Criar uma Loja Virtual Grátis
Translate to English Translate to Spanish Translate to French Translate to German Translate to Italian Translate to Russian Translate to Chinese Translate to Japanese

  

 

Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


VINGANÇA EM DEVIL’S ACRE / Anne Perry
VINGANÇA EM DEVIL’S ACRE / Anne Perry

 

 

                                                                                                                                   

  

 

 

 

 

Num subúrbio de Londres aparecem cadáveres mortos à punhalada e com os genitais mutilados. Nada parece unir esses mortos assassinados com tanto ódio. Pitt percorre o submundo a procura de pistas e quase é assassinado também. Charlotte e Emily vão a festas e reuniões tentando saber por que um nobre é uma das vítimas. Acabam por descobrir algumas mulheres de alto berço que frequentam esse submundo. Porém também as irmãs não conseguem descobrir o elo que une esses crimes. E então... Uma espécie de cobrança de dívida, um ajuste de contas e tudo vem à tona.

Duas horas mais tarde, o inspetor Thomas Pitt fechava a porta do matadouro e iluminava o pátio com sua lanterna. Olhou o cadáver, que jazia tal como o tinha encontrado o agente. Seu aspecto a tênue luz do amanhecer incipiente era grotesco. Observou-o. O morto não tinha o menor rastro de sangue nas mãos. Inclusive as unhas estavam limpas, o que era muito curioso em qualquer pessoa que freqüentasse uma zona como aquela...

 

 

 

 

O agente de polícia Withers espirrou. O gélido vento de janeiro uivava naquele beco que chegava até o Tâmisa. Três horas faltavam ainda para o despontar do dia e as luzes de gás das ruas principais mal iluminavam o lúgubre beco cheio de imundícies, junto à Parcela do Devil1e à sombra do próprio Westminster.

Voltou a espirrar. Tinha metido na garganta o fedor do matadouro que havia a cinqüenta metros, além da pestilência das bocas-de-lobo, da imundície e dos desperdícios acumulados durante anos.

Bom, isso sim era estranho: a porta do pátio estava aberta. Não deveria estar a essas horas. Certamente não era nada importante, algum aprendiz descuidado que tinha esquecido de fechá-la. Em todo caso, e embora sem dúvida a carne que pudesse haver estaria guardada nas salas refrigeradas, já tinha algo com que matar o aborrecimento de rondar pelas calçadas cinza.

Cruzou o beco para o matadouro. Seria melhor que desse uma olhada ao interior para comprovar que tudo estava em ordem.

Enfiou a cabeça pela porta. Reinava o silêncio; somente havia um bêbado dormindo no centro do pátio. Seria melhor obrigá-lo a sair dali por seu próprio bem, antes que chegassem os açougueiros e o expulsassem a pontapés.

Vamos, avô – disse agachando-se para sacudir ao velho pelo ombro –. É melhor que se vá. Aqui não perdeu nada. Por que lhe ocorre escolher um lugar como este para pôr-se a dormir!

O homem não se moveu.

–Vamos, avô! – Sacudiu-o mais forte e ergueu a lanterna para vê-lo melhor.

Acaso o pobre velho morrera de frio? Certamente não seria o primeiro que via o agente Withers, e nem todos velhos. Muitos meninos de pouca idade morriam de frio no mais cru do inverno.

A luz iluminou o rosto do homem. Sim, pobre diabo, estava morto; tinha os olhos abertos e o olhar fixo.

Que estranho, pensou. Os que morrem de frio costumam fazê-lo enquanto dormem. O rosto do morto tinha uma expressão de sobressalto, como se a morte o tivesse pego de surpresa. P. C. Withers baixou a lanterna.

–OH, Deus todo-poderoso!

O morto tinha o baixo ventre e as coxas cobertas de sangue: tinham-lhe rasgado as calças de lã marrom com uma faca e tinham cortado os genitais, que jaziam entre os joelhos em uma massa sanguinolenta de irreconhecível polpa.

O rosto do Withers se cobriu de suor frio. Sentiu náuseas e as pernas tremeram. Deus bendito, que classe de animal faria isso a um homem? Cambaleou para trás até dar contra a parede. Baixou a cabeça para reprimir as náuseas.

Demorou um momento em ter a cabeça suficientemente limpa para pensar no que devia fazer. Pedir ajuda, isso certamente. E afastar-se dali e daquela abominação.

Ergueu-se, dirigiu-se para a porta e a fechou com um forte golpe ao sair, alegrando-se de sentir o vento cortante do Este (Leste), embora levasse consigo a úmida frieza do mar. O assassinato era moeda corrente nos abarrotados subúrbios de Londres naquele ano de Nosso Senhor de 1887, mas jamais tinha visto um ato de bestialidade semelhante.

Tinha que achar a outro policial que ficasse ali de guarda enquanto ele ia informar seus superiores. Graças a Deus não tinha ainda posto suficiente para ocupar-se de um assunto como aquele!

 

Duas horas mais tarde, o inspetor Thomas Pitt fechava a porta do matadouro e iluminava o pátio com sua lanterna. Olhou o cadáver que jazia tal como o tinha encontrado o agente. Seu aspecto à tênue luz do amanhecer incipiente era grotesco.

Agachou-se e moveu um ombro do cadáver para ver se havia algo debaixo dele, uma arma possivelmente, ou outra ferida. A mutilação por si só não justificava a morte, e sem dúvida um homem que sofria uma agressão tão espantosa teria tentado defender-se, ou conter a efusão de sangue. Desprezou a idéia, enojado, e fez caso omisso do suor frio que percorria suas costas empapando-lhe a camisa.

Observou o cadáver. O morto não tinha o menor rastro de sangue nas mãos. Inclusive as unhas estavam limpas, o que era muito curioso em qualquer pessoa que freqüentasse uma zona como aquela, para não falar de alguém que dormia no pátio de um matadouro.

Examinando-o com maior atenção, descobriu uma mancha grande e escura debaixo do corpo que se correspondia com outra igual na jaqueta e estava situada perto da espinha dorsal, apontando ao coração através das costelas. O inspetor levantou a lanterna para olhar mais de perto, mas não viu sangue em nenhum outro lugar do chão de pedra. Levantou-se, limpando-as mãos nas pernas das calças. Podia passar ao rosto.

Era um rosto de grandes mandíbulas e nariz largo; a cútis era de um leve tom cítrico e estava marcado por rugas de bom humor ao redor da boca. Os olhos eram pequenos e redondos. Em suma, o rosto de um aficionado à boa vida. Tinha uma figura corpulenta e mal alcançava uma estatura média; suas mãos eram fortes, gordinhas e de um absoluto esmero; os cabelos, castanhos e encanecidos.

Suas roupas estavam confeccionadas com uma grosa lã marrom que se esticava em certos pontos pelo uso e estava amassada à altura do estômago. Havia restos de comida nas dobras do colete. Pitt pegou uma migalha, espremeu-a entre os dedos e a cheirou. Queijo Stilton, se não se equivocava, ou outro parecido. Os habitantes da Devil's Acre não comiam Stilton.

Ouviu ruído de passos a suas costas. Deu a volta, feliz de ter companhia.

– Bom dia, Pitt. O que tem aqui desta vez? – Era Meddows, o legista da polícia, um homem capaz de um insuportável bom humor nos momentos mais inoportunos. Mas nesta ocasião sua voz não lhe pareceu sarcástica, mas sim como uma suave brisa de prudência em meio daquele terrível pesadelo.

–OH, Deus. –De pé junto ao Pitt, o legista contemplou o cadáver-. Pobre tipo.

–Apunhalado pelas costas – explicou Pitt.

–Ah, sim? – Meddows arqueou uma sobrancelha e olhou ao Pitt de esguelha –. Bem, suponho que já é algo. –Se acocorou, pôs sua lanterna de lentes convexas no ângulo preciso e iniciou um detido exame do cadáver –. Não é necessário que olhe – indicou sem voltar a cabeça –. Se encontrar algo interessante eu o direi. Para começar, esta mutilação foi um autêntico açougue. Não fez mais que agarrar uma faca e cortar. E aqui tem o resultado.

–Sem nenhuma técnica? – perguntou Pitt olhando por cima da cabeça do Meddows a luz da alvorada refletida nas janelas do matadouro.

–Nenhuma absolutamente, só... – suspirou –. Só um ódio desumano.

–Um louco?

–Quem sabe? – disse Meddows com uma careta –. Apanhe-o e então possivelmente poderei dizer-lhe A propósito, quem é este pobre diabo? Averiguou-o já?

Pitt não tinha pensado sequer em revistar o cadáver. Era a primeira coisa que deveria ter feito. Agachou-se e começou a revistar os bolsos do morto.

Achou tudo que devia esperar exceto dinheiro, e possivelmente isso não o esperava em realidade. Havia um relógio de ouro, muito gasto, mas que ainda funcionava, e um chaveiro com quatro chaves. Uma destas parecia corresponder a uma caixa forte, duas eram chaves de portas e a última de um armário ou gaveta, a julgar por seu tamanho; quer dizer, o que podia ter qualquer homem de meia idade em uma situação moderadamente próspera. Encontrou também dois lenços de fino algodão egípcio e pregas bem feitas. Havia três recibos, dois de gastos caseiros comuns e o terceiro de uma dúzia de garrafas de um Borgonha muito caro; aparentemente o morto era um sibarita, ao menos no que se referia à mesa.

Entretanto, a importância dos recibos residia em que levavam seu nome e endereço. Era o doutor Hubert Pinchin, do 23 do Lambert Gardens: muito afastado da Devil's Acre em situação social e qualidade de vida, embora não tão longe como voa o pardal londrino. Que fazia o doutor Pinchin no pátio do matadouro, vítima de um assassinato e de uma espantosa mutilação?

–E então? –perguntou Meddows.

Pitt lhe disse o nome e o endereço.

O rosto do Meddows se encheu de rugas de cômica surpresa.

–Inverossímil – comentou –. A propósito, certamente estava inconsciente e virtualmente morto quando lhe fizeram isso. – Assinalou a parte inferior do cadáver. – Se é que isso serve de consolo. Suponho que saberá sobre o outro.

–Outro? Que outro?

– O outro cadáver, homem – disse Meddows, ficando mais sério –. O outro que encontramos castrado como este. Não me diga que não sabia.

Pitt ficou atônito. Como era possível que não se inteirara de semelhante monstruosidade?

– Era um jogador profissional ou um rufião – prosseguiu Meddows –. Estava do outro extremo da Devil's Acre, não correspondia a sua delegacia de polícia. Mas como lhe dizia, foi castrado também, pobre vagabundo, embora não de uma maneira tão bestial como este. Ao que parece enfrentamos uma espécie de maníaco. Conseguiu-se impedir que a imprensa armasse rebuliço a primeira vez. A vítima era um desses tipos aos quais apunhalam facilmente por sua ocupação. – levantou-se lentamente com um rangido dos joelhos –. Mas este é diferente. Possivelmente conheceu melhores tempos, mas ainda comia bem. E eu diria que este aspecto desalinhado é mais uma excentricidade que carência de recursos. O traje está muito gasto, mas a roupa interior é nova, e está razoavelmente limpa: por seu aspecto, não a levou posta mais de um dia.

Pitt pensou no queijo Stilton e nas unhas imaculadas.

–Sim – disse. Sabia que Meddows o olhava, na expectativa. – Muito bem. Suponho que se tiver terminado será melhor que o levem. Faça a autópsia e informe-me do que encontrar, se é que encontra algo mais.

–Fique tranquilo.

Tinha chegado a pior parte; uma vez mais Pitt elucidou mentalmente se devia delegar a tarefa de informar à família e à viúva, se a havia. E, como sempre, não pôde evitar a convicção de que devia ocupar-se ele em pessoa. Do contrário sentiria que tinha traído tanto ao ajudante que enviasse como aos familiares a quem tivesse podido consolar.

Deu as ordens pertinentes aos homens que aguardavam fora. Deviam levantar o cadáver, revistar o pátio e examiná-lo em busca de algo que pudesse lhes dar uma pista sobre o assassino. Devia iniciar a busca de mendigos que tivessem rondado por aquela zona, de vizinhos que retornassem a suas casas, de prostitutas ociosas, de qualquer um que tivesse visto algo.

Enquanto isso, ele iria ao número 23 do Lambert Gardens e comunicaria a seus moradores – Àquela hora certamente a ponto de tomar o café da manhã – que o senhor da casa tinha sido assassinado.

 

Abriu-lhe a porta um mordomo em extremo eficiente.

– Bom dia, senhor – disse com educação. Pitt era um desconhecido e a hora muito cedo para que se tratasse de uma visita social.

– Bom dia – respondeu-. Sou da polícia. É esta a residência do doutor Hubert Pinchin?

–Sim, senhor, mas temo que o doutor não se ache em casa neste momento. Posso lhe recomendar a outro médico se tratar de uma urgência.

–Não necessito nenhum médico. Sinto muito, sou portador de más notícias. O doutor Pinchin morreu.

–OH, Meu deus... –A expressão do mordomo se escureceu, mas não perdeu a compostura. Retrocedeu um passo para permitir a entrada ao Pitt-. Será melhor que entre, senhor. Seria amável de me dizer o que ocorreu? Será mais fácil se der eu a notícia à senhora Pinchin. Estou convencido de que mostraria você um grande tato, mas... –Com diplomacia, evitou mencionar o evidente.

–Sim – disse Pitt, sentindo um alívio que acendeu uma faísca de culpa-. Sim, é claro.

–Como ocorreu, senhor?

–Assaltaram-no e o apunhalaram pelas costas. Acredito que virtualmente foi uma morte indolor.

O mordomo o olhou com fixidez impassível, depois engoliu em seco.

–Assassinado?

–Sim, sinto muito. Pode alguém identificar o cadáver, alguém que não seja a senhora Pinchin? Será muito desagradável. –Era o momento de mencionar a mutilação?

O mordomo tinha recuperado o aprumo, com pleno domínio sobre si mesmo e o resto dos serviçais.

–Sim, senhor. Informarei à senhora Pinchin desta desgraçada tragédia. Tem uma criada excelente que cuidará dela. No bairro há outro médico que pode atendê-la. O lacaio, Peters, está há doze anos conosco; ele irá identificar o cadáver... – Vacilou –. Não existe nenhuma dúvida, não é? O doutor Pinchin era um pouco mais baixo que eu, senhor, de compleição forte, bem barbeado e tez corada... – Deixou a frase inacabada com um leve tom de esperança. Mas era inútil.

–Tinha o doutor Pinchin um traje de grosa lã marrom, velho já a julgar por seu aspecto?

–Sim, senhor. Esse era o que levava ontem quando saiu de casa.

–Então temo que não haja nenhuma dúvida. Mas talvez o lacaio devesse corroborá-lo antes que você diga algo à senhora.

–Sim, senhor, naturalmente.

Pitt deu ao mordomo o endereço do necrotério e depois o advertiu sobre a natureza das feridas infligidas a seu amo, que indevidamente seriam motivo de grande agitação na imprensa. Para o bem da senhora Pinchin, seria melhor que mantivessem afastados da casa os jornalistas o maior tempo possível até que algum outro acontecimento fizesse esquecer aquele assassinato na opinião pública.

Pitt partiu sem ver a viúva, que ainda não se levantara. Só com a imaginação viu sua surpresa, seguida pela incredulidade, à lenta aceitação e, finalmente, o início de uma indescritível dor.

 

Tinha que ir ver o oficial encarregado do outro assassinato similar. Embora os dois crimes não tivessem relação entre si, seria absurdo desprezar essa possibilidade. Talvez inclusive lhe tirassem aquele caso. Não se importaria absolutamente; não tinha gerado o menor sentido de posse sobre ele, como lhe tinha ocorrido em outras ocasiões. Quem quer que tivesse cometido aquele crime tinha entrado em nos domínios muito afastados do mundo comum dos delitos e castigos.

Enquanto caminhava contra o vento impetuoso que levantava os lixos das calçadas, Pitt se dizia que realmente não lhe importaria que lhe tirassem aquele caso. Cruzou a rua justo antes que passasse um cabriolé de aluguel. Um moço que varria excrementos de cavalo se deteve e se apoiou na vassoura. Tinha as mãos miúdas avermelhadas e gretadas e os dedos apareciam pela ponta das luvas. Uma carruagem de quatro portas passou a toda velocidade e salpicou a ambos de lodo e excrementos.

O moço sorriu ao ver a expressão irritada do Pitt.

–Deveria ter passado por detrás de mim, senhor – disse alegremente-. Assim não o teriam sujado.

Pitt lhe deu um quarto de penny e se mostrou de acordo ironicamente.

Na delegacia de polícia o receberam com uma inesperada cordialidade.

– Inspetor Pitt? Sim, senhor. Suponho que veio por causa de nosso assassinato, senhor, já que foi igual ao desta manhã.

Pitt ficou estupefato. Como se tinha informado aquele jovem agente da morte do Hubert Pinchin? Seu rosto refletiu sem dúvida seus pensamentos, pois o policial respondeu à pergunta antes que Pitt a formulasse.

– Saiu nos extras da tarde, senhor. Grande coisa que armaram. De espanto. Já sei que têm o costume de exagerar tudo, acrescentando coisas para escandalizar, mas isto é muito!

– Duvido muito que tenham tido que acrescentar algo neste caso – replicou Pitt secamente. Tirou o cachecol e o chapéu. O casaco lhe pendia muito solto, um lado mais longo que o outro; devia tê-lo abotoado mal outra vez –. Poderia falar com quem está a cargo da investigação?

– Sim, senhor, é o inspetor Parkins. Alegrar-se-á muito de vê-lo.

Pitt duvidava disso, mas seguiu ao agente e entrou em um escritório quente e escuro que cheirava a papel velho e cera para móveis. Era maior que o seu e sobre a mesa havia a fotografia de uma mulher e quatro meninos. Parkins era um homem moreno e de boa aparência; estava sentado com expressão consternada estudando uns papéis. O agente apresentou ao Pitt com um gesto ostentoso. O rosto do Parkins perdeu sua expressão lúgubre.

– Entre, entre – disse cordialmente-. Sente-se. Aqui, com exceção desses expedientes, fique a vontade. Sim, um assunto muito desagradável. Quer conhecer todos os detalhes? Encontramo-lo atirado no arroio. Tinham-no deixado rígido. Completamente frio, é claro. Não é de estranhar com o tempo que está fazendo! E vai piorar. Apunhalaram-no pelas costas, pobre diabo, com uma folha longa e afiada, certamente de uma faca de cozinha ou algo semelhante. –interrompeu-se para tomar fôlego e fez uma careta, despenteando os esparsos cabelos-. A vítima era um alcoviteiro; seu cadáver foi achado por uma prostituta daquela zona. Em outras circunstâncias diria que era muito normal. Mas suponho que você quererá fazer-se encarregado pelo caso, pois sem dúvida está relacionado com o seu – acrescentou.

–Não! –exclamou Pitt involuntariamente por causa da surpresa-. Achava que você...

–Absolutamente. –Parkins fez um gesto com os braços como se rechaçasse um favor-. Você tem maior antigüidade e mais experiência que eu. Foi admirável o modo como resolveu aquele assunto do Bluegate Fields. – Viu a expressão de surpresa do Pitt –. OH, a gente acaba inteirando-se de tudo, já sabe. Amigos, uma palavra aqui, outra lá. – Elevou um dedo e o agitou em uma espécie de vago gesto de cumplicidade.

Pitt estava atônito, mas também se sentia adulado. Não era insensível à admiração que despertava seu valor; produzia-lhe um sentimento singularmente reconfortante. Além disso, tinha sentido medo durante a investigação do caso do Bluegate Fields; tinha arriscado mais do que podia permitir-se perder.

–Nosso homem não era mais que um fanfarrão – prosseguiu Parkins –. Não se perdeu nada com sua morte, embora tampouco sirva de algo, claro. Algum outro ocupará seu lugar, se não o tiver feito já. É como tirar um balde de água do rio. A água continua correndo como se não houvesse tal coisa, não se nota de onde se tirou. Não, certamente que não! O seu era médico? Um tipo decente. Será melhor que lhe entregue todos os informes: o da autópsia e todo o resto, e suponho que quererá ver o cadáver.

–Ainda o têm? –perguntou Pitt.

–OH, sim. Ocorreu à semana passada, compreende? Com um tempinho como este, o frio poderia conservar os cadáveres durante meses. Será melhor que lhe dê uma olhada. Nunca se sabe, talvez esclareça se trata do mesmo maníaco.

Pitt o seguiu em silencio até o necrotério. Parkins abriu a porta e cochichou com o encarregado, depois conduziu Pitt ao interior. O lugar era frio e seco e estava impregnado de um leve aroma de umidade, como o de uma medicina passada.

Parkins se dirigiu a uma das mesas brancas cobertas por lençóis e afastou o tecido, mostrando não só o rosto, mas também todo o corpo nu. Foi um gesto curiosamente indecente, inclusive com um morto. O primeiro impulso do Pitt foi apoderar-se do lençol e cobrir a parte inferior do cadáver, mas sabia que era uma ridicularia. Ao fim e ao cabo, para isso tinha ido ali.

Não obstante, a ferida não era idêntica. Ante si tinha uma castração selvagem e inexperiente. Ao homem lhe tinham arrancado os testículos e tinha o pênis virtualmente seccionado.

– Muito bem. – Pitt engoliu em seco.

Parkins voltou a tampar o cadáver e olhou ao Pitt com uma careta irônica, de humor triste.

– Repugnante, não é assim? – disse –. Dá náuseas apenas vê-lo. Não o conhecerá você, por acaso? Não é provável, mas nunca se sabe. –Retirou o lençol do rosto.

Pitt nem sequer o tinha olhado antes. Fez isso agora e imediatamente teve um sobressalto. Conhecia aquele rosto moreno de feições ásperas, as pálpebras pesadas e a boca sensual, ao menos estava quase certo de havê-lo visto.

– Quem é? –perguntou.

– Max. Utilizava dois ou três sobrenomes diferentes: Bracknall, Rawlins, Dunmow. Tinha mais de um negócio. Era um tipo muito empreendedor. Conhece-o?

–Acredito que sim – respondeu Pitt –. Ao menos se parece com alguém com quem tive trato faz uns anos; por uns assassinatos no Callander Square.

–Callander Square? – Parkins se surpreendeu –. Não é precisamente a classe de bairro que freqüentam tipos como este. Tem certeza?

– Não de todo. Era lacaio. Então se chamava Max Burton, se é que se trata do mesmo homem.

– Poderia averiguá-lo? – perguntou Parkins –. Talvez seja importante. – Depois baixou a voz e esboçou um triste sorriso –. Embora não acredito. Seu estilo de vida deu um tombo depois.

– Suponho que poderei – disse Pitt pensativamente –. Não deveria ser muito difícil. Por certo, onde recebeu a ferida mortal?

– Aqui – respondeu Parkins, como se também ele o tivesse esquecido momentaneamente –. Apunhalaram ele nas costas, mais ou menos por aqui. – Assinalou um ponto próximo à espinha dorsal, de dois a cinco centímetros para o lado esquerdo.

A ferida era mais baixa que a do Pinchin, mas a escassa distância e no mesmo lado. Claro que Max era mais alto que Pinchin.

– Com que tipo de arma? De que longitude? De que largura?

–Uns vinte centímetros de comprimento e uns quatro de largura à altura do punho. Pode ser uma faca de cozinha. Todo mundo tem uma, é muito normal. Sinto muito. –Parkins arqueou uma sobrancelha dando a entender que compreendia perfeitamente –. Igual ao seu, não?

Pitt não gostou que se referisse ao Pinchin como "o seu", embora compreendesse o que queria dizer Parkins.

– Sim – admitiu –. Quase com exatidão. Só que no caso de hoje – se viu impulsionado a acrescentar-, cortaram completamente os genitais ao tipo e os puseram entre os joelhos.

Parkins apertou as mandíbulas.

– Apanhe-o – disse em voz baixa –. Apanhe a esse filho de cadela, senhor Pitt.

 

Pitt não tinha voltado para o Callander Square fazia três anos, quando se produziram os assassinatos. Perguntava-se se os Balantyne continuariam vivendo ali. Deteve-se na gelada tarde debaixo das árvores cortadas, cuja casca molhava o vento anunciando chuva. Logo escureceria. Achava-se só a uns metros do lugar onde se acharam os cadáveres que tinham feito necessária sua presença pela primeira vez para interrogar aos moradores daquelas elegantes casas de estilo georgiano, com suas grandes janelas e suas fachadas imaculadas. Aquela gente tinha lacaios para que abrissem a porta, criadas para receber às visitas, e mordomos que se encarregavam de suas despensas, de guardar as chaves das adegas e de governar com uma mão férrea seus próprios domínios atrás das portas de pano verde.

Subiu ainda mais a gola do casaco, enfiou o chapéu e afundou as mãos nos bolsos cheios de pedaços de corda, moedas, uma navalha, três chaves, dois lenços, uma parte de cera para selar e inumeráveis folhas de papel. Negando-se a utilizar a entrada de serviço, como sabia que se esperaria dele, apresentou-se na porta principal como qualquer visita. O lacaio o recebeu com frieza.

–Boa tarde... Senhor. – Foi uma leve vacilação, suficiente para dar a entender que o apelativo era uma mera cortesia.

–Boa tarde – respondeu Pitt com aprumo-. Chamo-me Thomas Pitt. Queria ver o general Balantyne por um assunto da máxima urgência. Do contrário não teria vindo sem me assegurar primeiro de que o momento era apropriado.

O lacaio o olhou com cenho: Pitt se tinha antecipado ao reparo que pensava lhe pôr.

–O general Balantyne não recebe a quantos se apresentam pelas boas, senhor Pitt – disse com maior frieza ainda. Olhou ao Pitt de cima abaixo com olho perito. A julgar por suas roupas, era claro que não se tratava de uma pessoa distinta apesar de sua forma de falar. Certamente não o vestia nenhum alfaiate, e quanto a que tivesse valete, qualquer digno desse nome se cortaria a garganta antes que permitir que seu amo aparecesse em público tão desalinhado. O colete não deveria fazer jogo com a camisa, a jaqueta era um desastre e a gravata-borboleta o tinha amarrado um cego com duas mãos esquerdas.

– Sinto-o – repetiu seguro já do terreno que pisava. – Em geral o general Balantyne não recebe a ninguém que não tenha combinado uma entrevista prévia, a menos, claro está, que pertença a seu círculo social. Talvez pudesse você lhe escrever. Ou lhe pedir a alguém que o faça por você.

A insinuação de que Pitt era analfabeto foi a gota que encheu o copo.

– O general Balantyne me conhece – lhe replicou Pitt-. E se trata de um assunto policial. Se quiser discuti-lo na porta, adiante, mas acredito que o general preferiria que o assunto se tratasse dentro da casa. Seria mais discreto, não acha?

O rosto do lacaio traduziu sobressalto. Ter à polícia na casa – e na porta principal, além disso – era espantoso. Maldita rabugice a daquele homem! O lacaio se dominou, mas com o aborrecimento de ser uns centímetros mais baixo que Pitt, por isso nem sequer com a vantagem da altura podia olhá-lo com superioridade de cima.

– Se tratar de algum roubo ou algo parecido – replicou –, será melhor que rodeie a casa e bata na porta de serviço. Sem dúvida o mordomo o receberá, se for realmente necessário.

– Não se trata de nenhum roubo – disse Pitt com tom glacial –, mas sim de um assassinato, e é com o general Balantyne que quero falar, não com o mordomo. Não acredito que o general se alegre que você me obrigue a voltar com uma ordem.

O lacaio admitiu sua derrota. Retrocedeu. – Se me acompanhar... – Evitou acrescentar o "senhor"-. Se esperar na sala, o general o receberá quando lhe for possível.

Cruzou o vestíbulo com passo elegante e abriu a porta de uma ampla estadia cuja lareira continha as brasas de um fogo que atenuava o frio ambiente, mas não bastava para que Pitt esquentasse as mãos geladas ou o corpo através da roupa.

O lacaio olhou as cinzas e se permitiu um sorriso de satisfação. Deu meia volta e saiu fechando devagar a porta de lustrosa madeira. Não se tinha oferecido a pegar o casaco nem o chapéu do Pitt. Cinco minutos mais tarde estava de volta com rosto de pau. Agarrou o casaco e o chapéu do Pitt e lhe ordenou que seguisse à criada à biblioteca.

Naquele aposento ardia um bom fogo que tingia de um brilhante escarlate os livros encadernados em couro e se refletia nos polidos troféus da parede mais afastada. O general se achava de pé atrás de uma grande mesa cheia de tinteiros, penas, espártulas, livros abertos e um canhão de cobre amarelo em miniatura, réplica perfeita dos utilizados na guerra de Crimea 3. Não tinha mudado desde a última vez que o viu Pitt: as mesmas costas larga e enrijecida, o mesmo rosto altivo, o cabelo castanho claro, que talvez agora começava a encanecer. Tinha um rosto de feições duras ao qual correspondia o tom de sua pele.

– E então, senhor Pitt? – disse com tom formal. Era um homem que não sabia falar com desenvoltura. Passara a vida inteira cumprindo as normas, até enfrentando o terror ou uma dor extrema. Sendo um simples soldado, e ainda um moço, tinha contemplado com horror a carga da Brigada Ligeira das montanhas que dominavam Balaclava4. A matança da Crimea era uma lembrança indelével em sua memória. Conheceu os homens da fina linha vermelha que tinham resistido às poderosas forças do exército russo, homens que tinham defendido sua posição, por impossível que fosse. Tinham caído às centenas, mas nenhum só tinha rompido filas.

– Meu lacaio diz que quer me falar sobre um assassinato. É assim?

Pitt notou que se erguera levemente, não de todo em posição de sentido, mas certamente com os calcanhares juntos e a cabeça erguida.

– Sim, senhor. Há uma semana se cometeu um assassinato muito desagradável em uma zona conhecida como a Devil's Acre, muito perto do Westminster.

– Sei onde é. – Franziu o sobrecenho-. Mas não foi esta manhã?

– Receio que o desta manhã foi o segundo. O primeiro não alcançou muita notoriedade nos jornais. Entretanto, chamaram-me para investigar o de hoje, e quando me inteirei de outro, logicamente fui ver o cadáver.

– Logicamente. – O cenho do general se fez mais pronunciado –. O que quer de mim?

Agora que tinha chegado o momento, Pitt se sentia bastante constrangido por ter que lhe pedir que fosse identificar o cadáver de um alcoviteiro. O que importava que fosse ou não fosse seu lacaio na época dos crimes do Callander Square? De nada serviria sabê-lo.

Entretanto, não havia outra saída, de modo que pigarreou e disse:

– Acredito que pode tratar-se de alguém a quem conhecia.

O general arqueou as sobrancelhas com assombro.

– Alguém a quem eu conhecia?

– Sim, senhor, isso acredito. –Pitt explicou as circunstâncias da morte do Pinchin com a maior brevidade, assim como o que o inspetor Parkins lhe tinha mostrado no necrotério.

– Muito bem – disse o general a contra gosto, e puxou o cordão da campainha para pedir a carruagem. Abriu-se a porta, mas em lugar do lacaio entrou na biblioteca uma das mulheres mais extraordinárias que Pitt recordava ter visto em sua vida: lady Augusta Balantyne. Seu rosto era tão delicado como a porcelana da China, mas sem sua fragilidade. Vestia-se com luxo, mas com o gosto discreto de quem sempre teve dinheiro e, portanto jamais sente o impulso de demonstrá-lo chamativamente. A dama observou ao Pitt com desgosto e inclusive sua atitude parecia exigir uma explicação, não só da presença do inspetor em sua casa, mas também do simples fato de que este existisse.

– Boa tarde, lady Augusta – saudou Pitt, sem deixar-se intimidar e inclinando levemente a cabeça –. Espero que se encontre bem.

–Eu sempre estou bem, obrigado, senhor... – Não podia ter esquecido tão cedo seus anteriores encontros; o motivo tinha sido muito estranho, muito penoso –, senhor Pitt. – Arqueou as sobrancelhas levemente e fixou no Pitt um olhar glacial –. A que desafortunado fato devemos sua visita nesta ocasião?

– A um assunto de identificação, senhora – respondeu ele amavelmente. Notou que o general relaxava, apesar de mal poder vê-lo com a extremidade do olho –. Trata-se de um indivíduo cujo nome talvez pudesse nos dar o general Balantyne, o que nos seria de grande ajuda.

– Por Deus, não pode lhes dar ele mesmo seu nome?

– A pessoa não diz sempre a verdade, senhora – replicou Pitt com acuidade.

Lady Augusta corou.

–E, além disso, neste caso está morto – lhe informou o general com aspereza. – Não deve preocupar-se por este assunto, querida. Tenho o dever de colaborar com a polícia, se puder. Não acredito que demore muito.

– Esqueceu que esta noite jantamos com sir Harry e lady Lisburne? – perguntou lady Augusta, fazendo tanto caso ao Pitt como se tratasse de um criado –. Não tenho intenção de chegar tarde. Não permitirei que me considere uma mal educada, sejam quais sejam os deveres que imagina ter de cumprir.

– O cadáver se acha em um necrotério a meia hora de caminho. – O rosto do general se agitava com irritação. Não gostava dos jantares e, sendo Harry Lisburne o anfitrião, certamente aquele seria mais aborrecido que o normal-. Só tenho que olhá-lo e dizer se o conheço ou não. Voltarei antes que anoiteça.

Lady Augusta aspirou com força, deixou escapar um pequeno suspiro e abandonou a sala sem sequer voltar a olhar ao Pitt. Balantyne se dirigiu ao vestíbulo, pegou o casaco que lhe ofereceu o mordomo e saiu à rua sob a chuva no momento em que o cocheiro rodeava as cavalariças e se detinha junto ao meio-fio.

Realizaram o trajeto em silêncio. Pitt não queria influir na identificação comentando nada e não sentia o menor desejo de conversar sobre trivialidades. A carruagem se deteve a escassa distância do depósito. O general e Pitt se apearam e subiram pelo atalho de entrada, sempre em silêncio. Uma vez dentro, o encarregado pareceu surpreender-se de ver um cavalheiro tão diferente como Balantyne, mas reconheceu Pitt e conduziu a ambos até o cadáver sem vacilação.

–Aqui o tem senhor. –Afastou o lençol com o gesto de um mago ao fazer sair um coelho.

Assim como antes ocorreu a Pitt, o olhar do general se posou diretamente na mutilação. Respirou fundo e deixou sair o ar. Tinha visto antes a morte, e com muitas caras, quase sempre como resultado da violência da guerra ou os estragos de uma enfermidade. O que fez com que aquela morte lhe parecesse particularmente espantosa foi que tinha sido uma ação premeditada e nas ruas da própria Londres. A inexperiente desmembração não era um acidente produzido pelo fogo dos canhões, mas parecia o resultado de um ódio encarniçado por um homem concreto.

Que homem? O general olhou o rosto. Pitt, que o observava, viu por seu pulo que o tinha reconhecido.

–General? –murmurou.

Balantyne levantou a vista devagar. Pitt não conseguiu ler emoção alguma em seus olhos. O general era um homem extraordinariamente reservado, pouco acostumado ao consolo da compaixão humana. Pitt jamais chegaria a compreendê-lo de todo; suas origens eram muito diferentes. Balantyne era o último de várias gerações de soldados que tinham servido à coroa e ao país sacrificando-se incondicionalmente em todas as guerras dos dias do Agincourt, enquanto que Pitt era filho de um guarda-florestal rural condenado injustamente por um delito menor. Pitt tinha crescido na propriedade do amo e tinham-no educado para proporcionar um companheiro a seu filho que lhe servisse de incentivo nos estudos; tal era a procedência da excelente, quase formosa dicção do inspetor. O anseio de saber do

Pitt tinha sido uma provocação, e freqüentemente uma recriminação com que açular ao indolente herdeiro.

Entretanto, Pitt gostava de Balantyne, inclusive o admirava, porque era um homem que vivia segundo um estrito código de honra no qual acreditava, como qualquer antigo cavalheiro ou como um monge.

– Conhece-o? – perguntou embora a pergunta fosse puramente retórica: o general tinha a resposta escrita no rosto.

–É claro – respondeu Balantyne –. É Max Burton, meu ex-lacaio.

 

Gracie irrompeu na saleta com as primeiras edições dos jornais da tarde. Tinha o rosto aceso e os olhos arregalados.

–OH, senhora! Produziu-se um horrível assassinato, o mais terrível na história do crime em Londres, diz aqui. Diz que inclusive um homem temperado empalideceria de horror!

– Ah, sim? – Charlotte não deixou seu trabalho. Os jornais sempre exageravam. Quem se deteria em um frio dia de janeiro para comprar um jornal que contasse vulgaridades?

– Mas, senhora – disse Gracie, escandalizada por sua indiferença –, falo a sério! É espantoso! Fizeram-lhe em pedaços uma parte que uma senhora nem sequer deveria conhecer! Pelo menos não poderia nomeá-la e seguir chamando-se a si mesma senhora. Os jornais têm razão, senhora. Um terrível maníaco anda solto pela Devil's Acre, e pode ser que também os pregadores tenham razão e tenha vindo o fim do mundo e seja Satã em pessoa! – Gracie empalideceu quando semelhante aparição se formou em sua mente.

–Tolices! – replicou Charlotte asperamente. Devia tomar cuidado se não quisesse achar-se com um caso de histeria entre mãos –. Vamos ver, me dê os jornais e vá preparar as verduras ou não teremos nada que jantar. Com este tempo, se o senhor voltar para casa e não houver nada quente para lhe oferecer, não será pequeno seu mau humor.

A ameaça caiu em saco roto. Embora Gracie sentisse um imenso respeito por Pitt, pois ao fim e ao cabo era o amo e, além disso, policial e, portanto representava à lei, e sabia coisas fascinantes e perigosas, as coisas mais escandalosas, pior ainda que nos jornais! Mesmo assim não lhe tinha medo. Pitt não era o tipo de pessoa que punha a uma criada na rua por descuidar uma comida, e Gracie sabia muito bem.

– É horrível, senhora – repetiu, meneando a cabeça para demonstrar seu desassossego –. Quer que ponha a couve esta noite, ou os nabos?

– As duas coisas – respondeu Charlotte com ar ausente, absorta na leitura dos jornais.

Gracie voltou para a cozinha enquanto refletia sobre os acontecimentos da manhã. Para ela era uma grande satisfação trabalhar para uma senhora, uma autêntica senhora, não uma dessas adventícias que se achavam melhores do que eram, mas uma senhora que tinha nascido entre a flor e nata da sociedade. Charlotte tinha crescido em uma casa com criados, um autêntico serviço doméstico, um mordomo com uma despensa a seu cargo, e cozinheira, ajudante de cozinha, camareiras, criadas e lacaios. Nenhuma de suas irmãs nem de suas amigas tinha uma senhora assim! Gracie desfrutava de certa consideração por esse motivo, e podia ensinar às outras garotas como deviam fazer as coisas corretamente.

É claro Charlotte tinha descido vários degraus na escala social depois: um policial não era um cavalheiro, todo mundo sabia. Mesmo assim, às vezes era tão emocionante! As histórias que poderia contar ela se quisesse! Mas claro está que tais coisas eram melhor insinuar que contar com detalhe. Ela sabia a quem devia lealdade.

Para ser sincera, não aprovava de todo que sua senhora se envolvesse às vezes nas investigações da polícia. Em mais de uma ocasião se viu cara a cara com pessoas que tinham cometido crimes. Olhar a pessoas como essas, embora pertencessem à flor e nata da sociedade, não era próprio de uma senhora.

Gracie meneou a cabeça, jogou os nabos a pia e começou a lavá-los e cortá-los. Teria se equivocado muito se sua senhora não estava traçando um bonito plano para voltar a intrometer-se em algum assunto outra vez. Tinha esse ar inquieto característico, e manuseava as coisas e as deixava de novo ao meio, e escrevia cartas a sua irmã Emily, que agora era a viscondessa Ashworth. Essa sim tinha feito um matrimônio vantajoso, embora fosse muito agradável, ao menos as poucas vezes que Gracie a tinha visto. Charlotte espaçava mais suas visitas à suntuosa casa que sua irmã tinha no Paragon Walk. E quem podia reprová-la?

Os pensamentos de Gracie se tornaram devaneios, imaginando a casa de uma viscondessa. Sem dúvida teria a seu serviço bons lacaios, altos e bonitos, e com libré! Dissessem o que dissessem, a libré lhe sentava bem aos homens.

Quando Pitt voltou para casa à última hora da tarde, Charlotte tinha lido os jornais de cabo a rabo e aguardava-o com impaciência, porque o cadáver espantosamente mutilado havia sido descoberto na zona do Pitt, e sabia que era muito provável que a chamada que tinha recebido seu marido ao amanhecer estivesse relacionada com aquele assassinato.

Naturalmente, seria impossível oferecer sua ajuda naquele caso, por desgraça. Ela estava disposta a aceitar o desafio, a encarar inclusive o perigo de outra investigação, mas o cadáver se achara em um lugar do qual ela nada sabia, exceto por sua má fama, e Lambert Gardens, onde ao parecer tinha vivido aquele homem, não fazia parte do círculo social de sua família, por isso tampouco ali podia ser útil.

Entretanto, se seu marido estava disposto a falar do caso, possivelmente ela pudesse pôr a prova sua acuidade. Em outras ocasiões tinha mostrado certa destreza para adivinhar motivos, e a natureza dos seres humanos tinha muito em comum quaisquer fossem as circunstâncias.

A senhora Pitt se apressou a receber a seu marido assim que ouviu fechar a porta principal, antes inclusive que Gracie chegasse ali. Agarrou-lhe o casaco, pendurou-o para que se secasse e depois voltou para beijá-lo. Pitt tinha o rosto frio. Devia estar esgotado, pois tinham passado doze horas desde que se fora pela manhã sem tomar o café da manhã. O instinto disse ao Charlotte que refreasse sua curiosidade, ao menos até que ele tivesse acabado de jantar. Entrou a primeira na saleta, conversando sobre minúcias enquanto se esquentava frente ao fogo até que Gracie servisse o jantar.

Por volta das nove, a senhora Pitt considerou ter mostrado seu tato de maneira mais que suficiente.

–O agente que passou para buscá-lo esta manhã – começou –, vinha por causa do cadáver na Devil's Acre?

O inspetor esboçou um sorriso de condescendência. Estava acostumado a adivinhar as intenções de sua mulher quando esta pretendia ser sutil, por isso ela tinha optado por não esforçar-se. Entretanto, naquela ocasião não tinha tido tempo de preparar-se para abordar o assunto de um modo mais indireto.

– Sim – respondeu o inspetor –, mas Lambert Gardens, que é onde vivia o finado, não cai dentro do círculo social de sua família. Não pode me prestar nenhuma ajuda.

– Não, é claro que não – concordou ela, hábil em questões práticas –. Mas é impossível não sentir interesse pelo caso. Os jornais da tarde não falam de outra coisa.

Pitt fez uma careta.

– Tenha muito cuidado, Thomas – disse ela, variando seu plano de ataque –. Dá a impressão de que há um louco solto. Porque não é o tipo de crime que cometeria uma pessoa normal, não lhe parece? Além disso, o que acha que fazia alguém como o doutor Pinchin em Devil's Acre? Tinha consulta ali? Os jornais dizem que era um homem muito respeitável. – Ela não estava de todo convencida; tinha conhecido muitas pessoas "respeitáveis". O que em realidade significava aquele adjetivo era que, ou tinham a inteligência, ou a fortuna suficiente para manter uma excelente fachada atrás da qual possivelmente não houvesse nada.

Pitt sorriu com um olhar descofortável.

– Obrigado, querida, mas não é necessário que se preocupe por mim. Não penso rondar por Devil"'s Acre só. Não corro perigo de ser atacado por nenhum louco.

Ela vacilou em mostrar-se doída e fingir que a tinha interpretado mal, mas rapidamente decidiu que não serviria de nada.

– É claro que não – disse –. Talvez tenha sido um pouco idiota. Em minha opinião, o doutor Pinchin não era tão respeitável como sugerem os jornais. Ao fim e ao cabo devem ser muito cuidadosos com o que dizem, e o pobre homem acaba de ser assassinado. – Ergueu a vista com os olhos muito abertos e o olhar franco –. Tinha família?

– Charlotte!

– Sim, Thomas?

– Este é um caso no qual não pode colocar a mão – disse depois de um suspiro. – O doutor Pinchin não foi a única vítima, mas a segunda, e seja o que for o que está ocorrendo, a origem de tudo se encontra em Devil's Acre. O outro cadáver também foi achado ali. Não nos enfrentamos com um crime doméstico, Charlotte. Suas motivações não são do tipo que você tão bem adivinha.

– Outro cadáver? – perguntou ela, fazendo caso omisso do elogio. – Isso eu não sabia! Os jornais não dizem nada. Mantêm-no em segredo? Quem era?

Uma sombra de irritação cruzou fugazmente pelo rosto do inspetor. Charlotte não soube determinar se ela era a causa ou o eram as circunstâncias.

Pitt demorou uns segundos em responder, e o fez com tom resignado.

– Em realidade era alguém a quem você conhecia.

Um estremecimento de surpresa percorreu seu corpo, misturado com uma excitação da qual se envergonhou no mesmo instante em que a sentiu.

– Conhecia-o? – repetiu com incredulidade.

– Lembra-te do general Balantyne, do Callander Square?

A excitação se converteu em um horror que quase a enjoou. O aposento começou a dar voltas e Charlotte acreditou que ia desmaiar. Imaginar ao general, com seu orgulho feroz e reservado, sua solidão, sua veneração pelo dever... Como tinha descido tão baixo para morrer em Devil's Acre, e não em um ato de serviço nem em uma batalha, a não ser assassinado de tão espantoso modo?

– Charlotte...

Sem dúvida teriam que achar a forma de mantê-lo em segredo. Devil' s Acre era o último lugar da terra no que um homem como ele merecia morrer!

– Charlotte! – A voz do Pitt atravessou a barreira de seus pensamentos.

Ergueu a vista.

– Não é Balantyne! – disse com aspereza –, mas seu antigo lacaio, Max. Lembra-se do Max?

Pois claro! Como podia ter sido tão ridícula? Respirou fundo.

– Max, sim, claro que me lembro do Max. Um homem absolutamente detestável. Sempre tive a impressão de que podia ver-me através da roupa quando me olhava.

O rosto do Pitt deixou transparecer alarme, mas na hora olhou a sua mulher com olhos muito abertos e expressão regozijada.

– Uma maneira muito gráfica de expressá-lo! Não sabia que fosse tão observadora.

Charlotte notou que se ruborizava. Não tinha tido intenção de fazer saber a seu marido que compreendia muito bem tais olhares, sobre tudo se procediam de um lacaio. Uma senhora como ela não devia compreender tais coisas!

– Bom... – tentou explicar-se, mas desistiu.

Pitt aguardou, mas ela não quis meter-se em águas mais profundas.

– O que estava fazendo Max em Devil''s Acre? – perguntou –. Não imaginava que as pessoas que vivem nesses lugares tivessem lacaios.

– E não os têm. Dirigia um bordel, mais de um em realidade.

Charlotte não perdeu a compostura. Ao longo dos anos, de um modo ou outro, tinha acabado por aprender muito sobre as misérias da pobreza e sobre a prostituição tanto de adultos como de crianças.

– OH. –Recordou o rosto moreno do Max, com as pálpebras caídas e sua boca carnuda e sensual. O antigo lacaio sempre lhe tinha irradiado uma aguda sensação de poder físico, de um apetite inquietante. – Acho que esse tipo de coisa devia dar-se muito bem com ele.

Pitt a olhou com surpresa.

– Quero dizer... – explicou ela, mas trocou de opinião. Por que tinha que justificar-se? Talvez não soubesse tanto da vida como seu marido, mas tampouco era inocente de tudo –. Nesse caso não cabe dúvida de que teria um montão de inimigos – raciocinou –. Se era dono de vários estabelecimentos, iriam muito bem as coisas, e suponho que nesse tipo de comércio a gente não é muito escrupulosa quando se trata de eliminar à competição.

– Não muito – concordou ele com uma mescla de sentimentos desencontrados.

– Possivelmente o doutor Pinchin também dirigia um bordel – sugeriu Charlotte –. Algumas vezes pessoas muito respeitáveis têm propriedades em lugares como esse, sabe?

– Sim, sim – disse ele com tom cortante.

– É claro que sabe – disse ela interpretando seu olhar. – Sinto muito.

– Você não pode fazer nada neste caso, Charlotte. Não cai dentro de seu círculo.

– Não, é claro que não – disse ela com submissão. Naquele ponto não conseguiria nada insistindo, pois não lhe ocorria nenhum argumento que aduzir –. Realmente não sei nada sobre Devil's Acre.

Entretanto, na manhã seguinte, tão logo Pitt saiu de casa, Charlotte se dispôs a passar fora a maior parte do dia. Gracie, que preferia cuidar dos meninos antes que limpar a cozinha, encerar o chão do corredor ou esfregar os degraus de entrada, recebeu as instruções com entusiasmo... E uma tácita promessa de silêncio. Reconhecia uma conspiração quando a via, embora não a aprovasse de todo. A curiosidade de uma senhora devia limitar-se às aventuras sentimentais de outras pessoas, ao que tinha cada qual e a quanto custava, e até isso conservando sempre a dignidade. Um cavalheiro assassinado era uma coisa, e outra muito distinta um médico que dava consulta em Devil's Acre obviamente não se comportava como devia. Gracie tinha ouvido falar de lugares como aquele e do tipo de gente que os freqüentavam. Charlotte lhe disse que ia visitar sua irmã Emily, mas Gracie tinha sua própria opinião sobre o motivo real de sua visita. Sabia perfeitamente que tampouco lady Ashworth desdenhava intrometer-se em assuntos acidentados.

– Sim, senhora – disse com uma pulcra reverência –. Espero que tenha um bom dia, senhora. E que volte para casa sã e salva.

– É claro que voltarei para casa sã e salva! – Charlotte roçou uma cadeira com a saia ao passar e pegou o casaco que lhe estendia Gracie –. Só vou ao Paragon Walk.

– Sim, senhora, claro.

Charlotte a olhou de esguelha, mas já tinha falado bastante sobre discrição. Insistindo só conseguiria que aumentassem as suspeitas de Gracie.

– O que digo ao senhor? – perguntou a criada.

– Nada. Voltarei para casa muito antes que ele. De fato, se lady Ashworth tiver algum compromisso prévio, pode ser que volte para casa para comer.

Depois destas palavras saiu pela porta, desceu os degraus de entrada e caminhou com passo vivo para a esquina onde parava o ônibus.

 

Paragon Walk se erguia com elegância neoclássica sob o sol invernal. Charlotte andou com rapidez pela calçada e subiu o atalho de entrada até a porta principal de Emily. O lacaio a abriu antes que ela estendesse a mão para o puxador da campainha. Naturalmente, em uma casa bem ordenada, a janela da despensa dava ao atalho e assim os criados se antecipavam aos visitantes.

– Bom dia, senhora Pitt – disse o lacaio.

– Bom dia, Albert – respondeu ela com satisfação, aceitando o convite tácito a entrar. Era uma sensação muito agradável ser reconhecida com tanta facilidade; significava a ilusão momentânea de pertencer de novo a esse mundo.

–Lady Ashworth está ocupada com sua correspondência – disse o lacaio com tom quase familiar, enquanto a conduzia pelo amplo vestíbulo. Os retratos dos antepassados Ashworth cobriam as paredes, remontando-se à época das golas altas e calções isabelinos com chamativas pinceladas de cor –. Mas estou certo de que se alegrará de vê-la.

Charlotte conhecia a pouca afeição de sua irmã a escrever cartas e estava certa de que Emily se alegraria muito quando ouvisse as extraordinárias notícias que pensava lhe comunicar.

–A senhora Pitt, milady – disse o lacaio abrindo a porta da sala.

Emily se levantou antes inclusive que Charlotte tivesse entrado pela porta. Não era tão alta como sua irmã, e seus cabelos loiros se ondulavam em suaves cachos que Charlotte sempre tinha invejado. Avançou e abraçou ao Charlotte afetuosamente com o rosto iluminado pela alegria.

– Que maravilha que tenha vindo! Estou morta de aborrecimento de escrever cartas. São todas para as primas do George, e não posso suportá-las. Sério, Charlotte, as jovens que se apresentaram em sociedade esta temporada parecem ainda mais idiotas que as do ano passado. E sabe Deus que essas já o eram bastante! Não quero nem pensar como serão as do ano que vem! Como está? – virou-se para trás e contemplou ao Charlotte com olho crítico-. Tem um aspecto muito saudável para ir na moda. Deveria parecer frágil e delicada como um lírio e em troca parece uma grande rosa recém aberta! É o que se leva agora. E não sabe que é vulgar parecer tão excitada? O que ocorreu? Se não me disser isso, vou... – Não lhe ocorreu nenhum castigo apropriado, de modo que se sentou em uma cômoda cadeira frente ao fogo fazendo-se um novelo.

Charlotte ocupou o sofá, frente a ela, sentindo-se cômoda e reconfortada.

– Recorda os crimes do Callander Square? – começou perguntando.

– Mas bom! – exclamou Emily, sentando-se um pouco mais erguida e com olhos brilhantes –. Quem pode esquecer um crime? Por quê? Cometeu-se outro?

– Recorda a aquele horrível lacaio, Max?

– Vagamente. Por quê? Charlotte, por amor de Deus, deixe de mistérios! De que demônios está falando?

– Leu sobre assassinato do doutor Hubert Pinchin nos jornais?

– Não, é claro que não. – Emily se achava já quase na beira de seu assento com as costas rígidas como uma vela –. Já sabe que George não me deixa mais que as páginas de sociedade. Quem é Hubert Pinchin, e o que tem que ver com aquele desagradável lacaio? De verdade que às vezes é extremamente irritante!

Charlotte se reclinou entre as almofadas e contou tudo o que sabia.

– OH, Meu Deus, que repugnante! –disse Emily, espremendo seu vestido de seda nacarada. – Mas nunca gostei desse homem – acrescentou com franqueza –. Deixou aos Balantyne, não? E antes que acabasse aquele assunto, além disso.

– Sim. Ao que parece logo prosperou muito como alcoviteiro.

– Então – disse Emily, fazendo uma careta de repugnância-, não podia acabar mais que no arroio onde o acharam, e morto por uma prostituta.

–Acha que Deus tem senso de humor, ou seria uma blasfêmia pensar isso?

–Criou ao homem – respondeu Charlotte-. Pelo menos deve ter um acusado sentido do absurdo. Os jornais dizem que o doutor Pinchin era uma pessoa absolutamente respeitável.

– Então o que estava fazendo em Devil's Acre? Aceitava casos por caridade ou algo parecido?

– Não sei. Suponho que Thomas o descobrirá.

– Bom, qualquer homem diferente que queria fazer-se com os serviços de uma mulher da vida iria a um teatro de variedades ou ao Haymarket. Não se aventuraria em um subúrbio como Devil's Acre.

Charlotte se sentiu um pouco frustrada. O mistério se dissipava rapidamente ante seus olhos.

– Possivelmente as mulheres do Haymarket eram muito caras. Se Max dirigia um bordel ali seria porque havia clientes! Se o doutor Pinchin era um deles...

– Por que matá-lo? – Emily a interrompeu com uma irritante lógica –. Ninguém a não ser um idiota mataria a seus próprios clientes.

– Talvez o fizesse sua mulher.

– Em Devil's Acre? – perguntou Emily, arqueando as sobrancelhas.

– Pessoalmente não, idiota! Pode ser que pagasse a alguém para que o fizesse. Tem-se que odiar muito a uma pessoa e de um modo muito particular para lhe fazer isso.

–É claro – concordou Emily, cuja expressão perdeu a faísca de regozijo –. Mas, querida, todos os homens sem exceção fazem uso das mulheres da vida de vez em quando, e enquanto se comportem com discrição qualquer esposa com dois dedos de testa fará vista grossa. Se um homem não der explicações de onde esteve, para bem da própria felicidade é mais sensato não pedi-las.

À Charlotte não lhe ocorreu nenhuma réplica que não fora dolorosa ou ingênua. A pessoa tinha que enfrentar suas próprias verdades como melhor pudesse. Os pensamentos de Emily tomaram outros roteiros.

– Parece mentira que esse horrível lacaio haja tornado a aparecer de novo. Sempre me fez sentir-me desconfortável. Pergunto-me quem lhe proporcionaria o dinheiro para abrir um bordel. Quer dizer, quem era o dono da propriedade e pagou para abrir um estabelecimento. Possivelmente o doutor Pinchin?

Uma idéia muito mais desagradável abriu passagem na mente de Charlotte, associada às lembranças da mansão Balantyne, aos crimes e o medo do passado, e à súbita e sigilosa partida do Max.

– Sim – disse bruscamente –. Sim, é muito possível. Acredito que será isso o que Thomas descubra.

Emily a olhou com olhos entrecerrados e uma sombra de suspeita, mas não insistiu nesse ponto.

–Ficará para almoçar?

Enquanto Charlotte se preparava para sua visita ao Emily, Pitt desembarcava da carruagem de aluguel frente aos 23 do Lambert Gardens. Era uma grande casa com uma bonita fachada, mas naquele dia, claro as cortinas estavam jogadas, as janelas estavam cobertas por negra braçadeira de luto e havia uma coroa fúnebre na porta. O efeito causado era de uma peculiar cegueira.

De nada serviria adiar o inevitável; Pitt ergueu a mão e bateu na porta com os dedos. Passaram uns minutos antes que a abrisse um lacaio com expressão desventurada. A recente tragédia havia o tornado torpe; não sabia o que se esperava dele, quanta pena devia mostrar, sobre tudo dado o grotesco das circunstâncias. Talvez devesse fingir que não passava nada. Ao fim e ao cabo, o que podia dizer ele? O ajudante de cozinha já tinha dado aviso de que partia, e ele estava pensando em fazer o mesmo.

– A senhora Pinchin não recebe visitas – disse apressadamente, sem reconhecer ao Pitt –. Mas se quer deixar seu cartão, tenho certeza de que aceitará suas condolências.

– Sou Thomas Pitt, da polícia. Certamente desejo transmitir os pêsames à senhora Pinchin, mas receio que também será necessário falar com ela.

O lacaio mostrou lastimosamente sua indecisão, incapaz de determinar qual de seus deveres era o mais importante: por um lado, proteger a santidade do luto de uma áspera invasão por parte de uma pessoa como Pitt, e pelo outro, sua indubitável lealdade à majestade da Lei.

–Talvez se chamasse o mordomo... – sugeriu Pitt com tato –, e me permite que entre enquanto espero... Não é necessário atrair a atenção dos criados dos vizinhos, nem provocar suas fofocas.

–OH... Sim, senhor... Sim. Farei isso. Me acompanhe, senhor.

Conduziu ao Pitt pelo vestíbulo, no qual havia um fraco aroma de dechado. Os espelhos estavam cobertos de negro como as janelas. Havia um ramo de lírios em um vaso sobre um pedestal; pareciam artificiais, mas eram autênticos, e sem dúvida extremamente caros naquela época do ano.

O lacaio deixou Pitt em uma sala com a lareira enlutada e sem fogo, imersa na penumbra. Parecia como se os habitantes daquela casa estivessem resolvidos a arrumá-la de maneira que imitasse o gelo da tumba, embora o cadáver de seu amo não pudesse repousar nela.

Instantes depois entrou Amaciam, o mordomo, com seus esparsos cabelos ruivos penteados para trás e a determinação pintada no rosto.

– Sinto muito, senhor Pitt. – Meneou a cabeça –. Receio que a senhora Pinchin não poderá recebê-lo até dentro de meia hora. Talvez queira uma xícara de chá enquanto espera? Hoje o tempo está inclemente.

Pitt começou a sentir menos frio. Respeitava a aquele homem que conhecia seu trabalho e parecia desempenhá-lo com grande eficiência.

– Pois sim, obrigado, senhor Amaciam. E se seus deveres o permitem, concede-me um pouco de tempo?

– Certamente, senhor. – Puxou o cordão da campainha e, quando acudiu o lacaio, pediu chá e duas xícaras. Não teria tomado a liberdade de tomar chá se o visitante fosse um cavalheiro, e a um comerciante o teria levado a cozinha, mas considerava que Pitt se achava mais ou menos em sua mesma posição social, o que este compreendeu que era uma espécie de cumprimento. Em muitos sentidos um mordomo era o autêntico senhor de uma casa e dirigia ao resto do pessoal, às vezes composto de uma dúzia ou mais criados de menor categoria. Também ocorria às vezes que era mais inteligente que o amo e, certamente, inspirava maior temor entre a criadagem.

– Faz muito que serve nesta casa, senhor Amaciam? –perguntou com tom amistoso.

– Onze anos, senhor Pitt. Antes estive com lorde e lady Fullerton, no Tavistock Square.

Pitt sentiu curiosidade pelo motivo que o tinha levado a abandonar um emprego na aparência de maior categoria, mas não soube como perguntar-lhe sem ofendê-lo. Profissionalmente falando, semelhante pergunta seria uma estupidez de sua parte, além de ir contra a estima que sentia pelo mordomo.

Amaciam lhe deu a resposta por vontade própria, talvez porque não desejava que se receasse de sua capacidade.

– Adquiriram o costume de passar o inverno no Devon. –Uma sombra de desgosto cruzou por seu rosto –. Eu não gostava do lugar, e não sentia o menor desejo de permanecer ocioso em uma casa vazia com o pessoal mínimo durante vários meses ao ano.

– Certamente – comentou Pitt compreensivamente. Uma casa senhoril nos condados mais próximos a Londres seria algo muito diferente, com bailes, caçadas e convidados no Natal, sem dúvida. Mas um retiro à solidão e o silêncio do Devon supunha uma espécie de exílio –. E suponho que o doutor Pinchin era um homem interessante, não? – acrescentou, medindo o terreno.

Amaciam sorriu cortesmente. Era muito honrado para falar sobre os amplos e íntimos conhecimentos que tinha adquirido na casa dos Pinchin. Em sua opinião, os mordomos que traíam a confiança de seus amos eram desprezíveis e uma desonra para sua profissão. Fingiu ter entendido mal a pergunta, coisa que Pitt sabia muito bem.

– Sim, senhor, embora em geral não prestasse seus serviços profissionais nesta casa. Tinha consultório no Highgate. Mas certamente deviam jantar alguns distintos cavalheiros de vez em quando.

– Sim?

Amaciam mencionou os nomes de vários médicos e cirurgiões eminentes. Pitt os anotou mentalmente para visitá-los mais adiante se por acaso podiam acrescentar alguma coisa ao retrato que se estava formando do Hubert Pinchin, embora por experiências passadas sabia que todos os profissionais tendiam a defender a seus colegas até os extremos mais ridículos. Entretanto, sempre cabia a esperança de dar com uma língua solta por causa de ciúmes pessoais ou profissionais.

O mordomo lhe informou sobre os costumes do Pinchin, sobre tudo que voltava muito tarde a casa de noite com bastante freqüência. Não era estranho que passasse toda a noite fora. Não ofereceu mais explicação que a discreta hipótese de que a enfermidade não se limita a apresentar-se às horas mais convenientes.

Pouco depois a criada da senhora bateu na porta. Sua ama estava pronta para falar com o senhor Pitt, se tivesse a amabilidade de passar a saleta do café da manhã.

Valeria Pinchin era uma mulher de estatura wagneriana, peito empolado, olhos azuis e uma onda de cabelos descolorados sobre a larga fronte. Vestia-se de luto inteiramente, como correspondia a uma viúva recente e desconsolada não só pela morte prematura de seu marido, mas também pela espantosa notoriedade da natureza da mesma. Estava pálida e seu rosto mostrava uma determinação sombria e defensiva. Olhou ao Pitt com cautela.

– Bom dia, senhora – começou ele com a reverência apropriada a aquelas circunstâncias e certa compaixão sincera-lhe rogo que aceite meus mais sentidos pêsames.

– Obrigada – respondeu ela com uma muito leve inspiração e erguendo o queixo. – Sente-se, senhor... Senhor Pitt.

O inspetor o fez frente a ela do outro lado da mesa. A senhora tomou um gole de chá sem lhe oferecer uma xícara. Ao fim e ao cabo, a polícia não era mais que uma necessidade desagradável, parte dos adornos que acompanhavam ao sórdido desastre que se abatera sobre ela, como um caçador de ratos ou o limpador de chaminés. Não era necessário tratá-lo como a um igual.

– Sinto muito, senhora, mas é meu dever lhe fazer umas perguntas.

– Não posso lhe dizer nada que o ajude. – Olhou-o fixamente, ofendida inclusive pela insinuação –. Não suporá que eu sei algo de tão inqualificável... – interrompeu-se, incapaz de achar uma palavra com a dureza necessária.

– É claro que não. – Não seria fácil que Pitt chegasse a gostar daquela mulher. Teve que fazer um esforço e recordar a outras vítimas de alguma tragédia, e as diferentes maneiras em que cada qual tentava proteger-se da própria dor.

A senhora Pinchin se aplacou um pouco, mas seus olhos continuavam lançando faíscas e seu negro peitilho subia e baixava ao ritmo de sua indignação.

– Pode você me ajudar a conhecer melhor a seu marido – continuou Pitt, voltando a tentar –. E, portanto, a descobrir quem podia considerar-se inimigo dele. – queria ser educado, mas finalmente os fatos deviam ser analisados até sua explicação lógica. Hubert Pinchin tinha sido assassinado. Alguém tinha acreditado que tinha razões para fazê-lo, porque um simples ladrão não castrava a suas vítimas.

A senhora Pinchin ia dizer algo, mas mudou de opinião e tomou outro gole de chá.

Pitt aguardou.

– Meu marido era... – Era claro que lhe era difícil expressar seus pensamentos sem desvelar uma parte de sua vida muito íntima e dolorosa para que a reconhecesse, e muito menos a mostrasse, ante aquele... Policial –. Era um homem excêntrico, senhor Pitt – disse –. Praticava a medicina entre certas pessoas muito peculiares. Não digo chamá-las "indignas". – Inspirou uma vez mais –. Não quero ser injusta com os menos afortunados, mas meu marido poderia ter tido uma carreira brilhante, compreende? Meu pai... – ergueu o queixo –, era o doutor Albert Walker-Smith. Sem dúvida terá ouvido falar dele.

– Um homem muito reconhecido, senhora – mentiu Pitt.

A expressão dela se suavizou e ele temeu por um momento que fosse requerido algum comentário oportuno. Não tinha a menor idéia de quem tinha sido Albert Walker-Smith, salvo que obviamente a viúva teria desejado que seu marido fosse como ele.

– Diz você que o doutor Pinchin era um excêntrico, senhora – continuou Pitt –. Devia-se a alguma outra coisa, além do fato de que não se beneficiasse de todas as possibilidades de sua carreira?

– Não estou certa do que quer dizer, senhor Pitt – respondeu ela espremendo um guardanapo com suas grandes mãos –. Não tinha maus costumes, se isso quer dar a entender! – Atrás de suas palavras se escondiam todas as aberrações adivinhadas apenas, todas as práticas que sua ignorância feminina conjurava das escuras curvas da imaginação.

Pitt a olhou desesperançado. A senhora Pinchin se protegia atrás de uma couraça de dignidade e estava tão pendente das formalidades do luto que ele compreendeu que não conseguiria nada com aquele previsível interrogatório. Os pensamentos daquela mulher discorriam por leitos tão estreitos como os de um antigo rio que desembocasse em um mar destinado desde longo tempo atrás.

– Gostava do queijo Stilton? – perguntou por fim.

As finas sobrancelhas da senhora se arquearam e seu tom soou seco quando respondeu:

– Perdão?

Pitt repetiu a pergunta.

– Sim, gostava, mas me ofende com uma pergunta tão corriqueira, senhor Pitt.

Um monstro enlouquecido atacou e assassinou o meu marido do modo mais... – seus olhos se inundaram de lágrimas e teve que engolir em seco – do modo mais inqualificável, e você se sente aqui, em sua casa, e me pergunta se gostava de queijo!

– Não é uma pergunta corriqueira, senhora – replicou fazendo um esforço por ser paciente. Não era culpa dela comportar-se como o fazia; os valores sociais e a dignidade eram sua única defesa contra tão espantosos temores-. Tinha restos de queijo Stilton na roupa.

– OH. – Adotou um tom enrijecido –. Desculpe. Suponho que conhece seu ofício. Sim, meu marido era muito aficionado aos prazeres da mesa. Sempre comia muito bem.

– Pareceu-me que dizia que seu marido oferecia parte de seus serviços caritativamente.

– Trabalhava muito sem nenhum proveito! – replicou ela transbordando um súbito ressentimento –. Esbanjava a maior parte de seu tempo com pessoas que não... Que não o mereciam. Se procurar rivais de profissão, senhor Pitt, está perdendo o tempo. Meu marido tinha muito talento, mas nem sequer se deu conta. – Sua voz delatava anos de decepção, de oportunidades vislumbradas e perdidas.

– Não obstante, soube que era muito respeitado. –Pitt se debatia entre a antipatia que lhe produzia aquela mulher e certa piedade pela frustração que a embargava. A senhora Pinchin se viu atada a um homem que não tinha sabido estar a sua altura, sem possibilidade de escapatória. O médico tinha tido os sonhos de sua mulher ao alcance da mão, e os tinha rechaçado.

– OH, sim – respondeu ela depois de suspirar –, de certa maneira sim. Era um homem muito divertido, compreende? Gostava às pessoas. –Ergueu um pouco a voz, denotando certa surpresa. Aquele era um fato que não compreendia, e que possivelmente não compartilhava conscientemente; sua decepção era muito grande para que achasse divertidos os pecadinhos de seu marido. – E de vez em quando realizava algum diagnóstico brilhante. Essa era sua especialidade, sabe? A diagnose.

– Ocorre-lhe algo que possa nos ajudar? – perguntou Pitt voltando para o assunto. – Conhece alguém que pudesse lhe guardar ressentimento? Um antigo paciente, possivelmente? Alguém que não pudesse aceitar a morte de um parente e culpasse ao médico? Notou algo estranho no comportamento do doutor Pinchin ultimamente, ou sabia de algum novo conhecido que se saísse do normal?

– Meu marido não trazia seus amigos menos respeitáveis a esta casa, senhor Pitt. – Apertou os lábios –. A certas pessoas atendia em outra parte, como sem dúvida compreenderá. E não notei nada estranho em seu comportamento, era o de sempre. – Uma expressão de desdita escureceu seu rosto, uma mescla de desaprovação pelos costumes do finado e uma sensação de solidão por sua perda. Apesar de seus defeitos e seus irritantes hábitos, acostumara-se a ele; tinha ele tido a seu lado durante trinta anos. Agora não ficava nada.

Por um momento, Pitt se compadeceu dela, mas sabia que o abismo existente entre os dois era muito largo e que não poderia transpôr. Sua simpatia não mitigaria a dor da senhora Pinchin; muito ao contrário, para ela seria uma presunção.

– Obrigado por sua ajuda – disse Pitt, levantando-se –. Espero não ver-me obrigado a incomodá-la de novo. Tenho certeza de que o senhor Amaciam poderá me ajudar em tudo o que preciso saber.

– Bom dia, senhor Pitt.

Contemplou ao inspetor com frieza até que ele chegou à porta. Depois pegou o bule e se serviu de outra xícara, levando primeiro o guardanapo à boca e depois enxugando-as lágrimas que lhe corriam pelas faces.

Pitt fechou a porta com suavidade. No vestíbulo o aguardava Amaciam.

– Necessita algo mais, senhor?

– Sim, por favor – disse Pitt depois de um suspiro. Queria que me mostrasse as contas da casa e a adega. Suponho que você aprovou a todos os membros do pessoal antes que fossem contratados e que comprovou suas referências.

– Por certo – respondeu Amaciam, enrijecendo-se e adotando expressão séria –. Posso lhe perguntar que espera achar, senhor Pitt? As contas estão em ordem, asseguro-lhe. E o pessoal está acima de toda duvida quanto à honestidade e moralidade, do contrário, não continuariam aqui. E se supuser que algum possa sair de noite, posso afirmar que isso é impossível.

Pitt lamentou tê-lo ofendido. Em realidade não suspeitava de nenhum dos criados. O que procurava eram provas do nível de vida do Pinchin, julgando-o por seus gastos. Normalmente um homem de sua classe não iria à Devil's Acre, nem sequer em busca de entretenimento barato. Era sua situação financeira muito pior do que aparentava, ou muito melhor do que a prática de sua profissão podia justificar? Gastava dinheiro em bordéis ou casas de jogo? Ou ganhava? Não seria o primeiro homem de fachada respeitável que obtinha ganhos de propriedades nos subúrbios.

– É uma simples rotina, senhor Amaciam – disse com um sorriso –. Da mesma forma que você comprova as referências, embora não duvide delas.

Amaciam relaxou um pouco. Respeitava a minuciosidade no trabalho.

– Certamente, senhor Pitt. Estou familiarizado com os procedimentos policiais. Se me acompanhar...

Depois de sua visita à casa dos Pinchin, Pitt dedicou a tarde a comprovar as consultas médicas do Highgate e a falar com colegas do doutor escandalizados e muito reticentes. Quando chegou a casa às sete, estava cansado, transido e sabia pouca coisa. Se Pinchin possuía alguma propriedade em Devil's Acre, não tinha deixado o que constasse escrito, como tampouco de nenhuma outra transação fora de sua consulta médica. Não obstante, seu nível de vida sugeria que seus ganhos eram superiores aos que podia lhe proporcionar sua consulta. Uma herança? Economias? Presentes? Talvez falseasse os livros de contabilidade? Ou possivelmente chantageava pacientes por indiscrições que requeriam cuidados médicos, como enfermidades sociais ou um filho não desejado? As possibilidades eram muitas.

Gracie abriu a porta ao inspetor e lhe pegou o casaco para pendurá-lo na dispensa até que secasse.

– Uma noite terrivelmente úmida, senhor – disse, sacudindo o grande casaco como se fosse uma manta, o que esteve a ponto de fazê-la perder o equilíbrio. Depois se foi murmurando para si sobre o horário que se via obrigado a cumprir com sol e com chuva. Nenhuma só vez olhou ao inspetor nos olhos. Por alguma razão compadecia-se dele , e o modo em que caminhava, rígida como um pau, indicava sua desaprovação.

Pitt não demorou em atar fios quando Charlotte se mostrou solícita e carinhosa, e não deixou de conversar pelos cotovelos.

– Saiu? – perguntou-lhe.

– Só um momento – respondeu ela com desenvoltura –. Voltei para casa antes que começasse a chover. Em realidade não foi desagradável.

– E sem dúvida voltou na carruagem.

Ela ergueu a vista com vivacidade e um suave rubor tingiu suas faces.

– Carruagem?

– Não foi ver Emily?

– Como adivinhou? – respondeu com uma reticente expressão admirativa.

– Pelas costas do Gracie.

– Como?

– Pelas costas de Gracie. Caminha rígida como um pau quando não aprova alguma coisa. Como acabo de chegar a casa, não pode ser por algo que tenha feito eu. Deve ser por você. Suponho que foi uma visita ao Emily para lhe contar tudo o que sabe sobre os assassinatos em Devil's Acre, sobre tudo porque uma das vítimas era um lacaio a quem conheceram. Bem, me diga, equivoco-me?

– Eu...

Pitt aguardou.

– É claro que falamos sobre isso! – Tinha os olhos brilhantes e as faces acesas –. Mas isso é tudo... Juro! Além disso, que outra coisa poderíamos fazer? É impossível que vamos a um lugar semelhante. Mas é verdade que nos perguntamos que demônios fazia ali o doutor Pinchin. Há lugares melhores para achar mulheres licenciosas, se isso era o que procurava, sabe?

– Sim, sei, obrigado.

Charlotte o olhou nos olhos um instante, mas os afastou com fingida inocência.

– Pensou que talvez fosse ele quem deu o dinheiro ao Max, Thomas? Sabe, por improvável que pareça exteriormente, algumas pessoas se associam com...

– Sim, obrigado – replicou ele. Um sorriso lutava para aparecer em seus lábios –. Também eu o pensei.

– OH. – Pareceu decepcionada.

Ele a pegou pela mão e a atraiu para si.

– Charlotte – disse com suavidade.

– O que?

– Não se meta nisto!

 

No dia seguinte Pitt seguiu a linha de investigação mais óbvia. Vestiu seu casaco mais velho e um chapéu tão velho que normalmente nem sequer ele o usaria, e partiu sob uma fina chuva em direção à Devil's Acre para procurar os estabelecimentos do Max, ou ao menos um deles.

A zona era como tantos outros subúrbios antigos de Londres: uma curiosa mescla de sociedades que viviam literalmente umas em cima das outras. Nas casas mais altas e formosas, cujas fachadas davam às ruas iluminadas, viviam prósperos comerciantes e financeiros. Debaixo, em casas menores de ruas menos principais, achavam-se as habitações de aluguel para empregados de escritório e lojistas. Por debaixo deles, em casas baixas e sórdidas, achavam-se as péssimas moradias e porões dos mais pobres, tão amontoadas às vezes que duas ou três famílias compartilhavam um só quarto. O fedor do lixo e os resíduos humanos eram insuportáveis. Os ratos proliferavam de tal modo que podiam comer vivo a um bebê desatendido. E morriam mais meninos de fome dos que chegavam aos seis ou sete anos, momento no qual podiam ingressar com proveito em uma das escolas para ladrões e aprendizes de ladrões.

Em meio desse labirinto de ruelas se achavam as fábricas onde se explorava aos operários; as habitações nas que advogados ou estagiários arruinados redigiam declarações juradas, livros de contabilidade e faturas falsas, onde os falsificadores praticavam sua arte, e onde levavam a cabo seu comércio os receptores de mercadorias roubadas. E, é claro, havia destilarias de genebra, pensões de má fama e bordéis, e informantes da polícia.

Por cima de tudo se erguia a sombra das grandes torres da abadia do Westminster, catedral onde se coroava aos reis, sepulcro do Eduardo o Confessor antes que o normando Guillerme chegasse com suas naves da França para derrotar o rei saxão e apoderar-se da Inglaterra. E mais à frente se achava o Big Ben, o palácio do Westminster, berço do parlamento da época do Simon do Montfort, seiscentos anos atrás.

Pitt não esperava achar respostas naquele ninho infestado de ratos. A polícia era o inimigo natural e, naquele formigueiro reconheciam a um de fora como um cão reconhece a outro, por sentidos muito mais sutis que a visão. Em ocasiões anteriores tinha feito algumas prisões na zona, mas também tinha deixado que alguns escapassem. Tinha amigos, ou se não amigos, ao menos quem sabia o que mais lhes convinha.

Pitt caminhava pelas ruelas cinza, observado com avessas intenções por jovens ociosos e de expressão áspera. Encurvou as costas, imitando o passo furtivo de quem conhece as penúrias, mas não se voltou para olhá-los, pois do contrário cheirariam o medo e o perseguiriam como uma matilha. Seguiu andando como se soubesse aonde ia, como se as estreitas ruelas – que às vezes só permitiam passar a dois homens ao mesmo tempo – fossem tão familiares para ele como sua própria casa.

O piso de madeira podre rangia a sua passagem. Uma dúzia de ratos se dispersou ao aproximar-se ele, fazendo ruído sobre as pedras molhadas. Nos portais havia velhos bêbados caídos, ou talvez mortos.

Demorou meia hora para achar o homem que procurava em uma água-furtada desconjuntada que lhe servia de oficina: Pichon5 Harris, assim chamado por sua voz aguda e gritante. Era um homenzinho de olhos pequenos e nariz pronunciado, bastante parecido a um rato, disse-se Pitt. Só lhe faltava a cauda longa e sem cabelo. Era um falsificador, de cartas de recomendação, de papéis legais.

– O que quer de mim? – perguntou com agressividade –. Não fiz nada e não poderá provar nada!

– Nem o tento, Pichon – replicou Pitt-. Embora possivelmente pudesse se me pusesse nisso.

– Não! – Pichon desprezou a possibilidade com um gesto depreciativo, mas seu rosto miúdo e perspicaz delatava inquietação –. Não, nem pensar!

– Isso não saberemos se não o tentamos – indicou Pitt.

– Pois o que quer então? À Devil's Acre não se vem por motivos de saúde!

– Informação, é claro. – Pitt o olhou com certo desprezo. Sem dúvida Pichon já imaginava; sua farsa era uma perda de tempo.

– Não sei nada de nenhum crime!

– É claro que não. É um cidadão modelo que ganha uns pennies escrevendo cartas para os que não podem fazê-lo por si mesmos.

– Isso, você o disse! –Pichon assentiu vigorosamente.

– Mas conhece muito bem Devil's Acre.

– Pois claro, eu nasci neste maldito lugar!

– Ouviu falar de um fanfarrão chamado Max? E não me minta, Pichon, ou o prenderei por ocultar informação sobre um assassinato. Este é um assunto feio.

– OH, Meu Deus! Quer dizer que aquele pobre diabo era...? OH, Deus! – Empalideceu sob a imundície de seu rosto-. OH, Deus!

– E então? O que sabe do Max?

– Não sei quem o matou, juro, senhor Pitt. Algum maníaco! Quem faria isso a um homem? Não é decente!

– É claro que não sabe quem o matou – concordou Pitt com um sorriso tolerante. – Senão, teria vindo nos dizer naturalmente.

– Naturalmente – disse Pombinho, fugindo seu olhar com nervosismo. Parecia-lhe que Pitt zombava dele, mas não quis comprová-lo –Juro –acrescentou.

– O que sabe sobre Max? Como era?

– Muito bom – respondeu Pombinho a contra gosto. O proxenetismo dava mais dinheiro que as pequenas falsificações, e certamente também proporcionava mais diversão –. Esse sim tinha um talento natural para esse tipo de coisas! – Não quis exagerar seus louvores. Ao fim e ao cabo, Max não poderia fazer uma boa falsificação para salvar-se a si mesmo.

De fato, Pinche duvidava que soubesse escrever algo legível! Requeria-se uma grande habilidade para escrever bem, habilidade que não devia ser subestimada.

Recordando o rosto de feições sensuais e os olhos negros, ao Pitt não custou imaginar que Max tivesse tais dotes.

–Sim – disse –. Isso ouvi. Tinha várias casas, não é verdade?

– Já sabia, né? – respondeu Pichon, observando-o com cautela.

– Sim. Que tipo de clientes tinham suas garotas?

– Depende da casa de que fale. Se se referir a do Partridge Lane, bom, qualquer que pagasse seu preço. Umas autênticas criadas, isso é o que se oferece ali. Mas se se refere a do George Street, bom, é totalmente diferente. Algumas das dali têm autêntica classe. Conforme ouvi, acudiam cavalheiros com dinheiro suficiente para pagar a damas de linhagem, como se disséssemos. – Esboçou um sorriso malicioso, deixando descobertos uns dentes marrons. Era evidente que aquela idéia o divertia como uma espécie de vingança obscena contra a sociedade que o tinha marginalizado.

– Damas de linhagem, né? – Pitt arqueou as sobrancelhas. Aquilo parecia promissor. Fulminou Pinche com um olhar suspicaz –. Damas de linhagem? – repetiu com cepticismo.

– Isso foi o que disse, acredite ou não. – Pichon se deu conta de que tinha conseguido intrigar ao Pitt, e desfrutava com isso. – Possivelmente teria que procurar a seu assassino por aí. Não te mescle nunca com a nobreza, é a regra de ouro. Não estão acostumados a que os chateiem e tomam muito a peito; podem ser perigosos. Limite-se aos seus e não virá nenhum desses que não conhecem as regras e vão por aí desprezando-o e cravando punhaladas em seu estômago. Embora o que fizeram ao Max não tem desculpa, senhor Pitt, de verdade que não. Não sei aonde chegaremos se vocês os policiais não fizerem algo!

– Foi repugnante – concordou o inspetor, dissimulando um sorriso –. Mas um homem ciumento pode chegar a extremos terríveis se alguém lhe tirar à mulher e depois a vender a outros homens como puta.

Pichon suspirou. Não tinha mulher nem filhos, mas algumas vezes sonhava com uma família, com uma mulher cujo calor não tivesse que comprar de um modo ou outro; alguém que se fizesse querer com o tempo, uns filhos que o tratassem com respeito; qualquer homem deveria ter isso, ao menos durante um tempo.

– Acredito que tem razão, senhor Pitt – disse lentamente –. Não se misture jamais com a família de outro homem; essa é outra das regras que deveria estar escrita em ouro. Além disso, me parece que o de caçoar não é uma ocupação muito saudável. As mulheres são uma mercadoria perigosa de dirigir, para não falar das necessidades privadas de um homem, que podem ser muito estranhas entre os cavalheiros, conforme ouvi dizer. Contam-se umas histórias! Os papéis são melhores para vender. Com os papéis sempre se sabe onde pisa. A gente não perde a presilha por uns papéis.

Pitt não se incomodou em discutir.

– E essa casa mais cara de Max está no George Street?

– Não acabo de dizer? – Pichon demonstrava a mesma paciência que um professor com um escolar estúpido.

– Sim, obrigado. – Pitt remexeu no bolso e tirou um xelim. Deu-o a Pichon, cuja mão suja o pegou com presteza.

Levou a moeda à boca e a mordeu com força. Satisfeito, a meteu no bolso.

– Obrigado, senhor Pitt.

– Não saia de Devil's Acre advertiu o inspetor –. Se me mentiu voltarei para esfolá-lo!

– Eu não lhe mentiria, senhor Pitt! – exclamou Pinche, estupefato –. Não me serviria de nada, não? Você voltaria e me arruinaria. Não é bom para o negócio ter os policiais rondando por aqui e fazendo perguntas. Dá má reputação a casa!

Pitt soltou um grunhido e saiu da casa. Passou junto à madeira podre do pátio, junto a um montão de lixo e dois bêbados na sarjeta. Caminhando com pressa sob a chuva logo chegou ao George Street. Aquela parte de Devil's Acre era mais saudável; andando se achava a uns minutos do Parlamento.

Max tinha certamente um dom especial. Se tinha conseguido fazer-se com os serviços de várias "damas de linhagem", como dizia Pichon, e três ou quatro putas atraentes e peritas em seu ofício, teria se convertido em um homem muito rico em poucos anos.

Pitt achou a casa sem dificuldades. Um homem que perguntasse por um lugar como aquele não chamava a atenção, e os que estavam dispostos a indicar o caminho freqüentemente recebiam uma recompensa dos proprietários dos estabelecimentos.

Aquela casa em concreto tinha uma fachada anódina, inclusive um pouco suja. Podia ser tomada por uma das numerosas pensões da zona. O anonimato era parte necessária daquele negócio.

O interior, entretanto, ostentava um estilo diferente. O vestíbulo de entrada era de uma discreta elegância. Pitt recordou que Max tinha servido em casas distintas de damas e cavalheiros cujo gosto era o fruto de várias gerações com dinheiro e educação. Aquelas pessoas conheciam os mestres da pintura e do mobiliário de um modo tão instintivo como sabiam construir uma frase gramatical ou caminhar com a cabeça alta e uma ondulação muito leve dos quadris.

Mais à frente do vestíbulo se achava a sala de espera principal. Não havia nada ostentoso nem vulgar. Sua sensualidade era feita de tons suaves como contraste à facilidade com que os móveis e os quadros se complementavam. O prazer que proporcionava a sala também era tateante: suaves veludos, um groso tapete sobre o qual não se fazia o menor ruído, quase como se caminhasse sobre erva. Certamente Max possuía talento!

Saiu para lhe receber um homem com libré que, por sua atitude, parecia entre lacaio e mordomo. Era evidente que ele decidia a quem lhe permitiria converter-se em cliente e a quem lhe indicaria com tato que se dirigisse a outro estabelecimento.

– Boa tarde, senhor. – Observou as roupas do Pitt e, com uma mudança de expressão quase imperceptível, deduziu que não era provável que pudesse pagar as tarifas da casa. Entretanto, tinha muita experiência para desfazer-se dele imediatamente. Às vezes, alguns cavalheiros distintos e de grande fortuna vinham disfarçados da maneira mais extravagante.

– Boa tarde. – Pitt adivinhou os pensamentos do homem e lhe seguiu a corrente com um toque de humor, fazendo demonstração de suas mais corteses maneiras –. Me recomendaram este lugar. – Não esqueceu de endireitar os ombros, como se as roupas desarrumadas que trazia não fossem mais que um esforço por parecer um dos habitantes de Devil's acre, o que em realidade eram, mas por um motivo totalmente diferente. – Vários de meus amigos me comentaram – podia considerar Pichon Harris um amigo – que têm vocês senhoras de uma qualidade imensamente superior a seus competidores.

O homem relaxou sua expressão e decidiu que Pitt era um cavalheiro. Sua voz, e não suas roupas, traíam seu status: sua perfeita dicção, seu porte.

–Absolutamente certo, senhor. Em que tipo de qualidade pensava você? Temos qualidade pela experiência e, se o preferir, pelo berço... Embora isso, claro está, requer de um acerto especial.

Assim, o negócio seguia adiante como de costume, apesar da trágica morte do Max.

Pitt alargou um pouco as narinas e abriu os olhos para lhe lançar um leve olhar depreciativo.

– De berço – replicou com tom que sugeria que era a única resposta.

– Perfeitamente, senhor – disse o homem –. Se o desejar pode marcar uma entrevista antecipadamente, e eu me ocuparei de tudo. Como compreenderá, não podemos atender a todos os gostos em tais circunstâncias, mas se não ter você inconveniente em me dizer que cabelos e que figuras prefere, esforçaremo-nos em agradá-lo.

Sim, Max tinha mais que talento. Era um gênio!

– Excelente – replicou Pitt com soltura –. Eu gosto dos cabelos castanhos – imaginou ao Charlotte –, ou negros. E eu não gosto das mulheres gordas, mas tampouco muito magras. Não me dê uma que lhe notem os ossos!

– Perfeitamente, senhor – repetiu o homem, inclinando a cabeça com deferência-. Um gosto excelente, se me permite dizê-lo. – Por seu tom, podia haver-se tratado de um mordomo comentando a escolha de um vinho para a comida –. Se retornar você dentro de três dias lhe proporcionaremos algo que lhe satisfará. Nossas tarifas são cinqüenta guinéus, pagos adiantado, quando conhecer à senhora e a considere aceitável, é claro.

– Certamente. Devo confessar que meu amigo estava certo. O seu parece o melhor estabelecimento desta zona.

– Não temos rival, senhor. Esses como o senhor Mercutt, que acreditam poder nos imitar, são muito inferiores, como possivelmente tenha ouvido dizer.

– Mercutt? – repetiu Pitt, franzindo o sobrecenho –. Acredito que não ouvi esse nome. – Deixou que a frase terminasse com uma leve interrogação, como convidando a que se explicasse.

– Ambrose Mercutt. –Arqueou as sobrancelhas levemente como demonstração de desdém –. Uma pessoa mais que insignificante, senhor, asseguro, mas com pretensões. – Uma duquesa teria empregado o mesmo tom de cansada condescendência para falar de um arrivista.

Pitt tinha conseguido o nome que procurava. Não restava nada mais que fazer por ali. Na delegacia de polícia daquele distrito lhe diriam onde achar ao senhor Mercutt.

– Não. – Meneou a cabeça –. Não acredito que ninguém me tenha dito isso. Não pode ter a menor relevância. – Era melhor assegurar-se de sua confiança com adulações. As pessoas que se sentiam confortáveis deixavam escapar mais coisas que as que receavam.

– Efetivamente, senhor – disse o homem com um sorriso de satisfação –. Nem a mais mínima relevância. Se não achar inconveniente voltar dentro de três dias a esta mesma hora...

Pitt assentiu com uma inclinação da cabeça e se despediu igualmente satisfeito.

O inspetor Parkins o recebeu com expressão de prazer de expectativa. Estava encantado de haver-se desembaraçado do caso do Max Burton. Tinha a seu cargo crimes sem transformar em número mais que suficiente, e aquele, em concreto, prometia poucas alegrias.

– Ah! Inspetor Pitt, entre. Um dia de cães. No que posso lhe servir?

Pitt tirou o casaco e o chapéu sujo, e depois alisou o cabelo, aparentando ter recebido um susto de morte. Sentou-se frente à Parkins.

– Ambrose Mercutt? – perguntou.

– Ambrose Mercutt – repetiu Parkins, e sua expressão se suavizou em um sorriso irônico –. Um fanfarrão elegante com ambições. Acredita que pôde matar ao Max por rivalidade nos negócios?

– Max estava lhe tirando clientela.

– Sabe quantos bordéis há nesta zona? – perguntou Parkins retoricamente, encolhendo os ombros e revirando os olhos.

– Há umas oitenta e cinco mil prostitutas em Londres – respondeu Pitt, tomando-a ao pé da letra.

– Meu Deus! Tantas? – exclamou Parkins levando as mãos ao rosto –. Algumas vezes as olho e me pergunto como chegaram a isso. Que estúpido, não é? Pelo menos há alguns milhares em minha zona. Não podemos expulsá-las daqui, e do que serviria, além disso? Limitar-se-iam a começar de novo em algum outro lugar. Por algo a chamam a profissão mais antiga do mundo. E muitos dos clientes são homens de dinheiro... E poder. Suponho que você sabe tão bem como eu. Um inspetor de polícia que os pusesse em uma situação grave teria mais coragem que bom senso.

– Assim – disse Pitt, sabendo de que todo aquilo era tão desagradável como tristemente certo –, não teve você muito interesse no Max nem no Ambrose Mercutt?

– Não podemos estar em todas partes – respondeu Parkins com uma careta-.É melhor concentrar-se em delitos nos que haja vítimas evidentes e possamos prender alguém, se o pilharmos: furto, falsificação, roubo, violação. São mais que suficientes para ocupar todo nosso tempo.

– Então, o que se comenta sobre o Ambrose Mercutt e Max?

Parkins voltou a relaxar e se recostou na cadeira.

– Mercutt tinha a clientela mais seleta até que apareceu Max. Max podia proporcionar mulheres de mais classe... Ouvi dizer que inclusive algumas de bom berço. Deus sabe por que o fazem! – Seu rosto refletiu perplexidade –. Sim, Mercutt tinha motivos para odiar ao Max. Mas eu não diria que era o único. O proxenetismo é um negócio sanguinário... – interrompeu-se ao recordar até que ponto o tinha sido nos dois crimes que se investigavam.

–Onde conseguiria Max a mulheres como essas? – disse Pitt, expressando seus pensamentos em voz alta –. A alta sociedade é perfeitamente capaz de proporcionar suas próprias diversões, se alguma de suas mulheres deseja experimentar o adultério.

Parkins o olhou com interesse. Ele tinha trabalhado e Devil's Acre ou em zonas parecidas: Whitechapel, Spitalfields, lugares onde nem sequer falava com a gente de ascendência.

– É certo isso? – perguntou, vislumbrando um mundo mais à frente do dele.

– Conheci alguns casos que o demonstraram – respondeu Pitt, esforçando- se por não parecer condescendente e esboçando um sorriso.

– Não seriam as mulheres! – exclamou Parkins, escandalizado.

Pitt vacilou. Parkins trabalhava em Devil's Acre em meio de sua sujeira e seu desespero; a maioria de seus habitantes tinha nascido para viver uma existência de penúrias e morrerem jovens. Todos nós precisamos acreditar em algum ideal, embora esteja sempre fora de nosso alcance; os sonhos ainda são necessários.

–Umas poucas – disse Pitt, minimizando a verdade –. Só umas poucas.

Parkins pareceu tranqüilizar-se e a inquietação se apagou de seu rosto.

Possivelmente também ele sabia que imaginava um país de fantasia, mas continuava necessitando dele.

– Quer saber onde achar ao Ambrose Mercutt? – perguntou.

– Sim, por favor.

Pitt anotou o endereço que lhe deu Parkins, conversou com ele um momento mais e se despediu. Fora, o céu limpara e o vento do leste lhe golpeou o rosto com força.

No dia seguinte, foi primeiro a seu escritório para ver se havia alguma nova informação, mas só achou o informe da autópsia do Hubert Pinchin, que só lhe informou do que já sabia. Depois voltou para Devil's Acre em busca do

Ambrose Mercutt.

A tarefa foi mais árdua do que tinha suposto. Ambrose fiscalizava a maior parte de seu negócio pessoalmente, por isso às onze da manhã não se levantara ainda, nem desejava receber visitas de nenhum tipo, sobre tudo se eram da polícia. Pitt demorou meia hora em convencer ao seu criado, que levou ao Ambrose, protestando, à sala de refeições atapetada em tons claros, com mobiliário imitação do estilo Sheraton e quadros eróticos dos novos artistas "decadentes" nas paredes. Ambrose era magro e tinha um aspecto de elegante esgotamento com seu roupão de seda e os cabelos ondulados sobre o rosto, ocultando sobrancelhas finas e olhos pálidos e inchados.

Pitt compreendeu imediatamente por que Max lhe tinha arrebatado a clientela mais seleta. O próprio Max exalava uma sensualidade que atraía às mulheres que trabalhavam para ele e um gosto inato para avaliar e selecionar as melhores putas de nova aquisição. Possivelmente inclusive para lhes ensinar um pouco? A natureza lhe tinha dado uma vantagem que Ambrose não podia emular, apesar de sua inteligência.

– Nunca tinha ouvido falar de você! – disse Ambrose com olhos muito abertos, olhando ao Pitt de cima abaixo-. Deve ser novo em Devil's acre. Não entendo porque veio aqui. Tenho clientes muito importantes. Seria um estúpido se tentasse me complicar a vida, inspetor. – Fez uma pausa para ver se Pitt tinha a suficiente agilidade mental para entendê-lo.

Este sorriu.

– Acredito que sim, que tem clientes importantes – concordou com frieza –. Mas possivelmente não tantos como antes que Max Burton se metesse no negócio.

Ambrose se sobressaltou. Baixou a mão e fechou o roupão de seda um pouco mais.

– Por isso veio pelo assassinato do Max?

Assim não ia fingir que era estúpido. Era um alívio. Pitt não gostava de jogar gato e rato com ele.

– Sim. Não me interessam seus outros assuntos. Mas Max lhe tirou uma parte do negócio, e possivelmente também a algumas de suas mulheres, e não esbanje saliva tentando negá-lo.

– É um negócio arriscado – disse Ambrose, dando de ombros e dando a volta –. Um ano vai bem, outro pior, dependendo de suas garotas. Ao Max ia bem agora, mas com o tempo lhe teriam ido às garotas. Ao final as mulheres de classe alta sempre se vão. Ou acabam aborrecendo-se, ou saldam suas dívidas, ou se casam com alguém e abandonam o negócio. A boa sorte do Max não teria durado.

Talvez fosse isso mesmo o que Ambrose queria acreditar, mas pessoalmente Pitt achava que Max teria sido capaz de substituir a qualquer mulher que o deixasse. Ambrose pareceu perceber suas dúvidas, pois se voltou e o olhou com ar desafiante.

– Perguntou-se alguma vez... Inspetor – seu tom era de leve sarcasmo, como se Pitt não merecesse aquele cargo –, como conseguia Max às mulheres da alta sociedade? Mulheres como essas não se dedicam a prostituir-se em

Devil's Acre só por diversão! Sabe? Podem fazê-lo dentro de seu próprio círculo, se isso for o que querem. Surpreende-lhe, que sim? – Olhou ao Pitt nos olhos e viu que não o surpreendia. Sua expressão se endureceu –. Se quiser descobrir quem matou ao Max e depois o castrou, procure entre os maridos ou amantes das mulheres de alto berço que trouxe aqui! Acredite-me, se eu quisesse eliminar a um competidor o apunhalaria e depois o jogaria no rio, ou o meteria em alguma cova de ratos no mais profundo de Devil's acre. Não o faria em pedaços e o deixaria onde pudessem encontrá-los os policiais! Não, inspetor... – de novo vacilou um décimo de segundo, convertendo o qualificativo em um insulto – procure entre alguns dos homens aos que converteu em cornudos, ou a cujas esposas ou filhas seduziu para as prostituir.

– E como pôde seduzir a mulheres de boa família para prostituí-las? – perguntou Pitt com uma sombra de dúvida –. E já postos, como chegou sequer a conhecê-las?

– Antes tinha sido lacaio não sei onde. Certamente conhecia a outros "criados". – Ambrose pronunciou esta última palavra com o ódio e o desprezo que sentia por o Max e todos os de sua classe –. Certamente fazia chantagem. Por aí achará a seu assassino, o digo eu!

– Possivelmente – concedeu Pitt, fingindo mais reticência do que em realidade sentia. Por muito que lhe desagradasse Ambrose, o que dizia tinha sentido –. Então, o que aconteceu com o doutor Hubert Pinchin?

– Só Deus sabe! – exclamou erguendo as mãos em gesto afetado –. Possivelmente era ele quem se encarregava da chantagem. Possivelmente fazia uso de sua profissão para achar a essas mulheres ou para descobrir seus segredos.

Possivelmente eram sócios. Como quer que eu saiba? Acaso quer que eu faça todo seu trabalho?

Pitt sorriu, e ao fazê-lo viu um brilho de irritação no rosto do Ambrose; o fanfarrão queria ofender não divertir.

– Sempre agradeço um pouco de ajuda de mãos peritas – replicou tranqüilamente –. Trabalhei em vários assassinatos, de um tipo ou outro. Em incêndios premeditados, roubos com arrombamentos... Sei muito sobre essas finas artes, mas careço de experiência em dirigir bordéis.

Ambrose inspirou profundamente para replicar, mas não achou as justas palavras antes que Pitt tivesse dado meia volta para abandonar a elegante estadia de tons pastel, deixando o de pé no centro da mesma.

Pitt saiu à rua de edifícios cinza; continuava chovendo. Sentiu o calor da satisfação de ter conseguido por fim mostrar-se absolutamente grosseiro.

E bem poderia ser que Ambrose estivesse certo.

 

Lady Augusta Balantyne não esperava a manhã com ilusão. Tinha decidido que não podia continuar adiando a visita a sua filha Christina para lhe recriminar sua conduta com toda crueldade. Christina e Alan Ross iriam ao jantar familiar dessa mesma noite, mas o que Augusta tinha que dizer requeria uma privacidade absoluta e sem interrupções. Assim como no passado, quando tinha que confrontar as indiscrições de sua filha, lady Augusta tinha a intenção de ocultar todo aquele assunto ao general Balantyne. Por muito bom estrategista que fosse seu marido quando se tratava de dirigir canhões e cavalos, nas batalhas em que se viam envolvidas emoções e a possibilidade de um escândalo, era como um menino de peito.

Durante o café da manhã Augusta manteve uma conversa normal sobre as trivialidades costumeiras. O general, claro está, não mencionou os assassinatos em Devil's acre que enchiam os jornais para não angustiá-la, sem dar-se conta de que ela os tinha lido. E lady Augusta não tinha o menor reparo em deixá-lo em sua ignorância, se era o que preferia.

Às dez horas, lady Augusta pediu a carruagem e ordenou ao cocheiro que a levasse a casa de sua filha. Ali a recebeu Christina com certa surpresa.

– Mas se é mamãe...

– Bom dia, Christina. –Por uma vez lady Augusta entrou na casa sem incomodar-se em observar se as flores eram recentes ou se havia novos adornos, nem sequer se o vestido da Christina era da última moda. Ela já havia dito o que tinha que dizer sobre os gastos extravagantes de sua filha, o resto dependia já de Alan Ross. Naquele dia, um assunto de uma seriedade imensamente maior ocupava seus pensamentos.

– Acabo de terminar o café da manhã – disse Christina, ainda surpreendida –. Quer uma xícara de chá, mamãe?

– Não, obrigado. Não desejo ser interrompida pelas idas e vindas dos criados nem com o trabalho de ocupar-me das xícaras.

Christina ia dizer algo, mas mudou de opinião. Sentou-se no sofá e pegou seu bordado.

– Espero que não se tenha visto obrigada a cancelar o jantar desta noite.

– Tenho lacaios para dar recados como esse – replicou lady Augusta com aspereza-. Quero falar com você em privado e esta noite não teremos ocasião. – Contemplou o encantador perfil de sua filha, seu suave queixo e seus olhos amendoados. Como podia alguém ter uma vontade tão apaixonada e ao mesmo tempo um pequeno instinto de conservação? Durante toda sua vida lady Augusta tinha tentado inculcar a sua filha seu próprio sentido do que era possível e impossível, e tinha fracassado. Aquela conversa seria desagradável, mas não se podia evitar.

– Quer fazer o favor de deixar isso? Quero que me Preste atenção. Surgiu uma situação que não me permite deixar que continue com seu atual comportamento.

Os olhos azuis da Christina se dilataram pela surpresa que lhe produzia aquela censura sobre sua conduta. Era uma mulher casada e só a seu marido devia prestar contas, certamente, não a sua mãe.

– Meu comportamento, mamãe?

– Não me trate como se fosse tola, Christina. Sei perfeitamente que esteve se divertindo em certos lugares infames. Compreendo que esteja aborrecida...

– Compreende-o? – respondeu Christina mordazmente –. Tem a menor idéia do que é estar tão aborrecida que se sente como se a vida inteira lhe escapasse das mãos e valesse mais a pena não despertar alguma vez?

– É claro que sim. Acredita que é a única mulher que acha tedioso ao seu marido e imensamente previsíveis suas relações habituais, até tal ponto que poderia recitar cada palavra de sua conversa antes que comecem a falar?

– Mas papai... – O rosto da Christina se escureceu. Era dor, ou simplesmente irritação –. Ao menos deve ter sido interessante quando era jovem, quando estava no exército, combatendo.

– Minha querida menina, quantas vezes acha que desejo ouvir o detalhe a disposição dos canhões na Balaclava, ou em qualquer outro lugar? Considerava uma deslealdade falar dos defeitos ou ambições dos outros oficiais, e lhe parecia vulgar comentar seus assuntos amorosos diante de senhoras. Por Deus! Às vezes me aborrecia tanto que, se não fosse uma dama, teria lhe gritado e esbofeteado só para tirá-lo de sua maldita complacência! Mas não teria servido de nada. Ele não o teria compreendido. Teria pensado que tinha um ataque de histeria e me teria ordenado descansar e tomar uma infusão. De modo que aprendi a adotar uma expressão que me fizesse parecer interessada e a ocupar os pensamentos em qualquer outra coisa. Um pouco de autodisciplina melhorá-la-ia muito e lhe proporcionaria uma melhor compreensão do que importa realmente conservar. Alan a mima muito...

– Me mima? Dá-me tudo que necessito e depois me trata como a uma entidade social, alguém com quem tem que ser amável! – Corou de ira –. Sua dissimulação é insuportável! Deveria haver-se casado com uma monja! Algumas vezes me pergunto se em seu coração existe sequer a paixão, a autêntica paixão!

Augusta sentiu uma pontada de compaixão, mas a desprezou. Não era o momento oportuno.

– Não confunda a paixão com a mera excitação – disse com frieza –. A excitação é como jogar cartas apostando fósforos: ganhe, perca ou se retire, ao final só fica um montão de lascas.

Christina apertou os lábios, endurecendo o gesto.

– Não me dê lições! Farei o que me agradar.

– Os jornais? – perguntou lady Augusta, abordando o assunto de outro ângulo.

– Por quê? Se ao Alan não importa, não é teu assunto.

– Então não ignora que se produziram dois assassinatos particularmente desagradáveis em Devil's Acre.

A cor fugiu das faces da Christina. Max Burton tinha sido lacaio na casa antes que ela se casasse com o Alan Ross. A Augusta doía ter que recordar aquele penoso assunto, mas a imprudência da Christina e sua teima ao negá-la não lhe deixavam outra alternativa. –A pessoa foi criado em nossa casa.

– Sei – disse Christina em voz baixa. Respirou fundo com um tremor na voz-.

É extremamente desagradável.

– A polícia investiga ambos os crimes.

– Naturalmente. Embora não sei do que servirá. É habitual que gente como essa acabe assassinada. Não acredito que exista a menor possibilidade de que descubram quem o fez, e o porquê não importa muito. Custa-me acreditar que realmente importa, mas têm que cumprir com seu dever porque é o que se espera deles.

– Sem dúvida. Mas essa não é a questão. É o inspetor Pitt quem tentará... Recorda ao Pitt?

Christina torceu o gesto com desagrado.

– Há casas nesse bairro – prosseguiu lady Augusta –, onde as mulheres respeitáveis encontram diversão de vez em quando. Acredito que lhes produz uma espécie de excitação penetrar em um mundo sórdido e perigoso. Possivelmente o seu lhes parece mais doce depois?

– Não tenho a menor idéia! – exclamou Christina com um olhar duro e a pele retesada nas maçãs do rosto.

– Não finja ser estúpida, Christina – disse sua mãe com um suspiro –. E sobre tudo não finja que eu seja! Pode ser que Alan prefira simular que ignora muita das coisas que faz; o certo é que parece extraordinariamente paciente. Mas não pode ignorar o escândalo, ninguém pode. Devil's Acre vai sofrer um intenso escrutínio. Esses crimes escandalizaram as pessoas, e dado que Pinchin é relativamente respeitável, atemorizaram-se também. Se não puder dominar suas apetências pelo subúrbio, terá que buscar outro. Embora o mais sensato fosse que abandonasse esse costume para sempre. Londres é menor do que acha e não se pode manter o anonimato por muito tempo. Pode ser que suas amigas não freqüentem as casas de jogo nem os teatros de variedades, mas bem poderia ser que seus maridos sim. O que para você é uma perigosa aventura, para eles não é mais que uma diversão...

– Hipócritas!

– Minha querida Christina, deixa de se comportar como uma menina. É muito velha para isso. A ingenuidade, desculpável aos vinte, é aborrecida aos vinte e cinco, e aos trinta é ridícula. Corre o perigo de perder sua reputação. Reflete sobre o que isso significa!

– Ao contrário, sou muito popular e me consideram muito divertida!

– O mesmo ocorre com os bufões e as putas! Desejas ser um deles?

– Sinto que imagine que vou a teatros de variedades de má fama, mamãe – respondeu Christina com o semblante muito pálido –. Jamais entrei em um deles, assim não posso lhe dizer o que se oferece ali. Mas se desejasse jogar, há muitas casas respeitáveis nas quais poderia fazê-lo. E não preciso buscar um amante, tenho mais ofertas do que posso satisfazer!

Lady Augusta não se deixou impressionar; tinha visto já a dignidade ofendida da Christina em outras ocasiões.

– Sério? Está-me dizendo que nunca esteve em Devil's Acre?

– Não tenho a menor intenção de falar disso com você!

O assunto era muito grave e urgente para que Augusta perdesse a calma.

Não queria dizer a sua filha que conhecia suas excursões ao subúrbio que se estendia à sombra do Westminster graças à lealdade de uma antiga criada para não pôr em seu perigo posto e, o que era ainda mais importante, para não perder sua

fonte de informação. Dada a temerária atitude da Christina, só Augusta poderia protegê-la.

– Imagino – replicou causticamente –. Felizmente me inteirei que tudo sem sua ajuda. Viram-na. Tudo isto deve cessar imediatamente.

Agora Christina estava assustada. Sua mãe a conhecia muito bem para deixar-se enganar pela pose arrogante e os ombros erguidos sob o grosso cetim. Deus, se em realidade era pouco mais que uma menina, tão irrefletida como um dia do verão. Não pensava nas conseqüências de seus atos. Via o que queria e se lançava para agarrá-lo. De onde demônios lhe vinha semelhante abandono em si mesma? Certamente não de seu pai! Ele não tinha tido jamais um esbanjamento de emoções, tomara! E Augusta tinha tido ao menos a força de vontade suficiente para ser discreta.

Conhecia a linha que afastava o prazer do dever e podia caminhar por ela com a mesma soltura que um equilibrista. Por que era tão amalucada Christina?

– Por Deus que acaba com minha paciência! – exclamou Augusta –. Algumas vezes parece ter perdido o juízo com que nasceu!

– Se nunca teve uma aventura que valesse a pena, sinto-o por você! – replicou Christina a gritos, vertendo toda sua frustração, sua avidez e seu orgulho em um ardente desprezo por quem considerava uma mulher néscia –. Fui a Devil's Acre à casa de um amigo. E sim, fui ali para me encontrar com meu amante. Mas isso não o dirá a Alan, porque você quer arruinar meu matrimônio menos ainda que eu! Alan Ross foi o marido que você me escolheu...

– Era a melhor oferta que tinha, querida, e esteve tão encantada de aceitá-la como eu... Naquele momento. Quem é esse amante?

– Ao menos se alegre de que me veja com ele em um lugar discreto e não na festa de alguém, entrando e saindo furtivamente dos dormitórios – replicou Christina –. Não é assunto seu quem seja. Mas lhe direi que é um cavalheiro, se tanto lhe interessa.

– Então seu gosto melhorou! – respondeu Augusta com crueldade e ficou em pé-. Mas a partir de agora se limitará a demonstrá-lo em seu próprio lar. Recorda-o, Christina. A sociedade não perdoa às mulheres, e não esquece jamais. Muitas paqueras podem passar por alto, inclusive alguma aventura, se a levar com discrição. Mas as visitas a um subúrbio como Devil's Acre não. É uma traição à classe a que se pertence. – dirigiu-se à porta e a abriu. Não havia nenhum criado no vestíbulo –. Tome cuidado, querida. Não pode se permitir outro engano.

– Não cometi nenhum! – replicou Christina com os dentes apertados –. Agradeço sua preocupação, mas é desnecessária.

Lady Augusta tinha decidido fazer do jantar um assunto muito formal. Os criados vestiam libré e pegou os melhores cristais. Sobre a mesa havia três candelabros de prata de estilo georgiano e arranjos florais que deviam proceder de uma dúzia de estufas. O general Balantyne não quis nem imaginar quanto haviam custado.

Augusta vestiu-se de branco e negro, suas cores prediletas, que se complementavam com os cabelos negros de mechas prateadas e seus ombros brancos, ainda perfeitos. O general Balantyne se viu obrigado a admitir com certa surpresa que sua mulher tinha um aspecto magnífico. Recordava-a ainda em toda a beleza e dignidade que lhe tinham enfeitiçado de jovem. É claro, o seu tinha sido um matrimônio de conveniência. Ele pertencia a uma família excelente com uma longa e irrepreensível reputação. Mas todos seus títulos eram militares e não abundavam em dinheiro. Augusta, em troca, era filha de um conde, e seu título seria seu por toda vida, independentemente de quem fosse seu marido... A menos, claro está, que conseguisse um melhor. Além disso, seu dote, e mais tarde sua herança, não tinham sido desdenháveis.

Em todo caso, tanto o aspecto físico como as qualidades de lady Augusta lhe tinham permitido pedir sua mão com considerável entusiasmo, e ela tinha parecido feliz de aceitar. A surpresa foi que o pai também se mostrou agradavelmente disposto.

Estes pensamentos levaram o general a recordar a sua filha Christina e seu matrimônio com o Alan Ross. Tinha sido diferente, é claro. Christina não era como sua mãe, embora pelo que podia julgar ainda se parecia menos a ele. Christina não tinha a beleza régia de Augusta, mas possuía um atrativo embriagador, e sempre tinha mostrado um grande encanto aliado com um vivo engenho, engenho que, em sua opinião, exercitava ela muito freqüentemente a custa de algum outro. Mas isso era o que fazia rir em sociedade, onde um engenho inofensivo era uma contradição.

O general não tinha certeza de que sua filha tivesse amado Alan Ross alguma vez. De fato, nem sequer sabia se estava disposta a amar a alguém. Mas o certo era que havia resolvido casar-se com Ross e Augusta se negara a discuti-lo. Tudo tinha acontecido durante as terríveis semanas, fazia três anos, em que o medo e a aflição se apropriaram de suas vidas por causa dos crimes cometidos ali mesmo, no Callander Square.

As suspeitas continuavam fazendo-o desventurado. Gostava de Alan Ross, um homem de caráter extraordinariamente reservado. Por um momento, seu fino nariz aquilino o fazia parecer forte, inclusive arrogante. Imediatamente no seguinte, aquela boca sua especialmente vulnerável apagava essa impressão, deixando vislumbrar tão somente a paixão que podia jazer inalcançável em seu interior. Balantyne não tinha chegado a saber o que sentia Ross pela Christina.

Por outro lado, a seu filho o conhecia muito melhor. Brandy era moreno e bonito como sua mãe, mas era mais afável. Tinha um grande senso de humor, o sentido do absurdo poderia dizer-se inclusive, que Balantyne invejava. Havia uma alegria espontânea em tal qualidade que ele desejaria possuir.

Além disso, Brandy tinha demonstrado um valor inesperado ao insistir em casar-se com a preceptora do Reggie Southeron, Jemima! A jovem era encantadora, de maneiras corretas e, aparentemente, com uma educação mais que adequada, apesar de até seu matrimônio em realidade não ser mais que uma criada de status superior.

Não obstante, era claro que era um casal feliz, e a sua filha tinham posto o nome da mãe do general, gesto que ele tinha considerado especialmente agradável. Sim, Brandy tinha escolhido bem.

O jantar consistiu em sete pratos, e naturalmente se estendeu de forma considerável. Augusta presidia a mesa no extremo mais afastado, embora nominalmente fosse o general quem ocupava a cabeceira. No lado mais próximo às janelas, que tinham as cortinas de veludo verde musgo fechadas para afugentar a noite e a chuva torrencial, sentava-se Alan Ross com o reflexo da luz das velas em seu loiro cabelo. Falava pouco, como de costume. Jemima estava sentada junto a ele. Seu vestido era de tons branco e verde pálido e o estampado sugeria um toque de flores. Sua figura, pensou o general, evocava mais a primavera ou os suaves dias do início do estio que aquele janeiro glacial. Sempre era assim; fazia-o pensar em margaridas e em árvores jovens inclinadas sob o vento. Jemima falava com Augusta, e do outro lado Brandy a contemplava sorridente.

Junto ao Brandy se sentava Christina, imaculadamente vestida em um tom ouro escuro, com o negro cabelo reluzente. Balantyne compreendia por que os homens a achavam formosa, embora tivesse o nariz um pouco pequeno, as sobrancelhas retas em lugar de arqueadas, e os lábios muito carnudos para o gosto clássico. Mas havia algo individual nela, uma impressão de ousadia. Tinha uma faísca do humor do Brandy, mas sem sua tolerância nem seu sentido do absurdo.

Levaram um dos pratos para servir o seguinte.

–Recordam a aquele homem, Pitt? – perguntou Brandy erguendo a vista. Estavam comendo um peixe branco, enrolado e assado, coberto por molho e amêndoas picadas. O general não gostava.

– Não – respondeu lady Augusta com frieza –. O único Pitt de que ouvi falar foi o primeiro-ministro da Inglaterra que introduziu os impostos sobre a renda durante as guerras napoleônicas.

Alan Ross dissimulou um sorriso e Jemima inclinou a cabeça, mas o arco de seu pescoço sugeriu ao general que também ela sorria.

– Aquele policial que parecia recém saído de uma refrega – prosseguiu Brandy, inconsciente do tom de sua mãe –. Foi há três anos. – Inclusive ele evitava mencionar os sucessos com os que então tinham estado intimamente relacionados.

– Por que ia eu recordar a semelhante indivíduo? – perguntou Augusta com tom de censura.

Brandy parecia insensível à frieza com que respondia sua mãe ou à advertência que isso implicava.

– Era um homem bastante singular... – disse.

– Por amor de Deus! – interrompeu-o Christina –. Era um policial! Isso é como dizer que alguém deveria recordar aos criados de outra pessoa!

– Está encarregado do caso desse maníaco e Devil's Acre – explicou Brandy, sem fazer caso tampouco a sua irmã –. Sabiam?

Lady Augusta ficou gelada, mas antes que pudesse falar, Christina se voltou para seu irmão e lhe falou com incomum aspereza:

– Acredito que é uma grosseria de sua parte trazer a luz um assunto como esse na mesa, Brandy. A verdade é que não vejo a necessidade de falar disso em nenhum lugar absolutamente! Agradecer-lhe-ia que falasse de algo agradável enquanto estamos comendo. Por exemplo, sabia que a filha mais velha de lady Summerville se comprometeu com sir Frederick Byers?

Augusta se relaxou e a tensão de seus ombros se aliviou sob a seda de seu vestido. Entretanto, não continuou comendo, como se em qualquer momento sua ajuda pudesse ser requerida para salvar a situação.

– Sei que Freddie Byers não sabe! – replicou Brandy com tom de brincadeira –. Ao menos na quinta-feira não sabia. Christina pôs-se a rir, mas sem o deleite que costumava acompanhar a sua risada.

– OH, que maravilha! Pergunto-me se teremos um escândalo. De qualquer forma não suporto ao Rose Summerville. Contei-lhes a história das penas quando foi apresentada ao príncipe de Gales?

– Plumas? – perguntou o general com incredulidade, incapaz de compreender o que sua filha queria dizer.

– OH, papai! – Christina agitou uma mão pequena e delicada, adornada com dois preciosos diamantes, um em cada um dos anéis. – Quando uma jovem é apresentada na corte, tem que levar as penas do príncipe do Gales como toucado. É incrivelmente difícil mantê-las erguidas, sobre tudo se tem o cabelo tão fino como Rose. – Passou a contar o desastre com tal acuidade que inclusive o general, a quem a apresentação das debutantes em sociedade lhe parecia uma farsa bem cruel, viu-se obrigado a sorrir.

O general olhou a Jemima, que é claro não tinha estado jamais na corte, mas tinha os olhos brilhantes de regozijo, embora sua boca mostrasse certa indecisão sobre até que ponto se compadecia das desventuradas jovens a quem se conduzia como gado para exibi-las envoltas em vestidos que valiam centenas de guinéus para sua entrada na "sociedade". A honra exigia que encontrassem um marido apropriado antes do final da temporada.

Serviu-se o seguinte prato: frango em gelatina. Sua cor e sua textura recordaram ao general a carne morta, e um brilho evocador substituiu o rosto do lacaio que se inclinava para oferecer os pratos de prata pelo do Max.

De repente o general perdeu o apetite. Não havia mais comida na mesa da habitual, mas lhe pareceu muita. Pensou no cadáver frio sobre a mesa do depósito. Aquilo também era carne: carne de um branco cinzento, como a de um frango, com o sangue acumulado nas costas e nádegas. Entretanto, inclusive despojado de suas roupas e castrado, Max não lhe tinha parecido tão anônimo na morte como a maioria de homens que tinha visto. Aquele rosto de grosas feições se parecia muito à lembrança que tinha do homem em vida.

Augusta o olhava fixamente. Impossível lhe explicar o que acontecia em sua cabeça. O melhor era fazer de tripas coração e comer, embora se engasgasse. Já o digeriria logo com o Chablis, e as perturbações físicas eram mais suportáveis que a tensão contínua de tentar explicar-se.

– Também a senhorita Ellison me pareceu muito agradável – disse Brandy sem vir a conto. – Era uma das mulheres mais independentes que conheci em minha vida.

– A senhorita Ellison? – Augusta parecia perplexa –. Acredito que não conheço nenhum Ellison. Quando foi apresentada?

– Nunca, suponho. – Brandy sorriu de orelha a orelha –. Era a jovem que ajudou papai a ordenar seus papéis quando começou a escrever a biografia militar da família.

– Por amor de Deus, para que temos que falar dela! – Christina lançou um olhar de recriminação a seu irmão –. Era uma criatura extremamente vulgar. A única coisa que podia destacar-se nela era seu cabelo. E inclusive as criadas podem ter o cabelo bonito!

– Minha querida irmã, as criadas têm que ter os cabelos bonitos – replicou Brandy com desdém –. Assim como todos outros atributos físicos. Toda casa que pretenda ser realmente distinta escolhe a suas criadas pelo aspecto físico.

Mas isso sabe tão bem como eu.

– De verdade vamos ter que falar do aspecto das criadas? – O nariz de lady Augusta se inchava como se percebesse um aroma levemente desagradável.

O general se sentiu obrigado a defender Charlotte, ou melhor, a lembrança que tinha dela? Aquilo que realmente lhe importava devia ser preservado.

– A senhorita Ellison não era criada, nem muito menos – disse rapidamente-. De fato não era uma criada absolutamente...

– Certamente não era uma dama! – replicou Christina com certa precipitação –. Ao contrário do Brandy, eu sei distinguir a diferença! Sério, às vezes acredito que alguns homens perdem o pouco juízo que têm quando vêem umas saias com algo de atraente!

– Christina! –A voz de lady Augusta era como o gelo rachando-se e seu rosto

estava mais branco do que o general tinha visto até então.

Estava tão furiosa porque Christina tinha insultado a seu pai em sua própria mesa? Ou era pela Jemima, que em outro tempo tinha sido pouco mais que uma criada? Por estranho que parecesse, custava-lhe acreditar que fosse por ele.

– Uma das qualidades de uma dama, Christina – disse tranqüilamente, voltando-se para olhar a sua filha –, são suas boas maneiras e o fato de que não ofende jamais a outros por sua estupidez, nem sequer acidentalmente.

Christina permaneceu imóvel com os olhos lançando faíscas, o rosto pálido e o punho apertando o guardanapo.

– Ao contrário, papai, são seus criados e os arrivistas os que não ofendem, porque sabem que não podem permitir-se.

Uma grave agitação percorreu a mesa. Foi Alan Ross quem falou, deixando o garfo junto ao prato. Tinha umas belas mãos, fortes e sem excesso de carne.

– Os criados não se ofendem porque não se atrevem, querida – disse a sua mulher com calma-. Uma dama não desejaria fazê-lo. Essa é a diferença. São as pessoas que não têm obrigações, nem o domínio de si mesmas, nem a sensibilidade suficiente para compreender os sentimentos de outros, os que ofendem.

– Tem tudo tão bem resolvido, não é verdade Alan? – Christina pronunciou estas palavras como se fosse um desafio, um insulto inclusive, dando a entender que seu marido tinha formal o pensamento em uma resposta preconcebida.

O general sentiu uma onda de infelicidade que lhe fez afastar o prato. Alan Ross era um homem digno, com um agudo sentido da decência. Não merecia o mau comportamento de sua esposa. A beleza não bastava. Um homem ansiava um caráter afável em uma mulher, por esplêndido que fosse seu engenho ou seu rosto, ou inclusive seu corpo. Christina faria bem em aprender antes que fosse muito tarde e perdesse o afeto do Alan sem remédio. Teria que pedir a Augusta que falasse com sua filha. Alguém devia adverti-la...

Brandy o tirou de seu ensimesmamento com um tema ainda mais acidentado.

– Foi Max Burton, nosso antigo lacaio, que assassinaram em Devil's Acre, não é assim? – Olhou-os a todos alternativamente.

Seu comentário teve o efeito, presumivelmente desejado, de interromper a conversa anterior por completo. As mãos de lady Augusta ficaram suspensas sobre o prato. Christina deixou cair à faca. Alan Ross permaneceu sentado sem mover um só músculo.

Uma pétala caiu sobre a toalha, mais branca e pura que o fio engomado.

– Por Deus, Brandy – disse Christina depois de engolir em seco – como demônios vamos saber? E, além disso, o que nos deveria importar? Faz anos que Max se foi, e todo isso é absolutamente repugnante!

– Devil's acre e seus habitantes não nos concernem em nada – disse lady Augusta com voz rouca –. E me nego a que se fale em minha mesa deles ou de suas obscenidades.

– Não estou de acordo, mamãe. – Brandy não se deixava impressionar –. Enquanto todo mundo se negue a falar deles...

– Imagino que a metade da cidade não fala de outra coisa – replicou lady Augusta, interrompendo-o –. Há muita gente cuja natureza se desfruta em tais coisas. Não tenho intenção de me contar entre eles, e tampouco você enquanto estiver em minha casa, Brandon!

– Não estou pensando nos detalhes. – Brandy se inclinou com o rosto sério –. Estou falando das condições gerais de nossos subúrbios. Ao que parece Max exercia-se de fanfarrão. Proporcionava prostitutas...

– Brandon!

– Sabe quantas prostitutas há em Londres, mamãe? – perguntou ele, passando por cima a interrupção.

O general olhou a Augusta ao outro lado da mesa e pensou que não esqueceria sua expressão enquanto vivesse. Lady Augusta arqueou as sobrancelhas.

– Devo supor Brandon, que você sabe? –perguntou com um tom que poderia cortar a pedra.

As faces do Brandy se tingiram de um suave rubor, mas seu rosto mostrava a mesma atitude desafiante que em seus dias infantis, quando o tema em discussão era trivialidades como um pudim de arroz ou fazer a sesta. Engoliu em seco.

– Oitenta e cinco mil – respondeu –. Acrescentar "aproximadamente" teria diminuído o efeito –. E algumas delas não têm mais de dez ou onze anos de idade!

– Tolices! – replicou Augusta.

– Sinto muito, mãe, mas é verdade – disse Alan Ross, intervindo pela primeira vez –. Várias pessoas distintas abraçaram a causa dessas pessoas ultimamente, e se investigou muito.

– Não seja ridículo! – Christina soltou uma gargalhada, mas soou aguda e sem a menor alegria –. Mamãe tem toda a razão. Como poderia uma pessoa realmente distinta abraçar uma causa semelhante? Isso é absurdo. Nem sequer vale a pena discutir. Estamo-nos rebaixando ao absurdo e é extremamente desagradável.

O general estranhou que Christina se mostrasse de acordo com sua mãe com tão inusitada rapidez; não era próprio dela. Surpreendeu-se também ao ouvir sua voz.

– Oitenta e cinco mil desventuradas em Londres! – Inconscientemente tinha utilizado o eufemismo corrente para as prostitutas, com o que se conseguia fazer que aquela miséria escura e amorfa parecesse menos terrível; permitia se acreditar que a pessoa se compadecia.

–Desventuradas! –Brandy entrecerrou os olhos. Parecia ter lido os pensamentos do general-. Não o diga como se sentíssemos compaixão por elas, papai. Nem sequer queremos reconhecer que existem! Acabamos de dizer que não são um tema de conversa apropriado para nossa mesa. Preferimos fingir que não existem, ou que o fazem de bom grado, porque querem, porque são umas pecadoras...

– Não diga sandices, Brandy! – replicou-lhe Christina –. Você não sabe nada desse tema, e mamãe tem razão. É um assunto muito desagradável e acredito que é uma grosseria de sua parte que nos obrigue a falar dele. Já lhe dissemos com toda clareza que não queremos saber nada de semelhantes baixezas! Jemima – olhou a sua cunhada – tenho certeza de que não quer ouvir falar sobre prostitutas durante o jantar, não é verdade?

O general se inclinou para a Jemima, querendo defendê-la. Sua nora era especialmente vulnerável. Estava apaixonada pelo Brandy, e tinha cometido a loucura de casar-se com alguém que estava muito acima dela.

Entretanto, Jemima devolveu o sorriso a Christina e seus olhos posaram nela com um olhar claro e franco.

– Achá-lo-ia desconfortável em qualquer momento – responde u-. Mas, por outro lado, quando puder contemplar a aflição de outras mulheres, seja física ou moral, sem me sentir desconfortável, será porque necessito que me recordem minhas responsabilidades como ser humano.

Produziu-se um breve silêncio.

Um radiante sorriso iluminou o rosto do Brandy e sua mão se moveu como se quisesse tocar a sua mulher do outro lado da mesa.

– Que piedosa – disse Christina com delicado desdém –. Parece que está ainda no colégio. Deveria aprender a não ser tão pouco imaginativa, querida minha. É tão aborrecido! E não há nada no mundo que deteste mais a sociedade que uma pessoa aborrecida!

– Mas costuma perdoar a um hipócrita, querida – disse Brandy com o rosto mudado. Voltou-se para sua irmã –. De modo que você continuará tendo êxito enquanto seja cuidadosa e não se torne muito óbvia, que é o que está fazendo neste momento. Um hipócrita torpe é pior que uma pessoa aborrecida, é insultante!

– Não sabe nada da sociedade. – Christina tinha a voz crispada e o rosto aceso –. Tentava ser útil. Ao fim e ao cabo, Jemima é minha cunhada. Ninguém deseja falar como uma preceptora, embora pense igual a uma delas! Por Deus,

Brandy, já tivemos muitas lições de colégio por hoje!

– Certamente. – Augusta se reanimou por fim –. Ninguém deseja que lhe instruam sobre os males sociais, Brandy. Ocupa um banco no Parlamento se lhe interessarem tais coisas. Christina tem razão. Mas a aborrecida não é a pobre

Jemima; ela se limita a ser leal a seu marido, como toda boa esposa. Você é absolutamente tedioso. Agora nos faça o favor de nos falar de algo agradável ou refreie sua língua e deixe que o faça outro.

Voltou-se para o Alan Ross, sem fixar-se no general. Este se sentia ainda desventurado e procurava as palavras para transmitir sua opinião de que aquele tema não podia ser descartado tão facilmente. Que fosse aborrecido ou não carecia de importância; era a verdade o que importava.

– Alan – disse Augusta com um leve sorriso –, Christina me disse que foi ver a exposição da Royal Academy. Conte-nos o mais interessante. Expôs algum quadro sir John Millais esta temporada?

Não havia mais remédio que responder. Ross se rendeu ante o inevitável com cortesia, lhe oferecendo uma descrição ligeira e delicadamente humorística dos quadros da exposição.

Balantyne voltou a pensar no muito que gostava de seu genro.

Depois das sobremesas, Augusta se levantou e as senhoras se retiraram, deixando aos cavalheiros em liberdade para fumar, se o desejassem, e de beber o Porto que o lacaio Stride servia em uma licoreira de cristal Waterford com pescoço de prata e uma deliciosa rolha aflautada. O lacaio deixou a licoreira sobre a mesa e se retirou por sua vez discretamente.

Sem saber por que o dizia (era um tema que lhe rondava a cabeça desde há dias), Balantyne voltou a trazer à tona Max e a Devil's Acre.

– Foi nosso antigo lacaio a quem assassinaram. – encheu a taça de vinho, pegou-a, dando-lhe voltas, e contemplou a luz que se refletia em suas facetas lançando brilhos de rubi –. Pitt veio ver-me. Pediu-me que fosse identificar o cadáver.

O rosto do Ross permaneceu impenetrável. Era um homem extremamente reservado; não era fácil saber o que pensava ou sentia. O general Balantyne recordou Helena Douram, a quem Ross tinha amado antes de Christina, e lhe ocorreu a dolorosa idéia de que possivelmente jamais tinha deixado de amá-la. Doía-lhe, não só por sua filha, mas também por Ross. Possivelmente por isso às vezes ela era tão... Tão frágil e tão cruel. A felicidade da Jemima devia ser como um cáustico para sua ferida.

Entretanto, quantos matrimônios apoiavam sua felicidade em pouca coisa mais que ter compartilhado certo tempo juntos, na experiência que une a um casal simplesmente porque é algo em comum? Os matrimônios afortunados se diluíam até converter-se em uma espécie de amizade. Tinha tentado Christina sequer ganhar o amor do Alan? Tinha beleza e engenho mais que suficientes; era dever seu adquirir a afabilidade e a generosidade de espírito, e depois demonstrá-la a seu marido. Uma vez mais pensou que devia pedir a Augusta que falasse com ela.

– Pitt veio aqui? – perguntou Brandy, olhando a seu pai fixamente –. Não sabiam quem era?

– Aparentemente não – respondeu o general, concentrando de novo seus pensamentos no Max –. Utilizava vários nomes, mas Pitt o reconheceu, ou lhe pareceu conhecer seu rosto.

Fez-se o silêncio. Possivelmente, de alguma estranha maneira, tinham chegado a imaginar que em realidade não podia tratar-se do mesmo homem. Agora era diferente. Era inegável que se tratava de uma pessoa a que tinham conhecido com quem tinham convivido e a quem tinham visto todos os dias, embora como criado fosse somente um acessório mais da casa e não um ser individual como eles.

– Pobre diabo – disse Brandy ao fim.

– Acredita que chegarão a descobrir quem o fez? – perguntou Ross, voltando-se para o general com expressão veemente –. Se comercializava com mulheres, pode chegar a compreender-se que alguém o matasse. Esse lado da loucura deve ser o mais baixo ao que pode chegar um homem.

– O comércio com crianças é o mais baixo – disse Brandy em voz baixa –. Sobre tudo de meninos

– OH, Meu Deus! – exclamou Ross com uma careta de repugnância –. Nem sequer tinha pensado nisso. Nossa ignorância é criminosa! Não consigo imaginar o que pode levar a um ser humano a fazer tais coisas. Entretanto, deve haver milhares que as fazem, aqui, em minha própria cidade, e pode ser que eu me cruze com eles pela rua durante toda minha vida.

– Meninos – repetiu o general Balantyne, e não era uma pergunta. Depois de trinta anos no exército, não podia menos que conhecer os apetites e aberrações dos homens longe de suas casas e sob a tensão da guerra. Presumivelmente, tais apetites estavam latentes antes que a solidão e a ausência de mulheres os levassem a ponto de dar rédea solta. Mas o general não tinha pensado jamais que houvesse pessoas que ganhassem a vida vendendo corpos de meninos para cometer esses atos. A mente de uma pessoa assim escapava a sua capacidade de compreensão.

– Comercializava Max meninos? – perguntou.

– Mulheres, acredito – respondeu Brandon –. Ao menos isso dizem os jornais. Mas possivelmente se tivesse comercializado meninos não o teriam mencionado. As pessoas não querem saber nada sobre o comércio com meninos.

Podem culpar às mulheres adultas, dizer que são imorais e que a sociedade não é responsável por nada do que lhes ocorra. A prostituição é tão antiga como a humanidade, e certamente durará tanto como ela. Podemos fazer vista grossa, ou inclusive fingir que desconhecemos sua existência, como todas as senhoras que se apreciam em sê-lo. Desse modo não nos exige que reajamos. A ignorância é o escudo mais efetivo.

O general pensou de repente no pouco que conhecia seu filho. Notava nele uma ira e uma amargura que antes não tinha visto. Apesar do transcurso dos anos, dado que o próprio general não achava ter mudado, tinha achado é claro que tampouco o tinha feito Brandy. A diferença entre os quarenta e cinco e os cinqüenta anos era insignificante; entre vinte e três e vinte e oito podia ser todo um mundo.

Olhou a seu filho, as linhas das sobrancelhas e o nariz, completamente distintas das de Alan Ross, muito morenas, suaves e retas, e sua boca teimosa e sentimental. Alguém imagina vagamente que um filho se parecerá consigo, mas se tinha parecido Brandy alguma vez com ele? Pensando bem, possivelmente não?

– Tão superficiais somos? – perguntou em voz alta.

– Pomo-nos na defensiva – respondeu Brandy –. É o instinto de conservação.

– A maioria de nós – disse Alan Ross, alisando os cabelos – evita enfrentar o que não podemos suportar. – Sua voz era apenas audível –. Sobre tudo quando nada podemos fazer a respeito. Não se pode censurar a uma mulher que prefere não saber que seu marido utiliza as prostitutas, sobre tudo quando se trata de menores. Admitir que esses menores pudessem ser meninos a obrigaria a deixá-lo. Todos sabem que o divórcio é a ruína para uma mulher. Deixa de existir inclusive para a sociedade mais moderada. Seria objeto de uma compaixão intolerável, para não falar das obscenidades que imaginariam os menos caridosos, nem de suas insinuações. Não. – Meneou a cabeça em um breve e terminante gesto –. Sua única opção é fingir que ignora seu segredo e, jamais, em nenhum caso, permitir-se matar a última e preciosa dúvida. É o único que pode permitir-se.

Por uma vez, Brandy emudeceu.

O general olhou as chamas das velas de um candelabro. Tentou imaginar como seria estar apanhado em tal relação, suspeitando e sabendo que não se atreveria a reconhecer uma verdade semelhante. De fato, para proteger-se e possivelmente para proteger aos filhos, teria que ser um fervoroso cúmplice do segredo. Jamais lhe tinha ocorrido que Augusta não fosse uma esposa virtuosa e satisfeita. Era acaso uma insuportável presunção, uma insensibilidade cega e estúpida? Ou simplesmente uma medida de sua confiança nela, talvez inclusive uma espécie de felicidade? Ele não procurou prostitutas jamais, nem sequer em seus primeiros tempos como militar. Tinha tido alguma ou outra aventura, é claro, antes de casar-se, mas pelo prazer mútuo, nunca por dinheiro. Depois nem sequer tinha duvidado de seu dever moral de abster-se quando Augusta ou ele se achavam fora de casa ou indispostos. Augusta não era uma mulher apaixonada; talvez a decência o impedisse? Por sua parte, fazia muito tempo que ele tinha conseguido dominar seu próprio corpo e suas necessidades; tal disciplina era própria da mente de um soldado. A pessoa devia saber impor-se ao esgotamento, a dor e a solidão.

– Sinto muito – disse Brandy, recostando-se no assento –. Não era um tema apropriado. Arruinei o jantar.

– Não. – O general engoliu em seco e abandonou suas reflexões –. A situação é monstruosa. Mas não deve censurar às pessoas por não admitir o que só pode destruí-los. Deus sabe que... Um homem que comercializa prostitutas não merece viver, mas o assassinato não é a resposta, e essas mutilações são uma barbárie.

– Esteve alguma vez em Devil's Acre, papai? – Brandy falava agora sem avivar-se, com expressão sombria –. Ou em algum dos outros subúrbios?

O general sabia o que seu filho estava pensando. Na luta por sobreviver em meio de uma miséria sem esperanças, que outra coisa podia ser a pessoa a não ser Bárbara? A sua memória acudiram lembranças de acampamentos militares, da Crimea, do Scutari, de mortes súbitas e violentas, pelo que faziam os homens nas cidades durante as semanas que aguardavam a batalha. Qualquer dia seus corpos podiam saltar feitos em pedaços, podiam ficar irreconhecíveis sob o sol da África ou congelar-se nas neves do Himalaya. Se ele não conhecesse Brandy, tampouco Brandy o conhecia.

– Estive trinta anos no exército, Brandy – respondeu –. Sei o que as pessoas podem chegar a fazer. Responde isso a sua pergunta?

– Não. – Brandy apurou seu Porto –. Simplesmente acredito que já não é aceitável continuar evitando a questão.

– Será melhor que nos reunamos com as senhoras – disse o general, levantando-se-, antes que se dêem conta de que tornamos a falar desse assunto.

Alan Ross também se levantou.

– Conheço um membro do Parlamento a quem eu gostaria de visitar. Quer vir Brandy? Talvez possamos ajudá-lo. Soube que está preparando algum projeto de lei para apresentá-lo ante a câmara.

– Sobre o que? – perguntou Brandy, seguindo aos outros dois.

– Sobre a prostituição infantil, naturalmente – respondeu Ross, abrindo a porta –. Mas não o mencione diante de Christina, se não se importar. Acredito que esse tema lhe é muito penoso.

Agradou ao general ouvir este último. Pelos comentários de sua filha, tinha acreditado que o tema lhe parecia de mau gosto mais que doloroso. Sentiu-se envergonhado por tê-la julgado mau, mas nada podia fazer; desculpando-se só conseguiria trair seus pensamentos.

Justo antes da meia-noite, quando os outros se foram já, o general subiu lentamente pelas escadas atrás de sua esposa.

– Sabe, cada dia eu gosto mais de Alan Ross. Christina teve muita sorte – comentou.

Ela se voltou e o olhou com frieza.

– E o que quer dizer com isso?

–Exatamente o que disse que até com a melhor intenção pode ser que alguém chegue a descobrir que uma pessoa não é o que tinha se esperado dela. Alan Ross é ainda mais do que podíamos supor por nosso contato prévio.

– Fala por você – replicou ela com firmeza –. Não acreditará que tivesse permitido a minha filha que se casasse com um homem de cujo valor não estivesse segura.

O general se sentiu terrivelmente doído e disse a verdade sem pensar.

– É difícil saber até que ponto pudemos escolher no assunto da Christina.

Os olhos de Augusta pareciam tão estranhos como os de um desconhecido com quem tivesse tropeçado acidentalmente na rua. A sensação de comodidade que havia sentido o general na mesa entre as taças de vinho se desvaneceu como uma ilusão.

– Eu sempre escolho – replicou com tom incisivo –. Encarrego-me de que seja assim. Acaso acredita que sou uma incompetente?

Essa era uma idéia que jamais tinha passado pela cabeça do general desde o dia em que a conheceu durante seu baile de apresentação em sociedade. Já então Augusta tinha um incrível aprumo. Sua falta de nervosismo, o fato de que não paquerasse nem risse bobamente foram algumas das razões que lhe atraíram nela. A lembrança era muito longínqua. Tentou recuperar os sentimentos de então: a excitação, a espera; mas não pôde. Doeu-lhe vagamente. As qualidades que naquela época lhe tinham encantado eram agora tão aterradoras como uma porta fechada.

– Não seja ridícula! – doído, viu-se impulsionado a defender-se a si mesmo, fingindo a arrogância que em outro tempo ostentava com tanta facilidade –. Conheço a Christina tão bem como você. – Era uma mentira de proporções maiúsculas –. É excessivamente obstinada. E inclusive você, minha querida Augusta, é capaz de cometer algum engano de vez em quando.

Lady Augusta estava cansada; sua expressão se endureceu, fechando-lhe ao fim a porta. Virou-se e continuou subindo. Levava as costas eretas, mas subia com esforço.

– Naturalmente – disse –. E também você, Brandon. Desejaria que se abstivesse de falar na mesa sobre temas tão desagradáveis como os subúrbios e seus diversos desventurados, sobre tudo quando temos convidados. É de má educação e só pode produzir situações embaraçosas. Deveria se ter dado conta por si mesmo! A consciência social é algo muito elogiável, mas há momentos e lugares apropriados para exercitá-la. Dado que esse desgraçado lacaio serviu nesta casa, agradecer-lhe-ia que se abstivesse de voltar a nomeá-lo. Não desejo que todo o pessoal tenha ataques de histeria ou a metade deles acabará despedindo-se, e já é bastante duro hoje em dia conservar a bons criados! – Chegou ao patamar e virou-se para seu dormitório –. Boa noite, Brandon.

Ao general não ficava outra coisa que lhe desejar boa noite e seguir até seu próprio dormitório. Fechou a porta e se deteve. O aposento não lhe parecia familiar, apesar de que todo seu mobiliário, seus livros e lembranças lhe pertenciam desde há anos.

No dia seguinte, Stride saiu ao encontro do general no vestíbulo. Tinha o rosto branco e retorcia as mãos em lugar de deixá-las aos lados como de costume. Não se via nenhuma das criadas. Por um instante, ao general assaltou a idéia de que Augusta tinha razão. Todas as criadas se despediram e tinham fugido de noite por medo de continuar sob o mesmo teto que uma criatura como Max, e a que em qualquer momento pudessem arrebatá-las para convertê-las em prostitutas.

Stride aguardava com um olhar de desolação.

– O que ocorre? – perguntou Balantyne –. O que ocorreu?

– Os jornais, senhor...

Isso era tudo! O alívio o fez enfurecer.

– Maldição, homem, assim se atrasaram! Se não tiverem chegado dentro de uma hora, envia a alguém para buscá-los! – voltou-se para passar junto ao lacaio e entrar na sala do café da manhã.

–Não, senhor – disse Stride, mantendo-se firme –. Receio que não me expliquei bem. Os jornais já chegaram... É o que contêm senhor. Houve outro assassinato em Devil's Acre, senhor, este muito pior.

O general não concebia nada pior que a mutilação do Hubert Pinchin. Horrorizado, tentou imaginar o que podia ser, e não conseguiu.

– Não estava tão... – Stride vacilou e engoliu saliva –. Não tinha tantas feridas, senhor.

– Não? –O general estava confuso e aliviado ao mesmo tempo. – Não havia dito que era pior?

– Era sir Bertram Astley, senhor – respondeu Stride, baixando a voz –. Acharam-no na porta de uma casa de encontros para pessoas do sexo masculino exclusivamente.

– Do sexo masculino...? Deus bendito! Refere a um bordel para homossexuais?

– Sim, senhor. – Stride fez uma careta; não estava acostumado a tão grosseira franqueza.

– Bertie Astley... – O general Balantyne se sentiu enjoado. De repente o aroma de kedgeree6, que chegava da bandeja de prata que havia sobre o aparador na sala do café da manhã, pareceu-lhe nauseabundo.

– Quer tomar um brandy na biblioteca, senhor? – ofereceu-lhe Stride.

– Sim, por favor. – Bendito fora. O general não tinha sabido apreciar ao Stride em tudo o que valia até então –. Sim, quero. – Agradecido, dirigiu-se para a biblioteca.

– Que deseja que diga a lady Augusta, senhor?

O general se deteve. Gostaria de evitar a sua esposa inteirar-se daquilo. Era repugnante; não deveria saber tais coisas.

–Diga-lhe que se cometeu outro assassinato. – De qualquer forma, a realidade acabaria por impor-se; ele não podia protegê-la disso. Mas melhor que lhe chegasse pelas palavras decentes de alguém como Stride, em lugar de ter que ler o sensacionalismo anônimo dos jornais ou escutar a fofoca irrefletida de algum outro –. Será melhor que lhe diga que era sir Bertram Astley, mas não mencione o lugar onde foi achado.

– Perfeitamente, senhor. Por desgraça, os detalhes da morte de sir Bertram serão do domínio público muito em breve – disse Stride.

– Sim. – Ao general não lhe ocorreu nada mais que dizer-. Sim. Obrigado, Stride. – Entrou na biblioteca e descobriu que o brandy já estava ali, em uma salva junto ao jornal. Serviu-se de uma taça e logo se sentou para ler.

O cadáver de sir Bertram Astley tinha sido encontrado na porta de uma casa de má fama em Devil's Acre. Que maneira tão idiota de expressá-lo! A causa da morte era uma profunda punhalada nas costas, mas também lhe tinham feito um corte sobre as virilhas e a boca do estômago. Não nomeavam os órgãos genitais, mas a implicação era óbvia e inexplicavelmente grotesca pela omissão. Aparentemente o assassino pretendia lhe mutilar como às anteriores vítimas, mas algo o tinha feito fugir antes que pudesse fazer algo mais que dar rédea solta a seu ódio demente em um único e furioso golpe de faca. O inspetor Thomas Pitt era o encarregado do caso, como dos outros dois.

O general deixou o jornal e bebeu o brandy de um só e ardente gole.

 

Na escuridão que precede ao amanhecer, um sargento com o rosto branco como o papel tinha ido procurar ao Pitt em um cabriolé de aluguel. O homem retorcia o chapéu e se aferrava a ele com dedos intumescidos enquanto tentava transmitir a urgência de sua mensagem sem expressar o horror do que tinha visto.

Pitt o compreendeu. Cometeu-se outro assassinato. Só um achado de muita gravidade teria levado o sargento a sua casa à uma hora semelhante.

– Fora faz um frio espantoso, senhor – indicou o sargento, querendo ser útil.

– Obrigado.

Pitt vestiu a jaqueta e depois um volumoso casaco com o qual parecia a ponto de inchar-se como uma vela sob uma rajada de vento. Agarrou o cachecol que lhe estendia o sargento, enrolou-o ao redor do pescoço, encasquetou-o chapéu,

Esmagando-os cabelos sobre as orelhas, e abriu a porta principal. O frio, como havia dito o sargento, era espantoso.

Ambos os homens ocuparam o cabriolé, que avançou dando sacudidas sobre a pavimentação desigual em direção a Devil's Acre.

– E então? – disse Pitt.

– Feio assunto – respondeu o sargento, meneando a cabeça –. Sir Bertram Astley. Com cortes, mas não... Bom, não realmente feito em pedaços, por assim dizer.

– Não está mutilado como os outros?

– Não, dá a impressão de que interromperam ao nosso maníaco. Algum cliente tardio, possivelmente. – Voltou a menear a cabeça.

– Um cliente tardio... – Pitt estava perplexo –. O que quer dizer?

– Alguns dirão que essa é a pior parte, senhor. Não sei como vão contar a sua família! Encontraram-no na porta de um bordel... Para homens.

– OH, Meu Deus! – Pitt compreendeu de repente por que o sargento se sentia tão perturbado, por que lhe custava tanto expressar-se. Como dizia a pessoas como os Astley que o filho de sua casa tinha sido assassinado e indecentemente ultrajado na porta de um bordel para homossexuais? Agora compreendia a piedade que expressava o rosto do sargento e a advertência desnecessária sobre o frio.

Mas acima de tudo devia ver o cadáver e o lugar em que o tinham achado.

– Sinto muito, senhor. – O sargento enfiou o chapéu e lhe deu um golpe com a palma da mão.

– Quem o achou e quando? – perguntou Pitt.

– O agente Dabb, senhor. Deixei-o ali de guarda para que não se toque nada. Um moço brilhante. Viu-o, a sir Bertram, quero dizer, por volta das quatro e quinze, ou pouco depois. Ouviu o Big Ben, diz. O corpo estava atirado junto à porta. Assim que o agente Dabb se aproximou para ver o que fazia ali. Então, claro, viu que estava morto. Encontramos muitos tipinhos mortos em Devil's Acre e arredores, assim não se surpreendeu muito, não tanto para chamá-lo, até que abriu o casaco do cadáver e o pobre Dabb viu o que lhe tinham feito em... O que lhe tinham feito. Então, claro está, chamou-nos... A toda pressa! E eu vim buscar a você.

– Como soube quem era? – Quanto tempo podia jazer um cadáver em Devil's Acre sem que lhe roubasse tudo menos à roupa? O sargento adivinhou o que pensava.

– Não tinha dinheiro, claro está, mas ainda restavam os cartões, algumas cartas e coisas assim. De qualquer forma, não sei o que dirá o médico, mas não acredito que levasse ali muito tempo, não mais de uma hora. Do contrário o teriam encontrado os clientes que entravam e saíam. É claro, esses terminam logo. Chega à luz do dia e a única coisa que querem é estar onde não lhes envergonhe que os vejam. De volta a casa, para abençoar a mesa familiar, certamente! – O desprezo de seu tom era espesso e forte como o breu, embora Pitt não soubesse se este se dirigia ao fato de que freqüentassem aquele lugar ou a sua hipocrisia por ocultá-lo. Em outra ocasião, talvez, o perguntasse.

O cabriolé se deteve com uma sacudida e eles desceram. Achavam-se no extremo sul de Devil's Acre junto ao rio, cujo úmido fôlego subia em redemoinhos por cima do orvalho que se endurecia como gelo sobre a pavimentação desde que tinha cessado a chuva. Um pouco mais longe, sobre suas cabeças, abatiam-se as torres góticas das câmaras do Parlamento na escuridão reinante.

Um jovem agente com lanterna fazia guarda junto a um corpo desabado ante uma porta e coberto por um capote, salvo o rosto. A decência tinha impulsionado ao agente a ocultar o rosto com sua própria capa, e tremia de frio. Uma estranha reverência pensou Pitt, a que nos faz nos tirar um objeto e nos gelar até os ossos para cobrir a um morto tocado já pelo frio definitivo da tumba.

– Bom dia, senhor – disse o agente com respeito –. Bom dia, senhor Pitt.

Essa era a fama.

– Bom dia, agente Dabb – disse o inspetor, lhe devolvendo o cumprimento. A rua era sórdida e cheirava a urina e lixo. Nos portais frente à casa havia outros dejetos humanos dormindo. Vistos na penumbra não pareciam muito diferentes do cadáver do Bertram Astley –. Como se deu conta de que estava morto? – perguntou, com a curiosidade de saber o que tinha feito deter-se o agente para examinar aquele corpo em particular.

– Estava no lado oeste da rua, senhor – respondeu o agente Dabb erguendo-se um pouco.

– O lado oeste?

– O vento sopra do este, senhor. E também esteve chovendo. Ninguém, nem sequer um bêbado, ficaria a dormir sob a chuva tendo onde refugiar-se do outro lado, apenas a seis metros.

Pitt lhe sorriu com aprovação, depois pegou a capa e a devolveu. Inclinou-se sobre o cadáver. Bertram Astley tinha sido um homem bonito: feições regulares, nariz proporcional, cabelos loiros com longas costeletas e bigode de um tom ligeiramente mais escuro. Tinha os olhos fechados e era impossível adivinhar quanta era sua vitalidade quando ainda respirava.

Pitt olhou para baixo e abriu o casaco que o agente Dabb se havia sentido impulsionado a fechar sobre a ferida, que era um só corte superficial. Não havia muito sangue. Pitt ergueu os ombros para lhe ver as costas. O casaco estava rasgado e havia uma mancha longa e escura um pouco para a esquerda da coluna. Aquela era a ferida mortal, igual às outras. Voltou a deixar o cadáver como estava antes.

– Enviou à procura do cirurgião? – perguntou.

– Sim, senhor. – É claro que sim; seu orgulho profissional não lhe permitiria esquecer algo tão elementar.

Pitt observou a rua. Não viu nada mais que saísse do normal. Era estreita, ladeada por casas desconjuntadas de madeiras podres e gesso bolorento e descascado que caía em pedaços. As bocas-de-lobo transbordavam. Teria visto alguém a um homem com um cadáver nas costas, ou a duas pessoas brigando? Duvidava-o. Se alguma testemunha tinha saído ou entrado no bordel, acaso o acharia? Falaria então? Improvável. A homossexualidade era um delito castigado com uma longa condenação de cárcere e supunha a marginalização social por toda vida. É claro que se praticava discretamente, mas obrigar às pessoas a admitir que conhecessem sua existência era muito diferente.

– Ocupe-se de tudo, sargento – ordenou que –. Tem o endereço da família?

– Sim, senhor – Estendeu-lhe um papel arrancado de sua caderneta de notas. Pitt suspirou.

– Então será melhor que vá contar antes que os jornais tenham tempo de entregar um número extra à rua. Ninguém deveria inteirar-se deste tipo de coisas pelos jornais.

– Não, senhor. Receio que havia alguns jornalistas por aqui faz uma hora. Não sei como se inteiraram...

Não valia a pena nem pensar sobre isso. Havia olhos e ouvidos por toda parte, gente acostumada à morte e mais que disposta a fazer que algum abutre da imprensa fosse o primeiro em voltar correndo ao Fleet Street com material para grandes manchetes em troca de uma moeda de seis pennies.

Pitt voltou a subir ao cabriolé e deu ao cocheiro o endereço da casa de Londres dos Astley.

O céu começava a iluminar-se fracamente quando desceu do cabriolé e o despediu. Não tinha a menor idéia de quanto ia demorar.

A rua estava virtualmente deserta. Algum ajudante de cozinha tirava o lixo; um moço engraxate fechou de repente uma porta traseira. Só nas dependências dos criados havia animação. Pitt subiu os degraus de entrada e bateu na porta principal. Abriu-lhe um lacaio com expressão de surpresa. Pitt não lhe deu tempo para julgá-lo.

– Bom dia – disse com firmeza –. Sou da polícia. Receio que sou portador de uma notícia muito grave. Teria a amabilidade de me conduzir a um lugar apropriado e informar ao cabeça da família? E será melhor que traga brandy ou o que considere melhor para o golpe que vão receber.

O lacaio ficou estupefato. Não protestou quando Pitt entrou na casa e fechou a porta.

– Sir Bertram... – começou.

– Não está em casa, sei – disse Pitt em voz baixa, interrompendo-o. Receio que esteja morto.

– OH. – O lacaio tentou dominar-se, mas aquela situação era muito para ele –. Será... – Engoliu em seco. Será melhor que vá procurar ao senhor Hodge, o mordomo, e ao senhor Beau, o irmão de sir Bertram. – antes que Pitt pudesse replicar, o lacaio abriu de repente a porta da fria saleta, onde uma criada tinha limpo já a lareira mas ainda não tinha aceso o fogo –. Senhor.

Deixou que Pitt se defendesse por si só e desapareceu em direção à parte posterior do escuro vestíbulo, onde se refugiou atrás da segurança da porta de pano verde.

Pitt inspecionou a sala em que se achava. Estava ricamente mobiliada, em grande parte com peças exóticas: mesas laqueadas do Japão, móveis de ébano em partes embutidas, telas e aquarelas francesas nas paredes. Os Astley não careciam de gosto nem de dinheiro para dar-se caprichos e suas preferências eram muito diversas.

Entrou o mordomo, um homem mais velho de rosto grave, levando na mão uma bandeja de prata com brandy e copos de grosso cristal francês.

– É correto o que diz Frederick, senhor, que sir Bertram morreu em um acidente?

Mentir não tinha sentido; seria o mordomo quem teria que controlar aos criados e ocupar-se de que, durante os primeiros dias de aflição da família, não se descuidassem os deveres da casa.

– Sinto muito, não foi um acidente. Sir Bertram foi assassinado.

– Meu Deus... – Hodge deixou a bandeja violentamente sobre a mesa –. OH, Meu Deus.

Não lhe tinha ocorrido nada mais que dizer quando instantes depois um jovem abriu a porta e ficou parado olhando fixamente. Levava ainda suas roupas de dormir e roupão. Tinha úmidos os cabelos loiros depois de haver-se lavado, mas ainda estava sem barbear. Seus traços eram extraordinariamente parecidos com os do finado: tinha o mesmo nariz proporcional e a fronte ampla. Mas seu rosto, apesar da temerosa espera que contraía suas feições, estava animado; tinha as linhas marcadas ao redor da boca e os olhos grandes e azuis.

– O que aconteceu? – perguntou, fechando a porta.

Pitt se deu conta da sorte que tinha tido com Amaciam e Valeria Pinchin. Achava que recordaria quão duro resultava aquilo, mas voltou a sentir o mesmo impacto.

– Sinto muito, senhor – respondeu em voz baixa. Era mais fácil contar tudo de uma vez, mais compassivo que ir dando pouco a pouco os detalhes –. É meu dever informá-lo que acabamos de descobrir o cadáver de seu irmão, sir Bertram, em Devil's acre. Revelo que foi assassinado de uma forma similar ao doutor Hubert Pinchin, embora não o mutilassem tão gravemente... – interrompeu-se; não parecia haver mais que dizer –. Sinto muito, senhor – repetiu.

Beau Astley ficou imóvel por uns segundos, depois se ergueu e se aproximou da mesa. Hodge lhe ofereceu o brandy, mas seu amo não fez conta.

– Em Devil's Acre?

Seria pior perguntar agora, enquanto Astley estava paralisado pela comoção, ou depois, quando se tivesse dissipado aquela espécie de anestesia e a ferida estivesse em carne viva, inevitável? Em qualquer caso, Pitt só podia guiar-se por uma resposta.

– Sabe você o que podia estar fazendo sir Bertram naquela zona?

Beau Astley ergueu a vista. Depois pegou o brandy que lhe oferecia Hodge e o bebeu em dois goles. Serviu-se de dois dedos mais e também os bebeu.

– Suponho que já não tem sentido mentir, inspetor. Bertie jogava de vez em quando, não muito, e não acredito que perdesse jamais. De fato, acredito que ganhava quase sempre. Estava acostumado a ir a um ou outro clube de cavalheiros. Mas em algumas ocasiões gostava de visitar subúrbios como Whitechapel ou Devil's Acre. Não compreendo por que, são lugares repugnantes! – Fez uma pausa, como se o fato de ser incompreensível pudesse negar ainda sua veracidade.

Pitt se surpreendeu; naquele estado de choque, Beau Astley tinha perdido de tal modo seu habitual domínio de si mesmo que nem sequer parecia incomodar-se pela presença de um policial em sua saleta fazendo-lhe perguntas pessoais sobre sua família. Não havia condescendência em sua voz.

– E sir Bertram foi jogar ontem de noite? – prosseguiu Pitt.

Beau estendeu a mão para uma cadeira e Hodge a aproximou imediatamente. Sentou-se. Hodge se retirou silenciosamente e fechou a porta atrás de si.

– Não. – Beau apoiou a cabeça nas mãos e olhou fixamente a mesa –. Não, aí está. Foi à casa do Mai. Foi convidado para jantar.

– Mai?

– OH, claro, você não sabe. A senhorita Woolmer, ela e Bertie iam comprometer-se... Ao menos isso acredito. OH, Meu Deus! Será melhor que vá dizer-lhe. Não posso deixar que o descubra pela polícia ou por algum idiota fofoqueiro. – Ergueu a vista sem esperança –. Suponho que não haverá nenhuma possibilidade de evitar que saia nos jornais, não? Meu pai morreu, mas minha mãe vive no Gloucestershire. Terei que escrever... – Calou sem concluir a frase.

– Sinto muito, os jornalistas já tinham estado lá antes que me chamassem – respondeu Pitt-. Em uma zona como aquela, seis pennies é muito dinheiro. – Não considerou necessário explicar mais.

– É claro. – De repente Beau estava terrivelmente cansado; a animação que apenas uns minutos antes mostrava seu rosto se apagara. – Importa-se se me vestir e vá ver a senhorita Woolmer imediatamente? Não quero que se inteire por nenhuma outra pessoa.

– Não, senhor, sem dúvida é o melhor – disse Pitt. Observou ao Beau ficar em pé. Tinha que lhe contar o resto; seria do domínio público no meio da amanhã. – Receio.. – que há uma coisa mais, senhor. Encontraram-no em um lugar extremamente... – procurou a palavra adequada –, extremamente desafortunado.

– Já o disse. Em Devil's Acre.

– Sim, senhor, mas na porta de um bordel só para homens.

As feições do Beau se retesaram em um esforço de sorriso. Já nada podia comocioná-lo mais.

– Eu diria que como todos os bordéis, não, inspetor?

– Não – replicou Pitt em voz baixa. Detestava ter que contar-lhe. Sentia simpatia por aquele homem –. Na maioria dos bordéis o pessoal é feminino...

– Isso é ridículo. – Os olhos azuis escuro do Beau se dilataram –. Bertie não era...

– Não – disse Pitt rapidamente –. Estava perto... Suponho que simplesmente seu atacante alcançou-o ali. Mas tinha que lhe avisar, já que os jornais o mencionarão.

– Sim, suponho que sim. – Beau afastou os cabelos que lhe caíam sobre a testa. – Não deixam tranquilo nem o príncipe de Gales, assim não vai ter escrúpulos com o Bertie. Se me perdoa, irei vestir me. Hodge lhe servirá um brandy ou qualquer outra coisa. – foi-se antes que Pitt pudesse lhe agradecer.

O inspetor decidiu pedir um chá bem quente, e possivelmente também uma torrada. A idéia foi suficiente para que recordasse o vazio gelado que tinha em seu interior. Examinar um cadáver era desagradável, mas os mortos já não sentiam nada. Era contar aos vivos o que mais doía ao Pitt e o que o fazia sentir-se culpado e impotente. Ele era quem causava o sofrimento, o espectador, protegido de tudo salvo da imagem refletida dessa dor.

Tomaria o chá na cozinha. De momento não tinha mais pergunta que fazer ao Beau Astley, mas talvez averiguasse algo nas dependências dos criados, inclusive inadvertidamente. Mais tarde, quando tivesse recebido já a notícia, teria que visitar a senhorita Mai Woolmer, que ao que parecia tinha sido a última pessoa em falar com o Bertram Astley antes que fosse a Devil's Acre.

Durante aquela breve pausa na cálida cozinha com uma xícara de chá entre as mãos, Pitt solicitou múltiplos detalhes do Hodge, do lacaio, do valete e de várias das criadas. Depois desfrutou de um almoço excelente com todo o pessoal doméstico na longa mesa, em meio de uma grande gravidade. As criadas sorviam as lágrimas, os homens guardavam silêncio, a cozinheira e a ajudante tinham o nariz avermelhado.

Entretanto, pelo que pôde julgar Pitt, todos aqueles detalhes não contribuíam mais que a traçar o perfil comum de um jovem com título, com ganhos mais que elevados e muito atraentes. Seu caráter tampouco saía do comum: um pouco egoísta, como podia esperar-se do filho primogênito que conhecia desde seu nascimento seu direito exclusivo à herança paterna. Mas se havia maldade ou cobiça nele, aparentemente seus servidores não tinham sabido vê-lo. Os hábitos pessoais de sir Bertram também podiam considerar-se típicos: um pouco de jogo sem complicações de vez em quando, mas, quem não jogava se podia permitir-se Às vezes bebia muito, mas não era briguento nem licencioso. Nenhuma das criadas se queixou dele, nem era miserável com os gastos da casa. Na avaliação das contas, era um cavalheiro.

Pouco depois das duas, Pitt conseguiu entrar na casa Woolmer, de novo com reticência e só para evitar que algum vizinho curioso o visse importunando na porta. Ninguém desejava que se soubesse que a polícia se achava na casa, pela razão que fosse!

– A senhorita Woolmer não poderá receber – disse o lacaio com frieza –. Recebeu a notícia de uma perda e está indisposta.

– Sei perfeitamente de que perda se trata – replicou Pitt –. Desgraçadamente, e como aparentemente sir Bertram jantou aqui ontem, é meu dever inquirir à senhorita Woolmer sobre o que possa saber sobre o estado de ânimo de sir Bertram, ou se fez algum comentário sobre suas intenções...

O lacaio o olhou fixamente, aborrecendo sua grosseria.

– Tenho certeza de que se a senhorita Woolmer souber algo que possa lhe ser útil, alegrar-se-á de poder comunicar-lhe quando se tiver recuperado – disse.

Durante todo o dia Pitt não havia sentido mais que pesar; agora a ira lhe permitiu por fim liberar-se dele. – Receio que a investigação de um assassinato não pode depender da comodidade da senhorita Woolmer – replicou –. Há um louco solto em Devil's Acre. Três pessoas foram assassinadas e mutiladas, e se não apanharmos ao que o fez, não há razões para duvidar de que haverá uma quarta e uma quinta vítima. Não há tempo que perder por uma indisposição! Faça o favor de informar à senhorita Woolmer de que lamento a necessidade de incomodá-la nestas circunstâncias – continuou Pitt –, mas ela poderia me proporcionar informação que nos ajude a prender o assassino de sir Bertram.

– Sim... – O lacaio tinha empalidecido –, se for inevitável.

Deixou ao Pitt a sós e se afastou pelo vestíbulo procurando as palavras adequadas para transmitir a ordem. Passou mais de meia hora antes que conduzissem ao Pitt a saleta, um aposento lotado de quadros, adornos, rendas, trabalhos de agulha de crochê e bordados. Um bom fogo ardia na lareira e todos os lampiões estavam acesos. É claro as cortinas estavam corridas como convinha a uma casa que sofria uma perda violenta.

Mai Woolmer era uma jovem extraordinariamente atraente e com uma bonita figura, envolta agora em elegante luto e deitada em uma chaise longue. Vestia um tom cinza não muito colorido para um momento tão delicado nenhuma ostentosa exibição de seus sentimentos. Tinha os cabelos espessos e brilhantes como o mel, e feições regulares. Olhou ao Pitt com seus olhos grandes e afastados, segurando um lenço em uma mão.

A senhora Woolmer se achava de pé detrás dela como um sentinela, com o opulento peito coberto de púrpura debruada, adequado para um meio luto e para circunstâncias tão difíceis. Tinha os cabelos tão loiros como sua filha, mas descoloridos em algumas zonas, e seu rosto era mais pesado, com o queixo muito pequeno e o pescoço muito grosso. Não havia dúvida de que se sentia ofendida, e Pitt era o alvo de sua ira. Ali estava o inspetor, e ela supunha que sem defesa possível. Lançou-lhe um olhar furioso.

– Não consigo a adivinhar porque considera necessário nos incomodar neste momento de aflição – disse com tom glacial –. Confio em que terá o bom gosto de ser breve.

Pitt desejaria lhe responder com igual grosseria, dizer-lhe o que ele opinava sobre o bom gosto: uma questão de domínio sobre si mesmo, de consideração pelos outros para não incomodá-los se podia evitar-se, sobre tudo quando outros não podiam desforrar-se.

– Tentá-lo-ei, senhora – se limitou a dizer –. O senhor Beau Astley me informou que sir Bertram pensava jantar aqui ontem de noite. Chegou a fazê-lo assim? – Não o tinham convidado a sentar-se, e a senhora Woolmer permanecia de pé, em guarda.

– Sim, fez isso – respondeu ela com aspereza.

–A que hora se foi?

– Pouco depois das onze. Não posso precisá-lo mais.

– Achava-se bem de saúde e de bom humor? – A pergunta carecia de sentido. Se tivessem tido uma violenta disputa, era improvável que aquelas mulheres o dissessem.

– Excelente. –A senhora Woolmer ergueu o queixo –. Sir Bertram era sempre extremamente feliz aqui. Queria muito a minha filha. De fato, tinha falado comigo com intuito de pedir sua mão. – Respirou fundo, e uma sombra de indecisão cruzou por seu rosto.

Era uma mentira que agora ninguém podia desmentir? Não, Beau Astley lhe havia dito o mesmo. Então, a que vinha a dúvida? Produziu-se alguma desavença a noite anterior, uma mudança de opinião?

– Lamento-o sinceramente, senhora – disse Pitt –. Disse algo sir Bertram sobre onde pensava ir quando saísse daqui?

– Bom, a casa, suponho! – respondeu ela, arqueando as sobrancelhas.

– Não o entendo. – Mai falou pela primeira vez. Tinha uma voz agradável, um pouco fraca, mas absolutamente não gritante. – Simplesmente não o entendo.

– É claro que não! – disse sua mãe com irritação –. É incompreensível para qualquer pessoa decente. Só podemos supor que o seqüestraram. Essa é a linha de investigação que deveria seguir senhor... – Passou por cima o sobrenome, encolhendo o ombro para indicar que não tinha importância –. O pobre sir Bertram sem dúvida foi raptado. Depois, quando os que cometeram esse crime se deram conta de quem era, tiveram medo...

– Possivelmente Bertie lutou com eles – sugeriu Mai. As lágrimas afluíram a seus olhos –. Que valente! Certamente o fez!

– Foi uma baixeza! –exclamou a senhora Woolmer, encantada com sua explicação dos fatos –. Assim foi como deve ter ocorrido, tenho certeza. Não sei para que pagamos à polícia, se depois permitem que aconteçam estas coisas!

Pitt tinha interrogado já ao cocheiro do Astley durante o almoço.

– Sir Bertram não fora em sua própria carruagem? – perguntou.

–Perdão? –A senhora Woolmer esperava uma desculpa ou um esforço por defender-se, em lugar daquela extraordinária pergunta.

– Não. – Mai respondeu por ela –. Despediu sua carruagem de quatro portas e depois ordenou ao Willis que parasse um cabriolé. Oferecemo-lhe nossa carruagem, mas não quis nem ouvir falar disso. Era extremamente considerado. –enxugou-se uma lágrima com o lenço –. Extremamente considerado.

– Se tivéssemos sido mais persuasivas, talvez não o tivessem raptado! – A acusação seguia dirigindo-se ao Pitt; era a polícia que não cumpria com seu dever. A pessoa distinta não deveria necessitar amparo dos canalhas para andar pela rua.

Era possível que tivessem raptado ao Astley, mas muito improvável. Mesmo assim, se os Woolmer não conheciam seu costume de visitar Devil's Acre de vez em quando, não valia a pena que o dissesse ele. De qualquer forma não acreditariam nele, e talvez a ira lhes servisse para agüentar a pena; não seria nada estranho. Nos casos de enfermidade, sempre se culpava ao médico que não podia salvar ao paciente; tratando-se de um crime, culpava-se à polícia.

Pitt observou-as; Mai continuava comportando-se como correspondia a uma senhorita. Não demonstrava ainda a estupidez própria de uma autêntica dor. Tinha os pés cuidadosamente ocultos sobre a chaise longue, e a saia disposta nas dobras que mais favoreciam seus encantos e sua modéstia. Retorcia um pouco as mãos sobre o regaço, mas combinavam sendo formosas, e não tinha perdido a serenidade. Naquela postura podia ter posado para um pintor neoclássico, se tivessem tirado três quartas partes dos adornos que lotavam as mesas e o piano forte que havia a suas costas.

A senhora Woolmer se preparava como Britania7 disposta a repelir ao inimigo. Ambas as mulheres tentavam ainda esclarecer seus pensamentos depois da confusão, e não deixariam escapar nada. Não valia a pena insistir. Em realidade não tinham compreendido ainda. Com o tempo recordariam possivelmente alguma palavra ou gesto que tivesse importância.

– Foi em um cabriolé por volta das onze – repetiu Pitt –. E, pelo que vocês sabem, achava-se perfeitamente e estava de bom humor, e tinha intenção de retornar a casa diretamente.

– Exato –concordou a senhora Woolmer –. Não sei que mais achava você que podíamos lhe dizer.

– Só a hora, senhora, e o meio de transporte. E que não tinha intenção de visitar ninguém mais, que vocês soubessem.

A senhora Woolmer soou o nariz com um pequeno bufo, recordando ao Pitt um cavalo de tiro.

– Então, se isso for tudo, talvez tenha a amabilidade de partir e nos deixar sozinhas.

Pitt saiu, passou junto ao lacaio e desceu os degraus de entrada. Dirigiu-se de novo para o leste, de rosto ao vento. Perguntava-se como seria Mai Woolmer quando sua mãe não estava em frente. Amava-a Bertram Astley? Era formosa, sem dúvida, e suas maneiras a faziam aceitável como esposa de um cavalheiro. Tinha também o engenho, a coragem e a franqueza necessários para rir de si mesma e elogiar a outros sem ressentimento? Era plácido seu caráter? Ou talvez Bertie Astley nem sequer tivesse pensado em tais coisas? Possivelmente a beleza e um temperamento afável bastavam. Costumavam ser suficientes para a maioria dos homens.

E o que tinha visto no semblante do Beau Astley ao pensar imediatamente no Mai, inclusive naquele momento em que tinha perdido a um irmão? Era também amor?

Na próxima vez que o visse teria que recordar que agora era sir Beau! E presumivelmente um homem muito mais rico. Depois de um tempo prudente, adotaria o papel de seu irmão e se casaria com o Mai Woolmer? Era muito possível que a senhora Woolmer fizesse tudo o que estivesse em sua mão para que assim fosse. Não havia tantos jovens solteiros com título e dinheiro, e a nova temporada lhes jogava em cima.

Pitt subiu a gola do casaco; o vento do este trazia consigo um pouco de neve. Detestava a idéia de examinar os defeitos e debilidades dos Astley.

Na manhã seguinte, Pitt foi chamado ao escritório de seu superior.

Dudley Athelsan se achava de pé, imaculadamente vestido com um traje feito à medida, mas levava a gravata-borboleta torcida e a gola da camisa parecia apertá-lo. Sobre a mesa se espalhavam os jornais da manhã.

– Pitt! Pitt, entre. Temos que fazer algo. É espantoso! Veio ver-me o delegado em pessoa. Dentro de pouco acabarei recebendo cartas do primeiro-ministro!

– Por três assassinatos em um subúrbio? – Pitt observou o caos da mesa e o rosto aceso do Athelsan –. Dentro de alguns dias haverá um novo escândalo na alta sociedade e esquecerão o resto.

– Jura-me isso? – Athelsan ergueu as mãos ao céu com olhar desconfiado. – E você se encarregará de que o haja, não? Maldição, Pitt, tem idéia do que supões este último assassinato? Os homens decentes têm medo de... – interrompeu-se bruscamente.

– De ir a Devil's Acre? – Pitt terminou a frase por ele, com um sorriso. Athelsan grunhiu.

– Você pode ser tão piedoso como queira Pitt. Não tem que justificar-se ante essa gente, graças a Deus! Do contrário expulsariam a todos pelas orelhas. Alguns homens muito influentes se divertem alguma ou outra vez em estabelecimentos como o de Max Burton. Aceitam o risco de que lhes cobrem demais, inclusive que os roubem na rua ou lhes dêem algum golpe. Mas ser assassinados e castrados! Meu Deus, isso é impensável! E o escândalo, a vergonha!

– Possivelmente seja um reformista entusiasmado que tenta deixar sem clientela os prostíbulos – disse Pitt ironicamente.

– Maldita seja sua rabugice – replicou Athelsan sem perder a calma –. Não é coisa para tomar-se à ligeira, Pitt. –afrouxou a gola da camisa –. É preciso que resolva este caso e que esse maníaco acabe em Bedlam8, onde deve estar. E me importa um nada que seja um clérigo demente tentando encher o inferno por sua conta ou um fanfarrão ambicioso que cria que pode lavrar um império. O que conseguiu até agora?

– Muito pouco, senhor...

– Não quero desculpas, maldição! Fatos, testemunhas... O que sabemos?

Pitt mencionou os escassos fatos médicos de que dispunha.

– Isso não nos servirá muito! – disse Athelsan com desespero.

– Não há testemunhas – acrescentou Pitt.

– Nenhuma só?

– Esperava que houvesse? – perguntou Pitt, dando de ombros e esboçando um sorriso –. Declarou algum desses irados cidadãos que esteve ali?

Athelsan lhe lançou um olhar assassino.

– E o que tem sobre os outros fanfarrões, putas, mendigos, de qualquer?

– Nada.

– Maldição! – exclamou Athelsan, fechando os olhos –. Maldição! Maldição!

Temos que resolver isto como é Pitt. – cobriu o rosto com as mãos –. Imagina o que farão conosco se a próxima vítima for um membro da nobreza ou do Parlamento? Crucificar-nos-ão!

– E o que esperam que façamos? Que patrulhemos as ruas de Devil's Acre onde estão os prostíbulos?

– Não seja idiota! Querem que apanhemos a esse lunático para que as coisas voltem à normalidade. – Olhou ao Pitt com olhos suplicantes –. E temos que fazê-lo! Encontre mexeriqueiros, informantes... Pague-lhes se for necessário. Mas olho vivo, sem passar-se! Não perca a cabeça! Alguém falará alguém tem que saber algo. Procure motivos, rivalidades, ciúmes. Averigúe quem está perdendo dinheiro. Meu conselho é que encontre ao assassino do fanfarrão, Max, e o resto virá em consequencia. Que relação tinha Max com esse doutor Pinchin?

– Ainda não descobrimos – disse Pitt com expressão tensa, consciente de seu fracasso.

– Bom, pois saia aí fora a procurá-la! – Apertou os punhos –. E por amor de Deus, encontre-a, Pitt! Prenda alguém. Temos que deter esta loucura... Esta... – Atirou o jornal mais próximo de um golpe, pondo descoberta uma pilha de cartas em papel com relevo. – Há um pânico! Gente muito importante está muito alterada!

– Sim –disse Pitt, afundando as mãos nos bolsos –. Tenho certeza.

– Bom, fique a trabalhar! – gritou Athelsan, exasperado –. Vá-se e faça algo!

– Sim, senhor.

Conforme as ordens, Pitt voltou para Devil's Acre para interrogar ao Ambrose Mercutt mais atentamente sobre sua rivalidade com Max. Encontrou-o envolvido em um roupão escarlate com gola e punhos de veludo, e notavelmente mal-humorado.

– Não sei que diabos esperam de mim! – disse Ambrose, iracundo –. Não tenho nem idéia de quem matou a esse desgraçado! Já lhe disse tudo o que sei. Por Deus, esse homem tinha inimigos para parar uma carruagem!

– Você parece o mais evidente entre todos eles, senhor Mercutt. – Pitt ia acompanhado por dois agentes, e não estava de humor para agüentar o tom paternalista de um fanfarrão decadente em roupão escarlate às dez da manhã-. Max Burton o tinha despojado de uma boa parte de sua clientela, e ao menos de quatro de suas melhores putas. Era uma séria ameaça para seu meio de vida.

– Tolices! – Ambrose desfez a idéia por ridícula, fazendo um gesto com seus longos dedos –. Já o disse, as mulheres vão e vêm. E com o tempo também teriam deixado ao Burton para ir com algum outro. É coisa comum. Se fosse você minimamente eficiente em seu trabalho inspetor, começaria por investigar a algumas dessas mulheres casadas que trabalham para ele! Experimente com Louisa Crabbe! Com certeza nem sequer tinha pensado nisso, por que não? –Seus olhos cintilaram com satisfação malévola ao ver a surpresa gravada no rosto do Pitt –. Não, já o dizia eu! Seria interessante saber o que pensava Albert Crabbe do Max. Com certeza lhe teria encantado cortar as suas partes em pedaços! – Ambrose fez uma careta de repugnância. Tais vulgaridades lhe eram ofensivas. Sua situação era mais que acomodada graças aos apetites físicos de outros, mas pessoalmente lhe desagradavam aquelas coisas. Sentou-se e cruzou as pernas.

Passou pela cabeça de Pitt a idéia de que Louisa Crabbe era uma invenção, mas Ambrose se mostrava muito seguro, muito satisfeito de si mesmo.

– Ah, sim? – disse com a maior impassibilidade de que foi capaz –. E onde posso achar a esse Albert Crabbe?

– Meu querido inspetor – disse Ambrose com um sorriso-, tão incompetente é você? Em nome do Céu, como vou saber? Reviste os livros do Max; certamente ali registrava o modo de ficar em contato com ela. A cada cliente proporcionava a mulher mais adequada, compreende? Este negócio não se leva à vontade de Deus. Tem-se que ter certo talento! Os que estamos no mais alto do mercado não somos vulgares prostíbulos de toma ou o deixa!

– Obrigado – disse Pitt sarcasticamente –. Reconheço que não tinha valorizado em sua justa medida esta arte empresarial.

Pitt não se incomodou em explicar-se. Sentiu uma pontada de satisfação, mas era uma magra vitória, e sabia; deixava mal sabor de boca.

– Suponho que Louisa Crabbe não seria a única, a não ser só a única cujo nome quis me dar – disse.

– Já o disse, inspetor, Max Burton carecia de importância para mim. –Ambrose voltava a mostrar uma expressão relaxada-. Não me incomodava em controlar suas idas e vindas. Para que? Tenho uma clientela fiel e vai muito bem. Naturalmente, Max prejudicou a muitos pelo modo como lhes arrebatou seu negócio. Eu se fosse você iria à casa Dalton. Seu negócio é dos baratos. Acredito que tinham motivos para guardar rancor ao Max.

Pitt podia voltar para a delegacia de polícia e descobrir quem eram os Dalton e onde tinham o negócio, mas não pensava incomodar-se em fingir que sabia; seu orgulho não valia tanto.

– Onde estão? – perguntou.

Um sorriso de superioridade apareceu nos lábios do Ambrose.

– No Crossgate Street. Me diga, inspetor, o que faria você sem mim?

– Perguntaria a outro – replicou Pitt-. Não me tente. Se Devil's Acre não fosse o poço negro que é, sentir-me-ia inclinado a eliminar ao menos um prostíbulo. Mas que diferença suporia? Ouviu falar dos trabalhos de Hércules?

Ambrose sabia que o estava insultando de maneira direta e também misteriosa. Ofendeu-lhe tão mais este último insulto, porque não o compreendia.

– Não, possivelmente não – disse Pitt, respondendo-se a si mesmo –. Procure os estábulos de Augías9. Talvez nós pudéssemos desviar o Tâmisa!

– Não tenho a menor idéia do que está falando! – exclamou Ambrose –. Não seria melhor que continuasse com seu trabalho? Dá-me no nariz que não tem feito tantos progressos para permitir o luxo de rondar por aqui perdendo o tempo, o seu e o meu!

Era dolorosamente certo. Além disso, depois do assassinato do Hubert Pinchin e do Bertram Astley, o motivo pelo qual Max tinha sido assassinado perdia importância no momento.

– Era sir Bertram Astley cliente dele? – perguntou Pitt em uma última tentativa da porta. Ambrose ergueu suas finas sobrancelhas.

– Sério, inspetor, de verdade acredita que aos cavalheiros peço o nome? Não seja ingênuo!

– Não, não acredito que o peça, Ambrose – replicou Pitt fleumaticamente –. Mas certamente tenho certeza de que sabe.

Ambrose sorriu. Embora indiretamente, a resposta do Pitt era uma admissão de sua eficácia, de sua habilidade profissional. Por um instante seu rosto expressou vacilação.

– Não – disse ao fim –. Nem Bertram Astley, nem tampouco o doutor Pinchin. – seu sorriso se alargou-. Sinto muito.

Pitt acreditou nele. Considerou que a vacilação não estribava em admitir ou não que era um cliente, mas se devia alardear um pouco e aumentar a importância de sua clientela, dando a entender com isso que não tinha nada que temer do Max.

– Não. – Pitt voltou a examinar o aposento e se permitiu um breve sorriso desdenhoso –. Suponho que não. – Fechou a porta às faíscas que lançava Ambrose pelos olhos e ao súbito arrebatamento de cólera que acendeu seu rosto.

Crossgate Street era uma rua suja e fria, mas Pitt não teve dificuldade em achar o negócio dos Dalton. A casa era ampla e parecia animada, cheia de móveis de chamativos tons vermelhos e rosas, e na sala de espera principal havia fogo na lareira, apesar de ainda se acharem nas primeiras horas da tarde. Ao que parecia os Dalton ofereciam seus serviços as vinte e quatro horas do dia. A casa não tinha o aroma rançoso e acre de um prostíbulo nas horas em que não se trabalha, e tinham criadas como em uma casa normal.

Saiu para recebê-lo uma garota gordinha de rosto redondo, bastante vulgar e com a cútis de uma camponesa. Pitt sentiu pena ao vê-la empregada em semelhante lugar. Não obstante, estava muito melhor ali, naquele lupanar com um teto sobre a cabeça e três comidas ao dia, que muitas outras mulheres que percorriam as ruas em busca de um homem que comprasse seu corpo pelo preço de um dia de comida para seu filho ou uma manta para cobri-lo.

Pitt lhe economizou toda indignidade.

– Sou da polícia – disse –. Quero falar com o senhor Dalton. Talvez tenha informação que possa me ajudar.

– O senhor... OH! – Seu rosto adquiriu uma expressão de regozijo ao compreender o engano –. Refere-se você à senhorita Dalton. Quer você falar com a senhorita Mary ou com a senhorita Vitória, senhor? Embora não estou muito certa de que elas queiram ver a polícia!

– Senhorita... – Ao Pitt não lhe tinha ocorrido que os Dalton pudessem ser mulheres, embora não houvesse nenhuma razão que o impedisse. Aquele lugar tinha um ar feminino, uma sensualidade simples que era menos consciente e imensamente menos decadente que a casa do Max ou a do Ambrose Mercutt. De certo modo a achou menos ofensiva, embora não soube por que.

– Qualquer das senhoritas Dalton servirá – respondeu-. E sinto muito, mas insisto em vê-las. Trata-se de um caso de assassinato. Se for necessário, voltarei com outros policiais e as coisas poderiam tornar-se muito desagradáveis. Não acredito que alguém o deseje. É mau para o negócio.

A moça se sobressaltou. As maneiras do Pitt eram corteses e sua voz muito temperada; entretanto, o que dizia desafinava.

– Se fizer o favor de esperar aqui... – afastou-se pressurosa.

Pitt se arrependeu de suas palavras. Não tinha necessidade de ser tão duro, mas já não podia remediar.

Instantes depois apareceu uma mulher um pouco mais velha que a outra, talvez nos trinta, metida em carnes, de rosto franco e atraente e pele sardenta. Parecia uma competente criada em seu dia livre. Trazia um vestido sem decote e de uma simples cor lavanda; no rosto não havia traços de pintura.

– Sou Vitória Dalton – disse ela educadamente –. Violet diz que é você polícia e que deseja falar comigo. Quer me acompanhar a saleta de trás? Violet nos trará chá.

Sentindo-se ridículo, como se tivesse cometido um incrível engano de julgamento, Pitt a seguiu em silêncio fora do salão rosa e vermelho com seus sofás e almofadas, ao longo de um corredor e ao interior de uma sala menor e íntima em que também ardia o fogo na lareira. Em algum lugar do piso superior, Pitt ouviu ressoar risadas de mulheres, seguidas de chiados de deleite e risinhos. Não ouviu nenhum homem. Ao que parecia eram duas mulheres contando façanhas uma à outra; não era parte de seu trabalho.

Vitória Dalton se sentou em um amplo sofá verde e convidou ao Pitt a acomodar-se em outro similar que havia frente a ela. Entrelaçou as mãos sobre o regaço e olhou ao Pitt com expressão agradável.

– Bem, que deseja de nós?

Pitt ficou assombrado; aquela mulher estava tão serena, era tão diferente do Max ou do Ambrose Mercutt... O lugar parecia uma casa de classe média, cômoda, com um ar familiar. Sentiu-se impelido a utilizar eufemismos.

–Estou investigando um crime, senhora – começou, e não era o modo como pretendia fazê-lo. Estranhamente, o fazia sentir desconfortável. – Três crimes em realidade.

– Que desagradável – respondeu, como se ele tivesse feito um comentário sobre o tempo, e continuou olhando-o com franqueza, como uma menina obediente, esperando que continuasse.

Era desconcertante. Ou não lhe tinha compreendido bem, ou a morte era tão habitual para ela que não a impressionava. Olhando seus firmes olhos cinza, pareceu-lhe que se tratava deste último.

A criada chegou com o chá e depositou a bandeja. Vitória Dalton o serviu e estendeu uma xícara ao Pitt. Ele a aceitou lhe agradecendo.

– A primeira vítima foi Max Burton – disse Pitt –. Tinha uma casa no George Street. Possivelmente você o conhecia.

– É claro. Sabíamos que o tinham assassinado.

– Era bom em seu negócio? – por que lhe era tão difícil interrogá-la? Por que não lhe dava oportunidade nem, ao contrário de Ambrose Mercutt, ficava na defensiva?

– OH, sim – respondeu Vitória –. Tinha um talento extraordinário. – Pela primeira vez seu rosto expressou algo: ira. Seus lábios carnudos se curvaram para baixo nas comissuras, mas Pitt teve a estranha convicção de que era um reflexo de desaprovação, não de ofensa pessoal.

– Ambrose Mercutt afirma que utilizava a algumas mulheres de bom berço em seu negócio do George Street.

Ela esboçou um sorriso.

– Sim, tinha que ser Ambrose Mercutt quem o dissesse.

– É certo?

– OH, sim. Max era muito inteligente. As mulheres o achavam muito bonito, sabe? E há certa classe de mulheres, de bom berço, ociosas, casadas por conveniência com algum pusilânime certamente muito mais velho que elas, medíocre no dormitório e sem apetite ou imaginação, que se aborrecem. Max as atraía. Começavam tendo uma aventura com ele, depois ele as introduzia no negócio de qualidade. Podia conseguir preços muito altos por putas assim. – Falava de tudo isso como um comerciante podia falar de uma mera transação comercial.

– Arrebatou a vocês algum de seus clientes? –perguntou Pitt com igual franqueza.

– Não muito – respondeu ela com serenidade –. Nós proporcionamos experiência mais que novidade. A maioria dessas mulheres de bom berço tem mais sentido da aventura, mais... – franziu o sobrecenho – mais necessidade de vencer seu aborrecimento que paciência ou consciência de como proporcionar prazer. Uma boa prostituta tem senso de humor e generosidade, e não faz perguntas. – Sorriu com tristeza –. Além disso, tem muita prática.

Estava tão acostumada a essa idéia, que era normal para ela. O tráfico de mulheres era sua vida cotidiana, e não a comovia. Era necessário conhecer o negócio para sobreviver.

– O que me diz do Ambrose Mercutt? – Pitt mudou de direção.

– OH, sim, ao Ambrose afetava. Trabalhava na mesma categoria: cavalheiros que querem algo novo, algo que estimule sua imaginação, e estão dispostos a pagar por isso.

Agora sua expressão era de autêntico desprezo. Entrecerrou os olhos e neles brilhou de repente uma faísca que podia ser ódio, mas contra quem? Talvez contra aquelas mulheres caprichosas com dinheiro e tempo para dedicar-se à prostituição para divertir-se; as que trabalhavam para ela o faziam para sobreviver. Possivelmente contra Ambrose, porque as agradava. Ou possivelmente inclusive contra os homens que pagavam e o convertiam em um negócio lucrativo. Ou era ódio por Max porque lhe tinha tirado muitos clientes, apesar dela o negar? Ou era algo no que nem sequer tinha pensado ainda? Acaso ela mesma se sentiu atraída pelo Max? Era possível; Vitória era jovem, sua boca era suave e sensual. Seria o assassinato do Max simplesmente o resultado da raiva de uma mulher despeitada? Não obstante, vista sob essa luz, a morte do Hubert Pinchin não tinha sentido.

– Onde conhecia essas mulheres da alta sociedade? – perguntou Pitt –. Não seria aqui, em Devil's Acre.

A emoção se apagou do rosto de Vitória. Seus olhos voltaram a mostrarem-se serenos.

– OH, não, ele ia a alguns restaurantes e teatros aos quais costumam ir essas mulheres. Max tinha sido lacaio em uma grande casa, sabia como comportar-se. Era muito atraente e tinha um bom vestuário. Possuía o talento de distinguir às mulheres insatisfeitas e sabia quais tinham a têmpera ou o desespero para fazer algo a respeito.

Uma vez mais, Pitt se viu obrigado a reconhecer que Max tinha tido um talento imenso de que tinha feito uso até suas últimas conseqüências. Imenso e perigoso.

O que acontecia quando aquelas mulheres se aborreciam da novidade ou se assustavam? A sociedade fazia vista grossa a muitas coisas, mas prostituir-se por dinheiro em Devil's Acre era mais do que podia passar-se por alto. Existia uma diferença quase infinita entre o que podia fazer um homem (sempre que fosse discreto), e o que podia perdoar-se o a uma mulher, qualquer mulher. O apetite sexual fazia parte da natureza do homem, censurado pelos dissimulados mas aceito, motivo inclusive de brincadeiras maliciosas, e admirado com reticências pela maioria.

Entretanto, os homens preferiam pensar que as mulheres eram diferentes. Só as putas obtinham prazer na cama. Vender o corpo era um pecado que levava a condenação eterna. E quando essas mulheres do Max viam que sua segurança, seu matrimônio, estava em perigo, o que faziam? Permitia-lhes Max partir tão discretamente como tinham chegado, e esquecia logo seus nomes? Ou mantinha o chicote erguido sobre suas cabeças para sempre?

As razões para o assassinato eram numerosas. Vitória Dalton continuava olhando-o com expressão séria. Pitt suspeitava que lhe lesse o pensamento, mas não sabia até que ponto.

– Ouviu falar do doutor Hubert Pinchin? – perguntou.

– Também o assassinaram, não é? – Era uma afirmação, não uma pergunta –. Ocorreu a certa distância daqui. Não, não o conhecia de nada... – Vacilou –. Com esse nome ao menos. A pessoa aqui nem sempre dá seu nome autêntico, compreende? – Um muito leve tom de desprezo se mantinha em sua voz.

– Era corpulento e começava a ficar pançudo – disse Pitt, descrevendo ao Pinchin tal como o havia visto morto no pátio do matadouro, e, entretanto tentando recrear com a imaginação seu aspecto em vida –. Cabelo castanho, encanecido e com uma calvície incipiente, nariz largo e bastante avultado, boca dada à risada fácil, olhos pequenos e tez corada. Levava roupas gastas pelo uso. Gostava do queijo Stilton e do bom vinho.

– Há muitos cavalheiros assim em Londres – respondeu ela com um sorriso –. E muitos deles, casados com mulheres ariscas de severa virtude, deixam-se cair por aqui em um momento ou outro.

Aquela era uma excelente descrição da Valeria Pinchin. Não seria de estranhar que Hubert Pinchin tivesse visitado a casa de Vitória Dalton, um lugar de alegrias e prazeres comprados, grossos almofadões, seios acolhedores, quadris exuberantes e costumes complacentes.

– Sim, suponho que sim – disse com tom desventurado –. O que me diz de sir Bertram Astley, jovem, loiro, bonito, alto? – Tinha esquecido de lhe olhar a cor dos olhos, mas de qualquer forma a descrição era inútil. Devia haver várias centenas de jovens em Londres, inclusive de família distinta e rica, que correspondessem à mesma.

– Por esse nome não conheço ninguém – respondeu ela –. E nós não bisbilhotamos. É mau para o negócio.

Isso era irrebatível.

Com os dados de que dispunha, Pitt começava a pensar que tinha que se ver com um lunático que odiava ferozmente a masculinidade, possivelmente um inválido ou impotente, atormentado até o ponto de enlouquecer. Esta resposta não era satisfatória, mas até então não tinha descoberto relação alguma entre o Max, o doutor Pinchin e sir Bertram Astley.

Talvez se investigasse as conquistas do Max surgiria algo, alguma mulher que os conhecesse todos, a quem possivelmente todos tivessem usado. Sim... Um marido enlouquecido por seu afã de vingança não era impossível. Ou inclusive, se a mulher era vítima de uma chantagem, talvez tivesse pago a algum rufião para que eliminasse todos os rastros de sua aberração. Em Devil's Acre eram numerosos os que fariam algo assim por pouco dinheiro, pouco em comparação com a ruína que a mulher talvez tivesse que confrontar. E se falasse com o rufião anonimamente, envolta em uma capa com capuz, não correria perigo de ser descoberta.

Mas por que a terrível mutilação? O estômago lhe deu um tombo ao recordar Pinchin e suas genitálias amputadas. Possivelmente o assassino fora um marido, ao fim e ao cabo. Ou um pai. Havia muito ódio em todo aquilo para que se tratasse só de uma questão de dinheiro.

Era inútil seguir especulando até que dispusesse de mais informação. Levantou-se.

– Obrigado, senhorita Dalton, foi de grande ajuda. –por que era tão cortês, quase diferente, com aquela mulher? Não era mais que a proprietária de um lupanar, como Ambrose Mercutt ou Max. Talvez fosse uma amostra de seu próprio valor e não tivesse nada que ver com ela –. Se tiver necessidade de lhe fazer alguma pergunta, voltarei.

– É claro – disse ela, ficando em pé por sua vez –. Bom dia, senhor Pitt.

A criada lhe mostrou o caminho até a porta. Na sórdida rua começava a cair à tarde. A pestilência das águas residuais subia do rio, e se ouvia o longo gemido das sereias de névoa que faziam soar as lanchas carregadas até a amurada em seu caminho para o porto de Londres e os moles mais buliçosos do mundo.

Possivelmente nem sequer fosse o mesmo assassino nos três casos. Tinha dado-lhes muita publicidade nos jornais. Talvez um ao menos fora uma imitação. O que dizer do Beau Astley, que podia herdar o título e a fortuna de seu irmão, e possivelmente inclusive Mai Woolmer?

Por que teria que surpreendê-lo achar a mão do Diabo em Devil's acre seu próprio nome?

 

O assassinato do Bertram Astley saiu na primeira página de todos os jornais, causando comoção. Sob os agudos chiados da decência ultrajada, sob a compaixão inclusive, havia um intenso sentimento de medo. Se um homem como Astley podia ser tão obscenamente assassinado sem razão aparente, quem podia estar seguro nas ruas?

É claro nada disso se dizia abertamente. Havia cartas ao editor nas quais se exigia mais ação por parte da polícia, mais eficiência, homens mais disciplinados e duros. O público queria saber a quem cabia atribuir os enganos que se ocultavam atrás do silêncio. Era a corrupção nas altas esferas a que impedia que aqueles crimes monstruosos continuassem sem resolver? Um velho cavalheiro chegou a sugerir que se arrasasse Devil's Acre completamente e que todos seus habitantes fossem deportados a Austrália.

Charlotte deixou o jornal e tentou limpar a mente dos ecos daquela histeria coletiva para pensar na classe de homem que podia ter sido Bertram Astley. Tudo o que tinha lido sobre ele estava velado por um rosado tropel de emoções que não permitia pensamentos malévolos sobre os mortos. Era mais cômodo simplificar tudo em grandes ondas de sentimentos cheias de dramáticas valorizações maniqueístas: Max era a encarnação do mal; Astley era uma vítima inocente; a polícia perdia o tempo ou, pior ainda, era corrupta. Em qualquer caso, a sociedade londrina corria perigo.

Enquanto isso, Pitt trabalhava desde antes do amanhecer até a noite. Quando chegava a casa, costumava estar muito cansado para falar.

Tinha que ajudá-lo. É claro não o diria a ele, já que lhe tinha proibido mesclar-se naquele assunto. Mas isso foi antes que matassem ao Bertram Astley, quando as vítimas estavam fora de seu círculo social. Agora era diferente. Sem dúvida Emily conhecia os Astley, ou a algum de seus conhecidos quem pudesse lhe pedir que os apresentasse. Teria que ser muito discreta; se Pitt soubesse antes que ela tivesse descoberto algo útil, ficaria furioso.

– Gracie – chamou alegremente. Gracie não devia suspeitar o que pensava fazer. Apesar de toda sua boa intenção, a moça era tão transparente como o cristal.

– Sim, senhora? – Apareceu pela porta com as sobrancelhas arqueadas. Seu olhar tropeçou com os jornais –. Oooh, não é terrível, senhora? Outro assassinato! Um autêntico cavalheiro desta vez, com título e tudo! Não sei aonde iremos parar, não sei.

– Bom, possivelmente seja o melhor – comentou Charlotte animadamente –. Nunca aprovei a clarividência. Cheira a superstição, e o único que traz é um montão de problemas.

– Perdão, senhora. – Charlotte tinha conseguido deixá-la aniquilada, como era sua intenção.

– Não pense mais nisso, Gracie. – levantou-se –. Aconteceu a vários quilômetros daqui e não tem nada que ver com ninguém a quem conhecem. – Estendeu o jornal à Gracie –. Pegue-o, use-o logo para acender o fogo na saleta.

– Mas e o senhor?

– O que quer dizer?

– Tem que ver com o senhor, pobre homem! Ontem de noite parecia congelado quando chegou a casa! Perdoe-me, senhora, se for impertinente. – Um brilho de preocupação passou por seu rosto –. Mas acredito que atrás de tudo isto estão as forças do mal!

– Tolices! É um lunático. Agora deixa de pensar nisso, ponha o jornal na lareira e continue com seu trabalho. Vou encomendar um vestido novo. Esta manhã irei prová-lo.

– Ooh! – Os olhos do Gracie se iluminaram. Um vestido novo era mais divertido que um assassinato –. De que cor, senhora? Vai fazê-lo com essa nova linha por diante que sai nos desenhos do Illustrated de Londres?

– Muito na moda. – Charlotte comprava o que podia permitir-se –. Eu não gosto de imitar aos outros como se fosse uma ovelha.

– Muito certo senhora – disse Gracie. Também ela era uma mulher prática –. Escolhe uma boa cor, digo eu sempre, e o resto virá só, sempre que sorrir às pessoas com educação, mas sem passar para não lhes dar pé a que se acreditem outra coisa.

– Excelente conselho. Mas de qualquer forma darei uma olhada para ver o que se leva, assim pode ser que não volte para comer.

– Sim, senhora. Não deve se apressar-se com um vestido novo.

Charlotte chegou à casa de Emily, mas esta tinha ido à costureira, por isso se viu obrigada a esperar perto de uma hora.

– Como demônios pode ir visitar costureiras em uma manhã como esta? – perguntou Charlotte apenas Emily entrou na sala. – Por amor de Deus, não lê os jornais?

Emily se deteve em seco e seu rosto se contraiu.

– Refere ao do Bertie Astley? Charlotte, nós não podemos fazer nada! Thomas já lhe disse que não se entremetesse.

– Isso foi antes, quando só afetava a um fanfarrão e a aquele estranho médico. Agora caiu um de nosso próprio círculo social!

– Refere a meu círculo social? – Emily fechou a porta e se aproximou da lareira –. Em realidade não conheço os Astley, mas não vejo do que serviria conhecê-los.

– Vamos, não seja estúpida! – Charlotte perdeu a paciência –. O que você acredita que estava fazendo Bertie Astley em Devil's Acre em plena noite?

– Visitar uma casa de má fama.

– Quererá dizer um prostíbulo!

– Não seja tão vulgar, Charlotte – disse Emily, fazendo uma careta –. Está começando a perder seu refinamento. Thomas tem razão. Não deveria se colocar neste assunto; não é o tipo de caso em que nós podemos ajudar.

– Nem mesmo quando Bertie Astley conhecesse Max e ambos estivessem metidos em algum assunto com o doutor Pinchin? – Charlotte pôs a isca mais tentadora que lhe ocorreu: um autêntico escândalo de sociedade.

Emily guardou silêncio. A moda acabava tornando-se aborrecida ao separá-la de tudo o que realmente importava. Que importava que alguém levasse uma cor mais sutil ou um decote mais baixo? Inclusive as fofocas se esgotaram já naquela época do ano.

– Isso seria diferente – admitiu ao fim –. E muito grave. Significaria que não se trata de um lunático, mas sim de alguém absolutamente cordato e abominável.

– Exato.

Emily estremeceu ante aquela nova visão de conjunto.

– Por onde começamos? – As possibilidades práticas que lhes ofereciam eram muito poucas.

– Pelos Astley – decidiu Charlotte ao fim de um momento –. Não há outro caminho. Talvez pudéssemos descobrir por que estava Bertie em Devil's Acre e se conhecia o Max ou ao doutor Pinchin.

– O que diz Thomas?

– Está muito cansado para falar – reconheceu Charlotte com sinceridade –. Mal me fala deste caso, somente algum ou outro comentário. Existe um grande alarme social e se acusa à polícia de incompetente, inclusive de corrupta.

Estas palavras apagaram os últimos vestígios de reticência que pudesse sentir

Emily.

– Então temos que ajudá-lo. Não conheço os Astley pessoalmente, mas sei que Bertram dedicava suas atenções à Mai Woolmer. Todo mundo se perguntava se ela conseguiria caçá-lo. Foi a sensação desta temporada. Não é de meu estilo, mas suponho que será muito atraente para quem goste das belezas do tipo leitoso. É como uma leiteira muito bem educada e mais ou menos igualmente interessante.

– Céus! – Charlotte imaginou uma moça com babados e um balde na mão.

–OH, não há nada incorreto nela. –Emily se reclinou-. Mas isso em si mesmo está destinado a aborrecer com o tempo. É tão previsível como uma jarra de leite.

– Por que quereria Bertie Astley casar-se com ela? Tem dinheiro ou influências?

– Nada disso. Mas suas maneiras são perfeitas, e certamente é muito agradável. Alguns homens acham atraente toda essa carne fresca e branca.

Pensando nos ombros magros e o busto escasso de Emily, Charlotte se absteve de fazer comentários sobre o tema. Recordou o fragmento de uma frase que tinha escapado a seu marido.

– Thomas diz que Max tinha inclusive mulheres de boa família trabalhando para ele.

– Deus santo! –Emily ficou boquiaberta –. Quer dizer por dinheiro... Com...? OH, não!

– Isso parece.

O assombro substituiu à incredulidade e logo veio um calafrio de horror.

– Tem certeza?

–Tenho certeza de que isso disse Thomas.

– Mas que mulher de boa família necessitaria dinheiro tão desesperadamente para pensar em... ? Não me cabe na cabeça!

– Não o fazem por necessidade. São mulheres casadas aborrecidas ou frustradas. Dedicam-se a isso como os homens jogam com mais dinheiro de que podem permitir-se perder ou participam de perigosas corridas de carruagens de quatro cavalos.

– Max tinha um registro?

– Não sei, e não me pareceu prudente perguntar ao Thomas. Mas se o tentássemos de verdade, com certeza descobriríamos quem são essas mulheres.

Possivelmente uma delas matou Max porque fazia chantagem e não queria deixá-la partir. Esse seria um bom motivo para matar.

– Mas e o doutor Pinchin? – respondeu Emily, apertando os lábios dubitativamente.

– Nos bordéis devem necessitar de médicos algumas vezes, não acha? Possivelmente estava associado com o Max. Possivelmente foi ele quem pôs o dinheiro para o negócio, ou proporcionava as mulheres que conhecia graças a sua profissão. Precisamente por isso saberia bem a qual dirigir-se.

– E Bertie Astley?

– Talvez fosse um cliente e o reconheceu. Talvez isso explique por que ele não estava tão... Destroçado...

– Isso não tem sentido. Se foi o marido quem os matou, odiaria Bertie igual aos outros!

– Bom, talvez não fosse assim. Mas alguém teve que fazê-lo!

– Charlotte, não deveríamos... – Emily deixou escapar um longo suspiro-. Falei com Mai Woolmer algumas vezes. Poderíamos ir expressar lhe nossas condolências. Posso lhe emprestar algum complemento em negro. Temos que começar por algum lugar. Iremos esta tarde. O que vai dizer a Thomas? É uma mentirosa muito má; sempre se explica muito e acaba se delatando.

– Disse à Gracie que ia à costureira.

Emily soltou um grunhido e olhou a sua irmã com suspicacia.

– Então suponho que será melhor que lhe dê um vestido para seu álibi.

– Obrigada – disse Charlotte –. É muito generosa. Eu gostaria de um vermelho.

– Não me diga!

A senhora Woolmer deu a volta ao cartão gravado em ouro e o examinou atentamente. Era de excelente qualidade e discrição. E certamente aí estava o título, viscondessa Ashworth.

– Quem é mamãe? – perguntou Mai, esperançada. Começava a achar muito aborrecido aquela espécie de limbo em que se achava. Ninguém parecia certo ainda se Bertie tinha sido uma vítima ou um delinqüente que merecia aquele fim. A própria Mai, portanto, não tinha certeza da atitude que devia adotar, e enfrentar às pessoas enquanto se decidia estava pondo a prova toda sua capacidade. Por outro lado, não receber a ninguém seria como estar em uma prisão.

– Não tenho a menor idéia – respondeu a senhora Woolmer, enrugando as sobrancelhas finamente depiladas. Novamente vestia-se de púrpura, uma boa escolha para quem não tinha certeza se devia levar luto ou não. Mai vestia de negro porque lhe dava um aspecto deslumbrante; resplandecia como quente alabastro à luz do sol.

A criada fez uma reverência.

– Se me desculpar, senhora, é uma dama muito elegante, senhora, e veio em uma carruagem com brasão a um lado, e dois lacaios, senhora, com libré. E veio sua irmã com ela, muito parecida. E parece como se ela também fosse uma dama, mas não me deu nenhum cartão.

A senhora Woolmer tomou uma rápida decisão. O comportamento social devia cuidar-se até o último detalhe se queria subir até o mais alto. A natureza lhe tinha outorgado a grande vantagem de ter a filha mais bela da temporada. Seria uma estupidez desperdiçá-la com um gesto torpe. Sorriu à criada.

– Por favor, Marigold, convida a entrar a lady Ashworth e a sua irmã. Depois diga à cozinheira que prepare chá e os melhores pasteizinhos e aprimoramentos, e nos traga isso tudo.

– Sim, senhora. –Marigold saiu para cumprir as ordens.

Logo que entraram Emily e Charlotte, a senhora Woolmer se tranqüilizou. Era claro que a viscondessa Ashworth era uma dama, não tinha mais que ver a qualidade e discrição de seu traje. Só a nobreza mesclava o bom gosto com o gasto.

Mai também ficou encantada. As duas irmãs eram suficientemente jovens para fofocar um pouco e possivelmente a convidariam antes que passasse muito tempo. Um jantar privado não seria indecoroso; ao fim e ao cabo não tinha chegado a estar comprometida com Bertie! Quanto mais voltas dava, mais lhe parecia que seria melhor manter um amável e digno silêncio em todo aquele assunto. Que a pessoa o interpretasse como gostasse; calar era sempre mais seguro que comprometer-se, e muitos homens preferiam às mulheres sem muitas opiniões próprias. Com vistas ao matrimônio, além disso, suas mães sempre o passavam, pois o silêncio e um doce sorriso eram tomados por signos de um caráter obediente, o que era extremamente desejável em uma futura nora.

Lady Ashworth vestia-se na última moda, em um tom discreto que a fazia ainda mais elegante. Sua irmã era menos elegante, mas formosa sem dúvida. Certamente seu rosto tinha personalidade, uma calidez que atraiu ao Mai.

– Querida minha. – Lady Ashworth avançou com as mãos estendidas e pegou as de Mai antes que esta pudesse pensar em algo que dizer-. Quanto o sinto. Queria lhe oferecer meus mais sentidos pêsames em sua aflição.

Mai se tinha aflito, mas não do modo que supunha lady Ashworth. Não sentia um carinho muito grande por Bertie. De fato preferia muito mais seu irmão Beau, mais bonito e mais divertido. Mas tinha que se ser prática. Beau Astley era um filho menor com escassas perspectivas, e teria tido ainda menos quando Bertie se casasse e houvesse uma nova senhora na mansão Astley. Mai se serenou e sorriu com tristeza.

– Obrigado, lady Ashworth, foi uma gentileza de sua parte. Ainda me custa acreditar que uma pessoa a que eu conhecia pudesse ter um destino tão terrível.

A senhora Woolmer lançou a sua filha um olhar de advertência. Mai não devia dizer nada que a vinculasse irreparavelmente com os Astley. Poderia vir à luz que tinham Deus sabia que repugnantes hábitos! Face às expressões bregas que usavam os jornais, sabia-se onde tinham encontrado o cadáver. Em qualquer caso, Mai era perfeitamente consciente de todas aquelas armadilhas e não tinha intenção de cair nelas.

Lady Ashworth apresentou a sua irmã, a senhora Pitt, e ambas aceitaram sentar-se cortesmente.

– A vida proporciona às vezes cruéis surpresas – comentou Emily com expressão contrita –. Podem ser difíceis de superar. – Baixou a cabeça, na aparência aflita pela pena.

Mai se sentiu obrigada a dizer algo; a boa educação assim o exigia.

– Certamente. Me... Dou-me conta agora do pouco que o conhecia. Jamais teria imaginado semelhante... – interrompeu-se porque não havia modo satisfatório de terminar a frase. Olhou à irmã de lady Ashworth –. Acredito que fui infelizmente inocente. Receio que os menos caridosos já se estarão rindo de mim.

– Os invejosos – a corrigiu a senhora Pitt generosamente –. E esses sempre existirão. A única maneira de evitá-los é não lhes dar a satisfação de vê-la sofrer. Asseguro-lhe que não haverá pessoa de valor que não sinta compreensão. Esta é uma situação em que poderia achar-se qualquer mulher.

Com certa agitação e nervosismo, Mai teve a suspeita de que a senhora Pitt se referia a suas dúvidas sobre o Beau Astley com uma aguda intuição, não a sua dor pelo Bertie. Era incômodo saber que seus motivos se adivinhavam tão facilmente. Olhou lady Ashworth e viu a mesma compreensão sincera em seus olhos azul claro. E decidiu convertê-las em suas aliadas. Mai tinha a virtude da perspicácia: sabia exatamente a quem podia enganar e a quem não. Deixou escapar um suspiro e sorriu do modo mais encantador.

– É um alívio conhecer alguém que realmente me compreende. Muitas pessoas pretendem ser amáveis, mas só pensam na aflição natural pela perda de um amigo.

A senhora Woolmer retorcia as mãos sobre o regaço. Não gostava do giro que tinha dado a conversa, mas não lhe ocorria como mudar de assunto sem mostrar-se descortês.

– Com efeito – disse lady Ashworth com uma leve inclinação da cabeça, e prosseguiu na linha de pensamento de Mai –: Uma pessoa acredita conhecer as pessoas, e logo ocorrem coisas como esta! Mas o que se pode fazer? Se as apresentações as fizerem a algum conhecido de provada respeitabilidade, não se requer mais.

Meu marido e eu ficamos atônitos. – Respirou fundo –. É claro, não conheço sir Beau...

Mai não ia deixar se apanhar tão facilmente.

– Parece muito agradável – disse sem a menor emoção. Apagou a imagem do Beau de sua mente, sua risada, sua voz suave, as lembranças de bailes, luzes, música, pés ligeiros e seus braços ao redor da cintura-. Sir Bertram sempre se comportou de maneira irreprochável em minha presença – concluiu.

– É claro! – disse a senhora Woolmer com certa precipitação.

– Não o ponho em dúvida. – Lady Ashworth passou os dedos delicadamente pela saia –. Mas me perdoará se lhe digo, querida, que alguns homens se comportam de maneira muito irrefletida quando se apaixonam. Inclusive irmãos chegaram a odiar-se por culpa de uma mulher formosa.

– OH! – A senhora Woolmer levou a mão à boca e reprimiu uma exclamação.

Mai se sentiu desconfortável. É claro era consciente de que muitos homens a tinham desejado. Sem dúvida para isso era a temporada, não? Mas até então tinha acreditado que tais emoções eram superficiais, que tudo fazia parte de uma deliciosa charada em que as ganhadoras se retiravam com mandos agradáveis e o futuro assegurado, tanto na sociedade como na questão pecuniária. As perdedoras se retiravam para reconsiderar a tática do ano seguinte. Mai sempre tinha sido consciente de seus próprios pontos fortes e debilidades, e sabia como utilizá-los. Estava resolvida a ser uma ganhadora; contava com a inveja, mas não esperava que a odiassem, e certamente tampouco esperava o tipo de paixão que alimenta o assassinato.

– Acredito que me adula, lady Ashworth – disse prudentemente –. Não dei motivos a ninguém para ter tais sentimentos. – Talvez fosse melhor mudar de assunto, desviar o olhar curioso de lady Ashworth para algo mais escandaloso. – Ainda não tenho a perícia amorosa de muitas das senhoras com... – esboçou um sorriso-, digamos, experiência? Detesto repetir os rumores, mas são tão persistentes que o bom senso me diz que não podem ser completamente falsos. Há senhoras de famílias irrepreensíveis que se comportam como mulheres da vida. Sem dúvida essas têm a arte para inflamar o tipo de horríveis emoções de que você falava.

Seu comentário caiu como uma bomba, tal como ela pretendia.

– Tolices! –A senhora Woolmer se engasgou ao tentar afogar um gemido-. É impossível que saiba de tais coisas! Mulheres da vida! Agradeceria que vigiasse sua linguagem.

Lady Ashworth ergueu o rosto com olhos muito abertos, mas surpreendentemente foi a senhora Pitt quem foi ao resgate do Mai.

– É realmente angustiante – concordou, baixando a voz com tom confidencial-. Eu também ouvi esses rumores, e devo admitir que minhas fontes eram irreprocháveis. Acaba se duvidando do modo como se pode julgar que amizades convêm cultivar! Tenho certeza de que você terá tido as mesmas dúvidas que eu. Sinto-me culpada inclusive por suspeitar de pessoas que certamente são tão inocentes como a luz do dia, e, entretanto seria espantoso que, por meu bom caráter e um excesso de credulidade, achasse-me em uma situação da qual não pudesse me retirar com a reputação impoluta, para não falar de coisas piores!

Lady Ashworth parecia presa de uma emoção entristecedora. Tossiu com força e enxugou o rosto com um lenço. Seus ombros tremiam. Tinha corado até a raiz dos cabelos. Felizmente, nesse momento retornou a criada com chá e massas e entre todas puderam reviver lady Ashworth. Tinha o rosto aceso, mas aparentemente tinha recuperado a compostura.

Não obstante, a senhora Pitt tinha razão. Simplesmente não se podia permitir – se que a associassem com mulheres sobre cujo comportamento existisse uma sombra de dúvida. Mai espremeu os miolos tentando descobrir quais de suas conhecidas podiam achar-se envolvidas naquele assunto. Ocorreram-lhe vários nomes, e resolveu evitar aquelas mulheres sempre que o fosse possível. Talvez devesse advertir à senhora Pitt por pura amabilidade.

– Conhece você a Lavinia Hawkesley? – perguntou.

Lady Ashworth voltou a olhá-la com assombro. Não havia necessidade de dar explicações pouco delicadas. Mai mencionou amavelmente uns quantos nomes mais, e logo passaram a falar de modas e dos últimos romances durante uma agradável meia hora, tudo isso enfeitado com cós de escândalo. A senhora Woolmer tentou desviar a conversa para os jovens solteiros que pudessem conhecer os Ashworth, mas sem êxito.

As quatro, a criada perguntou se as senhoras receberiam ao senhor Alan Ross, que queria oferecer suas condolências à família.

Lady Ashworth ficou em pé agarrando à senhora Pitt pela mão.

– Vamos, Charlotte, não devemos monopolizar toda à tarde. – voltou-se para Mai-. Receio que desfrutamos tanto de sua companhia que esquecemos as boas maneiras. Se nos permite nos despedir antes que entre o senhor Ross, não lhe faremos sentir-se incômodo dando a impressão de que nos esquivamos dele.

– É claro – disse a senhora Woolmer, surpreendida-, se... Se isso for o que você deseja. Marigold acompanhe ao senhor Ross ao gabinete e lhe diga que o receberemos em seguida.

Marigold saiu e fechou a porta.

Lady Ashworth se inclinou para Mai para lhe falar em um sussurro confidencial.

– Minha irmã e eu conhecemos a família do senhor Ross em circunstâncias trágicas, cuja lembrança deve ser angustiante para ele. Acredito que seria uma amabilidade por sua parte se não mencionasse nossos nomes em sua presença. Estou certa de que você o compreenderá.

Mai não compreendia nada absolutamente, mas era perfeitamente capaz de entender uma insinuação.

– É claro. Limitar-me-ei a dizer que são vocês umas amigas de visita. Aprecio sua sensibilidade, e espero ter a alegria de voltar a vê-las em circunstâncias mais afortunadas.

– Tenho certeza disso – disse lady Ashworth com um muito leve assentimento.

Mai compreendeu; era quanto desejava.

Uma vez na rua, Charlotte se voltou para Emily.

– No que estava pensando? Não seria benéfico para nós voltar a nos encontrar com Alan Ross? Pode ser que Max fizesse uso de suas antigas relações para achar mulheres.

– Já sei! – exclamou Emily –. Mas não ali. Não demorará muito em sair; podemos esperá-lo aqui fora.

– Faz um frio espantoso! Por que demônios temos que ficar rondando por aqui? Dar-se-á conta de que queremos forçar o encontro se...

– OH, não seja tão estúpida. William! – Agitou a mão fazendo gestos ao cocheiro-. Encontre algo que arrumar nos cavalos: mantenha-se ocupado até que o senhor Ross saia da casa.

– Sim, milady. – William se agachou obedientemente, passou a mão pela pata do cavalo mais próximo e começou a examiná-la.

Charlotte estremeceu quando o vento transpassou seu casaco.

– Por que demônios não podíamos ficar dentro para nos encontrar com ele? – disse, lançando um olhar furioso a sua irmã.

– Sempre achei que o general Balantyne sentia uma grande avaliação por ti – respondeu Emily, aparentando não havê-la ouvido.

Também Charlotte tinha gostado de acreditar nisso. A lembrança lhe produziu uma cálida pontada de excitação. Não discutiu.

– Christina se move no círculo mais adequado para conhecer o tipo de mulheres que poderia utilizar Max – prosseguiu Emily-. Poderia nos ser de grande ajuda.

– Christina Ross não nos ajudaria a cruzar a rua embora fôssemos duas cegas. –Charlotte recordava Callander Square vividamente –. A única ajuda que receberia dela, certamente, seria para me jogar na sarjeta mais próxima!

– Por isso precisamente temos que nos entender com o general – disse Emily com impaciência-. Se comportar-se adequadamente, ele a ajudará no que quiser! Agora cale-se. Já sai o senhor Ross. Sabia que não demoraria muito.

Quando Alan Ross se aproximou delas, Emily lhe dedicou um sorriso radiante.

Alan a devolveu e ergueu o chapéu com certa vacilação. Logo seus olhos se desviaram para Charlotte e seu rosto se relaxou ao reconhecê-la.

– Senhorita Ellison? Encantado de voltar a vê-la. Espero que se encontre bem. Tem problemas com sua carruagem? Posso levá-la a algum lugar?

– Obrigada, tenho certeza de que não é nada sério – respondeu Charlotte-. Recorda ao senhor Ross, Emily? Minha irmã, lady Ashworth... – Desejava lhe dizer com delicadeza que era a senhora Pitt. Na época dos assassinatos do Callander Square, Charlotte se tinha empregado na casa dos Balantyne fingindo ser uma senhorita solteira necessitada de um trabalho respeitável-. Senhor Ross...

Emily a interrompeu oferecendo sua mão a Alan.

– É claro que recordo ao senhor Ross. Por favor, dê minhas mais cordiais saudações à senhora Ross. Confesso que faz bastante tempo que não a vejo. As pessoas com quem estamos obrigadas pela cortesia ocupam tanto nosso tempo que não nos permitem nos dedicar às que realmente nos interessam. Sua esposa é uma pessoa muito vivaz e simpática. Estou desejando voltar a vê-la.

Emily sempre detestara Christina Seu sorriso não vacilou nem um segundo.

– E Charlotte me fala dela com freqüência. Certamente temos que ir visitá-la.

Espero que possa nos perdoar por nossa desatenção.

– Estou convencido de que adorará vê-las. –Alan deu a única resposta que lhe permitia a educação.

Emily sorriu como se adorasse igualmente a perspectiva.

– Então lhe diga, por favor, que lady Ashworth e a senhorita Ellison irão visitá-la na próxima quinta-feira, se receber esse dia.

– Claro que sim. Mas por que não vêm vocês para jantar? Isso seria mais agradável. Seremos poucos, mas se lorde Ashworth não está já comprometido...

– Tenho certeza de que não. – Emily aceitou sem vacilar. Ela se encarregaria que George anulasse os compromissos que pudesse ter.

– Então farei que lhes enviem os convites – disse Alan, inclinando levemente a cabeça-. Estão certas de que não necessitam de ajuda? – Olhou ao William, agora em posição de sentido junto à cabeça do cavalo.

– Tenho certeza de que estaremos perfeitamente – disse Emily.

– Então lhes desejo bom dia, lady Ashworth, senhorita Ellison. –Seus olhos se cruzaram por um instante com os do Charlotte; sorriu, depois deu meia volta e se afastou em direção a sua carruagem.

Emily aceitou a ajuda do William para subir à sua. Charlotte subiu atrás dela e aterrissou no assento mais que sentar-se nele.

– Que demônios lhe passou? – perguntou –. Por que lhe deixou pensar que sou a senhorita Ellison? Certamente não necessito de emprego entre a criadagem da Christina!

Emily liberou a parte do vestido sobre a qual se sentara Charlotte.

– Dificilmente poderemos descobrir muito se souberem que está casada com um policial – indicou-. E menos ainda se se tratar do policial que investiga os assassinatos. Além disso, não fará nenhum mal que o general pense que ainda está solteira.

– O que está...? – começou Charlotte, mas se interrompeu bruscamente. Sua irmã falava com sensatez. As pessoas como Christina Balantyne não jantavam com esposas de policiais. Se soubesse que Emily e ela pretendiam indagar sobre os assassinatos, jamais conseguiriam entrar em sua casa. E, ao fim e ao cabo, elas tinham certo dever moral de descobrir quanto pudessem; era o dever de todo cidadão. E realmente tinham demonstrado seu insólito valor no passado.

– Sim – disse agradavelmente. – Suponho que tem toda a razão, Emily.

Se Emily e ela queriam investigar com eficácia, tinham que dispor de todos os dados possíveis, mas surrupiar a Pitt não ia ser tarefa fácil. Até então não tinha falado de nenhum novo descobrimento. Dia após dia parecia dedicado a abrir passagem dificultosamente entre as misérias de Devil's Acre procurando uma palavra aqui, uma sugestão lá. Mas se achava mais perto de achar a conexão entre Max, doutor Pinchin e Bertie Astley, não havia dito ao Charlotte.

– Thomas? – disse Charlotte com suavidade.

Ele abriu os olhos e a olhou. Era tarde; estava meio adormecido em frente do fogo da saleta. Charlotte tinha escolhido o momento com cuidado e tentava falar com tom despreocupado.

– Averiguou algo mais sobre o Max?

– Sei tudo o que se deve saber sobre ele – respondeu ajeitando-se um pouco mais no assento e olhando a sua mulher com olhos entrecerrados-. Exceto quem eram seus clientes, quem eram suas mulheres e quem o matou.

– OH. – Charlotte não sabia muito bem como continuar-. Isso significava que não levava nenhum registro. Ou que alguém o levou.

– Mataram-no na rua – indicou Pitt –. A menos que o agarrasse sua governanta, o assassino não teve oportunidade de pegar seus papéis. Além disso, pelo que pude averiguar, não havia nada. Sabia os nomes de cor e realizava todas suas transações à vista.

De maneira que não havia nenhum registro.

– Então, como podia fazer chantagem a alguém? –perguntou Charlotte.

– Não sei se o fazia. – Agastou os pés da tela da lareira; começava a sentir muito calor –. Mas possivelmente sabia o suficiente para arruinar a reputação de qualquer um. Não se necessitam provas. Uma confidência no lugar adequado, sustentada por alguns nomes e lugares serviria igualmente. Mas o motivo pôde ser também a rivalidade profissional. Max estava tirando clientes a outros negócios. De todo modo, não é seu assunto. Neste caso não serve de nada a ajuda de um aficionado.

Charlotte o olhou nos olhos e de repente se sentiu menos segura de si mesma.

– OH, sim, é claro – disse. Ao fim e ao cabo, ela não investigava nada. Limitava-se a manter os ouvidos atentos se por acaso pescasse alguma informação que pudesse ser relevante-. Mas é natural que esteja interessada, não acha? – disse com tom razoável.

Charlotte não foi absolutamente sincera sobre o convite para jantar em casa dos Ross na quinta-feira de noite. Pitt trabalhava como ela tinha suposto. Disse a seu marido que estavam convidados para jantar com Emily e George, e lhe perguntou se lhe importaria que ela fosse embora ele não pudesse. Sabia que não ia se negar. Ao fim e ao cabo, ele não tinha podido levá-la a nenhum lugar e nem sequer lhe tinha feito muita companhia desde que começaram aqueles casos. Além disso, havia certa verdade em suas palavras: estaria com sua irmã e com o George! Deixou que Pitt desse por sentado que jantariam em casa de sua irmã.

Emily lhe emprestou um vestido e Charlotte se engalanou no Paragon Walk. A criada de sua irmã a penteou. Não sentia o menor escrúpulo a respeito, pois a idéia tinha sido de Emily com a conivência do Alan Ross.

O vestido era de seda cor damasco com uma renda muito delicada de um tom mais forte, e parecia completamente novo. De fato, Charlotte se perguntou se Emily o tinha comprado expressamente. Era de uma cor que Emily, loira e de olhos azuis, não teria usado nunca. O tom era ideal para uma cútis mais morena e cabelos mais escuros com matizes avermelhados.

Charlotte sentiu uma súbita gratidão por sua irmã por sua generosidade, tanto ao lhe proporcionar um vestido que tanto a favorecia como por fazê-lo de uma maneira tão discreta. Decidiu não dizer nada, deixando assim que o presente o fosse a toda sua medida. Desceu majestosamente as escadas do toucador de convidados, como uma duquesa que entrasse em seu próprio salão de baile, e fez uma grande reverencia no vestíbulo ante Emily. A excitação que notava era tão vivida como a luz dos candelabros.

–O vestido é perfeito – disse, erguendo-se com menos graça da que pretendia-. Sinto-me preparada para deslumbrar a qualquer um e pôr Christina verde de inveja! Muito obrigada.

Emily usava um vestido de suave tom água marinha, e diamantes no pescoço e nas orelhas que lançavam brilhos como o sol sobre águas claras. As duas irmãs tinham um aspecto completamente diferente, o que era intencional, claro está embora possivelmente Emily não esperasse que Charlotte estivesse tão esplêndida. Em qualquer caso, aceitou-o rapidamente e lhe devolveu o sorriso com sincera aprovação.

–Bem, recorda não se mostrar muito franca – advertiu-lhe. – À sociedade adora os espelhos de seu rosto e seu traje, mas não mostra a menor estima por um reflexo de sua moral nem de sua alma. Agradecer-lhe-ia que o tivesse em conta antes de expressar suas opiniões.

– Sim, Emily. –Realmente devia isso pelo vestido.

Emily se tinha preocupado de advertir ao George sobre o propósito de sua visita. Ele tinha aceito acompanhá-las e abster-se de falar com seus anfitriões sobre o casamento de Charlotte e, portanto, sobre seu estado civil, embora Charlotte não sabia se também lhe tinha contado as razões para agir assim.

Christina Ross os recebeu com marcada frieza. Obviamente se tinha visto obrigada a aceitar o convite feito por seu marido, pois não podia retirá-lo.

– Que amáveis foram vindo, lorde Ashworth, lady Ashworth – disse com um direto sorriso.

George inclinou a cabeça e expressou um comentário cortês, vagamente de cumprimento.

– E a senhorita Ellison. – O olhar da Christina passeou pelo vestido de Charlotte com leve surpresa, deixando que se manifestasse como um sutil insulto ao que considerava a situação social de Charlotte e, portanto, o inadequado de seu vestido, para não falar dos meios pelos que podia havê-lo obtido!-. Espero que goze de boa saúde – disse, terminando a frase com uma leve interrogação absolutamente desnecessária. Era evidente que Charlotte transbordava bem-estar de todo tipo.

Christina indicou aos convidados onde podiam sentar-se.

George não achava que devessem intrometer-se na investigação dos crimes. De fato, mal conhecia Bertie Astley, mas era um homem de caráter afável, sempre que não lhe criticassem injustamente ou o privassem de seus prazeres habituais. Emily resultara uma esposa excelente. Não era extravagante nem indiscreta, raramente perdia a calma, nunca lhe punha má cara nem o desprezava, e em seu trato com ele era habilmente sutil.

Pensando bem, George se tinha dado conta de que tinha abandonado uma ou duas coisas das quais estava acostumado a lhe divertir, possivelmente inclusive três ou quatro, só para agradá-la. Mas tinha sido menos doloroso do que esperava, e qualquer homem devia estar disposto a adaptar-se a sua nova situação. Portanto, não teve objeção alguma em prazer ao Emily e cultivar a amizade da Christina Ross, se ela achava que podia ser útil. É claro, ele sabia de antemão que era absolutamente inútil, mas se a sua esposa isso divertia o que importava? Não via motivo algum para não ser agradável.

Nunca tinha compreendido Charlotte, nem tampouco o tinha tentado. Gostava, isso sim; de fato, para ser sincero, gostava de Pitt.

Em conseqüência, dispôs-se a mostrar-se encantado com a Christina e, sem grande esforço, conseguiu ser devastadoramente efetivo. Tinha um rosto bonito, sobre tudo os olhos, e varia gerações de prosperidade e privilégios lhe tinham dotado de uma segurança em si mesmo que lhe permitia obtê-lo sem esforço. Podia sentar-se, contemplar Christina admirativamente e adulá-la pelo simples fato de prestar atenção só a ela.

Não dispunham de muito tempo, e Emily não pensava desperdiçá-lo, de modo que abordou rapidamente o tema que a tinha levado até ali.

–É tão agradável voltar a vê-lo – disse ao Alan Ross com um sorriso –. George se mostrou encantado quando lhe transmiti seu convite. Passamos muito tempo com essas pessoas da sociedade carentes de todo atrativo. Confesso-lhe que não sou muito inteligente julgando às pessoas. Fui algo ingênua e me encontrei em companhia de pessoas a quem não teria escolhido se fosse mais perspicaz. Mas freqüentemente estas coisas se aprendem muito tarde. Nem sequer agora consigo compreendê-lo. – Baixou a voz para lhe fazer partícipe de uma confidência-. Mas ouvi comentar em cochichos que algumas damas de quem se tivesse pensado que pertenciam a famílias impecáveis estiveram comportando-se de maneira inqualificável.

– De verdade? – Uma sombra caiu sobre o rosto do Alan, tão breve que Charlotte não tinha certeza de havê-la visto ou imaginado, mas lhe causou uma impressão de dor. A involuntária estupidez do comentário do Emily tinha evocado alguma lembrança do passado? Os assassinatos do Callander Square?

– Emily – disse rapidamente-, talvez seja uma falta de delicadeza falar desse assunto.

Ela a olhou com assombro e se voltou com vivacidade para o Alan Ross.

– Espero não lhe ter ofendido lhe falando de meus sentimentos tão abertamente. –Parecia doída, mas sob o amplo vôo de suas saias deu ao Charlotte um chute. A esta doeu, mas se viu obrigada a permanecer imperturbável.

– É claro que não! – disse Ross com um leve gesto para desprezar a idéia, que era muito comum para requerer mais esforço –. Estou de acordo com você. Só há uma coisa mais aborrecida e desagradável que a libertinagem, e é ouvir falar dela constantemente e por terceiras pessoas. – Esboçou um sorriso, e Charlotte só pôde imaginar os pensamentos que lhe tinham impulsionado a fazer esse comentário.

– Não posso estar mais de acordo com você! – O pé do Emily voltou a dar um leve chute de advertência ao Charlotte, isso sim, doloroso, pois caiu exatamente no mesmo lugar que o primeiro –. É verdadeiramente embaraçoso ouvir falar com as mulheres de tais coisas. Eu nunca sei o que dizer.

Charlotte moveu os pés para pô-los fora do alcance de sua irmã.

– E essa é a prova de como está afetada – disse-. Deixa-a sem resposta, e você mesmo pode julgar até que ponto é extraordinário!

Emily lançou seu pé com força, mas só achou as dobras da saia. Olhou ao Charlotte suspicazmente. Esta dedicou ao Alan um sorriso encantador.

Nesse momento se abriu a porta e o lacaio introduziu ao general Balantyne e lady Augusta. George e Alan Ross ficaram em pé e as senhoras permaneceram quietas. Balantyne contemplou ao Charlotte até que esta notou que se ruborizava. Desejou com todas suas forças que Emily não tivesse mentido apresentando-a como senhorita Ellison.

Christina se levantou e avançou com os braços estendidos em um gesto teatral que interrompeu quando estava a ponto de abraçar a seu pai.

– Papai, que alegria vê-lo! – deu a volta pela metade e ofereceu uma face a lady Augusta –. Mamãe! Já conhece lorde Ashworth, é claro.

Trocaram as saudações formais e George inclinou a cabeça cortesmente.

–E lady Ashworth. –Seu tom se fez mais frio.

Emily se tinha levantado como correspondia a uma mulher mais jovem ante outra mais velha quando ambas possuíam título. Uma vez mais trocaram as saudações de rigor.

Christina se voltou por fim para Charlotte que, claro, também se tinha levantado.

– E possivelmente recorde à senhorita Ellison, que teve a amabilidade de ajudar papai em certo trabalho de escritório há uns anos.

– Certamente. – Augusta não queria que lhe recordassem aquela época nem nada que tivesse relação com ela-. Boa noite, senhorita Ellison. –notava-se que não compreendia por que se incluiria Charlotte no convite.

– Boa noite, lady Augusta – disse Charlotte. De repente desapareceu todo seu sentimento de culpa, assim que lhe devolveu o olhar com a mesma frieza com que imaginava que a própria lady Augusta encarara uma torpe debutante.

Havia um leve rubor nas altas maçãs do rosto do general.

– Boa noite, senhorita Ellison – disse, e teve um pequeno acesso de tosse-. Que agradável voltar a vê-la.

Outro dia precisamente pensei em você... Quer dizer, certo fato me fez recordá-la.

–Eu o recordei freqüentemente – disse Charlotte, querendo salvar a situação, e o que dizia era quase certo. Jamais ouvia nem lia nada sobre um fato militar sem associá-lo com ele de uma maneira ou outra.

As sobrancelhas arqueadas da Christina mostraram assombro.

– Céus! Não tinha idéia de que tivéssemos ficado gravados em sua memória, senhorita Ellison, ou possivelmente se refere só a meu pai?

– As circunstâncias de nosso encontro foram tão incomuns em minha vida que dificilmente poderia esquecê-las – replicou Charlotte, querendo ferir a Christina, a quem olhou nos olhos com frieza. Esta empalideceu ante a lembrança dos assassinatos –. Mas, certamente, cheguei a professar uma grande admiração pelo general à medida que fui conhecendo suas memórias. Estou certa de que você, que o conhece muito melhor, compartilhará meu respeito por ele.

– Naturalmente – disse Christina com expressão tensa –, mas é meu pai. Isso é inteiramente diferente... Senhorita Ellison.

O rubor do general se acentuou, mas não parecia achar nada que dizer.

– Você nunca leu os papéis militares de seu pai, querida – salvou-os Alan Ross-. O afeto de uma filha é um sentimento absolutamente diferente do respeito de um observador imparcial.

As faces do general recuperaram seu tom e voltou a cabeça rapidamente.

– É claro – disse com certa aspereza-. Espero que não queira dizer o que parecia, Christina. A senhorita Ellison só pretendia ser cortês. – Não olhou ao Charlotte, e iniciou uma conversa com George.

Emily ficou a falar com a Christina, deixando ao Charlotte que tentasse equilibrar uma difícil conversa com o Alan Ross e lady Augusta. Charlotte sentiu alívio quando se anunciou o jantar.

A mesa era suntuosa. Charlotte observou que sua irmã a examinava, calculando certamente o que havia custado. Emily sabia julgar com exatidão a qualidade de cristais, prata e jogos de mesa, e conhecia também com precisão o valor de uma cozinheira. Charlotte captou de novo seu olhar instantes depois de que se sentou e, pela leve inclinação de uma de suas loiras sobrancelhas, compreendeu que, pela opinião de Emily, Christina esbanjava o dinheiro.

Serviu-se o primeiro prato. A conversa derivou para as trivialidades corteses mais adequadas para a importante tarefa de saciar o apetite ao mesmo tempo em que se mantinha certo grau de elegância. Charlotte não participava; não conhecia as pessoas de quem se falava e não podia comentar as possibilidades de que uma pessoa se casasse com outra ou se seria um desastre ou não.

Seu olhar acabou posando-se no general Balantyne, o único além dela que não conversava, tanto por ignorância, como por falta de interesse. Charlotte se sentiu um pouco desconfortável ao descobrir que a contemplava só a ela, apesar de Christina falar com grande animação.

Produziu-se um coro de risadas e de repente Christina se deu conta de que seu engenho não tinha afetado a dois comensais. Olhou ao Charlotte e fez um pequeno gesto de desgosto.

– OH, sinto muito, senhorita Ellison. É claro tinha esquecido que você não conhece a senhorita Fairgood nem ao neto do duque. Que descortesia por minha parte. Deve sentir-se excluída. Rogo-lhe me perdoe!

Não podia haver dito nada mais calculado para ressaltar a exclusão do Charlotte.

A conversa era aborrecida e Charlotte não tinha se importado até então, mas agora o rosto lhe ardia pela vergonha. Guardou silêncio, porque sabia que se falasse seria grosseira e assim proporcionaria a Christina o prazer de um novo triunfo.

– Eu tampouco conheço a senhorita Fairgood. – O general levantou sua taça-. Não posso dizer que tenha sofrido por isso. E me é tão indiferente como à senhorita Ellison com quem vai casar se o neto do duque. Entretanto – se voltou para Charlotte-, recentemente chegaram a meu poder as cartas de um soldado que serviu na guerra peninsular. Acredito que você as acharia interessantes e muito alentadoras, pois demonstram o muito que progredimos depois. Recordo sua admiração pela senhorita Nightingale e o modo em que organizou a atenção aos feridos na guerra da Crimea.

– Cartas? – disse Charlotte avidamente, e seu interesse não era fingido –. OH, isso é muito mais recente que um livro de história. – Sem pensar na estratégia do Emily, inclinou-se para o general –. Eu gostaria de vê-las. Seria como... como sustentar um fragmento do passado entre as mãos, em lugar de ler a avaliação de alguém. O que sabe dele? Desse soldado que escreveu as cartas, quero dizer.

As severas linhas do rosto do general se suavizaram e certa reserva pessoal se liberou em seu interior. Deixou a taça sobre a mesa. Passou por cima a formalidade de dizer que podia ver as cartas quando quisesse, como se o desse é claro e entre eles não precisasse ser expresso com palavras.

– Era uma pessoa de aguda inteligência – disse com olhar atento –. Ao que parece serviu como soldado, em lugar de oficial, por vontade própria, e é claro que sabia ler e escrever com toda correção. Suas observações demonstram uma grande sensibilidade e uma compaixão que acho comovedora, admito-o.

– Não é uma conversa precisamente elevada para um jantar. –Augusta os olhou com desaprovação –. Não consigo imaginar o que podem nos importar os sofrimentos de um patético e vulgar soldado em... Onde quer que fosse!

–A guerra peninsular espanhola – explicou o general, mas ela não fez conta.

–Eu diria que são tão elevados como podem sê-lo as aspirações matrimoniais da senhorita Fairgood – disse Alan Ross com tom de brincadeira.

– Para quem? Por amor de Deus! – respondeu Christina com mordacidade.

– Para mim – respondeu Ross-, para seu pai e, a menos que seja mais cortês do que o foram outros até agora, para a senhorita Ellison.

Charlotte o olhou nos olhos e voltou a posá-los rapidamente em seu prato.

– Receio que não posso me atribuir semelhante delicadeza, senhor Ross – disse, esforçando-se em manter uma expressão de serena modéstia-. Meu interesse é sincero.

– Que original – murmurou Christina –. Lady Ashworth, dizia-me você que ultimamente teve mais relação com a Lavinia Hawkesley. Não lhe parece uma criatura absolutamente divertida? Embora não tenha certeza se é essa sua intenção!

– Suponho que a pobrezinha está mortalmente aborrecida – replicou Emily, lançando um olhar furioso a sua irmã –. E devo dizer que não a culpo. Sir James é um homem que aborreceria a qualquer um. Deve ter trinta anos mais que ela.

– Mas é incrivelmente rico – indicou Christina –. E se tiver a mínima decência, morrerá antes que passem dez anos.

– OH! – Emily olhou por volta do teto-. Mas o que vai fazer ela durante outros dez anos?

Um sorriso apareceu nos lábios da Christina.

– Imaginação tem...

– E essa é sua desgraça! – disse Augusta bruscamente-. Estaria melhor se não tivesse nenhuma. E seja o que for que imagine Christina, seria preferível que não o mencionasse. Não queremos nos converter em profetas das maldades de outras pessoas.

Christina respirou fundo. Isso era obviamente o que ela pretendia ser, mas, por estranho que parecesse, não discutiu. De fato, Charlotte acreditou ver uma palidez fugaz, uma contração de seus traços, mas não soube discernir se se tratava de piedade ou de mau humor.

– Suponho que poderia ocupar-se de alguma obra caridosa – sugeriu George-. Emily me recorda com freqüência quanto há por fazer.

– Mas bom! –explorou Christina de repente-. Quando um cavalheiro se aborrece, pode jogar dados ou cartas em seu clube, ir às corridas ou participar delas! Pode ir caçar ou jogar bilhar, ou ir ao teatro e a lugares piores. Mas se for uma dama quem se aborrece, todo mundo espera que se entretenha com obras de caridade, visitando os famintos e os mendigos, murmurando palavras de consolo e animando-os a serem virtuosos!

Havia muita verdade nessas palavras para que Charlotte quisesse rebatê-las. Entretanto, viu-se incapaz de explicar a Christina Ross o sentido do dever completo e a satisfação que ela, pessoalmente, achava em trabalhar para conseguir reformas legais. Havia uma realidade, uma urgência vital em todo aquilo; a seu lado, os jogos de azar ou inclusive os esportes pareciam separados do mundo e insuportavelmente corriqueiros.

Inclinou-se sobre a mesa procurando o modo de expressar seus sentimentos. Todos a olhavam, mas não lhe ocorreu nada adequado.

– Se estava a ponto de espraiar-se sobre os deleites das histórias militares de meu pai, senhorita Ellison, por favor, não se incomode – disse Christina com tom glacial-. Não desejo saber nada sobre o cólera no Sebastopol, nem quantas pobres almas morreram na carga da Brigada Ligeira. Todo isso não me parece mais que um jogo idiota ao que se dedicam homens que deveriam estar encerrados no Bedlam, onde não pudessem fazer dano mais que a si mesmos... E possivelmente uns aos outros!

Pela primeira vez desde que a conhecia, Charlotte sentiu certa simpatia pela Christina.

– Ocorre-lhe algum modo de converter essa idéia em lei, senhora Ross? –disse com entusiasmo –. Pense em todos jovens que não morreriam se o conseguíssemos!

Christina a olhou carrancuda, mas com curiosidade. Não esperava que nenhum dos presentes lhe desse razão, e muito menos Charlotte.

– Surpreende-me você – disse com tom inocente –. Pensava que era uma grande admiradora dos militares.

– Detesto a vaidade cega – replicou Charlotte –, e deploro a estupidez. O fato de que seus efeitos no exército sejam mais perigosos que em nenhum outro lugar, salvo possivelmente no Parlamento, não faz diminuir meu respeito pelo valor dos soldados.

– No Parlamento? – repetiu Augusta com incredulidade –. Por Deus, senhorita Ellison! O que pretende dizer?

–Um estúpido no Parlamento pode prejudicar a milhões de pessoas – interveio o general-. E Deus sabe que há mais de um estúpido! Além dos vaidosos. – Olhou para Charlotte com absoluta franqueza, como se tivesse esquecido por um momento que era uma mulher –. Não tinha ouvido uma idéia tão sensata expressa tão sucintamente em muitos anos – acrescentou, franzindo levemente o sobrecenho –. E tenho a impressão de que estava a ponto de dizer algo mais quanto Christina tornou a trazer o assunto do exército. Por favor, me diga do que se trata.

– Eu... – Charlotte era consciente de que o general a observava atentamente. Seus olhos eram de um azul mais claro e brilhante do que recordava. Também aumentava a consciência de seu poder, da força de vontade que lhe tinha permitido mandar a seus soldados no meio do perigo e do medo à morte. Charlotte desprezou o esforço de expressar seus sentimentos de forma educada.

– Ia dizer que, quando disponho de tempo livre, dedico meus esforços a procurar que se reformem as leis sobre prostituição infantil, para que sejam mais estritas que as atuais e os abusos infantis e o tráfico, tanto de meninos como de meninas, convertam-se em delitos da máxima gravidade.

Alan Ross se voltou para ela com um olhar penetrante.

– De verdade? – disse Augusta, com expressão de não compreender nada absolutamente –. Não achava que alguém pudesse ter êxito em semelhante empresa sem uns consideráveis conhecimentos sobre o tema, senhorita Ellison.

– É claro que não. – Charlotte aceitou o desafio e lhe devolveu o olhar sem pestanejar-. É necessário adquiri-los, do contrário não se tem a menor influencia.

– Que desagradável – disse lady Augusta, dando o tema por resolvido.

– É claro que é desagradável. –Alan Ross se negava a ser silenciado –. Acredito que é isso o que Brandy dizia a outra noite, recorda-se de Brandy, senhorita Ellison? Se aqueles de nós que podemos nos fazer ouvir pelo Parlamento não nos preocupamos com tais males, quem poderá mudar as coisas?

–A Igreja – respondeu Augusta –. E tenho certeza de que serão mais competentes que nós se entregarmos as especulações inúteis e insensatas durante o jantar. Brandon seria amável de me passar a mostarda? Christina será melhor que fale com sua cozinheira, este molho é totalmente insípido. Parece de algodão! Não acha senhorita Ellison?

– É suave – respondeu Charlotte com um leve sorriso –. Mas não o acho desagradável.

– Que estranho. – Augusta virou o garfo –. Teria jurado que preferiria a mostarda!

Quando concluiu o jantar, o mordomo serviu o Porto. Augusta, Christina, Emily e Charlotte se desculparam e deixaram a sós os cavalheiros. Era a parte da noite que Charlotte esperava com maior inquietação. Era plenamente consciente de que desagradava a Christina, e também de que Augusta não a aprovava. Acima destas duas desagradáveis sensações, temia o que pudesse fazer Emily. Ela tinha participado da aquela janta com o único propósito de averiguar os nomes e características das amigas de pior reputação que tivesse Christina, a fim de descobrir se alguma delas podia ter caído nas redes do Max. Tomara Emily demonstrasse ao menos certa sutileza, se é que era possível ser sutil em semelhante assunto. Emily lhe lançou um olhar de advertência antes que se sentassem.

– Sabe, estou absolutamente de acordo com você – disse a Christina com ar conspirador –. Anseio fazer algo um pouco mais excitante que visitar pessoas das que sei tudo para me aborrecer com as mesmas conversas educadas de sempre. Ou se não, fazer "boas obras". Estou segura de que são muito meritórias, e admiro os que desfrutam fazendo-as, mas confesso que não sou uma dessas pessoas.

– Tudo o que nos pode exigir é que vamos à igreja de vez em quando e que cuidemos das famílias de nossos criados – indicou lady Augusta –. As outras boas obras, as de visitar os doentes e demais só são necessárias para senhoras solteiras que não têm nada mais que fazer. Isso as mantém ocupadas e as faz sentirem-se úteis. Deus sabe que há mais que suficientes, não devemos usurpar suas funções!

Momentaneamente, todas pareciam ter esquecido que Charlotte era uma dessas senhoras solteiras, pelo que elas sabiam.

– Acredito que deveria me afeiçoar a montar a cavalo pelo parque – disse Emily com tom pensativo –. Ali se pode conhecer todo tipo de pessoas interessantes, ou ao menos isso ouvi.

– Certo – disse Christina –. Sei exatamente ao que se refere. Mas, me acredite, podem-se fazer coisas com muito mais espírito de aventura e muito mais divertidas que escrever cartas ou visitar pessoas indescritivelmente aborrecidas. Não é realmente indecoroso, se não se for sozinha, visitar...

– Pinta, senhorita Ellison? – perguntou lady Augusta, impedindo que Christina seguisse falando com sua voz sonora e cortante –. Ou touca o pianoforte? Ou possivelmente canta?

– Pinto – respondeu Charlotte.

– Que agradável para você. – A opinião da Christina sobre a pintura ia implícita em seu tom. As mulheres solteiras que não tinham nada mais emocionante que fazer que andar por aí com pincéis e partes de papel úmido eram muito patéticas para esbanjar palavras nelas. Voltou-se para Emily-. Decidi que irei montar pelo Row10 todas as manhãs que goste e o tempo me permita! Estou certa de que montando um cavalo fogoso o passeio pode ser muito prazenteiro.

– Com um cavalo fogoso, querida minha, o mais provável é que acabe de bruços na lama! –replicou Augusta –. E queria que o recordasse e não se comportasse como se uma queda pudesse tomar-se à ligeira!

Christina empalideceu. Ficou olhando ao vazio, sem ver nem a Augusta nem ao Emily. Se pensava em alguma réplica, não saiu de seus lábios.

Charlotte tentou pensar em um comentário apropriado com que romper o silêncio, mas todas as cortesias e trivialidades lhe pareceram grotescas depois daquela súbita realidade das emoções, embora ela não as compreendesse, nem tampouco sua causa. Se Christina se ferira, possivelmente por montar temerariamente a cavalo, era um tema muito espinhoso. Subitamente lhe ocorreu a insensata idéia de que talvez ainda não tivesse tido descendência. Aquele arranque de compaixão era doloroso; não desejava sentir pela Christina nada mais que desagrado.

– Emily toca o piano – disse Charlotte só para mudar de assunto e desviar seus pensamentos.

– Perdão? –Augusta engoliu e seco. Tinha umas rugas muito finas no pescoço nas que Charlotte não tinha reparado até então.

– Emily toca o piano – repetiu Charlotte com confusão crescente. Agora se sentia ridícula.

– Ah, sim? E você não aprendeu?

– Não. Eu preferia pintar, e meu pai não insistiu.

– Muito sensato de sua parte. É uma perda de tempo obrigar a uma criança que não tem talento.

Não havia resposta cortês a essas palavras. De repente Charlotte deixou de sentir-se culpada pela doçura que tinha visto no rosto do general, e pela sinceridade de seu gesto ao esquecer o protocolo da mesa para falar com ela simplesmente como com uma amiga com quem podia comentar as coisas realmente importantes, as do intelecto e sentimentos.

Em realidade, quando os cavalheiros se reuniram com as senhoras pouco depois, Charlotte se alegrou muito de achar-se encetada em uma animada conversa com o general sobre a retirada de Moscou. Ela não precisou fingir que seguia suas palavras com interesse nem que compartilhava sua fascinação pelo giro histórico que tinham tomado os acontecimentos na Europa, nem a compaixão que sentia pela terrível morte dos soldados entre as neves da Rússia.

Quando os convidados se levantaram para partir, era o rosto do general o que Charlotte tinha na mente, não o de sua filha. Só depois, durante o caminho a casa, voltou a sentir-se culpada.

–Sério, Charlotte, pedi-lhe que granjeasse as simpatias do general para que pudéssemos averiguar alguma coisa, não que lhe fizesse perder a cabeça por você! – disse Emily mordazmente –. Acredito que deveria aprender a se dominar. Esse vestido de cor damasco lhe subiu à cabeça!

Charlotte se ruborizou, mas felizmente nem Emily nem George podiam vê-la na escuridão da carruagem.

– Bom, não tinha muito sentido que tentasse descobrir quais eram as amizades mais cabeças-de-vento da Christina – replicou com tom incisivo-. Entre todos lhes encarregastes que me catalogar como uma pobre criatura que fica sentada em casa pintando, quando não sai para fazer boas obras entre os desventurados!

–Compreendo perfeitamente que você não goste de Christina – disse Emily, trocando de tática para adotar um tom paciente na aparência –. Tampouco eu gosto, e certamente foi muito grosseira com você. Mas essa não é a questão! Estávamos ali para continuar com nossa investigação, não para nos divertir!

Charlotte não tinha resposta para isso. Não tinha averiguado absolutamente nada e, se quisesse ser sincera, divertiu-se de uma maneira indecente. Ao menos em ocasiões; outros momentos tinham sido espantosos. Tinha esquecido quão entristecedor podia ser mover-se em sociedade.

– Inteirou-te que algo? –perguntou a sua irmã.

–Não tenho a menor idéia – respondeu Emily na escuridão –. Possivelmente.

 

Emily tinha refletido sobre os assassinatos e as muitas e diferentes tragédias que podiam ocultar-se atrás deles. Sabia muito bem que muitos matrimônios se celebravam tanto por razões práticas como românticas, em um esforço por melhorar a posição na alta sociedade ou para manter a que já se tinha. Algumas vezes tais uniões funcionavam tão bem como as que se empreendiam com o ardor do amor, mas quando a diferença de idade ou de caráter era muito grande, convertiam-se em uma espécie de prisão.

Também sabia que o aborrecimento embotava o sentido moral das pessoas. Pessoalmente, ela não o padecia devido a suas periódicas aventuras em um mundo turbulento, estimulante e ao mesmo tempo aterrador. Precisamente por isso, os longos e áridos intervalos de trivialidades sociais eram ainda mais acusados pelo contraste. Este era um mundo enclausurado, no qual as paqueras mais superficiais adquiriam as proporções de um grande amor, os meros deslizes de precedência ou etiquetas se convertiam em ofensas, e se observava e se falava da vestimenta – o corte, a cor, os adornos – como se tratasse de um assunto da máxima importância.

Como havia dito Christina Ross, os homens ociosos podiam ocupar-se em todo tipo de esportes, saudáveis ou não, e inclusive achavam emoções fortes arriscando dinheiro ou alguma perna fraturada. Os homens industriosos ou com uma estrita moralidade desejavam o poder que dava o Parlamento ou o comércio, ou eram enviados em missão a algum remoto lugar do mundo, ou ingressavam no exército, ou seguiam o curso do Nilo até chegar a suas nascentes no coração do continente negro.

Mas uma mulher só tinha a possibilidade de realizar obras caridosas. Os criados se ocupavam de sua casa, a ama de leite, a babá e finalmente a preceptora se ocupavam de seus filhos. Para as que não tinham talento artístico nem estavam dotadas de uma especial inteligência, pouca coisa ficava mais que visitar outras ou receber visitas. Não era de estranhar que jovens corajosas como Christina, apanhadas em matrimônios sem paixão, nem sequer amizade, fossem atraídas por alguém tão primitivo e perigoso como Max Burton.

É claro, Emily jamais ocultou a si mesma a outra face da moeda, o fato de que alguns homens não conseguiam satisfazer em casa seus apetites. Muitos se abstinham por uma razão ou outra, mas, claro está, havia os que não. Não se falava das “casas de prazer" nem das "pombas caídas" que as ocupavam. Deus, como odiava aqueles eufemismos! E só com os amigos mais íntimos se comentavam as diversas aventuras que se desenvolviam nas casas de campo durante os longos fins de semana de caçada, nas partidas de criquet sobre a erva estival, nos grandes bailes durante a temporada de caça, ou em muitos outros momentos e lugares. Nada de tudo aquilo serviria para desculpar, mas só para compreender.

Portanto, pensando nos crimes, Emily considerou os nomes e as situações, tal como os conhecia ela, do círculo social da Christina e daquelas mulheres que pudessem ter estado envolvidas com Max. Havia sete ou oito que lhe pareciam prováveis e outra meia dúzia de possíveis, embora opinasse que careciam da valentia ou da indiferença para valores como a modéstia e a fidelidade, necessários para dar semelhante passo. Apesar de tudo, se não surgisse nada melhor, devia mencionar esses nomes a Pitt, para que ele descobrisse onde tinha estado seus maridos nos momentos chave.

Sempre havia a possibilidade, além disso, de que se produzira um desafortunado encontro ou uma pequena traição, ou uma chantagem. E se um homem que procurava prazer em um prostíbulo descobria que tinha pago os serviços de sua própria esposa? As combinações eram infinitas, todas elas dolorosas e desesperadamente estúpidas.

Talvez Max tivesse utilizado uma daquelas mulheres, que um de seus clientes fosse Bertie Astley e que, por alguma razão desconhecida, o medo ou o ódio tivessem dado como resultado o assassinato, não só do Max, mas também do Astley. Entretanto, continuava sem ocorrer nada sobre a implicação do Hubert Pinchin.

A outra possibilidade mais óbvia era ainda menos agradável: que Beau Astley tinha lido as notícias sobre os assustadores assassinatos do Max e o doutor Pinchin e tinha aproveitado a oportunidade para imitar o estilo desses crimes e desembaraçar-se de seu irmão mais velho. Não seria o primeiro assassinato que imitasse a outro para carregar assim a um culpado de dois assassinatos com outro mais.

Beau Astley tinha muito que ganhar com a morte de seu irmão, isso certamente. Mas até que ponto o queria? Achava-se em apuros econômicos ou se desembrulhava bem com os ganhos que recebia quem sabia de onde? Estava apaixonado por Mai Woolmer? De fato, que tipo de pessoa era?

Emily tomava o chá durante o café da manhã do dia seguinte. George não se achava em seu melhor momento. escondia-se atrás do jornal, não para lê-lo, mas para evitar ter que pensar em algo que dizer.

– Recentemente fui visitar o Mai Woolmer – comentou Emily alegremente.

– Ah, sim? – George tinha a voz ensimesmada e sua mulher se deu conta de que não recordava quem era Mai Woolmer.

– Ainda está de luto, claro – continuou ela. Pedir-lhe informação diretamente não serviria de nada. George não gostava da curiosidade; parecia-lhe vulgar e ofensiva. Importava-lhe muito pouco que a pessoa se ofendesse quando não era justificado, mas detestava parecer lerdo ou qualquer outra coisa que se saltasse a cortesia. Conhecia muito bem o valor da aceitação.

– Perdão? – Não estava prestando atenção e agora baixou o jornal com reticência ao dar-se conta de que sua mulher não tinha intenção de deixar o tema.

–Ainda está de luto pelo Bertie Astley – repetiu Emily.

– OH, sim, claro. – O rosto do George se esclareceu um tanto –. É uma pena. Era um tipo muito agradável.

– OH, George! – Emily conseguiu parecer escandalizada.

– O que? – Não o compreendia. O comentário era inofensivo e certamente Astley tinha sido uma pessoa agradável.

– George! – Emily baixou a voz e também a vista –. Sei onde o acharam, sabe?

– O que?

Emily desejou poder ruborizar-se a vontade. Algumas mulheres o faziam; era uma habilidade extremamente útil. Evitou olhar a seu marido, se por acaso visse curiosidade em seus olhos em lugar de pudico horror.

– Encontraram-no na porta de uma casa de prazer. – Pronunciou o eufemismo afetando certo embaraço. – Onde os "moradores" são homens também!

– OH, Deus! Como sabe você isso? – Desta vez não precisava fingir interesse. Sua expressão era de surpresa e olhava a sua mulher com os olhos escuros muito abertos –. Emily?

Por um momento ela não soube o que responder. A conversa tinha dado um giro que ela deveria ter previsto, mas não foi assim. Devia admitir que tinha lido os jornais? Ou devia culpar ao Charlotte? Não, não era boa idéia, podia ter repercussões desafortunadas. George podia colocar inclusive na cabeça que não devia ver-se tanto com Charlotte, sobre tudo durante a investigação de crimes escandalosos como aqueles.

– Disse-me isso Mai – explicou com súbita inspiração –. Deus sabe onde o ouviu. Mas já sabe como se estendem estes rumores. Por quê? Não é verdade? – Olhou a seu marido com absoluta inocência. Não sentia o menor escrúpulo em enganar ao George em assuntos corriqueiros; era para seu próprio bem. Nos assuntos de importância, como a fidelidade ou o dinheiro, sempre era sincera, mas algumas vezes tinha que conduzi-lo um pouco.

George relaxou e voltou a recostar-se na cadeira, mas continuou com expressão de perplexidade. Duas coisas o inquietavam: os fatos extremamente desagradáveis que concerniam ao Bertie Astley, e até que ponto era decoroso contar à Emily.

Ela o compreendeu, e salvou a situação antes que perdesse a iniciativa.

– Talvez devesse visitar Mai e tranqüilizá-la? – sugeriu –. Se for só uma invenção malévola...

– OH, não! – George se sentia desventurado, mas não fraquejou –. Receio que não pode fazer isso; é totalmente certo.

Emily adotou uma expressão convenientemente abatida, como se em realidade tivesse esperado que não fosse verdade.

– George? Sir Bertram era... Quero dizer, tinha... Uma natureza peculiar?

– Deus do céu, não! Por isso é tão estranho, maldição! Simplesmente não posso entender. – Fez uma careta com estranha franqueza nele –. Embora suponha que poucas vezes conhecemos as pessoas tão bem como acreditamos. Talvez o fosse... E ninguém sabia.

Emily estendeu a mão por cima da mesa e pegou a de seu marido.

– Não pense nisso, George – disse afavelmente –. Não é mais provável que algum outro pretendente do Mai Woolmer enlouquecesse até o ponto de aproveitar a oportunidade para desfazer-se de um rival ao mesmo tempo em que o caluniava de maneira horrível? Dessa forma podia desfazer-se dele literalmente, até para a lembrança. Ao fim e ao cabo, como podia Mai guardar com carinho a lembrança de um homem que praticava tais indecências?

George meditou nestas palavras, fechando a mão ao redor da de sua esposa. Às vezes sentia um imenso carinho por ela. Inclusive depois de cinco anos de matrimônio, Emily jamais o tinha aborrecido.

– Duvido-o – disse por fim –. É muito bonita, certamente, mas não imagino nenhum homem tão apaixonado por ela para fazer isso. Falta-lhe... A paixão. E tem muito pouco dinheiro, sabe?

– Pensava que Beau Astley se sentia intensamente atraído por ela – sugeriu Emily.

– Beau? – repetiu ele com incredulidade.

– Não é assim? – Agora também ela estava confusa.

– Acredito que gosta muito, sim, mas tem outros interesses, e não é o tipo de homem que mataria seu irmão muito menos!

– Há um título e dinheiro em jogo – indicou Emily.

– Conhece o Beau Astley?

– Não – respondeu ela esperançada. Por fim tinham chegado aonde lhe interessava –. Como é?

– Agradável em realidade bastante mais que o pobre Bertie. E generoso – acrescentou George com convicção-. Acredito que deveria ir vê-lo. – Deixou o jornal e ficou em pé –. Sempre gostei dele. Certamente o pobre está passando muito mal. O luto é um assunto muito tedioso, faz você sentir-se imensamente pior. Por muito penalizado que esteja uma pessoa, não deseja ficar sentada em uma casa cheia de lampiões de gás e braçadeiras de luto negras, com criados que falam em sussurros e criadas que sorvem as lágrimas cada vez que lhe vêem. Irei oferecer lhe um pouco de companhia.

– Boa idéia – concordou ela com seriedade –. Tenho certeza de que lhe agradecerá isso. É uma cortesia de sua parte. – Como podia lhe persuadir, sem despertar suspeitas, de que interrogasse um pouco ao Beau Astley –. É muito possível que anseie desafogar-se com alguém, um bom amigo em quem confiar – disse, observando o rosto do George-. Ao fim e ao cabo, devem lhe haver assaltado mil e um pensamentos tristes e perturbadores para explicar o acontecido. E por força tem que inteirar-se das especulações que correm por aí. Estou convencida de que se eu estivesse em sua situação, estaria desejando ter a alguém a quem confiar minhas penas!

Se ao George lhe ocorreu que ela escondia algum outro motivo atrás destas palavras, sua expressão não o demonstrou. Ao menos, não achava que o sorriso que esboçava fosse por esse motivo... Não?

– Muito certo – replicou ele com seriedade –. Algumas vezes é um grande alívio falar... Em confiança!

Era George mais ardiloso do que ela tinha suposto e lhe seduzia a idéia de trabalhar um pouco como detetive por sua conta? Não podia ser! Ao contemplar as elegantes costas de seu marido quando saía pela porta, Emily sentiu um intenso comichão de agradável surpresa.

Três dias mais tarde, Emily tinha arquitetado para levar Charlotte com ela e George a um pequeno baile em uma casa particular onde tinha averiguado que assistiriam os Balantyne, assim como Alan e Christina Ross. A desculpa que

Charlotte desse a Pitt era coisa sua.

Emily não estava certa de que informação esperava obter ali, mas não ignorava os costumes habituais entre os cavalheiros da alta sociedade. Tinha aprendido a aceitar a extraordinária proeza de agilidade ética e mental que permitia a um homem saciar seus apetites físicos nos caros bordéis do Haymarket durante toda a noite e voltar logo para casa para presidir a mesa do café da manhã, onde a mera expressão de seus desejos bastava para produzir agitação e sua palavra tinha força de lei. Ela tinha escolhido viver na alta sociedade e desfrutar de seus privilégios. Portanto, embora não admirava sua hipocrisia, não se rebelava contra ela.

Emily não gostava de Christina Ross absolutamente, mas não lhe custava acreditar que esta sentisse simpatia pelas poucas mulheres que se atreviam a transpassar as barreiras sociais e jogar com os homens seu próprio jogo, até o ponto de arriscar tudo por uma licenciosa farsa em uma casa como a do Max em Devil's Acre. Emily o considerava absolutamente estúpido. Só uma mulher sem cérebro arriscaria tanto em troca de tão pouca coisa, e ela desprezava a quem demonstrava ser tão idiota.

Mas sabia também que às vezes o aborrecimento nublava a inteligência, inclusive o instinto de conservação. Tinha visto mulheres superexcitadas que imaginavam haver-se apaixonado e corriam loucamente, como ratos campestres, para sua própria destruição. Costumavam ser jovens e aquela sua primeira paixão. Mas possivelmente com o tempo só mudavam externamente: aprendiam novos hábitos e camuflavam sua vulnerabilidade. Provavelmente em seu interior continuavam albergando desespero. De modo que, entre as amizades da Christina Ross que iriam ao baile essa noite, não se acharia acaso ao menos uma das mulheres do Max?

Desejava que Charlotte a acompanhasse por sua habilidade como observadora. Charlotte era muito ingênua em algumas coisas, mas em outras mostrava uma surpreendente perspicácia. Além disso, Christina não gostava dela, quase parecia ciumenta dela, e no calor de uma forte emoção a pessoa tendia a delatar-se. Charlotte podia ser extraordinariamente interessante quando desfrutava concedendo toda sua atenção a alguém em particular, como fazia, por uma inexplicável razão, com o general Balantyne. Se algo podia fazer que Christina perdesse o domínio de si e a sensatez, era Charlotte paquerando com o general, e possivelmente com o Alan Ross.

Assim, Emily, George e Charlotte foram ao baile que lorde e lady Easterby ofereciam a sua filha maior. Chegaram com o atraso justo que permitia a cortesia e que podia causar um agradável rebuliço de apreciação entre os convidados que lotavam já o salão.

Emily vestia sua cor favorita: um delicado verde água que favorecia sua branca pele. Os suaves cachos de seus cabelos loiros refletiam a luz como uma auréola. Parecia o espírito do fugaz início de um verão inglês, com as flores recém abertas e o ar cheio de bolinhas da luz fria e cambiante.

Emily se tinha ocupado de arrumar ao Charlotte, refletindo longamente sobre o que podia atrair mais ao general e, portanto, irritar a Christina. Charlotte apareceu assim no salão do baile com um redemoinho de vibrante e luminoso azul genciana, que empalidecia no pescoço e fazia com que seus cabelos resplandecessem com o brilho do cobre velho. Com este vestido Charlotte era como uma noite tropical, quando o sol se pôs, mas persiste o calor da terra. Não demonstrava ter a menor idéia das intenções de sua irmã. Tanto melhor, pois Emily duvidava que a consciência do Charlotte lhe tivesse permitido levar adiante o plano – por muito que gostasse da idéia – se houvesse sabido. Por outro lado, não sabia paquerar quando o tentava de maneira consciente! Não obstante, fazia muito tempo que Charlotte não tinha tido ocasião de vestir com aprimoramento, de ser extravagante e de dançar toda a noite. Nem sequer se dava conta de sua avidez por toda aquela excitação.

Receberam-nos com especial atenção. O título do George e o fato de que Charlotte fosse uma cara nova, e, portanto misteriosa, teria bastado para eles, fosse qual fosse sua aparência. Mas, dado que ambas as irmãs eram deliciosamente encantadoras, despertaram uma onda de especulações e rumores que manteriam vivas as conversas durante um mês.

Também isto as favorecia; contribuiria para esquentar o ambiente e à Christina não se sentiria nada bem que a eclipsassem. Por um momento, Emily sentiu certo comichão. Perguntou-se se tinha calculado mal, se os resultados seriam menos informativos do que pretendia e acabariam sendo unicamente desagradáveis. Logo desprezou a idéia. Em qualquer caso era muito tarde para mudar as coisas.

Avançou com um sorriso radiante para saudar lady Augusta Balantyne, que permaneceu rígida, com porte régio, e uma máscara de irrepreensível cortesia no rosto.

– Boa noite, lady Ashworth – disse Augusta com frieza –. Lorde Ashworth. Que agradável voltar a vê-los. Boa noite, senhorita Ellison.

Emily percebeu de repente que sua anfitriã se sentia envergonhada. Olhou os ombros rígidos de Augusta, os finos tendões do pescoço que se sobressaíam sob o colar de rubis, frio e pesado, vermelho como o sangue. Tanto temia a Charlotte? Era possível que amasse tanto a seu marido? Acaso a doçura do general ao saudar a Charlotte e essa forma de erguer os ombros indicava algo mais profundo que uma paquera com uma mulher agradável, algo que tivesse despertado sentimentos que doem e perturbam e deixam uma solidão que jamais pode encher nenhum outro afeto? E era possível que Augusta soubesse?

O salão estava resplandecente e as pessoas riam e tagarelavam, mas por um momento Emily não percebeu nada do que tinha ao redor. Numerosos lustres tilintavam e cintilavam; os arcos dos violinos tocavam as cordas brevemente e acharam sua autêntica sonoridade; os lacaios se moviam com elegância levando em equilíbrio bandejas com taças de champanha e ponches de frutas.

Tudo o que Emily queria era arrancar o verniz que dissimulava o vivo caráter da Christina e inteirar-se possivelmente, em um momento de descuido, pelo que esta soubesse sobre as mulheres da alta sociedade que freqüentavam o bordel do Max. A última coisa que queria Emily era ser a causa de um dano real e permanente. Tomara

Charlotte soubesse o que estava fazendo!

A necessidade de manter uma conversa educada a tirou de seu ensimesmamento. Prestou a metade de sua atenção ao que se dizia, fazendo algum ou outro idiota comentário sobre que cavalo ganharia uma corrida no verão; nem sequer tinha certeza se falavam do Derby ou do Oaks. Certamente se nomeou o príncipe do Gales.

Passaram trinta minutos mais ou menos até que se esgotou o tema e Alan Ross perguntou a Emily se lhe faria a honra de dançar com ele. Foi um estranho exercício, estar tão perto de uma pessoa, compartilhando um movimento, tocando-se às vezes, sem falar apenas; aproximavam-se e se afastavam tão depressa enquanto davam voltas que qualquer intercâmbio era impossível.

Emily examinou o rosto de seu par. Não era tão bonito como George, mas se percebia nele uma sensibilidade que o fazia mais atraente à medida que o conhecia melhor. Os acontecimentos do Callander Square acudiram fugazmente a sua memória, fazendo-a perguntar-se até que ponto tinha sofrido Alan. Não era nenhum segredo que então estava apaixonado pela Helena Douram. Tinha cicatrizado aquela ferida? Era aquela uma dor interior que dava doçura a suas maçãs do rosto e às linhas de sua boca?

Essa poderia ser uma boa razão para o azedume de Christina e sua aparente necessidade de ferir Charlotte. Esta devia lhe recordar a Helena, e além agora começava a cruzar a fronteira de uma aceitável paquera com o general para fazer-se amiga dele. Era compreensível, embora um pouco ordinário, manter uma relação apoiada unicamente em uns seios generosos ou a curva de uns quadris. Mas comprometer os pensamentos, a compaixão e a imaginação era uma transgressão das normas.

Que normas respeitava Christina? Quais conheciam sequer?

Emily percorreu o salão com a vista enquanto evoluía nos braços do Alan e, por cima do ombro deste, viu Christina junto a um oficial de cavalaria com um resplandecente uniforme. Christina ria olhando-o nos olhos, excitante e viva. Era claro que o oficial estava encantado.

Emily voltou a olhar ao Alan Ross. Devia ter visto sua esposa antes do último volta da dança, mas sua expressão não se alterara. Ou estava tão acostumado que tinha aprendido a dissimular suas emoções, ou já não lhe importava.

A idéia que lhe ocorreu depois era óbvia; entretanto, era tão desagradável que por um instante Emily perdeu o compasso e errou o passo. Em outro momento se teria sentido mortificada, mas, entregue como estava por aquele novo pensamento, aquela estupidez física lhe pareceu absolutamente banal.

Era a própria Christina uma das mulheres do Max? Alan Ross não era velho nem aborrecido, certamente, mas acaso a natureza de seu encanto, essa inacessibilidade de seu eu interior, era um incentivo para outras conquistas, muito maior apesar sua superficialidade, pelo que podia ser o mero aborrecimento?

De repente a hostilidade de Emily por Christina se converteu em compaixão. Continuava sem gostar dela, mas se sentia obrigada a preocupar-se com ela. Emily dançava com o Alan Ross, notava o tecido de sua jaqueta sob a luva e se movia em perfeita harmonia com seu corpo. Embora mal se tocassem, existia uma união. Sabia ele sobre Christina, ou o adivinhava? Era sua vaidade ultrajada, reprimida durante tanto tempo, a que finalmente tinha assassinado e mutilado ao Max?

Ridículo! Ali estava ela, com um vestido de seda verde pálido, dançando ao som dos violinos sob todas aquelas luzes, perto e longe daquele homem a quem falava como a um amigo, e seus pensamentos imaginavam caminhando por sórdidas ruelas ao encontro de um lacaio convertido em fanfarrão de putas para cometer um assassinato por ódio e para vingar-se obscenamente da degradação de sua esposa.

Como podiam existir dois mundos tão díspares e tão próximos, inclusive um dentro do outro? A que distância se achava a Parcela do Diabo, a cinco, oito quilômetros? A que distância se achava na imaginação?

Quantos dos homens que assistiam ao baile, com suas imaculadas camisas brancas e suas maneiras perfeitas, saíam as noites que lhes convinha a beber e brincar e ter relação com uma prostituta de risada fácil em um estabelecimento como o do Max?

A dança chegou a seu fim. Emily disse umas frases formais ao Alan, perguntando-se se ele podia ter suspeitado sequer o que estava pensando ou se tinha estado tão longe dela em seus pensamentos como ela dele.

Lady Augusta conversava com um jovem de loiras costeletas. Charlotte tinha estado dançando com o Brandy Balantyne, mas agora o general lhe oferecia o braço, não para dançar, mas para afastar-se em direção à estufa. O general caminhava muito erguido, mas inclinava a cabeça para ela, muito atento, e falava. Maldita Charlotte! Algumas vezes era tão estúpida que Emily sentia vontade de esbofeteá-la! Não se dava conta de que o general se estava apaixonando por ela? Era um homem solitário de cinqüenta anos, inteligente, incapaz de expressar suas emoções e desesperadamente vulnerável.

Mas Emily não podia jogar-se sobre Charlotte, arrancá-la do braço do general e lhe dar um bom chute para fazê-la entrar em razão. O pior de tudo era que Charlotte sofreria terrivelmente quando compreendesse o que tinha feito, porque não tinha a menor idéia! Simplesmente gostava muito do general e era tão espontânea que o demonstrava do modo que era mais natural nela: oferecendo-lhe sua amizade.

De repente George se achava ao lado de Emily, lhe dizendo algo.

– Perdão? – respondeu Emily distraidamente.

– Balantyne – repetiu ele –. É realmente estranho para um homem de sua posição.

Emily podia ter suas próprias opiniões sobre Charlotte, e naquele momento não eram nada caridosas, mas não ia aceitar que a criticasse ninguém mais, nem sequer George.

– Não sei do que está falando – disse com tensão –. Mas se decide me pedir desculpas, aceitá-las-ei.

– Achava que estava interessada nas reformas sociais – disse George, desconcertado e meneando ligeiramente a cabeça –. Foi você quem trouxe à tona o assunto, e Charlotte, é claro.

Agora tocava a ela sumir-se na perplexidade. Olhou a seu marido com impaciência; o que dizia George não tinha sentido.

– O que tem? Enjoou? – disse ele por fim. Logo lhe assaltou uma suspeita-. Emily! O que se propõe?

Raras eram as ocasiões em que George punha em dúvida as atividades de sua esposa, mas ela sempre tinha arquitetado para ter a ponto as respostas mais satisfatórias, e quando não eram de todo certas, assegurava-se sempre de que ele jamais o descobrisse. Naquele momento não teve tempo de inventar uma dessas mentiras. Não ficou mais remédio que esquivar-se da pergunta.

– Sinto muito – disse recatadamente –. Estava olhando ao Charlotte e ao general Balantyne. Temo que Charlotte não seja consciente do que está fazendo. Achava que falava disso. Agora, claro está, dou-me conta de que não era assim.

– Eu achava que era o que você queria – replicou ele com sinceridade –. Você lhe deu de presente esse vestido. Deveria ter imaginado que lhe assentaria muito bem.

O que dizia seu marido se aproximava muito à verdade para lhe servir de consolo. Emily sentiu de novo uma pontada de culpa. Ela tinha planejado tudo, embora agora lhe escapasse das mãos.

– Eu não pretendia que paquerasse como uma idiota! – replicou-lhe.

– Pois acredito que o faz muito bem. – George parecia surpreso. Conhecia Charlotte desde antes que se casasse com o Pitt. Naquela época, sua mãe se desesperava porque não se comportava com o devido encanto e a mescla de candura e artifício, entusiasmo e bom humor que constituíam o êxito da paquera. Mas o tempo e a segurança em si mesma tinham feito uma grande mudança nela. Além disso, não paquerava no sentido habitual da palavra; não era um frívolo flerte o que oferecia tacitamente ao Balantyne, mas uma amizade autêntica em que tanto o prazer como a dor fossem duradouros, e se entregasse parte da pessoa mesma.

Emily teve a impressão repentina de que ia necessitar de George.

– O que dizia sobre as reformas sociais? –inquiriu.

Talvez ele percebesse uma nota de tristeza em sua voz, ou possivelmente só demonstrasse sua boa educação ao responder afavelmente:

– Brandy Balantyne esteve falando sobre reformas sociais. Esses repugnantes acontecimentos em Devil's Acre parecem tê-lo afetado de um modo surpreendente. Acredito que realmente pensa fazer algo a respeito.

– George – perguntou Emily-, que tipo de homens vai a Devil's Acre, a estabelecimentos como o do Max?

– Sério, Emily, não acredito que... – Para assombro de sua mulher, George parecia desconfortável, como se apesar de seu eu mais racional, aquele assunto lhe parecesse ainda embaraçoso diante dela.

–Você vai, George? –Olhava a seu marido com olhos muito abertos.

– Não, não vou! – sentia-se escandalizado –. Se quiser fazer algo assim, ao menos iria ao Haymarket ou A... Bom, certamente não iria à Devil's Acre.

– E o que pensaria de mim se o fizesse eu?

– Não seja absurda. –Ele nem sequer levou a sério a pergunta.

– Deve haver mulheres ali – indicou ela –, do contrário não existiriam os bordéis. – Momentaneamente esqueceu usar um eufemismo para tais estabelecimentos.

– É claro que há mulheres ali, Emily – respondeu ele com exagerada paciência –. Mas são de uma classe diferente. Não são... Bom... Não são mulheres com as que faria... Faria algo mais que...

– Fornicar – terminou Emily com tom incisivo, desprezando outro eufemismo.

– Exato. – George estava um pouco ruborizado, mas ela preferiu pensar que se devia a um mal-estar geral pelos de seu sexo, mais que a um sentimento de culpa próprio. Ela sabia que sua conduta não tinha sido sempre exemplar, mas tinha a sensatez de não indagar. Essa curiosidade não podia trazer mais que desdita. No que a ela respeitava George lhe tinha sido fiel desde as bodas, e isso era tudo o que podia pedir. Sorriu-lhe com carinho sincero.

– Mas Bertram Astley sim ia a Devil's Acre – disse. O rosto de seu marido voltou a escurecer-se; parecia desconcertado.

– Que estranho – murmurou –. Não acredito que deva indagar mais, Emily. É realmente um assunto sórdido. Não me importa que se interesse pelas investigações de Charlotte sempre que forem moderadamente respeitáveis e se for imprescindível. – George era consciente das limitações da autoridade que podia exercer sem ser desagradável, e ele detestava tudo que era desagradável –. Mas acredito que não deveria tentar saber nada mais sobre certas aberrações. Só conseguiria se angustiar.

De repente, Emily sentiu um carinho transbordante por seu marido. A preocupação do George era autêntica; conhecia o mundo que ela começava a examinar, suas fragilidades e suas perversões, e não queria que a afetasse nem que lhe fizesse mal.

Emily apoiou a mão no braço de seu marido e se aproximou um pouco mais dele. Não tinha a menor intenção de fazer o que lhe sugeria, pois era muito mais forte do que ele achava. Entretanto, era muito agradável que acreditasse tão frágil, tão pura. Era uma idéia estúpida, mas só por um momento, possivelmente até o final da noite, quando se apagassem as luzes e as risadas, fingiria ser a criatura inocente que ele pensava que era.

Talvez, vista a crua realidade da morte do Astley e do Max, e a causa do temor que sentia pelo Alan Ross, que gozava de suas simpatias, também ele precisasse fingir durante um tempo.

Alan Ross não desfrutou com o baile; as luzes e a música não lhe produziram o menor prazer. A única coisa que via era o rosto sorridente da Christina olhando a um homem atrás de outro enquanto dançava em seus braços com soltura. Virou-se e viu Augusta olhando na mesma direção. Lady Augusta estava completamente imóvel. Apoiava a mão no corrimão da escada e a apertava com tanta força que tinha os dedos retorcidos dentro das luvas de renda.

Os olhos do Ross subiram para os braceletes de seus pulsos, pelos brancos ombros, até chegar ao rosto. Jamais teria dito que Augusta era capaz de semelhantes emoções. Ross não conseguia discernir o que era: desespero, medo, uma ternura que a enfurecia?

Além dos pares que dançavam se achava à porta da estufa, onde o general Balantyne permanecia de pé, um pouco inclinado e com expressão doce enquanto falava com Charlotte Ellison. Ela atraiu o olhar do Ross porque era formosa. Não tinha o encanto perfeito das jovenzinhas, nem os traços cinzelados da beleza clássica, mas uma pura intensidade vital. Ross percebia suas emoções, inclusive do outro lado do salão. E junto a ela, tão perto que lhe roçava o braço com a mão, o general se esquecera do mundo inteiro.

Era isso o que havia visto Augusta, que tanto dano o fazia e causava a confusão que Ross tinha percebido nela?

Ross voltou o olhar. Não, agora tinha a cabeça voltada para o outro lado e era impossível que visse o general. Continuava olhando a Christina, que se achava ao pé da escada curva que conduzia à galeria; sua saia de tafetá de cor arroxeado lançava brilhos ondulantes, e tinha as faces acesas. O homem que havia a seu lado rodeou a cintura com o braço e lhe sussurrou algo tão perto da orelha que ela devia sentir sua respiração.

Alan Ross decidiu naquele momento que a seguinte noite em que Christina saísse sozinha com a carruagem, fosse a quem fosse visitar, segui-la-ia e descobriria a verdade. Por mais dolorosa que fosse, a verdade tinha que ser melhor que os horríveis pensamentos que assaltavam sua imaginação.

A oportunidade de pôr em prática este plano lhe chegou quase antes que estivesse preparado para aproveitá-la. Foi no dia seguinte, pouco depois de jantar. Christina se desculpou dizendo que tinha dor de cabeça e que sairia a passear em carruagem para tomar o ar fresco. Estava em casa todo o dia, explicou, e o ambiente lhe parecia muito carregado. Talvez fosse visitar a Lavinia Hawkesley, que ultimamente se sentia indisposta; assim, Ross não devia esperá-la levantado.

Alan se dispunha a protestar, mas de repente, com uma frieza perturbadora, compreendeu que lhe oferecia a oportunidade perfeita.

– Muito bem, se acha que estará bastante bem para receber visitas – disse, e a voz apenas lhe tremeu.

– OH, tenho certeza –respondeu –. Certamente está morta de aborrecimento, pobrezinha; passou todo o dia sozinha, metida em casa. Acredito que adorará ter uma hora ou duas de companhia. Não me espere levantado.

– Não – disse ele, lhe dando as costas –. Boa noite, Christina.

– Boa noite. – recolheu a saia com babados de renda e saiu.

Que diferente era de como ele tinha imaginado! Eram estranhos, entre eles não existia o bom humor nem a confiança.

Cinco minutos mais tarde, quando Ross ouviu fechar a porta principal, levantou-se, dirigiu-se ao guarda-roupa onde pendurava seu grosso casaco e o pôs, além de um chapéu e um cachecol. Depois saiu às ruas frias atrás de Christina. Não foi difícil seguir à carruagem; não podia ir depressa sobre a pavimentação coberta de gelo, e caminhando a bom passo se manteve a uns dez metros de distância. Ninguém lhe prestou a menor atenção.

Tinha percorrido mais de dois quilômetros, quando viu que a carruagem parava frente a uma grande casa. Christina se apeou e entrou na casa. Da calçada de frente, Ross não distinguia o número, mas sabia que Lavinia Hawkesley vivia naquela zona.

Assim, Christina tinha ido exatamente aonde havia dito, visitar uma amiga. Ele se achava tremendo de frio frente à casa. Era estúpido e patético! A carruagem se afastou e deu a volta para voltar. Christina devia havê-lo despedido. Pensava ficar ali toda a noite, ou simplesmente voltaria para casa na carruagem dos Hawkesley?

Alan Ross ficou rondando pela esquina, tentando decidir se voltava para casa ele também, para tirar o frio dos ossos com um banho quente e deitar-se, ou se ficava ali até que Christina saísse para voltar a segui-la. Mas isto seria ridículo. A idéia em si tinha sido fútil, uma aberração de sua prudência habitual. Christina era egoísta com freqüência, mas não era culpado mais que de indiscrição: o exercício de poder de uma mulher mimada e formosa, o anseio de ser o centro de atenção, sempre profusamente admirada.

A porta da casa se abriu, um feixe de luz caiu sobre o caminho, e Christina e Lavinia Hawkesley saíram à rua. A porta se fechou atrás delas e puseram-se a andar.

Aonde iam, em nome do céu? Ross as seguiu. Quando chegaram à rua principal e detiveram um cabriolé de aluguel, ele subiu a outro assim que foi possível e ordenou ao cocheiro que as seguisse.

O trajeto foi mais longo do que esperava. Uma e outras vezes viraram em diferentes ruas até que perdeu a orientação e só soube que pareciam aproximar-se do rio e ao coração da cidade. As ruas eram mais estreitas, as luzes mais espaçadas. Um halo mortiço de névoa refletia as luzes e o ar úmido cheirava a rançoso. Por cima deles uma grande sombra se recortava no céu. Ross sentiu um nó na garganta e de repente lhe custou respirar.

Devil's Acre! Por Deus, para que ia Christina ali? Seus pensamentos viraram como um torvelinho, mesclando-se como se lhe açoitasse uma escura tormenta de neve. Não achou uma resposta suportável.

O cabriolé em que ia Christina se deteve e uma das mulheres desceu. Era miúda, esbelta, e caminhava com a cabeça alta e passo vivo: Christina.

Ross abriu a porta de sua carruagem, lançou uma moeda ao cocheiro e desceu dando tropeções e tentando distinguir o perfil da casa em que ela tinha entrado em meio da penumbra. Era uma casa alta, de linhas retas, cujas janelas resplandeciam a débil luz de gás da rua. A casa de um comerciante?

A outra carruagem de aluguel tinha desaparecido com a Lavinia dentro. Onde quer que fosse ainda entraria mais no labirinto de Devil's Acre.

Pela primeira vez, Ross observou o resto da rua. Antes estava tão absorto em vigiar às mulheres que não se fixou em nada mais, mas agora viu um grupo de quatro ou cinco homens a uns trinta metros à esquerda, e no extremo mais afastado havia três mais na entrada de um beco. Alan virou a cabeça. Havia mais homens a sua direita, observando-o.

Não podia ficar ali; suas roupas chamavam muito a atenção. Só por seu casaco valeria a pena atacá-lo. Podia enfrentar a um homem, embora estivesse armado, mas não a meia dúzia.

Alan se dirigiu à porta por onde tinha entrado Christina. Ao fim e ao cabo, tinha-a seguido com o propósito de descobrir aonde ia e por que. A porta estava fechada; se conseguisse entrar e encarar a Christina, o que poderia dizer? Queria acaso que ela soubesse que tinha cometido o estúpido ato de segui-la até ali? Além disso, o que podia fazer? Encerrá-la em casa? Negar-lhe seu amor? Ou repudiá-la como a uma... A uma o que? O que estava fazendo ali?

Os loucos vôos da imaginação eram piores que saber a verdade. Conhecia-se muito bem a si mesmo para acreditar que poderia esquecer tudo e não voltar a ter uma sombra de suspeita. Possivelmente não estivesse sendo justo com ela. Talvez fosse inocente das coisas que ele imaginava.

Ouviu um ruído a suas costas. Um violento calafrio de medo lhe percorreu o corpo como um toró de água fria. Eram as outras vítimas do assassino de Devil’s Acre desconhecidas como ele, homens que não queriam ali e aos que tinham matado por sua intrusão? Elevou a aldrava da porta e a golpeou violentamente.

Transcorreram uns segundos eternos. Na rua se ouvia o ruído de passos e a destilação da água. Ross bateu uma e outra vez com a aldrava e olhou para trás. Dois dos homens se aproximaram e avançavam para ele. Não tinha nada com o que defender-se mais que as mãos nuas; nem sequer levava bengala.

Começou a suar. Cruzou-lhe a idéia de sair ao encontro daqueles homens, de iniciar a briga ele mesmo para que assim ao menos fosse mais rápido. Não pensaria na mutilação final.

De repente, a porta se abriu. Alan perdeu o equilíbrio e entrou cambaleando.

– Sim, senhor?

Ross se serenou e olhou ao homem que segurava uma vela no escuro vestíbulo. Suas roupas eram andrajosas e o ventre lhe sobressaía por cima da calça. Era alto e corpulento, e se interpunha entre o Ross e as escadas que conduziam ao piso superior.

– Sim, senhor? – repetiu o homem.

Ross disse o primeiro que lhe veio à cabeça.

– Quero alugar um quarto.

– Vem só? – disse o homem, lhe olhando de cima abaixo com os olhos entrecerrados.

– Isso não é assunto seu. – Ross engoliu em seco. – Tem quartos? Há um momento vi entrar uma mulher, e certamente não vive aqui.

– Isso não é assunto seu. – O homem imitou seu tom com desprezo –. A gente por aqui não coloca o nariz na merda de outros, senhor. Ninguém quer receber uma navalhada! Aos bisbilhoteiros podem lhes ocorrer coisas muito desagradáveis.

Ross sentiu um suor frio. Por um momento quase tinha esquecido os assassinatos. Tentou parecer tranqüilo, seguro de si mesmo. Tinha a boca seca e sua voz soou mais aguda do que o habitual.

– Importa-me nada o que tenha vindo fazer – disse, procurando soar depreciativo –. Não me interessa com quem se encontra aqui. Só quero chegar a um entendimento similar.

– Bom isso será um pouco difícil, senhor, porque essa deve ver ao cavalheiro que é dono de todas estas casas. –Soltou uma áspera gargalhada e lançou uma cuspidela. – Agora que liquidaram a seu irmão; parece que o açougueiro de Devil's Acre lhe fez um favor.

Ross ficou paralisado.

– O que lhe passa? Está assustado? Tem medo de que o açougueiro vá também por você, né? Pois talvez seja assim! – Soltou um risinho –. Possivelmente seria melhor que fuja agora que ainda está inteiro. – Seu tom era de repugnância.

Ross sentiu o sangue subindo à cabeça. Aquele homem achava que tinha ido ali de dissimulação para satisfazer um apetite...

Ross se ergueu com os músculos tensos e o queixo erguido. Então recordou aos homens da rua. Voltou a encurvar-se. Não podia permitir o luxo de mostrar-se orgulhoso, e muito menos curioso.

– Tem quartos ou não? – insistiu em voz baixa.

– E você tem dinheiro? – O homem esfregou o indicador contra o polegar.

– É claro que sim. Quanto?

– Quanto tempo?

– Toda a noite, é claro. Acredita que quero ter alguém atrás da porta olhando o relógio?

– Você só? – O homem arqueou as sobrancelhas –. Por que não se encerra em seu quarto e o faz tranqüilamente? Seja o que for...

Ross morria de vontades de lhe golpear. Resistiu à tentação por um momento, mas a ira, o medo e a aguda ferida causada pela traição da Christina acabaram por explodir. Golpeou ao homem com toda a força de seu punho, jogando-o contra a parede. O homem deslizou para o chão, ficando imóvel e enfraquecido.

Ross saiu à rua. Tinha que enfrentar aqueles homens, quaisquer pessoas que fossem. Sua permanência ali se tornara impossível. Desta vez não vacilou. Com o coração acelerado preparou os punhos, disposto a golpear a qualquer que lhe aproximasse. Caminhou com rapidez até tropeçar com um mendigo a quem derrubou. O homem lançou uma praga e Ross continuou sem fazer conta. Sabia chegar até o Westminster, onde acharia ruas bem iluminadas e seguras.

Uns passos ressoaram a suas costas e ele apertou o passo. Devia estar a umas centenas de metros do Westminster. Nos portais havia grupos de homens e mulheres. Alguém soltou um risinho na escuridão. Ouviu-se uma bofetada. Um montão de lixo se esparramou pela calçada e numerosos ratos saíram em disparada. Alan pôs-se a correr.

Na última hora da tarde, dois dias depois, a criada entrou em seu gabinete e disse ao Ross que um tal senhor Pitt queria falar com ele.

Pitt? Não conhecia ninguém com esse nome.

– Tem certeza?

– Sim, senhor. É um homem muito estranho, senhor. Perdoe, mas foi muito insistente. Não quer dizer por que, senhor, mas diz que você o conhece.

– Deve ser um engano.

– Não se irá senhor. Quer que diga ao Donald que o mande embora, senhor? Eu não me atrevo a dizer-lhe É um pouco... Bom, em realidade só é por sua roupa, não é a correta, se me entende... Mas fala como um cavalheiro dos de verdade.

– Meu deus! – Ross o recordou de repente –. Sim, faça-o entrar. Conheço-o.

– Muito bem, senhor. – A criada esqueceu a reverência e saiu pressurosa.

Instantes depois entrou Pitt, sorrindo com afabilidade.

– Bom dia, senhor Ross. Grande tempo temos.

– Horrível – concordou Ross –. O que posso fazer por você, senhor Pitt?

Pitt se aproximou um pouco mais ao fogo da lareira e se sentou como se aceitasse uma natural hospitalidade. Devia ter entregue o casaco à criada, pois levava só calças escuras, uma camisa limpa mas muito grosa, e uma jaqueta cujos bolsos pareciam cheios de objetos de estranhas dimensões. O traje pendia torcido e parecia mal abotoado.

– Obrigado. – esfregaram-se as mãos frente ao fogo –. Grande parte do trabalho policial é extremamente pesado.

– Sem dúvida o é. – Em realidade Ross não estava interessado. Era incapaz de sentir pena de Pitt.

– Intermináveis interrogatórios a pessoas não muito agradáveis – prosseguiu Pitt-. E é claro, temos certos conhecidos que nos mantêm informados quando ocorre algo que sai do comum.

– É natural. Mas temo que eu não seja um deles. Não sei nada que possa lhe ser de utilidade. Sinto muito.

Pitt se voltou para olhá-lo. Tinha uns olhos extraordinários; a luz brilhava através deles como um raio de sol através da água do mar.

– Referia a outra classe de pessoas, completamente distinta, senhor Ross. Como o velho que me falou hoje de um cavalheiro que procurava quarto no Drake Street, em Devil's Acre, faz um par de noites. Fazem-no muitos cavalheiros por motivos pessoais. Entretanto, este em concreto, bem vestido, bem educado, como a maioria, ficou muito nervoso quando o outro lhe perguntou que motivos tinha ele. E isso é o insólito. Os cavalheiros que freqüentam tais lugares procuram passar o mais despercebido possível. – Calou, como se esperasse uma resposta.

Ross se enrijeceu de repente.

– Suponho que sim – disse com confusão. Recordou o vestíbulo imerso na penumbra, o aroma de imundície, o sujo olhar de lascívia que o havia posto furioso. Sentiu um nó na garganta.

– Perdeu por completo os nervos – continuou Pitt, erguendo o tom de voz com surpresa –. Bateu-lhe!

Ross engoliu em seco.

– Está ferido?

Pitt sorriu com uma pequena careta.

– Tem uma boa brecha na cabeça e a clavícula fraturada. Certamente está furioso. Fez correr a voz de que, se esse homem voltar alguma vez para Devil's Acre, receberá uma lição que não esquecerá. Assim é como me inteirei. – Olhou ao Ross diretamente –. Mas não o matou, se isso for o que temia você.

– Graças a Deus, eu... Eu... – interrompeu-se, mas era muito tarde –. Não fui ali para... – Não podia suportar a idéia de que ninguém, nem sequer aquele polícia, acreditasse que pretendia pagar a uma puta e levá-la ali. A expressão do Pitt era tranqüila, inclusive amistosa.

– Não, senhor Ross, não pensei nem por um momento que foi para isso. Para que foi ali?

Deus santo! Isso era ainda pior. Não podia lhe falar da Christina. Pulsavam-lhe as têmporas e a sala parecia desprender uma luz vermelha e afastar-se em um redemoinho.

– Não posso dizer-lhe é um assunto pessoal. – Pitt teria que imaginar o que lhe tivesse vontade. A verdade seria muito pior.

– Muito perigoso senhor. – O tom do Pitt era cada vez mais amável, como se falasse com uma pessoa metida em graves dificuldades. – Três homens foram assassinados em Devil's Acre. Mas estou certo de que isso já sabia você.

– É claro! –exclamou Ross.

Pitt respirou fundo e depois suspirou.

– Não é um lugar para ir de visita, senhor Ross. É desagradável e perigoso, e ultimamente há quem pagou um preço muito alto por procurar prazer ali. Que curiosidade lhe moveu a visitar aquela casa em particular?

Ross vacilou. Aquele homem era como um furão, perseguia-o por todos os túneis de seu sofrimento até lhe abandonar em busca de uma verdade condenatória. O melhor seria lhe dar uma. Ao menos assim protegeria as demais, as que não podia desvelar.

– Suspeitava a quem pertencia – mentiu olhando ao Pitt –. Queria saber se era certo. Detestava a idéia de que alguém a quem eu conhecia pudesse viver das rendas que produzem tais lugares.

– E era verdade?

–Sim, temo-me que sim – respondeu Ross depois de engolir em seco.

– Quem era essa pessoa, senhor Ross?

– Bertram Astley.

– Vá. – O semblante do Pitt se relaxou –. Era sua? Assim daí sai o dinheiro dos Astley. E agora, claro está, é de sir Beau.

– Sim. – Ross deixou escapar o ar contido. Sentia-se melhor. Pitt não descobriria nunca que Christina tinha ido achar se com o Beau Astley naquele sórdido lugar. Sua esposa... Entregue ali, em... Reprimiu esses pensamentos, apagando os de sua cabeça. Qualquer dor era melhor que aquela –. Sim, temo – que sim –repetiu-. Possivelmente isto lhe ajudaria em suas investigações. Sinto muito, talvez devesse haver-lhe dito antes.

– Sim, senhor – disse Pitt, levantando-se-. Possivelmente deveria havê-lo feito. Mas agora que sei – um súbito e encantador sorriso iluminou seu rosto –, que me crucifiquem se souber aonde me leva!

Ross não disse nada. Não ficavam emoções que expressar. Limitou-se a contemplar ao Pitt, que se dirigiu à porta, saiu ao vestíbulo e pegou seu casaco das mãos da criada.

 

Pitt desceu as escadas tropeçando na escuridão e abriu a porta. No degrau da entrada havia um agente de polícia empapado pela chuva à luz do lampião da rua; a água caía a jorros pela capa e salpicava as pedras. Ainda era noite fechada, antes inclusive da luz cinzenta que precedia ao amanhecer.

Pitt piscou, deslumbrado, e tremeu de frio quando o ar lhe deu totalmente.

– Entre, por amor de Deus! –disse com irritação-. O que acontece agora?

O agente entrou com cautela, empapando o chão, mas Pitt tinha muito frio para que lhe importasse. Gracie ainda não se levantara e todos os fogos estavam apagados.

– Feche essa porta, homem, e venha à cozinha.

Pitt precedeu a grandes passadas. O linóleo parecia gelo sob seus pés descalços. Ao menos o chão da cozinha era de madeira e mantinha o calor do que antes era um ser vivo. Além disso, a estufa estaria acesa, como sempre. Se alimentar um pouco o fogo talvez pudesse ferver água para o chá. A idéia de uma xícara de chá fumegante era o mais próximo a uma sensação de comodidade a que podia aspirar. Obviamente, voltar para a cama e ao refúgio do sono era impossível.

– Bom, o que aconteceu? E tire-se essa coisa – indicou a capa do agente – antes que afogue a todos.

O agente se despojou obedientemente do traje e o deixou na dispensa. Era um homem de família, e em circunstâncias normais teria sabido o que fazer sem que o dissessem, mas a notícia da que era portador tinha apagado seus anos de prática como filho e marido.

– É outro cadáver, senhor. E este é pior.

Pitt intuía por que o agente tinha ido lhe buscar, mas nem por isso lhe parecia menos desagradável ouvi-lo dizer. Antes que se pronunciassem as palavras, havia sempre a esperança de que fosse outra coisa.

A pressão aumentava: Athelstan havia tornado a chamá-lo a seu escritório e os jornais tinham feito estender-se o pânico. Pitt sabia também que, apesar de sua pretendida inocência, Charlotte aproveitava a posição social do Emily para comprovar suas próprias suspeitas sobre as mulheres do Max e a vida do Bertie Astley. Se acusasse Charlotte de mentir, teriam o tipo de discussão que acabaria por ferir a ambos. Além disso, não podia demonstrar que tinha razão; simplesmente conhecia sua esposa suficientemente bem para adivinhar seus propósitos. E Por Deus que agarraria ao açougueiro de Devil's Acre antes dela! Pitt seguia de pé em meio da cozinha com a chaleira na mão.

– Pior? – disse.

– Sim, senhor. – O agente baixou a voz. – patrulhei Devil's Acre desde que ingressei na polícia, mas jamais tinha visto nada semelhante.

Pitt jogou a água no bule. O fragrante vapor se ergueu no ar. Tirou meia barra de pão do cesto de madeira. Por espantoso que fosse o que o aguardava, ainda seria pior com o estômago vazio em uma manhã gelada.

– Quem é?

– Um homem – respondeu o agente, lhe tendendo a faca do pão –. Os papéis que levava no bolso dizem que é Ernest Pomeroy. Encontraram-no nos degraus de um asilo, as Irmãs da Mercê ou algo assim. Não são papistas – explicou rapidamente –. A mulher que o achou não voltará a ser a mesma. Estava histérica, a pobre, branca como o papel e dando gritos. –Sacudiu a cabeça com perplexidade e aceitou a xícara de porcelana que lhe oferecia Pitt. Rodeou-a com ambas as mãos e deixou que o calor revivesse sua carne intumescida pelo frio.

Pitt cortou pão e o colocou sobre o fogão para torrá-lo. Tirou dois pratos, a manteiga da despensa e geléia. Tentou imaginar a aquela mulher, dedicada à boa obra de dar proteção a quem carecia de casa e levantar os caídos. Devia estar acostumada à morte, certamente, se vivia em Devil's Acre. Ali havia indecência por toda parte, mas certamente jamais tinha visto um homem nu, possivelmente nem sequer o tinha imaginado.

– Estava mutilado? – perguntou desnecessariamente.

– Sim, senhor. – Empalideceu ao recordar. – Feito em pedaços, como se... Bom... Como se o tivesse atacado uma espécie de animal... Com garras. –Respirou fundo-. Como se alguém tivesse tentado lhe arrancar suas partes com as mãos.

O agente tinha razão: cada vez era pior. As feridas do Bertie Astley eram superficiais, quase um gesto. Voltou para sua cabeça à idéia de que Bertie não era vítima do mesmo assassino, mas sim Beau Astley tinha visto a ocasião de ocupar o lugar de seu irmão e deixar que culpassem a um lunático que tinha transpassado os limites da dignidade humana. Tentava rechaçar essa idéia porque tinha gostado de Beau Astley, como a alguém gosta de longe uma pessoa a que não conhece, mas que lhe parece agradável.

A torrada fumegava. Pitt a virou com destreza e tomou um gole de chá.

– Também lhe tinham dado uma punhalada nas costas?

– Sim, senhor, mais ou menos no mesmo lugar que aos outros, a um lado da coluna e para o centro. Deve ter sido rápido, graças a Deus. –Fez uma careta-. Que tipo de homem faz isso a outro homem, senhor Pitt? Não é humano!

– Alguém que se considerava ofendido além do suportável – respondeu Pitt sem vacilar.

– Suponho que tem razão. Está queimando a torrada, senhor.

Pitt tirou as torradas e ofereceu uma ao agente. Este a aceitou com surpresa e satisfação. Não esperava que lhe desse de tomar o café da manhã, embora fosse uma torrada chamuscada e tivesse que comê-la de pé. Estava boa, com uma geléia doce e consistente. – Possivelmente se alguém matasse a minha filhinha, também quereria matá-lo de um modo horrível – disse, com a boca cheia. – Mas nunca quereria... Arrancar-lhe seus... Perdoe senhor, suas partes dessa maneira.

– Depende de como matasse a sua filha – replicou Pitt, depois franziu o sobrecenho e deixou cair a torrada quando sua imaginação assimilou plenamente o horror do que havia dito. Pensou em Charlotte e em sua filha Jemina, que dormiam acima.

O agente ficou olhando com os olhos castanhos claro muito abertos.

– Suponho que tem razão nisso, senhor – murmurou.

Acima de tudo continuava em silêncio. Charlotte não se movera, e no quarto das crianças só ardia uma luz.

– Será melhor que termine seu café da manhã, senhor. – O agente era um homem prático. Aquele não ia ser um dia para ter o estômago vazio –. E abrigue-se bem, senhor, se não lhe parecer uma rabugice que o diga.

– Não. – Recolheu a torrada e a comeu. Não tinha tempo para barbear-se, mas acabaria de tomar o chá e seguiria o conselho do agente: muita roupa de abrigo.

O cadáver oferecia um espetáculo espantoso. Pitt não concebia a raiva que podia impulsionar a um ser humano a despedaçar a outro dessa maneira.

– Muito bem –disse, levantando-se lentamente.

Não havia nada mais que ver. Era como os outros, mas pior. Ernest Pomeroy era um homem de aspecto vulgar, possivelmente abaixo da estatura média. Vestia roupas sóbrias, de bom tecido, mas longe de ser elegantes. Tinha o rosto ossudo e comum. Era impossível saber se a vida lhe tinha insuflado bom humor ou algum tipo de encanto, ou se uma luz interior transformava aquelas feições carentes de atrativo.

– Sabemos de onde é? – perguntou.

– Sim, senhor – respondeu o sargento que estava de serviço –. Levava em cima algumas cartas e outros papéis. Vivia no Seabrook Walk, um lugar bastante decente, a uns três quilômetros daqui. Tenho uma irmã que serve a uma senhora por essa zona. Não é muito rica, mas muito respeitável, se me entende.

Pitt sabia exatamente a que se referia. Havia certa classe de gente que preferia comer pão e molho, e sentar-se em uma casa gelada, antes de privar-se de certos atributos sociais, sobre tudo os criados. Com um esforço da imaginação se podia considerar que a comida frugal era uma questão de gostos. Podia-se fingir inclusive que não se sentia frio, mas carecer de criados só podia significar pobreza. Tinha escapado Ernest Pomeroy a uma triste ficção durante umas poucas e agitadas horas dando rédea solta a sua faminta natureza, tão somente para acabar morrendo naquelas ruas sujas e igualmente enganosas?

– Sim, entendo-o – respondeu –. Necessitaremos que alguém o identifique. Melhor que não seja sua mulher. Talvez tenha algum irmão, O... – Voltou a olhar o rosto do morto. Ernest Pomeroy parecia mais perto dos cinqüenta que dos quarenta –. Ou um filho.

–Nos ocuparemos disso, senhor. Não quereria que nenhuma mulher tivesse que passar por isso, embora só tenha que ver o rosto... Irá ver a esposa, senhor?

– Sim. – Era inevitável. Tinha que fazer-se, e de novo tinha que fazê-lo Pitt-. Dê-me o endereço.

Seabrook Walk tinha um aspecto deprimente à escassa luz do amanhecer. Estranhamente, a chuva não o fazia parecer mais limpo, mas só molhado.

Pitt achou o número que procurava e se dirigiu à porta principal. As vacilações, como sempre, estavam desconjuntadas: nada podia fazer-se para aliviar a dor, e ele, em troca, podia averiguar alguma coisa. Em alguma parte tinha que haver algo que relacionasse a aqueles homens: um conhecido comum, um apetite, um lugar ou um momento, alguma razão pela qual fossem vítimas de um ódio tão irracional. Tinha que achar esse vínculo a todo custo. Não tinha tempo a perder. O assassino não ia esperar.

Os estreitos maciços de flores estavam vazios, eram tão somente franjas escuras de terra. No centro, a erva tinha um aspecto invernal, sem vida, e os arbustos de louro que cresciam sob as janelas pareciam amargos, retendo a escuridão e a água estancada. Das janelas pendiam imaculadas cortinas de renda primorosamente dispostas. Uma hora mais tarde ficariam ocultas pelas persianas, por causa do luto.

Ergueu a reluzente aldrava da porta e a deixou cair com um chiado. Ao cabo de uns momentos, uma surpreendida criada abriu uma fresta e mostrou seu pálido rosto. Ninguém batia tão cedo.

– Sim, senhor?

– Preciso falar com a senhora Pomeroy. É urgente.

– Oooh, não sei se poderá recebê-lo agora. – A criada estava confusa. – Nem sequer se há... – engoliu em seco e recordou suas obrigações –. Nem sequer tomou o café da manhã. Poderia voltar dentro de uma hora ou duas, senhor?

Pitt sentiu pena da garota. Certamente não tinha mais de treze ou quatorze anos e aquele devia ser seu primeiro trabalho. Se o perdesse por incomodar a sua senhora, se acharia em um apuro. Poderia acabar inclusive vendendo-se pelas ruas, menos afortunada que as mulheres com a habilidade ou a personalidade suficiente para trabalhar em um lupanar como o de Vitória Dalton.

– Sou da polícia. – Pitt tomou a responsabilidade em suas mãos –. Trago más notícias para a senhora Pomeroy e seria uma crueldade deixar que se inteirasse por um rumor, em lugar de recebê-las discretamente.

– Oooh! – A moça abriu a porta de par em par para lhe permitir a entrada e olhou as roupas empapadas do Pitt –. Ah, está molhado até os ossos! Será melhor que tire tudo isso e me dê. Direi à cozinheira que o pendure na dispensa. Você espere aí enquanto vou lá em cima dizer à senhora Pomeroy que veio vê-la e que é urgente.

– Obrigado. – Pitt tirou o casaco, o chapéu e o cachecol e os entregou.

A moça se afastou e Pitt aguardou obedientemente que aparecesse a senhora Pomeroy.

Observou a sala. Era bastante grande; os móveis eram de pesada madeira escura, sem brilho debaixo daquela luz mortiça. Os espaldares das cadeiras tinham toalhas bordadas, mas não havia almofadas nos assentos. Os quadros das paredes representavam paisagens da Itália em vivos tons azuis – o mar azul, o céu azul – a plena luz do sol. Pareceram-lhe feios e ofensivos; ele sempre tinha imaginado que a Itália era um lugar formoso. Sobre a cornija da lareira viu pendurado um painel religioso bordado: "Uma mulher boa vale mais que os rubis." Sentiu curiosidade por quem a tinha escolhido.

Sobre uma cômoda havia um vaso com flores artificiais de seda, peças delicadas com alegres pétalas de gaze. Era um surpreendente toque de beleza em uma casa carente de imaginação.

Adela Pomeroy tinha ao menos quinze anos menos que seu marido. Apareceu na soleira da porta vestida com um robe de cor lavanda e adornos de renda na gola e pulsos. Olhou ao Pitt fixamente. O cabelo lhe caía solto pelas costas; não se tinha incomodado em pentear-se. Tinha traços finos e pescoço muito magro. Continuaria sendo encantadora vários anos mais, antes que se aprofundassem as rugas e ficasse gasta.

– Birdie diz que é da polícia. – Entrou e fechou a porta.

– Sim, senhora Pomeroy. Sinto muito, mas trago más notícias. – Pitt desejou que se sentasse, mas não o fez-. Foi encontrado um homem esta madrugada e acreditam que é seu marido. Levava umas cartas que o identificam, mas necessitamos que alguém confirme sua identidade, é claro.

A mulher permaneceu inalterável. Possivelmente era muito cedo. Assim era uma comoção.

– Sinto muito – repetiu Pitt.

– Está morto?

– Sim.

Os olhos da senhora Pomeroy percorreram a sala, posando-se nos objetos familiares.

– Não estava doente. Foi um acidente?

– Não – respondeu ele em voz baixa –. Receio que foi assassinado. – Tinha que saber; não fazia nenhum bem ocultar-lhe.

– OH – respondeu quase sem emoção.

Lentamente se aproximou do sofá e se sentou. Cobriu os joelhos com o robe de seda e Pitt pensou em como era bonito o traje. Pomeroy devia ter sido um homem rico e mais generoso do que sugeria seu rosto. Possivelmente não era mesquinharia o que tinha visto nele, mas simplesmente o vazio da morte. Talvez tivesse amado loucamente a sua mulher e tinha economizado para lhe dar aqueles luxos: as flores e o robe. Pitt sentiu crescer em seu interior o que podia ser uma antipatia injusta porque não via dor nem pena na viúva.

– Como foi? – perguntou ela.

– Atacaram-no na rua. Apunhalaram-no. Certamente tudo terminou em questão de segundos. Tenho certeza que mal sofreu.

Ela continuou imperturbável, mas seu rosto expressou uma leve surpresa.

– Na rua? Quer você dizer que... Que o assaltaram?

O que esperava? Os roubos constituíam um delito muito comum, embora não costumavam ir acompanhados de tão terrível violência. Possivelmente estranhava porque seu marido levava coisas de pouco valor. Mas os ladrões não o teriam sabido até que fosse muito tarde.

– Não levava dinheiro com ele – respondeu –. Mas o relógio continuava em seu bolso, assim como uma capa de couro de boa qualidade para cartões e cartas.

– Nunca levava muito dinheiro. – Continuou olhando à frente, como se Pitt fosse uma voz imaterial-. Um guinéu ou dois.

– Quando o viu por última vez, senhora Pomeroy? –Teria que lhe contar o resto: onde o tinham encontrado, a mutilação... Melhor que o ouvisse de seus lábios.

– Ontem de noite. – A resposta interrompeu seus pensamentos-. Ia entregar um livro a um de seus alunos. Era professor. Mas certamente você já saberá. Ensinava matemática.

– Não, não sabia. Mencionou o nome do aluno e onde vivia?

– chama-se Morrison. Receio que não sei onde vive; não muito longe. Acredito que meu marido tinha intenção de ir a pé. Terá anotado em seus livros. Era muito meticuloso.

Sua voz continuava sem expressar emoção, salvo uma leve surpresa, como se não pudesse compreender que tão violento fato pudesse haver ocorrido a um homem tão vulgar. Levantou-se e se dirigiu à janela. Era magra e frágil como um pássaro. Inclusive naquele estado de aparente paralisia, tinha uma graça própria, um modo especial de manter a cabeça no alto. Pitt custava imaginá-la nos braços do homem cujo rosto tinha visto em Devil's Acre. Mas ocorria muito freqüentemente que os amores e ódios de outras pessoas eram incompreensíveis para outros. Por que teria que compreender este? Não conhecia nenhum dos dois.

– Ocorre-lhe alguma razão pela que pudesse ter ido Devil's Acre, senhora? – perguntou. Como sempre, a revelação era brutal, mas ela parecia tão insensível que talvez aquele fosse o melhor momento.

Adela Pomeroy não se voltou. Pitt não estava certo de ter visto que seus delicados ombros se retesavam sob a seda lavanda.

– Não tenho a menor idéia.

– Mas sabia que ia ali de vez em quando? – insistiu ele.

– Não – respondeu ela depois de um instante de vacilação.

Não valia a pena discutir. O que tinha Pitt era só uma impressão. Guardou silêncio; possivelmente a ela escapasse algo inadvertidamente.

– É ali onde o acharam? – perguntou.

– Sim.

– Estava... Igual... Igual aos outros?

– Sim, sinto muito.

–Ah.

Pitt começou a pensar que lhe dava as costas para ocultar suas emoções, e duvidou se chamava à criada para que a ajudasse, ou se preferiria a dignidade de ficar sozinha. Ou, simplesmente, aguardava que ele voltasse a falar?

– Quer que chame à criada para que lhe traga algo, senhora?

– O que?

Pitt repetiu o oferecimento.

Por fim ela se voltou; seu rosto parecia absolutamente sereno.

– Não, obrigada. Deseja me perguntar alguma coisa mais?

Pitt se preocupou com ela; aquela comoção fria e calma era perigosa. Teria que enviar algum criado competente em busca do médico.

– Sim, por favor. Desejaria os nomes e endereços dos alunos de seu marido e de qualquer amigo que possa ter visto nas últimas semanas.

–Seu estúdio está do outro lado do vestíbulo. Pegue o que quiser. Agora, se me perdoa, eu gostaria de estar sozinha. – Sem aguardar resposta, passou junto ao Pitt, deixando um leve sopro de perfume doce e com um tênue aroma a flores, e saiu pela porta.

Pitt passou o resto da manhã examinando os livros e documentos do estúdio do Pomeroy, tentando fazer uma idéia da vida daquele homem e de seu caráter.

Pomeroy parecia um homem meticuloso e prosaico que tinha ensinado matemática desde que se licenciara na universidade. A maior parte de seus alunos tinham entre doze e quatorze anos, ao que parecia, e não se destacavam sobre a média, exceto algum que parecia uma autêntica promessa. Dava aulas particulares tanto a meninos como a garotas.

Sua vida parecia conscienciosa e irrepreensível, sem a menor manifestação de regozijo. As chamativas flores de seda da saleta não poderiam ter sido suas jamais. De fato, o robe de seda lavanda com rendas parecia muito longe de sua imaginação e de suas possibilidades financeiras.

A cozinheira lhe ofereceu de comer, e explodia em lágrimas cada vez que Pitt lhe dirigia a palavra. À tarde, o inspetor anotou todos os nomes e endereços dos alunos a quem dava aula, além de uns quantos a quem tinha dado aulas no passado mais recente e os de conhecidos e comerciantes. Despediu-se sem voltar a ver Adela Pomeroy.

Voltou para casa mais cedo do que o habitual. Estava cansado e tinha o frio metido nos ossos. Tinham-no despertado com a notícia de um novo assassinato, tinha ido examinar o cadáver que jazia grotescamente nos degraus de entrada de um asilo para pobres, depois tinha tido que transmitir a notícia à viúva, cujo golpe tinha sido incapaz de aliviar. Passou as longas horas do dia bisbilhotando nos detalhes da vida de um homem, esmiuçando-a, procurando os defeitos que o tinham conduzido até Devil's Acre... E a ser assassinado. Tinha reunido um montão de fatos, e nenhum deles lhe dizia nada significativo. Sentia-se impotente, aprisionado entre a dor e as minúcias.

Se Charlotte fizesse um comentário alegre ou se mostrava inquisitiva, Pitt acabaria explodindo.

O inspetor dedicou os quatro dias seguintes a provar vários fios soltos, tentando desenredar a meada para achar um fio que lhe levasse a algo mais que a obra de um louco.

Falou com os alunos do Pomeroy, que pareciam ter boa opinião de seu professor apesar de dedicar todo seu tempo a lhes inculcar os princípios matemáticos. Os alunos se apresentavam ante ele, sérios e bonitos, cada um em sua própria e lotada saleta, e falavam com respeito de seus mais velhos, como correspondia a meninos bem educados. Pitt pareceu detectar inclusive, depois das frases de rigor, um sincero afeto, lembranças agradáveis, percepções de beleza na razão matemática.

De vez em quando, muito a seu pesar, assaltavam-lhe escuras idéias sobre intimidades entre homens e meninos, sobre casos que tinha investigado no passado. Mas não descobriu nenhum caso no qual Pomeroy tivesse dado aulas a um menino ou menina a sós.

Ernest Pomeroy parecia ter sido um homem admirável, embora não possuísse nem senso de humor nem imaginação que o fizesse simpático. Claro que era difícil captar a natureza de um homem quando tudo o que se conhecia dele era seu rosto morto e as lembranças de alguns meninos atônitos e obedientes, a quem lhes tinha advertido severamente sobre as conseqüências de falar mal dos mortos e sobre a vergonha de ter entendimentos com a polícia. A majestade da lei se observava melhor de uma prudente distancia. As pessoas respeitáveis não se mesclavam com os servidores da lei menos distintos.

É claro, Pitt pediu também à senhora Pomeroy que lhe permitisse examinar os objetos pessoais do finado se por acaso podia achar alguma carta ou papel que sugerisse uma inimizade, ameaças ou algum outro motivo para lhe fazer dano. Ela vacilou e olhou ao Pitt com uns olhos que pareciam paralisados ainda pelo golpe. Era uma intromissão em sua vida privada, e Pitt não teria se surpreendido que o negasse. Entretanto, ela pareceu compreender a necessidade de fazê-lo e a inutilidade de negar-se. Certamente, se ela tivesse participado de algum modo no assassinato, teria tido tempo mais que suficiente para destruir algo antes que ele se apresentasse com a notícia.

– Sim – disse a senhora Pomeroy finalmente –, se é o que quer. Não acredito que tivesse muita correspondência. Lembro de muito poucas cartas. Mas se você acreditar que podem lhe ser de utilidade, pegue-as.

– Obrigado, senhora. – Aquela mulher o fazia sentir especialmente perturbado porque sua dor era inacessível. Não havia rastros de pranto em seu rosto; tinha o olhar claro e as pálidas pálpebras não estavam inchadas. Entretanto, não se movia com o peso enrijecido de quem sofreu uma comoção profunda que petrifica os sentimentos, antes que a casca se rompa e a dor se libere.

Amava ao Pomeroy? Certamente o seu tinha sido um de tantos matrimônios combinados entre os pais dela e o pretendente. Pomeroy era muito mais velho que ela; bem poderia ter sido a escolha de seu pai mais que o de seu coração.

Mesmo assim, apesar de achar-se em uma espécie de limbo entre a notícia da morte e o início da resignação ao inevitável, Pitt percebia que possuía graça e delicadeza. Vestia roupas muito femininas e tinha um suave cabelo. Seus traços eram muito finos para o gosto do Pitt, mas a muitos homens devia lhes ser formosa. Acaso não podia ter encontrado um marido melhor que Pomeroy?

Apaixonara-se por ele ou talvez houvesse em jogo uma dívida de honra? Talvez os pais dela conhecessem o Pomeroy e lhe deviam algo?

Pitt examinou todas e cada uma de suas cartas e recibos. Era um homem muito meticuloso em seus assuntos, como tinha afirmado sua mulher. Pelas contas, a antiguidade e a qualidade do mobiliário, o número de criados e as reservas de mantimentos na cozinha e a despensa, aparentavam viver frugalmente. Não achou demonstrações de esbanjamento, salvo o vaso de flores de seda de cores na saleta e o vestuário de Adela.

Eram presentes do Pomeroy, como generosa expressão de seu amor? Não achava possível em um homem com o rosto que tinha visto em Devil's Acre. Por outro lado, ali o tinham despojado já do estímulo que alberga a carne, da capacidade de paixão e de dor, de momentos de ternura, de sonhos ou ilusões.

Inclusive em vida, os seres humanos ocultam nossa vulnerabilidade. Que direito tinha Pitt, ou qualquer outro, a saber, o que aquele homem tinha sentido por sua mulher? Que idéias vãs ou desesperadas seguiam lhe atormentando? Ou acaso a indiferença dela se devia a que todo sentimento autêntico tinha desaparecido muito tempo atrás? Acaso a morte do Pomeroy não era mais que o termo formal de uma relação que se sustentava unicamente pela fachada? A senhora Pomeroy lhe havia dito que estavam há quinze anos casados. Não tinham filhos. Tinham-nos tido?

Talvez por isso ela tivesse escolhido um homem vulgar e muito mais velho, porque tinha sido bom com uma mulher cuja moralidade tinha uma mancha? Ou talvez ela soubesse de antemão que era estéril? Com o passar dos anos a gratidão se converteu em ódio?

Tinha procurado ela o amor em outra parte? Era daí de onde procediam as flores de seda e os vestidos? A pergunta era óbvia, e estava obrigado a investigá-la.

Pitt perguntou à senhora Pomeroy se tinha ouvido falar do Bertram Astley, Max Burton ou o doutor Pinchin. Estes nomes não alteraram a expressão de seu rosto. Se mentia, era uma excelente mentirosa. Pitt tampouco achou menção alguma sobre as outras vítimas entre os papéis do Pomeroy.

Ao inspetor não restava mais por fazer que agradecer e partir com uma estranha sensação de irrealidade, como se ela não tivesse sido realmente consciente de sua presença, mesmo que falasse com ele; como se ele fosse o lanterninha de um teatro e ela contemplasse o desenvolvimento da obra de algum outro lugar, longe de sua vista.

O passo claro seguinte era voltar a experimentar em Devil's Acre e a melhor fonte era Pinche Harris. Pitt o achou em sua suja água-furtada, curvado sobre uma mesa junto à janela – o objeto mais limpo de todos – para que a luz invernal desse sobre o papel. Muitos olhos vigilantes e receosos examinariam seu trabalho. Tinha que ser perfeito, do contrário não continuaria no ofício. Pinche olhou ao Pitt com pesar.

– Não tem nenhum direito a irromper em minha casa! – exclamou, cobrindo o papel no que trabalhava –. Poderia denunciá-lo... Por arrombamento. Isto vai contra a lei, senhor Pitt. E, além disso, não é correto.

– É uma visita oficial. – sentou-se sobre uma caixa e manteve o equilíbrio com dificuldade –. Não estou interessado em suas habilidades profissionais.

– Ah, não?

– Por que não guarda isso? – sugeriu Pitt amigavelmente –. Se por acaso lhe cai pó em cima. Não quererá que se estrague.

Pinche o olhou com receio. Aquela indulgência era desconcertante. Não era próprio dos policiais ser tão incongruentes em seu comportamento. Como ia saber um a que ater-se? Entretanto, alegrou-lhe pôr a salvo suas falsificações meio feitas. Retornou e se sentou mais relaxado.

– E então? O que quer? Não terá vindo aqui para nada!

– É claro que não. O que se diz agora dos assassinatos? O que se murmura, Pinche?

– Sobre o açougueiro de Devil's Acre? Não se diz nada. Ninguém sabe nada e ninguém diz nada.

– Tolices. Está-me dizendo que se cometeram quatro assassinatos espantosos em Devil's Acre e que ninguém tem idéia de quem o fez ou por que? Venha, Pinche que não nasci ontem!

– Nem eu tampouco, senhor Pitt. E não quero saber nada disso. Tenho-lhe mais medo ao que tenha cometido esses crimes do que tive a você! Bem sabe Deus que vocês os polis são uma peste, maus para a saúde e para o negócio, e alguns absolutamente desagradáveis. Mas não estão loucos, ao menos não tanto como esse lunático que anda solto! Posso entender um assassinato decente, como qualquer filho de vizinho! Sou um homem razoável. Mas não aprovo isto, e não conheço ninguém que goste!

Pitt se inclinou para ele e esteve a ponto de cair da caixa.

– Então me ajude a encontrá-lo, Pinche! Me ajude a pô-lo fora de circulação!

– Quer dizer a pendurá-lo. –Torceu o gesto –. Não sei nada e não quero saber nada! É inútil que me pergunte senhor Pitt. Não é um dos nossos!

– Quem são os forasteiros? Quem são novos em Devil's Acre?

Pinche adotou um fingido ar ofendido.

– Como demônios vou saber? Está louco! Talvez só saia de noite. Talvez nem sequer seja humano. Não conheço ninguém que saiba nada. Nenhum dos fanfarrões, descarados ou valentões que conheço tem motivos para fazer essa classe de coisas! E já sabe que nós, os escrivães, não nos dedicamos a assuntos feios. Eu sou um artista. Se me pusesse violento e usasse as mãos, arruinaria meu ofício. – Agitou os dedos expressivamente, como um pianista –. Tampouco se podem molhar – acrescentou.

Pitt sorriu. Acreditava em Pinche a seu pesar. Mesmo assim, experimentou uma última vez.

– E o que me diz de Ambrose Mercutt? Max lhe estava tirando clientela.

– Certo – admitiu Pombinho –. Era melhor, compreende? E Ambrose é um bode quando perde os estribos, como lhe poderão dizer muitas de suas garotas. Mas não é louco! Se alguém tivesse esfaqueado Max e o tivesse jogado no rio, ou se o tivessem estrangulado, lhe teria falado do Ambrose desde o começo. – Seus lábios se curvaram em um gesto desdenhoso –. Mas não o teriam encontrado jamais! Teria se esfumado, isso é tudo. Max teria desaparecido, e vocês os policiais nem se teriam dado conta. Ninguém mais que um estúpido ou um lunático atrai a atenção fazendo em pedaços às pessoas e deixando-os logo na rua. – Ergueu as sobrancelhas hirsutas –. Eu lhe pergunto senhor Pitt, quem deixaria um cadáver à porta de um asilo, onde só há mulheres, se estivesse bem da cabeça?

– Ambrose tem meninas em seu bordel, Pinche?

Este fez uma careta.

– Eu não gosto disso. Não é são. Um homem como deve ser quer uma mulher feita e direita, não uma menina assustada.

– Tem meninas em seu bordel, Pinche?

– Bah! Como vou saber? Acredita que tenho tanto dinheiro?

– Tem-nas, Pinche? – insistiu Pitt com tom mais duro.

– Sim! Sim! Esse porco avaro! Vá e pendure-o, senhor Pitt, é todo dele! – Cuspiu no chão com asco.

– Obrigado. Agradeço-lhe isso. – Pitt ficou em pé e a caixa se desmoronou.

Pinche olhou a caixa e enrugou o sobrecenho.

– Não deveria ter se sentado aí, senhor Pitt! É muito pesado. Olhe o o que fez! Deveria lhe cobrar as imperfeições, isso deveria fazer!

Pitt tirou uma moeda de seis pennies e a deu.

– Eu não gostaria de estar em dívida com você, Pinche.

Pinche vacilou com a moeda a meio caminho de sua boca. A idéia de que Pitt lhe devesse algo era muito atraente, tentadora inclusive, mas seis pennies em mão eram melhor que uma dívida que Pitt podia deixar que se apagasse de sua volúvel cabeça.

– Isso está bem, senhor Pitt. A gente não deveria ter dívidas com ninguém. Nunca se sabe se não quererão recuperar o dinheiro no momento mais inoportuno. – Ergueu uns olhos sinceros –. Mas se me inteirar de quem se carregou a esses pobres tipos, com certeza, quero dizer, chamar-lhe-ei e o direi.

– Ah, sim? – disse Pitt com ceticismo –. Faça isso, Pinche.

– Que morra se não o faço – disse Pinche, voltando a cuspir –. Meu Deus, não deveria ter dito isso! Que Deus me castigue se não o faço! – corrigiu-se. Confiava mais em sua habilidade para obter clemência do Todo-poderoso que do açougueiro de Devil's Acre.

– Poderá fazê-lo depois de que eu tenha acabado com você. – Pitt o olhou de cima abaixo –. Se quer ter esse trabalho com o que fique!

– Vá, senhor Pitt, isso não está bem. Está abusando de minha hospitalidade. – sentia-se ofendido, mas feliz. Desfrutava com aquele sentimento –. O problema com vocês os policiais é que não agradecem.

Pitt sorriu e se dirigiu para a porta. Desceu as escadas evitando os degraus podres, e saiu ao frio e pestilento beco. No dia seguinte conseguiria um retrato do Ernest Pomeroy e o mostraria nos bordéis de Devil's Acre.

Charlotte o estava esperando quando chegou a casa. Estava linda, com o rosto radiante, os cabelos suaves e fragrantes. Abraçou-se a ele com força como se transbordasse energia.

– Onde esteve? – perguntou Pitt, abraçando-a com força.

– Com Emily. – Charlotte o mencionou como se fosse um assunto banal, mas ele sabia perfeitamente a que tinha ido.

Deu-lhe um beijo fugaz e se afastou dele.

– Está gelado. Sente-se e se esquente. Gracie terá pronto o jantar dentro de meia hora. Seu casaco parece muito sujo. Onde esteve?

– Em Devil's Acre – respondeu ele com aspereza, tirando-as botas. Estirou os dedos dos pés, recostou-se na cadeira e esticou os pés para o fogo. Charlotte lhe passou as sapatilhas.

– Descobriu algo?

– Não – mentiu. Ao fim e ao cabo, não tinha nada concreto.

O rosto de Charlotte expressou comiseração.

– OH, sinto muito. – Voltou a animar-se, como se acabasse de ocorrer-se o uma idéia-. Talvez fosse melhor expor o problema do outro ponto de vista.

– Que outro ponto de vista? – perguntou Pitt a seu pesar, zangando-se por sua credulidade. Mas ela não vacilou.

– O ponto de vista das mulheres do Max – disse –. Há muito ódio nesses assassinatos.

Pitt sorriu com azedume. A descrição era ridiculamente incompleta. Que demônios podia saber ela, sentada em seu seguro lar? Ele tinha visto os cadáveres!

–Deveria procurar a alguém que tenha visto sua vida arruinada – prosseguiu Charlotte –. Se Max seduziu a uma mulher e depois o marido o descobriu, bem pudesse ser que o ódio a levasse a matá-lo dessa forma, e não só ao Max, mas também a qualquer um que tivesse tido que ver com a desonra de sua mulher.

– E como o descobriria? – Se quisesse jogar de ser policial, que respondesse a todas as perguntas difíceis e desagradáveis que Athelstan teria jogado a ele. – Não há nenhuma relação entre o Max e Hubert Pinchin. Não pudemos achar ninguém que conhecesse aos dois.

– Talvez Pinchin fosse o médico do estabelecimento do Max – sugeriu ela.

– Boa idéia, mas não o era. Que se encarrega disso é um velho corvo expulso do colégio de médicos, e bom proveito que lhe tira. Não aceitaria compartilhar seus clientes com ninguém.

– Corvo? É esse o termo dos subúrbios para um médico? – Charlotte não aguardou resposta –. E se o marido chegou como cliente e se encontrou com a prostituta que era sua própria mulher? Desse modo também saberia quem era o fanfarrão! – Era uma solução perfeitamente raciocinada, e sabia. Charlotte transbordava satisfação.

– E o que tem a mulher? –perguntou ele mordazmente –. A envolveu como um pacote e a levou a casa? Seguro que a quereria depois disso!

– Não acreditei nisso nem por um momento. – Charlotte tomou ar e o olhou com impaciência-. Mas tampouco podia divorciar-se, não acha?

– Por que não? Bem sabe Deus que teria motivos para fazê-lo!

– OH, Thomas, não seja ridículo! Nenhum homem admitiria que achou a sua mulher trabalhando de prostituta em Devil's Acre. Embora a polícia não estivesse procurando a alguém com motivos para cometer um assassinato, seria sua ruína para sempre. Se houver algo pior que a morte para um homem, é que se dele zombem e se compadeçam dele ao mesmo tempo.

– Não – disse Pitt com irritação. Isso não se podia discutir –. Certamente também mataria a ela, mas tranqüilamente, quando estivesse preparado.

– Isso acredita? – respondeu ela empalidecendo.

–Maldita seja, Charlotte! Como quer que saiba? Se for capaz de esquartejar a seu fanfarrão e a seus amantes, o que lhe impediria de fazer o mesmo a ela em uma rua um pouco mais respeitável quando estivesse preparado? Assim não o esqueça, e deixa de se colocar em coisas que não entende, onde só pode causar prejuízo levantando suspeitas. Recorda que se estiver certa, o assassino não tem nada absolutamente que perder.

– Não fiz...

– Pelo amor de Deus, acha que sou idiota? Não sei o que esteve fazendo com Emily, mas certamente sei perfeitamente por que!

Charlotte permaneceu imóvel em seu assento, ruborizada.

– Não estive em nenhum lugar perto de Devil's Acre, e pelo que sei, não falei com ninguém que tenha estado ali! –replicou com justiça.

Pitt soube pelo brilho de seus olhos que dizia a verdade. De qualquer forma, não achava que lhe mentisse, ao menos com tanto detalhe.

– Não por falta de vontade – disse com azedume.

– Bom tampouco você parece ter chegado muito longe – replicou ela –. Eu poderia lhe dar os nomes de meia dúzia de mulheres para começar. O que me diz da Lavinia Hawkesley? Está casada com um homem aborrecido que tem ao menos trinta anos mais que ela. E Dorothea Blandish e a senhora Dinford e Lucy Abecom, e o que me diz da recente viúva Pomeroy? Ouvi dizer que é muito atraente, e conhece algumas dessas mulheres.

– Adela Pomeroy? – A surpresa fez que Pitt esquecesse momentaneamente sua ira.

– Sim – disse ela com satisfação –. E há outras. Anotarei seus nomes.

– Anota-os e depois se esqueça de tudo isto. Fica em casa! Estamos falando de assassinato, Charlotte, algo muito desagradável e violento. E se continua se intrometendo poderia muito bem acabar no arroio. Faz o que lhe digo!

Charlotte não disse nada.

– Ouve-me? – Não era sua intenção, mas tinha elevado à voz-. Se você e Emily vão por aí colocando o bico, Deus sabe a que lunático podem instigar, caso que se aproximem da verdade! O mais provável é que tudo isto seja um ajuste de contas em Devil's Acre e não tenha relação com a alta sociedade.

– O que me diz do Bertie Astley?

– O que acontece com ele? Era o dono de todo um quarteirão em Devil's Acre. Daí é de onde sai o dinheiro dos Astley, de seu subúrbio privado.

– OH, não!

– OH, sim! Possivelmente tinha também seu próprio bordel e o eliminou algum rival.

– O que vai fazer?

– Irei e voltarei a investigar! Que outra coisa poderia fazer?

– Thomas, por favor, tome cuidado! – Charlotte calou; não sabia que mais dizer.

Pitt conhecia os perigos, mas as alternativas eram piores: outro assassinato; clamor da opinião pública raiando à histeria; Athelstan, temeroso de perder sua posição, pressionando-o cada vez mais para que prendesse a alguém que sossegasse o Parlamento, a Igreja, os clientes de Devil's acre e de outros prostíbulos de Londres. E depois, o terror, a fúria e a sensação de culpa quando se produzisse um novo e atroz assassinato.

Mas o que possivelmente sobressaía em sua consideração era a necessidade de resolver o caso antes que Charlotte achasse um fio solto nas relações sociais de Emily, começasse a segui-lo desde esse lado e acabasse tropeçando com algo terrível. Tinha-lhe proibido mesclar-se, não só porque podia pôr sua vida em perigo, mas também porque tinha que demonstrar que não necessitava de sua ajuda.

– É claro que tomarei cuidado – disse com tom enrijecido –. Não sou um estúpido!

Charlotte o olhou de soslaio e refreou sua língua.

– E você ficará em casa e se manterá a margem! – acrescentou ele –. Já tem bastante trabalho aqui sem necessidade de se intrometer lá onde só acharia problemas.

Não obstante, quando Pitt foi a Devil's Acre no dia seguinte, pôs especial cuidado em vestir-se da forma menos chamativa e em caminhar com essa mescla de segurança de saber aonde se dirigia e o ar abatido e furtivo de quem também sabe que tudo é inútil.

O dia era frio, com o céu nublado e um forte vento procedente do rio. Estava plenamente justificado que se encasquetasse o chapéu e cobrisse o rosto com o cachecol. As escassas luzes de gás de Devil's Acre resplandeciam no ar lúgubre da manhã como luas perdidas em um mundo cansado e tortuoso.

Pitt tinha um bom retrato do Pomeroy e pensava averiguar todo o possível sobre os bordéis a que iam os clientes que preferiam meninas a mulheres. Em algum lugar daquele poço negro esperava achar o motivo pelo que Pomeroy se achava naquele subúrbio quando o mataram. Achava que tinha algo que ver com uma necessidade que não podia ou não se atrevia a satisfazer no Seabrook Walk. Nenhuma outra coisa teria levado um homem tão formal e de uma meticulosidade quase obsessiva a um mundo como aquele.

Tinha começado o dia no escritório do Parkins recolhendo toda a informação que podia lhe dar a delegacia de polícia local sobre os bordéis onde se sabia que havia meninas. Inclusive lhe deram os nomes de alguns delatores e os detalhes de certos segredos pessoais que poderiam lhe permitir exercer certa pressão para conseguir a verdade.

Entretanto, uma vez em Devil's Acre, não achou ninguém disposto a reconhecer que conhecia o Pomeroy ou que tinha sido um de seus clientes.

Ao chegar às dez da noite, Pitt estava morto de frio e esgotado, mas queria experimentar em um estabelecimento mais antes de voltar para casa. Não lhe valeria de nada mentir nessa ocasião; o porteiro do Ambrose Mercutt o conhecia. Seu trabalho o obrigava a recordar todos os rostos.

– O que quer? –perguntou mal-humoradamente-. Não pode apresentar-se aqui em horas de trabalho!

– É meu trabalho – replicou Pitt –. E estarei encantado de entrar e sair tranqüilamente sem incomodar aos clientes se me tratar cortesmente e responder a umas perguntas.

O homem meditou uns instantes. Era alto e fraco e lhe faltava meia orelha. Vestia uma jaqueta na moda, com lenço de seda ao redor do pescoço.

– Quanto está disposto a pagar?

– Nada – respondeu Pitt-. Mas lhe direi o que pode ganhar: continuar em seu emprego e conservar um bonito pescoço, sem as feias queimaduras de uma corda! Um colar de cânhamo pode arruinar a vida de um homem.

– Eu não matei a ninguém – grunhiu o homem. – A única coisa que tenho feito é dar uma surra aos que não querem pagar depois de servir-se. – Riu com dissimulação –. Mas não se queixaram. Os cavalheiros que vêm por aqui não se queixam nunca! E você não pode fazer nada, poli. Antes morreriam que apresentar uma denúncia contra um fanfarrão, certamente! – Adotou uma pose ridícula e pôs voz de falsete –. Por favor, senhor magistrado, deitei-me com uma puta e quero me queixar porque não valeu o dinheiro que paguei! Quero que a obrigue a ser mais complacente comigo! –Trocou de posição e apoiou a outra mão no quadril, olhando de cima com desprezo-. Vá lorde trava no olho. Você me diga quanto pagou a essa puta e onde posso encontrá-la; nos encarregaremos de que o faça melhor!

– Pensou alguma vez em trabalhar no teatro de variedades? – respondeu Pitt alegremente –. Seria o favorito do público.

O homem vacilou, adulado a seu pesar. Esperava algum insulto em lugar de uma valorização tão aduladora.

Pitt tirou o retrato do Pomeroy.

– O que é isso?

– Conhece-o? – Pitt o entregou. Nos jornais não tinha saído nenhum.

– E o que tem se o conhecer, o que importa a você?

– Isso não é assunto seu. Acredite-me, importa-me tanto que continuarei procurando até que encontre a alguém que desse satisfação a seus gostos particulares. E se sigo rondando por aqui não será bom para o negócio, não é verdade?

– Muito bem, maldito bode! Conheço-o, sim. E o que tem?

– Vinha aqui?

– Como diz? – perguntou o homem com incredulidade –. É tolo ou algo assim? Para que acredita que vinha aqui? Era um maldito pervertido, o grande bode. Gostava das meninas de sete ou oito anos. Mas você não poderá demonstrá-lo e eu não vou dizer nada mais. Agora saia daqui antes que lhe danifique esse bonito pescoço com um talho de orelha a orelha!

Pitt não tomou a ameaça à ligeira; além disso, não necessitava provas. Sempre tinha sabido que não acharia nenhuma.

– Obrigado. – Saudou o homem com uma breve inclinação da cabeça –. Acredito que não será necessário que volte a incomodá-los.

– Convém-lhe não fazê-lo! – gritou-lhe o homem quando já se ia –. Nós não gostamos de vê-lo por aqui! Será melhor para sua saúde que experimente em outro lugar!

Pitt se dispôs a sair de Devil's Acre com a maior rapidez possível. Pôs-se a andar a passo vivo com as mãos nos bolsos e as orelhas tampadas pelo cachecol. Assim, Pomeroy era um pedófilo. Isso não lhe surpreendia; era o que esperava. Tão somente queria a confirmação. Bertie Astley era o proprietário de todo um quarteirão em Devil's Acre: fábricas de operários explorados, moradias de aluguel, uma destilaria de genebra. A ocupação do Max não tinha sido jamais um segredo. Tudo o que ficava por descobrir era o motivo que levava ao Pinchin a visitar aquele subúrbio. E depois, claro está, achar o elo comum, o lugar ou a pessoa que os unia.

Fazia um frio de morte. O vento lhe açoitava o rosto com seu acre aroma de boca-de-lobo, fazendo-o lacrimejar. Endireitou os ombros e acelerou ainda mais o passo.

Talvez por isso não os ouviu alcançá-lo pelas costas em meio das sombras. Pitt havia resolvido o mistério do Pomeroy; tinha concluído seu trabalho e tinha esquecido que se achava ainda no coração de Devil's Acre. Caminhando como um homem feliz, um homem com um propósito, era tão chamativo como um coelho branco em um campo recém arado.

O primeiro lhe golpeou detrás. Pitt sentiu uma pontada de dor na nuca; de repente cambaleou e caiu sobre a pavimentação da rua. Virou-se com os joelhos dobrados e os esticou com todas suas forças. Seus pés deram com um corpo, que caiu com um grunhido. Mas tinha a outro junto à cabeça. Pitt repartiu golpes de punho a direita e à esquerda e tentou ficar em pé. Recebeu um leve golpe nos ombros. Lançou um murro com todo o peso de seu corpo e ouviu rangido de ossos. Então recebeu um golpe no flanco que o deixou paralisado. Teria recebido-o nas costas se não fosse porque deu a volta e lançou um pontapé no preciso momento em que o golpeavam.

Pôs-se a correr. Cem ou duzentos metros mais, quando muito, e se acharia no limite de Devil's Acre, onde poderia parar um cabriolé e ficar a salvo. Doía-lhe o flanco; devia ter uma forte contusão, mas um banho quente e um pouco de linimento bastariam para curá-lo. Seus pés voavam sobre a pavimentação. Não o envergonhava fugir; só um louco lutaria em condições impossíveis.

Estava sem fôlego. A dor do flanco aumentava. Pareceu-lhe que faltavam quilômetros para chegar às ruas iluminadas. Os espectrais anéis das luzes de gás sempre estavam mais à frente, não os alcançava nunca.

– Bom! Aonde vai com tanta pressa? – Um braço o segurou com força.

Em um momento de pânico, Pitt tentou golpear a aquele homem, mas seu braço parecia de ferro.

– O que?

Era um policial, um agente fazendo sua ronda.

– OH, graças a Deus! – exclamou Pitt. O rosto do agente se fez maior e resplandecente na névoa como as luzes de gás.

– Ouça amigo, tem muito mau aspecto. O que lhe passa? Ouça! Tem sangue no flanco! Será melhor que o leve a um hospital agora mesmo. Ouça! Resista um pouco mais. Chofer! Chofer!

Através de uma neblina de luzes e de um frio gelador, Pitt notou que o metiam em um cabriolé e percorriam as ruas entre sacudidas. Depois o desceram com cuidado e o levaram por um labirinto de quartos iluminados. Examinaram-no, limparam-lhe a ferida com algo que ardia, costuraram-lhe o corte ainda insensibilizado pela punhalada, enfaixaram-no e o vestiram. Depois lhe deram um líquido ardente que lhe queimou a garganta. Por fim o acompanharam a sua casa. Era meia-noite.

Na manhã seguinte despertou tão dolorido que mal podia mover-se; demorou um momento em recordar o motivo. Charlotte se achava de pé, inclinada sobre ele, pálida e despenteada.

– Thomas? – perguntou angustiada.

Pitt gemeu.

– Apunhalaram-lhe – disse ela. – Me disseram que a ferida não é muito profunda, mas perdeu muito sangue. A jaqueta e a camisa ficaram imprestáveis!

Pitt não pôde evitar sorrir. Sua mulher estava pálida.

– Isso é terrível. Tem certeza de que não servirão?

Charlotte engoliu as lágrimas furiosamente, e levou as mãos ao rosto para ocultá-las.

– Não vou chorar! Foi sua culpa. É um idiota! Vem e se senta tão pomposo como um mordomo de igreja11 e me diz o que devo e não devo fazer, e depois vai Devil’s Acre para fazer perguntas perigosas até que consegue que o apunhalem. – Tirou um dos lenços do Pitt da cômoda e assuou o nariz –. E não acredito que chegasse a ver sequer ao assassino!

Pitt se endireitou com uma careta de dor. Em realidade não tinha certeza de que fosse o açougueiro de Devil's Acre quem o tinha atacado. Podia ter sido um grupo qualquer de ladrões dispostos a brigar.

– E suponho que estará morto de fome – disse

Charlotte, metendo o lenço no bolso do avental –. Bom, o médico disse que com um dia de cama se achará melhor.

– Vou levantar me...

– Fará o que eu disser! – exclamou ela –. Não sairá da cama até que eu lhe dê permissão! E não discuta! Não se atreva!

Pitt demorou três dias para recuperar as forças e retornar a delegacia de polícia, fortemente enfaixado e com um recipiente térmico cheio de Porto como reconstituinte. A ferida estava cicatrizando e podia mover-se, embora ainda lhe doesse. Naqueles três dias, os fios dos assassinatos de Devil's Acre começaram a desenredar-se em sua mente e se sentia obrigado a retomar o caso.

– Pus para trabalhar mais homens – tranqüilizou Athelstan com gesto preocupado –. Todos os que não eram imprescindíveis.

– E o que descobriram? –perguntou Pitt, ao que por uma vez lhe tinha permitido, inclusive rogado, que se sentasse na grande cadeira acolchoada em lugar de ficar de pé. Pitt desfrutou com aquela nova sensação e se recostou estirando as pernas. Talvez não voltasse a ocorrer.

– Não muito – admitiu Athelstan –. Ainda não sei o que tinham em comum os quatro homens. Nem sequer sei por que tinha ido Pinchin à Parcela do Diabo. Está seguro de que não se trata de um lunático, Pitt?

– Não tenho certeza, mas não acredito. Um médico poderia achar uma dúzia de ocupações em Devil's Acre se não tivesse muitos escrúpulos.

– Suponho que sim – disse Athelstan com uma careta de repugnância –. Mas qual delas exercia Pinchin, e para quem? Acredita que podia ser ele quem proporcionasse ao Max essas mulheres de boa família que você insiste que tinha?

– Possivelmente. Embora não havia muitas mulheres da alta sociedade entre seus pacientes.

– "De boa família" é uma descrição relativa, Pitt. Qualquer um poderia passar por uma dama em Devil's Acre.

– Então será melhor que vá e faça umas quantas perguntas mais... – disse Pitt levantando-se com reticência.

– Não irá só! – exclamou Athelstan com alarme –. Não posso me permitir o luxo de que se cometa outro assassinato em Devil's Acre!

Pitt ficou olhando.

– Obrigado – disse ironicamente –. Não desejaria lhe pôr em um apuro.

– Maldito seja...

– Levarei um agente, ou dois, se o preferir.

Athelstan se ergueu.

– É uma ordem, Pitt, uma ordem. Entendeu-me?

– Sim, senhor. Irei agora mesmo... Com dois agentes.

Ambrose Mercutt se encolerizou com uma mescla de ofensa e medo que o responsabilizassem pela ferida de Pitt, que era a fofoca de Devil's.

– A culpa é sua! – balbuciou Mercutt –. Quando a gente ronda por lugares onde não o querem, colocando o nariz nos assuntos pessoais de outros, é lógico que saia ferido. Teve sorte de que não o estrangulassem! É você um estúpido. Se andou importunando a outros do mesmo modo que aos meus, o que me surpreende é que não o matassem.

Pitt não discutiu. Sabia que se equivocara não em ir a Devil's Acre, mas em haver-se esquecido de manter a aparência, de caminhar como um homem que pertencia a aquele mundo. Tinha permitido que sua presença se fizesse evidente. Era uma negligência e, como Ambrose dizia uma estupidez.

– E também o sente, sem dúvida – disse –. Quem se ocupa de suas mulheres quando ficam doentes?

– O que?

Pitt repetiu a pergunta, e Ambrose não demorou a compreender.

– Não era Pinchin, se isso está pensando.

– Possivelmente. Mas falarei com todas suas mulheres, no caso de... Talvez elas recordem algo mais.

– Muito bem. – Ambrose estava pálido de ira –. Talvez tenha tratado algumas de vez em quando. Que importa? Era muito útil. Algumas dessas estúpidas prostitutas ficam grávidas às vezes. Ele o solucionava e cobrava em espécie. Assim que eu seria a última pessoa no mundo que quereria matá-lo, não acha?

– Não se fizesse chantagem.

– Chantagem a mim? – Sua voz se converteu em um grito ante a idiotice da pergunta –. Por quê? Todo mundo sabe a que me dedico. Eu não finjo ser o que não sou. Eu poderia ter chantageado a ele, poderia ter arruinado seu respeitável consultório do Highgate, se tivesse querido. Mas nosso acordo me convinha. Quando o mataram tive que buscar outro.

Pitt não pôde lhe tirar nada mais, por muitas perguntas que lhe fizesse tentando pressioná-lo. Por fim, abandonou o local com os agentes e visitou um bordel atrás de outro.

Eram cinco da tarde quando, cansado e dolorido, chegou com os dois agentes à casa das irmãs Dalton. Ele as tinha deixado para o final de propósito, pensando no calor, na atmosfera agradável e possivelmente numa xícara de chá quente.

Ambas as irmãs se reuniram com ele desta vez. Pitt foi recebido com a mesma tranqüilidade doméstica que na ocasião anterior e lhe convidaram a sentar-se na sala de estar. Aceitou o chá que lhe ofereceram com mais rapidez do que ditava a boa educação. Mary o olhava com suspicacia, mas Vitória se mostrou novamente cortês.

– Ernest Pomeroy não vinha aqui – disse Vitória enquanto servia o chá e o oferecia ao Pitt. Os agentes ficaram na sala de espera, sobressaltados, mas passando em grande.

– Não – disse Pitt pegando a xícara –. Já sei aonde ia. Estava pensando no doutor Pinchin.

Vitória arqueou as sobrancelhas; seus olhos cinza eram como aprazíveis mares.

– Eu não vejo todos nossos clientes, mas em todo caso não o recordo.

Certamente não o assassinaram aqui nem em nenhum lugar próximo.

– Você o conhecia? Por sua profissão, quero dizer.

Um sorriso apareceu nos lábios de Vitória.

– A profissão dele ou a minha, senhor Pitt?

– A dele, senhorita Dalton – respondeu ele lhe devolvendo o sorriso.

– Não. Tenho boa saúde, e quando estou doente sei muito bem o que devo fazer.

– E suas mulheres... Suas garotas?

– Tampouco – respondeu Mary –. Se alguma ficar doente a cuidamos nós.

Pitt se voltou para olhá-la. Era mais jovem que Vitória. Seu rosto carecia da força de vontade e resolução de sua irmã, mas tinha o mesmo aspecto camponês, o nariz curto e as sardas. Mary abriu a boca e voltou a fechá-la. Pitt compreendeu que não queria admitir que houvesse abortos.

– É claro chamamos um médico às vezes – disse Vitória, tomando as rédeas novamente –, mas nunca ao Pinchin. Jamais teve nada que ver com este estabelecimento.

Pitt acreditava, mas queria desfrutar do calor um pouco mais e não acabara o chá.

– Pode me dar alguma razão para que acredite? – perguntou –. Esse homem foi assassinado. É normal que não deseje admitir que o conhecesse.

Vitória olhou de esguelha a sua irmã, depois a xícara do Pitt.

Pegou o bule e a encheu sem lhe perguntar.

– Nenhuma absolutamente – disse com uma expressão que Pitt não soube interpretar –. Exceto que era um açougueiro, e não quero que destrocem às minhas garotas e sangrem ou de tão mutiladas não possam voltar a trabalhar. Disso pode estar certo!

Pitt acabou desculpando-se. Era ridículo. Estava tomando o chá com a proprietária de um bordel e lhe dizendo que lamentava que um médico tivesse feito abortar a umas putas com uma incompetência injustificável, e nem sequer eram suas putas!... Ou acaso era uma excelente mentirosa?

– Perguntarei pessoalmente. – Bebeu o chá e ficou em pé –. Sobre tudo às mais novas.

Mary também se levantou com os punhos apertados sobre a saia.

– Não pode fazê-lo!

– Não seja idiota – disse Vitória com brutalidade –. Claro que pode. Jamais tivemos ao Pinchin nesta casa, a menos que tenha vindo como cliente. Agradecer-lhe-ia, senhor Pitt, que não intimidasse a nossas garotas. – Olhou-o com firmeza, e este recordou algumas preceptoras que tinha conhecido nas grandes casas.

Vitória não aguardou resposta, conduziu-o ao piso superior da casa e começou a bater em todas as portas.

Pitt seguiu a rotina de fazer perguntas e mostrar o retrato do Pinchin a prostitutas gordinhas que soltavam risinhos. Os quartos estavam quentes e cheiravam a perfume barato e aromas corporais, mas estavam decorados em alegres cores e mais limpos do que esperava.

Depois da quarta garota, Vitória teve que ausentar-se para atender um problema doméstico e Pitt ficou com a Mary. Estava falando com a última garota, fraca, de não mais de quinze ou dezesseis anos e muito assustada. Olhou o rosto do Pinchin na foto e imediatamente Pitt soube que mentia ao dizer que nunca o tinha visto.

– Pense bem – advertiu. – Tome cuidado. Poderiam prendê-la por mentir à polícia.

A garota empalideceu.

– Já basta! – disse Mary com aspereza –. Só é uma criada, o que ia querer ela de um tipo como esse? Deixe-a em paz. Não faz mais que tirar o pó e varrer. Não tem nada que ver com o negócio.

A garota tentou partir. Pitt a pegou pelo braço sem brutalidade, mas ela pôs-se a chorar com grandes soluços que estremeciam seu corpo, como possuída por uma dor inconsolável.

Nesse instante, com um tombo do estômago, Pitt compreendeu que devia ser um dos "açougues" do Pinchin, uma das que tinha sobrevivido, mas tão danificada que jamais voltaria a ser uma mulher normal. Na sua idade deveria estar rindo, sonhando com o amor, esperando com ânsia o matrimônio. Pitt queria consolá-la, mas não havia nada que pudesse dizer ou fazer, nem ele nem ninguém.

– Elsie! – Era Mary, que gritava assustada –. Elsie!

A jovem criada continuava chorando, aferrada agora ao braço da Mary.

Do outro extremo do corredor chegou um rouco grunhido. Pitt se virou totalmente. Ali, à luz de gás, viu um bull terrier atarracado, branco e com cara de rato, que mostrava os dentes e lhe tremiam as pernas arqueadas. Atrás do cão surgiu a mulher mais gigantesca que tinha visto Pitt em sua vida, com os braços nus pendendo dos lados, o rosto plano como um pudim de sebo e os olhos ocultos sob dobras de gordura.

– Não se preocupe senhorita Mary – disse a mulher com voz infantil –. Não deixarei que lhe faça mal. Já se ia, não é, senhor? – Deu um passo e o cão avançou grunhindo de raiva.

Pitt sentiu que o pânico se apoderava dele. Achava-se acaso ante o açougueiro de Devil's Acre, aquela enorme mulher e seu cão? Tinha a garganta seca; engoliu, mas não havia saliva.

– Expulse-o, Elsie! – gritou Mary. – Expulse-o! Vamos, expulse-o a pontapés! Arroja o à sarjeta! Açula ao Dutch contra ele!

A mulher deu outro passo com rosto inexpressivo. O mesmo faria se estivesse lavando a roupa ou amassando pão. Junto a ela, os grunhidos do Dutch se fizeram mais fortes.

– Alto! –gritou Vitória do alto das escadas pelas quais tinha desaparecido pouco antes –. Não é necessário, Elsie. O senhor Pitt não é um cliente e não vai ferir a ninguém. –Seu tom se fez mais cortante –. Mary, às vezes se comporta como uma estúpida! – Tirou um lenço da manga e o entregou à criada –. Bom, agora se tranqüilize Millie, e segue com seu trabalho! Deixa de choramingar sem motivo, Vamos! – Contemplou à garota, que saiu correndo, e à corpulenta mulher e ao cão, que deram meia volta e se afastaram obedientemente atrás dela.

Mary tinha expressão áspera, mas guardou silêncio.

– Sinto muito – disse Vitória –. Encontramos Millie em situação desesperada. Não sei quem foi o responsável, mas pôde ser Pinchin. A pobrezinha esteve a ponto de sangrar-se. Ficou grávida e seu pai a expulsou de casa. Entrou para trabalhar em uma das casas, onde alguém lhe praticou um aborto. Depois, quando a expulsaram dali porque já não servia para o negócio, nós a recolhemos.

Pitt não pôde dizer nada, não bastava com tópicos comentários compassivos.

Vitória o conduziu de novo ao piso de baixo.

– Mary não deveria ter chamado ao Elsie. Só atua com os clientes que ficam difíceis. – Olhou ao Pitt com frieza-. Espero que não tenha se assustado, senhor Pitt.

Ele havia sentido autêntico terror e ainda tinha o corpo empapado de suor.

– Absolutamente – mentiu, alegrando-se de que ela não pudesse lhe ver o rosto –. Obrigado por sua sinceridade, senhorita Dalton. Agora já sei o que fazia Pinchin em Devil's acre e de onde procediam seus ganhos adicionais, ao menos para prover sua adega. Não saberá você para quem trabalhava, por acaso?

– Millie estava com o Ambrose Mercutt, se quer saber isso – respondeu ela –. Não posso lhe dizer nada mais.

–Não acredito que necessite nada mais.

Pitt chegou à sala de espera da entrada. Os dois agentes se levantaram de um salto com o rosto como tomate, fazendo cair de seus joelhos duas garotas que riam. Pitt se voltou para Vitória, fingindo não haver-se dado conta-. Obrigado, senhorita Dalton. Boa noite.

– Boa noite, senhor Pitt – disse Vitória, igualmente imperturbável.

 

O general Balantyne não conseguia tirar da cabeça os assassinatos de Devil's Acre. Jamais tinha ouvido falar do doutor Pinchin nem da última vítima, Ernest Pomeroy, antes que os jornais convertessem esses nomes em sinônimo de terror e abominação na escuridão. Mas o rosto do Max Burton, com suas pálpebras caídas e seus lábios sinuosos, trazia para sua memória lembranças perturbadoras de outros assassinos, de horríveis fatos passados que nunca tinha compreendido.

Bertie Astley, além disso, pertencia à classe social do general, menos que a autêntica aristocracia, mas mais que os que simplesmente eram de boa família. Qualquer um podia ganhar dinheiro, e as maneiras deliciosas podiam imitar-se ou aprender-se. O engenho, a elegância, inclusive a beleza, não eram nada; desfrutavam-se, mas ninguém que se apreciasse se deixava enganar por tais atributos. Em troca, os Astley constituíam uma rançosa ascendência de reputação honorável no serviço da Igreja ou do Estado, por isso formavam parte de um pequeno mundo de privilégios que em outro tempo pareciam intocáveis. De vez em quando, algum cafajeste ou um estúpido o abandonavam, mas nenhum intruso tinha conseguido meter-se nele.

Como era possível que se achara o cadáver do Astley na porta de um bordel para homossexuais? É claro, o general não era tão ingênuo para excluir a possibilidade de que Astley tivesse ido ali com o propósito mais evidente, nem a de que um lunático lhe tivesse assassinado por acaso. Tampouco podia desprezar o temor de que não tivesse sido um acidente, mas sim que alguém o tivesse escolhido premeditadamente. Desconfiava do cômodo alívio de acreditar em um assassino casual que tivesse escolhido a dois homens, Max e Bertie, tão diferentes e, entretanto conhecidos para ele.

Trouxe o assunto à tona falando com Augusta. Esta supôs que pretendia falar de Devil's Acre em si e de algum plano de reforma sobre a prostituição e seus males, e seu rosto se converteu em uma máscara impenetrável.

– Sério, Brandon, para um homem que passou a maior parte de sua vida adulta no exército, é realmente ingênuo! –exclamou com certo desprezo –. Se acha que vai mudar os baixos instintos da natureza humana com um pouco de legislação bem-intencionada, estaria melhor no púlpito de alguma bonita aldeia de onde possa oferecer chá e sentenças tópicas a devotas solteironas sem causar um grave prejuízo com isso. Aqui, em uma sociedade refinada, é ridículo!

O general se sentiu doído. O comentário de sua esposa não só era cruel, mas também injusto. Não lhe tinha dado oportunidade de explicar-se.

– Ouvi descrever o assassinato do Bertie Astley de muitas maneiras – disse mordazmente –, mas você foi a primeira em escolher a palavra "refinado". É uma alusão cuja conveniência não consigo entender!

As faces de Augusta se tingiram de uma cor apagada. Seu marido tinha interpretado mal suas palavras de propósito, com a mesma crueldade que ela tinha demonstrado com ele.

– Eu não gosto de sarcasmos, Brandon – replicou –. E não tem o engenho necessário para ser sarcástica. Bertie Astley foi a desafortunada vítima do assassino que está cometendo esses ultrajes. Certamente jamais chegaremos, a saber, com que propósito foi a aquela zona, e não é nosso assunto. Deixa que o enterrem em paz e que sua família lhe guarde luto decentemente. É de uma absoluta falta de delicadeza que recorde a alguém as circunstâncias de sua morte. Não acredito que um cavalheiro fizesse semelhante coisa.

– Então é hora de que tenhamos menos cavalheiros e mais policiais, ou o que seja necessário para que se faça algo! –replicou ele-. Por minha parte não desejo que apareçam mais cadáveres mutilados em Londres.

– Já são muitos poucos os cavalheiros que há – disse ela olhando-o com ar cansado –. Tomara houvesse mais! Virou-se e se afastou, deixando ao general com a sensação de que tinha perdido a discussão apesar de ter razão.

No dia seguinte, Christina comeu com sua mãe, mas recusou acompanhá-la em suas visitas. O general ficou na salta com sua filha. O fogo da lareira ardia com grandes chama e a sala estava banhada de uma luz cálida e vacilante. A atmosfera era familiar, agradavelmente intemporal, quase como se houvessem voltado de novo à juventude do general e a infância da Christina, quando o afeto mútuo se dava é claro.

O general se recostou na cadeira e olhou a Christina, que se achava de pé junto à mesa redonda das massas. O rosto de sua filha era formoso: feições pequenas, lábios carnudos, olhos grandes, cabelos brilhantes. A figura, vestida com um elegante vestido, conservava a frescura da adolescência. Era uma estranha mescla de menina e mulher; possivelmente esse era seu encanto. Certamente tinha tido muitos admiradores antes de casar-se com o Alan Ross. E, a julgar pelos eventos sociais nos quais tinha tido ocasião de observá-la, ainda os conservava, embora fossem mais discretos.

– Christina?

– Sim, papai? – disse ela voltando-se.

– Conhecia sir Bertram Astley. – Não formulou a frase como uma pergunta, porque não aceitaria uma negativa.

Christina baixou o olhar para uma figurinha de porcelana que havia sobre a mesa.

– Ligeiramente – respondeu –. É inevitável conhecer a maioria da gente da alta sociedade em um momento ou outro. – Não perguntou para que queria sabê-lo.

– Que classe de homem era?

– Agradável – respondeu ela com um leve sorriso –. Mas absolutamente vulgar.

Christina mostrava tal segurança que o general não podia acreditar que mentisse. Entretanto, sabia que sua filha se movia em ambientes que não eram moderados nem cândidos. Christina era muito menos inocente que ele mesmo na sua idade, talvez inclusive nesse mesmo momento?

– O que me diz do Beau Astley?

Ela vacilou. Ruborizou-se, ou era um reflexo do fogo?

– Encantador – respondeu por fim, sem inflexão na voz –. Muito agradável, embora admita que não o conheça muito. É um julgamento um pouco apressado. Se espera que lhe fale com fundamento, papai, temo que vá decepcioná-lo. Não tinha a menor idéia que sir Bertram fosse um pervertido. Estava convencida de que ia atrás dessa idiota de Woolmer e de que pensava casar-se com ela. E como ela não tem dinheiro, nem família de que possa se presumir, imagino que era por uma razão meramente física. – Olhou a seu pai de esguelha. – Sinto muito se o escandalizei. Algumas vezes o acho incrivelmente chapado à antiga!

O general era consciente da opinião de sua filha, mas nem por isso lhe doía menos ouvi-lo dizer. Não quis alongar a questão com uma defesa de si mesmo, mas ao mesmo tempo sabia que devia defender-se. Christina não tinha direito a lhe faltar ao respeito.

– Então, ou não foi a Devil's Acre pelo que se supõe, ou era um homem com gostos muito díspares – disse secamente.

Ela soltou uma gargalhada. Suas mãos sustentaram em alto a figurinha de porcelana; tinha uns dedos formosos, pequenos e magros.

– Sabia que ia pôr você furioso. E em troca resulta que tem senso de humor.

– Sentido do absurdo – a corrigiu ele, com uma agradável sensação –. Se Bertie Astley pretendia à senhorita Woolmer com tanta diligência como sugere, custa-me acreditar que satisfizesse, além disso, outros apetites em Devil's Acre. Ou é ela o tinha rechaçado?

–Ao contrário – respondeu sua filha com um pequeno grunhido –. Aferrava-se a ele como se estivesse a ponto de afogar-se. E sua mãe ainda era pior. Agora pretendem caçar ao pobre Beau! É uma garota branca e roliça, como um montão de nata montada.

– E o "pobre Beau" não está disposto?

Christina voltou a vacilar; seus dedos apertaram a figurinha de porcelana.

– Em realidade não sei. Como lhe disse antes, conheço-os muito de passagem. Não é meu assunto. – Deixou a figurinha e sorriu, afastando-se da mesa para aproximar-se do fogo. A luz se refletiu em seu vestido de cetim lançando brilhos fugazes que logo voltaram a converter-se em intensas sombras.

– Tinha ouvido falar de alguma das outras vítimas? – perguntou o general. Logo que formulou a pergunta compreendeu que era ridícula e desejou poder retirá-la –. Além do Max, claro está! – acrescentou a fim de que adquirisse certa lógica, ao menos para ele mesmo, embora fosse estúpida.

Possivelmente alguma lembrança da época em que Max servia naquela casa assaltou a Christina, que engoliu saliva. O general se sentiu culpado por havê-lo mencionado.

– Impossível – disse ela com tom despreocupado –. Não eram um médico e o outro um professor de escola ou algo parecido? Não eram precisamente de meu ambiente social, papai. Não há um ditado sobre que a necessidade une a estranhos companheiros de cama, ou algo assim? – Soltou uma risada discordante –. Talvez tivessem todos o mesmo vício. Talvez jogavam em Devil's Acre e perdiam. Se não recordo mal, acho que ouvi dizer que Bertie Astley jogava. Deixar as dívidas sem pagar é um pecado social de proporções monstruosas, sabe? Não lhe ensinaram isso no clube de oficiais?

– Aos devedores se punha na lista negra – disse com seriedade, observando a sua filha –. Não os matavam nem os... –duvidou em utilizar uma palavra gráfica diante dela, mas por que tinha que falar com eufemismos como uma velha? Por que tinha que falar da masculinidade em sussurros – castravam – terminou.

Christina não pareceu escandalizada. O reflexo do fogo em seu rosto impediu ao general ver se tinha ruborizado.

– Em Devil's Acre não há oficiais nem cavalheiros, papai – indicou com sarcasmo –. Uma lista negra não serviria muito!

É claro tinha razão. Do que serviria uma ameaça como essa? O ganhador não receberia nem um penny da dívida e o perdedor se limitaria a ir a outro lugar, se não em Devil's Acre, em algum subúrbio. E o credor não se atreveria a dar publicidade a esse fato, pois perderia prestígio e a partir de então ninguém o pagaria.

– Em realidade – prosseguiu ela –, eu diria que esse método é o mais efetivo. Assombra-me que se necessitaram quatro mortos para demonstrá-lo.

– É mais que assombroso. – O general falou devagar, dando voltas ao assunto –. De fato, é incrível.

Christina não o olhava. O reflexo das chamas em seu vestido acentuou as esbeltas curvas de seu corpo quando se voltou. Não era muito diferente agora de quando tinha dezessete anos, mas ao general lhe parecia inalcançável. Tinha sido sempre assim? Só sua indulgência lhe tinha permitido acreditar que a conhecia porque era sua filha?

– A pessoa não sente um ódio tão cego por uma dívida de jogo – disse voltando para o assunto , porque ainda não tinha conseguido exorcizá-lo.

– Talvez estejam loucos? – Christina se encolheu de ombros –. Quem sabe? Por favor, papai, esse assunto é muito desagradável. É necessário que dele falemos?

Seu pai tinha a desculpa no ponto, mas mudou de opinião.

– Você pode tirá-lo da cabeça? – perguntou –. Eu não.

–Isso parece. – Christina tinha uma boa dose do frio desprezo de Augusta –. Sim, posso. A mim as idas e vindas dessa gente não me parecem tão fascinantes como a você. Prefiro a sociedade em que cresci.

– Pensava que a achava aborrecida. – O general se surpreendeu de como afiada se tornara sua língua –. Ouvi-a dizer isso com freqüência.

Christina ergueu o queixo e se afastou.

– Sugere que deveria procurar um pouco de variedade em Devil's Acre, papai? – respondeu com voz quebradiça-. Não acredito que Alan gostasse! E mamãe se horrorizaria. – aproximou-se da campainha e puxou o cordão –. Temo que, como a maioria de mulheres, terei que suportar certo tédio e muitas banalidades na vida cotidiana. Mas sua moral me parece insuportável e pomposa. Não tem a menor idéia a respeito dessas mortes e não entendo por que quer continuar falando delas, a menos que o faça sentir-se superior. E não quero voltar a falar disso. Como diz mamãe, é indescritivelmente sórdido.

O lacaio respondeu à chamada.

– Minha carruagem, por favor, Stride – disse ela com frieza –. Volto para casa.

O general se sentiu invadido por uma mescla de alívio e sensação de perda ao vê-la partir. Era a diferença de sexo ou a diferença entre gerações o que abria um abismo de incompreensão entre eles? Nos últimos tempos parecia haver cada vez menos gente com quem pudesse falar sem sentir-se desconfortável e acreditar que o que diziam era importante, não um mero intercâmbio de palavras convencionais que a ninguém importavam.

Por que queria falar dos assassinatos com Christina? Ou com qualquer outra pessoa? Havia um milhar de coisas diferentes de que falar, todas agradáveis ou interessantes, inclusive divertidas. Por que Devil's Acre?... Porque ao recordar algumas das coisas que havia dito Brandy, a pobreza e o sofrimento tinha compreendido o ódio que podia impulsionar a alguém a matar a uma criatura como Max, mesmo que a selvagem mutilação escapasse a seu entendimento. Ele se teria limitado a executar aquele homem com um tiro na cabeça. Mas talvez, se tivessem sido sua mulher ou sua filha a quem tivesse usado Max em seu prostíbulo, também ele teria sentido a necessidade, não só de matar mas também de destruir a masculinidade do ofensor: o instrumento de seu poder e o símbolo de sua ofensa. Havia certa justiça naquele castigo.

Não podia afastá-lo de sua cabeça. E não podia falar disso com ninguém sem provocar ira ou ser acusado de fatuidade e de moralizar em vão. Era assim como o via sua família, as mulheres à quem amava: um homem insensível, pomposo e obcecado com uma série de sórdidos assassinatos em uma zona da qual nada sabia?

Sem dúvida Charlotte não o via assim. Ela parecia interessada. Ou era só amável? Recordou as cartas do soldado do Wellington na Espanha; Charlotte tinha manifestado achá-las muito excitantes. Pôde ser só cortesia aquela luz que iluminava seu rosto? A idéia era muito desagradável.

O general se levantou e saiu da sala com passo rápido para a biblioteca, do outro lado do vestíbulo. Uma vez ali, tirou pena e papel e escreveu uma carta à Emily Ashworth. Era a irmã de Charlotte; transmitir-lhe-ia com tato a mensagem de que as cartas do soldado estavam à disposição de Charlotte se as quisesse ler pessoalmente. Enviou a carta com o lacaio antes que tivesse tempo de pensar se estava sendo um estúpido.

Na tarde seguinte, na hora mais cedo que permitia a etiqueta para as visitas, entrou a criada para dizer que a senhorita Ellison se achava no gabinete e perguntava se queria recebê-la.

O general sentiu crescer a excitação. Era ridículo. Charlotte tinha ido ver as cartas, não era nada pessoal. Apresentou-se com a mesma rapidez fosse quem fosse seu possuidor.

– Sim. – Engoliu em seco e tentou olhar à criada com ar distendido –. Que entre; veio ver uns documentos históricos, de modo que acompanhe a a biblioteca, e depois sirva chá.

– Sim, senhor – disse a criada sem dar demonstração de estranheza.

O general se levantou e alisou a jaqueta. Sem dar-se conta levou ambas as mãos à gravata-borboleta, que parecia apertá-lo. Afrouxou-a levemente e frente ao espelho se assegurou de que estava corretamente atada.

Charlotte estava na biblioteca. Voltou-se e sorriu quando entrou o general. Este nem sequer se deu conta do quente vermelho de seu vestido, nem de que tinha as botas empapadas. Tudo o que viu foi a luz de seu rosto.

– Bom tarde, general – disse ela –. É muito amável me permitindo ler as cartas. Espero não me haver apresentado em um momento inoportuno.

– Não, absolutamente. – Ele desejaria que o chamasse por seu nome, mas teria sido uma grosseria pedir-lhe. Devia comportar-se com dignidade, do contrário acabaria fazendo que se sentisse desconfortável. Seu rosto não perdeu a serenidade –. Não tenho nenhum outro compromisso. – Pensava tomar o chá com o Robert Carlton, mas isso carecia de importância; eram velhos amigos e o encontro era informal.

– É muito generoso de sua parte. – Charlotte continuava sorrindo.

– Sente-se, por favor – disse ele, indicando a grande cadeira junto ao fogo –. Pedi à criada que nos traga chá. Espero que lhe pareça bem.

– OH, sim obrigada. – Ela se sentou e pôs os pés sobre a tela da lareira.

O general observou pela primeira vez suas botas molhadas e que estavam muito gastas. Logo foi tirar as cartas da prateleira.

Examinaram-nas juntos durante meia hora. A criada serviu o chá, e ambos continuaram com o mundo completamente estranho da Espanha de princípios do século. O soldado escrevia com tão intensa sinceridade que chegaram a conhecer seus pensamentos, sentir suas emoções, perceber a proximidade de outros homens e o impacto da batalha, sofrer com ele parte intermináveis por colinas ressecadas, padecer sua fome e as longas horas de espera seguidas por um súbito medo.

Por fim, Charlotte se recostou em seu assento com o olhar perdido.

– Sabe, com suas cartas este soldado me deu uma porção de sua vida. Sinto-me enriquecida. As maiorias das pessoas se vêem limitadas a um lugar e uma época; eu tive o privilégio de ver outros tão vividamente como se tivesse estado ali, mas sem ter que pagar preço algum.

O general olhou seu rosto iluminado e se sentiu ridiculamente recompensado. A sensação de solidão se desvaneceu como a noite quando a terra gira para o sol.

Deu-se conta de que lhe devolvia o sorriso. Instintivamente a roçou com a mão. O calor de seu corpo se estendeu até que também o corpo do general pôde senti-lo. Logo retirou a mão com reticência. Foi um momento que não se atreveu a prolongar. A intensidade com que o desejava era uma advertência mais que suficiente.

O que podia dizer sem deixar de ser sincero? Arruinaria aquele momento se rebaixava aos tópicos, lugares comuns, produto da mente de outra pessoa.

– Me alegro – se limitou a dizer –. Também para mim era importante. Sentia-me como se conhecesse melhor ao soldado do que conheço a maioria das pessoas que vejo e com quem falo cujas vidas achava entender.

Charlotte afastou os olhos dele e respirou fundo. O general observou as suaves curvas de seu corpo, sua garganta e o fino perfil de suas maçãs do rosto.

– Não se conhece as pessoas só por viver perto delas – disse Charlotte pensativamente –. Tudo o que se sabe é o aspecto que têm. – Recordou a Christina –. Tende-se a acreditar que a outros importam as mesmas coisas – prosseguiu-. É toda uma surpresa descobrir que às vezes não é assim. Eu não posso afastar os assassinatos de Devil's Acre de meus pensamentos, e, entretanto a maioria de meus conhecidos prefere não ouvir falar deles. As circunstâncias que os rodeiam nos recordam uma pobreza e injustiças intoleráveis. –Voltou o rosto para o general. Sentia-se um pouco perturbada. – Sinto. Parece-lhe impróprio que lhe fale disso?

– Parece-me ofensivo e aterrador que qualquer pessoa esteja disposta a ignorá-lo – respondeu ele com franqueza. Considerar-lhe-ia ela tão pomposo como Christina? Não podia ter muitos mais anos que sua filha. Percebeu isso com uma repentina pontada de dor. Corou e se sentiu coibido. A sensação de comodidade desapareceu. Estava-se comportando de um modo ridículo.

– General Balantyne? – disse Charlotte lhe tocando a manga –. Tenta ser amável comigo? Tem certeza de que não o ofendi ao falar desse assunto?

– É claro que tenho certeza – disse ele depois de um pigarro. Voltou a reclinar-se no assento, de onde não podia notar o calor que despedia Charlotte, nem cheirar o ligeiro perfume a lavanda e cabelos limpos, o doce aroma de sua pele. Em seu interior se agitavam violentas sensações que tentou reprimir depois de uns instantes de reflexão. Ouviu sua própria voz como se chegasse de muito longe –. Tentei falar desse tema. Brandy está muito preocupado, e Alan Ross também, mas as mulheres se desgostam. – Já começava a ficar pomposo. Entretanto, Charlotte não pareceu notá-lo.

– É natural que Christina fique nervosa – disse olhando-as mãos sobre o regaço –. Ao fim e ao cabo conhecia sir Bertram Astley e conhece a senhorita Woolmer, com quem aquele estava comprometido. Deve ser mais doloroso para ela que para você ou para mim. É lógico que a polícia se perguntasse se o senhor Beau Astley invejava a seu irmão para lhe desejar algum mal, pois ele vai herdar tanto o título como as propriedades. E é claro, a senhorita Woolmer também lhe tem em grande estima. Ouvi dizer que é um homem encantador. Christina deve sentir pena dele, como amiga sua. A situação de sir Beau tem que ser dolorosa pela perda sofrida e extremamente desagradável pelas suspeitas que sem dúvida expressarão os menos caridosos.

O general meditou naquelas palavras. Christina não tinha demonstrado simpatia alguma. De fato, tinha-lhe dado a impressão de que todo aquele assunto a exasperava. Claro que Charlotte atribuía a Christina os sentimentos que teria ela.

– E esse desgraçado do Max Burton tinha sido lacaio aqui – continuou Charlotte –. Embora seja normal que vocês não sintam interesse por seu destino, é desagradável pensar que qualquer ser humano a quem se conheceu pessoalmente termine dessa maneira.

– Como sabe você que era nosso lacaio? – perguntou o general, surpreso. Não recordava que se mencionara Callander Square nos jornais, nem nenhum detalhe da vida anterior do Max. Burton, além disso, era um sobrenome comum.

Charlotte corou e afastou a vista.

O general lamentou havê-la perturbado, mas a sinceridade, a capacidade de dizer o que realmente pensavam era da máxima importância para ele.

– Charlotte?

– Receio que prestei atenção a certas fofocas – admitiu Charlotte, um pouco na defensiva –. Emily e eu temos feito grandes esforços por conseguir chamar a atenção de pessoas influentes sobre as condições de algumas pessoas, sobre tudo com respeito à prostituição infantil. Aparentemente não podemos ditar leis contra, mas podemos agitar à opinião pública até que quem pratica tais abusos se encontrem em uma posição difícil. –Ergueu os olhos para olhar ao general, lhe desafiando a mostrar sua desaprovação. Nada do que ele pudesse dizer alteraria suas convicções.

O general sentiu crescer o júbilo em seu interior ao dar-se conta disso.

– Querida minha – disse com sinceridade –, não desejaria poder fazê-lo.

– Perdão? – Em seus olhos se lia o desconcerto.

– Não me está desafiando a tentar fazê-la trocar de opinião, a desaprovar o que diz?

O rosto de Charlotte se relaxou em um sorriso, e o general percebeu com horror o muito que desejava tocá-la. A união das mentes não bastava; havia coisas muito fortes e delicadas para ser transmitidas por um meio tão limitado como a fala. Sentimentos latentes nele durante longo tempo romperam as barreiras com uma grande agitação, destruindo o equilíbrio. O general desejava alongar aquela tarde até um futuro indefinido sem ocaso, para impedir que voltasse Augusta e, com ela, a normalidade e a solidão.

Charlotte o observava. Tinha-lhe visto o pensamento? A luz se apagou em seus olhos e voltou à cabeça.

– Só neste caso – disse em voz baixa –, porque sei que tenho razão. Há muitas outras coisas nas quais poderia ver-me obrigada a estar de acordo com você se demonstrasse que estou em um engano. Tenho meus defeitos!

O general não sabia a que se referia e seria uma descortesia perguntar.

Mas não achava que o dissesse para aparentar falsa modéstia. Certa sensação de culpa a angustiava.

– Todo mundo tem defeitos, querida minha – disse com tom afável –. Naqueles aos que amamos pesam mais as virtudes e são as que realmente importam. Não é que prefiramos ignorar qualidades menos atraentes. Conhecemo-las, mas não nos ofendem. Se as pessoas não tivessem debilidades nem carências, o que poderíamos lhes oferecer de nós mesmos que tivesse algum valor para elas?

Charlotte se levantou de repente e, por um momento, o general acreditou ver lágrimas em seus olhos. Sabia Charlotte o que estava pensando, o que tentava lhe dizer sem dizê-lo? Amava-a. Diziam-no suas palavras, ao menos tal como o via ele.

Seria imperdoável perturbá-la com uma confissão aberta. Tinha que comportar-se decorosamente custasse o que custasse. O general se ergueu em seu assento.

– Parece que Emily e você estão desenvolvendo um trabalho excelente – disse, rogando que sua voz soasse normal, não muito remota e pomposa.

– Sim. – Charlotte continuou lhe dando as costas, contemplando o jardim pela janela-. Lady Cumming-Gould também participa, e o senhor Somerset Carlisle, o membro do Parlamento. Acredito que já conseguimos alguma coisa. –virou-se por fim e sorriu-me alegro de que o aprove. Agora que já o fez, posso lhe confessar que me sentiria muito doída em caso contrário.

O general notou de novo o rubor nas faces, com uma mescla de dor e prazer. Levantou-se e recolheu as cartas do soldado. Não suportava a idéia de que Charlotte se fosse, mas agora era igualmente intolerável que ficasse. Não devia trair-se. A emoção que sentia era tão profunda e tão pouco confiável que precisava desculpar-se e ficar a sós.

– Por favor, leve-as e leia-as de novo se o desejar.

Charlotte compreendeu o convencionalismo perfeitamente. Aceitou as cartas e agradeceu.

– Cuidarei delas com o maior esmero – disse em voz baixa –. Tenho a impressão de que este soldado é nosso amigo. Agradeço-lhe sinceramente esta tarde memorável. Adeus, general Balantyne.

O general respirou fundo.

– Adeus, Charlotte. – Puxou o cordão da campainha.

Quando acudiu o lacaio, contemplou-a afastar-se com as costas erguidas e a cabeça alta. Permaneceu exatamente onde estava quando ela se despediu, tentando conservar sua presença, envolver-se em uma dourada carapaça antes que se extinguisse seu calor e voltasse a ficar só.

O general não se sentiu bem essa noite. Preferiu não achar-se em casa quando retornasse Augusta, e chegou tarde para o jantar.

– Não consigo compreender para que queria passear a estas horas – indicou ela, sacudindo levemente a cabeça-. Está escuro e é a noite mais fria do inverno.

– É uma noite formosa. Acredito que logo sairá à lua. – O general tinha saído a passear para adiar o momento de achar-se com sua mulher e ter que sair de seu devaneio para voltar a realidade. Seria uma crueldade tentar explicar a ela; não o compreenderia. Decidiu abordar outro tema desagradável –. Augusta, acredito que seria bom que falasse com a Christina, que a aconselhasse.

Ela arqueou as sobrancelhas e ficou imóvel, com a colher de sopa a meio caminho da boca.

– Ah, sim? E sobre o que?

– Sobre seu comportamento com o Alan.

– Acha que está faltando a seu dever?

– Não é tão simples. – Meneou a cabeça –. Mas o dever não gera amor.

Christina sempre o contraria, sempre tem algum comentário mordaz. Não há doçura nela. É muito diferente da Jemima, por exemplo.

– Naturalmente. – Augusta levou a colher à boca e sorveu a sopa com elegância-. Jemima foi educada para ser preceptora. Era de esperar que se mostrasse mais obediente e agradecida. Christina é uma dama. – Não era necessário lhe recordar que ela era filha de um conde e que o pai do general, em troca, não possuía distinção alguma salvo a militar.

– Estou pensando em sua felicidade – disse ele com firmeza –. Pode-se ser uma princesa e nem por isso inspirar amor. Faria um favor a si mesma se tentasse prazer ao Alan um pouco mais e não desse por sentado seu amor. Alan não é homem que se deixe deslumbrar pelas aparências, nem seu afeto aumentará pelo fato de saber que outros homens a acham atraente.

Augusta empalideceu e o braço ficou paralisado, com os dedos rígidos em torno da colher.

– Ocorre-lhe algo? –perguntou o general, desconcertado –. Augusta!

– Não... – piscou –, estou perfeitamente. Engasguei-me com a sopa, isso é tudo. O que quer dar a entender sobre a Christina? Sempre foi coquete. É natural em uma mulher formosa. Não acredito que Alan espere que seja a exceção.

– Você fala de costumes sociais. – por que lhe custava tanto compreender –. Eu lhe falo de amor, de ternura, de compartilhar.

Augusta abriu os olhos com assombro e certa ironia que o general achou desconcertante.

– Ficou romântico, Brandon – disse –. Não esperava nada tão... Tão juvenil de você!

– Quer dizer ingênuo? Ao contrário, as ingênuas são Christina e você, se acreditam que uma relação pode sobreviver sem sentimentos sinceros e algum ou outro sacrifício da razão em nome da bondade. Falando se pode convencer às pessoas para que aceite um trato comercial, mas não para que ame.

Augusta permaneceu imóvel, meditando aquelas palavras e o que ela devia responder.

– Acredito que seria uma intromissão de nossa parte – disse por fim –. Christina é uma mulher casada. Sua vida privada é responsabilidade do Alan, e você usurparia seus direitos se oferecesse conselho a uma mulher, sobre tudo em questões tão pessoais.

O general se surpreendeu. Aquela era a última resposta que teria esperado dela.

– Quer dizer que você ficaria à margem, contemplando como ela destrói seu matrimônio, porque considera que seria uma intromissão lhe dar um conselho? Não deixou de ser nossa filha só porque se casou com Alan, nem deixamos de querê-la!

– É claro – disse Augusta com impaciência –. Mas se tiver em conta a lei, assim como a prática da vida diária, admitirá que agora Alan seja o responsável pela Christina. Para uma mulher, o matrimônio supõe uma mudança de situação muito maior do que parece apreciar. O que ocorrer entre eles é privado, e seria um grave engano que tentássemos nos intrometer. – Esboçou um sorris o-. Teria gostado, Brandon, que meu pai lhe tivesse dado conselhos sobre seu comportamento para comigo?

– Eu lhe falava de aconselhar Christina, não Alan!

– Aceitaria isso você de seu próprio pai?

A idéia era inteiramente nova para ele. Jamais lhe tinha ocorrido que alguém pudesse preocupar-se com os aspectos mais pessoais de sua vida. Era horroroso, ofensivo!... Mas aquilo era diferente. Christina era sua filha, e ele queria que Augusta a aconselhasse, como mãe, para que emendasse sua conduta e se evitasse muita infelicidade.

Abriu a boca para indicar tudo isto, mas adivinhou que sua mulher pensava exatamente igual. Sorriu ironicamente e a olhou nos olhos.

– Não me teria importado que sua mãe lhe tivesse aconselhado que se entregasse um pouco mais ao afeto e menos ao dever, se tivesse considerado necessário. De fato, não tenho a menor idéia de se o fez ou não!

– Não o fez! – disse Augusta com aspereza –. Nem tampouco eu darei conselhos a Christina a menos que ela me peça isso. O contrário seria tornar claro que sei o que ocorre entre eles, e exigiria dela uma explicação sobre coisas extremamente pessoais. Não quero colocá-la nessa situação, nem desejo que pense que sou uma intrometida.

Ao general tinham acabado os argumentos. Discutiam com palavras; nem sequer falavam dos mesmos sentimentos. Deixou que o silêncio pusesse fim ao tema, e não voltou a trazê-lo à tona. Ele não podia falar com Christina; não saberia como começar nem como evitar que risse dele ou se sentisse ofendida. Mas podia falar com o Alan Ross.

Convencido de que não podia esperar que lhe apresentasse uma oportunidade, o general foi ver o Alan Ross no dia seguinte, a uma hora em que lhe pareceu provável que Christina tivesse saído. De qualquer forma, se tivesse a má sorte de encontrá-la em casa, não seria estranho que se desculpasse e conversasse a sós com Ross.

Não tinha muita vontade de ter aquele encontro, pois tinha abandonado toda idéia de falar com indiretas. Como seus próprios sentimentos tinham sido despojados do amparo de rituais e palavras, contemplou com surpreendente tranqüilidade a perspectiva de falar com franqueza.

Christina não se achava em casa. Alan Ross lhe deu as boas-vindas e conduziu a seu estúdio, onde estava escrevendo cartas. Era um aposento agradável, de ar masculino, e obviamente um lugar onde seu dono passava grande parte de seu tempo e guardava pertences pessoais que usava freqüentemente.

Trocaram comentários corriqueiros durante uns minutos. Normalmente se trataria de uma cômoda introdução para qualquer dos doze temas de mútuo interesse, mas naquele dia o general era muito consciente da razão de sua visita para limitar-se a uma mera camaradagem. Depois que o lacaio deixou a bandeja com o xerez e copos, voltou-se para o Ross.

– Conhecia bem ao Bertie Astley? – perguntou.

– Não muito – respondeu empalidecendo.

O general calou, pois não sabia muito bem como continuar. Havia dor atrás da resposta cortês do Alan, a lembrança da Christina rindo, paquerando, divertindo-se? Por alguma estranha razão, imaginava a ambos os Astley elegantes e engenhosos, divertidos de um modo em que Alan Ross não seria jamais. Era um homem mais sério e profundo, e imensamente mais difícil de ganhar.

– Eu não o tinha visto jamais – prosseguiu Balantyne –. Acredita que se encontrava por própria vontade onde o acharam?

Ross sorriu e olhou ao general com seus olhos azuis.

– Surpreender-me-ia. Pareceu-me muito normal nas ocasiões em que o vi.

– Quer dizer que paquerava com umas e outras?

O sorriso do Ross se fez mais amplo e tolerante.

– Não mais do que o normal em um homem jovem que começa a notar o nó do matrimônio fechando-se em torno de seu pescoço e deseja saborear a liberdade enquanto puder. A mãe da senhorita Woolmer exerce um temível controle.

Balantyne recordou suas últimas semanas de liberdade antes de pedir a mão de Augusta a seu pai. Sabia então que o faria claro está, mas mesmo assim tinha sido agradável brincar com a idéia contrária e imaginar toda sorte de possibilidades das quais jamais desfrutaria.

Olhou a seu genro e se encontrou com seus olhos. Entendiam-se perfeitamente.

– Suponho que Christina está muito afetada por sua morte. – Era mais uma observação que uma pergunta. Aquela possibilidade explicaria a tensão que via nela. Christina detestava o luto e assimilaria a pena a sua própria maneira.

– Não especialmente, embora o apreciasse muito – respondeu Ross, que havia voltado o rosto com os músculos contraídos. – Tem um grande apreço por muitas pessoas – acrescentou em voz baixa.

O general notou que começava a suar. Apreço? Era esse um eufemismo para algo muito mais grosseiro, mais promíscuo? Ou eram mais seus próprios sentimentos por Charlotte, o intenso desejo físico que acendia seu rosto só recordando-o, o que tinha enchido sua cabeça de desagradáveis idéias sobre a Christina? Tinha assaltado também a ela essa paixão, mas sem o amor?

Olhou o rosto do Ross, voltado ainda para o fogo. Era um rosto reservado, como tinha observado sempre, de ossos fortes, mas boca vulnerável. Bisbilhotar em seus sentimentos seria um ato imperdoável.

Naquele momento, o general acreditou compreender o que Ross nunca lhe diria: que Christina era uma libertina. Como tinha chegado a sê-lo, jamais saberia. Possivelmente Ross esperava muito dela, uma maturidade, uma delicadeza da qual ela não era capaz. Possivelmente a tinha comparado com a Helena Douram. Um engano; não se devia comparar jamais uma mulher com outra. Entretanto, Meu Deus, que fácil é quando se amou! Acaso não guardava ele em uma curva de seus pensamentos a lembrança dolorosa e brilhante dos olhos de Charlotte olhando-o, lembrança que seria já para sempre uma comparação com qualquer outra mulher e uma prova irrecusável?

Devia pensar na Christina. De recém casado estaria sem dúvida confusa, doída. Não saberia por que não tinha conseguido agradar a Ross. Um homem tinha que ensinar a sua mulher com doçura, saber esperar até que ela aprendesse uma vida totalmente nova... A parte física... Seus pensamentos se interromperam. Ou acaso não era nova para a Christina? Recordou a época dos assassinatos no Callander Square, coisas sobre as quais Augusta não tinha querido falar. Ela se tinha ocupado de tudo com eficácia e jamais lhe tinha contado nada.

Procurava Christina em outros homens a segurança se soubesse desejada porque o marido ao que amava a tinha rechaçado? Ou era simplesmente uma mulher vã e imoral para que um só homem não bastasse?

Mas por forte que fosse o desejo, sem dúvida a fidelidade...

Que tipo de fidelidade tinha ele por Augusta? Era a segurança de ferir Charlotte o que lhe tinha impedido de ultrapassar-se no dia anterior, o que o tinha impedido de tocá-la, abraçá-la e... E o que? Tudo, algo! E também o egoísmo, o medo à rejeição que veria no olhar de Charlotte, a seu horror quando compreendesse o que ele sentia em realidade. Em nenhum momento tinha pensado em Augusta.

Sobre tudo, era consciente de que Charlotte teria sofrido de maneira irreparável ao conhecer as tormentas que o tinham agitado. Perdê-la-ia; sem dúvida não voltaria jamais para Callander Square, não poderia estar com ela a sós para compartilhar sequer a ternura da amizade. Pensaria ela que era ridículo, ou pior ainda, digno de pena? Afastou este pensamento; não havia nada absurdo em amar.

Mas e Christina? Tinha herdado dele aquela luxúria traiçoeira? Jamais lhe tinha falado de fidelidade nem de modéstia; esse tipo de coisas as tinha deixado a Augusta. Era dever de uma mãe instruir a sua filha sobre seu comportamento no matrimônio. Se tivesse feito isso teria sido uma indelicadeza de sua parte, motivo unicamente de confusão.

Mas poderia lhe haver falado de castidade, de uma simples moralidade, e jamais o tinha feito. Possivelmente devia a Christina mais coisas do que achava? E só Deus sabia o que devia ao Ross!... Ergueu o olhar e viu os olhos do Ross fixos nele, em expectativa. Era possível que adivinhasse o que acontecia em sua cabeça?

– Conhece a Adela Pomeroy – disse Ross franzindo o sobrecenho, como se isso o desconcertasse.

– Adela Pomeroy? – repetiu o general. Esse nome não lhe dizia nada.

– A mulher do último homem assassinado em Devil's Acre, o professor – explicou Ross.

– OH. – Refletiu uns instantes –. Como demônios chegou a relacionar-se com a mulher de um professor?

– É uma mulher formosa – respondeu Ross com tristeza –. E aborrecida. Acredito que procurava diversão em... – fez um leve gesto – em uma companhia mais ampla.

O que queria dizer com isso? Certamente milhares de mulheres se aborreciam de vez em quando. Uma mulher não conseguia relacionar-se com pessoas de uma classe social mais alta a menos que fosse realmente formosa e estivesse disposta A... Então, Adela Pomeroy era outra libertina? Mas, se fosse assim, por que tinham assassinado ao Ernest Pomeroy e não a ela? E Bertie Astley... Era o amante da Adela? E que relação tinha o médico com todos eles?

Eram todos vítimas do mesmo lunático? Ou possivelmente um dos assassinatos feito a imagem e semelhança dos outros, aproveitando uma oportunidade de ouro para herdar um título e uns bens, ou para desfazer-se de um marido aborrecido, O... – começou a suar só pensando-o – para vingar a infidelidade de uma esposa?

– Como era a mulher do médico? – perguntou com voz rouca, e engoliu em seco.

– Não tenho a menor idéia – respondeu voltando o rosto –. Por quê?

– Por nada em especial – disse o general com o rosto contraído –. Pensava... – acrescentou com escassa convicção. Desprezou aquele pensamento; não era digno de tal homem.

Ross lhe ofereceu xerez, mas o general o recusou. O calor do xerez não lhe bastava. Observou que tampouco Ross bebia. Quanto tempo fazia que conhecia a verdadeira natureza da Christina? Não podia haver-se dado conta quando se casou com ela. Tinha sido um processo lento e doloroso? Ou uma súbita revelação, como receber uma ferida?

Olhou ao Ross. Seria imperdoável discutir sobre tudo aquilo com ele. Aquela dor era estritamente pessoal, e por muito que adivinhasse o general devia guardar silêncio. Não suportava a idéia de que Ross soubesse, sequer por um instante, os pensamentos que tinha tido.

O general queria fugir, existir em algum país de fantasia onde pudesse viver com Charlotte, falar com ela, ver seu rosto, tocá-la, aprender a compartilhar com ela uma multidão de coisas.

Sem dúvida Alan Ross gostaria de achar-se no mesmo lugar com alguém impoluto e generoso. Mas conhecia seu dever e até o momento tinha tido o valor de cumprir com ele.

O general permanecia imóvel. Procurava desesperadamente algo que dizer, algo para comunicar ao Ross que não estava só, que, longe de sentir pena dele, admirava-o e sentia por ele uma estima possivelmente tão próxima ao amor como podia dar-se entre homem e homem. Mas não achou palavras adequadas; todas se tinham usado muito à ligeira. Nenhuma delas transmitia a realidade da dor.

Os dois homens continuaram sentados durante longo momento com a licoreira cheia de xerez entre ambos e os troncos ardendo na lareira. Finalmente, o general ficou em pé. Sem dúvida Christina demoraria pouco em voltar para casa e não desejava vê-la.

Despediu-se com as mesmas palavras corriqueiras de sempre. Ross lhe replicou de igual maneira. Mas em um momento dado, enquanto estreitavam a mão, o general teve a sensação de que possivelmente o que não se havia dito também se entendera, ao menos o bom. E haveria outras ocasiões, outras oportunidades de demonstrar sua amizade, de permitir ao Ross dar-se conta de que o apreciava de verdade, mas não cegamente, mas sim porque sofria a mesma solidão, as mesmas ataduras do dever que o destruiriam se se desprendesse delas.

– Boa tarde, senhor – disse Alan com um leve sorriso –. Obrigado por vir para ver-me.

–Bom tarde, Alan. Foi um prazer vê-lo.

Nenhum dos dois mencionou às mulheres. Não trocaram mensagens nem saudações.

O general saiu à rua. Não tinha pego a carruagem. Preferia ir só, caminhar com o vento gelado no rosto e saber que demoraria mais em chegar a casa.

 

Charlotte não disse a seu marido que havia tornado a ver o general Balantyne. De fato, não lhe tinha falado concretamente de nenhuma de suas visitas, embora soubesse que ele estava a par. Desde que o tinham levado a casa com o rosto cinzento e as roupas ensangüentadas, Charlotte se tinha dado conta de que Pitt estava tão ansioso de caçar o assassino de Devil's Acre que correria riscos estúpidos. Ainda lhe gelava o sangue ao recordar o perto que tinham estado esses riscos de lhe custar a vida. Normalmente era algo no que ela não queria pensar: a possibilidade de que o ferissem, ou inclusive de que o matassem. Dar voltas a essas idéias era muito aterrador e nada podia fazer ela para mudar as coisas.

Sabia que Pitt desaprovava que se mesclasse no caso, embora fosse tão remotamente como visitando os Balantyne. Para ser sincera, sentia-se um pouco culpado por ter desfrutado levando os vestidos de Emily, dançando em salões cheios de luz, música e vivas cores. Era maravilhoso luzir-se, embora fora só um pouco!

Sinceramente gostava do general Balantyne. Isso era o pior e o mais imprudente que tinha feito. Jamais tinha acreditado que ele pudesse passar de uma mera amizade para chegar a sentimentos mais profundos. Naturalmente, desejava que a admirasse, que a considerasse formosa e excitante; mas não tinha acreditado que tudo isso se cumprisse.

Entretanto, tinha visto em seu rosto esse olhar terno e intensamente pessoal, fixo e nu. Charlotte soube então que já não se tratava de um flerte social de que podia entrar ou sair a sua conveniência.

É claro, não podia contar a Pitt; isso estava fora de toda dúvida. Quando seu marido chegou aquela noite cansado e com frio, com o flanco tão dolorido que mal podia mover-se, serviu-lhe a sopa em uma bandeja, na saleta, e aguardou em silêncio enquanto comia.

Por fim a curiosidade e a preocupação venceram ao bom senso e, como de costume, pôde mais a vontade de falar.

– Descobriu algo que se relacione a todas as vítimas? – perguntou, tentando soar despreocupada.

Pitt a olhou com ceticismo e afastou a bandeja.

– Obrigado, estava muito boa.

Charlotte aguardou.

– Não! – disse ele energicamente –. Todos tinham seus assuntos que atender e Devil's Acre, mas de momento não encontrei a ninguém que os conhecesse todos.

– Todos tinham assuntos? – perguntou ela, procurando não excitar-se. Isso era novo –. Max tinha um bordel. O que faziam os outros?

– Pinchin praticava abortos...

– Para o Max? – disse Charlotte, interrompendo-o com veemência.

– Não, que eu saiba, mas é possível.

– Então possivelmente alguma mulher da alta sociedade.. . – deteve-se. Além da idéia não ser muito boa, delatou-se a si mesmo demonstrando interesse, o que levaria seu marido a deixar de lhe dar informação –. Sinto muito.

– Aceito. – Pitt esboçou um lento sorriso. Fechou os olhos e se reclinou no assento.

Charlotte aguardou pacientemente fazendo um grande esforço. Adotou uma expressão serena e contou até cem antes de voltar a falar.

– O que tem Pomeroy? Não me diga que estava ensinando às prostitutas a fazer as contas.

O sorriso do Pitt se alargou a seu pesar, mas logo se desvaneceu completamente.

– Não; era pedófilo... Pobre e desventurado bode!

Charlotte contou cem segundos mais.

– OH – disse por fim.

– E Bertie Astley era o dono de todo um quarteirão de casas, fábricas e uma destilaria de genebra – acrescentou-. Agora já sabe tudo e não há nada que possa fazer.

Charlotte tentou imaginar ao Pomeroy. Que classe de homem desejava os corpos imaturos de umas meninas que só podiam desejar segurança, aprovação e consolo? Elas não lhe fariam nenhuma pergunta, não se mostrariam ávidas nem críticas. Certamente, bem sabia Deus que jamais ririam dele quando se mostrasse torpe ou incapaz.

E elas, temendo cada noite que um homem novo lhes acariciasse o corpo, excitando-se cada vez mais de uma estranha forma, culminando em um ato íntimo, violento e desesperado, no qual elas não participariam nem poderiam compreender? Charlotte estremeceu apesar do fogo da lareira e se encurvou como se a ameaçassem.

– Esquece-o – disse Pitt em voz baixa de seu assento, olhando-a –. Pomeroy está morto. E você não conseguirá deter os pedófilos...

– Sei.

– Então, esquece-o.

Mas Charlotte não podia esquecer. Logo que Pitt saiu de casa na manhã seguinte, deu ao Gracie as instruções precisas para o resto do dia, vestiu a capa que mais a abrigava e caminhou até a parada do ônibus público para pegar o primeiro que passasse em direção ao Paragon Walk.

– E então? –perguntou Emily assim que chegou –. O que descobriu?

Charlotte lhe explicou que tinham apunhalado ao Pitt. Não tinha visto sua irmã desde o acontecido.

– É terrível! OH, querida minha, sinto-o seriamente! Está bem? Necessita alguma coisa?

– Não, obrigada. OH... – Era uma oferta muito boa para recusá-la. – Sim, se tiver uma garrafa de bom Porto.

– Porto?

– Sim, é um magnífico reconstituinte, sobre tudo com este tempo.

– Não preferiria brandy? – Emily se sentia generosa, e gostava de Pitt.

– Não, obrigada. O Porto servirá. Mas que sejam duas garrafas, se quiser.

– Descobriu algo? Foi o açougueiro de Devil's Acre? Chegou a reconhecê-lo?

– Acredita que foram só uns ladrões vulgares. Mas agora sabe muito mais coisas. – Explicou-lhe as razões que tinham Pinchin e Pomeroy para achar-se em Devil's Acre. Depois de ouvi-las, Emily guardou silêncio durante um momento.

– Talvez isso explique por que Adela Pomeroy procurava amantes entre os libertinos da alta sociedade – disse por fim –. Pobre mulher. Embora, fosse o que fosse seu marido, isso não lhe dava direito a entregar-se a um ser como Max!

– Tem certeza de que Adela Pomeroy procurava amantes entre os libertinos da alta sociedade? – perguntou Charlotte, mas na hora lamentou havê-lo feito. Temia a resposta –. Embora fosse verdade, isso não significa que tivesse nada que ver com o Max.

– Não, já sei. Mas nestes últimos dias tive muito trabalho para me assegurar de quem são esses libertinos.

– Emily! Não haverá...?

– Certamente que não! –respondeu Emily com frieza-. O que me leva a outro assunto. Investigar é uma coisa, Charlotte, mas seu comportamento com o general Balantyne foi totalmente irresponsável. Critica a Christina Ross por paquerar, com toda justiça, mas a única diferença entre você e ela é que você limita suas atenções a um só homem! E nem por isso é melhor. De fato, dado o prejuízo que pode causar, é muitíssimo pior.

Charlotte sentiu o calor da vergonha e não foi capaz de olhar a sua irmã no rosto. Sabia muito bem que tinha cometido um grande engano, mas ouvir Emily dizê-lo não fazia mais que agravar sua culpa.

– Foi sem querer – se desculpou.

– Bobagens! – replicou-lhe Emily –. Queria um pouco de aventura e aproveitou a situação. Não adivinhou qual seria o resultado porque não se incomodou em tentar isso!

– Bom, se é tão esperta, por que não me disse isso? –quis saber Charlotte, engolindo em seco.

– Porque eu tampouco o vi. Como ia saber eu que se comportaria como uma autêntica idiota? Antes não foi capaz de paquerar nem para salvar a vida!

–Eu não paquerei!

– É claro que sim! – Emily suspirou e fechou os olhos –. Possivelmente é muito idiota para se dar conta de seu próprio êxito, admito-o. Mas não voltarei a levá-la a nenhum lugar. É um completo desastre.

– Sim, o fará, porque não poderia suportar que a deixasse à margem quando se produzir um novo assassinato na alta sociedade e Thomas se for encarregado do caso.

Emily a olhou.

– Sei que me levei mal – prosseguiu Charlotte –. Não me ajuda em nada me dizendo isso. Apagá-lo-ia se pudesse.

– Mas não pode! Mais vale que ao menos lhe encontremos uma utilidade. Que mais sabe? Dei voltas ao assunto e não estou convencida de que todos os assassinatos fossem cometidos pela mesma pessoa. Ou, o que é pior, de que todos importassem.

– O que quer dizer? Como não vai importar um assassinato?

– Quero dizer que possivelmente só um deles foi importante para o assassino – respondeu Emily devagar –. E se Beau Astley queria matar a seu irmão pelo dinheiro? Acredito que há o bastante. Se tivesse matado ao Bertie de um modo comum, ele teria sido o primeiro suspeito. Mas se Bertie era só uma de várias vítimas, e todas as demais não tivessem relação alguma com o Beau...

– Isso é abominável!

– Sim, sei. E sempre gostei de Beau. Mas os assassinos, embora sejam uns lunáticos, não têm por que ser desagradáveis. Desgraçadamente, muitas pessoas absolutamente dignas e sadias o são.

Tristemente, Charlotte sabia que estava certa.

– Bertie Astley era o proprietário de um quarteirão em Devil's Acre. Daí sai o dinheiro da família Astley.

– OH. – Emily deixou escapar um suspiro –. Suponho que deveria havê-lo imaginado.

– Não vejo no que pode nos ajudar.

– Quem acha Thomas que foi o assassino?

– Não me quer dizer. isso

Emily meditou uns instantes.

– Pergunto-me... – disse Charlotte.

– O que?

– Não tenho certeza. – Pensava na Christina.

Se esta tinha sido também uma das mulheres do Max: jovem, ávida e insatisfeita porque Alan Ross não lhe dava o amor apaixonado e total que ela exigia, porque seu autêntico eu permanecia sempre fora de seu alcance, não teria procurado ela experimentar outros homens, ficando apanhada assim em uma aventura atrás de outra, em uma busca interminável? Se Ross o tinha descoberto... E por que não ia descobri-lo? Sem dúvida seria muito simples, uma vez despertassem suas suspeitas.

– Não seja estúpida – disse Emily –. É claro que está certa. Pode ser que não tenha razão, mas sabe muito bem o que pensa!

– Não é certo.

– OH, Charlotte! – A expressão de sua irmã se suavizou –. Não pode evitar a idéia, agora que se deu conta. É claro que poderia ser Balantyne.

– O general! – exclamou Charlotte, horrorizada –. OH, não! Não pode ser!

– Por que não? – disse Emily com suavidade –. Se Christina for uma das mulheres do Max, seu pai não poderia suportar a vergonha. Está habituado ao sacrifício e a disciplina. Os soldados que se desonram a si mesmos, pegam uma arma e procuram a saída mais honorável. Em certo modo consideram que assim equilibram a balança, pois depois são objeto de uma espécie de misterioso respeito. O general seria capaz de fazer algo assim pela Christina, não acha?

– Mas Christina não disparou em ninguém! Por que ia ele matar e mutilar a todos outros? Não tem sentido! – Era como clamar no deserto, e ela sabia.

– Certamente que tem sentido. – Emily pôs a mão sobre o braço de sua irmã –. Combateu na África, não é verdade? Terá visto todo tipo de rituais selvagens e de atrocidades. Possivelmente não sejam tão terríveis para ele. Possivelmente Max voltou a procurar a Christina, viu-a em alguma festa ou em algum outro lugar e a abordou, e ela se converteu em uma de suas mulheres. Esse seria um bom motivo para matar ao Max e despedaçá-lo.

– E por que ao Bertie Astley? – A pergunta era tão idiota como óbvia a resposta: porque era um amante da Christina. Emily não se incomodou sequer em responder.

– Muito bem, então o que me diz do Pinchin? – Pode ser que lhe fizesse um aborto e talvez agora já não possa ter filhos.

– E Pomeroy? O que me diz dele? Esse só gostava das meninas!

– Não sei. Talvez estivesse a par de tudo. Talvez tivesse visto algo.

– Não acredito. Não acredito que o general Balantyne fizesse... Que pudesse fazê-lo!

– Pois claro que não acredita nisso, porque não quer. Mas, querida minha, às vezes as pessoas que mais queremos podem fazer coisas horríveis. Deus sabe que inclusive nós as fazemos: coisas desagradáveis, estúpidas e lamentáveis. Possivelmente tudo surgisse de um pequeno mal-entendido até converter-se...

Charlotte respirou fundo e meneou a cabeça. Notava os soluços que lutavam por sair de sua garganta.

– Não acredito. Pôde ser Alan Ross. Ele tinha mais motivo e é mais provável que o descobrisse. Ou talvez seja mais simples e o assassino foi o marido de qualquer outra mulher. Temos que averiguar mais! Então poderemos demonstrar que não foi o general nem Alan Ross. Quem mais faz parte desse círculo de mulheres de moral relaxada?

– Muitas. Disse-lhe isso já uma centena de vezes.

– Então temos que descobrir quem são seus maridos, seus pais, irmãos e amantes, e estabelecer depois onde estavam nas noites dos assassinatos.

– Não seria mais fácil que Thomas se encarregasse disso? – raciocinou Emily.

– Não posso lhe dizer o que estamos fazendo. Já está bastante zangado com o pouco que sabe. Não é necessário que descubra onde estavam todas as noites, qualquer das quatro bastará!

– Ah, muito obrigado! Isso facilita as coisas, é uma bagatela! E o que vai fazer você enquanto isso?

– Vou ver o general Balantyne. Demonstrarei que não foi ele, nem Alan Ross.

– Charlotte, tome cuidado!

Esta lhe lançou um olhar fulminante.

– E o que acha que vão fazer-me? O pior que pode acontecer é que me mintam. Dificilmente poderiam me expulsar da alta sociedade, pois não pertenço a ela. Você começa a investigar por sua conta. Se enrolar ao George, fará ao menos a metade do trabalho. Bom dia.

Charlotte chegou à casa dos Balantyne à hora mais apropriada para ir de visita, em parte pela conveniência de que a recebessem, mas sobre tudo porque provavelmente acharia só ao general. Lady Augusta devia ter saído de visitas.

Abriu-lhe a porta o lacaio, que a olhou em expectativa.

– Boa tarde – disse ela. Por amor de Deus, tinha que recordar que ali a conheciam como senhorita Ellison! Tinha estado a ponto de apresentar-se como senhora Pitt. Era uma mentira que cedo ou tarde teria que explicar, mas nesse momento lhe era muito doloroso enfrentá-la.

– Boa tarde, senhorita Ellison – disse o lacaio educadamente. Não se fixou em suas roupas simples nem em suas botas molhadas de ponteira gasta, ou ao menos não o demonstrou –. Lady Augusta não se encontra em casa, mas o general sim, e também a senhorita Christina. – Abriu a porta de par em par, convidando-a a entrar sem palavras.

Charlotte aceitou rapidamente, esperando que o lacaio atribuísse sua pressa ao vento cortante e a forte nevada mais que a uma impaciência imprópria por visitar.

– Obrigada – disse Charlotte, esperando que seu tom salvasse sua dignidade –. Estaria muito agradecida se pudesse falar com o general, se for possível. – Tinha pensado já em uma desculpa –. Trata-se das cartas da guerra peninsular que me emprestou.

– Certamente, senhora, se quiser me acompanhar.

O lacaio fechou a porta e a conduziu a saleta. Estava vazia, mas na lareira ardia um bom fogo. Presumivelmente o general se achava na biblioteca e talvez Christina estivesse com ele. Aquela era uma contingência com a que Charlotte não tinha contado. Preferia não falar em presença da Christina. Com sua perspicácia, seria muito rápida em compreender; além disso, tinha um grande sentido da posse sobre seu pai. Tentaria dar a visita por concluída assim que o permitisse o decoro e acabaria convertendo-se em uma lamentável batalha de engenhos. Teria que aborrecê-la com detalhes sobre a soldadesca para que se fosse.

O lacaio saiu. Minutos depois, retornou e a conduziu à biblioteca. Graças a Deus, Christina já se fora, possivelmente porque a idéia de que Charlotte e suas cartas lhe eram muito tediosa inclusive para incomodar-se em falar com ela.

O general Balantyne estava de pé, de costas à lareira. Estava tenso, com os olhos fixos na porta, esperando-a.

O lacaio desapareceu discretamente, deixando-os a sós.

– Charlotte... – O general não sabia se avançar a seu encontro ou não. De repente se comportava torpemente, seus sentimentos estavam tão perto da superfície que eram perturbadores, inclusive aterradores.

Charlotte tinha preparado um comentário sobre as cartas para sair do embaraço. Já não era necessário; não era momento para andar-se com rodeios. Tinha a boca seca e um nó na garganta.

– O lacaio disse algo sobre as cartas. – O general tentava ajudá-la –. Descobriu você algo?

Charlotte evitou seus olhos e olhou o fogo.

Então o general se deu conta de que Charlotte tinha frio e estava molhada e de que ele recebia todo o calor da lareira. Afastou-se rapidamente com expressão mais relaxada.

– Venha e esquente-se.

Ela sorriu. Em qualquer outro momento, uma ação como aquela seria significativa. Durante toda sua vida, Charlotte se tinha acostumado a que um homem se colocasse automaticamente no lugar mais próximo à lareira.

– Obrigado. – aproximou-se e notou o agradável comichão do calor na pele. Em um momento penetraria através da saia e das botas molhadas para chegar a seus intumescidos pés.

Não tinha sentido adiar por mais tempo.

– Não vim pelas cartas. – Permaneceu de frente às chamas, contemplando-as, evitando olhá-lo. O general se achava muito perto dela e a última coisa que desejava Charlotte era encontrar-se com seus olhos –. Vim para falar dos assassinatos de Devil's Acre.

Produziu-se um silêncio. Por um instante, a ansiedade de Charlotte a tinha feito esquecer de Pitt. Balantyne tinha suposto que seu matrimônio tinha fracassado, porque Emily a tinha apresentado como senhorita Ellison e não o tinha desenganado. Agora pensava nisso com vergonha. Voltou-se.

O general continuava olhando-a com uma desesperada ternura que era vulnerável a qualquer ferida. Entretanto, não dizer-lhe agora seria indesculpável. Cada vez que ia vê-lo era pior. Nada podia fazer para aliviar a ferida. Tudo o que tentasse – amabilidade, vergonha, piedade – só serviria para humilhá-lo ou fazer que se sentisse mais perturbado.

Charlotte começou a falar com rapidez antes que tivesse tempo de voltar atrás.

–Não tenho nenhuma desculpa, salvo que me importa muito achar ao assassino desses homens em Devil's Acre, e me preocupa todo o sistema de prostituição Y...

– A mim também! – disse ele com ardor. Então se deu conta da agonia que expressava seu rosto –. Charlotte... O que lhe ocorre? – Não se moveu, mas ela se sentiu como se aproximou, tão intensa era sua concentração nela.

– Estive-lhe mentindo. – Usou a palavra mais dura e corrosiva. Negá-lo era uma covardia. Também precisava ferir a si mesma. Tropeçou com seus olhos –. Emily me apresentou como senhorita Ellison porque desejava que você me considerasse uma pessoa alheia à investigação. E eu o permiti, porque Max tinha trabalhado nesta casa e pensamos que poderia me inteirar de algo aqui. – Mesmo assim, não mencionou suas suspeitas sobre a Christina.

Lentamente, a revelação de uma nova dor se apoderou dele, depois se converteu em uma vergonha hiriente. O general tinha afastado ao Pitt e todo o episódio de seu matrimônio com Charlotte de seus pensamentos. Tinha desejado algo, ou o tinha sonhado? Agora tudo caía em pedaços a seus pés.

– Continuo casada com o Thomas Pitt – sussurrou Charlotte –. E sou feliz.

Ao general lhe ardia o rosto. Voltou-o por um momento, desejando ocultar-se.

Charlotte o tinha utilizado. Agora sentia uma vergonha amarga e dor, porque apreciava ao general. Importava-lhe muito o que opinasse dela. Se a desprezasse pelo que tinha feito, sentiria essa mancha sobre si para sempre.

– Estou muito envergonhada – murmurou. Devia fingir que não sabia que estava apaixonado por ela? Salvaria assim o orgulho do general, lhe permitindo retirá-lo como se não tivesse existido? Ou serviria somente para insultá-lo até mais ao rebaixar o que era o maior presente que podia lhe fazer?

Tentou ler seu rosto, mas tudo o que viu foi a ternura de seus olhos empanados por uma ardente confusão. A luz do abajur se refletia nas maçãs do seu rosto. Charlotte desejou tocá-lo, abraçá-lo... Mas isso era ridículo! Teria ofendido-o, talvez inclusive repugnado. O general não compreenderia que, embora Charlotte amasse Pitt, também sentia por ele algo individual e profundo. Talvez tomasse inclusive por piedade e isso seria o mais terrível de tudo.

–Menti por omissão – continuou para romper o silêncio –. Não disse nenhuma falsidade! – Soava como uma desculpa.

– Por favor, não me dê explicações. – O general conseguiu falar por fim com a voz um pouco rouca. Respirava com dificuldade. – Também me interessam os assassinatos... E Devil's Acre. Já supunha que não tinha vindo pelas cartas. Para que veio?

– Mas as cartas me interessam! – protestou Charlotte como uma menina, chorando. Sorveu as lágrimas e procurou seu lenço. Soou-se o nariz e afastou o rosto-. Tenho uma informação muito preocupante. E... Pensei que desejaria conhecê-la imediatamente.

– Eu...? – O general tinha compreendido que havia algo mais e que isso também lhe doeria. O instinto lhe fez afastar-se um pouco dela, lhe permitindo sentar-se sem que parecesse que o desprezava. Era uma delicadeza de sentimentos que ele não tinha conhecido até então –. O que descobriu? – perguntou rapidamente.

– Max tinha duas casas. – Duvidou em usar a palavra "prostíbulo". Era muito feia, muito próxima naqueles momentos. O general não pareceu compreender o que insinuava.

– Ah, sim? – A voz delatava perplexidade. Mostravam-se de novo muito formais, como se o anterior instante de intimidade não tivesse existido. Isso tornava mais fácil para ambos. Charlotte se apressou a continuar antes que tivessem tempo de pensar nos sentimentos.

– Uma era comum, como qualquer outra de Devil's Acre. A outra era para clientes das classes altas. – Sorriu com amargura, embora tivesse o rosto voltado para o fogo –. Clientes seletos. Inclusive lhes proporcionava mulheres de alto berço, muito alto às vezes.

O general guardou silêncio. Ela tentou imaginar o que acontecia em seus pensamentos: horror, revelação? Dor.

– Adela Pomeroy era uma delas – disse, e suspirou lentamente.

Ele seguia mudo.

– Pomeroy era pedófilo. Suponho... – interrompeu-se. Tentava justificar a mulher. Por quê? Para justificar também a Christina nos olhos de seu pai? Ele não merecia aquele paternalismo. De novo sentiu o entristecedor impulso de estreitá-lo entre seus braços, de acariciar suavemente a inalcançável ferida, como se ela tivesse forma de aliviá-la! Era uma idiota. A única coisa que conseguiria seria feri-lo ainda mais ao misturar-se em sua humilhação, cometendo a ridicularia de dar por sentado um afeto que possivelmente já tinha destruído com sua falsidade e com aquela ameaça muito mais próxima.

– Sinto muito – disse, sem deixar de olhar o fogo.

– E os outros? – perguntou o general. Charlotte não soube interpretar seu tom.

– O doutor Pinchin praticava abortos entre as prostitutas, nem sempre com êxito. Cobrava em espécie. A senhora Pinchin é uma mulher muito severa e respeitável.

– E Bertie Astley? – insistiu ele. Mostrava-se muito objetivo, ocultando seus sentimentos por ela, ou pela Christina ou por qualquer um, enquanto tentava compreender os fatos.

– Era o dono de um quarteirão de edifícios em Devil's Acre: moradias, fábricas, uma destilaria de genebra. É claro Beau Astley pôde matá-lo pelo dinheiro. Seus ganhos são elevados. – Olhou ao general.

– Você acredita? – Parecia tranqüilo, mas tinha contraídos os músculos faciais e a mão esquerda apertada em um punho junto ao flanco. Por um instante, Charlotte captou o brilho de seus olhos antes que ele afastasse o olhar.

– Não – respondeu com um esforço.

A porta se abriu de repente e Christina irrompeu no aposento com o rosto pálido e os olhos brilhantes. Levava posta a capa e na mão uma bonita bolsa de malha.

– Vá, senhorita Ellison, que prazer voltar a vê-la! – disse com tom um pouco alto. – Admito que você seja a pessoa mais estudiosa que conheci em minha vida. Será você capaz de dar conferências sobre a vida de um soldado na guerra peninsular aos próprios eruditos. Era isso do que estavam falando, não?

A mentira que tinha preparada foi aos lábios de Charlotte imediatamente.

– Meus conhecimentos são muito superficiais, senhora Ross, mas tenho um parente que está muito interessado. Desejava lhe mostrar as cartas do general, mas antes quis lhe pedir permissão.

– Que diligente por sua parte ter vindo em pessoa. – Christina se aproximou da mesa e, com os olhos ainda fixos no Charlotte, abriu uma gaveta –. Uma mulher de menor categoria teria recorrido ao correio! Sobre tudo num dia tão horrível. As ruas estão cobertas de neve e a nevada aumenta cada vez mais. Ficará congelada no caminho de volta a casa! – Fez uma pequena careta. Agarrou algo da gaveta e o meteu na bolsa; o fecho deu um estalo.

O general estava muito furioso pelo desprezo de Christina por Charlotte para incomodar-se em lhe perguntar o que tinha pego.

– Enviarei à senhorita Ellison a casa na carruagem, naturalmente – replicou –. Sem dúvida terá vindo na sua e não a necessitará.

– É claro, papai! Acaso achava que tinha vindo em um ônibus público? – dirigiu-se à porta e a abriu –. Bom dia, senhorita Ellison. Espero que seu... Parente... Desfrute tanto com a guerra peninsular como parece desfrutar você. – Saiu e fechou a porta. Instantes depois, ouviram o ruído de cascos na rua e o golpe da portinhola de uma carruagem ao fechar-se.

– Ao que parece tomou emprestado algo que lhe pertence – observou Charlotte, mais por romper o silêncio que por outra coisa.

O general se aproximou da mesa e abriu a gaveta da qual sua filha tinha tirado o objeto. Por uns segundos foi presa do desconcerto. Em seu rosto tinha marcadas rugas de sofrimento e uma vulnerabilidade nova e delicada em sua boca.

Christina era uma das mulheres do Max. Charlotte compreendeu que o general sabia ou o tinha adivinhado. E Alan Ross?

O general continuava imóvel, com o olhar perdido e o rosto mudado.

– Levou minha pistola.

Charlotte ficou paralisada. Depois ficou em pé em um salto.

– Temos que segui-la – ordenou que –. Procure um cabriolé. Acaba de ir-se. Terá deixado um rastro na neve, ainda podemos segui-la. Sejam quais forem suas intenções, ainda poderíamos estar a tempo de detê-la O... Ou de ajudá-la!

Ele se dirigiu à porta a grandes passadas e chamou o lacaio com um grito. Arrancou o casaco de Charlotte das mãos do homem sem recolher o seu. Agarrou-a pelo braço e a empurrou para a porta. Segundos depois se achavam em meio dos torvelinhos de neve, cegados pela escuridão e a luz mortiça dos lampiões, e com a ardência no rosto dos flocos de neve que caíam convertidos em gelo.

O general cruzou correndo a rua para a erva coberta de neve que havia sob as árvores. A carruagem da Christina ainda era visível no outro extremo da praça, reduzindo a marcha para virar. Um cabriolé passava pelo lado oeste aparecendo e desaparecendo sob os círculos de luz.

– Cocheiro! – gritou o general, agitando os braços –. Cocheiro!

Charlotte caminhou com dificuldade por entre a erva, empapada até os tornozelos, tentando manter-se a sua altura. Tinha o rosto molhado e intumescido pelo frio, e embora levasse luvas em sua bolsa de malha, tinha os dedos muito congelados para pensar sequer em buscá-las. Concentrava todos seus esforços em seguir ao general.

O cabriolé já tinha um ocupante: sir Robert Carlton. O general abriu a portinhola de repente.

– É uma emergência! – gritou por cima do vento –. Sinto muito, Robert! Necessito-o! – Confiando-se a uma longa amizade e uma natureza generosa, estendeu a mão ao Carlton e quase o tirou com um puxão, depois pegou Charlotte pela cintura e a colocou dentro. Em seguida ordenou ao cocheiro que entrasse na rua pela qual tinha desaparecido a carruagem da Christina. Arrojou um punhado de moedas ao surpreso cocheiro, e quase caiu ao chão quando este se converteu em um novo Jehu12 ao ver o brilho do ouro.

Charlotte se sentou no lugar onde tinha aterrissado e se segurou ao cabo. Não havia tempo nem tinha sentido tentar arrumar a saia para salvar o decoro. O cabriolé dava a volta à esquina da praça como um meteoro, e o general punha a cabeça pela janela, tentando ver se a carruagem da Christina continuava ali diante, ou se a tinham perdido em meio da tormenta de neve.

Os cascos dos cavalos eram estranhamente silenciosos sobre o manto de neve. O cabriolé dava sacudidas de um lado a outro quando as rodas deslizavam, voltavam a aferrar-se ao chão e logo viravam bruscamente. Em qualquer outra circunstância, Charlotte seria presa do terror, mas agora só pensava em que Christina se achava em algum lugar diante deles com a pistola de seu pai. O medo a fez sentir náuseas, excluindo todo pensamento sobre sua própria segurança, apesar de ricochetear de lado a lado quando o cabriolé derrapava sobre a neve. Era ao Alan Ross a quem Christina queria matar? Era ele, assim, quem tinha matado primeiro ao Max e depois aos outros, e Christina tinha acabado descobrindo-o? Ia atirar nele ela mesma, ou lhe oferecer a possibilidade de suicidar-se?

O general colocou a cabeça no cabriolé. Tinha a cútis avermelhada pelo vento e os cabelos salpicados pela neve.

– Continua aí em frente. Deus sabe aonde se dirige! –Tinha o rosto tão gelado que a boca estava rígida e pronunciava mal as palavras.

Charlotte caiu contra ele quando o cabriolé virou em outra esquina. O general a pegou, segurou-a um momento e logo a ajudou a sentar-se.

– Não sei onde estamos – prosseguiu –. Não vejo nada mais que neve e os lampiões de gás de vez em quando. Não reconheço nada.

– Não volta para casa? – perguntou ela. Imediatamente desejou não haver dito nada.

– Não. Ao parecer tomamos a direção do rio. –Tinha pensado ele também no Alan Ross?

O cabriolé avançava dando inclinações bruscas em meio de um mundo emudecido, sem ruído de cascos nem chiado de rodas. Só se ouvia o estalo do chicote e os gritos do cocheiro. A vista se limitava aos redemoinhos de flocos de neve à luz dos lampiões, seguidos por uma espantosa e fria escuridão até a seguinte lua fugaz sobre seu poste de ferro. Agora tinham reduzido a marcha ao trote e giravam com maior freqüência. Aparentemente não tinham perdido a carruagem da Christina, pois o cocheiro não tinha solicitado novas instruções.

Aonde se dirigia Christina? Avisar a Adela Pomeroy? Sobre o que? Tinha contratado esta a um lunático para que matasse a seu marido?

As respostas se amontoavam na cabeça de Charlotte e nenhuma delas parecia a verdadeira. Uma e outra vez desprezava a que no fundo sabia que era a autêntica. Christina voltava para Devil's Acre! A um dos prostíbulos... e ao assassinato.

Sentado junto a ela, o general não dizia nada. Fosse qual fosse seu pesadelo, lutava só.

Uma esquina mais, outra rua coberta por um manto de neve, um cruzamento e por fim se detiveram. O cocheiro pôs a cabeça.

– Sua amiga entrou aí! – disse indicando com o braço. O general abriu a portinhola e desceu de um salto, deixando que Charlotte se valesse por si mesma –. Ali. –O cocheiro voltou a indicar –. O bordel das irmãs Dalton. Não sei o que faz ela aí, vá. Se seu marido estiver aí dentro, seria melhor que fingisse não sabê-lo em lugar de andar perseguindo-o como uma louca! Não é decente. Nem sensato! Mas a maioria das mulheres não quer escutar o que lhes dizem para seu próprio bem! Ouça! Será melhor que deixe à senhora aqui! Por Deus! Não pode você colocá-la aí dentro, homem!

O general não o escutava. Cruzou a rua iluminada por uma luz tênue e subiu as escadas da casa, onde os rastros da Christina ainda eram visíveis sobre a neve.

– Ouça! – gritou o cocheiro, tentando deter Charlotte uma vez mais –. Senhorita!

Mas Charlotte seguiu ao general, correndo com as saias pesadas pela umidade, e o alcançou nas escadas. Não havia ninguém que lhes impedisse a entrada. A porta estava simplesmente fechada com trinco e entre ambos conseguiram abri-la.

No interior acharam o mesmo vestíbulo amplo de felpudo mobiliário vermelho, alegres abajures de gás e quentes tons rosados que tinha visto Pitt. Era muito cedo; ainda não havia clientes nem criadas luxuriosas de olhos ternos. Só viram vitória Dalton com seu vestido de tarde marrom e a sua irmã Mary com um vestido azul com largos adornos de renda. E frente a elas estava Christina com a pistola nas mãos.

– Estão loucas! – dizia Christina com a voz afogada e as mãos trêmulas, mas sem deixar de apontar ao peito de Vitória com a pistola –. Não lhes bastava matar Max, tinham que mutilá-lo, e depois mataram a outros! Por quê? Por quê? Por que mataram a outros? Eu nunca o quis, nunca lhes pedi que o fizessem!

Curiosamente, o rosto de Vitória estava totalmente inexpressivo, como uma máscara. Só seus olhos demonstravam emoção, pois lançavam faíscas de ódio.

– Se a tivessem vendido aos nove anos como prostituta, não teria que me perguntar isso. Você se vendia por diversão, deixava que animais como Max utilizassem seu corpo. Mas se os homens tivessem fornicado com você desde que era uma menina nos braços de sua mãe, se tivesse estado deitada em sua cama, escutando através da fina parede os gritos de sua irmã de sete anos quando se jogavam sobre ela com seus enormes e obscenos corpos nus, inchados, ofegantes e suarentos, manuseando-a, também você desfrutaria apunhalando-os e lhes arrancando...

Christina apertou as mãos sobre a culatra e levantou o cano. Charlotte se jogou sobre ela dando pontapés. Estava muito longe para alcançar a arma, mas fez Christina perder o equilíbrio e a pistola caiu ao chão sem disparar.

Ouviu-se um grito de raiva e umas mãos fortes como garras arranharam Charlotte. Deu um forte golpe contra o chão, sobre tudo na coxa, mas o resto o amorteceu as saias. Tateou com as mãos em busca de algo para defender-se. Encontrou cabelos, enredou as mãos neles e puxou. Ouviu-se então um grito de dor. Outro corpo aterrissou pesadamente sobre ela e umas botas lhe chutaram a coxa com força.

Houve mais gritos e a voz de Christina lançando uma praga. Charlotte estava junto ao chão, meio afogada por uma montanha de tecido e o peso de vários corpos. O cabelo se tinha soltado e lhe caía sobre os ombros e rosto. Uma mão lhe pegou uma mecha de cabelos e puxou. A dor percorreu todo seu couro cabeludo. Lançou os punhos para defender-se. Onde estava a pistola?

– Basta! – A voz do general trovejou por cima do alvoroço. Ninguém lhe prestou atenção.

Christina, de quatro no chão, gritava com Vitória Dalton com o rosto congestionado pela raiva. Mary Dalton esbofeteou a Christina com todas suas forças, deixando ouvir um assobio. Christina ficou em pé cambaleando e deu um pontapé, que golpeou Mary no ombro, fazendo-a cair de costas entre gemidos.

Vitória se lançou sobre a pistola, mas Charlotte se jogou sobre ela e a pegou pelos cabelos. Charlotte tinha a saia rasgada até a cintura, deixando descoberto a roupa interior e uma boa parte de sua coxa. Procurava freneticamente a pistola, dando gritos, mas não era consciente disso.

De repente a pistola disparou com um ruído ensurdecedor e todas ficaram paralisadas, como se a detonação tivesse acertado a todas.

– Basta! – ordenou o general furiosamente –. Em pé! Darei um tiro a primeira que me desobedecer!

Muito lentamente ficaram em pé, cheias de arranhões, com as roupas rasgadas e os cabelos emaranhados. Charlotte tentou atar a saia para ocultar a coxa.

– OH, Meu Deus! – O general empunhava a pistola. Tinha o rosto tão pálido que se acentuavam suas maçãs do rosto e a mandíbula estavam completamente brancas –. Quieta! – ordenou a Christina, quando esta deu um passo para frente. Sua voz cortava como uma faca.

Charlotte notou que as lágrimas lutavam por aparecer em seus olhos. Agora começava a adivinhar as respostas e já nada podia fazer, nem pelo general, nem por Vitória, nem pela Mary, nem sequer pelo Alan Ross.

– Estas mulheres mataram ao Max Burton? – Balantyne falava com a Christina como se as outras não estivessem pressentes.

– Sim! Estão loucas! Elas... – interrompeu-se, engolindo em seco, horrorizada ao ver a expressão de seu pai.

– Por que agora? – perguntou o general, voltando-se para Vitória Dalton –. Por que esperaram tanto tempo?

– Ela me pagou para fazê-lo – respondeu Vitória com expressão dura e brilho no rosto. Disse-o sem inflexão, com uma sinceridade mortificante –. Primeiro fornicou com o Max e depois se vendeu a outra homens por ele... Depois, quando Max começou a tornar-se avaro e lhe fez chantagem, assustou-se. Precisava desfazer-se dele. – Sua expressão era compassiva por Ross e depreciativa por Christina –. Temia que seu marido pudesse descobri-la, o pobre cornudo! Só conservou um amante: Beau Astley.

Charlotte olhou ao general. Balantyne tinha empalidecido pela dor. Mas não havia agitação nele, nem tentativa alguma para rechaçar a verdade.

– E por que o doutor Pinchin? – perguntou, apontando ainda com a pistola.

– Merecia morrer – replicou Vitória com frieza –. Era um açougueiro!

– E o que fez Bertram Astley para que o executassem?

– Era o dono de toda a rua – respondeu Vitória, fazendo uma careta de desprezo –. Alugava quartos aos homens ricos e suas putas. Cobrava as rendas. Sua família mantinha seus elegantes salões e a suas damas com os benefícios de nossa imundície!

– E seu irmão deveria nos ter agradecido! Deveria nos ter pago... – disse Mary, mas Vitória virou totalmente e a esbofeteou com força, lhe deixando uma marca vermelha.

Depois pegou algo de uma mesinha. Depois de um súbito brilho de folhas, uma tesoura fendeu o peito da Christina, fazendo brotar o sangue. A pistola disparou contra o teto.

O general alcançou a sua filha quando esta caía lentamente de joelhos e ficava reduzida a um pequeno vulto. Ele a segurou entre seus braços.

Charlotte pegou um tamborete e golpeou a Vitória, derrubando-a e deixando-a inconsciente sobre o tapete vermelho. Depois ficou quieta com o tamborete ainda nas mãos. Mary, presa do pânico agora que estava sozinha, voltou-se e se inclinou sobre Vitória, chorando como uma menina perdida.

Onde estava Pitt? Tudo aquilo era muito; a dor era muito intensa e persistente. Charlotte estava tão exausta que não restava nem a ira, nem nenhuma outra emoção salvo a piedade, e lhe doía todo o corpo pelas contusões. As lágrimas lhe corriam pelas faces, mas se sentia muito vazia para soluçar.

O general Balantyne depositou a Christina suavemente sobre o chão. Sua filha tinha os olhos fechados e a renda do peito coberta de sangue.

Charlotte acariciou a cabeça do general suavemente. Deu a volta e viu um agente de polícia na porta e, atrás dele, a figura desalinhada, atraente e familiar de seu marido. É claro, os disparos! Sem dúvida Pitt tinha deixado a uns agentes postados na rua; ele havia resolvido o caso sem sua ajuda, tudo aquilo tinha sido desnecessário.

Pitt se aproximou lentamente, afastando ao agente que remexia os bolsos em busca de algemas para Vitória e para a Mary. Não disse nada ao general. Não havia nada que pudesse comover seu horror nem sua pena naquele momento e Christina já não sentia nada.

Rodeou ao Charlotte com os braços e a estreitou. Depois lhe apalpou as mãos e os braços e lhe afastou os cabelos.

– Está ridícula! – repreendeu-a depois de comprovar que não estava ferida –. Meu Deus tem um aspecto horrível! Vá para casa! E não se atreva a voltar a fazer isto nunca mais! Nunca mais! Fará o que eu disser! Ouviu-me?

Charlotte assentiu, muito aflita pelo horror e piedade, e pela sensação de segurança que lhe dava seu amor, para tentar expressar-se com palavras.

 

 

  1. Devil"s Acre – parcela do diabo.
  2. Estilo carcterístico da época dos quatro Jorges que reinaram em Grã-Bretanha desde 1714 a 1830. (N da T.)
  3. Conflito bélico (1853-1856) entre a Rússia e Turquia, esta última respaldada por potências ocidentais como a França e Inglaterra. (N. da T.)
  4. Cidade da Crimea famosa pela carga da cavalaria inglesa contra os russos em 1854. (N. da T.)
  5. A palavra inglesa squaker significa tanto pombinho como pessoa que fala com voz aguda, e também mexeriqueiro, delator. (N. da T.)
  6. Prato de origem índia consistente em peixe folheado, arroz cozido e ovos. (N. da T.)
  7. Personificação feminina da Grã-Bretanha ou do Império britânico. (N. da T.)
  8. Nome familiar do hospital do St. Mary of Bethlehem, o famoso manicômio de Londres. (N. da T.)
  9. Legendário rei grego com um imenso rebanho, cujos estábulos não se limparam jamais. Foi um dos doze trabalhos que se encarregaram ao Hércules. O herói desviou o curso de dois rios para que a água arrastasse o esterco. Em inglês se adjetivou o nome do Augías para indicar um lugar especialmente repulsivo. (N. da T.)
  10. Nome coloquial do Rotten Row: atalho para passear a cavalo que corre pelo extremo sul do Hyde Park. (N. da T.)
  11. Oficial da Igreja Anglicana, eleito anualmente pelo pároco ou a congregação para que atenda ao governo da paróquia. (N. da T.)
  12. Rei do Israel mencionado no Antigo Testamento, famoso pelos ataques de suas carruagems. (N. da T.) 

 

                                                                                                    Anne Perry

 

 

              Voltar à “SÉRIE"

 

 

                                         

O melhor da literatura para todos os gostos e idades