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Vinte Anos Depois 2º Volume / Alexandre Dumas
Vinte Anos Depois 2º Volume / Alexandre Dumas

 

 

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Vinte Anos Depois

2º Volume

 

A BALSA DO OISE

 

Esperemos que o leitor não tenha esquecido de todo o jovem viajante que deixamos na estrada de Flandres. Perdendo de vista o protetor, que o seguia com os olhos defronte da basílica real, Raul esporeara o cavalo, primeiro para fugir aos seus dolorosos pensamentos e, depois, para esconder de Olivain a comoção que lhe alterava os traços.

Entretanto, uma hora de marcha rápida não tardou em dissipar as nuvens sombrias que haviam contristado a imaginação tão rica do rapaz. O inédito prazer de sentir-se livre, prazer que tem encantos até para os que nunca sofreram em razão de sua dependência, dourou para Raul o céu e a terra e, sobretudo, o longínquo e azulado horizonte da vida a que chamamos futuro.

Não obstante, percebeu, depois de várias tentativas de conversação com Olivain, que longos dias passados assim seriam bem tristes, e as palavras do Conde, tão doces, tão persuasivas e tão interessantes lhe voltaram à memória a propósito das cidades que atravessava e sobre as quais ninguém já lhe poderia fornecer as informações preciosas que ele teria arrancado de Athos, o mais sabedor e o mais divertido dos guias.

Outra lembrança também entristecia Raul: chegavam a Louvres e ele vira, perdido atrás de uma cortina de choupos, um castelinho que lhe recordara tanto o de La Vallière que se quedara a contemplá-lo durante dez minutos, e reencetara a viagem suspirando, sem responder sequer a Olivain, que respeitosamente o interrogara sobre a causa dessa atenção. O aspecto dos objetos exteriores é um condutor misterioso, que corresponde às fibras da memória e vai por vezes despertá-la mau grado nosso; e, despertado, como o de Ariadne, esse fio conduz a um labirinto de pensamentos em que a gente se perde ao seguir a sombra do passado que se chama lembrança. Ora, a vista do castelo atirara Raul a cinqüenta léguas na direção do ocidente e fizera-o relembrar a sua existência desde o momento em que se despedira de Luisinha até aquele em que a vira pela primeira vez, e cada ramo de carvalho, cada catavento lobrigado no alto de um teto de ardósias, lhe dizia que em vez de voltar para ao pé de seus amigos de infância, ele se alongava cada vez mais e talvez até os deixasse para sempre.

Com o coração apertado, a cabeça pesada, ordenou a Olivain que conduzisse os cavalos a uma estalagenzinha que avistara na estrada, a meia distância de um tiro de mosquete. Apeou, parou debaixo de um belo grupo de castanheiros em flor, à cuja roda zumbiam multidões de abelhas, e ordenou a Olivain que pedisse ao estalajadeiro papel e tinta para escrever uma carta a uma mesa que lá parecia encontrar-se exclusivamente com essa finalidade.

Olivain obedeceu e continuou o caminho, ao passo que Raul se assentava com o cotovelo apoiado sobre a mesa, o olhar vagamente perdido na paisagem encantadora, pintalgada de campos verdes e bosquetes de árvores, sacudindo, a trechos, a cabeça para afastar as flores que caíam sobre ele como neve.

Fazia dez minutos que Raul lá estava e cinco que mergulhara em seus devaneios quando, no círculo abrangido pelo seu olhar absorto, viu mexer-se uma figura rubicunda que, com um guardanapo em torno do corpo e outro no braço, uma carapuça branca na cabeça, caminhava na sua direção trazendo-lhe papel, tinta e pena.

— Ah! ah! — disse a aparição — vê-se que todos os fidalgos têm idéias semelhantes, pois há coisa de um quarto de hora um jovem senhor, bem montado como vós, de altiva presença como vós, e mais ou menos da vossa idade, parou diante deste bosquete de árvores, mandou trazer esta mesa e esta cadeira e aqui almoçou, com um velho senhor que parecia ser o seu aio, comendo um pastel de que não deixaram migalha e tomando um vinho velho de Mâcon, que empinaram até à última gota; felizmente, porém, ainda temos do mesmo vinho e pastéis iguais àquele, e se quiserdes.

— Não, meu amigo — replicou Raul, sorrindo — fico-vos muito obrigado mas, por enquanto, só preciso das coisas que mandei pedir; gostaria apenas de que a tinta fosse preta e de que a pena fosse boa; nessas condições, pagaria pela pena o preço da garrafa e pela tinta o preço do pastel.

— Pois bem, senhor — volveu o estalajadeiro — darei o pastel e a garrafa ao vosso criado e, assim, tereis a pena e a tinta de graça.

— Como quiserdes — disse Raul, que iniciava o seu contacto com essa classe toda especial da sociedade, que, no tempo dos salteadores de estradas, se associavam com eles, e, depois do seu desaparecimento, substituiu-os vantajosamente.

Tranqüilizado no tocante aos seus lucros, o estalajadeiro depôs sobre a mesa papel, tinta e pena. A pena, por acaso, era passável, e Raul começou a escrever.

O estalajadeiro ficara diante dele e considerava-lhe com uma espécie de admiração involuntária a figura encantadora, entre séria e meiga. A beleza sempre foi e será sempre rainha.

— Não é um hóspede como o de há pouco — disse o locandeiro a Olivain, que vinha perguntar a Raul se precisava de alguma coisa — e o vosso jovem amo não tem apetite.

— Tinha-o há três dias atrás — respondeu Olivain — mas que se há de fazer? Perdeu-o anteontem.

E Olivain e o taberneiro voltaram à estalagem, ao passo que o primeiro, consoante o vezo dos lacaios satisfeitos com a sua situação, relatava ao outro o que supunha poder contar sobre o jovem amo.

Entretanto, Raul escrevia:

 

"Senhor,

"Depois de algumas horas de marcha, detenho-me para escrever-vos, pois sinto a vossa falta a cada instante, e estou sempre fazendo menção de virar a cabeça, como que para responder a uma pergunta vossa. Fiquei tão aturdido quando partistes e tão entristecido com a nossa separação, que não fui capaz de exprimir-vos direto a minha ternura e gratidão. Sabereis desculpar-me, senhor, pois o vosso coração, tão generoso, há de ter compreendido o que se passava no meu. Escrevei-me, eu vos peço, pois os vossos conselhos são parte da minha existência; de mais a mais, confesso que me sinto inquieto, pois me pareceu que vos preparáveis para alguma expedição perigosa, sobre a qual não ousei interrogar-vos, pois nada me dissestes a respeito. Preciso muito, como vedes, saber notícias vossas. Desde que não vos tenho ao meu lado, receio constantemente errar. Vós me sustentáveis, e juro que hoje me sinto bem só.

"Peço-vos o obséquio, se receberdes notícias de Blois, de me dizerdes algumas palavras a minha amiguinha, a Srta. de La Vallière, cuja saúde, na ocasião de nossa partida, era de causar inquietação. Compreendeis, senhor e caro protetor, o quanto me são preciosas e indispensáveis as lembranças do tempo que passei ao pés de vós. Espero que, às vezes, penseis também em mim e se sentirdes a minha falta em certos momentos, se a minha ausência vos despertar saudades, folgarei muitíssimo de saber que não vos passaram despercebidos o afeto e a dedicação que vos consagro, e que eu vos soube fazê-los compreender enquanto tive a felicidade de viver ao vosso lado."

 

Concluída a carta, Raul sentiu-se mais calmo; verificou se Olivain e o taberneiro não o espreitavam e depôs um beijo no papel, muda e tocante carícia que o coração de Athos seria capaz de adivinhar ao abrir a missiva.

Entrementes, Olivain emborcara uma garrafa e comera um pastel; os cavalos tinham descansado. Raul fez sinal ao estalajadeiro que se aproximasse, atirou um escudo sobre a mesa, tornou a montar e, em Senlis, pôs a carta no correio.

O descanso que tinham tido cavalos e cavaleiros permitia-lhes continuar ' viagem sem parar. Em Verberie, Raul ordenou a Olivain que se informasse sobre o jovem fidalgo que o precedia; tinham-no visto passar havia menos de três quartos de hora, mas ia bem montado, como já dissera o estalajadeiro, e jornadeava rapidamente.

— Procuremos alcançá-lo — disse Raul a Olivain; — ele se dirige, como nós, ao exército e será uma companhia agradável.

Eram quatro horas da tarde quando Raul chegou a Compiègne; lá jantou com bom apetite e pediu novas informações sobre o cavaleiro que o precedia: este se detivera, como Raul, na hospedaria do Sino e da Garrafa, a melhor de Compiègne, e continuara a viagem anunciando que ia dormir em Noyon.

— Vamos dormir em Noyon — disse Raul.

— Senhor — replicou respeitosamente Olivain — permiti que eu vos observe que já cansamos que farte os cavalos hoje cedo. Creio que o mais indicado seria dormir aqui e sair amanhã bem cedinho. Dezoito léguas bastam para a primeira etapa.

— O Sr. Conde de La Fere deseja que eu me apresse — respondeu Raul — e que tenha alcançado o Príncipe na manhã do quarto dia: vamos, pois, a Noyon; será uma etapa semelhante às que fizemos de Blois a Paris. Chegaremos às oito. Os cavalos terão a noite inteira para descansar e amanhã, às cinco da madrugada, tornaremos a partir.

Olivain não ousou contrariar-lhe a determinação; mas começou a resmungar.

— Ide, ide — dizia entre dentes — gastai as vossas energias no primeiro dia; amanhã, em vez de uma jornada de vinte léguas, fareis uma de dez, depois de amanhã outra de cinco e daqui a três dias estareis de cama. Aí, então, descansareis à força. Todos os jovens são fanfarrões.

Vê-se que Olivain não fora educado na escola dos Planchets e dos Grimauds.

Raul, de fato, sentia-se cansado; mas desejava experimentar as forças e, educado nos princípios de Athos, certo de tê-lo ouvido falar mil vezes em etapas de vinte e cinco léguas, não queria mostrar-se inferior ao modelo. D'Artagnan, aquele homem de ferro, que parecia feito apenas de músculos e nervos, impressionara-o profundamente.

Ia, portanto, apressando cada vez mais o passo do cavalo, a despeito das observações de Olivain, e seguindo um caminho encantador que conduzia a uma balsa e diminuía o trajeto de uma légua, quando, chegado ao topo de uma colina, viu o rio diante de si. Uma tropazinha de cavaleiros estava na margem, pronta para embarcar. Raul não duvidou de que fossem o fidalgo e sua escolta; deu um grito, chamando-os, mas estava muito longe para ser ouvido; apesar do cansaço do cavalo, pô-lo a galope; todavia, uma ondulação do terreno logo lhe ocultou a vista os viajantes e, quando alcançou o cume seguinte, a balsa já vogava para a margem oposta.

Vendo que não chegaria a tempo, Raul estacou à espera de Olivain.

Nesse momento ouviu-se um grito que parecia subir do rio. Raul voltou-se para o lado de que provinha o grito e, resguardando com a mão os olhos que deslumbravam os raios do sol poente:

— Olivain! — gritou — que vejo lá embaixo?

— Oh! senhor — disse Olivain — o cabo arrebentou e a balsa está sendo arrastada pela corrente. Mas, que é aquilo dentro da água? Uma coisa que se debate!

— Isso mesmo! — bradou Raul, fitando os olhos num ponto do rio esplendidamente iluminado pelos raios do sol — um cavalo e um cavaleiro. ,

— Estão afundando — gritou, por sua vez, Olivain. Era verdade, e Raul acabava também de compreender que ocorrera um acidente e que um homem se afogava. Afrouxou as rédeas do cavalo, enfiou-lhe as esporas no ventre e o animal, premido pela dor e sentindo que lhe davam liberdade, pulou por cima de uma espécie de parapeito que cercava o embarcadouro e caiu dentro do rio, fazendo saltar à distância ondas de espuma.

— Ah! senhor — exclamou Olivain — que fazeis? Oh! meu Deus!

Raul guiava o cavalo para o infeliz em perigo. Aliás, era um exercício com o qual se familiarizara. Tendo crescido às margens do Loire, fora, por assim dizer, embalado pelas suas ondas; atravessara-o cem vezes a cavalo, mil vezes a nado. Prevendo a ocasião em que faria do Visconde um soldado, Athos o adestrara em todas essas empresas.

— Oh! meu Deus! — continuava Olivain, desesperado — que diria o Sr. Conde se vos visse?

— O Sr. Conde teria feito como eu — respondeu Raul tocando vigorosamente o cavalo.

— Mas eu! mas eu! — bradava Olivain, pálido e desesperado, agitando-se na margem — como farei para passar?

— Salta, poltrão — gritou Raul, nadando sempre.

Em seguida, dirigindo-se ao viajante que se debatia a vinte passos dele:

— Coragem, senhor — exclamou — coragem, que vos socorro.

Olivain adiantou-se, recuou, fez empinar-se o cavalo, voltar-se, e, afinal, mordido no coração pela vergonha, atirou-se como Raul, mas repetindo: "Estou morto, estamos perdidos!"

Entretanto, a balsa descia rapidamente, levada pelai corrente, e ouviam-se gritar os que iam dentro dela.

Um homem de cabelos grisalhos atirara-se da balsa ao rio e nadava com vigor na direção da pessoa que se afogava; mas os seus progressos eram lentos, pois nadava contra a corrente.

Raul ganhava terreno visivelmente; contudo, o cavalo e o cavaleiro, que ele não perdia de vista, afundavam também visivelmente: o cavalo só tinha as narinas fora dágua, e o cavaleiro, que largara as rédeas ao debater-se, estendia os braços e deixava pender a cabeça para trás. Mais um minuto e tudo se acabaria.

— Coragem — gritou Raul — coragem!

— Muito tarde — murmurou o rapaz — muito tarde!

A água passou-lhe por cima da cabeça e extinguiu-lhe a voz na garganta.

Raul atirou-se do cavalo, ao qual deixou o cuidado de salvar-se, e, em três ou quatro braçadas, aproximou-se do fidalgo. Empolgou imediatamente o cavalo pela barbela e ergueu-lhe a cabeça acima da água; o animal respirou mais livremente e, como se compreendesse que lhe acudiam, redobrou de esforços; Raul, ao mesmo tempo, segurou uma das mãos do rapaz e levou-a à crina, a que ela se agarrou com a tenacidade do homem que se afoga. E certo de que o cavaleiro não tornaria a largá-la, ocupou-se apenas do cavalo, que dirigiu para a margem oposta, ajudando-o a cortar a água e animando-o com palavras.

De repente o animal tropeçou num baixio e tomou pé.

— Salvo! — exclamou o homem de cabelos grisalhos, tomando pé também.

— Salvo! — murmurou maquinalmente o fidalgo, largando a crina e deixando-se cair da sela nos braços de Raul.

Raul estava apenas a dez passos da margem; conduziu até lá o moço desfalecido, deitou-o sobre a relva, desatou-lhe as fitas da gola e desapertou-lhe os colchetes do gibão.

Um minuto depois, o homem de cabelos grisalhos se achava perto dele.

Olivain acabara atingindo também a outra margem depois de muito persignar-se, e as pessoas que iam na balsa abicaram como puderam, com a ajuda de uma vara que, por acaso, encontraram na embarcação.

A pouco e pouco, graças aos cuidados de Raul e do homem que acompanhava o jovem cavaleiro, a vida voltou às faces pálidas do moribundo, que, a princípio, abriu os olhos esgazeados e, logo depois, cravou-os no seu salvador.

— Ah! senhor — exclamou — éreis vós que eu procurava: sem vós estaria morto, três vezes morto.

— Mas a gente ressuscita, como vedes — disse Raul — e tudo não passará de um banho.

— Ah! senhor, quanta gratidão! — exclamou o homem de cabelos grisalhos.

— Estais aí, meu bom d'Arminges! Causei-vos um grande susto, não é verdade? Mas a culpa é vossa: éreis meu preceptor, por que não me ensinastes a nadar melhor?

— Ah! senhor Conde — disse o velho — se vos tivesse acontecido alguma desgraça, eu nunca me atreveria a apresentar-me diante do Marechal.

— Mas como foi isso? — perguntou Raul.

— Da maneira mais simples do mundo — respondeu aquele a quem haviam dado o título de Conde. — Tínhamos percorrido cerca de um terço do rio quando o cabo da balsa se rompeu. Aos gritos e movimentos que fizeram os balseiros, o meu cavalo assustou-se e caiu dentro dágua. Nado mal e não tive coragem de atirar-me ao rio. Em vez de auxiliar os movimentos do cavalo, paralizei-os e estava a pique de afogar-me da maneira mais galante do mundo quando chegastes no momento exato para salvar-me. Por isso mesmo, se quiserdes, de hoje em diante vos serei obrigado para a vida e para a morte.

— Senhor — disse Raul, inclinando-se — estou inteiramente à vossa disposição.

— Chamo-me Conde de Guiche — continuou o cavaleiro; — meu pai é o Marechal de Grammont. E agora que sabeis quem sou, não me fareis a honra de dizer quem sois? (36)

(36) — Armando de Graimont, Conde de Guiche, "era o moço da Corte mais bonito e mais bem apessoado, amável, galante, ousado, corajoso, cheio de grandeza e elevação." (Sra. de La Fayette). Fazia tremendos estragos entre as mulheres. Viveu um romance de amor com Madame a Princesa Henriqueta de Inglaterra, casada com Filipe de Orleans e, se bem tivesse servido com distinção na guerra de Flandres, Luís XIV exilou-o por haver-se metido numa intriga contra a Srta. de La Vallière. Retornou à França depois de oito anos e fez a campanha da Holanda sob as ordens do Grande Conde; à passagem do Reno foi o primeiro que se atirou ao rio e, nadando, arrastou com o seu exemplo todo o exército. Confronte-se a cena que narra Alexandre Dumas com o episódio histórico. (N. do T.)

 

— Sou o Visconde de Bragelonne — disse Raul, purpureando-se por não poder dizer o nome do pai, como o Conde de Guiche.

— Visconde, a vossa fisionomia, a vossa bondade e a vossa coragem me atraem; já tendes a minha gratidão. Abracemo-nos, quero a vossa amizade.

— Senhor — disse Raul retribuindo o abraço do Conde — também já vos estimo de todo o coração; utilizai-vos de mim como de um amigo dedicado.

— E agora — continuou o preceptor — precisais trocar

— Ao exército do Sr. Príncipe.

— E eu também! — exclamou o rapaz num transporte de alegria. — Ah! tanto melhor, daremos juntos o primeiro tiro de pistola.

— Muito bem, estimai-vos — disse o preceptor; — ambos sois jovens, tendes decerto a mesma estrela e era forçoso que vos encontrásseis.

Sorriram os dois rapazes com a confiança da mocidade.

— E agora — continuou o preceptor — precisais trocar de roupa; os vossos lacaios, aos quais dei ordens ao saírem da balsa, já devem ter chegado à hospedaria. A roupa e o vinho esquentam, vinde.

Os rapazes não tinham objeção nenhuma que fazer à proposta. Pelo contrário, acharam-na excelente; montaram, portanto, num pulo, observando-se e admirando-se mutuamente; eram, de fato, dois guapos cavaleiros, altos e esbeltos, dois nobres rostos de fisionomia franca, de olhar doce e altivo, de sorriso leal e fino. De Guiche poderia ter uns dezoito anos, mas não era maior do que Raul, que não passara dos quinze.

Deram-se as mãos num movimento espontâneo e, esporeando os cavalos, fizeram lado a lado o trajeto do rio à hospedaria, o primeiro achando boa e risonha a vida que quase acabara de perder, o outro agradecendo a Deus o ter vivido o suficiente para fazer alguma coisa de que se agradaria o seu protetor.

Olivain era o único a quem a boa ação do amo não agradara totalmente. Torcia as mangas e as abas do gibão, pensando que, se tivessem parado em Compiègne, teria evitado não só o acidente, de que acabava de escapar, senão os resfriados e reumatismos que dele naturalmente resultariam.


 ESCARAMUÇA

 

A estada em Noyon foi curta, e ambos aí dormiram um sono profundo. Raul recomendara que o despertassem se Grimaud chegasse, mas Grimaud não chegou.

Os cavalos, por seu turno, apreciaram sem dúvida as oito horas de repouso absoluto e a palha abundante que lhes foram concedidas. O Conde de Guiche foi despertado às cinco da manhã pelo novo companheiro, que lhe desejou bons-dias. Almoçaram à pressa e, às seis, já haviam percorrido duas léguas.

A conversação do jovem Conde era das mais interessantes para Raul. Daí que Raul ouvisse muito e o Conde falasse sempre. Educado em Paris, onde Raul só estivera uma vez, na Corte, que Raul nunca vira, as suas loucuras de pajem, dois duelos que já conseguira travar a despeito dos éditos e a despeito, principalmente, do aio, eram coisas que despertavam enorme-mente a curiosidade de Raul. Este só estivera em casa do Sr. Scarron e enumerou a de Guiche as pessoas que lá encontrara. De Guiche conhecia toda a gente: a Sra. de Neuillan, a Srta. d'Aubigné, a Srta. de Scudéry, a Srta. Paulet, a Sra. de Chevreuse. A todas criticou espirituosamente; Raul temia que ele criticasse também a Sra. de Chevreuse, pela qual já sentia verdadeira e profunda simpatia; mas, fosse por instinto, fosse por afeto à Duquesa de Chevreuse, de Guiche só lhe fez esplêndidas referências. A amizade de Raul pelo Conde redobrou com esses elogios.

Em seguida veio o tema das galanterias e dos amores. Também nesse setor Bragelonne tinha muito mais para ouvir do que para dizer. Ouviu, portanto, e pareceu-lhe perceber, através de três ou quatro aventuras assaz diáfanas, que, como ele, o Conde escondia um segredo no fundo do coração.

De Guiche, como já dissemos, fora educado na Corte, cujas intrigas conhecia. Era a Corte que a Raul descrevera o Conde de La Fere, embora tivesse mudado muito desde a.época em que o próprio Athos a freqüentara. Por conseguinte, tudo o que disse o Conde de Guiche foi novidade para o companheiro de viagem. O jovem Conde, maldizente e espirituoso, passou revista a todos; referiu os antigos amores da Sra. de Longueville com Coligny, e o duelo deste na Place Royale, que lhe fora tão fatal, e a que a Sra. de Longueville assistira através de uma gelosia; os seus novos amores com o Príncipe de Marcillac, tão ciumento, dizia-se, que era capaz de matar toda a gente, inclusive o Padre d'Herblay, seu diretor espiritual; os amores do Sr. Príncipe de Gales com Mademoiselle, a quem chamaram depois a Grande Mademoiselle, tão célebre mais tarde pelo seu casamento com Lauzun. Nem a Rainha foi poupada, e o Cardeal Mazarino teve também o seu quinhão de motejos.

O dia passou-se com a rapidez de uma hora. O preceptor do Conde, patusco, homem de sociedade, sábio até aos dentes, como dizia o discípulo, lembrou várias vezes a Raul a profunda erudição e a espirituosa mordacidade de Athos; mas, em quanto à graça, à delicadeza e à nobreza de maneiras, ninguém, nesse ponto, podia comparar-se ao Conde de La Fere.

Menos forçados que na véspera, pararam os cavalos cerca das quatro horas da tarde em Arras. Aproximava-se o teatro da guerra e os dois rapazes decidiram ficar na cidade até o dia seguinte, pois havia bandos de espanhóis que se aproveitavam das sombras da noite para estender as suas expedições aos arredores de Arras.

O exército francês ocupava a zona compreendida entre Port-à-Marc e Valenciennes, na direção de Douai. Dizia-se que o Sr. Príncipe se achava pessoalmente em Béthune.

O exército inimigo estendia-se de Cassel a Courtray e, como não houvesse pilhagens e violências que não cometesse, os pobres habitantes das fronteiras deixavam as habitações isoladas para se refugiarem nas praças fortes que lhes prometiam abrigo. Arras formigava de fugitivos.

Falava-se da próxima batalha, que seria decisiva, pois o Sr. Príncipe ainda não quisera efetuar manobra alguma à espera de reforços, que, afinal, acabavam de surgir. Os rapazes congratulavam-se por terem chegado tão a propósito.

Jantaram juntos e deitaram-se no mesmo quarto. Estavam na idade das rápidas amizades, tinham a impressão de conhecer-se desde crianças e cuidavam que nunca mais poderiam separar-se.

A noite passou-se em conversas sobre guerra; os lacaios bruniram as armas; os amos carregaram as pistolas, para o caso de surgir alguma escaramuça, e acordaram desesperados, havendo ambos sonhado que, atrasando-se, não tinham podido participar da batalha.

Na manhã seguinte, espalhou-se a notícia de que o Príncipe de Conde evacuara Béthune para recolher a Carvin, deixando, porém, uma guarnição na primeira das duas cidades. Mas como a notícia não fosse positiva, decidiram os rapazes continuar a viagem para Béthune, prontos, no caminho, a virarem para a direita e alcançarem Carvin.

O preceptor do Conde de Guiche conhecia perfeitamente a região; por isso mesmo alvitrou que se tomasse um caminho intermediário, entre a estrada de Lens e a de Béthune. Em Ablain, tomariam informações e deixariam um itinerário para Grimaud.

Puseram-se em marcha cerca das sete horas da manhã.

Jovem e arrebatado, dizia de Guiche a Raul:

— Somos três amos e três lacaios; os nossos lacaios estão bem armados, mas o teu me parece muito cabeçudo.

— Nunca o vi em ação — respondeu Raul — mas vem da Bretanha, e isso já é alguma coisa.

— Sim, sim — tornou de Guiche — e estou certo de que ele também disparará o mosquete, se for preciso; quanto a mim, tenho dois homens seguros, que combateram com meu pai; representamos, portanto, seis combatentes; se encontrássemos uma tropazinha de guerrilheiros igual à nossa em número, e até superior, não atacaríamos, Raul?

— Claro que sim — respondeu o Visconde.

— Alto lá, rapazes, alto lá! — sobreveio o preceptor, metendo-se na conversa — ides muito depressa, por Deus! E as minhas instruções, Sr. Conde? Esquecestes de que tenho ordens de conduzir-vos são e salvo ao Sr. Príncipe? Depois de chegardes ao exército, fazei-vos matar, se vos praz; mas, por enquanto, previno-vos de que, como general de exército, ordeno a retirada e viro as costas ao primeiro penacho que avistar.

De Guiche e Raul entreolharam-se de soslaio, sorrindo. Tornava-se a região cada vez mais coberta de árvores, e de tempos a tempos encontravam os viajantes grupinhos de,camponeses que se retiravam, tangendo animais e transportando em carros ou debaixo do braço os objetos mais preciosos.

Chegaram a Ablain sem novidades. Lá buscaram informar-se e souberam que o Sr. Príncipe desamparara efetivamente Béthune e se encontrava entre Cambrin e la Venthie. Deixando sempre instruções a Grimaud, tomaram um caminho transversal que os conduziu, em meia hora, às margens de um riozinho que desemboca no Lys.

A região era encantadora, entrecortada de vales verdes como esmeraldas. De longo em longe, viam-se bosquetes, atravessados pelo caminho que se guiam. Em cada um desses bosquetes, receando uma emboscada, o aio mandava na frente os dois lacaios do Conde, que assim formavam a vanguarda. O preceptor e os dois rapazes representavam o corpo do exército, e Olivain, com a carabina no joelho e de olho vivo, vigiava a retaguarda.

Fazia algum tempo que um bosque mais espesso surgia no horizonte; chegado a cem passos do bosque, o Sr. d'Arminges tomou as precauções habituais e mandou na frente os lacaios do Conde.

Estes acabavam de desaparecer sob as árvores; rindo e conversando, os rapazes e o preceptor acompanhavam-nos a uns cem passos, mais ou menos. Olivain mantinha-se a uma distância igual quando, de repente, soaram cinco ou seis tiros de mosquete. O preceptor gritou alto, os dois rapazes obedeceram e frearam os cavalos. No mesmo instante voltaram a galope os dois lacaios.

Impacientes por conhecerem a causa dos tiros, os dois jovens correram para os criados, seguidos do aio.

— Fostes detidos? — perguntaram, açorados.

— Não — responderam os lacaios; — é até provável que nem tenhamos sido vistos; os tiros soaram a uns cem passos de distância, na nossa frente, no lugar mais espesso do bosque, e voltamos para pedir conselho.

— O meu conselho — acudiu o Sr. d'Arminges — e, se for preciso, a minha vontade, é que nos retiremos: esse bosque pode esconder uma tocaia.

— Então não vistes nada? — perguntou o Conde ao lacaio.

— Pareceu-me ter visto — disse um deles — uns cavaleiros vestidos de amarelo escondidos na barranca do rio.

— É isso — tornou o aio — caímos nas mãos de um troço de guerrilheiros espanhóis. Para trás, senhores, para trás.

Os dois rapazes consultaram-se com o rabo dos olhos e, nesse momento, ouviu-se um tiro de pistola seguido de dois ou três gritos, que pediam socorro.

Certificaram-se os dois jovens por um último olhar de que nenhum estava disposto a recuar e, como o preceptor já virará o cavalo, atiraram-se para a frente. Raul gritou: "A mim, Olivain!" e o Conde de Guiche: "A mim, Urbano e Blanchet!"

E antes que o aio se recobrasse da surpresa, já haviam desaparecido na espessura do bosque.

Ao mesmo tempo que esporeavam os cavalos, tinham os dois empunhado a pistola.

Cinco minutos depois chegavam ao lugar de onde parecia ter vindo o ruído. Diminuíram o passo dos cavalos e adiantaram-se com precaução.

— Pssiu! — fez de Guiche para os cavaleiros.

— Sim, três a cavalo e três a pé.

— Que estão fazendo? Podeis vê-los?

— Parece que revistam um homem ferido ou morto.

— É algum covarde assassínio — disse de Guiche.

— Mas são soldados — volveu Bragelonne.

— São guerrilheiros, isto é, salteadores de estradas.

— Ataquemos! — disse Raul.

— Ataquemos! — disse de Guiche.

— Senhores! — gritou o pobre preceptor; — Senhores, pelo amor de Deus...

Mas os rapazes não ouviam. Corriam à compita e os gritos do aio só serviram de prevenir os espanhóis.

No mesmo instante, os três guerrilheiros que se achavam a cavalo atiraram-se ao encontro dos atacantes, ao passo que os três outros acabavam de despojar os dois viajantes; pois, ao chegarem mais perto, em lugar de um corpo estendido no chão, os fidalgos avistaram dois.

A dez passos, de Guiche atirou primeiro e errou o tiro; o espanhol que vinha contra Raul atirou, por sua vez, e Raul sentiu no braço esquerdo uma dor semelhante à de uma chicotada. A quatro passos, atirou também, e o espanhol, atingido no meio do peito, estendeu os braços e caiu de costas sobre a garupa do cavalo, que largou a fugir, arrastando-o.

Nesse momento, como através de uma nuvem, Raul viu o cano de um mosquete apontado para ele. Ocorreu-lhe ao espírito a recomendação de Athos: num movimento rápido como o raio, fez empinar-se o cavalo e o tiro partiu.

O cavalo deu um salto de lado, faltou-lhe o chão e caiu, prendendo a perna de Raul debaixo do corpo.

O espanhol correu, segurando o mosquete pelo cano, para quebrar a cabeça de Raul com a coronha. Infelizmente, na posição em que se achava, Raul não podia tirar a espada da bainha nem a pistola dos coldres: viu a coronha revolutear sobre a cabeça e, mau grado seu, ia fechar os olhos, quando, num salto, caiu de Guiche sobre o espanhol e pôs-lhe a pistola no peito.

— Rende-te — bradou — ou mato-te.

O mosquete fugiu das mãos do soldado, que se rendeu no mesmo instante.

De Guiche chamou um dos lacaios, entregou-lhe o prisioneiro para guardar, ordenando que lhe estourasse os miolos à primeira menção de fuga, apeou e aproximou-se de Raul.

— À minha fé — disse Raul, a rir, se bem a palidez lhe traísse a inevitável comoção do primeiro encontro — pagas depressa as tuas dívidas e não quiseste dever-me obrigação por muito tempo. Sem ti — ajuntou, repetindo as palavras do Conde — eu estaria morto, três vezes morto.

— Abrindo no pé, o meu inimigo deixou-me em liberdade para socorrer-te — respondeu de Guiche; — mas estás gravemente ferido? Vejo-te ensangüentado!

— Creio — tornou Raul — que devo ter um arranhãozinho no braço. Ajuda-me a sair de baixo do cavalo e espero que nada nos impedirá de continuarmos o caminho.

O Sr. d'Arminges e Olivain já tinham desmontado e erguiam o cavalo, que estertoram nas vascas da agonia. Raul conseguiu retirar o pé do estribo e a perna de baixo do corpo do cavalo; instantes depois, viu-se em pé.

— Nada quebrado ? — perguntou de Guiche.

— Nada, graças a Deus — respondeu Raul. — Mas que foi feito dos infelizes que os miseráveis assassinavam?

— Chegamos tarde demais, e creio que os mataram e puseram-se ao fresco levando os despojos; mas dois lacaios estão perto dos cadáveres.

— Talvez não estejam completamente mortos e possamos acudir-lhes — disse Raul. — Olivain, herdamos dois cavalos, mas eu perdi o meu: escolhe o melhor dos dois para ti e dá-me o teu.

E aproximaram-se do sítio em que jaziam as vítimas.


 O MONGE

 

Dois homens estavam estendidos: um imóvel, o rosto na terra, atravessado por três balas e nadando no próprio sangue... esse estava morto. O outro, encostado a uma árvore pelos dois lacaios, com os olhos voltados para o céu e as mãos juntas, fazia uma ardente oração... Uma bala arrebentara-lhe o alto da coxa. Os jovens aproximaram-se primeiro do morto e entreolharam-se pasmados.

— É um padre — disse Bragelonne — tonsurado. Oh! malditos! que levantam a mão contra os ministros de Deus!

— Vinde aqui, senhor — disse Urbano, velho soldado que fizera todas as campanhas com o Cardeal-Duque; — vinde aqui... não se pode fazer mais nada com o outro, mas este talvez se possa salvar.

O ferido sorriu tristemente.

— Salvar-me! não — disse ele; — mas ajudar-me a morrer, sim.

— Sois padre? — perguntou Raul.

— Não, senhor.

— Mas o vosso infeliz companheiro pareceu-me pertencer à Igreja — tornou Raul.

— É o cura de Béthune, senhor; levava para lugar seguro os vasos sagrados da igreja e o tesouro do capítulo; pois o Sr. Príncipe deixou ontem a nossa cidade, e é possível que o espanhol a ocupe amanhã; ora, sabendo que guerrilheiros inimigos percorriam os campos e que a missão era arriscada, ninguém se atreveu a acompanhá-lo e eu me ofereci.

— E esses miseráveis vos atacaram, esses miseráveis atiraram num padre!

— Senhores — disse o ferido olhando à sua volta — estou sofrendo muito, mas quisera ser transportado para alguma casa.

— Onde pudésseis ser socorrido? — perguntou de Guiche.

— Não, onde eu pudesse confessar-me.

— Mas talvez — disse Raul — não estejais tão gravemente ferido quanto imaginais.

— Senhores — volveu o ferido — crede-me, não há tempo para perder, a bala quebrou o colo do fêmur e penetrou os intestinos.

— Sois médico? — perguntou de Guiche.

— Não — retrucou o moribundo — mas entendo um pouco de ferimentos, e o meu é mortal. Tentais, pois, levar-me a algum lugar onde eu possa encontrar um padre, ou fazei-me o favor de trazê-lo aqui; Deus vos recompensará esta santa ação; é preciso salvar a alma, pois o corpo já está perdido.

— Morrer ao fazer uma boa obra? Impossível! Deus vos assistirá.

— Senhores, em nome do céu! — instou o ferido reunindo todas as forças como se quisesse levantar-se — não percamos tempo com palavras inúteis: ajudai-me a chegar à aldeia mais próxima, ou jurai-me, pela vossa salvação, que mandareis aqui o primeiro monge, o primeiro cura, o primeiro padre que encontrardes. Mas, -— acrescentou em tom de desespero — talvez ninguém tenha coragem de vir, pois todos sabem que os espanhóis andam por aí, e morrerei sem absolvição. Meu Deus! meu Deus! — acrescentou, num tom de terror que fez estremecer os circunstantes — não permitireis uma coisa dessas, não é verdade? Seria terrível demais!

— Senhor, tranqüilizai-vos — disse de Guiche — eu vos juro que tereis a consolação que pedis. Dizei-nos apenas onde há uma casa onde possamos pedir socorros e uma aldeia onde possamos encontrar um padre.

— Obrigado, Deus vos pague! Há uma estalagem a meia légua daqui seguindo esta estrada, e a uma légua adiante da estalagem encontrareis a aldeia de Greney. Procurai o cura; se o cura não estiver em casa, entrai no convento dos Agostinhos, que é a última casa da aldeia à direita, e trazei-me um frade, que importa! Frade ou cura, basta que tenha recebido de nossa santa Igreja a faculdade de absolver in articulo mortis.

— Sr. d'Arminges — disse de Guiche — ficai ao lado deste infeliz e providenciai para que seja transportado o mais suavemente possível. Fazei uma padiola com galhos de árvores, colocai sobre ela todas as nossas capas; dois lacaios o carregarão, e o terceiro se revezará com o que se cansar. Iremos, o Visconde e eu, buscar um padre.

— Ide, Sr. Conde — disse o preceptor! — mas, pelo amor de Deus! não vos expondes.

— Descansai. Aliás, estamos salvos por hoje; conheceis o axioma: Non bis in idem.

— Coragem, senhor! — disse Raul ao ferido — vamos cumprir o vosso desejo.

— Deus vos abençoe, senhores! — respondeu o moribundo em tom de reconhecimento impossível de traduzir-se.

E os dois rapazes partiram a galope na direção indicada, ao passo que o preceptor do Conde de Guiche presidia ao arranjo da padiola.

Ao cabo de dez minutos de galope os dois jovens avistaram a estalagem.

Sem descer do cavalo, Raul chamou o taberneiro, avisou-o de que iam trazer-lhe um ferido e rogou-lhe que preparasse, enquanto esperava, o necessário ao seu tratamento, isto é, ataduras e fios de linho, pedindo-lhe, além disso, que, se conhecesse nos arredores algum médico, cirurgião ou operador, mandasse buscá-lo, que ele, Raul, gratificaria o mensageiro.

Vendo dois jovens fidalgos ricamente vestidos, o estalajadeiro prometeu fazer quanto pediam, e os dois cavaleiros, depois de presenciarem o início dos preparativos para a recepção, partiram de novo e seguiram a galope o caminho de Greney.

Tinham cavalgado mais de uma légua e já lobrigavam as primeiras casas da aldeia, cujos tetos cobertos de telhas vermelhas se destacavam com vigor das árvores verdes que as cercavam, quando bisparam, vindo na sua direção, montado numa mula, um pobre monge que, pelo chapelão e pela sotaina de lã parda, tomaram por um frade agostiniano. Desta feita o acaso parecia enviar-lhes o que procuravam.

Acercaram-se do monge.

Era um homem de vinte e dois a vinte e três anos, mas aparentemente envelhecido pelas práticas ascéticas. Pálido! não dessa palidez mate, que é bela, mas de um amarelo bilioso, o cabelo curto, que mal extrapassava o círculo traçado pelo chapéu sobre a testa, era de um louro pálido também, e os olhos, de um azul claro, pareciam desprovidos de vista.

— Senhor — disse Raul com a costumeira polidez — sois eclesiástico?

— Por que mo perguntais? — respondeu o estrangeiro com uma impassibilidade quase incivil.

— Para sabê-lo — tornou o Conde de Guiche com altivez.

O estranho espicaçou a mula com o calcanhar e continuou o trotar.

De Guiche, num salto, colocou-se diante dele e embargou-lhe o passo.

— Respondei! — disse ele. — Fostes interrogado civil-mente e toda pergunta exige uma resposta.

— Suponho ter o direito de dizer ou não dizer quem sou às duas primeiras pessoas que aparecem e que têm o capricho de interrogar-me.

De Guiche mal conteve um desejo furioso de quebrar os ossos do frade.

— Primeiro — volveu ele, fazendo tremendo esforço sobre si mesmo — não somos as duas primeiras pessoas que aparecem; o meu amigo é o Visconde de Bragelonne e eu sou o Conde de Guiche. E também não é por capricho que fazemos a pergunta, pois aqui perto está um homem, ferido e moribundo, que reclama os socorros da Igreja. Se sois padre, eu vos ordeno, em nome da humanidade, que me acompanheis para socorrê-lo; se o não sois, é outra coisa, e eu vos previno, em nome da cortesia, que pareceis ignorar tão completamente, de que vou castigar-vos a insolência.

De pálido que era o homem tornou-se lívido, e sorriu de modo tão estranho, que Raul, que o não perdia de vista, sentiu o sorriso apertar-lhe o coração como um insulto.

— É algum espião espanhol ou flamengo — disse ele, pondo a mão na coronha das pistolas.

Um olhar ameaçador e semelhante a um relâmpago respondeu-lhe.

— E então! — insistiu de Guiche — respondereis?

— Sou padre, senhores — disse o moço. E o rosto voltou à impassibilidade habitual.

— Então, meu pai — acudiu Raul, deixando recair as pistolas nos coldres e impondo às palavras um acento respeitoso que não lhe saía do coração — se sois padre, encontrar eis, como já disse o meu amigo, ocasião de exercer o vosso sacerdócio; um pobre ferido vem ao nosso encontro e deve parar na próxima estalagem; pede a assistência de um ministro de Deus; nossos criados o acompanham.

— Eu vou — disse o monge. E tornou a espicaçar a mula.

— Se não fordes, senhor — declarou de Guiche — crede que temos cavalos capazes de alcançar-vos a mula, um crédito capaz de fazer-vos prender onde quer que estejais; e juro que, nesse caso, o vosso processo não demorará em ser feito: em toda a parte se encontram uma árvore e uma corda.

Os olhos do monge tornaram a fuzilar, mas foi só; repetiu a frase, "Eu vou", e partiu.

— Sigamo-lo — sugeriu de Guiche — será mais garantido.

— Era o que eu ia propor-te — disse Bragelonne.

E os dois rapazes se puseram novamente a caminho, regulando o passo pelo do frade, que seguiam à distância de um tiro de pistola.

Ao cabo de cinco minutos o monge voltou-se para saber se era seguido ou não.

— Vê — disse Raul — fizemos bem!

— Que cara medonha tem esse frade! — observou o Conde de Guiche.

— Medonha — concordou Raul; — sobretudo a expressão; o cabelo amarelo, os olhos baços, os lábios que desaparecem à primeira palavra que pronuncia...

— Sim, sim — disse de Guiche, a quem haviam impressionado menos do que a Raul todas essas minúcias, visto este o examinara durante todo o tempo em que o Conde falara; — sim, uma cara esquisita; mas esses monges estão sujeitos a práticas tão degradantes! Os jejuns fazem-nos pálidos, as disciplinas fazem-nos hipócritas, e é de tanto chorarem os bens da vida, que eles perderam e nós fruímos, que os seus olhos se tornam baços.

— Enfim — tornou Raul — o pobre homem terá o seu padre; mas, por Deus! o penitente parece possuir melhor consciência do que o confessor. Quanto a mim, declaro que estou habituado a ver padre de aspecto muito diverso.

— Ah! — acudiu de Guiche — compreendes agora? Este é um daqueles frades errantes que andam mendigando pelas estradas até que, um dia, um benefício lhes cai do céu; na maioria, são estrangeiros: escoceses, irlandeses, dinamarqueses. Já me mostraram outros parecidos.

— Feios como este?

— Não, mas razoavelmente horrorosos.

— Que desgraça para o pobre ferido morrer nas mãos de um padre assim!

— Ora! — disse de Guiche — a absolvição não vem de quem a dá, mas de Deus". Entretanto, queres que eu te diga? Preferiria morrer impenitente a confessar-me com tal confessor. És do meu parecer, hein, Visconde? Eu via-te acariciar a coronha da pistola como se tivesses a intenção de quebrar-lhe a cabeça.

— Sim, Conde, é uma coisa estranha, e que talvez te surpreenda, mas o caso é que senti, à vista desse homem, um horror indefinível. Já viste, alguma vez, erguer-se uma cobra no caminho?

— Nunca — disse de Guiche.

— Pois isso já me sucedeu em nossas florestas do Blaisois, e lembro-me de que à vista da primeira que me olhou com os olhos baços, enrolada sobre si mesma, meneando a cabeça e agitando a língua, fiquei imóvel, pálido e como fascinado até o momento em que o Conde de La Fere...

— Teu pai? — perguntou de Guiche.

— Meu tutor — respondeu Raul, enrubescendo.

— Muito bem.

— Até o momento — continuou Raul — em que o Conde de La Fere me disse: "Vamos Bragelonne, puxa da espada." Só então corri para o réptil e o cortei em dois pedaços, no momento em que ele se erguia sobre a cauda, silvando, e preparava-se para atacar-me. Pois juro-te que senti exatamente a mesma coisa à vista desse homem quando ele disse: "Por que mo perguntais?" e olhou para mim.

— Nesse caso, estás arrependido de o não teres cortado em dois, como a serpente?

— Quase que estou, palavra! — confessou Raul. Nesse momento avistaram a estalagem e, do outro lado, o cortejo do ferido que se adiantava guiado pelo Sr. d'Arminges. Dois homens carregavam o moribundo e o terceiro trazia os cavalos pela rédea.

Os rapazes esporearam as montarias.

— Eis aí o ferido — disse de Guiche, passando perto do agostinho; — tende a bondade de apressar-vos um pouco, Sr. Monge.

Quanto a Raul, afastou-se do frade toda a largura do caminho e passou virando o rosto com repugnância.

Eram agora os jovens que precediam o confessor em lugar de segui-lo. Aproximaram-se do ferido e deram-lhe a boa notícia. Este se ergueu para olhar na direção indicada, viu o monge que se aproximava estugando o passo da mula e recaiu sobre a maça com o rosto iluminado por um raio de alegria.

— Agora — disseram os rapazes — fizemos por vós o que podíamos fazer; mas como temos pressa de alcançar o exército do Sr. Príncipe, continuaremos o nosso caminho; vós nos dareis licença, não é verdade? Dizem que vai travar-se uma batalha e não gostaríamos de chegar no dia seguinte.

— Ide, meus jovens senhores —gaguejou o ferido — e abençoados sejais pela vossa piedade. Fizestes, de fato, o que podíeis fazer por mim; e eu só posso dizer-vos ainda uma vez: Deus vos guarde, a vós e aos que vos são caros!

— Senhor — disse de Guiche ao preceptor — iremos na frente e vós nos alcançareis na estrada de Cambrin.

O taberneiro estava à porta e preparara tudo, leito, ataduras e fios de linho; um cavalariço fora chamar um médico de Lens, que era a cidade mais próxima.

— Bem — disse o estalajadeiro — far-se-á como desejais; mas não vos defendes, senhor, para pensar a vossa ferida? — continuou, dirigindo-se a Bragelonne.

— Ora! a minha ferida não é nada — redargüiu o Visconde — e terei tempo de curá-la na próxima parada; peço-vos apenas, se virdes passar um cavaleiro e esse cavaleiro vos pedir notícias de um rapaz montado num alazão e seguido de um criado, a bondade de dizer-lhe que efetivamente me vistes, mas que prossegui viagem e espero jantar em Mazingarbe e dormir em Cambrin. Esse cavaleiro é meu criado.

— Não seria melhor, e para maior segurança, que eu lhe perguntasse o nome e lhe dissesse o vosso? — acudiu o estalajadeiro.

— Nunca é mau o excesso de precaução — concordou Raul; — chamo-me Visconde de Bragelonne e ele se chama Grimaud.

Nesse momento o ferido chegava de um lado e o monge do outro; os dois rapazes recuaram para deixar passar a padiola; o monge, por seu turno, desceu da mula e ordenou que a levassem para a cocheira sem a desarrear.

— Sr. Monge — disse de Guiche — confessai bem esse bravo homem e não vos inquieteis nem com a vossa despesa nem com a da vossa mula: está tudo pago.

— Obrigado, senhor! — retrucou o monge com um daqueles sorrisos que tinham feito estremecer Bragelonne.

— Vem, Conde — rogou Raul, que parecia instintivamente incapaz de suportar a presença do agostiniano — vem, que me sinto mal aqui.

— Obrigado, ainda uma vez, meus bons e jovens senhores — repetiu o ferido — e não vos esqueçais de mim em vossas orações.

— Não tende cuidado! — disse de Guiche esporeando o cavalo para alcançar Bragelonne, que já se adiantara uns vinte passos.

Nesse momento a padiola, carregada pelos dois lacaios, entrava na casa. O taberneiro e a mulher, que se haviam aproximado, estavam em pé nos degraus da escada. O infeliz parecia sofrer dores atrozes; entretanto, a sua única preocupação consistia em saber se o monge o seguia.

À vista do homem pálido e ensangüentado, a mulher segurou com força o braço do marido.

— Então! Que é que há? — perguntou o homem. — Não te sentes bem, por acaso?

— Não tenho nada, mas olha! — disse a estalajadeira mostrando o ferido.

— Santo Deus! Parece-me malferido.

— Não é isso o que quero dizer — tornou a mulher, que começara a tremer; — não o reconheces?

— Esse homem? Espera um pouco...

— Ah! vejo que sim — disse a mulher — porque ficaste pálido também.

— Realmente! — exclamou o taberneiro. — Estamos desgraçados, é o carrasco de Béthune!

— O antigo carrasco de Béthune! — murmurou o jovem monge, parando repentinamente e deixando transparecer no rosto o sentimento de repugnância que lhe inspirava o penitente.

O Sr. d'Arminges, que ficara no limiar da porta, notou-lhe a hesitação.

— Sr. monge — disse ele — por ser ou por ter sido carrasco, esse desgraçado não deixa de ser um homem. Prestai-lhe, portanto, o último serviço que reclama de vós e a vossa obra será, por isso mesmo, ainda mais meritória.

O monge não respondeu, mas continuou em silêncio o caminho para o quarto do andar térreo em que os dois criados já tinham colocado o moribundo sobre um leito.

D'Arminges e Olivain esperavam-nos; tornaram a cavalgar e os quatro partiram a trote, seguindo a estrada em cujo extremo já tinham desaparecido Raul e o companheiro.

No momento em que o preceptor e a sua escolta desapareciam, outro viajante se deteve à porta da estalagem.

— Que desejais, senhor? — perguntou o estalajadeiro, ainda pálido e trêmulo em razão do descobrimento que acabara de fazer.

O viajante fez o sinal de quem bebe, apeou, mostrou o cavalo e fez o sinal de quem esfrega.

— Oh! diabo! — disse entre si o taberneiro — este parece que é mudo.

— E onde quereis beber? — perguntou.

— Aqui — replicou o viajante mostrando uma mesa.

— Enganei-me — volveu o estalajadeiro com os seus botões — não é mudo de todo.

Inclinou-se, foi buscar uma garrafa de vinho e biscoitos, e depositou-os diante do hóspede taciturno.

— Não desejais mais nada? — perguntou.

— Desejo — respondeu o viajante.

— O quê?

— Saber se vistes passar um jovem fidalgo de quinze anos, montado num cavalo alazão e seguido de um lacaio.

— O Visconde de Bragelonne? — perguntou o estalajadeiro.

— Precisamente.

— Sois vós, então, o Sr. Grimaud? O viajante fez sinal que sim.

— Pois bem! — tornou o estalajadeiro — não faz um quarto de hora que o vosso jovem amo esteve aqui; jantará em Mazingarbe e dormirá em Cambrin.

— Quanto dista Mazingarbe daqui?

— Duas léguas e meia.

— Obrigado.

Certo de encontrar o amo antes do fim do dia, Grimaud pareceu mais calmo, enxugou a testa e encheu o copo de vinho, que bebeu em silêncio.

Acabava de colocar o copo sobre a mesa e já se preparava para enchê-la segunda vez, quando um grito terrível partiu do quarto em que se achavam o monge e o moribundo.

Grimaud ergueu-se em pé.

— Que é isso? — perguntou. — E de onde vem esse grito?

— Do quarto do ferido — respondeu o estalajadeiro.

— Que ferido? — perguntou Grimaud.

— O antigo carrasco de Béthune, que acaba de ser assassinado por guerrilheiros espanhóis; trouxeram-no para cá e, neste momento, está sendo ouvido em confissão por um frade agostinho: parece que sofre muito.

— O antigo carrasco de Béthune? — murmurou Grimaud reunindo as lembranças... — um homem de cinqüenta e cinco a sessenta anos, alto, robusto, trigueiro, de barbas e cabelos pretos?

— Isso mesmo, com a diferença de que as barbas ficaram grisalhas e os cabelos estão brancos. Conhecei-lo? — perguntou o taberneiro.

— Vi-o uma vez — disse Grimaud, carregando o cenho ante o quadro que lhe oferecia a memória.

A mulher aproximara-se, a tremer.

— Ouviste? — perguntou ao marido.

— Ouvi — respondeu o homem olhando, inquieto, para a porta.

Nesse momento, um grito menos forte que o primeiro, mas seguido de prolongado gemido, partiu do mesmo lugar. Os três personagens entreolharam-se, fremindo.

— É preciso ver o que aconteceu — disse Grimaud.

— Parece o grito de um homem que estão esganando — murmurou o dono da hospedaria.

— Jesus! — exclamou a mulher, persignando-se. Grimaud falava pouco mas, como se sabe, agia muito.

Atirou-se para a porta e sacudiu-a vigorosamente. Estava trancada por dentro.

— Abri! — gritou o taberneiro — abri; Sr. monge, abri! Ninguém respondeu.

— Abri ou arrombo a porta! — insistiu Grimaud. Silêncio.

Grimaud atirou os olhos em torno e viu uma alavanca que, por acaso, se achava num canto; correu para ela e, antes que o estalajadeiro pudesse impedi-lo, escancarou a porta.

Inundava o quarto o sangue coado pelos colchões; o ferido estertorava; o monge sumira.

— O monge? — gritou o estalajadeiro. — Onde está o monge?

Grimaud precipitou-se para uma janela aberta que dava para o pátio.

— Deve ter fugido por aqui — disse ele.

— Será? — perguntou o homem, pasmado. — Rapaz, vê se a mula do frade está na cocheira.

— Não está! — replicou o criado a quem fora dirigida a pergunta.

Grimaud franziu o cenho, o estalajadeiro juntou as mãos e olhou à sua volta com desconfiança. Quanto à mulher, que não tivera coragem de entrar no quarto, permanecia em pé, espavorida, na soleira da porta.

Grimaud aproximou-se do ferido, considerando os traços rudes e acentuados que lhe evocavam uma lembrança tão terrível.

Por fim, depois de um momento de triste e muda contemplação:

— Já não há dúvidas — disse — é ele mesmo.

— Ainda vive? — perguntou o taberneiro.

Sem responder, Grimaud lhe abriu o gibão para apalpar-lhe o coração, ao passo que o estalajadeiro também se aproximava; mas, de repente, recuaram os dois, o taberneiro dando um grito de horror, Grimaud empalidecendo.

A lâmina de um punhal estava enterrada até ao cabo no lado direito do peito do carrasco.

— Ide buscar socorro — disse Grimaud — que ficarei perto dele.

O estalajadeiro saiu apavorado; quanto à mulher, fugira ao grito do marido.

 

A ABSOLVIÇÃO

 

Eis o que se passara.

Não por efeito da própria vontade, mas, pelo contrário, muito a contragosto, escoltara o monge o ferido que lhe fora recomendado de maneira tão estranha. Talvez tivesse tentado fugir se entrevisse possibilidade da fazê-lo; mas as ameaças dos dois fidalgos, a comitiva que haviam deixado e que sem dúvida recebera instruções, e, para dizermos tudo, a própria reflexão levara-o, sem aparentar excessiva repugnância, a representar até ao fim o papel de confessor; depois de entrar no quarto, acercara-se da cabeceira do ferido.

O carrasco examinou com o olhar rápido, dos que vão morrer e não têm tempo para perder, o rosto daquele que devia ser o seu consolador; fez um gesto de surpresa e disse:

— Sois bem jovem, meu pai?

— As pessoas que trazem o meu hábito não têm idade — respondeu secamente o monge.

— Ai de mim! falai-me com mais doçura, meu pai — disse o ferido — preciso de um amigo nos últimos momentos.

— Sofreis muito? — perguntou o monge.

— Sim; mas muito mais da alma que do corpo.

— Salvaremos a vossa alma — disse o jovem; — mas sois realmente o carrasco de Béthune, como diz essa gente?

— Isto é — tornou com vivacidade o ferido, decerto receoso de que o nome de carrasco afastasse de si os últimos socorros que reclamava — isto é, fui carrasco de Béthune, mas já não o sou; há quinze anos que renunciei o cargo. Figuro ainda nas execuções, mas não executo!

— Tendes horror ao vosso ofício? O carrasco exalou profundo suspiro.

— Enquanto executei apenas em nome da lei e da justiça — disse ele — o meu ofício permitiu-me dormir sossegado, pois eu me sentia ao abrigo da justiça e da lei; mas depois daquela noite terrível em que servi de instrumento a umavingança particular e em que levantei o gládio com ódio contra uma criatura de Deus, desde esse dia...

O carrasco fez uma pausa, sacudindo a cabeça com ar desesperado.

— Falai — disse o frade, que se assentara ao pé do leito do ferido e principiava a interessar-se por uma narrativa que se anunciava de maneira tão estranha.

— Ah! — exclamou o moribundo com todo o ímpeto de uma dor longamente comprimida e que afinal estoura — no entanto, tentei sufocar o remorso com vinte anos de boas ações; lancei de mim a ferocidade natural àqueles que derramam sangue; em todas as ocasiões expus a vida para salvar a dos que se achavam em perigo, e conservei na terra existências humanas em troca daquela que eu lhe arrebatara. E não é tudo: distribuí entre os pobres os bens que adquiri no exercício da profissão, entrei a freqüentar assiduamente as igrejas, as pessoas que fugiam de mim habituaram-se a ver-me. Todos me perdoaram, alguns chegaram a amar-me; mas creio que Deus não me perdoou, pois a lembrança dessa execução me persegue sem cessar e cuido ver diante de mim, todas as noites, o espectro daquela mulher.

— Uma mulher! Foi, então, uma mulher que assassinastes? — bradou o monge.

— Vós também! — exclamou o carrasco — vós também usais essa palavra que não me sai dos ouvidos: assassino! Quer dizer que a assassinei e não a executei! Sou, portanto, um assassino e não um justiceiro!

E fechou os olhos com um gemido.

O frade temeu, sem dúvida, que ele morresse sem concluir a narrativa, pois tornou, rápido:

— Continuai, eu não sei nada; quando terminardes a história, Deus e eu julgaremos.

— Oh! meu pai! — continuou o carrasco sem reabrir os olhos, como se receasse, ao abri-los, rever algum objeto apavorante — é sobretudo à noite, quando atravesso algum rio, que redobra esse terror que não pude vencer: parece-me, então, que a mão se me torna ainda mais pesada, como se ainda empunhasse o cutelo; que a água assume a cor do sangue, e que todas as vozes da natureza, o farfalhar das árvores, a murmurar do vento, o marulhar das águas, se reúnem para formar uma voz plangente, desesperada, terrível, que me grita: "Deixai passar a justiça de Deus!"

— Delírio! — murmurou o frade sacudindo a cabeça por seu turno.

O carrasco voltou a abrir os olhos, fez um movimento para virar-se do lado do rapaz e agarrou-lhe o braço.

— Delírio — repetiu — delírio, dizeis vós? Oh! não, pois era de noite, atirei-lhe o corpo no rio, as palavras que me repete o remorso fui eu quem, no meu orgulho, as pronunciei; depois de ter sido o instrumento da justiça humana, eu cria-me convertido no da justiça de Deus.

— Mas, vejamos, como foi isso? Falai — instou o monge.

— Uma noite, um homem foi procurar-me, mostrou-me uma ordem, eu o segui. Quatro senhores me esperavam. Levaram-me embuçado. Preparando-me para resistir se o ofício que reclamavam de mim me parecesse injusto, cavalgamos cinco ou seis léguas, sombrios, silenciosos e quase sem trocar uma palavra; afinal, através das janelas de uma choupana, mostraram-me uma mulher com os cotovelos apoiados sobre uma mesa e disseram-me: "Eis a que deve ser executada."

— Que horror! — disse o monge. — E vós obedecestes?

— Meu pai, essa mulher era um monstro: envenenara, dizia-se, o segundo marido, tentara assassinar o cunhado, que se encontrava entre aqueles homens; acabava de envenenar uma rapariga que era sua rival e, antes de deixar a Inglaterra, mandara apunhalar o favorito do Rei.

— Buckingham? — exclamou o monge.

— Sim, Buckingham, isso mesmo.

— Era inglesa, a mulher?

— Não, francesa, mas casara na Inglaterra.

O monge empalideceu, enxugou a testa e correu o fecho da porta. O carrasco imaginou que ele o abandonasse e recaiu, gemendo, na cama.

— Não, não, eis-me aqui — tornou o monge, voltando logo para junto dele; — continuai: quem eram esses homens?

— Um era estrangeiro, inglês, se não me engano. Os outros quatro eram franceses e vestiam a farda de mosqueteiros.

— Os seus nomes? — perguntou o frade.

— Não os conheço. Sei apenas que os outros chamavam ao inglês Milorde.

— E era bela a mulher?

— Jovem e bela, sobretudo bela. Ainda a vejo, de joelhos a meus pés, rezando com a cabeça atirada para trás. Nunca mais compreendi depois disso como pude degolar uma cabeça tão bela e tão pálida.

O monge parecia agitado por estranha comoção. Tremiam-lhe todos os membros; via-se que ele queria fazer uma Pergunta, mas que não se atrevia a fazê-la.

Afinal, depois de um esforço violento sobre si mesmo:

— O nome dela? — perguntou.

— Não sei. Como eu vos disse, casara duas vezes, segundo parece: uma em França, outra na Inglaterra.

— E dizeis que era jovem?

— Vinte e cinco anos.

— Bela?

— Fascinante. — Loira?

— Sim.

— Cabelos compridos? Que lhe caíam até aos ombros...? — Sim.

— Olhos de admirável expressão?

— Quando queria. Sim, sim, é isso mesmo.

— Voz de estranha doçura?

— Como o sabeis?

O carrasco firmou-se nos cotovelos e fitou o olhar espavorido no monge, que se tornara lívido.

— E vós a matastes! — rouquejou o frade; — servistes de instrumento a esses covardes, que não tinham coragem de matá-la! Não tivestes pena de tanta juventude, de tanta beleza, de tanta fraqueza. Matastes essa mulher?

— Ai de mim! — tornou o carrasco — eu já vos disse, meu pai, debaixo do invólucro celeste escondia-se um espírito infernal, e quando a vi, lembrei-me de todo o mal que me fizera...

— A vós? E que poderia ela ter-vos feito?

— Seduzira e perdera meu irmão, que era padre; fugira com ele do seu convento.

— Com vosso irmão?

— Sim. Meu irmão tinha sido o seu primeiro amante: fora ela a causa da morte de meu irmão. Oh! meu pai! meu pai! não me olheis assim. Oh! sou, então, culpado? Não me perdoar eis?

O frade compôs o rosto.

— Eu vos perdoarei se me disserdes tudo!

— Oh! — exclamou o carrasco — tudo! tudo! tudo!

— Então, respondei. Se ela seduziu vosso irmão... dissestes que o seduziu, não é verdade?

— Sim.

— Se causou a sua morte... dissestes que ela causou a sua morte?

— Sim — repetiu o carrasco.

— Então deveis saber-lhe o nome de solteira.

— ó meu Deus! — volveu o carrasco — meu Deus! Parece-me que vou morrer. A absolvição, meu pai! a absolvição!

— Dizei-lhe o nome! — exclamou o monge — e eu vos darei a absolvição.

— Ela chamava-se... meu Deus, tende piedade de mim!

— murmurou o carrasco.

E deixou-se cair sobre o leito, pálido, trêmulo, como um homem que vai morrer.

— Seu nome! — repetiu o frade, curvando-se sobre ele como para arrancar-lhe o nome se ele não quisesse dizê-lo;

— seu nome!... falai, ou não recebereis a absolvição!

O moribundo pareceu reunir todas as forças. Os olhos do monge fuzilavam.

— Ana de Bueil — murmurou o ferido.

— Ana de Bueil — exclamou o frade, empertigando-se e erguendo as mãos para o céu; — Ana de Bueil! dissestes Ana de Bueil, não foi?

— Sim, sim, era o seu nome. E agora, absolvei-me, que estou morrendo.

— Eu, absolver-te! — gritou o monge com uma gargalhada que fez eriçarem-se os cabelos do moribundo — eu, absolver-te? Eu não sou padre!

— Não sois padre! — bradou o carrasco. — Mas quem sois, então?

— Vou dizer-te também, miserável!

— Ah! senhor! meu Deus!

— Sou John Francis de Winter!

— Não vos conheço! — exclamou o carrasco.

— Espera, espera, vais conhecer-me: sou John Francis de Winter — repetiu ele — e essa mulher...

— Essa mulher?

— Era minha mãe!

O carrasco desferiu o primeiro grito, o grito tão terrível que atroara na estalagem.

— Oh! perdoai-me, perdoai-me — implorou — senão em nome de Deus, pelo menos em vosso nome; senão como padre, pelo menos como filho.

— Perdoar-te! — exclamou o falso monge — perdoar-te! Deus poderá fazê-lo, talvez; eu, nunca!

— Por piedade! — suplicou o carrasco, estendendo as mãos.

— Nenhuma piedade para quem não teve piedade; morre impenitente, morre desesperado, morre e sê condenado!

E, tirando da batina um punhal, cravou-lhe no peito: — Aí tens — disse ele — a tua absolvição! Foi então que se ouviu o segundo grito, mais fraco do que o primeiro, seguido de longo gemido.

O carrasco, que se havia soerguido, tornou a cair na cama. O monge, sem retirar o punhal da ferida, correu à janela, abriu-a, saltou sobre as flores de um canteirinho, chegou à cocheira, tirou a mula, saiu por uma porta de trás, correu até ao bosquete mais próximo, escondeu os trajos eclesiásticos, tirou da mala um fato completo de cavaleiro, vestiu-se, foi a pé até à primeira posta, alugou um cavalo e continuou, a toda a brida, o caminho de Paris.


 GRIMAUD FALA

 

Grimaud ficara só ao pé do carrasco; o estalajadeiro fora buscar socorros; a mulher rezava.

Ao cabo de um instante, o ferido tornou a abrir os olhos.

— Socorro! — murmurou; — socorro! Ó meu Deus, meu Deus! Não encontrarei um amigo neste mundo que me ajude a viver ou a morrer?

E levou com esforço a mão ao peito; a mão encontrou o cabo do punhal.

— Ah! — murmurou, como se se lembrasse. E deixou pender o braço.

— Coragem — disse Grimaud — foram buscar socorro.

— Quem sois? — perguntou o ferido fixando em Grimaud os olhos esbugalhadas.

— Um antigo conhecido — respondeu Grimaud.

— Vós?

O ferido tentou recordar os traços do homem que assim lhe falava.

— E que circunstâncias nos encontramos? — perguntou.

— Numa noite, faz vinte anos, meu amo foi buscar-vos em Béthune e vos conduziu a Armentières.

— Já vos reconheço — disse o carrasco — sois um dos quatro lacaios.

— Isso mesmo.

— De onde vindes?

— Eu passava pela., estrada; parei nesta hospedaria para dar descanso ao cavalo. Contavam-me que o carrasco de Béthume estava aqui, ferido, quando destes dois gritos. Ao primeiro acorremos, ao segundo arrombamos a porta.

— E o monge? — perguntou o carrasco; — vistes o monge?

— Que monge?

— O que estava aqui fechado comigo.

— Não, já não estava; parece que fugiu pela janela. Foi ele quem vos feriu?

— Foi — disse o carrasco. Grimaud fez um movimento para sair.

— Que ides fazer? — perguntou o ferido.

— Correr atrás dele.

— Livrai-vos disso.

— Por quê?

— Ele vingou-se, e fez bem. Agora, espero que Deus me perdoe, pois houve expiação.

— Explicai-vos.

— A mulher que vós e os vossos amos me fizestes matar...

— Milady?

— Sim, Milady, é verdade, assim lhe chamáveis...

— Que é que têm de comum Milady e o frade?

— Era mãe dele.

Grimaud cambaleou e cravou no moribundo um olhar parado e quase hebetado.

— Mãe dele? — repetiu.

— Sim, mãe dele.

— Mas ele, então, conhece o segredo?

— Julguei que fosse um frade, e contei-lhe em confissão.

— Desgraçado! — exclamou Grimaud, cujos cabelos se molharam de suor à simples idéia das conseqüências que poderia ter semelhante revelação; — desgraçado! Mas espero que não tenhais pronunciado nome nenhum, pelo menos?

— Não pronunciei, porque não os conheço, exceto o nome de solteira de sua mãe, e foi por ele que o filho a reconheceu; mas sabe que o tio estava entre os juizes.

E recaiu, exausto. Grimaud quis socorrê-lo e levou a mão para o cabo do punhal.

— Não me toqueis — pediu o carrasco; — se retirardes o punhal, morrerei.

Grimaud ficou com a mão estendida; depois, de repente, dando uma palmada na testa:

— Ah! mas se esse homem souber quem são os outros, meu amo estará perdido!

— Apressai-vos, apressai-vos! — bradou o moribundo; — avisai-o, se ainda estiver vivo; avisai os seus amigos; crede-me, a minha morte não será o fim dessa terrível aventura.

— Aonde ia ele? — perguntou Grimaud.

— A Paris.

— Quem o deteve?

— Dois jovens fidalgos que iam para o exército, e um dos quais, ouvi-lhe o nome pronunciado pelo companheiro, se chamava Visconde de Bragelonne.

— E foi esse rapaz quem vos trouxe o monge?

— Foi.

Grimaud ergueu os olhos para o céu

— Era então a vontade de Deus! — exclamou.

— Sem dúvida — disse o ferido.

— Eis o que é horroroso — murmurou Grimaud; — e, no entanto, essa mulher merecia a sua sorte. Já não pensais assim?

— Na hora de morrer — disse o carrasco — vemos os crimes dos outros bem pequenos diante dos nossos.

E caiu desfalecido, fechando os olhos.

Grimaud debatia-se entre a piedade, que não lhe permitia deixar o homem sem socorro, e o medo, que o impelia a partir imediatamente para levar a notícia ao Conde de La Fere, quando ouviu barulho no corredor e viu o estalajadeiro entrar com o cirurgião, afinal encontrado.

Seguiam-nos várias pessoas, atraídas pela curiosidade: a notícia do estranho sucesso começava a propalar-se.

O cirurgião aproximou-se do moribundo, que parecia sem sentidos.

— Em primeiro lugar, é preciso extrair o ferro do peito — declarou sacudindo a cabeça de maneira significativa.

Grimaud se lembrou da profecia que acabava de fazer o ferido e virou o rosto.

O cirurgião afastou o gibão, rasgou a camisa e pôs o peito a descoberto.

O ferro, como dissemos, fora enterrado até ao cabo.

O cirurgião pegou-o pela extremidade do cabo; à proporção que o puxava, o infeliz escancarava os olhos com apavorante fixidez. Quando a lâmina saiu inteiramente da chaga, uma espuma avermelhada coloriu a boca do ferido, mas no momento em que ele respirou, uma golfada de sangue jorrou do orifício da ferida; o moribundo fitou em Grimaud os olhos com estranha expressão, arquejou e morreu.

Grimaud pegou no punhal inundado de sangue que jazia no quarto e horrorizava a todos, fez sinal ao taberneiro que o seguisse, pagou a despesa com generosidade digna do amo e tornou a montar.

Pensara primeiro em voltar diretamente a Paris, mas lembrou-se da inquietação que a sua ausência prolongada causaria a Raul; lembrou-se de que Raul estava apenas a umas duas léguas dali, que num quarto de hora o alcançaria, e em menos de uma hora poderia ir, explicar-se e voltar: pôs 0 cavalo a galope e dez minutos depois descia no Mulet-Couronné, único albergue de Mazingarbe.

Às primeiras palavras que trocou com o estalajadeiro certificou-se de ter alcançado o Visconde.

Raul sentara-se à mesa com o Conde de Guiche e seu preceptor, mas a sombria aventura da manhã deixara sobre as duas jovens frontes uma ruga triste que a alegria do Sr. d'Arminges, mais filósofo do que eles pelo grande hábito que tinha de assistir a esses espetáculos, não conseguia dissipar.

De repente a porta se abriu, e Grimaud surgiu, pálido, poento, ainda coberto do sangue do infeliz ferido.

— Grimaud, meu bom Grimaud — exclamou Raul — até que enfim chegaste! Perdoai-me, senhores, não é um criado, é um amigo.

E, erguendo-se e correndo para ele:

— Como vai o Sr. Conde? — continuou; — tem tido saudades de mim? Viste-o depois que nos separamos? Responde, que também tenho muita coisa para contar-te. De três dias para cá têm-nos sucedido muitas aventuras. Mas, que tens? Estás pálido! Sangue! Por que esse sangue?

— Com efeito, há sangue — disse o Conde, erguendo-se. — Estais ferido, meu amigo?

— Não, senhor — disse Grimaud — esse sangue não é meu. — Mas de quem é? — perguntou Raul.

— Do infeliz que deixastes na estalagem, e que morreu nos meus braços.

— Nos teus braços! Aquele homem! Sabes quem era?

— Sei — disse Grimaud.

— O antigo carrasco de Béthune.

— Exatamente.

— Tu o conhecias?

— Conhecia.

— E ele morreu?

— Morreu.

Os dois rapazes entreolharam-se.

— Que quereis, senhores — acudiu d'Arminges — é a lei comum e, por ter sido carrasco, um homem não foge a ela. Desde que lhe vi o ferimento, fiquei mal impressionado; era a opinião dele também, visto que pediu um monge.

À palavra monge, Grimaud empalideceu.

— Vamos, vamos, para a mesa! — disse d'Arminges, que, como todos os homens dessa época e sobretudo de sua idade, não admitia a sensibilidade entre dois pratos.

— Sim, senhor, tendes razão — disse Raul. — Vamos, Grimaud, manda que te sirvam; dá as ordens que quiseres e depois que tiveres descansado conversaremos.

—Não, senhor, não — replicou Grimaud — não posso ficar nem um instante, preciso voltar a Paris.

— Como! Precisas voltar a Paris! Enganas-te, é Olivain quem volta; tu ficarás.

— Pelo contrário, é Olivain quem fica e volto eu. Vim aqui expressamente para prevenir-vos.

— Mas a troco de que essa alteração?

— Não posso dizer-vos..— Explica-te.

— Não posso explicar-me.

— Mas, afinal, que brincadeira é essa?

— Sabeis, senhor, que não brinco nunca.

— Sim, mas também sei que o Sr. Conde de La Fere determinou que ficasses comigo e que Olivain regressasse a Paris. Seguirei as ordens do Sr. Conde.

— Nesta circunstância não, senhor.

— Serás capaz de desobedecer-me?

— Sou, porque é preciso.

— Ainda persistes?

— Persisto; felicidades, Sr. Visconde.

Grimaud cumprimentou e voltou-se para a porta a fim de sair. Furioso e inquieto ao mesmo tempo, Raul correu atrás dele e segurou-o pelo braço.

— Grimaud! — bradou Raul — fica, eu o quero!

— Então — disse Grimaud — quereis que eu deixe morrer o Sr. Conde.

Grimaud tornou a cumprimentar e fez nova menção de sair.

— Grimaud, meu amigo — disse o Visconde — não par-tirás assim, não me deixarás em tamanha inquietação. Grimaud, fala, fala, pelo amor de Deus!

E Raul, cambaleando, deixou-se cair numa poltrona.

— Só posso dizer-vos uma coisa, porque o segredo que me pedis não me pertence. Encontrastes um monge, não é verdade?

— É.

Os dois jovens entreolharam-se espavoridos.

— Conduziste-lo para junto do ferido?

— Sim.

— Tivestes tempo suficiente para vê-lo?

— Tivemos.

— E podereis reconhecê-lo se tornardes a encontrá-lo?

— Sim, juro que sim — disse Raul.

— E eu também — disse de Guiche.

— Pois bem! se o encontrardes alguma vez — continuou Grimaud — onde quer que seja, na estrada, na rua, na igreja, onde ele estiver e onde estiverdes, ponde-lhe o pé em cima e esmagai-o sem piedade, sem misericórdia, como esmagaríeis uma víbora, uma serpente, uma áspide; esmagai-o e deixai-o somente quando ti verdes certeza da sua morte; a vida de cinco homens estará por um fio enquanto ele viver.

E sem acrescentar uma palavra, aproveitou-se Grimaud do pasmo e do terror em que deixara os ouvintes para sair, num pronto, da sala.

— E então, Conde! — exclamou Raul, voltando-se para de Guiche — eu não vos disse que o tal frade me produzia a impressão de um réptil?

Dois minutos depois ouvia-se na estrada o galope de um cavalo. Raul correu à janela.

Era Grimaud que voltava a Paris. Saudou o Visconde agitando o chapéu e logo desapareceu na primeira dobra do caminho.

Na estrada, Grimaud refletiu em duas coisas: primeiro, que, naquele andar, o cavalo não agüentaria dez léguas.

Segundo, que não tinha dinheiro.

Mas Grimaud era tanto mais imaginativo quanto menos falava.

Na primeira estação de mudas que encontrou, vendeu o cavalo e, com o dinheiro, tomou a diligência.


 A VÉSPERA DA BATALHA

 

Raul foi arrancado de suas sombrias reflexões pelo estalajadeiro, que entrou precipitadamente na sala onde se acabara de passar a cena que descrevemos, gritando:

— Os espanhóis! os espanhóis!

Tão grave era o grito que toda e qualquer preocupação cedeu imediatamente o passo àquela que o motivava. Os rapazes pediram algumas informações e ficaram sabendo que o inimigo, efetivamente, avançava por Houdin e Béthune.

Enquanto o Sr. d'Arminges dava ordens para que os animais, que se refocilavam, fossem aparelhados para partir, os dois rapazes subiram às janelas mais altas da casa, a cavaleiro dos arredores, e viram, de fato, surgir do lado de Marsin e de Lens numeroso corpo de infantaria e cavalaria. Dessa vez, já não era uma tropa nômade de guerrilheiros, senão um verdadeiro exército.

Por conseguinte, não havia mais remédio que seguir as prudentes instruções do Sr. d'Arminges e bater em retirada.

Os rapazes desceram num pulo. O Sr. d'Arminges já estava a cavalo. Olivain segurava pela rédea as duas montarias dos fidalgos, e os lacaios do Conde de Guiche guardavam zelosamente o prisioneiro espanhol, montado num andareco acinte comprado. Para maior precaução, tinham-lhe atado as mãos.

A tropazinha tomou a trote o caminho de Cambrin, onde esperava encontrar o Sr. Príncipe; mas este já não estava lá desde a véspera e se retirara para La Bassée, pois uma falsa notícia o informara de que o inimigo cruzaria o Lys em Estaire.

Com efeito, iludido por essas informações, o Príncipe retirara as tropas de Béthune, concentrara todas as forças entre Vieille-Chapelle e la Venthie e, depois de passar revista Pessoalmente com o Marechal de Grammont a toda a linha de frente, acabava de entrar em casa e por-se à mesa, interrogando os oficiais sobre as informações que os encarregara de tomar; nenhum deles, porém, tinha notícias positivas. O exército inimigo desaparecera havia quarenta e oito horas e parecia ter-se desvanecido.

Ora, nunca um exército inimigo está mais próximo e representa, por conseguinte, ameaça maior do que quando desaparece completamente. Daí que, contra os seus hábitos, estivesse o Príncipe de mau humor e preocupado, quando entrou um oficial de serviço e anunciou ao Marechal de Grammont que alguém desejava falar-lhe.

O Duque de Grammont pediu licença com o olhar e saiu (37).

(37) Antônio, Duque de Grammont, diplomata e militar, Marechal em 1641. Deixou Memórias, publicadas por um dos filhos, Antônio Carlos. Luís XIV encarregou-o de ir à Espanha pedir a mão de Maria Teresa. (N. do T.)

 

O Príncipe seguiu-os com os olhos e fitou-os na porta; ninguém se atrevia a falar, com receio de distraí-lo de sua preocupação.

De repente se ouviu um ruído surdo; levantou-se o Príncipe rapidamente estendendo a mão para o lado de onde vinha o ruído, que conhecia muito bem, pois era o ribombo do canhão.

Todos se haviam levantado como ele.

Nesse momento a porta se abriu.

— Monsenhor — disse radiante, o Marechal de Grammont — permite Vossa Alteza que meu filho, o Conde de Guiche, e seu companheiro de viagem, o Visconde de Bragelonne, venham dar-lhe notícias do inimigo, que nós procuramos, e que eles encontraram?

— Como! — disse vivamente o Príncipe — se o permito? Não só o permito como o desejo. Entrem.

O Marechal empurrou os dois rapazes, que se viram diante do Príncipe.

— Falai, senhores — disse o Príncipe, cumprimentando-os; — falai primeiro; em seguida faremos os cumprimentos de praxe. O mais importante para todos agora é sabermos onde está o inimigo e o que ele anda fazendo.

Era ao Conde de Guiche que cumpria, naturalmente, falar; não só por ser o mais velho dos dois, mas também por ter sido apresentado ao Príncipe pelo pai. Aliás, faziajá muito tempo que conhecia o Príncipe que Raul encontrava pela primeira vez (38).

(38) "O Sr. Príncipe nasceu capitão, o que só aconteceu a ele, a César e a Spinola. Igualou o primeiro; sobrepujou o segundo. A intrepidez é um dos traços menores do seu caráter. A natureza fez-lhe o espírito tão grande quanto o coração" (Retz). "Relaxado no vestir, trazia sobre o corpo magro, héctico e ardente, o mais estranho dos rostos de ave de rapina: testa estreita e fugidia, faces descarnadas, nariz curvo e afilado como um bico, olhos cintilantes, selvagens, cujo olhar incomodava" (Boulenger). "Possuía enorme cultura; tudo o interessava e, graças ao seu espírito e à sua natureza poderosa, era capaz de mostrar-se sucessivamente amável ou desabrido, encantador ou brutal" (Federn). Inúmeras são as citações de contemporâneos e historiadores que se poderiam alinhar a respeito de Luís de Bourbon, Duque de Enghien, depois Príncipe de Conde, o Grande Conde, para mostrar as diversas e interessantíssimas facetas do caráter estranho, contraditório, desse cabo de guerra genial, um dos maiores generais franceses de todos os tempos, cujos triunfos eram devidos não somente ao seu ímpeto irresistível e a felizes inspirações, mas também a um profundo conhecimento da estratégia. (N. do T.)

 

Referiu, portanto, o que tinham visto da estalagem de Mazingarbe.

Entrementes, Raul considerava o jovem general, já tão famoso pelas batalhas de Rocroy, de Friburgo e de Nortlingen.

Luís de Bourbon, Príncipe de Conde, a quem desde a morte do pai, Henrique de Bourbon, chamavam, abreviadamente e segundo o costume do tempo, Sr. Príncipe, era um rapaz de vinte e seis a vinte e sete anos, de olhar de águia, agl’occhi grifani, como diz o Dante, nariz adunco, longos cabelos anelados, estatura pequena mas airosa, que possuía todas as qualidades de um grande cabo de guerra, isto é, golpe de vista, decisão rápida, fabulosa coragem; o que não o impedia de ser, ao mesmo tempo, um homem de elegância e de espírito, de tal sorte que, além da revolução que operava na arte da guerra pelas suas novas concepções, provocara também uma revolução em Paris entre os jovens fidalgos da corte, de que era o chefe natural, e que, por oposição aos elegantes da velha Corte, de que tinham sido modelos Bassompiere, Bellegarde e o Duque de Angoulême, se chamavam "petimetres" (39).

(39) Os petimetres constituíam um bando de jovens fidalgos, que tinham por chefe e companheiro de armas o Duque de Enghien, e que, depois de se embriagarem de glória nas campanhas da primavera, recolhiam a Paris durante os rigores do inverno e ditavam a moda na Corte e nas tabernas, dividindo o tempo entre o jogo e as mulheres. É assim que os vemos freqüentando as alcovas de Marion de Lorme e de Ninon de Lenclos e surgindo, entre duas farras, na Sala Azul do palácio de Rambouillet. Destacavam-se entre eles Miossens, Roquelaure, Châtillon, Chavagnac, Arnaul, Pisam, de Guiche, e muitas outras flores turbulentas e frascárias da nobreza de França. (N. do T.)

 

Às primeiras palavras do Conde de Guiche e pela direção de onde viera o ruído do canhão, o Príncipe compreendeu tudo. O inimigo devia ter cruzado o Lys em Saint-Venant e marchava sobre Lens, com a intenção, sem dúvida, de apoderar-se da cidade e separar da França o exército francês. Os canhões que se ouviam, cujas detonações dominavam de tempos as outras, eram peças de grosso calibre, que respondiam ao canhão espanhol e loreno.

Mas qual seria a força dessa tropa? Seria um corpo destinado a produzir uma simples diversão? Seria o exército inteiro?

Eis a última pergunta do Príncipe, a que de Guiche não soube responder.

Ora, como fosse a mais importante, era também a que o Príncipe desejava ver respondida exata, precisa e positivamente.

Raul venceu então a naturalíssima timidez que sentia, mau grado seu, apoderar-se de si diante do Príncipe e, adiantando-se, perguntou:

— Consente Vossa Alteza que eu arrisque sobre o assunto algumas palavras que talvez possam elucidá-lo?

O Príncipe voltou-se e pareceu envolver o rapaz num só olhar; sorriu ao reconhecer uma criança de quinze anos.

— Sem dúvida, senhor, falai — disse, adoçando a voz breve e acentuada, como se dirigisse a palavra a uma mulher.

— Vossa Alteza — respondeu Raul purpurejando-se — poderia interrogar o prisioneiro espanhol.

— Fizestes um prisioneiro espanhol? — exclamou o Príncipe.

— Sim, Monsenhor.

— Ah! é verdade — respondeu de Guiche — eu tinha-o esquecido.

— Não admira, foi capturado por vós, Conde — acudiu Raul, sorrindo.

O velho Marechal voltou-se para o Visconde, grato pelo elogio dirigido ao filho, ao passo que o Príncipe exclamava:

— O rapaz tem razão, trazei o prisioneiro.

Entretanto, o Príncipe tomou de Guiche à parte e interrogou-o sobre a maneira por que fora capturado o prisioneiro, e perguntou-lhe quem era o seu companheiro.

— Senhor — disse o Príncipe voltando-se para Raul — sei que tendes uma carta de minha irmã, a Sra. de Longueville, mas vejo que preferistes recomendar-vos por vós mesmos, dando-me um bom conselho.

— Monsenhor, tornou Raul, corando — eu não quis interromper Vossa Alteza numa conversação tão importante como a que travava com o Sr. Conde. Mas aqui está a carta.

— Muito bem — disse o Príncipe — vós ma dareis depois. Eis o prisioneiro, vamos ao mais urgente.

Com efeito, conduziam o guerrilheiro. Era um desses condotieros como ainda os havia nessa época, que vendiam o próprio sangue a quem quisesse comprá-lo, afeitos a astúcias e pilhagens. Desde que fora preso, não pronunciara uma palavra; de sorte que nem os próprios raptores sabiam a que nação pertencia.

O Príncipe considerou-o com um olhar de indizível desconfiança.

— A que nação pertences? — perguntou o Príncipe.

O prisioneiro respondeu algumas palavras em língua estrangeira.

— Ah! ah! parece que é espanhol. Falais espanhol, Grammont ?

— Muito pouco, Monsenhor.

— E eu, nada — volveu o Príncipe, rindo; — senhores — ajuntou, dirigindo-se aos circunstantes — haverá entre vós alguém que fale espanhol e queira servir-me de intérprete?

— Eu, Monsenhor — disse Raul.

— Ah! Falais espanhol?

— O suficiente, creio eu, para executar as ordens de Vossa Alteza nesta ocasião.

Durante todo esse tempo o prisioneiro permanecera impassível, como se não tivesse compreendido coisíssima nenhuma de tudo o que se dizia.

— Monsenhor perguntou-vos a que nação pertenceis — disse o rapaz no mais puro castelhano.

— Ich bin ein Deutscher — respondeu o prisioneiro.

— Que foi que ele disse? — acudiu o Príncipe — e que diabo de algaravia é essa?

— Diz que é alemão, Alteza — tornou Raul; — entretanto, duvido, porque o sotaque é mau e a pronúncia defeituosa.

— Falais também alemão? — perguntou o Príncipe.

— Falo, Monsenhor — respondeu Raul.

— O suficiente para interrogá-lo nessa língua?

— Sim, Monsenhor.

— Interrogai-o, então.

Raul iniciou o interrogatório, mas os fatos vieram confirmar-lhe a opinião. O prisioneiro não entendia ou fingia não entender o que lhe dizia Raul, e este, por sua vez, mal compreendia as respostas misturadas de flamengo e alsaciano. Entretanto, no meio de todos os esforços do prisioneiro para iludir o interrogatório em regra, Raul acabara reconhecendo o sotaque natural do homem.

— Non siete Spagnuolo — disse ele — non siete Tedesco, siete Italiano.

O prisioneiro fez um movimento e mordeu os lábios.

— Ah! isto sim, entendo eu às mil maravilhas — sobreveio o Príncipe de Conde — e visto que é italiano, continuarei o interrogatório. Obrigado, Visconde — continuou o Príncipe rindo — nomeio-vos, a partir deste momento, meu intérprete oficial.

Mas o prisioneiro não estava mais disposto a responder em italiano do que nas outras línguas; a sua intenção era fugir às perguntas. E não sabia nem o número do inimigo, nem o nome do comandante, nem os objetivos da marcha do exército.

— Muito bem — disse o Príncipe, compreendendo-lhe as causas da ignorância; — este homem foi surpreendido saqueando e assassinando; poderia livrar-se da morte se falasse, mas, já que não quer falar, levai-o e passai-o pelas armas.

O prisioneiro empalideceu, os dois soldados que o tinham trazido agarraram-no pelos braços e conduziram-no para a porta, ao passo que o Príncipe, voltando-se para o Marechal de Grammont, já parecia ter esquecido a ordem dada.

Chegado ao limiar da porta, o prisioneiro parou; os soldados quiseram forçá-lo a continuar.

— Um instante — pediu o prisioneiro em francês: — estou pronto para falar, Monsenhor.

— Ah! ah! — tornou o Príncipe, rindo — eu sabia que acabaríamos por isso. Tenho um segredo maravilhoso para soltar as línguas; aprendei-o, senhores, para a ocasião em que também comandardes.

— Mas com a condição — continuou o prisioneiro — de que Vossa Alteza jure que me concede a vida.

— Palavra de gentil-homem — disse o Príncipe.

— Interrogue, Monsenhor.

— Em que ponto o exército cruzou o Lys?

— Entre Saint-Venant e Aire.

— Por quem é comandado?

— Pelo Conde de Fuonsoldagna, pelo General Beck e pelo Arquiduque em pessoa.

— De quantos homens se compõe?

— Dezoito mil homens e trinta e seis canhões.

— E marcha?

— Sobre Lens.

— Estais vendo, senhores! — disse o Príncipe, voltando-se com ar de triunfo para o Marechal de Grammont e para os outros oficiais.

— Sim, Monsenhor — afirmou o Marechal — Vossa Alteza adivinhou tudo o que era possível ao gênio humano adivinhar.

— Chamai Le Plessis, Bellièvre, Villequier e d'Erlac — disse o Príncipe — chamai todas as tropas que estão aquém do Lys e ordenai-lhes que se aprontem para marchar esta noite. Amanhã, segundo todas as probabilidades, atacaremos o inimigo.

— Mas, Monsenhor — acudiu o Marechal de Grammont — pense Vossa Alteza em que, se reunirmos todos os homens disponíveis, não chegaremos 13.000.

— Sr. Marechal — disse o Príncipe com o olhar admirável que era só dele — é com os pequenos exércitos que se vencem as grandes batalhas.

Depois, voltando-se para o prisioneiro:

— Levai este homem e guardai-o cuidadosamente com sentinela à vista. A vida dele depende das informações que nos deu; se forem verdadeiras, ficará livre; se forem falsas, será fuzilado.

Levaram o preso.

— Conde de Guiche — tornou o Príncipe — faz muito tempo que não vistes vosso pai, ficai com ele. Senhor — continuou, dirigindo-se a Raul — se não estiverdes muito cansado, segui-me.

— Ao fim do mundo! Monsenhor — exclamou Raul, sentindo pelo jovem general, que lhe parecia tão digno de sua fama, um entusiasmo desconhecido.

O Príncipe sorriu; desprezava os lisonjeadores, mas estimava bastante os entusiastas.

— Vamos, senhor — disse ele — sois de bom conselho, como acabamos de ver; amanhã veremos como vos portareis em combate.

— E eu, Monsenhor — perguntou o Marechal — que farei?

— Ficai para receber as tropas; ou virei buscá-las eu mesmo, ou vos mandarei um correio para que as leveis. Vinte guardas bem montados é quanto preciso para a minha escolta.

— É muito pouco — disse o Marechal.

— É o suficiente — respondeu o Príncipe. — Tendes um bom cavalo, Sr. de Bragelonne?

— O meu foi morto esta manhã, Monsenhor, e estou montando provisoriamente o do meu lacaio.

— Pedi e escolhei nas minhas cavalariças o que vos convier. Nada de acanhamentos, tomai o que vos parecer melhor. Precisareis dele hoje à noite, talvez, e amanhã com certeza.

Raul não se fez de rogado; sabia que com os superiores, e sobretudo quando esses superiores são príncipes, a suprema polidez consiste em obedecer sem demora e sem reflexões; desceu às cocheiras, escolheu um cavalo andaluz, isabel, selou-o e pôs-lhe o freio pessoalmente — pois Athos lhe recomendara que, no momento do perigo, não confiasse a ninguém esses cuidados importantes — e foi juntar-se ao Príncipe que, nesse momento, montava a cavalo.

— Agora, senhor — disse ele a Raul — fazei-me a fineza de entregar a carta de que sois portador.

Raul estendeu a carta ao Príncipe.

— Ficai perto de mim, senhor — disse ele a Raul.

O Príncipe esporeou o cavalo, prendeu as rédeas no arção da sela, como costumava fazer quando queria ter as mãos livres, abriu a carta da Sra. de Longueville e partiu a galope pela estrada de Lens, acompanhado de Raul e seguido da pequena escolta; ao passo que os mensageiros que deviam conclamar as tropas partiam, de seu lado, à desfilada, em direções opostas.

O Príncipe lia enquanto galopava.

— Senhor — disse ele, volvido um instante — fazem-me de vós as melhores referências; só tenho uma coisa para confessar-vos, é que, depois do pouco que vi e ouvi, entendo que as referências ficam aquém da realidade.

Raul inclinou-se.

Entretanto, a cada passo que aproximava a tropazinha de Lens, os tiros de canhão se ouviam mais perto. A vista do Príncipe dirigia-se para o lugar de onde vinha o estrondo com a fixidez do olhar de uma ave de rapina. Dir-se-ia que ele tivesse poder de penetrar as cortinas de árvores que se estendiam à sua frente e limitavam o horizonte.

De quando em quando as narinas do Príncipe se dilatavam, como se anelasse respirar o cheiro da pólvora, e ele fungava como o cavalo.

Afinal, soou tão perto o canhão que se tornou evidente que não estavam mais do que a uma légua do campo de batalha. Com efeito, na volta do caminho, avistaram o povoado de Aunay.

Os camponeses agitavam-se em grande confusão; propalara-se a notícia das crueldades dos espanhóis, que aterrorizava a todos; as mulheres já tinham fugido, recolhendo a Vitry; só alguns homens haviam ficado.

À vista do Príncipe, acorreram; um deles reconheceu-o.

— Ah! Monsenhor — disse ele — Vossa Alteza veio expulsar esses bandidos espanhóis e salteadores da Lorena?

— Vim — disse o Príncipe — se me quiseres servir de guia.

— Com prazer, Monsenhor; aonde quer Vossa Alteza que eu o conduza?

— A algum ponto elevado, de onde eu possa descortinar Lens e os arredores.

— Nesse caso, já sei aonde.

— Posso fiar-me de ti? És bom francês?

— Veterano de Rocroy, Monsenhor.

— Toma — disse o Príncipe, dando-lhe a sua bolsa — aí tens em memória de Rocroy. E, agora, queres um cavalo ou preferes ir a pé?

— A pé, Monsenhor, a pé, sempre servi na infantaria. Aliás, Vossa Alteza terá mesmo de passar por caminhos em que precisará desmontar.

— Vem, então -— disse o Príncipe e não percamos tempo.

O camponês partiu, correndo diante do cavalo do Príncipe; a uns cem passos da aldeia, tomou por um atalho perdido no fundo de lindo valezinho. Cerca de meia légua caminharam assim debaixo de árvores, ao passo que os tiros de canhão soavam tão próximos que lhes parecia, a cada detonação, ouvir o silvo da bala. Afinal, deram com um atalho que se afastava do caminho para galgar o flanco da montanha. O camponês tomou pelo atalho convidando o Príncipe a segui-lo. Este apeou, ordenou a um dos ajudantes de campo e a Raul que fizessem o mesmo e aos outros que aguardassem as suas ordens, alerta e prontos para o que desse e viesse, e começou a subir.

Ao cabo de dez minutos chegaram às ruínas de velho castelo, que coroavam o cabeço de um morro, a cavaleiro dos arredores. A um quarto de légua apenas, estendia-se a cidade de Lens, cercada, e, diante dela, o exército inimigo.

Na primeira vista de olhos abrangeu o Príncipe toda a extensão que se descobria à sua vista de Lens e Vimy. Num instante, o plano da batalha que, no dia seguinte, salvaria a França pela segunda vez de uma invasão, desenhou-se-lhe no espírito. Tomou de um lápis, rasgou uma folha da carteira e escreveu:

 

"Meu caro Marechal,

"Daqui a uma hora Lens estará em poder do inimigo. Vinde; trazei convosco todo o exército. Estarei em Vandin para indicar-lhe a posição. Amanhã retomaremos Lens e venceremos o inimigo."

 

Logo, voltando-se para Raul:

— Ide, senhor — disse ele — parti a toda a brida, e entregai esta carta ao Sr. de Grammont.

Raul inclinou-se, tomou o papel, desceu rapidamente o morro, montou a cavalo e partiu a galope.

Um quarto de hora depois aproximava-se do Marechal.

Uma parte das tropas já chegara e o resto era esperado a qualquer momento.

O Marechal de Grammont pôs-se à frente da infantaria e da cavalaria disponíveis e tomou a estrada de Vandin, deixando o Duque de Chântillon para esperar e levar o resto.

Pronta para partir, a artilharia pôs-se em marcha.

Eram sete horas da noite quando o Marechal chegou ao lugar marcado. O Príncipe lá estava. Como este previra, Lens caíra nas mãos do inimigo logo após a partida de Raul. Aliás, o fim do canhoneio anunciara o sucesso.

Esperaram que descesse a noite. À proporção que as trevas se adensavam, chegaram sucessivamente as tropas que o Príncipe mandara chamar. Fora-lhes ordenado que em nenhuma delas se tocasse tambor nem trombeta.

Às nove horas era já noite fechada. Um derradeiro crepúsculo, porém, ainda iluminava a planície. Iniciou-se a marcha silenciosa, conduzida pelo Príncipe.

Adiante de Aunay, o exército avistou Lens; duas ou três casas estavam em chamas, e um surdo rumor denunciava a agonia de uma cidade tomada de assalto.

O Príncipe indicou a cada um o seu posto: o Marechal de Grammont, na ala esquerda, apoiando-se em Méricourt; o Duque de Châtillon, no centro; por fim o Príncipe, na ala direita, defronte de Aunay.

A ordem de batalha no dia seguinte deveria ser idêntica â das posições tomadas na véspera. Cada qual, ao despertar, se encontraria no sítio em que deveria manobrar.

O movimento executou-se no mais profundo silêncio e com a máxima precisão. Às dez horas, todos ocupavam as respectivas posições, e, às dez e meia, o Príncipe percorreu os postos e deu as ordens para o dia seguinte.

Três coisas sobretudo foram recomendadas aos chefes, cuja escrupulosa observância devia ser exigida dos soldados. Primeiro, que os diferentes corpos observassem a marcha dos outros, a fim de que a cavalaria e a infantaria ficassem na mesma linha e cada qual conservasse os seus intervalos.

Segundo, que carregassem unicamente a passo.

Terceiro, que esperassem o inimigo atirar.

O Príncipe deixou o Conde de Guiche com o pai e ficou com Bragelonne; mas os dois jovens pediram para passar juntos a noite e o pedido foi-lhes satisfeito.

Armou-se uma tenda para eles perto da do Marechal. E muito embora o dia estivesse sido cansativo, nenhum dos dois sentiu vontade de dormir.

Aliás, é coisa grave e impressionante, até para os veteranos, a véspera de uma batalha; com muito mais razão para dois rapazes que iam assistir ao terrível espetáculo pela primeira vez.

Na véspera de uma batalha, a gente pensa em mil coisas esquecidas, que, então, voltam à memória. Na véspera de uma batalha, os indiferentes tornam-se amigos, os amigos tornam-se irmãos.

E nem é preciso dizer que, se tivermos no mais íntimo recesso do coração algum sentimento mais terno, esse sentimento atingirá naturalmente o mais alto grau possível de exaltação.

E é de crer que os dois rapazes sentissem qualquer coisa desse gênero, pois, ao cabo de um instante, cada um se assentou numa extremidade da tenda e pôs-se a escrever sobre os joelhos.

Longas foram as cartas, e as quatro páginas se cobriram sucessivamente de umas letrinhas miúdas e apertadas. De tempos a tempos, ambos se entreolhavam e sorriam. Compreendiam-se em silêncio; essas duas organizações elegantes e simpáticas tinham sido feitas para se compreenderem sem falar.

Concluídas as cartas, cada um pôs a sua em dois envelopes, onde ninguém poderia ler o nome do destinatário sem rasgar o primeiro invólucro; em seguida, aproximaram-se e trocaram as cartas sorrindo.

— Se me acontecer alguma desgraça — disse Bragelonne.

— Se eu for morto — disse de Guiche.

— Fica descansado — disseram os dois.

A seguir, abraçaram-se como irmãos, cada qual se envolveu num capote e adormeceram, passando para o sono jovem e gracioso que dormem os pássaros, as flores e as crianças.


 UM JANTAR DE OUTRORA

 

A segunda entrevista dos antigos mosqueteiros não fora tão pomposa e ameaçadora quanto a primeira. Julgara Athos, com a sua razão sempre superior, que a mesa seria o centro mais rápido e mais completo de reunião; e como os nossos amigos, temendo-lhe a distinção e a sobriedade, não ousassem alvitrar um daqueles bons jantares de outrora, saboreados na Pomme-du-Pin ou no Parpaillot, foi ele o primeiro que propôs se reunissem à volta de alguma mesa bem servida e sem rebuço se entregassem aos seus gostos e tendências naturais, principal razão do bom entendimento que sempre haviam conservado e que lhes valera o apelido de inseparáveis.

A proposta foi agradável a todos e principalmente a d’Artagnan, ávido de encontrar novamente o bom gosto e a alegria dos divertimentos da mocidade; pois fazia muito tempo que o seu espírito fino e jovial só encontrava satisfações insuficientes, pasto vil, como ele mesmo dizia. Porthos, na iminência de baronizar-se, antegozava a oportunidade de estudar em Athos e Aramis o tom e os modos das pessoas de escol. Aramis queria saber notícias do Palais-Royal por intermédio de d'Artagnan e de Porthos e conservar a amizade de homens tão dedicados, que lhe sustentavam outrora as rixas com espadas tão prontas e invencíveis.

Athos era o único que não tinha nada para esperar nem receber dos outros, movido de um sentimento de grandeza simples e de amizade pura.

Concordaram, pois, em que cada qual desse o seu endereço exato e que, por necessidade de um dos sócios, fosse a reunião convocada para a casa de um famoso pasteleiro da rua de la Monnaie, chamada L’Ermitage. O primeiro encontro foi aprazado para a quarta-feira seguinte, às oito horas em ponto da noite.

Com efeito, nesse dia, os quatro amigos chegaram à hora Marcada, e cada um do seu lado. Porthos viera de experimentar um novo cavalo, d'Artagnan acabara de deixar a guarda no Louvre, Aramis precisara visitar uma penitente no bairro, e Athos que estabelecera domicílio na Guénégaud, ficava pertinho dali. Qual não foi portanto a surpresa dos quatro aos se encontrarem à porta do Eremitério, Athos vindo pela Pont-Neuf, Porthos pela rue du Roule, d'Artagnan pela rue des Fossés-Saint-Germain-1'Auxerrois, Aramis pela rue de Béthisy.

As primeiras palavras trocadas entre os amigos, precisamente pela afetação das respectivas manifestações, foram, portanto, algo forçadas e a própria refeição começou com uma espécie de constrangimento. Via-se que d'Artagnan forcejava para rir, Athos em beber, Aramis por falar e Porthos por calar. Notando o constrangimento e desejando remediá-lo, mandou Athos que trouxessem quatro garrafas do vinho de Champanha.

A essa ordem dada com a calma habitual do conde desanuviou-se o rosto do gascão e iluminou-se o de Porthos.

Aramis ficou espantado. Sabia não só que Athos já não bebia, mas também que sentia certa repugnância pelo vinho.

O espanto redobrou quando Aramis o viu servir-se à grande e beber com o entusiasmo de antanho. D'Artagnan encheu e vazou imediatamente o seu copo; Porthos e Aramis tocaram os seus. Num instante, esvaziaram-se as quatro garrafas. Dir-se-ia que os convivas ansiassem por libertar-se de suas segundas intenções.

Num pronto o excelente específico dissipou até a última e menor das nuvens que ainda poderia existir no fundo daqueles corações. Os quatro amigos puseram-se a falar mais alto, sem esperar que um terminasse para o outro começar e cada qual tomou a mesma postura favorita. Coisa enorme, Aramis desatou duas agulhetas do gibão; vendo-o, Porthos desamarrou todas as suas.

As batalhas, as longas jornadas, as cutiladas recebidas e dadas forneceram os primeiros assuntos da conversação. Em seguida, passaram às lutas surdas sustentadas contra aquele a quem chamavam agora o grande Cardeal.

— Palavra — disse Aramis, rindo — creio que já elogiamos bastante os mortos; falemos agora um pouco mal dos vivos. Eu gostaria de falar um pouco mal do Mazarino. Posso? — claro! — consentiu, d'Artagnan, estourando de rir — claro! conta a tua história; se ela for boa eu te aplaudirei.

— Um grande príncipe — começou Aramis — cuja aliança o Mazarino pretendia foi por este convidado a mandar-lhe a lista das condições mediante as quais se poriam de acordo. O príncipe, que tinha certa repugnância por tratar com semelhante mequetrefe, organizou a lista de má vontade e mandou-a. Nessa lista havia três condições que desagradavam Mazarino e este ofereceu ao príncipe dez mil escudos para renunciar a elas.

— Ah! ah! ah! — exclamaram os amigos — não era caro, e ele não devia de ter medo de que o pegassem na palavra. Que fez o príncipe?

— Mandou imediatamente cinqüenta mil libras a Mazarino pedindo-lhe que nunca mais lhe escrevesse e oferecendo-lhe ainda mais vinte mil se prometesse nunca mais lhe falar.

— E Mazarino?

— Zangou-se? — perguntou Athos.

— Mandou surrar o mensageiro? — perguntou Porthos.

— Aceitou a soma? — perguntou d'Artagnan.

— Adivinhaste, d'Artagnan — respondeu Aramis.

E todos prorromperam em gargalhadas tão estrepitosas que o taberneiro subiu para saber se os fidalgos não precisavam de nada.

Imaginava que se estivessem batendo.

A hilaridade, por fim, se acalmou.

— Pode-se falar mal também do Sr. de Beaufort? — perguntou d'Artagnan. — Tenho muita vontade de fazê-lo.

— Como não! — disse Aramis, profundo conhecedor daquele espírito gascão, tão fino e tão bravo, que nunca recuava um passo em terreno algum.

— E tu, que dizes, Athos? — perguntou d'Artagnan.

— Dou-te a minha palavra de gentil-homem de que riremos se fores engraçado — replicou Athos.

— Então começo — principiou d'Artagnan: — conversando um dia com um amigo do Sr. príncipe, disse-lhe o Sr. de Beaufort que, por ocasião das primeiras brigas de Mazarino com o parlamento, desaviara-se um dia com o Sr. de Chavigny, e, vendo-o ligado ao novo Cardeal, ele que fora tão ligado ao antigo e por tantas maneiras, surrara-o admiràvelmente.

"Sabendo que o Sr. de Beaufort tinha a mão leve, esse amigo não ficou muito espantado com a coisa, e foi correndo contá-la ao Sr. Príncipe. A história propalou-se e toda a gente começou a virar as costas a Chavigny. Este procura a explicação da frieza geral: hesitam em revelar-lhe; afinal, alguém se arrisca a dizer-lhe que todos se admiram de que ele se tenha deixado surrar pelo Sr. de Beaufort, muito embora se tratasse de um príncipe.

"— E quem disse que o Príncipe me surrou? — perguntou Chavigny.

"— Ele mesmo.

"Remontam à fonte e encontram a pessoa a quem o príncipe dissera aquilo; e essa pessoa, instada sob palavra de honra a dizer a verdade, o repete e confirma.

"Desesperado com a calúnia, que não compreende, Chavigny declara aos amigos que prefere morrer a suportar semelhante injúria. Por conseguinte, envia duas testemunhas ao Príncipe, encarregadas de perguntar-lhe se era verdade que ele surrara o Sr. de Chavigny.

" — Eu o disse e repito — respondeu o Príncipe — porque é verdade.

" — Monsenhor — acudiu então um dos padrinhos de Chavigny — permita Vossa Alteza que eu lhe diga que espancar um gentil-homem é tão degradante para o autor quanto para a vítima. O Rei Luís XIII não queria ter camaristas fidalgos só para poder bater nos seus camaristas.

" — Ué! — tornou o Sr. de Beaufort, espantado — mas quem foi que levou pancadas e quem foi que falou em bater?

" — Vossa Alteza mesmo, que diz ter batido...

" — Em quem?

" — No Sr. de Chavigny.

" — Eu?

" — Vossa Alteza não declarou ter surrado o Sr. de Chavigny?

" — Declarei.

" — Pois ele diz que não.

" — Hom'essa! — tornou o Príncipe — surrei-o tão bem que ainda me lembro das palavras — ajuntou o Sr. de Beaufort com a majestade que lhe conheceis:

" — Meu caro Chavigny, fazeis mal em prestar auxílio a um biltre como esse Mazarino."

" — Ah! Monsenhor — exclamou o segundo — compreendo, Vossa Alteza quis dizer que o censurou.

"— Censurar, surrar, que é que tem? — volveu o Príncipe; — não é a mesma coisa? Esses fazedores de palavras são, em verdade, muito pedantes!"

Riram muito do erro filológico do Sr. de Beaufort, cujas cincadas nesse gênero principiavam a tornar-se proverbiais, e ficou convencionado que, estando auxiliado para sempre daquelas reuniões amistosas o espírito partidário, d'Artagnan e Porthos poderiam remoquear os príncipes, contanto que Athos e Aramis pudessem surrar o Mazarino.

— Palavra — disse d'Artagnan aos dois amigos — que tendes razão em querer mal o Mazarino, pois eu voz juro que, de sua parte, ele não voz quer bem.

— Deveras? — perguntou Athos. — Se soubesse que esse tratante me conhece pelo nome, eu me desbatizaria, para que não imaginassem que o conheço.

— Ele não vos conhece pelo nome, mas pelas obras; sabe que dois fidalgos, principalmente, contribuíram muito para a evasão do Sr. de Beaufort e mandou que vos procurasse por todos os cantos.

— Quem recebeu a ordem?

— Eu.

— Como, tu?

— Sim, ainda hoje cedo me chamou para perguntar-me se conseguira alguma informação.

— Sobre os dois fidalgos? — Isso mesmo.

— E que lhe respondeste?

— Que ainda não, mas que ia jantar com duas pessoas que talvez mas fornecessem.

— Tu lhe disseste isso? — sobreveio Porthos com o riso franco estampado no rosto enorme. — Bravo! E a notícia não te amedronta, Athos?

— Não — respondeu o conde — não são as buscas do Mazarino que temo.

— Tu? — acudiu Aramis — dize-me por favor, o que temes.

— No presente, nada, é verdade.

— E no passado? — perguntou Porthos.

— Ah! no passado, é outra coisa — disse Athos com um suspiro; — no passado e no futuro...

— Temerás por acaso, no teu jovem Raul? — perguntou Aramis.

— Ora! — acudiu d'Artagnan — ninguém morre no primeiro combate.

— Nem no segundo — disse Aramis.

— Nem no terceiro — ajuntou Porthos — Aliás, depois de mortos, ressuscitamos, e a prova é que estamos aqui.

— Não — confessou Athos — também não é Raul que me preocupa, pois espero que ele se aja como um gentil-homem, e se morrer, morrerá bravamente; mas se essa desgraça acaso lhe sucedesse...

E passou a mão pela fronte pálida.

— Que é que tem? — perguntou Aramis.

— Tem que eu a consideraria como expiação.

— Ah! ah! — atalhou d'Artagnan — já sei o que queres dizer.

— E eu também — disse Aramis; — mas não deve pensar nisso, Athos o passado é passado.

— Não compreendo — sobreveio Porthos.

— O caso de Armentières — explicou baixinho d'Artagnan.

— O caso de Armentières? — insistiu Porthos.

— Milady.

— Ah! sei — disse Porthos — eu tinha esquecido.

— Athos fitou nele o seu olhar profundo.

— Tinhas esquecido, Porthos?

— Completamente, e já faz bastante tempo.

— O que sucedeu não te pesa, então, na consciência?

— Palavra que não! — declarou Porthos.

— E a ti, Aramis?

— Penso nisso de vez em quando — respondeu Aramis — como num desses casos de consciência que se prestam à discussão.

— E a ti, d'Artagnan?

— Confesso que, quando me ponho a pensar nessa época terrível, só me lembro do corpo gelado da pobre Sra. Bonacieux. Sim, sim — ajuntou — tenho muitas vezes saudades da vítima, mas nunca remorsos pela morte da assassina.

Athos meneou a cabeça com ar de dúvida.

— Pensa — disse Aramis — que, se admites a justiça divina e a sua participação nas coisas deste mundo, essa mulher foi punida pela vontade de Deus. Nós fomos apenas os instrumentos.

— Mas o livre arbítrio, Aramis?

— Que faz o juiz? Tem o seu livre arbítrio e condena sem medo. Que faz o carrasco? É senhor de seu braço mas fere sem remorsos.

— O carrasco... — murmurou Athos.

Todos compreenderam que ele se detinha ante uma lembrança.

— Sei que é medonha — disse d'Artagnan — mas quando penso que matamos ingleses, rocheleses, espanhóis e até franceses, que nunca nos fizeram outro mal senão apontar para nós e errar o tiro, e nunca nos fizeram outra injúria senão cruzar a espada conosco e não parar a tempo os nossos botes, desculpo-me do assassínio dessa mulher, palavra de honra!

— Eu — disse Porthos — agora que me falas nisso, Athos, revejo a cena como se a estivesse presenciando: Milady estava lá, onde estás (Athos empalideceu); eu, no lugar em que está d'Artagnan, trazendo à cinta uma espada que cortava como navalha... Deves recordá-la, d'Artagnan, visto que lhe chamavas sempre Belisarda? Pois bem! juro que, se não estivesse presente o carrasco de Béthune... Era de Béthune?... Era, sim, era de Béthune... eu teria cortado o pescoço da celerada, sem me arrepender, e ainda que me arrependesse. Era uma mulher má.

— E de mais a mais — continuou Aramis com o tom de displicente filosofia que assumira depois de entrar para a Igreja, e no qual havia muito mais ateísmo do que fé em Deus — de que nos adianta pensar em tudo isso? O que está feito está feito. Confessaremos esse ato na hora suprema e Deus saberá melhor do que nós se se trata de um crime, de um erro ou de uma ação meritória. Se me arrependo? perguntareis. Palavra que não. Pela honra e pela cruz, só me arrependo por ser uma mulher.

— O que mais nos tranqüiliza em tudo isso — disse d'Artagnan — é que de tudo já não resta um único vestígio.

— Ela tinha um filho — disse Athos.

— Ah! sim, eu sei — exclamou d'Artagnan — e tu me falaste a respeito; mas quem sabe o que é feito dele? Morta á serpente, terá morrido a ninhada? Imaginas que de Winter, seu tio, terá criado a viborazinha? De Winter deve ter condenado o filho como condenou a mãe.

— Então — sentenciou Athos — desgraçado de Winter, pois a criança não tinha culpa.

— A criança morreu, ou leve-me o diabo! — vozeou Porthos. — Há tanto nevoeiro naquele país horroroso, pelo menos segundo diz d'Artagnan...

No momento em que a conclusão de Porthos iria talvez devolver a jovialidade àquelas frontes mais ou menos carregadas, ouviu-se um ruído de passos na escada e alguém bateu à porta.

— Entrai — disse Athos.

— Senhores — anunciou o taberneiro — há aí um rapaz apressadíssimo que quer falar com um de vós.

— Com quem? — perguntaram os quatro amigos.

— Com o que se chama Conde de La Fere.

— Sou eu — disse Athos. — E como se chama o rapaz?

— Grimaud.

— Ah! — exclamou Athos, empalidecendo — já de volta? Que terá acontecido a Bragelonne?

— Dizei-lhe que entre — acudiu d'Artagnan — que entre! Mas Grimaud já subira a escada e esperava no patamar; precipitou-se no quarto e mandou o estalajadeiro embora com Um gesto.

O bodegueiro fechou a porta: os quatro amigos ficaram à espera. A agitação de Grimaud, sua palidez, o suor que lhe inundava o rosto, o pó que lhe sujava as roupas, tudo indicava nele o mensageiro de alguma notícia importante e terrível.

— Senhores — disse ele — aquela mulher tinha um filho, o filho fez-se homem; o tigre gerou um tigrezinho, o tigrezinho cresceu e vem ao vosso encalço; cuidado!

Athos olhou para os amigos com um sorriso melancólico. Porthos procurou a espada na cinta, mas viu que estava pendurada na parede; Aramis empunhou a faca, d'Artagnan levantou-se.

— Que queres dizer, Grimaud? — perguntou este último.

— Que o filho de Milady deixou a Inglaterra, está em França e vem a Paris, se já não tiver chegado.

— Diabo! — exclamou Porthos — tens certeza?

— Absoluta — afirmou Grimaud.

Longo silêncio acolheu a declaração. Grimaud estava tão ofegante, tão cansado, que caiu numa cadeira.

Athos encheu um copo de Champanha e levou-lho.

— Pois bem! afinal de contas — disse d'Artagnan — ainda que ele esteja vivo e que venha a Paris, já temos passado por piores. Deixá-lo vir!

— Sim — bradou Porthos, acarinhando com os olhos a espada pendurada na parede — nós o esperamos: deixá-lo vir!

— De mais a mais, é uma criança — disse Aramis. Grimaud levantou-se.

— Uma criança! Mas sabeis o que fez a criança? Disfarçado em monge, descobriu toda a história confessando o carrasco de Béthune e, depois de havê-lo confessado, depois de ter sabido de tudo, como absolvição, enfiou-lhe este punhal no coração. Vede-o, ainda está vermelho e úmido, pois não faz mais de trinta horas que o arranquei da ferida.

E Grimaud jogou na mesa o punhal esquecido pelo frade na ferida do carrasco.

D'Artagnan, Porthos e Aramis ergueram-se e, num movimento instintivo, correram para as espadas.

Somente Athos permaneceu sentado, calmo e pensativo.

— E dizes que anda vestido de monge, Grimaud?

— Sim, de monge agostiniano.

— Que jeito tem ele?

— A minha estatura, pelo que disse o estalajadeiro, magro, pálido, com olhos de um azul claro e cabelos loiros!

— E... ele não viu Raul? — perguntou Athos.

— Pelo contrário, os dois se encontraram, e foi o próprio Visconde quem o conduziu à cabeceira do moribundo.

Levantou-se Athos sem dizer uma palavra e foi, por seu turno, tirar a espada da parede.

— Ora essa, senhores — bradou d'Artagnan, esforçando-se em rir — sabeis que parecemos mulherinhas? Como! Quatro homens, que enfrentamos exércitos sem pestanejar, trememos agora diante de uma criança!

— Sim — concluiu Athos — mas essa criança vem em nome de Deus.

E saíram, à pressa da hospedaria.


 A CARTA DE CARLOS I

 

Agora, é preciso que o leitor atravesse conosco o Sena, e nos siga até à porta do convento das Carmelitas da rue Saint-Jacques. São onze horas da manhã e as piedosas freiras acabam de ouvir missa pelo bom sucesso das armas de Carlos I. Saindo da Igreja, uma mulher e uma moça, vestidas de preto, uma como viúva e outra como órfã, recolhem à sua cela.

A mulher ajoelhou-se num setial de madeira pintada e, a alguns passos, apoiada numa cadeira, a moça, em pé, chora em silêncio.

A mulher deve ter sido bela, mas percebe-se que as lágrimas a envelheceram. A menina é encantadora e as lágrimas ainda a formoseiam. A mulher aparenta quarenta anos, a menina catorze.

— Meus Deus! — dizia a suplicante genuflexa — conservai meu marido, conservai meu filho e tomai a minha vida, tão triste e tão miserável!

— Meus Deus! — dizia a jovem — conservai minha mãe!

— Tua mãe já não pode nada por ti neste mundo, Henriqueta — disse, voltando-se, a mulher aflita, que rezava. — Tua mãe perdeu o trono, o marido, o filho, o dinheiro, os amigos; tua mãe, pobre filha, foi abandonada pelo universo inteiro.

E, atirando-se nos braços da jovem, que se precipitou para ampará-la, entrou a soluçar.

— Minha mãe, coragem! — disse a menina.

— Ah! os reis são infelizes este ano — tornou a mãe, descansando a cabeça no ombro da filha — e ninguém se lembra de nós neste país, pois cada qual está preocupado com os próprios negócios. Enquanto teu irmão esteve conosco, ele me sustentou; mas teu irmão partiu: presentemente não pode sequer mandar notícias suas a mim nem ao pai. Empenhei as últimas jóias, vendi todos os meus trapos e os teus para pagar os ordenados dos criados dele, que se recusavam a acompanhá-lo se eu não lhes satisfizesse esse capriche.

Agora estamos reduzidas a viver à custa das filhas do Senhor. Somos pobres socorridas de Deus.

— Mas por que não vos dirigis à Rainha vossa irmã? — perguntou a menina.

— Ai! — tornou a aflita — a Rainha minha irmã já não é Rainha, filha, e outro reina em seu nome. Um dia poderás compreendê-lo.

— Pois, então, procurai o Rei, vosso sobrinho. Quereis que eu fale com ele? Sabeis o quanto ele gosta de mim, minha mãe.

— O Rei, meu sobrinho, ainda não é Rei, e ele mesmo, como sabes pelo que Laporte nos disse vinte vezes, está privado de tudo.

— Então, dirijamo-nos a Deus — disse a menina. E ajoelhou-se ao pé da mãe.

Essas mulheres que assim oravam no mesmo genuflexório eram a filha e a neta de Henrique IV, a mulher e a filha de Carlos I (40).

(40) Henriqueta de França e Henriqueta de Inglaterra. A primeira, Rainha de Inglaterra, filha de Henrique IV e Maria de Médicis, casou, em 1625, em Londres, com o Rei Carlos I, que acabava de ascender ao trono inglês. Quando estourou a guerra civil, que lhe acarretaria a perda do marido, Henriqueta, que professava a religião católica, foi acusada de instigar o Rei contra os protestantes; desenvolveu, para sustentar a causa real, corajosa atividade, foi buscar socorros na Holanda, mas, em 1644, viu-se obrigada a fugir para as costas de França, perseguida por navios ingleses. Recebeu de Mazarino, no Louvre, uma hospitalidade pouca generosa, e, após o fim deplorável do marido (1649), retirou-se para o convento da Visitação, que fundou em Chaillot. Morreu vinte anos depois e Bossuet pronunciou-lhe a Oração fúnebre, uma das obras-primas do grande orador.

Filha da primeira e de Carlos I, Henriqueta de Inglaterra casou, em 1661, com Filipe de Orleans, irmão de Luís XIV. Mas "o milagre de inflamar o coração desse príncipe não estava reservado a mulher alguma do mundo" (Sra. de Lafayette), e Henriqueta logo se viu negligenciada pelo marido. Entregando-se com ardor a todos os divertimentos da Corte, nem sempre soube preservar-se das seduções e até hoje discutem os historiadores sobre a verdadeira importância dos seus amores com o Conde de Guiche, amigo de Filipe de Orleans, e com o próprio Rei. A frivolidade da vida palaciana, todavia, não a impediu de apaixonar-se pelos prazeres do espírito e de proteger grandes escritores, sobretudo Molière, Racine e La Fontaine. Foi amiga da Sra. de La Fayette, que escreveu a História da Senhora Henriqueta em que a autora da Princesa de Clèves tenta justificar o procedimento da gentil princesa. Morreu aos vinte e seis anos, quase de repente, após haver bebido um copo com água de chicórea, e até hoje há quem acredite que essa água fora envenenada pelo Cavaleiro de Lorena, favorito de Gastão de Orleans e rival de Henriqueta no coração do marido e, por influência da princesa, preso e exilado por Luís XIV. (N. do T.)

 

Terminavam a dupla oração quando uma religiosa bateu mansamente à porta da cela.

— Entrai, irmã — disse a mais velha das duas, enxugando as lágrimas e levantando-se.

A religiosa entreabriu respeitosamente a porta.

— Perdoe-me Vossa Majestade se perturbo as suas meditações — disse ela; — mas está no locutório um senhor estrangeiro, chegado de Inglaterra, que solicita a honra de entregar uma carta a Vossa Majestade.

— Oh! uma carta! uma carta do Rei talvez! Notícias de teu pai, sem dúvida! Estás ouvindo, Henriqueta?

— Sim, senhora, ouço e espero.

— E quem é esse senhor, irmã?

— Um fidalgo de quarenta e cinco a cinqüenta anos. — E como se chama? Não disse?

— Milorde de Winter.

— Milorde de Winter! — bradou a Rainha; — o amigo de meu marido! Oh! fazei-o entrar, fazei-o entrar!

E a Rainha precipitou-se ao encontro do mensageiro, cujas mãos apertou com efusão.

Ao entrar na cela, Lorde de Winter ajoelhou-se e apresentou à Rainha uma carta enrolada num estojo de ouro.

— Ah! Milorde — disse a Rainha — vós nos trazeis três coisas que não víamos há muito tempo: ouro, um amigo dedicado e uma carta de El-Rei nosso esposo e senhor.

De Winter cumprimentou de novo; mas não pôde responder, tamanha era a sua comoção.

— Milorde — continuou a Rainha, mostrando a carta — compreendereis a pressa que tenho de saber o que contém este papel.

— Eu retiro-me, senhora — disse de Winter.

— Não, ficai — pediu a Rainha — nós a leremos diante de vós. Não compreendeis que tenho mil perguntas para fazer-vos?

De Winter recuou alguns passos e permaneceu em pé, em silêncio.

Mãe e filha, de seu lado, haviam-se retirado para o vão de uma janela e liam sofregamente, a filha apoiada ao braço da mãe, a carta seguinte:

 

"Senhora e querida esposa,

"Eis-nos chegados ao fim. Todos os recursos que Deus me deixou estão concentrados neste campo de Naseby, de onde vos escrevo à pressa. Aqui espero os exércitos de meus súditos rebeldes, e voulutar pela última vez contra eles. Vencedor, eternizarei a luta; vencido, estarei completamente perdido. Quero, nesse último caso (ai! chegados ao ponto em que estamos, precisamos prever tudo), quero tentar alcançar as costas de França. Mas haverão de querer, haverão de poder receber ai um rei desgraçado, que levará tão funesto exemplo a um pais já sublevado pelas discórdias civis? A vossa sabedoria e a vossa afeição me servirão de guia. O portador desta carta vos dirá, senhora, o que não posso confiar aos riscos de um acidente. Explicar-vos-á as providências que espero de vós. Encarrego-o também de levar minha bênção a meus filhos e transmitir todos os sentimentos de meu coração por vós, senhora e querida esposa."

 

A carta fora assinada, em vez de "Carlos, Rei", "Carlos, ainda Rei".

A triste leitura, cujas impressões acompanhava de Winter no rosto da Rainha, trouxe, todavia, aos olhos dela um raio de esperança.

— Já não seja rei! — exclamou ela — seja vencido, exilado, proscrito, mas viva! Ai! o trono é hoje um posto tão perigoso que nem desejo que ele o conserve. Mas dizei-me, Milorde — continuou a Rainha — não me oculteis nada: em que situação está o Rei? Será tão desesperada quanto ele a imagina?

— Ainda mais desesperada, senhora, do que ele a supõe. Sua Majestade tem um coração tão bom que não compreende o ódio; tão leal, que não admite a traição. Mas apoderou-se da Inglaterra tal espírito de vertigem que, receio muito, só se extinguira no sangue.

— E Lorde Montross? — acudiu a Rainha. — Ouvi falar em grandes e rápidas vitórias, em batalhas ganhas em Inverlashy, em Auldone, em Alfort e em Kilsyth. Ouvi dizer que ele marchava para a fronteira a fim de juntar-se ao Rei.

— Sim, senhora; mas, na fronteira, encontrou Lesly. Ele cansara a vitória à força de empreendimento sobre-humanos: a vitória abandonou-o. Vencido em Philippaugh, Montross foi obrigado a dispensar os restos do exército e a fugir disfarçado em lacaio. Está em Bergen, na Noruega.

— Deus o guarde! — atalhou a Rainha. — É pelo menos um consolo saber que aqueles que tantas vezes arriscaram a vida por nós estão em segurança. E agora, Milorde, que sei qual é a posição do Rei, dizei-me o que tendes para dizer-me da parte de meu real esposo.

— Pois bem! senhora — replicou de Winter — deseja El-Rei que Vossa Majestade procure penetrar as disposições do Rei e da Rainha a seu respeito.

— Ai! bem o sabeis — tornou a Rainha — o Rei ainda é uma criança, a Rainha é uma mulher, e bem fraca: o Sr. Mazarino é que é tudo.

— Quererá ele, então, desempenhar em França o papel que desempenha Cromwell na Inglaterra?

— Oh! não. É um italiano hábil e astuto, que talvez medite o crime mas nunca ousará cometê-lo; e, muito ao contrário de Cromwell, que dispõe das duas câmaras, Mazarino tem por único apoio a Rainha em sua luta contra o Parlamento.

— Mais uma razão, portanto, para proteger um rei que os parlamentos perseguem.

A Rainha meneou a cabeça com azedume.

— A julgar por mim mesma, Milorde — disse ela — o Cardeal não fará nada e talvez seja até contra nós. A minha presença e a de minha filha em França já lhe pesam: com maior razão, a do Rei. Milorde — ajuntou Henriqueta sorrindo com melancolia — é triste e quase vergonhoso dizê-lo, mas nós passamos o inverno do Louvre sem dinheiro, sem roupas, quase sem pão e, muita vez, sem nos levantarmos da cama por falta de lume.

— Que horror! — exclamou de Winter. — A filha de Henrique rV, a mulher do Rei Carlos! Por que não se dirigiu Vossa Majestade ao primeiro dentre nós que encontrou?

— Eis a hospitalidade que dá a uma Rainha o Ministro a quem um Rei deseja pedi-la.

— Mas ouvi falar num casamento entre Sua Alteza o Príncipe de Gales e a Srta. de Orleans? — disse de Winter.

— Sim, acalentei, por um instante, a esperança de que isso acontecesse. As crianças amavam-se; mas a Rainha, que, a principio, aprovava esse amor, mudou de idéia; e o Sr. Duque de Orleans, que animara os primórdios dessa amizade, proibiu a filha de pensar no casamento. Ah! Milorde —continuou a Rainha, sem cuidar sequer de enxugar as lágrimas — é melhor combater, como fez o Rei, e morrer como ele provavelmente morrerá, do que viver mendigando como eu.

— Coragem, senhora — acudiu de Winter — coragem! Não desespere Vossa Majestade. Os interesses da coroa de França, tão abalada neste momento, levam-na a combater a

rebelião no povo mais vizinho. Mazarino é estadista e compreenderá essa necessidade.

— Mas tendes certeza — disse a Rainha com ar de dúvida — de que não Fostes o antecedido?

— Por quem? — perguntou de Winter.

— Pelos Joyces, pelos Pridges, pelos Cromwells?

— Por um alfaiate! por um carreiro! por um cervejeiro! Ah! espero, senhora, que o Cardeal seja incapaz de aliar-se a semelhantes homens.

— E ele mesmo, que é? — perguntou Henriqueta.

— Mas, pela honra do Rei, pela da Rainha...

— Sim, esperemos que faça alguma coisa por essa honra

—disse Henriqueta. — Os amigos são tão eloqüentes, Milorde, que vós me tranqüilizais. Dai-me a vossa mão e vamos procurar o Ministro.

— Senhora — disse de Winter inclinando-se — tamanha honra me confunde.

— Mas se ele recusar — sobreveio a Rainha — e o Rei perder a batalha?...

— Sua Majestade buscaria, nesse caso, refúgio na Holanda, onde ouvi dizer que se encontra Sua Alteza o Príncipe de Gales.

— E Sua Majestade poderia contar, para fugir, com muitos servidores como vós?

— Infelizmente, não, senhora — disse de Winter; — mas o caso está previsto e vim buscar aliados em França.

— Aliados! — repetiu a Rainha meneando a cabeça.

— Senhora — tornou de Winter — basta-me encontrar uns amigos que tive outrora, e respondo por tudo.

— Está bem, está bem, Milorde — disse a Rainha com essa dúvida pungente das pessoas muito tempo infelizes — está bem, e Deus vos ouça!

A Rainha subiu no carro e de Winter, a cavalo, seguido de dois lacaios, acompanhou-a à portinhola.


 A CARTA DE CROMWELL

 

No momento em que a Rainha Henriqueta saía das Carmelitas para dirigir-se ao Palais-Royal, um cavaleiro descia do cavalo à porta dessa habitação real, e anunciava aos guardas que trazia uma notícia importante para transmitir ao Cardeal Mazarino.

Se bem freqüentemente tivesse medo, tinha o Cardeal mais freqüentemente ainda, precisão de conselhos e informações, e por isso era assaz acessível. Não se encontrava à primeira porta a verdadeira dificuldade; a segunda mesmo se transpunha com relativa facilidade; à terceira, porém, velava, além da guarda e dos porteiros, o fiel Bernouin, cérbero que nenhuma palavra poderia abrandar, que nenhum ramo, ainda que de ouro, poderia seduzir.

Era, portanto, à terceira porta que o pretendente a uma audiência sofria um interrogatório formal.

Deixando o cavalo amarrado às grades do pátio, o cavaleiro subiu a escadaria principal e, dirigindo-se aos guardas na primeira sala:

— O Sr. Cardeal Mazarino? — perguntou.

— Passai — responderam os guardas sem levantar sequer o nariz, inclinado sobre as cartas ou sobre os dados, gozando-se, aliás, da oportunidade que tinham de mostrar que não lhes competia o ofício de lacaios.

Entrou o cavaleiro na segunda sala, guardada pelos mosqueteiros e pelos porteiros.

— Tendes carta de audiência? — perguntou um porteiro, dirigindo-se ao requerente.

— Tenho, mas não do Cardeal Mazarino.

— Entrai e perguntai pelo Sr. Bernouin — disse o porteiro.

E abriu a porta da terceira sala.

Fosse por acaso, fosse porque estivesse no posto habitual, em pé atrás da porta, Bernouin ouvira tudo.

— Sou eu, senhor, quem procurais — disse ele. — De quem é a carta que trazeis a Sua Eminência?

— Do General Olivério Cromwell — tornou o recém-chegado; — fazei-me a fineza de anunciar esse nome a Sua Eminência e vinde dizer-me depois se posso ou não ser recebido.

E conservou-se em pé, na atitude taciturna e sobranceira peculiar aos puritanos.

Depois de haver envolvido toda a pessoa do estranho com um olhar inquisitivo, Bernouin voltou ao gabinete do Cardeal, a quem repetiu as palavras do mensageiro.

— Portador de uma carta de Olivério Cromwell? — perguntou Mazarino; — que espécie de homem é ele?

— Um verdadeiro inglês, Monsenhor; cabelos de um loiro ruço, mais ruços do que louros; olhos de um cinzento azulado, mais cinzentos do que azuis; quanto ao rosto, orgulho e frieza.

— Dize-lhe que entregue a carta.

— Monsenhor pede a carta — disse Bernouin, voltando a passar do gabinete para a antecâmara.

— Monsenhor não verá a carta sem o portador — respondeu o cavaleiro; — mas para convencer-vos de que sou realmente portador de uma carta, ei-la.

Bernouin olhou para o sinete; e vendo que era realmente do general Olivério Cromwell, fez menção de voltar para junto de Mazarino.

— Acrescentai — disse o cavaleiro — que não sou um simples mensageiro, mas um enviado extraordinário.

Bernouin voltou ao gabinete e tornou a sair segundos depois:

— Entrai, senhor — convidou, segurando a porta aberta.

Mazarino precisara de todas essas idas e vindas para tornar em si da comoção que lhe provocara o anúncio da carta; mas, por mais perspicaz que fosse, em vão procurava o motivo que teria levado Cromwell a comunicar-se com ele.

O rapaz assomou à porta do gabinete; tinha o chapéu numa das mãos e a carta na outra.

Mazarino levantou-se.

— Tendes, senhor — perguntou ele — credenciais para apresentar-me?

— Ei-las, Monsenhor — disse o rapaz. Mazarino pegou na carta, abriu-a e leu:

 

"O Sr. Mordaunt, um de meus secretários, entregará esta carta de apresentação a Sua Eminência o Cardeal Mazarino, em Paris; além disso, é portador, para Sua Eminência, de uma segunda carta confidencial.

"Olivério Cromwell."

 

— Muito bem, Sr. Mordaunt — disse Mazarino — dai-me a segunda carta e sentai-vos.

Entretanto, inteiramente absorto em suas reflexões, o Cardeal tomara a carta e, sem a abrir, virava-a e revirava-a na mão; mas, para iludir o mensageiro, pôs-se a interrogá-lo segundo o seu hábito, convicto, por experiência, de que poucos homens conseguiam esconder-lhe alguma coisa quando ele interrogava e olhava ao mesmo tempo:

— Sois bem jovem, Sr. Mordaunt, para o difícil ofício de embaixador, em que fracassam, às vezes, os mais experimentados diplomatas.

— Monsenhor, tenho vinte e três anos; mas Vossa Eminência se engana ao dizer que sou jovem. Sou mais velho do que Vossa Eminência, embora não tenha a sua sabedoria.

— Como assim? Não vos compreendo.

— Digo, Monsenhor, que cada ano de sofrimento vale por dois e há vinte que sofro.

— Ah! compreendo — tornou Mazarino — falta de dinheiro; sois pobre, não é verdade?

E ajuntou entre si:

— Esses revolucionários ingleses são todos uns pobretões e uns lapuzes.

— Monsenhor, eu deveria herdar um dia uma fortuna de seis milhões; mas tomaram-ma.

— Não sois, então, homem do povo? — perguntou Mazarino, espantado.

— Se eu usasse o meu título, seria lorde; se declinasse o meu nome, ouviria Vossa Eminência um dos nomes mais ilustres da Inglaterra.

— Como vos chamais então? — perguntou Mazarino.

— Chamo-me Mordaunt — respondeu o rapaz, inclinando-se.

Mazarino compreendeu que o enviado de Cromwell queria conservar-se incógnito.

Calou-se por um momento, em que o considerou com atenção ainda maior que a da primeira vez.

O rapaz conservava-se impassível.

— O diabo carregue esses puritanos! — disse baixinho Mazarino — são todos de mármore.

E, em voz alta:

— Mas ainda tendes parentes?

— Tenho um, Monsenhor.

— E ele não vos ajuda?

— Por três vezes o procurei para implorar-lhe que me ajudasse e por três vezes me escorraçaram os seus lacaios.

— Oh! meu Deus! meu caro Sr. Mordaunt — disse Mazarino, esperando fazê-lo cair em alguma cilada pela sua falsa piedade — meu Deus! como é interessante a vossa história! Não conheceis, então, o vosso nascimento?

— Faz pouco tempo que o conheço.

— E até o momento em que o conheceste?...

— Considerava-me enjeitado.

— Mas, então, nunca vistes vossa mãe?

— Vi, Monsenhor; quando eu era criança, ela foi três vezes à casa de minha ama; lembro-me da última vez que a vi como se fosse hoje.

— Tendes boa memória.

— Oh! sim, Monsenhor — tornou o rapaz com acento tão singular que o Cardeal sentiu um arrepio percorrer-lhe as veias.

— E quem vos educava? — perguntou Mazarino.

— Uma ama francesa, que me pôs na rua quando completei cinco anos, porque ninguém mais a pagava, e me indicou esse parente, de que minha mãe lhe falara muitas vezes.

— E que foi feito de vós?

— Como eu chorasse e mendigasse pelas estradas, um ministro de Kingston me recolheu, instruiu-me na religião calvinista, deu-me toda a ciência que possuía, e ajudou-me nas pesquisas que fiz sobre a minha família.

— E essas pesquisas?

— Foram infrutíferas; o acaso fez tudo.

— Descobristes o que sucedeu à vossa mãe?

— Eu soube que ela fora assassinada por esse parente ajudado por quatro amigos, mas já sabia que eu tinha sido destituído da nobreza e despojado de todos os meus bens pelo Rei Carlos I.

— Ah! compreendo agora porque servis o Sr. Cromwell. Odiais o Rei.

— Sim, Monsenhor, odeio-o! — disse o rapaz. Mazarino viu com espanto a expressão diabólica com que o jovem pronunciara essas palavras: os rostos comuns se tornam cor de sangue, mas o dele se tornara cor de fel e ficara lívido.

— A vossa história é terrível, Sr. Mordaunt, e me comove profundamente; mas, felizmente para vós, servis um amo todo-poderoso. Ele há de ajudar-vos em vossas buscas. Nós, os ministros, temos tantas informações!

— A um bom cão de caça, Monsenhor, basta mostrar uma extremidade da pista para que ele chegue, com segurança, à extremidade oposta.

— E esse parente a que aludistes, não quereis que eu lhe fale? — perguntou Mazarino, que desejava ter um amigo junto de Cromwell.

— Obrigado, Monsenhor, eu mesmo lhe falarei.

— Mas não me dissestes que ele vos maltratava?

— Há de tratar-me melhor na próxima vez.

— Tendes meios de enternecê-lo?

— Tenho meios de amedrontá-lo.

Mazarino olhava para o rapaz, mas ao clarão que lhe saltou dos olhos abaixou a cabeça e, não querendo prosseguir na conversação, abriu a carta de Cromwell.

A pouco e pouco os olhos do rapaz tornaram a ficar baços e vítreos como de costume, e ele caiu em profunda meditação. Depois de ter lido as primeiras linhas, Mazarino arriscou um olhar de soslaio para ver se Mordaunt não lhe espreitava a fisionomia; e, observando-lhe a indiferença:

— Aí está o que é a gente mandar tratarem de negócios — disse ele entre si, encolhendo imperceptivelmente os ombros — pessoas que tratam ao mesmo tempo dos seus! Vejamos o que diz a carta.

Reproduzimo-la textualmente:

 

"A Sua Eminência "Monsenhor Cardeal Mazarino.

"Desejo, Monsenhor, conhecer as intenções de Vossa Eminência no tocante aos assuntos atuais da Inglaterra. Os dois reinos são tão vizinhos que a França tem de ocupar-se da nossa situação, como nós nos ocupamos da situação da França. Os ingleses são quase todos unânimes em combater a tirania do Rei Carlos e seus partidários. Colocado à frente deste movimento pela confiança pública, aprecio melhor do que ninguém a sua natureza e as suas conseqüências. Hoje estou em guerra e vou oferecer ao Rei Carlos uma batalha decisiva. Hei de vencê-la, pois a esperança da nação e o espírito do Senhor estão comigo. Ganha essa batalha, o Rei já não terá recursos na Inglaterra nem na Escócia; e se ele não for aprisionado nem morto, tentará passar à França para recrutar soldados e conseguir armas e dinheiro. A França já recebeu a Rainha Henriqueta e, involuntariamente sem dúvida, alimentou um foco de guerra civil inextinguível em meu pais; mas a Sra. Henriqueta é francesa e a hospitalidade da França lhe é devida. Quanto ao Rei Carlos, o caso muda de figura: recebendo-o e socorrendo-o, a França reprovaria os atos do povo inglês e prejudicaria tão essencialmente a Inglaterra e, sobretudo, a marcha do governo que ela pretende escolher, que semelhante posição equivaleria a flagrantes hostilidades..."

 

Nesse momento, muito inquieto com o curso que tomava a carta, Mazarino cessou novamente de ler e, com o canto dos olhos, observou o rapaz.

Este continuava abismado em reflexões. Mazarino prosseguiu:

 

"Ê, portanto, urgente, Monsenhor, que eu saiba o que posso esperar das disposições da França: os interesses desse reino e os da Inglaterra, embora dirigidos em sentido inverso, estão mais próximos do que se poderia imaginar. A Inglaterra precisa de tranqüilidade interior para levar a cabo a expulsão de seu rei, a França necessita dessa mesma tranqüilidade para consolidar o trono do seu jovem monarca; tem Vossa Eminência, tanto quanto nós, precisão dessa paz interior, da qual nos aproximamos, graças à energia de nosso governo.

"As brigas de Vossa Eminência com o Parlamento, as dissessões ruinosas com os príncipes que hoje combatem por Vossa Eminência e amanhã combaterão contra, a tenacidade popular dirigida pelo Coadjutor, pelo Presidente Blancmesnil e pelo Conselheiro Broussel; toda essa desordem, enfim, que agita os diversos setores do Estado, deve levar Vossa Eminência a encarar com inquietude a eventualidade de uma guerra estrangeira: pois nesse caso, super-excitada pelo entusiasmo das idéias novas, a Inglaterra se aliaria à Espanha, que já lhe ambiciona a aliança. Conhecendo a prudência e a posição toda especial de Vossa Eminência determinada pelos sucessos atuais, pensei, Monsenhor, que Vossa Eminência haveria de preferir concentrar as suas forças no interior do reino de França e entregar às suas o novo governo da Inglaterra. Essa neutralidade consiste tão somente em afastar o Rei Carlos do território francês e em não socorrer com armas, nem com dinheiro, nem com tropas, um rei tão completamente estranho ao país de Vossa Eminência.

"A minha carta, portanto, é estritamente confidencial, e daí a razão por que a envio por intermédio de um homem de minha íntima confiança; ela antecederá, por um sentimento que Vossa Eminência saberá apreciar, as medidas que tomarei de acordo com os acontecimentos. Olivério Cromwell julgou proceder melhor expondo o assunto a um espírito inteligente como o de Mazarini, do que a uma rainha admirável de firmeza, sem dúvida, mas demasiado sujeita aos vãos preconceitos do nascimento e do poder divino.

"Adeus, Monsenhor, se não obtiver resposta dentro em quinze dias, considerarei sem efeito a minha carta.

"Olivério Cromwell."

 

— Sr. Mordaunt — disse o Cardeal elevando a voz como que para despeitar o sonhador — a minha resposta a esta carta será tanto mais satisfatória ao General Cromwell, quanto maior certeza eu tiver de que ninguém saberá que a dei. Ide, portanto, esperar em Boulogne-sur-Mer, e prometei-me partir amanhã cedo.

— Prometo-o, Monsenhor — respondeu Mordaunt — mas quantos dias me fará Vossa Eminência esperar pela resposta?

— Se não a receberdes dentro de dez dias, podereis partir. Mordaunt inclinou-se.

— E não é tudo, senhor — continuou Mazarino — as vossas aventuras particulares me comoveram profundamente; de mais a mais, a carta do Sr. Cromwell vos torna importante aos meus olhos como embaixador. Dizei-me, torno a repeti-lo, dizei-me o que posso fazer por vós?

Mordaunt refletiu um instante e, depois de visível hesitação, ia abrir a boca para responder, quando Bernouin entrou precipitadamente, inclinou-se ao ouvido do Cardeal e falou-lhe em voz baixa.

— Monsenhor — disse ele — a Rainha Henriqueta, acompanhada de um gentil-homem inglês, está entrando no Palais-Royal.

Mazarino deu um pulo na cadeira que não escapou à observação do rapaz e reprimiu a confidencia que este, sem dúvida, ia fazer.

— Senhor — tornou o Cardeal — já entendestes, não é verdade? Fixo-vos Bolonha porque imagino que qualquer cidade francesa vos seja indiferente; mas, se preferirdes outra, dize-o; haveis de compreender facilmente que, cercado como estou de influências a que só consigo fugir à força de discrição, eu desejo que a vossa presença em Paris seja ignorada.

— Partirei, senhor — prometeu Mordaunt, dando alguns passos na direção da porta pela qual entrara.

— Não, não, por aí não, senhor, por aí não! — exclamou vivamente o Cardeal: — fazei-me o favor de passar por esta galeria, pela qual chegareis ao vestíbulo. Quero que ninguém vos veja sair, pois a nossa entrevista tem de ser secreta.

Mordaunt seguiu Bornouin, que o conduziu a uma sala contígua e entregou-o a um porteiro, indicando-lhe a porta de saída.

Depois voltou à presença do amo a fim de introduzir a Rainha Henriqueta, que já transpunha a galeria envidraçada.

 

     MAZARINO E A RAINHA HENRIQUETA

 

Cardeal levantou-se e foi, pressuroso, receber a Rainha da Inglaterra. Alcançou-a no meio da galeria que precedia o seu gabinete. Testemunhava tanto maior respeito à Rainha sem séquito e sem fasto, quanto mais reconhecia quão censuráveis eram a sua avareza e a sua insensibilidade.

Mas os suplicantes sabem imprimir ao rosto todas as expressões necessárias, e a filha de Henrique IV sorria ao aproximar-se do homem que ela odiava e desprezava.

— Ah! — disse Mazarino com os seus botões — que rosto meigo! Virá pedir-me dinheiro emprestado?

E lançou um olhar inquieto à almofada do cofre; chegou até a virar para baixo o engaste do magnífico brilhante cujo resplendor atraía os olhares para a sua mão, aliás branca e bela. Infelizmente, porém, esse anel não tinha a virtude do de Gygés, que tornava o dono invisível quando fazia o que fizera Sua Eminência.

Ora, Mazarino gostaria muito de tornar-se invisível naquele momento, adivinhando que a Sra. Henriqueta queria pedir-lhe alguma coisa; pois quando uma rainha, que ele tratara tão mal, trazia um sorriso nos lábios em vez de trazer ameaças na boca, era sinal de que vinha suplicar.

— Sr. Cardeal — disse a augusta visitante — pensei primeiro em tratar do caso que me traz com a Rainha minha irmã, mas refleti que os assuntos políticos interessam antes de tudo aos homens.

— Senhora — disse Mazarino — acredite que Vossa Majestade me confunde com tão lisonjeira distinção.

— Ele está muito amável — pensou a Rainha — teria adivinhado o que pretendo?

Haviam chegado ao gabinete do Cardeal. Este fez a Rainha sentar-se e, quando ela se acomodou:

— Dê Vossa Majestade — disse ele — as suas ordens ao mais respeitoso de seus súditos.

— Ai! senhor — tornou a Rainha — já perdi o hábito de dar ordens e só tenho hoje o de fazer pedidos. Venho, portanto, pedir-vos e sentir-me-ei felicíssima se o meu pedido for atendido.

— Sou todo ouvidos, senhora — disse Mazarino.

— Sr. Cardeal, trata-se da guerra que o Rei, meu marido, sustenta contra os seus súditos rebeldes. Talvez ignoreis que há guerra na Inglaterra — disse a Rainha com um sorriso triste — e que dentro em pouco essa guerra assumirá um aspecto muito mais decisivo do que tem assumido até agora.

— Ignoro-o completamente, senhora — disse o Cardeal, acompanhando as palavras com leve movimento de ombros.

— Ai! as nossas guerras bastam a absorver todo o tempo e todo o espírito de um pobre ministro incapaz e enfermo como eu.

— Pois bem! Sr. Cardeal — disse a Rainha — dir-vos-ei que Carlos I, meu esposo, está na iminência de travar uma batalha decisiva. Em caso de malogro... — Mazarino fez um movimento... — é mister prever tudo — , continuou a Rainha; — em caso de malogro, ele deseja vir para a França e aqui viver como simples particular. Que dizeis do seu projeto?

O Cardeal ouvira sem que uma fibra do seu rosto traísse a impressão que sentia; enquanto ouvia, o seu sorriso não mudara; continuava, como sempre, falso e meigo; quando a Rainha terminou:

— Acredita Vossa Majestade — disse ele com a voz mais suave e sedosa — que a França, agitada e revolta como anda, seja porto seguro para um rei destronado? A coroa já não está muito firme sobre a cabeça do Rei Luís XIV; como poderia ela suportar um duplo peso?

— Esse peso não foi muito grande no que diz respeito

— atalhou a Rainha com um doloroso sorriso — e não peço que façam mais por meu marido do que o que fizeram por mim. Como vedes, senhor, somos uns reis até bem modestos.

— Oh! Vossa Majestade — apressou-se em dizer o Cardeal, para atalhar as explicações que pressentia — Vossa Majestade é outra coisa: é filha de Henrique IV, do grande, do sublime rei...

— O que não vos impede de recusar a hospitalidade a seu genro, não é verdade? Deveríeis, contudo, lembrar-vos de que o grande, o sublime rei, proscrito um dia como o será meu marido, foi pedir socorro à Inglaterra e a Inglaterra não lho negou; e, no entanto, a Rainha Elisabete não era sua sobrinha.

— Peccato! — disse Mazarino, debatendo-se nessa lógica tão simples — Vossa Majestade não me compreende; julga mal as minhas intenções e fá-lo, sem dúvida, porque me explico mal em francês.

— Falai italiano: a Rainha Maria de Médicis, nossa mãe, ensinou-nos essa língua antes que o Cardeal vosso predecessor a mandasse morrer no exílio. Se ainda resta alguma coisa do grande, do sublime rei Henrique de que há pouco faláveis, há de estar espantadíssimo com essa profunda admiração por ele aliada a tão pouca piedade pela sua família.

O suor corria em grossas gotas pelo rosto de Mazarino.

— A admiração, pelo contrário, é tão grande e tão real, senhora — disse Mazarino sem aceitar o oferecimento que fazia a Rainha de trocar de idioma — que se o Rei Carlos I (Deus o preserve de todo o mal) viesse à França, eu lhe ofereceria minha casa, minha própria casa; mas, aí! seria um abrigo pouco seguro. Algum dia o povo queimará esta casa como queimou a do Marechal d’Ancre. Pobre Concino Concini! ele, no entanto, só aspirava ao bem da França (41).

(41) Nascido em Florença, Concino Concini foi para a França em 1600 com Maria de Médicis. Casou com Leonor Galigai, camareira e favorita da Rainha. Ambicioso e sem escrúpulos, obtinha da Rainha, após a morte de Henrique IV, tudo o que quisesse. Fazia-o por intermédio da mulher, companheira de infância de Maria de Médicis, que dominava completamente o espírito fraco da Regente. Em poucos anos foi nomeado mordomo de Sua Majestade, escudeiro-mor, Marquês d'Ancre, Governador de Péronne, Montdidier, Roye, superintendente da casa real e, por fim, Marechal de França, embora nunca tivesse sido soldado, sem contarmos as ricas prebendas de que se apossava com a maior desfaçatez. Não tardou em converter-se no verdadeiro senhor do reino, cujas exações e cuja insolência acabaram excitando o ódio geral e a execração do próprio Luís XIII, ainda menor, que ele tratava com revoltante arrogância. Subindo ao trono, cuidou o jovem Rei de livrar-se do insuportável personagem e disso encarregou um capitão de seus guardas, Vitry, que assassinou o aventureiro no pátio do Louvre. Condenada à morte como feiticeira, a mulher, foi decapitada e queimada. (N. do T.)

 

— Sim, Monsenhor, como vós — disse ironicamente a Rainha.

Mazarino fingiu não compreender o duplo sentido da frase que ele mesmo dissera, e continuou a lastimar a sorte de Concino Concini.

— Mas, afinal, Monsenhor Cardeal — atalhou a Rainha, impaciente — que me respondeis?

— Senhora — tornou Mazarino, cada vez mais enternecido — permite Vossa Majestade que eu lhe dê um conselho? Está visto que, antes de cometer essa ousadia, começo pondo-me aos pés de Vossa Majestade para o que lhe aprouver.

— Dizei, senhor — tornou a Rainha. — O conselho de um homem tão prudente há de ser bom, sem dúvida.

— Acredite Vossa Majestade, o Rei deve defender-se até ao fim.

— Foi o que ele fez, senhor, e esta última batalha que vai travar com recursos bem inferiores aos do inimigo, prova que não pretende render-se sem combater; mas suponhamos que seja vencido!

— Nesse caso, senhora, o meu conselho, e sei que é muita ousadia minha dar conselhos a Vossa Majestade; o meu conselho é que o Rei não abandone o seu reino. Logo se esquecem os reis ausentes: se ele vier para a França, a sua causa estará perdida.

— Mas então — volveu a Rainha — se é esse o vosso parecer e se de fato vos interessais por ele, mandai-lhe alguns socorros em homens e dinheiro; pois já não posso fazer mais nada; vendi, para ajudá-lo, até o último dos meus brilhantes. Nada me resta, vós o sabeis, sabei-lo melhor do que ninguém, senhor. Se me tivesse sobrado alguma jóia, eu teria com ela comprado um pouco de lenha para aquecer-nos, a mim e a minha filha, durante este inverno.

— Ah! senhora — disse Mazarino — Vossa Majestade nem imagina o que me pede. A entrada de um socorro estrangeiro num país para recolocar o rei no trono, equivale a uma confissão de que já não o socorre o amor dos súditos.

— Vamos aos fatos, Sr. Cardeal — atalhou a Rainha, que perdia a paciência seguindo-lhe o espírito sutil no labirinto de palavras em que ele se perdia; — vamos aos fatos e respondei-me sim ou não: se o Rei persistir em ficar na Inglaterra mandar-lhe-eis auxílio? E se ele passar à França, dar-lhe-eis abrigo?

— Senhora — replicou o Cardeal simulando a maior franqueza — vou mostrar a Vossa Majestade, pelo menos o espero, o quanto lhe sou dedicado e o quanto desejo servi-la num caso que de tal modo a interessa. Depois disso, Vossa Majestade, penso eu, já não porá em dúvida o meu zelo.

A Rainha mordia os lábios e agitava-se, impaciente, na poltrona.

— Muito bem! que fareis? — disse ela, afinal; — vamos, dizei.

— Vou imediatamente consultar a Rainha, e, em seguida, apresentaremos o caso ao Parlamento.

— Com o qual estais em guerra, não é verdade? Encarregareis Broussel de fazer o relatório. Basta, Sr. Cardeal, basta. Eu vos compreendo, ou melhor, fiz mal. Ide, com efeito, ao Parlamento; pois foi desse Parlamento, inimigo dos reis, que vieram para a filha do grande, do sublime Henrique IV, que tanto admirais, os únicos socorros que a impediram de morrer de fome e de frio neste inverno.

E, ditas essas palavras, levantou-se a Rainha com majestosa indignação.

O Cardeal estendeu para ela as mãos juntas.

— Ah! senhora, senhora, como Vossa Majestade me conhece mal, meu Deus!

Mas sem se voltar sequer para o homem que derramava essas lágrimas hipócritas, atravessou Henriqueta o gabinete, abriu a porta e, no meio dos numerosos guardas de Sua Eminência, dos cortesãos que à porfia o cortejavam, do luxo de uma realeza rival, foi tomar a mão de de Winter, só, isolado e em pé. Pobre rainha destronada, diante da qual todos se inclinavam ainda por etiqueta, mas que de fato não tinha mais do que um braço em que se apoiasse.

— Não faz mal — disse Mazarino quando se viu só — custou-me fazê-lo, e é um papel de representar-se. Mas o fato é que eu não disse nada a um nem a outro. Hum! o tal Cromwell é um tremendo caçador de reis; tenho pena dos seus ministros, se um dia os tiver. Bernouin!

Bernouin entrou.

— Vai ver se o rapaz de gibão preto e cabelos cortados, que há pouco trouxeste aqui, ainda está em palácio.

Bernouin saiu. O Cardeal ocupou o tempo da sua ausência tornando a virar para cima o engaste do anel, esfregando-lhe a pedra e admirando-lhe o brilho, e como uma lágrima ainda lhe pendesse dos olhos e lhe turbasse a vista, sacudiu a cabeça para fazê-la cair.

Bernouin entrou com Comminges, que estava de guarda.

— Monsenhor — disse Comminges — enquanto eu conduzia o rapaz que Vossa Eminência mandou buscar, ele aproximou-se da porta envidraçada da galeria e examinou qualquer coisa com espanto, sem dúvida o quadro de Rafael, que fica defronte da porta. Em seguida, pensou um instante e desceu a escada. Creio tê-lo visto montar num cavalo ruço e sair do pátio do palácio. Mas Vossa Eminência não vai ter com a Rainha?

— Para quê?

— O Sr. Guitaut, meu tio, acaba de dizer-me que Sua Majestade recebeu notícias do exército.

— Está bem, vou correndo.

Nesse momento, surgiu o Sr. de Villequier, que vinha, com efeito, procurar o Cardeal a mando da Rainha.

Comminges vira bem e Mordaunt se havia realmente portado como ele dissera. Ao atravessar a galeria paralela à grande galeria envidraçada, avistou de Winter, à espera da Rainha.

A essa vista, o rapaz estacara de repente, não por admiração diante do quadro de Rafael, mas como fascinado por terrível espetáculo. Os seus olhos se dilataram; um tremor percorreu-lhe todo o corpo. Dir-se-ia que ele quisesse transpor a parede de vidro que o separava do inimigo; pois se Comminges tivesse visto a expressão de ódio com que os seus olhos se cravaram em de Winter, não teria duvidado um instante de que o senhor inglês fosse seu inimigo mortal. -

Mas ele parou.

Fê-lo, sem dúvida, para refletir; pois em vez de se deixar arrebatar pelo primeiro movimento, que fora dirigir-se diretamente a Milorde de Winter, desceu lentamente a escada, saiu do palácio cabisbaixo montou, encostou o cavalo na esquina da rue Richelieu e, com o olhar fito no portão, esperou que o carro da Rainha saísse do pátio.

Não precisou esperar muito tempo, pois a Rainha não se demorara sequer um quarto de hora em companhia de Mazarino; mas esse quarto de hora de espera pareceu um século ao homem que esperava.

Afinal, a máquina pesada que então chamavam coche saiu, ruidosa, e de Winter, sempre a cavalo, de novo se inclinou à portinhola para conversar com Sua Majestade.

Os animais partiram a trote e tomaram o caminho do Louvre, onde entraram. Antes de deixar o convento das Carmelitas, a Rainha Henriqueta dissera à filha que fosse esperá-la no Palácio que ela tanto tempo habitara e só deixara porque a miséria lhes parecera mais pesada em suas salas douradas.

Mordaunt seguiu o carro e, quando o viu entrar debaixo da arcada sombria, foi, a cavalo, coser-se com um muro sobre o qual já se estendia uma sombra, imobilizando-se entre as molduras de João Goujon, semelhante a um baixo-relevo que representasse uma estátua eqüestre.

E ficou esperando como já esperara diante do Palais-Royal.


 DE COMO OS DESGRAÇADOS TOMAM, ÀS VEZES, O ACASO PELA PROVIDÊNCIA

 

 E então, senhora? — perguntou de Winter depois que a Rainha afastou os servidores.

— O que eu previa aconteceu, Milorde.

— Ele recusa?

— Eu não vos tinha dito?

— O Cardeal se recusa a receber o Rei, a França recusa hospitalidade a um príncipe infeliz? Mas será a primeira vez, senhora!

— Eu não disse a França, Milorde; eu disse o Cardeal, e o Cardeal nem sequer é francês.

— Mas Vossa Majestade viu a Rainha?

— Seria inútil — acudiu a Rainha Henriqueta sacudindo tristemente a cabeça; — a Rainha não dirá sim depois que o Cardeal disse não. Ignorais, acaso, que esse italiano governa tudo, no interior e no exterior? Há mais, e torno ao que eu vos disse, não me admiraria que Cromwell nos tivesse antecedido; ele se mostrou enleado ao falar-me e, no entanto, firme na decisão de recusar. De mais a mais, não notastes aquela agitação no Palais-Royal, aquelas idas e vindas de pessoas apressadas? Teriam, porventura, recebido alguma notícia Milorde?

— Da Inglaterra não foi, senhora; fiz tamanha diligência que tenho certeza "de que ninguém poderia haver chegado antes; parti há três dias, passei por milagre pelo meio do exército puritano, tomei a diligência com o meu lacaio Tony, e os cavalos que montamos compramo-los em Paris. Aliás, estou persuadido de que El-Rei, antes de arriscar-se, esperará a resposta de Vossa Majestade.

— Vós lhe direis, Milorde — tornou a Rainha, desesperada — que não posso fazer nada, que sofri tanto quanto ele, mais do que ele, pois sou obrigada a comer o pão do exílio e a pedir hospitalidade a falsos amigos, que se riem de minhas lágrimas; no que toca à sua real pessoa, ele precisará sacrificar-se generosamente e morrer como rei. Irei morrer ao seu lado.

— Senhora! senhora! — exclamou de Winter — Vossa Majestade se entrega ao desalento, e talvez ainda nos restem esperanças.

— Já não temos amigos, Milorde! O nosso único amigo no mundo inteiro sois vós! ó meu Deus! meu Deus! — bradou a Rainha Henriqueta erguendo os olhos para o céu — levastes todos os corações generosos que existiam sobre a terra?

— Espero que não, senhora — respondeu de Winter, pensativo; — eu falei a Vossa Majestade em quatro homens.

— E que pretendeis fazer com quatro homens?

— Quatro homens dedicados, quatro homens decididos a morrer podem muito, creia Vossa Majestade, e esses de que lhe falo fizeram outrora muita coisa.

— Esses quatro homens onde estão?

— Eis o que ignoro. Há uns vinte anos perdi-os de vista, mas em todas as ocasiões que vi o Rei em perigo pensei neles.

— E eram vossos amigos?

— Um deles teve a minha vida nas mãos e devolveu-ma; não sei se ficou meu amigo, mas eu, pelo menos, fiquei amigo dele.

— E esses homens estão em França, Milorde?

— Creio que sim.

— Dizei-me os seus nomes; eu talvez os tenha ouvido nomear e possa facilitar-vos a busca.

— Um deles se chamava Cavaleiro d'Artagnan.

— Oh! Milorde! Se não me engano, o Cavaleiro d'Artagnan é tenente dos guardas; já ouvi falar em seu nome; mas, cuidado, receio que seja inteiramente dedicado ao Cardeal.

— Nesse caso, seria uma última desgraça — disse de Winter — e eu começaria a crer que fomos, realmente, amaldiçoados.

— Mas os outros — insistiu a Rainha, que se agarrava a essa última esperança como um náufrago aos destroços do navio — os outros, Milorde!

— Ouvi por acaso o nome do segundo, pois antes de se baterem contra nós os quatro fidalgos se nomearam; o segundo chamava-se Conde de La Fere. Quanto aos dois outros, o costume que eu tinha de tratá-los pelos nomes de guerra fez-me esquecer os verdadeiros.

— Oh! meu Deus, mas é urgentíssimo encontrá-los — disse a Rainha — se achais que esses dignos fidalgos podem ser úteis ao Rei.

— Oh! sim — disse de Winter — pois são os mesmos; ouça Vossa Majestade e reúna as suas lembranças: nunca ouviu dizer que a Rainha Ana d'Áustria foi salva outrora do maior dos perigos que já correu uma rainha?

— Sim, no tempo dos seus amores com o Sr. de Buc-kingham; não sei direito por que, mas tratava-se de umas agulhetas de brilhantes.

— Foi isso mesmo, senhora; esses homens salvaram-na, e eu sorrio de piedade ao pensar que, se os seus nomes não são conhecidos de Vossa Majestade, a Rainha os esqueceu, quando devia ter feito deles os primeiros fidalgos do reino.

— Pois bem, Milorde, é preciso procurá-los; mas que poderão fazer quatro homens, ou melhor, três homens? Pois, como eu já vos disse, não deveis contar com o Sr. d'Artagnan.

— Seria uma valente espada a menos, mas sempre ficariam três outras, sem contar a minha; ora, quatro homens dedicados à volta do Rei para defendê-lo dos inimigos, para cercá-lo numa batalha, para ajudá-lo no conselho, para escoltá-lo na fuga, seriam suficientes, não para dar-lhe a vitória, mas para salvá-lo se for vencido, para ajudá-lo a cruzar o mar; pois apesar do que possa dizer Mazarino, chegado às costas de França, o real esposo de Vossa Majestade nelas encontraria tantos retiros e asilos quanto o pássaro marinho durante as tempestades.

— Procurai, Milorde, procurai os fidalgos, e se os encontrardes, se eles consentirem em acompanhar-vos à Inglaterra, darei um ducado a cada um no dia em que voltarmos ao trono e, além disso, todo o ouro necessário para comprar o palácio de White-Hall. Procurai, Milorde, procurai, eu vos suplico.

— Procurarei, senhora — disse de Winter — e hei de encontrá-los sem dúvida, mas falta-me tempo: esquece-se Vossa Majestade de que o Rei espera a sua resposta e a espera agoniado?

— Mas, então, estamos perdidos! — bradou a Rainha com o grito de um coração alanceado.

Nesse momento a porta se abriu, a jovem Henriqueta apareceu, e a Rainha, com a força sublime que é o heroísmo das mães, tornou a recolher as lágrimas ao fundo do coração, fazendo sinal a de Winter para mudar de assunto.

Mas, por vigorosa que fosse, a reação não escapou aos olhos da jovem princesa; ela parou no limiar, exalou um suspiro e, dirigindo-se à Rainha:

— Por que chorais sempre sem mim, minha mãe? — perguntou.

A Rainha sorriu e, em vez de responder:

— Vede, de Winter — disse ela — pelo menos ganhei uma coisa depois que sou apenas meia rainha: meus filhos me chamam minha mãe em vez de chamar-me senhora.

E, voltando-se para a filha:

— Que queres, Henriqueta?

— Minha mãe — disse a jovem princesa — um cavaleiro acaba de entrar no Louvre e pede para apresentar os seus respeitos a Vossa Majestade; está chegando do exército e tem, diz ele, uma carta para entregar-lhe da parte do Marechal de Grammont, creio eu.

— Ah! — disse a Rainha a de Winter — é um dos meus fiéis: mas não notais, meu caro Lorde, que somos tão pobremente servidos que é minha própria filha quem exerce as funções de introdutora?

— Tenha piedade de mim, senhora — disse de Winter — Vossa Majestade dilacera-me a alma.

— E quem é o cavaleiro, Henriqueta? — perguntou a Rainha.'

— Vi-o pela janela, senhora; é um rapaz que não parece ter mais de dezesseis anos e a quem chamam o Visconde de Bragelonne.

A Rainha fez, a sorrir, um sinal com a cabeça, a jovem princesa tornou a abrir a porta e Raul assomou ao limiar. Deu três passos na direção da Rainha e ajoelhou-se.

— Senhora — disse ele — trago a Vossa Majestade uma carta de meu amigo, o Sr. Conde de Guiche, que me disse ter a honra de ser um dos servidores de Vossa Majestade; essa carta contém uma notícia importante e a expressão de seus respeitos.

Ao nome do Conde de Guiche, um rubor se espalhou pelas faces da jovem princesa; a Rainha considerou-a com certa severidade.

— Mas tu me disseste que a carta era do Marechal de Grammont, Henriqueta!

— Eu o supunha... — balbuciou a menina.

— A culpa foi minha, senhora — disse Raul — pois anunciei-me efetivamente como se tivesse vindo da parte do Marechal de Grammont; mas, ferido no braço direito, ele não pôde escrever, e foi o Conde de Guiche quem lhe serviu de secretário.

— Travou-se, então, alguma batalha? — perguntou a Rainha fazendo sinal a Raul que se erguesse.

— Sim, senhora — respondeu o rapaz, dando a carta a -, de Winter, que se adiantara para recebê-la e que a entregou à Rainha.

À notícia de que se travara uma batalha, a jovem princesa abriu a boca para fazer uma pergunta que sem dúvida lhe interessava; mas a boca fechou-se-lhe sem que ela pronunciasse uma palavra, ao passo que as rosas das faces desapareciam gradativamente.

A Rainha viu todos esses movimentos e o seu coração maternal traduziu-os, sem dúvida; pois, dirigindo-se de novo a Raul:

— E não sucedeu nada de mal ao jovem Conde de Guiche? — perguntou ela; — pois não somente é um de nossos servidores, como eu vos disse, mas também um amigo.

— Não, senhora — respondeu Raul; — pelo contrário, alcançou nessa jornada uma grande glória e teve a honra de ser abraçado pelo Sr. Príncipe no campo de batalha.

A princesinha bateu palmas; mas, correndo-se de semelhante demonstração de alegria, virou-se a meio e inclinou-se sobre um vaso cheio de rosas como para aspirar-lhe o perfume.

— Vejamos o que nos escreve o Conde — disse a Rainha.

— Tive a honra de dizer a Vossa Majestade que ele escreveu em nome do pai.

— Sim, senhor.

A Rainha abriu a carta e leu:

 

"Senhora e Rainha,

"Não podendo ter a honra de escrever-lhe pessoalmente por causa de um ferimento que recebi na, mão direita, escrevo a Vossa Majestade por intermédio de meu filho, o Sr. Conde de Guiche, tão servidor de Vossa Majestade quanto o pai, para dizer-lhe que vencemos a batalha de Lens, e que essa vitória não pode deixar de dar grande prestígio ao Cardeal Mazarino e à Rainha nos negócios da Europa. Se Vossa Majestade quiser seguir o meu conselho; aproveitará o momento para insistir em favor de seu augusto esposo junto ao governo de El-Rei. O Sr. Visconde de Bragelonne, que terá a honra de entregar esta carta a Vossa Majestade, ê amigo de meu filho, cuja vida, segundo todas as probabilidades, teve ocasião de salvar; é um gentil-homem de que Vossa Majestade pode fiar-se inteiramente, caso tenha alguma ordem verbal ou escrita para transmitir-me.

"Tenho a honra de ser, respeitosamente...

"Marechal de Grammont."

 

       No momento em que se fez referência ao serviço que ele prestara ao Conde, Raul não pôde menos de voltar a cabeça para a princesinha, em cujos olhos viu passar uma expressão de infinita gratidão; já não havia dúvida, a filha do Rei Carlos I amava o seu amigo.

— A batalha de Lens foi vencida! — disse a Rainha. — São felizes aqui, vencem batalhas! Sim, o Marechal de Grammont tem razão, isso vai alterar em França a face dos negócios; mas receio muito que em nada altere os nossos, se é que não irá prejudicá-los. A notícia é recente, senhor — continuou a Rainha — e eu vos agradeço a diligência com que ma trouxestes; sem vós, sem essa carta, eu talvez só a teria sabido amanhã, ou depois de amanhã, como a última pessoa em Paris.

— Senhora — disse Raul — o Louvre é o segundo palácio a que chegou a notícia; ninguém a conhece ainda; e eu jurei ao Sr. Conde de Guiche que entregaria esta carta a Vossa Majestade antes até de abraçar o meu tutor.

— O vosso tutor é um Bragelonne como vós? — perguntou Lorde de Winter. — Conheci outrora um Bragelonne. É vivo ainda?

— Não, senhor, morreu, e foi dele que meu tutor, de quem era parente muito chegado, se não me engano, herdou a propriedade cujo nome usa.

— E vosso tutor, senhor — perguntou a Rainha, que não podia deixar de interessar-se pelo belo rapaz — como se chama?

— É o Sr. Conde de La Fere, senhora — respondeu o rapaz, inclinando-se.

De Winter fez um movimento de surpresa e a Rainha olhou para ele, radiante de alegria.

— O Conde de La Fere! — exclamou ela; — não foi esse o nome que me dissestes?

De Winter não podia acreditar no que ouvira.

— O Sr. Conde de La Fere! — exclamou, por sua vez. — Oh! senhor, respondei-me, eu vos suplico: o Conde de La Fere não é um fidalgo que conheci, belo e bravo, mosqueteiro de Luís XIII, e que terá hoje uns quarenta e sete ou quarenta e oito anos?

— Sim, senhor, precisamente.

— E que servia sob um nome de guerra?

— Sob o nome de Athos. Não faz muito tempo ouvi um amigo seu, o Sr. d'Artagnan, dar-lhe esse nome.

— É isso, senhora, é isso! Deus seja louvado! E está em Paris? — continuou o Conde dirigindo-se a Raul.

E logo, voltando para a Rainha:

— Espere, espere ainda Vossa Majestade; a Providência declara-se a nosso favor, pois me faz encontrar esse bravo fidalgo de maneira tão milagrosa. E onde mora ele, senhor, por obséquio?

— O Sr. Conde de La Fere mora na rue Guénégaud, na hospedaria do Grand-Roi-Charlemagne.

— Obrigado. Fazei-me o favor de pedir a esse digno amigo que me espere em sua casa, pois irei abraçá-lo daqui a pouco.

— Obedecerei, senhor, com grande prazer, se Sua Majestade quiser dispensar-me.

— Ide, Sr. Visconde de Bragelonne — disse a Rainha — ide, e levai a certeza de nossa afeição.

Raul inclinou-se respeitosamente diante das duas princesas, cumprimentou de Winter e saiu.

De Winter e a Rainha continuaram a conversar algum tempo em voz baixa para que a princesinha não os ouvisse; mas a precaução era inútil, pois esta se absorvera em seus pensamentos.

E, quando de Winter fez menção de despedir-se:

— Escutai, Milorde — disse a Rainha -— eu havia conservado esta cruz de brilhantes, que recebi de minha mãe, e esta placa de São Miguel, que recebi de meu marido; valem, pouco mais ou menos, cinqüenta mil libras. Eu quisera antes morrer de fome conservando esses preciosos penhores do que dasfazer-me deles; mas hoje que estas jóias podem ser úteis a ele ou a seus defensores, é preciso sacrificar tudo à esperança. Tomai-as; e se precisardes de dinheiro para a vossa expedição, vendei sem medo, Milorde, vendei. Mas se achardes meio de conservá-las, tende certeza, Milorde, de que me prestareis o maior serviço que um gentil-homem pode prestar a uma rainha, e no dia de minha prosperidade quem me devolver esta placa e. esta cruz será abençoado por mim e por meus filhos.

— Senhora — disse de Winter — Vossa Majestade será servida por um homem dedicado. Apresso-me em depositar em lugar seguro estes dois objetos, que eu não aceitaria se ainda nos restassem os recursos de nossa antiga fortuna; mas os nossos bens foram confiscados, o nosso dinheiro gastou-se, e hoje nos vemos obrigados a valer-nos de tudo o que possuímos. Daqui a uma hora estarei em casa do Conde de La Fere, e amanhã Vossa Majestade terá uma resposta definitiva.

A Rainha estendeu a mão a Lorde de Winter, que a beijo-a respeitoso; e, voltando-se para a filha:

— Milorde — disse ela — Fostes encarregado de entregar a esta pobre menina alguma coisa da parte do pai.

De Winter ficou espantado; não sabia o que a Rainha queria dizer.

A jovem Henriqueta adiantou-se, sorrindo e corando, e estendeu a fronte ao fidalgo.

— Dizei a meu pai que, rei ou fugitivo, vencedor ou vencido — pediu a princesinha — ele tem em mim a filha mais obediente e afeiçoada.

— Eu sei, senhora — respondeu de Winter, tocando com os lábios a fronte de Henriqueta.

E partiu, sem ser acompanhado, atravessando os grandes aposentos desertos e escuros, enxugando as lágrimas que, se bem embotado por cinqüenta anos de vida cortesã, não podia menos de derramar diante daquele infortúnio real, tão digno e tão profundo ao mesmo tempo.


 TIO E SOBRINHO

 

O cavalo e o lacaio de de Winter esperavam-no à porta: ele partiu para casa pensativo, virando-se de tempos a tempos para contemplar a fachada silenciosa e negra do Louvre. Foi então que viu um cavaleiro destacar-se, para assim dizer, do muro e segui-lo a alguma distância, lembrou-se de ter visto, ao sair do Palais-Royal, uma sombra parecida.

O lacaio de Lorde de Winter, que o acompanhava a alguns passos, também seguia, inquieto, o cavaleiro com o rabo dos olhos.

— Tony - chamou o fidalgo, fazendo sinal ao criado que se aproximasse.

— Eis-me aqui, Monsenhor.

E o criado colocou-se a par com o amo.

— Notaste esse homem que nos segue?

— Notei, Milorde.

— Quem é?

— Não sei; sei apenas que segue Vossa Graça desde o Palais-Royal; parou no Louvre para esperar-lhe a saída e agora continua a segui-lo.

— Algum espião do Cardeal - disse de Winter consigo só - simulemos não o ter visto.

E, esporeando a montaria, enveredou pelo dédalo de ruas que conduziam à sua estalagem, situada dos lados do Marais: tendo residido muito tempo na Place Royale, Lorde de Winter voltara, muito naturalmente, a hospedar-se nas vizinhanças da antiga morada.

O desconhecido pôs o cavalo a galope.

De Winter apeou diante da hospedaria e subiu ao quarto, com a intenção de observar o espião; mas quando depunha as luvas e o chapéu sobre uma mesa, viu, através de um espelho colocado à sua frente, um vulto que se desenhava na soleira na porta.

Voltou-se. Mordaunt estava diante dele.

De Winter empalideceu e ficou em pé e imóvel; Mordaunt permanecia no limiar, frio, ameaçador, lembrando a estátua do Comendador.

Seguiu-se um instante de gélido silêncio entre os dois homens.

— Senhor - disse de Winter - eu supunha já vos ter dado a entender que essa perseguição me cansava; retirai-vos, portanto, ou mandarei escorraçar-vos como em Londres. Não sou vosso tio, não vos conheço.

— Meu tio - replicou Mordaunt, com voz rouca e escarninha - vós vos enganais; não me mandareis escorraçar desta vez como o fizestes em Londres, pois não teríeis coragem para tanto. Quanto a negardes que sou vosso sobrinho, deveis refletir nisso melhor, pois sei agora muitas coisas que ignorava há um ano.

— E que me faz o que sabeis? - redargüiu de Winter.

— Oh! faz muito, meu tio, tenho certeza, e daqui a pouco concordareis comigo — ajuntou, com um sorriso que pôs um arrepio nas veias do homem a quem era dirigido. — Quando me apresentei em vossa casa, em Londres, pela primeira vez, fui perguntar-vos o que fora feito de meus bens; quando me apresentei pela segunda vez, fui perguntar-vos o que havia manchado o meu nome. Desta feita me apresento diante de vós para fazer-vos uma pergunta muito mais terrível do que todas as outras, para perguntar-vos o que Deus perguntou ao primeiro assassino: "Caim, que fizeste do teu irmão Abel?" — Milorde, que fizeste de vossa irmã, de vossa irmã que era minha mãe?

De Winter recuou sob o fogo dos dois olhos fuzilantes.

— De vossa mãe? - repetiu.

— De minha mãe, sim, Milorde - respondeu o rapaz inclinando-se profundamente.

De Winter fez um esforço violento sobre si mesmo e, mergulhando em suas lembranças para nelas buscar um ódio novo, bradou:

— Procurai saber o que foi feito dela, desgraçado, e ide perguntá-lo ao inferno; o inferno talvez vos responda.

O rapaz deu alguns passos pelo quarto e defrontou com Lorde de Winter; em seguida, cruzando os braços:

— Eu perguntei ao carrasco de Béthune; disse Mordaunt com voz surda e o rosto lívido de dor e de cólera — e o carrasco de Béthune me respondeu.

De Winter caiu sobre uma cadeira como se um raio o tivesse fulminado, e em vão tentou responder.

— Não é isso mesmo? - continuou o rapaz. — Com essa palavra tudo se explica, com essa chave abre-se o abismo. Minha mãe herdara do marido, e vós assassinastes minha mãe! O meu nome assegurava-me os bens de meu pai, e vós me exautorastes do nome; e depois de me haverdes exautorado do nome, vós me despojastes dos meus bens. Não admira que não me reconheçais; não admira que vos negueis a reconhecer-me. É indecente chamar de sobrinho, para um espoliador, o homem empobrecido, e para um assassino, o homem que se deixou órfão!

Essas palavras produziram o efeito contrário ao que esperava Mordaunt: de Winter lembrou-se do monstro que fora Milady; tornou a levantar-se, calmo e grave, contendo pelo olhar severo o olhar exaltado do rapaz.

— Quereis penetrar o horrível segredo, senhor? - perguntou de Winter. - Pois bem, seja!... Ficai sabendo, de uma vez por todas, quem foi essa mulher de que hoje vindes pedir-me contas; essa mulher, segundo todas as probabilidades, envenenou meu irmão e, para herdar-me, ia também assassinar-me; posso prová-lo. Que direis a isso.

— Direi que era minha mãe.

— Mandou apunhalar, por um homem outrora justo, bem e puro, o infeliz Duque de Buckingham. Que direis desse crime, cujas provas possuo?

— Era minha mãe!

— Voltando à França, envenenou no convento das Agostinhas de Béthune uma rapariga amada por um de seus inimigos. Não basta esse crime para persuadir-vos da justiça do castigo? Tenho também as provas necessárias.

— Era minha mãe! — bradou o rapaz, que dera às três exclamações uma força progressiva.

— Enfim, carregada de assassínios, de devassidões, odiosa a todos, ameaçadora ainda como pantera sedenta de sangue, sucumbiu sob os golpes de homens que lançara no desespero e que nunca «lhe tinham feito mal; encontrou os juizes evocados pelos seus medonhos atentados; e esse carrasco que vistes, esse carrasco que tudo vos contou, segundo dizeis, esse carrasco, se disse tudo, deve ter dito também que estremeceu de alegria ao vingar nela a vergonha e o suicídio de seu irmão. Rapariga pervertida, esposa adúltera, irmã desnaturada, homicida, envenenadora, execrável a todas as pessoas que a conheceram, a todos os países que a receberam, morreu amaldiçoada pelo céu e pela terra; eis o que era essa mulher.

Um soluço mais forte que a vontade de Mordaunt rasgou-lhe a garganta e atirou-lhe de novo o sangue ao rosto lívido; crispou os punhos e, com o rosto inundado de suor, os cabelos eriçados na cabeça como os de Hamlet, bradou, enfurecido:

— Calai-vos, senhor! Era minha mãe! As suas devassidões, não as conheço; os seus vícios, não os conheço; os seus crimes, não os conheço. Mas sei que tinha uma mãe, que cinco homens, ligados contra uma mulher, mataram clandestina, noturna, silenciosa, covardemente. Sei que Fostes um dos cinco, senhor; que Fostes um deles, meu tio, e gritastes como os outros, e mais alto que os outros: Ela precisa morrer! De sorte que vos previno: escutai bem estas palavras e fazei que se gravem em vossa memória de modo que nunca possais esquecê-las: desse assassínio que me despojou de tudo, desse assassínio que me privou do nome, desse assassínio que me fez pobre, desse assassínio que me corrompeu, que me tornou implacável e mau, pedirei contas, primeiro de vós, e depois àqueles que foram os vossos cúmplices, quando vier a.conhecê-los.

Com ódio nos olhos, escuma na boca e o punho estendido, Mordaunt dera um passo mais, um passo terrível e ameaçador para de Winter.

Este levou a mão à espada e disse, com o sorriso do homem que há trinta anos brinca com a morte:

— Quereis assassinar-me, senhor? Nesse caso reconhecer-vos-ei por meu sobrinho, pois sois bem o filho de vossa mãe.

— Não — replicou Mordaunt, obrigando todas as fibras do rosto, todos os músculos do corpo a retomarem o seu lugar; — não, não vos matarei, pelo menos neste momento: pois, sem vós, não descobriria os outros. Mas quando eu os conhecer, tremei, senhor; apunhalei o carrasco de Béthune, apunhalei-o sem piedade, sem misericórdia, e era o menos culpado de todos.

Dizendo essas palavras, o rapaz saiu e desceu a escada com calma suficiente para não ser observado, depois, no patamar inferior, passou diante de Tony, que, inclinado sobre o corrimão, esperava apenas um grito do amo para acudir-lhe.

Mas de Winter não o chamou: esmagado, desfalecido, ficou em pé, prestando atenção; e só quando ouviu o tropel do cavalo, que se afastava, caiu numa cadeira dizendo:

— Meu Deus! Eu vos agradeço por ele só me conhecer a mim.


 PATERNIDADE

 

Enquanto se passava esta cena terrível em casa de Lorde de Winter, Athos, sentado ao pé da janela do quarto, com o cotovelo apoiado sobre uma mesa, a cabeça inclinada sobre a mão, escutava, com os olhos e com os ouvidos, o que lhe contava Raul sobre as peripécias da viagem e os pormenores da batalha.

O belo e nobre rosto do fidalgo exprimia uma felicidade indizível ao relato dessas primeiras emoções, tão frescas e tão puras; aspirava os sons da voz juvenil, já apaixonada pelos belos sentimentos, como se aspiram os sons de música harmoniosa. Esquecera o que havia de sombrio no passado, de carregado no futuro. Dir-se-ia que a volta da criança tão querida lhe transformara em esperanças os próprios receios. Athos sentia-se feliz, feliz como nunca se sentira.

— E assististe à grande batalha e dela participaste, Bragelonne? — perguntava o antigo mosqueteiro.

— Sim, senhor.

— E dizes que foi renhida? (42)

(42) A batalha de Lens, em que o Grande Conde venceu os espanhóis e os austríacos, cujas tropas eram comandadas pelo próprio Arquiduque Leopoldo-Guilherme, foi uma das maiores que alcançou o jovem general e talvez e a que teve mais acentuada a marca do seu gênio; cento e vinte e cinco bandeiras caíram nas mãos dos franceses. Aprisionado, o general austríaco, Beck, ficou tão desesperado com a derrota que recusou todo e qualquer cuidado médico e morreu dos ferimentos. (N. do T.)

 

— O Sr. Príncipe carregou onze vezes em pessoa.

— É um grande cabo de guerra, Bragelonne.

— É um herói, senhor; não o perdi de vista um instante. Oh! como é belo chamar-se Conde... e honrar assim o seu nome!

— Calmo e brilhante, não é?

— Calmo como uma parada, brilhante como numa festa. Avançamos a passo contra o inimigo; fôramos proibidos de atirar primeiro e marchávamos sobre os espanhóis, que estavam numa elevação do terreno, com o mosquete preparado. Chegados a trinta passos, o Príncipe voltou-se para os soldados: "Meninos — disse ele — sofrereis uma descarga tremenda; mas depois, ficais descansados, podereis desforrar-vos." Tamanho era o silêncio que amigos e inimigos ouviram essas palavras. Depois, erguendo a espada: "Soai, trombetas!" disse ele.

— Bem, bem!... Se se apresentasse a ocasião, farias o mesmo, Raul, não é verdade?

— Duvido, senhor, pois achei a cena demasiado bela e demasiado grande. Quando chegamos a vinte passos, vimos todos os mosquetes abaixados como numa linha brilhante, iluminada pelo sol. "A passo, meninos, a passo — disse o Príncipe — chegou a hora."

— Tiveste medo, Raul? — perguntou o Conde.

— Tive — respondeu ingenuamente o rapaz — senti como um frio muito grande no coração, e à palavra "Fogo:" que soou em espanhol nas fileiras inimigas, fechei os olhos e pensei em vos.

— Em mim, Raul? — perguntou o Conde, apertando-lhe a mão.

— Sim, senhor. No mesmo instante reboou tamanha detonação, que se diria que o inferno se abrira e os que não morreram lhe sentiram o calor das chamas. Tornei a abrir os olhos, espantado de não estar morto ou, pelo menos, ferido; a terça parte do esquadrão caíra por terra, mutilada, sangrando. Nesse momento encontrei o olhar do Príncipe; só pensei numa coisa: ele me observara. Esporeei o cavalo e vi-me no meio das fileiras inimigas.

— E o Príncipe ficou satisfeito contigo?

— Pelo menos foi o que me disse, quando me encarregou de acompanhar a Paris o Sr. de Chântillon, que veio trazer a notícia à Rainha e as bandeiras tomadas: "Ide, o inimigo não tornará a juntar-se em menos de quinze dias. Daqui até lá não precisarei de vós. Ide abraçar os que amais e que vos amam, e dizei à minha irmã de Longueville que eu lhe agradeço o presente que me fez." E eu vim, senhor — acrescentou Raul olhando para o Conde com um sorriso de extremado afeto — pois imaginei que gostaríeis de rever-me.

Athos aconchegou de si o rapaz e beijou-o na testa, como se fosse uma menina.

— Isso quer dizer, Raul — acudiu ele — que estás encarreirado; tens duques por amigos, um marechal de França por padrinho, um príncipe de sangue por capitão, e na mesma viagem de volta Foste recebido por duas rainhas: é magnífico para um novato.

— Ah! senhor — atalhou Raul de repente — vós me recordastes uma coisa de que me esqueci na pressa de contar-vos as minhas façanhas: achava-se ao pé de Sua Majestade a Rainha de Inglaterra um fidalgo que, ouvindo o vosso nome, soltou um grito de surpresa e de alegria; disse que é vosso amigo, pediu-me o vosso endereço e virá ver-vos.

— Como se chama?

— Não me atrevi a perguntar-lhe; mas, embora se expresse com elegância, pelo sotaque imagino que seja inglês.

— Ah! — exclamou Athos.

E inclinou a cabeça como à procura de uma lembrança. Depois, quando levantou a vista, deu com um homem em pé no umbral da porta entreaberta, considerando-o com ternura.

— Lorde de Winter! — bradou o Conde.

— Athos, meu amigo!

E os dois fidalgos ficaram um instante abraçados; depois Athos, pegando-lhe nas duas mãos, disse, enquanto o mirava:

— Que tendes, Milorde? Pareceis tão triste quanto eu estou alegre.

— Sim, caro amigo, é verdade; e eu diria até mais triste, pois a vossa vista redobra os meus temores.

E de Winter olhou à sua volta como à procura da solidão. Raul compreendeu que os dois amigos precisavam conversar, e saiu.

— Agora que estamos sós — disse Athos — falemos de vós.

— Enquanto estamos sós — respondeu Lorde de Winter — falemos de nós. Ele está aqui.

— Quem?

— Ò filho de Milady.

Mais uma vez impressionado pelo nome que parecia persegui-lo como um eco fatal, Athos hesitou um momento, carregou levemente o cenho, e logo em tom calmo:

— Eu sei.

— Vós o sabeis?

— Sim. Grimaud encontrou-o entre Béthune e Arras, e veio à desfilada para avisar-me da sua presença.

— Grimaud o conhecia?

-— Não, mas assistiu em seu leito de morte a um homem que o conhecia.

— O carrasco de Béthune! — exclamou de Winter.

— Como o sabeis? — acudiu Athos, espantado.

— Ele acaba de deixar-me — respondeu de Winter — e contou-me tudo. Ah! meu amigo, que cena horrível! Oxalá tivéssemos esmagado o filho com a mãe!

Athos, como todas as naturezas nobres, não revelava aos outros as más impressões que sentia; guardava-as, pelo contrário, em si mesmo e dava, em lugar delas, esperanças e consolações. Dir-se-ia que as dores pessoais lhe saíssem da alma transmudadas em alegrias para os outros.

— Que temeis? — atalhou, dominando, pelo raciocínio, o terror instintivo que a princípio sentira — não estamos aqui para defender-nos? Ter-se-á transformado o rapaz em assassino profissional, matador a sangue frio? Ele pode ter matado o carrasco de Béthune num movimento de raiva, mas agora cevou o seu furor.

De Winter sorriu tristemente e sacudiu a cabeça.

— Já não conheceis, então, esse sangue? — perguntou.

— Ora! — disse Athos, tentando sorrir por seu turno — terá perdido a ferocidade na segunda geração. De resto, amigo, a Providência nos preveniu para ficarmos alerta. Não podemos fazer outra coisa senão esperar. Esperemos. Mas, como eu dizia, falemos de vós. Que vos traz a Paris?

— Alguns assuntos de importância que conhecereis mais tarde. Mas ouvi dizer a Sua Majestade a Rainha de Inglaterra que o Sr. d'Artagnan está com Mazarino! Perdoai-me a franqueza, meu amigo, não odeio nem censuro o Cardeal, e as vossas opiniões me serão sempre sagradas; estaríeis, porventura, também com esse homem?

— O Sr. d’Artagnan está servindo — disse Athos; — soldado, obedece ao poder constituído. O Sr. d’Artagnan não é rico e precisa, para viver, dos galões de tenente. Os milionários como vós, Milorde, são raros em França.

— Ai de mim! — acudiu de Winter — estou hoje tão pobre e até mais pobre do que ele. Mas voltemos ao vosso caso.

— Muito bem: quereis saber se sou mazarinista? Não, mil vezes não. Perdoe-me também a franqueza, Milorde.

De Winter levantou-se e apertou Athos nos braços.

— Obrigado, Conde — disse ele — obrigado pela alvissareira notícia. Sinto-me, como vedes, feliz e remoçado. Não sois mazarinista! Ainda bem! Aliás, não podíeis sê-lo, com efeito. Mas, sois livre?

— Que entendeis por livre?

— Pergunto se não sois casado.

— Ah! quanto a isso, não — replicou Athos, sorrindo.

— E aquele jovem, tão belo, tão elegante, tão gracioso...

— É um menino que estou criando e que nem conhece o pai.

— Muito bem; sois sempre o mesmo, Athos, grande e generoso.

— Vejamos, Milorde, que desejais de mim?

— São ainda vossos amigos os Srs. Porthos e Aramis?

— E ajuntai d'Artagnan, Milorde. Ainda somos quatro amigos dedicados como outrora; mas, em se tratando de servir o Cardeal ou de combatê-lo, de sermos mazarinistas ou frondistas, ficamos reduzidos a dois.

— O Sr. Aramis está com o Sr. d'Artagnan? — perguntou Lorde de Winter.

— Não — replicou Athos — o Sr. Aramis faz-me a honra de compartir das minhas convicções.

— Podereis por-me em contacto com esse amigo tão encantador e tão espirituoso?

— Sem dúvida, desde que isso vos seja agradável.

— Não estará mudado?

— Ele fez-se padre, mais nada.

— Vós me assustais. O seu estado há de tê-lo obrigado a renunciar aos grandes empreendimentos.

— Pelo contrário — afirmou Athos, sorrindo — nunca foi tão mosqueteiro como depois que é padre, e tomareis a encontrar um verdadeiro Galaaz. Quereis que eu mande Raul chamá-lo ?

— Obrigado, Conde, talvez não o encontrassem em casa a esta hora. Mas visto que julgais poder responder por ele...

— Como por mim mesmo.

— Podeis comprometer-vos a levar-mo amanhã, às dez horas, à ponte do Louvre?

— Ah! ah! — disse Athos, sorrindo — um duelo?

— Sim, Conde, e um belo duelo, um duelo de que participareis, espero eu.

— Aonde iremos, Milorde?

— À presença de Sua Majestade a Rainha de Inglaterra, que me encarregou de apresentar-vos a ela, Conde.

— Sua Majestade me conhece?

— Eu vos conheço.

— Enigma — disse Athos; — mas não importa, desde que mo pedis, não quero saber mais nada. Far-me-eis a honra de jantar comigo, Milorde?

— Obrigado, Conde — respondeu de Winter — mas confesso que a visita desse rapaz me tirou o apetite e provavelmente me tirará o sono. Que terá vindo fazer em Paris? ]Não foi para encontrar-me que veio, pois ignorava a minha viagem. Esse rapaz me apavora, Conde; tem em si um futuro de sangue.

— Que faz na Inglaterra?

— É um dos sectários mais ardentes de Olivério Cromwell.

— Quem o levou para essa causa? O pai e a mãe eram católicos, não eram?

— O ódio que tem contra El-Rei.

— Contra El-Rei?

— Sim, El-Rei declarou-o bastardo, confiscou-lhe os bens, proibiu-o de usar o nome de Winter.

— E como se chama agora?

— Mordaunt.

— Puritano e disfarçado em monge, viajando só pelas estradas de França.

— De monge, dizeis vós?

— Sim, não o sabíeis?

— Sei apenas o que ele me disse.

— Foi assim, e por acaso, e peço perdão a Deus se blasfemo, foi assim que ele ouviu a confissão do carrasco de Béthune.

— Então adivinho tudo: vem a mandado de Cromwell.

— À procura de quem?

— De Mazarino; e a Rainha tinha razão, fomos antecedidos: tudo, agora, se explica para mim. Adeus, Conde, e até amanhã.

— Mas a noite está escura — disse Athos, vendo Lorde de Winter agitado por uma inquietação maior do que a que desejava mostrar — e talvez não tenhais lacaio.

— Tenho Tony, bom sujeito, mas ingênuo.

— Olá! Olivain, Grimaud, Blaisois, aparelhai os mosquetes e chamai o Sr. Visconde.

Blaisois era o rapagão, meio campônio meio lacaio, que vimos no castelo de Bragelonne, anunciando que o jantar estava na mesa e que Athos batizara com o nome da sua província.

Cinco minutos depois, entrava Raul.

— Visconde — disse Athos — escoltareis Milorde até à hospedaria e não deixareis que ninguém se aproxime dele.

— Ah! Conde — disse de Winter por quem me tomais?

— Por um estrangeiro que não conhece Paris — disse Athos — e a quem o Visconde mostrará o caminho.

De Winter apertou-lhe a mão.

— Grimaud — disse Athos — põe-te à frente da tropa e olho no monge.

Grimaud estremeceu, fez um sinal com a cabeça e esperou a partida acariciando com silenciosa eloqüência a coronha do mosquete.

— Até amanhã, Conde — disse de Winter.

— Até amanhã, Milorde.

A tropazinha dirigiu-se para a rue Saint-Louis. Olivain tremia como Sósias a cada reflexo de luz equívoca; Blaisois ia firme porque ignorava que corresse algum perigo; Tony olhava para a direita e para a esquerda, mas não podia dizer uma palavra, pois não falava francês.

De Winter e Raul choutavam lado a lado e conversavam.

Grimaud, que precedera o cortejo com um facho numa das mãos e o mosquete na outra, conforme as ordens de Athos, chegou diante da estalagem de de Winter, bateu à porta e, quando esta se abriu, cumprimentou Milorde sem dizer uma palavra.

O mesmo aconteceu na volta: os olhos penetrantes de Grimaud não viram nada de suspeito a não ser uma espécie de sombra emboscada na esquina da rue Guénégaud e do cais; pareceu-lhe que, ao passar, já observara o vigia noturno que lhe atraía a atenção. Picou o cavalo direito a ele; mas, antes que pudesse alcançá-lo, a sombra desapareceu numa viela pela qual Grimaud não julgou prudente aventurar-se.

Depois de dar notícia a Athos do resultado da expedição, cada qual se recolheu aos seus aposentos; eram dez horas da noite.

No dia seguinte, ao abrir os olhos, foi o Conde, por sua vez, quem viu Raul à sua cabeceira. Todo vestido, o rapaz lia um livro novo do Sr. Chapelain (43).

(43) João Chapelain, poeta e escritor que também freqüentou a Sala Azul do palácio de Rambouillet. Apesar da repugnante falta de asseio de seus trajos, da sua peruca sem pêlos, do que todos se riam, era muito conceituado na Corte e na Academia Francesa, à qual pertenceu. Avarento ao extremo, recebia do Rei uma pensão de mil escudos. Deixou um poema épico, odes, críticas e outras obras. (N. do T.)

 

— Já em pé, Raul? — perguntou o Conde.

— Sim, senhor — respondeu o rapaz depois de breve hesitação — dormi mal.

— Tu, Raul? Dormiste mal? Preocupava-te alguma coisa? — perguntou Athos.

— Senhor, direis com certeza que tenho muita pressa em deixar-vos, que mal acabo de chegar, mas...

— Só tens dois dias de licença?

— Pelo contrário, senhor, tenho dez, e por isso mesmo não é para o acampamento que desejo ir.

Athos sorriu.

— Aonde queres ir, então, Visconde, a menos que se trate de um segredo? Estás quase um homem, visto que já ensaiaste as primeiras armas, e conquistaste o direito de ir onde quiseres sem me dar satisfações.

— Nunca, senhor — disse Raul; — enquanto eu tiver a felicidade de ter-vos por meu protetor, não me julgarei com o direito de libertar-me de uma tutela que me é tão cara. Mas desejo passar um dia em Blois. Olhais para mim. O que eu disse vos fará rir?

— Não — replicou Athos, abafando um suspiro — não, não rio, Visconde. Tens vontade de rever Blois, é naturalíssimo!

— Posso ir? — exclamou Raul contentíssimo.

— Evidentemente, Raul.

— No íntimo, senhor, não estais zangado?

— De modo nenhum. Por que me zangaria eu com o que te dá prazer?

— Ah! senhor, como sois bom! — exclamou o rapaz fazendo menção de atirar-se aos braços de Athos, mas tolhido pelo respeito.

Athos abriu-lhe os braços.

— Posso partir já?

— Quando quiseres, Raul.

Raul deu três passos na direção da porta.

— Senhor — bradou ele — pensei numa coisa: devo à Sra. de Chevreuse, que foi tão boa para mim, a apresentação ao Sr. Príncipe.

— E, portanto, lhe deves um agradecimento, não é verdade?

— É o que me parece, senhor; mas a vós compete decidir.

— Passa pelo palácio de Luynes, Raul, e manda perguntar se a Sra. Duquesa pode receber-te. Vejo com prazer que não te esqueceram as conveniências. Levarás Grimaud e Olivain.

— Os dois, senhor? — perguntou Raul com espanto.

Raul cumprimentou e saiu.

Vendo-o fechar a porta e ouvindo-o chamar com a voz alegre e vibrante Grimaud e Olivain, Athos suspirou.

— Já é deixar-me depressa — pensou, meneando a cabeça; — mas obedece à lei comum. A natureza é assim, olha para a frente. Decididamente, ele ama essa menina; mas gostará menos de mim por gostar de outros?

E reconheceu intimamente que não esperava tão rápida partida; mas Raul parecia tão feliz que tudo se lhe apagou no espírito diante dessa consideração.

Às dez horas estavam concluídos todos os aprestos. Athos observava Raul montar a cavalo, quando um lacaio chegou para cumprimentá-lo em nome da Sra. de Chevreuse e dizer ao Conde de La Fere que soubera do regresso do jovem protegido e do seu procedimento na batalha, ajuntando que folgaria muito em felicitá-lo.

— Dize à Sra. Duquesa — respondeu Athos — que o Sr. Visconde está montando a cavalo para ir ao palácio de Luynes.

A seguir, depois de dar as últimas instruções a Grimaud, fez com a mão a Raul sinal de que podia partir.

"Pensando bem," ponderou Athos consigo só, "talvez seja até melhor que Raul se afaste de Paris nesse momento."

 

OUTRA RAINHA QUE PEDE SOCORRO

 

Athos mandara avisar Aramis de manhã cedinho e entregara a carta a Blaisois, único criado que lhe ficara. Blaisois encontrou Bazin vestindo os seus trajos de sacristão; teria, nesse dia, serviço em Notre-Dame.

Athos recomendara a Blaisois que procurasse falar com Aramis pessoalmente. Ingênuo e grandalhão, Blaisois, que só cumpria ordens, pedira, portanto, para falar com o Pe. d'Herblay, e, apesar das afirmativas de Bazin de que ele não estava em casa, insistira de tal modo que Bazin se acabara encolerizando. Vendo Bazin em trajos eclesiásticos, Blaisois não levara muito a sério as negativas e teimara em passar, imaginando que o homem com quem tratava possuísse todas as virtudes do hábito, isto é, a paciência e a caridade cristãs.

Mas Bazin, que era sempre criado de mosqueteiros quando o sangue lhe subia aos olhos enormes, pegou num cabo de vassoura e desancou Blaisois, dizendo:

— Insultastes a Igreja; meu amigo, insultastes a Igreja. Nesse momento, ao desusado alvoroço, Aramis entreabriu com precaução a porta do quarto de dormir.

Bazin descansou respeitosamente o pau de vassoura sobre uma das pontas, como vira em Notre-Dame fazer o suíço com a sua alabarda; e Blaisois, com um olhar de censura dirigido ao cérbero, tirou a carta do bolso e apresentou-a a Aramis.

— Do Conde de La Fere? — disse Aramis; — está bem. E trancou-se no quarto, sem indagar sequer da causa

daquele ruído.

Blaisois voltou tristemente à hospedaria do Grand-Roi-Charlemagne. Athos pediu-lhe contas da missão. Blaisois referiu a sua aventura.

— Imbecil! — atalhou Athos, dando risada — não disseste que ias de minha parte?

— Não, senhor.

— E que disse Bazin quando soube que eras meu criado?

— Ah! senhor, apresentou-me toda a sorte de escusas e obrigou-me a beber dois copos de ótimo vinho moscatel, em que me fez mergulhar três ou quatro biscoitos excelentes; mas não importa, é bruto como o diabo. Um sacristão! Que vergonha!

— Bom — pensou Athos — se Aramis recebeu a carta, por mais ocupado que esteja, irá ao encontro.

Às dez horas, com a exatidão costumeira, achava-se Athos na ponte do Louvre. Lá encontrou Lorde de Winter, que chegava naquele instante.

Esperaram cerca de dez minutos.

Milorde de Winter principiava a temer que Aramis não viesse.

— Paciência — disse Athos, que tinha os olhos fitos na direção da rue du Bac — paciência, aí vem um padre esbofeteando homens e cumprimentando mulheres; deve ser Aramis.

Era ele, de fato: um burguesinho, que seguia embasbacado pelo meio da rua, barrara-lhe o caminho, e Aramis, que ele salpicara de lama, dera-lhe um murro, atirando-o a dez passos de distância. Ao mesmo tempo uma de suas penitentes passara; e como fosse moca e bonita, Aramis cumprimentara-a com o mais gracioso dos seus sorrisos.

Num instante Aramis aproximou-se deles.

Seguiram-se, como o leitor há de compreender, grandes abraços entre ele e Lorde de Winter.

— Aonde vamos? — perguntou Aramis; — haverá algum duelo por aqui? Com a breca! Estou sem espada e preciso passar por casa para ir buscá-la.

— Não — respondeu de Winter — vamos fazer uma visita à Sua Majestade, a Rainha de Inglaterra.

— Ah! muito bem — disse Aramis; — e qual é a finalidade dessa visita? — continuou, inclinando-se ao ouvido de Athos.

— Eu, por mim, não sei de nada; algum testemunho, talvez, que exigem de nós...

— Não seria por causa daquela maldita história? — acudiu Aramis. — Se for, não tenho muita vontade de ir, pois será para ouvir algum sermão; e, desde que faço sermões, não gosto de ouvi-los.

— Se fosse por isso — disse Athos — não seríamos conduzidos à presença de Sua Majestade por Lorde de Winter, pois ele também teria a sua parte: estava conosco.

— É verdade. Então, vamos.

Chegados ao Louvre, Lorde de Winter entrou primeiro; de resto, só havia um porteiro na portaria. À luz do dia, Athos, Aramis e o próprio inglês puderam observar a horrível miséria da habitação que uma caridade avara concedia à infeliz Rainha. Grandes salas inteiramente desprovidas de móveis, paredes desbotadas em que se viam, aqui e ali, antigas molduras de ouro que tinham resistido ao desamparo, janelas que se não fechavam, sem vidraças; nenhum tapete, nenhum guarda, nenhum lacaio: eis o que chamou primeiro a atenção de Athos, e que ele observou em silêncio ao companheiro tocando-o com o cotovelo e mostrando-lhe com os olhos a miséria ambiente.

— Mazarino está mais bem instalado — disse Aramis.

— Mazarino é quase rei — disse Athos — e a Sra. Henriqueta já quase não é rainha.

— Se tu te dignasses dizer chistes, Athos — observou Aramis — creio realmente que os dirias muito melhores que os do pobre Sr. de Voiture.

Athos sorriu.

A Rainha parecia esperar com impaciência, pois, ao primeiro ruído que ouviu na sala contígua ao quarto, surgiu pessoalmente na umbreira da porta a fim de receber os cortesãos de seu infortúnio.

— Entrai e sede benvindos, senhores — disse ela.

Os fidalgos entraram e, a princípio, ficaram em pé; mas, a um gesto da Rainha, que os convidava, por sinais, a sentarem-se, Athos deu o exemplo da obediência. Estava grave e calmo; Aramis, porém, enfurecera-se: a miséria real o exasperava, e os seus olhos estudavam cada novo vestígio de lazeira que descobria.

— Examinais o meu luxo? — perguntou a Rainha Henriqueta com um triste olhar à sua volta.

— Senhora — disse Aramis — peço perdão a Vossa Majestade, mas não sei esconder a minha indignação ao ver que na corte de França é assim tratada a filha de Henrique IV.

— Este senhor não é cavaleiro? — perguntou a Rainha a Lorde de Winter.

— Este senhor é o Pe. d'Herblay — respondeu o interpelado.

Aramis corou.

— Senhora — disse ele — sou padre, é verdade, mas contra minha vontade; nunca senti vocação para o sacerdócio: a minha batina pende apenas de um botão e estou sempre disposto a envergar a farda de mosqueteiro. Hoje cedo, ignorando que teria a honra de ver Vossa Majestade, enfiei estas roupas, mas nem por isso deixo de ser o homem que Vossa Majestade achará mais dedicado ao seu serviço, sejam quais forem as suas ordens.

— O Sr. Cavaleiro d'Herblay — tornou de Winter — é um desses valentes mosqueteiros de Sua Majestade o Rei Luís XIII de que falei a Vossa Majestade... — Logo, voltando-se para Athos: — Quanto a este senhor, é o nobre Conde de La Fere, cuja alta reputação tão bem conhece Vossa Majestade.

— Senhores — disse a Rainha — eu tinha ao meu redor, alguns anos atrás, fidalgos, tesouros, exércitos; a um sinal de minha mão tudo isso era empregado a meu serviço. Hoje, olhai à minha volta e ficareis, sem dúvida, surpreendidos: mas para executar um desígnio que me salvará a vida, só tenho Lorde de Winter, um amigo de vinte anos, e vós, senhores, que vejo pela primeira vez e que só conheço como meus compatriotas.

— É o quanto basta, senhora — disse Athos, fazendo profunda reverência — se a vida de três homens pode resgatar a de Vossa Majestade.

— Obrigado, senhores. Mas ouvi-me — prosseguiu ela — sou não somente a mais miserável das rainhas, senão a mais desgraçada das mães e a mais desesperada das esposas: meus filhos, pelo menos dois deles, o Duque de Iorque e a Princesa Carlota, estão longe de mim, expostos aos golpes dos ambiciosos e dos inimigos; o Rei, meu marido, arrasta na Inglaterra uma existência tão dolorosa que ainda direi pouco se afirmar que procura a morte como fim desejável. Aqui está, senhores, a carta que me mandou por intermédio de Milorde de Winter. Lede-a.

Athos e Aramis escusaram-se.

— Lede-a — insistiu a Rainha.

Athos leu em voz alta a carta que já conhecemos, e na qual o Rei Carlos perguntava se lhe seria concedida hospitalidade em França.

— E então? — perguntou Athos, terminada a leitura.

— E então — disse a Rainha — ele recusou. Os dois amigos trocaram um sorriso de desprezo.

— E agora, senhora, que é preciso fazer? — perguntou Athos.

— Tendes alguma compaixão por tanta desgraça? — tornou a Rainha, comovida.

— Tive a honra de perguntar a Vossa Majestade o que desejava que o Sr. d'Herblay e eu fizéssemos pelo seu serviço; estamos prontos.

— Ah! senhor, tendes, com efeito, um nobre coração! — exclamou a Rainha numa explosão de reconhecimento, enquanto Lorde de Winter a considerava como se quisesse dizer: "Eu não disse?"

— E vós, senhor? — perguntou a Rainha a Aramis.

— Eu, senhora — respondeu este último — aonde quer que vá o Sr. Conde, ainda que seja para a morte, sigo-o sem perguntar por que; mas quando se trata do serviço de Vossa Majestade — ajuntou, olhando para a Rainha com toda a graça de sua mocidade — antecipo-me ao Sr. Conde.

— Pois bem, senhores! — disse a Rainha — já que é assim, já que estais dispostos a dedicar-vos ao serviço de uma pobre princesa que o mundo inteiro desampara, eis o que se trata de fazer por mim. El-Rei está sozinho com alguns fidalgos, que receia perder todos os dias, no meio de escoceses de que desconfia, embora ele próprio seja escocês. Depois que Lorde de Winter o deixou, já não vivo. Peço demais talvez, porque não tenho título nenhum para pedir; ide para a Inglaterra, juntai-vos ao Rei, sede seus amigos, sede seus guardas, ficai ao seu lado na batalha, andai ao seu lado no interior de sua casa, onde cada dia se armam novas ciladas, muito mais perigosas que todos os riscos da guerra; e em troca desse sacrifício que me fareis, prometo, não recompensar-vos, pois creio que a palavra vos magoaria, mas amar-vos como irmã e preferir-vos a tudo o que não for meu marido e meus filhos. Juro-o diante de Deus!

E a Rainha ergueu lenta e solenemente os olhos para o céu.

— Senhora — acudiu Athos — quando devemos partir?

— Consentis, então? — exclamou, jubilosa, a Rainha.

— Sim, senhora. Parece-me, entretanto, que Vossa Majestade vai longe demais comprometendo-se a honrar-nos com uma amizade tão acima de nossos méritos. Servimos a Deus, senhora, servindo um príncipe tão desgraçado e uma rainha tão virtuosa. Estamos de corpo e alma ao dispor de Vossa Majestade.

— Ah! senhores — disse a Rainha enternecida até às lágrimas — eis o primeiro instante de alegria e de esperança que experimento há cinco anos. Sim, servis a Deus, e como o meu poder será limitado demais para reconhecer tamanho sacrifício, só ele poderá recompensar-vos, ele que lê em minha alma a gratidão que sinto por ele e por vós. Salvai meu marido, salvai o Rei; e se bem não sejais sensíveis ao prêmio que vos poderá ser concedido na terra por tão bela ação, deixai-me a esperança de que tornarei a ver-vos para agradecer-vos pessoalmente. Enquanto isso, fico aqui. Tendes alguma recomendação para fazer-me? Sou desde hoje vossa amiga; e já que tratas dos meus negócios, quero ocupar-me dos vossos.

— Senhora — disse Athos — não tenho nada a pedir a Vossa Majestade senão orações.

— E eu — disse Aramis — sou sozinho no mundo e só tenho Vossa Majestade para servir.

A Rainha estendeu-lhe a mão, que eles beijaram, e disse, baixinho, a de Winter:

— Se precisardes de dinheiro, Milorde, não hesiteis um instante, quebrai as jóias que vos dei, separai os brilhantes e vendei-os a um judeu: com eles alcançarei umas cinqüenta ou sessenta mil libras; gastai-as se for necessário, mas sejam estes fidalgos tratados como merecem, isto é, como reis.

A Rainha preparara duas cartas: uma escrita por ela, outra escrita pela Princesa Henriqueta, sua filha; ambas dirigidas ao Rei Carlos. Entregou uma a Athos e outra a Aramis, a fim de que, se o acaso os separasse, pudessem dar-se a conhecer; em seguida, os amigos retiraram-se.

Em baixo da escada, de Winter estacou:

— Ide por um lado, que irei por outro, senhores — disse ele — a fim de não despertarmos suspeitas; e esta noite, às nove horas, encontremo-nos na porta de Saint-Denis. Iremos em meus cavalos enquanto pudermos, depois tomaremos a diligência. Ainda uma vez obrigado, meus caros amigos, obrigado em meu nome, obrigado em nome da Rainha.

Os três fidalgos apertaram-se as mãos; o Conde de Winter tomou pela rue Saint-Honoré, Athos e Aramis ficaram sós.

— E então? — perguntou Aramis — que me dizes desse negócio, meu caro Conde?

— Mau — respondeu Athos — muito mau.

— Mas tu o acolheste com entusiasmo?

— Como acolherei sempre a defesa de um grande princípio, meu caro d'Herblay. Os reis só podem ser fortes pela nobreza, mas a nobreza só pode ser forte pelos reis. Sustentemos, portanto, as monarquias, que nos sustentaremos a nós mesmos.

— Vamo-nos fazer assassinar lá embaixo — disse Aramis — Odeio os ingleses, são grosseiros como todas as pessoas que bebem cerveja.

— E seria, acaso, melhor ficarmos aqui — redargüiu Athos — para darmos uma voltinha pela Bastilha ou pelo castelo de Vincennes, por termos favorecido a evasão do Sr. de Beaufort? Ah! palavra, Aramis, não lastimemos coisa alguma. Evitamos a prisão e procedemos como heróis; a escolha é fácil.

— É verdade; mas, em todo o caso, meu caro, precisamos voltar àquela primeira questão, muito boba, eu sei, mas muito necessária: tens dinheiro?

— Uma centena de pistolas, talvez, que o meu rendeiro me mandou na véspera do dia que parti de Bragelonne; mas preciso deixar umas cinqüenta a Raul: cumpre que um jovem fidalgo viva decentemente. Por conseguinte, tenho apenas cinqüenta pistolas. E tu?

— Virando do avesso todas as minhas algibeiras, e abrindo todas as minhas gavetas, não encontrarei dez luíses. Felizmente Lorde de Winter é rico.

— Lorde de Winter está momentaneamente arruinado, pois é Cromwell quem recebe as suas rendas.

— Eis o momento em que o Barão Porthos viria a calhar — disse Aramis.

— Eis o momento em que sinto falta de d’Artagnan — disse Athos.

— Que bolsa farta!

— Que bela espada!

— Desencaminhemo-los.

— O segredo não nos pertence, Aramis; não façamos confidencias a ninguém. De mais a mais, dando esse passo, daremos a impressão de duvidar de nós mesmos. Lastime-mo-nos sozinhos, mas não deixemos que transpire o assunto.

— Tens razão. Que farás até à noite? Serei obrigado a adiar duas coisas.

— Coisas que se podem adiar?

— Que remédio! É preciso.

— E quais são?

— Primeiro, pespegar uma espadeirada no Coadjutor, que encontrei ontem à noite em casa da Sra. de Rambouillet e que me tratou de maneira muito esquisita.

— Que vergonha! Uma briga entre padres! Um duelo entre aliados!

— Que queres, meu caro? Ele é um espadachim, eu também; ele anda atrás de aventuras, eu também; pesa-lhe a batina e eu, se não me engano, estou farto da minha; tenho, às vezes, a impressão de que ele é Aramis e de que eu sou o Coadjutor, tanta analogia temos um com o outro. Essa espécie de Sósia me aborrece e me faz sombra; de mais a mais, é um embrulhão que perderá o nosso partido. Estou convencido de que se eu lhe der um pescoção, como fiz hoje cedo com aquele burguesinho que me sujou de lama, mudaria por completo a face dos acontecimentos.

— E eu, meu caro Aramis — respondeu tranqüilamente Athos — creio que isso só mudaria a face do Sr. de Retz. Portanto, deixemos as coisas como estão: de mais a mais, nenhum de vós já pertence a si mesmo: tu pertences à Rainha de Inglaterra e ele pertence à Fronda; portanto, se a segunda coisa que lamentas não poder fazer for tão importante quanto a primeira...

— Oh! essa era importantíssima.

— Faze-a, então, imediatamente.

— Infelizmente não posso fazê-la à hora que quero. Tem de ser de noite, bem de noite.

— Compreendo — disse Athos sorrindo — à meia-noite? — Mais ou menos.

— Ora, meu caro, são essas precisamente as coisas que se adiam, e tu a adiarás, sobretudo tendo uma desculpa tão boa ao voltar...

— Sim, se eu voltar.

— Se não voltares, que importa? Sê, pois, um pouco razoável. Afinal de contas, Aramis, já não tens vinte anos, meu amigo.

— Infelizmente, não, com os diabos! Ah! se os tivesse! — Sim, creio que farias boas loucuras! Mas precisamos separar-nos: tenho uma ou duas visitas que fazer, e uma carta para escrever; vem, portanto, buscar-me às oito horas, ou preferes que eu te espere para jantar às sete?

— Ótimo; eu — disse Aramis — tenho vinte visitas para fazer e outras tantas cartas que escrever.

E separaram-se os dois. Athos foi fazer uma visita à Sra. de Vendôme, deixou o nome em casa da Sra. de Chevreuse, e escreveu a d'Artagnan a carta seguinte:

 

"Caro amigo, parto com Aramis para um negócio importante. Eu quisera despedir-me de ti, mas falta-me o tempo. Não te esqueças de que escrevo para repetir o quanto te quero.

"Raul foi a Blois e não sabe da minha partida; toma a melhor conta dele que puderes durante a minha ausência, e se, por acaso, não tiveres notícias minhas dentro em três meses, dize-lhe que abra um pacote dirigido a ele, que se encontra no meu cofrezinho de bronze, cuja chave te mando.

"Abraça Porthos por Aramis e por mim. Até à vista, talvez adeus."

 

E mandou a carta por Blaisois.

À hora combinada, chegou Aramis; vestira-se de cavaleiro e trazia à cinta a antiga espada, que tantas vezes desembainhara, e que estava mais do que nunca disposto a brandir.

— Ah! — disse ele — creio que decididamente fazemos mal em partir assim, sem deixar uma palavrinha de despedida a Porthos e a d’Artagnan.

— Isso já se fez, meu caro amigo — replicou Athos — e já tomei as providências necessárias; abracei a ambos por ti e por mim.

— És um homem admirável, meu caro Conde — volveu Aramis — e pensas em tudo.

— E então? Já te conformaste com a viagem?

— Perfeitamente; e, depois que refleti, cheguei à conclusão de que folgo muito em deixar Paris neste momento.

— E eu também — respondeu Athos; — lamento apenas não ter abraçado d'Artagnan, mas o diabo é tão sagaz que nos teria adivinhado os projetos.

Terminava o jantar quando Blaisois chegou.

— Senhor, eis a resposta do Sr. d'Artagnan.

— Mas eu não te disse que não havia resposta, imbecil? — bradou Athos.

— Por isso mesmo saí sem esperar por ela, mas ele mandou-me chamar de novo e deu-me isto aqui.

E mostrou um saquinho de couro, cheio e sonante. Athos abriu-o e começou por tirar de dentro dele um bilhetinho redigido nestes termos:

 

"Meu caro Conde,

"Quando a gente viaja, e sobretudo por três meses, nunca tem dinheiro suficiente; ora, lembrei-me dos nossos tempos de aperturas e mando-te a metade da minha bolsa: é dinheiro que consegui arrancar do Mazarino. Por isso te suplico que não o empregues muito mal.

"Quanto a nunca mais nos revermos, não acredito; quem possui o teu coração e a tua espada passa por toda a parte.

"Portanto, até à vista e não adeus.

"Ê escusado dizer que desde o dia em que vi Raul pus-me a querer-lhe como se fosse meu filho; acredita, porém, que peço sinceramente a Deus não me torne seu pai, embora eu me ufanasse de ter um filho como ele.

"Teu D'Artagnan."

"P. S. — Está visto que os cinqüenta luíses que te envio são tanto teus quanto de Aramis, e tanto de Aramis quanto teus."

 

Athos sorriu e uma lágrima lhe toldou o formoso olhar. D'Artagnan, a quem sempre quisera com ternura, continuava a querer-lhe como sempre, apesar de mazarinista.

— De feito, aqui estão os cinqüenta luíses — disse Aramis, despejando a bolsa sobre a mesa — e todos com a efígie do Rei Luís XIII. E que farás com este dinheiro, Conde: ficarás com ele ou tornarás a mandá-lo?

— Fico com ele, Aramis, e ainda que não precisasse, ficaria. O que se oferece de coração de coração deve aceitar-se. Guarda vinte e cinco para ti e dá-me os outros vinte e cinco.

— Ainda bem, folgo em saber que partilhas da minha opinião. E, agora, partimos?

— Quando quiseres; mas não tens lacaio?

— Não, o imbecil do Bazin caiu na asneira de fazer-se sacristão, e não pode sair de Notre-Dame.

— Muito bem, ficarás com Blaisois, com o qual eu não saberia o que fazer, visto que já tenho Grimaud.

— Com muito prazer — aceitou Aramis.

Nesse momento, Grimaud surgiu na soleira da porta.

— Pronto — anunciou com o costumeiro laconismo.

— Partamos — disse Athos.

Com efeito, os cavalos esperavam arreados. Os dois lacaios fizeram o mesmo.

Na esquina do cais toparam com Bazin, que corria esbaforido.

— Ah! senhor — disse Bazin — graças a Deus ainda chego a tempo.

— Que aconteceu?

— O Sr. Porthos esteve em casa e deixou isto para vós, dizendo que era urgentíssimo e que deveria ser entregue antes da vossa partida.

— Bom — tornou Aramis, pegando uma bolsa que lhe estendia Bazin — que é isto?

— Esperai, Sr. Padre, há uma carta também.

— Eu já te disse que, se não me tratares por Cavaleiro, eu te quebrarei os ossos. Vamos à carta.

— Como poderás lê-la? — inquiriu Athos. — Está mais escuro do que um forno.

— Esperai — acudiu Bazin.

Bazin feriu lume e acendeu um pavio com o qual acendia as suas velas. À luz desse pavio, leu Aramis:

 

"Meu caro d'Herblay,

"Estou sabendo por d'Artagnan, que me abraçou em teu nome e no do Conde de La Fere, que partes para uma expedição que durará talvez dois ou três meses; ora, como sei que não gostas de pedir aos amigos, quero oferecer-te: aqui vão duzentos pistolas de que poderás dispor e que me devolverás quando se apresentar a ocasião. Não temas deixar-me em dificuldades: se eu precisar de dinheiro, mandarei buscá-lo num dos meus castelos; só em Bracieux tenho vinte mil libras de ouro. E se não te mando mais é porque receio que não aceites uma soma muito grande.

"Dirijo-me a ti porque sabes que o Conde de La Fere sempre me inspirou certo respeito, mau grado meu, embora eu o estime de todo o coração; mas está visto que o meu oferecimento é extensivo a ele também.

"Sou, como espero que não duvides, teu dedicadíssimo

"Du Vallon de Bracieux de Pierrefonds."

 

— E então? — disse Aramis — que dizes de tudo isto?

— Digo, meu caro d'Herblay, que é quase um sacrilégio duvidar da Providência quando temos tais amigos.

— Quer dizer, então?

— Que repartiremos as pistolas de Porthos como repartimos os luíses de d’Artagnan.

Feita a partilha à luz do pavio de Bazin, os dois amigos de novo se puseram a caminho.

Um quarto de hora depois, estavam ao pé da porta de Saint-Denis, onde de Winter os aguardava.

 

EM QUE SE PROVA QUE O PRIMEIRO IMPULSO É SEMPRE MELHOR

 

Os três amigos enveredaram pela estrada da Picardia, que lhes era tão conhecida, e recordava a Athos e a Aramis algumas das passagens mais pitorescas de sua juventude.

— Se Mousqueton estivesse conosco — disse Athos chegando ao lugar em que se tinham batido com os calceteiros — como fremiria ao passar por aqui! Estás lembrado, Aramis? Foi aqui que ele recebeu a célebre bala.

— E palavra que eu lho perdoaria — acudiu Aramis — pois eu mesmo sinto-me estremecer a essa lembrança; vê, um pouco adiante daquela árvore, o lugarzinho onde cheguei a imaginar que estivesse morto.

Continuaram o caminho. Logo depois foi a vez de Grimaud mergulhar na memória. Chegados diante da estalagem em que ele e o amo tinham feito outrora tamanha patuscada, aproximou-se de Athos e, mostrando-lhe o respiradouro da adega, disse-lhe:

— Chouriços!

Athos pôs-se a rir, e aquela loucura de sua mocidade lhe pareceu tão divertida como se alguém lha tivesse contado de um terceiro.

Afinal, depois de dois dias e uma noite de marcha, chegaram à noitinha, por um tempo magnífico, a Bolonha, cidade então quase deserta, inteiramente construída num alto; o que hoje se chama a cidade baixa ainda não existia. Bolonha era uma posição formidável.

Ao chegarem às portas da cidade:

— Senhores — propôs de Winter — façamos aqui como fizemos em Paris: separemo-nos para evitar suspeitas; conheço uma estalagem pouco freqüentada, mas cujo proprietário me é inteiramente dedicado. Vou para lá, pois devem ter chegado cartas para mim; podereis bater à primeira hospedaria da cidade, a Épée du Grana Henri, por exemplo; refocilai-vos e daqui a duas horas ide encontrar-vos comigo no cais, onde o nosso barco estará à espera.

Assim se assentaram os planos. Lorde de Winter continuou o caminho ao longo dos passeios exteriores da cidade, a fim de entrar por outra porta, ao passo que os dois amigos entraram pelo que se abria diante deles; ao cabo de duzentos passos encontraram a estalagem indicada.

Mandaram refrescar os cavalos, mas sem os desarrear; os lacaios jantaram, pois principiava a anoitecer, e os dois amos, impacientes por se embarcarem, ordenaram-lhes que fossem encontrá-los no cais, sem trocar palavra com ninguém. Compreenderá o leitor que a recomendação destinava-se apenas a Blaisois; para Grimaud havia muito tempo que se tornara inútil.

Athos e Aramis desceram ao porto.

Pelas roupas cobertas de pó, por certo ar desembaraçado que indica sempre o homem acostumado a viajar, os dois amigos despertaram a atenção de alguns transeuntes.

Num deles, sobretudo, a chegada de ambos produziu certa impressão. Esse homem, no qual haviam reparado primeiro, pelas mesmas razões que os tornavam objetos da atenção alheia, andava, melancólico, de um lado para outro do cais. Desde que os viu, não cessou de encarar com eles e parecia morto por dirigir-lhes a palavra.

Jovem e pálido, tinha olhos de um azul tão incerto, que pareciam irritar-se como os do tigre, segundo as cores que refletiam; o andar, sem embargo da lentidão e da incerteza dos passos, era duro e atrevido; vestia de preto e cingia, com donaire, uma espada comprida.

Chegados ao cais, demoraram-se Athos e Aramis em examinar um barquinho amarrado a uma estaca e aparelhado como se esperasse alguém.

— É sem dúvida o nosso — disse Athos.

— Sim — respondeu Aramis — e o navio que se apresta lá embaixo parece ser o que nos conduzirá ao nosso destino; agora — continuou ele — tomara que de Winter não se faça esperar. Não é nada divertido ficar aqui: não passa uma mulher!

— Pssiu — fez Athos: — estavam a escutar-nos.

Com efeito, o transeunte que, durante o exame dos dois amigos, passara e repassara várias vezes atrás deles, parará ao ouvir o nome de de Winter; mas como o seu rosto não tivesse exprimido comoção alguma, a pausa poderia ser perfeitamente atribuída ao acaso.

— Senhores — disse o rapaz, cumprimentando-os com muito desembaraço e muita polidez — perdoai-me a curiosidade, mas vejo que vindes de Paris ou, pelo menos, que não sois de Bolonha.

— Vimos de Paris, sim, senhor — respondeu Athos com idêntica cortesia — em que podemos servir-vos?

— Senhor — tornou o rapaz — teríeis a bondade de dizer-me se é verdade que o Cardeal Mazarino já não é ministro?

— Eis uma estranha pergunta — observou Aramis.

— É e não é — respondeu Athos; — ou melhor, metade da França o repele e só a poder de intrigas e promessas consegue ele o apoio da outra metade: e isso ainda pode durar muito tempo.

— Mas afinal, senhor — disse o estranho — não fugiu nem está preso?

— Não, senhor. Pelo menos por enquanto.

— Senhores, aceitai os meus agradecimentos pela vossa bondade — disse o rapaz, afastando-se.

— Que achas desse perguntador? — inquiriu Aramis.

— Acho que é um provinciano que se aborrece ou um espião que se informa.

— E tu lhe respondeste assim?

— Nada me autorizava a responder-lhe de outra maneira. Foi polido comigo, eu fui polido com ele.

— Mas, no entanto, se fosse um espião...

— Que queres que faça um espião? Já não estamos no tempo do Cardeal de Richelieu, que, por uma simples suspeita, mandava fechar os portos.

— Não importa, fizeste mal em responder-lhe como lhe respondeste — concluiu Aramis, acompanhando com a vista o rapaz, que desaparecia atrás das dunas.

— E tu — disse Athos — cometeste uma imprudência bem maior pronunciando o nome de Lorde de Winter. Esqueceste que foi ouvindo esse nome que o rapaz se deteve?

— Mais uma razão, quando ele te dirige a palavra, para convidá-lo a seguir o seu caminho.

— Uma briga? — perguntou Athos.

— E desde quando tens medo de brigas?

— Sempre tenho medo de brigas quando me esperam em algum lugar e a briga pode impedir-me de chegar. Aliás, queres que te confesse uma coisa? Também estou com vontade de ver melhor o rapaz.

— E por quê?

— Caçoar ás de mim, Aramis; dirás que repito sempre a mesma coisa; chamar-me-ás o mais medroso dos visionários.

— E daí?

— Com quem achas que se parece ele?

— Pela feiúra ou pela beleza? — perguntou, rindo, Aramis.

— Pela feiúra, e tanto quanto um homem pode parecer-se com uma mulher.

— Ah! com a breca! — bradou Aramis — agora me fizeste pensar. Não, de certo, não és visionário, meu caro amigo, e, pensando bem, acho que tens razão: a boca fina e dissimulada, os olhos que parecem estar sempre às ordens do espírito e nunca do coração. Será algum filho bastardo de Milady.

— Gracejas, Aramis!

— Por hábito, mais nada; pois eu te juro que não teria menos prazer do que tu de encontrar esse filhote de cobra no caminho.

— Ah! eis de Winter que se aproxima — disse Athos.

— E agora só faltaria que os lacaios nos fizessem esperar.

— Não, vejo-os daqui, vêm a vinte passos de distância de Milorde. Reconheço Grimaud pela cabeça empertigada e pelas pernas compridas. Tony traz as carabinas.

— Vamos, então, embarcar-nos de noite? — perguntou Aramis dirigindo a vista para o ocidente, onde o sol deixara apenas uma nuvem de ouro que parecia sumir-se a pouco e pouco, afundando no mar.

— É provável.

— Diabo! — tornou Aramis — já gosto pouco do mar durante o dia, que dirá durante a noite? O barulho das ondas, o barulho dos ventos, o jogo horroroso do barco! Confesso que prefiro o convento de Noisy.

Athos sorriu o seu triste sorriso, pois ouvia o que lhe dizia o amigo, mas pensava evidentemente em outra coisa. E encaminhou-se ao encontro de de Winter.

Aramis seguiu-o.

— Mas, afinal, que tem o nosso amigo? — indagou Aramis — parece os condenados do Dante, a que Satanás torceu o pescoço e que olham para os calcanhares. Que tanto olha para trás?

Avistando-os, por seu turno, de Winter apertou o passo e aproximou-se deles com surpreendente rapidez.

— Que tendes, Milorde — perguntou Athos — e que diabo vos faz correr tanto?

— Nada — disse de Winter. — Entretanto, ao passar pelas dunas, pareceu-me...

E voltou-se de novo. Athos olhou para Aramis.

— Partamos — continuou de Winter — partamos, o barco deve estar à nossa espera, e enxergo o navio ancorado. Eu já quisera estar a bordo.

E tornou a virar para trás.

— Hom'essa! — disse Aramis — esquecestes alguma coisa?

— Não, é uma preocupação.

— Ele o viu — disse Athos baixinho a Aramis. Haviam chegado à escada que conduzia ao barco. De Winter fez descerem primeiro os lacaios que carregavam as armas, os carregadores que traziam as malas, e começou a descer depois deles.

Nesse momento, Athos avistou um homem que seguia a beira do mar paralela ao cais, e que estugava o passo como se quisesse assistir, do outro lado do porto, a uma distância de vinte passos, ao embarque deles.

Julgou, entre as sombras que principiavam a cair, reconhecer o rapaz que os interrogara.

— Oh! oh! — disse entre si — será, realmente, algum espião e pretenderá, acaso, impedir-nos o embarque?

Como, todavia, no caso de ter o estranho esse projeto, já fosse um pouco tarde para executá-lo, Athos, por seu turno, desceu a escada, mas sem perder de vista o rapaz. Este, para encurtar caminho, assomara ao alto de uma eclusa.

— O negócio é conosco mesmo — murmurou Athos — mas embarquemos sempre e, quando estivermos em alto mar, ele que venha.

E saltou no barco, que se afastou imediatamente da margem e começou a distanciar-se graças aos esforços de quatro remeiros vigorosos.

Mas o rapaz se pôs a seguir, ou melhor, a preceder o barco, que devia passar entre a ponta do cais, dominada pelo farol que acabava de acender-se, e um rochedo que se erguia defronte. Viram-no, de longe, galgar o rochedo de modo que pudesse dominar o barco quando este passasse.

— Sim, senhor! — disse Aramis a Athos; — esse camarada é decididamente um espião.

— Quem é ele? — perguntou de Winter, voltando-se.

— O tal que nos seguiu, que falou conosco e que nos espera lá embaixo: vede.

De Winter voltou-se e seguiu a direção do dedo de Aramis. O farol inundava de claridade o estreitozinho por onde iam passar e o rochedo em que permanecia em pé o estranho, com a cabeça descoberta e os braços cruzados.

— É ele! — exclamou Lorde de Winter, segurando o braço de Athos — é ele; bem que imaginei reconhecê-lo e não me havia enganado.

— Ele, quem? — perguntou Aramis.

— O filho de Milady — respondeu Athos.

— O monge! — bradou Grimaud.

O rapaz ouviu essas palavras; dir-se-ia que fosse precipitar-se, de tal forma se aproximara da extremidade do rochedo, inclinado sobre o mar.

— Sim, sou eu, meu tio; eu, o filho de Milady, eu, o monge; eu, o secretário e amigo de Cromwell, e eu vos conheço, a vós e a vossos companheiros.

Havia naquele barco três homens corajosos, sem dúvida, e cuja bravura ninguém ousaria contestar; pois bem, a essa voz, a esse acento, a esse gesto, sentiram um calafrio de terror percorrer-lhe as veias.

Quanto a Grimaud, os seus cabelos se haviam eriçado na cabeça e o suor lhe escorria da fronte.

— Ah! — disse Aramis — esse é o sobrinho, é o monge, é o filho de Milady, como ele mesmo o diz?

— É — murmurou de Winter.

— Então, esperai.

E tomou, com o sangue frio terrível que tinha nas supremas ocasiões, um dos dois mosquetes da mão de Tony, armou-o e apontou-o para o homem que continuava em pé sobre o rochedo como o anjo das maldições.

— Fogo! — gritou Grimaud fora de si.

Athos atirou-se sobre o cano do mosquete e deteve o tiro que ia partir.

— O diabo te carregue! — bradou Aramis — eu o trazia tão bem na ponta do mosquete; ter-lhe-ia metido uma bala no meio do peito.

— Já nos basta ter matado a mãe — disse surdamente Athos.

— A mãe era uma celerada, que nos ferira a todos, a nós ou àqueles que nos eram caros.

— Sim, mas o filho não nos fez nada.

Grimaud, que se erguera para ver o efeito do tiro, caiu, desalentado, batendo as mãos.

O rapaz casquinou uma gargalhada.

— Ah! sois vós — disse ele — sois vós, efetivamente, e agora eu vos conheço.

O seu riso estridente e as suas palavras ameaçadoras passaram por cima do barco, levadas pela brisa e foram perder-se nas profundezas do horizonte.

Aramis estremeceu.

— Calma — disse Athos. — Que diabo! Então já não somos homens?

— Somos — tornou Aramis; — mas aquilo é um demônio. Perguntai ao tio se eu faria mal libertando-o do querido sobrinho.

De Winter respondeu apenas por um suspiro.

— Tudo estaria acabado — continuou Aramis. — Ah! receio muito, Athos, que me tenhas obrigado a cometer uma loucura com a tua prudência.

Athos pegou na mão de de Winter e, tentando mudar de assunto:

— Quando chegaremos à Inglaterra? — perguntou. Mas o fidalgo não lhe ouviu as palavras e não respondeu.

— Vê, Athos — disse Aramis — talvez ainda estejamos a tempo. Ele continua no mesmo lugar.

Athos voltou-se com esforço, pois a vista do rapaz lhe era evidentemente penosa.

Com efeito, o filho de Milady permanecia em pé sobre o rochedo, ao passo que o farol desenhava à sua volta como uma auréola de luz.

— Mas que fará ele em Bolonha? — perguntou Athos, que, sendo a própria encarnação da razão, em tudo procurava a causa, sem se preocupar com o efeito.

— Seguia-me, seguia-me — disse de Winter, que, dessa feita, lhe ouvira a voz; pois a voz de Athos correspondia aos seus pensamentos.

— Para seguir-vos, meu amigo — volveu Athos — seria preciso que ele soubesse da nossa partida; aliás, pelo contrário, segundo todas as probabilidades, deve ter-nos precedido.

— Então, não compreendo nada — declarou o inglês, sacudindo a cabeça como um homem convencido da inutilidade de lutar contra uma força sobrenatural.

— Decididamente, Aramis — disse Athos — creio que fiz mal em não te deixar liquidá-lo.

— Cala-te — respondeu Aramis; — tu me farias chorar, se eu tivesse lágrimas.

Grimaud despediu um grunhido surdo, que mais parecia um rugido.

Nesse momento, uma voz chamou-os do navio. Sentado ao leme, o piloto respondeu e o barco abordou a embarcação.

Um instante depois, homens, criados e bagagens estavam a bordo. O capitão esperava apenas os passageiros para partir; e, tanto que puseram o pé na coberta, o navio aproou para Hasting, onde deviam desembarcar.

Nesse momento os três amigos, mau grado seu, lançaram um derradeiro olhar para o rochedo, onde se destacava, ainda visível, a sombra ameaçadora que os perseguia.

E uma voz chegou até eles, transmitindo-lhe a derradeira ameaça:

— Até à vista, senhores, na Inglaterra!

 

O TE DEUM PELA VITÓRIA DE LENS

 

O movimento que a Rainha Henriqueta observara e cujo motivo procurara em vão decorria da vitória de Lens, que o Sr. Príncipe mandara anunciar pelo Sr. Duque de Chântillon, que nela desempenhara uma nobre parte; além disso, fora ele encarregado de pendurar nas abóbadas de Notre-Dame vinte e duas bandeiras, tomadas aos lorenos e espanhóis.

A notícia era decisiva, pois liquidava o processo iniciado com o Parlamento em favor da Corte. Todos os impostos sumariamente registrados, e aos quais se opunha o Parlamento, eram sempre justificados pela necessidade de sustentar a honra da França e pela temerária esperança de vencer o inimigo. Ora, como depois de Nordlingen os franceses só tivessem conhecido derrotas, o Parlamento não cessara de interpelar o Sr. de Mazarino sobre as vitórias sempre prometidas e sempre adiadas; desta feita, porém, travara-se uma batalha e conquistara-se um triunfo, um triunfo completo: de sorte que toda a gente compreendera que era dupla a vitória da Corte, no exterior e no interior, de tal maneira que até o jovem Rei, ao ter conhecimento do fato, exclamara:

— Ah! senhores do Parlamento, vamos ver o que direis.

Ouvindo isso, a Rainha aconchegara do seio a criança real, cujos sentimentos altivos e indômitos tão bem se harmonizavam com os seus. Reuniu-se um conselho na mesma noite, para o qual tinham sido convocados o Marechal de La Meilleraie e o Sr. de Villeroy, por serem mazarinistas; Chavigny e Séguier, porque odiavam o Parlamento, e Guitaut e Comminges, por serem devotados à Rainha.

Nada transpirou do que ficara decidido nesse conselho. Soube-se apenas que no domingo seguinte haveria um Te Deum cantado em Notre-Dame em honra da vitória de Lens.

No domingo seguinte, os parisienses despertaram cheios de alegria, portanto: era um grande acontecimento, nessa época, um Te Deum. Ninguém abusara ainda desse gênero de cerimônia, e ela surtia efeito. O sol, que, de seu lado, parecia tomar parte na festa, erguera-se radioso e dourava as torres sombrias da metrópole, já apinhada de gente; as ruas mais escuras da cidade haviam assumido um ar de festa, e em toda a extensão do cais viam-se longas filas de burgueses, artesãos, mulheres e crianças que se dirigiam a Notre-Dame, semelhantes a um rio que retornasse à nascente.

As lojas estavam desertas, as casas fechadas; toda a gente quisera ver o Reizinho e sua mãe e o famoso Cardeal de Mazarino, tão odiado que ninguém queria privar-se de conhecê-lo.

De resto, a maior das liberdades imperava no meio do povo imenso; todas as opiniões se exprimiam abertamente e, por assim dizer, tocavam à revolta, como os mil sinos de todas as igrejas de Paris celebravam o Te Deum. O policiamento da cidade era feito pela própria cidade, e ameaça nenhuma vinha perturbar o concerto de ódio geral e gelar as palavras naquelas bocas maldizentes.

Entretanto, desde as oito horas da manhã, o regimento dos guardas da Rainha, comandado por Guitaut, e em segundo lugar por Comminges, seu sobrinho, fora, precedido de tambores e trombetas, escalonar-se do Palais-Royal a Notre-Dame, manobra a que os parisienses assistiram com tranqüilidade, pois sempre gostaram de músicas militares e uniformes deslumbrantes.

Friquet se adomingara e, a pretexto de um inchaço que momentaneamente conseguira introduzindo grande número de caroços de cereja num dos lados da boca, obtivera de Bazin, seu superior, licença para o dia todo.

Bazin começara recusando, porque estava de mau humor, primeiro por causa da partida de Aramis, que se fora sem lhe dizer aonde ia, e, segundo, por ajudar à missa em honra de uma vitória que não estava de acordo com as suas opiniões, pois Bazin era frondista, como o leitor deve estar lembrado; e se fosse possível, em semelhante solenidade, ausentar-se o sacristão como um simples menino de coro, Bazin teria feito certamente ao Arcebispo o mesmo pedido que lhe fizera Friquet. Começara, pois, recusando, como dissemos, toda e qualquer licença; mas na mesma presença de Bazin aumentara tão consideravelmente o inchaço de Friquet, que, para a honra dos meninos do coro, que ficariam comprometidos com semelhante deformidade, acabara cedendo, entre resmungos. À porta da igreja, Friquet cuspira o tumor e fizera na direção de Bazin um desses gestos que asseguram ao moleque de Paris a sua incontestada supremacia sobre todos os moleques do universo; e, quanto ao serviço na taberna, fora naturalmente dispensado dele alegando que tinha de ajudar à missa em Notre-Dame.

Friquet, portanto, estava livre, e, como vimos, vestira a sua melhor fatiota; galhardeava, sobretudo, como notável ornamento de sua pessoa, uma dessas indescritíveis carapuças que oscilam entre o gorro da Idade Média e o chapéu do tempo de Luís XIII. A mãe fabricara-lhe a curiosa obra-prima, e, fosse por capricho, fosse por falta de um pano uniforme, não se mostrara no fabrico muito escrupulosa em combinar as cores; de sorte que a obra-prima da chapelaria do século XVII era amarelo e verde de um lado e branco e vermelho do outro. Mas Friquet, que sempre amara a variedade nos tons, ia, por isso mesmo, ainda mais altivo e triunfante.

Ao deixar Bazin, partiu correndo para o Palais-Royal; lá chegou no momento em que saía o regimento de guardas e, como a sua única finalidade fosse gozar-lhe a vista e saborear-lhe a música, pôs-se a marchar na frente do regimento, tocando tambor com duas ardósias e passando desse exercício ao da trombeta, que imitava naturalmente com a boca de modo que lhe valera mais de uma vez os elogios dos amadores da harmonia imitativa.

O divertimento durou desde a barreira dos Sargentos até à praça de Notre-Dame, e Friquet encontrou nele verdadeiro prazer; mas quando o regimento parou e as companhias, fazendo evoluções, penetraram até ao coração da cidade, colocando-se na extremidade da rue Saint-Christophe, perto da rue Cocatrix, onde morava Broussel, Friquet, lembrando-se de que ainda não quebrara o jejum, procurou o lado para o qual poderia dirigir os seus passos a fim de executar esse ato importante do dia e, depois de haver refletido maduramente, decidiu que seria o Conselheiro Broussel o encarregado de fornecer-lhe o almoço.

Por conseguinte, saiu na disparada, chegou esbaforido à porta da casa do Conselheiro e bateu valentemente.

Sua mãe, a velha criada de Broussel, foi abrir.

— Que vens fazer aqui, sacripanta — disse ela — e por que não estás em Notre-Dame?

— Eu estava, mãe Nanette — replicou Friquet — mas percebi que lá se passavam coisas de que Mestre Broussel devia ser avisado e, com licença do Sr. Bazin, o sacristão, vim falar com o Sr. Broussel.

— E que queres dizer-lhe, traste?

— Quero falar pessoalmente com ele.

— Impossível; ele está trabalhando.

— Nesse caso, esperarei — disse Friquet, a quem convinha perfeitamente a espera, visto que saberia como passar o tempo.

E subiu rapidamente a escada, que a Sra. Nanette subiu mais devagar, no seu encalço.

— Mas, afinal — insistiu ela — que queres dizer ao Sr. Broussel?

— Quero dizer-lhe — respondeu Friquet, gritando a plenos pulmões — que todo o regimento de guardas vem vindo para cá. Ora, como ouço dizer por toda a parte que o Sr. Broussel é mal visto na Corte, vim avisá-lo para que se precavenha.

Broussel (44) ouviu os gritos do tratante e, encantado com o seu excesso de zelo, desceu ao primeiro andar; pois, de fato, trabalhava no gabinete do segundo.

(44) O Conselheiro Broussel era um velho democrata cabeçudo e meio burro, mas pobre e incorruptível, que o povo adorava, tanto pelos defeitos quanto pelas virtudes. (N. do T.)

 

— Ora, meu amigo — disse ele — que nos importa o regimento de guardas? Que loucura te deu para armares tamanho escarcéu? Não sabes que é de praxe o que estão fazendo esses senhores, e que o regimento costuma formar dos dois lados da rua para a passagem de El-Rei?

Friquet simulou espanto e, girando a carapuça entre os dedos:

— Não admira que o saibais — disse ele — vós, Sr. Broussel, que tudo sabeis; mas eu, juro por Deus que não sabia, e só pensei que vos daria bom aviso. Não deveis zangar-vos comigo por isso, Sr. Broussel.

— Pelo contrário, meu rapaz, pelo contrário, e o teu zelo me agrada. Sra. Nanette, vejamos um pouco aqueles damascos que a Sra. de Longueville nos mandou ontem de Noisy; e dai meia dúzia a vosso filho, com uma côdea de pão fresco.

— Ah! obrigado, Sr. Broussel — acudiu Friquet; — muito obrigado, gosto imensamente de damascos.

Broussel dirigiu-se ao quarto da mulher e pediu o almoço. Eram nove e meia. O Conselheiro pôs-se à janela. A rua estava completamente deserta mas, ao longe, se ouvia, como o ruído da maré, o imenso mugido das ondas populares que já se avolumavam em torno de Notre-Dame.

Esse ruído redobrou quando surgiu d’Artagnan com uma companhia de mosqueteiros e foi postar-se às portas de Notre-Dame para fazer o serviço da igreja. Ele dissera a Porthos que aproveitasse a ocasião para assistir à cerimônia, e Porthos, em grande gala, montou no seu mais velho cavalo, fazendo as vezes de mosqueteiro honorário, como tantas vezes o fizera outrora d'Artagnan. O sargento dessa companhia, velho soldado das guerras de Espanha, reconhecera Porthos, seu antigo companheiro, e pôs imediatamente os subordinados a par dos altos feitos daquele gigante, honra dos antigos mosqueteiros de Tréville. Daí que Porthos não somente fosse bem acolhido na companhia, mas também olhado com admiração.

Às dez horas, o canhão do Louvre anunciou a saída do Rei. Um movimento semelhante ao das árvores inclinadas e sacudidas por um vento de tempestade correu pela multidão, que se agitou atrás dos mosquetes imóveis dos guardas. Afinal surgiu o Rei em companhia da Rainha num coche todo dourado. Dez outros coches o seguiam com as damas de honra, os oficiais da casa real e toda a Corte.

— Viva o Rei! — gritavam de todos os lados.

O Reizinho pôs gravemente a cabeça pela portinhola, com uma expressão de reconhecimento, e saudou de leve, o que redobrou os gritos da multidão.

O cortejo adiantou-se lentamente e levou quase meia hora para transpor o intervalo que separa o Louvre da praça de Notre-Dame. Lá chegado, foi entrando a pouco e pouco sob a abóbada imensa da metrópole sombria, e o serviço divino começou.

No momento em que a Corte tomava os seus lugares, uma carruagem com as armas de Comminges destacou-se da fila de coches e foi lentamente colocar-se na extremidade da rue Saint-Christophe, inteiramente deserta, onde quatro guardas e um esbirro, que a escoltavam, entraram no pesado veículo e desceram as cortinas; em seguida, através de uma fenda discretíssima, o esbirro principiou a examinar toda a extensão da rue Cocatrix, como se esperasse a chegada de alguém.

Como toda a gente estivesse entretida com a cerimônia, nem o carro nem as precauções de que se cercavam os ocupantes foram observados. Friquet, a única criatura sempre alerta que poderia tê-los notado, saboreava os seus damascos na cimalha de uma casa no adro de Notre-Dame. De lá via o Rei, a Rainha, e o Sr. de Mazarino, e ouvia a missa como se ajudasse a ela.

Quase no fim do ofício, vendo que Comminges esperava ao seu lado a confirmação da ordem dada ao sair do Louvre, disse a Rainha a meia voz:

— Ide, Comminges, e Deus vos ajude!

Comminges partiu imediatamente, saiu da igreja e entrou na rue Saint-Christophe.

Avistando o guapo oficial, que caminhava seguido de dois guardas, Friquet divertiu-se em acompanhá-lo, e com tanto maior satisfação quanto a cerimônia terminava naquele instante e o Rei tomava a subir no coche.

Assim que o esbirro viu surgir Comminges no extremo da rue Cocatrix, disse qualquer coisa ao cocheiro, o qual pôs imediatamente o carro em movimento e só parou diante da porta de Broussel.

Comminges batia à porta no momento em que o veículo parava diante dela.

Friquet esperava atrás de Comminges que a porta se abrisse.

— Que fazes aí, moleque? — perguntou Comminges.

— Estou esperando para entrar em casa de Mestre Broussel, Sr. oficial! — disse Friquet no tom ingênuo que assume tão bem o moleque de Paris quando o exige a ocasião.

— É aqui mesmo que ele mora? — perguntou Comminges.

— Sim, senhor.

— Em que andar?

— Em toda a casa — respondeu Friquet; — a casa toda é dele.

— Mas onde fica habitualmente?

— Para trabalhar, fica no segundo mas, para tomar refeições, desce ao primeiro; neste momento deve estar jantando, porque é meio-dia.

— Muito bem — disse Comminges.

Nesse momento a porta se abriu. Comminges interrogou o lacaio, e foi informado de que Mestre Broussel estava em casa, e que, efetivamente, jantava. Subiu atrás do lacaio, e Friquet subiu atrás de Comminges.

Broussel estava sentado à mesa com a família, tendo diante de si a mulher, aos lados as duas filhas e, na ponta da mesa, Louvières, que já vimos aparecer por ocasião do acidente ocorrido com o Conselheiro, acidente, aliás, de que já se restabelecera completamente. Gozando de perfeita saúde. o bom do homem saboreava, portanto, os belos frutos que lhe mandara a Sra. de Longueville.

Comminges, que segurava o braço do lacaio no momento em que este ia abrir a porta para anunciá-lo, abriu-a com as próprias mãos e viu-se diante desse quadro de família.

À vista do oficial, Broussel sentiu-se tanto ou quanto comovido; mas, vendo que ele cumprimentava polidamente, levantou-se e cumprimentou também.

Entretanto, a despeito da recíproca polidez, a inquietação desenhou-se no rosto das mulheres; Louvières empalideceu mortalmente e esperou, com impaciência, que o oficial se explicasse.

— Senhor — disse Comminges — sou portador de uma ordem de El-Rei.

— Muito bem, senhor — respondeu Broussel. — Que ordem é essa?

E estendeu a mão.

— Fui incumbido de prender-vos — disse Comminges, sempre no mesmo tom, com a mesma polidez — e se quiserdes crer no que digo, não tereis o trabalho de ler esta longa carta e seguir-me-eis.

Um raio que caísse no meio daquela boa gente tão pacificamente reunida não produziria efeito mais terrível. Broussel recuou, tremendo. Era uma coisa terrível nessa época ser preso por inimizade do Rei. Louvières fez um movimento para atirar-se à espada, esquecida numa cadeira, num dos cantos da sala; mas um olhar de Broussel, que, no meio de tudo aquilo, não perdia a cabeça, conteve o gesto desesperado. Separada do marido por toda a largura da mesa, a Sra. Broussel desfazia-se em lágrimas e as duas meninas se tinham agarrado ao pai.

— Vamos, senhor — disse Comminges — apressemo-nos, é preciso obedecer ao Rei.

— Senhor — disse Broussel — estou passando mal de saúde e não posso ser preso neste estado; peço um pouco de tempo.

— Impossível — respondeu Comminges — a ordem é formal e deve ser executada incontinenti.

— Impossível! — acudiu Louvières; — cuidado, senhor, para não nos arrastardes ao desespero.

— Impossível! — disse uma voz estridente no fundo do quarto.

Comminges voltou-se e viu a Sra. Nanette com a vassoura na mão e olhos em que brilhavam todas as faíscas de cólera.

— Minha boa Nanette, fica quieta — pediu Broussel — por favor.

— Eu, ficar quieta quando prendem meu amo, o arrimo, o libertador, o pai do pobre povo! Ah! pois sim! Ainda não me conheceis... Fazei o favor de sair! — ordenou a Comminges.

Comminges sorriu.

— Vejamos, senhor — disse, voltando-se para Broussel

— mandai calar essa mulher e segui-me.

— Fazer-me calar, a mim! a mim! — respingou Nanette;

— pois sim! Seria preciso outro como vós, meu belo pássaro do Rei! Vereis.

E a Sra. Nanette precipitou-se para a janela, abriu-a, e, com voz tão aguda que foi ouvida no adro de Notre-Dame:

— Socorro! — gritou — estão prendendo meu amo! Estão prendendo o Conselheiro Broussel! Socorro!

— Senhor — disse Comminges — declarai-vos imediatamente: obedecereis ou pretendeis rebelar-vos contra o Rei?

— Obedeço, obedeço, senhor — exclamou Broussel, procurando desvencilhar-se das filhas que o abraçavam e conter com os olhos o filho, sempre pronto a escapar-lhe.

— Nesse caso — disse Comminges — imponde silêncio a essa velha.

— Ah! Velha! — repontou Nanette.

E pôs-se a gritar com mais fúria ainda, agarrando-se às grades da janela:

— Socorro! Socorro! Socorro para Mestre Broussel, que estão prendendo porque defendeu o povo! Socorro!

Comminges agarrou a criada pela cintura e quis arrancá-la do lugar; mas, no mesmo instante, outra voz, saindo de uma espécie de sobreloja, berrou em tom de falsete:

— Assassinos! Fogo! Assassinos! Estão matando o Sr. Broussel! Estão degolando o Sr. Broussel!

Era a voz de Friquet. Sentindo-se apoiada, a Sra. Nanette, voltou a gritar com mais força ainda (45).

(45) O episódio da criada, que amotinou o bairro com os seus gritos, ao efetuar-se a prisão de Broussel, é autêntico. (N. do T.)

 

Algumas cabeças curiosas já assomavam às janelas. Atraído pelos gritos, o povo acorria, a princípio isoladamente, depois aos grupos, finalmente em massa compacta: ouviam-se os berros; via-se um carro, mas ninguém compreendia nada. Friquet pulou da sobreloja ao tejadilho do carro.

— Querem prender o Sr. Broussel! — guinchou ele; — há uma porção de guardas no carro e o oficial está lá em cima.

A multidão principiou a resmungar e aproximou-se dos cavalos. Os dois guardas que tinham ficado à porta subiram em socorro de Comminges; os que estavam dentro do carro abriram as portinholas e cruzaram os chuços.

— Estais vendo? — gritava Friquet — estais vendo? Ei-los.

O cocheiro voltou-se e pespegou em Friquet uma chicotada que o fez urrar de dor.

— Ah! cocheiro do diabo! — gritou Friquet — queres brincar também? Espera!

E voltou para a sobreloja, de onde despejou todos os projéteis que encontrou.

A despeito da demonstração hostil dos guardas e talvez por isso mesmo, a multidão pôs-se a rosnar, aproximando-se dos cavalos. Os guardas rechaçaram os mais atrevidos a golpes de chuço.

Entretanto, o tumulto continuava a aumentar; a rua já não podia conter os espectadores que afluíam de todas as partes; a turba invadia o espaço que ainda formavam entre ela e o carro os temíveis chuços dos guardas. Empurrados como por muros vivos, os soldados iam ser esmagados contra os cubos das rodas e os caixilhos das portinholas. Os gritos de "Em nome de El-Rei!" vinte vezes repetidos pelo esbirro não surtiam efeito contra a terrível multidão e pareciam exasperá-la ainda mais, quando a esses gritos: "Em nome de El-Rei!" acudiu um cavaleiro, que, vendo uniformes tão maltratados, atirou-se ao populacho de espada em punho e trouxe aos guardas inesperado socorro.

Esse rapaz era um rapaz de seus quinze ou dezesseis anos, que a cólera tornara pálido. Apeou como os outros guardas, encostou-se ao timão do carro, fez do cavalo trincheira, tirou as pistolas dos coldres, que enfiou na cintura, e pôs-se a brandir a espada como homem habituado ao seu manejo.

Durante dez minutos, sozinho, sustentou o esforço da multidão.

Nesse momento surgiu Comminges empurrando Broussel.

— Quebremos o carro! — gritava o povo.

— Socorro! — gemia a velha.

— Assassinos! — uivava Friquet, continuando a despejar sobre os guardas tudo o que achava ao alcance das mãos.

— Em nome de El-Rei! — gritava Comminges.

— O primeiro que avançar, morre! — ameaçou Raul; e, vendo-se apertado, cutucou com a ponta da espada uma espécie de gigante que parecia disposto a esmagá-lo e que, sentindo-se ferido, recuou aos urros.

Era, de fato, Raul, que, voltando de Blois, como prometera ao Conde de La Fere, depois de cinco dias de ausência, quisera assistir à cerimônia e embarafustara pelas ruas que o conduziriam mais diretamente a Notre-Dame. Chegado às proximidades da rue Cocatrix, viu-se arrastado pela populaça e ao grito: "Em nome de El-Rei!" lembrara-se da frase de Athos: "Serve o Rei" e correra para combater pelo Rei, cujos guardas estavam sendo maltratados.

Comminges atirou por assim dizer Broussel dentro do carro e saltou atrás dele. Nesse momento um tiro de arcabuz se ouviu, uma bala atravessou de alto a baixo o chapéu de Comminges e quebrou o braço de um guarda. Comminges ergueu a cabeça e viu, no meio da fumaça, o rosto ameaçador de Louvières, que assomara à janela do segundo andar.

— Está bem, senhor — disse Comminges — tereis notícias minhas.

— E vós também, senhor — disse Louvières; — veremos quais serão as melhores.

Friquet e Nanette esganiçavam-se; os gritos, a detonação, o cheiro da pólvora sempre tão inebriante, surtiram efeito.

— Morra o guarda! Morra o guarda! — bramiu a multidão.

E fez um grande movimento.

— Mais um passo — vozeou Comminges, afastando as cortinas para que todos pudessem ver o interior do carro e encostando a espada ao peito de Broussel — mais um passo e mato o prisioneiro; tenho ordens para levá-lo vivo ou morto; levá-lo-ei morto, e pronto.

Um grito medonho se ouviu: a mulher e as filhas de Broussel estenderam para o povo mãos suplicantes.

O povo compreendeu que o pálido mas resoluto oficial cumpriria a ameaça: e se bem continuasse a gritar, afastou-se.

Comminges fez subir para o carro o guarda ferido e ordenou aos outros que fechassem a portinhola.

— Para o palácio — ordenou ao cocheiro, mais morto que vivo.

Este chicoteou os animais, que abriram largo caminho entre a turba-multa; mas, no cais, precisaram parar. O carro tombou, os cavalos foram levados, sufocados, esmagados pela multidão. A pé, porque não tivera tempo de montar outra vez, cansado de espancar a chusma com a folha da espada, como os guardas já estavam cansados de chuçá-la, Raul recorreu-lhe à ponta. Mas o terrível e último recurso só conseguia exasperar a multidão. De quando em quando reluzia também no meio do povaréu o cano de um mosquete ou a lâmina de uma espada; ouviram-se alguns tiros, dados sem dúvida para o ar, mas cujo eco nem por isso fazia vibrar menos os corações; os projéteis continuavam a chover das janelas. Ouviam-se vozes que só se ouvem em dias de motim; viam-se rostos que só se vêm em dias sangrentos. Os gritos: "Morram! Morram os guardas! O oficial ao Sena!" dominavam o tumulto. Com o chapéu em tiras, o rosto ensangüentado, Raul sentia que não somente as forças mas também a razão começava a abandoná-lo; nadavam-lhe os olhos em névoa avermelhada e, através dessa névoa, via cem braços ameaçadores estendidos para ele, prontos para agarrá-lo quando caísse. Comminges arrancava os cabelos de raiva dentro do carro. Os guardas não podiam socorrer ninguém, pois cada qual se ocupava em defender-se a si. Tudo acabara: carro, cavalos, guardas, satélites e talvez o próprio prisioneiro, tudo ia ser feito pedaços, quando, de repente, uma voz muito conhecida de Raul se ouviu e uma espada larga fuzilou no ar: ferindo e retalhando à direita e à esquerda, um oficial de mosqueteiros correu para Raul e segurou-o nos braços no momento em que este ia cair.

— Com os diabos! — gritou o oficial. — Tê-lo-ão assassinado? Nesse caso, ai deles!

E voltou-se tão apavorante de vigor, de cólera e de ameaça, que os mais furiosos se precipitaram uns sobre os outros, para fugir, e alguns chegaram a cair no rio.

— Sr. d'Artagnan — murmurou Raul.

— Sim, com a breca! em pessoa e felizmente para ti, segundo parece, meu jovem amigo. Para cá — gritou, erguendo-se nos estribos e levantando a espada, a chamar com a voz e o gesto os mosqueteiros que não tinham podido segui-lo, tão rápida fora a sua corrida. — Vamos! Varrei-me tudo isto! Aos mosquetes! Carregar armas! Preparar! Apontar...

A esse grito as montanhas de povo tão subitamente se abaixaram, que d'Artagnan não pôde conter uma gargalhada homérica.

— Obrigado, d'Artagnan — disse Comminges — enfiando a metade do corpo pela portinhola do carro tombado; — obrigado, meu jovem fidalgo! O vosso nome? Quero dizê-lo à Rainha.

Raul ia responder, quando d'Artagnan se inclinou ao seu ouvido:

— Cala-te — disse ele — e deixa-me responder. Logo, voltando-se para Comminges:

— Não percas tempo, Comminges; pula do carro, se puderes, e toma outro.

— Mas qual?

— Hom'essa! o primeiro que passar pelo Pont-Neuf. Espero que os ocupantes tenham muito prazer em emprestar o coche para o serviço de El-Rei.

— Mas — disse Comminges — eu não sei...

— Vai logo, pois daqui a cinco minutos todos os farroupilhas voltarão armados de espadas e mosquetes. Serás morto e o teu prisioneiro libertado. Vai. Por sinal que vem vindo um carro lá embaixo.

Depois, inclinando-se de novo para Raul:

— Sobretudo cala o teu nome — murmurou-lhe. O rapaz considerava-o com espanto.

— Está bem, irei — disse Comminges. — E, se voltarem, atira.

— Não, não — respondeu d'Artagnan — pelo contrário, ninguém se mexa: um tiro dado hoje custará muito caro amanhã.

Comminges reuniu os quatro guardas e outros tantos mosqueteiros e correu para o carro. Mandou descer os ocupantes e levou-os para o carro tombado.

Mas quando se tratou de transportar Broussel do carro quebrado para o outro, avistando o homem a quem chamava o seu libertador, o povo entrou a soltar uivos inimagináveis e atirou-se contra a carruagem.

— Parte — gritou d'Artagnan. — Aqui estão dez mosqueteiros para acompanhar-te, e eu fico com vinte para conter o povo; parte e não percas um minuto. Dez homens para o Sr. Comminges!

Dez homens destacaram-se da tropa, cercaram o novo carro e partiram a galope.

À saída do carro os gritos redobraram; mais de dez mil pessoas se comprimiam no cais, atulhando o Pont-Neuf e ruas adjacentes.

Alguns tiros detonaram. Um mosqueteiro foi ferido.

— Avante! — gritou d’Artagnan, perdendo a paciência e mordendo o bigode.

E, com os seus vinte homens, abalou sobre a massa popular, que recuou, aterrada. Só um homem permaneceu onde estava, com o arcabuz na mão.

— Ah! — disse o homem — já que quiseste assassiná-lo uma vez! Espera!

E apontou o arcabuz a d'Artagnan, que corria sobre ele à desfilada.

D'Artagnan inclinou-se sobre o pescoço do cavalo e o rapaz atirou; a bala cortou-lhe a pluma do chapéu.

O cavalo, na corrida, atropelou o imprudente que tentava, sozinho, deter uma tempestade e lançou-o contra o muro.

D'Artagnan freou repentinamente o cavalo e, ao passo que os mosqueteiros continuavam a carregar, voltou com a espada erguida contra o homem que acabara de derrubar.

— Ah! senhor — gritou Raul, reconhecendo o rapaz por tê-lo visto na rue Cocatrix — poupai-o, que é o filho dele!

D'Artagnan susteve o braço, na iminência de ferir.

— Ah! sois seu filho? Isso é outra coisa.

— Rendo-me, senhor — disse Louvières, estendendo ao oficial o arcabuz descarregado.

— Não, não vos rendais, com os diabos! Fugi, pelo contrário, e depressa! Se eu vos prender, sereis enforcado.

O rapaz não se fez de rogado; passou por baixo do pescoço do cavalo e desapareceu na esquina da rue Guénégaud.

— Palavra — disse d'Artagnan a Raul — não foi sem tempo que me sopeaste a mão; a esta hora ele estaria morto e, se eu soubesse depois quem era, ter-me-ia arrependido de matá-lo.

— Ah! senhor — disse Raul — permiti que, depois de haver-vos agradecido pelo pobre rapaz, eu vos agradeça por mim; eu também ia morrer quando chegastes.

— Espera, jovem, espera; não te canses falando.

E tirando dos coldres uma garrafa cheia de vinho de Espanha:

— Toma dois goles disto aqui.

Raul bebeu e quis reiterar os agradecimentos.

— Meu caro — atalhou d'Artagnan — falaremos nisso depois.

E, vendo que os mosqueteiros haviam limpado o cais desde o Pont-Neuf até Saint-Michel e já estavam de volta, ergueu a espada para apressá-los.

Os mosqueteiros chegaram a trote; ao mesmo tempo, do outro lado do cais, voltavam os dez homens da escolta que d'Artagnan fornecera a Comminges.

— Olá! — exclamou d'Artagnan, dirigindo-se aos últimos — alguma novidade?

— O carro deles tornou a quebrar-se; é uma verdadeira maldição — respondeu o sargento.

D'Artagnan deu de ombros:

— São uns desastrados; quando se escolhe um carro é preciso que seja sólido: o carro para levar Broussel deve comportar dez mil homens.

— Que ordenais, meu Tenente?

— Tomai o destacamento e conduzi-o ao quartel.

— E voltareis sozinho?

— Naturalmente. Imaginais, acaso, que eu preciso de escolta?

— Mas é que...

— Ide.

Partiram os mosqueteiros e d'Artagnan ficou só com Raul.

— E então, estás machucado? — perguntou-lhe.

— Estou, senhor; sinto a cabeça pesada e ardente.

— Mas que haverá nessa cabeça? — perguntou d'Artagnan, erguendo-lhe o chapéu. — Ah! ah! uma contusão.

— Sim, creio que levei um vaso de flores no coco.

— Canalha! — disse d'Artagnan. — Mas trazes esporas! Estavas montado?

— Estava, mas apeei para defender o Sr. de Comminges e levaram-me o cavalo. Vede! É aquele!

Efetivamente, nesse momento o cavalo de Raul passava montado por Friquet, que corria a galope, agitando a carapuça de quatro cores e gritando:

— Broussel! Broussel!

— Olá! Espera, biltre! — gritou d'Artagnan — traze o cavalo.

Friquet ouviu muito bem; mas fingiu não ter ouvido e tentou continuar.

D'Artagnan, por um momento, teve vontade de correr atrás de Mestre Friquet, mas não quis desamparar Raul; contentou-se, pois de pegar ruma pistola e armá-la.

Friquet tinha olhos vivos e ouvidos aguçados; viu o gesto de d'Artagnan e ouviu o estalido do cão; sofreou de golpe o cavalo.

— Ah! sois vós, Sr. Oficial — exclamou, vendo d'Artagnan — quanto prazer em rever-vos!

D'Artagnan examinou Friquet com atenção e reconheceu o rapazinho da rue de la Calandre.

— Ah! és tu, maroto — disse ele; — vem cá.

— Sim, sou eu, Sr. Oficial — disse Friquet com o seu ar ingênuo.

— Como é isso? Mudaste de profissão? Já não és menino de coro nem garção de taberna? Viraste ladrão de cavalo?

— Ah! Sr. Oficial, Deus me livre! — exclamou Friquet; — eu estava procurando o fidalgo a que pertence este cavalo, um belo cavaleiro, bravo como César... — Fingiu ver Raul pela primeira vez... — Ah! se não me engano — continuou ele — é este aqui! Espero, senhor, que não vos esquecereis de mim, não é verdade?

Raul pôs a mão no bolso.

— Que pretendes fazer? — perguntou d'Artagnan.

— Dar dez libras ao bravo rapazinho — respondeu Raul tirando uma pistola do bolso.

— Dez pontapés na barriga, isso sim! — replicou d'Artagnan. — Vai-te, malandrim, e não te esqueças de que tenho o teu endereço.

Friquet, que não esperava safar-se com tanta facilidade, abriu no pé e, num salto, chegou à esquina da rue Dauphine, onde sumiu. Raul tornou a montar, e os dois afastaram-se a passo, enquanto d'Artagnan guardava o rapaz como se fosse seu filho, a caminho da rue Tiquetonne.

Durante todo o trajeto se ouviram surdos murmúrios e ameaças distantes; mas, à vista do militar de porte tão marcial, à vista da espada formidável que lhe pendia do pulso, presa pelo fiador, o povo se afastava e não arriscou nenhuma tentativa séria contra os dois cavaleiros.

Chegaram, portanto, sem novidade, à hospedaria de la Chevrette.

A formosa Madalena anunciou a d'Artagnan que Planchet estava de volta e trouxera Mousqueton, que suportara heroicamente a extração da bala e se encontrava tão bem quanto lhe permitia o seu estado.

D'Artagnan ordenou que lhe mandassem Planchet; mas, por mais que o chamassem, Planchet não respondeu: desaparecera.

— Trazei-me vinho, então — disse d'Artagnan.

E quando lhe trouxeram o vinho e ele se viu a sós com Raul:

— Estás muito satisfeito com o que fizeste, não é verdade? — perguntou, com os olhos fitos nos olhos do rapaz.

— Naturalmente — disse Raul; — parece-me que fiz o meu dever. Não defendi o Rei?

— E quem te disse para defenderes o Rei?

— O próprio Sr. Conde de La Fere.

— O Rei, sim; mas hoje não defendeste o Rei, defendeste Mazarino, que não é a mesma coisa.

— Mas, senhor...

— Praticaste uma enormidade, jovem, e meteste o nariz onde ninguém te chamava.

— Entretanto, vós mesmo...

— Comigo é outra coisa; preciso obedecer às ordens do meu capitão. Mas o teu capitão é o Sr. Príncipe. Não tens outro. Onde já se viu — continuou d'Artagnan — um cabeçudo assim fazer-se mazarinista e ajudar a prender Broussel! Pelo menos, não digas palavra sobre isso, que o Sr. Conde de La Fere ficaria furioso.

— Acreditais que o Sr. Conde de La Fere ficaria zangado comigo?

— Se acredito! Tenho absoluta certeza; não fosse isso e eu até te agradeceria, pois, afinal, trabalhaste por nós. Por isso mesmo, ralho-te em seu nome e lugar; a tempestade será mais branda, acredita. De mais a mais — ajuntou d'Artagnan — estou valendo, meu filho, do privilégio que o teu tutor me concedeu.

— Não vos compreendo, senhor — disse Raul.

D'Artagnan levantou-se, foi à secretária, pegou numa carta e mostrou-a.

Assim que Raul percorreu o papel, toldou-se-lhe a vista.

— Oh! meu Deus — disse ele erguendo os formosos olhos úmidos de lágrimas para d'Artagnan — o Sr. Conde saiu de Paris sem me ver?

— Faz quatro dias que partiu — replicou d'Artagnan.

— Mas a sua carta parece indicar que corre perigo de morte.

— Pois sim! Ele, correr perigo de morte? Fica descansado: viaja a negócios e logo voltará; espero que não te repugne aceitar-me por tutor interino...

— Oh! não, Sr. d'Artagnan — disse Raul — sois um fidalgo tão corajoso e o Sr. Conde de La Fere gosta tanto de vós!

— Pois, então, gosta também de mim; não te azoarei, mas com uma condição: sê frondista, meu jovem amigo, muito frondista.

— Poderei continuar a ver a Sra. de Chevreuse?

— Como não! E também o Sr. Coadjutor, e a Sra. de Longueville, e se Mestre Broussel, para cuja prisão tão estouvadamente contribuíste, estivesse aqui, eu te diria: Apresenta imediatamente as tuas desculpas ao Sr. Broussel e beija-o nas duas faces.

— Está bem, senhor; obedecerei, embora não vos compreenda.

— Não precisas compreender-me. Vê — continuou d'Artagnan voltando-se para a porta que acabavam de abrir — aí vem o Sr. Du Vallon com as roupas rasgadas.

— Sim, mas em troca — disse Porthos inundado de suor e imundo de pó — em troca rasguei muita pele por aí. Os bigorrilhas queriam tirar-me a espada! Peste! Que comoção popular! — continuou o gigante com o seu ar tranqüilo; — garanto que derrubei mais de vinte com o punho de Belisarda... Um dedo de vinho, d'Artagnan.

— Fio-me de ti — volveu o gascão enchendo até os bordos o copo de Porthos; — depois que tiveres bebido, dize-me a tua opinião.

Porthos bebeu o vinho de um trago; e, quando o depôs sobre a mesa e chupou os bigodes:

— Sobre o quê? — perguntou.

— Aqui está o Sr. de Bragelonne que queria, a todo transe, ajudar a prender Broussel e que me custou impedir que defendesse o Sr. de Comminges!

— Peste! — exclamou Porthos; — que diria o tutor se soubesse disso?

— Estás vendo? — interrompeu d'Artagnan; — sê frondista à vontade, meu amigo, sê frondista e não te esqueças de que substituo em tudo o Sr. Conde.

E fez tilintar a bolsa.

Logo, voltando-se para o companheiro:

— Queres acompanhar-me, Porthos?

— Aonde? — perguntou Porthos, servindo-se de outro copo de vinho.

— Vamos apresentar as nossas homenagens ao Cardeal.

Porthos emborcou o segundo copo com a mesma tranqüilidade com que empinara o primeiro, pegou no chapéu, que tinha colocado sobre uma cadeira, e seguiu d'Artagnan.

Quanto a Raul,'ficou pasmado com o que via, pois d'Artagnan o proibira de sair do quarto enquanto não serenasse a agitação.

 

O MENDIGO DE SAINT-EUSTACHE

 

Calculista, não quisera d'Artagnan apresentar-se imediatamente no Palais-Royal: concedera a Comminges tempo suficiente para chegar antes dele e, por conseguinte, dar conta ao Cardeal dos serviços eminentes que ele, d'Artagnan, e seu amigo haviam prestado ao partido da Rainha.

Daí que fossem os dois admiravelrnente recebidos por Mazarino, que lhes fez uma série de cumprimentos e lhes anunciou que já se encontravam a mais de metade do caminho de suas pretensões: isto é, d'Artagnan do posto de capitão, Porthos do título de barão.

D'Artagnan teria preferido dinheiro a tudo isso, pois sabia que Mazarino prometia facilmente mas dificilmente cumpria; considerava, portanto, as promessas do Cardeal como ilusórias; mas nem por isso pareceu menos satisfeito diante de Porthos, que não queria desanimar.

Enquanto os dois amigos eram recebidos pelo Cardeal, a Rainha mandou chamá-lo. O Cardeal julgou que seria um meio de redobrar o zelo de seus dois defensores propiciar-lhes os agradecimentos pessoais de Sua Majestade; fez-lhes sinal que o seguissem. D'Artagnan e Porthos mostraram-lhe as roupas rasgadas e cheias de pó, mas a Cardeal sacudiu a cabeça.

— Esses trajos — disse ele — valem mais que os da maioria dos cortesãos que cercam a Rainha, pois são trajos de batalha.

D'Artagnan e Porthos obedeceram.

A corte de Ana d'Áustria estava animada e ruidosa porque, afinal de contas, depois de haver conseguido uma vitória sobre o espanhol, acabava de obter uma vitória sobre o povo. Broussel fora levado para fora de Paris sem resistência e devia estar, àquela hora, nas prisões de Saint-Germain; e Blancmesnil, preso ao mesmo tempo, mas cuja detenção se processara sem ruído e sem dificuldades, fora trancafiado no castelo de Vincennes.

Achava-se Comminges ao pé da Rainha, que o interrogava sobre os pormenores da expedição; e todos lhe ouviam a narrativa, quando ele avistou na soleira da porta, atrás do Cardeal, d'Artagnan e Porthos.

— Oh! senhora — exclamou, correndo para d'Artagnan — eis aqui a pessoa que pode contar-vos isto melhor do que eu, pois foi o meu salvador. Sem ele, provavelmente, eu estaria neste momento preso nas redes de Saint-Cloud, pois o povo queria apenas atirar-me ao rio. Fala, d'Artagnan, fala.

Desde que era tenente de mosqueteiros, d'Artagnan já se vira cem vezes, talvez, no mesmo aposento com a Rainha, mas esta jamais lhe dirigira a palavra.

— Então, senhor, depois de me haverdes prestado tamanho serviço, permaneceis calado? — perguntou Ana d'Áustria.

— Senhora — replicou d'Artagnan — não posso dizer nada senão que a minha vida está ao dispor de Vossa Majestade, e que só serei feliz no dia em que a perder a serviço de Vossa Majestade.

— Eu sei disso, eu sei disso — tornou a Rainha — e há muito tempo. Eis por que folgo em dar-vos esta pública demonstração de minha estima e do meu reconhecimento.

— Permita Vossa Majestade — disse d'Artagnan — que eu transfira parte ao meu amigo, antigo mosqueteiro da companhia de Tréville, como eu (e deu maior ênfase a essas palavras), e que fez maravilhas.

— Como se chama este senhor? — perguntou a Rainha.

— Entre os mosqueteiros — respondeu d'Artagnan — chamava-se Porthos (a Rainha estremeceu), mas o seu verdadeiro nome é Cavaleiro du Vallon.

— De Bracieux de Pierrefonds — emendou Porthos.

— Esses nomes são muito numerosos para que me lembre de todos; prefiro lembrar-me apenas do primeiro — disse graciosamente a Rainha.

Porthos cumprimentou. D'Artagnan deu dois passos para trás.

Nesse momento foi anunciado o Coadjutor.

Ouviu-se um grito de surpresa na real assembléia. Se bem o Sr. Coadjutor houvesse pregado naquela manhã, sabia-se que nutria grandes simpatias pela Fronda; e pedindo ao Sr. Arcebispo de Paris que fizesse pregar o sobrinho, tivera Mazarino, evidentemente, a intenção de ferir o Sr. de Retz com um desses golpes à italiana que tanto o divertiam.

Com efeito, ao sair de Notre-Dame, o Coadjutor soubera da novidade. Embora estivesse mais ou menos comprometido com os principais frondistas, não o estava tanto que não pudesse bater em retirada se a Corte lhe oferecesse as vantagens que ele ambicionava e das quais a coadjutoria era apenas o começo. O Sr. de Retz queria ser arcebispo, no lugar do tio, e cardeal, como Mazarino. Ora, o partido popular dificilmente poderia conceder-lhe esses favores, todos reais. Dirigia-se, portanto, a palácio a fim de cumprimentar a Rainha pela batalha de Lens, decidido a colocar-se a favor da Corte ou contra ela conforme fossem os cumprimentos bem ou mal recebidos.

Foi, portanto, anunciado o Coadjutor; ele entrou e, à sua entrada, a Corte triunfante redobrou de curiosidade para ouvir-lhe as palavras.

Sozinho, tinha o Coadjutor quase tanto espírito quanto toda aquela gente ali reunida para escarnecê-lo. Por isso mesmo falou com tanta habilidade que, apesar da gana que sentiam os presentes de chasqueá-lo, não encontraram a necessária deixa. O Sr. de Retz concluiu dizendo que punha os seus fracos préstimos a serviço de Sua Majestade.

A Rainha pareceu, durante todo o tempo, apreciar muitíssimo a arenga do Sr. Coadjutor; mas, rematada a parlenda com essa frase, a única que se prestava a remoques, Ana voltou-se e, dirigindo um olhar aos favoritos, entregou-lhes o prelado. Imediatamente os engraçadinhos da Corte se atiraram à presa. Nogent-Beautin, o bufão da casa, exclamou que a Rainha folgava muito de encontrar os socorros da religião em semelhante oportunidade.

Todos abriram a rir.

O Conde de Villeroy, por sua vez, afirmou que não sabia como explicar os temores da Corte, que tinha para defendê-la contra o Parlamento e os burgueses de Paris o Sr. Coadjutor, que, com um aceno, poderia levantar um exército de curas, suíços e sacristãos.

O Marechal de La Meilleraie ajuntou que, iniciada a luta e caso viesse o Sr. Coadjutor a participar da refrega, seria muito de lastimar que ele não pudesse ser reconhecido por um chapéu vermelho no aceso da peleja como o fora Henrique IV pela pluma branca na batalha de Ivry.

Diante dessa tempestade que ele poderia tornar mortal para os motejadores, Gondy permaneceu calmo e severo. A Rainha perguntou-lhe se tinha alguma coisa para acrescentar ao belo discurso que acabava de fazer-lhe.

— Tenho, senhora — replicou o Coadjutor — quero pedir a Vossa Majestade que reflita duas vezes antes de desencadear a guerra civil.

A Rainha voltou-lhe as costas e as risadas recomeçaram.

O Coadjutor cumprimentou e saiu do palácio atirando ao Cardeal, que o observava, um desses olhares que se compreendem entre inimigos mortais. Tão acerado era ele que penetrou até o imo do coração de Mazarino, e este, compreendendo que se tratava de uma declaração de guerra, pegou no braço de d'Artagnan e disse-lhe:

— Se for preciso, senhor, sabereis reconhecer este homem que acaba de sair?

— Sim, Monsenhor — respondeu o interpelado. Depois, voltando-se para Porthos:

— Diabo! — disse ele — as coisas se estragam; não gosto de brigas entre gente da Igreja.

Gondy retirou-se semeando bênçãos à sua passagem e entregando-se ao malicioso prazer de fazer cair a seus pés os servidores de seus inimigos.

— Oh! — murmurou, transpondo o limiar do palácio — Corte ingrata, Corte pérfida, Corte covarde! Eu te ensinarei a rir amanhã, mas em outro tom.

Ao passo que se entregavam os áulicos a tais extravagâncias de alegria no Palais-Royal para maior hilaridade da Rainha, Mazarino, homem sensato, e que possuía, aliás, a previdência do medo, não perdia tempo em vãs e perigosas brincadeiras: saindo atrás do Coadjutor, fizera as suas contas, trancara o seu ouro e mandara fazer, por operários de confiança, pequenos esconderijos nas paredes.

Ao voltar para casa, soube o Coadjutor que um rapaz, chegado após a sua partida, esperava-o; perguntou o nome do visitante e estremeceu de alegria ao saber que se chamava Louvières.

Correu para o' gabinete; com efeito, o filho de Broussel ainda furioso e ensangüentado em conseqüência da luta que travara com a gente de El-Rei, estava à sua espera. A única precaução que tomara ao dirigir-se ao Arcebispado fora deixar o arcabuz em casa de um amigo.

O Coadjutor adiantou-se e estendeu-lhe a mão. O rapaz considerou-o como se quisesse ler-lhe no íntimo do coração.

— Meu caro Sr. Louvières — disse o Coadjutor — crede que lamento sinceramente a desgraça que vos sucedeu.

— É verdade e falais sério? — perguntou Louvières.

— De coração — respondeu Gondy.

— Nesse caso, Monsenhor, o tempo das palavras já passou e chegou o momento de agir; se o quiserdes, daqui a três dias meu pai estará livre e daqui a seis meses sereis cardeal.

O Coadjutor estremeceu.

— Oh! falemos com franqueza — disse Louvières — e ponhamos as cartas na mesa. Não se distribuem trinta mil escudos de esmolas como o fizestes nos últimos seis meses por simples caridade cristã; seria belo demais. Sois ambicioso, é muito simples; sois um homem de gênio e conheceis o próprio valor. Eu odeio a Corte e só tenho neste momento um desejo, o de vingar-me. Dai-nos o clero e o povo, de que dispondes; eu vos darei o burguesia e o Parlamento; com esses quatro elementos, em oito dias Paris será nossa, e, crede-me, Sr. Coadjutor, a Corte dará por medo o que não daria por benevolência.

O Coadjutor, por seu turno, fitou em Louvières o olhar penetrante.

— Mas, Sr. Louvières, sabeis que me propondes, nem mais nem menos, a guerra civil?

— Faz muito tempo que a preparais, Monsenhor; ela só vos poderá ser benvinda.

— Não importa — volveu o Coadjutor — haveis de compreender que uma coisa dessas demanda reflexão.

— Quantas horas vos serão precisas?

— Doze. É demais?

— É meio-dia; à meia-noite estarei de volta.

— Se eu não tiver regressado, esperai-me.

— Ótimo. Até à meia-noite, Monsenhor.

— Até à meia-noite, meu caro Sr. Louvières.

Ficando só, Gondy mandou chamar todos os curas com os quais mantinha relações. Duas horas depois, reunira trinta pastores das paróquias mais populosas e, portanto, mais turbulentas de Paris.

Gondy referiu-lhes o insulto que acabava de sofrer no Palais-Royal e repetiu-lhes os gracejos de Beautin, do Conde de Villeroy e do Marechal de La Meilleraie. Os curas perguntaram-lhe o que deviam fazer.

— É muito simples — disse o Coadjutor; — dirigis as consciências; pois bem: solapai nelas o miserável preconceito do medo e do respeito aos reis; ensinai às vossas ovelhas que a Rainha é uma tirana e repeti tanto e tão forte que todos fiquem sabendo, que as desgraças de França vêm do Mazarino, seu amante e corruptor; começai a obra hoje mesmo e, dentro em três dias, quero ver o resultado. Além disso, se algum de vós tem um bom conselho para dar-me, fique, que o escutarei com prazer.

Três curas ficaram: o de Saint-Merri, o de Saint-Sulpice e o de Saint-Eustache.

Retiraram-se os outros.

— Achais que podeis ajudar-me ainda mais eficazmente do que os vossos confrades? — perguntou Gondy.

— Assim o esperamos — responderam os três.

— Vejamos, Sr. Vigário de Saint-Merri, começai.

— Tenho na minha paróquia, Monsenhor, um homem que poderia ser para vós da maior utilidade.

— Que homem é esse?

— Um comerciante da rue des Lombards, que exerce grande influência sobre o pequeno comércio do seu bairro.

— Como se chama?

— É um tal Planchet: ele sozinho fez um motim há umas seis semanas atrás; mas, depois do motim, como quisessem prendê-lo, sumiu.

— E podereis encontrá-lo?

— Espero que sim, pois não creio que tenha sido preso; e como sou confessor da mulher dele, se ela souber onde está o marido, eu também saberei.

— Pois bem, Sr. Vigário, procurai-me esse homem e, se o encontrardes, trazei-mo.

— A que horas, Monsenhor?

— Às seis, está bem?

— Aqui estaremos às seis horas. Monsenhor.

— Ide, meu caro pároco, ide, e Deus vos ajude. O cura saiu.

— E vós, senhor? — perguntou Gondy voltando-se para o cura de Saint-Sulpice.

— Eu, Monsenhor — redargüiu o interpelado — conheço um homem que prestou grandes serviços a um príncipe muito popular, que seria um excelente chefe de revoltados e que posso colocar à vossa disposição.

— Como se chama esse homem?

— O Sr. Conde de Rochefort.

— Também o conheço; mas, infelizmente, não está em Paris.

— Está, Monsenhor, na rue Cassette.

— Desde quando?

— Há três dias.

— E por que não veio ver-me?

— Disseram-lhe... Monsenhor me perdoará...

— Sem dúvida; dizei.

— Que Monsenhor estava para entender-se com a Corte.

Gondy mordeu os lábios.

— Enganaram-no; trazei-mo às oito horas, Sr. Vigário, e Deus vos abençoe com eu vos abençôo!

O segundo cura inclinou-se e saiu.

— Agora é a vossa vez — disse o Coadjutor voltando-se para o último que ficara. — Tendes coisa tão boa para oferecer-me quanto esses dois senhores que nos deixaram?

— Melhor, Monsenhor.

— Diabo! Prestai atenção, que assumis um terrível compromisso: um me ofereceu um comerciante, o outro me ofereceu um conde; pretendeis oferecer-me um príncipe, por acaso?

— Vou oferecer-vos um mendigo, Monsenhor.

— Ah! ah! — exclamou Gondy, refletindo — tendes razão, Sr. Cura; alguém que sublevasse a legião de pobres que atulham os becos de Paris e os ensinasse a gritar, tão alto que a França toda os ouvisse, que foi o Mazarino o autor da sua mendicidade.

— Tenho precisamente o homem que vos convém.

— Bravo! E quem é ele?

— Um simples mendigo, como já vos disse, Monsenhor, que pede esmolas oferecendo água benta na escada da igreja de Saint-Eustache, há cerca de seis anos.

— E dizeis que tem grande influência sobre os seus semelhantes?

— Sabíeis, Monsenhor, que os mendigos constituem um corpo organizado, uma espécie de associação dos que não têm contra os que têm, uma associação para a qual todos contribuem com a sua parte, e que obedece a um chefe?

— Sim, já ouvi falar nisso — tornou o Coadjutor.

— Pois bem! Esse homem que vos ofereço é uma espécie de síndico geral.

— E que sabeis a seu respeito?

— Nada, Monsenhor, a não ser que me parece atormentado por algum remorso.

— Por quê?

— Porque todo dia 28 de cada mês, manda-me dizer missa pelo repouso da alma de uma pessoa que morreu de morte violenta: ainda ontem lhe rezei a missa.

— E vós o chamais?

— Maillard; mas não creio que seja o verdadeiro nome.

— E acreditais que, a esta hora, o encontraríamos em seu posto?

— Perfeitamente.

— Vamos ver o vosso mendigo, Sr. Cura; e se ele for como dizeis, tendes razão: descobristes o verdadeiro tesouro.

Gondy vestiu-se de cavaleiro, pôs na cabeça um chapelão com uma pluma vermelha, cingiu uma espada comprida, colocou esporas nas botas, envolveu-se num largo manto e seguiu o Cura.

O Coadjutor e seu companheiro atravessaram todas as ruas que separam o Arcebispado da igreja de Saint-Eustache, examinando com cuidado o espírito do povo, que estava agitado, mas, como enxame de abelhas assustadas, parecia não saber onde pousar, e, evidentemente, se não encontrasse chefes que o dirigissem, tudo ficaria em zumbidos.

Chegando à rue des Provaires, o Vigário estendeu a mão para o adro da igreja.

— Vede — disse ele — ei-lo em seu posto.

Gondy olhou para o sítio indicado e avistou um pobre sentado numa cadeira e encostado numa das molduras; tinha ao pé de si um baldezinho e segurava um aspersório na mão.

— É por algum privilégio — perguntou Gondy — que ele está aí?

— Não, Monsenhor — respondeu o Cura — comprou do predecessor o lugar de ofertante de água benta.

— Comprou?

— Sim, esses lugares se compram; se não me engano, pagou pelo seu cem pistolas.

— Então é rico o tratante?

— Alguns desses homens morrem deixando, às vezes, vinte mil, vinte e cinco mil, trinta mil libras e até mais.

— Hum! — disse Gondy, dando risada — nunca supus que empregasse tão bem as minhas esmolas.

Entretanto, adiantavam-se os dois para o adro; no momento em que o Cura e o Coadjutor puseram o pé no primeiro degrau da escada, o mendigo levantou-se e estendeu o hissope.

Era um homem de sessenta e seis a sessenta e oito anos, pequeno, atarracado, de cabelos grisalhos e olhos fulvos. Estampava-se-lhe no rosto a luta entre dois princípios opostos, uma natureza má subjugada pela vontade, talvez até pelo arrependimento.

Vendo o cavaleiro que acompanhava o Cura, estremeceu levemente e considerou-o com ar espantado.

O Cura e o Coadjutor tocaram o aspersório com a ponta dos dedos e fizeram o sinal da cruz; o Coadjutor atirou uma moeda de prata no chapéu que estava no chão.

— Maillard — disse o Cura — viemos, este senhor e eu, conversar um pouco contigo.

— Comigo! — tornou o mendigo; — é muita honra para um pobre ofertante de água benta.

Notava-se na voz do pobre um tom de ironia que ele não pôde dominar completamente e que espantou o Coadjutor.

— Sim — continuou o Cura, que parecia habituado a esse tom — sim, nós quisemos saber o que pensas dos acontecimentos de hoje, e o que ouviste dizer às pessoas que entram e saem da igreja.

O mendigo sacudiu a cabeça.

— Tristes acontecimentos, Sr. Cura, e que, como sempre, recaem sobre o pobre povo. Quanto ao que se diz, todos estão descontentes, todos se queixam, mas quem diz todos diz ninguém.

— Explicai-vos, meu caro amigo — sobreveio o Coadjutor.

— Digo que esses gritos, essas queixas, essas maldições produzirão apenas uma tempestade e alguns coriscos, nada mais; o raio só fulminará quando tiver um chefe que o dirija.

—Meu amigo — disse Gondy — vós me pareceis um homem hábil; estaríeis disposto a meter-vos numa guerrinha civil se esta viesse a desencadear-se e a colocar à disposição desse chefe, se o encontrássemos, o vosso poder pessoal e a influência que exerceis sobre os vossos camaradas?

— Sim, senhor, contanto que a guerra fosse aprovada pela Igreja e, por conseguinte, pudesse levar-me ao fim que almejo, isto é, a remissão dos meus pecados.

— A guerra será não só aprovada mas também dirigida por ela. Quanto à remissão de vossos pecados, temos o Sr. Arcebispo de Paris, que dispõe de grandes poderes na corte de Roma, e o próprio Sr. Coadjutor, que pode conceder indulgências plenárias; nós vos recomendaremos a ele.

— Reflete, Maillard — disse o Cura — que fui eu quem te recomendou a este senhor, fidalgo todo-poderoso e, de certo modo, me responsabilizei por ti.

— Eu sei, Sr. Cura — tornou o mendigo — que sempre Fostes muito bom para mim; por isso, de minha parte, estou plenamente disposto a ser-vos agradável.

— E acreditais que o vosso poder seja tão grande quanto há pouco me garantiu o Sr. Cura?

— Creio que os companheiros me dedicam certa estima — redargüiu o mendigo com orgulho — e não somente farão o que eu lhes ordenar, mas também me seguirão aonde quer que eu vá.

— E podereis responder-me por cinqüenta homens bem resolutos, boas almas ociosas e bem intencionadas, berradores capazes de fazer cair os muros do Palais-Royal gritando "Morra Mazarino!" como caíram outrora as muralhas de Jerico?

— Creio — retrucou o mendigo — que posso ser encarregado de coisas mais difíceis e mais importantes ainda.

— Ah! ah! — voltou Gondy — poderíeis encarregar-vos de erguer, numa noite, uma dezena de barricadas?

— Eu me encarregarei de erguer cinqüenta e, quando raiar o dia, de defendê-las.

— Por Deus! — disse de Gondy — falais com uma confiança que me agrada, e já que o Sr. Cura responde por vós...

— Respondo — confirmou o Cura.

— Eis aqui um saco com quinhentas pistolas de ouro. Tomai todas as vossas disposições e dizei-me onde poderei rever-vos esta noite às dez horas.

— É preciso que seja um lugar elevado, onde qualquer sinal possa ser visto de todos os bairros de Paris.

— Queres que eu te recomende ao vigário de Saint-Jacques-la-Boucherie? Ele te introduzirá numa das salas da torre — acudiu o Cura.

— Magnífico — aprovou o mendigo.

— Portanto — disse o Coadjutor — até às dez da noite; e se eu ficar satisfeito convosco, estará à vossa disposição outro saco de quinhentas pistolas.

Os olhos do mendigo brilharam de cupidez, mas ele reprimiu essa emoção.

— Esta noite, senhor — declarou — estará tudo pronto. E tornou a levar a cadeira para a igreja, colocou perto da cadeira o balde e o hissope, tirou água benta da pia, como se não confiasse na sua, e saiu da igreja.

 

A TORRE DE SAINT-JACQUES-LA-BOUCHERIE

 

Faltava um quarto para as seis quando o Sr. de Gondy, tendo feito tudo o que tinha que fazer, voltou ao Arcebispado.

Às seis horas foi anunciado o Cura de Saint-Merri.

O Coadjutor considerou-o rapidamente e notou que outro homem o seguia.

— Fazei-o entrar — ordenou.

Entrou o Cura, acompanhado de Planchet.

— Monsenhor — disse o Cura de Saint-Merri — eis aqui a pessoa de que tive a honra de falar-vos.

Planchet cumprimentou com o ar de um freqüentador de boas casas.

— E estais disposto a servir a causa do povo? — perguntou Gondy.

— Como não! — retrucou Planchet: — sou frondista de coração. Tal como me vedes, Monsenhor, estou condenado à forca.

— E como foi isso?

— Arranquei das mãos dos guardas de Mazarino um nobre senhor que reconduziam à Bastilha, onde ele se achava havia cinco anos.

— E como se chama?

— Oh! vós o conheceis, Monsenhor: é o Conde de Rochefort.

— Ah! sim, sim! — disse o Coadjutor — ouvi falar nisso: sublevastes o bairro inteiro, segundo me disseram?

— Mais ou menos — confessou Planchet com certa ufania.

— Qual é a vossa profissão?

— Sou confeiteiro, na rue des Lombards.

— Explicai-me como se dá que, exercendo profissão tão pacífica, sejam tão belicosas as vossas inclinações?

— E como se dá que vós, Monsenhor, pertencendo à Igreja, estejais vestido de cavaleiro, com uma espada à cinta e esporas nas botas?

— Bem respondido, de fato — conveio Gondy, casquinando uma risada; — mas o caso é que sempre tive, apesar do cabeção, inclinações guerreiras.

— Pois bem, Monsenhor, antes de ser confeiteiro, fui durante três anos sargento do regimento do Piemonte, e antes de ser sargento do regimento do Piemonte, fui, durante dezoito meses, lacaio do Sr. d'Artagnan.

— O tenente dos mosqueteiros? — perguntou Gondy.

— Exatamente, Monsenhor.

— Mas dizem que ele é mazarinista ferrenho!

— Bem... — hesitou Planchet.

— Que quereis dizer?

— Nada, Monsenhor. O Sr. d'Artagnan está na ativa; a sua profissão consiste em defender Mazarino, que lhe paga, como a nossa profissão, isto é, a dos burgueses, consiste em atacar Mazarino, que nos rouba.

— Sois um rapaz inteligente, meu amigo. Podemos contar convosco?

— Eu supunha — disse Planchet — que o Sr. Cura houvesse respondido por mim.

— De fato; mas quero sabê-lo de vossa própria boca.

— Podeis contar comigo, Monsenhor; se é que se trata de provocar um motim na cidade.

— É disso precisamente que se trata. Quantos homens calculais poder reunir durante a noite?

— Duzentos mosquetes e quinhentas alabardas.

— Bastaria que houvesse um homem em cada bairro que fizesse o mesmo e amanhã teríamos um formidável exército.

— Sem dúvida.

— Estaríeis disposto a obedecer ao Conde de Rochefort?

— Eu o seguiria até ao inferno; e já não é dizer pouco, pois julgo-o capaz de ir até lá!

— Bravo!

— Por que sinal se poderão distinguir amanhã os amigos dos inimigos?

— Todo frondista porá um laço de palha no chapéu.

— Muito bem.

— Tendes precisão de dinheiro?

— O dinheiro nunca é demais, Monsenhor; quando não o temos, paciência; mas quando o temos, as coisas andam melhor e mais depressa.

Gondy aproximou-se de um cofre e dele retirou um saco.

Aqui estão quinhentas pistolas — declarou; — se tudo correr bem, contai amanhã com outra soma igual.

— Eu vos prestarei fielmente contas dessa quantia, Monsenhor — prometeu Planchet, metendo o saco debaixo do braço.

— Está bem, recomendo-vos o Cardeal.

— Ficai tranqüilo, que ele se acha em boas mãos. Planchet saiu e o Cura demorou-se um pouco mais.

— Estais satisfeito, Monsenhor? — perguntou.

— Estou, esse homem me parece decidido.

— Pois fará mais do que prometeu.

— Melhor ainda.

E o Cura alcançou Planchet, que o esperava na escada. Dez minutos depois anunciava-se o Cura de Saint-Sulpice.

Assim que se abriu a porta do gabinete de Gondy, um homem precipitou-se. Era o Conde de Rochefort.

— Sois vós, meu caro Conde! — exclamou de Gondy estendendo-lhe a mão.

— Estais, enfim, decidido, Monsenhor? — perguntou Rochefort.

— Sempre estive — disse Gondy.

— Não falemos nisso; vós o dizeis, eu o creio; vamos oferecer um baile ao Mazarino.

— Espero que sim...

— E quando começarão as contra danças?

— Os convites foram feitos para esta noite — disse o Coadjutor — mas os violinos só começarão a tocar amanhã cedo.

— Podeis contar comigo e com cinqüenta soldados que me prometeu o Cavaleiro d'Humières.

— Cinqüenta soldados?

— Sim; ele andou recrutando gente e empresta-me os recrutas; se faltar algum ao terminar a festa, eu o substituirei.

— Bem, meu caro Rochefort; mas isso não é tudo.

— Que é que falta? — perguntou Rochefort, sorrindo.

— Que fizestes do Sr. de Beaufort?

— Está no Vendômois, onde espera que eu lhe escreva para voltar a Paris.

— Escrevei-lhe, que já é tempo.

— Tendes, então, certeza do negócio?

— Sim, mas é preciso que ele se apresse; pois assim que o povo de Paris se revoltar, teremos dez príncipes dispostos a colocar-se à testa do movimento: se ele tardar, encontrará tomado o lugar.

— Posso avisá-lo de vossa parte?

— Perfeitamente.

— Posso dizer-lhe que deve contar convosco?

— Isso mesmo.

— E vós lhe entregareis todo o poder?

No tocante à guerra, sim; mas quanto à política...

— Sabeis que não é esse o seu forte.

— Ele me deixará negociar à vontade o chapéu de cardeal.

— Insistis nisso?

— Já que me obrigam a usar um chapéu de uma forma que não me convém — tornou Gondy — desejo ao menos que seja vermelho.

— Cores e gostos não se discutem — tornou Rochefort, a rir; — respondo pelo consentimento dele.

— E vós lhe escrevereis esta noite?

— Faço coisa melhor, mando-lhe um mensageiro.

— E em quantos dias poderá estar aqui?

— Em cinco dias.

— Pois ele que venha e encontrará as coisas mudadas.

— Assim o desejo.

— Eu vo-lo garanto.

— E então?

— Reuni os cinqüenta homens e estejai preparado.

— Para?

— Para o que der e vier.

— Há algum sinal de reunião?

— Um laço de 'palha no chapéu.

— Está bem. Adeus, Monsenhor.

— Adeus, meu caro Rochefort.

— Ah! Seu Mazarino, Seu Mazarino! — murmurou Rochefort arrastando o Cura consigo, que não encontrara meio de dizer uma palavra sequer em todo o diálogo — verá se já sou demasiado velho para ser um homem de ação!

Eram nove horas e meia, e o Coadjutor precisava de meia hora para ir do Arcebispado à torre de Saint-Jacques-la-Boucherie.

Uma luz velava numa das janelas mais altas da torre.

— Bem — disse ele — o nosso síndico está no posto.

Bateu, abriram-lhe. O próprio Vigário o esperava e conduziu-o, iluminando o caminho, até ao alto da torre; lá chegado, mostrou-lhe uma portinha, colocou o lampião num ângulo do muro para que o Coadjutor pudesse encontrá-lo ao sair, e desceu.

Embora a chave estivesse na fechadura, o Coadjutor bateu.

— Entrai — disse uma voz em que o Coadjutor reconheceu a do mendigo.

De Gondy entrou. Era, com efeito, o ofertante de água benta do adro de Saint-Eustache, que esperava, deitado sobre uma espécie de grabato.

Vendo surgir o Coadjutor, levantou-se.

Deram dez horas.

— E então? — perguntou Gondy — cumpriste o prometido?

— De todo, não — respondeu o mendigo.

— Como assim?

— Vós me pedistes quinhentos homens.

— Sim, e daí?

— Tereis dez mil.

— Sem gabolice?

— Quereis uma prova? — Quero.

Três velas ardiam diante de três janelas, uma que dava para a cidade, outra para o Palais-Royal e a terceira para a rue Saint-Denis.

O homem dirigiu-se em silêncio para cada uma das velas e apagou-as sucessivamente.

Viu-se o Coadjutor na escuridão, apenas quebrada pelos raios incertos da lua perdida entre grossas nuvens negras, cujos rebordos tingia de prata.

— Que fizeste? — volveu o Coadjutor.

— Dei o sinal.

— Qual?

— O das barricadas.

— Ah!

— Quando sairdes daqui vereis os meus homens trabalhando. Tomai cuidado para não quebrar a perna tropeçando em alguma corrente ou caindo num buraco.

— Muito bem! Eis aqui a soma, igual à que já recebeste. Lembra-te agora de que és chefe e não bebas.

— Faz vinte anos que só bebo água. O homem tirou o saco das mãos do Coadjutor, que ouviu o ruído das mãos remexendo e apalpando as moedas de ouro.

— Ah! ah! — observou o Coadjutor — és avaro, meu maroto.

O mendigo despediu um suspiro e lançou de si o saco.

— Serei, então, sempre o mesmo? — bradou. — Jamais conseguirei emendar-me? Õ miséria, ó vaidade!

— Entretanto, ficas com ele.

— Sim, mas prometo aplicar o que sobrar em obras pias. Tinha o rosto pálido e contraído como se acabasse de sofrer uma luta interior.

— Que homem singular! — murmurou Gondy.

Pegou no chapéu para sair, mas, ao voltar-se, viu o mendigo entre ele e a porta.

Cuidou que o homem quisesse atacá-lo.

Em vez disso, porém, viu-o juntar as mãos e cair de joelhos.

— Monsenhor — rogou o mendigo — antes de sair dai-me a vossa bênção, eu vos suplico.

— Monsenhor! — exclamou Gondy; — meu amigo, tu me tomas por outro.

— Não, Monsenhor, eu vos tomo pelo que sois, isto é, pelo Sr. Coadjutor; reconheci-vos desde a primeira vez.

Gondy sorriu.

— E queres a minha bênção?

— Sim, preciso dela.

O mendigo pronunciou essas palavras em tom de humildade tão grande e tão profundo arrependimento, que Gondy estendeu a mão sobre ele e deu-lhe a bênção com a maior unção de que era capaz.

— Agora — disse o Coadjutor — há comunhão entre nós. Eu te abençoei e tu me és sagrado, como eu, de minha parte, sou sagrado para ti. Vejamos, cometeste algum crime pelo qual te persegue a justiça humana e do qual eu possa defender-te?

O mendigo sacudiu a cabeça.

— O crime que cometi, Monsenhor, não depende da justiça humana e dele só me podereis livrar abençoando-me com freqüência, como acabastes de fazê-lo.

— Vejamos, sê franco — tornou o Coadjutor — não exerceste toda a vida o ofício que agora exerces?

— Não, Monsenhor, exerço-o há seis anos.

— Antes de exercê-lo, onde estavas? — Na Bastilha.

— E antes de ir para a Bastilha?

— Eu vo-lo direi, Monsenhor, no dia em que quiserdes ouvir-me de confissão.

— Está bem. Seja qual for a hora do dia ou da noite em que te apresentares, não te esqueças de que estou pronto para dar-te a absolvição.

— Obrigado, Monsenhor — volveu o mendigo com voz surda — mas ainda não estou pronto para recebê-la.

— Está bem. Adeus.

— Adeus, Monsenhor — disse o mendigo abrindo a porta e inclinando-se diante do prelado.

O Coadjutor pegou na vela, desceu e saiu, pensativo.

 

O MOTIM

 

Eram cerca de onze horas da noite. Gondy não tinha dado cem passos pelas ruas de Paris quando percebeu a estranha mudança que se operara.

Toda a cidade parecia habitada por seres fantásticos; sombras silenciosas descalçavam as ruas, outras arrastavam e derrubavam carroças, outras cavavam fossos capazes de engolir companhias inteiras de cavalaria. Todos esses personagens tão ativos iam, vinham, corriam, como demônios que executassem alguma obra desconhecida: eram os mendigos do pátio dos Milagres, eram os agentes do ofertante de água benta do adro de Saint-Eustache, que preparavam as barricadas do dia seguinte.

Gondy considerava esses homens no escuro, esses trabalhadores noturnos, com certo terror e perguntava a si mesmo se depois de ter feito sair todas aquelas criaturas imundas de seus fojos conseguiria fazê-los retornar a eles. Quando algum se aproximava, fazia menção de persignar-se.

Chegou à rue Saint-Honoré e seguiu-a na direção da rue de Ia Ferronnerie. Lá o aspecto era outro: negociantes corriam de loja em loja; as portas pareciam fechadas como os guarda-ventos; mas estavam apenas encostadas, de sorte que se abriam e fechavam num relance para permitir a entrada de homens que não queriam ser vistos com o que levavam; eram lojistas que, possuindo armas, emprestavam-nas a quem não as possuísse.

Um indivíduo ia de porta em porta, vergado sob o peso de arcabuzes, mosquetes, espadas, armas de toda casta, que distribuía. À luz de uma lanterna, o Coadjutor reconheceu Planchet.

Gondy voltou ao cais pela rue de Ia Monnaie; no cais, grupos de burgueses de capas pretas ou cinzentas, segundo pertenciam à alta ou à baixa burguesia, permaneciam imóveis, ao passo que indivíduos isolados iam de um grupo a outro. Todas as capas, pretas ou cinzentas, eram arregaçadas atrás pela ponta de uma espada ou na frente pelo cano de um arcabuz ou de um mosquete.

Chegando ao Pont-Neuf, o Coadjutor encontrou-o guardado; um homem aproximou-se.

— Quem sois? — perguntou o homem; — não vos reconheço por um dos nossos.

— Porque não reconheceis os amigos, meu caro Sr. Louvières — disse o Coadjutor erguendo o chapéu.

Louvières inclinou-se.

Gondy continuou o caminho e desceu até à torre de Nesle. Lá, viu uma longa fila de gente que andava cosida com os muros. Dir-se-ia uma procissão de fantasmas pois iam todos envoltos em mantos brancos. Chegados a determinado lugar, pareciam sumir como se a terra lhes faltasse debaixo dos pés. Gondy parou numa esquina e viu-os desaparecer desde o primeiro até o penúltimo.

O último ergueu os olhos para assegurar-se de que nem ele nem os companheiros tinham sido vistos, e, apesar da obscuridade, avistou o Coadjutor. Encaminhou-se diretamente para ele e encostou-lhe a pistola da garganta.

— Olá! Sr. de Rochefort — disse Gondy dando risada — não brinquemos com armas de fogo.

Rochefort reconheceu a voz.

— Ah! sois vós, Monsenhor?

— Eu mesmo. Que gente é essa que conduzis às entranhas da terra?

— Os cinqüenta recrutas do Cavaleiro d'Humières, que se preparam para ingressar na cavalaria ligeira e até agora só receberam, por equipamento, as capas brancas.

— E ides?

— À casa de um escultor amigo meu; mas descemos pelo alçapão por onde entram os seus mármores.

— Muito bem — disse Gondy.

E apertou a mão de Rochefort, que desceu por seu turno e fechou o alçapão.

O Coadjutor voltou para casa. Era uma hora da manhã. Abriu a janela e inclinou-se para escutar.

Ia por toda a cidade um rumor estranho, inaudito, desconhecido; a gente sentia que se passava em todas as ruas, escuras como abismos, algo de inusitado e terrível. De tempos a tempos se ouvia um rosnar semelhante ao da tempestade que se arma ou da maré que sobe; mas nada de claro, nada de preciso, nada de explicável se apresentava ao espírito: dir-se-iam os rumores misteriosos e subtérreos que precedem os terremotos.

A obra da revolta durou toda a noite. No dia seguinte, ao despertar, Paris pareceu estremecer ao próprio aspecto. Lembrava uma cidade assediada. Homens armados guardavam barricadas com olhares ameaçadores e mosquete no ombro; senhas, patrulhas, prisões, e até execuções, eis o que o transeunte encontrava a cada passo. Detinham-se os chapéus emplumados e as espadas douradas para obrigá-los a gritar: Viva Broussel! Morra Mazarino! e quem quer que se recusasse a essa cerimônia era apupado, chasqueado e até surrado. Ainda não se matara ninguém, mas era manifesto que vontade para isso não faltava.

As barricadas haviam-se erguido até nas proximidades do Palais-Royal. Da rue des Bons-Enfants até à rue de la Ferronnerie, da rue Saint-Thomas-du-Louvre ao Pont-Neuf, da rue Richelieu à porta de Saint-Honoré, contavam-se mais de dez mil homens armados, e os mais afoitos gritavam desafios às sentinelas impassíveis do regimento dos guardas colocados em torno do Palais-Royal, cujos portões tinham sido fechados atrás deles, precaução que lhes tornava precária a situação. No meio de tudo isso circulavam, em grupos de cem, de cento e cinqüenta, de duzentos, homens magros, lívidos, esfarrapados, carregando umas espécies de estandartes em que se liam estas palavras: Contemplai a miséria do povo! Por toda a parte onde passava essa gente se ouviam gritos frenéticos; e havia tantos grupos semelhantes que os gritos se generalizavam.

O espanto de Ana d'Áustria e de Mazarino foi grande quando, ao se levantarem, receberam a notícia de que a cidade, que na véspera adormecera tranqüila, despertara febril e alvorotada; nem uma nem o outro quiseram, por isso mesmo, dar crédito às informações trazidas, dizendo que só acreditariam no que vissem os seus olhos, e no que ouvissem os seus ouvidos. Abriu-se uma janela: ambos viram, ouviram e convenceram-se.

Mazarino encolheu os ombros e fingiu desprezar a arraia-miúda, mas empalideceu visivelmente e correu para o gabinete, guardando o ouro e as jóias nos esconderijos e enfiando nos dedos os brilhante mais belos. Furiosa e entregue à sua vontade, mandou a. Rainha chamar o Marechal de La Meilleraie, ordenou-lhe que reunisse quantos homens quisesse e fosse ver que brincadeira era aquela (46).

(46) Primo-irmão de Richelieu, neto de tabelião, huguenote convertido, alteres dos guardas de Maria de Médicis, o Marechal de La Meilleraie herdara do sogro o cargo de grão-mestre da artilharia. Era um homem íntegro, honesto, insuspeito, mas tirânico e violento. Quando Mazarino se viu obrigado, ante o clamor popular, a demitir o Superintendente d'Emery, confiou o cargo ao Marechal. Este, porém, a despeito de suas virtudes, pouco entendia de finanças e não justificou a substituição. (N. do T.)

 

Aventuroso e temerário de seu natural e votando à plebe o alto desprezo que por ela professavam os fidalgos, reuniu o Marechal cento e cinqüenta homens e quis sair pela ponte do Louvre, mas lá encontrou Rochefort e os cinqüenta cavalarianos, acompanhados de mais de mil e quinhentas pessoas. Não havia meio de forçar uma barreira daquelas. O Marechal nem sequer o tentou e subiu novamente o cais.

No Pont-Neuf encontrou Louvières e os burgueses. Dessa feita tentou carregar, mas foi recebido a tiros de mosquete, ao passo que as pedras caíam como granizo de todas as janelas. Lá deixou três homens.

Bateu em retirada para o bairro do Mercado, onde encontrou Planchet e os alabardeiros. As alabardas se deitaram, ameaçadoras, na sua direção; quis passar por cima das capas cinzentas, mas estas não se deixaram intimidar e o Marechal recuou para a rue Saint-Honoré, largando no chão quatro guardas, que tinham sido mortos mansamente a cutiladas.

Meteu-se então pela rue Saint-Honoré; deu, entretanto, com as barricadas do mendigo de Saint-Eustache, guardadas não somente por homens armados mas também por mulheres e crianças. Dono de uma pistola e de uma espada que lhe dera Louvières, Mestre Friquet organizara um bando de bigorrilhas como ele e fazia um barulhão ensurdecedor.

Imaginando esse ponto menos bem defendido que os outros, o Marechal quis forçá-lo. Mandou que apeassem vinte homens para romperem a barricada, ao passo que ele e o resto da tropa, a cavalo, protegeriam os assaltantes. Os vinte homens marcharam direito contra o obstáculo; mas lá, de trás das vigas, por entre as rodas das carroças, do alto das pedras, partiu uma fuzilaria terrível e, ao ruído da fuzilaria, os alabardeiros de Planchet surgiram na esquina do cemitério dos Inocentes e os burgueses de Louvières na esquina da rue de Ia Monnaie.

O Marechal de La Meilleraie viu-se metido entre dois fogos.

O Marechal de La Meilleraie era corajoso e, por isso, decidiu morrer onde estava. Retribuiu golpe com golpe, e os Urros de dor começaram a ouvir-se entre a multidão. Mais adestrados, os guardas atiravam melhor; mas os burgueses, mais numerosos, esmagavam-nos debaixo de verdadeiro furacão de fogo. Os homens caíam à sua volta como poderiam ter caído em Rocroy ou em Lérida. Fontrailles, seu ajudante de campo, tinha o braço quebrado e a muito custo dominava o cavalo, que, levando uma bala no pescoço, ficara quase louco de dor. Finalmente, viu-se no momento supremo em que os mais corajosos sentem um calafrio percorrer-lhes as veias e o suor inundar-lhes a fronte, quando, de repente, a multidão abriu alas do lado da rue de l'Arbre-Sec, gritando: Viva o Coadjutor! e Gondy, de roquete e camalha, surgiu, passando tranqüilamente no meio da fuzilaria e distribuindo à direita e à esquerda as suas bênçãos com a mesma calma com que conduziria a procissão de Corpus-Christi.

Todos caíram de joelhos.

O Marechal reconheceu-o e correu para ele.

— Tirai-me daqui, pelo amor de Deus — pediu-lhe — ou aqui deixarei a pele e a de todos os meus homens.

Era tamanha a algazarra que, no meio dela, não se teria podido ouvir o trovão do céu. Gondy ergueu a mão e exigiu silêncio. Todos se calaram.

— Meus filhos — disse ele — aqui está o Sr. Marechal de Ia Meilleraie, sobre cujas intenções vós vos enganastes, e que se compromete, voltando ao Louvre, a pedir em vosso nome, à Rainha, a liberdade do nosso Broussel. Comprometei-vos, Marechal? — perguntou Gondy voltando-se para La Meilleraie.

— Hom'essa! — exclamou este — está claro que me comprometo! Eu não esperava livrar-me por tão pouco.

— Ele vos dará a sua palavra de gentil-homem — declarou Gondy.

O Marechal ergueu a mão em sinal de assentimento.

— Viva o Coadjutor! — gritou a multidão.

Algumas vozes chegaram a gritar: "Viva o Marechal!" mas todas repetiram, em coro: "Morra Mazarino!"

A multidão abriu alas, pois o caminho da rue Saint-Honoré era o mais curto. Desimpediram-se as barricadas e o Marechal com o resto da tropa bateu em retirada, precedido de Friquet e seus bandidos, uns fingindo tocar tambor, outros imitando o som da trombeta.

Foi quase uma marcha triunfal; mas, atrás dos guardas, tornavam a fechar-se as barricadas e o Marechal mordia os punhos.

Durante esse tempo, como já dissemos, Mazarino se achava no gabinete, pondo em ordem as suas coisas. Mandara chamar d'Artagnan, embora não esperasse vê-lo no meio de todo aquele tumulto, pois d'Artagnan não estava de serviço. Ao cabo de dez minutos o tenente surgiu no limiar da porta, seguido do inseparável Porthos.

— Ah! vinde, vinde, Sr. d'Artagnan — exclamou o Cardeal — e sede benvindo, assim como o vosso amigo. Mas que diabo está acontecendo nesta maldita Paris?

— O que está acontecendo, Monsenhor? — tornou d'Artagnan, sacudindo a cabeça. — Nada de bom; a cidade sublevou-se, e ainda há pouco, quando eu atravessava a rue Montorgueil com o Sr. du Vallon, que é também um criado às ordens de Vossa Eminência, apesar do meu uniforme ou talvez por causa dele, quiseram obrigar-nos a gritar: "Viva Broussel!" e quer saber Vossa Eminência o que mais quiseram obrigar-nos a gritar?

— Dizei, dizei.

— "Morra Mazarino!"

Mazarino sorriu, mas ficou mortalmente pálido.

— E gritastes? — perguntou.

— Não, não gritamos — retorquiu d'Artagnan; — a minha voz não estava muito boa e o Sr. du Vallon, que anda resfriado, também não gritou. Então, Monsenhor...

— Então o quê? — perguntou Mazarino.

— Observe Vossa Eminência como ficaram o meu chapéu e a minha capa.

E d'Artagnan mostrou quatro buracos de balas na capa e dois no chapéu. Quanto aos trajos de Porthos, um golpe de alabarda rasgara-os na ilharga e um tiro de pistola cortara-lhe a pluma.

— Diavolo! — disse o Cardeal pensativo, considerando os dois amigos com ingênua admiração — eu teria gritado!

Nesse momento se ouviu o tumulto mais próximo. Mazarino enxugou a testa olhando à sua volta. Morria por aproximar-se da janela, mas não tinha coragem.

— Vede o que está acontecendo, Sr. d'Artagnan — pediu ele.

D'Artagnan dirigiu-se à janela com a indiferença habitual.

— Oh! oh! — exclamou — mas que é isso? O Marechal de La Meilleraie voltando sem chapéu! Fontrailles com o braço na tipóia, guardas feridos, cavalos ensangüentados... Ué!... mas... que estão fazendo as sentinelas? Estão apontando, vão atirar!

— Receberam ordem para atirar no povo — bradou Mazarino — se o povo se aproximasse do Palais-Royal.

— Mas se atirarem, está tudo perdido!

— Temos as grades.

— As grades! As grades agüentarão cinco minutos; serão arrancadas, entortadas, quebradas!... Não atireis, com seiscentos diabos! — berrou d'Artagnan abrindo a janela.

A despeito da recomendação, que, no meio do tumulto, não pudera ser ouvida, retiniram três ou quatro tiros de mosquete, seguidos imediatamente de terrível fuzilaria; ouviam-se ricochetear as balas na fachada do Palais-Royal, uma delas passou por baixo do braço de d'Artagnan e foi quebrar um espelho em que Porthos se mirava, complacente.

— Misericórdia! — exclamou o Cardeal; — um espelho de Veneza!

— Oh! Monsenhor — observou d'Artagnan fechando tranqüilamente a janela — não chore ainda, que não vale a pena, pois é provável que daqui a uma hora não reste em todo o Palais-Royal um único espelho de Vossa Eminência, quer de Veneza, quer de Paris.

— Mas qual é, então, o vosso parecer?

— Hom'essa! Devolva-lhes Broussel, Monsenhor, já que é isso o que eles querem. Para que diabo quer Vossa Eminência um conselheiro do Parlamento? Não presta para nada!

— E vós, Sr. du Vallon, qual é vossa opinião? Que faríeis vós?

— Devolveria Broussel — respondeu Porthos.

— Vinde, vinde, senhores — exclamou Mazarino — falarei sobre isso à Rainha.

Na extremidade do corredor se deteve.

— Posso contar convosco, senhores? — perguntou.

— Não nos comprometemos duas vezes — respondeu d'Artagnan. — Já estamos comprometidos com Vossa Eminência; ordene e será obedecido.

— Pois bem! — disse Mazarino — entrai neste gabinete e esperai.

E, dando uma volta, volveu ao salão por outra porta.

 

O MOTIM CONVERTE-SE EM REVOLTA

 

O gabinete em que haviam entrado d'Artagnan e Por-fy thos só era separado do salão em que se achava a Rainha por meio de reposteiros. A pouca espessura da separação permitia, portanto, que se ouvisse tudo o que se dissesse, enquanto a abertura entre os dois reposteiros, embora estreita, permitia uma perfeita visão dos personagens.

A Rainha estava em pé no salão, pálida de cólera; mas o domínio que tinha sobre si mesma era tão grande que não parecia experimentar comoção alguma. Atrás dela se achavam Comminges, Villequier e Guitaut; e atrás dos homens, as mulheres.

Diante dela, o Chanceler Séguier, o mesmo que, vinte anos antes, tanto a perseguira, contava que o seu coche acabava de ser quebrado, que fora perseguido, que entrara no palácio de O..., que o palácio fora imediatamente invadido, saqueado, devastado; felizmente tivera tempo de enfiar-se num gabinete perdido entre os reposteiros, onde uma velha o fechara com seu irmão, o Bispo de Meaux. Lá, fora tão real o perigo, os bandidos se haviam aproximado desse gabinete com tais ameaças, que o Chanceler julgara chegada a sua hora e confessara-se ao irmão, a fim de estar pronto para morrer se o descobrissem. Felizmente, porém, supondo que ele se houvesse muscado por uma porta dos fundos, o povo retirara-se, permitindo-lhe a fuga. Ele disfarçara-se com as roupas do Marquês de O... e saíra do palácio, saltando por cima dos corpos de seu auxiliar e dois guardas, que tinham morrido defendendo a porta da rua.

Durante o relato, entrara Mazarino e, sem fazer ruído, fora colocar-se ao lado da Rainha.

— E então? — perguntou a Rainha quando o Chanceler terminou — que pensais de tudo isso?

— Penso que a situação é gravíssima, senhora.

— Mas que conselho me dais?

— Eu, se me atrevesse daria um conselho a Vossa Majestade; mas não me atrevo.

— Atrevei-vos, atrevei-vos, senhor — tornou a Rainha com um sorriso amargo — já vos atrevestes a outra coisa.

O Chanceler corou e balbuciou algumas palavras.

— Não se trata do passado, mas do presente — voltou a Rainha. — Dissestes que tínheis um conselho para dar-me. Qual é?

— Senhora — respondeu, hesitando, o Chanceler — seria o de soltar Broussel.

Se bem já estivesse muito pálida, a Rainha empalideceu ainda mais e o rosto se lhe contraiu.

— Soltar Broussel! — exclamou — nunca!

Nesse momento se ouviram passos na sala contígua e, sem ser anunciado, o Marechal de La Meilleraie surgiu no limiar da porta.

— Ah! estais aí, Marechal! — bradou Ana d'Áustria, com alegria — espero que tenhais dado uma lição a essa canalha!

— Senhora — principiou o Marechal — deixei três homens no Pont-Neuf, quatro no Mercado, seis na esquina da rue de l'Arbre-Sec e dois na porta do palácio de Vossa Majestade; ao todo, quinze. Trago dez ou doze feridos. O meu chapéu ficou não sei onde, levado por uma bala e, muito provavelmente, eu teria ficado com o meu chapéu se o Sr. Coadjutor não aparecesse e não me salvasse.

— Ah! sim, sim — disse a Rainha — eu ficaria admirada se não visse aquele paqueiro cambaio metido nesse barulho.

— Senhora — acudiu La Meilleraie dando risada — não o critique demasiado na minha frente porque o serviço que me prestou ainda está quente.

— Bem — tornou a Rainha — sede grato a ele o quanto quiserdes, mas isso em nada me compromete. Voltastes são e salvo, era o que eu queria; sede não só benvindo, mas bem-revindo.

— Sim, senhora; mas só posso ser bem-revindo com uma condição: a de transmitir a Vossa Majestade a vontade do povo.

— A vontade! — retrucou Ana d'Áustria franzindo o cenho. — Oh! oh! Sr. Marechal, é preciso que o perigo tenha sido muito grande para vos encarregardes de tão estranha embaixada!

Essas palavras foram pronunciadas num tom de ironia que não escapou ao Marechal.

— Perdão, senhora — volveu o Marechal — não sou advogado, sou homem de guerra e, portanto, talvez compreenda mal o valor das palavras; é o desejo e não a vontade do povo que eu deveria ter dito. Quanto à resposta que me fez a honra de dar-me, creio que Vossa Majestade quis dizer que tive medo.

A Rainha sorriu.

— Tive medo, senhora; é a terceira vez na vida que isso me acontece e, no entanto, já me vi em doze batalhas campais e em não sei quantos combates e escaramuças; tive medo, sim, e prefiro estar diante de Vossa Majestade, por ameaçador que seja o seu sorriso, do que diante daqueles demônios do inferno que me acompanhara até aqui, saídos não sei de onde.

— Bravo! — disse baixinho d'Artagnan a Porthos — bem respondido.

— Pois bem! — tornou a Rainha mordendo os lábios, ao passo que os cortesãos se entreolhavam com espanto — qual é o desejo do meu povo?

— Que lhe devolva Broussel, senhora — disse o Marechal.

— Nunca! — bradou a Rainha — nunca!

— Vossa Majestade é quem manda — disse La Meilleraie cumprimentando e dando um passo para trás.

— Aonde ides, Marechal? — perguntou a Rainha.

— Vou transmitir a resposta de Vossa Majestade aos que a esperam.

— Ficai, Marechal, não quero dar a impressão de que parlamento com rebeldes.

— Senhora, dei a minha palavra — disse o Marechal.

— E isso quer dizer?...

— Se Vossa Majestade não me mandar prender, sou obrigado a descer.

Os olhos de Ana d'Áustria despediram duas chispas.

— Não seja por isso, senhor — repontou ela; — já mandei prender maiores fidalgos do que vós; Guitaut!

Mazarino acudiu.

— Senhora — disse ele — se eu me atrevesse também a dar um conselho a Vossa Majestade...

— Seria, acaso, o de soltar Broussel? Se for, dispenso-o.

— Não — disse Mazarino — embora esse talvez seja tão bom quanto outro qualquer.

— Qual é, então?

— O de chamar o Sr. Coadjutor.

— O Coadjutor! — bradou a Rainha. — Aquele medonho embrulhão! Foi ele quem fez essa arruaça.

— Mais uma razão — tornou Mazarino; — se a fez, pode desfazê-la.

— E vede, senhora — disse Comminges, que ficara perto de uma janela; — a ocasião é boa: ei-lo dando a sua bênção em plena praça do Palais-Royal.

A Rainha precipitou-se para a janela.

— É verdade; o mestre hipócrita! Vede!

— Vejo — disse Mazarino — que todos se ajoelham diante dele, embora seja apenas coadjutor; ao passo que se eu estivesse em seu lugar, far-me-iam pedaços, embora eu seja cardeal. Insisto, portanto, senhora, no meu desejo (Mazarino acentuou a palavra) de que Vossa Majestade receba o Coadjutor.

— E por que não dizeis também na vossa vontade? — respondeu a Rainha em voz baixa.

Mazarino inclinou-se.

A Rainha quedou um instante pensativa. Depois, erguendo a cabeça:

— Sr. Marechal — ordenou — ide buscar-me o Sr. Coadjutor e trazei-mo.

— E que direi ao povo? — perguntou o Marechal.

— Que tenha paciência — disse Ana d'Áustria; — bem que a tenho eu!

Havia na voz da altiva espanhola um tom tão imperativo, que o Marechal não fez observação alguma; inclinou-se e saiu.

D'Artagnan voltou-se para Porthos:

— Como acabará tudo isto? — perguntou.

— Daqui a pouco veremos — sentenciou Porthos com o seu ar tranqüilo.

Durante esse tempo Ana d'Áustria se aproximava de Comminges e lhe falava em voz baixa.

Mazarino, inquieto, olhara para o lado em que estavam d’Artagnan e Porthos.

Os outros assistentes cochichavam.

A porta abriu-se; o Marechal apareceu, seguido do Coadjutor.

— Eis aqui, senhora — anunciou o primeiro — o Sr. de Gondy, que se apressa em obedecer às ordens de Vossa Majestade.

Ana d'Áustria deu alguns passos na direção do prelado e deteve-se fria, severa e imóvel, com o lábio inferior desdenhosamente protraído.

Gondy inclinou-se, respeitoso.

— E então, senhor? — perguntou a Rainha. — Que dizeis deste motim?

— Que já não é um motim, senhora — respondeu o Coadjutor — mas uma revolta.

— A revolta é dos que pensam que o meu povo pode revoltar-se! — bradou Ana, incapaz de dissimular diante do Coadjutor, que ela considerava, e talvez com razão, o promotor dos tumultos. — A revolta, eis como chamam os que a desejam ao movimento que eles mesmos iniciaram; mas esperai, esperai, a autoridade do Rei lhe porá cobro.

— Foi para dizer-me isso, senhora — respondeu friamente Gondy — que Vossa Majestade me admitiu à honra de sua presença?

— Não, não, meu caro Coadjutor — disse Mazarino — foi para pedir a vossa opinião na conjuntura desagradável em que nos encontramos.

— Será verdade — perguntou Gondy assumindo um ar espantado — que Sua Majestade mandou chamar-me para pedir-me um conselho?

— Assim o quiseram — replicou a Rainha. Inclinou-se o Coadjutor.

— Deseja portanto Sua Majestade...

— Que lhe digais o que faríeis em seu lugar — apressou-se em responder Mazarino.

O Coadjutor olhou para a Rainha, que fez um sinal afirmativo.

— No lugar de Sua Majestade — respondeu friamente Gondy — eu não hesitaria, soltaria Broussel.

— E se eu não o soltar — exclamou a Rainha — que imaginais que aconteça?

— Creio que não haverá amanhã pedra sobre pedra em Paris — acudiu o Marechal.

— Não sois vós o interrogado — tornou a Rainha em tom seco e sem se voltar — é o Sr. de Gondy.

— Se sou eu o interrogado — respondeu o Coadjutor com a mesma calma — direi a Sua Majestade que estou de pleno acordo com o Marechal.

O sangue afluiu ao rosto de Ana d'Áustria, os seus formosos olhos azuis pareceram prontos a sair-lhe da cabeça; os lábios de carmim, comparados por todos os poetas do tempo a romãs em flor, empalideceram e tremeram de raiva: o seu aspecto quase assustou o próprio Mazarino, embora habituado aos furores domésticos daquele lar atormentado:

— Soltar Broussel! — bradou, por fim, com um sorriso medonho: — belo conselho, sim, senhor! Bem se vê que vem de um padre!

Gondy nem sequer pestanejou. As injúrias do dia pareciam deslisar sobre ele como os sarcasmos da véspera; mas o ódio e a vingança se lhe ajuntavam silenciosamente, gota a gota, no fundo do coração. Considerou com frieza a Rainha, que empurrava Mazarino para dizer também alguma coisa.

Segundo o seu hábito, o Cardeal pensava muito e falava pouco.

— Hé! hé! — disse ele — bom conselho, conselho de amigo. Eu também o soltaria, esse bom Sr. Broussel, morto ou vivo, e tudo se acabaria.

— Se Vossa Eminência o soltasse morto, tudo se acabaria, de fato; mas de outra maneira, Monsenhor.

— Eu disse morto ou vivo? — tornou Mazarino: — é um modo de falar. Sabeis que compreendo muito mal francês, que vós, Sr. Coadjutor, falais e escreveis tão bem.

— Aí está um conselho de Estado — comentou d'Artagnan; — mas já tivemos melhores na Rochela, com Athos e Aramis.

— No bastião de Saint-Gervais — disse Porthos. — Lá e em outros lugares.

O Coadjutor deixou passar a borrasca e tornou, sempre com a mesma fleuma.

— Senhora, se Vossa Majestade não aprecia a sugestão que lhe faço é, sem dúvida, porque tem melhores para seguir; conheço tão bem a prudência da Rainha e de seus conselheiros que não posso crer que deixe por muito tempo a capital entregue a um tumulto capaz de redundar numa revolução.

— Por conseguinte, a vosso parecer — tornou com um riso escarninho a espanhola, que mordia os lábios de cólera — o motim de ontem, que hoje é uma revolta, pode converter-se amanhã em revolução?

— Pode, senhora.— afirmou gravemente o Coadjutor.

— Mas quem vos ouvisse, diria que os povos perderam todo freio?

— O ano é mau para os reis — observou Gondy meneando a cabeça — veja Vossa Majestade a Inglaterra.

— Sim, mas felizmente não temos em França um Olivério Cromwell — respondeu a Rainha.

— Quem sabe? — volveu Gondy — esses homens parecem o raio: só se conhecem quando fulminam.

Um frêmito percorreu a assembléia, no meio do silêncio geral.

A Rainha conservava as mãos apoiadas no seio; via-se que comprimia as batidas precipitadas do coração.

— Porthos — murmurou d'Artagnan — olha bem para esse padre.

— Estou olhando — disse Porthos. — Que é que tem ele?

— É um homem.

Porthos considerou d'Artagnan com espanto; evidentemente não compreendia o que o amigo queria dizer.

— Vossa Majestade — prosseguiu, implacável, o Coadjutor — tomará, portanto, as medidas que convém. Mas eu as prevejo terríveis e capazes de irritar ainda mais os amotinados.

— Mas vós, Sr. Coadjutor, que tendes tamanho poder sobre eles e que sois nosso amigo — retrucou, irônica, a Rainha — sabereis acalmá-los, dando-lhes as vossas bênçãos.

— Talvez seja demasiado tarde — disse Gondy, sempre de gelo — e talvez eu mesmo já tenha perdido a minha influência; ao passo que, soltando Broussel, Vossa Majestade cortará pela raiz a sedição e conquistará o direito de castigar cruelmente toda e qualquer recrudescência de revolta.

— Não tenho, então, esse direito? — bradou a Rainha.

— Se o tem, empregue-o, Majestade — respondeu Gondy.

— Diabo! — disse d'Artagnan a Porthos — este é dos meus! Por que não será ele ministro e por que não serei eu o seu d'Artagnan, em vez de ser o desse troca-tintas de Mazarino! Ah! com seiscentos diabos! Que belos golpes daríamos juntos!

— É — assentiu Porthos.

Com um sinal, a Rainha dispensou a Corte, exceto Mazarino. Gondy inclinou-se e quis retirar-se como os outros.

— Ficai, senhor — ordenou a Rainha.

— Bem — disse Gondy consigo só — ela vai ceder.

— Ela vai mandá-lo matar — disse d'Artagnan a Porthos; — mas, em todo o caso, não o será por mim. Juro por Deus que, se puserem as mãos nele, cairei sobre os assassinos.

— Bom — murmurou Mazarino, sentando-se — vamos ter novidades.

A Rainha seguiu com os olhos as pessoas que saíam. Quando a último fechou a porta, voltou-se. Fazia esforços tremendos para dominar a cólera; abanava-se com o leque, respirava caçoletas, ia e vinha de um lado para outro. Mazarino continuava sentado, e parecia refletir. Gondy, que principiava a inquietar-se, sondava com os olhos todos os reposteiros, apalpava a couraça que vestira debaixo da batina, e de tempos a tempos verificava debaixo da murça se o cabo de um bom punhal espanhol que aí escondera estava ao alcance de sua mão.

— Vejamos — disse a Rainha, detendo-se afinal — agora que estamos sós, repeti o vosso conselho, Sr. Coadjutor.

— Ei-lo, senhora: simular reflexão, reconhecer publicamente um erro, que nisso consiste a força dos governos fortes, tirar Broussel da prisão e devolvê-lo ao povo.

— Oh! — bradou Ana d'Áustria — humilhar-me assim! Sou ou não sou a Rainha? Toda essa canalha que uiva é ou não é a multidão dos meus súditos? Não tenho amigos, não tenho guardas? Ah! por Nossa Senhora! como dizia a Rainha Catarina — prosseguiu, inflamando-se com as próprias palavras — a entregar-lhes esse infame Broussel, prefiro estrangulá-lo com minhas próprias mãos!

E atirou-se com os punhos crispados na direção de Gondy, que, naquele momento, lhe devia detestar pelo menos tanto quanto Broussel.

Gondy permaneceu imóvel, sem que um músculo do rosto se contraísse; mas o seu olhar de gelo cruzou-se como um gládio com o olhar furioso da Rainha.

— Eis um homem morto, se ainda houver algum Vitry (47) na Corte e esse Vitry entrar agora — disse o gascão. — Mas antes que ele se aproxime do bom prelado, mato o Vitry e o Sr. Cardeal de Mazarino ficar-me-á muitíssimo agradecido.

(47) O assassino de Concini. (N. do T.)

 

— Pssiu! — murmurou Porthos; — escuta.

— Senhora! — bradou o Cardeal agarrando Ana d'Áustria e puxando-a para trás; — senhora! Que fazeis?

E acrescentou, em espanhol:

— Ana, estais louca? Brigais aqui como se fósseis uma comadre, vós, uma rainha! E não vedes que tendes diante de vós, na pessoa desse padre, todo o povo de Paris, que é perigoso insultar neste momento? Se ele quiser, daqui a uma hora já não tereis coroa! Mais tarde, em outra ocasião, podereis resistir como quiserdes, mas agora, não; hoje, lisonjeai e acariciai, ou não passareis de uma mulher vulgar.

Às primeiras palavras do discurso, d'Artagnan agarrara no braço de Porthos e apertara-o progressivamente; depois, quando Mazarino se calou:

— Porthos — disse em voz baixa — nunca digas diante de Mazarino que entendo o castelhano, pois, do contrário, estaremos perdidos.

— Bem — concordou Porthos.

A rude censura, acentuada por uma eloqüência que caracterizava Mazarino quando falava italiano ou castelhano, e que ele perdia completamente quando falava francês, foi proferida com um rosto impenetrável, que levou Gondy a imaginar, se bem fosse hábil fisionomista, tratar-se de uma simples advertência.

De seu lado também, a Rainha repreendida se abrandou; deixou, por assim dizer, cair o fogo dos olhos, o sangue das faces, a cólera verbosa dos lábios. Sentou-se e, com voz úmida de lágrimas, deixando pender os braços:

— Perdoai-me, Sr. Coadjutor — disse ela — e atribui essa violência aos meus sofrimentos. Mulher, e sujeita, por conseqüência, às fraquezas do meu sexo, tenho medo da guerra civil; rainha e habituada a ser obedecida, encolerizo-me diante das primeiras resistências.

— Senhora — disse de Gondy inclinando-se — Vossa Majestade se engana tachando de resistência os meus sinceros conselhos. Vossa Majestade não tem senão súditos submissos e respeitosos. Não é à Rainha que o povo quer mal; reclama Broussel, nada mais, e viverá satisfeitíssimo sob as leis de Vossa Majestade, contanto que Vossa Majestade lhe devolva Broussel — ajuntou, sorrindo.

Mazarino, que, às palavras: Não é à Rainha que o povo quer mal, ficara de orelha em pé, imaginando que o Coadjutor se referisse aos gritos: "Morra Mazarino!" sentiu-se grato a Gondy pela supressão e disse com a voz mais sedosa e o rosto mais gracioso:

— Senhora, acredite no Coadjutor, que é um dos mais hábeis políticos que temos: o primeiro chapéu de cardeal que se vagar parece feito para a sua nobre cabeça.

— Ah! como precisas de mim, velhaco! — pensou Gondy.

— E que nos prometerá ele a nós — disse d'Artagnan — no dia em que quiserem matá-lo? Diabo, se ele distribui chapéus desse jeito, preparemo-nos, Porthos, e pecamos, amanhã, um regimento para cada um. Macacos me mordam se, durando um ano a guerra civil, eu não mandar redourar para mim a espada de condestável!

— E eu? — perguntou Porthos.

— A ti? Farei que te dêem o bastão de marechal do Sr. de La Meilleraie que não me parece estar muito em favor neste momento.

— Portanto, senhor — disse a Rainha — temeis seriamente a comoção popular?

— Seriamente, senhora — tornou Gondy, admirando-se de não estar mais adiantado; — receio que, depois de romper o dique, a torrente cause profundas devastações.

— E eu — disse a Rainha — creio que, nesse caso, será preciso opor-lhe novos diques. Ide, que vou pensar.

Gondy olhou para Mazarino com ar de espanto. Mazarino aproximou-se da Rainha para falar-lhe. Nesse momento se ouviu um tumulto medonho na praça do Palais-Royal.

Gondy sorriu, inflamou-se o olhar da Rainha, Mazarino empalideceu.

— Que é isso agora? — perguntou ele.

Nesse momento Comminges precipitou-se no salão.

— Perdão, senhora — anunciou Comminges, ao entrar — mas o povo esmagou as sentinelas contra as grades e, neste momento, está forçando as portas; que ordena Vossa Majestade.

— Ouça, Majestade — disse Gondy.

O mugir das ondas, o ribombar do trovão, o rebramir do vulcão não podem comparar-se à tempestade de gritos que se elevou para o céu naquele momento.

— O que ordeno? — repetiu a Rainha.

— Sim, o tempo urge.

— Quantos homens mais ou menos tendes no Palais-Royal?

— Seiscentos.

— Deixai cem homens para defender o Rei e, com o resto, varrei-me essa turba-multa.

— Que faz Vossa Majestade? — acudiu Mazarino.

— Ide! — ordenou a Rainha.

Comminges saiu com a obediência passiva do soldado.

Nesse momento um estalo horrível se ouviu: uma das portas principiava a ceder.

— Oh! senhora! — bradou Mazarino — Vossa Majestade nos perde a todos, ao Rei, a si e a mim.

A esse grito, partido da alma do Cardeal apavorado, Ana d'Áustria ficou com medo também e tornou a chamar Comminges.

— É tarde demais! — gritou Mazarino, arrancando os cabelos — é tarde demais!

A porta cedeu e ouviram-se os urros de alegria do populacho. D'Artagnan puxou da espada e fez sinal a Porthos que o imitasse.

— Salvai a Rainha! — gritou Mazarino, dirigindo-se ao Coadjutor.

Gondy precipitou-se para a janela, que abriu; reconheceu Louvières à frente de uma tropa de três ou quatro mil homens.

— Nem mais um passo! — gritou. — A Rainha assina.

— Que dizeis? — exclamou Ana d'Áustria.

— A verdade, senhora — sobreveio Mazarino, apresentando-lhe uma pena e uma folha de papel — é preciso. — E a juntou: — Assinai, Ana. Eu vos peço, eu quero!

A Rainha deixou-se cair numa cadeira, pegou na pena e assinou.

Contido por Louvières, o povo não deu mais um passo; mas o murmúrio terrível que indica a cólera da multidão não cessara.

A Rainha escreveu:

"O carcereiro da prisão de Saint-Germain porá em liberdade o Conselheiro Broussel." E assinou.

O Coadjutor, que lhe devorava com os olhos os menores movimentos, tomou do papel assim que o viu assinado, voltou à janela e, agitando-o com a mão:

— Aqui está a ordem — gritou.

Paris inteira pareceu soltar um grande clamor de alegria; depois os gritos de "Viva Broussel! Viva o Coadjutor!" ressoaram.

— Viva a Rainha! — disse o Coadjutor.

Alguns gritos responderam ao seu, mas fracos e poucos. Talvez o Coadjutor só tivesse soltado esse grito para fazer sentir a Ana d'Áustria a própria fraqueza.

— E agora que conseguistes o que queríeis — disse ela — ide-vos, Sr. de Gondy.

— Quando a Rainha precisar de mim — tornou o Coadjutor, inclinando-se — Sua Majestade sabe que estou às suas ordens.

Ela fez um sinal com a cabeça e Gondy retirou-se.

— Ah! padre maldito! — exclamou Ana d'Áustria, estendendo a mão para a porta assim que esta se fechou — eu te farei beber um dia o resto de fel que hoje me obrigaste a tragar.

Mazarino quis aproximar-se.

— Deixai-me! — disse ela; — não sois homem! E saiu.

— Vós é que não sois mulher — murmurou o Cardeal. Após um instante de reflexão, lembrou-se de que d'Artagnan e Porthos deviam estar lá e, por conseguinte, tinham ouvido tudo. Franziu o cenho e dirigiu-se ao reposteiro, que ergueu; o gabinete estava deserto.

À última palavra da Rainha, d'Artagnan tomara Porthos pela mão e arrastara-o para a galeria.

Mazarino entrou, por sua vez, na galeria e encontrou os dois amigos, que passeavam.

— Por que saístes do gabinete, Sr. d'Artagnan? — perguntou Mazarino.

— Porque — disse d'Artagnan — a Rainha ordenou a todos que saíssem e supus que a ordem fosse extensiva a nós dois.

— Quer dizer que estais aqui...

— Há coisa de um quarto de hora — retrucou d'Artagnan, olhando para Porthos e fazendo-lhe sinal que não o desmentisse.

Mazarino surpreendeu o sinal e convenceu-se de que d'Artagnan vira e ouvira tudo, mas ficou-lhe grato pela mentira.

— Decididamente, Sr. d'Artagnan, sois o homem que eu procurava, e podeis contar comigo, bem como o vosso amigo.

Depois, cumprimentando os dois com o seu sorriso mais encantador, entrou aliviado no gabinete, pois à saída de Gondy o tumulto cessara por encanto.

 

A DESGRAÇA DEVOLVE A MEMÓRIA

 

Ana voltara furiosa ao oratório.

— Como! — exclamou, torcendo os formosos braços — como! o povo viu o Sr. de Conde, primeiro príncipe de sangue, preso por minha sogra, Maria de Médicis; viu minha sogra, antiga regente, escorraçada pelo Cardeal; viu o Sr. de Vendome, isto é, um filho de Henrique IV, prisioneiro em Vincennes; e não disse nada quando se insultaram, encarceraram e ameaçaram esse grandes personagens! E por um Broussel! Jesus, que é feito então da realeza?

Ana tocava, sem pensar, no ponto crucial do problema. O povo não dissera nada em favor dos príncipes, mas sublevava-se em defesa de Broussel; é que se tratava de um plebeu e, defendendo Broussel, sentia instintivamente que se defendia a si mesmo.

Durante esse tempo, Mazarino ia de um extremo a outro do gabinete, olhando de vez em quando para o belo espelho de Veneza, todo estrelado.

— Sim — dizia consigo só — é triste, eu sei, ser obrigado a ceder assim; mas, que importa? Tomaremos a desforra. Que mais faz Broussel? É um nome, não é uma coisa.

Por hábil político que fosse, Mazarino dessa feita se enganava: Broussel era uma coisa, não era um nome.

E quando, na manhã seguinte, Broussel entrou em Paris numa enorme carruagem, tendo o filho, Louvières, a seu lado, e Friquet atrás do carro, o povo, armado, precipitou-se-lhe à passagem e os gritos de "Viva Broussel! Viva o nosso pai!" se ergueram de todos os lados, levando a morte aos ouvidos de Mazarino; de todas as bandas espiões do Cardeal e da Rainha traziam notícias más, que iam encontrar o ministro agitadíssimo e a Rainha muito sossegada. A espanhola parecia amadurecer na cabeça um grande plano, e isso redobrava as inquietudes de Mazarino, que conhecia a orgulhosa princesa e temia as resoluções de Ana d'Áustria.

O Coadjutor voltara ao Parlamento mais rei do que o Rei, a Rainha e o Cardeal reunidos; por proposta sua, umédito convidara os burgueses a deporem as armas e a demolirem as barricadas: ja sabiam eles que podiam, numa nora, retomar as armas, e numa noite, reerguer as barricadas.

Planchet voltara à confeitaria, a vitória anistia: Planchet, portanto, já não tinha medo de ser enforcado, persuadido de que, à primeira menção feita para prendê-lo, o povo se levantaria por ele como se levantara por Broussel.

Rochefort devolvera os cavalarianos ao Cavaleiro d'Humières; dois, realmente, faltaram à chamada; mas o Cavaleiro, intimamente frondista, eximira-o de ressarci-lo.

O mendigo retomara o seu lugar no adro de Saint-Eustache, oferecendo água benta com uma das mãos e pedindo esmolas com a outra; e ninguém suporia que aquelas mãos tivessem ajudado a tirar do edifício social a pedra fundamental da realeza.

Louvières sentia-se ufano e contente: vingara-se de Mazarino, que ele detestava, e contribuíra decisivamente para tirar o pai da cadeia; o seu nome fora repetido com terror no Palais-Royal, e ele dizia rindo ao Conselheiro, reintegrado na família:

— Acreditais, meu pai, que, se eu pedisse agora uma companhia à Rainha, ela ma daria?

D'Artagnan aproveitara-se do momento de calma para mandar embora Raul, que, a muito custo, conservara fechado durante o motim, e que fazia absoluta questão de puxar da espada por um partido ou pelo outro. Raul opusera, a princípio, algumas dificuldades, mas d'Artagnan falara em nome do Conde de La Fere. Raul fora fazer uma visita à Sra. de Chevreuse e partira para juntar-se ao exército.

Somente Rochefort achava que a coisa terminara muito mal: escrevera ao Sr. Duque de Beaufort que viesse; o Duque ia chegar e encontraria Paris em calma.

Foi procurar o Coadjutor para perguntar-lhe se não devia prevenir o Príncipe de que interrompesse a viagem; Gondy refletiu e disse:

— Deixai-o vir.

— Mas isto, então, não acabou? — perguntou Rochefort.

— Ora, meu caro Conde! Pois se ainda estamos no princípio!

— Por que supondes uma coisa dessas?

— Porque conheço o coração da Rainha: ela não se dará por vencida.

— Estará arquitetando alguma coisa?

— Espero que sim.

— Mas, afinal, que sabeis?

— Sei que ela escreveu ao Sr. Príncipe que voltasse a toda pressa.

— Ah! ah! — disse Rochefort — tendes razão, deixemos vir o Sr. de Beaufort.

Na noite dessa mesma conversação circulou a notícia de que o Sr. Príncipe chegara.

Era uma notícia muito simples e muito natural, mas teve imensa repercussão; dizia-se que haviam sido cometidas algumas indiscrições pela Sra. de Longueville, a quem o Sr. Príncipe, que acusavam de votar à irmã um afeto que ultrapassava as raias da amizade fraterna, fizera confidencias.

Essas confidencias revelavam sinistros projetos da parte da Rainha.

Na própria noite da chegada do Sr. Príncipe, burgueses mais esclarecidos do que os outros, almotáceis, inspetores de quarteirão iam à casa dos conhecidos e sugeriam:

— Por que não pegamos o Rei e não o levamos ao Paço Municipal? É um erro permitirmos que seja educado pelos nossos inimigos, que lhe dão maus conselhos; ao passo que, dirigido pelo Sr. Coadjutor, por exemplo, amaria princípios nacionais e amaria o povo.

A noite foi surdamente agitada; no dia seguinte viram-se de novo as capas pretas e cinzentas, as patrulhas de comerciantes armados e os bandos de mendigos.

A Rainha passara a noite conferenciando a sós com o Sr. Príncipe; a meia-noite fora ele introduzido em seu oratório e só a deixara às cinco horas.

Às cinco, a Rainha dirigiu-se ao gabinete do Cardeal. Se ela ainda não se deitara, o Cardeal já se levantara.

Redigia uma resposta a Cromwell, pois seis dias já se tinham escoado dos dez que pedira a Mordaunt.

— Ora! — dizia entre si — eu talvez o tenha feito esperar um pouco, mas o Sr. Cromwell sabe muito bem o que são revoluções e me desculpará.

Relia, portanto, com satisfação, o primeiro parágrafo da carta quando ouviu arranharem mansamente a porta que comunicava com os aposentos da Rainha. Somente Ana d'Áustria poderia passar por aquela porta. Ergueu-se o Cardeal e foi abrir.

A Rainha vestia roupão, mas o roupão ainda lhe ficava bem, pois, assim como Diana de Poitiers e Ninon, Ana d'Áustria conservou o privilégio de ser sempre bela: naquela manhã, porém, estava mais bela que de costume, pois em seus olhos se refletia todo o brilho que dá ao olhar uma alegria interior.

— Que tendes, senhora? — perguntou, inquieto, Mazarino. — Trazeis um ar tão altivo!

— Sim, Giulio — disse ela — altivo e feliz, pois encontrei o meio de esmagar essa hidra.

— Sois um grande político, minha rainha — exclamou Mazarino. — Vejamos o meio.

E escondeu o que escrevia, colocando a carta começada debaixo de uma folha de papel em branco.

— Sabeis que me quer prender o Rei? — perguntou a Rainha.

— Ai! sei, e que me querem enforcar — gemeu o Cardeal.

— Não prenderão o Rei.

— Nem me enforcarão, benone.

— Ouvi: quero tirar-lhes meu filho e nós dois iremos com ele; quero que esse acontecimento, que, de um dia para outro, mudará a face das coisas, se realize sem que ninguém o saiba, senão vós, eu e uma terceira pessoa.

— E quem é a terceira pessoa?

— O Sr. Príncipe.

— Chegou, então, como me tinham dito?

— Ontem à noite.

— E já o vistes?

— Acabo de deixá-lo.

— Está de acordo com o projeto?

— A sugestão é dele.

— E Paris?

— Vai reduzi-la à fome e obrigá-la a render-se à discrição.

— Não deixa de ser grandioso o plano e só lhe vejo um obstáculo.

— Qual?

— A impossibilidade.

— Palavra sem sentido. Nada é impossível.

— Em projeto.

— Em execução. Temos dinheiro?

— Algum — replicou Mazarino, receoso de que Ana d'Áustria lhe pedisse para ir buscá-lo em sua bolsa particular.

— Temos forças?

— Cinco ou seis mil homens.

— Temos coragem?

— Muita.

— Então a coisa é fácil. Não compreendeis, Giulio? Paris, essa odiosa Paris, acordando uma bela manhã sem Rainha e sem Rei, cercada, sitiada, esfaimada, tendo por únicos recursos o estúpido Parlamento e o magro Coadjutor cambaio!

— Lindo, lindo! — disse Mazarino: — compreendo o efeito; mas não vejo meio de consegui-lo.

— Pois hei de encontrá-lo!

— Já pensastes que isso será a guerra, a guerra civil, ardente, encarniçada, implacável?

— Oh! sim, sim, a guerra — disse Ana d'Áustria; — quero reduzir a cinzas a cidade rebelde; quero apagar o fogo com sangue; quero que um exemplo pavoroso eternize o crime e o castigo. Paris! odeio-a, detesto-a!

— Muito bonito, Ana, eis-vos sanguinária! Mas cuidado, já não estamos no tempo dos Malatestas e dos Castruccios Castracani; ainda fareis que vos decapitem, minha bela rainha, e seria uma pena.

— Gracejais.

— Gracejo muito pouco, pois a guerra contra um povo inteiro é perigosa; vede o vosso irmão Carlos I. Vai mal, vai muito mal.

— Estamos em França e eu sou espanhola.

— Tanto pior, per Baccho, tanto pior, eu preferiria que fósseis francesa, e eu também: seríamos ambos menos detestados.

— Entretanto, aprovais?

— Sim, se achar a coisa viável.

— É viável, e sou eu quem o afirma; fazeis os vossos preparativos para partir.

— Eu! Estou sempre pronto para partir; mas, como sabeis, não parto nunca... e desta vez, provavelmente, partirei tanto quanto as outras.

— Mas, afinal, se eu partir, partireis?

— Tentarei.

— Vós me matais com os vossos receios, Giulio. De que tendes medo, afinal?

— De muitas coisas.

— Quais?

A fisionomia zombeteira de Mazarino tornou-se sombria

— Ana — disse ele — sois apenas mulher e, como mulher, podeis insultar os homens à vontade, confiada na vossa impunidade: vós me acusais de ter medo: no entanto, tenho menos medo do que vós, visto que não fujo. Contra quem grita o povo? Contra vós ou contra mim? Quem querem enforcar? A vós ou a mim? A despeito de tudo, enfrento a borrasca, eu, a quem acusais de ter medo, não por bravata, que não é do meu feitio, mas enfrento. Imitai-me: menos ruído, mais efeito. Gritais muito alto, mas não conseguis coisa alguma. Falais em fugir!

Mazarino deu de ombros, pegou na mão da Rainha e conduziu-a à janela:

— Olhai!

— E então? — volveu a Rainha, cega pela teimosia.

— Então, que vedes desta janela? Se não me engano, burgueses de couraça e capacete, armados de bons mosquetes, como no tempo da Liga, e que olham tanto para a janela de onde os observais, que ainda sereis vista se não descerdes um pouco mais a cortina. Agora, vinde a estoutra: que vedes? Gente do povo que guarda as vossas portas, armada de alabardas. A cada saída do palácio a que eu vos conduzisse, veríeis a mesmíssima coisa; as vossas portas estão guardadas, os respiradouros dos vossos porões estão guardados, e eu vos direi por minha vez o que aquele bom La Ramée me dizia a respeito do Sr. de Beaufort: A não ser que vire passarinho ou rato, não sairá de lá.

— Mas acabou saindo.

— Quereis sair da mesma forma?

— Então, sou prisioneira?

— Hom'essa! Há uma hora que procuro demonstrá-lo.

E Mazarino voltou tranqüilamente à carta começada, no lugar em que a interrompera.

Trêmula de cólera, rubra de humilhação, Ana saiu do gabinete fechando a porta atrás de si com violência.

Mazarino nem sequer virou a cabeça.

De volta aos seus aposentos, a Rainha deixou-se cair numa poltrona e desatou a chorar.

Súbito, uma idéia lhe ocorreu:

— Estou salva — disse ela, levantando-se. — Oh! sim, sim, conheço um homem que saberá tirar-me de Paris, um homem que durante muito tempo esqueci.

E, reflexiva, embora com um sentimento de alegria:

— Como sou ingrata! Durante vinte anos esqueci esse homem, que eu deveria ter feito marechal de França. Minha sogra prodigalizou dinheiro, dignidades e carinhos a Concini, que a perdeu; o Rei fez de Vitry marechal de França por um assassínio, e eu deixei no esquecimento, na miséria, esse nobre d'Artagnan, que me salvou.

E, correndo para a mesa, em que havia papel e tinta, pôs-se a escrever.

 

A ENTREVISTA

 

Nessa manhã d’Artagnan estava deitado no quarto de Porthos. Era um hábito que os dois amigos haviam tomado ao começarem os motins. Debaixo do travesseiro tinham a espada e, sobre a mesa, ao alcance da mão, as pistolas.

D'Artagnan ainda estava dormindo e sonhava que o céu se cobria de uma grande nuvem amarela, que dessa nuvem caía uma chuva de ouro e que ele a aparava, com o chapéu, debaixo de uma goteira.

Porthos sonhava, por sua vez, que a portinhola do seu carro não era suficientemente grande para conter os brasões que nela mandara pintar.

Foram despertados às sete da manhã por um lacaio sem libré que trazia uma carta para d’Artagnan.

— Da parte de quem? — perguntou o gascão.

— Da parte da Rainha — respondeu o lacaio.

— Hein? — exclamou Porthos, erguendo-se da cama — que é que ele está dizendo?

D’Artagnan pediu ao lacaio que passasse à sala vizinha e, assim que fechou a porta, saltou da cama e leu rapidamente, enquanto Porthos o considerava com os olhos esbugalhados e sem coragem de perguntar-lhe o que quer que fosse.

— Amigo Porthos — disse d’Artagnan, estendendo-lhe a carta — aqui estão, desta feita, o teu título de barão e a minha patente de capitão. Lê e julga.

Porthos estendeu a mão, pegou na carta e leu estas palavras com voz trêmula:

 

"A Rainha quer falar com o Sr. d'Artagnan, que deverá acompanhar o portador."

 

— Pois eu não vejo nisso nada de extraordinário — disse Porthos.

— Eu vejo, e muito — volveu d'Artagnan. — Se me chamam é porque as coisas estão embrulhadas. Imagina só a revolução que se deve ter operado no espírito da Rainha para que, depois de vinte anos, suba à tona a minha lembrança.

— É exato — assentiu Porthos.

— Afia a tua espada, barão, carrega as tuas pistolas, dá aveia aos cavalos; garanto que ainda hoje teremos novidades; e motus!

— Não será uma cilada que nos preparam para se desfazerem de nós? — acudiu Porthos sempre preocupado com o constrangimento que a sua futura grandeza deveria causar aos outros.

— Se for uma cilada, saberei farejá-la, tranqüiliza-te — respondeu d'Artagnan. — Se Mazarino é italiano, eu sou gascão.

E vestiu-se num abrir e fechar de olhos. Enquanto Porthos, ainda deitado, lhe abrochava a capa, bateram segunda vez.

— Entrai — ordenou d'Artagnan. Um segundo criado entrou.

— Da parte de Sua Eminência o Cardeal Mazarino — anunciou o criado.

D'Artagnan olhou para Porthos.

— Complica-se a coisa — observou Porthos. — Por onde começar?

— Vai tudo às mil maravilhas — exclamou d’Artagnan. — Sua Eminência me recebe daqui a meia hora.

— Bem.

— Meu amigo — disse d’Artagnan, voltando-se para o lacaio — dizei a Sua Eminência que dentro de meia hora estarei às suas ordens.

O criado cumprimentou e saiu.

— Ainda bem que ele não viu o outro.

— Acreditas que os dois te mandaram buscar pelo mesmo motivo?

— Não acredito, tenho certeza.

— Vamos, vamos, d'Artagnan, depressa! Não te esqueças de que a Rainha te espera; depois da Rainha, o Cardeal; e depois do Cardeal, eu.

D'Artagnan tornou a chamar o criado de Ana d'Áustria.

— Aqui estou, meu amigo — disse ele — conduzi-me.

O criado conduziu-o pela rue des Petits-Champs, e, virando à esquerda, fê-lo entrar pelo portãozinho do jardim

que dava para a rue Richelieu; em seguida subiram uma escada secreta e d'Artagnan foi introduzido no oratório.

Certa comoção, que ele não lograva compreender, fazia pulsar o coração do tenente; já não tinha a confiança da juventude e a experiência fizera-o enxergar toda a gravidade dos acontecimentos passados. Sabia o que era a nobreza dos príncipes e a majestade dos reis; habituara-se a situar a própria mediania depois dos grandes pela fortuna e pelo nascimento. Antigamente se teria aproximado de Ana d'Áustria como um jovem que cumprimenta uma mulher. Agora a coisa era outra: aproximava-se dela como o soldado humilde se aproxima do ilustre chefe.

Leve rumor perturbou o silêncio do oratório. D'Artagnan estremeceu e viu uma mão branca levantar o reposteiro, e, pela forma, pela alvura e pela beleza, reconheceu a mão real que um dia lhe tinham dado para beijar.

A Rainha entrou.

— Sois vós, Sr. d'Artagnan — disse ela, pousando no oficial um olhar cheio de afetuosa melancolia. — Sois vós e bem vos reconheço. Olhai para mim: sou a Rainha; não me reconheceis?

— Não, senhora — respondeu d'Artagnan.

— Mas, então, já não sabeis — continuou Ana d'Áustria com a deliciosa expressão que sabia, quando queria, imprimir à voz — que a Rainha precisou outrora de um jovem cavaleiro, corajoso e dedicado, que encontrou esse cavaleiro, e, se bem ele tenha tido motivos para julgar-se esquecido, ela sempre lhe reservou um lugar no fundo do coração?

— Não, senhora, não sei — tornou o mosqueteiro.

— Tanto pior, senhor — disse Ana d'Áustria — tanto pior, para a Rainha pelo menos, pois ela precisa hoje dessa mesma coragem e dessa mesma dedicação.

— Como! — retrucou d'Artagnan — cercada de servidores tão dedicados, de conselheiros tão sábios, de homens enfim tão grandes pelo mérito ou pela posição, digna-se a Rainha dirigir os olhos a um soldado obscuro!

Ana compreendeu o reproche velado, que menos a irritou que comoveu. Tanta abnegação e tanto desinteresse da parte do gentil-homem gascão tinham-na muitas vezes humilhado e ela se deixara vencer em generosidade.

— Tudo o que me dizeis sobre os que me cercam, Sr. d'Artagnan, talvez seja verdade — volveu a Rainha: — mas só tenho confiança em vós. Sei que pertenceis ao Sr. Cardeal, mas sede meu também e eu me encarregarei da vossa fortuna. Vejamos, faríeis hoje por mim o que fez outrora pela Rainha o gentil-homem que não conheceis?

— Farei o que ordenar Vossa Majestade — disse d'Artagnan.

A Rainha refletiu por um momento; e, vendo a atitude circunspecta do mosqueteiro:

— Apreciais talvez o repouso? — perguntou.

— Não sei, porque nunca me repousei, senhora.

— Tendes amigos?

— Eu tinha três: dois saíram de Paris e ignoro aonde foram. Resta-me um, mas é um dos que conheciam, segundo suponho, o cavaleiro de que Vossa Majestade me fez a honra de falar.

— Vós e o vosso amigo valeis por um exército — continuou a Rainha.

— Que devo fazer, senhora?

— Voltai às cinco horas e o sabereis; mas não faleis a ninguém, ninguém, da entrevista que vos concedi.

— Não, senhora.

— Jurai-o pelo Cristo.

— Senhora, nunca faltei à minha palavra; quando digo não, é não.

Embora espantada com essa linguagem, a que os seus cortesãos não a tinham habituado, encontrou nela a Rainha um feliz presságio para o zelo que empregaria d’Artagnan em servi-la na execução de seu projeto. Um dos artifícios do gascão consistia, precisamente, em esconder às vezes a sua profunda sagacidade sob as aparências de uma brutalidade leal.

— Não tem a Rainha outra coisa para ordenar-me por enquanto? — perguntou ele.

— Não, senhor — respondeu Ana d'Áustria — e podeis retirar-vos até o momento aprazado.

D'Artagnan cumprimentou e saiu.

— Diabo! — disse entre si, quando chegou à porta — parece que precisam muito de mim por aqui.

Depois, como se tivesse escoado a meia hora, atravessou a galeria e foi bater à porta do Cardeal. Bernouin introduziu-o.

— Às ordens de Vossa Eminência — disse ele.

E, segundo o seu hábito, lançou rápido olhar em derredor, observando que Mazarino tinha diante de si uma carta lacrada. Mas como estivesse colocada com a parte escrita para baixo, era impossível saber a quem se dirigia.

— Vindes dos aposentos da Rainha? — perguntou Mazarino olhando fixamente para d'Artagnan.

— Eu, Monsenhor! Quem disse isso a Vossa Eminência?

— Ninguém; mas eu sei.

— Sinto muito, mas devo dizer que Vossa Eminência se engana — respondeu impudentemente o gascão, sustentado pela promessa que acabara de fazer a Ana d'Áustria.

— Eu mesmo abri a porta da antecâmara e vi quando chegáveis à extremidade da galeria.

— Introduziram-me pela escada secreta.

— Por quê?

— Não sei; deve ter havido algum malentendido. Sabia Mazarino que era difícil obrigar d'Artagnan a dizer o que este queria ocultar; por isso mesmo desistiu, momentaneamente, de descobrir o mistério que lhe apresentava o gascão.

— Falemos dos meus negócios — disse o Cardeal — visto que não me quereis falar dos vossos.

D'Artagnan inclinou-se.

— Gostais de viagens? — perguntou o Cardeal.

— Passei a vida nas estradas.

— Haverá alguma coisa que vos retenha em Paris?

— Só uma ordem superior seria capaz de reter-me em Paris.

— Muito bem. Aqui está uma carta que é preciso entregar ao destinatário.

— Ao destinatário, Monsenhor? Mas não há destinatário! Com efeito, o lado oposto ao do lacre também estava em branco.

— O invólucro é duplo — explicou Mazarino.

— Compreendo. Rasgarei o primeiro quando chegar a determinado sítio.

— Precisamente. Tomai-a e parti. Tendes um amigo, o Sr. du Vallon. Gosto muito dele. Levai-o convosco.

— Diabo! — disse d'Artagnan consigo só — ele sabe que ouvimos a conversação de ontem e quer afastar-nos de Paris.

— Hesitais? — perguntou Mazarino.

— Não, Monsenhor. Parto imediatamente. Mas eu desejava uma coisa...

— Qual?

— Que Vossa Eminência procurasse a Rainha.

— Quando?

— Agora mesmo.

— Para quê?

— Para dizer-lhe apenas estas palavras: "Estou mandando o Sr. d'Artagnan a certo lugar e quero que ele parta imediatamente."

— Quer dizer que vistes a Rainha — insistiu Mazarino.

— Tive a honra de dizer a Vossa Eminência que poderia ter havido um malentendido.

— Que significa isto? — perguntou o Cardeal.

— Permitiria Vossa Eminência que eu lhe renovasse a minha súplica?

— Está bem, já vou. Esperai-me aqui.

Mazarino observou com atenção se nenhuma chave fora esquecida nos armários e saiu.

Dez minutos se passaram, durante os quais d'Artagnan fez o que pôde para ler através do primeiro invólucro o que estava escrito no segundo; mas não o conseguiu.

Mazarino voltou pálido e preocupadíssimo; foi sentar-se à secretária. D'Artagnan examinou-o como acabara de examinar a carta; mas o invólucro do seu rosto era quase tão impenetrável quanto o da carta.

— Eh, eh! — disse o gascão — o homem parece zangado. Será comigo? Está pensando; pensará em mandar-me para a Bastilha? Muito bem, Monsenhor! À primeira palavra que disser Vossa Eminência, estrangulo-o e viro frondista. Serei carregado em triunfo como o Sr. Broussel e Athos me proclamará o Bruto francês. Seria engraçado.

Com a imaginação galopante, já vira o gascão todo o proveito que poderia sacar da situação.

Mazarino, porém, não deu nenhuma ordem desse gênero e pôs-se, ao contrário, a tratar d'Artagnan com afabilidade extrema.

— Tínheis razão — disse ele — meu caro Sr. d'Artagnan, e ainda não podeis partir.

— Ah!

— Devolvei-me a carta, por favor.

D'Artagnan obedeceu. Mazarino certificou-se de que o lacre estava intacto.

— Preciso de vós esta noite — disse ele. — Voltai daqui a duas horas.

— Daqui a duas horas, Monsenhor — declarou d'Artagnan — tenho um encontro a que não posso faltar.

— Não vos preocupeis com isso — disse Mazarino; — é o mesmo.

— Bom! — pensou d'Artagnan — eu já o imaginava.

— Voltai, portanto, às cinco horas, e trazei-me o querido Sr. du Vallon; mas deixai-o na antecâmara: quero falar convosco particularmente.

D'Artagnan inclinou-se.

Inclinando-se, dizia com os seus botões:

— Os dois a mesma ordem, os dois na mesma hora, os dois do Palais-Royal; já sei o que é. Aí está um segredo pelo qual o Sr. de Gondy pagaria cem mil libras.

— Refletis! — tornou Mazarino, inquieto.

— Sim, estou pensando se devemos vir armados ou não.

— Armados até os dentes.

— Está bem, Monsenhor, viremos.

D'Artagnan cumprimentou, saiu e foi correndo repetir ao amigo as lisonjeiras promessas de Mazarino, que deram a Porthos uma alegria inconcebível.

 

A FUGA

 

Apesar dos sinais de agitação que se notavam na cidade, o Palais-Royal apresentava um espetáculo dos mais alegres quando d'Artagnan lá chegou, o que, aliás, não era de espantar: a Rainha devolvera Broussel e Blancmesnil ao povo. Sua Majestade, portanto, já não tinha o que temer, visto que o povo já não tinha o que pedir. A sua comoção era um resquício de agitação, que o tempo se encarregaria de acalmar, como depois de uma tempestade são precisos vários dias para que se aplaquem as ondas.

Realizara-se um grande festim, cujo pretexto fora a volta do vencedor de Lens. Príncipes e princesas tinham sido convidados, e carruagem atulhavam os pátios desde o meio-dia. Após o jantar haveria jogos nos aposentos da Rainha.

Ana d'Áustria mostrou-se encantadora, graciosa, espirituosa; nunca a tinham cisto de humor tão jovial. A perspectiva de vingar-se punha-lhe nos olhos um brilho de flores e desabrochava-lhe os lábios.

No momento em que todos se levantaram da mesa, Mazarino sumiu. D'Artagnan já estava em seu posto e esperava na antecâmara. O Cardeal surgiu risonho, tomou-o pela mão e introduziu-o no gabinete.

— Meu caro d'Artagnan — disse o Ministro sentando-se

— vou dar-vos a maior prova de confiança que um ministro pode dar a um oficial.

D'Artagnan inclinou-se.

— Espero — disse ele — que ma dê Vossa Eminência sem segundas intenções e persuadido de que sou digno dela.

— O mais digno de todos, meu caro amigo, pois é a vós que me dirijo.

— Confessarei a Vossa Eminência que há muito tempo espero ocasião semelhante. Diga-me, portanto, o que tem para dizer-me.

— Tereis, meu caro Sr. d'Artagnan — tornou Mazarino — esta noite, a salvação do Estado nas mãos.

Interrompeu-se.

— Explique-se Vossa Eminência.

— A Rainha decidiu fazer com o Rei uma viagenzinha a Saint-Germain.

— Ah! ah! — exclamou d'Artagnan — a Rainha quer sair de Paris.

— Caprichos de mulher, que haveis de compreender.

— Compreendo muito bem.

— Foi por isso que mandou chamar-vos hoje cedo e vos disse que voltásseis às cinco horas.

— Valia mesmo a pena fazer-me jurar que não falaria a ninguém dessa entrevista! — murmurou d'Artagnan; — oh! as mulheres! Ainda que rainhas, não deixam de ser mulheres.

— Desaprovaríeis a viagenzinha, meu caro Sr. d'Artagnan? — perguntou Mazarino, inquieto.

— Eu, Monsenhor! — disse d'Artagnan — e por quê?

— Encolheis os ombros.

— É um modo que tenho de falar comigo mesmo.

— Aprovais, então?

— Não a aprovo nem desaprovo, Monsenhor; espero as ordens de Vossa Eminência.

— Pois bem. Foi em vós que pensei para levar o Rei e a Rainha a Saint-Germain.

— Duplo velhaco — disse entre si d'Artagnan.

— Vedes perfeitamente — tornou Mazarino, observando a impassibilidade do mosqueteiro — que, como eu vos dizia, a salvação do Estado repousará em vossas mãos.

— Sim, Monsenhor, e sinto toda a responsabilidade de tal encargo.

— E aceitais?

— Aceito sempre.

— Imaginais que a coisa seja possível?

— Tudo é possível.

— Sereis atacado no caminho?

— Provavelmente.

— E que fareis nesse caso?

— Passarei pelo meio dos que me atacarem.

— E se não puderdes passar pelo meio?

— Pior para eles, passarei por cima.

— E deixareis o Rei e a Rainha sãos e salvos em Saint-Germain?

— Sim.

— Por vossa vida?

— Por minha vida.

— Sois um herói, meu caro! — exclamou Mazarino, considerando o mosqueteiro com admiração.

D'Artagnan sorriu.

— E eu? — disse Mazarino após um momento de silêncio e olhando fixamente para d'Artagnan.

— Que é que tem Vossa Eminência?

— E eu, se quiser partir?

— Já será mais difícil.

— Por quê?

— Porque Vossa Eminência pode ser reconhecido. — Até com este disfarce?

E ergueu uma capa que cobria a poltrona, sobre a qual se via um fato completo de cavaleiro, cinzento e granadino, com bordados de prata.

— Se Vossa Eminência se disfarça, a coisa torna-se mais fácil.

— Ah! — respirou Mazarino.

— Mas será preciso fazer o que Vossa Eminência disse outro dia que teria feito em meu lugar.

— Será preciso fazer o quê?

— Gritar: Morra Mazarino!

— Eu gritarei.

— Em francês, em bom francês, Monsenhor, e cuidado com o sotaque; mataram-nos seis mil angevinos na Sicília porque pronunciavam mal o italiano. Acautele-se Vossa Eminência para que os franceses não tomem contra si a desforra das Vésperas sicilianas.

— Farei o possível.

— Há muita gente armada pelas ruas — continuou d'Artagnan; — tendes certeza de que ninguém conhece o projeto da Rainha?

Mazarino refletiu.

— Seria um belo negócio para um traidor, Monsenhor, o que Vossa Eminência me propõe; os azares de um ataque desculpariam tudo.

Mazarino estremeceu; mas refletiu que um homem que tencionasse trair não preveniria.

— Por isso mesmo — disse com vivacidade — não me fio de toda a gente, e a prova é que vos escolhi para escoltar-me.

— Vossa Eminência não parte com a Rainha?

— Não.

— Parte depois da Rainha?

— Não — repetiu Mazarino.

— Ah! — exclamou d'Artagnan, que principiava a compreender.

— Sim, tenho os meus planos — continuou o Cardeal: — com a Rainha, duplico os perigos dela; depois da Rainha, a sua partida duplica os meus; de mais a mais, salva a Corte, podem esquecer-me: os grandes são ingratos.

— É verdade — confirmou d'Artagnan lançando, mau grado seu, os olhos sobre o brilhante da Rainha que Mazarino ostentava no dedo.

Mazarino seguiu a direção do olhar e virou disfarçadamente a pedra para baixo.

— Quero, portanto — disse Mazarino com o seu sorriso astuto — impedí-los de ser ingratos comigo.

— É caridade cristã — disse d'Artagnan — não induzir o próximo em tentação.

— Precisamente por isso — explicou Mazarino — quero partir antes deles.

D'Artagnan sorriu; era homem capaz de compreender perfeitamente a astúcia italiana.

Mazarino viu-o sorrir e aproveitou o ensejo.

— Começareis, portanto, fazendo-me sair de Paris, não é verdade, meu caro Sr. d'Artagnan?

— Difícil tarefa, Monsenhor! — replicou d’Artagnan, reassumindo o ar grave.

— Mas — volveu Mazarino olhando-o com atenção para que nenhuma das expressões de sua fisionomia lhe escapasse

— não fizestes todas essas observações em relação ao Rei e à Rainha!

— O Rei e a Rainha são a minha Rainha e o meu Rei, Monsenhor — respondeu o mosqueteiro; — minha vida lhes pertence. Pedem-ma, não posso recusá-la.

— É justo — murmurou baixinho Mazarino; — mas como tua vida não me pertence, preciso comprar-ta, não é?

E, soltando um profundo suspiro, começou a virar para cima a pedra do anel.

D’Artagnan sorriu.

Aqueles dois homens tocavam-se por um ponto, pela astúcia. Se se tocassem da mesma forma pela coragem, um teria levado o outro a realizar grandes coisas.

— Mas também — disse Mazarino — compreendereis que, se vos peço esse serviço, faço-o com a intenção de ser agradecido.

— Vossa Eminência ainda está na intenção? — perguntou d'Artagnan.

— Tomai — disse Mazarino tirando o anel do dedo— meu caro Sr. d'Artagnan, eis aqui um brilhante que outrora vos pertenceu; é justo que torne ao vosso poder; suplico-vos que o aceiteis.

D'Artagnan não deu a Mazarino o trabalho de insistir; tomou-o, verificou se a pedra era realmente a mesma e, depois de se haver certificado da pureza da água, colocou-o no dedo com indizível prazer.

— Eu gostava muito dele — suspirou Mazarino acompanhando-o com um último olhar; — mas não importa, faço-vos presente com grande satisfação.

— E eu, Monsenhor — replicou d'Artagnan — recebo-o como me é dado. Mas falemos dos vossos negocinhos. Que-reis partir antes de todos?

— Faço questão.

— A que horas?

— Às dez.

— A que horas parte a Rainha?

— À meia-noite.

— Então é possível: faço-vos sair primeiro, deixo-vos do outro lado da barreira e volto para buscá-la.

— Esplêndido. Mas como me tirareis de Paris?

— Isso é comigo.

— Dou-vos plenos poderes; tomai a escolta mais considerável que quiserdes.

D'Artagnan sacudiu a cabeça.

— Parece-me, entretanto, que é o meio mais seguro — insistiu Mazarino.

— Para vós, Monsenhor, mas não para a Rainha.

Mazarino mordeu os lábios.

— Então — perguntou ele — como faremos?

— Deixe tudo por minha conta, Monsenhor.

— Hum! — hesitou Mazarino.

— E será preciso dar-me a plena direção da empresa.

— Entretanto...

— Ou procurar outra pessoa — emendou d'Artagnan, virando as costas.

— Eh! — disse entre si Mazarino — ele é capaz de sair com o anel.

E tornou a chamá-lo, com voz carinhosa: — Sr. d'Artagnan, meu caro Sr. d'Artagnan.

— Monsenhor?

— Vós vos responsabilizais por tudo?

— Não me responsabilizo por nada. Farei o que puder.

— O que puderdes?

— Sim.

— Então está bem. Fio-me de vós.

— Felizmente — cuidou d'Artagnan com os seus botões.

— Estareis aqui, portanto, às nove e meia.

— E encontrarei Vossa Eminência pronto?

— Claro!

— Então, está combinado. Agora poderá Vossa Eminência conduzir-me à presença da Rainha?

— Para quê?

— Eu queria receber as ordens de Sua Majestade pessoalmente.

— Ela me encarregou de transmitir-vo-las.

— Poderia ter-se esquecido de alguma coisa.

— Fazeis questão de vê-la?

— É indispensável, Monsenhor.

Mazarino hesitou um instante. D'Artagnan permaneceu impassível.

— Vamos — disse Mazarino — vou conduzir-vos, mas nem uma palavra da nossa conversação.

— O que foi dito entre nós só a nós diz respeito, Monsenhor.

— Jurais que ficareis calado?

— Não juro nunca, Monsenhor. Digo sim ou digo não; e como sou gentil-homem, sustento a minha palavra.

— Vejo que é preciso fiar-me de vós sem restrições.

— Acredite Vossa Eminência que é o melhor que pode fazer.

— Vinde.

Mazarino fez entrar d'Artagnan no oratório da Rainha e ordenou-lhe que esperasse.

D'Artagnan não esperou muito tempo. Cinco minutos depois entrou a Rainha em trajos de grande gala. Assim enfeitada não parecia ter mais de trinta e cinco anos e era sempre bela (48).

(48) Ana d'Áustria era o tipo da madrilenha bonita: oval de rosto perfeito, tez leitosa (nunca houve pele tão bela, escreve a Sra. de Motteville) aureolada de abundante cabeleira, loira e frisada, e iluminada por dois grandes olhos verdoengos, levemente apertados, teria sido perfeita não fosse o nariz um tanto grosso. De mais disso, tinha o corpo bem feito, flexível e esbelto, pés pequenos e braços e mãos cuja formosura se tornou proverbial. (N. do T.)

 

— Sois vós, Sr. d'Artagnan — principiou, sorrindo graciosamente — eu vos agradeço por haverdes insistido em ver-me.

— Peço perdão a Vossa Majestade — respondeu d'Artagnan — mas eu queria receber as ordens da própria boca de Vossa Majestade.

— Sabeis de que se trata?

— Sim, senhora.

— Aceitais a missão que vos confio?

— Com reconhecimento.

— Está bem; apresentai-vos aqui à meia-noite.

— Aqui estarei.

— Sr. d'Artagnan — disse a Rainha — conheço muito o vosso desinteresse para falar-vos de meu reconhecimento neste momento, mas juro-vos que não esquecerei este segundo serviço como esqueci o primeiro.

— Vossa Majestade tem plena liberdade de lembrar e esquecer, e eu não sei o que Vossa Majestade quer dizer.

E d'Artagnan inclinou-se.

— Ide, senhor — ordenou a Rainha com o seu mais encantador sorriso — ide e voltai à meia-noite.

Fez-lhe com a mão um sinal de despedida e d'Artagnan retirou-se; mas, ao retirar-se, lançou os olhos ao reposteiro pelo qual entrara a Rainha e lobrigou, em baixo, a ponta de um sapato de veludo.

— Bom — disse ele — o Mazarino escutava para saber se eu seria capaz de traí-lo. Em realidade, esse manequim da Itália não merece que o sirva um homem honrado.

Não obstante, chegou d'Artagnan pontualmente ao encontro marcado; às nove e meia, entrava na antecâmara.

Bernouin, que o esperava, introduziu-o no gabinete do Cardeal.

Encontrou o Ministro vestido de cavaleiro. Mazarino ficava muito bem nesses trajos, que ele, como dissemos, ostentava com elegância; mas, muito pálido, tremia um pouquinho.

— Sozinho? — perguntou o Cardeal.

— Sim, Monsenhor.

— E aquele bom Sr. du Vallon não nos dará o prazer de sua companhia?

— Naturalmente, Monsenhor; espera-nos em seu carro.

— Onde?

— No portão do jardim do Palais-Royal.

— É, portanto, no carro dele que partimos?

— É, Monsenhor.

— E com uma escolta formada apenas por vós e por ele?

— E não basta? Um de nós bastaria!

— Em verdade, meu caro Sr. d'Artagnan — disse Mazarino, assusta-me o vosso sangue frio.

— Pois eu acreditava, ao contrário, que ele devesse inspirar confiança a Vossa Eminência.

— E Bernouin, não poderei levá-lo?

— Não há lugar no carro. Mais tarde irá ter com Vossa Eminência.

— Vamos — conformou-se Mazarino — já que é preciso obedecer-vos em tudo.

— Monsenhor, ainda há tempo para recuar — disse d'Artagnan — e Vossa Eminência é perfeitamente livre.

— Não, não! Partamos.

E desceram pela escada secreta. Mazarino apoiava no braço de d'Artagnan o seu braço, que o mosqueteiro sentia tremer.

Atravessaram os pátios do Palais-Royal, onde se viam ainda alguns carros de convivas retardados, passaram ao jardim e chegaram ao portãozinho.

Mazarino tentou abri-lo com a ajuda de uma chave que tirou do bolso, mas a mão lhe tremia de tal sorte que não conseguia encontrar o buraco da fechadura.

— Dê-me a chave, Monsenhor — pediu d'Artagnan. Mazarino deu-lhe a chave; d'Artagnan abriu e enfiou a chave no bolso; esperava tornar a entrar por lá.

O estribo do carro fora abaixado, a porta estava aberta; Mousqueton esperava à portinhola, Porthos instalara-se no fundo do coche.

— Suba, Monsenhor — disse d'Artagnan.

Mazarino não se fez de rogado e atirou-se no interior do carro.

D'Artagnan subiu atrás dele, Mousqueton fechou a portinhola e empoleirou-se, gemendo, atrás do veículo. Relutara um pouco antes de partir a pretexto de que o ferimento ainda lhe doía, mas d'Artagnan lhe dissera:

— Ficai, se quiserdes, meu caro Sr. Mouston, mas eu vos previno de que Paris será queimada esta noite.

Diante disso Mousqueton não perguntara mais nada e declarara estar pronto para seguir o amo e o Sr. d'Artagnan até ao fim do mundo.

O carro partiu a um trote razoável, que não indicava de maneira nenhuma que levava gente apressada. O Cardeal enxugou a testa com o lenço e olhou à sua volta.

Tinha à esquerda Porthos e à direita d'Artagnan; cada um deles guardava uma portinhola, cada qual lhe servia de reparo.

No banco da frente, viam-se dois pares de pistolas, um par diante de Porthos e outro diante de d'Artagnan; além disso, cada um dos amigos levava uma espada à cinta.

A cem passos do Palais-Royal uma patrulha deteve o carro.

— Quem vem lá? — perguntou o chefe.

— Mazarino! — respondeu d'Artagnan, dando uma gargalhada.

O Cardeal sentiu que os cabelos se lhe eriçavam na cabeça.

A brincadeira pareceu engraçadíssima aos burgueses, que, vendo o carro sem armas e sem escolta, nunca teriam acreditado na realidade de semelhante imprudência.

— Boa viagem! — gritaram. E deixaram passar o carro.

— Hein! — disse d'Artagnan — que pensa Vossa Eminência dessa resposta?

— Sois um homem de espírito! — exclamou Mazarino.

— De fato — disse Porthos — compreendo...

No meio da rue des Petits-Champs, segunda patrulha deteve o coche.

— Quem vem lá? — gritou o chefe da patrulha.

— Esconda-se, Monsenhor — disse d'Artagnan.

E Mazarino se enfiou de tal maneira no meio dos dois amigos, que desapareceu completamente, escondido por eles.

— Quem vem lá? — tornou a mesma voz, impaciente. D'Artagnan percebeu que os populares se atiravam aos cavalos.

Pôs a metade do corpo para fora da carruagem.

— Eh! Planchet! — disse ele.

O chefe aproximou-se; era efetivamente Planchet. D'Artagnan reconhecera a voz do antigo lacaio.

— Como, senhor! — disse Planchet — sois vós?

— Oh! meu Deus, sim, meu caro amigo. O querido Porthos acaba de levar uma espadeirada e quero ver se o conduzo à sua casa de campo de Saint-Cloud.

— Oh! sim? — tornou Planchet.

— Porthos — continuou d'Artagnan — se ainda podes alfar, meu caro Porthos, dize uma palavrinha ao bom Planchet.

— Planchet, meu amigo — acudiu Porthos com voz dolente — estou muito mal e, se encontrares um médico, faze-me o favor de mandar-mo.

— Ah! Santo Deus! — exclamou Planchet. — Que desgraça! E como foi isso?

— Depois te contarei — interveio Mousqueton. Porthos despediu profundíssimo gemido.

— Manda que nos abram caminho, Planchet — disse em voz baixa d'Artagnan — ou ele não chegará com vida: os pulmões foram atingidos, meu amigo.

Planchet sacudiu a cabeça como quem diz: Nesse caso, a coisa vai mal.

E, voltando-se para os seus homens:

— Deixai passar — ordenou — são amigos.

O carro reiniciou a marcha e Mazarino, que retivera o fôlego, atreveu-se a respirar.

— Bricconi! — murmurou.

Alguns passos antes da porta de Saint-Honoré encontraram uma terceira tropa, de gente mal encarada que mais parecia uma recua de bandidos que outra coisa qualquer: eram os homens do mendigo de Saint-Eustache.

— Atenção, Porthos! — disse d'Artagnan. Porthos estendeu a mão para as pistolas.

— Que aconteceu? — perguntou Mazarino.

— Monsenhor, creio que estamos em má companhia. Um homem aproximou-se da portinhola com uma espécie de foice na mão.

— Quem vem lá? — perguntou.

— Eh! maroto — disse d'Artagnan — não reconheces a carruagem do Sr. Príncipe?

— Príncipe ou não — tornou o homem — abri! Temos a guarda da porta e ninguém passará sem sabermos quem passa.

— Que fazer? — perguntou Porthos.

— Hom'essa! Passar — disse d'Artagnan.

— Mas passar como? — acudiu Mazarino.

— Pelo meio ou por cima deles. Cocheiro, a galope. O cocheiro ergueu o chicote.

— Nem mais um passo — gritou o homem que parecia ser o chefe — ou corto os jarretes dos cavalos.

— Diabo! — disse Porthos — seria pena! Cavalos que me custaram cem pistolas cada um!

— Eu vos darei duzentas — prometeu Mazarino.

— Sim, mas depois que lhes cortarem os jarretes nos cortarão os pescoços.

— Vem vindo um para o meu lado — anunciou Porthos; — mato-o?

— Sim; mas com um murro, se puderes; só devemos fazer fogo em último recurso.

— Posso — afirmou Porthos.

— Vem abrir, então — gritou d'Artagnan para o homem da foice, pegando numa das pistolas pelo cano e preparando-se para dar com a coronha.

Este se aproximou.

À proporção que se aproximava, d'Artagnan, para ter maior liberdade de movimentos, projetava o corpo pela portinhola; os seus olhos cravaram-se nos do mendigo, visível à luz de uma lanterna.

O outro, sem dúvida, reconheceu o mosqueteiro, pois empalideceu horrivelmente; e d'Artagnan devia tê-lo também reconhecido, pois os cabelos se lhe eriçaram na cabeça.

— Sr. d'Artagnan! — exclamou o mendigo, recuando um passo — Sr. d'Artagnan! Deixai passar!

Talvez d'Artagnan fosse responder-lhe por seu turno, mas um golpe semelhante ao de um maço que cai sobre a cabeça de um boi ecoou: era Porthos que acabava de esmurrar o seu homem.

D'Artagnan voltou-se e viu o desgraçado estatelado a quatro passos de distância.

— Agora, dispara! — gritou ao cocheiro; — dispara! dispara!

O cocheiro envolveu os cavalos com ampla chicotada e os nobres animais saltaram, para a frente. Ouviram-se gritos como de homens derrubados. Depois, uma dupla sacudidela: duas rodas acabavam de passar sobre um corpo flexível e redondo.

Fez-se um momento de silêncio. O carro transpôs a porta.

— Ao Cours-la-Reine! — gritou d'Artagnan ao cocheiro. E, voltando-se para Mazarino:

— Agora, Monsenhor — disse ele — Vossa Eminência pode rezar cinco Padre-Nossos e cinco Ave-Marias para agradecer a Deus a sua libertação; Vossa Eminência está salvo, Vossa Eminência está livre!

Mazarino respondeu apenas com uma espécie de gemido, pois não podia acreditar em semelhante milagre.

Cinco minutos depois o carro parou; chegara ao Cours-la-Reine.

— Vossa Eminência está satisfeito com a escolta? — perguntou o mosqueteiro.

— Encantado, senhor — respondeu Mazarino, aventurando a cabeça por uma das portinholas; — agora fazei o mesmo pela Rainha.

— Será menos difícil — disse d'Artagnan, saltando em terra. — Sr. du Vallon, recomendo-vos Sua Eminência.

— Fica descansado — prometeu Porthos estendendo-lhe a mão.

D'Artagnan tomou-a e apertou-a.

— Ai! — gemeu o gigante.

D'Artagnan considerou o amigo com espanto.

— Que foi? — perguntou.

— Parece-me que tenho o pulso esmagado — disse Porthos.

— Que diabo! Mas também esmurras como um surdo.

— Era preciso! O homem ia desfechar-me um tiro de pistola. Mas tu, como te livraste do teu?

— Oh! o meu — disse d'Artagnan — não era um homem.

— Que era, então?

— Um espectro.

— E...

— Conjurei-o.

E sem mais explicações, d'Artagnan pegou nas pistolas que estavam no banco da frente, enfiou-as na cinta e, não querendo voltar à barreira pela qual saíra, encaminhou-se para a porta de Richelieu.

 

O CARRO DO SR. COADJUTOR

 

EM vez de voltar pela porta de Saint-Honoré, d'Artagnan, que ainda tinha tempo, deu a volta e entrou pela porta de Richelieu. Detiveram-no para reconhecê-lo e quando viram, pelo chapéu de plumas e pela capa agaloada que era oficial dos mosqueteiros, cercaram-no com a intenção de fazê-lo gritar: "Morra Mazarino!" A princípio, essa primeira demonstração não deixou de inquietá-lo; mas quando soube de que se tratava, gritou com tamanho entusiasmo que até os mais exigentes ficaram satisfeitos.

Ele seguia a rue de Richelieu, imaginando a maneira pela qual conduziria também a Rainha, pois seria impossível levá-la numa carruagem com as armas de França, quando, à porta do palácio da Sra. de Guéménée (49) avistou um carro.

(49) Ana de Rohan, Princesa de Guéménée. A particularidade mais curiosa da vida dessa princesa, que detestava a Sra. de Chevreuse, sua cunhada, eram as crises furiosas de devoção depois de uma série de aventuras muito pouco religiosas. Passada a crise, voltava às aventuras com maior entusiasmo ainda. Lindíssima, foi também amante do Cardeal de Retz, quando este era ainda o Sr. Coadjutor. (N. do T.)

 

Súbita idéia iluminou-o.

— Ah! por Deus — disse entre si — seria uma boa tática.

Aproximou-se do carro, examinou os brasões gravados na portinhola e a libré do cocheiro sentado na boléia.

O exame lhe foi tanto mais fácil quanto o cocheiro dormia a sono solto.

— É o carro do Sr. Coadjutor; começo a acreditar que a Providência está conosco.

Subiu em silêncio no carro e, puxando o fio de seda amarrado ao dedinho do cocheiro:

— Ao Palais-Royal! — disse ele.

Acordando sobressaltado, dirigiu-se o cocheiro para o ponto designado, certo de que a ordem vinha do amo. O suíço ia fechar os portões; mas, vendo o carro magnífico, imaginou tratar-se de uma visita importante e deixou passar o coche, que se deteve debaixo do peristilo.

Só aí percebeu o cocheiro que os lacaios não estavam atrás do carro.

Supôs que o Sr. Coadjutor os tivesse mandado embora, pulou da boléia sem largar as rédeas e foi abrir.

D'Artagnan saltou em terra no momento em que o cocheiro, assustado por não reconhecer o amo, dava um passo para trás, segurou-o pelo colarinho com a mão direita e, com a esquerda, lhe encostou uma pistola na garganta:

— Tenta pronunciar uma palavra — declarou d'Artagnan — e estás morto.

O cocheiro compreendeu, pela expressão do rosto do interlocutor, que caíra numa cilada e ficou de boca aberta e olhos esbugalhados.

Dois mosqueteiros estavam de quarto. D'Artagnan chamou-os pelos nomes.

— Sr. de Bellière — disse a um deles — fazei-me o favor de tomar as rédeas das mãos deste bravo homem, subir na boléia do carro, conduzi-lo à porta da escada secreta e esperar-me lá; é assunto importante: serviço de El-Rei.

O mosqueteiro, que sabia o seu tenente incapaz de uma brincadeira de mau gosto quando se tratava de serviço, obedeceu sem murmurar, se bem a ordem lhe parecesse esquisita.

Em seguida, voltando-se para o segundo mosqueteiro:

— Sr. du Verger — disse ele — ajudai-me a conduzir este homem a um sítio seguro.

Imaginou o mosqueteiro que o seu tenente acabasse de prender algum príncipe disfarçado, inclinou-se e, puxando da espada, fez sinal de que estava pronto.

D'Artagnan subiu a escada seguido do prisioneiro, que, por sua vez, era seguido do mosqueteiro, atravessou o vestíbulo e entrou na antecâmara de Mazarino.

Bernouin esperava, impaciente, notícias do amo.

— E então, senhor? — perguntou.

— Tudo vai às mil maravilhas, meu caro Sr. Bernouin; mas aqui está um homem que deveríeis por em lugar seguro...

— Onde?

— Onde quiserdes, contanto que o lugar escolhido tenha postigos que se possam fechar com cadeados e porta que se possa fechar a chave.

— Temos um lugar assim — disse Bernouin.

E conduziram o pobre cocheiro a um gabinete de janelas gradeadas, muitíssimo parecido com uma prisão.

— Agora, meu caro amigo — volveu d’Artagnan — eu vos convido a desfazer-vos, em meu favor, do chapéu e da capa.

O cocheiro, como é perfeitamente compreensível, não opôs a menor resistência; sentia-se, aliás, tão espantado com o que lhe sucedia que cambaleava e balbuciava como um borracho: d'Artagnan pôs tudo debaixo do braço do escudeiro.

— Agora, Sr. du Verger — prosseguiu d'Artagnan — fechai-vos com este homem até que o Sr. Bernouin venha abrir a porta; a espera será razoavelmente longa e pouquíssimo divertida, eu sei, mas que se há de fazer? — ajuntou em tom grave. — Serviço de El-Rei.

— Às vossas ordens, meu tenente — respondeu o mosqueteiro, que percebeu tratar-se de assunto importante.

— A propósito — continuou d'Artagnan — se ele tentar fugir ou gritar, atravessai-lhe o corpo com a espada.

O mosqueteiro fez um sinal com a cabeça indicando que obedeceria pontualmente à ordem.

D’Artagnan saiu levando Bernouin. Soava meia-noite.

— Conduzi-me ao oratório da Rainha — disse ele; — avisai-a de que estou aqui e colocai-me este pacote, com um mosquete bem carregado, na boléia do carro que espera ao pé da escada secreta.

Bernouin Introduziu d'Artagnan no oratório, onde este se quedou, pensativo.

Tudo se passara no Palais-Royal como habitualmente. Às dez horas, como já dissemos, quase todos os convivas se haviam retirado; os que deviam fugir com a Corte já conheciam as suas instruções e tinham sido convidados a comparecer entre meia-noite e uma hora no Cours-la-Reine.

Às dez horas, Ana d'Áustria passara pelos aposentos do Rei. Tinham acabado de deitar Monsieur; e o jovem Luís, que ficara por último,' divertia-se colocando em ordem de batalha uns soldadinhos de chumbo, exercício que lhe proporcionava extraordinário prazer. Dois meninos fidalgos brincavam com ele.

— Laporte — disse a Rainha — já é tempo de deitar Sua Majestade.

El-Rei pediu para ficar acordado mais um pouco, pois não tinha vontade de dormir; mas a Rainha insistiu.

— Não vais amanhã cedo, às seis horas, tomar banho em Conflans, Luís? Tu mesmo o pediste, se não me engano.

— Tendes razão, senhora — respondeu El-Rei — e estou pronto para recolher aos meus aposentos assim que me tiverdes dado um beijo. Laporte, dai o castiçal ao Sr. de Coislin.

A Rainha pousou os lábios sobre a testa branca e lisa que lhe estendeu a augusta criança com uma gravidade que já cheirava à etiqueta.

— Procura dormir depressa, Luís — disse a Rainha — pois serás despertado bem cedinho.

— Farei o possível para obedecer-vos, senhora — respondeu o jovem Luís — mas não sinto nenhuma vontade de dormir.

— Laporte — disse baixinho Ana d'Áustria — procura ler um livro bem cacete para Sua Majestade, mas conserva-te vestido.

El-Rei saiu acompanhado pelo Cavaleiro de Coislin, que lhe levava o castiçal. O outro menino fidalgo foi reconduzido aos seus aposentos.

A Rainha recolheu ao quarto. As damas, isto é, a Sra. de Brégy, a Srta. de Beaumont, a Sra. de Motteville e Socratine, sua irmã, assim alcunhada em razão de seu juízo, acabavam de trazer-lhe ao guarda-roupa sobras do jantar, com as quais ceava segundo o seu costume.

A Rainha deu as suas ordens, falou num banquete que lhe ofereceria dois dias depois o Marquês de Villequier, designou as pessoas a que concedia a honra de participarem dele, anunciou para o dia seguinte mais uma visita ao Valde-Grace, onde tencionava cumprir as suas devoções, e ordenou a Béringhen, primeiro camarista, que a acompanhasse.

Concluída a ceia, fingiu-se cansadíssima e passou ao quarto de dormir. A Sra. de Motteville, que estava de serviço particular nesse dia, seguiu-a e ajudou-a a despir-se. A Rainha deitou-se, conversou afetuosamente com ela durante alguns minutos e dispensou-a.

Nesse momento entrava d'Artagnan no pátio do Palais-Royal com o carro do Coadjutor.

Volvido um instante, saíam as carruagens das damas de honra e fechava-se o portão.

Soava meia-noite.

Cinco minutos depois, Bernouin batia à porta do quarto de dormir da Rainha, vindo pela passagem secreta do Cardeal.

Ana d'Áustria foi abrir pessoalmente.

Já estava vestida, isto é, tornara a calçar as meias e envolvera-se em comprido penteador.

— És tu, Bernouin? — perguntou. — Já chegou o Sr. d'Artagnan?

— Já, senhora. Está no oratório e espera que Vossa Majestade esteja pronta.

— Estou pronta. Dize a Laporte que desperte e vista El-Rei; em seguida, procura o Marechal de Villeroy (50) e avisa-o de minha parte.

(50) Nicolau de Neufville, Marquês de Villeroy. Cortesão vil e abjeto, costumava dizer, com a sua alma de lacaio: "precisamos segurar o penico para os ministros enquanto estão no poder e despejá-lo na cabeça deles assim que começam a escorregar." Não obstante (ou talvez por isso mesmo) foi nomeado preceptor de Luís XIV, que sempre lhe consagrou muita afeição. Chegou a marechal, duque e par de França. (N. do T.)

 

Bernouin inclinou-se e saiu.

A Rainha entrou no oratório, aluminado por uma única lâmpada, de miçangas venezianas. Viu d'Artagnan em pé, à sua espera.

— Sois vós?

— Sim, Senhora.

— Estais pronto?

— Estou.

— E o Cardeal?

— Saiu sem novidade e espera Vossa Majestade no Cours-la-Reine.

— Em que carro partiremos?

— Já previ tudo. Um coche espera, embaixo, por Vossa Majestade.

— Vamos aos aposentos do Rei. D'Artagnan inclinou-se e seguiu a Rainha.

O jovem Luís já estava vestido, e só lhe faltavam os sapatos e o gibão; deixava-se vestir com ar espantado, crivando de perguntas Laporte, que lhe respondia por estas palavras:

— Sire, são ordens da Rainha.

A cama estava desfeita e os lençóis do Rei eram tão surrados que, em certos lugares, se viam buracos.

Outro efeito da sovinice de Mazarino.

A Rainha entrou e d'Artagnan estacou no limiar da porta. Avistando a mãe, a criança desvencilhou-se das mãos de Laporte e correu para ela.

A Rainha fez sinal a d'Artagnan que se aproximasse.

D'Artagnan obedeceu.

— Meu filho — disse Ana d'Áustria mostrando-lhe o mosqueteiro calmo, em pé, sem chapéu — aqui está o Sr. d'Artagnan, valente como um daqueles antigos paladinos, cuja história tanto gostas que te contem as minhas aias. Lembra-te do seu nome e olha bem para ele, a fim de não lhe esqueceres o rosto, pois esta noite nos prestará um grande serviço.

O jovem Rei considerou o oficial com os grandes olhos sobranceiros e repetiu:

— O Sr. d'Artagnan?

— Sim, meu filho.

Luís ergueu lentamente a mãozinha e estendeu-a ao mosqueteiro; este pôs um joelho em terra e beijou-a.

— O Sr. d'Artagnan — repetiu Luís. — Está bem, senhora.

Nesse momento se ouviu um como rumor, que se aproximava.

— Que é isso? — perguntou a Rainha.

— Oh! oh! — respondeu d'Artagnan, aplicando ao mesmo tempo o ouvido aguçado e o olhar inteligente — é o povo que se agita.

— Precisamos fugir — bradou a Rainha.

— Vossa Majestade entregou-me a direção desta empresa; precisamos ficar e saber o que ele quer.

— Sr. d'Artagnan!

— Respondo por tudo.

Nada se comunica mais rapidamente que a confiança. Possuidora de energia e coragem, a Rainha apreciava no mais alto grau essas duas virtudes nos outros.

— Está bem — disse ela — fio-me de vós.

— Permite Vossa Majestade que em todo este assunto eu dê ordens em seu nome?

— Ordenai.

— Que mais quer esse povo? — perguntou o Rei.

— É o que vamos saber, Sire — disse d'Artagnan.

E saiu rapidamente do quarto.

O tumulto aumentava cada vez mais e parecia envolver todo o Palais-Royal. Ouviam-se gritos do interior cujo sentido era incompreensível. Havia, evidentemente, clamor e sedição. El-Rei, meio vestido, a Rainha e Laporte continuaram quase na mesma posição e no mesmo lugar, ouvindo e esperando.

Comminges, que nessa noite estava de guarda no Palais-Royal, acudiu; tinha uns duzentos homens espalhados pelos pátios e pelas cavalariças e colocou-os à disposição da Rainha.

— E então? — perguntou Ana d'Áustria vendo reaparecer d'Artagnan. — Que há?

— Há, senhora, que se espalhou o boato de que a Rainha deixara o Palais-Royal levando consigo El-Rei, e o povo quer ter a prova do contrário ou ameaça demolir o Palais-Royal.

— Oh! isso também é demais! — exclamou a Rainha —. e vou provar-lhes que ainda estou aqui.

Pela expressão do rosto da Rainha percebeu d'Artagnan que ela ia dar uma ordem violenta. Aproximou-se e disse-lhe, baixinho:

— Vossa Majestade ainda tem confiança em mim? Essa voz fê-la estremecer.

— Tenho, senhor, toda a confiança — respondeu... — Falai.

— Dignar-se-á Vossa Majestade guiar-se pelos meus conselhos?

— Falai.

— Dispense Vossa Majestade o Sr. de Comminges e ordene-lhe que se feche, com os seus homens, no corpo da guarda e nas cavalariças.

Comminges considerou d'Artagnan com o olhar invejoso com que todo cortesão vê surgir um novo áulico.

— Ouviste, Comminges? — acudiu a Rainha. D'Artagnan aproximou-se dele, pois reconhecera, com a sua habitual sagacidade, aquele olhar inquieto.

— Sr. de Comminges — murmurou — perdoai-me; somos ambos servidores da Rainha, não é verdade? É a minha vez de lhe ser útil, não me invejeis essa ventura.

Comminges inclinou-se e saiu.

— Pronto! — cuidou entre si d'Artagnan — arranjei mais um inimigo!

— E agora — acudiu a Rainha dirigindo-se a d'Artagnan — que é preciso fazer? Pois, como podereis ouvir, o barulho aumenta em vez de se abrandar.

— Senhora — replicou d'Artagnan — o povo quer ver o Rei; é preciso que o veja.

— Que o veja? Como? Onde? No balcão?

— Não, senhora, aqui, na cama, dormindo.

— Oh! Majestade, o Sr. d'Artagnan tem razão! — sobreveio Laporte.

A Rainha refletiu e sorriu, como mulher a quem a astúcia não é estranha.

— Da fato — murmurou.

— Sr. Laporte — disse d'Artagnan — anunciai ao povo, pelos portões do Palais-Royal, que ele será satisfeito e que, dentro em cinco minutos, não somente verá El-Rei mas o verá deitado; acrescentai que El-Rei dorme e que a Rainha pede que não façam ruído para não o despertar.

— Mas todo o povo, não! Uma deputação de duas ou quatro pessoas?

— Todo o povo, senhora.

— Mas ele nos prenderão aqui a noite inteira!

— Não ficarão mais de um quarto de hora. Respondo por tudo; creia-ma Vossa Majestade, conheço o povo: é uma criança grande que se contenta com carícias. Diante do Rei adormecido ficará mudo, manso e tímido como um cordeiro.

— Vai, Laporte — disse a Rainha. O jovem Rei aproximou-se da mãe.

— Por que fazer o que essa gente pede? — perguntou.

— É preciso, meu filho — disse Ana d'Áustria.

— Mas então, se me dizem é preciso, já não sou rei?

A Rainha emudeceu.

— Sire — acudiu d'Artagnan — permite-me Vossa Majestade fazer-lhe uma pergunta?

Luís XIV voltou-se, admirado de que alguém ousasse dirigir-lhe a palavra; a Rainha apertou a mão da criança.

— Permito.

— Não se lembra Vossa Majestade, quando brincara no parque de Fontainebleau ou nos pátios do palácio de Versalhes, de ter visto toldar-se repentinamente o céu e ouvido o barulho do trovão?

— Sem dúvida.

— Pois bem! esse barulho do trovão, apesar do grande desejo que tinha Vossa Majestade de continuar brincando, dizia-lhe: "Recolha-se, Sire, que é preciso."

— Sem dúvida, senhor; mas também me disseram que o barulho do trovão era a voz de Deus.

— Pois bem, Sire — tornou d'Artagnan — ouça Vossa Majestade o barulho do povo e verá que é muito semelhante ao do trovão.

Com efeito, passava nesse momento um rumor terrível nas asas da brisa noturna.

De repente, porém, cessou.

— Veja, Sire — disse d'Artagnan — acabam de dizer ao povo que Vossa Majestade está dormindo; como vê, Vossa Majestade é sempre rei.

A Rainha considerava com espanto aquele homem singular, cuja extraordinária coragem o igualava aos mais bravos e cujo espírito sutil e astuto, a todos.

Laporte entrou.

— E então, Laporte? — perguntou a Rainha.

— Senhora — respondeu o interpelado — cumpriu-se a predição do Sr. d'Artagnan: o povo acalmou-se como por encanto. Vão abrir os portões e dentro em cinco minutos estarão aqui.

— Laporte — disse a Rainha — se pusesses um de teus filhos no lugar de El-Rei, poderíamos partir nesse em meio.

— Se vossa Majestade o ordenar — retrucou Laporte — os meus filhos, como eu, estamos ao serviço da Rainha.

— Não — atalhou d'Artagnan — pois se alguém conhecesse Sua Majestade e percebesse o subterfúgio, tudo estaria perdido.

— Tendes razão, senhor, como sempre — concordou Ana d'Áustria. — Laporte, deita El-Rei.

Laporte deitou o Reizinho, vestido como estava, e cobriu-o até aos ombros com o lençol.

A Rainha inclinou-se sobre ele e beijou-lhe a testa. -— Finge que estás dormindo, Luís — disse ela.

— Pois sim — conveio El-Rei — mas não quero que nenhum desses homens me toque.

— Sire, estou aqui — declarou d'Artagnan — e garanto a Vossa Majestade que se alguém tiver essa ousadia pagá-lo-á com a vida.

— E agora, que havemos de fazer? — perguntou a Rainha. — Já os ouço.

— Sr. Laporte, ide ao encontro do povo e recomendai-lhe novamente que faça silêncio. Senhora, espere Vossa Majestade à porta. Ficarei à cabeceira de El-Rei, pronto a morrer por ele.

Laporte saiu, a Rainha quedou-se ao pé do reposteiro e d'Artagnan escondeu-se atrás das cortinas.

Em seguida se ouviu a marcha surda e contida de grande multidão de homens; a própria Rainha ergueu o reposteiro, levando um dedo aos lábios.

Vendo-a, os recém-chegados se detiveram, em atitude respeitosa.

— Entrai, senhores, entrai — convidou a Rainha.

Notou-se, então, no meio de todo aquele povo, um movimento de hesitação, que se diria produzido pela vergonha: esperava encontrar resistência, esperava ser contrariado, forçar os portões e derrubar os guardas; os portões se haviam aberto sozinhos e El-Rei, pelo menos ostensivamente, não tinha à cabeceira outro guarda que sua mãe.

Os que vinham na frente balbuciaram qualquer coisa e tentaram recuar.

— Entrai, senhores — disse Laporte — visto que a Rainha o permite.

Mais atrevido que os outros, um dos presentes transpôs a soleira da porta e adiantou-se, pé ante pé. Todos o imitaram, e o quarto se encheu silenciosamente, como se aqueles homens fossem humílimos e dedicadíssimos cortesãos. Além da porta notavam-se as cabeças dos que, não tendo podido entrar, se erguiam na ponta dos pés. D'Artagnan via tudo através de uma frincha que abrira entre as cortinas; no homem que entrou primeiro reconheceu Planchet.

— Senhor — disse-lhe a Rainha, compreendendo que ele era o chefe do bando — desejastes ver El-Rei e eu mesma quis mostrar-vo-lo. Aproximai-vos, contemplai-o e dizei se parecemos gente que tenciona fugir.

— Está visto que não — respondeu Planchet, um tanto admirado da honra inesperada que lhe era concedida.

— Direis então aos meus bons e fiéis parisienses — continuou Ana d'Áustria com um sorriso cuja expressão não iludiu d'Artagnan — que vistes El-Rei deitado e dormindo e a Rainha pronta para deitar-se também.

— Di-lo-ei, senhora, e os que me acompanham o dirão como eu, mas...

— Mas o quê? — perguntou Ana d'Áustria.

— Perdoe-me Vossa Majestade — tornou Planchet — mas será realmente El-Rei quem está deitado nessa cama?

Ana d'Áustria estremeceu.

— Se houver entre vós alguém que o conheça — disse ela — aproxime-se e diga se é realmente Sua Majestade quem está aqui.

Um homem envolto numa capa comprida, com a qual ocultava o rosto, aproximou-se, inclinou-se sobre o leito e olhou.

Por um instante supôs d'Artagnan que aquele homem tivesse um mau desígnio e levou a mão à espada; mas, no movimento que fez ao abaixar-se, o homem da capa descobriu parte do rosto e d'Artagnan reconheceu o Coadjutor.

— É, de fato, El-Rei — disse o homem, erguendo-se. — Deus abençoe Sua Majestade!

— Sim — repetiu a meia voz o chefe — Deus abençoe Sua Majestade!

E aqueles homens, que tinham entrado furiosos, passando da cólera à piedade, abençoaram por sua vez a real criança.

— Agora — disse Planchet — agradeçamos à Rainha, meus amigos, e retiremo-nos.

Todos se inclinaram e saíram a pouco e pouco, sem ruído, como tinham chegado. Planchet, que entrara primeiro, saiu por último.

A Rainha deteve-o.

— Como vos chamais, meu amigo?

Planchet voltou-se, muito espantado com a pergunta.

— Sim — continuou a Rainha — sinto-me tão honrada de ter-vos recebido esta noite quanto se fósseis um príncipe, e desejo saber o vosso nome.

— Para tratar-me como a um príncipe — refletiu Planchet. — Não, obrigado.

Receou d'Artagnan que Planchet, seduzido como o corvo da fábula, dissesse o seu nome, e que a Rainha, conhecendo-o, soubesse que Planchet lhe pertencera.

— Senhora — respondeu respeitosamente Planchet — chamo-me Dulaurier, para servir Vossa Majestade.

— Obrigada, Sr. Dulaurier — tornou a Rainha — e que ofício tendes?

— Sou mercador de panos, senhora, na rue des Bourdonnais.

— Era precisamente o que eu queria saber; muito obrigada, meu caro Sr. Dulaurier, tereis notícias minhas.

— Vamos, vamos — murmurou d'Artagnan, saindo de trás das cortinas — decididamente mestre Planchet não é tolo e vê-se que foi educado em boa escola.

Os diversos atores da estranha cena quedaram por um instante imóveis, sem pronunciar uma palavra: a Rainha em pé ao lado da porta, d'Artagnan com a metade do corpo fora do esconderijo, El-Rei soerguido sobre o cotovelo e pronto para deitar-se ao menor ruído que indicasse o regresso da multidão; mas, em lugar de voltar, afastou-se o rumor cada vez mais e de todo se extinguiu.

A Rainha respirou; d'Artagnan enxugou a testa úmida; El-Rei saltou do leito, dizendo:

— Partamos.

Nesse momento reapareceu Laporte.

— E então? — perguntou Ana d'Áustria.

— Então, senhora — redargüiu o camarista — segui-os até o portão; eles anunciaram aos camaradas que tinham visto El-Rei e que a Rainha lhes dirigira a palavra, e todos se afastaram, orgulhosos e satisfeitos.

— Miseráveis! — murmurou a Rainha — hão de pagar caro a ousadia, prometo-lhes!

Logo, voltando-se para d'Artagnan:

— Senhor — disse ela — vós me destes esta noite os melhores conselhos que já recebi na vida. Continuai: que devemos fazer agora?

— Sr. Laporte — disse d'Artagnan — acabai de vestir Sua Majestade.

— Podemos partir? — indagou a Rainha.

— Quando quiser Vossa Majestade; bastar-lhe-á descer pela escada secreta, que me encontrará à porta.

— Ide, senhor — disse a Rainha — que eu vos sigo. D'Artagnan desceu e encontrou o carro no lugar e o mosqueteiro na boléia.

D'Artagnan pegou no pacote que encarregara Bernouin de colocar aos pés do mosqueteiro. Eram, como o leitor há de lembrar-se, o chapéu e a capa do Sr. de Gondy.

Pôs a capa nos ombros e o chapéu na cabeça.

O mosqueteiro desceu da boléia.

— Senhor — disse d'Artagnan — devolvereis a liberdade ao vosso companheiro que está guardando o cocheiro. Montareis a cavalo, ireis buscar, na rue Tiquetonne, hospedaria da Chevrette, o meu cavalo e o do Sr. du Vallon, que selareis e armareis; em seguida, saireis de Paris levando-os pela mão e ireis ter ao Cours-la-Reine. Se no Cours-la-Reine não encontrardes ninguém, ireis a Saint-Germain. Serviço de El-Rei.

O mosqueteiro levou a mão ao chapéu e afastou-se para cumprir as ordens recebidas.

D'Artagnan acomodou-se na boléia.

Trazia um par de pistolas na cinta, um mosquete debaixo dos pés e uma espada nua atrás de si.

Surgiu a Rainha; atrás dela vinham El-Rei e o Sr. Duque de Anjou, seu irmão.

— O coche do Sr. Coadjutor! — exclamou ela, recuando um passo.

— Sim, senhora — disse d'Artagnan — mas suba sem medo Vossa Majestade; sou eu quem conduz.

A Rainha despediu um grito de surpresa e subiu no carro. El-Rei e Monsieur subiram depois dela e sentaram-se ao seu lado.

— Vem, Laporte — disse a Rainha.

— Como, senhora! — retrucou o camarista — no mesmo carro de Vossa Majestade?

— Não se trata esta noite de etiqueta real, senão da salvação de El-Rei. Sobe, Laporte!

Laporte obedeceu.

— Fechai as portinholas — disse d'Artagnan.

— Mas isso não despertará suspeitas? — perguntou a Rainha.

— Tranqüilize-se Vossa Majestade — tornou d'Artagnan — tenho uma resposta preparada.

Fecharam-se as portinholas e o carro partiu à desfilada pela rue de Richelieu. Ao chegar à porta, adiantou-se o chefe do posto à frente de uma dúzia de homens, com uma lanterna na mão.

D'Artagnan fez-lhe sinal para que se aproximasse.

— Reconheceis o carro? — perguntou ao sargento.

— Não — respondeu o interpelado.

— Examinai as armas.

O sargento aproximou a lanterna da portinhola.

— São do Sr. Coadjutor!

— Pssiu! Ele está-se distraindo com a Sra. de Guémenée. O sargento pegou a rir.

— Abri a porta — ordenou — já sei quem é. Depois, aproximando-se da portinhola cerrada:

— Divirta-se bastante, Monsenhor! — disse ele.

— Indiscreto! — gritou d'Artagnan — ainda fareis que me despeçam.

A porta rangeu nos gonzos e, vendo aberto o caminho, d'Artagnan chicoteou vigorosamente os cavalos, que partiram a galope.

Cinco minutos depois encontravam a carruagem do Cardeal.

— Mousqueton — gritou d'Artagnan — abri as portinholas do carro de Sua Majestade.

— É ele — disse Porthos.

— Feito cocheiro! — exclamou Mazarino.

— No coche do Coadjutor! — ajuntou a Rainha.

— Corpo di Dio! Sr. d'Artagnan — disse Mazarino — vaieis o vosso peso em ouro.

 

DE COMO D'ARTAGNAN E PORTHOS GANHARAM, O PRIMEIRO DUZENTOS E DEZENOVE E O SEGUNDODUZENTOS E QUINZE LUÍSES, VENDENDO PALHA

 

Mazarino queria partir no mesmo instante para Saint-Germain, mas a Rainha declarou que esperaria as pessoas com as quais marcara encontro. Entretanto, ofereceu ao Cardeal o lugar de Laporte. O Cardeal aceitou e passou de um carro a outro.

Não fora à toa que se espalhara o boato de que o Rei deixaria Paris durante a noite: dez ou doze pessoas conheciam o segredo da fuga desde as seis horas da tarde, e, por discretas que fossem, não tinham podido dar as ordens de partida sem que a coisa transpirasse um pouco. Além disso, cada uma delas tinha mais uma ou duas pelas quais se interessava; e como ninguém duvidasse de que a Rainha deixaria Paris com terríveis projetos de vingança, cada qual avisara os amigos ou parentes: de sorte que a notícia da partida se propagara como rastilho de pólvora pelas ruas da cidade.

O primeiro carro que chegou após o da Rainha foi o do Sr. Príncipe, em que vinham o Sr. de Conde, a Sra. Princesa e a Sra. Princesa viúva. As duas haviam sido despertadas durante a noite e não sabiam de que se tratava.

O segundo trazia o Sr. Duque de Orleans, a Sra. Duquesa, a Grande Mademoiselle e o Pe. de La Rivière, favorito inseparável e íntimo conselheiro do príncipe.

No terceiro viajavam o Sr. de Longueville e o Sr. Príncipe de Conti (51), cunhado e irmão do Sr. Príncipe, que saltaram do carro, aproximaram-se do coche do Rei e da Rainha, e apresentaram suas homenagens a Sua Majestade. A Rainha esquadrinhou com o olhar o fundo da carruagem, cuja porta ficara aberta, e viu que estava vazia.

(51) Armando de Bourbon, Príncipe de Conti, irmão mais moço do Príncipe de Conde. Destinado à carreira eclesiástica, renunciou a ela. Retz o escolheu para chefiar a Fronda e dele diz, a certa altura de suas Memórias: "Creio que não posso descrevê-lo melhor senão dizendo que esse chefe de partido era um zero, que só não se multiplicava por ser príncipe de sangue... A maldade fazia nele o que fazia a fraqueza no Sr. Duque de Orleans: penetrava-lhe todas as outras qualidades, aliás medíocres e eivadas de fraqueza". (N. do T)

 

— Mas onde está a Sra. de Longueville? — perguntou.

— De fato, onde está minha irmã? — sobreveio o Sr. Príncipe.

— A Sra. de Longueville não está passando bem — respondeu o Duque — e pediu-me que apresentasse as suas desculpas a Vossa Majestade.

Ana dirigiu um rápido olhar a Mazarino, que respondeu por um sinal imperceptível de cabeça.

— Que dizeis a isto? — indagou a Rainha.

— Digo que é um refém para os parisienses — respondeu o Cardeal.

— Por que não veio? — perguntou em voz baixa o Sr. Príncipe ao irmão.

— Silêncio! — respondeu o interpelado; — terá as suas razões.

— Ela nos perde — murmurou o Príncipe.

— Ela nos salva — emendou Conti.

Os carros chegavam em quantidade. O Marechal de La Meilleraie, o Marechal de Villeroy, Guitaut, Villequier (52), Comminges, vinham um depois do outro; chegaram também os dois mosqueteiros, trazendo pela mão os cavalos de d'Artagnan e de Porthos. D'Artagnan e Porthos montaram. O cocheiro de Porthos substituiu d'Artagnan na boléia da carruagem real, Mousqueton substituiu o cocheiro, guiando em pé, por um motivo que só ele conhecia, à imagem e semelhança do antigo Automedonte.

(52) O Sr. de Villequier era capitão dos guardas do Rei. (N. do T.)

 

Embora ocupada de mil e um pormenores, a Rainha procurava com os olhos d'Artagnan, mas o gascão, com a prudência de sempre, já se misturara aos outros.

— Vamos à frente — disse ele a Porthos — e procuremos boa pousada em Saint-Germain, pois ninguém se lembrará de nós. Sinto-me cansadíssimo.

— E eu — disse Porthos — estou caindo de sono. E dizer-se que não tivemos nem a sombra de uma batalha! Decididamente os parisienses são muito bocós.

— Ou nós, talvez, somos muito hábeis...

— Talvez.

— E o teu pulso, como vai?

— Melhor; mas achas que desta feito os conseguimos?

— O quê?

— Tu, a tua patente; eu, o meu título?

— À minha fé que sim! Sou quase capaz de apostar. Aliás, se eles não se lembrarem, farei que se lembrem.

— Ouve-se a voz da Rainha — disse Porthos. — Creio que pede para montar a cavalo.

— Oh! ela bem o quisera; mas...

— Mas o quê?

— Mas o Cardeal não quer. Senhores — continuou d'Artagnan dirigindo-se aos dois mosqueteiros — acompanhai a carruagem da Rainha e não deixeis as portinholas. Iremos na frente para preparar acomodações.

E d'Artagnan esporeou o cavalo na direção de Saint-Germain acompanhado de Porthos.

— Partamos, senhores! — ordenou a Rainha.

E pôs-se em marcha a carruagem real, acompanhada de todos os outros carros e mais de cinqüenta cavaleiros.

Chegaram a Saint-Germain sem acidentes; ao por o pé no estribo, a Rainha encontrou o Sr. Príncipe, que, em pé e sem chapéu, lhe oferecia a mão.

— Que belo despertar para os parisienses! — disse Ana d'Áustria radiante.

— É a guerra — observou o Príncipe.

— Pois seja a guerra. Não temos conosco o vencedor de Rocroy, de Nordlingen e de Lens?

Inclinou-se o Conde em sinal de agradecimento.

Eram três horas da madrugada. Foi a Rainha a primeira que entrou no castelo; toda a gente a seguiu; quase duzentas pessoas tinham-na acompanhado na fuga.

— Senhores — disse, rindo, Ana d'Áustria — instalai-vos no castelo: é vasto e não faltarão lugares; mas como ninguém supunha vir aqui esta noite, acabam de avisar-me que só há três camas: uma para o Rei, outra para mim...

— E outra para Mazarino — emendou, baixinho, o Sr. Príncipe.

— Terei, então, de deitar-me no chão? — perguntou Gastão de Orleans com um sorriso muito inquieto (53).

(53) Gastão, Duque de Orleans, irmão de Luís XIII, a quem chamavam Monsieur, era, depois do Rei, do Infante e da Rainha, o personagem mais importante de França. Encantador, espirituoso, amável, mas sem energia, era uma alma de cera que qualquer um podia modelar a seu talante, capaz de todas as traições assim que pressentia a aproximação de um perigo. Esse príncipe, "o mais bonachão e dissoluto de todos os príncipes do mundo", passou a vida no meio de intrigas e revoltas. Participou de todas as conspirações que se tramaram contra a existência de Richelieu, desde a de Chalais até a de Cinq-Mars; descoberta, porém, a intentona, apavorado, Monsieur delatava os cúmplices, abandonava-os à própria sorte e sujeitava-se a todas as humilhações para obter o perdão real. Desempenhou durante a Fronda um papel lamentável, passando constantemente de um partido para outro. (N. do T.)

 

— Não, Monsenhor — respondeu-lhe Mazarino — pois a terceira cama destina-se a Vossa Alteza.

— E vós? — perguntou o Príncipe.

— Não me deitarei — respondeu Mazarino — preciso trabalhar.

Gastão ordenou que lhe mostrassem o quarto onde estava a cama, sem se preocupar com a maneira pela qual se acomodariam a mulher e a filha.

— Pois eu vou-me deitar — anunciou d'Artagnan. — Vem comigo, Porthos.

Porthos seguiu d'Artagnan com a profunda confiança que tinha na inteligência do amigo.

Enquanto caminhavam juntos pelas dependências do castelo, Porthos considerava com olhos arregalados d'Artagnan, que fazia contas nos dedos.

— Quatrocentos e uma pistola cada um, quatrocentas pistolas.

— Sim — dizia Porthos — quatrocentas pistolas; mas onde estão elas?

— Uma pistola é pouco — continuou d'Artagnan; — aquilo vale um luís.

— Que é que vale um luís?

— Quatrocentos, a um luís, são quatrocentos luíses.

— Quatrocentos? — perguntou Porthos.

— Sim, eles são duzentos; cada um precisará, pelo menos, de dois. A dois por pessoa, são quatrocentos.

— Mas quatrocentos o quê?

— Escuta — disse d'Artagnan.

E como estivesse lá uma porção de gente que assistia com assombro à chegada da Corte, terminou a frase baixinho ao ouvido de Porthos.

— Compreendo — disse Porthos — compreendo perfeitamente! Duzentos luíses cada um, é esplêndido; mas que dirão os outros?

— O que quiserem; de resto, quem ficará sabendo que somos nós?

— Mas quem se encarregará da distribuição?

— Mousqueton não está aí?

— E a minha libré? — exclamou Porthos; — reconhecerão a minha libré!

— Ele vestirá a roupa pelo avesso.

— Tens sempre razão, meu caro — bradou Porthos; — mas onde diabo encontras tantas idéias?

D'Artagnan sorriu.

Os dois amigos tomaram pela primeira rua que encontraram; Porthos bateu à porta da casa da direita, ao passo que d'Artagnan batia à porta da casa da esquerda.

— Palha! — disseram.

— Não temos, senhor — responderam as pessoas que os atenderam — mas procurai o fornecedor de forragens.

— E onde mora o fornecedor de forragens?

— No último portão da rua.

— À direita ou à esquerda?

— À esquerda.

— E haverá ainda em Saint-Germain outras pessoas que nos possam fornecê-la?

— Há o estalajadeiro do Mouton Couronné, e Gros-Louis o lavrador.

— Onde moram?

— Na rue des Ursulines.

— Os dois?

— Os dois.

— Muito bem.

Os dois amigos pediram que lhes indicassem o segundo e o terceiro endereços com a mesma exatidão com que lhes haviam indicado o primeiro; em seguida, dirigiu-se d'Artagnan ao vendedor de forragens e tratou com ele a compra de cento e cinqüenta feixes de palha pela importância de três pistolas. Ato contínuo, foi à procura do estalajadeiro, onde encontrou Porthos, que acabava de acertar a compra de duzentos feixes por quantia mais ou menos parecida. Por fim, Luís, o lavrador, pôs à disposição dos amigos cento e oitenta feixes, perfazendo assim um total de quatrocentos e trinta.

Era toda a palha existente em Saint-Germain.

A negociata não levou mais de meia hora. Devidamente industriado, Mousqueton foi colocado à testa do comércio improvisado. Recomendaram-lhe que não cedesse um feixe de palha por menos de um luís e entregaram-lhe a palha, no valor de quatrocentos e trinta luíses.

Mousqueton meneava a cabeça e não compreendia a especulação dos dois amigos.

Com três feixes de palha debaixo do braço, d'Artagnan voltou ao castelo, onde toda a gente, tremendo de frio e caindo de sono, olhava com inveja para o Rei, a Rainha e Monsieur, deitados em seus leitos de campanha.

A entrada de d'Artagnan no salão produziu uma gargalhada universal; mas o mosqueteiro nem sequer pareceu notar que era objeto da atenção geral e pôs-se a arrumar com tanta habilidade, ligeireza e alegria a cama de palha, que deixou com água na boca todos os pobres tresnoitados, que não podiam dormir.

— Palha! — exclamaram — palha! Onde é que há palha?

— Eu vou mostrar-vos — ofereceu-se Porthos.

E conduziu-os a Mousqueton, que dispunha generosamente feixes de palha à razão de um luís o feixe. Todos acharam caro; mas, tendo vontade de dormir, quem não seria capaz de pagar dois ou três luíses por algumas horas de bom sono?

D'Artagnan ia cedendo aos outros a sua cama, que refez dez vezes seguidas; e como se supunha que houvesse pago como toda a gente um luís por feixe, embolsou destarte uma trintena de luíses em menos de meia hora. Às cinco da manhã a palha valia oitenta libras o feixe e já não havia oferta.

D'Artagnan tivera o cuidado de separar feixes para si. Tirou da algibeira a chave do gabinete em que os guardara e, acompanhado de Porthos, foi acertar contas com Mousqueton, que, ingenuamente e como digno intendente que era, lhes entregou quatrocentos e trinta luíses e ainda guardou cem para si.

Não sabendo o que se passara no castelo, Mousqueton não compreendia que não lhe tivesse ocorrido antes a idéia de vender palha.

D'Artagnan pôs o ouro no chapéu e, voltando ao alojamento, fez as contas com Porthos. Tocavam a cada um duzentos e quinze luíses.

Só então percebeu Porthos que não reservara palha para si e voltou à procura de Mousqueton; este, porém, vendera o que tinha e também não guardara uma haste sequer.

Tornou ao pé de d'Artagnan, que, mercê dos seus quatro feixes, já se entretinha em arrumar, antegozando-a, uma cama tão macia, tão bem arranjada para a cabeça e tão bem coberta para os pés, que causaria inveja ao próprio Rei, se o Rei não dormisse tão bem na sua.

D'Artagnan não quis por nada deste mundo, desarrumar a cama para Porthos; mas, mediante quatro luíses, que este lhe deu, consentiu em que o amigo se deitasse com ele.

Colocou a espada à cabeceira, pôs ao lado as pistolas, deitou o chapéu sobre a capa e estendeu-se volutuosamente sobre a palha, que estalava. E já acariciava os doces sonhos que traz a posse de duzentos e dezenove luíses ganhos num quarto de hora, quando se ouviu, à porta da sala, uma voz que o fez saltar.

— Sr. d'Artagnan! — gritava a voz — Sr. d'Artagnan!

— Aqui — disse Porthos — aqui!

Porthos compreendia que, se d’Artagnan saísse, a cama seria inteiramente sua.

Aproximou-se um oficial.

D’Artagnan ergueu-se sobre o cotovelo.

— Sois vós o Sr. d’Artagnan? — perguntou ele. –

— Sou, sim, senhor; que me quereis?

— Venho buscar-vos.

— Da parte de quem?

— De Sua Eminência.

— Dizei a Sua Eminência que vou dormir e que o aconselho, como amigo, a fazer o mesmo.

— Sua Eminência não se deitou nem se deitará, e quer ver-vos incontinenti.

— Raios partam o Mazarino, que não sabe dormir à hora certa! — murmurou d’Artagnan. — Que me quer ele? Fazer-me capitão? Nesse caso, perdôo-o.

E levantou-se resmungando o mosqueteiro, pegou na espada, nas pistolas e na capa e seguiu o oficial, enquanto Porthos, dono de toda a cama, tentava imitar as boas disposições do amigo.

— Sr. d'Artagnan — disse o Cardeal, vendo o homem que mandara chamar tão fora de propósito — não esqueci o zelo com que me servistes e quero dar-vos uma prova disso.

— Bom! — pensou d’Artagnan — a coisa anuncia-se bem. Mazarino contemplava o mosqueteiro e viu expandir-se-lhe o rosto.

— Ah! Monsenhor...

— Tendes muita vontade de ser capitão, Sr. d'Artagnan?

— Tenho, Monsenhor.

— E o vosso amigo ainda deseja ser barão?

— Neste momento, Monsenhor, está sonhando que o é!

— Então — disse Mazarino, tirando de uma pasta a carta que já mostrara ao mosqueteiro — tomais este ofício e levai-o à Inglaterra.

D’Artagnan examinou o invólucro: não tinha endereço.

— Não posso saber a quem devo entregá-la?

— Sabê-lo-eis quando chegardes a Londres; só em Londres abrireis o invólucro externo.

— E quais são as minhas instruções?

— Obedecer religiosamente ao destinatário da carta.

— D'Artagnan ia fazer outras perguntas, quando Mazarino ajuntou:

— Partireis para Bolonha; encontrareis, nas Armes d'Angleterre, um moço fidalgo chamado Sr. Mordaunt.

— Bem, Monsenhor. E que devo fazer com esse moço?

— Segui-lo aonde ele vos levar.

D'Artagnan fitou no Cardeal dois olhos pasmados.

— Já sabeis o que é preciso — disse Mazarino; — ide!

— Ide! É fácil dizer — volveu d'Artagnan; — mas para ir é necessário dinheiro e eu não tenho.

— Ah! — perguntou Mazarino, cocando a orelha — não tendes dinheiro?

— Não, Monsenhor.

— E o brilhante que vos dei ontem à noite?

— Desejo conservá-lo como lembrança de Vossa Eminência.

Mazarino suspirou.

— A vida na Inglaterra é cara, Monsenhor, sobretudo para um enviado extraordinário.

— Hein? — acudiu Mazarino. — É um país muito sóbrio, que vive com simplicidade desde a revolução; mas não importa.

Abriu uma gaveta e dela tirou uma bolsa.

— Que direis de mil escudos?

D'Artagnan esticou desmesuradamente o lábio inferior.

— Digo, Monsenhor, que é pouco, pois com certeza não partirei só.

— Espero que não — respondeu Mazarino. — O Sr. du Vallon vos acompanhará, o digno fidalgo; depois de vós, meu caro Sr. d'Artagnan, é ele sem dúvida o homem que mais prezo e estimo em toda a França.

— Então, Monsenhor — disse d'Artagnan mostrando a bolsa que Mazarino não largara; — então, se Vossa Eminência o preza e estima tanto, há de compreender...

— Seja! em atenção a ele ajuntarei duzentos escudos.

— Forreta! — murmurou d'Artagnan... — Mas quando voltarmos, pelo menos — acrescentou em voz alta — poderemos contar, não é mesmo, o Sr. Porthos com sua baronia e eu com minha patente?

— À fé de Mazarino!

— Eu quisera antes outro juramento — disse entre si d'Artagnan; mas logo, em voz alta: — Não posso apresentar os meus respeitos a sua Majestade, a Rainha?

— Sua Majestade está dormindo — apressou-se em responder Mazarino — e cumpre que partais sem demora; ide, senhor.

— Ainda uma palavrinha, Monsenhor: se houver combate onde eu estiver, deverei combater?

— Fareis o que vos ordenar a pessoa a quem vos dirijo.

— Está bem, Monsenhor — disse d'Artagnan estendendo a mão para receber a bolsa — e deponho aos pés de Vossa Eminência as minhas homenagens.

D'Artagnan enfiou lentamente a bolsa na vasta algibeira e, voltando-se para o oficial:

— Senhor — pediu ele — quereis fazer-me a fineza de ir acordar também o Sr. du Vallon da parte de Sua Eminência e dizer-lhe que o espero nas cavalariças?

O oficial afastou-se imediatamente com uma ligeireza em que d'Artagnan cuidou perceber um disfarçado interesse.

Porthos acabava de estender-se na cama e começava a roncar harmoniosamente, segundo os seus hábitos, quando sentiu que lhe batiam no ombro.

Imaginando que fosse d'Artagnan, nem se mexeu.

— Da parte do Cardeal — disse o oficial.

— Hein? — acudiu Porthos, arregalando os olhos. — Que dizeis?

— Digo que Sua Eminência vos envia à Inglaterra e que o Sr. d'Artagnan vos espera nas cavalariças.

Porthos soltou um gemido profundo, ergueu-se, pegou no chapéu, nas pistolas, na espada e na capa, e saiu dirigindo um pesaroso olhar ao leito em que esperara dormir tão bem.

Tanto que virou as costas, o oficial instalou-se nele e Porthos ainda não transpusera a soleira da porta quando ouviu roncar a mais não poder. Era, aliás, coisa muito natural, visto que, em toda aquela assembléia, só o Rei, a Rainha, o Príncipe Gastão de Orleans e ele dormiam de graça.

 

CHEGAM NOTICIAS DE ARAMIS

 

D’Artagnan se dirigira diretamente à cocheira. O dia principiava a clarear; reconheceu o seu cavalo e o de Porthos amarrados à manjedoura, mas viu a manjedoura vazia. Teve pena dos pobres animais e aproximou-se de um canto em que reluzia uma pouca de palha que escapara, sem dúvida, ao saque noturno; mas ao juntá-la com o pé, a ponta de sua bota encontrou um corpo redondo, que, tocado sem dúvida em algum lugar sensível, desferiu um grito e se ergueu sobre os joelhos, esfregando os olhos. Era Mousqueton, que, já não tendo palha para si, tomara a dos cavalos.

— Mousqueton! — disse d Artagnan — vamos, a caminho! a caminho!

Reconhecendo a voz do amigo de seu amo, Mousqueton levantou-se precipitadamente e, ao fazê-lo, deixou cair alguns dos luíses ganhos ilegalmente durante a noite.

— Oh! oh! — exclamou d Artagnan apanhando um luís e cheirando-o — este ouro tem um cheiro esquisito: tem cheiro de palha!

Mousqueton corou tão honestamente e pareceu tão enleado, que o gascão desfechou a rir e disse-lhe:

— Porthos ficaria zangado, meu caro Sr. Mousqueton, mas eu vos perdôo; lembremo-nos, porém, de que esse ouro deve servir de remédio à nossa ferida e alegremo-nos, que diabo!

Mousqueton assumiu no mesmo instante uma expressão das mais hilares, arreou com presteza o cavalo do amo e cavalgou o seu sem fazer muita careta.

Nesse comenos chegou Porthos com uma cara de poucos amigos e ficou perplexo ao encontrar d'Artagnan resignado e Mousqueton quase alegre.

— Ah! — disse ele — quer dizer que já temos, tu a tua patente e eu a minha baronia?

— Vamos buscar os diplomas e, na volta, Mazarino os assinará.

— Onde?

— Primeiro a Paris; quero acertar uns negócios.

— Vamos a Paris — disse Porthos. E partiram os dois para Paris.

Chegando às portas da cidade viram, com espanto, a atitude ameaçadora da capital. À volta de um carro feito pedaços, o povo vociferava imprecações, ao passo que os fugitivos se achavam detidos, um velho e duas mulheres.

Quando, ao contrário, d'Artagnan e Porthos pediram permissão para entrar, não houve carícias que não lhes fizessem. Tomando-os por desertores do partido realista, queriam atraí-los para a sua causa.

— Que faz o Rei? — perguntaram.

— Dorme.

— E a espanhola?

— Sonha.

— E o maldito italiano?

— Vela. Por isso mesmo, agüentai firme. Pois se eles partiram, por coisa boa não foi. Mas como, afinal de contas, sois os mais fortes — continuou d'Artagnan — não vos assanheis contra mulheres nem velhos; atacai as verdadeiras causas.

O povo ouviu com prazer essas palavras e deixou partirem as senhoras, que agradeceram a d'Artagnan com um olhar eloqüente.

— Agora, para a frente! — disse d'Artagnan.

E continuaram o caminho, atravessando barricadas, saltando sobre correntes, empurrados, interrogados, interrogando.

Na praça do Palais-Royal, d'Artagnan viu um sargento que exercitava quinhentos ou seiscentos burgueses: era Planchet, que utilizava em benefício da milícia urbana as suas lembranças do regimento do Piemonte.

Ao passar diante de d'Artagnan, reconheceu o antigo amo.

— Bom-dia, Sr. d'Artagnan — disse Planchet, todo orgulhoso.

— Bom-dia, Sr. Dulaurier — respondeu d'Artagnan. Planchet estacou, fitando em d'Artagnan os olhos esbugalhados de espanto; vendo o chefe estacar, a primeira fila estacou também e todas as outras a imitaram, até a última.

— Esses burgueses são horrivelmente ridículos — observou d'Artagnan, dirigindo-se a Porthos.

E continuou a correr.

Cinco minutos depois, apeava diante da hospedaria da Chevrette.

A formosa Madalena precipitou-se-lhe ao encontro.

— Minha querida Sra. Turquaine — disse-lhe d'Artagnan — se tendes algum dinheiro, guardai-o depressa; se tendes jóias, escondei-as imediatamente; se tendes devedores, cobrai-os; se tendes credores, não os pagueis.

— Por quê? — perguntou Madalena.

— Porque Paris vai ser reduzida a cinzas como Babilônia, de que, sem dúvida, já ouvistes falar.

— E vós me deixais num momento assim?

— Agorinha mesmo.

— Aonde ides?

— Ah! se pudésseis dizer-mo, prestar-me-íeis grande serviço.

— Ah! meu Deus! meu Deus!

— Cartas para mim? — perguntou d'Artagnan, fazendo sinal à estalajadeira que renunciasse às lamentações que seriam supérfluas.

— Há uma que acaba de chegar. E entregou a carta a d'Artagnan.

— De Athos! — exclamou d'Artagnan, reconhecendo a letra firme e rasgada do amigo.

— Ah! — acudiu Porthos — vejamos o que diz. D'Artagnan abriu a carta e leu:

 

"Caro d'Artagnan, caro du Vallon, meus bons amigos, talvez seja esta a última vez que recebeis notícias minhas. Somos bem infelizes, Aramis e eu; mas Deus, nossa coragem e a lembrança de vossa amizade nos sustentam. Não vos esqueçais de Raul. Recomendo-vos os papéis que estão em Blois e daqui a dois meses e meio, se não receberdes notícias nossas, tomai conhecimento deles. Abraçai o Visconde de todo o coração pelo vosso dedicado amigo,

Athos."

 

— Está visto que o abraçarei — disse d'Artagnan — mesmo porque ele está em nosso caminho e se tive a infelicidade de perder o pobre Athos, ficará sendo meu filho para o resto da vida.

— E eu — declarou Porthos — faço-o meu herdeiro universal.

— Mas vejamos o que diz ainda a carta.

 

"Se, por acaso, encontrardes pelo caminho um tal Sr. Mordaunt, desconfiai dele. Não posso dizer mais nada por carta."

 

— Sr. Mordaunt! — exclamou, surpreso, d'Artagnan.

— Sr. Mordaunt, está bem; — disse Porthos — não nos esqueceremos. Mas vê, há ainda um posescrito de Aramis.

— De fato — disse d'Artagnan. E leu:

 

"Não vos diremos o lugar em que estamos, meus caros amigos, pois, conhecendo a vossa fraternal dedicação, sabemos muito bem que viríeis morrer conosco."

 

— Com seiscentos demônios! — atalhou Porthos com uma explosão de cólera que fez pular Mousqueton no extremo oposto da sala — estarão em perigo de vida?

D Artagnan continuou:

 

"Athos lega-vos Raul e eu vos lego uma vingança. Se, por felicidade, puserdes a mão em certo Mordaunt, Porthos que o leve para um canto e torça-lhe o pescoço. Não me atrevo a dizer-vos mais em carta.

Aramis."

 

— Se for só isso — disse Porthos — é fácil.

— Feio contrário — retorquiu d’Artagnan com ar sombrio — é impossível.

— Por quê?

— Porque é precisamente com esse Sr. Mordaunt que vamos encontrar-nos em Bolonha e com ele iremos à Inglaterra.

— E se em vez de procurá-lo fôssemos procurar os nossos amigos? — sugeriu Porthos com um gesto capaz de espavorir um exército.

— Já pensei nisso — tornou d'Artagnan; — mas a carta não traz data nem selo.

— É verdade — concordou Porthos. E pôs-se a passear pela sala como um homem que se houvesse extraviado, desembainhando, de tempos a tempos, um terço da espada.

Quanto a d'Artagnan, permanecia em pé como um homem consternado, e a mais profunda aflição se lhe pintava no rosto.

— É mal feito — dizia ele; — Athos nos insulta; quer morrer sozinho, é mal feito.

Diante daqueles dois grandes desesperos, Mousqueton banhava-se em lágrimas num canto.

— Tudo isso é inútil — afirmou d'Artagnan. — Partamos e vamos abraçar Raul; ele talvez tenha recebido notícias de Athos.

— É uma idéia — concordou Porthos; — na verdade, meu caro d'Artagnan, não sei como o consegues, mas andas sempre cheio de idéias. Vamos abraçar Raul.

— Ai daquele que olhasse agora de través para o meu amo — pensou Mousqueton. — Eu não daria um real pela sua pele.

Montaram a cavalo e partiram. Chegando à rue Saint-Denis, encontraram grande concurso de povo. Era o Sr. de Beaufort que acabava de chegar do Vendômois e que o Coadjutor mostrava aos parisienses, maravilhados e alegres.

Com o Sr. de Beaufort, supunham-se invencíveis.

Os dois amigos tomaram por uma ruela para não toparem com o Príncipe e chegaram à barreira de Saint-Denis.

— É verdade — perguntaram os guardas aos dois cavaleiros, que o Sr. de Beaufort chegou a Paris?

— Nada de mais verdadeiro, e a prova é que nos mandaram ao encontro do Sr. de Vendôme, seu pai, que também está para chegar.

— Viva o Sr. de Beaufort! — gritaram os guardas.

E afastaram-se, respeitosos, para deixar passar os enviados do grande príncipe.

Transposta a barreira, a estrada foi devorada por aquela gente, que não conhecia fadiga nem desalento; os cavalos voavam, e eles não se cansavam de falar em Athos e Aramis.

Mousqueton padecia todos os tormentos imagináveis, mas o excelente servidor consolava-se pensando em que os dois amos sofriam penas bem maiores. Pois habituara-se a considerar d'Artagnan seu segundo amo e obedecia-lhe até com mais presteza e correção do que o próprio Porthos.

Estendia-se o acampamento entre Saint-Omer e Lambe; os dois amigos tomaram por um atalho e transmitiram ao exército um relato circunstanciado da fuga do Rei e da Rainha, cuja notícia lá chegara surdamente. Encontraram Raul ao pé de sua tenda, deitado num feixe de palha, de que o seu cavalo ia comendo algumas pontas às furtadelas. O rapaz tinha os olhos vermelhos e parecia abatido. O Marechal de Grammont e o Conde de Guiche haviam regressado a Paris e o pobre moço achava-se sozinho.

Ao cabo de um instante Raul ergueu os olhos e viu os dois cavaleiros que o consideravam; reconheceu-os e correu para eles com os braços abertos.

— Oh! sois vós, meus caros amigos! — exclamou. — Viestes buscar-me? Levar-me-eis convosco? Trazeis noticias do meu tutor?

— Não as recebestes? — perguntou d'Artagnan ao jovem.

— Ai, não, senhor, e nem sei o que é feito dele. De sorte que... que estou inquieto a ponto de chorar.

E, efetivamente, duas grossas lágrimas lhe correram pelas faces.

Porthos virou o rosto para não deixar ver o que lhe ia no íntimo.

— Que diabo! — acudiu d'Artagnan, com uma comoção que há muito não sentia — não te desesperes, meu amigo; se não recebeste cartas do Conde, nós recebemos... uma...

— Oh! sim? — bradou Raul.

— E até muito tranqüilizadora — ajuntou d'Artagnan, vendo a alegria que a notícia causava ao mancebo.

— Está convosco? — perguntou Raul.

— Está; isto é, estava — disse d'Artagnan fingindo procurá-la; — espera, deve estar aqui, no meu bolso; ele fala-me do seu regresso, não é verdade, Porthos?

Por mais gascão que fosse, d'Artagnan não queria carregar sozinho o fardo da mentira.

— É — confirmou Porthos, tossindo.

— Oh! dai-ma — pediu o jovem.

— Hom'essa! Ainda há pouco a li. Tê-la-ia perdido? Ah! diabo, o meu bolso está furado.

— Sim, sim, Sr. Raul — disse Mousqueton — e a carta era até muito alentadora; estes senhores leram-na para mim e eu chorei de alegria.

— Mas, pelo menos, Sr. d'Artagnan, sabeis onde ele está? — perguntou Raul já meio tranqüilizado.

— Está claro que sei — respondeu d'Artagnan — mas é um mistério.

— Não para mim, com certeza.

— Não, não para vós, e por isso mesmo vou dizer-vos. Porthos contemplava d'Artagnan com olhos escancarados de espanto.

— Onde diabo direi que ele está para que esse menino não tente ir procurá-lo? — murmurou d'Artagnan.

— E então? Onde está ele, senhor? — insistiu Raul com voz suave e cariciosa.

— Em Constantinopla!

— Entre os turcos! — bradou Raul, aterrado. — Meus Deus! Que me dizeis?

— E isso te dá medo? — perguntou d'Artagnan. — Ora! Que são turcos para homens como o Conde de La Fere e o Padre d'Herblay?

— Ah! ele está com o amigo? — volveu Raul. — Fico mais tranqüilo.

— Como tem espírito o diabo do d'Artagnan! — dizia Porthos, maravilhado da astúcia do amigo.

— Agora — continuou d'Artagnan, desejoso de mudar quanto antes de assunto — aqui estão cinqüenta pistolas que o Sr. Conde te enviou pelo mesmo correio. Imagino que já não tenhas dinheiro e que elas chegaram em boa hora.

— Ainda tenho vinte pistolas.

— Não faz mal; ficarás com setenta.

— E se precisares de mais... — ofereceu Porthos, enfiando a mão no bolso.

— Obrigado — disse Raul, corando — mil vezes obrigado, senhor.

Nesse momento, surgiu Olivain no horizonte.

— A propósito — perguntou d'Artagnan, de maneira que o ouvisse o lacaio — estás satisfeito com Olivain?

— Assim, assim.

Olivain simulou não ter ouvido nada e entrou na tenda.

— Que censuras a esse maroto?

— É comilão — disse Raul.

— Oh! senhor! — exclamou Olivain, reaparecendo ao ouvir a acusação.

— Meio ladrão.

— Oh! senhor, oh!

— E, sobretudo, muito poltrão.

— Oh! oh! oh! senhor, vós me desonrais — gemeu Olivain.

— Diabo! — disse d'Artagnan — ficai sabendo, mestre Olivain, que gente como nós não se faz servir por poltrões. Roubai o vosso amo, comei-lhe as geléias, bebei-lhe o vinho, mas, por Deus! não sejais poltrão, que vos corto as orelhas. Contemplai o Sr. Mouston, pedi-lhe que vos mostre os honrosos ferimentos que já recebeu, e observai quanta dignidade lhe imprimiu ao rosto a sua costumeira bravura.

Mousqueton sentia-se no terceiro céu e teria beijado d'Artagnan se a tanto se atrevesse; entretanto, jurou consigo só que se deixaria matar por ele na primeira oportunidade.

— Dispensa o patife, Raul — disse d'Artagnan — pois, se é poltrão, acabar-se-á desonrando qualquer dia.

— O Sr. Visconde diz que sou poltrão — exclamou Olivain — porque quis bater-se outro dia com um porta-estandarte do regimento de Grammont, e eu me recusei a acompanhá-lo.

— Sr. Olivain, um lacaio nunca desobedece — atalhou, severo, d'Artagnan.

E, chamando-o de parte:

— Fizeste bem — disse ele — se teu amo não tinha razão, e aqui está um escudo para ti; mas se algum dia o insultarem e não te deixares cortar em pedacinhos ao lado dele, corto-te a língua e varro-te o rosto com ela. Não te esqueças.

Olivain inclinou-se e enfiou o escudo na algibeira.

— E agora, amigo Raul — anunciou d'Artagnan — partimos, o Sr. du Vallon e eu, como embaixadores. Não posso dizer-te com que finalidade, pois nem eu mesmo a conheço; mas se precisares de alguma coisa, escreve à Sra. Madalena Turquaine, na hospedaria da Chevrette, à rua Tiquetonne, e saca sobre essa caixa como sobre a de um banco; mas com certo cuidado, pois eu te previno de que ela não está tão bem provida quanto a do Sr. d'Emery.

E tendo abraçado o pupilo interino, entregou-o aos braços robustos de Porthos, que o ergueram do chão e o mantiveram um instante suspenso sobre o nobre coração do formidável gigante.

— Vamos — disse d'Artagnan — a caminho.

E tornaram a partir para Bolonha, onde chegaram ao cair da tarde, com os cavalos banhados de suor e brancos de escuma.

A dez passos do lugar em que haviam parado antes de entrar na cidade, estava um rapaz vestido de preto que parecia esperar alguém, e que, desde o momento em que os vira surgir, não tirara os olhos deles.

D'Artagnan acercou-se do desconhecido e, vendo que o seu olhar não o deixava:

— Amigo — disse ele — não gosto que encarem comigo.

— Senhor — replicou o rapaz, sem responder à interpelação de d'Artagnan — dizei-me, por fineza, se vinde de Paris.

D'Artagnan imaginou que fosse um curioso que desejasse notícias da capital.

— Sim, senhor — retrucou em tom mais brando.

— Não deveis hospedar-vos nas Armes d'Angleterre?

— Sim, senhor.

— Não Fostes encarregados de uma missão da parte de Sua Eminência o Sr. Cardeal de Mazarino?

— Sim, senhor.

— Nesse caso — tornou o rapaz — sou eu a pessoa que procurais; sou Mordaunt.

— Ah! — disse baixinho d'Artagnan — é o camarada contra o qual Athos me preveniu.

— Ah! — murmurou Porthos — é o tal que Aramis deseja que eu estrangule.

Os dois examinaram atentamente o rapaz.

— Duvidar eis da minha palavra? — perguntou ele; — nesse caso, estou pronto a fornecer-vos as provas necessárias.

— Não, senhor — disse d'Artagnan — e nós nos colocamos à vossa disposição.

— Muito bem, senhores — tornou Mordaunt — partiremos sem demora; pois hoje é o último dia de espera que me pediu o Cardeal. O meu navio está pronto; e, se não tivésseis chegado, eu partiria sozinho, pois o General Olivério Cromwell deve aguardar o meu regresso com impaciência.

— Ah! ah! — disse d'Artagnan — é, então, ao General Olivério Cromwell que somos enviados.

— Não tendes uma carta para ele? — perguntou o rapaz.

— Tenho uma carta cujo invólucro externo só deveria rasgar em Londres; mas visto que me dizeis a quem é dirigida, não preciso esperar.

D'Artagnan rasgou o primeiro invólucro da carta. Era, com efeito, dirigida:

"Ao Sr. Olivério Cromwell, general das tropas da nação inglesa."

— Há! — murmurou d'Artagnan — singular comissão.

— Quem é o Sr. Olivério Cromwell? — perguntou Porthos em voz baixa.

— Um ex-cervejeiro — respondeu d'Artagnan.

— Quererá o Mazarino fazer uma negociata com cerveja como a que fizemos com palha? — perguntou Porthos.

— Vamos, vamos, senhores — atalhou Mordaunt, impaciente. — Partamos.

— Oh! oh! —- retorquiu Porthos — sem jantar? O Sr. Cromwell não pode esperar um pouquinho?

— Sim, e eu? — disse Mordaunt.

— Muito bem, e vós o quê? — atalhou Porthos. — O quê?

— Estou com pressa.

— Oh! se é por isso — repontou Porthos — não me interessa; jantarei com a vossa permissão e sem ela.

O olhar vago do rapaz inflamou-se e pareceu prestes a desferir uma chispa, mas ele se conteve.

— Senhor — continuou d'Artagnan — é preciso desculpar os viajantes esfaimados. Aliás, o nosso jantar não retardará muito a vossa viagem. Vamos a galope à estalagem. Ide a pé ao porto; comeremos qualquer coisa e lá chegaremos ao mesmo tempo que vós.

— Tudo o que vos aprouver, senhores, contanto que partamos.

— Ainda bem — murmurou Porthos.

— O nome do navio? — perguntou d’Artagnan.

— O Standard.

— Está certo. Daqui a meia hora estaremos a bordo. E os dois, esporeando os cavalos, dirigiram-se à hospedaria das Armes d'Angleterre.

— Que dizes desse rapaz? — perguntou d'Artagnan enquanto corria.

— Digo que não me agrada nem um pouquinho — respondeu Porthos — e que tive muita gana de seguir o conselho de Aramis.

— Livra-te disso, meu caro Porthos, o homem é enviado do General Cromwell, e duvido que este nos recebesse muito bem se lhe anunciássemos haver torcido o pescoço do seu confidente.

— Não faz mal — disse Porthos — sempre observei que Aramis é homem de bom conselho.

— Ouve — disse d’Artagnan — terminada a nossa embaixada...

— Que é que tem?

— Se voltarmos à França...

— Sei...

— Veremos.

Entrementes, os dois amigos chegaram à hospedaria das Armes ã'Angleterre, onde jantaram com sumo apetite; em seguida, dirigiram-se ao porto. Um brigue estava prestes a levantar ferro; e, na coberta do brigue, reconheceram Mordaunt, que passeava com impaciência.

— É incrível — dizia d'Artagnan, enquanto o barco o conduzia a bordo do Standard — é espantoso como esse rapaz se parece com alguém que conheci, mas que não consigo identificar.

Chegaram à escada e, um instante depois, estavam a bordo.

Todavia, o embarque dos cavalos foi mais demorado que o dos homens, e o brigue só pôde partir às oito da noite.

O rapaz batia os pés de impaciência e ordenava que desfraldassem todas as velas.

Exausto depois de três noites sem dormir e de uma viagem de setenta léguas a cavalo, Porthos recolhera ao camarote e ressonava.

Vencendo a repugnância que lhe inspirava Mordaunt, d'Artagnan passeava com ele na coberta e tentava puxar-lhe pela língua.

Mousqueton enjoara.

 

O escocês, perjuro à sua lei,

Por um real vendera o seu rei.

 

Eagora, será preciso que os nossos leitores deixem vogar tranqüilamente o Standard, que aproa, não a Londres, para onde d'Artagnan e Porthos imaginam rumar, senão a Durham, para onde as cartas recebidas de Inglaterra durante a sua estada em Bolonha haviam ordenado a Mordaunt que se dirigisse, e nos sigam ao acampamento realista, situado aquém do Tyne, perto da cidade de Newcastle.

Lá, entre dois rios, na fronteira da Escócia, estendem-se as tendas de pequeno exército. É meia-noite. Homens, que se conhece serem highlanders (54) pelas pernas nuas, pelos saiotes curtos, pelos plaids (55) multicoloridos e pela pluma que lhes orna o chapéu, rondam com displicência. A lua, que desliza entre duas nuvens grossas, alumia, a cada intervalo que encontra no caminho, os mosquetes das sentinelas e acentua os contornos dos muros, tetos e campanários da cidade que Carlos I acaba de entregar às tropas do Parlamento, assim como Oxford e Newart, que ainda se mantinham a seu favor na esperança de um acordo.

(54) Soldados procedentes da região montanhosa, na Escócia do Norte, chamada Highlands. (N. do T.)

(55) Capotes escoceses axadrezados, de lã. (N. do T.)

 

Numa das extremidades do acampamento, ao pé de imensa tenda, cheia de oficiais escoceses reunidos numa espécie de conselho presidido pelo velho Conde de Loewen, seu chefe, um homem vestido de cavaleiro dorme deitada na relva, com a mão direita estendida sobre a espada.

A cinqüenta passos de distância, outro homem, vestido também de cavaleiro, conversa com uma sentinela escocesa; e graças ao conhecimento que parece ter, apesar de estrangeiro, da língua inglesa, consegue compreender as respostas que lhe dá o interlocutor no patoá do condado de Perth.

Ao soar a uma hora da manhã na cidade de Newcastle, o cavaleiro que dormia despertou; e depois de ter feito todos os gestos de um homem que abre os olhos após um sono profundo, circunvagou-os atentamente; vendo que estava só, ergueu-se, e, dando uma volta, foi passar perto do cavaleiro que conversava com a sentinela. Este terminara, sem dúvida, o interrogatório, pois, volvido um instante, despediu-se e seguiu sem afetação o caminho trilhado pelo primeiro cavaleiro.

À sombra de uma tenda, o outro esperava.

— E então, caro amigo? — perguntou-lhe no francês mais puro que já se falou de Ruão a Tours.

— Então, meu caro, não há tempo a perder e é preciso avisar o Rei.

— Que está acontecendo?

— Seria muito demorada a explicação; sabê-lo-ás dentro em pouco. De mais a mais, a menor palavra pronunciada aqui poderia por tudo a perder. Vamos procurar Milorde de Winter.

E ambos se encaminharam para a extremidade oposta do acampamento; mas como este não cobrisse uma superfície de mais de quinhentos passos quadrados, logo chegaram à tenda do homem que buscavam.

— O vosso amo está dormindo, Tony? — perguntou em inglês um dos cavaleiros a um criado deitado no primeiro compartimento, que servia de antecâmara.

— Não, Sr. Conde — respondeu o lacaio — não creio; e se estiver, não fará muito tempo que adormeceu, pois andou mais de duas horas depois que deixou o Rei, e não faz dez minutos que cessou o ruído de seus passos; aliás — ajuntou o lacaio erguendo a porta da tenda — podeis vê-lo.

Com efeito, de Winter estava assentado diante de uma aberta, semelhante a uma janela, que deixava penetrar o ar da noite, e através da qual seguia melancòlicamente a lua com a vista, perdida, como há pouco dissemos, entre bandos de grossas nuvens negras.

Os dois amigos aproximaram-se de de Winter, que, com a cabeça apoiada na mão, contemplava o céu; o fidalgo não os ouviu chegar e permaneceu na mesma posição, até o momento em que sentiu que lhe pousavam a mão no ombro. Voltou-se, reconheceu Athos e Aramis e estendeu-lhes a mão.

— Já notastes — disse ele — como a lua, esta noite, tem cor de sangue?

— Não — disse Athos — não notei.

— Observai, Cavaleiro — insistiu de Winter.

— Confesso — respondeu Aramis — que estou com o Conde de La Fere: não vejo nela nada de extraordinário.

— Conde — volveu Athos — em situação tão precária quanto a nossa, é terra que devemos examinar, não o céu. Estudastes os nossos escoceses e tendes confiança neles?

— Os escoceses? — perguntou de Winter; — que escoceses?

— Os nossos, hom'essa! — tornou Athos; — aqueles de que se confiou El-Rei, os escoceses do Conde de Loeven.

-— Não — disse de Winter. E ajuntou: — Mas não vedes mesmo, como eu, a coloração avermelhada que cobre o céu?

— Não — declararam, ao mesmo tempo, Athos e Aramis.

— Dizei-me — continuou de Winter, sempre preocupado com a mesma idéia — não é uma tradição em França que, na véspera do dia em que foi assassinado, Henrique IV, que jogava xadrez com o Sr. de Bassompierre, viu manchas de sangue no tabuleiro?

— E — afirmou Athos — e o próprio Marechal contou-mo inúmeras vezes.

— Mas que relação terá convosco, Conde, a visão de Henrique IV? — perguntou Aramis.

— Nenhuma, senhores, e, em realidade, é loucura minha entreter-vos com essas coisas, quando a vossa entrada a esta hora em minha tenda me leva a crer que sois portadores de alguma notícia importante.

— Sim, Milorde — disse Athos — eu queria falar com El-Rei.

— Com El-Rei? Mas El-Rei está dormindo.

— Tenho coisas importantíssimas para revelar-lhe.

— Não podem ser adiadas para amanhã?

— É preciso que ele as conheça agora mesmo; talvez já seja muito tarde.

— Entremos, senhores — disse de Winter.

Erguida ao lado da tenda real, a tenda de de Winter comunicava-se com ela por uma espécie de corredor, guardado não por uma sentinela, mas por um criado de confiança de Carlos I, a fim de que, em caso de urgência, pudesse El-Rei entender-se imediatamente com o seu fiel servidor.

— Estes senhores estão comigo — disse de Winter. O lacaio inclinou-se e deixou-os passar.

De feito, num leito de campanha, vestindo gibão preto, calçando botas compridas, o cinto desapertado e o chapéu ao pé de si, o Rei Carlos, cedendo a uma necessidade irresistível de sono, adormecera. Os homens adiantaram-se e Athos, que ia na frente, considerou por um instante em silêncio o

nobre rosto, tão pálido, emoldurado pelos compridos cabelos pretos, colados às têmporas pelo suor de um mau sono e marmoreado de grossas veias azuis, que pareciam cheias de lágrimas debaixo dos olhos cansados (56).

(56) Carlos I, Rei de Inglaterra, filho de Jaime I, subiu ao trono em 1625. Durante os quatro primeiros anos de seu reinado, tentou governar com o Parlamento, do qual necessitava para obter subsídios; mas, aconselhado por Buckingham, dissolveu sucessivamente três câmaras. Exasperado pela política arbitrária do Rei e pelos insucessos da frota inglesa diante da Rochela, um quinto parlamento redigiu a petição de direitos, que renovava, ampliando-os, os princípios da Magna Carta. Decidiu então o Rei governar sem parlamento e tentou estabelecer o absolutismo e a unidade religiosa na forma do anglicanismo. Criaram-se impostos arbitrários, perseguiram-se os presbiterianos da Escócia e, diante do descontentamento geral, Carlos viu-se obrigado a convocar novo parlamento. Quando, porém, tentou contra este outro golpe de Estado, foi mal sucedido e precisou fugir. Estava iniciada a guerra. Vencido pelos cabeças-redondas de Cromwell em Newbury, Marston-Moor e Naseby, fugiu para a Escócia, mas os escoceses o entregaram às tropas parlamentares mediante o pagamento de 400.000 libras esterlinas. Cromwell entabulou negociações com ele, mas como o soberano se recusasse a fazer quaisquer concessões, foi julgado, condenado e executado (1649). Era um príncipe inteligente, corajoso, porém muito dissimulado. (N. do T.)

 

Athos despediu um suspiro profundo; esse suspiro despertou El-Rei, tão leve era o sono a que se entregara.

Ele abriu os olhos.

— Ah! — exclamou, soerguendo-se sobre o cotovelo — sois vós, Conde de La Fere?

— Sou eu, Sire — respondeu Athos.

— Velais enquanto eu durmo e vindes trazer-me alguma notícia?

— Ai, Sire! — respondeu Athos — Vossa Majestade adivinhou.

— É má, então, a notícia? — perguntou o monarca sorrindo com melancolia.

— Sim, Sire.

— Não importa, é benvindo o mensageiro, e não podeis visitar-me sem me dar prazer. Vós, cuja dedicação não conhece pátria, nem desdita, vós me Fostes enviado por Henriqueta; portanto, seja qual for a notícia que me trazeis, falai sem receio.

— Sire, o Sr. Cromwell chegou esta noite a Newcastle.

— Ah! — tornou El-Rei — para combater-me?

— Não, Sire, para comprar Vossa Majestade.

— Que dizeis?

— Digo, Sire, que o exército escocês tem para receber quatrocentas mil libras esterlinas.

— De soldos atrasados; eu sei. Faz quase um ano que os meus bravos e fiéis escoceses combatem pela honra.

Athos sorriu.

— Pois bem, Sire, embora seja a honra uma bela coisa, eles se cansaram de combater por ela, e, esta noite, venderam Vossa Majestade por duzentas mil libras, isto é, pela metade do que têm para receber.

— Impossível! — exclamou o soberano — os escoceses venderem o seu rei por duzentas mil libras!

— Os judeus venderam o seu Deus por trinta dinheiros.

— E quem foi o Judas que fez o negócio infame?

— O Conde de Loewen.

— Tendes certeza, senhor?

— Ouvi-o com os meus próprios ouvidos.

Carlos soltou um gemido pungente, como se se lhe despedaçasse o coração, e deixou cair a cabeça entre as mãos.

— Oh! os escoceses! — murmurou — os escoceses! que eu chamava os meus fiéis; os escoceses! de quem me confiei, quando poderia ter fugido para Oxford; os escoceses! meus compatriotas; os escoceses! meus irmãos! Mas tendes absoluta certeza?

— Deitado atrás da tenda do Conde de Loewen, cuja coberta levantei, vi e ouvi tudo.

— E quando se consumará a nefanda transação?

— Hoje de manhã. Como vê Vossa Majestade, não há tempo a perder.

— Para fazer o que, se dizeis que fui vendido?

— Para atravessar o Tyne, chegar à Escócia e juntar-se a Lorde Montrose (57), que será incapaz de vender o seu rei.

— E que farei na Escócia? Uma campanha de guerrilhas? Tal guerra é indigna de um rei.

(57) J. Graham, Conde e depois Duque de Montrose, um dos mais intrépidos defensores de Carlos I. Formara, a princípio, no partido contrário à Corte, mas, encarregado de uma missão junto do Rei, deixou-se cativar pela afabilidade do soberano e, a partir desse momento, dedicou-se-lhe ao serviço. Venceu em diversos recontros os generais de Cromwell e só depôs as armas por ordem do Rei, depois que este, imprudente, foi colocar-se nas mãos dos escoceses. Após a execução de Carlos I, armou-se em prol do herdeiro do trono e, à frente de pequena tropa, voltou à Escócia. Foi, porém, vencido por David Lesley e entregue por um traidor aos inimigos, que o condenaram à forca e ao esquartejamento. (N. do T.)

 

— O exemplo de Robert Bruce aí está para absolver Vossa Majestade.

— Não, não! Há muito que luto; se me venderam, entreguem-me, e caia sobre eles a vergonha eterna da traição.

— Sire — acudiu Athos — talvez seja assim que deve proceder um rei, mas não é assim que procede um marido e um pai. Vim em nome da esposa e da filha de Vossa Majestade, e em nome delas e dos outros dois filhos que estão em Londres, digo a Vossa Majestade: Viva, Sire, Deus o quer!

Levantou-se o Rei, apertou o cinto, cingiu a espada e, enxugando com um lenço a testa molhada de suor:

— Muito bem. Que é preciso fazer?

— Não tem Vossa Majestade, em todo o exército, um regimento com o qual possa contar?

— De Winter — perguntou o Rei — acreditais na fidelidade do vosso?

— Sire, são apenas homens, e os homens se tornaram ou muito fracos ou muito maus. Creio na fidelidade deles, mas não respondo por ela; eu poderia confiar-lhes a minha vida, mas hesito em confiar-lhes a de Vossa Majestade.

— Pois bem! — disse Athos — à falta de um regimento, somos três homens dedicados, bastaremos nós. Monte Vossa Majestade a cavalo, coloque-se no meio de nós; cruzaremos o Tyne, chegaremos à Escócia e estaremos salvos.

— É esse o vosso parecer, de Winter? — perguntou o Rei.

— Sim, Sire.

— E é também o vosso, Sr. d'Herblay? — É, sire.

— Faça-se, então, como quereis. De Winter, dai as ordens. De Winter saiu; entrementes, o Rei acabou de vestir-se.

Os primeiros raios do dia principiavam a coar-se pelas frinchas da tenda quando de Winter voltou.

— Está tudo pronto, Sire — anunciou ele.

— E nós? — perguntou Athos.

— Grimaud e Blaisois já prepararam os cavalos.

— Nesse caso — disse Athos — não percamos um instante e partamos.

— Partamos — repetiu o Rei.

— Sire — perguntou Aramis — Vossa Majestade não previne os seus amigos?

— Os meus amigos! — disse Carlos I meneando tristemente a cabeça; — sois vós os únicos que me restam. Um amigo de vinte anos que nunca me esqueceu; dois amigos de oito dias, que nunca esquecerei. Vinde, senhores, vinde.

O Rei saiu da tenda e encontrou efetivamente o cavalo pronto. Era um cavalo isabel, que montava havia três anos e que muito apreciava.

Vendo-o, o animal relinchou de prazer.

— Ah! — volveu o Rei — fui injusto, e aí está, senão um amigo, pelo menos uma criatura que me ama. Tu me serás fiel, não é verdade, Arthus?

E como se lhe tivesse compreendido as palavras, o cavalo aproximou as narinas ardentes do rosto do Rei, erguendo os beiços e mostrando alegremente os dentes brancos.

— Sim, sim — disse Carlos, acariciando com a mão; — está bem, Arthus, e eu estou satisfeito contigo.

E com a ligeireza que o tornava um dos melhores cavaleiros da Europa, saltou sobre a sela e, voltando-se para Athos, Aramis e de Winter:

— Pronto, senhores! Estou à vossa espera.

Mas Athos permanecia em pé, imóvel, com os olhos parados e a mão estendida para uma linha preta, que seguia a margem do Tyne e se desdobrava numa extensão duas vezes maior que a do acampamento.

— Que linha é aquela? — perguntou, a quem as últimas trevas da noite, que lutavam com os primeiros raios do dia, não permitiam ainda distinguir com clareza. — Que linha é aquela? Não a vi ontem.

— É, sem dúvida, a névoa que se ergue do rio — disse o Rei.

— Sire, é algo mais compacto que uma névoa.

— De fato, vejo uma como barreira avermelhada — declarou de Winter.

— É o inimigo que sai de Newcastle e nos envolve — bradou Athos.

— O inimigo! — disse o Rei.

— Sim, o inimigo. É demasiado tarde. Vede! vede! debaixo daquele raio de sol, do lado da cidade, não luzem as ilhargas de ferro?

Assim eram chamados os couraceiros de Cromwell.

— Ah! — disse o Rei — vamos saber se é verdade que os meus escoceses me traíram.

— Que vai fazer Vossa Majestade? — gritou Athos.

— Ordenar-lhes que ataquem e passar com eles por cima dos miseráveis rebeldes.

E, esporeando o cavalo, atirou-se para a tenda do Conde de Loewen.

— Sigamo-lo — disse Athos.

— Vamos — concordou Aramis.

— Estará ferido El-Rei? — perguntou de Winter. — Vejo manchas de sangue na terra.

E disparou com os dois amigos. Athos deteve-o:

— Ide reunir o vosso regimento; precisaremos dele daqui a pouco.

De Winter sofreu a montaria, e os dois amigos continuaram o caminho. Em dois segundos o Rei chegara à tenda do general-em-chefe do exército escocês. Apeou e entrou.

Achava-se o General no meio dos chefes principais.

— O Rei! — exclamaram, erguendo-se e entreolhando-se, estupefactos.

Com efeito, Carlos I estava em pé diante deles, com o chapéu na cabeça, o cenho franzido, fustigando a bota com o chicote.

— Sim, senhores — disse ele — o Rei em pessoa; o Rei, que vem pedir-vos contas do que se passa.

— Que aconteceu, Sire? — perguntou o Conde de Loewen.

— Aconteceu, senhor — retrucou El-Rei, deixando-se arrebatar pela cólera — que o General Cromwell chegou esta noite a Newcastle; que vós o sabeis e eu não fui prevenido; aconteceu que o inimigo sai da cidade e nos fecha a passagem do Tyne, que as vossas sentinelas devem ter visto esse movimento, e eu não fui prevenido; aconteceu que, por um tratado infame, vós me vendestes por duzentas mil libras esterlinas ao Parlamento, mas desse tratado, pelo menos, eu fui prevenido. Eis o que há, senhores; respondei ou desculpai-vos, que eu vos acuso.

— Sire — balbuciou o Conde de Loewen — Sire, Vossa Majestade deve ter sido enganado por alguma falsa informação.

— Vi com os meus próprios olhos o exército rebelde estender-se entre mim e a Escócia — voltou Carlos — e posso quase dizer: ouvi com os meus próprios ouvidos a discussão das cláusulas do negócio.

Os chefes escoceses entreolharam-se franzindo o cenho por seu turno.

— Sire — murmurou o Conde de Loewen, curvado ao peso da vergonha — Sire, estamos pronto a dar a Vossa Majestade todas as provas.

— Não exijo mais do que uma — disse o Rei. — Ponde o exército em ordem de batalha e marchemos contra o inimigo.

— Impossível, Sire! — retorquiu o Conde.

— Como! Impossível! Impossível por quê? — exclamou Carlos I.

— Vossa Majestade sabe muito bem que estamos em tréguas com o exército inglês.

— Se há tréguas, o exército inglês rompeu-as saindo da cidade, contra as convenções que lá o retinham; e eu vos digo, passareis comigo através desse exército e entraremos de novo na Escócia, pois se não o fizerdes tereis de escolher um dos dois nomes que fazem dos homens objeto de desprezo e execração para os seus semelhantes: covardes ou traidores!

Fuzilaram os olhos dos escoceses e, como acontece a miúdo em tais ocasiões, passaram eles da extrema vergonha à impudência extrema, e dois chefes de clãs (58) se colocaram de cada lado do Rei:

(58) Chama-se clã à reunião de todos os descendentes de um antepassado comum e que, principalmente na Escócia, vivem política e socialmente agrupados. (N. do T.)

 

— De fato — disseram — prometemos libertar a Escócia e a Inglaterra do homem que, há vinte e cinco anos, bebe o sangue e o ouro da Inglaterra e da Escócia. Prometemos e cumprimos nossas promessas. Rei Carlos Stuart, sois nosso prisioneiro.

E estenderam a mão ao mesmo tempo para agarrar o Rei; mas antes que a ponta de seus dedos tocasse a pessoa real, ambos tinham caído, um sem sentidos e o outro morto.

Athos derrubara o primeiro com o punho da pistola e Aramis transpassara com a espada o corpo do segundo.

Depois, como o Conde de Loewen e os outros chefes recuassem ante o socorro inesperado que parecia cair do céu em prol daquele que já supunham seu prisioneiro, Athos e Aramis arrastaram o monarca para fora da tenda perjura, em que ele, tão afoito, se aventurara, e, montando os cavalos que os lacaios mantinham preparados, retomaram a galope o caminho da tenda real.

Ao passarem, avistaram de Winter, que acudia à frente do seu regimento. O Rei fez-lhe sinal que os acompanhasse.

 

O VINGADOR

 

Entraram os quatro na tenda; não tinham plano nenhum, era preciso traçá-lo.

O Rei deixou-se cair numa poltrona.

— Estou perdido — disse ele.

— Não, Sire — respondeu Athos — Vossa Majestade foi apenas traído.

O Rei despediu profundo suspiro.

— Traído, traído pelos escoceses, entre os quais nasci, que sempre preferi aos ingleses! Miseráveis!

— Sire — disse Athos — não é esta a hora das recriminações, senão o momento de mostrar que Vossa Majestade é rei e gentil-homem. Em pé, Sire, em pé! Pois Vossa Majestade tem aqui três homens, pelo menos, que não o trairão. Ah! se ao menos fôssemos cinco! — ajuntou, pensando em d'Artagnan e Porthos.

— Que dizeis? — perguntou Carlos, erguendo-se.

— Digo, Sire, que só resta um meio. Milorde de Winter responde pelo seu regimento, ou quase, não sofismemos com palavras: coloca-se à frente de seus homens; nós nos colocamos ao lado de Vossa Majestade, abrimos uma brecha no exército de Cromwell e passamos para a Escócia.

— Há outro meio ainda — acudiu Aramis: — se um de nós vestir a roupa ,e montar o cavalo de El-Rei, será perseguido pelo exército inteiro, e talvez Sua Majestade consiga passar.

— O alvitre não é mau — concordou Athos — e se Vossa Majestade quiser dar a um de nós essa honra, nós lhe ficaremos muitíssimo reconhecidos.

— Que pensais do conselho, de Winter? — perguntou El-Rei, contemplando com admiração aqueles dois homens, cuja única preocupação era a de acumularem sobre as suas cabeças todos os perigos que o ameaçavam.

— Penso, Sire, que, se há um meio de salvar Vossa Majestade, o Sr. d'Herblay acaba de sugeri-lo. Suplico, portanto, humildemente a Vossa Majestade que faça sem demora a sua escolha, pois não temos tempo a perder.

— Mas, se eu aceitar, será a morte ou, na melhor das hipóteses, a prisão para aquele que me substituir.

— E a honra de ter salvo o seu rei! — exclamou de Winter.

El-Rei considerou o velho amigo com lágrimas nos olhos, tirou a fita do Espírito Santo, que trazia em homenagem aos dois franceses que o acompanhavam, e passou-o à roda do pescoço de de Winter, que recebeu, genuflexo, a prova terrível de amizade e confiança do soberano.

— É justo — observou Athos: — ele serve há mais tempo do que nós.

El-Rei ouviu-lhes as palavras e voltou-se, com lágrimas nos olhos.

— Senhores — disse ele — esperai um instante, tenho também uma fita para cada um de vós.

Dirigiu-se a um armário em que guardava as próprias insígnias e dele tirou duas fitas da Jarreteira.

— Essas ordens não podem ser para nós — disse Athos.

— E por que, senhor? — perguntou Carlos.

— Porque são quase reais e nós não passamos de simples gentis-homens.

— Passai-me revista a todos os tronos da terra — disse o Rei — e encontrai-me corações maiores do que os vossos. Não, não, sois injustos convosco e aqui estou para fazer-vos justiça. De joelhos, Conde.

Ajoelhou-se Athos, o Rei passou-lhe a fita da direita à esquerda, como de hábito, e, em lugar da fórmula habitual: Eu vos faço cavaleiro; sede corajoso, fiel e leal, disse:

— Sois corajoso, fiel e leal; eu vos faço cavaleiro, Sr. Conde.

Depois, voltando-se para Aramis:

— Agora é a vossa vez, Sr. Cavaleiro.

E a mesma cerimônia recomeçou com as mesmas palavras, ao passo que de Winter, ajudado por escudeiros, despia a couraça de cobre para ser mais facilmente tomado pelo Rei.

Depois, quando Carlos fez a Aramis o que fizera a Athos, beijou-os.

— Sire — disse de Winter, que, diante de um grande devotamento, readquirira toda a força e toda a coragem — estamos prontos.

O Rei considerou os três fidalgos.

— Então é preciso fugir?

— Fugir pelo meio de um exército, Sire — volveu Athos

— em todos os países do mundo chama-se carregar.

— Morrerei, pois, com a espada na mão — disse Carlos.

— Sr. Conde, Sr. Cavaleiro, se eu voltar a ser rei...

— Sire, Vossa Majestade já nos cumulou de honras superiores à nossa condição de meros fidalgos; por conseguinte, o reconhecimento é nosso. Mas não percamos mais tempo, que já perdemos demais.

El-Rei estendeu-lhe pela última vez a mão, trocou de chapéu com de Winter e saiu.

O regimento de de Winter formara numa esplanada que dominava o acampamento; seguido pelos três amigos, para lá se dirigiu o monarca.

O acampamento escocês parecia, afinal, haver despertado; os homens tinham saído de suas tendas e alinhavam-se em ordem de batalha.

— Vede — disse o Rei — talvez se tenham arrependido e estejam prontos para marchar.

— Se se arrependeram, Sire — disse Athos — seguir-nos-ão.

— Muito bem — tornou o Rei — e que fazemos nós? — Examinemos o exército inimigo.

Os olhos do grupinho voltaram-se no mesmo instante para a linha que, ao despontar do dia, haviam tomado por um nevoeiro, e que os primeiros raios do sol mostravam ser um exército em marcha. O ar puro e límpido como costuma ser a essa hora da manhã. Distinguiam-se perfeitamente os regimentos, os estandartes e até a cor dos uniformes e dos cavalos.

Viram então surgir sobre um outeiro, pouco adiante da frente inimiga, um homem baixo, pesado e atarracado, cercado de alguns oficiais, que assestou a luneta na direção do grupo de que fazia parte El-Rei.

— Esse homem conhece pessoalmente Vossa Majestade?

— perguntou Aramis.

Carlos sorriu.

— Esse homem é Cromwell (59) — disse ele.

(59) Olivério Cromwell pertencia a antiga família saxã. Quando se iniciou a guerra entre o Rei e o Parlamento, recrutou um regimento à sua custa entre os rendeiros livres do seu condado, austeros puritanos como ele; chamavam-lhe Ironsides, ilhargas de ferro. Nomeado, pouco depois, tenente-general de cavalaria, decidiu a sorte das batalhas de Marston-Moor e de Naseby, que determinaram a ruína do partido realista e acarretaram os infortúnios de Carlos I. Gozava de imensa popularidade no exército. Voltando a Londres, purgou o Parlamento, expulsando-lhe todos os membros presbiterianos e fê-lo condenar à morte Carlos I. Quatro anos depois, uma assembléia de oficiais reconheceu-o como Lorde Protetor. A partir desse momento foi senhor absoluto da Inglaterra, se bem recusasse o título de rei, que lhe ofereceu um Parlamento servil. A sua administração, aliás, foi das mais prósperas e benéficas para o país. (N. do T.)

 

— Abaixe então Vossa Majestade o chapéu, para que ele não se advirta da substituição.

— Ah! — observou Athos — já perdemos muito tempo.

— A ordem — exclamou o Rei — e partamos.

— Dá-la-á Vossa Majestade? — perguntou Athos.

— Não, eu vos nomeio meu tenente-general.

— Escutai, Milorde de Winter — disse Athos; — suplico a Vossa Majestade que se afaste um pouco; o que vamos combinar não lhe diz respeito.

Sorrindo, deu El-Rei três passos para trás.

— Eis o que proponho — continuou Athos. — Dividimos o regimento em dois esquadrões; vós vos colocais à testa do primeiro; Sua Majestade e nós à testa do segundo; se nada surgir para estorvar-nos a passagem, carregamos todos juntos para forçar a linha inimiga e atirar-nos no Tyne, que atravessamos, a vau ou a nado; se, pelo contrário, achamos algum obstáculo no caminho, vós e os vossos homens vos deixais matar até o último, nós e o Rei continuamos a nossa marcha: chegados à margem do rio, se o vosso esquadrão cumprir o seu dever, o resto é conosco.

— A cavalo! — gritou de Winter.

— A cavalo! — repetiu Athos. — Está tudo previsto e decidido.

— Então, senhores — bradou o Rei — avante e junte-mo-nos ao som do velho grito guerreiro de França: Montjoie e Saint-Denis! O de Inglaterra é hoje repetido por muitos traidores.

Montaram todos, o Rei no cavalo de de Winter, de Winter no cavalo do Rei; em seguida, colocou-se de Winter na primeira fila do primeiro esquadrão e o Rei, tendo Athos à direita e Aramis à esquerda, na primeira fila do segundo.

Todo o exército escocês contemplava os preparativos com a imobilidade e o silêncio da vergonha.

Viram-se alguns chefes sair das fileiras e quebrar as espadas.

— Ainda bem — disse El-Rei — isso me consola: nem todos são traidores.

Nesse momento soou a voz de de Winter:

— Avante! — gritou.

O primeiro esquadrão pôs-se em movimento, o segundo seguiu-o e desceu da esplanada. Um regimento de couraceiros, com pouca diferença numérica, desenvolvia-se atrás da colina e vinha a galope ao seu encontro.

El-Rei mostrou a Athos e a Aramis o que se passava.

— Sire — disse Athos — o caso foi previsto, e se os homens de de Winter cumprirem o seu dever, este acontecimento nos salvará em vez de perder-nos.

Nesse momento se ouviu por sobre o ruído que faziam os cavalos galopando e nitrindo, de Winter, que ordenava:

— Desembainhar os sabres!

Todos os sabres saíram da bainha e surgiram como coriscos.

— Vamos, senhores — gritou o Rei por sua vez, inebriado pelo estardalhaço e pelo espetáculo — vamos, senhores, desembainhai os sabres!

Mas a essa ordem, cujo exemplo foi dado pelo soberano, só obedeceram Athos e Aramis.

— Fomos traídos — disse baixinho o monarca.

— Esperemos ainda — acudiu Athos — talvez não tenham reconhecido a voz de Vossa Majestade e esperem a ordem do chefe do esquadrão.

— Não ouviram, então, a do seu coronel! Mas vede! — bradou o Rei, sofreando violentamente o corcel e segurando as rédeas do cavalo de Athos.

— Ah! Covardes! Miseráveis! Traidores! — gritava de Winter, cuja voz se ouvia, ao passo que os seus homens, abandonando as fileiras, debandavam pela planície.

Uns quinze, se tanto, agrupados à volta dele, esperavam a carga dos couraceiros de Cromwell.

— Vamos morrer com eles! — disse o Rei.

— Vamos morrer! — repetiram Athos e Aramis.

— A mim todos os corações fiéis! — bradou de Winter. Essa voz chegou aonde estavam os dois amigos, que partiram a galope.

— Não poupeis ninguém! — gritou em francês, respondendo à voz de de Winter, uma voz que os fez estremecer.

Ao som dessa voz de Winter empalideceu e ficou como petrificado.

Era a de um cavaleiro montado em magnífico cavalo preto, que, arrebatado pelo próprio ardor, corria à frente do regimento inglês.

— É ele! — murmurou de Winter com os olhos fixos, deixando pender a espada.

— O Rei! O Rei! — gritaram diversas vozes, enganadas pela fita azul e pelo cavalo isabel de de Winter; — agarrai-o vivo!

— Não, esse não é o Rei! — bradou o cavaleiro; — não vos enganeis. Não é verdade, Milorde de Winter, que não sois o Rei? Não é verdade que sois meu tio?

Ao mesmo tempo, Mordaunt assestou o cano da pistola a de Winter. O tiro partiu; a bala atravessou o peito do velho fidalgo, que deu um salto sobre a sela e caiu entre os braços de Athos, murmurando:

— O vingador!

— Lembra-te de minha mãe! — urrou Mordaunt ao passar, arrebatado pelo galope furioso do animal.

— Miserável! — gritou Aramis, desfechando-lhe um tiro de pistola quase à queima roupa; entretanto, só a escorva ardeu e o tiro não partiu.

Nesse momento o regimento inteiro caiu sobre os poucos homens que haviam resistido, e os dois franceses foram cercados, apertados, envolvidos. Depois de certificar-se de que de Winter estava morto, Athos largou o cadáver e, puxando da espada:

— Vamos, Aramis, pela honra de França.

E os dois ingleses que se encontravam mais próximos dos dois fidalgos caíram, mortalmente feridos.

No mesmo instante um alarido medonho se ouviu e trinta lâminas cintilaram acima de suas cabeças.

De súbito um homem se precipita do meio das fileiras inglesas, que ele atropela, salta sobre Athos, aperta-o com os braços nervosos, arranca-lhe a espada e diz-lhe ao ouvido:

— Silêncio! Rende-te. Rende-te a mim, que isso não é render-se.

Um gigante empolga também os pulsos de Aramis, que forceja em vão por livrar-se do formidável aperto.

— Rende-te — ordena ele, considerando-o fixamente. Aramis levanta a cabeça, volta-se Athos.

— D'Artagnan — exclamou Athos, cuja boca tapou o mosqueteiro com a mão.

— Eu rendo-me — disse Aramis, estendendo a espada a Porthos.

— Fogo! fogo! — berrava Mordaunt, voltando para o grupo em que se achavam os dois amigos.

— Fogo por quê? — perguntou o Coronel; — todos se renderam.

— É o filho de Milady — disse Athos a d'Artagnan.

— Já o reconheci.

— É o frade — disse Porthos a Aramis.

— Eu sei.

Ao mesmo tempo começaram a abrir-se as fileiras. D'Artagnan segurava as rédeas do cavalo de Athos, Porthos as do cavalo de Aramis. Cada qual procurava arrastar o seu prisioneiro para longe do campo de batalha.

Esse movimento descobriu o sítio em que caíra o corpo de de Winter. Com o instinto do ódio, Mordaunt voltara a encontrá-lo, e contemplava-o, inclinado sobre a montaria, com um sorriso hediondo.

Apesar de toda a sua calma, Athos levou a mão aos coldres, ainda guarnecidos de pistolas.

— Que fazes? — perguntou d'Artagnan.

— Deixa-me matá-lo.

— Nem um gesto que possa indicar que o conheces, ou os quatro estaremos perdidos.

Logo, voltando-se para o rapaz.

— Boa presa! — exclamou — boa presa! amigo Mordaunt. Temos cada um a nossa, o Sr. du Vallon e eu: nem mais nem menos do que dois cavaleiros da Jarreteira.

— Mas — exclamou Mordaunt, examinando Athos e Aramis com olhos congestos — parece-me que são franceses!

— Palavra que não sei. Sois francês, senhor? — perguntou a Athos.

— Sou — respondeu gravemente o interpelado.

— Pois muito bem, meu caro, eis-vos prisioneiro de um compatriota.

— E o Rei? — perguntou Athos angustiado — e o Rei? D'Artagnan apertou vigorosamente a mão do prisioneiro e disse-lhe:

— O Rei? Temo-lo seguro!

— Sim — acudiu Aramis — por uma traição infame. Porthos esmagou o pulso do amigo e declarou-lhe com um sorriso:

— Oh! senhor! na guerra tanto se emprega a astúcia quanto a força: vede!

Com efeito, via-se naquele momento o esquadrão que devia proteger a retirada de Carlos adiantar-se ao encontro do regimento inglês, envolvendo o Rei, que caminhava só, a pé, num grande espaço vazio. O Príncipe aparentava calma; via-se, porém, o quanto devia sofrer para consegui-lo; o suor lhe escorria da fronte e ele enxugava as têmporas e os lábios com um lenço que se tingia de sangue toda vez que se lhe afastava da boca.

— Eis aí Nabucodonosor — exclamou um dos couraceiros de Cromwell, velho puritano, cujos olhos se inflamaram à vista do homem a quem chamavam o tirano.

— Que dizeis? Nabucodonosor? — atalhou Mordaunt, com um sorriso aterrador. — Não, é o Rei Carlos I, o bom Rei Carlos, que despoja os seus súditos para herdá-los.

Carlos fitou os olhos no insolente que assim falava, mas não o reconheceu. Entretanto, a calma e religiosa majestade de seu rosto obrigou Mordaunt a abater os seus.

— Bom-dia, senhores — disse o Rei aos dois gentis-homens, que viu, um nas mãos de d'Artagnan e outros nas de Porthos. — A jornada foi infeliz, mas não por vossa culpa, graças a Deus! Onde está o meu velho de Winter?

Os dois fidalgos viraram a cabeça e calaram.

— Procura onde está Strafford — disse a voz estridente de Mordaunt.

Carlos estremeceu: o demônio atingira o alvo. Strafford era o seu remorso eterno, a sombra de seus dias, o fantasma de suas noites (60).

(60) Thomas Wentworth, Conde de Strafford, prestou relevantes serviços a Carlos I durante o tempo em que este governou sem parlamento. Quando o Rei, porém, foi obrigado a convocar o Parlamento, um de seus membros, o puritano Pym, acusou-o de traição e a Câmara dos Lordes, receando um movimento popular, condenou-o à morte. O Rei, que prometera salvá-lo, teve a covardia de assinar a sentença, que foi executada. Strafford arrostou o suplício com firmeza e a sua morte foi o prelúdio da do próprio monarca. (N. do T.)

 

O Rei circunvolveu os olhos e viu um cadáver a seus pés. Era de Winter.

Não soltou um grito, não derramou uma lágrima; entretanto, uma palidez ainda mais lívida estendeu-se-lhe sobre o rosto; pôs um joelho em terra, ergueu a cabeça de de Winter, beijou-lhe a testa e, tirando a fita do Espírito Santo que lhe pusera em torno do pescoço, guardou-a religiosamente no seio.

— De Winter foi morto? — perguntou d'Artagnan fitando a vista no cadáver.

— Foi — disse Athos; — pelo sobrinho.

— É o primeiro de nós que se vai — murmurou d'Artagnan; — durma em paz, era um bravo.

—- Carlos Stuart — interveio o coronel do regimento inglês, adiantando-se para o Rei, que acabava de retomar as insígnias da realeza — rendei-vos, sois nosso prisioneiro.

— Coronel Thomlison — disse Carlos — o Rei não se rende; o homem cede à força, nada mais.

— A vossa espada.

Nesse momento um cavalo sem cavaleiro, espumando, olhos inflamados, narinas abertas, acorreu e, reconhecendo o amo, estacou perto dele relinchando de alegria: era Arthus.

O Rei sorriu, acariciou-o com a mão e, ligeiro, cavalgou-o.

— Vamos, senhores — disse ele — levai-me aonde quiserdes.

E, voltando-se com vivacidade:

— Esperai: tive a impressão de que de Winter se mexeu; se ainda vive, por tudo o que tendes de mais sagrado, não desampareis o nobre fidalgo.

— Oh! descansai, Rei Carlos — acudiu Mordaunt — a bala atravessou o coração.

— Não pronuncies uma palavra, não façais um gesto, não arrisqueis um olhar para mim nem para Porthos — disse d'Artagnan a Athos e a Aramis — pois Milady ainda não morreu e a sua alma revive no corpo desse demônio!

E o destacamento se dirigiu para a cidade, levando o real prisioneiro; mas, no meio do caminho, um ajudante de campo do General Cromwell trouxe ordens ao Coronel Thomlison para conduzir o Rei a Holdenby-Castle.

Simultaneamente, partiam correios em todas as direções para anunciar à Inglaterra e à Europa que o Rei Carlos Stuart fora aprisionado pelo General Olivério Cromwell.

 

OLIVÉRIO CROMWELL

 

—Não ides falar com o General? — perguntou Mordaunt a d'Artagnan e a Porthos — sabeis que ele mandou procurar-vos depois da batalha.

— Vamos primeiro colocar os prisioneiros em lugar seguro — respondeu d'Artagnan. — Sabeis, senhor, que esses fidalgos valem, cada um, mil e quinhentas pistolas?

— Oh! ficai descansados — disse Mordaunt encarando-os com olhos cuja ferocidade em vão buscava reprimir — os meus cavaleiros saberão guardá-los, e muito bem; respondo por eles.

— Mas eu os guardarei ainda melhor — tornou d'Artagnan; — de mais a mais, basta um bom quarto com sentinelas à vista ou a simples palavra deles de que não tentarão fugir. Acertarei tudo isso e depois teremos a honra de apresentar-nos ao General e pedir-lhes as ordens para Sua Eminência.

— Pretendeis partir logo? — perguntou Mordaunt.

— Nossa missão terminou e nada mais nos retém na Inglaterra senão a vontade do grande homem à cuja presença fomos enviados.

O rapaz mordeu os lábios e, inclinando-se ao ouvido do sargento:

— Segui esses homens — ordenou — e não os percais de vista; quando souberdes onde estão instalados, ide esperar-me à porta da cidade.

O sargento fez um gesto de assentimento.

E, em vez de acompanhar a coluna de prisioneiros na direção da cidade, encaminhou-se Mordaunt para a colina de onde Cromwell assistira à batalha e onde mandara erguer a sua tenda.

Cromwell dera ordens para que não deixassem ninguém aproximar-se dele: mas, sabendo ser Mordaunt um dos mais íntimos confidentes do General, supôs a sentinela que a proibição não se estendesse ao jovem.

Mordaunt afastou, portanto, a cortina da barraca e viu o General sentado diante de uma mesa, com a cabeça escondida entre as mãos e as costas voltadas para a entrada.

Tivesse ou não ouvido o ruído que fizera Mordaunt ao entrar, o fato é que Cromwell não se voltou.

Mordaunt permaneceu em pé na soleira da porta.

Afinal, volvido um instante, Cromwell ergueu a fronte pesada, como se sentisse a presença de alguém e virou lentamente a cabeça.

— Eu disse que queria ficar só! — exclamou, vendo o rapaz.

— Cuidaram que a proibição não me dissesse respeito, senhor — respondeu Mordaunt; — entretanto, se o quiserdes, estou pronto para sair.

— Ah! sois vós, Mordaunt! — disse Cromwell, apartando, como que a poder de vontade, o véu que lhe toldava os olhos; — já que entrastes, ficai.

— Trago-vos as minhas felicitações.

— As vossas felicitações? E por quê?

— Pela prisão de Carlos Stuart. Sois agora o dono da Inglaterra.

— Eu o era ainda mais há duas horas.

— Como assim, General?

— A Inglaterra precisava de mim para prender o tirano; agora o tirano está preso. Já o vistes?

— Vi, senhor.

— Qual é a sua atitude?

Mordaunt hesitou, mas a verdade pareceu sair-lhe à força dos lábios.

— Calma e digna — respondeu.

— Que disse ele?

— Algumas palavras de adeus aos amigos.

— Aos amigos!,— murmurou Cromwell; — pois ele tem amigos?

E, em voz alta:

— Defendeu-se?

— Não, senhor, foi desamparado por todos, exceto por três ou quatro homens; não poderia defender-se.

— A quem entregou a espada?

— Não a entregou, quebrou-a.

— Fez bem; mas em vez de quebrá-la teria feito melhor se tivesse sabido utilizá-la.

Seguiu-se um instante de silêncio.

— O Coronel do regimento que servia de escolta ao Rei, a Carlos, foi morto, se não me engano? — perguntou Cromwell, cravando a vista em Mordaunt.

— Foi, sim, senhor.

— Por quem?

— Por mim.

— Como se chamava?

— Lorde de Winter.

— Vosso tio? — exclamou Cromwell.

— Meu tio! — confirmou Mordaunt; — os traidores da Inglaterra não pertencem à minha família.

Cromwell permaneceu um instante pensativo, considerando o rapaz; depois, com a profunda melancolia que Shakespeare descreve tão bem:

— Mordaunt — disse-lhe — sois um terrível servidor.

— Quando o Senhor ordena — volveu Mordaunt — não se regateiam as suas ordens. Abraão ergueu o cutelo sobre Isaque, e Isaque era seu filho.

— Sim — conveio Cromwell — mas o Senhor não permitiu que se consumasse o sacrifício.

— Olhei à minha volta — tornou Mordaunt — mas não vi bode nem cabrito entre as sarças da planície.

Cromwell inclinou-se.

— Sois forte entre os fortes, Mordaunt — disse ele. — E os franceses, como se portaram?

— Como bravos, senhor.

— Sim, sim — murmurou Cromwell — os franceses batem-se bem; e, com efeito, se a minha luneta é boa, parece-me tê-los vistos na primeira fila.

— Lá estavam — confirmou Mordaunt.

— Mas atrás de vós.

— A culpa foi dos cavalos, não deles. Seguiu-se novo momento de silêncio.

— E os escoceses? — perguntou Cromwell.

— Cumpriram a palavra — respondeu Mordaunt; — nem se mexeram.

— Miseráveis! — murmurou Cromwell.

— Os seus oficiais desejam ver-vos, senhor.

— Não tenho tempo. Já foram pagos?

— Esta noite.

— Então partam, regressem às suas montanhas e escondam lá a sua vergonha, se é que as montanhas são bastante altas para isso; não tenho mais nada com eles, nem eles comigo. Agora, retirai-vos, Mordaunt.

— Antes de retirar-me — disse Mordaunt — desejo fazer-vos algumas perguntas, senhor, e um pedido.

— A mim?

Inclinou-se Mordaunt.

— Venho ter convosco, meu herói, meu protetor, meu pai, e vos pergunto: Mestre, estais satisfeito comigo?

Cromwell encarou-o com espanto. O rapaz conservou-se impassível.

— Sim — disse Cromwell; — fizestes, depois que vos conheço, não somente o vosso dever, mas ainda mais do que o vosso dever: Fostes para mim amigo fiel, hábil negociador, bom soldado.

— Lembrai-vos, senhor, de que fui o primeiro que teve a idéia de negociar com os escoceses a entrega do Rei?

— Sim, a idéia foi vossa, é verdade; ainda não ia tão longe o meu desprezo dos homens.

— Fui bom embaixador em França?

— Sim, e obtivestes de Mazarino o que eu queria.

— Tenho sempre combatido com ardor pela vossa glória e pelos vossos interesses?

— Com demasiado ardor, talvez, e era o que eu vos censurava há pouco. Mas aonde pretendeis chegar com todas essas perguntas?

— A dizer-vos, Milorde, que é chegado o momento em que podeis, com uma palavra, recompensar-me todos os serviços.

— Ah! — exclamou Olivério com um leve movimento de desdém; — é verdade, esquecia-me que todo serviço merece recompensa; vós me servistes e ainda não Fostes recompensado.

— Posso sê-lo, senhor, agora mesmo e muito além de minhas expectativas.

— Como?

— Tenho a paga ao alcance da mão e ela é quase minha. — E que paga é essa? — perguntou Cromwell. — Alguém vos ofereceu dinheiro? Quereis uma patente? Desejais um governo?

— Conceder-me-eis, senhor, o que vos peço?

— Vejamos primeiro o que é.

— Senhor, quando me dissestes: Cumprireis uma ordem, acaso vos perguntei alguma vez: Vejamos essa ordem?

— E se o vosso desejo for impossível de realizar-se?

— Quando tivestes algum desejo e me encarregastes de realizá-lo, acaso vos respondi alguma vez: É impossível?

— Mas um pedido formulado com tamanha preparação...

— Ah! descansai, senhor — tornou Mordaunt com singela expressão — ele não vos arruinará.

— Pois bem — acedeu Cromwell — prometo satisfazermos o pedido até onde me for possível; pedi.

— Senhor — respondeu Mordaunt — foram feitos hoje cedo dois prisioneiros; entregai-mos.

— Terão oferecido um resgate considerável? — perguntou Cromwell.

— Pelo contrário, senhor, creio que são pobres.

— Mas, nesse caso, são vossos amigos?

— Sim, senhor — exclamou Mordaunt — são amigos meus, amigos muito queridos, e eu seria capaz de dar a vida pela deles.

— Muito bem, Mordaunt — assentiu Cromwell, retificando, com um gesto de alegria, o conceito que fizera do rapaz; — são teus, nem quero saber quem são; faze deles o que quiseres.

— Obrigado, senhor — bradou Mordaunt — obrigado! Minha vida, de agora em diante, vos pertence, e ainda que eu a perdesse serieis meu credor; obrigado, acabastes de pagar magnificamente os meus serviços.

Atirou-se aos joelhos de Cromwell e, a despeito dos esforços do general puritano, que não queria ou fingia não querer que lhe prestassem aquela homenagem quase real, tomou-lhe a mão e beijou-a.

— Como! — disse Cromwell, detendo-o por seu turno no momento em que ele se reerguia — nenhuma outra recompensa? Nem dinheiro? Nem patentes?

— Vós me destes tudo o que me poderíeis ter dado, Milorde, e, a partir de hoje, eu vos considero quite do resto.

E Mordaunt precipitou-se para fora da tenda do General com uma alegria que lhe transbordava do coração e dos olhos. Cromwell seguiu-o com a vista.

— Ele matou o tio! — murmurou; — ai, que são os meus servidores? Talvez este, que não me reclama nada ou parece nada reclamar, tenha pedido mais diante de Deus do que os que vierem exigir o ouro das províncias e o pão dos desgraçados; ninguém me serve por nada. Carlos, meu prisioneiro, talvez ainda tenha amigos; eu não tenho nenhum.

E retomou, suspirando, o devaneio interrompido por Mordaunt.

 

      OS GENTIS-HOMENS

 

Enquanto Mordaunt se dirigia para a tenda de Cromwell, d'Artagnan e Porthos levavam os prisioneiros para a casa em que deviam aquartelar-se em Newcastle.

A recomendação feita por Mordaunt ao sargento não escapara ao gascão, que, por isso mesmo, pedira com os olhos a Athos e Aramis a mais rigorosa prudência. Estes, por conseguinte, havia caminhado em silêncio ao lado dos vencedores; o que não lhes fora difícil, pois cada qual já tinha muito que fazer ocupando-se dos próprios pensamentos.

Se houve jamais homem espantado, foi Mousqueton, quando, da soleira da porta, viu chegarem os quatro amigos seguidos pelo sargento e uma dezena de soldados. Esfregou os olhos, não querendo acreditar que fossem Athos e Aramis; afinal, porém, viu-se obrigado a aceitar a realidade. E já ia derreter-se em exclamações, quando Porthos lhe impôs silêncio com um desses olhares que não admitem discussão.

Mousqueton ficou cosido com a porta, esperando a explicação de tão estranho sucesso; o que mais o atarantava, sobretudo, era o fato de não parecerem reconhecer-se os quatro amigos.

A casa a que d'Artagnan e Porthos conduziram Athos e Aramis era a que habitavam desde a véspera e que lhes fora cedida pelo General Cromwell: ficava na esquina de uma rua e tinha uma espécie de jardim e cocheiras, que davam para a rua vizinha.

As janelas do rés-do-chão, como sucede com freqüência nas aldeias de província, eram gradeadas, de sorte que semelhavam as de um calabouço.

Os dois amigos fizeram entrar os prisioneiros na frente e permaneceram no limiar da porta, depois de haverem ordenado a Mousqueton que conduzisse os quatro cavalos à co-cheira.

— Por que não entramos com eles? — perguntou Porthos.

— Porque precisamos, antes — respondeu d'Artagnan — saber o que nos querem esse sargento e os oito ou dez homens que o acompanham.

O sargento e os oito ou dez homens instalaram-se no jardim.

D'Artagnan perguntou-lhes o que desejavam e por que estavam lá.

— Recebemos ordem — replicou o sargento — de ajudar-vos a guardar os prisioneiros.

Não havia o que objetar contra isso; era até, pelo contrário, uma atenção delicada, que seria mister agradecer. D'Artagnan confessou-se grato ao sargento e deu-lhe uma coroa para beber à saúde do General Cromwell.

Respondeu o sargento que os puritanos não bebiam e enfiou a coroa no bolso.

— Ah! — exclamou Porthos — que dia medonho, meu caro d'Artagnan!

— Que dizes, Porthos? Chamas medonho ao dia em que tornamos a encontrar os nossos amigos?

— Sim; mas em que circunstâncias!

— É verdade que a situação é difícil — atalhou d'Artagnan; — mas não importa, vamos ter com eles e procuremos esclarecer a nossa posição.

— Que está mais do que atrapalhada — acudiu Porthos; — agora compreendo por que tanto me recomendou Ara mis que estrangulasse o hediondo Mordaunt.

— Silêncio, homem! Não pronuncies esse nome!

— E por que não? Estou falando francês e eles são ingleses!

D'Artagnan encarou Porthos com a expressão admirativa que um homem sensato não pode recusar a uma enormidade qualquer.

E como Porthos, por seu turno, o considerasse sem lhe compreender o espanto, d'Artagnan empurrou-o, dizendo:

— Entremos.

Porthos entrou primeiro, d'Artagnan seguiu-o; d'Artagnan fechou cuidadosamente a porta e abraçou os amigos.

Athos mergulhara em tristeza mortal. Aramis contemplava ora Porthos ora d'Artagnan sem pronunciar uma palavra; mas tão expressivo era o seu olhar, que d'Artagnan o compreendeu.

— Queres saber por que cargas dágua estamos aqui? Ora, meu Deus, é facílimo adivinhar: Mazarino encarregou-nos de trazer uma carta ao Cardeal Cromwell.

— Mas como te encontras ao lado de Mordaunt — continuou Athos — de Mordaunt, de quem eu te disse que desconfiasse, d'Artagnan?

— E que eu te recomendei que estrangulasses, Porthos?

— ajuntou Aramis.

— Sempre Mazarino. Cromwell tinha-o enviado a Mazarino; Mazarino enviou-nos a Cromwell. Há uma fatalidade em tudo isto.

— Sim, tens razão, d'Artagnan, uma fatalidade que nos divide e nos perde. Por conseguinte, meu caro Aramis, não falemos mais nisso e preparemo-nos para sofrer a nossa sorte.

— Pelo contrário, falemos nela, pois ficou combinado, uma vez por todas, que estaríamos sempre juntos, ainda que em causas opostas.

— Oh! sim, bem opostas — prosseguiu, sorrindo, Athos; — pois aqui, eu te pergunto, que causa serves? Ah! d'Artagnan, vê em que te emprega o miserável Mazarino. Sabes qual o crime de que hoje te tornaste culpado? Da prisão do Rei, da sua ignomínia, de sua morte.

— Oh! oh! — acudiu Porthos — parece-te isso?

— Exageras, Athos, — obtemperou d’Artagnan — a coisa não é assim.

— Ora, meu Deus, como não! Por que se prende um rei? Quando queremos respeitá-lo como um amo, não o compramos como um escravo. Imaginas, acaso, que seja para recolocá-lo no trono que Cromwell pagou por ele duzentas mil libras esterlinas? Amigos, eles o matarão, estai certos, e é esse ainda o menor crime que podem cometer. Mais vale decapitar do que esbofetear um rei.

— Não te digo que não e, afinal de contas, é possível — tornou d’Artagnan; — mas que nos faz tudo isso? Estou aqui porque sou soldado, porque sirvo os meus amos, isto é, os que me pagam o soldo. Jurei obedecer e obedeço; mas vós, que não fizestes- juramento algum, por que estais aqui, e que causa servis?

— A causa mais sagrada que há no mundo — retrucou Athos; — a da desgraça, da realeza e da religião. Um amigo, uma esposa, uma filha nos fizeram a honra de chamar-nos em seu auxílio. Nós os servimos de acordo com os nossos fracos préstimos, e Deus nos levará em conta a vontade em vez do poder. Podes pensar de outra maneira, d’Artagnan, encarar as coisas de outro modo, meu amigo; não tentarei desviar-te dela, mas eu te censuro.

— Oh! oh! — contestou d’Artagnan — e que me importa, afinal de contas, que o Sr. Cromwell, que é inglês, se revolte contra o seu rei, que é escocês? Sou francês e essas coisas não me dizem respeito. A troco de que me responsabilizarias por isso?

— É fato — concordou Porthos.

— Porque todos os gentis-homens são irmãos, porque tu és gentil-homem, porque os reis de todos os países são os primeiros entre os gentis-homens, porque a plebe cega, ingrata e ignara sempre se compraz em abaixar o que lhe é superior; e tu, d'Artagnan, homem da velha fidalguia, com um belo nome, com uma boa espada, contribuíste para entregar um rei a cervejeiros, alfaiates e carreteiros. Ah! d'Artagnan, como soldado talvez tenhas cumprido o teu dever, mas como gentil-homem eu te digo que és culpado.

D'Artagnan, que mastigava uma haste de flor, não respondia e sentia-se mal à vontade; pois quando desviava o olhar da vista de Athos encontrava a de Aramis.

— E tu, Porthos — continuou o Conde como se se apiedasse do enleio de d'Artagnan; — tu, o melhor coração, o melhor amigo, o melhor soldado que conheço; tu, cuja alma te torna digno de haveres nascido nos degraus de um trono, e que, mais cedo ou mais tarde, serás recompensado por um rei inteligente; tu, meu caro Porthos, gentil-homem pelos costumes, pelos gostos e pela coragem, és tão culpado quanto d'Artagnan.

Porthos enrubesceu, menos de enleio que de prazer; entretanto, abaixando a cabeça como se sentisse humilhado:

— Sim, sim — concordou ele — creio que tens razão, meu caro Conde.

Athos levantou-se.

— Vamos — exclamou, dirigindo-se a d'Artagnan e estendendo-lhe a mão; — vamos, não te agastes, meu querido filho, pois tudo o que eu te disse foi dito senão com a voz, pelo menos com o coração de um pai. Ter-me-ia sido mais fácil, acredita, agradecer-te por me haveres salvado a vida e não te dizer uma palavra sobre os meus sentimentos.

— Sem dúvida, sem dúvida, Athos — respondeu d'Artagnan apertando-lhe a mão por seu turno; — mas tens uns diabos de sentimentos que nem toda a gente pode ter. Quem poderá supor que um homem sensato deixe sua casa, a França, o pupilo, um rapaz encantador, com o qual estivemos no acampamento, para correr em auxílio de uma realeza podre e carunchosa, que ruirá um desse dias como barraca velha. O sentimento de que falas é belo, sem dúvida, tão belo que é sobre-humano.

— Seja ele o que for, d'Artagnan — respondeu Athos sem cair no laço que, com a habilidade de gascão, o amigo lhe estendera ao paternal afeto que votava a Raul — seja ele o que for, sabes, em teu foro íntimo, que é justo; mas faço mal em discutir com o meu captor. D'Artagnan, sou teu prisioneiro, trata-me, portanto, como tal.

— Ora essa! — atalhou d'Artagnan — sabes perfeitamente que não o serás por muito tempo.

— Não — acudiu Aramis — seremos tratados, sem dúvida, como os prisioneiros de Philipghauts.

— E como foram tratados? — perguntou d'Artagnan.

— Metade foi enforcada e a outra metade, fuzilada -— respondeu Aramis.

— Pois eu — disse d'Artagnan — eu vos garanto que, enquanto me restar uma gota de sangue nas veias, não sereis enforcados nem fuzilados. Com os diabos! Eles que venham! De mais a mais, vês essa porta, Athos?

— Que é que tem?

— Tem que passar por ela quando te der na telha; pois, a partir deste momento, tu e Aramis sois livres como o ar.

— Nisso te reconheço, meu bravo d’Artagnan — respondeu Athos — mas o fato é que não és mais livre do que nós: essa porta está guardada e tu o sabes.

— Vós o forçareis — disse Porthos. — Que pode haver atrás dela? Uns dez homens, quando muito.

— Que não seriam nada para nós quatro, mas que serão demasiados para nós dois. Não, divididos como estamos, por força pereceremos. Vede o exemplo fatal: na estrada do Vendômois, tu, d'Artagnan, que és tão bravo, e tu Porthos, tão valente e tão forte, Fostes derrotados; hoje os derrotados somos Aramis e eu, ê o nosso turno. Isso nunca nos sucedeu quando andávamos reunidos os quatro; morramos, pois, como morreu de Winter; enquanto a mim, declaro que só consentirei em fugir se fugirmos todos.

— Impossível — tornou d’Artagnan — estamos sob as ordens de Mazarino.

— Eu sei, e por isso mesmo não insisto mais; os meus argumentos não surtiram efeito; seriam maus, de certo, pois não tiveram poder sobre espíritos tão justos quanto os vossos.

— Aliás, se devessem surtir efeito — sobreveio Aramis — o melhor seria o de não comprometer dois amigos excelentes como d'Artagnan e Porthos. Ficai descansados, senhores, saberemos honrar-vos morrendo; no que me diz respeito, sinto-me orgulhoso de enfrentar as balas e até a corda em tua companhia, Athos, pois nunca me pareceste tão grande quanto hoje.

D'Artagnan não dizia nada, mas, depois de haver roído a haste da flor entrara a roer os dedos.

— Imaginais — disse ele afinal — que sejam capazes de matar-vos? E por quê? A quem poderá interessar a vossa morte? Como quer que seja, sois nossos prisioneiros.

— Louco, três vezes louco! — bradou Aramis — não conheces Mordaunt? Pois eu troquei com ele apenas um olhar e compreendi, por esse olhar, que estamos condenados.

— O caso é que estou arrependido de não o haver estrangulado como tu me havias dito, Aramis — tornou Porthos.

— Pois eu pouco me importo com Mordaunt! — bradou d'Artagnan; — com seiscentos diabos! Se ele chegar muito perto de mim, esmago o inseto! Está bem, não fujais, é inútil, pois estais aqui tão seguros como estáveis há vinte anos, tu, Athos, na rue Férou, e tu, Aramis, na rue de Vaugirard.

— Vede — disse Athos estendendo a mão para uma das janelas gradeadas que alumiavam a sala — dentro em pouco sabereis o que vai acontecer, pois ei-lo que chega.

— Quem?

— Mordaunt.

Com efeito, seguindo a direção que indicava a mão de Athos, viu d'Artagnan um cavaleiro que se aproximava a galope.

Era, de fato, Mordaunt.

Correu d'Artagnan para fora do quarto.

Porthos fez menção de segui-lo.

— Espera — disse d'Artagnan — e sai apenas quando me ouvires tamborilar com os dedos na porta.

 

JESUS SENHOR

 

Quando Mordaunt chegou diante da casa, viu d'Artagnan na soleira da porta e os soldados deitados aqui e ali, com as armas, sobre a relva do jardim.

— Olá! — gritou ele com voz cortada pela precipitação da corrida — ainda estão aí os prisioneiros?

— Estão, sim, senhor — redargüiu o sargento, levantando-se e levando a mão ao chapéu, no que foi imitado pelos seus homens.

— Bem. Quatro homens para prendê-los e conduzi-los imediatamente ao meu alojamento.

Quatro homens se apresentaram.

— Como? — acudiu d'Artagnan com o ar chocarreiro com que os nossos leitores o devem ter visto muitas vezes desde que o conhecem. — Que aconteceu, por obséquio?

— Aconteceu, senhor — replicou Mordaunt — que dei ordem a quatro homens para irem buscar os prisioneiros de hoje cedo e conduzi-los ao meu alojamento.

— Por quê? — perguntou d'Artagnan. — Perdoai-me a curiosidade, mas deveis compreender que desejo um esclarecimento.

— Porque os prisioneiros agora me pertencem — retrucou Mordaunt com sobranceria — e disponho deles a meu bel prazer.

— Permiti, permiti, meu jovem senhor — atalhou d'Artagnan — parece-me que laborais em erro; os prisioneiros pertencem, de hábito, àqueles que os prendem e não àqueles que assistam à sua prisão. Poderíeis prender Milorde de Winter, que era vosso tio, segundo dizem; preferistes matá-lo, está certo; nós poderíamos, o Sr. du Vallon e eu, matar os dois fidalgos, mas preferimos prendê-los; cada qual procede a seu gosto.

Os lábios de Mordaunt perderam a cor.

D'Artagnan compreendeu que as coisas não tardariam a complicar-se e pôs-se a tamborilar com os dedos a marcha dos guardas na porta.

Ao primeiro compasso, Porthos saiu e veio colocar-se do outro lado da porta, cuja soleira tocava com os pés e cujo cimo tocava com a testa.

A manobra não escapou a Mordaunt.

— Senhor — disse ele com uma cólera que já principiava a manifestar-se — seria inútil a vossa resistência; esses prisioneiros acabam de me ser entregues pelo general-chefe, meu ilustre amo, Sr. Olivério Cromwell.

Essas palavras produziram em d'Artagnan o efeito de um raio. Subiu-lhe o sangue às têmporas, passou-lhe uma nuvem pelos olhos e ele compreendeu a feroz esperança do rapaz; num movimento instintivo, caiu-lhe a mão sobre a guarda da espada.

De seu lado, Porthos olhava para d'Artagnan a fim de saber o que deveria fazer e regular pelos dele os seus movimentos.

O olhar de Porthos, em vez de tranqüilizá-lo, inquietou ainda mais d'Artagnan, que começou a arrepender-se de haver apelado para a força bruta do amigo num caso que, evidentemente, requeria sobretudo astúcia.

"A violência — dizia entre si — nos perderia a todo; d'Artagnan, meu amigo, prova a essa viborazinha que não somente és mais forte senão também mais ladino do que ele."

— Ah! — repostou em voz alta, com profunda reverência — por que não me dissestes logo, Sr. Mordaunt? Como! Vindes da parte do Sr. Olivério Cromwell, o mais ilustre cabo de guerra destes tempos?

— Acabo de deixá-lo, senhor — replicou Mordaunt, apeando e entregando as rédeas da montaria a um dos soldados — acabo de deixá-lo neste instante.

— Por que não o dissestes logo! — continuou d'Artagnan; — toda a Inglaterra pertence ao Sr. Cromwell, e visto que ,me pedis os prisioneiros em seu nome, inclino-me, senhor: são vossos, levai-os.

Mordaunt adiantou-se, radiante, e Porthos, com o coração nos pés, fitando os olhos estuporados em d'Artagnan, ia abrir a boca para falar.

D'Artagnan pisou na bota de Porthos, que então compreendeu que o amigo representava uma farsa.

Mordaunt pôs o pé no primeiro degrau e, com o chapéu na mão, já se dispunha a passar entre os dois franceses fazendo sinal aos quatro homens que o seguissem.

— Mas, perdão — acudiu d'Artagnan, com o mais encantador dos sorrisos e pousando a mão no ombro do rapaz — se o ilustre General Olivério Cromwell vos entregou os nossos prisioneiros, sem dúvida pôs por escrito a doação. Mordaunt estacou de chofre.

— Deve ter-vos dado uma cartinha para mim, um pedacinho qualquer de papel, que documente a transferência. Tende a bondade de entregar-me o papelucho para que eu tenha ao menos um pretexto com que justifique o abandono dos meus compatriotas. A não ser assim, embora eu tenha certeza de que o General Olivério Cromwell não lhes pode querer mal, a coisa seria de péssimo efeito.

Mordaunt recuou e, sentindo o golpe, dirigiu um olhar terrível a d'Artagnan; este, porém, respondeu-lhe com a expressão mais amável e amistosa que já floresceu no rosto de um homem.

— Quando vos digo uma coisa, senhor — acudiu Mordaunt — far-me-eis a injúria de duvidar dela?

— Eu! — exclamou d'Artagnan — eu! duvidar do que dizeis! Deus me livre, meu caro Sr. Mordaunt! Considero-vos, pelo contrário, um digno e perfeito fidalgo, segundo todas as aparências; de mais a mais, senhor, quereis que vos fale com franqueza? — continuou d'Artagnan com cândido semblante.

— Falai, senhor — disse Mordaunt.

— O Sr. du Vallon, que aqui está, é rico, possui quarenta mil libras de rendas e, por conseguinte, não faz questão de dinheiro; portanto, não falo por ele, mas por mim.

— E daí?

— Eu não sou rico; e isso, na Gasconha, não é desonra; ninguém é rico da Gasconha, e Henrique IV, Rei dos Gascões, como Sua Majestade Filipe IV é Rei de todas as Espanhas, nunca tinha um real no bolso.

— Acabai, senhor — disse Mordaunt; — vejo aonde quereis chegar, e se a dificuldade é a que imagino, poderemos afastá-la.

— Ah! eu sabia — bradou d'Artagnan — que éreis um rapaz inteligente. Pois bem, aí está o caso, aí é que bate o ponto, como dizemos; sou um mero oficial de fortuna; só tenho o que consigo com a espada, isto é, mais estocadas do que notas de banco. Ora, aprisionando hoje cedo dois franceses que me parecem de alto coturno, dois cavaleiros da Jarreteira, eu dizia com os meus botões: A minha fortuna está feita. Digo dois porque, em tais circunstâncias, o Sr. du Vallon costuma ceder-me os seus prisioneiros.

Completamente iludido pela verbosa bonomia de d'Artagnan, Mordaunt sorriu como um homem que compreende perfeitamente as razões que lhe expõem, e respondeu com lhaneza:

— Trarei a ordem assinada daqui a pouco, senhor, e, com ela, duas mil pistolas; mas, enquanto isso, deixai-me levar esses homens.

— Não — contrariou d'Artagnan; — que vos faz meia hora de atraso? Sou um homem metódico, senhor: façamos as coisas em ordem.

— Entretanto, eu poderia forçar-vos — tornou Mordaunt — pois aqui mando eu.

— Ah! senhor — disse d'Artagnan sorrindo amàvelmente — vê-se bem que, embora tenhamos tido a honra de viajar, o Sr. du Vallon e eu, em vossa companhia, não nos conheceis. Somos fidalgos, somos capazes, os dois, de matar-vos, a vós e aos vossos oito homens. Por Deus! Sr. Mordaunt, não vos mostreis obstinado, pois quando os outros se obstinam eu obstino-me também e sou de uma teimosia feroz; e este senhor — continuou d'Artagnan — é ainda mais teimoso e muito mais feroz do que eu: sem contar que somos enviados do Sr. Cardeal Mazarino, que representa o Rei de França. Daí resulta que, neste momento, representamos o Rei e o Cardeal, o que nos torna, como embaixadores, invioláveis, coisa que o Sr. Olivério Cromwell, tão grande político, sem dúvida, quanto grande general, compreende muito bem. Solicitai-lhe, portanto, a ordem por escrito. Que vos custa isso, meu caro Sr. Mordaunt?

— Sim, a ordem por escrito — disse Porthos, que principiava a perceber a intenção de d'Artagnan; — não vos pedimos outra coisa.

Por maior vontade que sentisse Mordaunt de recorrer à violência, era homem capaz de reconhecer por boas as razões de d'Artagnan. De mais disso, a reputação do mosqueteiro impunha-lhe respeito, e o que o vira fazer naquela manhã confirmava-lhe a reputação e fê-lo refletir. E como nem sequer suspeitasse das relações de profunda amizade que existiam entre os quatro franceses, todas as suas inquietações desapareceram diante do motivo, aliás muito plausível, do resgate.

Deliberou, portanto, ir buscar não somente a ordem, mas também as duas mil pistolas em que ele mesmo avaliara os prisioneiros.

Tornou a montar a cavalo e, depois de recomendar ao sargento que fizesse boa guarda, virou o animal e desapareceu.

— Bom! — pensou d'Artagnan — um quarto de hora para ir à tenda e outro para voltar; é mais do que suficiente.

E, dirigindo-se a Porthos, sem que o seu rosto expressasse a menor alteração, de sorte que os soldados pudessem acreditar que ele apenas continuava a mesma conversação:

— Amigo Porthos — disse, encarando com o outro — escuta bem... Em primeiro lugar, nem uma palavrinha aos nossos amigos sobre o que acabas de ouvir; é inútil que saibam o serviço que vamos prestar-lhes.

— Compreendo.

— Vai à cocheira, onde encontrarás Mousqueton; sela os cavalos, põe pistolas nos coldres, fá-los sair, e leva-os para a rua de baixo, prontos para serem montados; o resto é comigo.

Porthos não fez a menor observação e obedeceu com a sublime confiança que depositava no amigo.

— Vou — disse ele; — mas tornarei a entrar na sala em que estão os nossos amigos?

— Não, é inútil.

— Nesse caso, faze-me o favor de pegar a minha bolsa, que deixei sobre a lareira.

— Fica descansado.

Porthos encaminhou-se com o passo calmo e tranqüilo para a cocheira, e passou pelo meio dos soldados, que não puderam, embora se tratasse de um francês, menos de admirar-lhe a alta estatura e os membros vigorosos. Na esquina da rua, encontrou Mousqueton, que levou consigo.

Nesse momento d'Artagnan voltou à sala, assobiando uma ariazinha, que começara desde a partida de Porthos.

— Meu caro Athos, acabo de refletir nos teus argumentos, e eles me convenceram; estou decididamente arrependido de me haver metido nesta enrascada. Tu o disseste, Mazarino é um salafrário. Decidi, portanto, fugir convosco. Nada de reflexões, preparai-vos; as vossas duas espadas estão naquele canto; não as esqueçais, pois são ferramentas que, nas atuais circunstâncias, poderão ser utilíssimas. Ah! isso me lembra a bolsa de Porthos. Bom, ei-la.

E d'Artagnan meteu a bolsa na algibeira. Os dois amigos consideravam-no estupefactos.

— Ué! Que é que há nisso de tão espantoso? — perguntou d'Artagnan. — Eu estava cego: Athos obrigou-me a ver com clareza, nada mais. Vinde para cá.

Aproximaram-se os dois amigos.

— Vedes aquela rua? — perguntou d'Artagnan. — Lá estarão os animais; saireis pela porta, virareis à esquerda, montareis a cavalo, e pronto! Não vos preocupeis de mais nada senão de ouvir direito o sinal. O sinal será o meu grito: "Jesus, Senhor!"

— Mas dá-me primeiro a tua palavra de que virás também, d'Artagnan! — disse Athos.

— Juro por Deus!

— Está certo — disse Aramis. — Ao grito de "Jesus, Senhor!" saímos, derrubamos quanto se opuser à nossa passagem, corremos para os cavalos, montamos e fincamos as esporas. É isso?

— Precisamente!

— Vê, Aramis — atalhou Athos — sempre te digo que d'Artagnan é o melhor de todos nós.

— Bom! — disse d'Artagnan — temos cumprimentos. Vou-me embora. Adeus.

— E foges conosco, não é verdade?

— Se fujo! Não esqueçais o sinal: "Jesus, Senhor!"

E saiu com o mesmo passo com que entrara, retomando a ária que assobiava no ponto em que a interrompera.

Os soldados jogavam ou dormiam; dois cantavam, desafinados, num canto, o salmo: Super flumina Babylonis.

D'Artagnan chamou o sargento.

— Meu caro senhor — disse-lhe ele — o General Cromwell mandou-me chamar pelo Sr. Mordaunt; vigiai bem os prisioneiros, por favor.

O sargento fez-lhe sinal que não entendia francês.

D'Artagnan tentou fazê-lo compreender por gestos o que ele não pudera compreender por palavras.

O sargento fez sinal que estava certo.

D'Artagnan desceu à cocheira: encontrou os cinco cavalos arreados, inclusive o seu.

— Tomai cada qual um cavalo pela rédea — disse ele a Porthos e a Mousqueton — e virai à esquerda a fim de que Athos e Aramis possam ver-vos da janela.

— Eles virão?

— Daqui a pouco.

— Não esqueceste a minha bolsa?

— Não, sossega.

— Bom.

E Porthos e Mousqueton, puxando cada qual um cavalo, dirigiram-se ao seu posto.

Ficando só, d'Artagnan feriu lume, acendeu um pedaço de isca duas vezes maior que uma lentilha, montou a cavalo e foi parar no meio dos soldados, defronte da porta.

Lá, enquanto acariciava o animal com a mão, introduziu-lhe o pedacinho de isca na orelha.

Era preciso ser tão bom cavaleiro quanto ele para arriscar um processo dessa ordem, pois tanto que sentiu a queimadura ardente, o cavalo soltou um urro de dor, empinou-se e começou a pular como se tivesse enlouquecido.

Os soldados, que ele ameaçava esmagar, afastaram-se precipitadamente.

— A mim! a mim! — gritava d'Artagnan. — Parai! parai! o meu cavalo está com vertigem.

Com efeito, volvido um instante, parecia deitar sangue pelos olhos e escuma pelos poros.

— A mim! — continuava gritando d'Artagnan sem que os soldados ousassem acudir-lhe. — A mim! deixareis que me mate? Jesus, Senhor!

Mal soltara d'Artagnan esse grito, quando a porta se abriu, e Athos e Aramis se precipitaram, com a espada em punho. Mas, graças ao estratagema de d'Artagnan, o caminho estava desimpedido.

— Os prisioneiros estão fugindo! Os prisioneiros estão fugindo! — berrou o sargento.

—Pára! pára! — gritou d'Artagnan soltando as rédeas do cavalo furioso, que saltou, derrubando dois ou três homens.

— Stop! stop! — gritaram os soldados correndo para as armas.

Mas os prisioneiros já estavam montados e, sem perda de tempo, corriam para o portão mais próximo. No meio da rua avistaram Grimaud e Blaisois, que voltavam à procura dos amos.

A um sinal de Athos, Grimaud compreendeu o que se passava e seguiu a tropazinha, que parecia um turbilhão e que d'Artagnan, na retaguarda, espicaçava ainda mais com os seus berros. Cruzaram o portão como sombras, sem que os guardas pensassem sequer em detê-los, e viram-se em campo aberto.

Durante esse tempo, os soldados continuavam gritando: Stop! stop! e o sargento, que principiava a compreender que fora vítima de um logro, arrancava os cabelos.

Nesse em meio chegou a galope um cavaleiro com um pedaço de papel na mão.

Era Mordaunt, que voltava com a ordem.

— E os prisioneiros? — gritou, saltando do cavalo.

O sargento não teve forças para responder-lhe e limitou-se a mostrar-lhe a porta escancarada e a sala vazia. Atirou-se Mordaunt pela escada acima, compreendeu tudo, soltou um grito como se lhe rasgassem as entranhas e caiu sem sentidos sobre o chão de pedra.

 

ONDE SE DEMONSTRA QUE NEM NAS SITUAÇÕES MAIS DIFÍCEIS OS GRANDES CORAÇÕES PERDEM A CORAGEM NEM OS BONS ESTÔMAGOS O APETITE

 

Sem trocar uma palavra, sem olhar para trás, o grupo correu à desfilada, cruzando um riozinho, cujo nome ninguém sabia, e deixou à esquerda uma cidade que Athos julgou ser Durham.

Afinal, avistaram os cavaleiros um bosquete e, esporeando pela última vez as montarias, dirigiram-nas para esse lado. Logo que desapareceram atrás de uma cortina de verdura tão espessa que os ocultava aos olhares dos que pudessem persegui-los, fizeram alto para confabular; os cavalos foram entregues aos dois lacaios, a fim de tomarem fôlego sem que fosse preciso desarreá-los, e Grimaud ficou de sentinela.

— Em primeiro lugar, deixa que eu te abrace, meu amigo — disse Athos a d'Artagnan — a ti, nosso salvador, a ti, que és o verdadeiro herói entre nós!

— Athos tem razão e eu te admiro — disse, por sua vez, Aramis, apertando-o nos braços; — quanta coisa pode-rias fazer se tivesses um amo inteligente, olhar infalível, braço de aço, espírito vencedor!

— Está certo — volveu o gascão — aceito tudo para mim e para Porthos, abraços e agradecimentos: temos tempo para perder.

Lembrados por d'Artagnan do que também deviam a Porthos, os dois amigos abraçaram-no em seguida.

— Agora — disse Athos — não podemos correr ao acaso, como um bando de alucinados, mas devemos traçar um plano. Que vamos fazer?

— Que vamos fazer? Hom'essa! Não é difícil dizer.

— Dize-o então, d'Artagnan.

— Vamos ao porto de mar mais próximo, reunimos todos os nossos recursozinhos, fretamos um navio e regressamos a França. Enquanto a mim, eu empregaria nisso até o meu último real. O primeiro tesouro é a vida e a nossa está por um fio.

— Que dizes tu, du Vallon? — perguntou Athos.

— Eu — disse Porthos — estou inteiramente de acordo com d'Artagnan; é um país bem ruinzinho esta Inglaterra.

— Estás, portanto, resolvido a deixá-la? — perguntou Athos a d'Artagnan.

— Com seiscentos diabos! — disse d'Artagnan — não vejo o que poderia segurar-me aqui.

Athos trocou um olhar com Aramis.

— Ide, então, meus amigos — disse ele suspirando.

— Como! Ide? É vamos, se não me engano.

— Não, meus amigo, precisamos separar-nos.

— Separar-nos! — disse d'Artagnan, pasmando do inesperado da notícia.

— Ora! — sobreveio Porthos; — por que precisamos separar-nos, já que estamos juntos?

— Porque a vossa missão está cumprida; podeis e até deveis regressar à França; mas a nossa ainda não.

— Vossa missão ainda não está cumprida? — repetiu d'Artagnan olhando, surpreso, para Athos.

— Não, meu amigo — respondeu Athos com a sua voz tão doce e tão firme a um tempo. — Viemos aqui para defender o Rei Carlos; não soubemos fazê-lo, só nos resta salvá-lo.

— Salvar o Rei! — exclamou d'Artagnan, olhando para Aramis como olhara para Athos.

Aramis limitou-se a fazer um sinal com a cabeça.

O rosto de d'Artagnan assumiu uma expressão de compaixão profunda; principiava a crer que se havia com dois loucos.

— Não podes estar falando sério, Athos — disse d'Artagnan; — o Rei se encontra no meio de um exército que o conduz a Londres. Esse exército é comandado por um carniceiro, ou filho de Carniceiro, tanto faz, o Coronel Harrison. O processo de Sua Majestade será iniciado assim que chegar a Londres, eu te garanto; ouvi a esse respeito, da própria boca do Sr. Olivério Cromwell, o suficiente para saber o que vai acontecer.

Athos e Aramis trocaram segundo olhar.

— Feito o processo, a sentença não tardará em ser executada — continuou d'Artagnan. — Oh! esses senhores puritanos trabalham depressa!

— E a que pena cuidas que o Rei seja condenado? — perguntou Athos.

— Receio muito que seja a pena de morte; fizeram tanta coisa contra ele que o Rei nunca poderá perdoar-lhes e, por isso mesmo, só lhes resta um meio: matá-lo. Não conheceis a frase do Sr. Olivério Cromwell quando foi a Paris e lhe mostraram o castelo de Vincennes, onde estava preso o Sr. de Vendome?

— Qual foi? — perguntou Porthos.

— Dos príncipes só se toca a cabeça.

— Eu já a conhecia — disse Athos.

— E julgas que ele não ponha a máxima em execução, agora que tem o Rei em seu poder?

— Tenho certeza disso, mas essa é mais uma razão para não desamparar a augusta cabeça ameaçada.

— Estás ficando louco, Athos.

— Não, meu amigo — respondeu docemente o fidalgo; — de Winter procurou-nos em França, conduziu-nos à presença da Sra. Henriqueta; Sua Majestade fez-nos a honra, ao Sr. d'Herblay e a mim, de pedir a nossa ajuda em favor do marido; empenhamos a palavra, e a nossa palavra encerrava tudo. Era a nossa força, a nossa inteligência, a nossa vida, enfim, que empenhávamos; só nos resta cumpri-la. Não é o teu parecer, d'Herblay?

— É — disse Aramis — nós prometemos.

— De mais disso — continuou Athos — temos outra razão, que é esta; escutai-a: tudo é pobre e mesquinho em França neste momento. Temos um rei de dez anos, que ainda não sabe o que quer; uma rainha, a quem uma paixão tardia cegou; um ministro, que governa a França como governaria uma grande fazenda, isto é, preocupado apenas com o ouro que dela possa brotar, trabalhando-a com a intriga e a astúcia italianas; príncipes, que fazem oposição pessoal e egoísta, e nunca lograrão tirar das mãos de Mazarino mais do que alguns lingotes de ouro e uns restinhos de poder. Eu os servi, não por entusiasmo, pois Deus sabe que os estimo pelo que valem e não faço deles conceito muito elevado, mas por princípio. Hoje a coisa é outra: hoje encontro em meu caminho um alto infortúnio, um infortúnio real, um infortúnio europeu, e ligo-me a ele. Se conseguirmos salvar o Rei, será belo: se morrermos por ele, será grande!

— Por conseguinte, já sabeis de antemão que perecereis na empresa? — acudiu d'Artagnan.

— Cremos que sim, e a nossa única mágoa é morrermos longe de vós.

— Que podereis fazer num país estranho, inimigo?

— Quando jovem, percorri a Inglaterra e falo inglês como um inglês; Aramis, por seu turno, tem alguns conhecimentos do idioma. Ah! se ficásseis conosco, meus amigos! Contigo, d'Artagnan, contigo, Porthos, os quatro, reunidos pela primeira vez depois de vinte anos, enfrentaríamos não somente a Inglaterra, mas os três reinos!

— E prometeste a essa rainha — atalhou d'Artagnan de mau humor — forçar a Torre de Londres, matar cem mil soldados, lutar vitoriosamente contra o voto de uma nação e a ambição de um homem, quando esse homem se chama Cromwell? Ainda não vistes esse homem, nem tu, Athos, nem tu, Aramis Pois bem! é um homem genial, que me lembrou extraordinariamente o nosso Cardeal, o outro, o grande! Não exagereis os vossos deveres. Em nome de Deus, meu caro Athos, evita uma dedicação inútil! Quando te vejo, parece-me ver um homem sensato; mas quando me respondes, parece-me que trato com um louco. Vamos, Porthos, junta-te a mim. Que pensas desse negócio? Dize-o francamente.

— Nada de bom — respondeu Porthos.

— Vejamos — continuou d'Artagnan, impacientando-se ao ver que Athos, em lugar de escutá-lo, parecia escutar uma voz que falava dentro de si mesmo — nunca te deste mal com os meus conselhos; pois bem! acredita, Athos, a tua missão terminou, terminou nobremente; regressa à França conosco.

— Amigo — disse Athos — a nossa resolução é inabalável.

— Mas tens outro motivo que não conhecemos? Athos sorriu.

D'Artagnan desferiu, colérico, uma pancada na coxa e murmurou as razões mais convincentes que pôde encontrar; mas a todas elas limitou-se Athos a responder com um sorriso calmo e doce, e Aramis com movimentos da cabeça.

— Pois bem! — exclamou afinal d'Artagnan, furioso — pois bem! já que assim o quereis, deixemos os nossos ossos neste país infecto, onde faz sempre frio, onde o bom tempo é nevoeiro, onde o nevoeiro é chuva, onde a chuva é dilúvio; onde o sol parece lua e a lua parece requeijão. De fato, morrer aqui ou morrer em outro lugar, já que temos de morrer, pouco nos importa.

— Mas lembra-te, meu caro amigo, de que é morrer mais cedo — disse Athos.

— Ora! um pouquinho mais cedo ou um pouquinho mais tarde, tanto faz.

— Se alguma coisa me espanta — observou, sentencioso, Porthos — é que ainda não tenhamos morrido.

— Acabaremos morrendo, não te impressiones, Porthos — disse d'Artagnan. — Portanto, está combinado — ajuntou o gascão — se Porthos não se opõe.

— Eu — disse Porthos — farei o que quiserdes. Aliás, acho muito bonito o que disse há pouco o Conde de La Fere.

— Mas o teu futuro, d'Artagnan? As tuas ambições, Porthos?

— Nosso futuro, nossas ambições! — emendou d'Artagnan com febril volubilidade; — teremos, acaso, necessidade de preocupar-nos com isso, já que salvamos o Rei? Salvo o Rei, reunimos os amigos, derrotamos os puritanos, reconquistamos a Inglaterra, regressamos a Londres com ele, colocamo-lo bem direitinho no trono...

— E ele nos faz duques e pares — continuou Porthos, cujos olhos faiscaram de alegria à idéia desse futuro, ainda que visto através de uma fábula.

— Ou nos esquece — disse d'Artagnan.

— Oh! — exclamou Porthos.

— Hom'essa! isso já aconteceu, amigo Porthos; e parece-me que prestamos outrora à Rainha Ana d'Áustria um serviço não muito inferior ao que desejamos prestar hoje a Carlos I, o que não impediu que a Rainha Ana d'Áustria nos esquecesse durante vinte anos.

— Pois bem, apesar disso, d'Artagnan — perguntou Athos — estás arrependido de havê-la servido?

— Não, palavra que não — respondeu d'Artagnan — e confesso até que nos meus momentos de pior humor essa lembrança me tem consolado.

— Como vês, d'Artagnan, os príncipes são muita vez ingratos, mas Deus, nunca.

— Athos — disse d'Artagnan — creio que, se topasses com o diabo na terra, falarias tão bem que o levarias contigo de volta para o céu.

— Portanto? — inquiriu Athos, estendendo a mão a d'Artagnan.

— Portanto, está combinado — replicou d'Artagnan; — considero a Inglaterra um país encantador, e aqui fico, mas com uma condição.

— Qual?

— A de que ninguém me obrigará a aprender inglês.

— Pois agora — exclamou Athos, triunfante — eu te juro, meu amigo, por esse Deus que nos ouve, pelo meu nome que julgo sem mácula, que acredito na existência de um poder que vela por nós, e tenha a esperança de que os quatro tornaremos a ver-nos em França.

— Seja — disse d'Artagnan; — mas confesso que a minha convicção é inteiramente contrária.

— Esse querido d'Artagnan! — disse Aramis — representa entre nós a oposição dos Parlamentos, que dizem sempre não e sempre fazem sim.

— Mas que, entretanto, salvam a pátria — concluiu Athos.

— Pois bem! agora que está tudo acertado — sugeriu Porthos — e se pensássemos em jantar? Parece-me que nas situações mais críticas de nossa vida sempre jantamos.

— Ah! sim, falemos em jantar num país em que a gente se banqueteia com carneiro cozido em água e se regala com cerveja! Como diabo vieste parar num país como este, Athos? Ah! perdão — ajuntou sorrindo — eu me esquecia de que já não és Athos. Mas não faz mal, vejamos o teu plano para jantar, Porthos.

— Meu plano!

— Sim, não tens um plano? — Não, só tenho fome.

— Ora essa! se é só isso, eu também tenho; mas não basta ter fome, é preciso achar o que comer, e a menos de ruminarmos capim como os cavalos...

— Ah! — exclamou Aramis, que ainda não se apartara tanto das coisas terrenas quanto o Conde de La Fere — quando estávamos em Parpaillot, não vos lembrais das belas ostras que comíamos?

— E as pernas de carneiro das marinhas de sal! — recordou Porthos, passando a língua pelos lábios.

— Mas — atalhou d'Artagnan — não temos, acaso, o nosso amigo Mousqueton, que te tratava tão bem em Chantilly, Porthos?

— De fato, temos Mousqueton; mas depois que virou intendente, bestificou-se; em todo o caso, chamemo-lo.

E para ter certeza de que ele responderia de bom grado:

— Mouston! — chamou Porthos.

Mouston apresentou-se; vinha consternadíssimo.

— Que tendes, meu caro Sr. Mouston? — perguntou d'Artagnan; — estais doente?

— Estou com fome, senhor — respondeu Mousqueton.

— Pois foi precisamente por causa disso que vos chamamos, meu caro Sr. Mouston. Não poderíeis apanhar na armadilha alguns daqueles coelhinhos gentis e algumas daquelas perdizes encantadoras com que preparáveis guisados tão saborosos na estalagem de... palavra que já não me lembra o nome da estalagem!

— Na estalagem de... — repetiu Porthos. — Pois eu também não me lembro.

— Não faz mal; e no laço algumas daquelas garrafas de vinho velho da Borgonha, que tão rapidamente curaram o vosso amo da sua contusão?

— Ai! senhor — tornou Mousqueton — receio muito que tudo o que me pedis seja raríssimo neste país medonho, e creio que seria melhor pedirmos hospitalidade ao dono de uma casinha que se avista da ourela do bosque.

— Como! há alguma casa por aqui? — perguntou d'Artagnan.

— Há, sim, senhor — respondeu Mousqueton.

— Muito bem! como o dissestes, meu amigo, vamos pedir um prato de comida ao dono dessa casa. Que vos parece, senhores? Não julgais sensatíssimo o conselho do Sr. Mouston?

— Eh! eh! — disse Aramis — e se o dono for puritano?...

— Tanto melhor, que diabo! — exclamou d'Artagnan: — se ele for puritano, nós lhe contaremos a prisão do Rei e,' em honra dessa notícia, ele nos dará as suas galinhas brancas.

— E se for fidalgo? — perguntou Porthos.

— Nesse caso, assumiremos uma expressão de luto e comeremos as suas galinhas pretas.

— És feliz — disse Athos, sorrindo mau grado seu da resposta do indomável gascão — pois vês tudo a rir.

— Que queres? — acudiu d'Artagnan — sou de um lugar onde não há nuvens no céu.

— Não é como aqui — observou Porthos, estendendo a mão para certificar-se de que uma sensação de frescura que acabara de sentir no rosto fora realmente causada por uma gota de chuva.

— Vamos, vamos — disse d'Artagnan — mais uma razão para que nos ponhamos a caminho... Olá, Grimaud!

Grimaud apareceu.

— Então, Grimaud, meu amigo, viste alguma coisa? — perguntou d’Artagnan.

— Nada — respondeu Grimaud.

— Esses imbecis — comentou Porthos — nem sequer nos perseguiram. Oh! se estivéssemos nós no lugar deles!

— E fizeram mal — atalhou d'Artagnan; — eu gostaria muito de dizer duas palavras ao Mordaunt nesta tebaidazinha. Aqui está um lindo lugar para deitar um homem por terra com todos os ff e rr.

— Decididamente — acudiu Aramis — creio, senhores, que o filho não tem a força da mãe.

— Ora, meu caro amigo, espera — contraveio Athos — acabamos de deixá-lo há duas horas, ele ainda não sabe para que lado nos dirigimos, ignora onde estamos. Poderemos dizer que é menos forte do que a mãe quando pusermos os pés em terras de França, se daqui até lá não nos tiverem matado ou envenenado.

— Jantemos sempre enquanto esperamos — sugeriu Porthos.

— De acordo — disse Athos — pois sinto uma fome tremenda.

— Cuidado com as galinhas pretas! — observou Aramis.

E os quatro amigos, conduzidos por Mousqueton, dirigiram-se para a casa, quase restituídos à primeira displicência, pois estavam reunidos e concordes, como dissera Athos.

 

                                                                                            Alexandre Dumas

 

 

                      

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