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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


VINGANÇA DE UM APAIXONADO / Corin Tellado
VINGANÇA DE UM APAIXONADO / Corin Tellado

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

VINGANÇA DE UM APAIXONADO

 

Uma chuva incessante caía do céu cinzento, produzindo um ruído metálico nas vidraças.

Lidia Geogley levantou na cama:

— Peço-lhe por Deus, Clark. Pela alma de nossos pais, por essa criança que acaba de morrer, pelo que mais ame no mundo...

A figura rígida que, de costas para ela, olhava com determinação para a rua escura, iluminada por vezes por um clarão de relâmpago, virou-se, bruscamente:

— Pensa que tenho amor a alguma coisa?

— Escute, Clark. Juro que a culpa não foi toda dele...

Um suspiro fez estremecer o corpo que tinha apenas um resto de vida. O rapaz chamado Clark avançou lentamente.

— Por que vai morrer? Quem está matando você?

Silêncio. Ouviu-se o suspiro de agonia da jovem mulher.

— É ele quem a mata. Acha que poderei esquecer-me isto? Jamais. Vingarei a sua morte, Ligia. Como? Não importa! Amanhã ou daqui a mil anos? Ah! Eu me lembrarei sempre deste momento e a vingança tomará conta do meu coração, exigindo que eu mate como mataram você...

— Pelo meu filho, Clark...

— Não fale. — Soltou uma pequena risada que mais pareceu um soluço. — A desonra da família... Por que fala em seu filho? Foi um benefício o fato de Deus o ter levado, Lidia.

— Se ele tivesse vivido eu não estaria morrendo.

O rapaz sacudiu a cabeça, desconsoladamente. Parecia cansado. Era jovem e devia ter apenas uns vinte anos. Apesar de ser ainda um rapazola, a vida já o fizera provar o seu cálice de amargura, ensinando-lhe a reagir como um homem.

A mulher de rosto bonito, mas maltratado pelo sofrimento, achava-se cada vez mais pálida. A mão comprida e morena de Clark Geogley roçou a testa da mulher. Estava fria.

Restavam-lhe poucos minutos de vida.

Apertou os lábios e de entre eles saiu uma frase surda:

— Frank Wright pagará caro algum dia, Lidia, pode ter certeza.

— Vou esquecer, porque estou morrendo. Não pense em vingança... Por favor.

Não deu explicações, nem disse o que pensava. Para quê? Nem ela teria compreendido a imensa amargura que se apossava do seu coração, nem o rapaz saberia definir o que sentia naquele instante, vendo a vida da irmã minguar cada vez mais.

— Ele não teve culpa — disse a enferma, em voz baixa, como se quisesse levantar-se. — Foram os pais dele, Clark. Eram muito orgulhosos e não permitiram que seu primogênito se unisse por toda a vida a uma moça como eu.

— E que é que eles alegavam contra você? A falta de aristocracia? — Soltou uma risada sardónica que parecia dilacerar o seu próprio coração e acrescentou com raiva: — Quando um homem é cavalheiro e tem coração, tem de cumprir o seu dever acima de tudo. Frank Wright terá de se haver comigo algum dia, isso eu juro pela memória desse filho que você acaba de perder. Vou chamar um médico e depois a levarei para o campo, pois aqui acabaria morrendo, como é seu desejo. E eu preciso que você viva, compreende? Preciso! Lidia, Lidia! Pelo amor de Deus, coragem. Se você morrer...

A moribunda quis abrir a boca. De repente, uma contração espasmódica lhe endureceu os membros e ela não pôde falar.

— Lidia! — gritou Clark, rouco. — Minha irmã... — Baixou a voz e acariciou a mão da morta, a testa que aos poucos ia ficando fria. — Eu a vingarei... — prometeu, com a voz descomposta pela dor. — Você foi vítima do seu próprio pecado, mas eles, todos esses Wright, se lembrarão de mim um dia e chorarão como você chorou.

Tudo havia terminado. Uma vida jovem, promissora e formosa, fulminada pelo destino e pelo orgulho de uma grande família...

— Mesmo que eu leve a vida inteira tentando, vocês se lembrarão de mim — exclamou, em voz sufocada. — Embora tenha de arrastar-me, mesmo que tenha de alcançar a popularidade com a minha própria destruição espiritual, chegarei ao suntuoso palácio de vocês para vingar a morte da minha irmã.

 

— Você bem podia ter esquecido a tradição este ano, papai. Teria sido melhor se tivéssemos ficado em Londres. Você nos traz para cá justamente agora que saio do colégio, desejosa de exibir os meus vestidos bonitos nos salões aristocráticos...

— Sempre temos passado a Páscoa neste castelo, minha querida. Sua mãe tem sido muito feliz aqui e não se importa de viajar uma vez por ano para vir aqui.

Dora Wright sacudiu a linda cabeça de cachos pretos e seus olhos claros, grandes e brilhantes, obscureceram-se por um instante.

— Por que não me deixou com Frank, papai?

— Não teria sido prudente. Além disso, ele e sua esposa pretendem fazer uma série de viagens nesta semana mesmo. Talvez até a Páscoa eles já estejam conosco. — Sacudiu a cinza do charuto e acrescentou, em tom suave: — Garanto-lhe que você vai gostar. Nesta comarca a gente vê coisas muito curiosas e tipos muito originais. Você pode percorrê-la a cavalo em duas horas. Se eu fosse moço a acompanharia, mas já estou muito velho para isso.

Dora se pôs de pé:

— Seguirei o seu conselho, papai. Afinal de contas, um mês passa depressa.

— Realmente, querida.

Transpôs a colina a galope, como uma flecha. Erguida sobre o cavalo puro-sangue, parecia mais bela, mais arrogante.

Suspirou. Soltou as rédeas e o cavalo correu alegremente pela colina até parar no pequeno morro que separava a trilha. Lá ao longe, no fim da senda ondulante, levantava-se uma linda casa pequena, e Dora supôs que devia ser a casa do guarda dos seus imensos domínios.

Esporeou novamente o cavalo e lançou-se pela trilha, até parar numa curva.

Aí, olhou para baixo e um sorriso feliz lhe distendeu os lábios. Um homem alto e corpulento subia lentamente. Uma camisa de quadrados vermelhos e pretos apertava o tronco largo e forte, deixando o peito a descoberto. Sobre a camisa um casaco de couro, vestia calças escuras, presas nas pernas por botas de montar de cano alto. A espingarda ao ombro e, pendurado na cintura, um embornal.

Dora viu o homem apertar o cachimbo entre os dentes muito brancos e, lançando um olhar ao redor, continuar subindo. Caminhou lentamente até chegar ao lugar onde Dora se achava montada no seu lindo cavalo.

Caminhava com a cabeça erguida. Parecia não ver nada, e seu andar imponente e calmo demonstrava a Dora que não se achava diante do guarda.

— Olá — saudou-o, inspirando com força. — O caminho não é difícil, mas para quem não está acostumado é um tanto pesado. — O olhar sério e enigmático não se alterou. Sacudiu o embornal e disse lentamente: — É a primeira vez que venho caçar por aqui. Acha que vou perder tempo?

Falava-lhe com naturalidade, como se a conhecesse a vida inteira.

Dora olhou novamente para o homem. Era arrogante e havia em sua figura algo que seduzia ao mesmo tempo em que emocionava.

— É possível — respondeu a moça, com simplicidade. — Papai sempre disse que jamais caçou um coelho. Seja como for, os caçadores profissionais nunca perdem o tempo. Em nossos bosques sempre há caça.

— E que bosques são esses?

— Os que daqui a gente vê do outro lado. Terá de caminhar bastante. Não tem cavalo?

— Não preciso de cavalo, por enquanto.

Dora continuava erguida na sela. Clark Geogley colocou a espingarda sobre a relva e sentou-se tranqüilamente em uma pedra.

— Pensava que minhas férias iam ser muito aborrecidas — disse ele, de repente. — Ignorava que nestas bandas havia mulheres lindas.

— É um elogio?

Clark levantou a cabeça e depois de olhá-la por alguns minutos soltou uma risada.

Era um riso pouco amável e um tanto desagradável.

— Não costumo elogiar ninguém — retrucou o rapaz, sem pressa. — Digo o que vejo e nada mais. Garanto-lhe que falei sem segundas intenções. Como se chama?

Não lhe teria dito, se a pergunta tivesse sido feita com outro tom de voz. Sob o sorriso que se esboçava de leve naquela boca havia algo que a impelia a portar-se com naturalidade.

— Dora. Dora Wright.

Nem um músculo se crispou no rosto do homem. Parecia que aquele nome não lhe significava nada.

— Você é filha de Lorde Wright, não é mesmo?

— Você o conhece?

O homem sacudiu o cachimbo e pôs-se de pé.

— Preciso aproveitar a manhã. Conheço Lorde Wright de nome. O meu é Clark Geogley, às suas ordens, Lady Wright.

O rapaz fez menção de continuar seu caminho e o cavalo da moça pareceu dar um salto.

— Você é o famoso explorador Clark Geogley?

O homem não pestanejou. Tirou o cachimbo da boca e assentiu, sem palavras.

— Oh, meu pai está sempre falando em você. Quando irá visitá-lo?

— Um dia qualquer. Até a vista, Lady Wright.

Colocou a espingarda ao ombro e afastou-se sem pressa.

Dora contemplou-o até que o rapaz desapareceu. Os jornais falavam tanto nas façanhas daquele homem famoso!

 

— Sabe quem mora nesta comarca, papai? Clark Geogley.

— O explorador?

— Ele mesmo.

O velho cavalheiro se pôs de pé e contemplou fixamente a filha antes de responder:

— Acho que você viu alguma miragem. Há apenas duas semanas que os jornais noticiavam que Geogley tinha chegado à África.

— Deve estar descansando. Encontrei-me por acaso com ele. É muito amável.

— Por acaso você pensou que fosse algum ente extraordinário? Na verdade é, mas na vida real deve ser um homem como outro qualquer.

— É um super-homem, não é mesmo, papai?

— Não há dúvida de que é um homem privilegiado e muito inteligente. Além disso, é milionário. Pertence a uma família humilde, mas sua fama de explorador lhe abriu todas as portas. Gostaria de falar com ele — acrescentou, entusiasmado.

— Disse a ele que viesse visitá-lo, papai, e Geogley respondeu que viria um dia qualquer.

Naquela tarde, novamente a jovem, montada no cavalo puro-sangue, atravessou a senda. Do outro lado, havia só a cabana isolada. Pensou que o guarda lhe daria explicações sobre a presença de Clark Geogley ali, e a galope atravessou a distância que a separava da casa.

A cabana era branca, limpa e bem iluminada, cercada por um jardim pequeno, de canteiros vazios.

Parou o cavalo e saltou sobre o capim. A figura do próprio Clark apareceu no umbral, trajando o mesmo culote e uma camisa de gola alta.

Trazia o cachimbo na boca e seus olhos sérios, profundos, pareciam mais enigmáticos do que nunca.

— Olá — saudou com naturalidade. — A caça foi abundante, Lady Wright. Convido-a, a lanchar comigo.

Dora avançou até junto do rapaz e sentou-se num banco de madeira tosca.

— Pensava que o guarda morava aqui.

— Não. Comprei esta cabana no ano passado, com a finalidade de passar umas férias bem merecidas. Não pude realizar meu desejo porque estávamos na selva e o trabalho era intenso. Mas este ano é diferente. Tenho um inverno inteiro livre.

— Os jornais dizem que você não tem família.

Sentou-se ao lado dela, acendeu o cachimbo e sugou a fumaça, deliciado.

— Nunca tive família. Acho que nasci do nada. Sou feliz e livre como um passarinho.

Dora achava-se um tanto nervosa, mas falava com naturalidade, como se já conhecesse aquele rapaz há muito tempo.

— Meu pai se sentirá muito honrado com a sua visita.

— Irei um dia destes. Por que supôs que um guarda morava aqui?

— Não sei, tive essa impressão. Deve ser muito interessante viver na selva, não é?

A cabeça de Clark virou-se um pouco. Cravou os olhos penetrantes como uma seta no rosto bonito e disse, afastando novamente o olhar inquietante:

— Às vezes, é.

— E outra não é?

— Realmente. O perigo espreita a cada passo. Num momento pode aparecer um réptil e fazer o caçador ficar lá para sempre. Há momentos de grande encantamento, principalmente quando se contempla o pôr-do-sol. A selva parece incendiar-se e as plantas tropicais adquirem vigor. — Fez uma pausa e, sacudindo a cinza do cachimbo, olhou nos olhos da bela castelã, como se pretendesse mergulhar neles até saciar-se. — Se algum dia me casar, levarei minha mulher para a selva e viverei intensamente entre os perigos que ela oferece, levantando sempre a barraca de campanha, dormindo com um olho aberto e outro fechado, com a mulher apertada nos braços, defendendo-a de todos os perigos e amando-a sempre mais a cada minuto que passar.

Um tremor quase imperceptível sacudiu o corpo da moça. O timbre daquela voz máscula parecia penetrar-lhe pouco e pouco na alma. Dora levantou-se.

Estendeu a mão apressadamente e Clark estreitou-a com um aperto cálido, perturbador, que a deixou trêmula.

— Convido-a para caçar comigo amanhã. Espero que seu pai consinta.

— Vá visitá-lo e diremos a ele. Se for você quem pedir, é possível que permita.

Montou no cavalo, ajudada por Clark, que lhe apresentou a mão, para isso, com uma gentileza digna de elogios. Dora colocou o pé na palipa da mão do caçador e saltou sobre o fogoso corcel.

— Logo à tarde irei falar com Lorde Wright.

O cavalo afastou-se. Dora, sobre a sela, seguia rígida e trêmula.

Achavam-se todos no salão. Lorde Wright, afundado numa poltrona, contemplava seu filho Frank. Mais além, Dora e sua cunhada, Kim, falavam de mil coisas.

Naquele instante, um criado anunciou a chegada de Clark Geogley.

Ao ouvir aquele nome, Frank ergueu-se, trêmulo:

— De onde conhece esse homem, papai? — indagou, com voz estranha.

Lorde Wright deu de ombros, enquanto se colocava de pé.

— Mora no outro lado da trilha. Vem quase todas as tardes falar comigo. Somos bons amigos. Há uma semana que Dora o conheceu no vale e desde então nos tornamos grandes amigos.

Frank, com o rosto transtornado, tentou readquirir a displicência habitual.

— Esse rapaz não lhe agrada, Frank?

— Nunca o vi antes. Sei apenas que...

— É possível que você tenha ficado nervoso?

A mão trêmula de Frank agitou-se no ar:

— Não diga tolices, papai.

A figura arrogante do explorador penetrou no salão e o lorde avançou na direção dele. Quando o filho passou, deu-lhe umas palmadas no braço, como se o seu nervosismo lhe provocasse riso. Frank inclinou-se rapidamente e disse, entre dentes:

— Estive loucamente apaixonado por uma mulher chamada Lidia Geogley, como talvez você se lembre.

O rosto de Lorde Wright retesou-se de tal forma, que ficou rígido. Deteve seus passos e lançou um olhar penetrante sobre o filho:

— Em Londres há muitos Geogley...

Continuou avançando. Apertou a mão que Clark lhe estendia e, colocando sobre o ombro do explorador o braço, com familiaridade, levou-o suavemente para junto de Frank e da esposa deste. Fez as apresentações, perscrutando com secreta ansiedade o semblante do seu novo amigo. Nada viu nele que denunciasse a existência de mágoa pela morte de alguma possível parenta... Virou os olhos para o filho e viu-o pálido, feições transtornadas, fazendo esforços inauditos para adquirir serenidade.

— Vamos, vamos lanchar — exclamou o velho, como se quisesse provar ao filho que o nervosismo deste não tinha fundamento. Talvez Frank também pensasse da mesma forma, uma vez que readquiriu o controle dos nervos.

O lanche decorreu com naturalidade. Frank tentava por todos os meios achar uma brecha naquele rosto enérgico, que era tão parecido com o da mulher a quem ele havia amado loucamente e que depois a perdeu...

Clark portava-se com simplicidade, não denunciando de forma alguma o que seu coração sentia. Sentia algo, na verdade? Talvez não, já que seu rosto sério se mostrava tão rígido e natural como sempre.

Quando terminou o lanche, Lorde Wright acendeu um charuto de boa marca e por trás dos densos anéis de fumaça perguntou com absoluta indiferença:

— Você tem família, Clark? Gostaria de convidá-lo para passar o Natal conosco.

Nem um músculo se crispou no rosto do explorador. Dir-se-ia que desconhecia o sentido da pergunta, e apesar disso...

— Sou só no mundo.

— Sempre esteve?

— Sempre. Fui o filho único de uma família humilde. Estudei em Londres. Depois me propuseram uma viagem à África e nunca mais voltei para minha cidade natal. Tenho trinta anos e não me lembro dos meus pais. Eu devia ser muito novo quando eles morreram.

Aspirou com força o fumo. Por cima dos anéis espessos contemplou Dora e sorriu-lhe. Depois, olhou para Frank, que já não estava mais pálido nem trêmulo.

Às seis da tarde, Clark despediu-se da aristocrática família.

— Vive sozinho? — indagou Frank.

— Às vezes, a solidão é consoladora — disse o rapaz, dando de ombros.

— Ninguém cuida de você? — indagou a esposa de Frank.

— Um homem habituado a dormir sobre as plantas venenosas da selva e a fazer a própria comida que come, não precisa que ninguém cuide dele.

Já novamente sozinhos, comentaram a estranha maneira de ser do homem, e a esposa de Frank disse:

— É um homem interessante, mas noto nele algo de indefinível. Parece que a vida lhe é indiferente.

— E chama-se Geogley — repetiu Frank, obstinadamente.

Lorde Wright resmungou alguma coisa entre dentes, e pegando o filho pelo braço levou-o para longe do salão de visitas.

— Você é um idiota — exclamou o velho, com raiva. — Que lhe importa aquele acontecimento? O que passou, passou.

Frank sacudiu nervosamente as cinzas do charuto que fumava.

— Passou, sim, mas a mim sempre parece que tudo aquilo está presente. Eu a amava papai e, você sabe disso. Que me importava que não tivesse dinheiro, de que classe fosse e sua falta de sangue azul? — apertou a boca e acrescentou, surdamente: — Você me casou com esta mulher. Eu a estimo, mas não a amo. Era à outra que eu amava.

— Cale-se, insensato! Aquela mulher morreu. O seu nome e a sua fortuna nunca poderiam unir-se a uma mulher humilde.

— Não morreu papai. Fomos nós que a matamos. Ah, se as coisas pudessem voltar atrás, se o tempo retrocedesse! Acha que eu daria ouvidos à sua ordem? Não, jamais; este peso que trago na consciência, nem minha mulher nem meu filho o podem aliviar... As noites que passo em claro, os remorsos que sinto...

— Você é um imbecil! Está ouvindo? Se tomar a falar dessa moça, sou capaz de... — Passou uma das mãos pela testa e ergueu-se, altivamente, diante do filho. — Sempre pensei que você tivesse mais dignidade. Quer que sua mulher ria de você? Saia daqui e jamais torne a falar no seu amor ridículo por uma mulher morta. Nunca, ouviu?

 

Dora era tão jovem, tão inexperiente! Que sabia do amor? Acaso a linguagem muda daqueles olhos, que na verdade não pretendiam dizer nada, abria o coração, introduzindo nele um sentimento mais intenso do que o da amizade?

Não quis interrogar a si mesma. Entregou-se à amizade daquele homem com fé absoluta, como se ele fosse o seu próprio “eu”, desnudando a alma diante de Clark, revelando-lhe seus anseios de menina-moça. Pois tinha apenas dezenove anos de idade — e sua ânsia de viver e de ser feliz...

Naquela tarde correu pela estrada, atravessando a colina em saltos ágeis. Frank apareceu diante dela, barrando-lhe o caminho. A moça parou na sua carreira e contemplou o irmão:

— Está pálido. Que há com você? Discutiu novamente com papai?

Frank jogou ao chão o cigarro que estivera fumando e pisou nele nervosamente.

— Aonde vai? — perguntou, mal abrindo os lábios.

— Vou procurar Clark — respondeu Dora.

— Que sente para com esse homem? Não, não me olhe assim, Dora. Você é jovem, sabe? Outra moça como você também era jovem e inexperiente...

Dora impacientou-se. Por que Frank lhe estaria dizendo aquelas coisas?

— Aonde vai chegar com esta conversa? Saiba que não pretendo ouvir os seus sermões. Papai está gostando que eu mantenha amizade com o explorador; e ele também me agrada.

— Nosso pai tem sido sempre um egoísta completo...

— Frank! Por que diz isso?

— Pode seguir adiante, Dora. Talvez algum dia se lembre das minhas palavras. Está apaixonada por esse homem. Eu também estive enamorado de uma mulher. Era jovem, uma menina-moça. Tinha o olhar mais angelical que jamais contemplei. Era ingênua e confiante... — passou a mão pela testa e fez meia volta. — Siga o seu caminho, Dora. Talvez eu seja um sentimental.

Dora correu até onde estava o irmão e apertou-lhe nervosamente o braço. Perguntou-lhe:

— Não ama sua esposa? Houve outra mulher em sua vida?

— Houve sim.

Dora respirou com dificuldade. Que drama se ocultaria por trás do sorriso eternamente triste do irmão? Acaso Lorde Wright tinha sido culpado da infelicidade de Frank?

— Vamos sentar-nos na estrada, Frank. Quero que me conte essa história.

— É uma história triste, Dora. Não sei por que a lembro agora, quando há muito tempo que a venho guardando oculta no mais íntimo do meu ser. Fui vítima da minha própria covardia. Talvez ela tenha morrido pensando que fui culpado... Eu não sabia onde estava com a cabeça... — gritou o rapaz. — Papai havia conseguido tirá-la do caminho. Achava que ela era o obstáculo na minha vida de aristocrata...

Guardou em seguida um silêncio penoso. Dora vigiava-lhe os menores gestos.

Escutava anelante, com a alma na boca.

— E eu a amava, Dora. Eu a amava tanto...

Uma figura corpulenta e forte perfilou-se no crepúsculo da tarde.

— Boa tarde, meus amigos — disse Clark aproximando-se.

Ele teria ouvido a conversa? Há quanto tempo estaria ali?

O rosto de Frank ficou rígido. Enfiou as mãos nos bolsos do blusão de couro e esboçou um sorriso amável.

— Olá, Clark. Dora dirigia-se à sua casa. Desculpe, fui eu quem a deteve aqui. Está passeando?

Clark olhou para Dora, depois para Frank, e sorriu.

— A tarde está fria; vou voltar.

Um cão mestiço de lobo saltou, farejando ao redor dos dois irmãos.

— Este animal me foi mandado ontem — disse Clark, com aquela inflexão profunda que jamais se alterava. — Achava-me muito sozinho na cabana do vale. Teria sido mais conveniente um cão de caça, mas agora eles estão descansando. Este animal é o que fica sempre na minha casa de Londres.

Frank jogou o cigarro longe e depois de acariciar o cachorro afastou-se, agitando a mão. Dora seguiu-o com os olhos. Estava angustiada. Por que seu pai não havia deixado que Frank fosse feliz com a mulher amada?

— Você ama muito o seu irmão... — disse Clark, não em tom de interrogação, mas de afirmação.

Virou-se para olhá-lo e encontrou uma expressão estranha naqueles olhos pardos.

— Sim, eu o amo muito.

— Vamos dar um passeio?

— Vamos.

Caminharam em silêncio. O cachorro saltava-lhes ao redor.

— Por que veio ao vale nesta época? — indagou Clark, de repente. — É a mais bela para se passar em Londres.

— Meu pai mantém a tradição da família.

— Ah, compreendo. E você não tem namorados em Londres?

Clark nunca lhe havia feito perguntas dessa espécie. Por que se interessava agora?

Lançou um olhar ao rosto inalterável. O rapaz sorria sutilmente, mostrando os dentes brancos e certos.

— Saí do colégio há apenas seis meses. Meu pai quis que eu terminasse lá a minha educação.

Alguma coisa prendeu os pés da moça e ela caiu. Clark estendeu os braços e levantou-a no ar.

— Machucou-se?

— Não sei. Foi no pé.

Clark ajoelhou-se sobre o capim e pegou o pezinho entre as mãos. Um fio de sangue escorria do joelho até a bota.

— Não foi nada sério — disse o rapaz, sem se mover. E seus lábios absorveram o sangue vermelho.

Dora estremeceu. Por que sentia aquele íntimo receio? Por que a boca ardente pousava como uma carícia sobre sua carne machucada?

— Deixe, por favor. Logo passará.

Clark levantou-se. Seus olhos pardos nunca a haviam olhado tão intensamente.

— Parou de doer? — o indagou, em voz baixa, com aquela inflexão de voz que a transtornava.

Dora não respondeu; não pôde responder por que os olhos do homem estavam dentro dos seus, mergulhando neles com uma imperiosa força dominadora.

Por que não protestou? Por que não se afastou dele, se pressentia o que ia acontecer?

Experimentou uma sensação estranha. Sabia que estava chegando a um caminho proibido e, apesar disso, não se afastou. Clark estava ali, olhava-a e parecia-lhe que era o amor...

O calor das mãos do rapaz propagou-se às da moça, as quais tremeram impotentes entre as dele.

Ela ficou imaginando quais seriam os pensamentos de Clark. Este, com os olhos profundos e o rosto de traços um tanto duros, olhava-a de modo estranho, no fundo dos olhos.

Clark não disse nada. Seu rosto foi-se aproximando lentamente. Talvez esperasse que Dora retrocedesse, mas ignorava que a moça era jovem demais para ler em seus olhos a amargura imensa que lhe torturava o coração. Finalmente, pegou o rosto bonito entre as mãos morenas e apertou-o febrilmente.

— Você é linda — disse o rapaz, num sussurro que teria feito estremecer mesmo uma mulher menos sensível, quanto mais aquela, que era toda sensibilidade. — Tem uns olhos que parecem duas estrelas. Por que treme? Acaso tem medo de mim? O seu coração sente alguma coisa? Por que suas pupilas ardem em fogo?

O cachorro latiu desesperadamente. Lá ao longe surgiu novamente uma névoa confusa. O orvalho do crepúsculo começava a cobrir a terra.

Dora suspirou. Os braços de Clark fecharam-se ao redor daquela cintura flexível e a cabeça da moça ficou apertada sobre o ombro forte do homem.

Os lábios de Dora ficaram presos na boca de Clark. Ela pensou que fosse morrer naquele momento. Era a primeira vez que um homem a beijava, mas nunca pensou que um simples beijo lhe roubasse a tranqüilidade e quase a vida.

— Com licença... — disse a voz forte, tão baixo que pareceu um gemido.

Um vulto de homem saiu do meio das sombras.

— Frank.

— Venho buscá-la, Dora — disse Frank, com tristeza. — Está começando a anoitecer.

Clark afastou-se da moça.

Teria Frank presenciado à cena? O rosto de Clark, rígido e inalterável, não mudou.

Lançou um olhar breve sobre o herdeiro de Lorde Wright e, tirando o cachimbo do bolso do paletó de couro, começou a enchê-lo. Depois, assobiou para o cão e este se aproximou, saltando contente.

Clark olhou para Dora e sorriu-lhe.

— Boa noite — disse, virando-se.

Afastou-se sem virar a cabeça, no seu passo largo e enérgico.

Um silêncio, apenas interrompido pelos passos fortes, cada vez mais distantes, seguiu-se à sua retirada.

Frank pegou a irmã pelo braço e caminhou lentamente, fazendo ruído com os pés sobre o capim.

— Frank, eu... Eu...

Frank apertou o braço que sua mão segurava.

— Não fale — pediu docemente. — Você é muito jovem, querida irmã... Pense apenas nisto: é muito jovem, nova demais para começar a sofrer por amor.

— Eu não o amo, Frank. Devo estar obcecada.

Um sorriso triste surgiu nos lábios de Frank.

— Fui jovem, Dora, e amei apaixonadamente. Dentro da noite, eu também beijei os lábios dela... — parou um instante, como se quisesse afugentar aquelas recordações penosas, e sacudiu a cabeça. — Tenha cuidado! Quando o coração sente, o raciocínio fica anestesiado, querida. Guarde zelosamente o seu coração e consulte bem o que ele sente, antes de entregar o seu amor a esse homem.

Estavam chegando ao castelo.

Dora levantou a mão e pegou a de Frank.

— Eu não quero amar — murmurou, em voz sufocada. — E, apesar disso, pressinto que já entreguei meu coração, Frank.

— Você é apaixonada demais. Contenha esse ímpeto, Dora. As almas grandes como a sua têm de medir seus sentimentos antes de entregá-los. Não sei por que, mas a verdade é que tenho medo; talvez medo infundado, sem sentido, mas tenho... Não quero que você sofra como Lidia sofreu...

— Diga-me o que se passou Frank. Conte-me a verdade, pois talvez ela me ensine a defender-me do perigo que possa correr sentindo-me apaixonada...

— Frank e Dora, por que não entram? Não vêem que está chovendo?

A voz de Kim alterou as feições de Frank.

— Vamos, Dora. Outro dia, quando tiver mais tempo, eu lhe contarei o que você quer saber.

 

As chuvas haviam cessado e aproximava-se o Natal. Clark fora convidado para ir passá-lo no castelo e recebera o convite com um sorriso de assentimento.

Os dois continuavam saindo todas as manhãs. O bosque era um refúgio maravilhoso para as confidências de Clark e Dora.

A jovem vivia como que num sonho. Tinha esquecido as confidências do irmão. Não conseguia distinguir a sombra de amargura que turvava os olhos de Frank cada manhã em que ela, trajada de amazona, saía ao encontro do homem que a esperava.

Por que temia? Lidia não tinha pais que a defendessem. Nunca lhe havia perguntado por eles e até ignorava tudo que se relacionava com a família dela. Naquela ocasião, soube apenas que a amava e achou que isso era mais que o suficiente para fazê-la feliz...

Por sua vez, Dora era uma aristocrata, tinha muito dinheiro e sua posição na alta sociedade inglesa era mais que suficiente para garantir sua força de mulher.

Frank disse isso certa manhã ao pai.

— E daí? — gritou o lorde, com o rosto congestionado. — Que está insinuando? Acha que sua irmã é uma pobre Lidia Geogley? Não tenha ilusões. Ninguém abandonará uma mulher como Dora. Nem se pode fazer uma comparação. Além disso, já é tempo de que você vá esquecendo isso. Sempre pensei que meu herdeiro fosse um homem de coração forte e vontade firme. E, apesar disso, estou tendo provas de que você não passa de um ridículo sentimentalista. Ande, vá andar por aí e não me venha com tolices.

Levantou-se com violência. Era uma injustiça o pai tratá-lo daquela maneira.

— Sempre tenho me considerado um homem de coração e de vontade, tal como você supôs que eu fosse. Perdi tudo isso quando você me tirou essas coisas, exigindo-me um casamento que me repugnava. Pensa que com isso ganhou o céu? Você apenas aumentou suas posses, que já eram grandes, mas isso fez meu coração diminuir de tamanho. Você me amargurou a vida, meu pai; conseguiu que me veja ante os meus próprios olhos como um boneco sem personalidade. Fui vítima da sua ambição, e levarei isso no coração enquanto me reste um bocado de vida no peito. Não sei como, mas o certo é que tenho o pressentimento de que você vai pagar isso de uma forma ou de outra. Eu, no seu lugar, vigiaria sua filha. A vida costuma armarmos ciladas muito ruins. Você fulminou uma pobre moça desamparada. Por que não podem fazer o mesmo com você?

— Cale-se, insensato! Como se atreve a julgar sua irmã como uma, qualquer? Lidia Geogley... Maldita seja a sua memória! Por que você não morreu com ela? Por que não o matei quando vieram depositar o cadáver de Lidia à minha porta? Vá embora! Deixe-me sozinho! Está ouvindo? Quero ficar só!

Em outra época, Frank teria desaparecido temeroso. Naquela ocasião, era um rapazola. Mas agora era um homem com seus sofrimentos, suas mágoas e suas amarguras.

Ergueu-se diante do autor dos seus dias e disse lentamente, com uma raiva mal contida:

— Lidia tinha só um defeito: ser pobre. Era jovem, formosa, pura e honrada como a sua própria filha. Não a tratei como uma qualquer porque ainda hoje, depois de nove anos, a tenho dentro do meu ser e sou capaz de matar quem lhe macular a nobre recordação. Quando o cadáver dela apareceu na nossa sala de recepções coberto de flores e rodeado de lírios, em vez de se compadecer, o senhor mandou enterrá-la como se fosse uma das nossas criadas. Não me esqueci disso, meu pai. Jamais esquecerei como tampouco destruí o papel que acompanhava o corpo de Lidia. Tenho-o aqui, e se quiser ainda pode vê-lo. Diz simplesmente o seguinte. Sei de memória, porque esse peso jamais se afastou do meu coração:

“Lembrem-se de que o cadáver desta mulher há de ser vingado. Mesmo que se passem mil anos, vocês chorarão o que ela chorou. Juro-o.”

— Cale-se, ouviu? Cale-se e vá embora. Não quero que me apareça tão cedo. Rasgue esse bilhete.

O velho estava lívido e de pé no meio do aposento. Os olhos altivos pareciam querer saltar-lhe das órbitas. Uma sacudidela terrível estremeceu-lhe o corpo. Estendeu a mão e apontou para a porta.

Frank, muito lentamente fez meia volta e afastou-se.

Uma explosão atroou no bosque e um pássaro muito colorido caiu pela ramagem de uma árvore e tombou morto sobre a relva.

— Você o matou, Clark — gritou Dora, aparecendo por trás de uns arbustos e correndo para o local do “crime”.

Em dois passos largos, Clark colocou-se a seu lado. Ambos ajoelhados sobre o capim contemplaram o pequeno animal.

— É lindo — murmurou Dora, com ternura, enquanto levantava o pássaro com as mãos e passava as penas macias contra o seu rosto. — Sinto muita pena, Clark, não poder evitá-lo.

— É porque você tem um grande coração...

Dora levantou a cabeça linda, olhou-o nos olhos e pestanejou nervosa. Aqueles olhos poderosos e sério sempre a faziam estremecer, produzindo-lhe no ser desejos indefinidos, temores que não sabia a que atribuir.

— Duvida? — perguntou, com voz sufocada.

Clark sentou no capim e cruzou as pernas com naturalidade.

— Não duvido. Você tem um coração de ouro, que sabe sentir. — Depois de rápida pausa, disse: — Escute Dora, vou dizer-lhe o que penso. Sente-se a meu lado, porque hoje não vou caçar mais. Nos momentos de ternura a gente deve respeitar a vida até dos animais, não acha?

Dora sentou-se a seu lado, trêmula e emocionada.

— Dora, é uma tolice continuarmos tratando-nos como estranhos. Sabe o que sinto por você e eu sei o que sente por mim.

E ela sentia? Sentia mesmo algo?

Finalmente, atreveu-se a contemplá-la com ar indagador.

— Não sente nada? — perguntou ele, chegando-se para o lado da moça.

— Não sei.

— Então, me enganou.

Estava aturdida. Que estava ele querendo dizer, com aquilo? Acaso teria lido o que lhe ia ao coração?

— Novamente, tenho de dizer que você é bonita. Tem vida nos olhos e paixão no coração. Você me ama muito?

Dora obstinou-se em continuar com os olhos fixos no capim. Os dedos morenos de Clark levantaram-lhe o queixo.

— Receia falar? Por que não confessa?

Não quis pensar que Clark não falava do seu amor para com ela. Obstinava-se em não mencionar isso. Fazia isso de propósito, ou era porque realmente não a amava? E se assim era, por que a maltratava com seus olhares e seus cochichos velados que, mesmo quando parecia não dizer nada, diziam tanto, tanto...

— Minha menina!

Fulminou-a com seus olhos, passou as mãos sobre o rosto bonito, que tinha nervosamente entre seus dedos, e aproximou o rosto do dela.

— Faço-lhe presente do pássaro colorido para que se lembre desta manhã. Quer?

Dora quis afastar o olhar. Que exprimiam aqueles olhos pardos que jamais se alteravam que sempre olhavam do mesmo jeito, com intensidade, com a segurança da posse absoluta?

Era preciso fazer um último esforço. Tentou levantar-se, mas Clark a segurou pela cintura. Colocou a cabeça de Dora sobre o peito e inclinou a cabeça para diante.

— Quer encontrar-se comigo na cabana, logo à tarde? Sim, sei que irá...

Ir à sua casa? Claro que iria! Que importava que a vontade se empenhasse em contê-la, se o coração a empurrava de encontro ao homem amado? Iria! Iria, embora supondo que lá encontraria a morte.

— Deixe-me, por favor... — pediu, num sussurro.

Por quê? Por que aqueles olhos a sugestionavam a ponto de roubar-lhe a vontade?

Além disso, Clark não lhe falava do amor que podia ter por ela... Mas que lhe importava isso? Dora estava amando com toda a alma.

Tentou mover-se, mas Clark a impediu com um gesto.

— Ainda é cedo...

Beijou-a com um domínio completo, sem levar em conta seus protestos. Dora tentou defender-se, mas em vão. Clark era poderoso.

Beijou-a tanto e tão intensamente que Dora pensou que o mundo ia acabar.

Não teve forças para mover-se. Naquele momento, acabava de entregar o coração por toda a vida. Nunca mais tornaria a recuperá-lo porque haveria de faltar-lhe vontade suficiente para garantir-lhe a rebeldia.

Levantou-se de um salto e, ajoelhada sobre a relva, deixou à mostra todo o ímpeto do seu coração jovem.

— Eu o amo — disse ela, respirando fundo porque lhe parecia que o ar lhe escapava dos pulmões. — Eu o amo. Não me pergunte desde quando, nem como foi. Que importa isso?

Os olhos do homem se emocionaram? Sua boca tremeu por causa da ternura que ela pudesse inspirar-lhe? Nada disso.

Clark levantou-se lentamente e apertou-a nos braços.

— É deliciosa.

Por que não havia entusiasmo naquelas palavras? Por que não havia emoção naquela entonação áspera de voz?

Dora ficou tremendo dentro do círculo daqueles dois braços de ferro, e suspirou com força. Dois lábios ardentes recolheram aquele suspiro.

— Depois...

— Hoje à tarde lancharemos juntos na minha pequena casa. Dora, não esqueça...

Pegou a espingarda e partiu.

 

Aquelas visitas à cabana que se erguia do outro lado da estrada tomaram-se diárias, normais. Se a princípio Dora sentiu algum constrangimento, depois as considerou coisa natural.

Quando Dora saía do parque do castelo a cavalo, Frank sempre se achava de pé sobre a pequena elevação de onde se avistava o caminho.

No meio da tarde tinha começado a nevar.

A noite de Natal apresentava-se gélida, com o seu característico manto branco de neve.

Clark, em mangas de camisa, os cabelos despenteados e de chinelos, agora muito perto da lareira acesa, olhava para Dora, que, com o corpo enrodilhado, permanecia num canto da pequena sala. A atmosfera no interior da cabana era quente, mas lá fora continuava nevando.

— Por que chora? Não pense em mais nada. Você me ama, não é mesmo?

A voz do rapaz soavá oca. Não havia na sua entonação nada que denotasse emoção.

Um rosto afogado em prantos se ergueu para ele.

— Acho que você não tem coração, Clark.

Este se levantou e a pegou rudemente nos braços.

— Esta casa sabe demais, Dora. Vou destruí-la.

— Está vendo? Você é mau.

Clark abafou-lhe a voz com os lábios dominadores.

— Silêncio! Por que se atormenta? Somos livres, Dora. Eu sou um homem, e você...

— Agora sou uma mulher — cortou ela, com voz sufocada. — Há apenas um mês eu era uma menina.

— A experiência é bonita.

Afastou-se do lado dele, e sua costa chocou-se contra a parede. Seus olhos reluziram.

Clark acendeu o cachimbo e contemplou-a, alto e imponente.

— Esta foi uma aventura vergonhosa! — gritou a moça.

Clark consultou o relógio e disse:

— São sete horas da noite, querida. Olhe, já anoiteceu completamente. Seu pai ficará aborrecido.

— Clark!

O rapaz virou-se lentamente e seus olhos pareceram mais metálicos do que nunca.

— Por que grita desse jeito? Esquece que é uma aristocrata? Se Lorde Wright a ouvisse, ficaria desolado.

Dora correu para Clark e apertou-se contra o peito dele.

— Clark, não me quer mais? Não compreende que não voltarei para o castelo enquanto você não jurar que vai ser meu marido?

Clark aspirou deliciado a fumaça e afastou-a brandamente do seu lado.

— Não tenho feitio para casar, Dora. Gosto muito de todas as mulheres, e você é uma mulher bonita.

— Clark! — exclamou a moça, louca de desespero, e contemplou-o alucinada.

— Por que está assim agitada, minha querida?

Estaria falando sério ou zombando dela? Como era possível isso, depois que lhe entregara seu coração, todo o seu ser?...

— Clark, eu estou olhando para você e não o reconheço. Parece um estranho.

— Por quê? Bobagem está um pouco impressionada.

Dora olhou-o, alucinada, e viu-o avançar até junto à porta e abri-la lentamente.

— Já parou de nevar, Dora. Pode ir embora.

— Mas assim, sem mais nem menos? Enlouqueceu?

Clark contemplou-a com ar indagador, com as pupilas quase ocultas pelas pálpebras.

— Que tem isso de especial? — interrogou o rapaz lentamente. — Suponho que não deve ser a primeira vez que isto acontece.

Um soluço estrangulou-se na garganta da moça e Clark avançou até onde ela se achava.

— Não chore — disse, num cochicho. — Não seja tolinha. É fácil esquecer. A vida é uma brincadeira.

— Meu Deus! Fala sério?

— Claro.

Dora soltou-se dos braços dele e secou as lágrimas com as mãos.

— Está zombando de mim — gritou, desesperadamente.

— Não seja dramática. Escute, ouço passos. Frank vem buscá-la. Se não tratar de apagar os sinais do pranto e de acalmar os nervos, receio que eu seja obrigado a dizer alguma tolice.

Ouviram-se batidas na porta, e Clark foi abrir.

— A Srta. Wright está aqui, Sr. Geogley? — indagou um criado em voz respeitosa.

No interior da saleta ouviu-se um suspiro de alívio. Clark deu uma risada abafada.

— Sim, está. Já ia partir neste instante.

— Lorde Wright pediu-me que o convidasse para passar a noite de Natal no castelo.

— Infelizmente, acho que não poderá ser. Partirei amanhã.

Dora procurou com insistência os olhos do rapaz, que se voltou para ela, mas não pôde ler neles nada do que esperava.

O criado patinhava na neve. Afastava-se discretamente.

Clark, apoiado no umbral da porta, contemplava indolente e com as pálpebras cerradas, o vulto encolhido da moça.

Dora ergueu os olhos e suas pupilas fuzilaram.

— Você me enganou — disse, com entonação desesperada. — Destroçou meu coração e meu desejo de viver. Sabe disso, não é mesmo, Clark? Não quero crer que o tenha feito deliberadamente, porque enlouqueceria... Que tola que fui, que tola!

— Está muito nervosa, querida. Espero que amanhã já tenha se acalmado.

— Estou espantada com seu sangue-frio — replicou a moça, adquirindo uma firmeza da qual ela própria se assombrava. — Espero que amanhã as coisas se arrumem de outro modo.

— Sim, é de supor que amanhã pensemos de modo diferente.

Dora leu na entonação daquela voz algo de espantoso. Como Clark era cínico e como o seu futuro era negro! Mesmo sem desejar, lembrou-se dos conselhos de Frank. Mas agora já era tarde demais.

— Não pretende esquecer-me, não é mesmo? — interrogou, quase sem voz. — Eu lhe dei toda a minha vida, Clark, todo o meu ser e todo o meu amor. Se você me faltasse agora...

— O criado pode ficar impaciente, querida — retrucou-o, sem nenhum entusiasmo. — Amanhã poderemos continuar esta conversa.

Dora avançou para a porta e passou diante de Clark serena e altiva.

Clark admirou-a assim, na sua majestosa serenidade. Era uma grande alma, forte e valente. Se não fosse quem era... Clark não soube ou não quis conter-se. Estendeu a mão comprida e morena quase sem querer e, pegando-a pelo braço, atraiu-a suavemente para si.

O corpo bonito ficou rígido; parecia uma estátua, sem vida e sem calor.

— Apesar de tudo — disse, com voz rouca — jamais tive nos braços uma mulher como você.

Dora sentia-se impotente. Teria desejado afastar-se, mas, apesar disso, ficou muda, quieta, esperando anelante uma nova expressão de carinho.

O olhar profundo cravou-se no seu com uma ânsia amorosa, com raiva e ao mesmo tempo com uma selvageria apaixonada.

— Vá embora, vá embora — resmungou Clark, soltando-a. — O que mais me satisfez na vida foram os seus beijos. Não quero tornar a provar essa beberagem embriagadora e feiticeira por que... Vá embora, e não me julgue com demasiada severidade. Os homens, às vezes, parecem maus e não somos mais do que simples instrumento do destino.

E empurrou-a para fora. Antes que pudesse reagir, Dora viu-se sozinha no meio da neve, coberta com uma capa, e o criado de pé, esperando numa curva da trilha branca. A porta daquela casa, onde havia sido tão feliz, fechou não apenas a pequena casa, mas também o seu coração...

 

Pálida, com os olhos brilhantes e sorrindo sutilmente, Dora sustentou os olhares indagadores que pareciam varar-lhe a alma.

— Isto não são horas de andar, sozinha pelos campos, Dora — observou a severa voz do pai. — Vá trocar de roupa. Vamos jantar... — seguiu-se uma breve pausa. O pai não havia notado o seu desespero. — E Clark, não virá cear conosco?

— Virá amanhã. Disse que não queria abusar de sua gentileza, meu pai.

Virou-se e afastou-se lentamente. Era observada pelo olhar penetrante de Frank.

“Ele já sabe. Frank já leu no meu coração. Já penetrou nele e está á par do meu martírio.”

Era preciso encontrar a fortaleza de ânimo suficiente para enfrentar sua desgraça, e encontrou-a nas orações.

Voltou para a sala. Um retoque no rosto foi o bastante para ocultar-lhe a palidez. Os olhos sorriam. Ali no fundo das pupilas havia algo profundo e insondável que as toldava.

“Amanhã bem cedo seguirei pela estrada. Preciso falar com Clark e dizer-lhe muitas coisas. Hoje só ele falou, eu fiquei calada. Vou fazê-lo compreender, e me atenderá.”

— Em que pensa filha?

Levantou a cabeça.

— Não estava pensando em nada, papai. Tenho fortes desejos de voltar para Londres. Isto aqui é tão maçante!

Os olhos de Frank cravaram-se, indagadores, nos dela. Dora furtou-se ao olhar dele e um sorriso triste brotou nos lábios de Frank.

— Pensei que a companhia de Clark Geogley fosse altamente interessante para você...

Dora estremeceu, sacudida por uma impressão fortíssima. Inclinou a cabeça e tentou sorrir.

— E é; mas às vezes, num lugar tão inóspito... Tudo acaba cansado.

Frank levantou a cabeça e olhou-a novamente. Agora, seu sorriso era uma careta desagradável.

A ceia foi um verdadeiro martírio, e finalmente terminou. Dora retirou-se com uma desculpa qualquer. Fechou a porta por dentro e, apertando as mãos contra o coração, deixou-se cair diante de uma imagem.

— Não tive culpa — rezou baixinho, elevando os olhos úmidos para a imagem que parecia olhá-la severamente. — Foi o destino, fomos eu e ele... Meu Deus se pudesse ajudar-me... Pelos menos, dê-me forças para conhecer o verdadeiro caráter do homem a quem entreguei minha vida!

Ocultou a cabeça nas mãos e soluçou como se tivesse a alma na boca.

Retorceu-se desesperadamente. Apertou as mãos sobre a boca e permaneceu assim minutos e horas que lhe pareceram séculos, enquanto aos poucos ia perdendo o ânimo que ainda lhe restava.

Ficou muda e trêmula diante daquelas madeiras calcinadas. Não restava mais nada do seu ninho de amor. Tudo desolado, frio, cercado de neve e a cinza manchando o lençol branco.

— Eu a vi arder ontem à noite — disse Frank, às suas costas, em voz inexpressiva.

Dora não se virou. Para quê? Frank teria compreendido a sua dor desesperada, e a moça não desejava perder o pouco ânimo que ainda lhe restava.

Esta cabana sabe demais. Será preciso destruí-la.

Virou-se bruscamente e seus dedos nervosos cravaram-se no braço de Frank.

— Não é verdade, não é? — gritou, enlouquecida. — Onde está Clark?

Frank apertou-a nos braços e acariciou repetidas vezes o rosto transtornado.

— Vi tudo lá de cima do morro, Dora. Li nos seus olhos algo terrível, ontem à noite, e quis averiguar se na verdade não teria me enganado.

Dora encolheu as pernas e caiu sobre a neve.

— Estou acordada mesmo, Frank? Ou apenas sonhando? — murmurou.

Exatamente como Dora se sentia, era como devia ter-se sentido Lidia quando seu pai o proibiu, sob pena de desterro, de tornar a ver aquela criatura inocente. Quem era Clark?

— Você está acordada — disse ele, muito baixo. — Vi como Clark, ontem, aproveitando o fato de ter parado de nevar, molhava a casa com um líquido inflamável... Depois, quando as chamas se ergueram violentas, sua figura rígida, quase macabra, brilhou contra o fundo infernal. E eu o vi rir, Dora. Parecia a figura do próprio demônio. Nos olhos dele julguei ver os de Lidia Geogley. Pareceu-me que a morta lançava uma negra maldição. Quando as chamas foram amortecendo sua impetuosidade, Clark, acompanhado apenas pelo seu cão-lobo, afastou-se da cabana, transpôs a colina e cruzou a trilha.

Mais adiante ficava caída a inocência de uma pobre moça, mas para um homem como Clark isso não tinha a menor importância. Havia executado a sua vingança. Que importava o resto?

Dora levantou-se da neve, pálida e trêmula.

— E eu? E eu, que farei? — gritou desesperadamente, com o coração em pedaços.

— Ela era uma simples costureirinha — disse Frank, como única resposta, deixando-se cair sobre um tronco de árvore. — Eu a vi e me senti de tal forma atraído para ela, que nunca mais tornei a pensar noutra mulher... Era tão pura, tão linda, tão inocente...

Dora levantou-se diante do irmão. Parecia uma estátua. Não havia dor nas suas pupilas, nem amargura nos lábios crispados, nela havia apenas uma indiferença que raiava a idiotice. Estava morta, débil e impotente para analisar a sua dor.

Frank a compreendia e amava-a mais do que nunca, com um carinho que teria saltado por cima de tudo para defendê-la e ampará-la.

— Sente-se ao meu lado, Dora. Precisa recuperar novamente ô domínio sobre si mesma.

Um trejeito a guisa de sorriso acompanhou as palavras do rapaz.

— O meu domínio ele o levou, Frank. Acha que terei forças para recuperar-me?

— É preciso. Eu também tive. Pelo menos, se não adquiri a tranqüilidade espiritual...

Dora cortou-lhe as palavras com um gesto.

— Eu não teria sido covarde — disse a moça, em voz surda. — Passaria por cima de tudo e me casaria com o homem amado.

Dora estava sendo ingrata para com o irmão. Compreendeu isso e conteve a raiva.

— Desculpe Frank — disse, com um fiozinho de voz. — Estou enlouquecida. Quer dizer que a mulher que você amou era irmã de Clark Geogley?

— Pressenti isso no mesmo dia em que fui apresentado a ele. Clark adivinhou minha suspeita e fez todo o possível para desfazê-la, o que em parte conseguiu. Compreendi a dolorosa verdade quando você chegou lá em casa, ontem à noite.

 

Ouviu a voz do irmão como se ele se encontrasse muito longe dali. Pareceu-lhe que a voz vinha do além túmulo, balbuciante e entrecortada por uma dor amarga.

— Não sei por que, mas a verdade é que me empenhei em manter ocultas aquelas relações. Não vou estender-me sobre o assunto, Dora. Que importam os pormenores? O resumo é suficiente para você compreender e julgar o comportamento de Clark Geogley...

— Jamais poderei julgar Clark, Frank. Dei-lhe toda a minha vida e jamais a recuperarei. Não me interessa recuperá-la. Se Clark errou, eu também errei, porque, embora pressentindo o golpe final, entreguei-lhe meu carinho. E se novamente tornasse a encontrar-me com ele, não encontraria força de vontade suficiente para negar-lhe meu amor porque Clark o conquistou, porque eu lhe dei esse amor consciente da minha própria amargura. Se ele é mesmo irmão da mulher que você e meu pai mataram, por que vou julgá-lo? O coração do homem sabe esperar e guardar, Frank. Você, em lugar dele, talvez tivesse agido do mesmo jeito. Olhe para mim: jovem, inocente, quase uma criança, e, no entanto, a única coisa que lhe posso reprovar é o ter escolhido a vítima mais fraca.

Frank inclinou a cabeça e suspirou, abafado.

— Pode prosseguir Frank — pediu ela novamente, com voz calma.

— Quando papai soube das minhas relações com a costureirazinha, se opôs tenazmente, chegou até a ameaçar-me. Jurou que me deserdaria. Naquela época eu tinha vinte anos de idade e não o soube enfrentar. — Passou uma das mãos pela testa e enrugou o rosto. — Lutei o quanto pude. Mamãe ainda era viva e uniu-se a papai para fazer pressão sobre mim, até o ponto de proibir-me de continuar vendo-a. Sei que um dia meu pai foi falar com Lidia. Não sei o que lhe disse, mas desde aquele dia perdi o contato com ela. Soube que passava fome, que sua desdita era imensa... Uma noite, o cadáver dela apareceu na nossa sala de recepções, coberto de flores e rodeado de velas. Nunca soube quem o havia trazido. Meu pai bramiu como um condenado. “Mandou enterrá-la como se fosse uma criada da casa, e todo o resto é muito doloroso. Pensei que ia enlouquecer. Havia um papel preso nas mãos da morta. Dizia que se vingaria de nós e que choraríamos tanto quanto ela havia chorado. O bilhete não trazia assinatura, mas adivinhei que aquelas letras haviam sido traçadas pela mão trêmula de alguém que sentia uma dor intensa. Deve ter sido Clark. É um Geogley. E embora meu pai diga que na Inglaterra há muitos Geogley, tive a vaga impressão de que me achava diante do irmão da mulher que amei mais do que a própria vida.

Calou-se. Sua irmã permanecia muda e quieta, com os olhos vagando pelo local onde havia existido a pequena casa.

Lorde Wright não adivinhou nada. Vivia à margem de tudo.

Um dia, na noite que precedia o regresso da família para Londres, olhou para a filha e disse aborrecido:

— Em vez de refazer-se, querida, você piorou. Desagrada-me que a sua formosura não possa brilhar com todo o seu esplendor nos nossos salões.

Um comentário que carecia de ternura. Dora não se iludia com respeito ao amor que o pai pudesse ter para com os dois filhos.

Não respondeu nada. Encolheu os ombros, com indiferença. Agora, tudo lhe era indiferente.

Sentia os olhos de Frank sempre cravados nela. Frank julgava-se culpado da dor da irmã. Nunca lhe havia dito isso, mas o drama íntimo que os dois sustentavam, além de convergir para o mesmo ponto, tinha a mesma base...

A figura alta e esbelta de Frank aproximou-se dela.

— Não posso dormir.

— Sua esposa suspeitará de que se passa alguma coisa.

— Kim é uma mulher tranqüila, Dora. Os problemas psicológicos do marido não lhe dão cuidados.

Seguiu-se um silêncio.

— Que fará quando chegar lá, Dora?

— Lá, onde? A Londres?

— Sim.

— Ora! Que posso fazer? Este mês no campo foi um verdadeiro pesadelo. Agora... — deu de ombros e apertou os lábios.

— Procurarei Clark e falarei com ele.

— Não faça isso, eu lhe peço, por favor. Finja ignorar tudo — disse ao irmão, com raiva. — Não quero que ninguém se envolva no meu drama íntimo.

— Você tem um coração corajoso, Dora.

— Nunca pensei que pudesse ter coragem assim, até que aconteceu isto. Não culpo Clark, a quem apenas amo. Talvez seu drama seja mais doloroso do que o meu.

— Acha que ele se apaixonou por você?

— Não acho, mas afirmo isso.

— Então?...

Frank viu-a estremecer. Como gostava da sua irmã, e como era sensível e linda!

— Espera chegar a casar com ele?

— Pelo menos, se não me casar com ele terei o consolo de saber que jamais serei de outro homem.

— Papai a obrigará, Dora, eu sei. Nossa família nunca teve uma mulher estéril.

A resposta de Dora foi contundente:

— Eu não sou como você, Frank. A mim meu pai não domina. Se não quero casar-me, não haverá força humana que me faça desistir.

— Dora...

— Vou retirar-me — disse. — Preciso descansar.

E afastou-se apressadamente. Frank, com as mãos nos bolsos do blusão de couro e as costas apoiadas à parede cinzenta, permaneceu ainda ali vários minutos.

Que teria sucedido entre sua irmã e Clark Geogley? Acaso suas suspeitas seriam fundadas? Dora não tentou negar. Uma indiferença absoluta parecia envolver seu coração.

Que esperava? Retirou-se para seus aposentos.

Kim levantou-se na cama e olhou aborrecida para Frank.

— Desde que chegamos ao vale, você parece uma sombra, Frank. Que se passa com você?

— Nada, absolutamente.

— Ora, não pensa que vou acreditar, não é?

— Para mim, você é indiferente.

— Sim, já sei disso. Gostaria de saber em que é que você anda pensando.

— Boa noite, querida. Não pretendia importuná-la. Tinha deixado os cigarros aqui e vim buscá-los.

Na manhã seguinte, o luxuoso automóvel de Lorde Wright partia para Londres.

 

— Não posso tolerar isso, Dora. É inconcebível que você se porte de modo tão estúpido e incompreensível. Já lhe disse várias vezes que desejo vê-la desfrutar da vida como todas as jovens da sua idade. Que é que há com você? Há seis meses que voltamos do campo e desde então você não saiu uma única vez. Antes, você era a moça mais divertida e mais formosa da nossa alta sociedade. Hoje, não é nem divertida nem formosa, porque esta tristeza que está sempre envolvendo o seu olhar lhe tira a beleza. Lamento dizer-lhe, filha, que vou dar uma grande festa com a qual você abrirá a casca em que tenta envolver-se hermeticamente. Espero que em seguida não recuse nenhum convite para festas. Desejo vê-la casada alegre e satisfeita da vida. Uma Wright tem de dar o exemplo de vitalidade de vigor físico e moral. Não irá me dizer que também dessa vez você vai recusar-se a se divertir. Espero que esta festa seja o início de muitas outras.

Depois daquelas palavras, ditas com entonação glacial, Lorde Wright deixou a filha sozinha. Era evidente que havia dito tudo com aquilo e que não admitiria réplicas.

Ficou sozinha na saleta, afundada numa poltrona, com a cabeça inclinada sobre o peito e com um abatimento total naqueles olhos que um dia haviam sido tão luminosos.

Colocou-se de pé. Se pudesse saber onde ele estava! Pelo menos, teria o consolo de censurar-lhe a conduta. Mas nem isso. Parecia que a figura do explorador tinha-se evaporado.

Pegou um jornal, apertando-o nas mãos nervosas, listavam sempre dando alguma notícia de Clark e, apegar disso, quanto mais se lembrava dele e o via retratado naqueles jornais, mais longe o sentia do seu coração. E não é que estivesse afastada dele, não; é que o silêncio de Clark lhe demonstrava que o amor do rapaz fora apenas uma brincadeira, um galanteio sem importância.

Estremeceu. O telefone tocava insistentemente.

— Alô...

Parecia impossível e, no entanto...

— Ainda está aí, não é? Dora, Dora!

Apertou nervosamente as mãos sobre o fone.

“Não responda. Desligue. Você tornará a afundar no lamaçal dos carinhos feiticeiros dele, de onde jamais poderá sair” — pensava.

Sufocou a voz lastimosa da sua consciência. De onde tiraria a coragem para seguir-lhe o conselho?

— Clark! — murmurou deslumbrada.

Aquele nome pareceu um beijo em seus lábios. Um beijo intenso e consumidor que a deixava exausta.

— Ah, ainda está aí? Espero-a embaixo. Venha.

Negar-se a ir? Teria sido absurdo, uma vez que durante seis meses havia esperado ansiosamente aquele momento. Vê-lo novamente. Contemplar-lhe a figura arrogante, imponente, sedutora e misteriosa...

— Agora mesmo, Clark.

— Estou à sua espera, querida.

Desligou o telefone e apertou o coração, que parecia querer saltar-lhe do peito.

Seu pai olhava-a do umbral da porta.

— Vou sair. Clark está à minha espera.

O rosto do velho lorde iluminou-se:

— Já chegou? Diga-lhe que desejo muito falar com ele alguns minutos. Convide-o para jantar, em meu nome. Ao mesmo tempo, pode falar-lhe da festa que você pretende dar.

Dora não respondeu e afastou-se um pouco.

A voz do pai soou-lhe aos ouvidos, um tanto brincalhona:

— Agora compreendo por que você não saía. Meus parabéns por isso querida; Clark Geogley será um marido excelente para você.

O coração de Dora apertou-se. Se seu pai soubesse! Virou-se sem responder e afastou-se apressadamente.

Embora desejasse, não poderia evitá-lo. O coração achava-se destroçado e sua sensibilidade completamente debilitada.

— Não seja tolinha — murmurou Clark, fechando em suas mãos grandes as mãozinhas de Dora, que tremiam bastante. — Você se lembrou de mim?

Dora chorava. Era uma tolice, mas a verdade era que sentia uma vontade atroz de chorar, e estava chorando.

Clark secou-lhe as lágrimas com beijos quentes e apaixonados.

— Vamos divertir-nos — murmurou ele, sentando-se atrás do volante.

O carro rodou suavemente pelo asfalto.

— Não quero ir aonde haja gente, Clark. Temos muito que conversar.

Clark não havia mudado nada. Quando ele voltou os olhos cinzentos na direção de Dora, estes ainda lhe pareceram mais enigmáticos e profundos. Nunca se sabia o que se ocultava debaixo daquele olhar misterioso. E o mistério que emanava dele á atraía ainda mais.

— Vou levá-la a minha casa. Espero que goste.

A casa dele? Devia ir? A energia da voz de Clark provou uma vez mais que era completamente inútil recusar a proposta.

Calou-se. Recostada no banco do carro, fechou os olhos e pensou:

“Estou portando-me como a mais perfeita imbecil. Clark zombará de mim, e me chamará de tola. Além disso, por que não lhe censuro a conduta? Por que não o faço lembrar aqueles dias no vale, quando me fez compreender que o amor era coisa secundária para ele?”

— Está mais bonita do que nunca, Dora! A sombra de melancolia que turva seus olhos lhe dá maior encanto ainda. É uma mulher deliciosa, minha querida.

Nada do que Dora esperava. Nem uma lembrança do passado, nem uma desculpa do seu modo de agir...

O carro parou majestoso, e Clark saltou ao passeio.

— Vamos querida?

Deveria ir? Ah, se tivesse coragem para recusar! Mas de onde tirar essa coragem? Afinal de contas, que lhe importava o que pudesse acontecer? Não lhe havia dado toda a sua vida?

— Querida...

Dora saltou meio vacilante, e a mão de Clark caiu-lhe bruscamente sobre o braço.

— Parece que está assustada como se fôssemos estranhos um para o outro.

Agia com naturalidade, com a absoluta convicção de quem possui algo completamente seu.

Dora sentiu-se menor e mais insignificante do que nunca. Em outra época pensava ter uma personalidade fortíssima. Hoje, essa personalidade ficava anulada pela do homem, poderosa e absorvente.

— Não estou assustada — observou Dora, com um fiozinho de voz. — Talvez me sinta impressionada.

— É muito sensível, minha querida — inclinou-se para ela e, olhando-a no fundo dos olhos, murmurou tão baixo que pareceu mais um cochicho: — Por isso eu a trago dentro do coração.

Os olhos de Dora brilharam de ânimo.

— E você tem isso?

— Coração?

O olhar do rapaz vagou ao redor do seu, depois de ver a afirmação naquelas pupilas sinceras.

— Tenho, e imenso — exclamou, enquanto apertava nervosamente o braço de Dora. — Muitas vezes, não quisera tê-lo.

 

— Embora não seja uma casa como a sua, é bonita e confortável. Meu ninho de mágicas recordações e nostalgias.

Clark tinha uma taça na mão e Dora bebia a pequenos goles de outra taça que o rapaz lhe oferecera.

— Algumas vezes lhe acontece sonhar, Clark?

— Sim. Sou humano e sensível.

— Trabalha aqui?

— Sim. Agora estou escrevendo um livro de memórias das minhas viagens.

— A quem vai dedicar?

A resposta foi rápida. Deixou-há um pouco suspensa a princípio, mas depois... Sentiu um golpe no coração e a vergonha que jamais até então havia sentido, porque acreditava, na sua inocência, que o amor desculpava sua leviandade.

— À cabana branca da montanha, que já não existe mais.

Um silêncio seguiu-se às suas palavras. Dora bebeu de um trago tudo que restava na taça e levantou-se para depositá-la sobre o móvel.

Dois braços fortes a prenderam pela cintura. A respiração ardente de Clark queimou-lhe a garganta.

— Não lhe agrada? Essa dedicatória dirá coisas inefáveis para nós dois. Lembra-se?

A loucura de um beijo lhe roubou dos lábios um mundo de anseios.

— Tem de lembrar — disse a voz do homem, muito baixo. — Nós dois nos lembramos...

Tentava envolvê-la, torná-la ainda mais louca do que já estava. Dora experimentava a paixão da mesma forma que ele a desejava, e apesar disso...

— Deixe-me. Tenho andado tão nervosa ultimamente...

— É porque eu não estava á seu lado.

— Quanto mais está, menos segura me sinto.

— Isso é amor... Querida.

Afastou-se suavemente de Clark.

— Para mim é desespero — disse Dora, muito baixinho.

Em seguida, deixou-se cair novamente sobre o divã e ficou muda e quieta. Seus belos olhos azuis pareciam mais diáfanos e puros do que nunca. O olhar era melancólico, mas no fundo havia algo tão intenso e tão doloroso que por um momento o homem sentiu-se culpado por sua amargura. Mas foi só um momento.

— Às vezes, o desespero que o amor produz não é mais do que o prólogo de uma incessante experiência de sentimento inefável.

Levantou-se, trêmula. Naquele momento odiava-o com toda a sua alma grande e sarcasmo dele.

— Seus beijos vão acabar repugnando-me — disse Dora, em voz sufocada. — Chegarei a odiá-lo, Clark. O desespero pode ser o que você diz quando se tem fé no ser amado, do qual recebemos o prólogo que descreve: mas quando só uma das duas pessoas é quem ama...

— Cale-se. Um homem como eu...

— Um homem como você não sabe amar. Procura apenas a desforra, a vingança. Sei de tudo, Clark. Frank me contou, naquela noite. Talvez tenha adivinhado o que se passou... Foi vergonhoso. Você me maltratou, e espezinhou os meus bons princípios. Por que procurou a vítima mais fraca? Deu um golpe errado, Clark, e sinto-o por você. Se me pedisse em casamento, não pense que teria recusado. Que me importa agora uma coisa ou outra? A vida já me deu tudo o que tinha de dar, mas...

— Para! — pediu ele, imperioso.

Parar? Que lhe faltava ainda dizer?

Deu-lhe as costas e ficou de frente para a janela.

— Meu pai ignora tudo. Disse que você fosse visitá-lo e, que lhe dissesse que muito breve daremos uma grande festa na nossa casa.

— Seu pai é um homem muito inteligente — respondeu Clark, sem a menor emoção na voz profunda.

— Apesar disso, não foi quando recusou Lidia Geogley para nora.

Dora virou-se bruscamente.

— Então, é verdade?

Clark jogou o cigarro ao chão e pisou-o sem piedade. Por um momento, ele perdeu o ânimo. Logo se recuperou. Acendeu outro cigarro, precipitadamente, e olhou sorridente para Dora:

— Por que não? Era minha irmã. Eu a vi retorcer-se de dor sobre a cama. Vi seus olhos chorarem, e eram tão puros e tão azuis como os seus. Tinha um coração tão grande como o próprio mundo e uma alma branca e pura como a de uma criança.

Não havia calor algum naquela voz. As palavras, quanto mais sentido tinham, mais friamente eram pronunciadas. Apenas aqueles lábios, que sempre se apertavam num ricto de assombrosa indiferença, agora se apertavam como se mordessem as palavras.

— Frank não foi culpado — retrucou Dora. — Ainda hoje sente saudade do ser amado.

Uma gargalhada brusca, terrível, pôs fim à sua resposta. A figura de Clark, alta e imponente, pareceu crescer diante dela.

— Se eu amasse — exclamou com os olhos brilhantes — não haveria força humana que me fizesse deixar o ser amado. Ou se ama ou não se ama menina. Sou homem e sei até onde pode chegar um ser como eu, o que pode esperar da vida e o que esta tem a oferecer- lhe. Se eu amasse uma mulher como Lidia, continuaria a amá-la acima de meu pai, da miséria, da repulsa de toda a humanidade e até acima do mundo mesquinho que me censurasse. Que se procura na mulher? A continuação de uma raça inextinguível ou a caminho de duas almas para o resto da existência? Que pode oferecer-nos a parte material, quando existe outra parte procedente do espírito que tem infinitamente mais valor? Pensa que quando a beijo vejo seus lábios? Nem os vejo nem os sinto. Beijo sua alma e seu coração acima de todas as misérias humanas. Vejo-a tal como é e me recreio com esta parte sensível que é a verdadeira felicidade. Acha que sem isto um homem pode ser feliz? Não. Hoje há milhares de mulheres dispostas a satisfazer os desejos materiais. A parte espiritual, só uma mulher pode oferecer, entende? Uma mulher só. Eu teria espezinhado o coração de meu pai e teria desprezado suas ordens; trabalharia como um condenado, mas não esqueceria a mulher que me entregou sua vida e toda a sua alma. Seu irmão não fez nada disso, e jurei que algum dia ele choraria como Lidia chorou.

Era sincero. Teria feito tudo aquilo se amasse realmente, mas para ele Dora Wright simbolizava apenas a vingança. Existiria no coração dele algum amor por ela? Teria sido difícil averiguar.

Se até então o havia amado, ouvindo-o falar o coração de Dora se havia entregado completamente. Era o primeiro homem de sua vida e o seu primeiro amor.

— Meu irmão tinha apenas vinte anos — disse, num suspiro sufocado.

O riso do homem rompeu novamente o silêncio que reinava na casa. Era um riso desagradável, áspero e odioso.

— Quando eu tinha vinte anos, Dora, já sabia o que eram honra e dignidade. Tinha vinte anos quando da desgraça de minha irmã, e me senti tão ferido quanto me sinto agora.

Fez uma pausa brusca e, amassando o cigarro sobre o cinzeiro de bronze, disse, já completamente refeito:

— Por que estamos falando disso? No momento, só existimos nós dois. O resto não nos interessa.

Dora suspirou com força. Sufocou o pranto que lhe vinha aos olhos e disse, suavemente:

— Tenho de falar, Clark, porque para você sou um instrumento.

— Um instrumento maravilhoso, que me enlouqueceu.

Seria sincero? Sondou-lhe o olhar. Teria visto carinho, ou apenas indiferença?

— Oh, peço-lhe que me deixe! Estou desconcertada.

— É porque não sabe se entregar à felicidade.

— Acha que poderia dar-me a felicidade?

— Tenho plena certeza.

Arrastou-a na sua direção, apertou-a fortemente contra o peito e olhou-a nos olhos.

Novamente aquele olhar enigmático, fazendo-lhe um dano infinito. De novo sua voz isenta de inflexões profundas.

— Deixe-me, deixe-me — pediu Dora, com um fiozinho de voz. — Nunca pensei que pudesse perder deste modo a personalidade.

— Que importa? Tenho personalidade pelos dois. Quando estávamos na pequena casa solitária do vale...

— Silêncio. Não me recorde aquilo!

— Apesar de tudo, ainda é a mesma. Eu também sinto que sou o mesmo.

— Você não me ama.

Clark estava inclinado na direção da moça, mergulhando com paixão os olhos nos dela.

— Não me olhe assim, me faz mal. É muito tarde. Vou embora.

Deu a volta e caminhou lentamente na direção da porta da sala que servia de escritório a Clark.

— De hoje em diante, passearei com os amigos que reclamam a minha presença, Clark — disse ela. — Não quero ficar submetida a você. Deixe-me ser sincera uma vez mais e permita que lhe diga que tenho medo de mim mesma. Não posso continuar nesta situação por que...

— Olhe-me de frente, Dora — pediu o homem, como única resposta.

Achava-se às costas da moça, e suas mãos fortes prendiam a cintura da mesma.

— Olhe-me, Dora. Seja corajosa uma vez mais.

Dora olhou para Clark.

— Exijo que viva unicamente para mim.

Por que não respondeu como Clark merecia? Um nó lhe embargava a voz. Exigia como dono e senhor, e, no entanto não dissera que a amava...

Novamente lhe deu as costas. Os braços de Clark fizeram um simples movimento e o corpo miúdo da jovem ficou envolto no anel de dois braços.

— Você me pertence, Dora; você me pertence! Jamais se esqueça disso!

A seguir, uma cena que a deixou muda e inerte. A força do homem dominava-a até o ponto de sentir-se pequenina e insignificante entre os seus braços. O calor daqueles lábios deixou-a dominada.

— Deixe-me, deixe-me — pediu, sem fôlego. — Chegarei a odiá-lo com toda a alma.

— Nem você pode odiar-me, nem eu a odiarei jamais, mesmo que o desejo. Acho que nascemos um para o outro...

A cabana do vale apareceu ante os olhos assustados de Dora. Clark sorriu.

— Igual ao que houve lá — cochichou ele, intensamente. — Igualzinho; igualzinho...

 

Cínico, farsante ou sincero?

Clark odiava seu pai e, no entanto Dora o via ali palestrando com o velho fidalgo como se fossem os melhores amigos do mundo.

Tinham acabado de jantar e ambos riam, no salão, diante de um tabuleiro de xadrez.

Dora, afundada num divã, olhava-os com o coração amargurado.

— Não joga querida?

A voz odiosamente inalterável de Clark chegou-lhe aos ouvidos, produzindo-lhe uma dor indescritível.

— Não — respondeu ela, secamente.

— Deixe-a, Clark — interveio Lorde Wright, com indiferença. — Parece que este dia está de lua.

“Homem sem entranhas” pensou Clark.

Clark deu uma risadinha sardónica e continuou movendo as pedras.

Dora se pôs de pé, afastando-se apressadamente. Os olhos de Clark a seguiram, com um brilho indagador. Em seguida, voltou ao jogo, pondo nele toda a sua atenção.

Quando se despediu de Lorde Wright, não perguntou por Dora. Encontrou-a no terraço.

— Espero que seja a última vez que aceita um convite de meu pai. Está escarnecendo de nós.

— A noite a deslumbrou, querida, e só diz tolices.

Pegou as mãos do rapaz e apertou-as com força.

— Suplico-lhe, Clark.

O rapaz ergueu as mãos de Dora e levou-a aos lábios. Beijou-as com carinho nas palmas trêmulas.

Assim era pior de suportar. De qualquer forma ele a seduzia.

— Não vejo inconveniente em fazer o que me pede querida, uma vez que possamos continuar nos vendo.

— Não, e mil vezes não. Novamente ali, na intimidade da sua casa?

Desprendeu-se de Clark e saiu correndo. Sua figura bonita perdeu-se nas sombras do terraço. Clark deu de ombros e sorriu cético.

Nas mãos dele, Dora era uma cera maleável. Nem à vontade nem o seu firme propósito conseguiram afastá-la do caminho pelo qual havia começado a seguir. Sabia que caminhava para o abismo e não tinha coragem nem forças para conter o seu impulso de moça leviana.

Não foi a casa dele, mas Clark veio buscá-la. E desde aquele dia ficou ainda mais presa ao poder dominador que emanava do rapaz.

Os dias foram passando e o amor de Dora se havia tornado irrefreável.

Uma noite, os dois de pé no terraço do palácio dos Wright, olharam-se frente a frente.

— Como terminará isto, Clark? — perguntou ela, em voz entrecortada.

— Que importa? Não há maior satisfação do que as situações incertas. Sou feliz assim. Você não é?

Podia dizer-lhe que não? Teria mentido.

Clark não esperou resposta. Seu vigor pessoal anulava todas as resistências de Dora.

Começaram a aparecer juntos em reuniões sociais, bailes, festas e passeios. Os jornais falaram daquele futuro casamento, e comentou-se muito, sempre os associando. E um dia correu o boato de que Dora Wright, a mulher mais elegante e mais rica da Inglaterra, visitava o noivo na casa de solteiro deste.

De onde procedia ô comentário? Onde teve origem a crítica? Que olhos os viram?

Ninguém, absolutamente. Apesar disso, a notícia correu por todos os círculos sociais e logo ficou sendo de domínio público.

Dora chegou à casa de Clark sufocada e trêmula.

Fazia isso com naturalidade. Se um dia lhe havia repugnado aquela forma de agir, agora já não lhe dava a menor importância, porque Clark se havia encarregado de fazer-lhe ver o natural do fato. E era mesmo natural? Claro que não, mas Dora, nos seus dezoito anos, não sabia julgar o bastante para compreender que o seu modo de proceder era inadequado.

Encontrou-o sozinho, sentado numa poltrona, com as pernas colocadas sobre uma mesa. Nem sequer se levantou.

— Como? Tão cedo, querida? Acabo de levantar-me.

— Tome — exclamou ela, em voz surda, entregando-lhe um papel amassado. — Leia isto.

Clark se levantou de modo indolente. Tirou o cachimbo da boca e leu sem muito entusiasmo:

“Ainda está em tempo, Dora Wright. Não continue afundada no lamaçal em que Clark Geogley a colocou com toda naturalidade. Suas visitas a casa desse homem são conhecidas. Por que não o deixa? Eu a amo e a quis desde que a tive em meus braços naquele baile em que você fez a sua estréia na sociedade. Fuja da vida de Clark Geogley. Eu o conheço bem e sei que os seus amores com ele não lhe trarão nenhum benefício. Os comentários ficam cada vez mais intensos e chegarão ao ponto de converterem-se em críticas acerbas que a deixarão em péssima posição. Onde está Frank? Vou procurá-lo e pô-lo a par da situação, contando-lhe a sua leviandade. Sei que Frank virá pôr fim a isso ou pedirá satisfação a esse canalha que, amparado na sua fama, destroça a juventude de uma jovem angelical. Seu mais ardoroso admirador. Um amigo.”

Clark dobrou calmamente o papel e, sem olhar para Dora, acendeu um fósforo e aproximou-o do bilhete anônimo.

— Não o queime — gritou Dora, em tom desesperado.

As sobrancelhas de Clark uniram-se de forma incomum.

— Não faça isso — repetiu a moça, com voz entrecortada, pegando com as mãos o fósforo aceso. — Não vim aqui para que queimasse o papel, mas sim para saber sua opinião, para receber uma desculpa, para...

Uma risadinha sardónica cortou-lhe as palavras:

— Não prossiga garota. Onde e quando dançou com ele?

O homem não soltou uma gargalhada, mas a expressão brincalhona do seu rosto deixou-a desarmada e cheia de dor. Baixou os olhos e, apertando os lábios, permaneceu calada.

— É uma ingênua, querida.

O rapaz pegou o papel, avançando até a lareira, e jogou-o lá, com indiferença.

— Clark!

— Queria guardar aquele bilhete para colocá-lo em um museu? Acho de muito mau gosto esse... Esse bilhete intrigante. Se aparecerem outros, peço que os guarde com você, se não quiser que os destrua. Que deseja tomar, minha querida?

Dora estremeceu violentamente, aproximou-se dele, contendo o seu desapontamento e a sua dor e segurou o rosto com ambas as mãos.

— Você é um desalmado, Clark — disse ela.

Era evidente que aquele homem exercia um poder estranho sobre a moça. Sabia disso e divertia-se com o fato, para tornar mais cruel a sua vingança.

Mas uma tarde, Dora não compareceu ao encontro. Clark telefonou e disseram-lhe que a senhorita tinha saído e não havia deixado nenhum recado para ele.

Passeou agitado em todas as direções de sua sala. Parecia uma fera.

Não que a amasse, porque havia feito o firme propósito de deixar livre o seu coração, enquanto conquistava o de Dora. Mas sua autoridade de homem forte e dominador não podiam conceber o motivo do seu silêncio.

Clark saiu à rua e vagou sem destino durante várias horas. Depois, foi até o palacete.

Encontrou Lorde Wright afundado numa poltrona da saleta do andar térreo, com os olhos fixos no chão e com uma profunda ruga na testa.

O nobre levantou-se ao vê-lo e apertou efusivamente a mão de Clark.

“Não sabe de nada”, pensou Clark, satisfeito.

— Olá. Onde está Dora? Estou muito aborrecido. Tínhamos combinado sair juntos e...

Lorde Wright tirou um papel amassado do bolso e entregou-o ao rapaz, sem mais palavras.

Clark leu realmente contrariado:

“Vou ao castelo, papai. Peço-lhe que me deixe só. Preciso descansar. Estou desorientada e espero que no castelo possa conseguir um pouco de tranqüilidade. Peço-lhe e suplico, se for preciso, que me deixe sozinha lá até que por mim mesma compreenda que posso tornar a ser a mesma de antes. Um abraço de sua filha, Dora.”

Durante alguns minutos, Clark ficou com o bilhete nas mãos. Depois, suspirou com força e entregou-o ao velho.

— Que acha disso, rapaz?

— Deixe-a lá, tal como precisa. Enquanto isso, eu vou fazer uma viagem de recreio pelo Norte da França.

Pela primeira vez, Lorde Wright contemplou-o com olhos indagadores.

— Que relações existem entre você e minha filha?

A pergunta colheu Clark de surpresa. Apesar disso, conseguiu controlar-se e soltou uma gargalhada:

— Pedi a sua filha que se casasse comigo e ela disse que precisava pensar... Talvez esteja pensando, lá no castelo...

Em seguida estendeu a mão e Lorde Wright apertou-a carinhosamente:

— Feliz viagem, querido amigo. Espero que logo veja seus desejos realizados. De bom grado eu teria ido para junto de Dora, mas no momento me é impossível, pois pertenço ao governo e atualmente temos muito trabalho.

 

Frank, com a fisionomia alterada, olhava para o pai, afundado numa poltrona.

Parecia mais velho e muito esgotado. Toda aquela arrogância tão natural nele havia desaparecido.

— Eu não tinha intenção de lhe contar estas intrigas, mas aí estão. Hoje, toda a sociedade zomba de nós. Ninguém ignora o que se passou com minha irmã, sua filha. Quem disse? Ora, Clark Geogley é um homem inteligente e muito conhecido. Todos comentam o que se passa ao redor dele. Dora, a vítima mais frágil, que de forma alguma devia ser responsável pela nossa canalhice, é quem sofre as conseqüências. Aqui estão doze cartas; algumas assinadas pelos seus amigos, papai, que, considerando sua idade, dirigiram-se a mim. Dora foi fraca. Bem que a preveni. Infelizmente, acho que era tarde demais. Você, papai, com esse egoísmo de nobre acima de tudo, deixou sua filha à vontade, sem suspeitar que a pobrezinha se debatesse num mar de confusões. Agora, foi refugiar-se no castelo para fugir do falatório e da vergonha. “Pense em sua filha e lembre-se de Lidia, a moça que morreu sem que você tivesse compaixão. Clark, o irmão, jurou vingá-la e vingou-a. Dora está sofrendo como Lidia sofreu. Talvez morra como Lidia e, você levará sempre na consciência esse estigma, até a sepultura.”

Lorde Wright ergueu-se; seu rosto havia adquirido uma energia sem esperanças.

Com a sombra dos seus olhos, iguais aos da filha, notava-se uma resolução inquebrantável.

— Jamais pensei que o amor de um filho chegasse tão fundo, Frank — murmurou desalentado. — Compreendo suas censuras e não o reprovo; mereço tudo. Para purgar minha culpa, vou dar um passo definitivo. Vou à casa de Clark Geogley.

— Enlouqueceu papai?

— Sou pai, Frank. Nunca soube disso, até este momento.

Frank aproximou-se dele e, pegando as mãos trêmulas do velho nobre, levou-as aos lábios.

— Obrigado, meu pai — disse muito baixinho.

Lorde Wright apertou os lábios, deu um passo para diante e parou no umbral da porta.

— Pedirei demissão do meu posto político, Frank. Iremos passar uma temporada no vale. É preciso que as línguas se calem, e para isso temos de deixar que passe muito tempo.

Clark achava-se atrás da mesa do seu escritório, folheando algumas páginas soltas que permaneciam espalhadas sobre a mesa.

Um criado entrou e entregou-lhe um cartão de visita.

— Faça-o entrar — ordenou Clark, sem se alterar.

Sabia o que Lorde Wright vinha fazer ali, e estava esperando-o havia vários dias.

O nobre apareceu no umbral da porta e o sorriso sarcástico de Clark acentuou-se ainda mais.

— Bom dia — saudou lorde Wright, com naturalidade.

Se Clark havia pensado que a chegada de Lorde Wright seria aparatosa, desesperada e ameaçadora, teve uma tremenda decepção. A figura imponente do homem, seu porte senhorial, sua majestade de cavalheiro continuavam de forma dominante na sua pessoa elegante.

Clark, um pouco impressionado a contragosto, ergueu-se e estendeu-lhe a mão. A mão de Lorde Wright continuou firme, estendida ao longo do corpo.

A boca de Clark apertou-se friamente. Suas feições endureceram-se. A chaga que nunca havia fechado completamente pareceu abrir um rombo terrível no seu coração.

— E então?

Lorde Wright sentou-se numa poltrona defronte à escrivaninha e Clark sentou-se novamente na cadeira giratória.

— Sinto muito que tenhamos chegado a este extremo — disse o cavalheiro, pausadamente. — A verdade é que nunca pensei que Clark Geogley zombasse tão descaradamente de minha amizade.

Clark não respondeu. Apenas o sorriso nos seus lábios acentuou-se ainda mais.

— Você sabe — prosseguiu o velho — que este passo que estou dando hoje é impróprio da minha honra.

— Pelo contrário, considero-o muito próprio da sua honra — replicou Clark.

— E sabe também qual o objetivo da minha visita?

— Imagino-o.

— Então, diga-me o que responde a ele.

— Não me afastarei de sua filha enquanto ela me quiser. E sei que me quer até o ponto de passar por cima de tudo para conseguir o meu amor.

Um trejeito surgiu nos lábios do nobre, á guisa de sorriso. Aquela situação repugnava-lhe, mas era evidente que pela sua honra e pela da filha, suportaria aquele vexame e outros muito maiores.

— Disso se deduz que você não a ama...

— Nunca perguntei a mim mesmo se a queria ou não — retrucou o rapaz, friamente. — Considerei isso desnecessário.

— É um comentário que minha filha lhe daria os parabéns, se o tivesse ouvido.

— Ela está dentro das minhas intimidades.

— Uma expressão que pretende ser altissonante, mas que não deixa de ser uma grande vulgaridade. Meu senhor — acrescentou o velho, sem transição — eu não venho pedir-lhe que deixe de ver minha filha, mas venho exigir-lhe que se case com ela.

Evidentemente, o rosto de Clark Geogley estava duro como o granito. Dir-se-ia que esperava aquelas palavras.

— Lamento dizer-lhe que isso jamais acontecerá. Há dez anos eu tinha uma irmã que trabalhava para ganhar a vida. Era bonita, pura, tão bela e inocente como Dora Wright.

— Basta! — gritou o nobre, com o rosto lívido. — Conheço essa história como a minha própria.

— Dou-lhe os parabéns por isso. Desejava dizer-lhe que só eu me compadeci de Lidia Geogley. Ela morreu atormentada, desesperada naquele leito de dor. Teve um menino, sabe? Um menino que morreu semanas antes da mãe. Ignorava isso, não é mesmo? Também seu filho Frank desconhecia esse fato. Posso amar sua filha com toda a minha alma. Acho que já a estou amando, mas prefiro morrer a casar com ela. Se é que vocês o ignoram, quero que saibam o que sofre uma mulher quando entrega seu amor a um canalha. Naquela ocasião, Lidia tinha vinte anos e apenas um amor no mundo. Vocês zombaram dela, espezinharam-lhe o coração e a mataram — gritou, pondo-se de pé. — Vocês a mataram! Que é que me censura? Jurei vingá-la e cumpri meu juramento. Pensa que sou feliz? — deu uma risada que parecia um gemido e acrescentou, olhando muito de perto o homem que o contemplava, trêmulo. — Não, não sou. Amo sua filha desesperadamente, mas nunca serei marido dela. Sinto o que ela sofre, porque é como se eu sofresse. Mas saberei dominar o coração. Quero que o ilustre Lorde Wright sinta a mesma afronta que senti quando a vi abandonada, sozinha, semimorta de desespero. Era só isso que eu tinha a dizer-lhe, Lorde Wright — falou, indicando-lhe a porta. — O senhor compreenderá que para um homem que durante dez anos esperou este momento, importará muito pouco continuar com o coração endurecido até a eternidade.

Lorde Wright levantou-se, avançou até o rapaz e olhou-o fixamente.

— Você é duro como uma rocha, Clark — murmurou, lentamente, sem parar de olhar para o rapaz. — É duro, mas ao mesmo tempo, admirável. É impossível opor-se aos desígnios de Deus. Está marcado para fazer a felicidade de Dora Wright e não conseguirá dominar o amor que o domina, embora o queira. Um dia se sentirá cansado e deixará de lutar contra si mesmo. Tal como diz, o homem que soube esperar dez anos há de saber guardar no coração um amor até a eternidade.

 

A reação de Clark foi brusca e espontânea. Ninguém teria dito que aquele homem podia reagir daquela maneira. Apenas Dora, que o conhecia bem, sabia até onde chegaria Clark, sustentando seu amor sem se entregar a ele como lhe pedia o coração forte e vigoroso.

Chegou ao vale e bateu na porta do castelo. Esta lhe foi aberta por um criado.

— Jura que não contará jamais a ninguém que vim aqui — exigiu Clark, em tom imperioso. — Se falar, eu o matarei.

Não pretendia matar o serviçal, mas estava certo de que, com aquela ameaça, a boca daquele homem ficaria fechada para sempre.

Entrou no luxuoso saguão. Em dois passos largos estava diante da moça. Viu-a divinamente bela, dentro de sua melancolia.

— Não posso — confessou, vencido. — Não posso mais, Dora. Entreguei meu coração pensando que ele era invulnerável e, apesar disso, é como o de toda gente.

Uma cena comovedora. A mulher entregou-se ao homem com toda a sua grandeza pura.

A voz rouca falou durante muitos minutos, que a Dora pareceram segundos.

— Não lhe contará nunca, não é? Por nada deste mundo lhe contará. Jure Dora, pela memória de sua mãe, que não é culpada de nada. Pelo meu amor, pelo meu sofrimento...

Dora chorou muito baixinho, vencida no círculo férreo daqueles braços queridos.

— A sua vacilação, Clark, me diz muito mais do que a sua eloqüência. Como vou lhe entregar minha vida? Se, quer que eles sofram; que paguem o dano que lhe causaram, por que me procura?

— Porque preciso de você na minha vida. Porque a amo.

Expressão sublime na boca de um homem como aquele.

— Vamos, Dora. Eles chegarão amanhã, e até lá quero que saiba defender-se e defender-me sem jamais revelar o nosso sublime segredo.

E duas sombras deslizaram furtivamente pelo jardim. O carro partiu velozmente, perdendo-se nas amplas avenidas.

Duas horas depois, os dois vultos voltavam ao castelo.

— Deus lhe pague! — murmurou o homem, apertando-a nos braços. — Deus lhe pague!

— Não direi a ninguém, mesmo que me, matem Clark, mas não se afaste de minha vida. Embora eu tenha de sofrer os maiores vexames, que me importa o resto, tendo o seu amor perto de mim? Eu lhe dei tudo, Clark, e darei a vida, se você pedir. Jamais esquecerei esta noite. Jamais!

Primeiro chegou Frank. Lorde Wright tinha de cumprir alguns compromissos na corte e ainda se passariam alguns dias antes que ele viesse para o vale.

— Olá, Dora. Papai virá um dia desses.

— Por quê? Garanto que não preciso dele. Estou tão sossegada aqui!

— Como deve sofrer Dora!

O sorriso de Dora ocultou-se rapidamente. Lembrou a figura do homem amado, sua paixão, seu amor... Dominou sua imensa felicidade e disse muito baixo, de olhos voltados para o chão:

— Deus me recompensará, Frank. Você também sofreu.

— Papai foi falar com ele.

— Nunca pensei que ele dominasse o orgulho a ponto de fazer isso.

Frank contemplou-a longamente.

— Dora! — exclamou, estranhando-a. — Não está arrependida de ter dado o coração a Clark Geogley?

— Arrependida? Acaso não me conhece, Frank? Quando dei o coração, não fiz a mim nenhuma pergunta. Dei-o completamente, entende? Absolutamente todo, e não tenho intenção alguma de recuperá-lo.

— Dora!

A jovem aproximou-se da janela e contemplou com olhos sonhadores a imensa trilha que se estendia interminável ao longe.

Quem havia reconstruído a pequena casa de madeira? Tinha-a visto dias antes, quando desesperada, quis rememorar os dias felizes que havia vivido com seu amor dentro daquela cabana.

— Você me deixa assombrado, Dora — disse Frank, atrás da jovem. — Pensava que ia encontrá-la desesperada e não apenas me enganei quanto a isso, mas até me parece alegre e disposta a passar por cima de tudo, contanto que tenha ó amor de Clark.

— E é verdade.

— Não tem dignidade, Dora?

— E para que a quero? Se me faltar Clark, o resto não me interessa.

— Falarei com Clark. Se precisar, rastejarei diante dele, mas tem de deixar você em paz.

— Não me diga que isso corresponde a uma elegante dignidade...

— Realmente, mas por sua honra sou capaz de tudo.

— Nas mãos de Clark Geogley minha honra não estaria mal colocada.

— Dora!

Já não era uma advertência ao bom senso da moça jovem e inexperiente, era um grito sufocado de indignação.

— Dora! — gritou ele, com força.

A moça ficou parada no umbral. Não virou a cabeça, mas interrogou, sem se mover:

— Que deseja?

Não podia fazer nada. Uma simples palavra e, o coração de Frank teria ficado tranqüilo e isento de amarguras. Mas era evidente que Dora preferia deixar que a destroçassem a pronunciar aquela palavra que era um segredo doce e sublime.

— Não posso crer que tenha perdido toda a dignidade, Dora — murmurou Frank, cheio de dor.

Agora, o rosto bonito de Dora mostrava toda a sua pureza. Os olhos azuis abriram-se desmesuradamente.

— Nunca — retrucou, em voz sufocada. — Como se atreve a dizer isso, Frank? Lidia Geogley foi vítima sua e de papai, mas Clark é acima de tudo um cavalheiro e me respeitou apesar do ódio que trazia acumulado no coração.

Depois, fez meia volta e deixou-o sozinho.

Frank tinha partido naquela manhã.

Por que havia mentido ao irmão com tanta desenvoltura? De onde havia tirado tanta coragem?

“Deu-me seu amor e sua lembrança”, disse a si mesma, docemente, enquanto outra vez relembrava a noite em que na verdade havia iniciado uma existência feliz, ao lado do homem que sigilosamente penetrava pela porta do jardim como um amante vulgar.

Foi então que conheceu Clark tal como o rapaz era, sem subterfúgios, sem aquela indiferença glacial que cortava o coração da moça.

— Estou assombrada, querido — murmurou certa noite, quando estava sentada com ele no meio da estrada, olhando-o nos olhos ardentes. — Você é um menino grande. Muitas vezes me parece que sou mais velha quando estou ao seu lado.

— Estou purificado, minha rainha. Tenho vivido com um único objetivo na minha vida, e a existência não destruiu de todo os meus bons princípios. Nunca pensei que fosse fraquejar ante dois lindos olhos azuis, brilhantes como safiras. Minha derrota, minha rainha, foi a mais maravilhosa do mundo.

Em seguida, aquele homem grande se deixava amar como um menino.

Dora voltava sozinha para o castelo, ébria de amor. Os olhos de um criado olhavam-na fixamente, como se lhe perscrutassem o coração.

— Que está olhando, Dimas? — indagou certa tarde.

O criado pestanejou nervoso, como se tivesse sido pilhado em falta. Pareceu duvidar, depois murmurou em voz rouca:

— Receio que Lorde Wright venha, a saber.

— Não se preocupe querido amigo. Se Lorde Wright tivesse descoberto, seria o homem mais feliz do mundo.

Em outra, tarde Dimas parou diante da moça e perguntou, de repente:

— Onde foi, Srta. Wright?

A princípio, Dora não o compreendeu, em seguida soltou uma gargalhada e disse:

— Na capela de um povoado próximo. Foi maravilhoso.

Dimas respirou, satisfeito.

Alguns dias depois, e antes que Frank voltasse, Dimas saiu certa manhã, vestido elegantemente, de acordo com sua posição. Voltou ao amanhecer e procurou Dora.

— Está muito elegante, Dimas. Posso saber o motivo da sua saída?

O criado, com os olhos cheios de lágrimas, entregou-lhe uma folha de papel selada e lacrada.

— Tenho o dever de velar pela minha patroazinha — balbuciou nervoso. — Há de perdoar-me, mas Dimas, o fiel criado, desejava saber com certeza aonde tinha ido.

A resposta de Dora foi um beijo naquela face enrugada:

— Obrigada, Dimas. Espero que agora saiba silenciar com melhor razão. Dê-me esse papel. Talvez não precise dele, mas o guardarei como prova de sua fidelidade.

 

Parou o cavalo e penetrou rapidamente na cabana de madeira.

— Clark! — gritou, com voz de alegria.

A figura esbelta do explorador saiu de um dos pequenos aposentos da casa e olhou-a, apaixonadamente.

— Oh, Clark, Dimas me disse que cometeu a insensatez de se instalar definitivamente aqui. Não fará isso, não é mesmo?

O homem, em silêncio, com os olhos brilhando como duas brasas, aproximou-se lentamente:

— A felicidade a assusta, minha rainha? Minha pequena! A cabana foi construída por minha ordem, apenas com o objetivo de estar á seu lado. Não me vai dizer que suas forças fraquejam...

— Que pretende com isso, Clark? Acha que poderei manter esta situação durante muito tempo? Embora eu o ame com toda a minha alma, um dia qualquer minhas forças fraquejarão. Eu era feliz, Clark, sabendo que você estava no povoado, e ia esperá-lo à noite no meio da estrada. Mas assim... Não compreende que é um desafio á meu pai? Oh, Clark, se me tivesse perguntado!

— Não preciso perguntar minha rainha. Eu sei o que devo fazer. Oh, odeio tanto aqueles dois! Gostaria que fosse diferente...

Fez uma rápida pausa e abraçou-a apaixonadamente, apertando-a contra o peito.

— Eu o amo — sussurrou ela, apaixonadamente. — Por você sou capaz de tudo, Clark. Mas eles não compreendem, e receio com razão. Temo que...

— Minha querida... Estando eu á seu lado, a quem pode temer? Quer que façamos uma longa viagem?

— Clark!

— Não se altere Dora. Estou falando sério. Vamos viajar.

— Não, não. Como vou destroçar assim o coração de meu pai? Nunca farei isso!

Clark ficou calado. Afastou-se do lado da moça e, sentando-se num banco tosco de madeira, acendeu calmamente o cachimbo. Levantou os olhos com indolência.

— Não me olhe assim — gritou ela, com desespero. — Acho que nada mudou que tudo continua como naquela noite em que eu saí desta casa com o coração varado pela infelicidade. Por que você é assim? Como vou odiar os meus, se com isso seria injusta? Além disso, como poderia negar minha descendência? Quer afundar o nosso amor no lodo? Afinal de contas, Clark, sou uma Wright, compreende?

Clark não se alterou. Parecia que esperava aquela reação desde muito tempo. Tirou o cachimbo da boca e sorriu daquela forma tão desagradável, que enchia Dora de raiva.

— Vejo que continua ao lado deles, Dora. Sinto muito. Pensei que ao me entregar o coração, me havia dado tudo, até o amor para com os seus. Pode chamar-me de egoísta se quiser, mas a verdade é que a quero toda para mim e que hei de fazer com que prefira o meu amor ao do seu irmão e do seu pai. Você não é mais uma Wright, menina. Na noite em que se casou comigo, tornou-se uma Geogley, e por isso quero tudo...

— Sim — exclamou a jovem, torcendo desesperadamente as mãos. — Mas você me jurou que se ocultaria no povoado e que jamais atormentaria meu pai. Sou quase uma menina. Na verdade, não sei o que jurei. Só sei que o amo. Seja prudente e se afaste desta casa. Tive uma conversa com meu pai. Ele me proibiu de trocar qualquer palavra com você, caso viesse ao vale. Daria a vida pelo nosso amor, você sabe. Mas também não pode ignorar que devo a vida a meu pai e que o amo com ternura.

— Você disse que essa ternura era toda minha...

— São dois amores diferentes. Você é meu marido e ele é meu pai. Eu jurei, naquela noite, que abandonaria tudo. Mas não posso, porque você quer destruir meu pai e a honra de nossa família. Não, Clark, isso não pode continuar assim. Meu pai e Frank chegarão amanhã. Não quero que meu pai o veja aqui...

— Isso quer dizer...

— Não me olhe assim — gritou ela, desesperada. — Pensa que se vinga dele, mas é a mim que destroça.

— Vamos embora daqui.

— E deixar meu nome na boca dos mexeriqueiros? Jamais. Diga antes que é meu marido. Diga que saímos juntos, que nos casamos que você me pediu um juramento e que eu, cega pelo seu carinho deslumbrante, jurei sem saber o que jurava. Diga tudo isto e depois irei até o fim do mundo, até para a selva, para viver numa tenda de campanha, tendo por único teto um pedaço do céu e por travesseiro uma pedra.

— Jamais! Lidia não me perdoaria!

— E acha que assim pode chegar ao meu coração?

— Estou no seu coração desde o primeiro dia, Dora. Não ignora isso, não é? Você nasceu para ser exclusivamente minha, menina, e não haverá força humana que modifique nossos destinos.

— Sim — disse ela, desalentada. — Sabe de tudo isso e ainda continua aproveitando-se da minha fraqueza. Receio, Clark, que, apesar de tudo, ainda acabarei perdendo o amor que sinto por você.

Ela deu um passo até a porta, mas a figura corpulenta de Clark se atravessou na sua frente.

— Vai embora?

— Vou, sim... E não voltarei.

Dora sentiu-se abraçada com selvageria e os lábios de Clark caíram sobre seus lábios.

— Voltará — rugiu o homem, descontrolado. — Vai voltar. Voltará, sim. Diga que voltará!

Pela primeira vez na vida desde que o conhecia, Dora quis ser forte e o foi.

— Não voltarei — jurou. — Não voltarei jamais. Você terá de ir buscar-me.

Saltou para trás e pulou sobre o cavalo e desapareceu na estrada imensa.

Tinham-se passado vários minutos desde que Dora o deixara sozinho na cabana de madeira e ainda continuava com o coração constrangido.

Estava ante um dilema que lhe parecia de impossível solução.

Por um lado, o amor ao pai. Amava-o porquê sabia que era bom egoísta no fundo, mas que pai não é egoísta quando se trata dos filhos? Por outro lado, o amor do homem que lhe havia ensinado a viver de modo apaixonado.

De repente, levantou-se. As folhagens do jardim se moviam. A janela achava-se aberta. Projetou-se uma sombra sobre a janela e, antes que Dora pudesse gritar, Clark ficou de pé na metade do aposento.

— Isto é apenas para provar-lhe que virei aqui quantas vezes quiser, mesmo estando aqui o seu queridíssimo pai — disse, com a voz estranhamente calma.

Dora ficou de pé na saleta. Os olhos dele viraram-se lentamente e a olhou sem pestanejar. Era evidente que analisava a formosura da mulher, que naquele momento se mostrava em todo o seu esplendor.

Fez um esforço para dominar-se. Tinha uma vontade poderosa.

— Clark! — exclamou Dora.

— Até outro dia, querida. Você está linda, mas não me interessa...

Saltou da janela. Um ruído seco, alguns passos firmes que se afastavam e depois o silêncio.

Ficou alguns minutos estendida sobre o leito, até que sua voz enrouquecida disse:

— Clark!

Aquele grito de dor ficou sufocado em seu peito. Que amor era o dele? Será que a amava apenas daquela maneira violenta?

 

Dora ficou assustada e desconcertada ao mesmo tempo. Como era possível que seu pai cometesse tamanha loucura?

— Olá, minha querida. Como se sente? Está com aspecto melhor. Olhe, trago-lhe estes amigos para que se distraia um pouco. Vamos organizar algumas festas, e espero que fique mais animada.

Dora apertou as mãos. Uma aflição horrível torturava-lhe o coração. Que diria Clark, quando soubesse?

— Por que fez isso, papai? — perguntou a moça, logo que ficaram a sós. — Na minha situação, teria sido mais prudente deixar-me sozinha no castelo.

— Não seja criança. Uma pequena como você não deve dar importância demasiada a uma crítica que já foi esquecida. Espero que entre estes aristocráticos rapazes se encontre seu futuro marido.

— Então, foi com esta intenção que os convidou?

— Esta é a primeira intenção — disse ele, secamente. — A outra é a de que comprovem pessoalmente que a existência de Clark Geogley na sua vida não durou nem o tempo de uma rajada de vento.

— Isso é uma insensatez, papai — retrucou desalentada. — Clark Geogley continua no meu coração como no primeiro dia. Nem me casarei com nenhum destes candidatos, nem me interessa que comprovem...

— Cale-se! — rugiu o pai, ferozmente. — Quando fui falar com esse seu... Seu amigo Clark, depois de ouvi-lo ainda lhe disse que era admirável. No fundo me parece mesmo digno de admiração, mais logo que soube de algumas coisas... Entre as quais que ele não tinha um níquel — repisou, sem nenhum escrúpulo — eu desisti disso, e hoje juro que a prefiro morta a vê-la casada com ele.

Dora ergueu-se, altaneira.

— Não sou Frank, papai, e bem sabe disso. Amo Clark e se não me tornar sua esposa — sua voz tremeu apenas por um momento — não me casarei com nenhum outro.

— Minha autoridade...

— Neste caso é nula, Lorde Wright!

— Insensata!

Erguido diante da filha, Lorde Wright parecia um juiz.

— Sinto que a versão que correu a respeito de Clark deve ter sido falsa, papai. Afinal de contas, tanto pior para ele. Mas é evidente que, se com isso quis destruir meu amor para com ele, se enganou no caminho escolhido, porque hoje o amo ainda mais. O amor me sai do coração e o coração não pergunta quanto custa, porque o preço do meu é pago por outro coração.

Um ruído seco e cortante soou no aposento. A mão de Lorde Wright havia batido, pela primeira vez na sua vida, no rosto da filha. Dora não se afastou. Corajosa e digna esperou uma nova bofetada, que não veio.

— Frank me disse que você reagiria como um pai carinhoso, mas vejo que também desta vez foi guiado pelo egoísmo. Lamento-o, papai — concluiu Dora, dignamente.

O pai sacudiu-a violentamente pelos ombros.

— Sua insolência lhe custará caro, menina. De hoje em diante, ficará presa no castelo.

A figura esbelta fez meia volta e declarou:

— Clark está aqui, em sua cabana de madeira. Boa tarde, papai.

Lorde Wright ficou aniquilado. Clark ali? Soltou uma imprecação e seguiu para os aposentos de Frank.

— Sabia que Clark Geogley estava aqui? — indagou, ferozmente.

Frank, que espiava para o bosque pela vidraça, virou-se rapidamente.

— Clark aqui? Quem lhe disse isso?

— Sua irmã.

Passou diante do pai sem nenhum comentário. Lorde Wright puxou os cabelos com as mãos e depois, readquirindo o controle costumeiro, saiu do quarto e foi juntar-se aos convidados, no jardim.

O cavalo de Frank afastava-se rapidamente em direção ao fundo do vale.

Com o rosto pálido, chegou diante da cabana de madeira. A primeira era mais sólida, mas esta era muito mais bonita.

Clark estava fumando tranqüilamente o seu cachimbo, sentado num banco de pedra ao lado da porta. Ao ver Frank, não se moveu. Tirou o cachimbo da boca e esperou pacientemente que ele chegasse a seu lado.

— Bom dia, Frank — saudou, sem se alterar. — Não esperava sua visita tão cedo.

— Apesar disso, sabia que eu viria, não?

O explorador deu de ombros. Fez um gesto de indiferença, mas não sorriu.

— Sempre temos sido bons amigos. Naturalmente que esperava a sua visita.

Clark pôs-se de pé. O outro se achava diante dele com os olhos cravados no seu rosto impassível.

— Nunca fomos amigos, e bem o sabe — disse Frank, com os dentes cerrados. — Eu o odeio, e você...

— Eu o desprezo — disse Clark, com voz pausada.

O peito de Frank pareceu inchar.

— Por outro lado, Frank — acrescentou Clark, lentamente — eu não compreendo o motivo desse ódio. Na verdade, deveria ser eu quem devia odiar. E, como vê, me é completamente indiferente.

— Por que persegue tanto minha irmã? Não é exatamente por esse ódio ardente que sente contra nós?

Clark fumava furiosamente. Seu rosto triste ficou oculto por uma densa fumaça. Em seguida, fez um gesto vago e sua voz soou normal:

— Talvez seja uma insensatez, mas a verdade é que amo sua irmã. Não haverá força humana que me afaste dela, Frank. Já participei isso a seu pai quando ele foi falar comigo na minha casa. Não pareceu desagradar-lhe a idéia de que algum dia eu me tornasse seu genro. Certamente, não pretendo casar com Dora, mas gosto tanto dela que me será completamente impossível sair do vale enquanto ela estiver aqui. E, se for embora, eu a seguirei. — Fez um movimento brusco com a mão, cortando a interrupção do outro, e acrescentou, pausadamente: — Se veio pedir que me, vá perde tempo, Frank. Não irei.

Frank apertou os punhos.

— Eu trazia no coração uma recordação indestrutível de sua finada irmã. A verdade é que a amei com todas as forças do meu ser. Se quando tinha vinte anos tivesse mais seis, não teria havido força humana capaz de afastar-me de Lidia.

— Essa história é velha, Frank, e me aborreceria se você continuasse a repisar um assunto que já perdeu a atualidade.

— Para mim jamais teria perdido, se você não aparecesse na nossa vida.

— Não pretenderia que eu deixasse de vingar Lidia. Que me censura? Imagine Lidia sem amigos, sem consolo, com um filho sem pai...

— Não! — ele exclamou.

— Sim. Morreu algumas semanas antes que a mãe.

Um suor frio banhava a testa larga de Frank. Ele ignorava isso. Se até então os remorsos não o tinham largado, que seria dali em diante?

— Eu... Eu ignorava isso.

— É muito cômodo esquecer, quando nos convém. Acho que não tenho mais nada a dizer, Frank. Quanto a ir embora do vale, não irei enquanto vocês estiverem aqui. E se forem embora, eu os seguirei até o fim do mundo.

Frank tinha ficado sem ânimo. Seus olhos já não tinham aquele brilho de desafio que os animava quando havia chegado ao fundo do vale.

— Desejava dizer-lhe, Clark — disse ele, adquirindo novamente uma falsa energia — que com o seu modo de proceder seria capaz de esquecer a memória de sua irmã.

— Tenho certeza de que Lidia não precisa dessa recordação. Deve estar maldizendo você.

— Lidia não sabia maldizer. Não se parecia com você.

— Pelo contrário, éramos iguais. Pode ir embora, Frank, porque está me cansando.

— Insisto em que Lidia não era como você. Ela não se importava com o meu dinheiro, mas o de Lorde Wright o seduz.

A resposta de Clark foi digna dele. Deu um salto formidável e, agarrando Frank pelas lapelas do paletó, arrancou-o da sela.

Sacudiu-o brutalmente. Se até então não havia perdido o controle dos nervos, naquele momento era o Clark dos maus momentos. Seus olhos fuzilavam e as mãos continuavam agarrando os ombros do assustado herdeiro de Lorde Wright.

Clark adquiriu rapidamente a serenidade e, embora não o soltasse, seu rosto perdeu a rigidez que o desfigurava.

— Explique-se melhor, molecote. Que desejo o seu asqueroso dinheiro? Com mil diabos! E que vou fazer com o meu?

— Você não tem um níquel.

Primeiro Clark ficou boquiaberto, depois soltou uma gostosa gargalhada.

— Nunca em minha vida ouvi semelhante disparate. Ande, vá embora, se não quer que eu perca a paciência. Escute — disse zombeteiro — de hoje em diante não venha mais me procurar para pedir ajuda. Tenho feito o que quero desde que tenho o uso da razão e continuarei assim até o fim de minha vida.

Inclinou-se e sacudiu o cachimbo sobre uma pedra. Em seguida, olhou com desprezo para Frank e, entrando na cabana, fechou a porta com uma pancada violenta.

Momentos depois, o galope do cavalo perdia-se ao longe, cada vez menos audível.

Os olhos de Clark caíram sobre alguém que, afundada numa poltrona de vime, parecia desmaiada.

— Dora, quando foi que veio?

— Há um momento. Vi Frank sair, e saí furtivamente pela porta de serviço, atravessei o bosque e entrei pela janela.

— Querida!

A moça se pôs de pé e fez um gesto com a mão, impedindo que o rapaz se lhe aproximasse. Parecia cansada e torturada.

— Afinal de contas, que pretende Clark? Já não conseguiu que eles se rebaixassem diante de você? Vai continuar atormentando-nos durante muito tempo? Estou cansada de lutas, Clark. Talvez seja esta a última vez que eu venho vê-lo. Tampouco poderá subir ao castelo. Temos a casa cheia de convidados. Ainda tenho alguma estima pela minha honra.

— Que é também a minha, Dora.

— Mas todos ignoram isso. Para todos os efeitos, é a minha dignidade que está em jogo.

— Minha pequena...

— Não, Clark. Não me convence com carícias. Estou debatendo-me num mar de confusões. Aqui, a vítima sou eu.

— E o meu carinho? Meu amor nada significa para você?

Os olhos tristes brilharam apaixonadamente:

— Algumas vezes essas coisas me dizem tudo, e agora...

Clark empurrou-a suavemente para a porta.

— Vá embora. Não quero que continue aqui nem mais um minuto. Eles a procurarão e não quero que a encontrem aqui. Nós nos veremos em outra hora...

Apertou-a nos braços.

Quando Dora subia sozinha pelo bosque íngreme, seu coração ia cheio de ternura, mas a alma continuava dolorida...

 

De pé, atrás da balaustrada no terraço, contemplava com um olhar vago as evoluções dos convidados no jardim.

— Não vêm, amigos? — gritou alegremente Bob, o filho de Lorde Bryce.

Alguns se juntaram ao grupo. Lorde Wright apareceu atrás da filha. Tinha o rosto alterado e os olhos claros olharam para a moça como estiletes de aço.

— Junte-se a eles — murmurou o velho nobre, em voz baixa.

— Não me divertirei.

— E que importa? Isso não me preocupa. Vá com eles e cuidado com o lugar aonde vai. Porque se eu souber que vai ao encontro de Clark Geogley, será a última vez que seus olhos contemplam a luz do dia. Além disso, ouça isso — e acrescentou, friamente: — Jamais consentirei que se case com esse homem. Antes que termine o verão e seus convidados, vão embora — e frisou o que dizia quase mordendo as palavras — você será a noiva de Anthony Shyme. Exijo isso, entende? Exijo-o!

Não o olhou. Desceu lentamente a escada e juntou-se aos convidados no jardim.

— Acompanha-nos, Dora? — indagou Anthony, com os olhos brilhando como duas estrelas.

— Não. Quero descansar um pouco.

A resposta, um tanto seca, deixou o rapaz desconcertado.

Dora, bonita e gentil, caminhava lentamente ao lado de uma amiga.

— Está triste, não é mesmo? — perguntou Gloria.

Dora sorriu levemente:

— Nota-se claramente isso?

— Então, realmente está triste?

— Amo Clark Geogley e, meu pai jamais consentirá que me case com ele — disse com uma naturalidade opressiva.

— Circulam várias versões a respeito disso, minha querida Dora. Qual é a verdadeira?

— Ora! Certamente a que você supõe.

— Mas, se eu der crédito aos mexericos...

— Por que não termina a frase? Pensa que isso me afeta?

— Dora, você não parece à mesma. Onde está o seu otimismo?

— Quando se ama Glória, e não se pode ser feliz, o otimismo é um fator de reduzida importância e utilidade.

— Escute Dora. Segundo eu soube, seu pai não via esse casamento com maus olhos. Por que mudou de opinião?

Dora deu de ombros, com indiferença, e disse com desdém:

— Meu pai é um homem muito objetivo, minha querida. Parece que lhe disseram que Clark não tinha um níquel...

— Isso não tem a menor importância. Clark é milionário. Ganhou muito dinheiro com suas viagens.

Dora nada retrucou. Iam chegando ao lago.

— Onde ele está agora, Dora?

— Refere-se a Clark? Está aqui no vale, na cabana do outro lado da estrada.

— Não é possível!

— É sim. Clark não foge da luta. É corajoso e me ama. A sua maneira, mas me ama.

— E ainda se queixa? Eu, no seu lugar...

Não pôde terminar a frase. Diante delas estava Tony, exibindo a brancura imaculada dos seus dentes perfeitos.

— Não vão nadar? — perguntou ele.

Gloria afastou-se ao encontro dos seus amigos, e Dora ficou sozinha com o rapaz.

— Daria metade de minha vida para afastar de seus olhos esta melancolia.

Como única resposta, Dora fez uma pergunta que foi um tanto brusca e desconcertante para o homem que a ouvia e cujos olhos azuis ocultaram-se sob duas pálpebras nervosas.

— Por que me escreveu aquela carta anônima? Pensou que meu amor por Clark haveria de desaparecer depois de ler sua missiva?

— Dora!

— Oh, é inútil negar, meu caro! Sei ler nas entrelinhas. Não gosto de cartas anônimas, Tony. Gosto de resolver as coisas francamente. Não, não me olhe desta maneira. Meu pai disse que antes que termine o verão hei de ser sua noiva. Como você está enganado e como é tolo! Nem vinte homens do seu tipo conseguirão fazer-me esquecer Clark Geogley. Eu o amo, e é inútil que você continue fazendo-me a corte.

— Eu, no seu lugar, não teria confessado isso. Demonstra pouca dignidade.

— É essa a sua resposta, Tony?

— É a mais acertada.

Um cão latiu ao longe e o corpo de Dora crispou-se, terrivelmente. Era inconfundível.

Atrás do cão-lobo, a figura de Clark ia aparecer de um momento para outro.

— É o cão de Clark — disse Dora, olhando com uma expressão de desafio para o rosto de Tony, que se mostrava um tanto espantado. — Clark está no vale. Tenho Clark aqui e o amo. Pode dizer isso a meu pai.

O cão-lobo saltou de entre os arbustos e correu alegremente até junto de Dora, movendo a cauda e emitindo latidos de satisfação.

— Quieto “Leão”. Seja bem comportado.

— Nota-se de longe que ele a vê muito amiúde, Dora. Acho que devo crer no que dizem por aí...

— Cale-se! — disse a moça, com ardor.

A voz era abafada, mas tão intensa que por um momento Tony ficou desconcertado.

Leão contemplava-o com os olhos vítreos, como se compreendesse.

Sobre o lago havia muita gente contemplando a cena. Sentadas na margem, Gloria e suas companheiras olhavam para Clark, alto e forte, e que, atrás de Dora e Tony, permanecia quieto, com os olhos semicerrados.

— Boa tarde a todos — disse, com sua inflexão profunda e áspera.

Dora levantou-se de um salto. Tony ficou surpreso, sentado na relva.

Clark não olhou para Dora. Caminhou lentamente até a margem e sentou-se perto de Gloria.

— Acho que todos nos conhecemos — exclamou o recém-chegado, com naturalidade.

— Até dançamos juntos — respondeu uma das pequenas. — Que faz por aqui, Clark?

— Passando o tempo. Estou de férias e trato de aproveitá-las.

Soltou uma gargalhada e, estendendo o braço para trás, pegou a mão que Dora deixara cair sobre o colo, com desalento.

— Sente-se conosco, querida. Não vai nadar?

Pela maneira como Clark lhe apertou a mão, notou que o rapaz estava cheio de raiva.

Conhecia-o tão bem! Compreendeu que estava fazendo um esforço inaudito para não estourar.

— Não vai nadar? — repetiu, inclinando a cabeça na direção de Dora.

— Não, não vou — respondeu ela, nervosamente.

Todos estavam com o olhar fixo nos dois. Se até então ninguém tinha acreditado na existência de relações suspeitas entre os dois, daquele instante em diante ninguém duvidou mais.

Jamais Dora experimentou tanta humilhação. Faziam idéias errôneas a seu respeito, pensavam no que não existia.

“Ele é meu marido! Vocês não têm nada que me censurar”, foi o que desejou gritar.

Levantou-se de um salto, e apertou os punhos. A boca pareceu crispar-se. Uma sombra de amargura lhe atravessou o olhar, que por um momento ficou umedecido pelas lágrimas.

Iam saber de alguma coisa terrível, ou talvez sublime. Dora Wright levantou-se inspirou profundamente. Faltavam-lhe as forças. Jamais poderia continuar suportando aquela humilhação. Tony olhou-a com desprezo. Foi a chicotada que lhe picou a língua, e Dora não pôde conter-se.

— Por que me olham assim? — gritou com toda a alma, impelida pelo desespero. — Sou tão pura quanto vocês. Esse homem é...

Uma figura corpulenta levantou-se de um salto e foi até junto de Dora.

— Cale-se! — rugiu a voz alterada. — Cale-se, insensata.

— Não. Preciso dizer... Tudo...

Já não havia mais força na voz apagada. Clark, alto e vigoroso, aniquilava-a com a sua força. Nunca como naquele momento compreendeu de que forma se achava derrotada. Clark vencia-a com seus olhos. Um único olhar daquelas pupilas autoritárias, e a vontade de Dora desapareciam.

— Nunca o odiei tanto como nesta manhã — disse finalmente Dora, girando nos calcanhares e desaparecendo entre os arbustos.

Durante alguns minutos o olhar do homem permaneceu fixo no lugar por onde sua esposa havia desaparecido. Depois, fez meia volta. Seu rosto mostrava uma expressão normal, sem alterações.

— Vou acompanhá-los no banho, queridos amigos — disse, com voz estranhamente normal.

Muitos olhos se cravaram nele, surpresos. Clark nem pareceu notar isso. Só quando Tony se pôs de pé e fez menção de seguir para o bosque, Clark avançou lentamente e, pegando-o por um braço, murmurou com voz muito suave:

— Aonde vai, Tony? Dora conhece muito bem o caminho do bosque e do seu castelo. Venha nadar conosco, sim?

A boca de Tony apertou-se com força:

— É um canalha, Clark Geogley.

A mão de Clark levantou-se no ar e o rapaz moveu-se com ar indolente.

— Perdôo e finjo que não ouvi estas tolices. Cale-se, se não quer experimentar meus punhos. Garanto que não são nada suaves.

— Não calarei! Eu também amo essa mulher.

Um clarão de raiva ameaçadora cruzou o rosto de Clark. Ele falou:

— A essa mulher só eu posso amar, está ouvindo? E que seja esta a última vez que fala nela. Trate de esquecê-la. Essa mulher me pertence. É conveniente não esquecer isso...

Dora estendeu-se sobre a relva, debaixo duma árvore. Sentia-se atormentada e com a alma em farrapos.

— Levante-se — disse uma voz imperiosa.

Dora levantou-se como que impelida por uma mola invisível. Não, naquele momento Clark não a dominava.

— Se chegasse a falar...

Dora não o deixou concluir a frase. Ergueu-se diante dele e olhou-o com os seus olhos azuis.

— Não calarei jamais. Está ouvindo? Não continuarei calando-me. Não merece que eu cale. Você é um canalha. Permitiu que esses rapazes; duvidem de minha honra. Humilhou minha dignidade de mulher. Espezinhou minha honra.

— Você jamais me compreendeu — exclamou Clark, com os dentes cerrados.

— Não o compreendi? — ela riu, desalentada. — Pensa na vingança acima de tudo, e embora diga que me ama com toda a alma, tem de vingar sua irmã morta... Diga a todos que sou sua esposa... Diga!

Os olhos de Clark pareciam despedir faíscas. A voz que chegou aos ouvidos de Dora foi uma sentença terrível:

— Você é igual a eles, mas apesar disso eu a amo. Não me pergunte mais nada. Acima de tudo isso está ela, a moça inocente que eles mataram.

— Não prossiga — gritou Dora, nervosamente. — Não prossiga. Já sei.

Uma reação brusca alterou as feições do rapaz, que a pegou pelos ombros e sacudiu-a furiosamente:

— Tenho ciúmes dos seus carinhos. Eu a quero unicamente para mim, bem sabe. Eu a vi perto desse idiota. Mas você é minha. Hei de provar que é um objeto de minha propriedade exclusiva!

— Um objeto! — exclamou a moça, dando um passo atrás. — É isso que sou para você...

Clark apertou-a contra o peito e oprimiu nervosamente o rosto pálido, agora alterado terrivelmente.

Uma lágrima brilhou nos olhos bonitos da moça.

— Dora — murmurou o rapaz, em voz sufocada. — Você é o que há de mais puro na minha vida. Se soubesse como está meu coração!...

— Não posso crer em você, Clark — disse ela, desanimada. — Embora queira, não posso acreditar. Deixe- me ir embora.

Ainda a silhueta de Dora não se havia perdido entre as árvores, quando os banhistas apareceram numa clareira do bosque.

Clark mordeu os lábios. Novamente os dois tinham sido vistos pelos hóspedes. Teve vontade de parar e de contar-lhes toda a verdade, mas conteve-se. A lembrança de Lidia, pálida e abandonada, estendida numa cama pobre, debatendo-se entre a vida e a morte, apertou-lhe o coração.

 

Naquela noite, Gloria subiu ao quarto de Dora. Esta se achava vestida, sentada na cama, com o rosto entre as mãos, quando a porta se abriu e sua amiga recostou-se no umbral.

— Entre, Gloria, e feche novamente a porta.

A jovem sentou-se sobre o tapete, com as pernas encolhidas, e disse:

— Você sempre foi uma pequena de vontade férrea. Por que se calou esta manhã? Que tinha a contar Dora?

— Sou muito impressionável, Gloria. Eles estavam fazendo juízos temerários. Você mesma me olhava com uma expressão de censura no olhar.

— É que...

— Oh, não prossiga! Adivinho tudo.

— Não, Dora. Não quero que adivinhe o que não existe. Achei estranha a sua atitude e temi que eles...

— Eles também pensaram do mesmo jeito. Não se preocupe.

— Isso não é o pior. Talvez algum deles fale diante de seu pai. Seria horrível.

Dora mordeu os lábios.

— Que pensa você? — indagou, de repente.

— Eu, Dora, acreditarei no que me disser.

— Mas não lhe posso dizer nada.

Podia contar a Gloria. Pelo menos, era um desabafo de que precisava.

Inspirou com força. Faltava-lhe ar. Dora não era mais nem a sombra da mulher de vontade firme que havia sido.

— Estão dançando? — perguntou precipitadamente, compreendendo que jamais teria forças para falar do que a atormentava. — Vamos acompanhá-los, Gloria?

Gloria contemplou-a com admiração. Quanta vontade tinha para algumas coisas, e, apesar disso, para aquilo que precisava ter vontade, esta lhe faltava!

— Vamos — disse, com naturalidade.

Ao longe, no silêncio da noite, ouvia-se o latido forte de um cão.

Todos os rostos se voltaram para a muda e pálida Dora, cujo rosto estava imerso na escuridão.

— É ele; Dora — murmurou a sua companheira, em voz baixa.

A jovem não respondeu.

— Que está ocultando, Dora? Creio em você com firmeza, com absoluta precisão, mas ainda assim acho que...

O latido do cachorro se ouvia cada vez mais perto. O baile tinha cessado. De repente, o cachorro irrompeu na alameda e correu velozmente no encalço da trêmula Dora.

No terraço, os convidados entreolhavam-se. A figura de Lorde Wright destacou-se bruscamente na porta do salão. Um clarão iluminou a noite. Um tiro e o cão- lobo de Clark Geogley tombou morto na relva. Ouviu- se um grito sufocado, uma exclamação terrível, e o corpo de Dora caíram sobre o capim, abraçando a cabeça inerte do animal.

— Dora! — gritou a voz poderosa de Lorde Wright.

— Venha imediatamente para casa!

A moça levantou-se com uma serenidade estranha. Ficou de pé diante do pai. Este a pegou pelo braço e introduziu-a no salão.

Enquanto isso, no jardim, o aparecimento de Clark pôs fim aos comentários.

Todos ô contemplaram suspensos, esperando, talvez um acesso de raiva. Mas não foi assim. Clark avançou lentamente até junto do cão, depois olhou zombeteiramente para todos que o rodeavam. Disse:

— Lorde Wright é precipitado demais. A noite cegou-o. Este cão não é o meu. É o cão que vigia o castelo. Soltei-o de propósito. O estratagema deu resultado, não deu amigos?

Inclinou-se e sacudiu a cabeça do animal, virando-a para cima.

— Está vendo? É quase igual ao meu cachorro, mas não é ele. Lorde Wright gostava muito do seu querido “Turco”.

Fez meia volta e foi andando.

— Nunca vi um homem tão estranho — disse uma das moças, seguindo com os olhos a figura esplêndida.

— Que acham que possa haver entre ele e Dora?

— Nada — retrucou Gloria. — Clark é um tipo raro e talvez fosse capaz de qualquer coisa, mas Dora é uma pequena esquisita e ama a Deus acima de tudo.

— Pensa que com isso nos dá uma explicação? Pode ser muito esquisita, pode amar a Deus sobre todas as coisas e, apesar disso, pode também estar apaixonada por Clark.

— E está — disse bruscamente Tony. — Que existe algo mais do que um amor, isso é outra coisa, mas que Dora ama com toda a alma a Clark Geogley, até um cego vê isso.

Protegida pela noite saltou a janela e galgou lépida, o pequeno morro, até alcançar a estrada. Não olhou para trás. Corria como louca. E, na verdade, ia enlouquecida. Aquela situação não poderia prolongar-se por muito tempo.

— Aonde vai querida?

Parou de chofre e não virou a cabeça.

— Ia dizer-lhe adeus — falou Dora, lentamente, fazendo meia volta e ficando diante dele.

Achava-se sentado na estrada, com uma bengala sobre as pernas e o mesmo sorriso desdenhoso nos lábios.

— Não quero mais saber de você, Clark. Esta noite, você se revelou como o homem mais cruel da terra. Sabia que meu pai mataria seu cão, e empregou o truque para que fosse o dele o animal morto. Gostávamos muito do nosso “Turco”, Clark. Foi criado conosco. Você o matou a sangue-frio, porque foi buscá-lo deliberadamente e o fez penetrar no parque.

— Já se vê querida, que o seu cão significava mais do que eu para você.

— Alegra-me de tê-lo encontrado aqui, Clark, e já vou voltar.

— Assim, desse jeito?

— Que mais quer?

— Não creio na sua desilusão. Além do mais, não a admitiria nem que tivesse acreditado nela. Faz parte de minha vida, Dora.

— A sua conversa não me impressiona mais. Diz as coisas com muito pouca vida e sente com os sentidos, e não com o coração.

Uma gargalhada zombeteira cortou-lhe as palavras.

— Jamais poderá esquecer-me — disse Clark. — Farei com que não me esqueça.

— Está enganado. Boa noite, Clark.

Fez meia volta. Uma das mãos do rapaz fechou-se sobre o braço da esposa, apertando-o com tanta força que o machucou.

— Largue-me!

— Diga que me ama, ouviu? Exijo que me diga.

— Não posso afirmar o que não sinto.

— Diga Dora, diga! Há de senti-lo, porque eu mando! Há de senti-lo!

— Você não soube conquistar-lhe o amor, Clark Geogley — disse uma voz perto deles.

Ambos viraram-se bruscamente. O rosto pálido e rígido de Frank olhava-os fixamente.

— Por que está aqui? — gritou Clark, com os dentes cerrados.

— Desejava contemplar sua derrota. Não soube conquistar o amor de minha irmã, Clark. Foi uma lástima.

Contra o que Frank esperava no peito de Dora ergueu-se uma estranha rebeldia.

Lembrou os momentos vividos ao lado de Clark. Rememorou a ternura do rapaz quando, esquecendo os sentimentos de vingança, se dedicava apenas a amá-la com a ternura de um menino grande.

— Amo a Clark, Frank. Deve ter interpretado mal as minhas palavras.

— Dora!

A moça não pôde responder. Um soluço lhe estrangulou a garganta e, dando um salto, desapareceu nas sombras da noite.

Desta vez, Clark não soltou nenhuma gargalhada. Estava impressionado demais para rir dos acontecimentos.

— Você é um homem de sorte — disse Frank, com ironia, enquanto fazia meia volta e desaparecia na direção em que a irmã se retirara.

Clark deixou-se cair novamente sobre o capim e ocultou o rosto nas mãos.

Ansiou pela quietude serena de um lar ditoso, pelo amor de uma mulher simples e apaixonada, pelos carinhos infantis e inocentes dos filhos...

Levantou-se lentamente e perdeu-se na trilha, seguindo até sua cabana.

Parou no umbral e um grande assombro lhe transpareceu no rosto.

— Não me olhe com esse assombro, Clark Geogley. Sou Gloria, a amiga de Dora. Você me viu muitas vezes.

Clark reagiu rapidamente. Estava portando-se como um menino.

— Sente-se. Não são horas para andar por estas bandas.

— Voltarei tranqüilamente.

Clark achava-se de pé diante da visitante, perguntando a si mesmo qual seria o motivo da visita daquela elegante moça.

— Gosto muito de Dora, compreende? — exclamou ela, sem rodeios. — Gosto dela e admiro-a.

— E daí?

— Notei que sofre desesperadamente e venho pedir-lhe que se afaste da vida da pobrezinha.

O assombro de Clark não tinha limites.

— Isto é um absurdo — disse, divertido. — Totalmente absurdo e inconcebível. Se eu faltar a Dora, ela morrerá como uma flor sem água. Nasci para Dora e ela para mim. — Inspirou com força, acendeu um cigarro, expeliu a fumaça cheirosa e acrescentou suavemente: — Você sabe de tudo que se passou com minha irmã e Frank Wright. Empenhei-me em que o fato fosse conhecido nos seus pormenores. Mas a figura de Lorde Wright é muito bem relacionada; é um personagem importante e o que se passou há dez anos não lhe tirou nada da personalidade. É a primeira vez na vida que falo com o coração na mão. O fato de que você tenha saído em defesa da inocência de Dora, fala alto em seu favor e me anima a ser sincero. “Eu tinha vinte anos quando Lidia morreu, e não sei se foi a pouca idade ou o fato de ver minha irmã agonizar em plena juventude que me encheu de ódio contra a humanidade. Trabalhei nos serviços mais insignificantes. Vi-me esfarrapado e com o coração mais destroçado. Ansiei pelo poder e pela riqueza... Um dia me propuseram uma viagem aos lugares mais remotos da África. Não vacilei. Que podia fazer? Não tinha amigos nem parentes, nem ninguém que chorasse por mim, caso alguma fera acabasse comigo. “Quando voltei para minha pátria, era famoso. Não trazia milhões no bolso, mas agora poderia manter uma esposa e ser feliz numa casa modesta. Aqui me deram um prêmio e uma condecoração. Lutei como um leão, por ocasião da guerra e ganhei mais honras e mais dinheiro. Quando tudo voltou à normalidade, encarei os Wright. Comprei estas terras, fiz uma pequena casa e vim para cá, sabendo de antemão que os Wright faziam uma viagem todos os anos ao castelo, por volta do Natal. Meu plano era muito diferente, garanto-lhe.

Tornou a fumar com prazer e sorriu. Gloria olhava para ele, e disse:

— Dê-me um cigarro. Isso é muito interessante.

Estendeu à cigarreira.

— Há um adágio que diz “Foi buscar lã e saiu tosquiado” — e Clark sorriu novamente. — Foi isso o que me aconteceu. Apaixonei-me loucamente por Dora e ela por mim.

— Por que não se casa com ela?

Clark levantou a cabeça rapidamente.

— Lorde Wright jamais teria consentido nesse casamento — disse ele, de modo ambíguo.

— Em todo caso, e apesar do que você me contou, preciso dizer-lhe que a reputação de Dora está sofrendo muito. É conveniente que você renuncie a ela.

— Renunciar a ela? Jamais!

— Por que, então, não esquece seus desejos de vingança?

Clark ficou pensativo. Moveu a cabeça e agitou a mão no ar.

— É absurdo, mas já os esqueci. — Levantou-se.

— Senhorita, juro que jamais fui tão sincero como nesta noite. Se alguma vez fui mau, para Dora sempre reservei o melhor de meu ser. Nunca pensei que pudesse amá-la tanto e tão intensamente. Talvez me resolva a pedir a mão dela.

— Lorde Wright não o atenderá — murmurou à jovem, com sentimento.

— Engana-se. A reputação da filha dele está muito comprometida.

Agora, Lorde Wright, depois de sofrer uma afronta após outra, detestava-o tanto quanto o, apreciara antes.

 

Clark chegou ao castelo numa hora em que pensou que encontraria Lorde Wright sozinho com o filho.

— Quero falar com Lorde Wright — disse a Dimas, cujos olhos o contemplavam, estranhando sua presença ali.

Lorde Wright apareceu naquele instante no terraço, seguido de Frank.

Ao ver Clark, o velho nobre praguejou, e desceu as escadas apressadamente.

Dimas afastou-se rapidamente. Clark ficou sozinho e ereto. Não tinha medo. Jamais diria que seus desejos de vingança haviam desaparecido, mas daria a entender isso. Se não fosse atendido, azar.

— Que procura aqui? — perguntou Lorde Wright, quase sem fala de tanta indignação. — Ainda lhe parece pequeno o dano que nos fez?

— Devo confessar que foi insignificante comparado com o que eu esperava...

— Insolente!

— Não vim aqui para ouvir seus insultos — retrucou Clark, sem sair da sua calma habitual. — Desejo falar com você.

— Comigo já não tem mais nada a falar. Jamais o admitirei em minha casa. Acaso procura perdão?

A gargalhada de Clark foi um pouco brusca.

— Teria sido absurdo, em se tratando de mim. Venho pedir-lhe a mão de sua filha — disse muito lentamente, como se a coisa lhe proporcionasse uma diversão.

— É um cínico, e seu descaramento me assombra. Lembre-se bem disto: prefiro ver minha filha morta a sabê-la sua esposa. Agora, pode ir embora.

Clark inclinou-se zombeteiramente. Depois, olhou-o com olhos reluzentes e disse:

— Não se esqueçam jamais de que agi com nobreza. Se acontecer alguma coisa, não serei o responsável.

A mão de Lorde Wright levantou-se violentamente, e o velho estava resolvido a esbofetear o rosto do atrevido, mas os dedos crispados de Frank lhe contiveram o gesto:

— Domine-se, pai. Case Dora com Clark. É o mais conveniente para todos.

— Jamais! Antes o via com gosto. Hoje, a idéia me horroriza.

Clark, com um sorriso de ironia nos lábios, continuava de pé sobre a grama.

— Pode ir embora — gritou o nobre, sem conseguir conter a raiva. — Não quero vê-lo mais diante de mim. Deixe minha filha em paz. Jamais consentirei que se case com você. Nunca!

Desta vez, Clark não esperou mais. Fez meia volta e saiu andando em linha reta.

— Agiu mal, pai — murmurou Frank, desalentado. — Um inimigo como Clark Geogley é perigoso.

Estavam todos nadando no lago. Dora, sozinha, estava deitada na relva.

Clark sentou-se ao lado dela.

— Acabo de falar com seu pai — disse ele, muito baixo. — Pedi-lhe sua mão... Disse que a preferia morta a vê-la casada comigo. Como vê, o destino é um menino malcriado e incongruente.

— Por que esta comédia? É absurdo e incompreensível.

— Desejava saber o que podia esperar. Agora, já sei.

— E o que vai fazer?

— Vou embora do vale e quero levar comigo minha esposa.

— Não, não fará isso!

Dora juntou as mãos e apertou as dele, contemplando-o com olhos suplicantes.

— Pelo nosso amor, não me leve a fazer algo de que possa arrepender-me por toda a vida. Pelo que você mais ama Clark.

— O que mais amo é você — retrucou-o, imperturbável.

— Se me amasse, teria agido de modo diferente!

— Qual! Tratando-se de seu pai, é uma tolice agir de outro modo.

— Vá e conte-lhe a verdade. Diga-lhe que já estamos casados. Diga-lhe que...

O grupo de convidados chegou correndo.

— Vá ao bosque hoje à tarde — disse Clark, muito baixo. — Quero vê-la pela última vez.

Dora não podia responder, porque aqueles importunos convidados a teriam ouvido.

— Hoje à tarde vou fazer uma excursão. Vai junto, Clark? — perguntou Gloria, aproximando-se.

— Não, Gloria. Sinto muito, mas tenho de preparar minhas coisas, porque amanhã vou embora.

— Quê? Vai partir?

Muitos olhos os contemplaram incrédulos.

Dora ficou tão cheia de dor que não soube se estava ali ou no purgatório pagando pecados.

— Por que ele vai embora? — indagou Gloria, quando caminhavam de volta para casa. — Não lhe disse o motivo, Dora?

— Não. Foi pedir minha mão e meu pai negou-a. É um absurdo.

— Absurdo, por quê?

Dora torceu as mãos, com raiva.

— Oh, não me pergunte! Estou meio louca. Não compreendo nem a metade das coisas. Não sei o que se passa comigo. Se eu continuar assim, acho que vou enlouquecer.

— Fale com seu pai. Conte-lhe.

— Contar-lhe o quê?

— O que se passa com você, o que sente.

— Qual! Não me compreenderia.

E era verdade. Como ia compreendê-la?

— Vamos parar de falar nisso — pediu, com voz débil.

Não devia ter ido, mas foi. Gloria ajudou-a, cobrindo-lhe a retirada. De outra forma, Dora não teria podido sair do castelo, sozinha e à luz do dia. Saíram juntas. Gloria ficou à sombra duma árvore. Dora, trêmula e emocionada, internou-se no denso bosque.

— Estou aqui, Dora — disse Clark, saindo de entre as moitas. — Há mais de meia hora que a espero.

— Não pude vir antes.

— Sentemo-nos.

— Vai demorar muito tempo?

— Dora, antes não fazia estas perguntas tão fora de propósito. Vou acabar pensando que realmente deixou de me amar.

— Não o compreendo, Clark — murmurou a moça, desanimada.

— Nunca me compreendeu, e isso é uma pena. Em todo caso — acrescentou, sem pausa — basta que compreenda que a amo.

— Isso é verdade, Clark?

— Não sei se isso é uma desgraça ou uma ventura, mas é verdade.

— Deus lhe pague por isso, Clark! — murmurou, fascinada, pegando as mãos dele. — Não vá embora, Clark. Falarei com meu pai, contarei a verdade e ele me perdoará.

— Não a perdoará. Pelo contrário, tentará anular o casamento, e nisso jamais consentirei.

— Então, pretende que eu o siga?

— É minha esposa. Diga isso a seu pai, se quiser. Já nada mais me importa. Quero apenas que venha comigo e que renuncie aos seus.

— Clark!

O homem apertou febrilmente as mãos de Dora.

— Tem de renunciar, Dora. Diga o que quiser, mas siga-me, mesmo até o fim do mundo, onde a felicidade nos espera.

Como era possível que pretendesse aquilo? Clark estava muito perto de Dora.

— Não seja cruel, nem me exija o que jamais poderei fazer. Falarei com meu pai. Se quiser, contarei a ele toda a verdade, sem omitir nenhum pormenor, mas não me peça que vá embora com você, jogando por terra o nome de meu pai, que tanto estimo.

— Você é minha esposa — gritou o rapaz, cada vez mais exaltado.

— Mas ninguém sabe disso, Clark. Vá ao castelo. Fale com papai. Domine este orgulho desenfreado e fale-lhe serenamente, de homem para homem... De outra forma, não o seguirei. Tenho de andar com a cabeça erguida. Como martírio, já foi suficiente o que suportei. Chega de lutas e de críticas...

— Bem, Dora. Era só isso que eu desejava saber. Se não renuncia aos seus a partir de hoje e para sempre, nunca mais pense em mim, porque não me lembrarei de você.

Dora pensou que ia enlouquecer. Colocou-se de pé e ficou trêmula, muito perto do rapaz.

— Você nunca me amou — disse ela. — Não tem coração.

— Pois o ouça bater! Está louco, desesperado, esperando sua resposta definitiva.

— Vá embora, se quiser. Pode ser que algum dia o sinta arrependido, e quem sabe? Talvez então já seja tarde demais, porque de hoje em diante farei apenas o que meu pai quiser e mandar. Se ele anular o casamento, se nos separar... Serei uma múmia, Clark — acrescentou com amargura. — Amo-o mais do que a própria vida, é verdade, mas nunca renunciarei aos meus. Se meu pai um dia cometeu um erro, pagou-o caro. Renunciou ao mundo e à felicidade pessoal apenas por minha causa. Sente-se envergonhado, Clark, e tudo isso se deve a você. Ainda quer mais? Não, nunca seguirei seus passos se não os iniciar como Deus manda. Jamais passarei por cima dos seus santos ensinamentos. Se me ama de verdade, renuncie à sua vingança e ame-me com simplicidade, como eu o amo.

A resposta de Clark não foi ouvida.

— É tarde, Clark, tenho de ir embora. Gloria me espera perto daqui.

— Vá, Dora, não a seguirei. Partirei esta noite.

Dora voltou meio transtornada. Apertou com as mãos o rosto do rapaz, que permanecia impassível.

Os braços fortes de Clark rodearam a cintura fina de Dora.

— Por ele, vá falar com meu pai e conte-lhe que se casou comigo. Que aquele casamento na calada da noite de verão foi a primeira vitória sua contra ô desejo de vingança. Diga a verdade, Clark, pelo amor de Deus.

A resposta foi um beijo na boca fresca da moça. Beijou-a suavemente com reverência, como nunca o havia feito antes.

— Você é a maior coisa que existe no mundo — disse o rapaz. — Mas Lidia também era o que havia de maior no mundo, e os seus a mataram.

— Ainda?!

— Sempre — disse Clark desesperado. — Terei sempre presente na memória o rosto suave daquela ingênua mocinha que confiou num homem e que morreu por ele. Lidia deixou-se matar. Agora, você viverá como se eu fosse morto, Dora.

Soltou-a, passou uma das mãos pela testa e ficou imóvel, rígido.

— Não, não posso. Não posso! — clamou, desesperadamente. — Embora queira, não posso; hei de lembrar-me sempre do que houve. Não consigo perdoá-los.

— Clark, se tentasse pensar apenas em mim...

— Já penso — gritou. — Já penso, mas, embora não queira, a recordação daquele acontecimento fatal se interpõe entre nós dois.

Clark fez meia volta e começou a afastar-se dali. Dora ficou no mesmo lugar, como se não tivesse para onde ir. De repente alguém chamou:

— Dora!

A moça virou-se, sobressaltada. Estava com o pensamento tão longe dali!

— Vi Clark seguir ao longo do bosque e pensei que você precisasse de mim.

Como uma sonâmbula, Dora aproximou-se de Gloria. Caminharam juntas, primeiro em silêncio. Depois, ela falou:

— Partirá esta noite. Quer que eu vá com ele.

— É uma loucura, Dora! Não irá com ele, não é mesmo?

— Não, claro que não, apesar de...

— Que é?

— Se eu fosse com ele, não haveria nada de estranhável nisso.

— Enlouqueceu Dora?

— Por quê? Diga-me, Gloria... Que faria você, se estivesse loucamente; apaixonada por um homem?

— Nada que me prejudicasse. Case-se com ele. Dada a situação das coisas, não creio que Lorde Wright se oponha tenazmente ao casamento. Você é moça feita, e Clark...

— Não é possível! Clark quer que eu renuncie aos meus. Ele jamais poderá esquecer.

Continuaram caminhando. Finalmente, quando iam alcançando a divisa da propriedade, Dora disse, sem olhar para a companheira:

— Clark e eu já nos casamos há dois meses.

Gloria parou de chofre, pegou o braço de Dora e a fez dar meia volta.

— Isto é verdade, Dora?

— Sim. Contarei a meu pai esta noite mesmo. Agora resolvi. Se ele pretender anular nosso casamento, então passarei por cima de tudo e partirei com meu marido. Não renunciarei a meu pai, mas se ele renunciar a mim... Nada poderei fazer.

— Nunca vi tanta disposição em minha vida — disse Gloria, emocionada. — Fale com seu pai, Dora. Depois, aja segundo o coração mandar.

— Preciso falar com você, papai. Pode ouvir-me esta noite?

— É tão interessante o que tem a dizer-me?

Desde algum tempo até aquela tarde, Lorde Wright não mostrava um sorriso jovial.

Estava sempre taciturno e mal-humorado. Muitas vezes Dora tinha pena do pai.

— Gostaria que Frank estivesse presente — disse Dora, como única resposta.

Frank levantou-se imediatamente e os três entraram na saleta particular de Lorde Wright.

Dora sentiu alguma dificuldade. Não sabia como abordar o assunto. Pestanejou nervosamente, sob o olhar indagador do pai, e disse lentamente:

— Amo Clark, e espero que me dê permissão para casar com ele.

Ao contrário do que a moça esperava Lorde Wright não se enfureceu. Fez um gesto de cansaço e ajeitou-se mais comodamente na cadeira:

— Acha que ele merece isso, Dora?

Aquela pergunta fez-la recobrar novas forças.

— Teria consentido se soubesse que ele merecia?

— Escute Dora. Estou convencido de que, muitas vezes, você e Frank têm duvidado do meu amor de pai. Ignora que o egoísmo de um pai em relação aos filhos é uma coisa muito justificada. Eu queria para você as melhores coisas do mundo. Quando Frank me disse que desejava casar com Lidia Geogley, proibi-lhe isso terminantemente. Hoje, compreendo que cometi um erro tremendo. Um dia eu lhe disse que não casaria com Clark porque ele não tinha dinheiro... Na verdade, nunca me interessou muito que ele tivesse ou não. Desejava apenas afastá-lo, sem compreender que para uma alma tão grande quanto a sua, o fato de um homem não ter dinheiro nada significa.

Dora ouvia-o em silêncio e com ansiedade. Frank permanecia quieto, com os olhos cravados no chão.

— Esta manhã, Clark veio pedir-me sua mão e recusei. Não sei se será feliz ao lado dele. Mas as coisas chegaram a tal extremo, que não nos resta outro remédio senão consentir, Dora.

— Papai!

O velho nobre agitou a mão no ar.

— Mas antes, Dora, Clark precisa vir falar comigo e me dirá que jamais tomará a lembrar o drama da irmã morta. É só esta condição que imponho. Se Clark aceitar, casará com você. Do contrário, partiremos amanhã mesmo, e jamais voltaremos a Londres.

Ninguém o interrompeu. Lorde Wright olhou para o filho e sorriu com tristeza:

— Ande Frank. Levante esse ânimo e vá à cabana do outro lado da estrada. Diga a Clark Geogley o que acabamos de falar e se ele deseja entrar na família e se realmente ama Dora, que jure que jamais tornará a atormentar-nos com suas recordações macabras. Pode dizer-lhe também que, se pretendia vingar-se, já o conseguiu com juros. — Fez meia volta e chegou à porta. Parou e seus olhos velados pelas lágrimas vagaram em torno dos dois filhos silenciosos. — Nunca pensei que um homem como eu sofresse tanto em tão pouco tempo.

Dora levantou-se, impulsiva, e foi para junto dele:

— Papai... Se o fiz sofrer, perdoe-me.

A mão trêmula de Lorde Wright pousou como uma carícia sobre a cabeça de cabelos bonitos.

— Você ama Dora. Fui jovem e sei o que é isso. Está perdoada.

Afastou-se lentamente, enquanto os dois irmãos ô contemplavam silenciosos.

Um criado aproximou-se deles, dez minutos depois.

— O patrão pede que subam aos aposentos dele.

Os dois irmãos entreolharam-se, curiosos. Lorde Wright teria mudado de idéia?

— Coragem, Dora, e vamos para lá.

O espanto de Dora e Frank foi ilimitado quando notaram que o pai estava acompanhado. De pé, no meio do aposento, com as mãos nos bolsos e um sorriso nos lábios, achava-se Clark Geogley.

— Não agüentei mais, Dora — murmurou o rapaz, com voz trêmula de emoção. — Tenho de partir amanhã cedo para Londres e antes quis contar a verdade a seu pai. Fiz todo o possível para esquecê-la e não pude querida esposa. No sossego da pequena casa branca, aprendi o caminho que agora estou seguindo. Venho buscá-la e seu pai me deu sua bênção.

Frank estava boquiaberto pela surpresa. Aproximou-se deles e olhou-os como um alucinado.

— Então, são casados? — perguntou, com a voz sumida.

Lorde Wright se levantou. Tinha o rosto radiante.

— Assim é, Frank. Sua rebelde irmã acaba de dar-me a maior alegria de minha vida. Amanhã, a assombrosa notícia aparecerá em todos os jornais. Será um golpe tremendo para quem duvidou de minha filha. Eu me encarregarei de comunicar tudo aos nossos hóspedes. Eu o perdoei Clark, e você me perdoou. Estou satisfeito. Esquecerei o passado e descortinaremos novos horizontes, fundindo nossas esperanças no porvir.

Um simples abraço, uma recomendação, e o casal feliz saíram para o saguão. A expressão daqueles olhos pardos era mais diáfana, mais pura. Já não havia naquele olhar a ferocidade secreta que denunciava um orgulho indomável. Agora, era iluminado por um sorriso terno e confiante, cheio de amor.

Dora tremia como uma criança. As emoções vividas em tão pouco tempo a tinham deixado exausta e cheia de uma felicidade intensa demais para que pudesse suportá-la com facilidade.

Frank, com os olhos úmidos de lágrimas, deixou patente a nobreza do seu coração.

Aproximou-se de Clark e apertou-lhe a mão, nervoso.

— Agora, estarei mais perto dela, Clark.

E bastou aquilo para que Lorde Wright compreendesse, de uma vez para sempre, o quanto o filho ainda venerava a memória da morta. Nunca lamentou tanto o seu erro como naquele momento. Apesar disso, estava disposto a fazer-se perdoar, admitindo Clark Geogley em lugar de Lidia, e erguendo no cemitério da família um túmulo para aquela mulher tão cheia de valor e que ele não havia respeitado nem mesmo depois de morta.

Momentos depois, muito juntinhos, Clark e Dora perdiam-se estrada abaixo, seguida por um criado.

A estrada pareceu-lhes mais curta, mais firme, mais luminosa.

— Acabou a luta, minha querida — disse a voz de Clark, tão baixinho que lhe pareceu um cochicho. — Nunca estive tão satisfeito comigo mesmo. Não exatamente por eles, mas por você, porque vencendo o meu desejo de vingança eu provo até onde vai a minha paixão por você. Amo-a de tal modo, Dora, que se a perdesse...

— Cale-se! Não me perderá nunca. Nunca!

Lorde Wright não teve paciência para esperar a manhã seguinte. Desceu ao salão onde se reuniam seus convidados e de pé, no meio do aposento, falou durante um longo tempo, olhando ora para um ora para outro, até que, satisfeito, ergueu uma taça e pediu um brinde pela felicidade dos esposos.

Gloria compreendeu muitas coisas naquele momento. Tony parecia satisfeito. No fundo, era um rapaz nobre e apreciava Dora a tal ponto que não teve desilusão com a notícia.

Momentos depois, Dimas foi ver seu patrão nos aposentos deste, no primeiro andar, onde o velho nobre fora descansar.

— Que deseja Dimas?

O criado vacilou um momento. Depois disse, nervosamente:

— Eu já sabia de tudo, meu lorde. Eles me revelaram o que houve, naquela noite em que ambos saíram do castelo para se casarem. Não falei antes, por que... Por que...

O velho nobre sorriu e disse:

— Está desculpado, grande canalha. Eu lhe perdôo, pela satisfação imensa que sinto neste momento. Pode ir dormir tranqüilo. Eu também vou descansar.

— Obrigado, meu lorde.

Parecia que nada havia mudado, no entanto...

Já não havia nada que contivesse o grande amor dos dois apaixonados. A cabana do outro lado da estrada ocultava-se nas brumas da noite.

Tudo permanecia em silêncio. A voz forte de Clark murmurou muito baixinho:

— Sairemos já, Dora. Um automóvel nos espera no povoado, que fica perto daqui.

— Por mim, ficaria nesta cabana o resto da vida. Toda a vida, meu amor!

Dois braços fortes enlaçaram a cintura flexível. Clark atraiu-a para si. Procurou a cabeça de cabelos fartos e mergulhou o olhar ardente no dela.

— Aqui, na selva, em Londres ou em qualquer lugar, será a mesma coisa, minha querida, porque nos amaremos até a morte. Se soubesse o que há no meu coração para lhe dar!

— Diga-me o que é! — pediu ela, brincalhona.

Claro que lhe disse... E de que forma!

Pensou que já conhecia Clark em todas as suas facetas, no entanto, naquele momento em que a beijava com imensa ternura, na boca, roubando-lhe o coração inteiro, viu um Clark diferente, entregando-lhe toda a sua alma, todo o seu amor...

 

                                                                                Corin Tellado  

 

                      

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