.
- Não te preocupes com a Jo Stanley. Ainda agora terminou os três anos de Direito na faculdade. Podes apostar quanto quiseres que podia ensinar umas quantas coisas
a dois velhos jarretas como nós.
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Assim que acabou de ver o vídeo na manhã seguinte, Ronnie telefonou para os escritórios da Bannock Oil Corporation em Anchorage, no Alasca. Quando a chamada foi
passada a Henry Bannock, perguntou-lhe: - Henry, quando é que voltas para Houston? - Volto no jato, na sexta-feira. - Henry detetou a seriedade na voz do seu velho
amigo. - O que é que se passa, Ronnie' Aconteceu alguma coisa? A polícia já te deu alguma notícia acerca das minhas filhas?
- Ouve, Henry, deves regressar já. Não, só te posso dizer
quando chegares cá. Tens de partir já, Henry. Vem ao meu escritório assim que puderes. Não tragas a Hazel contigo, estás a perceber? Vem sozinho.
- Espera um segundo, Ronnie. - Ronald ouviu-o falar com alguém que estava com ele e depois voltou a ouvi-lo ao telefone. - Está bem. Partimos dentro de uma hora.
Mas o voo vai demorar mais de sete horas. Vamos chegar muito tarde a Houston.
- Não importa a que horas chegues, mas vem diretamente ao meu escritório, Henry. Estarei à tua espera. Estará alguém lá em baixo para te deixar entrar no prédio.
- Ligo-te assim que aterrarmos - assegurou-lhe Henry. Bonzo Barnes, na sua farda de motorista, estava à espera no portão de desembarque VIP do Aeroporto de Houston
quando Henry Bannock e Hazel surgiram.
- Sejam bem-vindos, senhor e senhora Bannock. Tivemos saudades. - Como tens passado, Bonzo? Henry deu-lhe um aperto de mão. O Sr. Bannock era um verdadeiro cavalheiro.
Tratava todos os seus empregados com respeito; mas o seu aperto de mão já não era tão firme como costumava ser. Bonzo virou-se para Hazel e, durante o breve aperto
de mão, ele fez-lhe uma pergunta silenciosa, inclinando ligeiramente a grande cabeça negra de lado e franzindo uma sobrancelha. Receava mencionar as raparigas desaparecidas
na presença do pai.
Sacha e Bryoni já estavam desaparecidas há quase um ano, deixando apenas tristeza e desespero atrás de si. Talvez a pior parte dessa perda fosse a incerteza: mês
após mês de apreensão agonizante.
Henry Bannock era quem sofria mais do que qualquer outra pessoa. Os seus traços fortes e enrugados pareciam estar a desmoronar-se. Os olhos já não procuravam novos
horizontes para conquistar; tinham-se tornado baços e introspetivos. Tinha os ombros caídos e as costas curvadas. Caminhava como um velho, arrastando os pés e agarrando-se
ao braço de Hazel para se confortar e apoiar. Mas conseguiu recuperar um pouco da sua força e esboçou um sorriso cansado a Bonzo.
- A subtileza nunca foi uma das tuas muitas qualidades notáveis, Bonzo Barnes. A resposta é não. Ainda não sabemos nada das meninas.
Bonzo retraiu-se. Há quase trinta anos que trabalhava para o Sr. Bannock. Não deveria ter-se esquecido de que ele tinha olhos nas costas. - Desculpe-me, senhor Bannock.
Henry deu-lhe uma palmada no ombro com um pouco do seu mitigo vigor. - Todos temos de ser fortes, homem. E agora, leva-me ao escritório do senhor Bunter. E depois
podes levar a senhora Bannock a casa. De seguida, voltas aqui para a cidade e esperas por mim. Não sei quanto tempo vou demorar.
Hazel sentou-se ao lado de Henry no banco traseiro do Cadillac e deu-lhe o braço. - Se tiveres mudado de ideias, Henry, posso ir contigo ouvir o que Ronnie tem para
nos dizer.
- A Cayla já não te vê há quatro dias. Não, tu vais para casa. - Na minha vida, és o primeiro no meu coração, Henry Bannock. A Cayla está em segundo lugar.
Henry virou-se no banco e olhou-a nos olhos. - És uma boa mulher. A melhor que já conheci. Vou ter saudades tuas.
- Porque é que dizes isso? - Olhou-o, alarmada. - Não sei porquê. Saiu-me. - Não estás com ideias de fazer nada estúpido, pois não? - Não, prometo. - Achas que o
Ronnie tem más notícias, é isso? - Sim, eu sei que o Ronnie Bunter tem más notícias para me dar.
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Hazel acompanhou-o até à entrada do edifício alto onde se situava a firma de advogados Bunter & Theobald, Inc.
Do outro lado da porta dupla de vidro, no átrio espaçoso, Jo Stanley, a nova assistente jurídica de Ronnie, estava sentada numa das poltronas de couro branco a ler
uma revista feminina. Ergueu a cabeça e viu-os atravessar o passeio. Largou a revista e foi ao encontro deles. Quando ela se inclinou para destrancar a porta, Hazel
virou-se para Henry e abraçou-o.
- Toma nota do que te vou dizer, marido! - disse baixinho. - Nunca vou sentir falta de ti porque caminharei sempre ao teu lado. - Ergueu-se nas pontas dos pés para
o beijar na boca e depois apressou-se a voltar para o Cadillac, cuja porta traseira Bonzo mantivera aberta para ela.
Henry viu-os afastarem-se e depois entrou no átrio, através da porta que Jo Stanley lhe abrira.
- Desculpe mantê-la a trabalhar até tão tarde, Jo. - Não tem problema nenhum, senhor Bannock. Não tenho grandes motivos para voltar para casa a correr.
- O Ronnie ainda está cá? - Está à sua espera no décimo piso, na principal sala de reuniões. Eu acompanho-o, senhor Bannock.
- Conheço o caminho melhor do que você, Jo Stanley. Já venho cá antes de você ter nascido. Seja uma rapariga simpática e vá para casa. - Sorriu-lhe, mas ela reparou
que foi um gesto forçado e que ele tinha os olhos cansados.
Quando as portas do elevador se abriram no décimo piso, Henry encontrou Ronnie à sua espera no patamar.
- Desculpa ter-te feito passar por todo este trabalho... - começou por dizer, mas Henry interrompeu-o.
- Deixa-te de tretas, Ronnie. Diz-me sem rodeios. Encontraram a Bryoni?
- Não é assim tão simples, Henry. - Agarrou o braço de Henry. Henry afastou-lhe a mão. - Vá lá, Ronnie. Ainda consigo caminhar sem ajuda. - Endireitou os ombros
e dirigiu-se em toda a sua enorme corpulência para a sala de reuniões. Sentou-se no seu lugar habitual à comprida mesa e olhou para Ronnie com um ar carrancudo.
- Sou todo ouvidos - disse.
Ronnie sentou-se do outro lado da mesa, à frente dele. - Recebi uma videocassete - afirmou.
- De quem? - Não sei. Alguém a deixou no banco do condutor do meu Porsche enquanto eu e a Jennie estávamos na ópera no sábado à noite.
- Já a viste? - Ronnie anuiu com a cabeça. - O que contém' - Nem consigo descrever. É a coisa mais repugnante e medonha que possas imaginar. Só mesmo uma mente muito
doentia e cruel poderia ter concebido isto. Foi por isso que te pedi para não trazeres a Hazel contigo.
- Tem que ver com as minhas meninas? - Sim. Mas agora que já te adverti, ainda queres ver a cassete' - Se diz respeito às minhas meninas, resta-me outra opção; Põe
lá essa coisa a dar, Ronnie. Deixa-te de rodeios e avança com isso.
Ronnie estendeu a mão para o painel de controlo na mesa à sua frente e as luzes diminuíram de intensidade enquanto o ecrã dourado se desenrolava do teto até cobrir
a parede do fundo. Henry girou na cadeira para ficar de frente.
- Arma-te de coragem, Henry, meu velho amigo. - O tom de voz de Ronnie era compassivo enquanto carregava no botão de reprodução no painel da consola.
Os acordes melodiosos de violinos a tocarem uma valsa de Strauss encheram a sala enquanto a tela se iluminava com a imagem de um homem alto e atlético que brincava
com uma rapariguinha bonita no extenso relvado de uma magnífica mansão. Em pano de fundo, uma jovem encantadora observava-os carinhosamente.
Henry endireitou-se na cadeira. - Mas que diabos! Isso é um excerto de um dos meus próprios vídeos caseiros. Aquele sou eu e a Marlene com a Sacha quando era pequenina.
A cena diluiu-se e foi substituída pela visão esplêndida de um céu estival e enormes nuvens cúmulos-nimbos. Sobre a imagem apareceu uma linha de palavras escritas
a dourado:
Os extremos da alegria estão separados dos abismos do desespero pelo simples tremular de uma folha...
A imagem do céu foi rapidamente substituída pela cena noturna de uma piscina rodeada pelos vultos escuros de palmeiras. Três homens mascarados sujeitavam Marlene
dentro de água. A iluminação subaquática mostrava tudo nos detalhes mais crus e impiedosos. Marlene estava nua e Henry observou enquanto a afogavam com um sadismo
requintado.
Depois, a câmara focou-se em Bryoni, nua na borda da piscina, a suplicar e a chorar pela vida da mãe. Estava caída aos pés de outro dos assaltantes vestidos de preto.
Sacha estava enrolada em posição fetal na borda, ao lado da irmã. Batia com a cabeça com tal violência nas lajes de mármore que sangrava da testa.
- Pelo sagrado nome de Jesus Cristo, como foi possível isto acontecer? - sussurrou Henry numa voz rouca de desespero.
Depois manteve-se silente e imóvel como uma estátua de bronze à medida que os horrores se multiplicavam. Foi incapaz de arrancar os olhos do ecrã quando aos espancamentos
se sucederam as violações, quando as suas filhas foram injetadas à força com narcóticos e imobilizadas por ignóbeis criaturas sub-humanas, e de seguida violentadas
por homens ainda mais selvagens.
Os sons gravados eram quase tão terríveis como as imagens: o baque do chicote a abater-se sobre a carne, o clamor lascivo dos torturadores e os gemidos e choro dilacerantes
das raparigas atormentadas.
No final, quando a sua amada Bryoni estava caída na lama e na imundície da pocilga a ser violentamente despedaçada pelos porcos babados de excitação, Henry levantou-se
com um enorme esforço e manteve-se vacilante à cabeceira da comprida mesa.
Na tela, Bryoni ergueu a cabeça e parecia olhar diretamente para ele. "Papá!", gritou. Henry ergueu a mão direita num gesto de súplica, como se lhe implorasse perdão
por não a ter protegido naquele momento de maior aflição.
- Bryoni! - Henry respondeu-lhe com o seu próprio grito. um grito que ecoava com a mais absoluta angústia espiritual.
Depois começou a cair como uma sequóia gigante, com lentidão de início, mas rapidamente ganhando ímpeto, até tombar de rosto contra a longa mesa e ficar ali prostrado
numa imobilidade mortal.
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Já passava da meia-noite, mas Hazel tinha pedido a Cookie para guardar o jantar de Henry no rescaldeiro. Estava uma noite quente e o céu apresentava-se cheio de
estrelas. Esperou no terraço pela chegada do marido.
Tinha escolhido um vestido de noite azul, sem mangas, num tom que combinava com os seus olhos. Deixava-lhe as costas desnudas e destacava-lhe os seios e a elegante
musculatura dos braços. Sabia que isso ia agradar a Henry. Tinha sido muito rigorosa com a dieta desde o nascimento de Cayla e era tão esguia e bela como quando
o conhecera.
Não conseguia estar quieta. Deambulou impacientemente de um lado para o outro no terraço, com a graça de uma pantera enquanto bebericava o único copo de Pouilly-Fuissé
que se permitia todas as noites, cantarolando baixinho ao ritmo da música emitida pelos altifalantes ocultos. Pensou em ligar a Henry para se certificar de que ele
estava bem, mas depois abanou a cabeça. Henry não gostava de ser interrompido durante as reuniões de negócios.
Parou ao lado da mesa de jantar e realinhou os talheres de prata no lugar de Henry. O vinho estava no decantador de cristal. Tinha aberto e servido um dos borgonhas
preferidos de Henry, para o deixar respirar e libertar todos os seus aromas. Resolveu acender as velas assim que ouviu o Cadillac subir a colina, e verificou se
tinha à mão o isqueiro clássico Ronson para esse efeito.
Sei que aconteceu alguma coisa às raparigas. Seja o que for que o Ronnie disse ao Henry esta noite, vou ser forte, prometeu a si mesma. Não me vou abaixo nem me
vou pôr a chorar. Vou ser forte por ele.
Retomou o seu deambular nervoso. De repente, o telemóvel que tinha pousado ao lado do seu lugar à mesa começou a tocar. Apressou-se a pegar nele com uma enorme sensação
de alívio.
- Henry! - disse. - Querido! Onde estás? - A sua voz cantava de alegria.
- Não, Hazel, sou eu, o Ronnie. - Oh, meu deus! - A música abandonou-lhe a voz. - O Henry está bem? Onde é que ele está? - Há apenas uma maneira de te dizer isto,
Hazel. Se fosses qualquer outra mulher, tentaria suavizar o impacto disto, mas tu és diferente. És tão forte como qualquer homem que conheço.
Hazel conseguia ouvir o próprio coração latejar-lhe nos ouvidos. Não falou durante cinco batidas lentas e depois disse, num fio de voz. - Tive uma premonição. Ele
morreu, não morreu, Ronnie'
- Lamento terrivelmente, minha querida. - Como foi que aconteceu? - Um AVC. Um ataque fulminante. Foi quase instantâneo. Não sofreu. - Onde é que ele está? - Sentiu
frio, um frio ártico glacial que a penetrou até aos recantos mais profundos da alma.
- No hospital - disse ele. - No Hospital Episcopal de St. Luise. - Diz ao Bonzo para me vir buscar, por favor, Ronnie. - Ele já vai a caminho - assegurou-lhe Ronnie.
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Especada ao lado da cama hospitalar alta, Hazel olhou para a forma humana debaixo do lençol branco. A gelidez continuava a apoderar-se do seu coração e dos ossos.
Ronnie estava ao lado dela. Deu-lhe a mão. - Obrigada, Ronnie. Não é minha intenção ofender-te, mas tenho de fazer isto sozinha. - Retirou delicadamente a mão que
ele prendia na sua.
- Eu compreendo, Hazel. - Ronnie recuou um passo e olhou por cima da cama, para a enfermeira que aguardava. - Obrigado, enfermeira. - A mulher agarrou na dobra superior
do lençol e afastou-a suavemente.
Na morte, Henry Bannock tinha recuperado o manto imperial de que o sofrimento o despojara.
- Era um homem maravilhoso - disse Ronnie baixinho. - O melhor que já conheci. - E continuará a ser - disse Hazel. Inclinou-se para a frente e beijou Henry. Os lábios
dele estavam frios como o coração dela.
- Au revoir, Henry - sussurrou. - Que Deus te acompanhe, meu amor. Não deverias ter morrido tão cedo. Agora, a Cayla e eu ficámos sozinhas. Deixaste-nos apenas pó
e trevas.
- Não, Hazel - contradisse-a Ronnie numa voz suave. - O Henry deixou-vos um império e o brilhante farol do seu exemplo para te iluminar o caminho a ti e à Cayla.
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- Um AVC! - exclamou Carl Peter Bannock com alegria. - Um ataque fulminante! A única coisa má disto tudo é que eles dizem que não sofreu. Os médicos dele estão a
dizer na TV que foi tão rápido que quase não chegou a sentir dor. Ficava mais contente se eles dissessem que tinha ido desta para melhor aos gritos e a chorar de
desespero.
Johnny sorriu. - Nunca cheguei a conhecê-lo, mas odeio esse velho estupor tanto quanto tu. Deviam era dá-lo de comer aos porcos como mandaste fazer às fedelhas dele.
- Infelizmente, o meu pai mandou construir para ele um enorme mausoléu de mármore no topo de um monte, onde jazerá para sempre, como Napoleão, todo embalsamado.
- Então melhor ainda, lindinho. Assim que te soltarem, devias ir lá mijar-lhe em cima.
Carl gritou de alegria. - Excelente ideia! E já que vou la mijar-lhe em cima, posso fazer a coisa toda e deixar-lhe um grande cagalhão na cabeça.
- Já sabias que isto ia acontecer quando lhe enviaste o vídeo' Já sabias que aquilo ia matar o velho cabrão? - perguntou Johny Congo. - Claro que sim! - Carl regozijou-se.
- Então não sabias, que tenho poderes sobrenaturais? O meu verdadeiro pai guardou as cinzas de todos os judeus imundos que mandou matar nas câmaras de gás em Bergen-Belsen,
e no dia em que eu nasci esfregou-me algumas dessas cinzas na cabeça.
Johnny parou de sorrir e pareceu perturbado. - Não digas essas coisas, pá. Dá-me logo calafrios.
- Estou a dizer-te, Johnny. Coisas de vudu, pá! Mau-olhado! Tenho o dom do mau-olhado. - Carl arregalou os olhos e fixou-os em Johnny Congo. - Posso transformar-te
num sapo. Queres que te torne num sapo, Johnny? Basta olhares-me nos olhos. - O rosto de Carl contorceu-se numa careta horrível e revirou os olhos.
- Para lá com isso, pá. Estou a avisar-te. Para mas é de brincar com esse tipo de cenas. - Johnny levantou-se do beliche de um salto e aproximou-se da janela gradeada.
Virou deliberadamente as costas a Carl e olhou para o pequeno remendo do céu que passava por ser uma vista panorâmica ali em Holloway. - Estou a avisar-te! Não me
queiras ver louco de fúria.
- A tua mãe pôs-te louco, Johnny. Pôs-te louco quando te deixou cair de cabeça quando ainda eras um bebé.
Johnny afastou-se da janela e lançou-lhe um olhar furioso. - Deixa a minha mãe fora desta treta, rapaz branco lindinho.
Carl percebeu que desta vez não se tratava de uma expressão afetuosa. Também sabia até onde podia abusar da sua boa sorte com ele, e sabia que tinha chegado ao limite
absoluto.
- Vá lá, Johnny. - Carl ergueu ambas as mãos em sinal de rendição. - Sou teu amigo, ou já esqueceste? Tu mesmo me disseste que te tinha feito os melhores broches
da tua vida. Não tenho nenhuns poderes de vudu. Adoro-te, pá. Só estava a brincar.
- Bem, então para de brincar com o nome da minha mãe. - Johnny voltou ao tópico principal da discussão. - Ela era uma santa, pá. Estou a dizer-te. - Ficara apenas
ligeiramente aplacado.
- E eu acredito em ti, Johnny. Até me mostraste a foto dela, não te lembras? A mim pareceu-me uma mulher muito santa. - Apressou-se a mudar de assunto. - Pensa só
nisto. Tu e eu metemos na cabeça apanhar aquelas três cadelas da minha família e conseguimos muito mais que isso. Também eliminámos o homem principal. Também arrumei
com o meu próprio paizinho. Diz lá, sou fino ou não sou?
- És fino, és. Fino como uma porta. - Johnny voltou a afastar-se da janela. Sorria novamente.
- Arrumámos com mais de metade deles de um só golpe. Agora já só restam duas: a nova mulher do meu velho e a fedelha dela. Só mais duas para despachar de vez e o
dinheiro será todo meu.
- Quanta massa é, Carl lindinho? - Johnny já se tinha esquecido e perdoara a afronta à memória da sua santa mãe. - Diz-me lá quanta massa vais ter, pá.
- Um dia, já não tarda muito, vou sacar cinquenta mil milhões em notas verdinhas daquele velho fundo fiduciário, meu caro Johnny.
Johnny revirou os olhos num gesto teatral. - Pá, isso é tanto dinheiro que até fico de cabeça zonza só de tentar imaginar quantas notas são. Diz aí quanto é, mas
de forma a que eu consiga perceber. Traduz-me isso em número de carros.
Carl ponderou por um momento. - Bem, deixa-me colocar a coisa desta forma, Johnny. Vou ter dinheiro suficiente para comprar todos os carros dos Estados Unidos da
América.
Johnny revirou os olhos, estupefacto. - Fabuloso, Carl lindinho. É simplesmente fabuloso! - Baloiçou a cabeça e soltou risadinhas como uma adolescente. Carl ficava
sempre surpreendido quando ele agia assim.
- E mais te digo. Se um dos meus bons amigos estiver comigo quando isso acontecer, vai receber uma ou dez carradas daquelas notas verdinhas.
- Vou estar lá a teu lado, Carl lindinho, até ao fim. - Depois o seu rosto franziu-se numa careta que fazia lembrar um buldogue. - Quer dizer, a não ser que os tipos
me espetem primeira a agulha.
O bom humor entre os dois alterou-se rapidamente. No final dessa semana, o advogado de Johnny Congo tinha-o informado que o seu recurso contra a pena de morte chegara
por fim ao Supremo Tribunal e que, com toda a probabilidade, a decisão seria pronunciada nos próximos dezoito meses. Até então, o recurso parecia ter ficado totalmente
atolado no sistema jurídico. À medida que os anos foram passando, Johnny Congo acabara por adotar uma atitude de complacência. Chegara mesmo a acreditar que a sua
confortável existência dentro dos muros do Centro Correcional de Holloway perduraria para o resto da sua vida.
Mas agora, abruptamente, o vulto espectral do carrasco com a sua temível agulha reaparecia no horizonte de Johnny e aproximava-se cada vez mais, de forma lenta mas
inexorável.
Há muito tempo que o Supremo Tribunal do Texas o considerara culpado de múltiplos homicídios qualificados. Até à data, o número exato das suas penas capitais ascendia
a doze. O procurador público tinha decidido que era o suficiente para o propósito. No entanto, na eventualidade de essas condenações não bastarem e Johnny conseguisse
escapar, de alguma forma, ao seu destino, dispunha ainda do registo de causas pendentes relativas a outros vinte e oito casos de homicídio que poderia instaurar
contra Johnny a qualquer momento no futuro.
A lei do Texas reconhecia nove crimes capitais. Tal como se vangloriara a Carl Bannock em mais de uma ocasião, Johnny fora acusado de cinco desses nove crimes. Tinham-no
condenado por homicídio simples; homicídio com a agravante de agressão sexual, pois às vezes Johnny gostava de tornar o trabalho mais interessante; e homicídio em
troca de remuneração, que tinha sido a sua principal profissão depois de ter completado as duas comissões no Corpo de Fuzileiros Navais dos Estados Unidos. Também
era acusado de várias mortes, inevitáveis no seu ramo de trabalho, bem como de homicídio no decurso de uma fuga da prisão. No seu caso, a evasão não fora bem-sucedida.
Como Johnny, muito sensatamente, se queixou a Carl: - Como é que eles podem esperar que um tipo escape daqui sem ser obrigado a despachar alguém? É um absurdo total,
pá.
Havia um preço a pagar por todas aquelas suas ações, e as ações de Johnny eram todas elas punidas com a pena capital. Era um homem muito preocupado.
- Acalma-te, Negrão. Não te preocupes - recomendou-lhe Carl. - Sempre que alguém me diz "Não te preocupes", é quando começo mesmo a preocupar-me de morte, pá.
- Temos o Marco e metade dos guardas a comer-nos das mãos. Quando chegar a hora de dares o salto, vão estender-te o tapete vermelho e vais sair a passo de valsa
pelos portões, sem sequer precisares de sujar os sapatos.
- E quando é que isso vai acontecer, pá? - insistiu Johnny. - Não te vão enfiar a agulha por mais uns dois anos, como diz o teu advogado. Por isso, ao menos temos
esse tempo todo - explicou Carl. - Daqui a dez meses acaba o meu tempo de cadeia e vou-me daqui. Já temos tudo organizado aqui. Assim que me soltarem, trato de organizar
tudo o resto lá fora depois. Será um plano infalível.
- E quando estivermos lá fora vamos continuar a fazer negócios juntos, como temos feito aqui dentro. - Podes apostar esse teu lindo cuzinho. - Não sei, Carl. - Johnny
parecia duvidar. - Tenho pensado nisso. Quando eu sair, vou ser um homem a abater. Com doze condenações por homicídio no cadastro, os tipos vão oferecer um milhão
de dólares pela minha cabeça e espalhar cartazes de "Procurado" em todas as paredes do Texas e dos Estados Unidos inteiros. Raios, com uma cara como a minha, as
pessoas vão reconhecer-me muito facilmente. Vou ter atrás de mim todos os caçadores de recompensas do hemisfério norte. - Deprimido, Johnny debitou a lista dos seus
infortúnios. - Onde é que me vou poder esconder? - Ambos ficaram em silêncio perante esta pergunta.
- De onde és, Johnny? - perguntou Carl de repente. Johnny olhou-o com perplexidade. - Que pergunta mais estúpida. Então não te tinha já dito que sou de Nacogdoches,
da cidade mais violenta do estado inteiro do Texas?
- Referia-me ao sítio onde nasceste. Não falas como se tivesses nascido no Texas.
- Nasci em África, pá. - Em que região de África? - Como é que me chamo, lindinho? - Johnny animou-se e sorriu.
- Johnny. - Johnny quê?
- Johnny Congo. - Nem mais, pá! Johnny Congo. Sou eu. O meu avô era dono de metade do país todo. Era o chefe sumo do raio do lugar todo.
- Queres tu dizer o chefe supremo? - Como lhe queiras chamar. Ele era o rei. Tinha quinhentas mulheres, pá. Mais rei do que ele não havia!
- Falas a língua? - perguntou Carl. - A minha mãe ensinou-me bem. Há duas línguas. O inhutu é a língua do lugar donde venho. E o suaíli é falado em toda a África
Oriental. Eu sei falar as duas.
- Porque é que o teu pai decidiu sair de África, Johnny? - Quando o meu avô morreu, o meu pai era o filho número vinte e seis. Pôs-se logo dali pra fora antes que
o seu mano mais velho, que era o filho número um, o enfiasse num caldeirão para o cozinhar pro jantar. Do lugar donde venho, não se pode perder tempo. Somos todos
uns cabrões malvados, podes crer, pá. O Congo é um país enorme. Foi dividido em três ou quatro países diferentes. - E de qual deles vens tu, Johnny? Onde é que nasceste,
pá? - Em Kazundu. - Como se escreve isso? - Olha, eu sei lá! Nasci lá e basta, lindinho. Não fui eu que descobri o maldito lugar.
De repente, ouviu-se o chocalhar de chaves contra as barras de aço da cela e Carl levantou-se.
- Está na hora de eu ir - disse numa voz resignada. Graças à influência que ambos exerciam dentro da instituição, podiam encontrar-se todas as noites, desde a meia-noite
até às três da madrugada. Cada uma dessas visitas custava-lhes alguns milhares de dólares em subornos. Mas nenhum deles guardava rancor por causa desse dinheiro.
Durante o longo período da sua parceria, Johnny tinha-se tornado multimilionário, transportado a tais alturas graças à astúcia financeira de Carl.
À exceção de Carl, Johnny tinha sido privado de qualquer outra forma de convívio e de contacto humano íntimo e solidário. As celas no corredor da morte estavam dispostas
para que os presos não pudessem ver-se uns aos outros. O único contacto desses reclusos era verbal, gritando uns aos outros ao longo da galeria, que se enchia de
ecos.
Já antes de ter sido preso, Johnny Congo tinha sido considerado psicopata e louco. Sem o benefício da companhia de Carl ao longo desses nove anos, muito provavelmente
já se teria suicidado ou tornado um louco furioso. Por seu turno, a rotina de Carl na prisão, como recluso com regalias devido a bom comportamento, era relativamente
fácil. Eram-lhe permitidas quatro horas por dia no pátio de exercícios, onde o seu contacto com outros sub-humanos poucas limitações sofria.
Estava autorizado a receber visitas duas vezes por semana, embora ninguém viesse visitá-lo do exterior, a não ser o seu gerente de conta. Outrora, Carl pudera contar
com amigos às centenas. mas agora não tinha nenhum, à exceção de Johnny Congo. A má reputação que os seus crimes lhe tinham granjeado colocara-lhe a marca da besta
na testa para que todos pudessem ver. Tinha sido rejeitado e abandonado por todos fora da prisão de Holloway.
No entanto, Carl tinha uma profunda necessidade de contacto humano, de aduladores à sua volta que lhe dissessem que era realmente uma pessoa maravilhosa. Sabia que,
quando saísse da prisão, teria de comprar amigos, ou procurá-los entre os proscritos da sociedade, entre os quais ele próprio se contava.
De repente, a ideia de África pareceu-lhe muito atraente. O seu pai havia-o levado a um safari de caça nessas terras quando tinha dezasseis anos. Matara mais de
cinquenta animais selvagens e tivera sexo com várias raparigas massai e samburu. E adorara tudo, imensamente.
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Os dois guardas que foram buscar Carl à cela de Johnny Congo levaram-no através dos portões de segurança e dos scanners corporais, de volta para a sua própria cela
no piso térreo. Carl passou um maço de notas de cem dólares ao guarda de patente mais alta, o qual lhe deu uma piscadela de olho e o trancou para o resto da noite.
Apesar da hora tardia, Carl não conseguia dormir. Inquieto, deambulava de um lado para o outro dentro da cela. Estava empolgado e a sua imaginação galopava. Não
sabia por que motivo lhe ocorrera perguntar a Johnny Congo onde tinha nascido. A ideia acudira-lhe à mente, como se sempre tivesse estado lá, escondida até chegar
o momento certo. Encarou isso como mais uma prova inquestionável do seu génio natural.
Tanto ele como Johnny precisavam de um refúgio, de uma fortaleza onde pudessem estar a salvo dos inimigos que os rodeavam. Os Estados Unidos eram agora, para ambos,
um lugar extremamente hostil. Precisavam de encontrar um país mais simpático, um porto seguro a partir do qual pudessem operar.
Carl deteve-se à frente da sua mesa, que estava oculta atrás de uma cortina no canto ao fundo da cela. Sentou-se e ligou o computador. Assim que o ecrã se iluminou,
procurou a palavra "Kazundu" no motor de pesquisa do Google.
Segundos depois, a página encheu-se de linhas de dados e na legenda no topo da página lia-se: "Cerca de 32.000.000 resultados." Carl relanceou os olhos pelo ecrã
à medida que os factos iam surgindo. As descrições do país foram esmagadoramente pouco auspiciosas.
Kazundu era o estado soberano mais pequeno do continente africano. Cobria uma superfície de quase dez mil quilómetros quadrados, cerca de metade do tamanho do País
de Gales ou do estado americano da Nova Jérsia. A sua população total era estimada em duzentos e cinquenta mil habitantes. Nunca houvera um censo oficial.
Era também o país mais pobre do continente africano, com um produto interno bruto per capita de cem dólares anuais. Carl assobiou baixinho. "Cada um daqueles pobres
trouxas ganha menos de dez dólares por mês! O que é que uma pessoa poderia comprar lá com dez milhões de dólares?", perguntou-se num murmúrio de espanto. "A resposta,
meus caros amigos, é que provavelmente poderia comprar o maldito país inteiro."
Carl continuou a passar os olhos pelas informações no ecrã e ficou a saber que Kazundu se localizava na margem noroeste do lago Tanganica, como uma minúscula carraça
agarrada à barriga da enorme massa elefantina que era a República Democrática do Congo. O lago Tanganica é um vasto mar interior. É um dos lagos mais longos e mais
profundos do mundo, com um comprimento de norte a sul de mais de seiscentos quilómetros e uma largura média de quase cinquenta quilómetros. O território de Kazundu
ao longo do lago era apenas de trinta e cinco quilómetros. A pesca e uma agricultura primitiva eram as suas únicas fontes de rendimento e sustento.
Nos tempos sombrios do tráfico de escravos por parte dos árabes tinha sido um importante elo na cadeia de feitorias que se estendia até à costa do oceano Índico,
a oriente. Os escravos capturados no interior do Congo eram aí retidos em barracões antes de serem expedidos em dhows árabes através do lago até Ujiji, e daí para
a costa.
Em 1680, no auge do tráfico de escravos, o sultão de Ori construiu um castelo no alto promontório de um penhasco escarpado, sobrejacente ao lago. O porto que recebia
os navios negreiros encontrava-se anichado na pequena enseada por baixo do penhasco.
Quando os colonos europeus e as forças francesas e britânicas que combatiam a escravidão expulsaram os árabes dos distritos do Grande Lago africano, o chefe supremo
da tribo local dos Inhutu transferiu-se com toda a sua corte e harém para o castelo abandonado de Kazundu, onde os seus herdeiros têm vivido desde então.
O atual soba de Kazundu era, por direito hereditário, o rei Justin Kikuu Tembo XII, cujo nome em suaíli significa "Grande Elefante". O seu retrato mostrava-o como
um homem incrivelmente gordo, de expressão melancólica, barba grisalha e desgrenhada e uma pança enorme que lhe descaía sobre a tanga de caudas de leopardo. Usava
um turbante de pele de leopardo na cabeça e estava sentado num trono de dentes de elefante. Rodeavam-no as suas muitas mulheres e uma guarda pessoal de cinco askaris
armados com espingardas automáticas.
De acordo com os numerosos comentários depreciativos fornecidos pela sua pesquisa na Internet, o soba governava o microestado com mão de ferro, livre de excentricidades
modernas como parlamentos e eleições. Era tratado pelos governantes dos países vizinhos com uma indiferença benévola. Nenhum deles mostrara alguma vez grande interesse
em se apoderar do pequeno país insalubre do rei Justin. O seu pai fora um dos comparsas mais próximos do general Idi Amin do Uganda, e ele próprio era um fervoroso
admirador do presidente Robert Mugabe do Zimbabué.
Carl clicou numa série de imagens e fotografias do reino. Havia muitas vistas panorâmicas da margem do lago e do território montanhoso e densamente arborizado que
se erguia mais além. Os cenários naturais eram magníficos e os panoramas do outro lado do lago eram esplêndidos, selvagens e primitivos. Águias-de-cabeça-branca
esvoaçavam em círculo sobre as praias cor de creme e filas de flamingos rosados pairavam a baixa altitude sobre as águas lustrosas do lago. Havia fotos do pequeno
aeroporto que tinha sido construído pela South African Airways para atrair os turistas que nunca mais chegavam. Os edifícios estavam abandonados e decrépitos, mas
a pista que se estendia paralelamente à margem do lago ainda parecia em condições de ser utilizada.
O castelo tinha sido construído ao estilo indo-islâmico. Elegantes minaretes erguiam-se acima das muralhas imponentes. Os portões da entrada exibiam intrincados
ornamentos curvilíneos e as janelas estavam cobertas com painéis em obra de talha. As fotografias de interior mostravam divisões públicas, muito espaçosas e grandiosas.
As paredes estavam cobertas com azulejos esmaltados, em tons de
azul que iam desde o azul-celeste e o índigo ao azul ultramarino. decorados com versos do Corão na serpenteante escrita árabe a negro.
Essas salas majestosas contrastavam acentuadamente com os calabouços e as masmorras lúgubres onde outrora eram acorrentados os escravos. Carl Bannock teve dificuldade
em se conter e controlar as suas ambições até ao momento em que poderia continuar a sua conversa com Johnny Congo. Assim que os dois ficaram novamente a sós. Carl
retomou a conversa no ponto em que tinha sido interrompida.
- Lembras-te do que estávamos a falar da última vez, Johnny meu amigo?
- Claro que sim, Carl lindinho. - Johnny sorriu. - Estava a contar-te como o meu pai e toda a família dele tiveram de fugir a toda a pressa lá de Kazundu antes que
o cabrão do meu tio nos comesse a todos.
- Como se chamava esse tio? - Justin Kikuu Tembo. - Então Congo não é realmente o teu nome, pois não? - O meu pai mudou-o para Congo quando chegámos ao Texas. mas
antes disso também eu era Kikuu Tembo. Pá, aqui nos Estados Unidos as pessoas parece que ficam com as línguas presas e nunca conseguem pronunciar direito o meu nome
verdadeiro.
- E gostavas de voltar a mudar o teu nome para rei Joice Kikuu Tembo?
Johnny pestanejou e depois desatou a rir às gargalhadas. - estás a gozar na minha cara, pois não? Estás a falar a sério, não estás, lindinho?
- Lembras-te de termos falado que quem tivesse dinheiro suficiente podia ter e fazer tudo o que quisesse sem que ninguém o pudesse impedir? - Sim. - Bem, Johnny,
tu e eu temos dinheiro suficiente. Dá-me só mais um tempinho e Kazundu vai ser nosso, Vossa Majestade. - Ambos bateram as palmas das mãos.
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Três noites antes de ser libertado do Centro de Holloway, Carl Bannock foi visitar Johnny Congo no corredor da morte pela última vez.
Primeiro fizeram sexo. Eram amantes há doze anos e cada um deles sabia exatamente aquilo de que o outro gostava mais. Como a ocasião era de despedida, Carl assumiu
a posição de passivo e deixou Johnny fazer como gostava.
Depois partilharam a garrafa triangular de uísque Dimple Ha:E que Carl trouxera às escondidas para a cela. Sentados lado a lado no beliche, de cabeças muito próximas,
beberam uísque das canecas de plástico usadas para lavar os dentes e falaram em sussurros discretos enquanto discutiam a fuga de Johnny.
O advogado de Johnny tinha-o visitado na semana anterior. Era a única pessoa do exterior que gozava desse direito. Disse a Johnny". sem rodeios, que tinham chegado
ao fim da linha após muitos anos de manobras jurídicas.
O Supremo Tribunal examinara finalmente o recurso que Johnns interpusera contra a pena de morte e rejeitara-o. O governador do Estado do Texas fixara a data da execução
de Johnny para o dia 12 de agosto. - É muito mais cedo do que contávamos - disse Carl. - Assim, só ficamos com dois meses para te tirar daqui. Foi uma sorte termos
começado a trabalhar no plano com tanta antecedência. Agora, só precisamos de definir alguns detalhes menores.
Quando o supervisor da unidade veio buscar Carl à cela de Johnny para o levar para o nível dos reclusos com regalias no piso térreo, já ambos tinham definido cada
um desses detalhes menores.
O supervisor era Lucas Heller, que fora a primeira pessoa a receber Carl em Holloway, doze anos antes. Desde então, tinha sido promovido ao seu atual posto elevado
na hierarquia da prisão. Quando chegaram ao piso térreo, Lucas conduziu Carl para o seu gabinete e trancou a porta enquanto ambos discutiam os pormenores finais
do plano que Carl acabara de acordar com Johnny Congo. Quando terminaram, Lucas abordou com grande tato a questão do pagamento dos subornos. Lucas referia-os eufemisticamente
como "considerações motivacionais".
Carl concordara em fazer os pagamentos em tranches: metade do valor acordado seria pago de imediato e o restante no dia da evasão.
O diretor da prisão, Marco Merkowski, receberia um total de duzentos e cinquenta mil dólares, depositados numa conta numerada no Banco de Xangai, em Singapura. Os
cem mil dólares para os dois supervisores de nível seriam transferidos para uma conta nas ilhas Virgens Britânicas. Lucas Heller foi o principal instigador dessa
maquinação. Ser-lhe-iam depositados duzentos mil dólares nas ilhas Caimão, e outros duzentos mil assim que Johnny estivesse fora dos muros de Holloway e livre. Carl
entregaria pessoalmente esta última tranche a Lucas Heller, sob a forma de notas de cem dólares usadas, e depois despedir-se-iam como amigos, com um aperto de mão,
para nunca mais voltarem a ver-se.
84
O procedimento tradicional de libertação de um preso do Centro de Holloway consistia em levá-lo primeiro para a área de receção a fim de devolver o uniforme de recluso.
Depois assinava um registo para lhe ser entregue um saco com as mesmas roupas com que entrara no estabelecimento há tantos anos. Por último. dois guardas armados
acompanhavam-no até ao portão principal. Daí, era empurrado com mão firme ao encontro do ar doce da liberdade e o portão era fechado com igual firmeza atrás dele.
Se um dos guardas se encontrasse num estado de espírito mais benévolo, talvez lhe apontasse o caminho até ao terminal de camionetas Greyhound, a pouco mais de cinco
quilómetros a pé, ao fundo da estrada.
No dia da libertação de Carl Bannock, o diretor Marco Merkowski foi à cela dele dar-lhe um aperto de mão e desejar-lhe boa sorte. De seguida, Lucas Heller escoltou-o
até à área de receção. onde Carl entregou o seu uniforme de recluso e recebeu, após assinar o registo, os grossos pacotes que os seus alfaiates em Houstoc lhe tinham
enviado. Os pacotes continham um fato de flanela cinzento-claro feito à medida, uma camisa de algodão Sun Islan.i. botões de punho em ouro, com monograma; gravata
de cadarço preta, com um pingente de lápis-lazúli; um chapéu Stetson de aba larga cor de creme e um par de botas texanas de tacão alto.
Lucas acompanhou Carl na camioneta da prisão até ao portão principal, onde o esperava uma limusina preta com motorista de uniforme que ele alugara online. A limusina
levou Carl no silêncio e na frescura do ar condicionado para o Four Seasons Hotel em Lamar Street, em Houston.
A rececionista acompanhou-o à sua suíte. Depois de lhe dar uma nota de cinquenta dólares de gorjeta, pediu uma garrafa de Dom Pérignon gelado através do serviço
de quarto. Bebericou o champanhe de um copo flauta e ligou para o porteiro. Chamava-se Hank e lembrava-se muito bem de Carl, e da sua generosidade, dos velhos tempos.
- Quero duas amiguinhas para esta noite, Hank. - Com certeza, senhor Bannock - disse Hank. - Uma loira e uma morena, como de costume. Estou correto, senhor?
- Tens boa memória. Certifica-te de que são o mais novinhas possível, aí a rondar a idade núbil. Diz-lhes que lhes vou pedir um documento de identidade que prove
a sua idade.
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Na semana seguinte, Carl andou muito ocupado a retomar os fios cortados da sua existência anterior, a reestabelecer velhos contactos e a aliciar novos a partir da
lista que Johnny Congo lhe tinha fornecido.
Passou uma manhã com o seu gestor de conta no Carson National Bank de Houston, a reorganizar e a recalibrar as suas contas e carteiras de investimentos. Depois,
passou uma hora glacial nos escritórios da firma de advogados Bunter & Theobald Inc., com o principal mandatário do Fundo Fiduciário da Família Henry Bannock. Ronald
Bunter tratou-o como se fosse uma espécie de réptil venenoso e limitou-se a responder-lhe às perguntas tanto quanto lhe permitia uma interpretação estrita da escritura
do Fundo Fiduciário.
Ronald tinha a seu lado a sua assistente jurídica, uma mulher jovem chamada Jo Stanley. Era atraente e parecia extremamente eficiente, mas era um pouco velha de
mais para os gostos particulares de Carl. Contudo, estava convencido de que ela podia fornecer-lhe uma visão mais ampla e mais atualizada sobre as questões do Fundo
Fiduciário do que Bunter estava disposto a divulgar. Na manhã seguinte, Carl telefonou a Jo Stanley da sua suíte para a convidar a jantar com ele. Tinha decidido
explorar o calibre da sua libido e o efeito do seu próprio charme irresistível sobre ela Se essa estratégia falhasse, certamente que ela seria recetiva a um suborno.
Até então, Carl nunca tinha conhecido ninguém que não fosse sensível a qualquer um desses dois estímulos.
No entanto, Jo Stanley recusou aceitar a sua chamada e, com um certo embaraço para Carl, transferiu-a diretamente para Ronald Bunter. Carl cortou a chamada assim
que reconheceu a voz de Ronnie. Decidiu adiar o seu ataque ao Fundo Fiduciário da Família até conseguir libertar Johnny Congo. Johnny estava a ficar sem tempo.
Um dos nomes da lista de contactos de confiança de Johnny era um certo Aleutian Brown.
"O Aleutian é jovem, mas é esperto e malvado. Está bem relacionado. Nunca me deixou ficar mal ainda. É quase de certeza o melhor homem em toda Costa Oeste." Johnny
recomendara-o e dera o seu número de contacto a Carl.
Em resposta ao seu telefonema, Aleutian Brown apanhou um voo de Los Angeles e Carl fui buscá-lo ao aeroporto. Durante o curto trajeto desde o aeroporto até ao hotel
onde fizera as reservas, Carl teve tempo de o avaliar suficientemente para confirmar a recomendação de Johnny Congo.
Aleutian era um dos principais maiorais de um gangue de negros conhecido como os Anjos ou Maaleks. A quadrilha operava a nível internacional. Os seus tentáculos
estendiam-se dos Estados Unidos e através dos oceanos até todas as cidades mais importantes do mundo, onde quer que houvesse um segmento significativo de população
muçulmana. Em poucos dias, Aleutian ocupara-se de todo o planeamento e logística da operação e Carl pôde então marcar uma data final para o resgate de Johnny. Escolheu
o dia 29 de julho, duas semanas antes da data agendada para a execução de Johnny. No dia 23 de julho ocorreu uma explosão na lavandaria da prisão de Holloway. Dois
reclusos morreram e todas as máquinas de lavagem e secagem ficaram destruídas ou muito danificadas. Essa maquinaria era crucial para o funcionamento regular de toda
a unidade. A administração da prisão teve de adotar medidas de emergência. A Polar White Laundry era uma lavandaria comercial que prestava serviços a alguns dos
principais hotéis da cidade e situava-se a menos de trinta quilómetros da prisão de Holloway. Foi escolhida de uma lista seletiva, com o aval do diretor da prisão,
Marco Merkowski, por sugestão de Johnny Congo e por via de uma "consideração motivacional" da parte de Carl. Trinta por cento dos empregados da lavandaria eram membros
do gangue dos Anjos Maaleks.
Ao amanhecer do dia 29 de julho, um camião branco de cinco toneladas parou junto ao portão principal de serviço de Holloway. Em ambos os lados da carroçaria do camião
estava estampado o nome da lavandaria, bem como imagens de uma sorridente ursa polar com as suas três crias aos pinotes usando fraldas de um branco imaculado. Ao
longo da semana anterior, desde a destruição da lavandaria, os guardas postados junto ao portão principal da prisão tinham-se acostumado ao trânsito diário destes
veículos.
Naquele dia, havia cinco homens a bordo. Todos usavam fatos-macaco brancos com nome e o logótipo da empresa bordados nas costas.
Carl Bannock era o condutor do camião e Aleutian Brown seguia a seu lado. Os outros três que iam na parte traseira do camião eram Maaleks. Carl era um indivíduo
cauteloso e muito preocupado com a sua segurança pessoal. Avaliara o fator de risco que comportava fazer parte da equipa de resgate e concluíra que era mínimo. Ainda
assim, estava nervoso e tenso quando cruzou o portão principal da prisão de Holloway.
Gotículas de suor afloraram-lhe à testa quando o seu falso carrão
de identidade foi verificado com cuidado pelos guardas no portão.. mas no final fizeram-lhes sinal para passarem.
Após a sua longa residência em Holloway, Carl conhecia perfeitamente a configuração da unidade. Conduziu até à entrada do bloco de serviços da prisão. Aí chegado,
fez marcha atrás até o camião ficar encostado à plataforma de carga da lavandaria. Assim que a porta dupla traseira foi aberta, os carrinhos rolaram para fora do
camião. Na lavandaria, foram carregados com sacos de lona com roupa suja e enfiados no camião da Polar White Laundry.
As três trocas e substituições que se seguiram foram impecáveis e perfeitas como truques de ilusionismo.
Johnny Congo estava escondido num dos últimos sacos de roupa que foram carregados no camião. O saco tinha sido marcado e foi manejado com grande cuidado até ser
depositado dentro do camião. Aleutian, que estava a supervisionar o carregamento, certificou-se de que era colocado numa posição em que ficasse ocultado pelos outros
sacos de roupa suja, mas sem fazer Johnny Congo correr o risco de asfixiar.
O último carrinho a sair do camião para a lavandaria já só carregava um saco. Também continha um corpo humano, mas estava bem morto. Na semana anterior, Aleutian
tinha feito uma incursão pelo subúrbio de Gulfton, uma das áreas mais pobres de Houston, habitada sobretudo por hispânicos e imigrantes. Num bar baratucho, tinha
escolhido um sujeito que exibia uma certa semelhança com Johnny pelo facto de ser corpulento, negro e de aspeto intimidante. Aleutian pagara-lhe uma bebida e propusera-lhe
um trabalhinho bem pago. O homem aceitara com entusiasmo. Aleutian dera-lhe duzentos dólares como garantia da sua boa-fé e combinaram encontrar-se nesse mesmo bar
na noite de 28 de julho.
Voltaram a encontrar-se como tinha sido combinado. Aleutian enchera-o de álcool, até o indivíduo ficar alegre e pouco firme nas pernas; depois estrangulara-o no
parque de estacionamento atrás do bar e enfiara o corpo num saco de roupa que meteu no porta-bagagens do carro alugado. Este saco foi o último a ser descarregado
do camião da Polar White Laundry.
O cadáver no saco foi levado para o corredor da morte. Foi rapidamente colocado no beliche de Johnny Congo, de rosto virado para a parede e tapado com um cobertor
que lhe deixava apenas a nuca exposta. Para um observador casual, pareceria que Johnny Congo continuava bem aconchegado no seu beliche.
Lucas Heller enfiou-se no saco vazio e foi transportado no carrinho para o camião da Polar White Laundry, sendo colocado ao lado de Johnny Congo.
A porta traseira foi fechada com força assim que o camião ficou completamente carregado. Carl Bannock enfiou-se na cabina e ligou o motor. Aleutian já se tinha instalado
no banco do passageiro e Carl refez com calma o mesmo trajeto através dos postos de controlo internos, até sair finalmente para a autoestrada interestadual.
Cerca de quinze quilómetros depois, pararam numa área de serviço e Carl estacionou no meio de outros veículos enormes na zona de pesados. Ele e Aleutian abriram
a porta traseira. Os três empregados da lavandaria saltaram para fora e dirigiram-se de imediato para o local onde tinham deixado um pequeno Toyota sedã na noite
anterior. Partiram sem olhar para trás. Nenhum deles voltou a aparecer mais ao trabalho na Polar White Laundry.
Carl e Aleutian enfiaram-se na traseira do camião e fecharam a porta. Tiraram Johnny Congo e Lucas dos respetivos sacos de lona.
Johnny e Carl abraçaram-se com ardor enquanto Aleutian e Lucas Heller observavam com um ar divertido. Depois, Johnny virou-se para Aleutian e ergueu-o do chão com
um abraço vigoroso.
- Aleutian Brown, és um tipo porreiraço. Eu tinha dito ao Carl que podíamos contar contigo, pá.
Lucas Heller aproximou-se de Carl e estendeu-lhe a mão. Carl apertou-lha com tal força que Lucas se contorceu.
- Pronto, Carl - disse ele com desagrado. - Se me deres agora aquilo que me deves, deixo-te aí a festejar com os teus amigos e faço-me à estrada.
Continuando a agarrar-lhe a mão, Carl disse-lhe numa voz séria: - Obrigado, Lucas. Foi um verdadeiro prazer conhecer-te. - Depois, sem lhe largar a mão, fez sinal
com a cabeça a Aleutian. - Muito bem, Aleutian. Dá-lhe o que lhe devemos.
Aleutian tirou do bolso interior do fato-macaco uma pistola de pequeno calibre, equipada com silenciador. Disparou uma única bala contra a nuca de Lucas Heller.
Carl largou-lhe a mão e o corpo de Lucas tombou no chão. Esperneou por momentos e o seu corpo foi sacudido por espasmos. Aleutian debruçou-se sobre o cadáver e disparou-lhe
mais dois tiros espaçados contra a têmpora direita. As pernas pararam de se agitar.
- Mas que diabos? - exclamou Johnny Congo. - Por que diabos fizeste isso?
- Nunca gostei desse cabrão - explicou Carl. - E acabo de poupar duzentos mil dólares.
- Adoro-te, Carl Bannock. - Johnny agarrou-se à barriga e desatou às gargalhadas.
Aleutian tinha trazido uma muda de roupa para cada um deles, enfiadas dentro de um dos sacos da lavandaria. Johnny livrou-se do seu uniforme de recluso e Carl da
sua farda da lavandaria, e ambos se apressaram a vestir as roupas civis. Depois saíram da traseira do camião. Carl trancou todas as portas, abandonaram o veículo
pesado e caminharam em passo tranquilo até à outra ponta do parque de estacionamento, onde, na noite anterior, Aleutian tinha deixado um Ford alugado.
Enfiaram-se na viatura e seguiram para norte, pela Route 45, durante cerca de sessenta quilómetros, até acabarem por virar para uma estrada secundária e rumar para
oeste, na direção de Waco. Ao final da tarde, chegaram a uma pista de pulverização aérea de culturas no centro de uma vasta área de cultivo de sorgo. Um bimotor
Baron G58 de propulsão a hélice esperava-os na pista. A aeronave pertencia a um dos contactos de Aleutian ligado ao narcotráfico e a sua capacidade para descolar
e aterrar em espaços limitados tornava-a ideal para as necessidades deles.
O piloto já tinha os motores em marcha e o nariz alinhado com a pista. Carl e Aleutian deram um aperto de mão a Johnny Congo. Johnny subiu depois para o estribo
da asa e baixou-se para fazer passar o seu corpo volumoso pela porta aberta da cabina.
O copiloto fechou a porta, o piloto acelerou os motores e a aeronave avançou num rugido pela pista, com destino a La Ceiba, nas Honduras, onde o Senior Alonso Almanza
aguardava ansiosamente pelo prazer da companhia de Johnny.
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Johnny e Carl voltaram a encontrar-se catorze dias mais tarde. numa suíte no último piso do Hotel Las Lasjitas na capital da Argentina, Buenos Aires. Carl tinha
um Gold Rewards Card emitido pelo Four Seasons. Sempre apreciara a atmosfera e o serviço que a empresa fornecia.
Depois de fazerem sexo, tomaram um duche juntos e depois apanharam um táxi para Puerto Madero, para comerem enormes bifes suculentos no Cabaria las Lilas. Devoraram-nos
com o acompanhamento de uma garrafa de Catena Alta Malbec e de seguida regressaram à suíte no hotel.
O porteiro tinha sido prevenido de antemão e, assim que eles chegaram, enviou-lhes dois jovens à suíte.
Carl verificou cuidadosamente os cartões de identidade dos dois visitantes. A rapariga parecia ter cerca de doze anos, mas o seu cartão provava que tinha dezasseis
anos e dois meses. Carl beijou-a e apertou-lhe as nádegas pequenas e magras. - És muito linda - meu anjo.
O rapaz era quatro meses mais velho do que a rapariga. Também era muito bem-parecido, embora demasiado efeminado. Quando Johnny lhe sorriu sentado no sofá, o rapaz
atravessou a sala num andar afetado e sentou-se no colo dele.
Na noite seguinte, Carl e Johnny instalaram-se na cabina de primeira classe do voo da Air Malaysia rumo à Cidade do Cabo na ponta sul de África. Da Suíte Presidencial
do One & On1ir
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Hotel, na marginal da Cidade do Cabo, Carl ligou para um número privado e falou com o general Horatio Mukambera, em Harare, a capital do Zimbabué. O general informou
Carl que o presidente Mugabe fora posto ao corrente da proposta deles e que ordenara que o exército providenciasse a cooperação pretendida. Confirmou ainda que os
fundos tinham sido recebidos no banco em Singapura e que se encontraria pessoalmente com eles quando chegassem ao aeroporto de Harare no voo da South African Airways.
Carl passou depois o telemóvel a Johnny Congo. Johnny tinha servido duas comissões completas no Vietname, no Corpo de Fuzileiros Navais dos Estados Unidos, e, por
conseguinte, tinha uma vasta experiência de combate. Chegara ao posto de sargento-mor e estivera no centro da ação em várias ocasiões.
Bastaram-lhe poucos minutos para comprovar as suas credenciais, e o general Mukambera compreendeu que estava a falar com um homem que sabia do ofício. A conversa
tornou-se mais descontraída e cordial enquanto discutiam a logística da operação.
- Posso pôr à sua disposição até duas companhias de paraquedistas de assalto de primeira categoria - disse o general.
- Quantos homens tem cada companhia, general? - Cento e vinte. - Não queremos estar em inferioridade numérica. Vamos precisar das suas duas companhias - disse Johnny.
- Há algum lugar seguro onde me possa encontrar com os homens e trabalhar com eles antes de partirmos para norte? - Johnny começara a falar em suaíli, deixando Carl
incapaz de acompanhar a conversa.
Mas o general simpatizou ainda mais com ele e respondeu-lhe na mesma língua. - Sim, temos uma área de operações que posso colocar à vossa disposição. Mas, diga-me,
onde aprendeu a falar tão bem uma das nossas línguas? Pensava que o senhor era americano.
- Nasci na África Oriental. Pertenço à tribo Inhutu. - Ah, agora percebo! Isso explica muitas coisas. Seja bem-vindo de volta à sua pátria, senhor Kikuu Tembo.
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- Obrigado, general Mukambera. - Johnny voltou a falar em inglês. - Segundo sei, também o informaram de que precisamos de transporte aéreo. - Posso pôr à vossa disposição
um Douglas Dakota C47 Skytrain.
- Mas esse é um modelo veterano da Segunda Guerra Mundial - protestou Johnny.
- Garanto-lhe que a manutenção tem sido sempre meticulosa, senhor Kikuu Tembo.
Johnny olhou para Carl à procura de orientação. - Qual é o seu raio de ação? - perguntou Carl. - Tem um raio de ação de quinze mil milhas marítimas, completamente
carregado, mas esta máquina dispõe de tanques de combustível de longo alcance que permitem alargar esse raio de ação em mais quinhentas milhas. Eu próprio já viajei
várias vezes de Harare para Nairobi nesse mesmo avião.
- Qual é a capacidade de carga? - O Skytrain pode transportar setenta homens com equipamento de combate completo.
- Então vamos precisar de fazer quatro voos - ponderou Johnny. - Quanto tempo calcula que demora cada uma dessas operações de ida e volta, general?
- Podemos operar a partir de Kariba, na nossa fronteira norte. O tempo de ida e volta entre Kariba e Kazundu deve ser menos de sete horas.
- O transporte não precisa de aterrar em Kazundu. Os homens podem desembarcar de paraquedas. Assim, no Dia Um podemos ter cento e quarenta homens em terra. A segunda
vaga pode chegar ao amanhecer do Dia Dois.
- Recebi um relatório sobre o poder atual das forças de Kazundu. Não conseguirão oferecer grande resistência contra a nossa superioridade numérica. Creio mesmo que,
após o primeiro ataque, os sobreviventes ficarão quase certamente muito felizes por se mudarem para o nosso lado.
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Quatro dias mais tarde, Carl e Johnny despediram-se no aeroporto de Harare. Johnny foi recolhido por um camião de transporte de tropas do exército do Zimbabué e
percorreram pouco mais de trezentos quilómetros até um campo de treino militar na remota savana, no interior do vale do Zambeze.
O tenente Samuel Ngewenyama esperava-o aí para lhe dar as boas-vindas e acompanhou-o ao seu alojamento numa das barracas pré-fabricadas. Johnny trocou de roupa:
uniforme de camuflado e botas de paraquedista que tinham sido deixadas em cima do beliche. De seguida, Sam Ngewenyama colocou os homens em parada para Johnny lhes
passar revista.
Johnny Congo ficou satisfeito com o resultado. Esperara algo bastante pior. Não eram fuzileiros navais americanos, mas considerou que fossem combatentes com o mesmo
espírito de determinação. Com um pouco de treino, ficariam suficientemente bem preparados para a missão que os esperava.
Ficou sobretudo satisfeito com Sam Ngewenyama. Era um veterano da guerrilha suja contra as forças rodesianas de Ian Smith. Era um homem duro, com os olhos frios
de um canibal. Sam não tardou a reconhecer essas mesmas qualidades em Johnny Congo. Ao longo dos dias seguintes, Sam e os seus homens esforçaram-se para conseguirem
acompanhar as capacidades de resistência de Johnny. Não estavam em condições de lhe igualar a habilidade com a faca, a pistola e a espingarda, nem tão-pouco a sua
perícia no combate corpo a corpo ou a sua capacidade de sobrevivência na selva. Não demorou muito para que Sam Ngewenyama dedicasse a Johnny a sua incondicional
lealdade e respeito.
Johnny treinou os homens com enorme dureza e, após três semanas, tinha-os transformado, quase completamente, em fuzileiros.
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Entretanto, Carl apanhou um voo para norte, para Kinshasa, a capital da República Democrática do Congo. "O Coração das Trevas", como descrito por Joseph Conrad,
é um dos maiores países de África, devastado por décadas de sangrentas guerras civis que fizeram perecer cerca de 5,4 milhões de pessoas. Era também o país com a
mais elevada taxa mundial de incidência de sida.
Os governos congoleses ascendiam ao poder e caíam. A corrupção era a norma. Guerra, violações em massa e pilhagem eram o modo de vida. Bandos de saqueadores e bandidos
sem afiliação a qualquer autoridade reconhecida vagueavam pelas remotas zonas interiores. Outrora, nas brumas dos tempos, quando o Grande Vale do Rift rompeu a crosta
da Terra, expôs um vasto tesouro de recursos naturais que incluíam a columbite-tantalite, localmente conhecida como coltão. Este mineral é o minério do tântalo,
um metal essencial para a produção de condensadores, telemóveis, pacemakers, GPS, computadores portáteis, sistemas de ignição, sistemas de travagem antibloqueio,
câmaras digitais e de vídeo e toda uma série de dispositivos modernos de alta tecnologia. Cada grama de tântalo valia quase o dobro de um grama de ouro puro.
Oitenta por cento das reservas mundiais conhecidas de coltão localizavam-se nas regiões orientais do Congo, na fronteira com Kazundu.
Os outros minerais extraídos no Congo oriental eram diamantes industriais e diamantes gema, ouro, cassiterite e volframite. Eram os famigerados minerais de conflito
e diamantes de sangue, cuja produção a Europa e o Ocidente procuravam suprimir e controlar. Paradoxalmente, essas mesmas nações industriais desenvolveram um apetite
insaciável por esses minerais. No processo de tentarem impor embargos a este tipo de extração, os altruístas acabariam por fazer ascender o seu valor de mercado
a picos astronómicos.
O pequeno reino de Kazundu situava-se na fronteira das remotas e perigosas áreas orientais, onde a população local, incluindo mulheres e crianças pequenas, era coagida
por soldados armados de fações criminosas a trabalhar turnos de 48 horas nos túneis de paredes e solos instáveis das minas primitivas.
Para um homem como Carl Peter Bannock, esta situação poderia ser resumida numa única e melodiosa palavra: lucro.
Em Kinshasa, Carl encontrou-se clandestinamente com três homens que eram parentes do recém-eleito presidente da nação. O francês é a língua oficial do Congo, uma
língua que Carl Bannock falava com fluência, de modo que não constituiu nenhum obstáculo às negociações. De início, os cavalheiros congoleses mostraram-se cautelosos
e prudentes, apesar de Carl lhes ter sido altamente recomendado por importantes membros do governo do Zimbabué. No entanto, começaram a simpatizar aos poucos com
Carl enquanto ele lhes expunha um plano pormenorizado e convincente, segundo o qual o estado vizinho de Kazundu poderia ser transformado de apêndice esquecido sem
qualquer utilidade ou valor real num canal vital, através do qual os minerais de conflito poderiam ser exportados de forma segura e lucrativa.
Carl sublinhou o facto de esse plano não ir custar-lhes nada em termos de dinheiro. Ao governo da República Democrática do Congo só se pedia que fechasse os olhos
enquanto o rei Justin, esse tirano brutal e odiado, era deposto em favor do seu sobrinho benevolente e esclarecido, o rei John Kikuu Tembo, que era o legítimo herdeiro
ao trono. Assim que a substituição dos monarcas tivesse sido efetuada, naturalmente que o Congo colocaria o seu pequeno vizinho sob a sua proteção, saindo em sua
defesa nos conclaves das Nações Unidas e da União Africana se essa mudança na monarquia alguma vez viesse a ser escrutinada.
Desta forma, assegurar-se-ia que o fornecimento de minerais sangrentos através das fronteiras não seria prejudicado pelas sensibilidades puritanas dos governos dos
Estados Unidos e da Europa Ocidental.
Finalmente, foi acordado que o governo do Congo enviaria uma mensagem diplomática ao rei Justin, a informá-lo de que Carl Bannock e os seus parceiros desejavam encontrar-se
com ele para discutir o projeto de construção de uma luxuosa estância de férias e um spa na margem do lago de Kazundu. Tal mensagem informá-los-ia também que estes
visitantes tinham dezenas de milhões de dólares para investir nesse projeto.
Os encontros terminaram com sorrisos, apertos de mão e a mais absoluta cordialidade.
89
Carl e Johnny reuniram-se na suíte imperial do Meikles Hotel em Harare. Reviram e discutiram os progressos alcançados e deram os últimos retoques no plano principal.
No dia seguinte, Johnny apresentou Carl ao tenente Sam Ngewenyama. Carl ficou entusiasmado com o homem. O próprio Carl não era particularmente dado a atos heroicos,
mas sabia reconhecer e valorizar o instinto assassino nos outros. Não precisava da confirmação de Johnny para perceber que Sam era um homem duro. Dirigiu a Johnny
um aceno de aprovação com a cabeça e escutou-o enquanto dava as suas ordens a Sam: deveria entrar em Kazundu disfarçado de trabalhador itinerante à procura de emprego
e efetuar um reconhecimento preliminar.
A única forma viável de entrar em Kazundu era através do lago, mediante o uso de um barco a vapor. Sam apanhou em Harare um voo da Air Zambia com destino ao porto
de Kigoma na margem oriental do lago Tanganica. Trocou de roupa nos lavabos do aeroporto, envergando vestes esfarrapadas e miseráveis. e assumiu o seu papel de migrante
à procura de trabalho. Em Kigoma, embarcou no navio a motor Liemba, que originalmente tinha sido usado como canhoneira alemã na Primeira Guerra Mundial.
A bordo seguiam outros duzentos passageiros, todos eis acampados no convés aberto. Não havia casa de banho. Mas esta situação não incomodou ninguém, pois os passageiros
de ambos os sexos simplesmente se aproximavam da amurada do barco quando a necessidade assim o exigia.
Após quatro dias de viagem e oito portos de escala, o Liemba entrou no pequeno e encantador porto de Kazundu. Sam foi um dos seis passageiros que desembarcaram.
Os recém-chegados foram confrontados no cais por dois milicianos armados que lhes ordenaram que abrissem as suas bagagens. Depois puseram-se a vasculhar o conteúdo
das diferentes trouxas e caixas de cartão para selecionarem aquilo que mais lhes agradava. Um dos passageiros era uma mãe adolescente com um bebé de colo pendurado
nas costas com uma capulana. Rindo e dizendo gracejos, um dos milicianos entregou a sua espingarda a Sam para lha segurar e levou a rapariga para a casa de banho
pública ao fundo do cais. Ela voltou pouco depois, rindo e com o bebé ainda pendurado nas costas, aparentemente mais alegre e jovial após aquele breve interlúdio.
Sam devolveu a espingarda ao miliciano. No entanto, aproveitara a oportunidade para verificar a arma na ausência dele. Era uma espingarda de assalto VZ 58, uma cópia
da AK-47 russa da década de 1950. Não restava quaisquer vestígio de oxidação azulada no metal do cano e o carregador não tinha nenhuma bala. Sam sorriu ao pensar
no tipo de resistência que poderiam esperar quando voltassem a Kazundu com intenções mais sérias.
Sam saiu do porto e dirigiu-se para a vila, parando para falar com todos aqueles com quem se cruzava acerca das hipóteses de encontrar trabalho. Todos vestiam farrapos.
Tinham os rostos descarnados e as suas expressões eram de medo ou apatia. Muitos deles pareciam estar num estádio avançado de subnutrição e fome. A maior parte deles
afastou-se rapidamente sem lhe responder às perguntas. Sam atravessou a pista de aterragem deserta de Kazundu a caminho do castelo do rei Justin. Calculou que o
Dakota Skytrain não teria nenhuma dificuldade em aterrar assim que fossem removidos alguns dos detritos mais volumosos que tinham tornado a pista inutilizável. Havia
um pequeno grupo de milicianos e respetivas mulheres acampados nas ruínas do edifício do terminal aéreo. Contrariamente aos outros habitantes de Kazundu com quem
se tinha cruzado, estes pareciam estar bem alimentados.
Subiu ao longo do caminho até ao castelo no topo e acocorou-se no pátio, ao lado de mendigos e de outros homens que procuravam trabalho, enquanto estudava a disposição
do edifício. Havia uma única entrada, virada para o lago. O portão pendia das dobradiças. Tornava-se claro que não era fechado há muitos anos.
Apesar da magnífica paisagem sobre o lago e as colinas arborizadas das zonas interiores, pairava sobre tudo um ar de desânimo, como um miasma venenoso.
Uma das portas interiores do castelo escancarou-se finalmente e surgiram quatro homens armados que lhes ordenaram que se dispersassem, reforçando essa ordem com
coronhadas de espingarda. Um deles atingiu Sam no rosto. Quando Sam fez um gesto instintivo de retaliação, o homem recuou e apontou-lhe o cano ao rosto. enquanto
ao mesmo tempo enfiava uma bala na culatra.
- Vá lá! - incitou-o o Sam, sorrindo. - Atreve-te! Sam refreou a sua fúria e manteve-se de olhos fixos no homem durante alguns segundos; depois tocou no lábio que
sangrava e disse em voz baixa: - Hei de voltar e vou lembrar-me da tua cara. - Virou costas e o guarda lançou-lhe insultos enquanto ele saía pelo portão aberto.
Três dias mais tarde, Sam voltou a embarcar no Liemba e regressou a Kigoma, na margem oriental do lago. Enquanto o Liemba se aproximava rapidamente do cais de embarque,
Sam reparou numa grande lancha a motor atracada na baía. Uma das tarefas de que Johnny Congo o incumbira consistia em estar atento a essa embarcação e recolher todas
as informações possíveis acerca dela. A lancha não se encontrava na baía quando ele ali passara a caminho de Kazundu, mas agora tinha regressado.
Envergando uma vez mais as suas roupas novas e elegantes, Sam foi ao escritório do capitão do porto, à entrada do cais, e falou com o funcionário que encontrou sentado
no alpendre. O homem disse-lhe que a lancha pertencia à administração do governo do distrito de Kigoma. Era sobretudo usada pelo governador da província no desempenho
dos seus deveres oficiais, embora fosse ocasionalmente alugada a terceiros. O homem garantiu-lhe que era uma embarcação em condições de navegar e capaz de fazer
a travessia até à margem oposta do lago, mesmo nas piores condições de vento e ondulação.
Johnny Congo tinha-lhe atribuído uma outra missão. Kigoma era um importante centro de distribuição de alimentos ao longo de toda a vertente ocidental do lago. Sam
captou a atenção total do responsável da área local ao passar-lhe para a mão uma nota de cinquenta dólares para cobrir as suas "despesas pessoais" e depois discutiram
o fornecimento de grandes quantidades de farinha de milho, o alimento básico da dieta africana. O homem garantiu-lhe que num curto espaço de tempo poderia disponibilizar-lhe
qualquer quantidade que desejasse desse género alimentício.
Ao final da tarde, Sam apanhou um voo de regresso a Harare e apresentou o seu relatório a Johnny Congo e a Carl. A conversa decorreu em suaíli e Carl não foi capaz
de a acompanhar. Johnny ouviu-o atentamente e fez-lhe algumas perguntas, e depois recostou-se na sua poltrona e cruzou os braços.
- Bem, Carl lindinho - disse. - Está tudo a postos. Recebemos um convite cordial do meu tio Justin para lhe fazermos uma visita e levarmos os nossos dez milhões
de dólares, e alugámos a lancha do governador para nos levar lá. Por isso, estamos de partida para a nossa nova casa.
Carl afagou o queixo, com um ar pensativo. - Acho que é melhor ires tu à frente - disse numa voz hesitante. - Depois sigo eu, mal chamares por mim. - Conhecendo
bem Johnny como o conhecia, Carl não tinha nenhumas dúvidas de que choveriam balas quando Johnny Congo chegasse a Kazundu.
- Estou a chamar por ti agora, lindinho. Não quero que percas nenhuma da diversão - disse Johnny muito calorosamente. Carl deixou descair os ombros com resignação.
90
No embarcadouro de passageiros do porto de Kigoma, Carl fez uma última tentativa para se furtar ao perigo que assomava no horizonte. Escudou os olhos e olhou para
o outro lado do lago. Os bancos de nevoeiro matinal ainda não tinham sido dispersados pelo sol nascente.
- Parece tudo muito agitado lá mais à frente - disse. - Parece que vem aí uma tempestade. Não sou grande coisa como marinheiro. Acho que seria melhor se...
- Sim, amigo. Concordo contigo - disse Johnny. - São trinta quilómetros até ao outro lado. É melhor pormos mas é os nossos cus peludos a mexer sem perder mais tempo.
- Agarrou no saco de viagem de Carl e lançou-o por cima da amurada da lancha a motor. para cima do convés aberto. Depois agarrou Carl pelo braço e fê-lo marchar
pela prancha de embarque.
Quando avistaram o castelo e o porto de Kazundu, Johnny fez uma chamada pelo telefone de satélite. Enquanto esperava que o piloto do Dakota Skytrain atendesse, perscrutou
o céu a sul, embora soubesse que ainda era demasiado cedo para conseguir detetar a aeronave no meio das enormes nuvens cúmulos-nimbos.
- Chegamos ao momento crítico, lindinho - disse Johnny. - Se alguém fez asneirada, se alguém nos denunciou, aqueles cabrões ali... - apontou com o queixo na direção
do pequeno comité de receção no cais do porto de Kazundu - vão começar a disparar como loucos antes de sequer podermos pôr pé em terra.
Carl não disse nada, mas o seu rosto bem-parecido adquiriu um tom verde-pálido.
Nesse preciso momento, o piloto do Dakota zimbabuense atendeu a chamada de satélite de Johnny. - Daqui Canja de Galinha - disse.
- Daqui Mãe Galinha. Qual é a tua posição? - perguntou-lhe Johnny. - Quarenta e dois minutos para a largada. - Percebido. Prossegue o trajeto - disse-lhe Johnny.
- Terminado.
De repente, os homens que estavam à espera no cais de Kazundu começaram a acenar e os seus gritos de saudação chegaram-lhes aos ouvidos através da extensão de água
que ainda os separava. Carl inclinou-se sobre a amurada e vomitou aliviado, copiosa e ruidosamente.
Sua Majestade tinha enviado o seu velho Land Rover do castelo para os recolher. Era o único veículo motorizado que ainda funcionava no reino. Quando Johnny, Sam
e Carl subiram a bordo, quatro dos milicianos empurraram a viatura para a fazer pegar e, assim que o motor arrancou, agarraram-se aos flancos da carroçaria.
Ao aproximarem-se do topo da colina, o Land Rover começou a falhar. Nuvens de fumo azul jorravam do tubo de escape. Os milicianos saltaram para o solo e empurraram-no
ao longo dos últimos cinquenta metros até cruzar os portões do castelo e parar no pátio.
O populacho tinha sido escorraçado das imediações e o pátio estava deserto. Contudo, assim que o motor do veículo se reduziu ao silêncio após uma explosão final,
o camareiro-mor da corte cruzou os portões principais com uma pequena comitiva para lhes dar as boas-vindas. Era uma personagem roliça, com um par de tetas ao dependuro
e usando apenas uma tanga feita de caudas de macacos colobos de pelagem branca.
Acenou-lhes da entrada. Os três apearam-se do Land Rover e subiram as escadas. Johnny e Sam levavam as suas pastas de couro. Carl seguia atrás deles. Atravessaram
os portões, com o camareiro a dançar à frente deles enquanto os conduzia através de uma série de salões desprovidos de qualquer peça de mobília ou decoração. Tiveram
de avançar contornando grupos de mulheres acocoradas a cozinharem ao redor de fogueiras diretamente em cima dos azulejos decorados com belos padrões. As paredes
e os tetos altos estavam enegrecidos pela fuligem das fogueiras. Lixo e excrementos de animais cobriam o chão. Crianças negras de tenra idade, nuas e com ranhos
ressequidos encrustados nas narinas, guinchavam e berravam, tropeçando umas nas outras como cachorrinhos em cima dos azulejos imundos. Todas se calaram e observaram
com os seus enormes olhos escuros enquanto os três desconhecidos passavam. Os cães, entretanto despertados do seu sono, desataram a correr para eles, ladrando furiosamente,
até que Johnny Congo assestou um pontapé na barriga do líder da matilha, com tal força que o bicho deslizou de costas sobre os azulejos, uivando de dor. Os restantes
dispersaram-se em pânico.
O ar fedia a humanidade imunda, a fumo de madeira e a esgoto. Quando se aproximaram da entrada ao fundo do corredor, o camareiro-mor começou a entoar uma cantilena
num falsete agudo e a saltitar numa espécie de grotesca dança reumática.
- O que é que ele está a dizer? - perguntou Carl numa voz ansiosa.
- Está a cantar louvores ao rei - traduziu Johnny. - Está a dizer-nos como o rei Justin, o poderoso elefante, devora as árvores da floresta e depois as caga em cima
das cabeças dos seus inimigos.
Entraram na sala do trono. Sobre um estrado elevado, encostado à parede do fundo, estava sentado o rei Justin no seu trono feito de dentes de elefante. Tal como
o seu retrato oficial o representava. era um homem corpulento, usando apenas uma tanga de pele de leopardo e um turbante. A barba era densa, grisalha e encaracolada.
Os olhos estavam raiados de sangue e o hálito tresandava fortemente a cerveja de sorgo. Equilibrava no regaço um grande pote de barro dessa mistela caseira.
Aos pés do rei estavam sentadas duas raparigas em idade núbil e de seios nus. Os guarda-costas estavam perfilados de ambos os lados do trono. Eram seis, de uniformes
variados, que iam desde calças de ganga coçada a tangas de pele de cabra. Todos estavam descalços. Um deles era um rapaz com pouco mais de treze anos. A espingarda
automática russa à qual se apoiava dava-lhe pela altura do ombro.
- Meu Deus! - exclamou Carl baixinho. - Aquele ali não passa de uma criança ainda.
- Provavelmente já matou mais pessoas do que as moscas que tu já mataste - advertiu-o Johnny Congo. Depois, ainda em inglês, disse a Sam Ngewenyama, postado a seu
lado: - Dá as saudações do costume ao velho cabrão e diz-lhe que a sua fama é tal que chega a lugares tão distantes como a América. Que os homens sussurram o seu
nome com pavor e um profundo respeito.
Sam repetiu a saudação em suaíli e o rei Justin anuiu com a cabeça. A sua expressão carrancuda iluminou-se visivelmente quando falou em inhutu ao seu camareiro-mor.
- Diz-lhes que estou muito contente por receber estas pessoas em Kazundu. Disseram-me que ele é um homem rico e que tem muitos milhares de vacas. Estas duas raparigas...
- espicaçou-as com os dedos dos pés descalços - serão as mulheres dele durante o tempo que permanecer aqui como meu convidado.
O camareiro-mor fez uma profunda genuflexão perante o rei, depois virou-se para os visitantes e repetiu em suaíli tudo o que lhe tinha sido dito. Sam Ngewenyama
traduziu de seguida para inglês.
Carl sorriu a Johnny. - A miúda da esquerda tem uma dose galopante de sífilis e a da direita está infetada com sida. Escolhe a que quiseres, meu querido.
A conversa fútil e entediante com Sua Majestade alongou-se enquanto Johnny relanceava de vez em quando os olhos pelo relógio de pulso.
- O Dakota está atrasado quatro minutos - grunhiu em voz baixa a Carl. - Só espero que o piloto não se tenha perdido no caminho. - Depois, de repente, animou-se.
- Aí vem ele!
Carl inclinou a cabeça e captou a vibração abafada de uma aeronave de vários motores. Não passava ainda de um mero tremor no ar, mas aumentou rapidamente de intensidade.
Johnny afastou-se do grupo reunido à frente do trono e, com umas quantas passadas largas, chegou às portas abertas que davam para as muralhas e as ameias do castelo.
Saiu para o ar livre e olhou para o céu a sul.
A aeronave enorme e pesada começou a inclinar-se de forma acentuada para efetuar a largada ao comprido da pista de aterragem abandonada. Encontrava-se a uma altitude
inferior a duzentos metros quando a primeira forma humana saltou e mergulhou em queda livre durante alguns segundos antes de o paraquedas se abrir, travando-lhe
abruptamente a descida rápida. Seguiram-se a intervalos curtos, os outros homens do seu grupo, que saltaram através das portas abertas de cada lado da fuselagem.
De repente o céu ficou cheio de pontos de seda branca, como um campo de margaridas no início da primavera.
Johnny virou-se e correu para a sala do trono, gritando de forma histérica em inhutu. - Corram! Corram! O inimigo está aqui. Vai-nos matar a todos. - Nem o rei nem
nenhum dos seus súbditos questionaram a repentina fluência de Johnny na sua língua.
As raparigas levantaram-se de um salto e correram para a porta do harém, chorando aterrorizadas. O rei Justin ergueu-se na sua enorme corpulência e arengou algo
aos seus guardas, apontando para a porta de acesso às ameias enquanto a saliva lhe voava da boca e tombava como gotículas de orvalho sobre a barba branca. Os seus
homens correram para a porta, levantando as espingardas e carregando-as num estrépito de culatras. Todos eles estavam de costas viradas para Johnny e Sam.
Johnny falou baixinho a Sam pelo canto da boca. - Muito bem. Sam. Toca a bailar.
Carl Bannock lançou-se ao chão, com as mãos entrelaçadas por cima da cabeça para se proteger e uma das faces comprimida contra os azulejos imundos. Já começara a
gemer de medo.
Johnny e Sam sacaram das suas armas. Ambos empunhavam pistolas-metralhadoras CV-75 de 9mm que tinham escondido nas pastas. Já haviam inserido nas armas os carregadores
longos de trinta balas. Os canos grossos só disparavam com precisão a uma distância máxima de vinte e cinco metros, mas bastava-lhes apenas metade desse raio de
alcance. Tinham regulado os seletores de fogo para disparos individuais em vez de rajadas automáticas. Começaram a disparar.
Johnny abateu primeiro o seu tio, atingindo-o deliberadamente duas vezes na base da coluna vertebral. O velho caiu de joelhos e oscilou, tentando manter o equilíbrio,
até tombar para a frente de cara contra o chão. Depois, Johnny virou-se calmamente para o rapaz soldado. Era tão perigoso como qualquer um dos homens mais velhos.
Atingiu-o na cabeça e viu-o cair enquanto a espingarda embatia com estridor nos azulejos ao lado do seu corpo prostrado.
Entretanto, Sam também já tinha abatido dois dos seus alvos, e os restantes milicianos começaram a virar-se para eles com expressões atónitas plasmadas nos rostos.
Johnny e Sam voltaram a disparar em simultâneo e tombaram mais dois. Um dos milicianos sobreviventes disparou uma rajada breve que atingiu o camareiro real e o fez
tombar para trás.
Johnny e Sam apontaram-lhe as armas ao mesmo tempo. Sam acertou-lhe no ombro direito, mas a bala de Johnny enfiou-se-lhe na boca aberta enquanto gritava em desafio.
Os dois incisivos inferiores foram arrancados das gengivas e a bala prosseguiu a sua trajetória até lhe trespassar a parte posterior do crânio. Caiu para trás. Atrás
dele, o último homem ainda de pé largara a arma e corria para a porta de acesso às muralhas. Sam falhou o tiro, mas Johnny atingiu-o logo acima do joelho esquerdo,
despedaçando-lhe o fémur. O homem estatelou-se e rastejou através da porta aberta, arrastando a perna ferida atrás de si num rasto brilhante de sangue sobre as lajes.
Johnny ergueu a arma para o eliminar, mas Sam impediu-o.
- É meu. Conheço-o. Devo-lhe um favor. Johnny baixou a arma e apontou-a para o chão. - Está bem, Sam. É todo teu - acedeu prontamente.
Sam saiu para as muralhas enquanto trocava o carregador da CV-75. Parou à frente do miliciano ferido e disse em suaíli, em voz baixa, mas ameaçadora: - Olha para
mim, camarada. Estás-me a reconhecer?
O homem olhou-o no rosto, com os olhos inundados de lágrimas causadas pelo choque e pelo terror. Sam continuou: - Sou aquele em quem bateste na boca com a espingarda.
Tinha-te prometido que ia voltar, e cá estou eu.
Uma centelha de reconhecimento assomou-lhe aos olhos e leu no rosto de Sam a promessa da sua morte.
- Muito bem! - disse Sam. - Já estou a ver que te lembras. - Sam contornou-o num círculo lento. Disparou-lhe um único tiro contra a parte de trás do joelho ileso,
quebrando-lhe os ossos. e depois baleou-o mais duas vezes, no fundo das costas, só para ter a certeza de que a coluna vertebral ficava esmagada. Eram dois ferimentos
fatais, mas seria uma morte lenta.
Na sala do trono, Johnny aproximou-se do canto para onde Carl rastejara e jazia de rosto coberto com os braços cruzados. Continuava a gemer. Johnny tocou-lhe com
a bota.
- Já está tudo bem, Carl lindinho. O papá escorraçou o bicho-papão daqui pra fora. Já podes sair de debaixo dos cobertores para me veres dizer adeus ao meu tio Justin.
Carl baixou os braços e olhou cautelosamente à sua volta. Quando viu que toda a oposição tinha sido abatida, sorriu, aliviado e levantou-se. - Não queria estorvar-vos.
Não estava com medo a sério que não - protestou.
- Claro que não. És um pequeno herói valente. Só não gostas de ruídos muito altos - explicou Johnny, como se estivesse a dar-lhe uma justificação para o seu comportamento.
Carl seguiu-o até ao local onde jazia o rei Justin. Especado sobre o corpo esparramado do tio, Johnny recarregou a pistola com um novo carregador.
- Ainda respira - exclamou numa voz jovial. Deu uma palmadinha no ombro de Carl. - Já alguma vez mataste um homem. Carl lindinho?
Carl abanou a cabeça, com uma expressão pensativa. - Nunca tive oportunidade. Há sempre alguém para o fazer por mim.
- Bem, agora já vais ter oportunidade. Podes acabar com o tio Justin. Gostavas de o fazer, lindinho? O rosto de Carl iluminou-se. - Raios, claro que sim! - exclamou
- Obrigado, Negrão, sempre quis experimentar para ver como
Johnny entregou-lhe a pistola-metralhadora e Carl segurou-a de modo desajeitado.
- E agora o que faço com isto? - Aponta-a ao velho cabrão e aperta o gatilho. Carl apontou para o corpo do rei, virou a cabeça e fechou os olhos. Premiu o gatilho
até ficar com o indicador pálido devido à pressão que estava a exercer. Depois abriu os olhos e virou-se para Johnny.
- Não dispara - disse num tom queixoso.
- Não apontes isso a mim. - Johnny afastou delicadamente o cano da arma para o lado. - Primeiro, tens de destravar o fecho de segurança. Tenta agora outra vez. Mas
desta vez tenta manter os olhos abertos.
Carl voltou a apontar a arma, preparou-se e premiu o gatilho. O carregador esvaziou-se num crepitar de seda a rasgar-se e as balas despedaçaram as costas do velho
como uma motosserra. Depois a arma silenciou-se.
- Voltou a parar de disparar, Johnny - queixou-se Carl. - Mas isso é porque já usaste todas as balas. - Ele já está morto? - Já devia estar. Quase cortaste o velho
cabrão ao meio. Mas gostaste, Carl lindinho?
- Raios, sim! Foi mesmo fixe. Obrigado, Johnny. - Dispõe sempre, Carl lindinho. Dispõe sempre. Saíram com descontração para as muralhas para observar os últimos
paraquedistas zimbabuenses que aterravam na pista no sopé da colina e começavam imediatamente a ocupar a zona. Ouviu-se o ruído de disparos intermitentes. O Dakota
circundou a colina a baixa altitude e Johnny ligou ao piloto pelo telefone de satélite.
- Bom trabalho, Canja de Galinha! Quando regressares já teremos a pista em condições de ser usada. Vamos-te assinalar a pista com a seda dos paraquedas.
O Dakota inclinou-se e afastou-se em direção a sul. Johnny virou-se para Sam.
- Vai lá abaixo assumir o comando dos teus homens. Junta o maior número possível de habitantes locais antes que desapareçam no meio do mato. Põe-nos a limpar a pista.
Nada de festejar até o resto das tropas terem aterrado e assumido o controlo total do país.
Quando o Dakota voltou ao final dessa tarde, Sam e os seus soldados zimbabuenses já tinham limpado uma secção da pista. A aeronave aterrou e desembarcou mais sessenta
homens e rações para os dez dias seguintes. Ainda havia claridade suficiente para que o Dakota descolasse e regressasse a Harare para efetuar a carga seguinte.
Ao longo dos quatro dias seguintes, transportaram de Kariba o resto das tropas zimbabuenses e rações para os manter alimentados durante os meses seguintes. Depois,
a lancha a motor entregou uma pesada carga de sacas de farinha de milho provenientes do depósito em Kigoma, do outro lado do lago.
Ao primeiro som de disparos, toda a população civil de Kazundu tinha desaparecido como fumo num dia ventoso.
Essa situação não preocupou Carl nem Johnny. Com o lago à sua frente e a selva atrás, poucas opções restavam àqueles pobres desgraçados. Sabiam o que os esperava
do outro lado da fronteira com o Congo. Seriam capturados e forçados a trabalhar nos túneis traiçoeiros das minas até morrerem de fome, ou se afogarem ou sufocaram
num dos inevitáveis deslizamentos de terras ou aluimentos.
Quando os preparativos iniciais foram concluídos, Johnny voou no Dakota a baixa altitude sobre a margem do lago e sobre a floresta por trás do porto. A aeronave
possuía um sistema de altifalantes Sky Shout de setecentos watts instalado sob a fuselagem. O rei John Kikuu Tembo usou-a para se dirigir aos seus súbditos em inhutu.
A sua voz atroou e ecoou nas colinas.
- O rei Justin morreu! Sou o vosso novo rei. Sou o rei Johnny. Vão prestar-me toda a vossa lealdade e obediência. Em troca, vou cuidar de vocês e dar-vos comida.
Venham ao velho aeroporto abaixo do castelo. Nada receiem. Não vos vou fazer mal. O barco que veio do sul trouxe uma montanha de farinha de milho para vos alimentar
a todos e não voltarem a passar fome. O vosso novo rei Johnny adora-vos a todos. Não vos vai fazer mal. Vai dar-vos de comer. Vai dar-vos trabalho e pagar-vos muitos
xelins de prata.
Poucas horas depois, os primeiros dos novos súbditos de Johnny decididos a testar a veracidade das garantias reais saíram timidamente dos seus esconderijos. Só um
tolo se teria voluntariado para uma missão tão perigosa. Mas aqueles tinham sido incumbidos à força dessa tarefa. Eram três meninas negras e escanzeladas, todas
elas com menos de dez anos, vestidas apenas com tangas esfarrapadas. Seguiam de mãos dadas e choravam aterrorizadas.
Quando viram Johnny Congo à sua espera na pista, deram meia-volta e fugiram aos gritos para a selva. Pouco depois, voltaram, a ser empurradas pelos respetivos pais,
ainda agarradas umas às outras e a chorar. Sua Majestade afagou-lhes as cabecitas e deu a cada uma delas uma mão-cheia de rebuçados duros, uma tira de tecido de
algodão de padrões coloridos e uma boa dose de farinha de milho embrulhada numa folha de bananeira. As três apressaram-se a voltar para trás com os seus tesouros,
dos quais foram prontamente despojados pelos pais à espera.
Após outro curto intervalo, as três pequenas heroínas voltaram, trazendo consigo as suas mães e a maior parte dos seus parentes do sexo feminino. Os guerreiros da
tribo ainda continuavam a sondar o terreno. As mulheres receberam as suas rações e voltaram a correr para junto dos seus homens, ululando de alegria. Depois, foram
enviados os rapazes. Como esses também sobreviveram ao seu primeiro encontro com o novo rei John, os homens apareceram finalmente.
Pouco depois, a pista de aterragem encheu-se com uma multidão ruidosa que festejava a morte do velho rei e a ascensão do novo e magnânimo rei ao trono de marfim
de Kazundu.
Sam Ngewenyama e os seus homens circularam pelo meio deles, dividindo os homens e as mulheres em batalhões de trabalho. A primeira tarefa que os esperava era reparar
e prolongar a pista para poder acolher as pesadas aeronaves modernas de transporte de mercadorias. Depois, já poderiam concentrar-se na obra de expansão do pequeno
porto para a chegada dos materiais de construção e equipamentos pesados.
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A primeira aeronave a aterrar na pista renovada foi um Antonov An-124 Condor de 1985 que já tinha passado muitos milhares de horas ao serviço do exército russo antes
de ser vendido. Era um avião de carga de quatro motores a jato, um dos maiores em serviço, com uma enorme capacidade de carga. Carl Bannock era o seu sexto proprietário
registado. Tinha-o comprado a um negociante de excedentes militares na Bulgária. Os dois pilotos tinham-se reformado da força aérea russa por conta do limite de
idade. Ambos estavam desesperados por um emprego e Carl adquirira-os a um preço muito favorável juntamente com o Condor.
Providos dos novos motores que Carl ordenara que instalassem no Dubai, o Condor tinha autonomia suficiente para um voo sem escalas desde Kazundu a Hong Kong ou a
Teerão. A China era um dos maiores importadores mundiais desse minério de conflito que era o coltão, ao passo que o Irão precisava desesperadamente de tantalite
para prosseguir com o seu projeto nuclear. Carl e Johnny estavam agora em condições de prestar aos seus maiores clientes um serviço de entregas diretas às portas
das suas casas. A primeira carga que o Condor transportou para Kazundu compreendia o enorme gerador a diesel para fornecer energia elétrica ao castelo, à antena
de satélite e a toda a extensa panóplia de aparelhos de comunicação eletrónica de que Carl precisava para se manter em contacto instantâneo com os mercados financeiros
de todo o mundo. Nesse mesmo voo chegou uma equipa de sete especialistas altamente remunerados que iriam instalar e operar todo esse equipamento.
O Antonov também trouxera um médico a bordo. Tinha sido recrutado para trabalhar a tempo inteiro com o novo governo de Kazundu e deveria estar sempre à mão para
lidar com a leve hipocondria que afligia Carl.
Carl também comprara, ao mesmo negociante búlgaro que lhe fornecera o Condor, uma frota de dois barcos anfíbios que chegaram a pertencer à Marinha russa. Equipara-os
com motores novos e expedira-os a bordo de um cargueiro desde o porto búlgaro de Varna, no mar Negro, até Dar-es-Salaam, o porto principal da Tanzânia. O Condor
voou até à costa e transportou-os para Kazundu, um de cada vez. Tinham capacidade para atravessar o lago até Kigoma em pouco mais de duas horas e entregar cinquenta
toneladas de cimento ou outros materiais de construção no estaleiro a cada travessia.
Enquanto decorria todo esse trabalho pesado, Johnny Congo selecionou de entre os seus súbditos todos os ex-milicianos do seu falecido tio. Os homens escolhidos ficaram
espantados com a facilidade com que ele conseguiu identificá-los. Johnny granjeou assim a reputação de possuir poderes sobrenaturais, o que contribuiu em grande
parte para explicar o temor que inspirava aos seus súbditos. Nenhum deles se deu conta do simples facto de, sendo o segmento mais bem alimentado de toda a população
de Kazundu, as suas panças e nádegas se destacarem no meio dos outros.
Johnny entregou esses recrutas a Sam Ngewenyama para serem treinados como verdadeiros soldados e vigilantes da lei, capazes de obrigarem o resto dos seus irmãos
e irmãs tribais a trabalharem arduamente. Rachar cabeças e assestar pontapés depressa se tornou a sua ocupação preferida e trabalhavam com grande entusiasmo ao serviço
do rei John e do seu primeiro-ministro branco, Sua Excelência Carl Peter Bannock.
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Assim que a infraestrutura do novo governo de Kazundu foi instalada e começou a funcionar na perfeição, Johnny constituiu o seu novo grupo de guarda-costas de trinta
homens fortemente armados. Enviou emissários para anunciar aos senhores da guerra congoleses a sua chegada iminente à República Democrática do Congo e depois atravessou
a fronteira, acompanhado de Sam Ngewenyama e dos seus guardas pessoais. Carl decidiu não se juntar à expedição, recorrendo ao argumento de não ser a pessoa indicada
para a missão devido ao seu desconhecimento de qualquer uma das línguas locais, e frisando ainda a importância de se manter em contacto constante com os movimentos
dos mercados financeiros globais. Dessa vez, Johnny não tentou rejeitar tais desculpas e despediu-se dele com um demorado beijo na boca.
A viagem de Johnny pelas províncias orientais do Congo foi um triunfo. Cada província era governada por um senhor da guerra local e respetivo exército privado. Ouviram,
com uma alegria mal disfarçada, enquanto Johnny explicava que pagaria em sólidos dólares americanos por cada onça de concentrados de coltão, por cada grama de ouro,
por cada quilate de diamantes e por cada quintal de cassiterite ou volframite que lhe fossem entregues na fronteira de Kazundu, onde tinha o seu próprio contrastador
acreditado à espera para testar a pureza dos minérios e dos minerais.
Como Johnny sublinhou aos senhores da guerra, não havia nenhum risco para eles. Não perderiam as suas mercadorias de vista sem terem o dinheiro nas mãos.
Foi apenas algumas semanas depois de Johnny ter voltado dessa viagem que longas colunas de carregadores começaram a chegar à fronteira. Foram reunidos e urgidos
a seguirem marcha por via dos gritos, pontapés e chicotadas dos homens armados que os acompanhavam. Estes carregadores eram sobretudo mulheres, que caminhavam vacilantes
sob o peso de sacos de minerais em bruto que equilibravam em cima das cabeças. Os homens e as crianças eram mais úteis nos trabalhos subterrâneos nas minas primitivas.
O peso da carga de cada carregadora era cuidadosamente calculado de modo a igualar a sua força e resistência individuais. Quando alguma delas caía, era obrigada
a levantar-se à força de chicotadas e a prosseguir. Quando, por fim, alguma delas já não conseguia levantar-se, a sua carga era distribuída entre as outras mulheres
na coluna, as quais já se encontravam quase no limite da resistência. As mulheres já sem forças eram mortas a tiro e os seus corpos ficavam abandonados na berma
do trilho, como um exemplo e um aviso para aquelas que vinham atrás.
A estrada para Kazundu através das colinas arborizadas depressa se tornou claramente demarcada, não só devido à passagem de milhares de pés, mas também pelo fedor
dos cadáveres em decomposição alinhados ao longo das bermas.
Pouco tardou para que o primeiro carregamento de minério de coltão estivesse pronto para ser transportado pelo Condor para Hong Kong. No voo de regresso, os pilotos
da aeronave receberam ordens para fazerem escala na Tailândia para se reabastecerem de combustível e receberem a bordo uma série de jovens prostitutas e prostitutos
tailandeses. Tanto Johnny como Carl achavam os rostos e os corpos franzinos dos tailandeses muito agradáveis. Ficaram especialmente encantados com os travestis,
pois satisfaziam na perfeição a sua inclinação por ambos os sexos.
Johnny e Carl tinham evitado de forma consistente o contacto físico com os habitantes locais de Kazundu, os quais, em contraste com os prostitutos e as prostitutas
tailandeses minuciosamente examinados, mais pareciam esqueletos ambulantes, infetados com todos os tipos de doenças venéreas.
Após os dois primeiros anos do reinado do rei John, quando os lucros decorrentes do comércio dos minerais de conflito e do génio financeiro de Carl foram relutantemente
quadruplicados pelos mandatários do Fundo Fiduciário da Família Henry Bannock, Carl e Johnny dedicaram a sua energia e vastas fortunas combinadas a renovar o castelo
no topo da colina, transformando-o de ruína pestilenta numa brilhante jóia incrustada na esplêndida paisagem composta pelo lago, pelas montanhas e pela selva verdejante.
Ao longo dos quatro anos seguintes, trouxeram arquitetos. paisagistas, engenheiros hidráulicos, mestres de obras e outros profissionais qualificados para os ajudar
a realizar a sua visão. Compraram materiais de construção de alta qualidade que eram transportados de barco do outro lado do lago. Colecionaram artefactos raros
e belos, vários tipos de madeiras exóticas, pinturas, sedas e cerâmicas e outras obras de arte e ornamentos de todo o mundo. Bombearam a água do lago para irrigar
os seus jardins suspensos no topo da colina; fizeram-na fluir através de cavernas e poços subterrâneos para tombar depois sob a forma de cascatas e quedas-d'água
concebidas com grande arte, regressando depois ao poderoso lago deslumbrante onde tivera origem.
Para os ajudar na realização desta obra-prima, Carl Bannock escolheu o reputado e premiado arquiteto americano Andrew Moorcroft. da Moorcroft & Haye, a mesma firma
que tinha concebido a mansão em Forest Drive que Henry Bannock construíra para a sua família
Carl sentiu um prazer malvado pelo facto de empregar o mesmo homem inicialmente escolhido por Henry Bannock, seu pai adotivo e benfeitor que ele próprio destruíra
e cuja família dizimara.
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Carl tivera a precaução de gravar em DVD várias cópias do documentário que tinha encomendado a Amaranthus, o realizador mexicano de filmes pornográficos. Carl e
Johnny nunca se cansavam de o ver. De tantas em tantas semanas, passavam um serão inteiro a verem, fascinados, o vídeo repetidas vezes. Riam-se sempre, deleitados,
perante os esforços finais de Bryoni enquanto defrontava Hannibal, o enorme porco preto, no meio da lama e da imundície da pocilga.
Depois, no final, imitavam em uníssono o grito de morte em que ela chamava pelo pai, o grito que acabara por matar Henry Bannock: "Papá!"
Foi Johnny quem teve a grande ideia. - Porque é que não construímos o nosso próprio recinto de morte?
Carl acolheu de imediato a sugestão com entusiasmo. - És um génio, Negrão. É uma ideia brilhante. Podíamos ter o nosso próprio espetáculo ao vivo quando quiséssemos.
- E também seria ótimo para a disciplina aqui. Quando alguém nos irritasse, podíamos dá-lo de comer aos porcos e obrigar os outros a verem - explicou Johnny, expandindo
a sua proposta. Carl soltou risadinhas como uma adolescente excitada e acalentou ainda mais aquela ideia. - Podíamos construir um anfiteatro como o Coliseu de Roma.
Tu sabes, o lugar onde os antigos Imperadores romanos obrigavam os gladiadores a lutar uns contra os outros até à morte, e onde davam de comer mulheres bonitas aos
leões, e coisas desse género.
- Nunca tinha ouvido falar desses tais imperadores antes, mas estou a gostar do que me estás a contar sobre eles. Devem ser mesmo uns tipos marados. Devíamos ir
lá vê-los um dia destes.
- Pois, mas chegámos cerca de dois mil anos atrasados para podermos fazer - disse-lhe Carl. - Mas somos tão bons como qualquer latino com uma coroa de folhas na
cabeça. Como alguém disse, podemos ter o que quisermos porque somos super-ricos e superfixes.
- Achas os porcos assim tão superfixes, lindinho? - troçou Johnny. - De certeza que conseguimos arranjar melhor do que um bando de porcos. Que tal alguns leões,
pá? Estamos em África, porra! Os leões são bem mais fixes que os porcos, podes crer.
Carl ponderou na sugestão por um momento, com uma expressão séria. - Não gosto de leões. - Abanou a cabeça. - São perigosos, pá.
- O que há de perigoso num bando de leões enfiados numa jaula? - perguntou Johnny. - Correm mais rápido do que os porcos, se conseguirem escapar da jaula. E se um
deles conseguisse sair da jaula? O que é que acontecia, pá? Não era eu que ia querer estar lá quando isso acontecesse.
- Pronto, já percebi - disse Johnny, pondo-se a refletir em voz alta. - Feras que correm devagar mas comem pessoas.
- Os crocodilos são rápidos a correr, Johnny? Fazes ideia? - Já vi fotografias de crocodilos, pá. Têm patas curtas. Não me parece que consigam correr tão rápido
como os leões.
- E onde é que íamos arranjar um par de enormes crocodilos devoradores de homens, Johnny?
- Se virares a cabeça muito, muito lentamente e olhares atrás de ti, pá, vais ver a porra do maior lago do mundo.
Carl assim fez e girou na cadeira. Estavam sentados nas ameias do castelo e a vista sobre a água era imponente. Ainda assim, Carl corrigiu-o com uma voz afetada.
- Não é o maior. É apenas o segundo maior lago do mundo.
- A mim parece-me o maior - replicou Johnny, não fazendo caso da correção. - Aposto que existem ali crocodilos mesmo monstruosos, lindinho.
- Vou já descobrir na Internet. - Carl levantou-se e entrou na sala do trono, a qual tinha convertido no seu centro de comunicações. Alguns minutos depois, voltou
para a muralha com uma expressão presunçosa plasmada na cara. - Dá-me aí outra cerveja Tusker, Negrão - disse enquanto se sentava virado para Johnny. - E serve-te
também de uma. Mereceste-a. Tinhas razão quanto às duas coisas. Os crocodilos não conseguem correr tão rápido como um homem e, seja como for, também nunca se iam
pôr a correr atrás de ti. São assassinos furtivos e não caçadores. Simplesmente, nunca os vês aproximarem-se, sobretudo se estiveres perto da água. É o primeiro
ponto a teu favor. - Carl deu um sorvo na lata de cerveja e arrotou. - O segundo ponto a teu favor é que o lago Tanganica e os seus afluentes... - indicou o lago
interior com um amplo movimento do braço - ... são a pátria indiscutível do Crocodylus Niloticus.
- Que treta é essa? - É o crocodilo do Nilo, meu Johnny. Naquele lago existe um que dizem que tem quase sete metros de comprimento. Chamam-lhe Gustave. Dizem que
até conseguia engolir um cabrão enorme como tu sem precisar de mastigar.
- Sempre gostava de ver um desses cabrões escamudos tentar meter-se comigo - disse Johnny num tom beligerante, lançando depois a cabeça para trás e soltando um berro
enorme. - Sam! Samuel! Mexe-me esse cu de preto preguiçoso e anda aqui.
Sam surgiu no terraço em passo descontraído, indiferente à convocação insultuosa do rei Johnny. Johnny só tinha começado a referir-se a ele numa linguagem muito
grosseira depois de se terem tornado verdadeiros e leais companheiros de armas. Sam assinara contrato como vice-comandante de Johnny após a captura de Kazundu, quando
todos os outros soldados zimbabuenses foram repatriados. Johnny tinha-o promovido imediatamente ao posto de coronel. O salário era várias vezes superior à remuneração
que recebia no exército zimbabuense. Para além de outros benefícios e privilégios extra, era-lhe concedida a regalia de ser o terceiro a usufruir das raparigas ou
travestis orientais logo a seguir a Carl Johnny. Samuel Ngewenyama era um homem feliz. - Olá, senhor Rei. Chamou-me? - Sabes bem que sim, seu cabrão preto. - Johnny
passou-lhe para a mão uma lata de cerveja Tusker. - Precisamos de alguns crocodilos, Sam.
- Quantos, chefe? - Não sei bem. Digamos dois, para começar, mas trata de verificar se são mesmo cabrões enormes, e certifica-te de que estão vivos e esfomeados.
- Vou mandar espalhar palavra, mas pode demorar algum tempo. Aqui por estas bandas não há muita gente disposta a meter-se com crocodilos.
- Não há pressas, Sam. Ainda precisamos de construir um recinto para os enjaular.
Durante os meses seguintes, investiram muito tempo e energia a planear e a construir a arena dos crocodilos. Os grupos de trabalho forçado escavaram o fosso circular
a meio da encosta recém-batizada Colina do Castelo. O recinto não precisava de espaçoso, mas Carl insistiu que deveria ser suficientemente fundo para impedir que
qualquer uma das feras aprisionadas escapasse e o desafiasse para uma prova de velocidade.
Os muros da arena foram construídos com uma inclinação interior, para os tornar impossíveis de escalar, e revestidos com blocos de pedra. Uma das quedas-d'água artificiais
foi desviada para que a torrente caísse sobre o grande tanque que ocupava quase metade da área total da arena. O restante terreno estava coberto com grossas camadas
de areia castanho-dourada trazida da margem do lago, Esta praia artificial proporcionaria aos répteis de sangue frio uma zona onde poderiam banhar-se ao sol, bem
como uma bacia para poderem espolinhar-se e voltarem a refrescar-se. No parapeito de pedra que circundava o topo do fosso havia lugares sentados para cem espectadores
e uma tribuna régia especial para o rei Johnny e O' seu primeiro-ministro, de onde tinham uma visão desimpedida de tudo o que acontecia no fundo do anfiteatro. Havia
também uma plataforma para as câmaras poderem filmar toda a ação.
Havia um túnel subterrâneo que permitia aceder ao fundo da arena através de um robusto portão de ferro à prova de crocodilos. No lintel de pedra por cima do portão
estava esculpida uma severa advertência: ABANDONAI TODA A ESPERANÇA, VÓS QUE AQUI ENTRAIS.
Quando Johnny a leu pela primeira vez, perguntou: - "Vós"? Quem raios é "vós"? - Todos aqueles que atravessarem o portão - explicou Carl pacientemente. - Foste tu
que inventaste aquela treta? - Que pergunta mais tola, Negrão! Claro que fui eu - garantiu-lhe Carl.
Johnny abanou a cabeça com admiração. - És bastante esperto para um rapaz branco. Sabias, Carl lindinho?
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Ouviram os tambores e os ululos na área do porto, mesmo àquela altura nas ameias do castelo.
- É melhor irmos lá abaixo ver que diabo está a acontecer! - sugeriu Johnny. Enfiaram-se no novíssimo Range Rover branco que Carl importara recentemente como presente
de aniversário para Johnny. Johnny sentou-se ao volante e lançaram-se pela colina abaixo em direção ao porto, estacionando depois no cais. A multidão tinha sido
obrigada a afastar-se à força de coronhadas dos guardas reais para abrir alas.
Carl e Johnny especaram-se na borda do cais de pedra e escudaram os olhos com as mãos para olharem ao longo do lago. Uma flotilha de canoas indígenas, escavadas
de troncos de árvores, descia do lado norte. Foi-lhes impossível contá-las àquela distância, mas Carl calculou que fossem pelo menos vinte embarcações de pequenas
dimensões, rodeadas e escoltadas por duas canoas de guerra bastante maiores. Os batedores de tambor estavam sentados a meio das canoas mas pequenas. Faziam ressoar
um ritmo triunfante e primordial. Os remadores, homens altos e magros, cujos corpos nus reluziam sob a luz do sol como antracite recém-lavada, seguiam de pé nas
popas e nas proas, enfiando os longos remos na água e movendo-os à mesma cadência dos batuques. Entoavam cânticos enquanto remavam.
As duas grandes canoas de guerra no centro da formação avançavam totalmente carregadas: cada uma dispunha apenas de alguns centímetros de borda livre acima da água.
Havia uma dúzia ou mais de remadores à parte. Ao aproximarem-se de través do porto, as embarcações viraram e dirigiram-se para a praia. A multidão em terra correu
pelo cais e saltou para a praia para ir ao encontro deles.
Johnny e Carl seguiram a turbamulta, com Sam e os seus homens a abrirem caminho para eles à força de vergastadas desferidas contra cabeças de carapinhas e ombros
pretos com pesadas varas de bambu que traziam sempre com eles para desimpedir o caminho.
Chegaram à borda da água no preciso momento em que a maior canoa de guerra apoiava a proa em terra. Os espectadores enfiaram-se na água até à cintura para ajudar
a empurrar as longas canoas para terra seca. Depois aglomeraram-se à volta delas, rindo e palrando entusiasmados e maravilhados ao verem a carga que transportavam.
Os guardas obrigaram todos a abrir alas para permitir que Carl e Johnny se aproximassem e pudessem ver as enormes feras que jaziam nos fundos das canoas. As suas
mandíbulas tinham sido fortemente amarradas com cordas de fibras de papiro entrançadas e os olhos haviam sido vendados com velhas sacas de milho para os manter serenos.
Johnny mediu a passo o comprimento do crocodilo maior, soltando depois um assobio de admiração. - Este cabrão mede cinco passos, o que quer dizer que tem quase cinco
metros. Como diabos é que eles conseguiram apanhá-lo?
- Construíram uma comprida armadilha de varas e puseram lá dentro uma cabra como isco - explicou Sam Ngewenyama. - Assim que lhe cobrem os olhos, o crocodilo adormece.
Foi necessário um grupo de vinte homens para arrastar o monstro imóvel pela rampa de carga de um dos veículos anfíbios russos, e só então puderam transportá-lo para
a arena dos crocodilos. Outro grupo de cinquenta homens baixou-o para o fosso com a ajuda de cordas.
O segundo crocodilo não teria mais de quatro metros. Era supostamente uma fêmea, mas a ausência de órgãos genitais externos não lhes permitiu ter a certeza. Colocaram-nos
juntos nas areias quentes ao lado do tanque, enquanto Carl e Johnny, inclinados sobre o parapeito que rodeava o topo da arena, gritavam instruções.
- Destapem-lhes agora os olhos! - ordenou Johnny em suaíli. Dois dos homens mais ousados avançaram obedientemente e os restantes dispersaram-se e fugiram, obstruindo
o túnel de saída na pressa de voltarem para um lugar seguro.
Os dois sáurios monstruosos emergiram lentamente do seu torpor. Depois ergueram-se nas patas grossas e avançaram para o tanque repleto de algas verdes, deslizando
pela borda para dentro da água tépida. E aí permaneceram submersos, apenas com os olhos e as narinas a aflorar à superfície.
Johnny gritou a Sam que pagasse o prémio aos caçadores dos crocodilos. Sam contou, um a um, os grossos maços de xelins tanzanianos e passou-os para as mãos do chefe
tribal que tinha comandado a operação de captura. Era dinheiro suficiente para comprarem uma grande manada de gado bovino. O chefe marchou feliz pela colina abaixo,
seguido pelos seus homens que entoavam cânticos e tocavam tambores em exultação.
Johnny e Carl ficaram sozinhos nos assentos de pedra da tribuna régia enquanto se vangloriavam dos seus novos animais de estimação.
- Temos que lhes dar nomes - disse com um ar pensativo. - Que sugeres?
Johnny franziu a testa em concentração e depois disse: - Que' tal Cabrão-mor e Cabrãozinho?
- Não é nada má ideia! Muito poético! - anuiu Carl, pensativo. - Mas gosto mais do nome Hannibal, como o porco do vídeo do "Papá".
Ambos se riram ao recordarem a cena do vídeo e Johnny assestou-lhe um soco carinhoso no braço. - Que nome fixe, Carl lindinho. Ainda bem que te lembraste desse nome.
Vamos chamar-lhe Hannibal ao cabrão maior e Aline ao cabrão mais pequeno.
- Aline? - Carl parecia perplexo. - Aline, pá, a mulher do Hannibal Kadafi. Era uma porreiraça Gostava de deitar água a ferver em cima das cabeças das criadas quando
a irritavam.
- Pensei que estávamos a falar de Aníbal, o filho de Amílcar
Barca, o flagelo de Roma, e não de Hannibal, o filho do Muamar Kadafi - replicou Carl, rindo-se. - Mas não ligues ao que eu digo, qualquer um pode cometer um erro
crasso. Assim seja: Aline, o crocodilo fêmea.
- Já me enamorei dela - confessou Johnny. - Vamos lá pôr esse teu amor à prova. Tens alguém em mente para jantar com a nossa Aline? Alguém te chateou ultimamente?
- perguntou Carl. - As pessoas estão sempre a chatear-te, não é verdade, Johnny, querido?
- Tens razão, lindinho. Não sei porquê, mas todos tentam sempre aproveitar-se de mim. Acho que é por eu ser demasiado simpático com todos estes imbecis.
- Escolhe um deles, qualquer um. - O Sam apanhou uma delas no armazém de grão ontem à noite, a roubar um balde de farinha de milho. A estúpida da vaca disse que
os moncosos dos filhos estavam a morrer à fome.
- Deveras imperdoável - concordou Carl. - Qualquer um de mente sã ficaria chateado com esse tipo de comportamento. Diz ao Sam para a trazer aqui acima.
A mulher estava tão paralisada de medo que não conseguia andar. Dois dos homens de Sam arrastaram-na pela colina acima para confrontar o rei John.
- Sabes o que está ali dentro daquele buraco? - Johnny apontou para o fosso. A mulher abanou a cabeça.
- Bem, vou-te enfiar lá dentro para descobrires por mim. - A mulher olhou-o fixamente, aturdida e sem compreender.
- A expressão dela é mesmo cómica. Achas que ela sabe o que vai acontecer? - perguntou Carl.
- Não - respondeu Johnny. - O Sam mandou acorrentá-la numa das masmorras do castelo quando foi apanhada a roubar. Ela ainda não viu os crocodilos. Que bela surpresa
vai ter. - Johnny virou-se para os homens que a sujeitavam e disse-lhes: - Tirem-lhe a roupa. Levem-na lá para baixo e enfiem-na no buraco.
Despojaram a mulher dos farrapos que lhe cobriam o corpo e arrastaram-na pela escadaria até ao portão gradeado. Enquanto Carl e Johnny se inclinavam sobre o parapeito
para observarem, os guardas abriram o portão e empurraram a mulher para dentro, trancando-o depois.
Ela começou a bater nas barras de ferro do portão com os punhos nus, até Os nós dos dedos lhe sangrarem. Depois olhou para os homens em cima e começou a gemer e
a implorar misericórdia.
- Chega-te aqui - disse-lhe Johnny em suaíli. - Chega-te aqui que eu tiro-te daí.
Ela afastou-se do portão e avançou em passo hesitante para junto do lugar onde ele se inclinava sobre o parapeito do muro de pedra enquanto a chamava. A mulher contornou
a borda do tanque sem olhar para a água.
De repente, a superfície de algas verdes do tanque explodiu com tal violência que os dois homens debruçados sobre o parapeito no alto ficaram molhados de salpicos.
Hannibal lançou-se para fora do tanque como um enorme torpedo cinzento.
Não abriu as mandíbulas para abocanhar a vítima; em vez disso, manteve-as firmemente fechadas para que os dentes salientes da mandíbula superior se sobrepusessem
ao lábio inferior num sorriso sardónico fixo. Lançou-se de cabeça contra ela. As escamas que lhe cobriam o crânio eram rijas como uma cota de malha. Atingiu a mulher
na caixa torácica, no momento em que ela erguia o braço para Johnny Congo. O golpe lançou-a contra o revestimento de pedra do muro do fosso. As costelas estalaram
como lenha a arder quando foram quebradas. Tombou na base do muro. Hannibal abriu as mandíbulas na sua máxima extensão enquanto se erguia sobre ela e depois abocanhou-lhe
o corpo com os dentes compridos e amarelos. As mandíbulas embateram uma na outra com o mesmo fragor de um portão gradeado a ser fechado com violência.
Hannibal levantou-lhe o corpo no alto, segurando-o transversalmente nas mandíbulas, de modo que apenas os pés e as pontas dos dedos das mãos da mulher arrastavam
pela areia enquanto a levava para o tanque.
Foi então que a água esverdeada explodiu uma segunda vez.
- Aí vem a bela Aline para se juntar à festa! - gritou Carl, muito excitado. A fêmea precipitou-se para fora do tanque, na direção de Hannibal, mas o enorme macho
não tentou evitá-la. Parou e virou a cabeça para ela, quase como se estivesse a oferecer-lhe o corpo nu que segurava entre as mandíbulas.
Depois, com um movimento da cabeça monstruosa, atirou a mulher ao ar e voltou a apanhá-la enquanto caía; mas agarrou-a apenas por um dos braços.
A mulher uivava com estridência quando Aline abriu as fauces e lhe cravou as mandíbulas nas pernas. Agora que os dois enormes répteis a tinham bem presa nas mandíbulas,
executaram uma manobra extraordinariamente bem ensaiada. Ambos se embrenharam numa dança mortífera. Hannibal girou o seu corpo enorme para a direita. A barriga amarelada
faiscou sob a luz do sol por um momento, até voltar a apoiar-se nas patas. Em simultâneo, Aline rodou sobre si mesma, para a esquerda. Nenhum deles largou a presa
enquanto giravam em direções opostas.
- Mas tu estás a ver aquilo? - gritou Johnny. - Mas que diabo estão a fazer?
- Não conseguem arrancar pedaços de carne com os dentes afiados. Têm de a despedaçar, fazendo-a rodar primeiro. - Carl tinha lido na Internet um pouco acerca do
comportamento dos crocodilos e estava ansioso por se gabar dos seus conhecimentos.
As duas enormes feras arrancaram-lhe os membros do tronco como se fossem as asas de um frango assado.
- Olha-me só para aquilo! Aqueles cabrões estão a fazer como tu disseste. - Johnny estava sinceramente impressionado com a erudição de Carl.
Enquanto o corpo da mulher era despedaçado e o sangue jorrava das artérias rasgadas, alguns salpicos atingiram Carl. Mas estava tão fascinado com o espetáculo que
pareceu não reparar nisso.
Os dois crocodilos recuaram, esmagando carne e ossos entre as mandíbulas e engolindo tudo de uma vez.
Depois, Hannibal voltou para junto dos restos do cadáver e abocanhou-os, arrastando-se depois para dentro do tanque. Aline seguiu-o para dentro da água e retomaram
o seu frenesim alimentar num espírito de cooperação. Dentro de água, conseguiam girar sobre si mesmos com menos esforço. Foi um desmembramento metódico e um festim
sem pressas.
Aline fez rodar as entranhas dos restos mortais da mulher. Depois foi a vez de Hannibal, que torceu a cabeça da mulher até lha arrancar dos ombros. Esmagou-lhe o
crânio entre as mandíbulas. fazendo-o rebentar como um melão maduro, e, num movimento convulsivo, engoliu-o de uma só vez.
Os dois homens no topo do muro observavam com absoluto fascínio. Enquanto Aline despedaçava o braço que ainda restava
e esmagava os ossos em lascas, a mão de palma rosada da vítima
baloiçou-lhe do canto da bocarra.
- Olha só para aquilo! - Johnny desatou às gargalhadas. - A tipa está a dizer-nos adeus!
- Igualzinho ao que a minha irmãzinha Bryoni fez. A mulher está a dizer adeus ao papá. - Carl pronunciou a última palavra com ênfase e ambos se abraçaram com grande
alegria. Johnnv afastou-se por fim, ainda a ofegar devido ao riso.
- Vou repeti-lo mais uma vez. Só um grande génio se teria lembrado de um espetáculo ao vivo com crocodilos. Foi uma das coisas mais incríveis que já vi. Temos que
fazer isto mais vezes.
- Não percas as tuas noites de sono a pensar nisso, Negro. Vou tratar de garantir que o Hannibal e a Aline tenham sempre tudo aquilo que conseguirem comer.
95
Uma semana depois da inauguração da arena dos crocodilos, e após o primeiro sacrifício humano, realizou-se a habitual e alegre reunião antes do jantar, na sala do
trono do castelo.
Samuel Ngewenyama estava a dançar com o jovem travesti tailandês que Carl e Johnny lhe tinham dispensado nesses últimos tempos. O rei Johnny estava a jogar strip
majongue com outro travesti e uma mulher de generosos dotes corporais por natureza e não por mérito de cirurgias. Johnny tinha definido as regras do jogo de majongue,
que diferiam imenso da versão original chinesa. Os dois adversários de Johnny tinham-lhe apanhado as suas idiossincrasias linguísticas e havia muita conversa e risinhos
ao som de "Congo do cagalho" e "flores do cagalho".
Carl e uma das outras visitas tailandesas, oportunamente chamada Am-Porn, estavam a ver o canal CNN na televisão por satélite. Carl, em particular, estava à espera
dos preços de fecho da Bolsa de Valores de Nova Iorque. Am-Porn estava sentada no regaço dele, vestida com uma modesta túnica cheongsam de gola alta, de seda, mas
tinha a saia justa enrolada ao nível do umbigo, expondo com abundante clareza que não se tratava de um rapaz travesti. Enquanto esperava pelos boletins noticiosos,
Carl explorava indolentemente os genitais expostos.
No ecrã do televisor, o pivô da CNN começou a ler as notícias. De repente, Carl levantou-se de um salto, deixando cair Am-Porn no tapete persa enquanto agarrava
no controlo remoto e o apontava para a televisão para aumentar o volume. A voz do pivô atroou na sala do trono.
- O macabro homicídio de Cayla Bannock faz lembrar o filme de terror Massacre no Texas, de 1974. A cabeça da rapariga decapitada foi enviada à mãe pelo assassino.
- Uma série de fotografias da encantadora e loira Cayla surgiram em rápida sucessão no ecrã. Numa delas, montava um garanhão árabe puro-sangue e noutra envergava
um vestido de noite para o baile de estudantes do liceu. - A mãe da rapariga é a senhora Hazel Bannock, viúva do magnata do petróleo, Henry Bannock. Sucedeu ao marido
como diretora executiva da Bannock Oil Corporation. Diz-se que a senhora Hazel Bannock é uma das dez mulheres mais ricas do mundo.
Johnny levantou-se de um salto da mesa de majongue e juntou-se a Carl à frente da televisão. Mudaram de um canal para outro e repararam que aquela notícia estava
a ser divulgada por todo o continente americano, embora os factos concretos fossem limitados e todas as estações televisivas estivessem a preencher o tempo de antena
com material de arquivo.
- Uma coisa é certa - disse Carl enquanto desligava a televisão. - E é a única coisa que é importante.
- Que coisa é essa, lindinho? - Que aquela cadela está morta. - Têm a cabeça dela como prova. - Johnny soltou uma gargalhada grosseira e lançou o braço enorme sobre
os ombros de Carl. - Parabéns, Carl lindinho. Agora só falta mais uma cadela e toda aquela doce alface verdinha será tua.
- Estás a falar da Hazel Bannock - anuiu Carl. - Acho que está na altura de voltares a ligar a esse teu amigo, o Aleutian Brown.
- Qual será a sensação de foder uma multimilionária? - ponderou Johnny.
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Hector leu até ao fim da última página de "A Semente Envenenada" no ecrã do computador. Depois recostou-se na poltrona e abanou a cabeça, como se para desanuviar
a mente. Foi um longo caminho de regresso desde os violentos e bizarros salões do Castelo de Kazundu até ao seu estúdio urbano e civilizado em The Cross Roads. Consultou
as horas no relógio de pulso e esboçou uma careta de incredulidade. Depois verificou as horas no ecrã do computador.
- Meu Deus! Lá se foi o dia... - Já passava das quatro da tarde. Pegou no telefone e marcou o número de Jo.
Ela atendeu-o ao segundo toque. - Até que enfim que se lembrou de que eu existo. Que simpático da sua parte, Hector Cross - disse ela. - Tenho estado aqui sentada
na beira da cadeira à espera que me ligasse.
- Perdoe-me, Jo. Sou um cabrão desnaturado. - Confio no seu discernimento superior sobre esse assunto. - Mas havia uma insinuação de riso no seu tom de voz. - Aconteceu
alguma coisa de interessante desde a última vez que estivemos juntos, há tanto tempo?
- Li um livro - disse ele. - O primeiro que leu na sua vida, de certeza. - Quem é que está a ser mazinha agora? Podemos fazer uma trégua?
- Está bem - assentiu ela. - Que achou do livro?
Fabuloso! Absolutamente fascinante. Tenho de estar consigo já, o mais cedo possível, para o discutir consigo. Onde está agora, Jo?
- Sentada aqui, sozinha e abandonada no átrio do Dorchester Hotel. O meu almoço de negócios terminou mais cedo do que eu previa. - E por que raios não apanhou um
táxi e veio para cá?
- Porque não sei qual é a morada. Estava com a cabeça ocupada a pensar noutras coisas quando me levou ontem para aí.
- Não saia daí. Vou buscá-la. Estarei aí dentro de dez minutos.
Jo já descia a escadaria da entrada do hotel em passo de dança
quando Hector estacionou o Bentley junto à berma. Envergava um fato de executivo de cor escura e um casaco de pele de vison. Hector apressou-se a sair para lhe abrir
a porta do passageiro, mas ela avançou diretamente para ele e ofereceu-lhe a face para um beijo.
A pele da face era sedosa e quente. Jo sentou-se no banco da frente
do Bentley, ficando com a saia subida bastante acima dos joelhos.
Reparou na direção do olhar dele e alisou a saia com uma expressão inescrutável.
Hector agarrou o volante e, enquanto arrancava para Park Lane.
disse: - Estaria a mentir se lhe dissesse que tive saudades suas. porque você tem estado comigo desde esta manhã cedo.
- Consegui prender-lhe a atenção, não foi?
- Meu Deus, Jo, você escreveu ali coisas muito terríveis. Grande parte daquilo é mais do que suficiente para dar a volta mesmo ao estômago mais forte.
- Foi por essa razão que não tive coragem para lhe contar eu mesma. Já foi bastante difícil escrever aquilo tudo, quanto mais contar-lhe em pessoa.
- Ainda assim, tenho algumas perguntas a fazer - disse ele.
Jo virou-se para ele. - Ficaria muito preocupada se não as tivesse.
- Quando digo algumas perguntas, refiro-me a uma data delas.
- Não faço intenção de ir a nenhum lado tão cedo. Sou toda sua até já não precisar mais de mim.
- Pode demorar muito mais tempo do que imagina.
Os olhos de Jo suavizaram-se e sorriu. - Precisa de estar sempre a ver um duplo sentido em tudo o que digo? Faça lá as suas perguntas, meu senhor, e tente ser sério.
- Primeira pergunta: aquilo que escreveu é a verdade? - Sim. É absolutamente verdade. - Mas como conseguiu reunir tantos pormenores? - Tanto o Henry Bannock como
a sua filha Bryoni eram diaristas ávidos. Suponho que a Bryoni aprendeu esse hábito com o pai. Tenho acesso a todos os seus diários. São descrições detalhadas das
suas vidas. Sei tudo e escrevi isso tudo para você ler.
- Mas como é que conseguiu ter acesso aos diários? - Quando o Henry e a Bryoni morreram, a sua esposa Hazel passou em revista todos os pertences deles. Selecionou
tudo aquilo que era material valioso e muito sensível, nomeadamente os diários, e pediu ao Ronnie Bunter que os guardasse em segurança nos arquivos da firma Bunter
& Theobald. Eu e o Ronnie examinámos depois esse material. Ler aquilo foi como estar a falar diretamente com os mortos. Foi uma experiência muito comovente. - Hector
abanou a cabeça, surpreendido, e Jo continuou a falar: - Claro que esses diários não foram a minha única fonte de informação. Também tinha à minha disposição todos
os registos acumulados pelo Fundo Fiduciário, todas as cartas e mensagens eletrónicas do Henry, já para não falar de toda a correspondência trocada com os beneficiários.
- O Carl Bannock? Chegou a encontrar-se pessoalmente com ele enquanto escrevia "A Semente Envenenada"?
- Sim. Tive esse dúbio prazer. Hector riu-se. - Portanto, estava bem por dentro do assunto quando teve de o descrever.
- Também tenho um montão de fotografias dele desde os tempos da escola primária até ao tempo presente. Sei qual é o montante exato de cada pagamento que recebeu
do Fundo Fiduciário. Tenho cópias de toda a sua correspondência e registos de todas as suas reuniões com os mandatários, bem como as atas do processo do seu julgamento;
tudo isso e muitas mais coisas.
- E quanto ao Johnny Congo?
- Ele é mesmo assim na vida real, tal como o descrevi. Tenho um dossiê sobre a sua carreira militar, as atas do seu julgamento e o cadastro das suas condenações
por homicídios múltiplos. A maior parte dessa informação encontra-se naquelas pens que lhe dei ontem.
Um Maserati escarlate com matrícula saudita mudou abruptamente de faixa à frente deles, obrigando Hector a travar a fundo.
- Se quer a minha sugestão, Hector, deveria concentrar-se no trânsito até chegarmos a sua casa.
- Um excelente conselho - concordou ele. Hector estacionou no seu lugar exclusivo à frente da entrada de The Cross Roads e abriu a porta com sua própria chave antes
de Stephen surgir da cave.
- Vamos estar no estúdio durante bastante tempo - disse ele ao mordomo. - Não devemos ser interrompidos. Nem mesmo por telefonemas, por favor.
Assim que Hector a conduziu para dentro do estúdio, os olhos de Jo fixaram-se na parede virada para a escrivaninha. Aproximou-se para ver de perto. Hector embateu
nela por trás e colocou as mãos nos quadris dela para a equilibrar.
- O que foi, Jo? - Você mudou o quadro - disse ela em voz baixa. O retrato estival de Hazel no campo de trigo já tinha desaparecido. Em seu lugar. havia agora uma
colorida paisagem rural britânica de David Hocknev.
- Não gosta? Ao contrário do Gauguin que viu no piso de baixo, este é mesmo um original.
- A Hazel desapareceu? - Sim, a Hazel desapareceu. Mas tive de enfrentar uma forte resistência por parte do Stephen. Ele não queria tirá-lo dali.
- Porquê? - perguntou ela. - Porque é que você trocou o quadro?
- Deixe-me tirar-lhe o casaco. - Tirou-lhe o casaco de vison dos ombros e conduziu-a para uma poltrona. - Ponha-se à vontade enquanto preparo um café. Depois já
lhe explico por que razão fiz isso.
Colocou a chávena de café à frente dela, mas Jo não lhe tocou. Hector sentou-se virado para ela. Levou a sua chávena aos lábios,, mas reconsiderou a meio desse gesto
e pousou-a no pires sem sorver. Entrelaçou os dedos e recostou-se na poltrona giratória, de polegares encostados ao queixo.
- A Hazel deixou-me uma carta póstuma - disse ele, e Jo anuiu sem desviar os olhos dos dele. - Era uma longa carta, mas o último parágrafo foi o mais tocante. -
A sua voz alquebrou-se um pouco e tossicou para desimpedir a garganta antes de prosseguir. - Recordo-me de cada palavra e até as sei de cor. E quero contá-las a
si, porque nos afeta diretamente aos dois. Posso recitar-lhas, Jo?
Ela anuiu com a cabeça. - Se sente que deve fazer isso - assentiu ela.
- Foi isto o que a Hazel escreveu: "Não lamentes a minha partida por demasiado tempo. Recorda-me com alegria, mas arranja outra companheira. Um homem como tu nunca
teve como destino viver como um monge. No entanto, deves certificar-te de que ela é uma boa mulher, senão voltarei para a assombrar."
Jo não disse nada, mas continuou a olhá-lo nos olhos. Depois, a expressão suavizou-se e começou a chorar em silêncio. - Meu pobre Hector - murmurou. Sem nunca baixar
o olhar, abriu a mala de mão pousada no regaço e tirou um lenço de papel para enxugar os olhos.
- Por favor, não tenhas pena de mim, Jo - disse ele. - Já o fiz o suficiente por minha conta. Atravessei o vale das sombras e agora torno a sair para a luz do sol,
de volta à terra do riso e do amor. Tenho a Catherine Cayla e agora encontrei...
Ela ergueu a mão para o impedir de continuar. - Por favor, Hector. Preciso de alguns minutos sozinha. Fico um desastre quando choro. Por favor, preciso de ir à casa
de banho retocar a maquilhagem.
Ele levantou-se de um salto, todo solícito, e aproximou-se dela, mas Jo sorriu-lhe através das lágrimas.
- Já me sei orientar aqui - disse ela. - Bebe o teu café, que eu volto já.
97
Quando ela voltou, já tinha recuperado completamente a compostura. - Lamento muito o meu comportamento de há pouco, Hector - disse. - Melodramas femininos é a última
coisa de que precisas agora. Prometo-te que não volta a acontecer.
- Não precisas de te desculpar, Jo. Isso só prova que és a pessoa doce e afetuosa que acreditava que eras.
- Para - disse ela. - Vais pôr-me a chorar outra vez como uma madalena. Estávamos a falar do Johnny Congo. Podemos voltar a este outro assunto mais tarde.
- Muito bem. Concordo que ambos precisamos de nos acalmar um pouco, antes que um de nós diga algo de que se venha a arrepender depois. Falemos então do Johnny Congo.
A minha última pergunta era: "Como sabes tantas coisas acerca dele?"
- A minha resposta foi que tenho uma grande quantidade de documentação sobre ele, desde o seu cadastro militar até às atas do seu julgamento e o cadastro prisional.
- Compreendo, Jo. Mas aqui, em "A Semente Envenenada", temo-lo a falar em discurso direto. Vou fazer agora o papel de advogado do diabo. A linguagem que puseste
na boca do Johnny parece muito moderada e correta para alguém como ele.
- É muito perspicaz da tua parte, Hector. - Jo baixou os olhos. - Não fui capaz de escrever as suas palavras exatas. É a pessoa mais ordinária que possas imaginar.
Quase todas as frases que pronuncia contêm palavrões obscenos e insinuações sexuais.
Claro que o uso excessivo desse tipo de linguagem é sinal de um vocabulário limitado e de uma inteligência atrofiada. Eu e o Ronnie temos horas de gravações de conversas
entre o Johnny e o Carl. É assim que eles falam um com o outro. Após pouco tempo, esse tipo de linguagem perde o efeito chocante e torna-se vulgar e entediante.
Só que eu não fui capaz de a transcrever textualmente, nem mesmo para o efeito de retratar a personalidade do Johnny Congo com mais precisão - respondeu Jo. - Limitei-me
a suprimir essas partes. Não creio que isso tenha alterado minimamente o sentido e o significado.
- Sim, mas não posso aceitar isso sem mais explicações. Onde é que tu e o Ronnie arranjaram todas essas gravações?
- Foi por essa mesma razão que quis escrever isso tudo por ordem cronológica. É uma história tão complicada que não queria truncá-la, nem andar a saltar para trás
e para a frente para tentar explicar e justificar-me a mim e à minha história. Só acabaria por tornar tudo ainda mais confuso e difícil de compreender. Quis apresentar
tudo numa sequência lógica.
- Muito bem. Vou tentar conter-me. - Antes de falarmos da origem das gravações, há outra coisa que te quero dizer. Tenho todas as plantas e projetos arquitetónicos
do interior do castelo na colina em Kazundu. Achei que te podiam ser úteis, para te orientares por lá caso decidas lá ir.
Hector olhou-a, atónito. - Meu Deus. Mas como conseguiste deitar as mãos a tudo isso...? - Interrompeu-se a meio da frase. - Já me contaste na tua história: aquele
arquiteto de Houston, como se chama ele? Andrew Moorcroft, não é? Certamente terias uma razão para incluir o nome dele logo no início da história.
- Pontuação máxima! - Jo aplaudiu-o. - És o melhor da classe. O Andrew é amigo do Ronnie Bunter. Foram colegas de curso em Harvard. Perderam-se de vista, mas voltaram
a encontrar-se no serviço fúnebre da tua adorável esposa, a Hazel, na Igreja Presbiteriana de Houston. Retomaram a sua amizade e falaram das coisas que tinham acontecido
entretanto. O Andrew sabia que o Ronnie era o mandatário do Fundo Fiduciário Bannock e mencionou então, casualmente, o trabalho que tinha feito para o Carl Bannock
em África. Tomava como garantido que o Ronnie estaria a par disso tudo, mas claro que o Ronnie aproveitou logo o ensejo para saber todos os pormenores. De modo que
o Andrew lhe forneceu cópias de todos esses planos para o castelo na colina em Kazundu.
- Agora tudo começa a fazer sentido - reconheceu Hector. - Isso explica como conseguiste deitar a mão aos projetos do arquiteto. Mas e quanto às gravações das conversas
entre o Carl e o Johnny Congo de que falaste?
- Isso também foi conseguido com a ajuda do Andrew Moorcroft - explicou Jo. - Pelos vistos, o Carl tinha pedido ao Andrew que lhe recomendasse alguém para a instalação
dos equipamentos eletrónicos. O Andrew falou-lhe da Emma Purdom e da sua equipa, cuja sede fica no Texas. A Emma é um verdadeiro génio da eletrónica. O Carl seguiu
a recomendação do Andrew e contratou a Emma, e ela partiu com a sua equipa para Kazundu. Instalou todos os equipamentos de comunicação e de vigilância no castelo.
Mas o Carl tratou mal a Emma e vigarizou-a em várias centenas de milhares de dólares. Tal como muitos génios reconhecidos, o Carl às vezes consegue ser incrivelmente
estúpido. A Emma não é uma pessoa que se deva burlar. Quando eu e o Ronnie a abordámos, ficou muito feliz por nos ajudar. Aquilo foi canja para ela, ali sentada
na sua oficina em Houston enquanto fazia uma ligação pirata aos dispositivos de vigilância que ela mesma instalara lá em Kazundu. E depois descarregou todas as gravações
do Carl para nos dar, todas, desde a primeira à última.
- Tudo se encaixa agora. À exceção de um pequeno detalhe; a arena dos crocodilos. Se segui a história de forma correta, o Carl instalou-a muito recentemente, muito
depois de o Andrew e a Emma Purdom terem regressado ao Texas. Como sabias disso?
- Graças à Emma Purdom, claro está - disse ela. - Enquanto a Emma se encontrava em Kazundu, travou amizade com o padre missionário local que administrava a pequena
igreja e a escola do outro lado do lago, em Kigoma. A Emma criou um programa informático para os alunos negros. Mesmo depois de partir de África, manteve-se em contacto
regular com o padre e as crianças. Falava com eles online constantemente e mantinham-na informada acerca de tudo o que acontecia em redor da margem do lago. A captura
dos crocodilos gigantes foi uma grande notícia para todos eles. Mais tarde, começaram a circular rumores medonhos acerca da forma como o Carl e o Johnny alimentavam
os seus animais de estimação. E informaram a Emma de tudo isso. Eu já conhecia o destino que tinham reservado à Bryoni. E não precisei de muita imaginação para encontrar
semelhanças nessas duas histórias.
- Muito bem, agora compreendo tudo. Acho que te espera um grande futuro como romancista. Aliás, acho-te uma maravilha; uma dádiva dos deuses.
- Penso o mesmo de ti - replicou ela. - No entanto, sugiro que me deixes continuar com a minha história.
- Não há pressa - disse ele. - Daqui a pouco é a hora do jantar e sei que a Cynthia criou mais uma das suas obras-primas. Ficas para o jantar, não ficas?
- Parece-me uma excelente sugestão. Adorava jantar aqui contigo.
Hector ligou para a cozinha para avisar Cynthia da presença de um convidado extra.
- Não há nenhum problema, senhor. Já estava a contar com a menina Stanley - respondeu.
- Eles conseguem estar sempre um passo à minha frente - resmoneou Hector enquanto desligava. - Mas pelo menos temos a noite toda pela frente. Não precisas de estar
com pressas.
- Muito bem, então. Faço intenção de aproveitar ao máximo, já te estou a avisar - disse-lhe. - A notícia seguinte que tenho para te dar é que o FBI também está interessado
no Carl e no Johnny. - Raios! Não me convinha nada que me passassem a perna e chegassem primeiro a eles. Este é um assunto que só a mim diz respeito. Não deviam
andar a meter o nariz nisto.
- De momento, é esta a situação - respondeu Jo. - O Johnny Congo é um dos homens mais procurados nos EUA. Para além dos homicídios múltiplos pelos quais foi condenado,
também matou Lucas Helier durante a fuga da prisão. O Lucas era um agente da lei e nunca é boa ideia matar um deles. Quando se tornou claro que o Johnny tinha fugido
dos Estados Unidos, chamaram o FBI. A investigação foi difícil e demorada. No início, ninguém suspeitava que o Carl Bannock estivesse envolvido. O Johnny Congo simplesmente
tinha desaparecido e não havia nenhuma pista sobre o seu paradeiro. O tempo foi passando, mas o FBI nunca abandonou o caso.
Jo parou para organizar os pensamentos e prosseguiu: - Por último, na sequência de uma questão aparentemente não relacionada, o fisco começou a investigar Marco
Merkowski, o diretor da prisão de Holloway, por fuga aos impostos. Não foi capaz de lhes explicar a proveniência de enormes quantias de dinheiro em contas bancárias
em paraísos fiscais. Merkowski foi levado a julgamento por evasão aos impostos e condenado a cinco anos de cadeia. O FBI conseguiu relacionar a data da fuga de Johnny
Congo da prisão com os misteriosos ganhos inesperados de Marco. Propuseram-lhe então um acordo se cooperasse com a investigação sobre a fuga de Johnny Congo. - Aposto
que o Merkowski agarrou logo a oportunidade para se livrar da prisão - comentou Hector.
- O tipo quase tropeçava nos próprios pés com a pressa de aceitar o acordo - confirmou Jo. - O FBI conseguiu estabelecer finalmente uma ligação entre o Carl, o Johnny
Congo e o Fundo Fiduciário da Família Henry Bannock. Apresentaram-se então a Ronnie Bunter, na sua função de mandatário principal. Embora, ao longo dos anos, o Ronnie
tivesse estado em contacto regular com o Carl por via de mensagens eletrónicas, o Ronnie continuava a não fazer ideia onde o Carl estava escondido. Como o Carl estava
a viver uma vida dupla e a proteger o Johnny Congo, tornou-se perito era cobrir os seus próprios rastos. Ainda assim, o Ronnie Bunter teve de dizer ao FBI que o
seu relacionamento com o Carl era de carácter profissional, estritamente entre cliente e advogado, e que não podia divulgar nenhuma informação sobre o Fundo Fiduciário,
nem sobre os seus beneficiários, sem cometer um abuso de confiança.
O intercomunicador soou e Jo interrompeu-se para que Hector pudesse atender. - Obrigado, Cynthia. Sim, já estamos prontos para o jantar. - Lançou um olhar inquisitivo
a Jo e ela anuiu com a cabeça. - Diga ao Stephen que pode começar a servir dentro de dez minutos. - Hector desligou e virou-se para Jo: - Se quiseres, podes ir lavar
as mãos e depois já podemos descer. A Cynthia tem o temperamento de uma grande artista. Quando diz "Comam!", nós comemos.
Assim que se sentaram à mesa de jantar, Jo retomou a história uma vez mais. - Portanto, o FBI requereu ao Supremo Tribunal uma ordem de divulgação de informações
contra o Fundo Fiduciário da Família Henry Bannock e respetivos mandatários. O Ronnie, como era seu dever enquanto mandatário principal, defendeu o caso e, quando
perdeu, interpôs recurso. Voltámos a perder no recurso, de modo que o Ronnie teve de admitir a derrota e fazer aquilo que os seus próprios princípios morais lhe
diziam para fazer desde o início: entregou ao FBI tudo aquilo que tínhamos sobre o Carl e o Johnny Congo. Isso aconteceu muito antes de o Ronnie e o Andrew Moorcroft
voltarem a encontrar-se. Mas mesmo com tudo aquilo que lhes demos naquela altura, nem assim o todo-poderoso FBI conseguiu localizar o Carl e o Johnny.
- E agora tu e o Ronnie são obrigados a dar ao FBI as informações que receberam recentemente através do Andrew e da Emma Purdom, indicando-lhes o paradeiro do Carl,
certo? - perguntou.
Jo suspirou. - É uma questão controversa, Hector. Eu e o Ronnie estamos convencidos de que a ordem de divulgação é válida apenas para informações recebidas até à
data da ordem, e estamos dispostos a correr o risco de agir baseados nessa suposição. Mesmo que o FBI venha a ter conhecimento da verdadeira situação e nos exija
informações atualizadas, estamos preparados para recorrer dessa decisão. Portanto, tens cerca de um ano sem quaisquer interferências do Big Brother para fazeres
o que tens de fazer.
- E o que achas que tenho de fazer, Jo Stanley? - Já me dói a garganta de tanto falar. - Sorriu-lhe com doçura. - Não posso dizer mais nada. Como advogada, certamente
não te posso incitar a cometer um crime como matar ou raptar alguém. Já és um homem crescido e vacinado, Hector Cross. Sabes bem o que deves fazer. Não precisas
que te diga.
Concordo contigo quanto à última parte, Jo Stanley. Sei, de facto, o que devo fazer agora: garantir que desfrutas do jantar e faças honra ao vinho decente que escolhi
para os dois. Acho que por hoje já basta de falarmos tanto do Carl e do Johnny. Falemos antes de coisas mais sãs durante o resto desta noite, e amanhã de manhã voltamos
a ocupar-nos deles.
Durante o resto do jantar, conversaram apenas acerca de questões pessoais. Se ela já sabia obviamente quase tudo acerca dele, Hector, por seu lado, sabia muito pouco
sobre Jo. Ouviu-a com toda a atenção, e quase tudo o que ela tinha para lhe dizer tendia a confirmar a alta opinião que estava a formar acerca dela. Quando terminaram
o prato principal, já corria entre ambos uma poderosa corrente subterrânea que era quase palpável. Hector apercebeu-se de que o facto de ter retirado o retrato de
Hazel da parede do estúdio tinha direcionado o seu relacionamento numa nova rota. Podiam olhar-se nos olhos com sinceridade e confiança. Ambos sabiam que tinham
alcançado um acordo tácito. Estavam descontraídos e confiavam um no outro.
Quando Stephen levou os pratos, Hector perguntou a Jo: - Sobremesa? Queijo? Charutos?
Ela riu-se e abanou a cabeça. - O jantar estava excelente, mas acho que vou prescindir dos charutos, muito obrigada.
- Então, podemos ir para a sala de estar tomar um café - sugeriu ele. Levantou-se, postou-se atrás dela e ajudou-a a afastar a cadeira; depois deu-lhe o braço e
conduziu-a para a sala de estar.
- Oh, que encantador - disse ela quando viu a lareira acesa. Mantiveram-se aí, de costas viradas para o calor das chamas. Ela aproximou-se um pouco dele e olhou-o.
Continuaram de olhos presos um no outro quando ele se inclinou e os lábios dela se abriram levemente e a sua respiração se tornou mais acelerada.
Foi o primeiro beijo de verdade entre os dois, uma declaração e uma promessa. No final, continuaram abraçados um ao outro. Hector falou por fim, com os lábios quase
aflorando os dela e sentindo ambos na boca o sabor um do outro. - Para mim isto é uma coisa a sério, Jo - disse ele.
- Para mim também - murmurou ela. - Por favor, fica comigo esta noite - disse ele.
Ela hesitou por um longo momento antes de responder. - Hector, vou ser sincera contigo. Sei muitas coisas sobre ti, mesmo antes de nos conhecermos pessoalmente,
e achava que deverias ser um homem fascinante. Depois conheci-te e descobri que eras exatamente o que eu esperava que fosses. - Olhou para ele e havia um fogo verde
nos seus olhos. - Quero-te desde aquele dia, mas sabia que ainda era demasiado cedo para ti. Estava disposta a esperar. Mas agora acho que já esperei de mais. Já
tiraste o retrato lá do estúdio. Para mim, foi um gesto muito significativo. Agora já não posso voltar atrás.
Hector abriu a boca para lhe responder, mas ela esticou rapidamente a mão e pousou o indicador sobre os lábios dele.
- Espera! Ouve-me até ao fim, por favor. Não sou nenhuma virgem recatada, mas também não sou nenhuma vadia. Até já fui casada, embora confesse que não durou muito
tempo. De qualquer modo, nunca me enfiei antes na cama com um homem sem pensar e ponderar bem isso.
Hector afastou-lhe delicadamente a mão da sua boca. - Não precisamos de dizer mais nada. Daqui em diante, demasiadas palavras ditas podem estragar aquilo que me
parece ser uma coisa boa e correta. Estar apaixonado é divertido. Por isso, vamos divertir-nos, Jo, minha querida. - É a primeira vez que me chamas "querida", Hector,
querido. - Posso acompanhar-te ao piso de cima? - Força! - disse ela. - Indica o caminho. Pararam na base das escadas. - É tão longe até lá acima - disse ela. -
Acho que não vou conseguir sem um pouco de encorajamento.
Virou-se para ele, agarrou-o pelas lapelas do casaco, aproximou o rosto do dele e colocou-se em bicos dos pés. Hector puxou-a para si e inclinou a cabeça para a
beijar. Jo abraçou-lhe o pescoço e os seus corpos uniram-se. A boca dela era quente e Hector sentiu o perfume dela misturar-se com o almíscar natural da sua excitação.
Desejava-a. O seu corpo ansiava profundamente por ela. Levantou-a do chão e ela manteve os braços à volta do pescoço dele, com a boca colada à sua.
Hector correu com ela pelas escadas acima e Jo riu-se, de láb unidos aos dele. - Estás louco! Se cais, ainda nos matas aos do - Estou caidinho por ti e ambos sobrevivemos.
- Por enquanto - disse ela. Continuando a carregá-la nos braços, abriu a porta do quarto com o ombro e levou-a para dentro. Depois fechou a porta con o pé e atravessou
o quarto até a pousar no chão, de frente para o espelho que ia do chão ao teto.
Manteve-se atrás de Jo, abraçando-a enquanto olhava por cima do ombro dela e estudava a sua imagem no espelho.
- Ainda não consigo acreditar como és tão bela - disse-lhe. Jo agarrou nas mãos dele e colocou-as sobre os seus seios"
- Acho que fico muito melhor assim. Pelo menos, faz-me sentir
melhor - disse, olhando-o nos olhos através do espelho.
Hector desabotoou-lhe a blusa e ela baixou os braços para que
ele pudesse tirar-lha. Hector lançou-a para cima da cama e depois
agarrou-lhe de novo nos seios e apertou-os com delicadeza.
- São tão grandes. - Beijou-lhe a orelha por trás e ela estremeceu.
- Estás a deixar-me toda arrepiada - disse ela. - Por dentro
e por fora.
Hector desapertou-lhe o sutiã e atirou-o para cima da blusa na cama. Agarrou-lhe os mamilos entre os indicadores e os polegares
e apertou-os suavemente. Os mamilos endureceram e as pontas
salientes adquiriram a cor de amoras maduras enquanto o sangue as
preenchia. Hector esticou-lhos na sua elasticidade máxima e depois
largou-os. Ressaltaram para trás como se fossem de borracha.
- Espero que te estejas a divertir. - Tentou fingir uma voz
severa, mas a sua respiração estava acelerada.
- Não me lembro da última vez que me diverti assim tanto.
Tal como alguém disse, estar apaixonado é divertido. - Beijou-lhe
o ombro. - A tua pele é tão branca e suave.
Passou as pontas dos dedos desde os seios até ao umbigo. A barriga dela era côncava, branca e quente como mármore ao sol.
- Achas que estou gorda? - disse ela, fazendo a eterna pergunta feminina.
- Mato quem disser que sim - advertiu-a. Desabotoou-lhe as calças de ganga e baixou-lhas até às ancas. As calças caíram-lhe à volta dos tornozelos e Jo desembaraçou-se
delas e dos sapatos de salto alto à força de pontapés.
As cuecas eram de cetim branco, com um pequeno rendilhado em forma de coração na parte da frente. Através do espelho, Hector pôde ver-lhe a sombra escura do púbis
através do tecido. Passou levemente as pontas dos dedos sobre o cetim e ela sussurrou, ofegante: - Não me estás a excitar, estás a torturar-me.
- Basta de tortura - prometeu ele, enfiando a mão sob o elástico das cuecas e tocando-a por baixo do cetim. Ela apartou as pernas.
Jo rodou o corpo, envolta nos braços dele, e beijou-o. Mas ao mesmo tempo abria-lhe o fecho das calças.
- Santo Deus! - exclamou ela de repente. - Que foi? - Era uma exclamação de alegria e não de desalento. Já imaginava que fosse grosso, mas nunca pensei que fosse
tão grande. O meu problema, de momento, é que estás todo vestido ainda, mas vou já remediar isso. - Com uma das mãos ainda enfiada através da braguilha aberta, pousou
a outra mão no peito dele e obrigou-o a recuar até embater na cama e cair de costas sobre as cobertas.
- Deixa-te estar aí - ordenou-lhe. - Não te mexas! - Ajoelhou-se para lhe desapertar os atacadores e tirar os sapatos e as meias. Depois agarrou-lhe os fundilhos
das calças e disse-lhe: - Levanta o traseiro, companheiro!
Ele obedeceu e Jo tirou-lhe as calças com um movimento fluido, e depois fez o mesmo às cuecas. Lançou a cabeça para trás, brandindo as cuecas dele no ar e soltando
risadinhas como uma colegial. Lançou as cuecas por cima do ombro, apoiou os punhos sobre as ancas e estudou-o com a cabeça inclinada de lado.
- Ei, tu aí! - disse Hector pouco depois. - Estamos à espera de quê? - Oh, desculpa. Acho que fiquei hipnotizada por um momento, como um passarinho por uma cobra.
Não só é grande como também parece muito delicioso, sabias? - Saltou para cima da cama e lançou uma das pernas sobre ele para o cavalgar. Ocupou-se durante alguns
instantes a acomodá-lo dentro de si e depois ofegou: - Oh. meu Deus! Tinha cá as minhas dúvidas de que coubesse mesmo.
Fizeram amor com exuberância e alegria, satisfazendo-se mutuamente após a sua longa abstinência. Depois permaneceram agarrados um ao outro, com as respirações e
os suores misturados. Conversaram e depois voltaram a fazer amor. Já passava muito da meia-noite quando adormeceram abraçados um ao outro.
Ao amanhecer, foi ela a primeira a acordar, mas Hector pressentiu o olhar dela no seu rosto e abriu os olhos.
- Tive tanto medo - disse ela, abraçando-o com força. - Sonhei que tinhas desaparecido outra vez.
- Isso não vai acontecer, prometo-te. A manhã já ia a meio quando Cynthia lhes enviou o pequeno-almoço. Ambos comeram de roupão. Tinham tomado um duche juntos e
os seus corpos ainda reluziam de paixão e da água quente. Jo serviu-se de café e perguntou-lhe: - E agora vamos fazer o quê? - O verbo no plural assomou-lhe naturalmente
aos lábios.
- Acabou-se o tempo das conversas, está na hora de nos fazemos ao caminho.
- Para onde? - Para Abu Zara, para começar. Tenho que reunir os membros da equipa e pô-los ao corrente das novas informações. E tu tens que conhecer a Catherine
Cayla.
- Excelente plano! Quando podemos partir? - Em quanto tempo consegues pôr-te pronta? - Já estou pronta. Viajo com pouca bagagem, lembras-te? - És uma rapariga de
infinitas virtudes.
98
Agatha conseguiu reservar-lhes os dois últimos lugares disponíveis em primeira classe no voo da Emirates que partia de Heathrow nessa mesma noite. Paddy e Nastiya
receberam-nos no aeroporto de Abu Zara na manhã seguinte. Tentaram disfarçar a sua curiosidade e fascínio quando viram Jo sair pela porta das chegadas ao lado de
Hector.
Hector deu um aperto de mão a Paddy, beijou Nastiya em ambas as faces e depois disse-lhes: - Quero apresentar-vos a Jo Stanley. - Fez as apresentações.
- Ah, muito bem! - disse Nastiya enquanto ambas davam um aperto de mão. - Há muito tempo que não via o Hector com esta cara. Mas tem cuidado com ele, Jo Stanley.
Não vais ter mãos para medir o Hector.
- Acho que a minha mulher quer dizer que não vais ter mãos a medir com o Hector - explicou Paddy.
- Pronto, e que diferença faz? - perguntou Nastiya. Paddy levou-os de carro para Seascape Mansions e, quando subiram no elevador até à penthouse, Paddy carregava
a mala pesada de Jo. No átrio estava reunido o habitual comité de boas-vindas. Catherine Cayla reconheceu o pai assim que ele saiu do elevador e quase se lançou
dos braços de Bonnie, com gritinhos de alegria: - Ba-Ba!
- Ponha-a no chão, Bonnie - ordenou-lhe Hector. Depois virou-se para Jo e disse: - Observa bem isto. - Catherine desatou a gatinhar pelo chão e tentou subir-lhe
pela perna. Hector pegou nela e apoiou-a na anca. Voltou a virar-se para Jo: - Impressionante, não é?
- Acho-a absolutamente amorosa. Posso pegar nela? - Cuidado, pois pode fazer chichi em cima de ti. Se isso acontecer, encara-o como uma manifestação de amor. Está
sempre a fazer-me isso.
- Acho que vou arriscar. - Jo estendeu os braços. Catherine olhou-a com uma expressão séria por um momento e depois decidiu-se. - Homem! - disse ela, lançando-se
nos braços de Jo.
- Homem? - repetiu Hector, incrédulo. - A minha Catherine só pode estar a fazer confusão!
- É a nova palavra dela - apressou-se Bonnie a explicar em defesa da criança ao seu cargo. - Chama "homem" a toda a gente
de quem gosta. Dave Imbiss avançou para cumprimentar Hector e, enquanto davam um aperto de mão, Hector disse: - Há novidades, Dave.
Quero-te a ti, ao Paddy e à Nazzy agora na sala de cinema. Hector conduziu a sua equipa para a sala de cinema. Jo levou Catherine, que aproveitou a oportunidade
para explorar o interior
das narinas de Jo com um dedito.
Quando todos se sentaram, Hector inseriu a pen no computador
e a primeira página do curto romance de Jo surgiu no ecrã.
- "Karl Pieter Kurtmeyer: A Semente Envenenada". Mas que
diabos é isto, Hector? - perguntou Nastiya.
- Lê-o, Nazzy. Todos devem lê-lo. Eu e a Jo vamos levar Catherine à praia para uma banhoca. Voltamos antes de escurecer, para responder às vossas perguntas e para
nos preparamos para entrar
em ação.
99
Quando Hector e Jo voltaram, foram de imediato para a sala de cinema e Hector abriu a porta silenciosamente. Os três membros da sua equipa estavam tão absortos,
sentados nos seus lugares, que demoraram algum tempo a aperceber-se de que estavam a ser observados.
Nastiya disse: - Vá lá, Paddy. Lê mais depressa. Quero ver o que acontece no fim. - Depois, deu-se conta de repente de que estava a ser observada e virou-se no seu
lugar. - Hector, é tudo verdade isto que está a acontecer no livro, ou não passa de mais uma má piada tua?
- É tudo verdade, Nazzy. Eu nunca brincaria com uma coisa como esta.
- A nossa bebé! A nossa pequena Cathy! A primeira coisa a fazer é impedir esses dois animais, antes que possam fazer mal à nossa bebé.
- É precisamente por essa razão que estamos todos reunidos aqui - anuiu Hector.
Paddy e Dave Imbiss olhavam para Hector, com uma expressão dura e fria. - Este tal Castelo em Kazundu... - interveio Paddy. - Fala-nos acerca disso. O Carl e o Johnny
Congo continuam escondidos lá?
- Já acabaste de ler a história da Jo? - respondeu-lhe Hector, esquivando-se à pergunta.
- Ainda não - admitiu Paddy. - Faltam-me só algumas páginas.
- Então acaba de ler. Eu e a Jo vamos tomar um duche para nos livrarmos do sal e da areia. Voltamos já. Entretanto, liguem para a cozinha e peçam à chef que prepare
qualquer coisa para comer, e litros de café. Esta noite vamos ficar acordados até muito tarde.
Meia hora depois, quando voltaram para a sala de cinema, depararam com uma série de enormes travessas de prata a transbordarem de sanduíches na mesa no estrado.
Na sala pairava o aroma de café que emanava da cafeteira de prata.
- Já acabaste de ler a história? - perguntou Hector a Paddy quando todos se reuniram à volta da mesa a devorar sanduíches e a emborcar café.
- Que história mais cruel - disse Paddy. Assim que acabaram de comer e a mesa foi levantada, Paddv trancou a porta e voltaram a sentar-se. Jo ligou o projetor ao
seu portátil e focou o feixe de luz no ecrã na parede ao fundo da sala_ Hector não parava de andar de um lado para o outro no palco.
- Muito bem, pessoal. Todos sabemos agora no que nos vamos meter. - Houve um murmúrio de assentimento. - Trata-se de uma missão de perseguição e morte. Ninguém faz
perguntas nem faz prisioneiros. Vamos eliminar o Carl Bannock e o Johnny Congo_ Vamos atacar rápido e sair de lá igualmente rápido. Estamos entendidos quanto a isso?
- Uma vez mais, o acordo foi tácito.
- O Paddy já fez a primeira pergunta: se os alvos ainda se encontram lá no castelo na colina. A resposta é que, há quarenta minutos, ainda estavam lá.
Os três membros da equipa pareceram duvidar e Paddy falou em nome de todos: - Há quarenta minutos? Isso é que é ser rápido_ O castelo fica quase a cinco mil quilómetros
do local onde estamos_ Como é que podes ter tanta certeza assim, quase de um momento para o outro? Vá lá, Hector, estás à espera que acreditemos nos teus novos poderes
sobrenaturais?
- A Jo recorreu a um sistema de vigilância chamado Emula Purdom, o qual nos ligou há quarenta minutos quando voltávamos da praia. A pergunta foi colocada e a resposta
é que o Carl e o Johnny ainda estão no castelo.
Todos se viraram e olharam Jo com um respeito crescente.
- Foi a Jo que instalou esse sistema de vigilância? - perguntou Nastiya.
- A Jo limitou-se a encontrá-lo e a ativá-lo - confirmou Hector. - Estou a ver que esta tua nova senhora não serve só para enfeitar - disse Nastiya. - Bem-vinda
a bordo da nossa equipa, Jo Stanley.
Jo desviou os olhos do projetor e agradeceu com um sorriso. - Ei, Jo! Conseguiste impressionar a Nazzy. E olha que não é coisa fácil - disse Hector. - Estás pronta
para dar início ao pequeno espetáculo que montaste para nós?
- Tudo a postos - respondeu Jo. - Basta dares o sinal. - Só um momento, por favor - disse Hector, virando-se depois para os outros. - Em primeiro lugar, precisamos
de ter a certeza de que conseguem identificar os alvos à primeira vista e que reconhecem as suas vozes. A Jo vai começar pelo Carl Bannock. Já sabem muitas coisas
sobre o Carl por via da história da Jo. Só para recapitular, então: o Carl é um académico, o produto de uma boa escola privada e de Princeton. É inteligente e traiçoeiro.
É um génio das finanças. É bem-parecido, de modos refinados e afáveis. É bissexual e um pervertido. É, principalmente, um sádico patológico e um pedófilo. É um psicopata:
sem consciência, sem qualquer piedade ou remorsos. É um megalomaníaco. Só uma coisa importa a Carl Bannock: a sua própria pessoa. Nunca se esqueçam daquilo que ele
fez à própria mãe e às irmãs. E já sabem quais são os planos dele em relação à Catherine Cayla.
A tensão aumentou de repente na sala quando Hector referiu a filha. Os olhos de Nastiya eram duas fendas azuis e frias. Hector voltou a olhar para Jo. - Obrigado,
Jo. Podes começar o espetáculo.
Jo desligou as luzes e ligou o projetor. A gravação que tinha preparado durou pouco menos de dez minutos. Começava com sequências dos arquivos da família Bannock
que Ronnie Bunter retirara dos seus próprios arquivos. Mostrava Carl nos seus tempos de estudante universitário em Princeton. De seguida, sequências de Carl a correr,
a caminhar e a jogar golfe e ténis, para poderem estudar-lhe os movimentos. Depois, breves trechos de Carl a discursar perante os acionistas na assembleia geral
anual da Bannock Oil Corporation, a ser entrevistado na TV e a conversar com os seus amigos. Seguidamente, vários planos do julgamento no tribunal. com Carl a chorar
e a implorar perdão. A gravação terminava com breves videoclipes captados pelas câmaras de vigilância ocultas no castelo na colina. Emma Purdom tinha feito a montagem
dessas cenas para Jo. Eram sobretudo sequências de Carl e Johnny a conversarem, mas também incluíam breves cenas explícitas de Carl a ter sexo com Johnny Congo e
com vários outros parceiros: masculinos, femininos e travestis.
Quando a gravação terminou, Jo ligou as luzes e Hector disse: - Bem, acho que agora já devem ser todos capazes de reconhecer o Carl Bannock mesmo à distância, mesmo
se estiver disfarçado ou sem calças. Alguma pergunta?
- É uma cobra, uma cobra venenosa - disse Nastiya. - É asqueroso. É a coisa mais repugnante que já vi.
- Isso não é uma pergunta, Nazzy. - Está bem, aqui vai a minha pergunta - acedeu Nastiya_ - Eliminamo-lo assim que o tivermos debaixo de mira, ou apanhamo-lo vivo
para poderes falar com ele primeiro?
- Usa a tua discrição, Nazzy. Se houver a mais ínfima probabilidade de nos poder escapar, então disparamos a matar. Mas se conseguires deitar-lhe a mão, então ficava-te
muito grato se mo pudesses trazer para uma curta conversa de despedida.
- A Hazel era uma grande senhora e a sua filha é adorável_ Quero estar lá quando apontares ao Carl Bannock o caminho errado que ele seguiu - disse Paddy sem sorrir.
- Há mais alguma pergunta ou comentário? - Hector olhou à sua volta. - Nesse caso, podemos passar então ao Johnny Congo_ É mais um assunto interessante e invulgar.
- Quero dar uma boa olhada a este - anunciou Nastiya_ - Preciso de decidir qual dos dois odeio mais. Quero tirar-lhes da cabeça a ideia de pensarem sequer em fazer
mal à nossa bebé.
Jo ouviste a senhora. Podes mostrar o jonnny Congo, por favor? A sequência de abertura mostrava Johnny Congo no seu uniforme de sargento dos fuzileiros navais dos
Estados Unidos, a ser condecorado pelo seu general com a Estrela de Prata por bravura no delta do rio Mekong, no Vietname, com toda a sua companhia em parada atrás
deles.
- Não há dúvida de que o Congo é muito destemido - comentou Hector. - Fez duas comissões nos fuzileiros navais dos Estados Unidos. Como podem ver, foi condecorado
por valentia e recebeu dispensa honrosa do exército, com a patente de sargento-mor. Quando regressou à vida civil, dedicou-se à única atividade para a qual estava
verdadeiramente qualificado e que lhe dava um prazer real, ou seja, matar pessoas. Tornou-se um assassino contratado, um assassino profissional. Tal como o Carl,
é um psicopata e um sádico. No entanto, ao contrário do Carl, é um bruto grosseiro, mas não o subestimem por um único instante. Possui uma astúcia animal inata.
Já todos sabem muitas coisas dele pelas descrições da Jo. Mas vou recordar-vos algumas das coisas mais importantes que devem ter sempre em mente. O Johnny tem um
apetite sexual omnívoro. O Carl é o seu parceiro sexual de longa data, mas ambos copulam com todos, sem fazerem distinções. O Johnny Congo é incrivelmente forte
e é um adversário temível. Tal como um cão raivoso, deve ser abatido à distância, e nunca confrontado de muito perto.
A gravação relativa a Johnny terminou com sequências recolhidas por Emma Purdom das câmaras ocultas no castelo na colina. Quando o ecrã ficou em branco, Jo ligou
as luzes e Hector prosseguiu: - Muito bem, já todos puderam ver bem a nossa presa. Agora a Jo vai-lhes mostrar o terreno de caça. Esperamos encontrar o Johnny e
o Carl no castelo ou nas imediações próximas, e é provável que tenhamos de os perseguir no interior das muralhas. O castelo é um edifício grande, com muitos corredores
e recantos. Tem mais de trezentos anos e foi construído por arquitetos árabes para o sultão de Omã. É um vasto conjunto de centenas de divisões. Desde as caves e
as masmorras em baixo, até às torres e aos minaretes lá no alto, é um labirinto no qual um estranho se pode perder por completo, num abrir e fechar de olhos. A Jo
vai começar com fotografias do exterior.
As fotografias tinham sido tiradas por profissionais e eram impressionantes. O cenário de fundo constituído pelo lago e pelas montanhas cobertas de florestas era
magnífico. Jo mostrou-as en rápida sucessão.
- Ora bem, o que acabámos de ver não passava de anúncios comerciais para turista ver, mas agora vamos ver uma coisa muito mais valiosa. A Jo conseguiu deitar a mão
a projetos arquitetónicos e a plantas atualizadas do interior do castelo.
O primeiro projeto surgiu no ecrã. Mostrava a disposição das masmorras por baixo das muralhas do castelo.
Paddy ficou tão empolgado que bateu com o punho no joelho - Isto é bem melhor do que ganhar o primeiro prémio na lotaria Devo dizer que não me estava a agradar muito
a ideia de andarmos às cegas num labirinto, com o risco de podermos cair numa emboscada a cada passo.
- Onde raios conseguiste arranjar esse material, Jo? - Dav< Imbiss estava tão satisfeito como Paddy. - Provavelmente salvaste-nos as vidas. E digo-o no sentido literal.
Nastiya juntou-se ao coro de louvores: - Lembrem-se do que costumava dizer a Maggie Thatcher: quando as coisas ficam muito complicadas, é melhor chamar uma mulher
para fazer o trabalho. Sorte a vossa, homens, por terem agora mais outra mulher na equipa.
Hector levantou a voz para voltar a captar-lhes a atenção. - A Jo preparou um conjunto separado de plantas arquitetónicas para cada um de vocês. - Olhou para o caderno
de apontamentos que segurava aberto na mão esquerda. - Muito bem, agora já conhecemos os nossos alvos, e já sabemos onde podemos encontrá-los. Mas agora precisamos
de decidir como vamos fazer para nos infiltrarmos em Kazundu. Esta é a parte mais difícil. Não é um país fácil de alcançar. - Fez sinal com a cabeça a Jo e ela projetou
no ecrã um mapa em grande escala da área. Hector continuou a falar. - A leste fica o lago Tanganica, como um fosso gigantesco. Tem quase cinquenta quilómetros de
largura. Atravessá-lo nalgum tipo de embarcação a partir da Tanzânia não é uma alternativa agradável. Há um ditado que diz: "A África é uma terra deserta, com um
par de olhos a espreitar atrás de cada arbusto."
De certeza que o Johnny Congo tem agentes lá do lado tanzaniano. Saberia da nossa presença assim que zarpássemos da margem oriental e, quando desembarcássemos em
Kazundu, seria debaixo de fogo inimigo.
- Não podíamos entrar lá pelo oeste, através da República Democrática do Congo? - perguntou Dave Imbiss.
Hector abanou a cabeça. - Isso implicaria uma marcha de aproximação de pelo menos oitocentos quilómetros através de selva densa e atravessando rios grandes. Praticamente
não existem estradas. Os senhores da guerra tribais que controlam essa parte do país são todos grandes amigos do Johnny e seus parceiros nos negócios. O Johnny é
para eles o ponto de venda dos seus minerais de conflito. Não conseguiríamos chegar muito longe.
- Pelos vistos, a única maneira de lá entrar é por ar, então. Vamos ter de saltar de paraquedas. Mas isso não é nenhum problema. - Paddy encolheu os ombros.
- O bom pragmatismo irlandês - elogiou-o Hector. - É uma ótima ideia para entrarmos no país. Mas depois como é que saíamos de lá quando terminássemos a missão? Como
todos vimos, seria impossível sair de Kazundu a pé.
- O avião usado para nos largar podia aterrar para nos recolher - disse Paddy em defesa da sua sugestão. - Tal como o Johnny fez inicialmente. - Só que o Johnny
não estava numa missão de perseguição e morte como nós. Não precisou de controlar o aeroporto para ter uma via de fuga. O objetivo dele era eliminar o rei Justin
e estabelecer-se definitivamente - frisou Hector. - Seja como for, a nossa situação é diferente. O exército do rei Justin parecia saído de uma piada de opereta,
um pequeno bando de rústicos sem munições e com espingardas que nem sequer sabiam disparar. Mas agora a quadrilha do Johnny é composta por homens bem equipados que
ele próprio escolheu a dedo e treinou com a ajuda do Sam Ngewenyama. Tanto o Johnny como o Sam são veteranos de guerra. E só podemos fazer aterrar quarenta ou cinquenta
homens de cada vez. O Andrew Moorcroft, que esteve no terreno em Kazundu, estima que o Johnny dispõe de cerca de duzentos homens bem preparados. Estamos aqui a lidar
com profissionais não há um único rústico entre eles. Além do mais, estaríamos em grande inferioridade numérica.
- Merda! - disse Dave Imbiss baixinho mas com veemência - Bem dito - concordou Hector. Um grande pedaço de bosta fedorenta. O Andrew também nos disse que o Johnny
Congo tem plena consciência de que a pista de aterragem é o seu calcanhar de Aquiles. Ele próprio a usou para infiltrar os seus homens no país. O que ele fez depois
foi construir um reduto defensivo, fortemente protegido com sacos de areia, em cada extremidade da pista. E nas canhoneiras das muralhas há pesadas metralhadoras
de calibre 50. Nenhuma aeronave desconhecida ou indesejada conseguiria aterrar ou descolar sem acabar por ser varrida a fogo de metralhadora de popa a proa, antes
mesmo de as rodas tocarem ou descolarem do chão.
Refletiram nessa perspetiva com expressões de uma aversão fria, até que Jo Stanley quebrou finalmente o silêncio. - A não ser, claro, que se trate do próprio Antonov
Condor do Carl - disse Jo numa voz calma.
- Pois claro! - concordou Hector num tom irónico. - Só que nós não vamos estar a bordo do Condor dele, pois não?
- Não vamos, não - anuiu Jo numa voz recatada. - A menos, claro, que tu o sequestres para nós.
Seguiu-se um silêncio solene perante esta sugestão. Nastiya quebrou-o com uma explosão de gargalhadas. - Olha-me só para as caras deles, Jo. Os machos, mais as suas
ideias espertalhonas, ficaram sem palavras. Vá lá, rapazes, o que têm a dizer à senhora?
- Santo Deus, Jo Stanley! - Hector abanou a cabeça com uma incredulidade fingida. - Eu sabia que eras brilhante, mas nunca pensei que fosses tão brilhante ao ponto
de iluminares o céu inteiro.
- Hector Cross! - Jo tentou manter uma expressão séria no rosto enquanto respondia. - Não te atrevas a roubar-me as minhas expressões linguísticas. E se tentasses
antes roubar um avião?
100
Foram necessários mais dois dias de planeamento intenso até Hector ficar satisfeito com a logística para o ataque a Kazundu.
- Por motivos de segurança, o Condor só pode transportar um limite máximo de oitenta e quatro homens com equipamento completo e combustível suficiente para o voo
de ida e volta entre Abu Zara e Kazundu - informou Hector. - A minha estimativa é que vamos precisar de cerca de cinquenta homens. Qual é o contingente atual de
forças da Cross Bow Security, Paddy? Com quantos homens podemos contar neste preciso momento?
- Faltam-nos cerca de quinze, mais ou menos - admitiu Paddy. Olhou para Dave Imbiss. - Estou correto, Davie?
- Aqui em Abu Zara faltam-nos uns dezasseis homens. Mas posso mandar vir reforços dos nossos outros campos de petróleo na América do Sul e na Ásia. Dá-me cinco ou
seis dias e já terei a equipa completa, reunida e pronta para partir da pista na concessão do Zara Número Treze.
- Começa a tratar disso imediatamente, Dave - ordenou-lhe Hector, virando-se depois para os outros. - Assim que aterrarmos na pista de Kazundu e dominarmos os homens
nos dois redutos que a protegem, já teremos o terreno sob controlo. Vamos deixar o Condor sob a proteção das metralhadoras no reduto a norte, pois é o que fica mais
próximo do castelo na colina.
- Não é boa ideia deixá-lo ali parado a descoberto - advertiu Paddy. - Vai haver muitas balas incendiárias e estilhaços a voar pelo ar. Basta um único projétil atingi-lo
e lá se vai o Condor. Bum!
- Não! - Hector ergueu a mão. - A Emma Purdom gravou uma conversa do Carl e do Johnny em que discutiam a construção de uma espécie de campo defensivo para proteger
o Condor quando está em terra. Não tenho nenhuma foto disso, mas parece que o bunker fica bastante abaixo do nível do chão, com uma rampa de acesso em cada extremidade
e com os lados protegidos por muros de sacos de areia. Assim que o Condor desce pela rampa. fica imune ao fogo de armas portáteis e de granadas-foguetes. O único
problema é que esse campo defensivo se situa muito longe dos edifícios principais onde vamos desembarcar. O nosso piloto só conseguirá colocar o Condor a coberto
quando todos tivermos saído de lá.
Olhou os rostos à sua volta. - Mais alguma pergunta; - Todos eles abanaram a cabeça e Hector prosseguiu: - Vou partir do princípio de que vamos ter que perseguir
os nossos alvos no interior do castelo. Vou deixar doze homens a controlar cada um dos redutos nas extremidades da pista de aterragem. O seu poder de fogo será maior
após a captura das metralhadoras pesadas que o Johnny Congo instalou lá. Vou deixar o Dave ao comando desses contingentes, para cobrir e proteger a pista de aterragem
de possíveis contra-ataques.
Naquele momento, Hector deparou com um problema imprevisto. Nunca lhe tinha ocorrido que Jo Stanley poderia fazer parte da equipa de ataque. Não era um combatente
treinado como os outros membros. Na sua mente, o lugar de Jo seria na segurança de Abu Zara, talvez a ajudar Bonnie a cuidar de Catherine Cayla. No entanto, Jo falou
de repente, num tom mais forte e mais assertivo do que o habitual.
- O reduto a norte também será o melhor lugar para montar o meu posto de comunicações - disse.
Fez-se um silêncio súbito e total na sala de cinema. Todos os olhos se viraram para Jo, concentrando-se logo de seguida em Hector. Nastiya estava junto do dispensador
de água a encher uma caneca de água fresca. Ficou tão surpreendida como qualquer um dos outros membros com as palavras de Jo, mas recompôs-se e apressou-se a postar-se
ao lado de Jo, antes que Hector decidisse dar-lhe uma resposta. Hector não teve quaisquer dúvidas sobre qual dos lados Nastiya apoiava.
- Não pensava incluir-te na equipa de ataque a Kazundu, Jo - disse Hector, quebrando com grande tato aquele silêncio tenso.
- Bem, devias pensar nisso agora. - Havia na voz de Jo um tom que ele nunca lhe tinha ouvido até então. - Estou a organizar tudo com a Emma Purdom para montar um
sistema de comunicações especial. Assim, enquanto o ataque decorrer, a Emma poderá manter-nos informados de tudo o que estiver a acontecer no castelo. Vai-me enviar
o equipamento para Abu Zara, dentro dos próximos dias. A minha tarefa específica será manter-me em contacto permanente com ela em Houston. É a única pessoa que consegue
ver o que acontece dentro do castelo. Se o Johnny Congo ou o Carl Bannock se esconderem lá dentro, vais precisar de mim e da Emma para te darmos uma cobertura em
direto dos movimentos deles.
- A Jo tem um diploma em comunicações eletrónicas, para além da licenciatura em Direito - frisou Nastiya na pausa que se seguiu ao anúncio de Jo.
- Como sabes isso? - ripostou Hector a Nastiya. Estava agora sob ataque em duas frentes.
- Disse-me ela quando estávamos na casa de banho há pouco. Ela conhece a disposição do castelo melhor do que qualquer um de nós aqui nesta sala - explicou Nastiya,
como se estivesse a falar com uma criança. - E se queres saber como estou a par disso, bem, lembra-te só de quem nos deu as plantas arquitetónicas lá do castelo.
- A Nazzy e Jo têm razão - interveio Paddy. - Se um daqueles cabrões, ou ambos, se esconder dentro do castelo, vamos precisar de todas as vantagens possíveis. Cá
por mim, ficaria muito contente por ter a Jo a sussurrar-me ao ouvido o caminho certo através do labirinto.
- Estás a ser completamente triturado pela oposição, Heck comentou Dave Imbiss, juntando-se à discussão. - Um homem sábio saberia render-se com elegância.
- Mas quem está para aqui a falar de homens sábios? - perguntou Nastiya num tom franco. - Pensei que estávamos a falar do Hector Cross. - Muito bem. - Hector prosseguiu
como se fosse completamente surdo àquela fuzilada de argumentos. - Então estamos todos de acordo unânime quanto à minha sugestão de incluir a Jo na equipa como diretora
de comunicações no terreno? Passemos à frente, então. Fez uma pausa para se servir de outra caneca de café e se recompor. Depois, dirigiu ajo um sorriso conciliador
antes de continuar. - Vamos usar duas equipas de ataque, cada uma composta por quinze homens. Eu comandarei a primeira e o Paddy a segunda. O Carl Bannock será o
meu alvo principal, e por isso o meu sinal de chamada será "Lindinho". Paddy, o teu alvo principal é o Johnny Congo, e portanto o teu sinal de chamada será "Negrão".
Paddy, podes escolher o teu braço-direito.
- Escolho a Nastiya - disse Paddy. - Bem, não me surpreende nada. Eu próprio a teria escolhido se tu não o tivesses feito - pensou Hector em voz alta. - Vou ter
que me contentar com o Paul Stowe para meu braço-direito.
O ex-couteiro-mor de Hector em Brandon Hall depressa ascendera de posto até à hierarquia de topo da Cross Bow depois de Hector lhe ter proposto esse trabalho. Tinha-se
revelado um combatente altamente qualificado. Era perspicaz, inteligente e de confiança absoluta: um elemento válido para se ter ao lado em qualquer escaramuça.
- A propósito, onde raios está o Paul? - Hector olhou para Paddy.
- Está na antiga concessão do Zara Número Doze, a fazer uma inspeção de rotina ao sistema de segurança lá - respondeu Paddy.
- Chama-o assim que puderes. Precisa de ser posto rapidamente a par dos nossos planos.
Paddy grunhiu algo em assentimento e rabiscou uma nota no seu bloco.
- Vamos rever os pormenores mais tarde, mas acho que aquilo que foi exposto aqui cobre praticamente tudo em linhas gerais, com uma única exceção digna de nota -
resumiu Hector. - Como diabos vamos deitar a mão ao Antonov Condor e quem vai pilotá-lo até Kazundu com cinquenta homens armados a bordo, sem que o Johnny Congo
e o Carl Bannock desconfiem do que estamos a tramar? - Calou-se para os deixar refletir na pergunta e depois prosseguiu: - Já sei quem quero pôr a pilotá-lo.
Houve um burburinho de aprovação da parte de todos, exceto de Jo, que ficou intrigada. Hector virou-se para ela.
- Desculpa-me, Jo. - A sua expressão suavizou-se. - Nunca terias maneira de saber que me estou a referir ao Bernie e à Nella Vosloo. São um casal de pilotos comerciais,
uma equipa de marido e mulher que possui e gere uma companhia de voos chárter que opera por toda a África. Conseguem fazer voar qualquer coisa que tenha asas e não
estão demasiado preocupados em respeitar rigorosamente as leis da aviação ou quaisquer outras. Fizeram um trabalho magnífico para nós aqui há uns anos.
- Sei quem são os Vosloos, Hector - corrigiu-o ela numa voz moderada. - Foram eles que te levaram a ti e à tua equipa para a Somália, para resgatarem a filha da
Hazel do bando de piratas que a tinham raptado.
- Como sabes disso? - Hector olhou-a fixamente. - A Hazel contou-me a mim e ao Ronnie nessa altura. O Fundo Fiduciário da Família Bannock teve que pagar a conta
dos Vosloos, ou já te esqueceste?
- Consegues chegar à meta antes de eu começar sequer a correr! - reconheceu Hector. - Bem, então talvez saibas também que os Vosloos operam apenas uma única aeronave.
É um velho Hercules C-130. Mas é um tipo de avião bastante parecido com o Antonov Condor, com a possível exceção de o manual de instruções estar escrito em cirílico.
Mas o Bernie e a Nella não precisam de um manual para pilotar uma cópia russa de um Hércules.
- Temos quanto a isso certeza, Heck? Achas que eles o vão aceitar? - interrompeu-o Nastiya, na sua forma pouco cuidada de se exprimir sempre que o seu estado emocional
se alterava.
- Um grande sim é a resposta às tuas duas perguntas, Nazzy, se é que percebi bem essa tua gramática tão arrebicada. Enviei uma mensagem eletrónica à Nella ontem
à noite. A pergunta que lhe coloquei foi: "Sabes pilotar um Antonov Condor? Beijinhos, Hector." Recebi a resposta dela há algumas horas. - Pegou no seu iPhone para
todos poderem ler o texto no ecrã.
- Aqui têm a resposta típica da Nella Vosloo. "Se tem duas asas e uma cauda, claro que consigo, né? Que distância? Altitude? Quanto carcanhol? Beijinhos, Nella."
Todos se riram. Mas Hector lançou um olhar sério a Jo.
- A tua amiga Emma consegue fazer uma ligação pirata ao sistema de comunicações do Condor, Jo?
- Já te disse que a Emma é um verdadeiro ás da eletrónica. Não te preocupes.
- Consegue transmitir uma mensagem aos pilotos do Condor como se proviesse do próprio Carl Bannock de Kazundu, e depois consegue intercetar a resposta do Condor
de modo a que o Carl Bannock não se dê conta dessa troca?
- Claro que consegue. Colocou até um dispositivo eletrónico no Condor e consegue pô-lo a tocar como fazia o Little Walter com a harmónica.
- Quem diabos é Little...? - começou Hector por dizer, mas depois reconsiderou. - Esquece essa pergunta. Próxima questão: seria a nossa Emma capaz de usar o seu
dispositivo para localizar o Condor em voo e dar-nos a posição quando lha pedíssemos? - disse Hector, pressionando Jo sobre detalhes mais concretos.
- Absolutamente. Nenhum segredo está a salvo da nossa rapariga - respondeu Jo sem hesitação. - Ela consegue ler o painel de instrumentos do Condor a cinco mil quilómetros
de distância, como se estivesse sentada no lugar do piloto.
- Podes-lhe pedir uma lista detalhada dos voos do Condor e respetivos destinos nestes últimos seis meses? - Calou-se para refletir e depois continuou: - Pede-lhe
também, por favor, os dados pessoais dos dois pilotos russos. Caso seja possível, gostava de obter as fotos de identificação de ambos, e talvez mesmo cópias dos
seus brevetes. - Tenho a certeza de que ela te consegue arranjar isso tudo. - Quanto tempo achas que ela vai demorar a fazer isso? Por favor, diz-lhe que é urgente.
- Não demorará muito tempo. A Emma é uma rapariga esperta - respondeu Jo. - Mesmo tendo em conta os diferentes fusos horários, será mais ou menos uma questão de
um dia. A Emma dorme com o computador numa das almofadas e com o namorado ao lado. Se a obrigassem a escolher, acho que ela ia preferir o computador.
- Muito bem. - Hector levantou-se, esticou os membros e depois verificou as horas no relógio de pulso. - São já quase sete. Podemos fazer uma pausa. Corre o rumor
de que a chef preparou um festim para esta noite, de modo que estão todos convidados para comparecerem às oito. Têm uma hora para se apinocarem e arranjarem. Até
mais logo.
Foi um longo jantar de mexilhão verde da Nova Zelândia, lagosta do Maine, atum-rabilho, pargo do golfo e Chablis. Hector foi o único a preferir o borgonha tinto.
Antes de terminarem o repasto, receberam a prova de que a própria Jo subestimara a eficiência de Emma Purdom. Enquanto a sobremesa era servida, um dos operadores
radiotécnicos do centro de comunicações da Cross Bow foi à sala de jantar entregar-lhes a resposta de Emma às perguntas de Jo. Hector abriu o envelope e examinou
rapidamente a folha antes de voltar a olhar para os seus convidados.
- Senhoras e senhores, eis o evangelho segundo Santa Emma. O Condor descolou de Kazundu às oito desta manhã, hora de Greenwich, com rumo a Teerão, no Irão, com uma
carga não declarada. A hora prevista de chegada a Teerão é aproximadamente daqui a noventa minutos. Nas três visitas anteriores a essa cidade ao longo dos seis meses
prévios, o Condor permaneceu vinte e quatro horas em Teerão. Claro, isto segundo os regulamentos do Departamento de Aviação Civil, para permitir aos pilotos o tempo
regulamentar de descanso. Depois disso, voou ou para Hong Kong ou para a Rússia. No entanto, regressa sempre a Kazundu via Banguecoque, onde embarca passageiros.
Aposto que desta vez o Condor vai seguir o mesmo percurso de regresso a casa, via Banguecoque. Por esta altura, o Carl e o Johnny já estarão a contar com uma provisão
de carne tailandesa fresca lá dos mercados de Banguecoque.
Segundo Santa Emma, quando os pilotos russos estão na Cidade do Pecado, instalam-se no Mandarin Oriental Hotel para as vinte e quatro horas regulamentares de repouso.
Isso dá à Nastiya e à Nella Vosloo seis dias para chegarem a Banguecoque antes deles e hospedarem-se também no Oriental para darem as boas-vindas aos dois tripulantes
do Condor quando eles chegarem. A Emma enviará então uma mensagem ao comandante, supostamente transmitida pelo próprio Carl Bannock, para recolherem as nossas duas
senhoras e as transportarem para Kazundu.
101
Hector e Jo acordaram cedo na manhã seguinte, nos braços um do outro. Tinha sido uma noite agitada e ambos estavam de ótimo humor. - Importas-te que a Catherine
Cayla se junte a nós? - perguntou Hector.
- Oh, vai ser divertido! É uma excelente ideia - aprovou Jo com entusiasmo.
Pouco após a sua breve chamada pelo intercomunicador para Bonnie no quarto de criança, alguém bateu discretamente à porta.
- Quem é? - perguntou o Hector. - Somos nós - respondeu Bonnie numa voz cantante. - A porta está aberta. Faça passar a parte mais pequenina desse "nós", por favor,
Bonnie.
A porta entreabriu-se e Catherine foi deixada na soleira. Vestia um imaculado babygro cor-de-rosa e tinha no cabelo uma fita a condizer. Sentou-se muito decidida
no chão e olhou em redor da divisão com uma expressão de perplexidade.
- Estou aqui, Cathy, minha linda! - chamou-a Hector. A bebé precisou de um momento para se concentrar nas duas cabeças na cama em desalinho. Assim que reconheceu
o pai, emitiu um gritinho feliz, "Ba-Ba", e levantou-se. Caminhou vacilante pelo pavimento amplo, até que reconheceu Jo também. Soltou risadinhas alegres. - Homem!
- cumprimentou-a numa voz clara. - Homem bom!
- Oh, meu Deus! - exclamou Jo. - "Bom" é a palavra nova que ela aprendeu?
- E usou-a para ti, não para mim - resmoneou Hector. - Estou com ciúmes.
Na sua pressa de chegar à cama, Catherine abandonou a postura ereta e começou a gatinhar. Percorreu os últimos dois metros num meio galope. Hector esticou-se para
a arrebatar nos seus braços. Estava quente e enérgica e emanava dela um forte aroma a pó de talco. Ambos se revezaram para a amimarem.
- Será que as duas meninas podem ficar sérias por um segundo, Jo? - disse Hector por fim. - Claro que podemos, mas sérias a propósito de quê? - Dado que tomei a
decisão de te incluir como membro da nossa equipa de ataque a Kazundu... - começou por dizer, mas Jo fez pfft. Cathy achou aquilo muito engraçado. Desatou a rir
deliciada e imitou Jo, salpicando-os a ambos com uma fina nuvem de saliva.
- Agora que as duas senhoras já disseram o que tinham a dizer, já posso continuar. Jo, tu e a Emma Purdom vão precisar de instalar muito rapidamente esse tal sistema
de comunicações que tanto gabas. Podemos entrar em ação muito em breve, dentro de seis ou sete dias.
- Tens toda a razão, meu querido. Falei com a Emma assim que decidi que tinha de ir contigo. Ela sabia exatamente do que precisávamos. Trabalha sob contrato para
a Marinha americana e desenvolveu para eles um pequeno dispositivo inteligente que vem mesmo ao encontro das nossas necessidades. É confidencial, claro, mas ontem
à noite ela enviou-me um deles pelos serviços de entrega postal. Deve chegar cá hoje ou amanhã, o mais tardar.
O dispositivo prometido foi entregue pela DHL em Seascape Mansions ao início dessa mesma tarde. Assemelhava-se a uma mala de mão Hermès Birkin, tanto no tamanho
como na aparência. Este pormenor inspirou Emma a pôr-lhe o nome "Birkin". Pesava pouco mais de quatro quilos.
Hector e Jo saíram para o deserto com o Birkin e pararam o Range Rover um pouco afastado da autoestrada principal, ocultando-o atrás de uma formação rochosa irregular
de siderita escura.
Enquanto ligava o dispositivo, Jo explicou: - A bateria recarregável dá para setenta e duas horas de funcionamento contínuo. A antena está incorporada. Pronto, já
está a fazer contacto por satélite. - Calou-se por alguns segundos e depois prosseguiu: - Na muche! Agora vai entrar automaticamente em contacto com a estação de
Emma como primeira opção.
De repente, uma voz doce, jovem e simpática enunciou de forma clara: - Eco Papa Sete Nove à escuta.
- São as iniciais da Emma e o seu ano de nascimento, mas nunca lhe digas que te contei, senão até me esgana - explicou Jo antes de premir o botão de transmissão.
- Aqui Juliet Sierra. Olá, Emma. É apenas um teste de rádio para te fazer saber que recebi a tua prenda e que estou online.
- É bom ouvir a tua voz, querida Jo. - Continuas a fazer a cobertura dos movimentos do Rapazote e do Grandalhão?
Hector deduziu que estivessem a referir-se a Carl e a Johnny Congo. - Afirmativo, Jo. - Vamos entrar em ação dentro dos próximos seis dias. Depois aviso-te quando
isso acontecer. Entretanto, não deixes a coisa esfriar. Terminado.
- Não a deixo esfriar se tu ajudares a mantê-la dura. Dá-lhe os meus cumprimentos - disse Emma, cortando o contacto.
- Ela já sabe de ti - explicou Jo à laia de desculpa. - E consegue ser muito rude.
- Isso já eu percebi. - Hector sorriu. - E agora, diz-me o que é que esse Birkin tem de especial. A mim parece-me um dispositivo mais do que batido.
- Para começar, há o tamanho e o peso; além disso, tanto o raio de alcance como a receção nas condições mais adversas são impressionantes. - Sim, acabaste de demonstrar
essas qualidades, mas ainda não percebi bem o que é que tem de tão especial.
- Suporta até dez postos de escuta adicionais. Isso significa que, desde que estejas num raio de quinze quilómetros, tu e os líderes da tua equipa podem acompanhar
simultaneamente todas as transmissões da Emma para mim através dos auriculares internos. Assim, ficarão com as mãos livres para poderem enfiar os dedos nos narizes
ou para o que quer que vos apeteça fazer.
- Ótimo - anuiu Hector. - E que mais o torna tão único? - É completamente seguro. Ninguém consegue intercetar as nossas transmissões - disse ela.
Hector pareceu duvidar. - Como assim? - Reparaste no leve clique a cada cinco segundos enquanto a Emma e eu estávamos a transmitir? - perguntou ela.
- Sim, agora que falas nisso. Mas pensei que não passava de interferência estática.
- Não vais ouvir nenhuma estática neste aparelho. Está modulado para ser tão limpinho como a cozinha da minha mãe. - Hector sorriu perante aquela comparação. Jo
prosseguiu: - Aquilo que ouviste era na verdade o rádio da Emma a mudar de frequência. Faz uma mudança aleatória a cada cinco segundos, e o meu aparelho faz o mesmo,
mudando exatamente para a mesma frequência nesse preciso instante. Existem quase cinco mil frequências de modulação em amplitude que os nossos aparelhos podem escolher.
Qualquer outro aparelho que não esteja ligado ao sistema não nos consegue acompanhar.
- Agora fiquei realmente impressionado. Mas que mais coisas tem de especial, se é que ainda há mais?
- Num raio de alcance até quinze quilómetros, não há quase nada que consiga interferir nas transmissões entre o nosso Birkin e os vossos auriculares. Fazes ideia
da espessura das muralhas do castelo lá em Kazundu?
- Não sei com exatidão, mas calculo que sejam bastante grossas - disse Hector.
- Em certos pontos, sobretudo nas masmorras, chegam a ter cinco e seis metros de espessura. E estamos a falar de rocha sólida:
- Impressionante - concedeu Hector. - Mas continua. e tenta impressionar-me um pouco mais.
- Muito bem. Se estiveres nas masmorras do castelo a perseguir o Carl e o Johnny, a Emma pode vê-los lá em Houston, graças às câmaras ocultas, só que não te poderia
transmitir essa informação. Vocês os dois não se poderiam comunicar, precisamente por causa da espessura das muralhas do castelo.
- Grande chatice - concordou Hector. - Mas acho que já percebi qual é o teu papel nisto tudo.
- Vamos lá ouvir o que o rapaz tem a dizer. É a tua vez de me impressionares com a tua perspicácia.
- Estou nas masmorras de Kazundu e não posso falar com a Emma, mas posso falar contigo, porque estás na pista de aterragem no sopé da colina, ou talvez até estejas
lá no alto das muralhas do castelo. A Emma vê o que é que os nossos dois patifórios, o Carl e o Johnny, estão a tramar e diz-te a ti, e tu depois informas-me a mim.
- És tão inteligente como eu esperava que fosses - admitiu Jo. - Acho que agora já percebes porque tenho de ir para Kazundu contigo. Não me podes deixar sentada
aqui em Abu Zara sem fazer nada.
- És esperta como uma raposa manhosa, Jo Stanley! - disse-lhe Hector numa voz severa, mas depois continuou: - Vamos precisar de auriculares internos para cada um
dos nossos líderes de equipa. Precisamos de ter as mãos livres para podermos usar as armas, se for necessário.
- A Emma enviou-me dez conjuntos de auriculares no mesmo pacote onde vinha o Birkin. - Jo abriu a embalagem e mostrou-lhos.
- Ela é, definitivamente, uma jovem muito esperta - reconheceu Hector. - E gosto do som da voz dela. Parece ser muita gira. - Podes tirar o cavalinho da chuva, meu
manganão - admoestou-o Jo. - A Emma é feia como um macaco. Além do mais, sempre que sentires necessidade, esta pequena Birkin aqui ao teu lado ficará feliz por te
fazer a vontade.
102
Nastiya e Nella Vosloo viajaram para Banguecoque em companhias aéreas diferentes. Nastiya foi a primeira a chegar, seguindo-se Nella, oito horas depois, num voo
de Nairobi, no Quénia. Encontraram-se na suíte de Nastiya, na ala Author's Wing do Mandarin Oriental Hotel, com vista para o rio Chao Phraya. Ambas tinham trocado
de roupa e envergavam os seus melhores vestidos de noite. Depois de se cumprimentarem com um abraço, afastaram-se, ainda de mãos dadas, para se examinarem uma à
outra com um interesse afetuoso.
- Estás com ótimo aspeto., Nella. Até parece que foi ontem que te vi pela última vez - disse-lhe Nastiya.
- E tu também! Adoro o teu vestido. A cor assenta-te tão bem. É Prada?
- Sim, é Prada. - Nastiya voltou a abraçá-la. - Vamos beber algo para brindarmos ao nosso encontro? Encontrei uma boa garrafa de vodca no minibar. - Serviu dois
copos, encheu-os de cubos de gelo e brindaram uma à outra com os copos gelados; de seguida, Nastiya deu o braço a Nella e conduziu-a para a varanda.
- Já revistei a suíte. - Nastiya baixou a voz. - Acho que não tem escutas. Mas é melhor falarmos aqui fora, para não corrermos riscos. Já sabes o que temos de fazer?
- Sim, o Hector contou-me tudo. Disse que tinhas fotografias dessas pessoas que vamos revezar. - Nella formulou-o com diplomacia.
Nastiya deixou-a por um momento para ir buscar a sua mala de mão à sala de estar e fechou a porta atrás de si quando voltou. Ambas examinaram as fotografias.
- Este aqui é o comandante - explicou Nastiya. - Chama-se Yuri Volkov. Em russo, Volkov significa "lobo". Com um nome desses, os seus antepassados devem ter sido
aristocratas, antes da revolução. Quando era mais novo, pilotou Mig-29 Fulcrums para a União Soviética.
- É o caça mais importante deles. Só os melhores pilotos russos os podiam pilotar.
- Da - concordou Nastiya. - Mas agora, com a idade e o álcool, deixou de ser um dos melhores. O copiloto dele é o Roman Spartak. Também já tem muita idade, mas não
é tão velho como o Yuri.
Nella decidiu não perguntar a Nastiya o que entendia por "velho". Inquietava-a a suspeita de ela própria poder encaixar-se nessa categoria. Em vez disso, perguntou:
- Quando é que os vamos conhecer?
- Hospedaram-se esta manhã no hotel. Falei ao telefone com o Yuri Volkov esta tarde, logo depois de tu fazeres o check-in. Recebeu as instruções, alegadamente enviadas
pelo Carl Bannock, e está à nossa espera. Ele e o copiloto estão hospedados aqui no hotel. Combinei encontrarmo-nos com o Yuri para uma bebida no Bamboo Bar, às
sete e meia. Por isso, temos uma hora para revermos os nossos planos e certificarmo-nos de que não vamos cometer nenhum erro - disse Nastiya.
À hora combinada, as duas mulheres desceram no elevador para o Bamboo Bar.
- Lembra-te de que não os devemos reconhecer - advertiu-a Nastiya quando entraram na sala do bar que pulsava ao ritmo de uma banda de jazz tailandesa. Os dois russos
estavam sentados no balcão, em tamboretes altos a imitar pele de tigre, e ambos estavam de olhos atentos à porta. Reagiram de imediato assim que elas surgiram à
entrada do bar.
- Já nos viram - disse Nastiya, falando praticamente sem mexer os lábios. - A Emma Purdom enviou-lhes cópias dos nossos passaportes quando lhes intercetou as comunicações.
Aí vem o Yuri. Devia ser um gajo todo bom quando era mais novo.
- Sou o Yuri Volkov. - O russo fez-lhes uma vénia e, de seguida, os seus olhos voltaram a concentrar-se no rosto de Nastiya. - Você deve ser a Nastiya O'Quinn -
disse-lhe em inglês. - Que nome mais estranho para uma rapariga irlandesa. - Estendeu a mão e Nastiya apertou-lha.
- Dantes chamava-me Nastiya Voronova - respondeu ela em russo. - Mas depois casei com um irlandês.
- Ah, está explicado! É um prazer conhecer uma senhora tão charmosa do meu país! - replicou Yuri, voltando a falar na sua língua materna. - Pode chamar-me Nastiya
- disse ela, falando depois em inglês para Nella poder acompanhar a conversa. - Esta é a minha amiga Nella Vosloo. É uma mulher de negócios da África do Sul.
Yuri virou-se para Nella e deu-lhe um aperto de mão. - Espero que me perdoe o meu inglês péssimo.
- O seu inglês é bastante bom - replicou Nella enquanto lhe estudava as feições outrora atraentes mas agora devastadas pela bebida.
- Obrigado, mas não é verdade. - Yuri voltou a virar-se para Nastiya. - Recebi instruções do meu proprietário para as levar a Kazundu para o conhecerem.
- Exato. Temos um negócio especial a tratar com Sua Majestade, o rei John - confirmou Nastiya.
- Se me dão licença, apresento-lhes o meu colega e copiloto. Roman Spartak.
Yuri apresentou-os e pediu vodca para todos. Brindaram uns aos outros e Yuri perguntou, quase num tom de desculpa, se podia ver os documentos de identificação de
ambas, para poder compará-los com as cópias que lhe tinham sido enviadas pelo seu empregador. Depois de comparar os passaportes com as cópias, Yuri descontraiu-se
ainda mais e pediu uma nova rodada de vodca. Uma hora mais tarde, Nastiya escusou-se junto dos homens e levou Nella para a casa de banho das mulheres. Enquanto ambas
retocavam a maquilhagem à frente do espelho enorme, Nastiya perguntou-lhe com tato: - Nella, tens algum interesse pessoal por qualquer um dos nossos novos amigos?
- Não, muito obrigada. O Yuri é muito simpático. Mas estou casada com um homem bom que me faz muito feliz. Há muito tempo que me deixei dessas brincadeiras fora
do casamento.
- O mesmo se aplica a mim. Além do mais, amanhã temos um dia muito ocupado.
Deram as boas-noites aos pilotos e combinaram voltar a encontrar-se no átrio do hotel após o pequeno-almoço na manhã seguinte.
Quando desceram para o átrio no dia seguinte, Yuri tinha dois carros de cortesia do hotel à espera delas na entrada. Partiram para o aeroporto Don Muang, para o
terminal reservado aos jatos privados. Havia outros catorze passageiros na sala de espera privada que aguardavam o embarque no Condor. Eram atraentes raparigas tailandesas
e todas conversavam muito animadas e soltavam risadinhas, empolgadas por estarem prestes a embarcar naquela aventura em África.
- Acho que nem todas elas são raparigas - opinou Nastiya. - O Carl deve andar a dar rédea solta aos seus gostos peculiares. Mas baixa a voz e tenta não fazer essa
cara feia.
Yuri reuniu todos os seus passageiros e conduziu-os através dos postos aduaneiros e de segurança do aeroporto. Foram autorizados a embarcar no miniautocarro que
os levou para junto da gigantesca aeronave Antonov de quatro reatores que aguardava na pista. Subiram a bordo pela rampa na parte traseira da fuselagem.
Foram recebidos pela única hospedeira de bordo, uma africana que conduziu todos os passageiros ao longo do porão de carga vazio até à cabina de passageiros pressurizada
atrás da área de catering e do convés de voo. Quando todos os passageiros se sentaram no compartimento enorme e apertaram os cintos de segurança, a hospedeira de
bordo fechou as portas estanques e fez uma demonstração dos procedimentos de emergência. Entretanto, os pilotos ligaram os motores principais e começaram a rolar
para a extremidade da pista.
O Condor descolou, subiu para a altitude de cruzeiro e partiu em direção a Kazundu, no leste da África. Pouco depois, os passageiros abandonaram-se ao torpor do
voo de longa distância enquanto o Condor rumava a uma velocidade um pouco inferior a oitocentos quilómetros por hora.
Uma hora após a descolagem, a hospedeira de bordo abordou as duas mulheres. - O comandante convidou-as a ir ao cockpit para verem como se pilota a aeronave.
Nastiya olhou para Nella e esta assentiu com a cabeça. Saíram dos seus lugares e seguiram a hospedeira de bordo pela coxia. Sem o deixarem transparecer, ambas aproveitaram
ao máximo a oportunidade para estudarem a configuração da proa da fuselagem e o cockpit. Passaram uma agradável meia hora com os dois russos. Yuri deu o seu melhor
para as impressionar com as especificações do Condor. Até permitiu que Nella se sentasse no seu lugar de comando e tomasse conta dos controlos. Ela soltou risadinhas,
fingindo-se empolgada, e Yuri sentiu-se tão encorajado que pousou a mão no joelho dela. Nella afastou-lha com firmeza e ambas voltaram para os seus lugares na cabina
de passageiros.
- Depois das instruções do Yuri, já não deves ter problemas a pilotá-lo - provocou-a Nastiya.
- Acho que a intenção dele era dar-me o curso completo. - Nella sorriu e tirou da mala de mão um romance de Stephen King em edição de bolso.
Cinco horas mais tarde, Nastiya ligou de forma sub-reptícia o seu GPS portátil e confirmou a posição do Condor: duzentos e vinte quilómetros a leste de Malé, a capital
da República das Maldivas, no oceano Índico. Compôs uma mensagem de uma única palavra em código e enviou-a para um endereço Hotmail criado exclusivamente para esse
efeito. Essa breve transmissão iria alertar a central da Cross Bow que estavam prestes a entrar em ação.
Quatro minutos depois, recebeu a resposta e a ordem para prosseguir. A mensagem dizia apenas "EIB". Não pôde impedir-se de sorrir perante mais esse exemplo do sentido
de humor à rapaz escuteiro de Hector. O acrónimo significava: "Esvaziar Intestinos e Bexiga".
Nastiya inclinou-se sobre a coxia e tocou no braço de Nella. Nella abriu os olhos, endireitou-se no assento e anuiu com a cabeça. Nastiya desapertou o cinto de segurança,
levantou-se e retirou a pequena mala de viagem do cacifo em cima. Depois encaminhou-se pela coxia até à casa de banho entre a área de catering e o convés de voo.
Por trás das cortinas que isolavam a área dianteira da cabina de passageiros, a hospedeira de bordo estava a ler uma revista, sentada no seu assento rebatível na
área de catering. A porta para o convés de voo estava entreaberta e Nastiya pôde ver as nucas dos pilotos sentados aos comandos do Condor. Nastiya fez uma careta
ao reparar pela primeira vez que Yuri tinha uma pronunciada falha de cabelo na parte de trás do couro cabeludo e que a cobrira com alguns finos caracóis grisalhos.
Os três membros da tripulação do Condor estavam relaxados; entediados e de guarda em baixo. Certamente já tinham voado centenas de horas juntos nessa rota e as suas
precauções de segurança eram mínimas ou inexistentes.
A hospedeira de bordo africana ergueu a cabeça e sorriu a Nastiya. A russa retribuiu-lhe o sorriso e foi à casa de banho. Trancou a porta e pousou a pequena mala
de viagem no chão. Abriu o fecho das calças de ganga e baixou-as, juntamente com as cuecas, até aos tornozelos, sentando-se depois na sanita. Como Hector lhe recordara
com a sua mensagem codificada, era sempre uma precaução sensata esvaziar a bexiga e os intestinos antes de entrar em ação.
Inclinou-se para a frente e colocou a mala entre os pés. Abriu-a e tirou uma caixa de tampões do fundo. Removeu cuidadosamente da caixa quatro dos tubos de aplicação
em cartão branco. Em vez do conteúdo publicitado na caixa, cada tubo continha uma das seringas hipodérmicas Hypnos que Dave Imbiss lhe fornecera. Nastiya tinha modificado
o bolso interior do seu casaco de ganga, acrescentando-lhe quatro pequenas aberturas que cosera à mão. Cada uma das seringas hipodérmicas Hypnos encaixava na perfeição
em cada abertura, pronta para ser usada.
Nastiya guardou a caixa de tampões e fechou a mala. Depois terminou as suas abluções e ajustou a roupa. Verificou a maquilhagem e a sua aparência no espelho por
cima do lavatório. Franziu a testa e fez uma anotação mental para marcar uma consulta no seu dermatologista para mais uma série de injeções de Botox assim que regressasse
a Londres. Gostava de estar no seu melhor aspeto, mesmo quando se encontrava prestes a entrar em combate. Descarregou o autoclismo e abriu a porta.
A hospedeira de bordo ergueu a cabeça e voltou a sorrir-lhe. - Temos alguns petiscos, se estiver com fome. - Apontou para uma série de pratos na mesa da área de
catering.
- Muito obrigada. - Nastiya pousou a mala no chão para ter as mãos livres. Escolheu uma única uva madura, enfiou-a na boca e rebentou-a com a língua contra o céu
da boca. Saboreou o gosto doce enquanto esperava que a hospedeira de bordo voltasse a concentrar-se na revista. Tirou então uma das seringas Hypnos do bolso interior,
removeu a tampa protetora com o polegar para expor a agulha e virou-se para a jovem sentada a ler.
A hospedeira de bordo usava um uniforme de camisa azul de mangas curtas. Estava parcialmente virada de costas para Nastiya.
- Desculpe-me, menina. - Nastiya falou num tom calmo e sereno enquanto apoiava levemente a mão no ombro esquerdo da rapariga. A jovem olhou para cima, um pouco surpreendida,
quando Nastiya lhe enfiou a ponta da agulha no tríceps de pele reluzente e escura. A agulha era tão afiada que a picada foi indolor. Nastiya premiu o tubo de acrílico
macio e sorriu à rapariga. A hospedeira retribuiu-lhe o sorriso e depois os seus olhos vidraram-se e o seu corpo mergulhou na inconsciência. Nastiya abraçou-a pelos
ombros e usou a outra mão para lhe apertar o fecho do cinto de segurança e evitar assim que tombasse e se magoasse.
Nastiya aproximou-se até poder ver através da entrada para o convés de voo. Os dois pilotos continuavam sentados nos seus lugares. Usavam volumosos auscultadores
de rádio e camisas de algodão de mangas curtas com estampados tropicais. Roman, o copiloto, estava a falar ao microfone portátil do rádio. Nastiya ouviu-o referir
a presente posição do Condor à torre de controlo de Malé, nas Maldivas, que agora se encontrava apenas oitenta quilómetros a estibordo.
Nastiya inclinou-se para espreitar por cima da cabeça de Yuri e verificar se a luz do piloto automático estava acesa no painel de controlo. A luz piscava num verde
tranquilizador. Esperou que Roman terminasse a transmissão rádio e afastasse o microfone portátil.
Nastiya segurava uma seringa Hypnos em cada uma das mãos atrás das costas. Removeu-lhes as tampas protetoras para expor as agulhas. Avançou em silêncio para dentro
do cockpit. Os dois russos não se deram conta da sua presença. Surgiu por trás deles e enfiou simultaneamente as agulhas num dos ombros de cada um deles. As agulhas
minúsculas trespassaram tecido e pele e Nastiya injetou-lhes o anestésico.
Ambos os homens tiveram apenas tempo para se virarem e a reconhecerem. Yuri abriu a boca para falar, mas tombou para a frente, contra as correias do cinto de segurança,
antes que pudesse fazê-lo. Alguns segundos depois, foi a vez de Roman mergulhar no olvido. Nastiya procedeu a uma verificação rápida, para ter a certeza de que ambos
estavam bem presos pelos cintos de segurança e respiravam sem impedimentos. Depois inclinou-se sobre o ombro de Roman para alcançar os controlos do rádio e desligou-o.
Satisfeita por fim, voltou para a entrada da cabina de passageiros e espreitou através da nesga nas cortinas. Todos os passageiros tailandeses estavam a dormir.
No entanto, Nella Vosloo estava sentada inclinada para a frente, alerta aos sinais da amiga. Nastiya fez-lhe sinal com a cabeça. Nella levantou-se e avançou pela
coxia ao seu encontro.
No cockpit, Nella ajudou Nastiya a retirar os dois pilotos dos seus lugares e a pousá-los no chão. Nastiya tirou da mala um conjunto de resistentes braçadeiras de
cabo de nylon. Usaram-nas para imobilizar os braços e as pernas dos pilotos. Depois arrastaram um de cada vez para a área de catering.
- Quanto tempo dura o efeito da droga? - perguntou Nella baixinho. - Segundo o Dave Imbiss, devem ficar inconscientes durante cerca de três ou quatro horas, dependendo
da resistência individual de cada um à droga. Mas se precisarmos deles acordados antes desse tempo, o Dave deu-me um antídoto que os despertará num instante - explicou
Nastiya. - Temos de separar os pilotos. Se os deixarmos juntos, de certeza que quando acordarem vão tentar arranjar alguma forma de nos criarem problemas.
Arrastaram Yuri para dentro do pequeno compartimento de armazenamento entre a casa de banho e a área de catering. Sentaram-no no chão, com as costas apoiadas contra
as prateleiras. Usaram mais braçadeiras de cabo para o prenderem com firmeza à estrutura de aço das prateleiras. Depois amordaçaram-no com um pedaço de fita adesiva.
Trancaram a porta à chave quando saíram.
De seguida, voltaram atrás e arrastaram Roman para dentro da casa de banho. Sentaram-no no chão e amarraram-lhe os pulsos aos apoios de mão por cima da cabeça dele
na parede. Amordaçaram-no como tinham feito a Yuri. Nella encontrou a chave da casa de banho no bolso do avental do uniforme da hospedeira de bordo. Trancou a porta
e colocou-lhe um sinal que dizia "Fora de Serviço.
Deixaram a hospedeira de bordo imobilizada pelo cinto de segurança no seu assento rebatível, mas também a amordaçaram e usaram mais braçadeiras de cabo para lhe
amarrarem as mãos atrás das costas, para não poder alcançar a fivela do cinto de segurança. De seguida, fecharam a cortina da coxia para que nenhum dos passageiros
tailandeses a encontrasse e causasse agitação.
Assim que os três membros da tripulação foram imobilizados, Nastiya deixou Nella assumir o comando da aeronave enquanto voltava para o seu lugar na cabina de passageiros,
de onde poderia vigiar os outros passageiros com um olhar maternal e certificar-se de que nenhum deles se aventurava pela coxia até à área dianteira da aeronave
para usar a casa de banho onde Roman dormia o sono da inconsciência.
Nella trancou-se no convés de voo e ocupou o lugar de comando de Yuri. Inseriu no sistema de navegação por satélite as coordenadas da pista de aterragem na plataforma
de perfuração da Bannock Oil na concessão Zara Número Treze. Depois desligou o piloto automático e assumiu o controlo manual do Condor. Dirigiu-o para uma nova rota
de voo de 325 graus magnéticos. A mudança de curso foi obviamente muito suave, para não alarmar nenhum dos passageiros adormecidos.
Muito mais tarde, quando faltava apenas uma hora para chegarem ao seu destino, Yuri Volkov recuperou a consciência. Começou a dar pontapés na antepara com ambos
os pés amarrados e a berrar por trás da mordaça como um búfalo atolado num pântano. Nastiya apressou-se a correr para o exíguo compartimento de armazenamento e acocorou-se
à frente dele.
- Por favor, porta-te bem e mantém-te calado, Yuri. - Falou-lhe em russo, tentando chamá-lo à razão. - Estás a perturbar os outros passageiros. - Mostrou-lhe outra
das seringas Hypnos. - Pareces-me ser um homem simpático e razoável e não me quero ver forçada a espetar-te outra agulha. - Yuri parou de gritar. - Obrigada. - Nastiya
dirigiu-lhe um sorriso caloroso. - Garanto-te que não temos nada contra ti. O meu chefe disse-me que, se cooperares, serás libertado incólume muito em breve. Além
disso, paga-te um ano de salário como compensação pelos transtornos sofridos, bem como mais outro ano de salário pela perda do teu emprego atual. Tudo isto se aplica
também ao Roman e à vossa hospedeira de bordo. Podes dizer-lhes isso quando tiveres oportunidade. - Calou-se para o deixar refletir naquela proposta e depois prosseguiu:
- Se prometeres não causar mais problemas, tiro-te a mordaça para podermos falar. Mas já sabes o que acontece se começares a gritar outra vez. Acena com a cabeça
se compreendeste e estás de acordo.
Yuri anuiu vigorosamente com a cabeça. Quando ela lhe tirou a fita adesiva, Yuri abriu e contorceu os maxilares para reativar a circulação, enquanto ao mesmo tempo
estudava o rosto de Nastiya. - Ah, já percebi! - exclamou ele por fim, em russo. - Já percebi o que andam a tramar. Andam atrás daqueles dois merdosos de Kazundu,
certo? - Usou o substantivo gavno, um termo russo particularmente ofensivo que significa "excremento".
- A tua mãe nunca te avisou para não falares assim à frente de uma senhora? - repreendeu-o Nastiya numa voz afetada. - Seja como for, não faço ideia a quem te referes
nesses termos tão depreciativos.
- Chepukha! Claro que sabes. - Yuri sorriu-lhe. - Refiro-me a Sua Majestade, o rei John, e ao seu primeiro-ministro, Carl Bannock. Podes-me fazer um grande favor
e dar-lhes uma boa sova da minha parte quando apanhares esses dois animais.
Nastiya ouviu-o até ao fim e depois olhou-o com calma, antes de lhe perguntar: - Trataram-te mal, esses dois cavalheiros?
- Cavalheiros é coisa que não são - corrigiu-a Yuri num tom inflamado. - São escumalha e criminosos da pior espécie. Tratam-nos a todos como se fôssemos lixo. Troçam
de mim e insultam-me de cada vez que falam comigo. E estão-me sempre a vigarizar no salário que me é devido por justiça. - Calou-se para recobrar o fôlego e conter
a raiva. - São uns animais pervertidos. Se te dissesse o que eles vão fazer com aqueles passageiros lá atrás, até te dava vontade de vomitar. - Conta-me! - incitou-o
Nastiya. - Vão enchê-los de álcool e drogas e depois vão obrigá-los a fazer todo o tipo de porcarias obscenas e nojentas. E quando se cansarem deles, largam-nos
e mandam vir mais para os maltratar e abusar deles. Odeio aqueles cabrões. Adorava vê-los queimados vivos, juro-te!
- Porque é que não tentaste fazer nada contra isso? - perguntou-lhe ela numa voz pausada.
Yuri pareceu ficar envergonhado. - Pensei muitas vezes nisso, mas eles têm tanto poder e dinheiro. O que é que um velho completamente arruinado como eu podia fazer?
Preciso de comer. E eles foram os únicos que aceitaram dar-me trabalho.
Nastiya reparou na sua angústia patente e mudou de tom. - Agora que nos tornámos amigos e nos compreendemos e confiamos um no outro, talvez me possas dizer quais
são os vossos procedimentos de rádio aquando da aproximação à pista de aterragem em Kazundu - instigou-o Nastiya, dirigindo-lhe um dos seus sorrisos mais sedutores.
Yuri riu-se. - Vou-te ajudar em tudo que puder, minha querida. Quando estou a atravessar o lago, chamo o castelo nos 121,975 megahertz. Depois, aquele cabrão seboso,
o Bannock, põe-se a insultar-me durante um bom bocado. Trata-me como se eu fosse uma espécie de saco de boxe verbal. Depois disso, dá-me autorização e sobrevoo a
pista de aterragem a cento e cinquenta metros de altitude, para verificar a direção do vento na biruta, não vá aquele porco traiçoeiro dar-me informações erradas
de propósito. De seguida, viro na direção do vento, desço com vento lateral e aterro.
- Fazes algum sinal de chamada específico para te identificares? - Não, o Carl Bannock reconhece a minha voz. Diz que falo inglês como um elefante a dar peidos húmidos.
- O que aconteceria se aterrasses sem autorização?
- Não sei. Nunca o tentei fazer. Se calhar, enchia-me de balas com aqueles canhões de calibre cinquenta que montaram em cada extremidade da pista.
- Obrigada, Yuri. - Nastiya levantou-se. - Agora que somos amigos e nos compreendemos e confiamos um no outro, que tal se me tirasses estas coisas dos pulsos - implorou
ele.
- Não nos compreendemos nem confiamos um no outro tanto assim como dizes - replicou Nastiya com remorsos.
- Bem, pelo menos podias trazer-me alguma coisa para beber - disse-lhe. - Não sei que droga me injetaste, mas deixou-me com muita sede.
- Vou buscar-te um copo de água. - Não estava a pensar em água. - Yuri falou num tom ofendido. Nastiya riu-se e foi à área de catering buscar uma garrafa de vodca.
- És a mulher mais linda e mais gentil que já conheci, mas não consigo beber assim de mãos atadas.
- Sim, sou muito bela e gentil - anuiu Nastiya. - Mas não sou parva. - Mostrou-lhe a palhinha que tinha na outra mão. Acocorou-se ao lado dele e enfiou-lhe uma das
pontas entre os lábios. Depois, enfiou a outra ponta no gargalo da garrafa. Yuri sorveu e engoliu várias goladas até Nastiya lhe retirar a palhinha da boca para
ele poder respirar.
- Não és casada, pois não? - perguntou ele numa voz ainda rouca e entrecortada devido à pureza do álcool.
- Não reparaste nisto? - Pôs-se a girar o anel à frente dos olhos dele.
- Da, reparei, mas estava a contar que não passasse de camuflagem para manter os lobos ao longe - disse Yuri com toda a seriedade. - Por favor, diz-me que me amas
tanto como eu te amo, Nazzy, querida.
Nastiya lançou a cabeça para trás e riu com deleite. - Pobre Yuri Volkov! Não seguiste a tua vocação. Podias arranjar trabalho no Circo Estatal de Moscovo. Têm sempre
falta de palhaços - replicou ela. - Aqui vai a tua recompensa por te esforçares tanto. - Voltou a enfiar-lhe a palhinha na boca.
103
Para manter o silêncio de rádio, Nella sobrevoou a baixa altitude a pista de aterragem no Zara Número Treze para anunciar a sua chegada. Assim que completou o giro,
alinhou a aeronave com a pista e baixou o trem de aterragem. Paddy O'Quinn já fizera marchar o contingente inteiro da Cross Bow para o perímetro para dar as boas-vindas
ao Condor.
Nella pousou o monstruoso aparelho na pista, com a mesma delicadeza do beijo de uma virgem. De seguida, fê-lo rolar para trás e, com uma rajada dos motores de bombordo
e uma travagem com as rodas de estibordo, pôs o gigantesco Condor a executar uma pirueta como uma bailarina até alcançar o lugar de estacionamento. baixando depois
a rampa de carga na parte traseira.
Finalmente, desligou os quatro motores e, no silêncio repentino que se abateu, os homens de Paddy irromperam em vivas de júbilo e atiraram as boinas ao ar enquanto
avançavam em grupo para junto da rampa de carga para acolher as duas heroínas. Paddy O'Quinn foi o primeiro homem a subir pela rampa à procura de Nastiya. Bernie
Vosloo seguiu-o de imediato, a dois meros passos atrás dele. Ambos abraçaram as respetivas mulheres com alegria e alívio. As confusas e aterrorizadas prostitutas
tailandesas foram direcionadas pela rampa abaixo e enfiadas, com os modos afáveis de um tio, na traseira de um camião que as aguardava.
- Já tem as suas ordens, sargento - disse Hector ao oficial que tinha colocado ao comando do destacamento de guarda. - Se qualquer um dos seus homens tocar numa
destas miúdas, eu próprio lhe parto os tomates.
- Vou fazer com que se portem como deve ser, senhor. - O sargento fez a continência, mas lançou um olhar melancólico a algumas das lindas prisioneiras antes que
os seus homens as levassem, todas chorosas e angustiadas, para o bloco de detenção onde ficariam em segurança atrás das grades, fora da vista e dos pensamentos dos
cerca de cinquenta jovens operacionais cheios de testosterona que compunham o destacamento especial da Cross Bow. Num combate, Hector não hesitaria em colocar a
sua vida nas mãos dos seus rapazes; mas, em matéria de libido, não confiaria em nenhum deles, mesmo que lhes tivessem amarrado um cinto de castidade.
Hector concentrou-se em Paddy e Nastiya, que ainda continuavam abraçados um ao outro. - Quando fizeres uma pausa para recobrar o fôlego, Nazzy, gostava de te dar
uma palavra.
Nastiya olhou-o por cima do ombro do marido. - Podes falar, Hector. Consigo fazer as duas coisas ao mesmo tempo. Fala comigo. Sou toda ouvidos.
- O que fizeste à tripulação do Condor? Nastiya lançou-lhe um olhar de sofrimento. - Porque é que escolhes sempre o momento menos adequado, Hector Cross? Pronto,
vem comigo. Vou-te mostrar. Mas primeiro devo-te dizer que o comandante Yuri Volkov está disposto a cooperar, por dinheiro. Foi muito maltratado pelo Johnny e pelo
Carl e desaprova fortemente a orientação sexual deles.
Os três membros da tripulação do Condor deram voluntariamente a sua palavra de honra e Hector ordenou que lhes tirassem os cabos dos pulsos e dos tornozelos. Apesar
da escassez de alojamento para o destacamento especial de operacionais reunidos, os pilotos russos foram acomodados numa tenda separada. Era pouco provável que tentassem
escapar. Não faziam a mínima ideia de onde estavam, nem que direção deveriam seguir ou a que a distância se encontravam da liberdade. Ainda assim, Hector postou
duas sentinelas para garantir que cumpriam a palavra.
Contudo, não queria correr o mesmo risco com a hospedeira de bordo, a jovem africana em idade núbil. Também queria mantê-la a uma distância segura dos seus homens.
Hector chamou Yuri à parte para que os colegas dele não pudessem ouvir a conversa e negociou um acordo para obter a sua cooperação total. Depois levou-o para a sala
de comunicações e colocou-o à frente do aparelho de rádio. Entregou-lhe uma folha datilografada na qual estava escrito aquilo que deveria reportar a Carl em Kazundu.
Depois sentou-se ao lado dele, com a mão no disjuntor, preparado para cortar a transmissão se Yuri se desviasse de qualquer um dos pormenores do guião à sua frente.
Demoraram quase vinte minutos a entrar em contacto com o centro de comunicações na sala do trono no Castelo de Kazundu. e houve outro atraso enquanto Carl Bannock
era chamado pelo oficial de serviço.
Carl comunicou finalmente. - Onde diabos estás, Volkov? Estás com um atraso de quase seis horas, seu estúpido imbecil.
- Lamento muito, senhor. - O tom de Yuri era servil e obsequioso. - Tivemos uma avaria total do rádio cinco horas depois de descolarmos de Banguecoque, e vi-me forçado
a desviar o Condor para o aeroporto na cidade de Abu Zara para proceder à reparação.
- Mas tu perdeste a cabeça, seu merdoso? O aeroporto mais próximo era em Malé, nas Maldivas, ou mesmo no Sri Lanka ou em Mumbai. - rugiu Carl Bannock com uma frustração
enraivecida. - Porque é que te afastaste tanto da rota, seu idiota?
- Senhor Bannock, Abu Zara é o centro mais próximo da Ásia ou do Médio Oriente onde se podem encontrar as peças para o nosso transístor suíço EX12 AYRAN. - Yuri
sabia que podia iludir Carl com o jargão técnico.
Fez-se um breve silêncio na linha e depois Carl rosnou a pergunta. - Quanto tempo vais demorar, Volkov, seu cretino?
- Mais de setenta e duas horas, se o senhor quiser que eu espere aqui até o rádio ficar reparado. E isto sem incluir o tempo efetivo de voo. - Recolheste os passageiros
em Banguecoque? - perguntou-lhe Carl, mudando repentinamente de assunto.
- Sim, senhor Bannock! Estão todos aqui comigo.
Hector imaginou Carl a fumegar de luxúria, impaciente por deitar as mãos aos seus pequenos brinquedos sexuais. Yuri sorria enquanto também saboreava aquele momento,
mas continuou num tom de voz contrito e desejoso de agradar. - Posso voar sem o rádio e chegar a Kazundu em menos de dez horas, se for essa a sua ordem, senhor Bannock.
Naturalmente que não poderei iniciar o procedimento de rádio habitual durante a minha aproximação a Kazundu.
- A torre de controlo nunca te deixaria descolar de Abu Zara sem comunicação rádio, seu paneleiro estúpido!
- Posso dar a volta a isso, senhor. Tenho um contacto na torre de controlo, mas vai ser preciso untar-lhe as mãos. Está a pedir mil dólares americanos. - Está bem,
Yuri Volkov, paga-lhe e depois põe-me esse cu fedorento russo aqui o mais rápido possível, estás-me a ouvir? Devia-te despedir, seu jarreta xexé. - A comunicação
de rádio foi cortada abruptamente.
- Agora já percebo porque é que adoras e respeitas tanto o teu chefe, Yuri. - Hector levantou-se e deu-lhe uma palmadinha no ombro. - Fizeste um bom trabalho a convencê-lo.
Quero que tu e a tua equipa fiquem aqui na base até eu voltar desta missão. Nessa altura, pago-te o montante que acordámos. Depois, levo-vos aos três para o Dubai
para apanharem um voo para qualquer lugar do mundo que preferirem. Talvez vos pague até os bilhetes.
104
Hector e Paddy tinham planeado cuidadosamente os complexos procedimentos de carga do Condor. As tropas e os equipamentos que deveriam chegar em primeiro lugar à
pista de aterragem em Kazundu teriam de ser os últimos a subir a bordo do Condor na concessão Zara Número Treze.
Ainda assim, passaram-se quase duas horas desde o momento em que Hector deu a ordem de partida até Bernie e Nella Vosloo fazerem descolar ruidosamente o Condor com
a sua pesada carga na noite iluminada pela lua. A uma altitude de cerca de quatrocentos e cinquenta metros por cima do deserto, Bernie rumou a aeronave para sudoeste,
para atravessar o Corno de África e virar depois um pouco para oeste, em direção à ponta sul do lago Tanganica e do reino de Kazundu na margem ocidental.
Hector calculara cuidadosamente o tempo de descolagem, de modo a garantir que chegassem a Kazundu uma hora após o nascer do sol. Era uma solução de compromisso.
Se chegassem assim que houvesse claridade suficiente para uma aterragem segura, era muito provável que Johnny e Carl não saíssem da cama para irem à pista receber
os seus convidados tailandeses. A situação ideal seria ter os dois alvos na pista de aterragem quando a rampa na cauda do Condor fosse baixada e os operacionais
da Cross Bow caíssem sobre eles.
Se o Condor chegasse muito mais tarde, e se depois se envolvessem num combate encarniçado com Johnny e os homens de Carl Ngewenyama, correriam o risco de ficarem
encurralados num combate noturno. Na escuridão, a equipa da casa estaria definitivamente em vantagem.
As cartas estavam na mesa e não havia mais nada que pudessem fazer, a não ser partir ao encontro do amanhecer e do inimigo.
Hector não tinha nenhuma dúvida sobre a forma como queria passar a noite. No entanto, a única área isolada a bordo da aeronave sobrelotada era o minúsculo compartimento
de armazenamento de bagagem entre o convés de voo e a área de catering, onde Nastiya prendera Yuri Volkov. Hector delimitou essa zona como o seu domínio privado
e, assim que as luzes interiores foram desligadas e os homens se instalaram para passar a noite, deu a mão a Jo e levou-a para lá.
A porta não tinha fechadura do lado interior, mas obstruíram-na com o peso dos próprios corpos. As paredes divisórias eram finas, mas não se preocuparam com a possibilidade
de alguém poder ouvir os seus gemidos. Não havia espaço suficiente para se deitarem lado a lado, mas também nunca fora essa a intenção de Hector. O chão era duro,
mas pareceu-lhes tão macio como um leito de penas. A noite foi longa, mas para eles foi fugaz. A aeronave dirigia-se para o vale da sombra da morte, mas ambos sussurraram
um ao outro apenas palavras de uma vida partilhada e amor eterno. Ao amanhecer, apesar de não terem descansado, sentiam-se renovados e fortalecidos, acreditando
serem tão imortais como o amor que nutriam um pelo outro.
Quando o alarme do relógio de pulso de Hector soou, saíram do seu esconderijo e postaram-se à entrada do cockpit. Bernie girou no assento do piloto à esquerda e
saudou-os.
- Dormiram bem? - Tentou conter um sorriso. - Maravilhosamente - disse Hector. - Como anjinhos. Quanto falta ainda, Bernie? - Não me perguntes a mim. - Bernie encolheu
os ombros. - Sou apenas o motorista. Pergunta à tua navegadora.
Hector virou-se para ela. - Que tal nos estamos a sair, Nella? - Faltam quarenta e três minutos para chegarmos ao destino. Aquela coisa grande e brilhante ali à
nossa frente é o lago Tanganica.
Hector e Jo inclinaram-se sobre as costas dos assentos dos pilotos para espreitarem.
O Sol quase assomara acima do horizonte a bombordo e atravessavam agora um profundo vale de nuvens cúmulos-nimbos, cujos picos superavam amplamente a própria altitude
a que a aeronave se encontrava: quatro mil e quinhentos metros, segundo indicava o painel de instrumentos. As montanhas de nuvens, em tons prateados e azuis lívidos,
pareciam sólidas como gelo.
A sombra do Condor que o sol nascente lançava sobre as vertentes reluzentes das nuvens surgia grosseiramente ampliada e distorcida. rodeada de uma auréola com as
cores do arco-íris enquanto as atravessava.
- Oh, olha-me só aquilo! - gritou Jo, apontando para o nariz do Condor. - Apesar da altitude, viram diretamente à sua frente a forma escura de uma águia-pescadora
em voo, iluminada por trás pelo reflexo das nuvens. Pairava de asas estendidas e parecia imóvel. Mas quando o Condor se aproximou velozmente, a ave inclinou uma
das asas e mergulhou num voo picado que intercetava a rota deles. Passou tão perto das pontas das asas do avião que conseguiram ver-lhe o brilho de um dos olhos
da cor de ágata acastanhada na máscara de pele facial amarelada, e distinguir-lhe cada uma das penas individuais na poupa nívea alisada contra o crânio devido à
velocidade do mergulho a pique.
- Meu Deus, que criatura tão magnífica! - exclamou Jo. arrebatada, quando a águia sumiu da sua visão e foi engolida pela imensidão do espaço.
No solo, muito abaixo deles, a savana e as florestas africanas estavam pintalgadas com as sombras das nuvens e a luz brilhante do sol. Diretamente à sua frente,
a superfície reluzente e prateada do lago ofuscou-os.
Bernie reduziu a aceleração dos motores para iniciar a descida e baixaram em direção à terra, no meio das cintilantes vertentes das nuvens. As agulhas do altímetro
giraram com suavidade no sentido inverso ao dos ponteiros do relógio e o Condor atravessou a margem nordeste do lago, a mais de dois mil e quinhentos metros de altitude.
- Vinte e um minutos até ao destino - advertiu-os Nella. Hector tirou-lhe da mão o microfone do rádio e aproximou-o dos lábios. A sua voz atroou através do sistema
de amplificação interno do Condor. - Toca a acordar, meus senhores! Toca a acordar! Larguem as piças e calcem as meias'. Vinte minutos até ao alvo.
Por baixo deles, a superfície do lago estava juncada de finos tentáculos de neblina. Bandos de centenas de flamingos voavam uns atrás dos outros numa única linha
a baixa altitude por cima deles. Correntes ascendentes de ar quente sustentavam-lhes o voo e depois as aves voltavam a baixar quando encontravam correntes descendentes
mais frias, de modo que pareciam entretecer guirlandas rosadas e ondulantes sobre a superfície do lago. Observaram-nas do cockpit num silêncio reverente.
- Quinze minutos para chegar ao destino - anunciou Nella,
quebrando o encanto.
Jo gritou quase de imediato: - Lá está! À nossa frente! O castelo na colina!
Hector pegou no microfone do sistema de amplificação interna e
falou: - Muito bem, quero que todos os líderes de equipa liguem os auriculares Birkin de retransmissão. Vamos comunicar em direto
com a Emma em Houston. - Fez sinal ajo para iniciar o contacto.
- Emma, estás a ouvir? - falou jo num tom de conversa para o Birkin.
A resposta chegou de imediato. - Estou a ouvir, Jo. Tenho Imagens em direto dos dois alvos. Tanto o Grandalhão como o Pequenote estão no quarto principal do castelo.
E têm companhia, como de costume. Todos parecem estar a dormir. - O seu tom de voz alterou-se de repente e tornou-se mais agudo.
Nota de Rodapé: No original, "Drop your cocks and grab your cocks": uma expressão caserna muito usada no âmbito do exército para exigir rapidez aos recrutas no momento
de acordar. Esta expressão, com origem no livro Os Contos d,a Cantuária, escrito pelo inglês Geoffrey Chaucer no século XIV, começou a divulgar-se sob a forma de
epígrafe ao livro Opus Pistorium (uma novela -zlernográfica) escrito por Henry Miller em 1941, e posteriormente através
filme Nascido para Matar (Fun Metal Jacket), realizado em 1987 por Sc krilev Kubrick.
Fim da nota.
- Espera, o Grandalhão está-se a mexer. Está a levantar-se da cama e agora dirigiu-se para as portas do terraço. Perdi-o de vista agora. Deve ter saído para o terraço.
- Achas que ele ouviu os motores do nosso avião e foi lá fora verificar? - aventou Jo.
- Sim, tenho quase a certeza de que foi isso - concordou Emma. - Os outros também começaram a mexer-se agora. Sim, estou a captar o ruído dos motores do vosso avião
nos meus auscultadores. Agora estão todos a levantar-se da cama. Já não via tanta carninha a desfilar assim desde a última vez que estive em Las Vegas.
105
Carl Bannock abriu os olhos, despertado pelo facto de Johnny Congo já não estar a seu lado na cama. Ao longo dos anos que tinham vivido juntos, havia-se acostumado
ao ressonar retumbante e agudo de Johnny. Dava-lhe uma reconfortante sensação de segurança e de proteção total. Soergueu-se na gigantesca cama em desalinho e olhou
à sua volta, de olhos congestionados. O quarto era do tamanho de um salão de dança. Para além da sua cama, havia outras vinte e três dispostas no centro da divisão.
Em todas eles, exceto numa, viam-se corpos nus de ambos os sexos, estirados na mesma profusão selvagem dos mortos e feridos na sequência de uma batalha épica e feroz.
"As batalhas de Gettysburg e de Álamo fundidas numa só." Sorriu e essa imagem fê-lo sentir-se melhor. Havia uma rapariga deitada em cima das suas pernas e o seu
traseiro magro reavivou-lhe o interesse por um breve instante, mas depois tocou nos seus próprios órgãos genitais, que continuavam inchados e inflamados da farra
da noite anterior.
- Sai de cima de mim, sua putinha. - Escorraçou-a aos pontapés e a rapariga rolou até ficar deitada de costas, sem chegar a acordar, ainda perdida no torpor das
drogas e do álcool.
Nota de Rodapé: Batalha de Gettysburg: a mais feroz batalha da Guerra Civil Americana, travada durante três dias em 1863, com um balanço final superior a cinquenta
mil mortos. Batalha do Álamo: acontecimento crucial da Revolução do Texas, ocorrido em 1836 no âmbito das disputas territoriais que opunham o México aos EUA.
Fim da nota.
Carl sentou-se lentamente e esfregou as têmporas onde sentia uma dor baça a latejar. Olhou em redor do quarto e a sua atenção concentrou-se na única cama desocupada.
Por momentos, ficou perplexo ao reparar nos lençóis da cama empapados de sangue e de outros fluidos corporais. Depois, os acontecimentos da diversão na noite anterior
começaram a acudir-lhe à memória. Abanou a cabeça e franziu a testa ao lembrar-se vagamente de que, a certa altura durante a folia, Johnny Congo insistira em perpetrar
a violação anal da rapariga mais jovem e mais franzina. Embora os seus documentos de identificação comprovassem que tinha dezoito anos, o seu corpo infantil fazia
lembrar o de um duende - e fora precisamente isso que excitara Johnny. A rapariga resistira sempre com firmeza a todos os esforços dele para a convencer a esse ato,
e Johnny chegara mesmo a oferecer-lhe uma quantia absurda de dinheiro. No entanto, aquela fora a última noite e Johnny chegara ao limite da sua paciência. Carl riu-se
enquanto as memórias lhe acudiam à mente com toda a força. Carl e dois dos travestis mais fortes tiveram de se esforçar ao máximo para sujeitarem a rapariga e permitirem
que Johnny alcançasse o seu objetivo. Os esforços e os gritos da rapariga enquanto se debatia, e por último os seus soluços entrecortados, foram abafados pelos rugidos
de Johnny Congo sob o efeito do ecstasy enquanto se abandonava àquela selvajaria. Os homens que a imobilizavam e os espectadores reunidos à volta da cama riam-se
e instigavam Johnny a realizar façanhas ainda maiores.
Fora só mais tarde que Carl, apesar do torpor mental induzido pelas drogas, se apercebera de que Johnny infligira graves lesões internas à rapariga.
"C'os diabos, Negrão, rasgaste-a toda por dentro. A putinha está a sangrar de morte. Encharcou o colchão todo."
"Pronto, então já sabes o que vamos fazer com ela, não sabes. lindinho?", grunhira Johnny. Sem esperar por uma resposta. Johnny carregara-a nos braços e levara-a
para as muralhas. Carl seguira atrás deles. Nenhum dos outros estava em condições mentais para se aperceber de que eles tinham saído do quarto.
Havia uma lua cheia no alto do céu que empalidecia as estrelas e inundava o terraço com uma luminosidade nacarada. Carl dera por si quase dominado por uma sensação
de temor religioso enquanto seguia atrás de Johnny pelas escadas de acesso aos jardins. O seu gigantesco vulto era tocado pelo luar prateado, como se fosse o sumo-sacerdote
de alguma seita arcana a levar a vítima sacrificial para o altar dedicado a um antigo deus africano.
Quando Johnny alcançara o muro que delimitava a arena dos crocodilos, erguera a rapariga bem alto acima da sua cabeça. Fora uma imagem tão dramática que Carl se
comovera até às lágrimas enquanto lhe acorriam espontaneamente à mente as palavras de uma peça em cuja representação ele participara outrora na sua escola privada
em Houston. Caiu de joelhos e entoou numa voz sonora:
Ela deveria ter morrido mais tarde; Então, teria havido a ocasião certa para tal palavra. O amanhã, o amanhã. Outro amanhã, dia a dia se escoa de mansinho, até que
chegue, alfim, a última sílaba do livro da memória. E todos os nossos ontens para os tolos a estrada deixam clara da empoeirada morte.
Continuando a segurar a rapariga por cima da cabeça, Johnny virara-se e olhara Carl com estupefação. Quando falara, fizera-o num tom reverencial. "Que diabos, Carl
lindinho! Que cena mais fixe. Nunca pensei que soubesses dizer esse tipo de tretas tão maradas e arrepiantes, pá. O que significam?"
"Significam apenas que deves atirá-la lá pra baixo, Johnny." Ambos ouviram o ruído quando a rapariga atingiu a água em baixo, e depois a violenta agitação dos gigantescos
corpos escamosos enquanto os crocodilos se banqueteavam.
Carl permanecera de joelhos até o silêncio voltar a instalar-se e depois erguera-se lentamente. "Foi belo, Johnny", dissera numa voz suave. "Foi uma das coisas mais
belas e comoventes que já vi."
A memória ainda lhe perdurava na mente naquele momento, apesar de tentar afastá-la dos pensamentos.
Voltou a lembrar-se de Johnny e olhou em redor do quarto em desalinho. Não havia sinal dele. Carl lançou as pernas sobre a beira da cama e levantou-se. Começou a
dirigir-se para as portas do terraço. Contornou cautelosamente as seringas hipodérmicas descartadas e as poças de vómito, as garrafas de vinho e de vodca partidas,
o calçado e as roupas abandonadas. Encontrava-se a meio caminho da porta quando ouviu Johnny gritar das muralhas.
- Aí vem ele! Acorda-os a todos. Aí vem o Condor! A maior parte dos vultos adormecidos despertaram por si mesmos e seguiram Carl, saindo em grupo para as muralhas
onde Johnny estava especado a espreitar o céu, com ambas as mãos a cobrir os olhos para os escudar dos raios do sol nascente. Todos se congregaram à volta dele,
numa pletora de cores de pele que iam desde o branco leitoso de Carl, ao amarelo-pálido e dourado dos seus convidados, até à reluzente antracite de Johnny.
- Já começava a duvidar que aquele idiota do Volkov conseguisse dar com o caminho de volta sem contacto por rádio. Mas aí vem ele! - disse Carl. - Vamos lá abaixo
ver que tipo de carninha fresca nos trouxe desta vez para substituir este monte de gajas amarelas todas estafadas. - Beliscou os mamilos acastanhados da prostituta
tailandesa a seu lado, obrigando-a a soltar os guinchinhos já esperados. Apesar de terem passado apenas um curto período de tempo juntos, já todos sabiam para que
direção pendiam as fantasias de Carl, e como ele adorava ouvir gritos de dor.
- Desta vez o Yuri vai ouvir um bom raspanete. Tenho andado aqui a pensar em mais uns quantos insultos bem escolhidos para lhe atirar às fuças. Venham daí, malta,
vamos lá abaixo conhecer os nossos novos amigos e divertir-nos um pouco a arreliar o Yuri. Carl conduziu-os a todos de volta para o quarto, onde se apressaram a
recolher as roupas da noite anterior, espalhadas num abandono selvagem pelo chão e pelos móveis. Vestiram-se enquanto desciam ruidosamente as escadas para o pátio.
O regresso do Condor era sempre um motivo para celebrações. carregado como vinha de presentes, luxos e novos e excitantes rostos e corpos. Para os convidados que
já tinham esgotado a sua estadia naquele lugar estranho e assustador, a aeronave era a promessa de um regresso a casa e à segurança.
Emma, na longínqua Houston, captou esse movimento concertado nas suas câmaras ocultas nas divisões principais e inclusive através daquela que posicionara no topo
do minarete mais alto que se erguia acima das muralhas do castelo. Reportou tudo a Jo Stanley, que se aproximava no Condor.
- Há três veículos a sair pelo portão principal e seguem em coluna pela colina abaixo, em direção à pista de aterragem...
106
A coluna era encabeçada por Johnny Congo. Conduzia o Rover branco a uma velocidade louca, como era seu hábito. Sam Ngewenyama estava ao lado dele, no lugar do passageiro.
Estava quase tão ansioso como Johnny por ter um primeiro vislumbre das mais recentes importações de Banguecoque. Sabia que, a seu devido tempo, lhe seriam passadas
para as mãos.
No banco de trás seguiam cinco dos seus rufias armados, apertados como sardinhas em lata. Usavam roupas de camuflado, originárias do exército dos Estados Unidos,
e levavam bandoleiras de munições a tiracolo. Tinham enfiado os canos das espingardas automáticas pelas janelas abertas. Sempre que o Rover dava um solavanco na
estrada, os homens eram atirados uns contra os outros. Os capacetes e as armas entrechocavam-se ou embatiam no tejadilho do veículo baloiçante.
Carl Bannock seguia imediatamente atrás de Johnny, ao volante de um dos veículos anfíbios russos. Vestia um roupão de seda com um vívido estampado de cornucópias
vermelhas. O cabelo desgrenhado esvoaçava-lhe na corrente de ar desencadeada pelo veículo pesado e desgracioso. À sua volta, as raparigas e os travestis tailandeses
agarravam-se como podiam a qualquer ponto de apoio que encontravam, enquanto o veículo avançava aos solavancos e ressaltava ao longo da estrada irregular.
Todos estavam de humor festivo, induzido por charros de canábis e outras substâncias estimulantes que Carl pusera à disposição durante a noite. Quase todos eles
vestiam roupas mínimas e estavam praticamente nus. Um dos travestis não usava mais nada a não ser um par das enormes cuecas de Johnny que não paravam de lhe cair
sobre as ancas, expondo-lhe a racha das nádegas e bastante mais à frente. Assim que as erguia, voltavam a escorregar-lhe novamente. Uma das raparigas seguia de pé
atrás de Carl, vestida apenas com uma camisa, desabotoada à frente, que o vento lhe fazia esvoaçar atrás como se fosse uma capa. Tapava os olhos com as mãos sempre
que Carl acelerava em direção à curva seguinte na estrada. Todos lançavam gritos e guinchos quando o veículo anfíbio desfazia a curva com as rodas da direita a vacilarem
suspensas sobre o precipício.
O último veículo da coluna era o segundo anfíbio, conduzido por um dos sargentos da milícia. Seguia muito atrás dos outros dois. Transportava um pelotão de guardas
do castelo que tinham sido reunidos tão apressadamente que muitos deles ainda estavam a tentar vestir os seus uniformes, e alguns até se tinham esquecido das armas.
Johnny, no Rover, foi o primeiro a descer a colina e precipitou-se para os portões da alta vedação de arame que rodeava a pista de aterragem. Buzinou para avisar
os guardas que estava a aproximar-se. Dois deles saíram da guarita e desataram a correr para abrirem os portões. Johnny conduziu a coluna para o interior e dirigiu-se
para a extremidade da pista mais afastada da margem do lago.
Pararam ao lado do reduto fortificado com sacos de areia que abrigava as pesadas metralhadoras que protegiam a pista, situado à frente dos outros edifícios do pequeno
aeroporto. Um desses edifícios era o barracão onde estavam alojados os rufias de Sam Ngewenyama e respetivas famílias. Outro dos enormes edifícios era o armazém
onde guardavam as cargas trazidas pelo Condor, bem como os produtos à espera de serem exportados: o precioso coltão e outros minerais de conflito oriundos das minas
congolesas.
De modo a permitir que o Condor alcançasse as portas principais da vertente sul do armazém quando embarcava ou desembarcava carga, havia uma pista de rolagem que
se estendia da pista de aterragem até às altas portas deslizantes do armazém.
Por essa altura, o Sol já se tinha levantado acima do horizonte. Todos estavam de olhos fixos no Condor que se aproximava a baixa altitude sobre o lago. Quando a
enorme aeronave atravessou a estreita praia de areias acastanhadas na margem do lago e se alinhou com a pista de aterragem, Bernie Vosloo, aos comandos do aparelho,
sacudiu as asas à laia de saudação. O sol incidia diretamente sobre os olhos da multidão apinhada à volta dos veículos na extremidade oeste da pista, tal como Hector
tinha planeado quando ordenara a aproximação. Não queria que tivessem uma visão desimpedida do Condor até que a aeronave aterrasse e os seus operacionais se encontrassem
a uma distância que lhes permitisse disparar à queima-roupa. No entanto, a multidão do comité de receção não se deixou desencorajar. Todos gritavam e dançavam entusiasmados.
Alguns baixaram-se instintivamente quando o ruidoso Condor passou num voo rasante, mas a maior parte deles conseguiu entrever as adoráveis mulheres de longos cabelos
escuros que olhavam e lhes acenavam pelas janelas de vigia do Condor. Os próprios artilheiros de Sam Ngewenyama abandonaram as metralhadoras e treparam para cima
da barreira formada pelos sacos de areia para se juntarem à tumultuosa receção de boas-vindas.
Paddy O'Quinn precisara de todos os seus poderes de persuasão. e recorrera inclusivamente à ameaça do pelotão de fuzilamento. para convencer quinze dos seus operacionais
mais jovens a usarem perucas e blusas de cores garridas e deixarem que Jo e Nastiya lhes aplicassem nos rostos uma generosa camada de maquilhagem.
Hector estava acocorado entre os assentos dos dois pilotos, fora da linha de visão de quem estivesse no solo, mas em condições de dar instruções rápidas a Bernie
e a Nella aos comandos da aeronave. De forma a ocultar a sua feminilidade aos olhos dos observadores em terra, Nella usava um boné de basebol e óculos escuros que
tomara de empréstimo a Yuri Volkov. Só esperava que os espectadores no solo reconhecessem esses objetos característicos do seu piloto habitual.
Tanto Bernie como Nella estavam a divertir-se imenso. Faziam o enorme Condor voltejar no céu com a mesma alegre inconsciência de adolescentes em farra num sábado
à noite. Nunca teriam tratado o seu precioso Hércules com o mesmo desrespeito irresponsável.
- Muito bem, façam-no subir para a aproximação final - disse-lhes Hector, agarrado aos braços dos assentos dos pilotos com ambas as mãos.
Os Vosloos levantaram o nariz do aparelho numa ascensão capaz de dar a volta ao estômago e viraram sobre as montanhas arborizadas na fronteira com o território congolês.
De seguida, traçaram um amplo círculo, virando de través ao vento, e iniciaram a aproximação sobre os edifícios do aeroporto. A pista à sua frente estendia-se ao
longo de três mil metros em direção à margem do lago. Na extremidade oriental erguia-se o segundo reduto fortificado com sacos de areia que abrigava a outra bateria
de pesadas metralhadoras de calibre 50.
Bernie baixou os lemes de inclinação das asas para reduzir a velocidade do voo do Condor e Nella ajudou-o, puxando para trás as manetes de aceleração entre os assentos.
As suas manobras conjuntas fizeram baixar suavemente a aeronave sobre a superfície de terra avermelhada da pista e, assim que as rodas tocaram no chão, procederam
à inversão do impulso dos reatores e aplicaram os travões das rodas para abrandarem.
O impulso dos potentes motores desencadeou uma densa e rodopiante nuvem de poeira vermelha na superfície da pista atrás do Condor. - Agora escuta-me bem, Dave! -
disse Hector através do sistema de amplificação interno. - Estamos a oitocentos metros do ponto de desembarque. - Continuou a ler as distâncias indicadas nas placas
dispostas ao longo do lado esquerdo da pista enquanto rolavam a grande velocidade. - Quinhentos metros, trezentos metros... - Dave Imbiss e a sua Equipa Vermelha
já tinham saído dos seus lugares para o porão de carga. Estavam agora posicionados, em grande tensão, à cabeça da rampa na fuselagem traseira. - Mal a rampa desça,
não esperes pela minha ordem, Dave, sai e arrisca tudo por tudo! - ordenou Hector numa voz estridente. Rolaram ao longo dos últimos duzentos metros, em direção ao
reduto armado, com os canhões das metralhadoras fixados neles como os olhos de um carrasco. Bernie calculava a distância a percorrer com um olhar experiente.
Hector pensou por momentos que tinha calculado mal a distância e que iriam colidir contra a barreira de sacos de areia, a cem quilómetros por hora. Preparou-se para
o impacto e cerrou os dedos em redor dos braços dos assentos.
No último instante, Bernie acelerou ao máximo os motores de estibordo do Condor e Nella inverteu em simultâneo os motores de bombordo à potência máxima, ao mesmo
tempo que ambos carregavam nos pedais do lado esquerdo. O Condor girou sobre si mesmo numa violenta viragem de cento e oitenta graus e parou bruscamente, com os
jatos de escape de gases dos quatro reatores apontados para a plataforma das metralhadoras, a uns meros cem metros de distância.
Bernie e Nella mantiveram os motores a rugir à potência máxima durante dez segundos, ao mesmo tempo que carregavam a fundo nos travões para impedirem o Condor de
se mover para a frente. Toda a fuselagem foi sacudida por violentas oscilações, como um animal selvagem encurralado numa armadilha, protestando contra aquele tratamento
intolerável. A velocidade dos gases emitidos pelos jatos de escape dos reatores excedia largamente a de qualquer furacão, quase se aproximando da velocidade do som.
As rajadas de gases de exaustão fizeram voar pelo ar a primeira fila de sacos de areia no topo da barricada do reduto. Levantaram a areia e a gravilha solta da superfície
da pista e lançaram-nas como pequenos projéteis contra os rostos dos artilheiros que espreitavam através das aberturas no muro de sacos de areia, ferindo-lhes os
globos oculares e esfolando-lhes as pálpebras e a pele dos rostos, cegando-os instantaneamente. Depois, os jatos de gases arremessaram-lhes as armas pesadas contra
os rostos, matando ou estropiando a maior parte deles. Os seus corpos inertes foram lançados para o interior do reduto, onde se estatelaram contra a parede do fundo.
- Desligar os motores! - gritou Hector a Bernie por cima do rugido atroador dos reatores, dando uma palmadinha nos ombros dos pilotos para reforçar a sua ordem.
O uivo dos motores reduziu-se a um murmúrio suave e o Condor cessou de oscilar.
- Abrir a rampa traseira! - A voz de Hector soou estrídula no silêncio relativo que se tinha abatido. - Equipa Vermelha! Vão! Vão! Vão! - As ordens eram supérfluas
mas, no calor do momento, gritou-as ainda assim.
A barriga do Condor estava afastada do solo por um mero metro e meio, de modo que a rampa de saída não precisou de baixar muito para atingir o chão. Dave Imbiss
conduziu a sua equipa de doze homens a passo de corrida pela rampa e pelo espaço aberto que os separava do reduto. Treparam por cima da barricada e enfiaram-se no
reduto com a rapidez e a agilidade de um bando de macacos esfomeados a treparem a uma bananeira. Hector dera-lhes ordens para não fazerem prisioneiros nem deixarem
para trás nenhum inimigo com vida, mas que deveriam fazê-lo o mais silenciosamente possível. Depararam com pouca resistência no interior do reduto.
Os artilheiros e respetivos carregadores estavam cegos e fora de combate. A maior parte deles já se encontrava completamente inativa, espalhada pelo interior do
reduto como bonecas de trapos. Alguns deles rolavam no chão coberto de areia, uivando de dor e cobrindo os rostos feridos com as mãos. Um golpe de caraté com o cutelo
da mão foi o suficiente para os silenciar para sempre. No entanto, um dos inimigos fugiu de trás da pilha de caixas de munição onde se tinha abrigado para escapar
às fortíssimas rajadas de gases de exaustão. Alcançou a porta estreita na parede do fundo do reduto. Dave Imbiss levantou a pesada faca de trincheira que empunhava
na mão direita. Lançou o braço para trás e usou toda a força da metade superior do seu corpo para a arremessar. A lâmina de quase trinta centímetros desenhou uma
rotação e meia no ar antes de atingir o homem entre as omoplatas. O fugitivo perdeu o ímpeto e correu para o muro de sacos de areia. Deslizou lentamente pela parede
abaixo, erguendo as mãos por cima dos ombros para tentar agarrar o cabo da faca. Tossiu e um jorro de sangue brotou-lhe da boca sobre o saco de areia à frente da
cara. As mãos descaíram-lhe ao longo dos flancos e tombou de corpo dobrado sobre os joelhos, de testa prostrada no chão como se estivesse a rezar.
Dave Imbiss aproximou-se por trás dele e imobilizou-o, pressionando a bota contra a nuca dele para poder arrancar a faca manchada de sangue, limpando-a depois à
manga da camisa do morto. Ao mesmo tempo, falava baixinho ao microfone do Birkin ativado por voz.
- Fala o líder da Equipa Vermelha. Alvo dominado. Tudo terminou em pouco mais de dois minutos desde que tinham saído do Condor. A pista tinha três quilómetros de
extensão. A essa distância, nem Johnny Congo nem Carl Bannock na extremidade oposta poderiam ter visto o que quer que fosse através da nuvem de poeira desencadeada
pelos gases de exaustão, nem tão-pouco poderiam ter ouvido algo mais para além do breve atroar dos motores do Condor à potência máxima.
- Muito bem! Iniciar a Fase Dois - respondeu Hector. - Dave, inutiliza as armas que capturaste e depois mexam-me esses cus pela pista fora para nos darem apoio.
As metralhadoras montadas nas aberturas do reduto eram todas Browning de calibre 50 que Dave conhecia perfeitamente, oriundas do exército dos Estados Unidos. Apressou-se
a remover as culatras deslizantes de cada uma delas. Entregou-as, uma a uma, aos homens que o acompanhavam, os quais desataram a correr pela entrada na parte posterior
do reduto e as lançaram para dentro do lago. Assim que as armas foram neutralizadas, Dave posicionou os seus operacionais em formação aberta e conduziu-os a passo
de corrida pela pista, em direção aos edifícios do aeroporto, a três quilómetros de distância. Tinham percorrido menos de um quarto dessa distância quando uma súbita
rajada de tiros de armas de pequeno calibre explodiu à sua frente.
107
O Condor rolava calmamente para trás ao longo da pista, em direção ao edifício principal do aeroporto, ao lado do qual aguardavam os três veículos estacionados e
o comité de receção de Johnny Congo. Hector mantinha-se bastante atrás, encostado à antepara posterior do cockpit, acocorado atrás dos assentos dos pilotos, onde
não poderia ser visto através do para-brisas da cabina. Com um par de binóculos, estudava a disposição dos edifícios do terminal e o reduto protegido com sacos de
areia.
- Muito bem, consegui identificar o Johnny Congo. É o enorme bruto negro no tejadilho do veículo branco, à direita do reduto. Camisa azul-escura e calças de sarja
de cor creme. Impossível alguém enganar-se com aquele suíno - disse ao microfone, para que todos os seus líderes de equipa ouvissem. - E está lá também o Carl Bannock,
no topo da barreira de sacos de areia, por cima da plataforma das metralhadoras. Está a fazer uma dança de guerra e a agitar uma espingarda automática por cima da
cabeça. O cabrãozinho está vestido com um roupão comprido, de estampado avermelhado. Parece um roupão de banho. Está descalço, como se tivesse acabado de sair da
cama. Deve estar com aquela cabeça completamente encharcada de drogas e álcool. Não se esqueçam, todos vós, que ele é meu. - O seu tom era feroz. - Há uma multidão
de gente parada à volta dos veículos estacionados. É difícil saber quantos são, talvez uns cinquenta ou uns sessenta, ou mesmo uns cem; todas as prostitutas e todos
os rufias do Johnny. As gajas dele estão vestidas com todo o tipo de roupas bizarras. Muitas delas estão quase nuas e parece que algumas estão completamente de pelota,
com tudo à mostra. Vai ser um pandemónio sangrento quando o tiroteio começar. Não se preocupem demasiado com os danos colaterais quando entrarmos em ação. É melhor
caírem uns quantos espectadores inocentes do que deixar um bruto malvado de pé a disparar contra nós. A voz de Jo soou-lhe ao ouvido: - Nem te quero ouvir dizer
isso. Por isso, Deus me ajude, pois nem cheguei a ouvir isso!
Hector franziu a testa e depois calou-se enquanto o Condor se aproximava da extremidade da pista. A distância encurtava-se rapidamente e pôde calcular melhor as
probabilidades e tomar as decisões finais. Recomeçou a falar, bem ciente de que era a única pessoa a bordo, para além dos pilotos, que podia ver o que os esperava
no fim da pista.
- A disposição deste reduto parece ser exatamente igual àquele que o Dave acabou de silenciar. Também têm um par de metralhadoras de calibre cinquenta com os canos
apontados a nós através das aberturas. A boa notícia é que os lados das aberturas são demasiado fundos para permitir que as metralhadoras disparem na diagonal, quer
para a esquerda, quer para a direita. A má notícia é que não dispomos da alternativa de atirar poeira às caras dos artilheiros. Se tentarmos usar esse truque outra
vez, todos aqueles rufiões fora do alcance da rajada dos motores fazem-nos cair em cima uma autêntica saraivada de balas... - Hector interrompeu-se de repente quando
sentiu um leve toque no ombro. Virou-se rapidamente.
Jo estava atrás dele. Até àquele momento, não se tinha apercebido de que ela saíra do assento rebatível na área de catering.
- Hector, ouve-me - pediu-lhe em voz baixa mas insistente. - Porque não usas o edifício do armazém ali à frente como um escudo? - Indicou o espaço à sua frente,
através do para-brisas do cockpit. - Se o Bernie levar o Condor pela pista de rolagem à esquerda do armazém, ficaremos ocultos do Johnny Congo durante o tempo que
for necessário para posicionares o resto das tuas equipas de ataque. O Johnny vai continuar a pensar que não passais de um bando de pequenas e apetitosas prostitutas,
até vocês saírem de repente de detrás do armazém.
Hector olhou-a por um momento, repreendendo-se por não ter descortinado aquela solução tão rapidamente quanto ela. - Linda menina - disse. - Fico a dever-te mais
uma. - Depois virou-se para os pilotos.
- Bernie, ouviste a senhora! Passa para lá do reduto. Aproxima-te o mais que puderes para nos pores atrás daquele armazém. Depois, baixa imediatamente a rampa de
desembarque. Mantém os quatro motores ligados e prepara-te para fazer uma viragem rápida e uma descolagem de emergência se as coisas derem para o torto.
De seguida, falou em voz baixa através do sistema de amplificação interna. - Todos a postos, malta! Faltam poucos minutos para entrarmos em ação. Vamos parar atrás
dos edifícios principais do aeroporto. Ficaremos protegidos de fogo hostil enquanto desembarcamos. Equipa Branca e Equipa Negra, assumir as vossas posições de saída,
já!
Deu uma palmadinha nos ombros de Bernie e de Nella. - Há um abrigo seguro para o Condor - Apontou-lhes o local. - Metam-me esta velha carripana lá dentro assim que
estivermos prontos. E agora vou-me. Até já! Aguentem firme! Depois voltamos.
- Boa caça, Hector - replicou Nella. Hector virou-se e saiu do cockpit. Parou apenas para abraçar Jo Stanley e beijar-lhe os lábios entreabertos. Depois sussurrou-lhe:
- Adoro-te, mas, ao menos desta vez, por favor, faz o que te digo. Fica aqui e não vás atrás de mim. Aquilo lá fora é muito perigoso. Preciso de ti ao meu lado durante
mais uns cinquenta anos, pelo menos.
Deixou-a e voltou a correr pela cabina de passageiros vazia. Os seus operacionais já se tinham mudado para as suas posições junto à rampa de desembarque. Hector
seguiu-os através da porta de pressurização aberta para o interior do espaçoso porão de carga. A Equipa Negra de Paddy posicionou-se a estibordo do porão. Paul postara
a sua Equipa Branca a bombordo.
Hector apressou-se ao longo das fileiras para a retaguarda do porão enquanto verificava o seu equipamento uma última vez.
Usava um colete blindado de camuflado Kevlar e um capacete do mesmo material. Ambos eram resistentes a projéteis de uma série de armas-padrão de pequeno calibre
usadas pela NATO. Nos bolsos MOLLE15 acoplados ao colete com fechos de velcro trazia duas granadas M84 de atordoamento e vinte carregadores de reserva, cada um contendo
quarenta munições Parabellum de 9 mm para a sua pistola-metralhadora.
No fecho do colete havia um minúsculo bolso oculto, com o tamanho suficiente para guardar uma das seringas hipodérmicas Hypnos do arsenal de truques de Dave Imbiss.
A sua arma principal era uma pistola-metralhadora Brügger & Thomet MP-9. Adorava-a por causa do tamanho reduzido, peso leve, manuseio rápido e excelente precisão
de tiro. Com um premir do polegar, poderia passar de tiros individuais para um ciclo de fogo de novecentas balas por minuto. Apesar do cano curto, a mira ótica permitia-lhe
acertar quatro em cada cinco tiros, em rápida sucessão, num alvo do tamanho de um ovo de galinha, a uma distância de cinquenta metros. Hector alcançou a rampa de
carga onde Paddy e Nastiya aguardavam à cabeça da Equipa Negra e disse-lhes em voz baixa: - O Bernie vai parar o Condor atrás do armazém, na extremidade mais afastada
do aeroporto, para ficarmos protegidos do Johnny Congo e dos seus rufias nos momentos iniciais. Assim que desembarcarmos, separamo-nos. Vou levar a minha equipa
para a direita e surgimos por trás do reduto de sacos de areia. Vocês os dois vão pelo caminho mais longo. contornando a traseira do armazém e os barracões para
os surpreenderem por trás. Eu trato de os manter ocupados até vocês os atacarem por trás. Entre nós, devemos ser capazes de os impedir de se retirarem pela colina
acima. Tenham sempre em mente que só viemos aqui para apanhar o Johnny e o Carl e não para combatermos até ao fim. Assim que apanharmos aqueles dois, pisgamo-nos
daqui sem perder mais tempo.
Nota de Rodapé: MOLLE: acrónimo de Modular Lightweight Load-carrying Equipment = Equipamento modular para transporte de cargas leves.
Fim da nota.
Se nos virmos forçados a persegui-los através do labirinto do castelo, vamos acabar por sofrer baixas.
- Espero bem que não - grunhiu Paddy. - A minha equipa sai primeiro. Assim que estivermos a coberto, podem desembarcar. - Hector deu um leve soco no braço de Paddy.
- Boa sorte! - Sorriu-lhe. Paddy retribuiu-lhe o sorriso. Ambos estavam muito empolgados e o sangue fervia-lhes nas veias devido à excitação inebriante do perigo
mortal que os atraía sempre para a luta.
Hector virou-se e juntou-se a Paul Stowe à cabeça da Equipa Branca do outro lado do porão de carga. O Condor parou de rolar, com um solavanco tão abrupto que por
pouco não os fez perder o equilíbrio. A rampa de carga na traseira começou a baixar, mas com uma lentidão tão torturante que Hector não conseguiu conter mais a sua
impaciência.
- Segue-me! - ordenou bruscamente a Paul. Desatou a correr pela rampa em movimento e atirou-se de cabeça pela abertura estreita. Era uma queda de quase dois metros
até ao solo no exterior. Quando caiu, girou o corpo para aterrar de pé como um gato. Absorveu a força do impacto com as pernas e depois lançou-se em frente, em direção
à esquina do armazém. Ouviu os seus homens atingirem o chão e correrem atrás dele, mas não perdeu tempo a olhar para trás.
Alcançou a esquina e colou-se à parede. Respirava calmamente, mas sentiu o coração martelar como um motor de corrida bem afinado. Quando espreitou da esquina, a
sua visão era tão límpida e nítida como a mira ótica de uma arma.
Praticamente nada se tinha alterado naqueles últimos minutos desde que observara essa área pela última vez: Johnny continuava especado no tejadilho do Rover, com
as mãos nas ancas. À volta do veículo aglomerava-se uma horda heterogénea de milicianos e Jovens prostitutas. Quase todos eles olhavam com perplexidade na direção
do local onde tinham visto o Condor desaparecer atrás do armazém. Alguns dos joguetes sexuais tailandeses continuavam a dançar e a bater palmas, mas uma das raparigas
seminuas estava encostada ao Rover, vomitando copiosamente o álcool que a tinham obrigado a ingerir na noite anterior.
Os artilheiros das metralhadoras no reduto tinham pousado as armas para poderem escalar a barricada e espreitarem nessa direção por cima dos sacos de areia. No entanto,
aquilo que atraiu de imediato toda a atenção de Hector foi o vulto bizarro de Carl Bannock, ainda empoleirado no topo da barricada. Já não estava a dançar, mas,
ao contrário dos outros, estava semivirado de costas para Hector e gritava algo a Johnny Congo.
- Que raios é que aquela besta estúpida do Yuri Volkov se lembrou de fazer agora? - bradou.
Não tinha a menor consciência de que Hector estava de olhos fixos nele, a uma distância inferior a cinquenta metros. Hector empunhava uma das mais refinadas pequenas
armas de fogo que já disparara. Tinha à sua frente o alvo mais nítido que os inconstantes deuses de guerra alguma vez lhe haviam apresentado. O homem que viera matar
estava completamente à sua mercê.
Havia apenas uma única consideração que o impedia de o fazer. Queria olhar Carl nos olhos quando ele morresse. Queria sentir o odor râncido do terror esmagador no
seu último suspiro. Queria que a última coisa que Carl ouvisse fosse o nome da mulher que ele amara. Queria sussurrar-lhe o nome de Hazel ao ouvido nos seus momentos
finais, para que Carl o levasse consigo para as labaredas do inferno. Os segundos não paravam de transcorrer enquanto assim hesitava. Começou a levantar a arma,
mas, de repente, Johnny Congo bradou numa voz atroadora: - Desce já dessa barricada, Carl, seu cabrão estúpido! É uma armadilha! Não é o Yuri no maldito avião! É
o Hector Cross! - Os seus instintos selvagens estavam refinados com tanta precisão que Johnny Congo farejara o perigo.
Carl não reagiu de imediato ao aviso; continuou ali, petrificado. Hector ainda dispunha de uma oportunidade para o alvejar, mas agora era mais fugaz. Num movimento
rápido mas fluido, ergueu a arma e disparou uma rajada de cinco balas. O coice da arma era tão leve que pôde ver, através da amplificação da lente ótica, as balas
atingirem o alvo.
Tinha feito pontaria às pernas de Carl para o neutralizar, mas sem o matar. Duas das balas falharam o alvo. Viu uma delas levantar um tufo de poeira perto da vedação
do perímetro. O segundo tiro falhado atingiu a mulher tailandesa que se dobrava dominada pela náusea, apoiada ao Rover. O projétil certamente a atingira na cabeça,
pois tombou como se uma porta-alçapão se tivesse aberto sob os seus pés.
As outras três balas atingiram Carl nos pontos precisos que Hector mirara. Uma delas cravara-se-lhe na articulação do tornozelo do pé esquerdo descalço. A julgar
pelo ângulo de entrada do projétil, Hector sabia que lhe tinha esmagado o conjunto de ossos metatársicos onde se uniam ao perónio e à tíbia. As outras duas balas
entraram um pouco mais acima quando a arma se elevara um tudo-nada nas mãos de Hector devido ao efeito do coice. As pernas de Carl estavam diretamente alinhadas
uma atrás da outra, de modo que as balas lhe trespassaram a perna esquerda e depois se cravaram na perna direita, quebrando os ossos de ambas.
As pernas cederam-lhe em simultâneo e caiu para trás. Tombou contra a parede posterior do reduto, fora do campo de visão de Hector. Johnny Congo desapareceu com
igual rapidez do tejadilho do veículo branco, mas tinha saltado. Hector ouviu-o rosnar ordens a Sam Ngewenyama em suaíli. Hector conhecia bem essa linguagem desde
a infância e soube que Johnny estava a ordenar a Sam e aos seus homens que reunissem as prostitutas tailandesas e as usassem como escudo para deter os atacantes.
108
A coberto das paredes do reduto de sacos de areia, Johnny correu para o local onde Carl Bannock se contorcia numa poça de sangue na área de estacionamento na pista
de aterragem.
- As minhas pernas! - gemia Carl. - Oh, Deus me ajude. Tenho as duas pernas partidas. - Depois, a sua voz transformou-se num uivo de terror. - Johnny! Por favor,
ajuda-me. Onde estás, Johnny? - Estou aqui ao teu lado, Carl lindinho. - Johnny debruçou-se sobre ele e ergueu-o contra o peito como se fosse um bebé. Carl voltou
a guinchar quando as pernas fraturadas se torceram e lhe penderam inertes, com os ossos estilhaçados a rasparem uns nos outros. Johnny carregou-o a passo de corrida
para junto do Rover.
Os rufias de Sam Ngewenyama perseguiram e reuniram a maior parte das prostitutas tailandesas, mas algumas conseguiram escapar e correram aterrorizadas e aos gritos
pelo meio dos edifícios do aeroporto. Os rufias arrastaram aquelas que tinham capturado, de volta para junto dos veículos. Torceram-lhes os braços atrás das costas
e obrigaram-nas a ficarem de frente para os homens de Heitor.
109
Assim que perdeu Carl de vista atrás do muro do reduto, Hector correu, seguido de perto por Paul Stowe e pelo resto da Equipa Branca. Hector contornou a esquina
do muro do reduto e deparou com Johnny a carregar Carl nos braços, com os seus homens congregados à volta deles numa retirada total em direção aos três veículos
estacionados, arrastando com eles os reféns que se debatiam.
Os homens de Johnny Congo pertenciam à família das tribos nilóticas. Eram, por natureza própria, mais altos do que a maior parte dos outros seres humanos. Desprezavam
todos aqueles que tivessem menos de um metro e oitenta de altura, pois consideravam-nos uns anões atrofiados. As suas cabeças e ombros destacavam-se bastante acima
dos franzinos reféns orientais atrás dos quais tentavam escudar-se. Também tentavam proteger Johnny Congo e o corpo que ele carregava para junto do Range Rover.
- Disparar às cabeças! - bradou Hector a Paul. - Façam pontaria alta e tentem não atingir os sujeitinhos de pele amarela.
Sam Ngewenyama, no centro da linha de retirada, era o mais alto de todos. Hector olhou-o nos olhos e Sam viu-o erguer a pequena pistola-metralhadora B&T. Tentou
disparar primeiro que ele, empunhando a espingarda pesada com uma mão. A AK47 é famosa pela sua tendência a empinar-se no modo automático, algo quase impossível
de controlar com uma só mão. A agravar ainda mais a situação difícil de Sam, o travesti nu que ele tentava subjugar com a mão livre fez Sam perder o equilíbrio no
momento crítico. A primeira rajada levantou a poeira à volta dos pés de Hector, sem o atingir. Uma fração de segundo depois, Hector ripostou com um único tiro que
atingiu Sam na testa, um centímetro acima da cana do nariz. Caiu num emaranhado de braços e pernas esguios.
Sem baixar a arma, Hector varreu a linha da milícia em retirada. Disparou mais três tiros individuais, em rápida sucessão, fazendo pontaria às cabeças expostas.
Assim que cada disparo ressoava, um dos milicianos tombava, esperneando e contorcendo-se em convulsões.
O miliciano mais baixo entre eles encontrava-se na ponta da linha mais distante de Hector. Os seus traços toscos e rudes estavam devastados pelas marcas da varíola.
A franzina rapariga oriental que ele segurava à laia de escudo escapou-lhe das mãos e desatou a correr, deixando-lhe ambas as mãos livres para disparar um tiro certeiro.
Conseguiu disparar uma rajada em cheio com a sua AK. Os operacionais da Cross Bow que rodeavam Paul Stowe foram atingidos e caíram.
Hector rodou o corpo e disparou através da brecha criada pela queda dos seus operacionais. O indivíduo de rosto cheio de cicatrizes largou a arma e recuou alguns
passos, de mãos agarradas à garganta. Depois tombou de costas, sempre de mãos no pescoço. Hector concentrou-se então nos rufias à sua frente. Disparou uma rajada
curta até que o carregador da arma se esvaziou. Removeu o carregador vazio, mas nem teve tempo para inserir um novo, pois a linha de milicianos que o enfrentava
desintegrou-se e dispersou-se.
A maior parte deles fugiu na direção da Equipa Negra de Paddy. que atacava na extremidade oposta dos edifícios do armazém. Hector esboçou um sorriso sinistro face
ao êxito da sua estratégia do movimento em tenaz e deixou que fosse Paddy a ocupar-se dos sobreviventes.
Voltou a concentrar-se nos dois homens que viera matar. Reparou que Johnny conseguira correr com Carl nos braços até ao Rover. sempre rodeado pelo escudo de proteção
proporcionado pelos seus homens em retirada. Enfiou Carl no banco traseiro e desatou a correr para o lugar do condutor.
Hector tentou fazer pontaria para um tiro certeiro. No entanto, nesse momento, os ocupantes dos barracões atrás do armazém entraram em pânico ao ouvirem os gritos
e os tiros e começaram a correr como formigas a fugirem do ninho ao serem atacadas por vespas assassinas. Os operacionais de Paddy surgiram imediatamente por trás
deles, dispersando-os numa correria ainda mais selvagem, até colidirem com os rufias e as aterrorizadas prostitutas tailandesas que tentavam escapar à equipa de
Hector. Essa multidão humana atravessou-se à frente de Hector, interpondo-se entre ele e o seu alvo e impedindo-o de fazer pontaria.
Hector começou a correr, empurrando para o lado as histéricas mulheres tribais e respetivos fedelhos aos berros, mas compreendeu que não iria conseguir impedir Johnny
de escapar no Rover.
Johnny já tinha aberto a porta e, quando baixou a cabeça para entrar no veículo, Hector usou os ombros para empurrar para o lado uma mulher negra que levava um bebé
às costas. Disparou rajadas com a pistola-metralhadora. Esvaziou um carregador contra Johnny. Viu as balas crivarem-se na carroçaria lateral do Rover, estilhaçando
os vidros da janela e perfurando a pintura. Mas a sorte do diabo estava do lado do inimigo: Johnny continuava atrás do volante, incólume, quando a arma que Hector
empunhava emitiu um clique que indicava que o carregador estava vazio.
Johnny ligou o motor, fazendo girar as rodas no chão de terra batida e levantando imensa poeira. Quando os pneus do pesado veículo conseguiram tração, o Rover disparou
pela estrada abaixo, em direção aos portões do aeroporto.
Hector correu para o mais próximo dos dois veículos anfíbios abandonados. Trepou pela escada de aço até ao convés da gigantesca máquina deselegante. Correu para
o lugar do piloto na torre blindada na proa. Respirou de alívio ao reparar que a chave se encontrava na ignição no painel de controlo. O potente motor a diesel ainda
estava quente e pegou à primeira tentativa. Começou a pulsar, emitindo uma baforada de fumo azul através do tubo de escape que se erguia por cima da sua cabeça.
Atrás dele, Paul Stowe conduzira já os seus homens pela escada acima até ao convés. Hector reparou que faltavam quatro deles, mas sabia que as baixas eram inevitáveis.
Tirou esse pensamento da cabeça e instalou-se no lugar do condutor, acenando e gritando a Paddy e a Nastiya. Ambos o viram e apressaram-se a trazer a sua equipa,
empurrando para o lado as atónitas mulheres negras e respetivos filhos.
Atrás deles, os restantes homens das derrotadas forças de Johnny estavam em plena retirada. A maior parte deles tinha-se livrado das armas e corria para o refúgio
da selva. Havia apenas uma saída nesse lado do aeroporto e todos se amontoaram em massa na abertura enquanto se debatiam. Encontravam-se demasiado longe para que
a pequena pistola-metralhadora pudesse disparar com precisão. Ainda assim, Hector esvaziou um carregador cheio na direção deles, para os ajudar a abrir caminho.
Fez pontaria ao alto, para compensar a distância. Não viu cair nenhum deles, mas verificou-se um aumento exponencial no volume da sua gritaria e nos seus esforços
para escaparem.
Paddy foi o primeiro da sua equipa a subir a escada para o veículo anfíbio. Gritou a Hector: - O que aconteceu ao Johnny e ao seu amante? Para onde é que os cabrões
foram?
- São eles ali! - respondeu-lhe Hector aos gritos, apontando para o portão na vedação, no momento em que o Rover branco o atravessava a toda a brida. - Depressa,
raios! Estão a escapar-nos.
Três dos operacionais de Paddy ainda estavam agarrados à escada de aço quando Hector engrenou as mudanças e zarpou pela estrada abaixo, em direção aos portões do
aeroporto. Tinha visto Dave Imbiss levar a sua equipa a passo rápido para a extremidade mais afastada da pista de aterragem, na direção do armazém e dos barracões.
Quando Hector os alcançou, guinou para fora da estrada e parou o veículo anfíbio. Pôs-se de pé na torre de controlo e, quando olhou para trás, reparou que Bernie
já começara a fazer rolar o Condor para o abrigo seguro. Gritou a Dave do outro lado da pista.
- Volta para trás e monta guarda ao Condor até voltarmos! Estamos a perseguir o Johnny lá em cima. - Apontou para o castelo. Dave acenou-lhe e gritou que entendera
a ordem.
Hector voltou a sentar-se no lugar do condutor; acelerou através dos portões e levou o veículo anfíbio para a estrada de acesso ao castelo. Viu à sua frente a poeira
levantada pelo Rover branco, que já percorrera mais de metade do caminho até ao topo da colina.
Paddy, Nastiya e Paul avançaram com cautela, agarrando-se aos apoios de mão enquanto o convés baloiçava e ressaltava por baixo deles. Postaram-se atrás de Hector.
O velocímetro no painel de controlo indicava uma imprudente velocidade de sessenta e cinco quilómetros horários, decididamente demasiado para aquele monstro pesado
naquela estrada estreita e sinuosa. Ninguém protestou. Continuaram a agarrar-se com uma expressão de determinação nos rostos.
- Quantos homens perdeste, Paddy? - perguntou Hector sem tirar os olhos da estrada.
- Três dos nossos homens foram atingidos - respondeu Paddy. - Estava um cabrão atrás de nós nos barracões com uma AK. Deixou-nos passar e depois começou a disparar
contra nós por trás. - Mas eu neutralizei-o. - A expressão de Nastiya era de serena satisfação. - E nenhuma das nossas baixas é fatal. Todos conseguem andar pelo
seu próprio pé. Disse-lhes para voltarem para o avião.
- Linda menina, Nazzy - elogiou-a Hector, olhando depois por cima do ombro para Paul Stowe. - Houve muita chacina na nossa equipa, Paul?
- Pior que no caso do Paddy, infelizmente, senhor - respondeu Paul. - Caíram quatro dos nossos rapazes. Um deles não tem salvação, ou talvez dois deles.
Hector baixou-se na torre de controlo quando uma rajada de fogo de uma AK-47 crivou a blindagem do veículo. Os outros lançaram-se sobre o convés e amontoaram-se
sob a proteção dos flancos blindados.
- Raios, de onde veio isso? - perguntou Hector. - Há um grupo de rufias lá em cima nas ameias do castelo - informou Paddy. - Esta velha carripana deveria ser resistente
a tiros de armas de pequeno calibre. Só rezo para que não tenham um lança-granadas-foguetes ou um par de canhões de calibre cinquenta lá em cima.
- Deixo as rezas para ti. Prefiro estar sóbrio quando estou a conduzir. - Hector manteve-se de olhos na estrada enquanto fazia a curva seguinte no meio de uma nuvem
de poeira e gravilha solta.
- Da maneira como conduzes, os rufias não vão precisar de um lança-granadas-foguetes, Hector Cross - disse-lhe Nastiya num tom severo. Ajustou o capacete de Kevlar
sobre os caracóis loiros enquanto se agarrava ao ombro de Paddy com a outra mão. Como sempre, usavam aquelas piadas frívolas para exorcizarem o terror que sentiam.
O fogo das espingardas automáticas chovia agora das ameias sobre eles, com a intensidade de uma tempestade tropical na época das monções. As balas tamborilavam sobre
a blindagem como um baterista tresloucado, fazendo ricochete em silvos estrídulos. Cravavam-se na superfície da estrada à sua frente, de modo que continuaram a subir
no meio de uma névoa de poeira e balas traçadoras. Hector espreitou pela fenda do condutor na blindagem frontal do veículo anfíbio e viu o Rover de Johnny desaparecer
através dos portões do castelo no topo da colina. Praguejou quando viu os portões fecharem-se. A curva seguinte na estrada cortou-lhe a visão dos portões principais
do castelo, mas todos continuavam expostos ao fogo hostil nas muralhas. No coração daquela tempestade de balas, Hector falou ao microfone do seu Birkin ativado por
voz.
- Jo! - Teve que gritar para se fazer ouvir. - Jo Stanley, estás-me a ouvir?
- Afirmativo! - respondeu ela de imediato. - Mas, Santo Deus, o que é essa chinfrineira toda?
- Apenas um sopro de metralha, como disse Bonaparte uma vez. Mas o mais importante agora é saber se tu e a Emma estão a ver o Johnny e o Carl. Escaparam-nos - disse-lhe
Hector. - Refugiaram-se no castelo.
- Afirmativo - confirmou o Jo. - A Emma está a vê-los através das câmaras dela no castelo. Os dois alvos acabam de entrar no pátio num veículo branco. O Johnny tirou
o Carl pela porta traseira e está a carregá-lo pelas escadas para dentro do edifício principal. O Carl parece estar ferido. A Emma consegue ouvi-lo gemer e diz que
está a sangrar.
- Claro que está ferido - disse Hector numa voz sombria. - Estourei-lhe as pernas.
- Oh, meu Deus! - A voz de Jo reduziu-se a um sussurro horrorizado. Não tentou disfarçar o choque que sentia.
- Pensavas que vínhamos cá para jogar às cartas com ele, é isso? - ripostou Hector com brusquidão. Era a primeira vez que lhe falava nesse tom duro, mas a suscetibilidade
dela no calor da batalha, quando os seus próprios homens estavam a ser feridos e aniquilados, enfureceu-o imenso. - Isto já deixou de ser um jogo. Há aqui pessoas
com ferimentos a sério. Controla-te, mulher!
Enquanto falava, manobrou o veículo para fazer a última curva apertada, e viram então a torre de menagem do castelo, a uns meros trezentos metros à frente. Os pesados
portões de madeira estavam bem cerrados. A estrada corria agora quase paralelamente ao castelo, perto da base das muralhas que os protegiam do inimigo posicionado
nas ameias. O fogo de barragem que se abatia sobre eles cessou de repente.
No silêncio relativo que se instalou, Hector voltou a falar ao microfone do Birkin. - Jo, ainda me ouves?
- Sim, capitão. Ainda o ouço. - O seu tom era gélido e frágil como geada. Não aceitara a reprimenda dele de ânimo leve.
Deus nos proteja dos amuos e das birras de amadores quando estamos a tentar fazer o nosso trabalho, pensou ele, mas não disse nada. Ainda assim, o seu tom foi tão
frio quanto o dela enquanto falava ao microfone.
- A Emma tem alguma ideia das forças na guarnição no castelo? - Sim, capitão, sim! - respondeu Jo. - A Emma confirma a presença de vinte e três elementos hostis
no recinto do castelo, para além do Johnny e do Carl. Quinze deles estão nas ameias. Cinco outros estão a defender a entrada principal. E os últimos três estão com
o Johnny, a ajudá-lo a carregar o homem cujas pernas estouraste.
- Mensagem recebida e entendida. - Não fez caso do sarcasmo dela. O seu tom era neutro, mas os seus pensamentos não:
Não devia tê-la deixado embarcar nesta incursão. Não estava a pensar com a cabeça, estava a receber ordens de um apêndice bastante mais abaixo na minha anatomia.
Não verificou a sua velocidade quando se aproximava dos portões do castelo e, ao invés disso, carregou a fundo no acelerador com o pé direito. O motor rugiu enquanto
avançavam diretamente contra os portões.
Encontrava-se agora tão perto que podia distinguir as três brechas para disparos nos próprios portões, e duas outras nas ombreiras de pedra de ambos os lados. De
todas essas aberturas sobressaíam os canos pretos das espingardas automáticas que os guardas lhes apontavam do outro lado. Uma nova fuzilada de tiros abateu-se sobre
a proa do veículo anfíbio e Hector deu por si a olhar através da fenda estreita na blindagem frontal, diretamente para as bocas das armas do inimigo.
Foi forçado a resistir àquele fogo de barragem por mais alguns segundos, até esbarrar o veículo anfíbio contra os portões de madeira esculpida que se elevavam a
quase cinco metros de altura. Os enormes portões não resistiram à investida do maciço veículo blindado e implodiram numa amálgama de pranchas e lascas, desmoronando-se
sobre a calçada do pátio interior. Os três atiradores especados atrás dos portões que disparavam através das brechas ficaram esmagados sob todo esse peso.
O veículo anfíbio passou por cima dos escombros e avançou para dentro do pátio. Hector parou-o no centro da praça aberta. Os dois guardas sobreviventes desertaram
dos seus postos de ambos os lados dos portões demolidos e correram para as escadas de acesso ao grandioso salão do edifício principal do castelo.
Hector apressou-se a levantar-se e disparou duas rajadas rápidas do alto da torre do veículo. O primeiro homem tombou inerte na base das escadas e não se moveu mais.
O segundo conseguiu alcançar o topo das escadas antes que Hector fizesse pontaria e o atingisse com uma rajada certeira. O corpo do indivíduo arqueou-se enquanto
as balas lhe perfuravam as costas do colete de camuflado. Caiu e rolou pelas escadas abaixo, parando ao lado do camarada inerte.
Uma fugaz sensação de alívio apoderou-se de Hector: embora Emma, em Houston, pudesse ter assistido à rápida execução nas suas câmaras, não poderia partilhar essas
imagens com Jo Stanley no Condor, pois ambas estavam a comunicar-se apenas por rádio de ondas curtas. A delicada sensibilidade de Jo já tinha sido posta à prova
mais do que o necessário.
- Paddy, ouviste as transmissões da Jo? - Cada palavra. - Vou atrás do Johnny e do Carl. - OK, Heck. - Pega na tua equipa e neutraliza aqueles quinze rufias lá nas
ameias. Não ficarão ali em cima por muito mais tempo. Se calhar até já começaram a descer para nos atacarem. Mas é mais provável que estejam a fugir para as árvores,
como os seus camaradas lá em baixo na planície.
- Deixa-os por minha conta - disse Paddy, dando uma ordem rápida aos membros sobreviventes da sua equipa, acocorados atrás da blindagem lateral do veículo anfíbio.
- Ao meu sinal, rapazes! - Todos se levantaram de um salto.
Hector esboçou um breve sorriso a Nastiya. - Quanto a ti, minha mortífera czarina, não sejas gananciosa. Deixa qualquer coisa para nós.
Ela lançou-lhe um dos seus olhares altivos. - És louco, Cross. Sempre a me falar parvoíces, como se eu fosse bebé. - Sob stresse, o inglês de Nastiya desmoronava-se
e ela tendia a truncar todos os artigos e preposições à maneira russa.
Virou-se e saltou por cima da lateral do veículo, aterrando atrás de Paddy. Ambos conduziram a Equipa Negra numa corrida em direção à base das escadas, onde jaziam
os homens mortos.
Hector voltou a falar ao seu microfone Birkin. - Jo, por favor, pergunta à Emma se me consegue dar a localização do Johnny e do Carl. Faz o favor de notar que te
pedi "por favor". - Era uma pequena oferta de paz.
- Por favor, espera um segundo, Hector, e faz o favor de notar que te respondi na mesma moeda. - Havia o vestígio de um sorriso na voz dela, e tinha-o chamado pelo
primeiro nome.
Respondeu-lhe quase de imediato: - Hector, a Emma está a vê-los na câmara. Desceram para o nível Bravo, logo baixo das cozinhas principais e das caves de armazenamento.
Estão no corredor Bravo Tango 05 e avançam para leste, em direção à pequena poterna sobrejacente ao lago. Continuam a ser cinco homens nesse grupo.
- Obrigado, Jo Stanley. Vamos atrás deles. Terminado. - Não tens de quê, Hector Cross. Terminado. Pelo menos era uma trégua, se não mesmo um acordo de paz total.
Hector afastou esses pensamentos da cabeça. Saltou do veículo e conduziu a sua equipa para dentro do castelo.
110
Assim que entrou no grandioso salão, Hector reparou no rasto de sangue. Mas eram apenas algumas gotículas, dispersas sobre os mosaicos esmaltados. Certamente que
Johnny estancara a hemorragia com um torniquete.
Ainda bem, pensou Hector enquanto seguia o rasto. Não quero que o porco venenoso sangre até à morte antes de lhe poder deitar a mão.
Embora Emma lhes tivesse dito que o caminho até às masmorras estava desimpedido, decidiram adotar o procedimento que era já uma segunda natureza neles. Enquanto
Hector seguia à frente com o seu grupo de quatro homens, Paul e a sua equipa posicionaram-se atrás deles para lhes cobrirem a retaguarda. Quando Hector alcançou
um ponto de observação seguro, deitou-se por terra e fez sinal a Paul para seguir em frente. Avançaram rapidamente, em formação estratégica, pelo espaçoso salão,
e começaram a descer a escadaria circular que conduzia às masmorras. Sempre que o grupo da dianteira alcançava o patamar seguinte, parava para deixar o outro grupo
assumir a liderança. Passaram pelo patamar de acesso à área das cozinhas e continuaram a descer a escadaria, até desembocarem finalmente no labirinto das masmorras.
Quando pararam, ouviram o eco distante de tiros vindos das ameias do castelo. Durou uns breves instantes, até um silêncio pesado voltar a abater-se.
- A Emma informa que o Paddy está a defrontar os elementos hostis nas ameias - disse Jo a Hector através do Birkin. - O Paddy dispersou-os e desimpediu a área. Os
sobreviventes fugiram numa grande desordem. Tens a retaguarda protegida, Hector. - Obrigado, Jo. - Hector conteve o último resíduo de ressentimento em relação a
ela. - Por favor, transmite o seguinte ao Paddy: deve seguir-nos pelas masmorras e tentar alcançar-nos o mais rápido possível. Posso vir a precisar do apoio dele.
- Percebido, Hector! - E agora, por favor, diz-me qual é a minha posição neste momento.
Hector tinha memorizado o mapa dessa área por via do estudo das plantas arquitetónicas que Ronnie Bunter e Jo haviam obtido de Andrew Moorcroft. No entanto, encontravam-se
agora a quinze metros de profundidade do nível do chão e não havia uma única centelha de luz naquele labirinto de pedra. Hector não dispunha de pontos de referência
que pudesse confrontar com o seu mapa mental. Não ousava ligar a lanterna incorporada no capacete de Kevlar, por receio de alertar o inimigo para a sua posição.
Estava limitado a perscrutar o caminho à sua frente através da luz negra incorporada na mira ótica da sua arma. Essa luz permitia-lhe distinguir o brilho fluorescente
do rasto de sangue que Carl deixara sobre o empedrado. O rasto acabou por desaparecer, mas Johnny e os homens que o acompanhavam tinham as solas das botas manchadas
com o sangue de Carl e deixaram marcas no pavimento de pedra, permitindo assim que Hector os seguisse.
Na escuridão absoluta, os seus homens tinham cerrado fileiras atrás dele, mantendo contacto com ele e entre si com uma mão pousada no ombro do homem diretamente
à sua frente.
Emma, sentada defronte do seu computador em Houston, acompanhava-lhes o avanço através das câmaras ocultas que instalara nas masmorras. Cada uma delas estava equipada
com uma objetiva de infravermelhos que refletia o calor emitido pelo corpo humano. Era esse mesmo dispositivo que também permitia a Emma ver exatamente onde estava
o bando de Johnny a qualquer momento.
O sussurro de Jo no auricular de Hector indicou-lhe com precisão a sua posição e instruiu-o a seguir em frente. Estavam a ganhar rapidamente terreno a Johnny e começaram
a ver o feixe da sua lanterna refletir-se nas paredes do túnel mais à frente.
Depois, de repente, até essa luz ténue se extinguiu. - Más notícias da Emma. - Jo falou baixinho através do auricular de Hector. - Acaba de informar que o Johnny
alcançou o refúgio subterrâneo e desapareceu lá dentro. A Emma perdeu qualquer contacto com eles.
Hector sabia da existência do refúgio, de modo que já esperava que isso pudesse acontecer. Ainda assim, sentiu um estremecimento de desalento nas entranhas. Desconheciam
por completo a disposição do interior do refúgio subterrâneo. Carl e Johnny só o tinham construído depois de Emma partir de Kazundu e, por conseguinte, não chegaram
a pedir-lhe que instalasse câmaras nessa área. Obviamente que Emma chegara a ouvir Carl e Johnny discutirem esse projeto de construção, e era por essa razão que
sabia o nome que lhe tinham posto. Ouvira-os enquanto planeavam essa área como refúgio de último recurso.
Chegara mesmo a acompanhar o progresso da primeira fase da obra. Uma das suas câmaras tinha sido fortuitamente colocada numa posição que permitia observar a extensão
de muralha através da qual Carl e Johnny haviam escavado a entrada para o bunker.
Considerando apenas o tempo que tinham demorado a construí-lo, e a julgar pela quantidade de terra que os operários tinham removido, tornava-se óbvio que o refúgio
subterrâneo deveria ser muito extenso. Assim que as obras tinham sido concluídas, Emma pudera ver que a entrada para o bunker havia sido dissimulada com grande cuidado.
No entanto, tudo o que havia mais além dessa porta continuava a ser um mistério.
- OK, Paul. - Hector falou num tom de voz normal. - Esconderam-se atrás da porta secreta. Já podemos ligar as lanternas. Eles não conseguem ver a luz.
Todos pestanejaram face à súbita iluminação depois da escuridão. Hector voltou a conduzi-los em frente. As solas de borracha macia das suas botas de combate produziam
apenas um murmúrio no chão empedrado. Quando Hector contornou a esquina seguinte no túnel, deparou com o que parecia um beco sem saída. Viu minúsculas gotículas
do sangue de Carl que se aproximavam da base da parede. Postou-se à frente da parede e examinou-a cuidadosamente, passando a mão ao de leve sobre a superfície.
A voz de Jo no seu auricular transmitia-lhe as instruções que estava a receber de Houston. - A Emma está a observar-te. Quer que te movas cerca de meio metro para
a direita. Estás a ver um bloco triangular de pedra azul, mais pequeno, logo abaixo da tua linha de visão? Muito bem, empurra-o com força. Usa a base da palma da
mão. Pressiona-o com todo o teu peso até sentires que cede. Ótimo! Agora, continua a pressionar e roda-o no sentido oposto ao dos ponteiros do relógio.
Enquanto Hector seguia essas instruções, apercebeu-se de que Emma certamente observara muitas vezes Carl ou Johnny a executar esse procedimento.
Sentiu o bloco de pedra rodar com resistência sob a sua mão. Ouviu-se o som abafado de um mecanismo de fecho a libertar-se no interior da alvenaria. Depois, uma
secção inteira da parede girou pesadamente sobre um eixo oculto, revelando uma porta pintada de verde. Hector inclinou-se e tocou na porta. Percebeu de imediato
que era de metal e não de madeira. Bateu-lhe ao de leve com as pontas dos dedos para avaliar a sua ressonância.
Não se assemelhava em nada a aço inoxidável com elevado teor de crómio de alta qualidade, o tipo de material de que são feitas as portas dos cofres-fortes dos bancos.
Era um aço macio de baixa qualidade. As soldas tinham sido executadas de forma grosseira, sobretudo em redor das dobradiças. Provavelmente esse trabalho fora realizado
por operários locais em Kigoma, do outro lado do lago. - Que grande estupidez, Johnny Congo - disse Hector em voz baixa. - Já tens idade suficiente para saber que
o barato pode sair muito caro. Este trabalhinho desmazelado pode muito bem vir a custar-te a vida.
- Não te ouvi, Hector. Repete, por favor - disse Jo.
- Eu disse que a sorte estava outra vez do nosso lado. - Hector sorriu. Depois fez sinal a Paul para se aproximar.
Dois dos homens de Paul carregavam cada um dez quilos de explosivos de demolição para uma eventualidade como aquela. Hector demorou menos de cinco minutos a colocar
as cargas na posição que lhes era mais vantajosa: contra as dobradiças da porta verde.
Ordenou aos seus homens que recuassem para o abrigo proporcionado pela curva no túnel e seguiu-os, desenrolando o cabo elétrico da bobina enquanto se afastava. Os
seus operacionais já tinham adotado a posição de proteção, ajoelhados e de costas viradas para os explosivos, com ambas as mãos a proteger os ouvidos.
Hector ligou os terminais do cabo a uma bateria de doze volts. Era a potência necessária para ativar os detonadores.
- Fogo! - advertiu-os, ativando a carga. A forma cónica da carga concentrou a maior parte da força dos explosivos contra o metal da porta. A onda de choque foi relativamente
suave quando se abateu sobre eles.
Levantaram-se de imediato e correram para a entrada do refúgio. Viram, através da cortina de poeira, que a pesada porta metálica tinha sido arrancada das dobradiças
e lançada contra a parede oposta do túnel.
Hector olhou ao comprido de um lanço de escadas, para o interior do refúgio, e viu que as lâmpadas elétricas ainda estavam acesas no teto da primeira cela.
Tinha na mão direita uma das granadas M84 de atordoamento e a pistola-metralhadora na mão esquerda. Arrancou com os dentes a cavilha de segurança da granada e arremessou-a
para dentro do bunker. A granada destinava-se a cegar e a ensurdecer momentaneamente as vítimas, para as confundir e desorientar. A explosão perturbava o fluido
nos canais semicirculares dos ouvidos, ao ponto de as pessoas perderem a coordenação motora e o equilíbrio.
Hector recuou para longe da abertura e voltou a acocorar-se, de cabeça virada na direção oposta, cobrindo os ouvidos com as mãos e fechando os olhos com força. Mesmo
de pálpebras fechadas, viu o clarão da explosão, equivalente a 2,4 milhões de velas, e sentiu os ouvidos zumbirem quando voltou a levantar-se. Constatou que a sua
coordenação motora não fora afetada quando se precipitou pelos degraus de acesso ao refúgio, de dedo apoiado no gatilho da pistola-metralhadora. Ouviu Paul descer
logo atrás de si.
Na base das escadas, encontrou uma antecâmara espaçosa e escassamente mobilada. Estavam três homens na divisão, todos eles guardas de Kazundu com uniformes diferentes.
Tinham perdido as armas e rolavam no chão, cegos. Um deles tentava levantar-se, mas as vertigens faziam-no tombar de novo.
Hector decidiu não desperdiçar nenhuma bala neles. Sabia que iria precisar de todas as suas munições quando finalmente confrontasse Johnny Congo.
- Ocupa-te deles, Paul - ordenou sem olhar para trás. Viu, no chão à sua frente, o rasto de gotículas de sangue de Carl Bannock. O rasto continuava através da porta
aberta para a divisão seguinte. Hector atravessou a antecâmara com três passadas rápidas, ocultou-se atrás da ombreira e lançou um olhar rápido ao interior.
Carl Bannock jazia no chão da sala interior do bunker. Uma tormenta de emoções apoderou-se de Hector, varrendo qualquer traço de lucidez ou prudência. Finalmente,
tinha à sua mercê o homem que havia matado Hazel. A sua visão reduziu-se a um estreito funil de luz, no final do que estava o rosto odioso de Carl Bannock.
A cara de Carl estava contorcida de terror. De olhos muito arregalados, fixos em Hector. Tentou falar, mas da boca não lhe saiu um único som, e um fio de saliva
pingava-lhe dos lábios.
Hector cruzou a entrada e aproximou-se lentamente dele. Carl tinha as pernas fraturadas torcidas por baixo do corpo, envoltas em ligaduras improvisadas e completamente
empapadas de sangue. Estendeu ambas as mãos para Hector num gesto de súplica. Hector tentou dizer algo, mas o ódio que sentia endurecera numa pasta espessa e amarga
que lhe obstruía a garganta.
De repente, ouviu um murmúrio ligeiro atrás de si e recuperou instantaneamente a lucidez. Apercebeu-se de que tinha cometido um erro fatal e que a sua vida corria
um perigo mortal. Baixou-se e virou-se, levantando a pistola-metralhadora e apontando-a para o local de onde proviera o som.
Uma porta de aço deslizava através da abertura que ele atravessara segundos antes, isolando-o de Paul e dos seus operacionais na antecâmara.
Sabia que estava a olhar na direção errada. O perigo encontrava-se atrás dele. Começou a virar-se para o enfrentar. Mas foi tarde de mais. Algo o atingiu com o peso
e a força de uma locomotiva a alta velocidade, fazendo-o perder o equilíbrio e lançando-o de cabeça contra a porta de aço.
Embora o capacete e o colete blindado de Kevlar tivessem absorvido a maior parte do choque do impacto, sentiu que a coluna vertebral se tinha quebrado. O ar escapou-lhe
dos pulmões como se através de um fole furado. A pistola-metralhadora deslizou-lhe das mãos e tombou ruidosamente num canto do bunker. Sentiu os ouvidos zunirem
devido à força com que a sua cabeça embatera na porta de aço. Sem a proteção do capacete de Kevlar, o seu crânio ter-se-ia esmagado como a casca do ovo de uma pomba.
Apesar da dor, conseguiu manter-se de pé e virar-se para enfrentar o massacre seguinte.
Johnny Congo lançou-se de novo contra ele, de rosto contorcido numa fúria enlouquecida. Até esse momento, Hector vira-o apenas à distância, mas apercebeu-se de que
lhe subestimara imenso a corpulência. Johnny era um gigante. Era muito mais alto do que Hector. O tronco e os membros eram enormes. Mas era rápido, muito mais rápido
do que Hector esperaria de um homem daquela estatura. Voltou a acometer contra Hector, baixando a cabeça enquanto se aproximava.
Hector viu-lhe o cocuruto do crânio rapado, marcado com um padrão de cicatrizes, e reconheceu nesses sinais a marca de quem usava a cabeça para atacar. Sabia que
Johnny iria usá-la como uma arma letal, mas percebeu que não tinha tempo nem espaço para se esquivar à acometida. Hector baixou a própria cabeça e recebeu em cheio
o impacto de Johnny. As cabeças de ambos colidiram. No entanto, o capacete de combate voltou a salvar Hector, absorvendo parte da intensidade do impacto; ainda assim,
ficou atordoado. A porta de aço atrás das suas costas impediu-o de cair por terra.
Hector sabia que Johnny iria atacá-lo novamente, e que talvez não sobrevivesse a mais outra investida devastadora. Johnny superava-o em peso, altura e força. Sabia
que a sua única oportunidade era atacá-lo primeiro. Usou a porta de aço atrás de si como um trampolim e lançou-se contra ele.
Concentrando todo o seu peso e ímpeto no golpe, desferiu o punho contra o rosto de Johnny. Sentiu a cartilagem do nariz de Johnny ceder sob os nós dos dedos cerrados
e viu o sangue brotar-lhe das narinas em dois jorros brilhantes.
Johnny quase parecia não se ter dado conta do golpe. Sacudiu a cabeça e lançou-se contra Hector. Mas dera a Hector a fração de segundo de que ele precisava para
sacar da pesada faca de trincheira da bainha na coxa direita. Tentou apontar a afiadíssima lâmina de aço de trinta centímetros ao peito de Johnny. Mas Johnny lançou
os braços compridos e nus à volta dele, como uma jiboia gigantesca. Os músculos de pele negra e reluzente incharam e endureceram como cordas de aço quando ele começou
a apertar.
O braço com que Hector empunhava a faca ficou imobilizado ao longo do flanco. A ponta da lâmina estava apontada para o chão e Hector descobriu que já não lhe restavam
forças para a levantar. Tinha o braço esquerdo comprimido contra o próprio peito.
Sentiu a força abandoná-lo rapidamente enquanto Johnny lhe espremia a vida do corpo como se torcesse um pano molhado. Os dedos da mão direita de Hector abriram-se
de moto-próprio. A faca escapou-lhe e tombou de forma ruidosa no chão, entre os seus pés. Sentiu Johnny levantá-lo no ar como se fosse uma criança. Os braços enormes
apertavam-no como a prensa de uma sucata a compactar a carcaça de um carro velho. Hector sentiu as costelas a começarem a ceder. Já não conseguia respirar e a sua
visão começou a anuviar-se. Foi então que, no meio da agonia e da escuridão, sentiu uma pequena massa dura sob os dedos da mão esquerda ainda implacavelmente imobilizada
contra o peito. Percebeu o que era aquilo em que estava a tocar. Reuniu os últimos vestígios de forças que lhe restavam. Usou o dedo dormente para abrir o fecho
de velcro do bolso da frente do colete blindado e tocou na seringa Hypnos no interior. Quase de moto-próprio, o polegar moveu-se para comprimir o minúsculo tubo
verde contra o indicador e removeu a tampa protetora da agulha hipodérmica. A sua visão desaparecera por completo, mas encontrou, na escuridão e no desespero, a
força para uma última tentativa. Girou o pulso da mão esquerda. Sentiu a leve pressão quando a ponta da agulha tocou em algo.
Não sabia o que era, mas enfiou a agulha e premiu-a. Depois, perdeu completamente os sentidos.
111
Quando abriu os olhos, pensou que estivera inconsciente durante horas, ou até dias. Depois, sentiu nas narinas o fedor animalesco do suor de Johnny Congo e sentiu
o seu enorme peso morto em cima de si, esmagando-o contra o chão. Respirou fundo e rolou de debaixo do corpo de Johnny. Sentou-se, completamente atordoado. Só então
se deu conta de que tinha estado inconsciente por meros segundos e não horas.
Olhou para o corpo de Johnny e reparou que a agulha da seringa Hypnos continuava cravada nos enormes músculos do antebraço. Johnny ressonava ruidosamente através
da boca aberta. Hector ouviu algo raspar no chão atrás de si. Virou-se e viu Carl Bannock apoiado nos cotovelos enquanto arrastava a metade inferior do corpo sobre
as lajes. As pernas estropiadas deslizavam atrás dele. Na mão direita empunhava a faca de trincheira que Hector fora forçado a largar. A sua expressão era tão feroz
e louca como a de um cão raivoso.
Hector levantou-se. Carl soergueu-se e atirou-lhe a faca. Foi um gesto patético e inútil. A faca atingiu o colete blindado de Hector com o cabo e caiu aos seus pés.
Hector calcou-a e avançou lentamente, até ficar especado sobre Carl. Olhou-o do alto.
- Carl Bannock, presumo? - perguntou numa voz calma, mas o tom era inegavelmente de ameaça. A bravata de Carl esfumou-se; acobardou-se, lúgubre e silencioso, perante
Hector. Hector assestou-lhe um pontapé numa das pernas feridas. O membro fletiu-se na articulação esmagada e Carl uivou.
- Fiz-te uma pergunta - insistiu Hector. - Por favor, não me faças mais mal - gemeu Carl. - Sim. Sim. Sabes que sou o Carl Bannock.
- Sabes quem sou? - Sim. Sei quem és. Por favor, não me faças mais mal. - Quem sou eu? - insistiu o Hector, dando-lhe outro pontapé na perna. Carl voltou a gritar.
- Estás-me a magoar - choramingou. - És o Hector Cross. - Sabes porque vim atrás de ti? - Lamento muito. Mudaria tudo se pudesse voltar atrás. Não era minha intenção
fazer-te sofrer. Não sou má pessoa. Foi tudo um erro terrível. Peço-te perdão.
- Como é que se abre aquela porta? - Hector apontou com a cabeça para a porta de aço atrás de si.
- Acho que o Johnny tem o controlo remoto no bolso. Hector aproximou-se do local onde Johnny estava deitado de costas e a ressonar. Debruçou-se sobre ele e apalpou-lhe
os bolsos. Quando encontrou o controlo remoto, apontou-o para a porta e premiu o botão. A porta deslizou com um silvo sobre as calhas.
Paddy e Nastiya estavam à espera do outro lado, mas enfiaram-se pela abertura assim que tiveram espaço suficiente para passar. A voz de Paddy soava rouca de preocupação
e agitação quando perguntou: - Estás bem, Hector?
- Não podia estar melhor, meu velho amigo - respondeu-lhe. - Vejo que espetaste a Hypnos nesse grande cabrão. - Paddy olhou para Johnny.
- Funcionou direitinho como o Dave disse. Acho que ele caiu de costas enquanto eu ainda estava a premir o tubo. Mas agora temos de nos mover depressa. Temos de sair
daqui antes que o inimigo se reagrupe. Trouxeste as braçadeiras de cabo?
- Não te preocupes, amigo. - Dá-as ao Paul. Quero que ele e os seus homens amarrem o Johnny com muita força. - Hector tocou no peito magoado e dorido. - É o homem
mais perigoso que já encontrei pela frente. É forte como um maldito touro. Senti-me como um bebé nas mãos dele.
- Para quê correr mais riscos, então? Basta aniquilá-lo aqui, de uma vez por todas. - Nastiya estendeu a mão para a pistola no coldre da anca.
- Não sejas tão bondosa, Nazzy. Isso seria demasiado generoso e fácil. - Hector abanou a cabeça. - Tenho em mente uma coisa muito especial para ele. No voo de regresso
a casa, vamos atirá-lo da traseira do Condor, a cerca de oito mil metros de altitude. Terá dois minutos de queda livre para se poder arrepender dos pecados antes
de atingir o solo.
- Maravilha! - exclamou Nastiya, aplaudindo a ideia. - Agora, sim, é o velho Hector a falar. O Hector que todos nós conhecemos e adoramos.
- Paul, vem cá e traz dois dos teus rapazes - chamou Hector. Quando eles surgiram à porta, apontou para uma das pesadas cadeiras de teca encostadas à parede lateral.
- Amarrem-no àquilo. Vamos usá-la como padiola de evacuação para o levarmos para o aeroporto lá em baixo. O cabrão deve pesar uns cento e cinquenta quilos. Mas a
cadeira parece suficientemente forte para o suportar.
Arrastaram a cadeira para junto de Johnny e içaram-no para cima dela, enquanto Hector voltava a concentrar-se em Carl.
- Este é o primeiro prémio - disse a Paddy e a Nastiya. - É o único homem que conheço que assassinou o pai, a mãe, a madrasta e as duas meias-irmãs. Eliminou toda
a sua família.
- O pior de tudo é que foi esse pedaço de excremento fedorento que matou a minha melhor amiga, a Hazel. - Nastiya olhou-o com fúria. - E, ainda por cima, andava
a tentar matar a nossa bebé Cathy. Isso também não me agradou nada.
- Mas temos de lhe dar crédito por uma coisa - frisou Hector. - Adora animais. Sobretudo porcos e crocodilos, não é verdade, Carl? Adoras dar-lhes de comer, não
é, Carl?
Carl olhou para Hector sem reagir, mas depois, gradualmente, a dor nos seus olhos deu lugar ao terror ao aperceber-se do sentido da insinuação de Hector.
- Não! - murmurou Carl, abanando a cabeça. - Por favor, não digas essas coisas. Dou-te tudo o que tenho. Dinheiro? Queres dinheiro? Posso dar-te sessenta milhões
de dólares.
- Não há dinheiro suficiente neste mundo, Carl - disse-lhe Hector com amargura, virando-se para Paul Stowe no momento em que ele acabava de amarrar o corpo gigantesco
de Johnny à cadeira.
- Vais precisar de todos os teus homens para te ajudarem a transportar esse monte de banha lá para a pista de aterragem. Mas como ele só vai acordar daqui a três
horas, não deves ter grandes problemas com ele. Eu, o Paddy e a Nastiya vamos levar o Carl Bannock para o seu destino. É provável que vos alcancemos antes de chegarem
ao Condor; mas, caso nos demoremos, carreguem o Johnny a bordo e digam aos pilotos para esperarem por nós. Não vamos demorar muito. - Deu uma palmadinha no ombro
de Paul. - Vão!
Esperou enquanto eles carregavam a padiola improvisada através da antecâmara e pelas escadas de acesso ao túnel. Depois virou-se para Carl.
- Como se chamam os teus crocodilos de estimação, Carl? Relembra-me, por favor.
- Não, não me podes fazer isso. Ouve-me. Eu posso explicar. Tu não compreendes. Tive que fazê-lo. Foi a Sacha e a Bryoni que me enviaram para a prisão. O meu pai
abandonou-me, e a minha mãe também. - Balbuciava de forma incoerente, ao mesmo tempo que chorava e estendia as mãos para Hector. - Piedade! Por favor, tem piedade
de mim. Já sofri que bastasse. Olha para as minhas pernas. Nunca mais vou voltar a andar.
- Hannibal, já me lembro! - Hector estalou os dedos enquanto fingia lembrar-se. - Hannibal e Aline. E se fôssemos lá abaixo aos jardins para nos apresentares ao
Hannibal e à Aline? A voz de Jo Stanley ecoou de repente nos auriculares de rádio. Soava estridente devido à indignação - Hector, estou a ouvir cada palavra que
dizes. Não podes fazer isso que estás a planear. Por mais culpado que ele seja, não podes matá-lo assim, sem mais nem menos. Estarás a rebaixar-te ao nível dele.
Estarás a cometer um crime contra todas as leis de Deus e do homem. "A vingança é minha", diz o Altíssimo." O que estás a pensar fazer é selvagem e bárbaro.
Hector falou para o seu microfone, numa voz dura e cortante. - Lamento muito, querida Jo. Estamos muito ocupados aqui. Não posso falar agora. Terminado! - Desligou
o Birkin e indicou a Paddy que fizesse o mesmo. Assim que ambos ficaram incomunicáveis, disse a Paddy: - Basta de perder tempo, está na hora de terminar o trabalho.
- Agarrou o pulso de Carl e torceu-lho entre as omoplatas. Paddy fez o mesmo com o outro braço. Nastiya acocorou-se e amarrou-lhe as mãos atrás das costas com o
cabo.
De seguida, os dois homens obrigaram Carl a ajoelhar-se e arrastaram-no pelas escadas acima até ao túnel. Nastiya seguiu atrás com as armas deles.
Levaram Carl através do labirinto, com as pernas a baloiçar por baixo dele. Não parava de balbuciar o seu arrependimento, implorando perdão e misericórdia e uivando
de dor sempre que os pés que arrastavam no chão ficavam presos em algo e uma das suas pernas se contorcia com violência, num ranger de osso contra osso.
Chegaram à poterna e saíram para a luz do sol. Pararam para recobrar o fôlego e olhar à sua volta. Hector observou as muralhas do castelo. O túnel de saída das masmorras
situava-se por baixo dos jardins onde se encontravam nesse momento.
- Tu e o Johnny fizeram aqui um belo trabalho - congratulou-o. - Transformaram este lugar num paraíso. É uma pena não poderes desfrutar disto tudo por muito mais
tempo.
A pista de aterragem estendia-se lá no fundo e viram Paul e os seus homens transportarem Johnny ao longo da estrada sinuosa.
Viraram costas e seguiram o sopé da encosta até contornarem um contraforte de rocha vulcânica negra e depararem com os jardins aquáticos à sua frente. As fontes
entreteciam intrincados padrões de espuma contra o azul infinito do céu africano. E as cascatas tombavam sobre a parede de rocha negra, alimentando as lagoas e os
poços subterrâneos no seu regresso ao grande lago, que se estendia ao longe como um reluzente escudo de prata.
Continuaram a caminhar pelo meio de maciços de fetos e estrelícias gigantes, engalanados com flores exóticas que faziam lembrar as cores e as formas de aves do paraíso.
Alcançaram finalmente o parapeito de pedra em redor do topo da arena dos crocodilos. Os gritos de dor de Carl Bannock e as suas súplicas de misericórdia e perdão
esgotaram-se quando Hector e Paddy o pousaram de barriga sobre o parapeito. Paddy segurava-o pelas pernas para impedir que caísse de cabeça sobre o muro de seis
metros de altura para dentro do tanque em baixo. Hector debruçou-se sobre o parapeito ao lado dele.
Os dois crocodilos aqueciam-se ao sol na margem arenosa que contornava a borda mais afastada do tanque. As enormes mandíbulas de Hannibal estavam abertas ao máximo
para permitir que uma pequena garça branca se empoleirasse na mandíbula inferior e lhe bicasse avidamente as reluzentes sanguessugas negras que tinham aderido às
gengivas. Aline estava estirada muito perto dele, tão imóvel como se a tivessem esculpido em pedra. Os olhos eram brilhantes e implacáveis como ónix polido por trás
das pálpebras transparentes e nictitantes.
- Alguma vez pensaste no que a tua irmã sentiu enquanto estava a ser comida viva por animais, Carl? - perguntou-lhe Hector numa voz calma. - Carl emitiu um som abafado.
- Bem, estás prestes a descobrir, não achas? - Depois perguntou-lhe: - Sabes o que é perder alguém que amamos, Carl? - Respondeu à sua própria pergunta: - Não, claro
que não sabes. Nunca amaste ninguém a não ser tu mesmo. Mas eu sei o que se sente. Perdi a minha mulher. Tu conhecias a minha mulher, não conhecias, Carl? Sim, claro
que conhecias. Quero que me digas o nome da minha mulher.
Carl manteve-se em silêncio e Hector olhou para Paddy. - Temos que lhe refrescar a memória, Paddy. Torce-lhe a perna, por favor. - Paddy torceu-lha com brutalidade
e Carl gritou.
- Ora comecemos de novo, Carl - disse Hector. - Como se chamava a minha mulher?
- Hazel. Chamava-se Hazel. - Obrigado, Carl. E agora, por favor, não digas mais nada. Quero que esse nome seja a última palavra que proferiste. - Hector fez um sinal
e Paddy agarrou os tornozelos de Carl e deixou-o cair de cabeça sobre o rebordo do muro. Carl atingiu a água e submergiu. Voltou à superfície num jorro de salpicos
e a arquejar desesperado.
Na margem arenosa, Hannibal fechou abruptamente as mandíbulas e a garça levantou voo em gritos estrídulos, sobrevoando os topos das estrelícias. Hannibal ergueu
o seu enorme volume nas patas curtas e grossas e bamboleou-se até à borda do tanque. Lançou-se para dentro da água turva. Aline seguiu imediatamente atrás dele.
- Isto faz-te sentir melhor, Hector? - perguntou Nastiya enquanto assistiam à carnificina do alto do muro.
- Não, Nazzy. Não há nada que me possa fazer sentir melhor. Não há nada que consiga fazer desaparecer esta dor no mais fundo de mim. - Começou a afastar-se do muro.
Os outros posicionaram-se de cada um dos lados dele e os três desataram a correr pela colina abaixo, em direção ao Condor que os esperava, pronto para descolar.
Bernie e Nella viram-nos aproximar-se e ligaram os motores da aeronave. Depois puseram o enorme aparelho a rolar para fora da rampa do abrigo e pararam no início
da pista.
112
Assim que os três subiram a bordo da rampa de carga e se encontraram a salvo no porão de carga do Condor, Bernie içou a rampa e Nella falou através do sistema de
amplificação interno. - Bem-vindo a bordo, Hector. Por favor, procura o assento mais próximo e aperta o cinto de segurança. Vamos descolar de imediato.
Hector seguiu à frente e, quando entrou na cabina pressurizada, reparou que estava apinhada. Havia três sacos mortuários com os corpos dos operacionais que tinham
perdido. Ao lado deles estavam as padiolas de evacuação com os feridos amarrados a elas. O maciço volume de Johnny Congo continuava amarrado à cadeira de teca, com
a cabeça a baloiçar-lhe contra o peito. Paul Stowe tomara a precaução adicional de o imobilizar com uma rede de carga de nylon.
- Não quis correr nenhum risco, senhor. Não queria que ele acordasse e destruísse o avião com todos nós cá dentro. Mas nem sequer um elefante conseguiria escapar
dessa rede.
- Excelente ideia! - aprovou Hector. - Guardei-lhe lugares ali, na parte da frente da cabina. - Onde está a Jo Stanley? - perguntou-lhe Hector. - Acho que está na
zona de catering, no assento rebatível atrás da casa de banho.
O Condor levantou voo e rumou para norte. Elevou-se através da cobertura de nuvens até alcançar a altitude de cruzeiro, e Bernie desativou então o sinal do uso do
cinto de segurança. Hector levantou-se de imediato e atravessou as cortinas de acesso à zona de catering. Jo estava sentada no banco rebatível ao lado da janela
de vigia. Parecia pálida e melancólica. Olhou-o e ele sorriu-lhe. Ela virou a cabeça para olhar pela janela. Hector baixou o assento ao lado dela e sentou-se.
- Olá - disse. - Não te apetece falar? - Nem por isso - respondeu Jo, sem olhar para ele. - Como queiras - disse ele, cruzando os braços. Permaneceram assim durante
algum tempo, e foi Jo quem quebrou o silêncio.
- Não quero saber o que lhe fizeste, nunca. - Estamos a falar de quem? Do homem que assassinou a Hazel
e planeou matar a Catherine Cayla?
Ela não respondeu, mas continuou a olhar pela janela. Hector apercebeu-se então de que ela estava a chorar. Tocou-lhe levemente no ombro, mas Jo afastou-se dele.
- Por favor, vai-te e deixa-me em paz - disse por entre soluços. - Estás a querer dizer que me vá embora, tipo para sempre? - Sim! - ripostou ela. Hector levantou-se
e começou a encaminhar-se para a cabina de passageiros. - Não! - Deteve-o. - Não vás.
Hector parou e virou-se para ela. - Sim ou não? O que vai ser, Jo?
- Tu assassinaste-o. - Assassinei-o ou executei-o? O nosso mundo assenta muitas vezes no significado preciso de uma única palavra, Jo.
- Não tinhas esse direito, Hector! Foste muito além da lei e da decência. - De que lei estamos a falar aqui, Jo? A Lei de Al-Qisas, a lei da retaliação como vem
exposta na Tora, no Êxodo, e sancionada pelo profeta Maomé no Corão?
- Estou a falar da lei americana, a lei que eu pratico e respeito. - Continuava a chorar.
Hector teve de fazer um esforço para lhe rechaçar os argumentos. - E no entanto, chamas-me um assassino. Já me julgaste, mas a lei americana que tu praticas diz
que sou inocente até que a minha culpa seja provada.
- Sim, concedo-te o benefício da dúvida. Mas a seguir vais matar o Johnny Congo. Ouvi-te gabares-te disso pelo rádio. Se o matares, Hector, nunca te conseguirei
perdoar. Nunca poderei estar contigo.
- Queres que eu solte o Congo? É isso que me estás a pedir? - Eu não disse isso. - Negou-o com veemência. - Quero que o entregues à justiça. Entrega-o ao sistema
judicial americano, que já o provou como culpado e o condenou.
Levantou-se de um salto e agarrou-lhe ambas as mãos. - Por favor, Hector! Por favor, meu querido, fá-lo por mim. Não, fá-lo por nós os dois. Assim já podemos continuar
juntos.
Hector olhou-a nos olhos durante longos momentos antes de anuir rigidamente com a cabeça. - Muito bem, então. - Mas falou de lábios quase cerrados, e numa voz torturada
pelo esforço que lhe custava dizer essas palavras. - Vou-te entregar o Johnny Congo como prova do meu amor. Faz o que quiseres com ele.
113
O Departamento de Justiça dos Estados Unidos enviou um jato executivo Grumman de Washington DC para o Aeroporto Internacional de Abu Zara. Seguiam quatro agentes
federais a bordo, com um mandado de prisão e detenção de John Congo.
Por autorização real, a transferência do prisioneiro ocorreu no hangar onde o emir de Abu Zara tinha a sua frota de aeronaves privadas. Os agentes federais eram
homens altos e atléticos, de cabelo à escovinha. Estavam alinhados à frente da porta aberta na fuselagem do Grumman. Usavam fatos civis escuros, mas os olhos treinados
de Hector repararam nos volumes dos coldres nas axilas esquerdas que indicavam que portavam armas. Reparou também na forma inconfundível das biqueiras de aço nos
sapatos pretos e reluzentes.
Um bando de valentões, concluiu Hector enquanto ajudava Paddy e oito operacionais da Cross Bow a levarem Johnny para o hangar. Johnny arrastava os pés acorrentados
e tinha os braços imobilizados atrás das costas com algemas de aço. A transferência foi rápida e sem cerimónia. O chefe dos agentes federais entregou a Hector um
recibo oficial do governo americano, deu-lhe um aperto de mão e murmurou algumas palavras de agradecimento. Fez sinal aos colegas com a cabeça e dois deles aproximaram-se
e agarraram Johnny pelos cotovelos. Arrastaram-no para a porta aberta do jato.
De repente, Johnny virou-se e começou a avançar para confrontar Hector. Apesar das algemas e das correntes, os dois oficiais corpulentos não conseguiram detê-lo.
Johnny arrastou-os atrás de si. Berrava um chorrilho de insultos tão obscenos que o próprio Hector e os seus homens endurecidos ficaram impressionados.
Avançou diretamente para Hector. Continuava com o nariz inchado e desfigurado pelo murro que Hector lhe assestara.
- Fui eu que dei a ordem para matarem a cabra da tua mulher... - gritou, e encontrava-se suficientemente perto para que Hector sentisse os seus salpicos de saliva
no rosto. Johnny baixou a cabeça para a esmagar contra a cara de Hector. Mas Hector já estava a prever esse golpe. Tinha os pés bem fincados no chão; era a posição
ideal. Concentrou todo o seu peso no golpe que estava prestes a desferir. Soube, mesmo antes de o golpe atingir Johnny, que tinha sido o melhor murro que já dera.
Atingiu o ponto exato que visava no maxilar.
Nem mesmo os maciços músculos do pescoço de Johnny conseguiram impedir-lhe a cabeça de girar no ângulo máximo de rotação. Tombou como uma avalancha negra e jazeu
imóvel no pavimento do hangar. Abateu-se um silêncio repentino e total, quebrado segundos depois pelo chefe dos agentes federais.
- Caramba, senhor. Você é bom! Foi um dos melhores socos que já vi na minha vida - disse, acercando-se para voltar a dar-lhe um aperto de mão, mas dessa vez com
sinceridade.
- Levem-no e espetem-lhe a injeção letal - disse-lhe Hector. - É esse o plano, senhor - confirmou o agente. Cinco dias depois, Hector recebeu um telefonema de Ronnie
Bunter a informá-lo que a nova data para a execução de Johnny Congo tinha sido fixada pelo Supremo Tribunal para o dia quinze de outubro, daí a três semanas.
114
A ameaça à vida de Catherine Cayla tinha sido completamente eliminada por fim. Já podiam regressar a uma existência normal. Hector e Jo levaram Catherine e as suas
amas com eles quando partiram de Abu Zara para Londres.
A casa remodelada a partir das antigas cavalariças era perfeita, e Londres era ainda melhor. Havia restaurantes e clubes sobre os quais Jo apenas lera e, por conseguinte,
estava ansiosa por os frequentar. Trouxera poucas roupas consigo, de modo que não precisaram de uma desculpa para irem às compras em Bond Street e Sloane Street.
Jo nunca chegara a ter na mão uma cana de pesca à mosca. Já ouvira falar do salmão atlântico, mas, como texana que era, nunca tinha visto um com os próprios olhos.
Hector levou Jo e Catherine Cayla para norte, rumo à Escócia, onde passaram três dias como convidados de um nobre duque no seu castelo junto ao rio Tay.
Jo e Catherine observaram da margem enquanto Hector caminhava a vau pelo rio, com água pela cintura, e lançava a mosca com a cana Spey de quatro metros e meio.
Naquela noite, enquanto ambos vestiam os seus trajes de cerimónia, Jo deu a sua opinião sobre o desempenho dele nesse dia. - É maravilhoso de se ver. É como um balé,
tão gracioso e cheio de habilidade.
- Então, amanhã vou ensinar-te a lançar a linha - ofereceu-se ele.
- Não, obrigada - declinou ela. - É bonito de se ver, mas parece-me um grande desperdício de tempo.
- Que queres dizer com isso? - Bem, não apanhaste nenhum peixe, pois não? - O importante não é apanhá-los, mas a pesca em si. - Tudo isso me parece um pouco absurdo
- disse. Era uma heresia, mas Hector não fez caso. A desavença entre ambos já estava sanada e esquecida e sentia-se feliz. Não era sua intenção reabrir essa ferida.
No terceiro dia, as duas raparigas já tinham perdido o interesse pela pesca. Jo tinha o seu livro e Catherine as suas bonecas. Quando se cansaram dessas ocupações,
deram curtos passeios de mãos dadas e contaram uma à outra histórias maravilhosas que nenhuma delas entendeu. Quando Catherine se cansou, Jo transportou-a apoiada
na anca e Catherine tentou partilhar a sua chupeta com Jo.
Quando voltaram de uma dessas passeatas, encontraram Hector ainda no meio do rio, mas já não estava a lançar a linha e viram a cana dele dobrada quase pela metade.
Hector emitia gritos estranhos que atraíram a atenção delas. Mantiveram-se de mãos dadas e observaram com curiosidade. Foi então que o salmão saltou. Irrompeu da
água num prateado reluzente à luz do sol e submergiu num poderoso chape. As duas raparigas gritaram entusiasmadas e surpreendidas.
Quinze minutos depois, Hector voltou para a margem com um magnífico salmão de cerca de dez quilos no saco de rede. Pousou-o no meio das ervas na borda e removeu-lhe
o anzol do lábio. Depois tirou-o da rede e segurou-o com delicadeza nas duas mãos, estendendo-o a Catherine para que lhe tocasse. A criança apressou-se a tirar o
polegar da boca e encostou a cara ao peito de Jo.
Hector olhou para Jo. - E tu? Queres tocar num verdadeiro salmão escocês vivo?
Jo ponderou menos de um segundo e abanou a cabeça. - Talvez da próxima vez - disse.
Hector voltou para dentro do rio com o peixe. Segurou-o no alto e beijou-lhe o nariz frio e húmido, enfiando-o depois na água e mantendo-o de cabeça contra a corrente.
O peixe permaneceu imóvel nas mãos dele por alguns segundos enquanto bombeava as guelras e recuperava o equilíbrio e a vontade de viver. De seguida, afastou-se velozmente
nas águas do leito arenoso.
Nessa noite, depois de fazerem amor e estarem prestes a adormecer nos braços um do outro, Jo sussurrou numa voz ensonada: - És um homem estranho, Hector Cross. Matas
homens sem o mínimo remorso. Por outro lado, não poupas esforços nem dinheiro para tirar um peixe para fora da água e depois deixa-lo ir.
- Só mato aqueles que merecem morrer - respondeu. - Aquele salmão fêmea tinha vinte mil ovos na barriga. Não merecia morrer. Ela e as suas crias mereciam viver.
Voltaram para Londres no dia seguinte. Foi uma viagem longa e, quando chegaram a The Cross Roads, observaram Catherine Cayla a devorar a maior parte da sua papa
de carne de frango e abóbora. Tudo aquilo que ela não engolia pingava-lhe do queixo para o babete.
Depois, Bonnie convidou-os a assistir ao complicado ritual de deitar Catherine no quarto de criança, com todos os seus coelhinhos e ursinhos de peluche dispostos
à volta do berço na ordem correta.
- Mas como é que sabe qual é a ordem correta? - perguntou Hector. - Ela diz-nos - explicou Bonnie. - Eu sei que o senhor pensa que só estamos a fazer ruidozinhos
com a boca, mas é uma linguagem secreta. Só vai aprendê-la se passar mais tempo connosco. - Foi uma reprimenda, e ele sabia que a merecia.
Mais tarde nessa noite, quando Jo tinha terminado a sua rotina antes de se deitar e saía da casa de banho, reluzente de cremes, perfumada e encantadora como um jardim
na primavera, Hector levantou as cobertas do lado dela da cama para lhe dar espaço. Jo enroscou-se nos braços dele com suaves murmúrios de conforto, não muito diferentes
daqueles que Catherine Cayla emitia quando a deitavam no berço.
- Posso fazer-te uma pergunta de cliente para advogado antes de passarmos a assuntos mais importantes? - perguntou-lhe Hector.
- Escolhes sempre os melhores momentos, não é? - murmurou ela. - Mas pergunta lá o que queres saber.
- Se o Carl Bannock estivesse morto, o que aconteceria ao património do Fundo Fiduciário?
Ela manteve-se em silêncio durante alguns segundos e, quando falou, o seu tom era distante. - Não tenho motivos para acreditar que o Carl Bannock não esteja de perfeita
saúde. - Olhou-o nos olhos com determinação enquanto proferia aquela negação hipócrita, e depois prosseguiu: - Mas se alguém afirmar o contrário, então a lei do
Estado do Texas é muito clara. - Sentou-se na cama e abraçou os joelhos, refletindo por um momento antes de continuar. - Qualquer pessoa que afirme que o Carl está
morto, deve ser capaz de mostrar em tribunal uma prova irrefutável da sua morte, como um atestado de óbito assinado por um médico ou uma declaração ajuramentada,
por uma testemunha ocular credível, de que essa morte ocorreu de facto. Hector, tens alguém em mente disposto a comparecer em tribunal e afirmar sob juramento que
testemunhou a morte do Carl Bannock?
- De momento não - admitiu Hector. - Então, na ausência de provas irrefutáveis dessa morte, a lei estipula que deve transcorrer um período de sete anos até que as
partes interessadas possam pedir ao Supremo Tribunal do Texas uma declaração de morte presumida. As provas apresentadas em tribunal devem demonstrar que não existe
nenhuma razão para acreditar que o sujeito continua vivo, como um avistamento fiável do sujeito ou qualquer contacto com ele por parte de pessoas que poderiam razoavelmente
esperar um tal contacto. No nosso caso, os mandatários podem esperar que o Carl os contacte para exigir os benefícios que lhe são devidos, de acordo com as cláusulas
estipuladas pelo Fundo Fiduciário, como quadruplicar quaisquer fundos que ele ganhe por conta própria. Se o Carl não o fizer, será uma prova sólida de que está morto.
Mais perguntas? Ou já podemos passar ao assunto principal que nos reuniu aqui esta noite?
- Não tenho mais perguntas, mas gostava de fazer um comentário: este é um mundo cruel se a minha pobre menina indefesa tiver de esperar quase até aos dez anos de
idade para poder comprar o seu primeiro Ferrari.
- Oh! És incorrigível! - exclamou ela. Pegou numa almofada e bateu-lhe com ela.
115
O sexo nessa noite foi particularmente intenso e satisfatório para ambos. Depois, Hector mergulhou num sono tão profundo e sem sonhos que não ouviu Jo levantar-se
da cama.
Quando acordou, ouviu-a na casa de banho. Verificou as horas no relógio na mesinha de cabeceira e viu que ainda não eram cinco da madrugada. Levantou-se e foi à
sua própria casa de banho. Quando voltou para a cama, deteve-se à porta da casa de banho dela e ouviu-a falar ao telemóvel. Provavelmente tinha ligado à sua mãe,
que vivia em Abilene. Às vezes perguntava-se o que teriam elas ainda para falar após todos aqueles anos de telefonemas quase todas as noites. Voltou para a cama
e adormeceu de novo.
Eram sete horas quando voltou a despertar. Jo continuava trancada na casa de banho. Hector vestiu o roupão e foi ao quarto de criança. Voltou para a cama com Catherine
nos braços, agarrada ao biberão da manhã. Apoiou-se nas almofadas e segurou-a no colo. Enquanto ela mamava na tetina, ficou encantado com o seu rosto. Parecia estar
a tornar-se mais bonita, e mais parecida com Hazel, a cada dia que passava.
Ouviu por fim a porta da casa de banho de Jo abrir. Quando ergueu a cabeça num sorriso, viu-a especada à porta. O sorriso esmoreceu-lhe lentamente no rosto. Jo estava
completamente vestida e segurava na mão a pequena mala de viagem. A sua expressão era melancólica.
- Aonde vais? - perguntou-lhe, mas ela não fez caso da pergunta.
- O Johnny Congo escapou da prisão - disse ela. Hector olhou-a e sentiu o gelo formar-se à volta do coração. Jo respirou fundo antes de continuar a falar. - Matou
três dos guardas e fugiu. Hector abanou a cabeça em negação. - Como sabes isso? - Disse-me o Ronnie Bunter. Estive metade da noite a discutir isso com ele ao telemóvel.
- Calou-se para aclarar a garganta. Depois prosseguiu, em voz baixa: - Vais-me culpar por isso, não vais, Hector?
Ele abanou a cabeça, mas não conseguiu encontrar as palavras para o negar. Sabia que era verdade aquilo que ela tinha dito.
- Vais voltar a perseguir o Johnny Congo - disse ela com uma certeza serena.
Ele não respondeu imediatamente. - Resta-me outra opção? - perguntou-lhe por fim, mas não passava de uma pergunta retórica.
- Tenho de te deixar - disse ela. - Se me amas de verdade, ficas comigo - protestou, mas numa voz calma.
- Não, é porque te amo de verdade que devo ir. - Para onde? - O Ronnie Bunter propôs-me voltar para o meu antigo emprego na Bunter & Theobald. Pelo menos lá posso
fazer alguma coisa para proteger os interesses da Catherine no Fundo Fiduciário.
- Vais voltar? - Duvido. - Começou a chorar, mas continuou a falar através das lágrimas. - Nunca imaginei que pudesse haver um homem como tu. Mas estar contigo é
como viver nas encostas de um vulcão. De um lado faz sol. É quente, fértil, belo e seguro. Pleno de amor e alegria. - Calou-se para conter um soluço e prosseguiu.
- Mas o outro lado de ti está cheio de sombras e de coisas assustadoras e sombrias, como ódio e vingança; fúria e morte. Nunca saberia quando a montanha iria entrar
em erupção e destruir-se a si mesma e a mim.
- Se não te posso impedir de ir, então dá-me pelo menos um beijo antes de ires.
Mas ela voltou a abanar a cabeça. - Não. Se te beijasse, isso iria enfraquecer a minha determinação, e ficaríamos presos um ao outro para sempre. Isso não pode acontecer.
Não fomos feitos um para o outro, Hector. Acabaríamos por nos destruir um ao outro. - Voltou a respirar fundo e olhou-o profundamente nos olhos. - Acredito na lei,
ao passo que tu acreditas que és a lei. Tenho que ir, Hector. Adeus, meu amor. Ele sabia, no fundo do coração, que era verdade aquilo que ela tinha dito.
Jo virou-se e saiu do quarto. Fechou silenciosamente a porta atrás de si. Hector tentou ouvir os passos dela que se afastavam, mas a casa continuou em silêncio.
O único som audível provinha de Catherine enquanto mamava no biberão. Hector olhou para ela e disse baixinho: - Agora somos só tu e eu, bebé.
Catherine tirou a tetina da boca. Estendeu a mão para o rosto dele e tocou com o dedito rechonchudo e rosado na única lágrima na face dele. Nunca tinha visto uma
coisa assim e olhava de olhos arregalados de espanto. Disse baixinho, mas numa voz clara. - Homem bom, Ba-Ba.
E ele pensou que o seu coração ia explodir.
Wilbur Smith
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