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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


VIOLETA / Isabel Allende
VIOLETA / Isabel Allende

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

Biblio VT

 

 

 

 

Vim ao mundo numa sexta-feira tempestuosa de 1920, ano da peste. Naquela tarde de meu nascimento, a eletricidade tinha sido cortada, como costumava acontecer nos temporais, e acenderam-se velas e lampiões, que sempre estavam à mão para essas emergências. María Gracia, minha mãe, sentiu as contrações, que conhecia tão bem, por já ter parido cinco filhos, e entregou-se ao sofrimento, resignada a dar à luz outro menino com a ajuda das irmãs, que a tinham assistido nessas circunstâncias várias vezes e não se embaraçavam. Fazia semanas que o médico da família trabalhava sem descanso num dos hospitais de campanha, e elas acharam imprudente chamá-lo para algo tão prosaico como um parto. Em ocasiões anteriores tinham contado com uma parteira, sempre a mesma, mas ela havia sido uma das primeiras vítimas da gripe espanhola, e não se conhecia outra.
Minha mãe calculava que passara toda a sua vida adulta grávida, recém-parida ou restabelecendo-se de algum aborto espontâneo. O filho mais velho, José Antonio, tinha dezessete anos completos, disso ela estava segura, porque ele nascera no ano de um de nossos piores terremotos, que jogou meio país no chão e deixou um saldo de milhares de mortos, mas não lembrava com exatidão a idade dos outros filhos nem quantas gravidezes malogradas tinha padecido. Cada uma a incapacitava durante meses, e cada nascimento a deixava esgotada e melancólica por muito tempo. Antes de se casar, tinha sido a debutante mais bonita da capital, esguia, com um rosto inesquecível de olhos verdes e pele translúcida, mas os excessos da maternidade lhe haviam deformado o corpo e esgotado o ânimo.
Em teoria, amava os filhos, mas na prática preferia mantê-los a confortável distância, porque a energia daquela tropa de garotos produzia uma conturbação de batalha em seu pequeno reino feminino. Em certa ocasião, admitiu ao confessor que estava marcada para parir varões, como maldição do Diabo. Recebeu a penitência de rezar um rosário por dia durante dois anos inteiros e fazer uma doação significativa para compensar a igreja. O marido a proibiu de voltar a confessar-se.
Sob a supervisão de minha tia Pilar, Torito, o rapaz que era pau para toda obra, subiu numa escada e amarrou as cordas, guardadas num armário para essas ocasiões, em dois ganchos de aço que ele mesmo havia instalado no forro do teto. Minha mãe, de camisola, ajoelhada, pendente de uma corda em cada mão, empurrou por um tempo que lhe pareceu eterno, praguejando com palavrões de flibusteiro, que nunca usava em outras horas. Minha tia Pía, agachada entre as pernas dela, estava pronta para receber o recém-nascido antes que ele chegasse ao chão. Tinha já preparado as infusões de urtiga, artemísia e arruda para depois do parto. O estrépito da tempestade, que trombava contra as venezianas e arrancava pedaços do telhado, abafou os gemidos e o longo grito final quando despontei, primeiro a cabeça e em seguida o corpo coberto de mucosidade e sangue, que escorregou entre as mãos de minha tia e despencou no chão de madeira.
—Como você é desajeitada, Pía! — gritou Pilar, levantando-me por um pé. — É menina! — acrescentou, surpresa.
— Não pode ser, examine direito — murmurou minha mãe, esgotada.
— Estou dizendo, mana, não tem pipi — replicou a outra.

 


 


Naquela noite, meu pai voltou tarde para casa, depois de jantar e jogar várias partidas de bisca no clube, e foi diretamente para seu quarto, tirar a roupa e fazer uma fricção profiláctica de álcool antes de cumprimentar a família. Pediu uma dose de conhaque à empregada da vez, que não teve a ideia de lhe dar a notícia porque não estava acostumada a falar com o patrão, e foi cumprimentar a mulher. O cheiro de óxido do sangue o advertiu do ocorrido antes que cruzasse a soleira da porta. Encontrou minha mãe na cama, corada e com os cabelos molhados de suor, de camisola limpa, descansando. Já haviam retirado as cordas do teto e os baldes de panos sujos.

— Por que não me avisaram! — exclamou depois de beijar a testa da esposa.

— Como queria que avisássemos? O motorista estava com você e nenhuma de nós ia sair a pé nessa tempestade, isso se os teus capangas armados nos deixassem passar — replicou Pilar em tom pouco amável.

— É menina, Arsenio. Finalmente você tem uma filha — interveio Pía, mostrando-lhe o pacote que trazia nos braços.

— Bendito seja Deus! — murmurou meu pai, mas seu sorriso se apagou quando ele viu o ser que aparecia entre as dobras do xale. — Tem um ovo na testa!

— Não se preocupe. Algumas crianças nascem assim e em poucos dias se normalizam. É sinal de inteligência — improvisou Pilar, para não dizer que a filha dele tinha aterrissado de cabeça na vida.

— Que nome vão dar? — perguntou Pía.

— Violeta — disse minha mãe com firmeza, sem dar oportunidade ao marido de interferir.

É o nome ilustre da bisavó materna que bordou o escudo da primeira bandeira da Independência, no início do século XIX.

A pandemia não havia tomado minha família de surpresa. Assim que correu voz dos moribundos que se arrastavam pelas ruas do porto e do número alarmante de corpos azuis no necrotério, meu pai, Arsenio del Valle, calculou que a praga não demoraria mais que alguns dias para chegar à capital e não perdeu a calma, porque estava à sua espera. Preparara-se para aquela eventualidade com a pressa que aplicava em tudo e que lhe servira para os negócios e para ganhar dinheiro. Era o único dos irmãos a caminho de recuperar o prestígio de homem rico que distinguiu meu bisavô e que meu avô herdou, mas foi perdendo ao longo dos anos porque teve filhos demais e era honesto. Dos quinze filhos que esse avô teve sobraram onze vivos, número considerável, que provava a força do sangue dos del Valle, conforme se vangloriava meu pai; mas manter família tão numerosa exige esforço e dinheiro, e a fortuna foi desaparecendo.

Antes que a imprensa chamasse a doença por seu nome, meu pai já sabia que se tratava da influenza espanhola, porque se mantinha em dia com as notícias do mundo lendo os jornais estrangeiros, que chegavam com atraso ao Club de la Unión, porém continham mais informações que os locais, e ouvindo um rádio que ele mesmo havia montado, seguindo as instruções de um manual; com ele, mantinha-se em contato com outros aficionados, e assim, entre os guinchos e chiados da comunicação em ondas curtas, ficava a par dos estragos reais da pandemia em outros lugares. Tinha acompanhado o avanço do vírus desde seus primórdios, sabia de sua passagem como um vento de fatalidade pela Europa e pelos Estados Unidos, e deduziu que, se havia provocado consequências tão trágicas em países civilizados, era de se esperar que no nosso, onde os recursos eram mais limitados e as pessoas mais ignorantes seria pior.

A influenza espanhola, que apelidaram de “gripe” para abreviar, vinha com quase dois anos de atraso. Segundo a comunidade científica, tínhamos ficado livres do contágio graças ao isolamento geográfico, com a barreira natural das montanhas por um lado e do oceano pelo outro, à boa qualidade do clima e à distância que nos protegia do trânsito desnecessário de estrangeiros contaminados; mas o consenso popular atribuiu esse fato à intervenção do padre Juan Quiroga, a quem dedicaram procissões preventivas. É o único santo que vale a pena cultuar, porque em matéria de milagres domésticos ninguém ganha dele, embora o Vaticano não o tenha canonizado. No entanto, em 1920 o vírus chegou em glória e majestade, com mais ímpeto do que se podia imaginar, e lançou por terra as teorias científicas e teológicas.

A peste começava com um frio de além-túmulo, que nada podia mitigar, com o tremedal da febre, o garrote da dor de cabeça, a queimadura ardente nos olhos e na garganta, o delírio com a visão aterradora da morte aguardando a meio metro de distância. A pele ia ganhando coloração azul-arroxeada cada vez mais escura, os pés e as mãos ficavam pretos, a tosse impedia de respirar, uma espuma sanguinolenta afogava os pulmões, a vítima gemia de aflição, e o fim chegava por asfixia. Os mais afortunados morriam em poucas horas.

Meu pai desconfiava, com fundamento, que na guerra da Europa a influenza tinha causado mais mortandade entre os soldados amontoados em trincheiras, sem possibilidade de evitar o contágio, do que as balas e o gás de mostarda. Ela devastou com igual ferocidade os Estados Unidos e o México, e depois se estendeu para a América do Sul. Os jornais diziam que em outros países os cadáveres eram empilhados nas ruas como lenha, porque não havia tempo nem cemitérios suficientes para enterrá-los, que um terço da humanidade estava infectada e que havia mais de cinquenta milhões de vítimas, mas as notícias eram tão contraditórias quanto os boatos aterrorizantes que circulavam. Havia dezoito meses fora firmado o armistício que pôs fim aos quatro anos espantosos da Grande Guerra na Europa, e mal se começava a reconhecer o alcance real da pandemia, que a censura militar ocultara. Nenhuma nação admitia o número de suas baixas; só a Espanha, que se manteve neutra no conflito, difundia notícias sobre a doença, que por isso acabou sendo chamada de influenza espanhola.

Antes, em nosso país as pessoas morriam pelas causas de sempre, ou seja, pobreza irremediável, vícios, brigas, acidentes, água contaminada, tifo e desgaste dos anos. Era um processo natural, que dava tempo para a dignidade dos enterros, mas com a chegada da gripe, que atacava com voracidade de tigre, foi preciso prescindir do consolo aos moribundos e dos ritos do luto. Os primeiros casos foram detectados nas casas de tolerância do porto, no final do outono, mas ninguém, exceto meu pai, prestou-lhes a devida atenção, já que as vítimas eram mulheres de pouca virtude, delinquentes e traficantes. Disseram que era um mal venéreo trazido da Indonésia por marinheiros de passagem. Mas bem depressa se tornou impossível esconder a desgraça geral e continuar culpando a promiscuidade e a vida desairada, porque o mal não discriminava pecadores e virtuosos. O vírus venceu o padre Quiroga e circulava em plena liberdade, atacando com sanha crianças e velhos, pobres e ricos. Quando toda a companhia de zarzuelas e vários membros do Congresso ficaram doentes, os tabloides anunciaram o Apocalipse, e então o governo decidiu fechar as fronteiras e controlar os portos. Mas já era tarde.

Para evitar o contágio, foram inúteis as missas com três padres e os saquinhos de cânfora pendurados no pescoço. O inverno que se aproximava e as primeiras chuvas agravaram a situação. Foi preciso improvisar hospitais de campanha em quadras de esporte, necrotérios em frigoríficos do matadouro municipal e valas comuns, onde iam parar os cadáveres dos pobres, cobertos de cal viva. Como já se sabia que a doença entrava pelo nariz e pela boca, e não por picada de mosquito ou vermes nos intestinos, conforme acreditava o vulgo, foi imposto o uso de máscaras, mas, se estas não eram suficientes para o pessoal da saúde, que combatia o mal na linha de frente, muito menos estavam disponíveis para o restante da população.

O presidente do país, que era filho de imigrantes italianos de primeira geração e tinha ideias progressistas, tinha sido eleito uns meses antes com o voto da classe média emergente e dos sindicatos operários. Meu pai, como todos os seus parentes del Valle e amigos e conhecidos, desconfiava dele por causa das reformas que pensava em impor, pouco convenientes para os conservadores, e porque era um adventício sem sobrenome castelhano-basco dos antigos, mas concordou com a forma como ele enfrentou a catástrofe. A primeira ordem foi de ficar em casa para evitar o contágio, mas, como ninguém deu bola, o presidente decretou estado de emergência e toque de recolher à noite, proibindo a população civil de circular sem bom motivo, sob pena de multa, prisão e, em muitos casos, surra.

Fecharam-se escolas, estabelecimentos comerciais, parques e outros lugares onde habitualmente as pessoas se concentravam, mas continuaram funcionando algumas repartições públicas, bancos, caminhões e trens que abasteciam as cidades, além do comércio de bebida alcoólica, porque se supunha que o álcool, com doses maciças de aspirina, matava o bicho. Ninguém contava os mortos intoxicados por essa combinação de álcool e aspirina, como observou minha tia Pía, que era abstêmia e não acreditava em remédios de farmácia. A polícia não deu conta de impor obediência e prevenir crimes, tal como temia meu pai, e teve de recorrer aos soldados para patrulhar as ruas, apesar da merecida reputação de brutos que tinham. Isso provocou clamor alarmado nos partidos da oposição e entre intelectuais e artistas, que não se esqueciam do massacre de trabalhadores indefesos, entre os quais mulheres e crianças, perpetrado pelo exército anos antes, além de outras situações em que os soldados se haviam lançado de baionetas caladas contra a população civil, como se fossem inimigos estrangeiros. O santuário do padre Juan Quiroga encheu-se de devotos que queriam curar-se da influenza, e em muitos casos a cura ocorria, mas os incrédulos, que nunca faltam, disseram que, se o doente tinha forças suficientes para subir os trinta e dois degraus até a capela de Cerro San Pedro, era porque já estava recuperado. Isso não desanimou os fiéis. Apesar da proibição de reuniões públicas, uma multidão espontânea, liderada por dois bispos, que tinha a intenção de ir ao santuário, foi dispersada a bordoadas e tiros pelos soldados. Em menos de quinze minutos ficaram estendidos dois mortos e sessenta e três feridos, um dos quais morreu naquela noite. O protesto formal dos bispos foi ignorado pelo presidente, que não recebeu os prelados em seu gabinete e lhes respondeu por escrito, por intermédio de seu secretário, que “quem desobedecer à lei será tratado com mão de ferro, mesmo que seja o Papa”. Ninguém mais teve vontade de repetir a peregrinação.

Em nossa família não houve um único contaminado porque, antes da intervenção direta do governo, meu pai tinha tomado as precauções necessárias, guiando-se pela forma como outros países haviam combatido a pandemia. Pelo rádio, comunicou-se com o contramestre de sua serraria, um imigrante croata de plena confiança, que lhe mandou do Sul dois de seus melhores lenhadores. Meu pai os armou de fuzis tão antigos que nem ele mesmo sabia usá-los, plantou um em cada entrada da propriedade e encarregou-os da tarefa de impedir que qualquer pessoa entrasse ou saísse, com exceção dele e de meu irmão mais velho. Era uma ordem pouco prática, porque logicamente eles não iam impedir a passagem de pessoas da família a tiros, mas a presença daqueles homens podia dissuadir os gatunos. Os lenhadores, convertidos da noite para o dia em guardas armados, não entravam em casa; dormiam em enxergões na cocheira, alimentavam-se com a comida que a cozinheira lhes passava por uma janela e bebiam o aguardente mata-rato que meu pai lhes facilitava ilimitadamente, além de punhados de aspirina, para defender-se do bicho.

Para sua própria proteção, meu pai comprou de contrabando um revólver inglês Webley, de comprovada eficácia na guerra, e começou a praticar tiro ao alvo no quintal, assustando as galinhas. Na verdade, ele não temia tanto o vírus como aos desesperados. Em tempos normais havia muitos indigentes, mendigos e ladrões na cidade. Caso se repetisse o que havia ocorrido em outros lugares, o desemprego aumentaria, haveria escassez de alimentos e começaria o pânico; nesse caso, mesmo as pessoas de certa honradez, que até então se limitavam a protestar diante do Congresso, exigindo trabalho e justiça, recorreriam à delinquência, como nos tempos em que os mineiros desempregados do Norte, famintos e furiosos, tinham invadido a cidade e alastrado o tifo.

Meu pai comprou provisões para passar o inverno: sacos de batatas, farinha, açúcar, azeite, arroz, legumes, nozes, réstias de alho, carnes-secas e caixões de frutas e verduras para fazer conservas. Mandou quatro dos filhos — o menor acabava de fazer doze anos — para o Sul, antes que o colégio San Ignacio suspendesse as aulas por ordem do governo, mas José Antonio ficou na capital porque ia entrar na universidade assim que o mundo voltasse ao normal. As viagens estavam suspensas, mas meus irmãos conseguiram tomar um dos últimos trens de passageiros, que os levou até a estação de San Bartolomé, onde eram esperados por Marko Kusanovic, o contramestre croata, com instruções de colocá-los para trabalhar ombro a ombro com os rudes lenhadores da região. Nada de criancices. Isso os manteria ocupados e saudáveis, e de quebra evitaria doenças na casa.

Minha mãe, suas duas irmãs, Pía e Pilar, e as empregadas foram obrigadas a permanecer de portas fechadas e não sair por motivo nenhum. Minha mãe tinha pulmões fracos por causa de uma tuberculose de juventude, era de constituição delicada e não podia se expor à possibilidade de contrair a gripe.

A pandemia não alterou demais a rotina do universo fechado que era nossa casa. A porta principal, de mogno entalhado, dava para um amplo vestíbulo escuro para o qual convergiam dois salões, a biblioteca, a sala de jantar oficial para visitas, a sala de bilhar e outra porta fechada, chamada de escritório porque continha meia dúzia de móveis de metal cheios de documentos, que ninguém revia desde tempos imemoriais. A segunda parte da casa estava separada da primeira por um pátio de azulejos portugueses, com uma fonte mourisca cujo mecanismo para a água não funcionava, e uma profusão de camélias plantadas em vasos; aquelas flores deram nome à propriedade: a casa-grande das camélias. Por três lados do pátio corria uma galeria de vidraças biseladas que unia os aposentos de uso diário: sala de jantar, sala de jogos, outra de costura, quartos e banheiros. A galeria era fresca no verão e se mantinha mais ou menos morna no inverno com o uso de braseiros. A última parte da casa era o reino do serviço e dos animais; ali ficavam a cozinha, as tinas de lavar roupa, as adegas, a cocheira e a fila de cubículos patéticos onde dormiam as empregadas domésticas. Minha mãe tinha entrado pouquíssimas vezes nesse terceiro pátio.

A propriedade pertencera a meus avós paternos; quando eles faleceram, foi a única coisa significativa que ficou como herança para os filhos. Seu valor, dividido em onze partes, significava pouquíssimo para cada um. Arsenio, o único com visão de futuro, ofereceu-se para comprar as partes dos irmãos, em pequenas quotas. No início, os outros entenderam isso como um favor, uma vez que aquele casarão antigo apresentava um sem-número de problemas estruturais, como lhes explicou meu pai. Ninguém em pleno uso das faculdades mentais moraria ali, mas ele precisava de espaço para os filhos que tinha e para os que viessem, além da sogra, já bem idosa, e das irmãs de sua mulher, duas solteironas que dependiam de sua caridade. Depois, quando ele começou a pagar com atraso uma fração do prometido e por fim parou totalmente de pagar, a relação com os irmãos se deteriorou. Sua intenção não foi enganá-los. Apareceram oportunidades financeiras, e ele decidiu aventurar-se, prometendo a si mesmo que lhes pagaria o restante com juros, mas, de uma postergação a outra, foram se passando os anos, até que a dívida foi esquecida.

Na verdade, a casa era uma velharia malcuidada, mas o terreno ocupava meio quarteirão e tinha entrada por duas ruas. Gostaria de ter uma fotografia para mostrá-la, Camilo, porque ali têm início minha vida e minhas recordações. O casarão perdera o brilho que alguma vez o distinguiu antes da decadência econômica, quando meu avô ainda reinava sobre um clã de muitos filhos e um exército de domésticos e jardineiros, que mantinham a casa impecável e o jardim como um paraíso de flores e árvores frutíferas, com uma estufa de vidro, onde se cultivavam orquídeas de outros climas, e quatro estátuas de mármore da mitologia grega, como se usava então entre as famílias de linhagem, esculpidas pelos mesmos artesãos locais que talhavam as lápides do cemitério. Os velhos jardineiros já não existiam, e os novos eram um bando de folgados, segundo meu pai. “Desse jeito o mato vai engolir a casa”, repetia, mas nada fazia para resolver a situação. A natureza lhe parecia muito bonita para admirar de longe, mas não merecia sua atenção, que melhor se concentrava em assuntos mais rentáveis. A ruína progressiva da propriedade o preocupava pouco, porque ele pensava em ocupá-la apenas pelo tempo necessário; a casa não valia nada, mas o terreno era magnífico. Planejava vendê-lo quando estivesse suficientemente valorizado, mesmo que tivesse de esperar anos. Seu axioma era um clichê: comprar barato e vender caro.

A classe alta estava se deslocando para bairros residenciais, distantes das repartições públicas, dos mercados e das praças empoeiradas e cheias de cocô de pombas. Reinava uma febre de demolição de casas como aquela, para construir edifícios de escritórios ou de apartamentos para a classe média. A capital era e continua sendo uma das cidades com mais segregação no mundo, e, à medida que as classes inferiores foram ocupando aquelas ruas que tinham sido as principais desde a época da colônia, meu pai teria de mudar sua família para não fazer má figura diante de amigos e conhecidos. A pedido de minha mãe, modernizou parte da casa com eletricidade e instalou vasos sanitários, enquanto o resto continuou se deteriorando silenciosamente.


2

Minha avó materna vegetava o dia inteiro na galeria, numa poltrona de espaldar alto, tão perdida em lembranças que não proferira uma única palavra em seis anos. Minhas tias Pía e Pilar, vários anos mais velhas que minha mãe, também moravam na casa. A primeira era uma mulherzinha doce, conhecedora das propriedades das plantas, com o dom de impor as mãos para curar. Aos vinte e três anos estivera para se casar com um primo em segundo grau, que ela amava desde os quinze, mas nunca chegou a usar o vestido de noiva, porque seu prometido faleceu subitamente dois meses antes das núpcias. Na falta de autópsia, que a família se negou a autorizar, atribuiu-se a morte a um defeito congênito do coração. Pía se considerou viúva de um único amor, vestiu luto rigoroso e nunca mais aceitou outros pretendentes.

A tia Pilar era bonita, como as outras mulheres da família, mas fazia o possível para não parecer e caçoava das virtudes e dos adornos da feminilidade. Alguns jovens valentes tentaram cortejá-la na juventude, mas ela se encarregou de espantá-los. Lamentava não ter nascido meio século depois, porque assim teria realizado a ambição de ser a primeira mulher a escalar o Evereste. Quando o xerpa Tenzing Norgay e o inglês Edmund Hillary o escalaram em 1953, Pilar chorou de frustração. Era alta, forte e ágil, com o temperamento autoritário de um coronel; desempenhava o papel de governanta e se encarregava dos consertos que nunca faltavam. Tinha talento para a mecânica, inventava artefatos domésticos e lhe ocorriam maneiras originais de resolver defeitos; por isso, dizia-se que Deus tinha se enganado de gênero com ela. Ninguém se surpreendia ao vê-la em cima do telhado, dirigindo a substituição das telhas depois dos tremores de terra, ou participando sem nojo da matança de galinhas e perus no quintal, para as festas de Natal.

A quarentena imposta pela influenza foi pouco sentida em nossa família. Em tempos normais, as criadas, a cozinheira e a lavadeira só saíam duas tardes por mês; o motorista e os jardineiros tinham mais liberdade, porque os homens não se consideravam parte dos empregados. A exceção era Apolonio Toro, um adolescente gigantesco que uns anos antes batera na porta dos del Valle para pedir comida e ficara na casa. Supunha-se que era órfão, mas ninguém se dera o trabalho de verificar. Torito punha a cara na rua raríssimas vezes, porque temia ser agredido, como ocorrera em algumas ocasiões; sua aparência um tanto animalesca e sua ingenuidade incitavam à maldade. Incumbia-lhe transportar lenha e carvão, lixar e encerar o assoalho e outras tarefas pesadas que não exigiam raciocínio.

Minha mãe era pouco sociável, e em tempos normais saía o mínimo possível. Acompanhava o marido às reuniões da família del Valle, tão numerosas que podia encher o calendário do ano com aniversários, batizados, casamentos e funerais, mas o fazia a contragosto, porque o bulício lhe dava dor de cabeça. Contava com a desculpa de sua má saúde ou de outra gravidez para ficar na cama ou ir a um sanatório de tuberculosos nas montanhas, onde se repunha da bronquite e aproveitava para descansar. Se o tempo estivesse bom, saía para dar um breve passeio no automóvel reluzente que o marido comprara assim que entrara na moda, um Ford T, que atingia a velocidade suicida de cinquenta quilômetros por hora.

— Um dia vou te levar para voar em meu próprio avião — prometeu meu pai, ainda que esse fosse último meio de transporte que ela teria desejado.

A aeronáutica, considerada um capricho de aventureiros e playboys, fascinava-o. Ele acreditava que no futuro aqueles mosquitos de pano e madeira estariam ao alcance de qualquer um que pudesse pagá-los, como os automóveis, e ele seria um dos primeiros a investir neles. Tinha já pensado. Ele os compraria de segunda mão nos Estados Unidos e os traria ao país desmontados, aos pedaços, para evitar pagar impostos; depois de montados devidamente, seriam vendidos a preço de ouro. Por um dos caprichos da casualidade, a mim caberia realizar seu sonho, com algumas diferenças, muitos anos depois.

O motorista levava minha mãe ao portal dos turcos para fazer compras ou à casa de chá Versalles para se encontrar com alguma cunhada que a punha em dia com os mexericos familiares, mas quase nada disso tinha sido possível nos últimos meses, primeiro pelo peso da barriga e depois pela clausura da pandemia. Os dias de inverno eram curtos, e ela os passava jogando cartas com minhas tias Pía e Pilar, costurando, tricotando e rezando o rosário da penitência com Torito e as empregadas domésticas. Mandou trancar os aposentos dos filhos ausentes, os dois salões e a sala de jantar. Na biblioteca só entravam o marido e o filho mais velho. Ali Torito acendia a lareira, para evitar que os livros se umedecessem. No restante dos quartos e na galeria, mantinha braseiros com panelas de água fervendo e folhas de eucalipto para limpar a respiração e espantar o fantasma da influenza.

Meu pai e meu irmão José Antonio não cumpriam a quarentena nem o toque de recolher; o primeiro porque era um dos homens de negócios considerados indispensáveis para o bom andamento da economia, e o segundo porque andava com o pai. Tinham autorização para circular, como outros industriais, empresários, políticos e pessoal sanitário. Pai e filho iam para o escritório, reuniam-se com colegas e clientes e jantavam no Club de la Unión, que não foi fechado porque teria sido como fechar a catedral, embora a qualidade do restaurante tivesse diminuído na exata proporção em que os garçons morriam. Protegiam-se na rua com máscaras de feltro feitas por minhas tias e, antes de se deitarem, esfregavam álcool no corpo. Sabiam que ninguém estava imune à influenza, mas esperavam que com essas medidas e os incensos de eucalipto o bicho não entraria em nossa casa.

No tempo em que me coube nascer, as senhoras, como Maria Gracia, enclausuravam-se para esconder a barriga da gravidez aos olhos do mundo e não amamentavam a prole: era de péssimo gosto. O habitual era contratar uma ama de leite, mulher pobre que privava o próprio filho do peito para alugá-lo a outra criança mais afortunada, mas meu pai não permitiu que uma desconhecida entrasse em casa. Podia trazer o contágio da influenza. Resolveram o problema de minha alimentação com uma cabra, que foi instalada no quintal.

Desde meu primeiro dia até os cinco anos, fiquei sob os cuidados exclusivos das tias Pía e Pilar, que me mimaram até quase arruinar meu caráter. Meu pai contribuiu também, porque eu era a única menina na manada de filhos varões. Na idade em que outras crianças aprendem a ler, eu era incapaz de usar colher, davam-me de comer na boca, e eu dormia toda encolhida num berço de balanço junto à cama de minha mãe.

Um dia meu pai se atreveu a chamar minha atenção porque espatifei a cabeça de louça de uma boneca, batendo-a contra a parede.

— Pirralha malcriada! Vou lhe dar uma boa surra!

Nunca tinha erguido a voz para mim. Joguei-me de bruços no chão, arquejando como possessa, como fazia com frequência, e pela primeira vez ele perdeu a tolerância infinita que praticava comigo, agarrou-me pelos braços e me sacudiu com tanto vigor que, se as tias não interviessem, teria me quebrado o pescoço. A surpresa acabou instantaneamente com o meu faniquito.

— Essa menina está precisando é de uma preceptora inglesa — determinou meu pai, indignado.

E foi assim que miss Taylor entrou na família. Meu pai a encontrou por intermédio de um agente que administrava alguns negócios dele em Londres; este se limitou a pôr um anúncio no The Times. Entenderam-se com telegramas e cartas que demoravam várias semanas para ir e outras tantas para voltar com a resposta, mas, apesar dos obstáculos da distância e da língua (uma vez que o agente não falava espanhol e o vocabulário em inglês de meu pai se limitava a assuntos de câmbio e documentos de exportação), conseguiram entrar em acordo para contratar a pessoa ideal, uma mulher de comprovada experiência e honradez.

Quatro meses depois, meus pais e meu irmão José Antonio me levaram ao porto, em roupas de domingo, com casaco de veludo azul, chapéu de palhinha e botinhas de verniz, para receber a inglesa. Precisamos esperar que todos os passageiros descessem pela passarela do navio, cumprimentassem aqueles que tinham ido recebê-los, tirassem fotografias em grupos alvoroçados e se reunissem com sua complicada bagagem, antes que o cais se esvaziasse e pudéssemos distinguir uma figura solitária, com jeito de estar perdida. Então meus pais descobriram que a preceptora não era o que tinham imaginado, com base na correspondência infestada de mal-entendidos linguísticos com o agente. Na verdade, a única coisa que meu pai tinha perguntado em um de seus telegramas, antes de contratá-la, foi se por acaso gostava de cachorros. Ela respondera que os preferia aos humanos.

Por um daqueles preconceitos tão arraigados em minha família, eles esperavam uma mulher madura e antiquada, de nariz pontudo e dentes ruins, como algumas damas da colônia britânica que eles conheciam de longe ou tinham visto em retratos das páginas sociais. Miss Josephine Taylor era uma jovem de uns vinte e tantos anos, mais para baixa que para alta e um tantinho avantajada em carnes, sem ser gorda; usava um vestido cor de mostarda, de corte solto e cintura baixa, chapéu de feltro em forma de peniquinho e sapatos de pulseira. Tinha olhos redondos de um azul cerúleo, delineados com sombra preta, o que acentuava sua expressão assustada, cabelo de um ruivo meio palha e aquela pele que parece papel de arroz, de algumas jovens dos países frios, que com os anos fica impiedosamente manchada e enrugada. José Antonio conseguiu se comunicar com ela usando o inglês que tinha aprendido num curso intensivo, mas sem oportunidade de praticar.

Minha mãe encantou-se à primeira vista com aquela miss Taylor, fresca como uma maçã, mas o marido se considerou logrado, porque seu propósito, ao trazê-la de tão longe, tinha sido o de me impor disciplina e bons modos e de me transmitir os fundamentos de uma escolaridade aceitável. Tinha decretado que eu seria educada em casa, para me proteger de ideias perniciosas, costumes vulgares e doenças que dizimavam a população infantil. A pandemia tinha deixado algumas vítimas entre parentes distantes, mas ninguém de nossa família imediata; mesmo assim, existia o receio de que voltasse com renovada fúria e semeasse mortandade entre as crianças, que não estavam imunizadas como os adultos que tinham sobrevivido à primeira onda do vírus. Cinco anos depois, o país ainda não se recuperara completamente da desgraça deixada por sua passagem; o impacto na saúde pública e na economia foi tão devastador, que, enquanto em outros lugares reinava a loucura dos anos vinte, em nosso país continuávamos vivendo com cautela. Meu pai temia por minha saúde, sem desconfiar que meus desmaios, convulsões e vômitos explosivos eram produto do extraordinário talento melodramático que eu tinha então e lamentavelmente perdi. Pareceu-lhe evidente que a melindrosa da moda que ele recolheu no porto não era a pessoa adequada para se encarregar da tarefa de domar aquela filha de temperamento selvagem. Mas aquela estrangeira haveria de lhe reservar mais de uma surpresa, entre as quais o fato de não ser realmente inglesa.

Antes de sua chegada, ninguém tinha clareza sobre o lugar preciso que miss Taylor ocuparia na ordem doméstica. Ela não se encaixava na mesma categoria das criadas, mas também não fazia parte da família. Meu pai disse que a tratassem com cortesia e distância, que ela comeria comigo na galeria ou na copa, e não na sala de jantar, e ordenou que lhe destinassem o quarto de vovó, que tinha morrido sentada no penico uns meses antes. Torito levou para o porão os móveis pesados de forros esgarçados e madeiras ressequidas da anciã, que foram substituídos por outros menos fúnebres, para evitar que a preceptora ficasse deprimida, como disse a tia Pilar, visto que teria motivos suficientes para isso ao lidar comigo e precisar se adaptar a um país de bárbaros no fim do mundo. Referia-se ao nosso. Escolheu um papel de parede de listras sóbrias e cortinas de rosas descoradas, que achou adequados para uma solteirona, mas, assim que viu miss Taylor, percebeu que havia sido um erro.

Em uma semana, a preceptora estava incorporada à família muito mais intimamente do que seu empregador esperava, e o problema de seu lugar na escala social, tão importante neste país classista, desapareceu. Miss Taylor era amável e discreta, mas nada tímida, e se fez respeitar por todos, inclusive por meus irmãos, que já estavam grandes, mas continuavam se comportando como trogloditas. Até os dois mastins, que meu pai tinha adquirido nos tempos da pandemia para nos proteger de possíveis assaltantes e acabaram virando cachorros fraldeiros de péssima conduta, lhe obedeciam. Bastava que miss Taylor apontasse o chão e lhes desse uma ordem em seu idioma, sem levantar a voz, para que eles descessem das poltronas com as orelhas abaixadas. A nova preceptora estabeleceu rapidamente as rotinas comigo, e deu início à tarefa de me inculcar algumas normas básicas de convivência, depois de mostrar a meus pais um plano de estudo que incluía ginástica ao ar livre, aulas de música, ciência e arte.

Meu pai perguntou a miss Taylor como sabia tanta coisa, sendo tão jovem, e ela respondeu que para isso existem os livros de consulta. Antes de mais nada, explicou-me as vantagens de pedir as coisas por favor e agradecer. Se eu me recusasse a fazer isso e me atirasse no chão, berrando, ela detinha com um gesto minha mãe e minhas tias, que acudiam pressurosas para me consolar, e me deixava espernear até me esgotar, enquanto ela continuava impassível, lendo, tricotando ou arrumando nos vasos as flores do jardim. Também não fazia caso de minha epilepsia fingida.

— A não ser que esteja sangrando, não vamos intervir — determinou, e elas obedeceram, espantadas, porque não ousaram questionar seus métodos didáticos.

Supuseram que, como vinha de Londres, era bem qualificada.

Miss Taylor disse que eu já estava grande para continuar dormindo encolhida num berço de balanço no quarto de minha mãe, e pediu uma cama para pôr em seu próprio quarto. Nas duas primeiras noites escorou a porta com a cômoda, para eu não fugir, mas logo me conformei com minha sorte. Em seguida, ela se dispôs a ensinar-me como me vestir e comer sozinha, com o sistema de me deixar seminua até que eu aprendesse a pôr pelo menos parte da roupa, e de me instalar diante do prato com a colher na mão, esperando com serenidade de monge trapista que eu comesse por fome. Os resultados foram tão espetaculares que em pouco tempo o monstro que tinha atenazado os nervos dos habitantes da casa estava transformado numa menina normal que seguia a preceptora por toda parte, fascinada pelo cheiro de sua colônia de tangerina e por suas mãos roliças, que se moviam no ar como pombas. Tal como meu pai diagnosticara, eu tinha passado cinco anos suplicando que me dessem uma estrutura, e por fim a tinha. Minha mãe e minhas tias interpretaram isso como repreensão, mas precisaram aceitar que alguma coisa essencial havia mudado. O ambiente se adoçara.

Miss Taylor martelava o piano com mais entusiasmo que talento e cantava baladas com uma vozinha anêmica, mas afinada; seu bom ouvido lhe serviu para aprender rapidamente um espanhol aguado e compreensível, que incluía alguns palavrões do vocabulário de meus irmãos, que ela soltava sem conhecer o significado. Graças a seu forte sotaque, não soavam ofensivos, e, como ninguém a corrigiu, ela continuou a usá-los. Nunca conseguiu suportar bem a comida pesada, mas mantinha sua fleuma britânica diante da culinária nacional, tal como fazia com os dilúvios de inverno, o calor seco e empoeirado do verão e os tremores de terra que punham as lâmpadas a dançar e deslocavam as cadeiras diante da indiferença geral. O que não conseguiu tolerar, porém, foi o sacrifício de animais no quintal, que qualificou de costume primitivo e cruel. Parecia-lhe uma brutalidade comer no guisado o coelho ou a galinha que conhecíamos pessoalmente. Quando Torito degolou uma cabra, que tinha engordado durante três meses para o aniversário do patrão, miss Taylor caiu de cama com febre. Então a tia Pilar decidiu comprar a carne fora, embora não visse diferença entre matar o pobre animal no mercado ou em casa. Devo esclarecer que não era a mesma cabra que foi minha ama de leite na primeira infância; essa morreu de velha vários anos depois.

Os dois baús de latão verde da bagagem de miss Taylor continham livros de estudo e de arte, todos em inglês, um microscópio, uma caixa de madeira com o necessário para experimentos químicos e vinte e nove volumes da edição mais recente da Enciclopédia Britânica, publicada em 1911. Ela afirmava que, se alguma coisa não aparecia na enciclopédia, era porque não existia. Seu vestuário consistia em dois trajes de passeio com seus respectivos chapéus; um dos trajes era o vestido cor de mostarda com que desembarcou e um casaco com gola de pele de algum mamífero difícil de identificar; o restante eram saias e blusas simples, que diariamente ela cobria com um guarda-pó. Vestia-se e desvestia-se com manobras de contorcionista, de modo que nunca a vi de anáguas e muito menos nua, embora dividíssemos o quarto.

Minha mãe supervisionava minha reza antes de dormir: eu devia rezar em espanhol, porque as orações em inglês podiam ser heréticas e vai saber se eram entendidas no céu. Miss Taylor pertencia à Igreja anglicana, e isso a eximia de acompanhar a família à missa católica e de rezar o rosário comunitário. Nunca a vimos ler a Bíblia, que ela mantinha em sua mesa de cabeceira, nem fazer proselitismo religioso. Duas vezes por ano ia ao culto anglicano, que ocorria na casa de algum membro da colônia britânica, onde cantava hinos e se relacionava com outros estrangeiros, com os quais costumava tomar chá e trocar revistas e romances. Com ela minha existência melhorou notavelmente. Os primeiros anos de minha infância tinham sido um cabo de guerra para impor minha vontade, e, como eu sempre vencia, não me sentia segura nem protegida. Tal como afirmava meu pai, eu era mais forte que os adultos e não tinha em quem me apoiar. A preceptora não conseguiu dominar completamente minha rebeldia, mas me inculcou normas de bom comportamento em sociedade e foi bem-sucedida em me livrar da mania de me referir às funções do corpo e às doenças, que em nosso país são assuntos prediletos. Os homens falam de política e negócios; as mulheres falam de seus achaques e do trabalho doméstico. Minha mãe, ao acordar pela manhã, fazia um inventário do que lhe doía e anotava na mesma caderneta na qual registrava a lista dos remédios do passado e do presente, e muitas vezes se entretinha lendo aquelas páginas com mais ternura do que a que lhe inspirava o álbum de fotos familiares. Eu ia pelo mesmo caminho de minha mãe; de tanto me fingir doente, era exímia em várias doenças, mas, graças a miss Taylor, que não me fazia caso, elas se curaram sozinhas.

No começo, eu fazia as tarefas escolares e os exercícios de piano para agradá-la, mas depois, pelo simples prazer de aprender. Assim que consegui escrever fluentemente, miss Taylor me fez manter um diário num lindo caderno de capa de couro com um cadeado minúsculo, costume que conservei por quase toda a vida. Quando consegui ler bem, tomei posse da Enciclopédia Britânica. Miss Taylor criou um jogo em que nos desafiávamos com palavras de pouco uso, memorizando sua definição. Logo José Antonio, que ia fazer vinte e três anos sem a menor intenção de largar a comodidade do teto paterno, também passou a participar do jogo.

Meu irmão José Antonio tinha estudado direito, não por vocação, mas porque naquela época eram poucas as profissões aceitáveis para os homens de nossa classe. Direito lhe pareceu melhor que as outras duas opções: medicina ou engenharia. José Antonio trabalhava com meu pai na administração de seus negócios. Arsenio del Valle o apresentava como seu filho predileto, seu braço direito, e ele correspondia a essa distinção entregando-se completamente a seu serviço, ainda que nem sempre estivesse de acordo com suas decisões, que lhe pareciam imprudentes. Mais de uma vez avisou-o de que estava abarcando coisas demais e que fazia malabarismos com as dívidas, mas, segundo meu pai, os grandes negócios são feitos a crédito, e nenhum empresário que tenha visão comercial trabalha com seu próprio dinheiro se puder fazê-lo com o dinheiro dos outros. José Antonio, que tinha acesso à contabilidade criativa daqueles negócios, achava que devia haver um limite, que não se pode esticar demais a corda sem que ela se rompa, mas meu pai lhe garantia que tinha tudo sob controle.

— Um dia você vai administrar o império que estou construindo, mas, se não ficar esperto e aprender a correr riscos, não vai conseguir. E, a propósito, estou achando você distraído, filho. Está passando tempo demais com as mulheres da casa, vai acabar tonto e frouxo — disse.

A enciclopédia era um dos interesses que José Antonio comungava com miss Taylor e comigo. Meu irmão era o único da família que a tratava como amiga e a chamava pelo primeiro nome; para os demais, ela sempre seria miss Taylor. Nas tardes de folga, meu irmão conversava com minha preceptora sobre a história de nosso país, sobre as florestas do Sul, aonde algum dia ele a levaria para conhecer a serraria da família, sobre as novidades políticas, que o preocupavam muito desde que um coronel se apresentara como candidato único para as eleições presidenciais e, logicamente, tinha obtido cem por cento dos votos e administrava o governo como um quartel. Precisava admitir, porém, que a popularidade do homem se justificava pelas obras públicas e pelas reformas institucionais que havia empreendido, mas José Antonio falava a miss Taylor do perigo para a democracia que representava um caudilho autoritário, como tantos que infestavam a América Latina desde as guerras de Independência. “A democracia é vulgar, melhor seria uma monarquia absoluta”, brincava ela, mas na realidade estava orgulhosa de ter um avô que fora executado em 1846 na Irlanda por defender os direitos dos operários e exigir sufrágio universal para os homens, mesmo que não fossem proprietários, como exigia a lei.

Josephine havia contado a José Antonio, achando que eu não estava ouvindo, que seu avô tinha sido acusado de filiação ao movimento cartista e de traição à coroa, que tinha sido enforcado e depois esquartejado.

— Uns anos antes teriam rasgado seu ventre, arrancado as vísceras e castrado em vida, depois o enforcariam e cortariam em pedaços, diante de milhares de espectadores entusiasmados — explicou-lhe sem nenhuma ênfase.

— E você acha que somos primitivos por matar um frango! — exclamou José Antonio, horrorizado.

Essas histórias escabrosas povoavam minhas noites de pesadelo. Ela também falava a meu irmão das sufragistas inglesas, que lutavam pelo voto feminino sofrendo humilhações, sendo presas e fazendo greves de fome, que as autoridades resolviam alimentando-as à força com um tubo pela garganta, pelo reto ou pela vagina.

— Suportaram terríveis torturas como heroínas. Conseguiram o voto parcial, mas continuam lutando para obter o mesmo direito que os homens.

José Antonio estava convencido de que isso jamais aconteceria em nosso país, porque nunca tinha saído de seu estreito âmbito conservador; não tinha ideia das forças que estavam sendo gestadas naquele exato momento na classe média, como haveríamos de ver mais tarde.

Miss Taylor evitava esses assuntos diante do restante da família; não queria ser mandada de volta à Inglaterra.


3

— É delicada de intestinos — diagnosticou a tia Pía quando miss Taylor caiu fulminada por uma diarreia no dia seguinte à sua chegada.

Era o mal comum dos estrangeiros, que adoeciam com o primeiro gole de água, mas, como quase todos sobreviviam, ninguém dava importância. A preceptora, porém, nunca se imunizou contra nossas bactérias e passou dois anos lutando com os sobressaltos de seu sistema digestivo, medicada com infusões de erva-doce e camomila pela tia Pía e por uns sachês misteriosos que o médico da família lhe administrava. Acho que lhe caíam mal as sobremesas de doce de leite, as costeletas de porco com molho picante, os bolos de milho, as xícaras de chocolate quente com creme de leite às cinco da tarde e outros alimentos, que teria sido falta de educação recusar. Mas ela aguentava estoicamente as dores de estômago, os vômitos e as caganeiras, sem nunca os mencionar.

Miss Taylor foi ficando fraca sem espalhafato, até que a família, alarmada com sua perda de peso e sua cor cinzenta, resolveu intervir. Depois de examiná-la, o médico receitou uma dieta de arroz e caldo de ave, e meio cálice de porto com gotas de tintura de ópio duas vezes por dia. Em particular, disse a meus pais que a paciente tinha um tumor do tamanho de uma laranja no ventre. Havia cirurgiões nacionais tão bons quanto os melhores da Europa, disse, mas achava que já era tarde para uma operação e que o mais humano seria mandá-la de volta para sua família. Restavam-lhe poucos meses de vida.

A José Antonio coube a dura tarefa de dizer meia verdade à paciente, que adivinhou de imediato a verdade inteira.

— Puxa, que inconveniente — comentou miss Taylor, sem perder o sangue-frio.

José Antonio informou-lhe que o pai faria os arranjos necessários para que ela pudesse viajar a Londres de primeira classe.

— Você também quer me mandar embora? — sorriu ela.

— Pelo amor de Deus! Ninguém quer mandar você embora, Josephine! A única coisa que queremos é que esteja acompanhada, amada, cuidada... Eu vou explicar a situação à sua família.

— Receio que vocês sejam que tenho de mais parecido com uma família — replicou ela, e passou a contar o que ninguém lhe havia perguntado antes.

Era verdade que Josephine Taylor descendia de um avô irlandês executado por irritar a coroa britânica, mas, ao contar isso a meu irmão, omitira que seu pai era alcoólatra e violento, que tinha como único mérito descender daquele lutador pela justiça. A mãe, abandonada na miséria com vários filhos, morreu jovem. Os filhos mais novos foram divididos entre os parentes; o mais velho, de onze anos, foi enviado a uma mina de carvão; e ela, com nove, a um orfanato de freiras, onde ganhava o sustento na lavanderia, principal fonte de receita da instituição, com a esperança de que aparecesse uma alma bondosa e a adotasse. Explicou em que consistia a tarefa hercúlea de ensaboar, bater, escovar, ferver em enormes caldeirões, enxaguar, engomar e passar a roupa alheia.

Aos doze anos, quando já não estava em idade de adoção, foi colocada como criada sem salário na casa de um militar inglês, onde trabalhou até que este se achou no direito de estuprá-la sistematicamente, quando ainda era adolescente. Na primeira vez, irrompeu à noite no quarto adjacente à cozinha, onde ela dormia, tapou-lhe a boca e caiu sobre ela sem preâmbulos. Depois estabeleceu uma rotina, sempre a mesma, que Josephine conhecia e temia. O militar esperava a saída de sua mulher, que vivia ocupada em obras de caridade e visitas sociais, e com um gesto indicava à menina que o seguisse. Ela obedecia, aterrorizada, sem imaginar que seria possível resistir ou fugir. Na cocheira, o homem a açoitava com um rebenque, tomando o cuidado de não deixar marcas visíveis, e a submetia cada vez às mesmas práticas perversas, que ela suportava, entregando o corpo ao suplício e fechando a mente à possibilidade de clemência. “Vai passar, vai acabar”, repetia-se sem voz.

Por fim, depois de alguns meses, a esposa começou a ficar intrigada com a atitude de cão surrado da criada e com seu modo de se esgueirar pelos cantos e tremer quando o marido chegava a casa. Nos anos de casamento tinha notado nele vários sinais de perturbação, que preferira ignorar, com a teoria de que aquilo que não se nomeia é como se não existisse. Enquanto se mantivessem as aparências, não havia necessidade de escarafunchar sob a superfície. Todo mundo tem segredos, pensava. Mas percebeu que os outros domésticos cochichavam às suas costas, e uma vizinha lhe perguntou se por acaso seu marido castigava os cavalos na cocheira, porque se ouviam chicotadas e gemidos. Então ela entendeu que precisava investigar o que estava acontecendo debaixo de seu teto antes que outros o fizessem. Deu um jeito de surpreender o marido com o rebenque na mão e a criada seminua, amarrada e amordaçada.

A patroa não pôs Josephine na rua, como ocorria com frequência nesses casos, mas mandou-a a Londres para fazer companhia à sua mãe, com o juramento prévio de que ela não diria nem uma palavra sobre a conduta de seu marido. Era preciso evitar escândalo a qualquer custo.

A nova patroa era uma viúva ainda forte, que viajara pelo mundo e pretendia continuar a fazê-lo; para isso, precisava de uma ajudante. Era altiva e tirânica, mas tinha vocação pedagógica e se propôs transformar Josephine numa senhorita bem-educada, porque não queria uma órfã irlandesa com modos de lavadeira como acompanhante. A primeira medida foi eliminar seu sotaque, que lhe torturava os ouvidos, e obrigá-la a falar como uma londrina de classe alta; a etapa seguinte foi convertê-la ao anglicanismo.

— Os papistas são ignorantes e supersticiosos, por isso são pobres e se enchem de crias, como os coelhos — determinou a patroa.

Realizou seu propósito sem dificuldade, porque Josephine via pouca diferença entre ambos os cultos e, em qualquer caso, preferia manter-se o mais distante possível de Deus, que a tratara tão mal desde o nascimento. Aprendeu a comportar-se de maneira impecável em público e a manter estrito controle sobre suas emoções e sua postura. A patroa lhe deu acesso à biblioteca e dirigiu suas leituras, incutindo-lhe o vício da Enciclopédia Britânica; levou-a a lugares que ela nunca teria sonhado conhecer, de Nova York ao Cairo. Teve um AVC e morreu poucas semanas depois, deixando algum dinheiro para Josephine, com o qual ela conseguiu viver uns meses. Quando viu no jornal um anúncio de oferta de emprego de preceptora na América do Sul, apresentou-se.

— Tive sorte, porque me calhou a sua família, José Antonio; vocês me trataram muito bem. Em resumo, não tenho para onde ir. Vou morrer aqui, se não se importarem.

— Não vai morrer, Josephine — murmurou José Antonio, com os olhos marejados, porque naquele momento percebeu a importância que ela havia adquirido em sua vida.

Ao ficar sabendo que a preceptora planejava agonizar e morrer em sua casa, o primeiro impulso de meu pai foi enfiá-la à força no primeiro transatlântico que saísse do porto, para me poupar do trauma da agonia e morte daquela mulher de quem eu tanto gostava, mas pela primeira vez José Antonio o enfrentou.

— Se a mandar embora, nunca vou perdoá-lo, papai — anunciou, e passou a convencê-lo de que seu dever de cristão era tentar salvá-la por qualquer meio que estivesse a seu alcance, apesar dos lúgubres prognósticos do médico. — Violeta vai sofrer se miss Taylor morrer, mas vai entender. Já tem idade para isso. O que ela não poderia entender é o desaparecimento repentino dela. Assumo a responsabilidade por miss Taylor, papai, o senhor não precisa se preocupar com isso — disse.

Cumpriu a palavra.

Uma equipe encabeçada pelo mais célebre cirurgião de sua geração operou miss Taylor no Hospital Militar, o melhor do país naqueles tempos, graças à intervenção pessoal do cônsul inglês, com quem meu pai tinha relações por causa de suas exportações. Ao contrário dos hospitais públicos, pobres como seus pacientes, e das poucas clínicas privadas, para onde iam os que podiam pagar, mas onde o atendimento médico era medíocre, o Hospital Militar podia ser comparado aos mais prestigiosos dos Estados Unidos e da Europa. Em princípio era de uso exclusivo dos integrantes das Forças Armadas e do Corpo Diplomático, mas, com boas conexões, abriam-se exceções. O edifício, moderno e bem equipado, contava com amplos jardins para o passeio dos convalescentes, e a administração, a cargo de um coronel, garantia que a limpeza e o atendimento fossem impecáveis.

Minha mãe e meu irmão levaram a paciente à primeira consulta. Uma enfermeira de uniforme tão engomado que rangia a cada passo conduziu-os ao consultório do cirurgião, um homem de uns setenta anos, calvo, com feições ascéticas e os modos arrogantes de alguém acostumado a exercer autoridade. Depois de examiná-la durante longo tempo atrás de um tabique que dividia o aposento, explicou a José Antonio, ignorando por completo a presença das duas mulheres, que provavelmente o tumor era câncer. Podia-se tentar reduzi-lo com radiação, porque extirpá-lo com cirurgia era muito arriscado.

—Se fosse sua filha, doutor, o senhor tentaria? — interveio miss Taylor, serena como sempre.

Depois de uma pausa, que pareceu eterna, o médico assentiu.

— Então diga quando vai me operar — intimou-o.

Foi internada dois dias depois. Fiel a seu lema de que o mais simples é dizer a verdade, antes de ir para o hospital me informou que tinha uma laranja na barriga e precisava retirá-la, mas não ia ser fácil. Implorei que me deixasse ir com ela, para acompanhá-la durante a operação. Eu tinha sete anos, mas continuava muito agarrada a ela. Pela primeira vez desde que a conhecíamos, miss Taylor chorou. Depois se despediu de cada um dos criados, abraçou Torito e as tias, a quem deu instruções de distribuir seus pertences, se necessário, entre os que quisessem uma lembrança, e entregou a minha mãe um maço de libras esterlinas amarradas com uma fita.

— Para seus pobres, senhora.

Tinha economizado todo o seu salário para voltar um dia à Irlanda e procurar, um a um, seus irmãos dispersos.

Deu-me de presente seu maior tesouro, a Enciclopédia Britânica, e garantiu-me que faria o possível para voltar, mas não podia prometer. Eu sabia que no hospital podia acontecer algo terrível; estava familiarizada com o poder inquestionável da morte. Tinha visto minha avó no caixão, como uma máscara de cera repousando entre dobras de cetim branco, os cachorros e os gatos que morriam de velhice ou de atropelamento, e as aves de todos os tipos, cabras, ovelhas e porcos que Torito sacrificava para a panela.

A última pessoa que Josephine Taylor viu antes de a levarem na maca para a sala de cirurgia foi José Antonio, que ficou a seu lado até aquele momento. Já tinha sido preparada com um poderoso sedativo, e a imagem de seu amigo aparecia envolta em névoa. Não conseguiu entender suas palavras de encorajamento nem sua confissão de amor, mas sentiu o beijo dele nos lábios e sorriu.

A operação durou sete longas horas, que José Antonio passou na recepção do hospital tomando café de uma garrafa térmica e passeando de uma extremidade a outra, lembrando os jogos de cartas, os lanches no jardim, os passeios pelos arredores da cidade, as adivinhações da enciclopédia, as tardes de canções ao piano e as discussões bizantinas sobre avôs esquartejados. Concluiu que tinham sido as horas mais felizes de sua regrada existência, em que seu caminho estava traçado desde o nascimento. Decidiu que ela era a única mulher com quem poderia escapar da tutela de seu pai e da palpável teia de cumplicidade que o aprisionava. Nunca tinha tomado decisões próprias, cumpria sem reclamar tudo o que se esperava dele; era o filho modelo e estava farto disso. Josephine o desafiava, abalava suas convicções e o fazia ver a família e o meio social sob luzes impiedosas. Assim como o obrigava a dançar charleston e a ficar conhecendo as sufragistas, impelia-o a imaginar um futuro diferente do que haviam designado para ele, um futuro com aventura e risco.

Aos vinte e quatro anos, meu irmão tinha já o temperamento taciturno e cauteloso que detestava. “Sou um velho prematuro”, resmungava repugnado quando se barbeava diante do espelho. Fazia anos que assistia o pai em negócios que não lhe diziam respeito e, ainda por cima, lhe pareciam suspeitos, tentando flutuar num ambiente no qual se sentia como um intruso, por não comungar interesses nem ideais com as pessoas de sua condição.

Esperando naquela sala de hospital, imaginou que podia começar uma vida nova em outro lugar com Josephine; poderiam ir para a Irlanda, onde teriam uma casinha modesta na cidade natal de miss Taylor; ela daria aulas, e ele trabalharia como operário. O fato de Josephine ser cinco anos mais velha e nunca ter manifestado a menor inclinação sentimental por ele eram inconvenientes mínimos, se comparados à clareza de sua determinação. Imaginou a avalanche de falatórios, quando anunciasse seu casamento, e o constrangimento de nossa família, que esperava vê-lo casado com uma moça de sua classe, católica e de família conhecida, como a prima Florencia, mas nada disso poderia atingi-los, porque estariam navegando para a Europa. Como sei de tudo isso, Camilo? Em parte, fui arrancando de meu irmão ao longo dos anos, e em parte pude imaginar, por conhecê-lo tão bem.

A laranja na barriga de miss Taylor revelou ser um tumor benigno graças à intervenção celestial do padre Quiroga, como garantiram as tias. O cirurgião explicou que as ramificações do tumor chegavam aos ovários, que precisaram ser extirpados, e a paciente nunca poderia ter filhos, mas era solteira e já não tão jovem, de modo que esse detalhe carecia de importância. A operação tinha sido um sucesso, afirmou, mas, como era normal em tais casos, ela havia perdido muito sangue e estava debilitada. Com descanso e cuidados se restabeleceria em tempo razoável. As tias Pía e Pilar se encarregaram de cuidar dela, enquanto eu a acompanhava com a mesma fidelidade dos dois mastins, que não saíam de perto dela.

Miss Taylor se transformara em sombra da jovem vistosa que tinha chegado com traje de melindrosa, anos antes. Estava devastada pelos meses de dor suportada sem queixa e pela brutalidade da operação; do que tinha de roliço só sobravam as covinhas nas mãos, e sua pele adquirira um preocupante tom amarelado. Quando, por fim, pôde ficar em pé, depois de quase um mês à base de canja com ervas reconstituintes, compotas de frutas da estação com pólen de abelha, gotas de ópio e uma beberagem nauseabunda de beterraba e levedura de cerveja para a anemia, percebeu-se que sua roupa estava larga e metade dos cabelos tinha caído. A José Antonio pareceu que ela nunca estivera tão bonita. Rondava o quarto da doente como alma penada, esperando que as tias a deixassem sozinha para ir sentar-se a seu lado e ler para ela poemas em espanhol, que ela ouvia mais ou menos, estonteada pelas gotas, com as pálpebras semicerradas. Sugeri a meu irmão que seria melhor ler algo da enciclopédia, mas ele estava na etapa romântica dos sentimentos ainda não declarados.

A convalescença durou vários meses, e miss Taylor aproveitou para continuar minha educação, sentada numa poltrona da galeria. A vida da casa se concentrou ali. Minha mãe transferiu a máquina de costura para a galeria, onde também Torito consertava móveis desengonçados, a tia Pilar montava e desmontava a complicada geringonça que tinha inventado para secar garrafas, e a tia Pía se dedicava a preparar pós, tinturas, poções, cápsulas e obreias de seu vasto repertório de remédios naturais. Tinha conseguido o fruto da palmeira de guacuri, que lhe mandaram da bacia amazônica da Bolívia, do qual extraiu um óleo para a calvície. Raspou os poucos fios que restavam à doente e massageava-lhe o crânio duas vezes por dia com o óleo prodigioso. Em sete semanas despontou uma penugem suave na cabeça de miss Taylor, e em pouco tempo começou a crescer uma cabelama basta e escura. Cabelo liso de indígena do Altiplano, determinou a tia Pilar, desdenhosa, mas reconheceu que lhe caía melhor que os fiapos cor de palha de sua cabeleira original.

Os dias transcorriam lentos e calmos. O único impaciente era José Antonio, que não via a hora de poder levar miss Taylor à casa de chá Versalles e lhe expor suas intenções matrimoniais. Nunca duvidou que ela aceitaria; sua única incerteza era o aspecto econômico, porque a ideia de ganhar a vida como operário na Irlanda ia parecendo cada vez menos atraente, e, além disso, sua futura esposa precisava da segurança e do apoio de uma família. Tinha trabalhado com o pai desde os dezessete anos, mas não ganhava remuneração fixa; recebia dinheiro esporadicamente em quantidades variáveis, mais como generosa gorjeta do que como honorários, nada que lhe permitisse poupar.

Seu pai tinha afirmado que ele teria uma participação muito satisfatória em seus variados negócios, mas na realidade os ganhos não eram divididos, voltavam a ser investidos em outras empresas. Arsenio del Valle conseguia empréstimos para um empreendimento, que era vendido assim que possível, para financiar outro, e repetia a mesma coisa uma vez após outra, com a certeza de que o dinheiro se multiplicava no universo invisível de bancos, ações e títulos. José Antonio o acautelara contra aquele método, que ele comparava à corrida incansável de um rato numa roda de laboratório para chegar a lugar nenhum; “nesse ritmo, nunca vai se livrar das dívidas”, dizia, mas seu pai afirmava que ninguém fica rico num emprego nem investindo com prudência; o futuro é dos audazes.


4

Com o longo descanso e as beberagens terapêuticas da tia Pía, Josephine Taylor recuperou a saúde e a vontade de sair; tinha passado tempo demais na galeria envidraçada. Estava muito magra, mas com melhores cores, e exibia um penteado curto que lhe dava um aspecto de passarinho meio desplumado. Seu primeiro passeio foi com minha mãe, minhas tias e comigo, à despedida de solteira de uma das sobrinhas del Valle. O convite para um lanche em família, impresso num cartão singelo, minimizava o evento, como era de praxe num país onde se considerava de péssimo gosto ostentar. Faz tempo que já não é assim, Camilo, agora todos aparentam mais do que são e do que têm. O “lanchinho” da sobrinha foi uma orgia de bolos variados, ânforas de prata com chocolate quente, sorvetes e licores em taças de cristal da Boêmia, animado por um conjunto de senhoritas que tocavam instrumentos de corda e um mágico que vomitava lenços de seda e extraía pombas perplexas dos decotes das damas.

Calculo que havia umas cinquenta mulheres naqueles salões: toda a parentalha feminina e as amigas da noiva. Miss Taylor se sentiu como peixe fora da água, malvestida, desentrosada e estrangeira. Fugiu para o jardim, aproveitando a distração com um bolo de três andares, trazido sobre uma mesinha de rodas em meio de um coro de exclamações e aplausos. Ali encontrou outra convidada, que tinha fugido como ela.

Teresa Rivas era uma das poucas mulheres que haviam adotado as calças largas e o colete masculino, lançados pouco tempo antes por uma estilista francesa, traje que ela complementava com camisa branca engomada e gravata. Estava fumando um cachimbo com bocal de osso e fornilho talhado em forma de cabeça de lobo. Na luz débil do entardecer, Josephine a confundiu com um homem, que era justamente o efeito que a outra desejava provocar.

Sentaram-se para conversar num banco entre arbustos aparados e cachos de flores, envoltas no aroma intenso de nardos e tabaco. Teresa ficou sabendo que Josephine estava há vários anos no país e só conhecia a família de seus empregadores e algumas pessoas da colônia inglesa, encontradas de vez em quando no culto anglicano. Falou-lhe do outro país, o país verdadeiro, o da classe operária e dos múltiplos estratos da classe média, o das províncias, dos mineiros, dos camponeses e dos pescadores.

Quando Josephine me ouviu chamá-la no jardim, deu-se conta de que a festa tinha acabado fazia tempo e já era noite. Despediram-se depressa. Consegui ouvir Teresa dizer-lhe que fosse procurá-la e entregou-lhe um cartão com seu nome e o endereço de seu trabalho.

— Quero tirar você da toca, Joe, e mostrar-lhe um pouco de mundo — disse.

Josephine gostou do apelido que aquela desconhecida lhe dera e propôs-se aceitar a oferta; talvez ela fosse a primeira amiga naquela terra onde já havia criado raízes.

Em casa, comentei o que todas estavam pensando: chegara a hora de entrarmos na moda, com saias na altura das panturrilhas, tecidos estampados, decotes e braços nus. As tias usavam vestidos pretos até os tornozelos, como freiras, e minha mãe também não tinha achado necessário modernizar-se, porque havia arranjado maneira de evitar quase totalmente a vida social; o marido tinha se cansado de lhe pedir que o acompanhasse. Miss Taylor fora à festa da noiva del Valle com o mesmo vestido com que tinha desembarcado do navio que a trouxera da Inglaterra anos antes, o cor de mostarda, do qual haviam sido retirados vários centímetros nas costuras. Minha mãe mandou o motorista comprar as revistas femininas que chegavam de Buenos Aires para se inspirar. A única coisa que interessou a miss Taylor foi o estilo adotado por Teresa Rivas. Comprou uns metros de gabardina e tweed, embora o clima não estivesse para tecidos grossos, e, com ajuda de alguns moldes, pôs-se a costurar discretamente para que a família não tomasse conhecimento de seu projeto.

— Pareço um moleque desnutrido — murmurou ao se ver no espelho quando a roupa estava pronta.

Era isso mesmo. Com seu metro e meio de altura, seus quarenta e seis quilos e seus indômitos cabelos novos, muito curtos e desarrumados, de calças, colete e paletó, era o que parecia. A única pessoa que a viu com seu terno masculino fui eu, na intimidade de nosso quarto.

— Os meus pais não vão gostar nem um pouco — disse-lhe, mas prometi não contar a ninguém.

Naquele domingo, miss Taylor me levou para passear na praça de Armas, onde Teresa Rivas nos esperava. Ela tomou miss Taylor pelo braço sem fazer nenhum comentário sobre seu traje, e saímos andando em direção à sorveteria dos galegos. Elas iam absortas na conversa, e eu empinava as orelhas para captar algo do que diziam.

— Mulher-macho! Pouca vergonha! — resmungou em voz alta um homem de chapéu e bengala que passou por nós.

— Com muita honra, meu senhor! — respondeu Teresa, com uma gargalhada insolente, enquanto miss Taylor corava de vergonha.

Depois dos sorvetes, Teresa nos levou à sua casa, que estava longe de ser o que esperávamos.

Por sua atitude desafiadora e sua elegância natural, Miss Taylor tinha imaginado que Teresa proviesse da classe alta; que talvez fosse uma daquelas herdeiras que podem zombar das convenções porque têm respaldo de dinheiro e família. Ainda não era capaz de distinguir as classes sociais, em parte porque só estivera em contato com minha família e com os serviçais da casa.

Essa história de que todos os humanos são iguais perante a lei e aos olhos de Deus é uma balela, Camilo. Espero que não acredites nisso. Nem a lei nem Deus nos tratam a todos do mesmo modo. Isso é óbvio neste país. Quando conhecemos uma pessoa, basta observar alguma leve inflexão no sotaque, o modo de segurar os talheres na mesa ou a desenvoltura ao tratar alguém de condição inferior para identificarmos em um segundo a qual dos infinitos estratos sociais ela pertence. É um talento que poucos estrangeiros chegam a dominar. Perdoa-me se dou ênfase a isso, Camilo, sei que te irrita o sistema de classes, tão excludente e cruel, mas tenho de mencioná-lo para entenderes Josephine Taylor.

Teresa vivia na água-furtada de um casarão antigo, em rua pobre e suja. No primeiro andar havia uma sapataria e, no segundo, uma indústria caseira de roupas, onde trabalhavam várias costureiras fazendo uniformes de enfermeiras e jalecos brancos para os médicos do hospital. Chegava-se à água-furtada por um corredor mal iluminado e uma escada de madeira com degraus desgastados pelo uso e pelo labor paciente dos cupins.

Vimo-nos num aposento amplo, de teto baixo e duas janelinhas sujas que mal deixavam entrar um pouco de luz, com um divã à guisa de cama, uma coleção de móveis que pareciam ter sido descartados como imprestáveis e um guarda-roupa senhorial com espelhos nas portas, único resquício de um passado melhor. Reinava uma desordem de furacão, com roupa espalhada e pilhas de jornais e papéis amarrados com barbantes; imaginei que não se fazia uma limpeza há meses.

— Qual é sua ligação com os del Valle? — perguntou miss Taylor a Teresa.

— Nenhuma. Fui à festa acompanhando meu irmão, Roberto, o mágico, lembra dele?

— Seu irmão é fantástico!

— A mágica é só passatempo, ninguém ganha a vida engolindo punhais e dando sumiço em coelhos.

Teresa acendeu o fogo para ferver água e nos serviu chá em xícaras lascadas, o meu com açúcar e o de Josephine com um fio de aguardente ordinária. Fumaram cigarros escuros e amargos que, segundo Teresa, limpavam os pulmões.

Ela nos contou que os pais eram professores numa província do Sul, e que saiu de lá com o irmão Roberto assim que puderam, ele para ir à universidade, e ela em busca de aventura; disse que não se adaptava de modo algum ao ambiente dos pais e se definia como boêmia. O pai tinha contraído a influenza espanhola anos antes e sobrevivido, mas desde então estava doente dos pulmões.

— Meus velhos se aposentaram faz pouco tempo. Os professores ganham uma miséria, Joe. O novo sistema de pensões começou tarde para eles, e, como não tinham poupança, foram morar no campo, onde precisam de pouco para viver, e agora dão aulas gratuitas. Gostaria de ajudá-los, mas sou um caso perdido, mal ganho para comer. Roberto, em compensação, vai ter uma boa profissão e é um filho responsável e generoso; será o sustentáculo de meus pais.

Teresa explicou a miss Taylor que o irmão tinha precisado fazer o serviço militar e por isso se atrasara nos estudos, mas em poucos anos teria o diploma de técnico agrícola. Estudava durante o dia e trabalhava como garçom num restaurante à noite. Ela estava empregada na Companhia Nacional de Telefones.

— Claro que lá eu não posso aparecer vestida de homem — acrescentou, rindo.

Mostrou-nos algumas fotografias dos pais, tiradas numa praça de cidadezinha, e uma do irmão com farda militar, rapaz imberbe que em nada se parecia com o mágico bigodudo e divertido que tínhamos visto na festa.

Muitos anos depois, na velhice, Josephine Taylor me diria que naquela tarde Teresa e ela selaram uma amizade que haveria de transformar sua vida. Sua única experiência sexual tinham sido as violações e chicotadas daquele militar britânico na adolescência, que lhe deixaram marcas no corpo e na memória e uma repulsa profunda a qualquer forma de intimidade física. A ideia de prazer sexual era inconcebível para ela, e talvez por isso não tenha sabido interpretar as atenções de José Antonio. Com Teresa descobriu o amor e aos poucos conseguiu cultivar sua sensualidade, de cuja existência nem desconfiava. Aos trinta e um anos, era de uma ingenuidade inacreditável.

Teresa se vangloriava de experimentar tudo o que lhe aparecesse pela frente, sem levar em conta a moral ou as regras impostas pelos outros. Zombava igualmente da lei e da religião. Deixou claro para Josephine que tivera relações com homens e mulheres e considerava a fidelidade uma limitação absurda.

— Acredito no amor livre. Não tente me amarrar — avisou algumas semanas depois, enquanto a acariciava nua no divã.

Miss Taylor aceitou com um aperto no coração, sem imaginar que na longa relação que as uniria nunca teria motivo para ciúmes, porque Teresa seria a mais fiel e devota das amantes.

No início de setembro de 1929, a Bolsa de Valores dos Estados Unidos sofreu uma queda alarmante, e em outubro despencou em direção ao desastre total. Meu pai imaginou que, se a economia mais forte do mundo entrava em colapso, os outros países do mundo sofreriam o impacto como um cataclismo, e o nosso não seria exceção. Era questão de tempo, talvez de apenas poucos dias, para que seu edifício financeiro desabasse e ele ficasse arruinado, como já ocorrera a tantos homens ricos na América do Norte. O que aconteceria com seus negócios, com a venda da casa, que estava para se concretizar, e com a construção do prédio em que ele tinha investido tanto? Para especular na Bolsa hipotecara seus bens, pedira empréstimos com altos juros e se entregara a artimanhas ilegais que o obrigavam a manter dupla contabilidade, uma oficial e outra secreta, de que só José Antonio tinha conhecimento.

Arsenio del Valle sentia o pânico como uma ardência por dentro e um frio glacial na pele, uma angústia que o impedia de ficar quieto um só instante e de pensar com clareza; sua respiração se acelerava, ele suava. Contou o número de pessoas que dependiam dele, não só sua família, mas também os criados e os empregados do escritório, os operários da serraria e os trabalhadores dos vinhedos do Norte, onde ele começava a realizar seu sonho de destilar um brandy fino que competisse com o pisco peruano. Ficariam todos na rua. Nenhum de seus filhos, com exceção de José Antonio, o ajudava nos negócios, os outros quatro tiravam proveito da prosperidade que ele lhes ofertava, sem se perguntarem quanto custava consegui-la. Desesperado, pensava em como ia proteger sua mulher, as cunhadas e a mim, como ele mesmo se salvaria da bancarrota e da humilhação de ter falhado, como ia enfrentar a sociedade, os credores, minha mãe.

Não era o único nesse estado. Entre os associados do Club de la Unión imperava o mesmo medo que o paralisava e ia crescendo sem parar, à medida que eles se contagiavam mutuamente. Nos salões decorados à inglesa, em verde e vermelho-escuro, com cenas de caça à raposa que nunca tinham ocorrido no país e móveis Chippendale autênticos, os homens da classe alta, tradicionalmente senhores do poder econômico, se bem que nem sempre do político, acostumados à segurança de seus privilégios, acompanhavam incrédulos as notícias. Até então não haviam sido sequer roçados por calamidades de qualquer natureza, tão frequentes nesta terra de sismos, inundações, secas, pobreza e eterno descontentamento. Os copeiros davam corridinhas, servindo bebidas e passando pratinhos de ostras frescas, patas de caranguejo, codornas à escabeche e pastéis; a preocupação era tal que ninguém se sentava às mesas. De repente se erguia uma voz otimista com o argumento de que, enquanto o preço de certos minerais se mantivesse estável, o país poderia escapar à tormenta que se abateria sobre ele, mas essa ilusão era rapidamente esmagada pelo clamor dos demais. Os números eram uma realidade iniludível.

Tal como meu pai esperava, com um aperto no estômago, na última terça-feira de outubro o mundo ficou sabendo que o mercado internacional de valores havia desabado. Meu pai trancou-se na biblioteca com José Antonio para examinar a situação a fundo, consciente de que sua própria perplexidade o impedia de tomar alguma medida para evitar o desastre. Duvidava de tudo, especialmente de si mesmo. Havia falhado naquilo em que se fundava sua posição social: sua capacidade natural para fazer dinheiro, sua visão clarividente para descobrir as melhores oportunidades que ninguém mais via, seu nariz de cão de caça para farejar os problemas a tempo e resolvê-los, seu carisma de vendedor ambulante para seduzir os outros com tanta habilidade que parecia estar lhes fazendo um favor, sua invejável desenvoltura para sair dos apuros. Nada o preparara para enfrentar o precipício que se abria a seus pés, e o fato de tantos outros estarem à beira do mesmo abismo não era consolo. Pensou que o filho, tão sensato e razoável, podia aconselhá-lo.

— Lamento, papai, acho que perdemos tudo — anunciou José Antonio depois de examinar pela segunda vez os livros de contabilidade, tanto os oficiais quanto os fraudulentos.

Meu irmão explicou que as ações já não tinham nenhum valor, que eles deviam dinheiro a meio mundo, e era melhor nem pensar na possibilidade de ser pilhado por evasão fiscal. Não havia maneira de pagar as dívidas, mas na situação em que o país se encontrava ninguém poderia pagar; os credores teriam de esperar. O banco ficaria com a serraria, com os vinhedos do Norte, com os projetos de construção e até com nossa casa, porque eles não podiam pagar as hipotecas. Do que iam viver? Seria preciso reduzir os gastos ao mínimo.

— Quer dizer, vamos precisar baixar de nível... — murmurou meu pai com um fio de voz.

Essa possibilidade nunca lhe havia ocorrido.

A derrocada financeira do restante do mundo praticamente paralisou nosso país. Ainda não sabíamos, mas seríamos a nação mais afetada pela crise, por causa da queda das exportações que a sustinham. As famílias endinheiradas, que, apesar de terem perdido tanto, dispunham de meios para abandonar a cidade, iam para suas fazendas, onde pelo menos havia comida, mas o restante da população sentiu a bordoada da pobreza sem atenuantes.

À medida que as empresas declaravam falência, aumentava o número de desempregados; em pouquíssimo tempo retornou a época dos caldeirões comuns, da sopa dos pobres, para os milhares de famintos que faziam fila por um prato de caldo aguado. Magotes de homens vagavam em busca de trabalho, e as mulheres e as crianças pediam esmolas. Já ninguém se detinha para socorrer os mendigos deitados nas calçadas. Por todos os lados havia irrupções de violência entre os desesperados. A criminalidade aumentou tanto nas cidades, que ninguém mais se sentia seguro nas ruas.

Quem estava no poder era o general que mandara para o exílio o presidente anterior e governava com mão de ferro. Diziam que os seus inimigos políticos estavam ancorados no porto, e qualquer um que mergulhasse o suficiente podia confirmar esse fato, porque os esqueletos descarnados pelos peixes continuavam amarrados pelos tornozelos a blocos de cimento. Apesar da repressão com que exercia o controle, o general ia perdendo poder minuto a minuto, acossado por grandes protestos populares, que o novo corpo de polícia, formado com métodos militares prussianos, enfrentava a tiros. A capital parecia uma cidade em guerra. Estudantes, professores, médicos, engenheiros, advogados e outras categorias profissionais entraram em greve, todos unidos num único clamor que pedia a renúncia do presidente. O general, entrincheirado em seu gabinete, não se convencia de que da noite para o dia sua sorte tinha guinado, e continuava repetindo que a polícia cumpria seu dever, que as vítimas dos tiros mereciam o que lhes tinha ocorrido porque haviam transgredido a lei, que este era um país de mal-agradecidos, que sob seu governo houve ordem e progresso e “o que é que esperavam?”, a catástrofe mundial não era culpa dele.

No segundo dia, José Antonio e meus outros quatro irmãos também saíram para participar da agitação, não tanto por convicção política quanto para desafogar a frustração e não ficar para trás, já que os amigos e conhecidos faziam o mesmo. Nas ruas, misturavam-se em pé de igualdade funcionários públicos de gravata e chapéu, operários descamisados e indigentes maltrapilhos. Nunca se havia visto multidão semelhante marchando lado a lado, diferentemente das passeatas de famílias miseráveis nos piores tempos de desemprego, que as classes média e alta observavam das sacadas. Para José Antonio, acostumado a controlar as emoções e levar vida metódica, foi uma experiência libertadora, que por algumas horas lhe deu a sensação de pertencer a uma coletividade. Custava-lhe reconhecer-se no extremista em que se transformara, provocando a gritos uma fila compacta de policiais armados, que respondiam com cacetadas e tiros para o ar.

Estava nisso, quando viu Josephine Taylor numa esquina, tão exaltada quanto o restante da turba, e eu agarrada à mão dela, aterrorizada. A euforia dele esfriou num instante. Ele ainda andava com a caixinha do anel de granate e brilhantes no bolso, o mesmo que ela recusara delicadamente quando ele a pedira em casamento de joelhos, à antiga.

— Nunca vou me casar, José Antonio, mas sempre vou gostar de você como meu melhor amigo — disse ela, e continuou a tratá-lo com a mesma familiaridade de antes, como se não tivesse ouvido sua declaração.

Mas a relação íntima e carinhosa que mantinham desde que se conheceram dava esperanças a José Antonio de que ela mudasse de opinião com o tempo. O anel haveria de ficar em seu poder durante mais de trinta anos.

Havia poucas mulheres entre os manifestantes, e ela, de calças, colete e gorro de bolchevique, se confundia com os homens. Estava ao lado de outra mulher que, vestida também com roupa masculina, José Antonio nunca tinha visto. Também nunca tinha visto miss Taylor vestida daquele modo, porque em seu papel de preceptora ela era um modelo de feminilidade tradicional. Tomou-a por um braço, agarrou-me pela gola do casaco e nos levou, praticamente à força, até a porta de um edifício, longe da polícia.

— Ela pode ser pisoteada ou levar um tiro! O que está fazendo aqui, Josephine? Ainda por cima com Violeta! — gritou com ela, sem entender que importância podia ter a política local para aquela senhorita irlandesa.

— O mesmo que você, queimando energia — respondeu ela, rindo, com a voz rouca de tanto gritar.

José Antonio não chegou a lhe perguntar por que andava fantasiada daquele jeito, pois naquele momento foi interrompido pela acompanhante de miss Taylor, que se apresentou como “Teresa Rivas, feminista, a seu dispor”. Ele não conhecia esse termo e achou que a mulher tinha dito comunista ou anarquista, mas não deu tempo de esclarecer, porque de repente se elevou um clamor de triunfo, e a multidão começou a pular, a lançar os chapéus para o alto e a subir no teto dos veículos desfraldando bandeiras e gritando em uníssono “caiu!”, “caiu!”.

Era isso mesmo. Quando o general entendeu, enfim, que tinha perdido completamente o controle do país e que seus colegas do exército e da polícia, formados por ele mesmo, não lhe obedeciam, abandonou o palácio presidencial e fugiu com a família para o exterior no trem do exílio, o mesmo no qual logo voltaria o presidente destituído. Naquela noite miss Taylor repetiu que estaríamos melhor com uma monarquia, e meu pai concordou plenamente. Por algumas horas a celebração popular continuou nas ruas, mas aquele efêmero triunfo político não mitigou em nada a pobreza e o desespero em que o país estava mergulhado.


5

Meu pai resistiu ao primeiro ano da depressão mundial, acossado por bancos e credores privados, enquanto desapareciam seus últimos recursos. Durante esse período, conseguiu evitar o naufrágio final com um esquema de pirâmide copiado de fraudes semelhantes, já ilegal em outros lugares, mas ainda desconhecido em nosso país. Sabia que se tratava de uma solução de pouco fôlego, e, quando ela veio abaixo, ele chegou ao fundo do poço. Então compreendeu que não tinha a quem recorrer; fizera muitos inimigos em sua corrida desenfreada para ganhos cada vez maiores. Fraudara vários conhecidos com a pirâmide, outros haviam sido seus sócios em projetos fracassados e nunca lhes fora esclarecido por que tinham perdido tudo, enquanto ele saía incólume. Também não podia esperar ajuda dos irmãos, que no começo da crise haviam recorrido a ele em busca de empréstimos, que ele estava longe de poder lhes conceder. Confessou-lhes sua ruína, mas eles não acreditaram e se irritaram; não haviam esquecido o modo como ele lhes tinha surrupiado a herança familiar. Deixou de ir ao Club de la Unión porque não pôde pagar as mensalidades e era orgulhoso demais para aceitar um perdão temporário, como o que beneficiara a maioria dos associados na mesma situação. Ele havia subido muito e arriscado demais. A queda foi estrepitosa.

José Antonio era o único que estava a par da verdade completa; os outros filhos, privados da mesada habitual, distribuíram-se pelas casas de primos e amigos, na tentativa de se manter à margem do escândalo do pai. As mulheres da família precisaram reduzir os gastos e despedir quase toda a criadagem, mas não tiveram noção da seriedade do desastre até depois do tiro. Também não tentaram averiguar; esse assunto, como tantos outros, não lhes dizia respeito; era um problema de homens.

O entusiasmo, que tinha sido o motor fundamental da vida de meu pai, desapareceu. Ele aguentava a angústia do dia bebendo gim e combatia a insônia com as gotas milagrosas de sua mulher. Pela manhã, acordava com a mente envolta em brumas e os joelhos bambos, cafungava pós brancos, vestia-se com esforço e, para evitar as perguntas de minha mãe, escapulia para o escritório, onde não tinha nada para fazer, a não ser esperar que as horas passassem e seu desespero aumentasse. Com álcool, cocaína e ópio, funcionava pela metade, mas essas substâncias produziam um refluxo ácido que o impedia de comer. Emagreceu, criou olheiras, ficou amarelado, abatido; tinha envelhecido um século em poucos meses, mas eu era a única que percebia seu estado. Seguia-o pela casa, silenciosa como um gato, e, transgredindo a proibição de entrar na biblioteca, sentava-me a seus pés enquanto ele vegetava em sua poltrona de couro com o olhar fixo na parede.

— Está doente, papai? Por que está triste? — perguntava, sem esperar resposta.

Meu pai era um fantasma.

Dois dias depois da queda do governo, Arsenio del Valle recebeu o golpe de misericórdia ao saber que seria despejado da casa-grande das camélias, onde tinham nascido ele e todos os seus filhos. Davam-lhe uma semana para sair. A isso se somou uma ordem de prisão por fraude e sonegação de impostos, tal como temia seu filho José Antonio fazia muito tempo.

Ninguém ouviu o tiro naquele casarão de tantos cômodos, onde imperava o barulho das tubulações, das madeiras secas, dos ratos escondidos nas paredes e do trânsito habitual dos moradores. Ele foi descoberto no dia seguinte pela manhã, quando entrei na biblioteca para lhe levar uma xícara de café, como fazia com frequência desde que as criadas tinham sido despedidas. As pesadas cortinas de veludo estavam fechadas, e a única luz vinha do abajur do escritório, um Tiffany com cúpula de vidro colorido. Era um aposento grande de teto alto, com estantes de livros e reproduções a óleo de quadros clássicos que um pintor uruguaio copiava com tanta exatidão que poderia enganar um comprador experiente, como meu pai fez em algumas ocasiões. Só restava uma enorme Judite com a cabeça decapitada de Holofernes repousando numa bandeja. Também tinham desaparecido os tapetes persas, a pele de urso, os dois sofás barrocos, os enormes jarros de louça pintada da China e a maioria das peças de coleção. Aquela sala, que antes era a mais luxuosa da casa, era um espaço nu, onde flutuavam os três ou quatro móveis que tinham ficado.

Eu vinha ofuscada pela luz matinal da galeria. Parei por alguns segundos para acostumar a vista à penumbra e então vi meu pai recostado na cadeira de trás da escrivaninha; achei que estava dormindo e seria melhor deixá-lo descansar, mas a quietude do ar e o tênue cheiro de pólvora me alertaram.

Meu pai deu-se um tiro na têmpora com o revólver inglês que tinha comprado nos tempos da pandemia. A bala se incrustou limpamente no cérebro sem causar maior estrago, apenas um orifício preto do tamanho de uma moeda e uma fina trilha de sangue que descia do ferimento para a estampa da caxemira da Índia do robe e dali para o tapete, que absorveu a mancha. Durante uma eternidade, permaneci imóvel a seu lado, observando-o, com a xícara tremendo na mão, chamando-o num murmúrio, “papai”, “papai”. Ainda me lembro com perfeita clareza da sensação de vazio e calma terrível que se apoderou de mim e haveria de durar até muito depois do funeral. Por fim, pus a xícara na escrivaninha e fui silenciosamente buscar miss Taylor.

Essa cena está gravada em minha memória com a precisão de uma fotografia e apareceu-me em sonhos muitas vezes. Aos cinquenta anos fiz vários meses de terapia com um psiquiatra que me obrigou a analisá-la ad nauseam, mas nem na época nem agora consigo sentir a emoção correspondente à de ver o pai morto por um tiro. Não sinto horror nem tristeza, nada. Posso explicar o que vi, o vazio e a calma que descrevi, porém nada mais.

A casa inteira despertou para a tragédia quarenta minutos depois, após miss Taylor e José Antonio limparem o sangue e taparem o ferimento de meu pai com um gorro de dormir, que ele usava no inverno. Foi um esforço louvável, que serviu para fingir que ele tivera um ataque cardíaco por causa do estresse. Ninguém da família ou de fora acreditou, mas seria descortesia duvidar da versão oficial, que o médico corroborou para evitar problemas e para que pudéssemos enterrá-lo no cemitério católico, em vez do municipal, para onde iam os indigentes e estrangeiros de outras religiões. Não era o primeiro nem seria o último senhor opulento que se tiraria a vida na época, por causa da ruína.

Minha mãe sentiu o suicídio do marido como um ato de covardia: ele a deixava desvalida em meio a uma catástrofe por ele mesmo provocada. A indiferença que sentira por ele nos últimos anos, quando não dividiam nem sequer o quarto, transformou-se em desprezo e raiva. Aquela traição era muito mais grave que os pecadilhos de infidelidade que ela percebera e na realidade não lhe importavam; era uma humilhação para ela e uma vergonha irremediável para a família. Não pôde fingir dor de viúva nem se vestir de luto, mesmo sabendo que os del Valle não a perdoariam. O enterro foi feito depressa e sem avisar ninguém além dos filhos, porque era preciso sair da casa; no dia seguinte publicou-se uma nota no jornal, quando já era tarde para ir ao cemitério. Não houve obituário nem coroas de flores; pouquíssimas pessoas deram os pêsames. Fui impedida de assistir ao enterro porque, depois de encontrar o corpo de meu pai na biblioteca, tive febre e dizem que não falei durante vários dias. Miss Taylor ficou comigo. Meu pai, Arsenio del Valle, aquele homem poderoso a quem a esposa e nós, os filhos, obedecíamos e que muita gente temia, partiu sem glória, como um mendigo.

Minha família decidiu mencioná-lo o mínimo possível para evitar explicações, e tal foi seu sucesso que eu mesma fiquei sabendo da ruína econômica e das fraudes cometidas que o levaram ao suicídio só cinquenta e sete anos depois, quando tu, Camilo, na adolescência, decidiste desenterrar os segredos familiares escarafunchando o passado. Por algum tempo, o silêncio em torno da morte de meu pai me fez duvidar de ter visto aquele orifício em sua têmpora, e tanto repetiram a história do ataque cardíaco que quase acreditei. Logo percebi que esse assunto era proibido e vivi o luto com pesadelos recorrentes, mas sem espalhafatos, graças ao autocontrole ensinado por miss Taylor. Não fiz perguntas, por sentir o gelo que envolvia minha mãe e minhas tias.

José Antonio reuniu meus outros irmãos, minha mãe e o restante das mulheres da família, inclusive miss Taylor, e explicou sem rodeios o desastre financeiro, que se mostrou muito pior do que supunham. Quanto a mim, deixaram-me fora, por acharem que eu era muito nova para entender e por ter sofrido o impacto do suicídio. Com pesar, porque as conheciam desde sempre, despediram as duas empregadas que restavam na casa desolada, onde até os mastins tinham morrido, e os gatos, desaparecido. O restante da criadagem, o motorista e os jardineiros tinham sido despedidos meses antes, mas Apolonio Toro ficou, porque éramos sua única família. Jamais ganhara salário, trabalhava em troca de teto, comida, roupa e gorjetas de vez em quando. Meus irmãos, que já eram adultos, afastaram-se para salvar-se da vergonha social, e logo conseguiram trabalho e se tornaram completamente independentes. Se alguma vez tivemos espírito de família, este se perdeu naquela manhã em que encontramos meu pai na biblioteca. Tive pouca relação com eles quando era menina, e mais tarde tivemos poucas oportunidades de encontro. O numeroso clã del Valle terminou para mim aos onze anos, e tu não o conheceste, Camilo. O único que nunca abandonou minha mãe, minhas tias e a mim foi José Antonio. Ele desempenhou seu papel de irmão mais velho, enfrentou o escândalo e as dívidas, assumiu a responsabilidade de cuidar das mulheres de sua família.

José Antonio desenvolvera um plano e o discutiu previamente apenas com miss Taylor, por compreender que minha mãe e minhas tias, que nunca tinham precisado tomar decisões importantes, em nada poderiam contribuir. Ela aventou uma solução prática, que ele demorou a aceitar como a mais lógica, porque vivera num círculo fechado, num clã cujos membros se protegiam mutuamente, e ninguém ficava desamparado. Miss Taylor nascera pobre e podia pensar sem as limitações de José Antonio. Ela lhe mostrou que a atitude distante e fria de sua família era uma condenação ao ostracismo. Arsenio del Valle manchara seu sobrenome, e nós, seus descendentes, sofríamos as consequências. Tínhamos sido excluídos.

Com as poucas joias e a coleção de estatuetas de marfim que meu pai não conseguira vender nem empenhar, José Antonio obteve algum dinheiro com que pudéssemos ir para longe. Precisávamos começar de novo onde fôssemos capazes de viver com o mínimo, até que ele conseguisse ganhar controle da situação. O escândalo também o atingira, não só pelo parentesco, mas também porque ele tinha trabalhado ao lado do pai desde a adolescência e dava a impressão de ter estado diretamente envolvido em suas negociatas. Ninguém acreditou que meu irmão tentara muitas vezes avisar o pai dos perigos de sua conduta, nem que este nunca tivesse pedido sua opinião, seguido seus conselhos ou lhe conferido autoridade. Não o contratariam como advogado enquanto não limpasse o nome, e na grande depressão econômica que convulsionava o mundo conhecido ele não encontraria emprego em outras ocupações. A proposta de miss Taylor era a saída mais razoável.

Minha preceptora demonstrou ser dona de uma têmpora inusitada para enfrentar os tempos difíceis. Estava convicta de que a infância de miséria, o orfanato das freiras na Irlanda e a depravação do primeiro patrão lhe haviam proporcionado a quota de sofrimento que lhe cabia nesta vida, e nada que viesse no futuro podia ser pior. Ao ver José Antonio desesperado depois de enterrar o pai, achou que seria muito melhor ele ir para longe do ambiente habitual, pelo menos por algum tempo.

— Não queremos a maldade nem a compaixão de ninguém — disse-lhe, incluindo-se entre os del Valle com naturalidade, e acrescentou que podiam contar com suas economias; guardava em meio à roupa íntima o mesmo maço de libras esterlinas que minha mãe lhe devolvera.

Sabia exatamente para onde podiam ir, disse, tinha planejado tudo. José Antonio pediu-lhe pela enésima vez que se casasse com ele, e ela reiterou que nunca se casaria, mas não lhe deu a única explicação que ele teria entendido: já estava casada em espírito com Teresa Rivas.

O trem nos deixou em Nahuel, a última estação; de lá para o Sul ia-se de carroça, a cavalo e depois por mar, porque o território se desmembra em ilhas, canais e fiordes, até os glaciares azuis. Não se via vivalma no desembarque desolado, plataforma de madeira, meio teto de metal corrugado e um letreiro desbotado pelas intempéries com o nome do povoado. Tínhamos viajado muitas horas nos assentos duros, com um cesto de ovos cozidos, galinha fria, pão e maçãs. No final da viagem éramos os únicos passageiros no vagão; os outros tinham desembarcado nos povoados anteriores.

Levávamos o que tinha sido possível enfiar em vários baús e malas: roupa, travesseiros, lençóis e cobertores, artigos de toucador e coisas de importância sentimental. No vagão de carga iam a máquina de costura, o relógio de pêndulo da vovó, a escrivaninha estilo Rainha Ana de minha mãe, os volumes da Enciclopédia Britânica, trastes de cozinha, três abajures e umas estatuetas de jade que por alguma misteriosa razão minha mãe considerou indispensáveis para nossa nova vida e conseguiu escamotear antes que os credores fizessem um inventário do conteúdo da casa e se apoderassem de tudo. O piano também foi salvo e transferido para um quarto desocupado na casa onde Teresa Rivas morava. Como a única pessoa que conseguia tocá-lo mais ou menos bem era miss Taylor, José Antonio o deu de presente a ela. Em outro caixote tinham sido acomodados os remédios da tia Pía, as ferramentas da tia Pilar, frascos de conserva, presuntos defumados, queijos envelhecidos, garrafas de licor e outras delicadezas da despensa que não quiseram abandonar.

— Chega! Não vamos para uma ilha deserta! — deteve-as José Antonio, ao ver que elas pretendiam viajar com galinhas vivas.

— Aqui acaba a civilização, isto aqui é um território de índios — disse o maquinista, enquanto esperávamos Torito e José Antonio descarregar os volumes na estação de Nahuel.

Isso não contribuiu em nada para tranquilizar minha mãe e minhas tias, esgotadas pela viagem e assustadas com o futuro, mas levantou meu ânimo e o de miss Taylor. Talvez aquele lugar perdido fosse mais interessante do que esperávamos.

Estávamos sentados sobre a bagagem, fugindo do chuvisco debaixo da cobertura e refazendo as energias com chá quente oferecido pelos empregados da ferrovia, homens da região, soturnos e silenciosos, mas hospitaleiros, quando apareceu um carroção puxado por duas mulas. Era conduzido por um homem que usava um chapéu de aba larga e pesada manta preta. Apresentou-se como Abel Rivas, apertou a mão de José Antonio, cumprimentou as mulheres tirando o chapéu e me deu um beijo em cada bochecha. Era de estatura mediana e idade indefinida, com a pele curtida pela intempérie, cabelos lisos e cinzentos, óculos redondos de aro metálico e mãos grandes, deformadas pela artrite.

— Minha filha Teresa me avisou que vinham no trem — disse, acrescentando que nos levaria para nosso alojamento. — Depois venho buscar a bagagem, não dá para sobrecarregar tanto as mulas. Não se preocupem, aqui ninguém vai roubar nada.

O lento trajeto no carroção, por um caminho de lama, empapados de chuva, pareceu eterno e nos permitiu dimensionar a lonjura em que nos encontrávamos. José Antonio ia na boleia com Abel Rivas; Pilar amparava minha mãe, que ia acometida por outro dos seus acessos de tosse, que se tornavam cada vez mais frequentes e prolongados; a tia Pía rezava em silêncio, e eu, sentada numa tábua, entre miss Taylor e Torito, esquadrinhava a vegetação, à espera do aparecimento dos índios anunciados pelo maquinista, imaginando-os como os ferozes apaches do único filme que tinha visto, uma confusa história muda do Oeste americano.

Nahuel se compunha de uma rua curta, que tinha de cada lado várias casas de madeira bastante desengonçadas, um pequeno armazém fechado àquela hora, uma única construção de tijolos, que, segundo Abel, tinha múltiplas utilidades: correio, capela, quando chegava um padre por aqueles lados, e lugar de reunião dos habitantes para decidir assuntos da comunidade e para as celebrações. Bandos de cachorros muito peludos, deitados debaixo dos beirais das casas para escapar da chuva, ladravam sem entusiasmo para as mulas.

As mulas deixaram o povoado para trás, seguiram por mais meio quilômetro, entraram por uma trilha ladeada de árvores desfolhadas pelo inverno e pararam diante de uma casa semelhante às outras do povoado, porém maior. Uma mulher saiu para nos receber, protegida por um grande guarda-chuva preto. Ajudou-nos a descer da carroça, dando-nos boas-vindas com abraços, como se nos conhecesse desde sempre. Era Lucinda, esposa de Abel e mãe de Teresa Rivas, miúda, eternamente em movimento, mandona e efusiva em carinhos, que não discriminava entre família e desconhecidos, entre gente e animal. Calculo que na época tinha quase sessenta anos, o que se notava apenas nos cabelos brancos e nas rugas, porque ela era ágil e rápida como uma moça, ao contrário do marido, fleumático e de vez em quando taciturno.

Assim começou a segunda etapa de minha vida, que a família chamou de O Desterro, com maiúscula, e para mim foi uma época de descobertas. Passei os nove anos seguintes naquela província semidespovoada, ao sul do país, que hoje é destino turístico, numa paisagem de imensas florestas frias, vulcões nevados, lagos cor de esmeralda e rios caudalosos, onde qualquer um, com linha e anzol, podia encher em uma hora um cesto de trutas, salmões e bagres. Os céus ofereciam um espetáculo sempre novo, uma sinfonia de cores, nuvens velozes, arrastadas pelo vento, bandos de gansos selvagens e, de vez em quando, a pincelada de um condor ou uma águia em seu voo majestoso. A noite caía de repente como um manto negro bordado de milhões de luzes, que aprendi a conhecer pelos nomes clássicos e indígenas.

Lucinda e Abel Rivas eram os únicos professores em muitos quilômetros ao redor. Teresa contara a miss Taylor que seus pais estavam aposentados fazia alguns anos e tinham saído do povoado onde sempre lecionaram para ir aonde eram mais necessários. Voltaram para o sítio da família de Abel, que estava nas mãos de Bruno, seu irmão mais novo. Santa Clara era uma propriedade pequena, que dava para abastecer a família, com trocas ou venda de alguns produtos da terra, como mel, queijos e embutidos, nos povoados circunvizinhos. Não era nem sombra das grandes fazendas exemplares dos imigrantes alemães e franceses. Além da casa principal, no sítio havia algumas moradias básicas, uma construção para defumar, galpões para a tina metálica do banho semanal, o forno do pão e as ferramentas, um chiqueiro e o estábulo para as vacas, os cavalos e as duas mulas.

Bruno Rivas era bem mais novo que o irmão Abel; tinha uns cinquenta anos, era homem da terra, trabalhador, forte de corpo e coração, como diziam dele. Perdera a esposa e seu bebê num primeiro parto, que terminou mal, e não se soube que tivesse outro amor. Tornou-se sisudo e calado, mas continuou sendo amável, sempre disposto a ajudar, a emprestar suas ferramentas ou suas mulas, a doar os ovos ou o leite que sobrassem.

Facunda, jovem indígena, expressiva de rosto, larga de ombros e forte como um estivador, trabalhava na casa dele fazia vários anos. Tinha um marido em algum lugar e filhos que eram criados pela avó, que ela via pouco. Era um gênio na feitura de pão, bolos e empanadas, passava a vida cantando e adorava o senhor Bruno, como o chamava, que ela repreendia e mimava como uma mãe, embora tivesse idade para ser sua filha.

Lucinda e Abel ocupavam uma das casinhas a poucos metros da casa original. Fizeram bem a Bruno a companhia e a ajuda do irmão e da cunhada; sempre havia muito que fazer, e, por mais cedo que começassem, o dia acabava sendo curto. Na primavera e no verão, as estações de mais trabalho, Bruno contratava alguns peões, porque Lucinda e Abel aproveitavam o bom tempo para ir ensinar. Deslocavam-se com cavalos e mulas por uma vasta região, com caixas de cadernos e lápis, que compravam com seu próprio dinheiro, porque o governo tinha abandonado as remotas zonas rurais. A educação básica de quatro anos era obrigatória, mas difícil de ser proporcionada em todo o território; faltavam estradas, recursos e professores dispostos a instalar-se por aqueles lados.

Ao chegarem a um casario, os Rivas se anunciavam com um cincerro de vaca para chamar as crianças. Ficavam uns dias dando aulas, desde o amanhecer até que escurecesse, e cultivando amizade com os moradores, que os recebiam como anjos enviados do céu. Essas pessoas não podiam pagar, mas os obrigavam a receber alguma coisa: charque, peles de coelho, sandálias ou tecidos caseiros, o que tivessem. Os dois dormiam onde lhes dessem abrigo, depois seguiam até o próximo destino. Antes de partirem, deixavam tarefas de várias semanas para as crianças, com a advertência de que, ao voltarem, iriam examinar, assim um dia elas poderiam terminar a escola primária com um certificado. Os dois sonhavam em ter seu próprio local para ensinar e dar uma refeição quente por dia a cada criança, porque em alguns casos seria a única que elas receberiam, mas era um projeto impraticável. Os alunos não podiam deslocar-se vários quilômetros a pé para chegar à escola; a escola precisava ir até eles.

— Meu irmão Bruno está ajeitando para vocês a outra casa que temos aqui. Faz vários anos que não é ocupada, mas vai ficar uma maravilha — disse Abel.

Sentados em torno da estufa, a alma da casa, tomamos mate, a erva verde e amarga típica do Sul, com pão quente, nata e doce de marmelo trazido por Facunda. Ao entardecer, chegou Bruno, e depois os vizinhos vieram cumprimentar. Deixavam na entrada as mantas ensopadas e as botas enlameadas, saudavam timidamente e punham suas oferendas sobre a mesa: um frasco de compota, manteiga de porco, um queijo de cabra embrulhado num pano. Examinavam-nos com curiosidade; sabe-se lá o que pensavam dos visitantes da capital, com suas mãos brancas e seus casacos finos, inúteis para enfrentar um bom toró, e sua maneira diferente de falar. O único que parecia humano era Torito, com suas manzorras curtidas pelo trabalho, seu corpanzil encolhido para não bater a cabeça na viga do teto e seu eterno sorriso de gente boa.

Ao anoitecer, os vizinhos foram se retirando.

— Nos vemos amanhã. Facunda vai trazer pão fresco para o desjejum — anunciou Lucinda, vestindo o poncho.

E então ficamos sabendo que os Rivas iam dormir em outro lugar para nos deixar sua casa.

— É por uns dias só. A casa de vocês logo vai ficar pronta. Estamos consertando o telhado e vai ser preciso instalar a estufa — explicou Abel.

Os primeiros dias foram dedicados a visitar os vizinhos das propriedades próximas e de Nahuel, para nos apresentarmos e retribuirmos as atenções. O correto era levar uma lembrança em troca do que havíamos recebido; neste país não se faz visita de mãos vazias, e nas províncias essa regra se aplica com rigor. Os frascos de minhas tias tiveram esse destino, embora não pudessem competir com as conservas do campo. José Antonio e Torito uniram-se aos homens que consertavam a casa que nos fora dada, e uma semana depois estávamos instalados nela, com alguns móveis usados que Bruno conseguiu para nós.

Naqueles modestos aposentos de tábuas, que gemiam com o vento, a escrivaninha de cerejeira e o relógio de pêndulo pareciam roubados; os abajures Tiffany acabaram sendo inúteis, porque não havia eletricidade. Não me lembro do que aconteceu com as figuras de jade, acho que ficaram guardadas em algodão para sempre. Tal como avisaram, era impossível sobreviver sem a grande estufa de ferro fundido, que servia para cozinhar, aquecer o ambiente, secar a roupa e reunir as pessoas. No inverno e no verão ficava acesa com lenha da manhã até a noite. Minhas tias, que mal sabiam fazer uma xícara de chá, aprenderam a usá-la, mas minha mãe nem sequer tentou; ela definhava numa poltrona ou na cama, esgotada pela tosse e pelo frio.

Torito e eu fomos os únicos que nos acomodamos àquelas circunstâncias desde o começo; os outros fingiam estar acampando temporariamente, porque lhes custava aceitar que as privações e o isolamento, que ninguém quis chamar de “pobreza”, era nossa nova realidade. Durante as primeiras semanas padecemos a umidade como uma peste persistente. Nas tempestades soprava um vento furioso com fragor de açoite contra os tetos de metal. A garoa de cada dia era paciente, infinita. Se não caía chuva, éramos envolvidos pela neblina, mas nunca estávamos totalmente secos, porque nos poucos momentos em que o sol abria passagem entre as nuvens o ar mal se aquecia. Isso agravou a bronquite crônica de minha mãe.

— É a tuberculose que está voltando, esse clima vai me matar, não chego até a primavera — suspirava envolta em mantas e alimentada com sopas.

Segundo minhas tias, o ar do campo melhorou meu caráter e suavizou minha rebeldia. Em Santa Clara eu estava sempre ocupada, o dia voava, com as mil tarefas que tinha à minha frente; e eu gostava de todas. Apaixonei-me pelo tio Bruno, como o chamei desde o começo, e posso garantir que o amor foi recíproco. Para ele eu era como a reencarnação de sua filha que morreu ao nascer, e para mim ele foi o substituto do pai perdido. Comigo se transformava no homem alegre e brincalhão que foi na juventude, de que algumas pessoas se lembravam. “Não se apegue tanto à pirralha, senhor Bruno, porque um dia desses eles vão voltar para a cidade e deixar o senhor de coração partido”, resmungava Facunda. Com ele aprendi a pescar e caçar coelhos com armadilhas, ordenhar vacas, encilhar cavalos, defumar queijo, embutidos, presunto, peixe e carnes numa choça de barro de forma circular, onde havia sempre um rescaldo fumegante para secar alimentos. Facunda me aceitou porque Bruno lhe pediu. Até então não tinha tolerado ninguém em seu reino da cozinha, mas acabou por me ensinar a amassar pão, a encontrar os ovos que as galinhas punham em qualquer lugar e a fazer os refogados do inverno e o célebre bolo de maçã que os alemães haviam introduzido na região.

A primavera chegou finalmente, iluminando a paisagem e o ânimo dos desterrados, como gostávamos de nos denominar sempre que nenhum dos Rivas andasse por perto, porque isso teria soado como ofensa à hospitalidade com que nos brindavam. A paisagem se encheu de flores silvestres, de frutos nas árvores e de pássaros barulhentos; o sol permitiu que tirássemos os ponchos e as botas, secaram-se os lamaçais nos caminhos e pudemos colher as primeiras verduras da temporada e o mel das abelhas. Chegou a hora de José Antonio e Josephine Taylor ir embora, tal como tinham pensado desde o início. O plano era deixarem o restante da família estabelecida com os Rivas e despedirem-se, porque os dois não podiam subsistir no campo e precisavam trabalhar.

Ela decidiu voltar à capital, onde podia dar aulas de inglês, para isso sempre havia interessados, como disse ela, mas se absteve de admitir que a razão verdadeira era o desejo de estar com Teresa. Cada momento longe dela era vida perdida. Por sua vez, José Antonio precisava ganhar o suficiente para manter as mulheres da família; elas não podiam depender indefinidamente da caridade dos Rivas. Embora recebêssemos morada e comida grátis, sempre havia alguns gastos, desde sapatos para mim até os remédios de mamãe.

Meu irmão havia trabalhado com Bruno nos labores do campo durante o inverno, ajudando-o no que pôde, mas não estava afeito a empurrar arado e a cortar lenha. Era tentador regressar à capital com Josephine, porque com perseverança talvez pudesse ganhar seu amor, e pensava fazê-lo no futuro, quando desaparecesse a sombra funesta de Arsenio del Valle.

— Você não tem de pagar pelos pecados de seu pai, José Antonio. Em seu lugar, eu iria diretamente ao Club de la Unión, pediria um uísque duplo e enfrentaria os bisbilhoteiros cara a cara — sugeriu miss Taylor, mas ela desconhecia as regras de nosso ambiente.

Era preciso esperar, só o tempo podia apagar a vergonha do passado.

Entretanto, durante os meses de chuva meu irmão havia formulado um plano. Se desse certo, ia instalar-se em Sacramento, capital da província, ficando assim separado de nós apenas por duas horas de trem e um curto trecho em lombo de mula.

O radiotelegrafista de Nahuel assumiu a tarefa de localizar Marko Kusanovic, que desaparecera depois do fechamento da serraria pelo banco. Meu pai a dera como garantia de um de seus empréstimos, e, como não pôde pagar, o banco a confiscou, despediu os trabalhadores e acabou com a produção de madeira, enquanto não encontrasse a quem vendê-la, mas isso já fazia mais de um ano, e a maquinaria estava enferrujando. Segundo José Antonio investigou, a maior parte da colônia croata se estabelecera na província mais austral do país. Muitos dos imigrantes provinham dos mesmos lugares da Europa Central, conheciam-se, casavam-se no seu meio, e qualquer recém-chegado era imediatamente recebido de braços abertos pelos compatriotas. José Antonio imaginou que ali Marko poderia ter família ou amigos.

O radiotelegrafista se pôs em contato com o Club Austro-Húngaro, onde eram registrados os membros da colônia croata, e nove dias mais tarde José Antonio pôde falar por rádio com Kusanovic. Conheciam-se pouco, mas bastou aquela primeira conversa, interrompida pelos zumbidos e chiados de uma comunicação medíocre, para estabelecer as bases do que seria uma longa amizade.

— Venha para Sacramento, Marko, aqui está o futuro — disse-lhe meu irmão, e o croata não se fez de rogado.


6

Naqueles dias, Lucinda e Abel preparavam-se para outro giro pelos casarios da região. Haviam decidido que eu tinha muito mais escolaridade do que eles podiam transmitir, e que já era hora de eu pôr meus conhecimentos a serviço do próximo. Ensinaram-me a montar, fazendo-me vencer o terror que aqueles animais grandes de narizes fumegantes provocavam em mim, e me recrutaram como ajudante da escolinha itinerante. “Voltamos no fim do verão”, anunciaram.

Torito quis somar-se à expedição para me proteger, vai que ela é raptada pelos índios, como disse. Explicaram que, se o problema eram os indígenas, todos eram mestiços por aqueles lados, com exceção dos imigrantes estrangeiros, que chegavam com permissão do governo para colonizar o Sul. Os indígenas puros tinham sido expulsos por meio do fácil expediente de lhes comprar a terra a preço ridículo ou embebedá-los e fazê-los assinar documentos que eles não sabiam ler. Se isso falhasse, recorriam à força. Desde a Independência, o governo decidira conquistar, integrar, submeter os “bárbaros” e transformá-los em indivíduos civilizados, se possível católicos, por meio da ocupação e da repressão militar. O assassinato de indígenas tinha sido praticado desde o século XVI, primeiro pelos conquistadores espanhóis e depois por qualquer um que pudesse agir com impunidade. O povo originário tinha boas razões para odiar os forasteiros em geral e o governo da República em particular, mas não andavam raptando meninas, não havia por que os temer, disseram os Rivas a Torito.

— Além disso, você precisa ficar para ajudar o Bruno e cuidar das mulheres. Violeta vai estar segura conosco.

Passei o verão de meus treze anos dando aulas nas vilas e nos pequenos sítios da rota dos Rivas. Nos primeiros dias ia triste, porque me doíam as nádegas e eu sentia saudade de minha mãe, de miss Taylor e das tias, mas, assim que me acostumei ao cavalo, tomei gosto pela aventura. Com os Rivas não adiantava me queixar, eles não me ofereciam consolo nem simpatia, e foi assim que me tiraram os últimos ressaibos dos chiliques e dos desmaios da infância. Posso dizer com orgulho que tenho saúde exemplar e bom ânimo; poucas coisas me amedrontam.

A escolinha ambulante se movia sem pressa, no passo da mula que carregava o material escolar, mantas para dormir e a escassa bagagem pessoal. O itinerário quase sempre nos permitia chegar a um lugar habitado antes do anoitecer, mas em várias ocasiões dormimos ao relento. Eu invocava o padre Juan Quiroga para nos livrar de bichos daninhos e bestas ferozes, embora me tivessem garantido que as cobras eram inofensivas, e o único felino perigoso era o puma, que não se aproximava se houvesse fogo.

Abel sofria dos pulmões, tossia o tempo todo e às vezes ficava sem ar, como um moribundo. Sua vocação didática era uma segunda natureza; aproveitava as noites ao ar livre para me mostrar as constelações, assim como de dia me ensinava os nomes da flora e da fauna. Lucinda conhecia um sem-número de histórias do folclore e da mitologia, que eu não me cansava de ouvir. “Conte de novo a história das duas serpentes que criaram o mundo”, dizia-lhe eu.

Boa parte do trajeto era feito por trilhas estreitas; em outras, o inverno apagara as marcas e nada indicava a direção por tomar, mas os Rivas não se perdiam, conseguiam internar-se nas florestas sem vacilar e cruzar os rios sem correr perigo. Só uma vez meu cavalo escorregou nas pedras e me atirou na água, mas Abel foi rápido em me agarrar pela roupa e me arrastar até a outra margem. Naquele mesmo dia me deu a primeira aula de natação.

Os alunos estavam espalhados por vasta extensão, que com o tempo cheguei a conhecer tão bem quanto os Rivas, assim como aprendi a identificar cada criança pelo nome. Eu os veria crescer ano após ano e entrar na vida adulta sem passar pelas incertezas da adolescência, porque as exigências cotidianas não deixavam espaço para a imaginação. Estavam aprisionados numa pobreza mais digna que a da cidade, mas miséria invencível, de todo modo. As meninas tornavam-se mães antes que o corpo conseguisse amadurecer, e os meninos trabalhavam a terra como os pais e os avós, a menos que pudessem fazer o serviço militar, que lhes possibilitava escapar durante alguns anos.

Perdi rapidamente a inocência em que fui mantida durante a infância. Os Rivas não me ocultavam o drama do alcoolismo, da violência contra mulheres e crianças, das brigas de faca, dos estupros ou do incesto. A realidade diferia muito da ideia bucólica da existência rural que tivéramos ao chegar. Percebi que também em Nahuel, aquela aldeia de moradores hospitaleiros, bastava raspar a superfície para descobrir a fealdade e o vício, mas os Rivas me repetiam que não se tratava de maldade inerente à condição humana, e sim de ignorância e miséria. “É mais fácil ser altruísta e generoso de barriga cheia do que com fome”, diziam. Nunca acreditei nisso, porque vi que tanto a maldade quanto a bondade estão presentes em todos os lugares.

Em alguns vilarejos conseguíamos reunir uma dúzia de crianças de várias idades, mas com frequência parávamos em moradas isoladas, onde só havia três ou quatro pirralhos descalços; então tentávamos alfabetizar os adultos também, pois em geral eles não tinham recebido nenhuma escolaridade, mas o esforço dava pouco resultado, porque, se tinham vivido até então sem saber ler, é porque não precisavam daquilo. Era o que afirmava Torito, quando tentávamos convencê-lo das vantagens da escrita.

Os indígenas, pobres e discriminados pelo restante da população, viviam aqui e acolá em pequenas propriedades, com suas choças, uns poucos animais domésticos e hortas de batatas, milho e alguns outros vegetais. Pareceu-me uma existência miserável, até que os Rivas me mostraram que era uma maneira diferente de viver; tinham sua língua, sua religião, sua própria economia, não desejavam as coisas materiais que valorizávamos. Eram o povo originário desta terra; os forasteiros, com poucas exceções, eram usurpadores, ladrões, homens sem palavra de honra. Em Nahuel e outros povoados os indígenas estavam mais ou menos integrados ao restante da população, tinham casas de madeira, falavam espanhol e trabalhavam no que pudessem conseguir, mas a maioria vivia em comunidades rurais compostas por várias famílias, que os Rivas visitavam a cada ano. Apesar da desconfiança atávica em relação a quem chegasse de fora, ali éramos bem recebidos, porque o ofício de professor era considerado nobre. Os Rivas, porém, não iam dar aulas, mas recebê-las.

O cacique, um velho de aspecto atarracado e quadrado, com feições de pedra, acolhia-nos na morada comunitária, estrutura básica de troncos, com teto e paredes de palha, sem janelas. Mostrava-se com seus adornos e colares cerimoniais, rodeado de alguns rapagões de expressão dura e ameaçadora, por crianças e cachorros que iam e vinham. Lucinda e eu ficávamos fora com o restante das mulheres até que nos fosse permitido entrar, enquanto Abel apresentava seus respeitos: tabaco e álcool.

Depois de algumas horas bebendo em silêncio, porque não falavam a mesma língua, o cacique dava sinal para convidar as mulheres. Então Lucinda, que sabia um pouco o idioma indígena, ajudada por um dos jovens que aprendera espanhol no serviço militar, servia de intérprete. Falavam de cavalos, de colheitas, dos soldados que estavam acampados nas redondezas, do governo, que antes levava os filhos dos caciques como reféns e agora pretendia que as crianças esquecessem seu idioma, seus costumes, seus ancestrais e seu orgulho.

A visita oficial durava várias horas, não havia pressa para nada, o tempo era medido em chuvas, colheitas e desgraças. Eu resistia ao tédio sem me queixar, entontecida pela fumaça do fogo que ardia naquele recinto sem ventilação e atemorizada porque me sentia examinada de forma insolente pelos homens. Por fim, quando eu caía de canseira, dava-se a visita por terminada.

Ao anoitecer, Lucinda me levava para a choça da curandeira, Yaima, onde ia receber lições sobre plantas, cascas de árvores e ervas medicinais, que a mulher comunicava sempre com a ressalva de que serviam pouco sem a magia correspondente. Para ilustrar, recitava encantamentos e batia ritmicamente um tambor de couro com desenhos que representavam as estações, os pontos cardeais, o céu, a terra e embaixo da terra. “Mas o tambor pertence à gente”, esclarecia, ou seja, a seu povo apenas; outros não podiam tocá-lo porque não eram gente. Lucinda anotava a lição num caderno, com os nomes indígenas de cada planta e um desenho esquemático para identificá-la na natureza. Depois compartilhava suas anotações com a tia Pía, que estava expandindo seu repertório de remédios caseiros com novos componentes. Em vez do tambor mágico, aplicava as mãos, que curavam com energia. Enquanto isso, eu ficava adormecida no chão de terra batida, enroscada com um par de cachorros cheios de pulgas.

Yaima aparentava cinquenta anos, mas, como dizia, tinha uso da razão quando os espanhóis se foram com o rabo entre as pernas e a República nasceu. “Nada de bom havia antes, e depois foi pior”, concluía. Se assim era, ela teria uns cento e dez anos, calculava Lucinda, mas nada se ganhava em contradizê-la, cada um é livre para contar sua vida como achar melhor. Yaima usava a vestimenta habitual de seu povo, que antes era inteiramente feita em tear artesanal, mas a influência da cidade a mudara. Por cima de um vestido longo e largo de pano floreado, usava um manto preto, preso com um broche grande, além de um lenço de cabeça, sutiã e enfeites de prata na testa.

Quando fiz catorze anos, o chefe pediu a Abel Rivas minha mão em casamento, para ele ou para um de seus filhos, como forma de selar a amizade, disse, e ofereceu-lhe seu melhor cavalo como preço pela noiva. Abel, traduzido a duras penas por Lucinda, recusou delicadamente a oferta com o argumento de que eu tinha péssimo temperamento e, além disso, era uma de suas esposas. O cacique sugeriu trocar-me por outra mulher. Desde então deixei de acompanhá-los naquela parte da viagem, para evitar um casamento prematuro.

Na escolinha peripatética confirmei o que miss Taylor sempre afirmara: ensinando se aprende. Nos tempos livres precisava preparar as aulas sob a direção de Lucinda e Abel, e assim decifrei finalmente o mistério da matemática e consegui memorizar os textos de história e geografia nacional. Com miss Taylor tivera seis anos de instrução e conseguia recitar os reis e as rainhas do império britânico em ordem cronológica, mas sabia pouco de meu próprio país.

Numa das frequentes visitas de José Antonio, discutiu-se a possibilidade de me mandarem como interna para o Royal British College, fundado por um casal de missionários ingleses, a três horas de trem dali. O nome pomposo ficava meio grande para o estabelecimento, que se compunha apenas de uma casa com dormitórios para doze crianças e o casal de missionários como únicos professores, mas tinha reputação de ser o melhor da província. Estive a ponto de ter um de meus antigos chiliques. Anunciei que, se me mandassem para lá, ia fugir, e eles não voltariam a me ver nunca mais.

— Aqui aprendo mais do que em qualquer colégio — afirmei com tal firmeza, que acreditaram. O tempo me deu razão.

Minha vida se dividia em duas estações, uma de chuva e outra de sol. O inverno era longo, escuro e molhado; os dias eram curtos, e as noites, geladas, mas eu não me aborrecia. Além de ordenhar, cozinhar com Facunda, cuidar das aves, dos porcos e dos bodes, lavar e passar, eu tinha muita vida social. As tias Pía e Pilar tornaram-se a alma de Nahuel e arredores. Organizavam reuniões para jogar cartas, tricotar, bordar, costurar na máquina de costura, ouvir música com a vitrola a manivela e rezar novenas para pedir por animais doentes, pessoas melancólicas, colheitas e bom tempo. A intenção nunca confessada das novenas era roubar adeptos dos pastores evangélicos, que aos poucos iam ganhando terreno no país.

Minhas tias serviam generosamente um licor de cereja ou de ameixa, preparado por elas mesmas, que tinha a virtude de alegrar; estavam sempre dispostas a ouvir queixas e confissões das mulheres, que chegavam nas horas de folga ou fugindo do tédio. Em quilômetros ao redor conhecia-se o dom de curar com as mãos de tia Pía, que precisava ser muito discreta para não criar inimizade com Yaima. As duas curandeiras eram mais procuradas que os médicos.

As horas de luz eu passava ajudando o tio Bruno no trato dos animais ou nos pastos, desde que não chovesse demais, e nas tardes me dedicava a fazer tricô, tecer, estudar, ler, preparar remédios com a tia Pía, dar aulas às crianças do lugar e aprender o código morse com o radiotelegrafista. Nas poucas ocasiões em que havia algum acidente ou um parto, eu podia ajudar a única enfermeira da região, que contava meio século de experiência; mas seu prestígio não podia comparar-se ao de Yaima ou ao da tia Pía, às quais as pessoas recorriam em casos graves.

Miss Taylor e Teresa Rivas chegavam para ficar algumas semanas em pleno inverno, e então sua presença desinibida irrompia entre nós, espantando o mau tempo. Eram as únicas loucas que tiravam férias no pior clima do mundo, diziam. Traziam as novidades da capital, revistas e livros, material escolar para os Rivas, cortes de tecido, ferramentas para a tia Pilar, pequenas encomendas feitas pelos vizinhos, que elas nunca cobravam, e novos discos para a vitrola. As duas mulheres ensinavam as danças da moda, que provocavam coros de gargalhadas e serviam para animar as almas entorpecidas pela chuva. Até o tio Bruno participava da dança e da cantoria, cativado pela sobrinha e pela irlandesa. A tia Pilar se transformara no campo; tinha aperfeiçoado seus conhecimentos de mecânica, substituído as saias por calças e botas, e competia comigo pela atenção do tio Bruno, de quem estava apaixonada, segundo miss Taylor. Eram quase da mesma idade e estavam unidos por uma extensa lista de interesses comuns, de modo que a ideia não era descabida.

Foi àquelas duas mulheres esplêndidas, miss Taylor e Teresa Rivas, que ocorreu a ideia de homenagear Torito, que nunca tivera uma festa de aniversário e nem sabia em que ano tinha nascido, porque meus pais o registraram no cartório já na puberdade; pelo atestado, ele tinha doze ou treze anos menos do que teria de verdade. Decidiram que, visto ter o sobrenome Toro, ser muito cabeçudo e muito leal, seu signo devia ser touro, portanto havia nascido entre abril e maio, mas festejaríamos seu aniversário quando estivéssemos todos juntos.

O tio Bruno comprou meio cordeiro no mercado, para não matar a única ovelha do sítio, que era mascote de Torito, e Facunda fez um bolo de pão de ló com doce de leite. Com a ajuda do tio Bruno, fiz o presente dele: uma pequena cruz talhada em madeira, com seu nome gravado de um lado e o meu do outro, pendente de uma tira de couro de porco. Se tivesse sido de ouro puro, Torito não lhe teria dado mais valor. Dependurou-a no pescoço e nunca mais a tirou. Conto isso, Camilo, porque essa cruz desempenhou papel fundamental anos depois.

Avisado com antecedência, José Antonio tentava aparecer quando miss Taylor e Teresa estavam lá e aproveitava a oportunidade de pedir novamente a mão da irlandesa, para não perder o costume. Trabalhava com Marko Kusanovic a distância relativamente pequena em linha reta, mas no começo, antes de ter escritório na cidade, precisava descer da montanha por trilhas traiçoeiras para chegar ao trem. O tio Bruno e eu o pegávamos na estação e o púnhamos em dia nos assuntos da família, longe dos ouvidos de minha mãe e das tias. Estávamos cada vez mais preocupados com minha mãe, que não saía da cama durante a terrível umidade do inverno, coberta até as orelhas, com cataplasmas quentes de linhaça no peito, absorta numa torrente contínua de orações.

No terceiro ano decidiram que ela não resistiria a outro inverno, era preciso mandá-la para o sanatório das montanhas, onde estivera várias vezes antes. José Antonio já ganhava o suficiente para isso. Desde então, Lucinda e a tia Pilar acompanhavam a doente no trem e depois no ônibus que a levava ao sanatório, onde ela passava quatro meses recobrando-se dos pulmões e da melancolia. Iam buscá-la na primavera, e ela voltava com ânimo suficiente para viver mais um pouco. Por causa dessas ausências prolongadas e por quase sempre tê-la visto incapacitada para uma existência normal, as lembranças que tenho de minha mãe são menos precisas que as de outras pessoas com quem cresci, como minhas tias, Torito, miss Taylor e os Rivas. Sua condição de doente eterna é a causa de minha boa saúde; para não seguir seu exemplo, vivi ignorando orgulhosamente os achaques que me acometeram. Assim aprendi que, em geral, eles se curam sozinhos se os trato com indiferença e dou tempo à natureza.

Na primavera e no verão não havia descanso no sítio dos Rivas. Durante a maior parte da estação estival eu excursionava com a escolinha de Abel e Lucinda, mas também passava algum tempo em Santa Clara, ajudando os outros. Colhiam verduras, legumes e frutas, preparavam as conservas em frascos herméticos, faziam doces, compotas e queijos com leite de vaca, cabra e ovelha, defumavam carne e peixe. Era também a época do nascimento das crias dos animais domésticos, uma festa efêmera para mim, porque eu os alimentava com mamadeira e lhes dava nome, mas, quando já tinha me afeiçoado, eles eram vendidos ou sacrificados, e eu precisava esquecê-los.

Quando chegava o dia de matar um porco, o tio Bruno e Torito se encarregavam da tarefa num dos galpões, mas, por mais longe que eu me escondesse, podia ouvir o doloroso bramido do animal. Depois, Facunda e a tia Pilar, ensanguentadas até os cotovelos, preparavam linguiças, chouriços, presuntos e salames, que eu devorava sem peso na consciência. Várias vezes ao longo da vida me propus ser vegetariana, Camilo, mas minha vontade é fraca.

Assim se passaram os anos de minha adolescência, o tempo do Desterro, que recordo como o mais diáfano de minha vida. Foram anos sossegados e abundantes, que passei dedicada aos serviços rudimentares do campo e à devoção de ensinar ao lado dos Rivas. Lia muito, porque miss Taylor se encarregava de me mandar livros da capital, e os comentávamos em nossa correspondência ou quando ela ia ao sítio passar férias. Também com Lucinda e Abel eu trocava ideias e leituras que me abriam novos horizontes. Desde pequena ficou claro, para mim, que minha mãe e minhas tias pertenciam a uma época passada, que não se interessavam pelo mundo exterior e por nada que abalasse suas crenças, mas aprendi a respeitá-las.

Nossa casa era pequena, e a convivência, muito estreita; eu estava sempre acompanhada, mas, ao fazer dezesseis anos, ganhei de presente uma cabana a poucos metros da casa principal, que Torito, a tia Pilar e o tio Bruno construíram num piscar de olhos; eu a batizei de Passareira, porque era o que parecia com sua forma hexagonal e sua claraboia no teto. Ali eu tinha espaço para a solidão necessária e privacidade para estudar, ler, preparar aulas e sonhar longe da tagarelice incessante da família. Continuei dormindo na casa com minha mãe e minhas tias, num colchãozinho que eu estendia à noite perto da estufa e recolhia pela manhã; a última coisa que eu desejava era enfrentar sozinha os terrores da escuridão na Passareira.

Com o tio Bruno eu celebrava o milagre da vida em cada pintinho que saía da casca e em cada tomate que chegava da horta à mesa; com ele aprendi a observar e ouvir com atenção, a me localizar na floresta, a nadar em rios e lagos gelados, a acender fogo sem fósforos, a me entregar ao prazer de afundar o rosto numa melancia sumarenta e a aceitar a dor inevitável de me despedir de pessoas e animais, porque não há vida sem morte, como ele afirmava.

Como não havia um grupo de garotos da minha idade, pois minhas amizades eram os adultos e as crianças que me rodeavam, eu não tinha com quem me comparar e não sofri o tremendo transtorno da adolescência; simplesmente transitei de uma etapa a outra sem perceber. Do mesmo modo saltei as quimeras românticas tão normais a essa idade, porque não havia rapazes que as inspirassem. Afora aquele cacique que tentou me trocar por um cavalo, ninguém me considerava mulher, eu era apenas uma garotinha, a sobrinha postiça de Bruno Rivas.

Da menina insuportável que fui pouco restava. Miss Taylor, que me conheceu quando eu espumava de raiva e sacudia as paredes com meus berros, dizia que o campo e a convivência com os Rivas tinham conseguido mais que toda a educação que ela pôde me transmitir; tinha mais valor didático ordenhar vacas do que decorar uma lista de reis mortos, garantia. O trabalho físico e o contato com a natureza deram-me o que eu não teria obtido em nenhum colégio, tal como profetizei quando quiseram me mandar para o internato dos missionários ingleses.

Ao ver as únicas duas fotos daquela época, verifico que aos dezoito anos eu era bonita, seria falsa modéstia negar; mas eu não sabia disso, porque em minha família e entre a gente da região isso não tinha muita serventia. Ninguém nunca o disse, e o único espelho da casa mal servia para me pentear. Tinha olhos pretos, um erro da natureza, porque sou muito pálida, e aquelas pupilas de azeitona não me caíam bem, além de uma mata indômita de cabelo escuro e brilhante, que eu prendia atrás numa trança e lavava com a espuma saponácea da casca de uma árvore nativa. Minhas mãos, de dedos longos e punhos finos, estavam muito maltratadas pelo trabalho agrícola e pela lavagem de roupa com lixívia; eram mãos de lavadeira, como dizia miss Taylor, com conhecimento de causa por sua experiência no orfanato da Irlanda. Vestia a roupa costurada por minhas tias, pensando na utilidade prática e não na moda; para o uso diário, um macacão ou jardineira de pano grosseiro e tamancos de madeira e couro de porco; para sair, um singelo vestido de percal com gola de renda e botões de madrepérola.

Até aqui te falei pouco de Apolonio Toro, o inesquecível Torito, que merece uma homenagem porque me acompanhou durante muitos anos em vida e continuou a me acompanhar depois de morrer. Suponho que nasceu com algumas diferenças genéticas, porque não se parecia com ninguém. Para começar, era um gigante em nosso país, onde antes as pessoas eram baixinhas; agora não, agora as gerações jovens têm de altura uma cabeça a mais que os avós. Por ser tão grandalhão, movia-se com lerdeza de paquiderme, o que acentuava seu aspecto de bruto ameaçador, contradizendo sua verdadeira natureza dócil. Poderia estrangular um puma com mão desarmada, mas, quando zombavam dele, o que ocorria às vezes, não se defendia, como se tivesse plena consciência de sua força e se recusasse a usá-la contra os outros. Tinha a testa estreita, os olhos pequenos e fundos, a mandíbula proeminente e a boca sempre entreaberta.

Uma vez, no mercado, uns rapazes o rodearam a prudente distância, importunando-o com gritos de “retardado!”, “idiota!” e atirando-lhe pedras. Torito aguentou sem se alterar e sem tentar se proteger, com um corte na sobrancelha e o rosto manchado de sangue. Já se formara uma rodinha de curiosos quando o tio Bruno chegou, atraído pelo burburinho, e enfrentou os agressores, furioso. “O gorila nos atacou!”, “vocês precisam prendê-lo!”, gritavam, mas retrocederam e por fim foram embora xingando.

Vejo-o sentado num banco, pois as cadeiras eram pequenas para ele, longe da estufa, porque era calorento, entalhando com sua faca algum bichinho de madeira para as crianças que chegavam atraídas pelos biscoitos de Facunda. As mesmas crianças que no começo se aterrorizavam com ele logo passaram a segui-lo por toda parte. Nós, mulheres, dormíamos na casa, mas ele precisava de muito ar e, se não estivesse chovendo, deitava-se no alpendre com um cobertor. Dizíamos que dormia com um olho só, sempre vigilante. Mil vezes terminei aninhada em seus braços quando acordava de um pesadelo. Torito me ouvia gritar e chegava correndo, antes de qualquer outra pessoa, e me balançava como a um bebê, cantarolando “dorme, menina, dorme em paz, a Cuca já foi e não volta mais”.

No campo, Torito encontrou seu lugar neste mundo. Acho que entendia o idioma dos animais e das plantas; conseguia acalmar um cavalo chucro falando-lhe baixinho e animar as plantações tocando sua gaita. Adivinhava as mudanças de clima muito antes de aparecerem os sinais que o tio Bruno conhecia. O homenzarrão desajeitado e pesado que ele era na cidade, na natureza transformou-se num ser delicado, com antenas para captar o entorno e as emoções das pessoas.

De vez em quando, desaparecia. Sabíamos que ia partir porque trocava as solas das botas, embrulhava um machado, sua faca e seu canivete, a vara de pescar, material para armadilhas e as provisões dadas por Facunda, que o tratava com o mesmo afeto rabugento e mandão que usava com o tio Bruno. Envolvia tudo na manta e punha o rolo a tiracolo, amarrado ao peito com correias. Despedia-se sem muitas palavras e saía andando. Negava-se a cavalgar; dizia que era muito pesado para o lombo de um cavalo ou de uma mula. Ficava sumido semanas e voltava magro, barbudo, queimado de sol e feliz. Perguntávamos por onde tinha andado, e sua resposta era sempre a mesma: conhecendo. Essa palavra abarcava os bosques impenetráveis da floresta fria, os vulcões e os cumes da cordilheira, os precipícios e as escarpas da fronteira natural, os rios caudalosos, as cascatas brancas de espuma, as lagoas escondidas nas fendas das rochas e incluía os guias locais que conheciam o terreno como a palma da mão, pastores, caçadores e indígenas, que o respeitavam e o apelidaram de Fuchan, por causa de seu tamanho. Entre aquelas pessoas, Torito não era o idiota do povoado, mas o gigante sábio.

Um sábado, fins do outono, um dos trabalhadores de uma fazenda próxima, que tinha me visto num rodeio, foi à casa dos Rivas com a desculpa de comprar porcos; não imaginei que tivesse ido por minha causa. Lembro que era um tipo mal barbeado, com voz autoritária e porte arrogante, que conversou conosco montado. Os porquinhos estavam muito pequenos, não convinha vendê-los ainda, e o tio Bruno lhe pediu que voltasse dois meses depois, mas, como o outro ficou conversando algum tempo, convidou-o a entrar na casa para tomar um refresco. Servi chicha* de maçã e fiz menção de me retirar, mas o homem me deteve com um estalo da língua, como se faz a um cachorro.

— Aonde vai, linda? — disse.

O tio Bruno se levantou, mais surpreso que zangado, porque não estávamos habituados àquela insolência, e me mandou ir ver minha mãe, enquanto dava um jeito de se livrar do desconhecido.

Naquela tarde era minha vez de tomar o banho semanal. No galpão, Facunda e Torito acendiam fogo e esquentavam água num caldeirão enorme, que depois despejavam na tina de madeira. Torito baixava a cortina de lona, que servia de porta, e se retirava, enquanto Facunda me ajudava a lavar os cabelos e esfregar-me inteira até me deixar vermelha e reluzente. Era um ritual longo e sensual, a água quente e o ar frio da tarde, a espuma da casca de árvore no cabelo, a esponja dura na pele, a fragrância limpa das folhas de menta e manjericão, que Facunda deixava de molho na banheira. Depois eu me secava com panos, não tínhamos toalhas, e Facunda me desembaraçava os cabelos. O mesmo eu fazia com ela, com Lucinda e com minhas tias. Minha mãe nós lavávamos por partes, para que ela não se resfriasse. Os homens se lavavam com baldes de água fria, ou no rio.

Já estava escurecendo quando me despedi de Facunda e fui para nossa casa, de camisola, com um pulôver grosso, para dividir com minhas tias a tigela de caldo e o pão com queijo que era nosso jantar habitual. De repente, ouvi de novo o estalido de língua que horas antes aquele homem havia emitido, e, antes que eu conseguisse reagir, ele me apareceu pela frente.

— Aonde vai, linda? — repetiu em tom atrevido.

A vários passos de distância se podia sentir cheiro de bebida. Não sei que ideia tinha feito de mim; talvez tenha achado que eu era uma criada dos Rivas, alguém insignificante de quem podia se aproveitar. Tentei me apressar em direção à minha casa, mas ele interceptou meu caminho e investiu contra mim, agarrou-me pelo pescoço com uma das mãos e com a outra tapou-me a boca.

— Se gritar te mato, tenho uma faca — resmungou, mordendo as palavras, e me deu uma joelhada na barriga que me dobrou.

Levou-me arrastada para a minha Passareira, empurrou a porta com um pontapé, e eu me vi na choça totalmente escura. A Passareira ficava perto da casa, se eu tivesse gritado alguém teria ouvido, mas o medo me impedia de pensar. Atirou-me ao chão, sem me soltar, e senti a batida da nuca contra as tábuas do piso. Sua mão livre tentava levantar minha camisola e arrancar minha calcinha, enquanto eu esperneava debilmente, esmagada por seu peso. Sua mão calosa tapava minha boca e parte do nariz; eu não conseguia respirar, estava sufocando. Arranhei o braço dele, na tentativa de me soltar, aspirar o ar era muito mais urgente que me defender.

Não lembro o que aconteceu depois; talvez tenha perdido os sentidos, ou simplesmente o trauma tenha apagado para sempre a lembrança daquele fato grosseiro. É possível que Torito, ao ver que eu demorava para chegar a casa, tenha saído à minha procura e ouvido algo, porque foi à Passareira e conseguiu agarrar o homem com suas manzorras e tirá-lo de cima de mim antes que ele me violasse. Isso foi o que as tias me contaram depois, acrescentando que Torito o tinha carregado no ar até a saída de Santa Clara e atirado como um saco de batatas no meio do caminho, com um tremendo pontapé de despedida.

Dois dias depois chegou a polícia para interrogar as pessoas dos arredores. Alguns pescadores tinham encontrado, entre os canaviais do rio, a dois quilômetros de distância, o cadáver de um homem chamado Pascual Freire, administrador da propriedade vizinha, dos Moreau. Foi fácil identificá-lo, porque ele era conhecido na região; tinha fama de bêbado e encrenqueiro e tivera mais de um entrevero com a lei. A explicação razoável era que Freire estava bêbado e se afogou, mas apresentava lacerações no pescoço. Os policiais nada elucidaram; na verdade, fizeram a investigação sem nenhum entusiasmo e logo depois foram embora.

Quem acusou Torito? Nunca vou saber, assim como nunca vou saber se ele foi responsável pela morte daquele homem. Foi preso naquele fim de semana e trancafiado em Nahuel, à espera da ordem de transferência para Sacramento. Chamamos José Antonio imediatamente, e ele tomou o primeiro trem do dia seguinte. Enquanto isso, os três Rivas foram dar testemunho de que Apolonio Toro era uma pessoa pacífica, que jamais dera mostras de violência, como muita gente podia testemunhar, especialmente as crianças. A única coisa que conseguiram foi que ele não fosse levado para Sacramento naquele dia, e assim meu irmão teve tempo de chegar.

Fazia pouco tempo que José Antonio atuava como advogado, mas os humildes policiais do lugar, que mal conseguiam ler, não sabiam. Apresentou-se de chapéu e gravata no recinto, que era uma casinha com uma jaula para os presos; levava uma maleta preta vazia, mas impressionante, e falava com o tom indignado de um rei ofendido. Deixou-os aparvalhados com seu jargão legal e, quando eles estavam bem amedrontados, passou-lhes algumas notas para compensá-los pelo incômodo. Soltaram o detido com a advertência de que ele ficaria sob vigilância. Torito voltou para casa na caminhonete do tio Bruno, e foi preciso ajudá-lo a descer, porque tinha sido moído de bordoadas.

Ninguém da minha família ou da dos Rivas lhe fez perguntas. Facunda se esmerou em consolá-lo com o melhor de sua confeitaria, enquanto a tia Pía colaborava com a rival Yaima para curá-lo. Torito urinava sangue, pois seus rins haviam sido lesados, e tinha tantas costelas quebradas que mal conseguia respirar. Não saí do lado dele, devorada pela culpa, já que ele me salvara, pondo em risco sua liberdade e talvez a própria vida, mas, quando eu quis agradecer, ele repetiu o mesmo que havia dito aos policiais quando o interrogaram sobre Pascual Freire:

— Esse morto eu não conhecia.

Segundo José Antonio, isso podia ser interpretado de várias maneiras.

* Bebida feita com a fermentação da uva ou da maçã. [N.T.]


SEGUNDA PARTE

A paixão

(1940-1960)


7

No verão seguinte, quando o fantasma de Pascual Freire ainda aparecia em nossas conversas, desde que Torito não estivesse por perto, porque precisávamos preservá-lo da lembrança daquele pesadelo, conheci Fabian Schmidt-Engler, o filho mais novo de uma numerosa família de imigrantes alemães que haviam chegado sem nada e, em algumas décadas de trabalho duro com visão de futuro, terra e empréstimos do governo, tinham se transformado em cidadãos prósperos. O pai de Fabian era dono da melhor fazenda leiteira da região, e a mãe e as irmãs administravam um hotel encantador à beira do lago, a quatro quilômetros de Nahuel, favorito dos turistas que, do outro lado do mundo, iam lá pescar.

Aos vinte e três anos, Fabian terminara o curso de veterinária e andava oferecendo seus serviços, no estágio exigido para receber o diploma. Chegou à propriedade dos Rivas a cavalo, com duas bolsas de couro pendentes da montaria, camisa e calças de explorador com trinta bolsos, cabelos penteados com brilhantina e o mesmo ar de estrangeiro desorientado que haveria de ter sempre. Nascera neste país, mas era tão carrancudo e formal, tão obstinado e pontual, que parecia recém-chegado de muito longe.

Eu estava saindo da casa, com trajes de domingo, porque ia de caminhão com o tio Bruno à estação de Nahuel. Naquele dia meu irmão chegava de Sacramento, onde tinha já um escritório com Marko Kusanovic. Era o primeiro verão que eu não passaria dando aulas itinerantes com Abel e Lucinda, porque estava preparando minha mudança para a cidade no outono. Ao ver aquele jovem vestido de geógrafo, achei que era um dos forasteiros que haviam aparecido por lá uns dias antes, com a novidade de andar observando pássaros. Ninguém acreditou neles, porque a ideia de passar horas imóvel, olhando o ar com binóculos, para vislumbrar um urubu-de-cabeça-vermelha e anotar numa caderneta, era totalmente incompreensível. Talvez estivessem reconhecendo o terreno para montar algum daqueles negócios que só ocorrem aos gringos, disseram os moradores.

— Por aqui não há pássaros raros — cumprimentei.

— Têm... vacas? — tartamudeou o recém-chegado.

— Duas, a Clotilde e a Leonor, mas não estão à venda.

— Sou veterinário. Fabian Schmidt-Engler... — disse, desmontando para cair em cima de uma bosta fresca e lambuzar as botas.

— Aqui ninguém está doente.

— Mas poderia estar — sugeriu ele, com as orelhas ardendo.

— O tio Bruno e a tia Pía tratam os animais e, se a coisa é muito grave, chamamos a Yaima.

— Bom, se precisarem de mim, você pode me achar no hotel Bavaria.

— Ah! Você é dos Schmidt, os do hotel.

— Sim. Ali há telefone.

— Aqui não, mas em Nahuel, sim.

— Grátis... quer dizer, atendo grátis...

— Por quê?

— Estou fazendo estágio.

— Duvido que o tio Bruno te deixe fazer estágio com a Clotilde ou a Leonor.

Isso não desanimou Fabian, que voltou no dia seguinte, na hora do chá, com um kuchen de pêssego feito no hotel. Tinha passado a noite atormentado pela insônia da paixonite súbita, segundo fiquei sabendo depois, e, vencendo sua cautela atávica, surrupiou o kuchen da cozinha e cavalgou quarenta minutos com a esperança de me ver de novo. Foi recebido pelo pequeno clã del Valle completo, mais o tio Bruno e Torito; ninguém tirava os olhos de cima do veterinário intruso, temendo que a intenção dele fosse me seduzir. Facunda serviu o chá de mau humor.

— Aqui não é preciso trazer comida, cavalheiro, temos de sobra — resmungou ao ver o kuchen.

Fabian tinha a disciplina e a tenacidade que haviam feito a fortuna de sua família. Decidiu me conquistar, e não houve jeito de dissuadi-lo. Nem a franca desconfiança inicial do tio Bruno nem os resmungos de Facunda conseguiram amedrontá-lo; também não retrocedeu diante de minha impassibilidade. Só me dei conta de seu desvario sentimental muito tempo depois; tratava-o como se fosse um parente distante e pouco interessante. Visitou-nos todo dia durante dois meses do verão, com humildade de suplicante, resistindo heroicamente a incontáveis xícaras de chá, elogiando as tortas e os bolos de Facunda — não voltou a cometer o erro de aparecer com um kuchen — e entretendo minha mãe e minhas tias com eternos jogos de cartas, enquanto eu escapulia para a minha Passareira, onde ficava lendo em paz. Ele era tão neutro e aborrecido que inspirava confiança instantânea.

Assim que se sentiu à vontade, Fabian superou aquela maneira vacilante de falar, que me irritava, mas não era um tipo tagarela e, ao contrário de todos os outros homens que conheci na vida, preferia não dar opinião se não entendesse do assunto. Essa prudência, que podia ser interpretada como ignorância, não o impediu de ter um sucesso inusitado em sua elogiável profissão de tratar animais, como contarei adiante, se é que me lembro. O tio Bruno, que despedira outros jovens com tanta grosseria, acabou por se acostumar a vê-lo ir e vir. Um dia permitiu que ele presenciasse o nascimento do bezerro da Clotilde, e então percebemos que o jovem tinha sido plenamente aceito.

A companhia dele aliviava o tédio de minha família, que, por estar isolada, tinha poucos assuntos de conversa. Falávamos sempre das mesmas coisas: plantação, vizinhos, comida, doenças e remédios. Só quando miss Taylor e Teresa chegavam é que a tertúlia se animava. As notícias do rádio nos pareciam vir de outro planeta; não tinham nada a ver conosco. Fabian contribuía com muito pouco para o bate-papo, mas sua indulgência em ouvir conseguia inspirar os outros, e foi assim que fiquei a par de alguns aspectos de nosso passado que eu desconhecia. Minhas tias lhe falaram, por exemplo, do terremoto do ano em que José Antonio nasceu, da pandemia de quando eu nasci e de outras catástrofes ocorridas quando do nascimento de cada um de meus outros quatro irmãos. Não acho que tenham sido sinais do destino, como pensavam elas, mas sim que neste país sempre há calamidades, e não é nada difícil relacioná-las com qualquer acontecimento da vida, desde o nascimento até a morte. Também fiquei sabendo que a vovó Nívea, mãe de meu pai, tinha morrido decapitada num terrível acidente de automóvel, e que sua cabeça tinha sumido num pasto; que existia uma tia capaz de falar com os espíritos, e que houve um cachorro que cresceu, cresceu, até atingir o tamanho de um dromedário.

Quer dizer, minha família pelo lado paterno se revelou mais original do que eu esperava; lamentei ter perdido contato com eles. São teus antepassados, Camilo, seria bom investigares mais sobre eles; algumas características costumam ser hereditárias. É claro que nunca falavam de meu pai, nem dos motivos pelos quais nos tínhamos afastado daqueles parentes e vivíamos desterrados em Santa Clara. O rapaz se absteve de perguntar.

Fabian foi incapaz de disfarçar o alvoroço de seus sentimentos; todos perceberam, menos eu. Ao verem o que estava acontecendo com o caçula, suas irmãs fizeram investigações sobre os Rivas, gente modesta, mas muito considerada na região, e os del Valle, de sobrenome aristocrático na capital, mas sem dúvida de um ramo empobrecido, pois de outro modo não se explicava o fato de vivermos como agregados a uma propriedade dos Rivas. Ficaram sabendo do escândalo de Arsenio del Valle, mas não o relacionaram comigo. Imagino que tenham discutido a situação no seio do clã e concluído que não restava outra solução, senão dar uma olhada na moça eleita por Fabian. Pouco antes de minha partida para Sacramento, minha mãe, minhas tias e eu recebemos um convite para almoçar no hotel Bavaria. Bruno nos levou na caminhonete que substituíra a antiga carroça das mulas.

Fomos recebidos pelo esquadrão feminino dos Schmidt-Engler em formação: mãe, irmãs e cunhadas, mais uma tropa de crianças de várias idades, tão loiras e limpas como Fabian, arianos puros. O hotel era então, e continua sendo, uma construção singela de sequoia, de estilo escandinavo, com enormes sacadas, num promontório elevado junto ao lago, com a vista espetacular do vulcão nevado, que àquela hora brilhava como um farol no céu sem nuvens. Os jardins em terraços, que desciam até a estreita franja de praia à margem da água, continham uma profusão de flores e eram atravessados por trilhas nas quais alguns hóspedes passeavam.

Havia sido posta uma mesa comprida num dos terraços, longe da algazarra da sala de jantar, com toalha branca e rosas em vasos de vidro, entre as travessas de saladas e carnes frias. Depois minhas tias comentaram que não tinham visto tanto refinamento desde a época da casa-grande das camélias, antes que começasse o nefasto caminho rumo à ruína de meu pai.

Acho que causei impressão favorável naquelas mulheres, com minha trança, meu vestido pueril e meus modos de senhorita, apesar de não ser ariana e de minha pobreza não poder ser dissimulada. Se me casasse com Fabian, não contribuiria com nada no plano econômico, além de me destacar como uma mancha entre eles. Sem dúvida pensaram nisso, mas não o disseram, porque eram educadas demais para sugerir tais objeções em voz alta. Cedo ou tarde, seria inevitável a miscigenação com gente do país de adoção, embora fosse pena que isso acontecesse justamente com a família deles. Não se trata de preconceito de minha parte, Camilo, porque naqueles tempos alguns colonos estrangeiros ainda viviam em círculos fechados. Havia meia dúzia de lindas moças alemãs, casadouras de boa posição, que teriam combinado melhor com Fabian. Além disso, ele era novo demais para se casar, ainda precisava tirar o diploma e ganhar a vida, visto que se recusava a trabalhar para o pai.

Ao perceber que eu não havia sido rejeitada de imediato por seus familiares, Fabian decidiu agir antes que eles mudassem de ideia e eu fosse embora para Sacramento. Abordou-me no dia seguinte, num descuido das tias, e anunciou, trêmulo, que precisava falar comigo em particular. Levei-o à Passareira, refúgio onde raramente alguém, além de mim, punha os pés. Na porta estava dependurado um aviso pintado num pedaço de madeira que proibia a entrada “de pessoas de ambos os sexos”. A luz da tarde iluminava o interior, que ainda cheirava a pinho. O mobiliário consistia numa tábua com pés de ferro à guisa de mesa, estantes com livros, um baú de viagem e um divã desengonçado, que lhe indiquei, enquanto eu me sentava na única cadeira.

— Você sabe... o que eu vou... vou... vou... dizer, não? — tartamudeou penosamente Fabian, torcendo um dos três lenços que ele sempre levava em seus numerosos bolsos.

— Não, ué, como eu vou saber?

— Por favor, case-se comigo — soltou de jato, quase gritando.

— Casar? Mal fiz vinte anos, Fabian. Como vou me casar?

— Não precisa ser... agora mesmo, po... po... podemos esperar... Vou me formar logo.

Minhas tias e o tio Bruno haviam caçoado mais de uma vez das visitas diárias do veterinário, e isso deve ter me dado indícios de que ele estava interessado por mim; não havia ninguém mais em quem aquele jovem pudesse fixar a atenção em Santa Clara, mas a sua declaração me surpreendeu. Eu me afeiçoara a ele, apesar de sua presença constante me aborrecer. Se alguma tarde ele não chegasse na hora de sempre, eu começava a olhar o relógio de pêndulo com certa inquietação.

A primeira coisa que senti quando ele me falou de casamento foi apreensão diante da possibilidade de fazer parte da colônia alemã, na qual eu me sentiria como um peixe fora d’água. Casar-me com Fabian era um tremendo disparate, mas ao vê-lo ali, na minha frente, atordoado, patinhando na torrente de seu primeiro amor, não tive coragem de rejeitá-lo de imediato.

— Desculpe, mas agora não posso dar uma resposta, preciso pensar. Vamos esperar um tempo e, enquanto isso, vamos nos conhecendo melhor, o que acha?

Fabian aspirou o ar — fazia mais de um minuto que não respirava — e enxugou a testa com o lenço, tão aliviado que seus olhos se marejaram. Temendo que ele se pusesse a chorar, aproximei-me alguns passos e me espichei para lhe dar um beijo na face, mas ele me puxou com firmeza e me beijou em cheio na boca. Joguei-me para trás, assustada com a reação desesperada daquele homem, aparentemente tão comedido e prudente, mas ele não me soltou e continuou me beijando, até que relaxei em seus braços e o beijei também, explorando aquela intimidade recém-inventada.

É difícil descrever as emoções contraditórias que me sacudiram naquele momento, Camilo, porque com os anos a urgência do desejo desaparece, e esse tipo de lembrança se torna absurdo, como uma crise psicótica ocorrida com outra pessoa. Suponho que senti o despertar da sexualidade, prazer, excitação, curiosidade, de mistura com o temor de me comprometer demais e não poder retroceder, mas já não estou segura de nada que se relacione ao sexo. Esqueci como era.

Não comentei com ninguém o ocorrido, mas todos, até Torito, em sua ingenuidade, adivinharam, porque a qualidade do ar mudava quando Fabian e eu estávamos juntos. Com qualquer pretexto desaparecíamos na Passareira, impelidos por um vendaval prenunciador que era impossível esconder. As carícias foram se intensificando, como era de esperar, mas ele tinha ideias firmes sobre o que era permitido antes do casamento, e nada o fez fraquejar, nem seu amor ardente nem minha fácil complacência. Apesar do perigo de ficar grávida e da rígida formação que recebera, eu me rebelava contra a santimônia de Fabian, e, se ele tivesse permitido, teríamos feito amor nus, em vez daqueles amassos extenuantes, enredados na roupa. Esclareço, Camilo, que naquele tempo se pressupunha que as moças de meu meio social não se deitavam com os namorados nem com ninguém antes de se casarem. Tenho certeza de que muitas o faziam, mas nem sob tortura admitiriam. Ainda não havia sido inventada a pílula anticoncepcional.

Aqueles dias em que pudemos nos ver, antes de eu ir embora, descobrindo-nos mutuamente na cabana, escondidos no estábulo ou no milharal do pasto, selaram a determinação de Fabian de me amar para sempre, como ele haveria de repetir mil vezes em suas cartas. Em mim, despertaram a convicção serena de que algum dia me casaria com ele, porque o natural para qualquer mulher era tornar-se esposa e mãe.

— Fabian é um bom sujeito, decente, trabalhador, franco, muito apegado à família, como deve ser, e a profissão de veterinário é muito respeitável — dizia a tia Pilar.

— Esse rapaz é uma dessas pessoas leais que nascem para viver um único grande amor — acrescentava a tia Pía, romântica incurável.

— É uma chatice, tias. Ele é tão previsível que se pode saber como vai ser daqui a dez, vinte ou cinquenta anos — alegava eu.

— Melhor marido chato que mulherengo.

O que sabiam do amor e do casamento aquelas duas solteironas? Eu gostava do jogo sexual com Fabian, embora aquilo me deixasse ansiosa e nervosa, mas sentia pouca atração física ou sentimental por aquele homem alto, magro, de postura rígida, modos solenes e costumes puritanos. Sem dúvida seria um excelente marido, mas eu não sentia nenhuma urgência de me casar. Queria saborear um pouco de liberdade antes de optar por uma vida pacata ao lado dele, criando filhos na segurança imutável de seu clã. Imaginava aquele futuro como uma planície sossegada em que nada de inusitado podia acontecer, nada de encruzilhadas, encontros ou aventuras, um caminho reto até a morte.


8

Marko Kusanovic tinha emigrado da Croácia em fins do século XIX, aos catorze anos, sozinho e sem dinheiro, trazendo escrito num papel o nome de um parente que partira dez anos antes para a América do Sul. Nunca tinha visto um mapa e não imaginava a distância que ia percorrer, não estava seguro da direção por tomar e não falava nem uma palavra de espanhol. Pagou a passagem trabalhando num navio de carga, cujo capitão, outro croata, se compadeceu dele e o pôs como ajudante do cozinheiro. Ao chegar, não conseguiu localizar a pessoa anotada no papel, porque se enganara de país, e seu parente estava em Pernambuco. Era forte para a idade e ganhou a vida como estivador, mineiro e outros ofícios, até acabar sendo contramestre na serraria de Arsenio del Valle. Tinha o dom do mando e gostava da vida rude na cordilheira. Ali trabalhou durante onze anos, até que a serraria foi fechada; então se dispôs a começar de novo em qualquer outro emprego ao ar livre, porque não era homem de cidade. O telefonema de José Antonio foi providencial.

Ao se associar com Kusanovic, meu irmão concluiu o acordo com um aperto de mãos, o que teria sido suficiente a ambos, mas, por razões legais, precisaram registrar a sociedade num cartório de Sacramento. Ao firmar os documentos, José Antonio mudou seu sobrenome para Delvalle, gesto simbólico de romper com o passado e gesto prático de se distinguir do pai.

Em outros lugares já existiam casas pré-fabricadas de madeira, José Antonio tinha lido numa revista, mas ninguém tivera a ideia de fazê-las em nosso país, onde a cada momento vem um terremoto, destrói os alicerces da civilização e depois é preciso reconstruir depressa. Marko entendia de madeira, e José Antonio podia conseguir empréstimos, cuidar dos aspectos legais e da administração. Aprendera muito com os negócios do pai e também com sua queda final.

— Vamos ser conhecidos pela honestidade — disse a Marko.

A primeira coisa foi conceber uma planta básica com painéis de medidas fixas, uns lisos e outros com portas ou janelas. Para ampliar a construção, bastava multiplicar os módulos; assim, era possível fazer desde uma morada mínima até um hospital. Com as plantas debaixo do braço, José Antonio apresentou-se no Banco Regional de Sacramento e conseguiu o empréstimo necessário para resgatar a serraria que havia sido de seu pai. Ao se despedir, o gerente pediu que o aceitassem como sócio capitalista. Isso abriu para meu irmão as portas do mundinho financeiro da província, onde ninguém questionou o sobrenome Delvalle, e assim começou a empresa Casas Rústicas, que ainda existe, embora já não pertença à minha família.

No primeiro ano, José Antonio acampou com Marko nas florestas da cordilheira, enquanto ressuscitavam a serraria morta e organizavam o transporte de tábuas para a modesta fábrica de painéis, instalada nas cercanias de Sacramento. No ano seguinte dividiram o trabalho: Marko se encarregou da produção, e José Antonio abriu um escritório para vender as casas. Os primeiros pedidos foram de fazendeiros da província, que precisavam de moradias mínimas para trabalhadores temporários; depois, foram unidades para famílias de baixa renda. Nunca se havia visto tanta eficiência por aqueles lados. Chegavam alguns operários para fazer os alicerces e instalar a tubulação, e, assim que o cimento secava, aparecia um caminhão com os módulos, que eram erguidos em menos de dois dias; no terceiro, punha-se o telhado, que era festejado com um churrasco regado a vinho para os trabalhadores, gentileza de Casas Rústicas, o que acabou sendo boa publicidade.

A primeira moradia montada como amostra era funcional, mas parecia uma casinha de cachorro. Era tão básica que beirava o patético, no que concordamos Marko, José Antonio e eu. Eles sugeriram disfarçá-la com plantas, mas seria preciso um bosque para tapá-la por inteiro. Num lampejo de inspiração, tive a ideia de pôr no teto uma camada de sapé, a palha usada pelos indígenas em suas choças, para justificar o nome de casa rústica e esconder o metal corrugado, que lhe dava um aspecto muito ordinário. Foi um sucesso. José Antonio saiu retratado na imprensa da província junto à sua casa-modelo, com o comentário de que, além de ser confortável e barata, tinha o charme da peruquinha de sapé. Logo foi possível ampliar a fábrica de módulos e contratar um arquiteto.

Naquele ano convenci meu irmão a me dar um emprego, já que ele me devia o favor dos tetos de sapé. Eu sufocava no ambiente minúsculo de Santa Clara, onde tinha vivido tantos anos; precisava ver um pouco de mundo antes de me amarrar para sempre à imperturbável realidade que ia dividir com Fabian. Os Rivas queriam que eu estudasse para ser professora, pois eu tinha talento para ensinar e, além disso, experiência, mas não gosto de criança; a única coisa boa das crianças é que crescem.

Minha mãe e minhas tias concordaram que me faria bem passar um ano ou dois em Sacramento; só Torito fez objeções, porque não podia imaginar a vida sem mim; Fabian também, pela mesma razão. A família Schmidt-Engler, em compensação, deve ter celebrado aquela separação temporária que, com um pouco de sorte, podia ser definitiva. Sem dúvida achavam que na cidade poderia aparecer algum rapaz apropriado para uma moça como eu; enquanto isso, eles poderiam mobilizar algumas candidatas mais apropriadas para Fabian na colônia alemã.

Os preparativos para a viagem começaram com antecipação, porque eu precisava de um enxoval; não podia andar por Sacramento de macacão de brim, tamancos de madeira e poncho indígena. Miss Taylor nos mandou da capital vários moldes para fazermos vestidos e material para chapéus; a máquina de costura não teve descanso durante semanas. Até a tia Pilar, que em geral preferia ferrar cavalos e arar a terra com o tio Bruno, se somou ao esforço coletivo. Improvisaram um cabideiro com uma barra de ferro, no qual foram se acumulando meus trajes de cidade: vestidos copiados das revistas de miss Taylor, coletes, um casaco com gola e punhos de pele de coelho, anáguas de seda e camisolas. Além dos tecidos trazidos por José Antonio, contávamos com os vestidos elegantes de minha mãe, que não eram usados fazia dez anos e foram descosturados para fazer outros da moda.

— Você precisa cuidar dessa roupa, Violeta, porque ela vai ser a mesma do seu enxoval de noiva — avisou a tia Pilar com a tesoura na mão, porque também chegara a hora de cortar minha trança.

Todos, até minha mãe, que raramente deixava a cama ou o cadeirão de vime, foram à estação despedir-se de mim. Viajei com três malas pesadas e uma caixa de chapéus, as mesmas que eram usadas anos antes, quando fugimos para o Desterro, e um cesto enorme com o piquenique preparado por Facunda, que deu até para dividir com outros passageiros. No último instante, para evitar minha recusa, Fabian me passou pela janela do trem um envelope com dinheiro e uma carta de amor, escrita em termos tão apaixonados que me perguntei quem a teria ditado, porque me custava imaginar que ele pudesse se expressar com tanta eloquência. Ficava completamente gago quando falava de seus sentimentos, mas com papel e pena perdia a inibição.

Nos últimos dias fui contagiada pelo nervosismo geral; era a primeira vez que viajava sozinha, e Fabian propôs me acompanhar até a estação de Sacramento, onde seria esperada por José Antonio, mas, instada por Lucinda, que interrompera a excursão de verão para ir com Abel despedir-se de mim, recusei.

— Você não é nenhuma criança. Defenda sua independência, não deixe ninguém decidir por você. Para isso precisa ser capaz de se virar sozinha. Entendeu? — disse-me.

Nunca esqueci essa advertência.

Fazia um ano que eu estava em Sacramento, trabalhando como assistente de meu irmão José Antonio, quando o tio Bruno nos chamou porque minha mãe passava muito mal. Não era a primeira vez que recebíamos uma daquelas ligações alarmantes. A saúde de minha mãe começara a decair vinte anos antes, e tantas vezes ela imaginou, sem muito fundamento, que estava agonizando, que acabamos prestando pouca atenção a suas doenças. Naquela ocasião, porém, a situação era séria. O tio Bruno pediu que fôssemos depressa e localizássemos meus irmãos, para que tivessem tempo de se despedir dela.

Foi assim que nós, os seis irmãos del Valle, nos reunimos pela primeira vez desde o funeral de nosso pai. Haviam-se passado dez anos, e eu mal reconheci quatro deles, transformados em pais de vários filhos, profissionais aclamados na sociedade, senhoraços conservadores e de boa condição econômica. Acho que eles também sentiram que eu era uma desconhecida. Lembravam-se de mim como a menininha de tranças que tinham visto pela última vez na janela de um trem e viram-se diante de uma mulher de vinte e um anos. Carinho é coisa que se cultiva, Camilo, é preciso irrigá-lo como a uma planta, mas nós o deixamos secar.

Encontramos minha mãe inconsciente, reduzida no tamanho, só pele e ossos. Achei que tínhamos chegado tarde, que ela tivesse morrido antes de eu ter tempo de lhe dizer que a amava, e senti aquelas dores de estômago que costumam me atormentar nos piores momentos de angústia. Minha mãe estava com a pele azulada, os lábios e os dedos arroxeados pela asfixia que combatera durante anos e que finalmente a derrotava. Tentava aspirar com dolorosa dificuldade em sorvos esporádicos; de repente, passava alguns minutos sem respirar e, quando achávamos que tinha partido, sorvia ar desesperadamente. Sua cama tinha sido posta na salinha, depois de retirarem a mesa e o sofá, para ela poder ser atendida. Ao saber do que estava acontecendo, Fabian chegou algumas horas depois, trazendo um médico, marido de uma de suas irmãs. Era impossível transladar a doente; havia alguns consultórios na região, mas o hospital mais próximo ficava em Sacramento. O médico diagnosticou enfisema pulmonar em grau muito avançado; não havia o que fazer, disse, a paciente tinha poucos dias de vida. Era terrível a possibilidade de ver minha mãe sofrer daquela maneira durante dias, e nisso estivemos todos de acordo. Como último recurso, ao verificar que suas mãos mágicas não conseguiam acalmar o martírio da irmã, a tia Pía mandou chamar Yaima.

Abel e Lucinda foram buscá-la em sua comunidade. Aquela mulher provinha de uma estirpe de curandeiras que lhe haviam transmitido o dom da cura, dos sonhos premonitórios e das revelações sobrenaturais, que ela desenvolveu com a prática e a boa conduta. “Algumas usam o poder para fazer o mal. Outras cobram para curar, e isso mata o dom”, dizia. Ela era o vínculo entre os espíritos e a terra, sabia de plantas e ritos, podia extirpar a energia negativa e restaurar a saúde, quando necessário. Mandou meus irmãos sair da casa e, rodeada apenas por minhas tias, Lucinda, Facunda e eu, começou seu trabalho, que consistia em ajudar María Gracia a transitar para o Outro Lado, tal como se ajuda a criança que vai nascer no trânsito para Este Lado, segundo nos explicou.

Fazia três anos que tínhamos eletricidade na propriedade dos Rivas, puxada sem permissão dos cabos de alta tensão, mas Yaima ordenou que as luzes e o rádio fossem desligados, acendeu velas e as pôs em círculo ao redor da cama, e encheu o ambiente de fumaça de sálvia, para limpar a energia.

— A terra é a Mãe, ela nos dá vida, a ela rogamos — disse.

Com uma venda preta nos olhos examinou a doente, palpando-a meticulosamente.

— Com as mãos ela vê o invisível — disse-me Facunda.

Depois Yaima tirou a venda, retirou uns pós da bolsa, misturou-os com um pouco de água e deu o líquido à minha mãe com uma colherinha. Duvido que a moribunda conseguisse engolir, mas algo da beberagem ficou na boca. Yaima pegou o tambor, o mesmo que eu havia visto em sua choça da primeira vez em que fui à sua comunidade, e começou a bater ritmicamente enquanto cantava em sua língua. Mais tarde Facunda nos explicou que estava chamando o Pai Celestial, a Mãe Terra e os espíritos ancestrais da moribunda para que viessem buscá-la.

O ritual do tambor durou horas, com uma única interrupção, para reacender o ramo de sálvia, limpar a energia com a fumaça e dar outra dose da beberagem à paciente. No começo, as tias Pía e Pilar rezavam suas orações cristãs; Lucinda observava, tentando memorizar os detalhes para sua caderneta de anotações; Facunda fazia coro ao recitativo de Yaima em sua língua, e eu, encolhida de dor de estômago, acariciava minha mãe, mas pouco tempo antes do encerramento, a fumaça, o tambor e a presença da morte produziram em nós um aturdimento insuperável. Ninguém se movia. Cada batida do tambor reverberava em meu corpo, até que deixei de me defender da dor e sucumbi àquele estranho sopor.

Caí em transe, não há outra explicação para aquela fuga do tempo e do espaço. É impossível descrever a experiência de desvanecer-se no vazio negro do universo, desprendida do corpo, dos sentimentos e da memória, sem o cordão umbilical que nos une à vida. Nada restava, nem presente nem passado, e, ao mesmo tempo, eu era parte de tudo o que existe. Não posso dizer que tenha sido uma viagem espiritual, porque também desapareceu aquela intuição que nos permite crer na alma. Suponho que foi como morrer e que voltarei a sentir o mesmo quando chegar minha hora final. Voltei à consciência quando o som hipnótico do tambor parou.

Terminada a cerimônia, Yaima, tão extenuada como as outras mulheres, aceitou o mate que Facunda lhe levou e depois desabou num canto, para descansar. A fumaça começou a se dissipar e vi que minha mãe estava imersa em sono profundo, livre do suplício da asfixia. Durante o restante da noite, sua respiração foi imperceptível e sem esforço; algumas vezes aproximei um espelho de sua boca para verificar se continuava viva. Às quatro da madrugada, Yaima bateu três vezes o tambor e anunciou que María Gracia tinha ido ver o Pai. Eu estava deitada na cama ao lado de minha mãe, agarrada à sua mão, mas seu trânsito foi tão suave que não percebi que ela havia falecido.

Os seis irmãos del Valle levamos o caixão de minha mãe de trem para a capital, a fim de enterrá-la junto ao marido no túmulo da família. Não consegui chorar sua morte durante meses. Pensava nela frequentes vezes com um aperto no peito, examinando os anos que ela esteve em minha vida e condenando sua melancolia, o fato de não ter gostado de mim o suficiente e de ter feito tão pouco para nos aproximar. Estava aborrecida com a oportunidade que havíamos perdido como mãe e filha.

Uma tarde em que fiquei sozinha no escritório, ocupada com uns pedidos, senti que o ambiente ficava subitamente gelado e, ao levantar a vista para verificar se a janela estava aberta, vi minha mãe de pé junto à porta, com o casaco de viagem e a carteira na mão, como se estivesse esperando o trem na estação. Fiquei imóvel e parei de respirar para não a assustar.

— Mamãe, mamãe, não vá embora — pedi sem voz, mas um instante depois ela desapareceu.

Comecei a chorar sem controle, e aquela torrente de lágrimas foi me lavando por dentro, até que nada ficou do rancor, da culpa e das más recordações. Desde então, o espírito de minha mãe me ronda com passos leves.


9

O luto pela morte de minha mãe que, segundo o costume do tempo, durava um ano e a Segunda Guerra Mundial atrasaram meu casamento com Fabian. Sua profissão era pouco apreciada, porque a agricultura estava estagnada no século anterior, o que incluía os animais. Em algumas fazendas de imigrantes europeus estavam sendo copiados os métodos eficientes dos Estados Unidos, mas os pequenos agricultores, como os Rivas, aravam com mulas ou com bois emprestados. O gado era como a Clotilde e a Leonor, vacas pacientes e de boa disposição, mas sem ares de grandeza. Humildes.

Naquela província, os veterinários trabalhavam como vendedores ambulantes; iam de porta em porta vacinando e atendendo animais doentes ou acidentados; ninguém ficava rico com isso, mas nenhum de nós dois ambicionava enriquecer. Fabian amava os animais; não exercia por dinheiro, mas por vocação, e eu havia levado existência simples e não imaginava outra diferente. Bastava termos certa comodidade, o que não era pedir muito, porque contávamos com o apoio do clã Schmidt-Engler, já conformado com a inevitabilidade de meu papel como noiva de um deles. O pai de Fabian deu-lhe de presente vários hectares, tal como havia feito com os outros filhos, e José Antonio se ofereceu para instalar ali uma de nossas casas rústicas, que eu mesma desenhei pensando nos filhos que viriam.

As notícias da Segunda Guerra Mundial na Europa eram alarmantes, mas distantes. Apesar da pressão dos americanos para declararmos guerra ao Eixo, nosso país se mantinha neutro por razões econômicas e de segurança; éramos muito vulneráveis por mar, não podíamos nos defender em caso de ataque dos temíveis submarinos alemães. Também eram levadas em conta as numerosas colônias alemãs e italianas; existia até um partido nazista que causava grande alvoroço, cujos integrantes marchavam pelas ruas desfraldando bandeiras e usando a cruz gamada no braço. Japoneses não havia por lá, que me lembre.

Os Schmidt-Engler, como todos os alemães da região, simpatizavam com o Eixo, mas evitavam criar inimizade com o restante das pessoas que apoiavam os Aliados. Fabian ficava calado; o conflito não era de sua conta. Eu não entendia os pormenores nem as razões daquela guerra, e para mim pouco importava quem ganhasse, apesar de meu irmão e os Rivas terem tentado me doutrinar contra Hitler e o fascismo. Ainda não eram conhecidas as piores atrocidades dos campos de extermínio e do genocídio sistemático; disso ficamos sabendo com detalhes no final da guerra, quando foram publicadas as fotografias e divulgados os filmes daquele horror.

José Antonio e os Rivas acompanhavam os movimentos das tropas, que eles marcavam com alfinetes num mapa da Europa, e era óbvio que os alemães iam dando mordidas e engolindo o continente. Em 1941 o Japão bombardeou a frota americana de Pearl Harbor, e o presidente Roosevelt declarou guerra ao Eixo. A intervenção dos Estados Unidos foi a única esperança de deter o avanço dos alemães.

Enquanto na Europa os homens se massacravam, reduzindo cidades antigas a escombros e brasas, com um saldo de milhões de viúvas, órfãos e refugiados, Fabian dedicava-se à inseminação artificial. De animais, claro, não de pessoas. Não foi ideia dele, era algo que se praticava havia anos com ovelhas e porcos, mas ele teve a ideia de fazer o mesmo com bovinos. Não vou entrar em detalhes prosaicos; basta dizer que o procedimento me parecia então e continua parecendo uma tremenda falta de respeito com as vacas. E não quero pensar como obtinham o indispensável dos touros. Antes de Fabian ter sucesso com seus experimentos, a reprodução ocorria de acordo com as regras da natureza, numa combinação de instinto e sorte. O touro montava na noiva e, em geral, o resultado era um bezerro. Os melhores touros eram alugados; era preciso transferi-los, destinar-lhes um pasto e vigiá-los, porque eles não têm muito bom gênio. Isso explica por que muitas vezes as vacas opunham objeções.

Fabian estudou a forma de preservar o sêmen de animais de boa raça por vários dias, o que lhe permitia inseminar com um único touro centenas de vacas espalhadas por quilômetros de distância, desde que fizesse tudo depressa. Atualmente o sêmen fica guardado anos e viaja pelo mundo, de modo que uma vaca jovem do Paraguai pode ter descendência de um touro do Texas que já morreu, mas na época isso teria sido ficção científica.

Com ajuda do pai, o único que entendeu de imediato as vantagens do conceito, porque tinha um exército de vacas na fazenda, Fabian montou um laboratório num galpão, onde desenvolveu a técnica, os implementos necessários e a melhor forma de usá-los. Nos meses e anos seguintes, viveria obcecado por esse assunto, que a mim parecia pornográfico, sonhando com suas múltiplas possibilidades: cavalos de corrida, cachorros e gatos com pedigree, animais exóticos do zoológico e outros em vias de extinção. Admito que caçoei durante muito tempo, enquanto ele continuava dedicado à sua atividade, sem se amolar com meu sarcasmo. A única coisa que me pediu foi que eu não o pusesse em situação ridícula com meus comentários diante de outras pessoas.

Parei de rir quando constatei os benefícios de seu projeto para meu sogro e outros agricultores. Por um bom tempo, ele foi o veterinário mais conhecido do país; era entrevistado na imprensa, dava palestras, escrevia manuais, viajava para treinar trabalhadores do campo e melhorou o gado bovino de vários países latino-americanos. Seu maior problema, como me explicou muitas vezes, era encontrar a forma de preservar o sêmen durante longo tempo, mas isso não aconteceu antes da década de 1960, parece. O prestígio de Fabian não se traduzia em dinheiro; sem a ajuda do pai, ele não poderia ter continuado suas pesquisas.

Apesar das exigências do trabalho, que deixavam pouco tempo disponível para outras coisas, Fabian continuava me pedindo em casamento com uma tenacidade germânica. O que estávamos esperando? Eu tinha vinte e dois anos e já passara dois em Sacramento, batendo asas, dizia. Isso de bater asas era piada; eu vivia e trabalhava com meu irmão, que me vigiava como um carcereiro, e Sacramento era uma cidade sonolenta de gente puritana, intolerante e mexeriqueira. O sítio dos Rivas apresentava mais desafios intelectuais que a capital da província.

Minha ex-preceptora e Teresa Rivas foram amantes numa época em que a homossexualidade era privilégio de aristocratas e artistas: os primeiros porque a praticavam com discrição, como um de meus parentes distantes, cujo nome não vale a pena mencionar, e os segundos porque se lixavam para as normas sociais e os preceitos religiosos. Os casos conhecidos eram pouquíssimos: algum jornalista, escritores, uma poetisa de fama mundial, alguns atores, mas havia muitos outros em segredo.

No início, miss Taylor e Teresa Rivas, pobres como ratos de igreja, moravam na água-furtada de Teresa, mas pouco tempo depois miss Taylor conseguiu emprego como professora de inglês num colégio de meninas, onde ensinaria durante vinte anos sem que ninguém questionasse sua vida privada. Aos olhos do mundo, ela era uma solteirona, assexuada como as amebas. Ganhava pouco, mas também dava aulas particulares, o que lhes possibilitou alugar uma casinha modesta num bairro de classe média, onde finalmente instalaram o piano de cauda. Enquanto pôde, José Antonio lhes passou uma mesada, porque o salário de miss Taylor mal dava para os gastos básicos.

Teresa Rivas deixou o emprego na Companhia Nacional de Telefones para se dedicar por inteiro à luta feminista. Colaborava com organizações defensoras dos direitos da mulher: ao voto, à guarda dos filhos, que antes era exclusiva do pai, a dispor de rendimentos próprios e de proteção no trabalho, à defesa contra a violência, enfim, a favor de muitas mudanças fundamentais nas leis, que hoje damos por assentadas. As feministas também propunham o direito ao aborto e ao divórcio, que a Igreja católica condena nos termos mais radicais. Naquela época ainda existia inferno. Teresa dizia que, se os homens parissem e tivessem de aguentar um marido, o aborto e o divórcio seriam sacramentos. Achava que os homens não têm direito a opinar, muito menos a legislar, sobre o corpo feminino, porque não conhecem a fadiga de gestar, a dor de parir e a escravidão eterna da maternidade.

Eram pensamentos tão radicais, que Teresa ia para a cadeia com certa regularidade por publicar suas ideias, criar tumultos de rua, incitar à greve, irromper no Congresso e, certa vez, agredir o presidente da República num ato público. Nos jornais escreveu-se que uma feminista desvairada havia atirado um tomate maduro no presidente, durante a inauguração de uma usina de leite em pó. Teresa alegava que aquele era um estabelecimento dos americanos para substituir o milagre do leite materno por lixo enlatado. Ficou presa quatro meses, até que José Antonio conseguiu soltá-la.

As visitas dessas duas mulheres a Santa Clara no inverno constituíam nossa festa anual. Traziam as novidades da capital e as ideias progressistas do mundo, que em nós produziam uma mescla de espanto e admiração. Suponho que em algum momento José Antonio aceitou o fato de que miss Taylor nunca se casaria com ele, mas duvido que soubesse o motivo. Nenhum de nós desconfiava que entre elas houvesse mais que uma extraordinária amizade. Confesso que a mim nunca ocorreu essa ideia.

A luta travada por Teresa Rivas e outras mulheres como ela, para mudar os costumes e as leis, foi dando frutos paulatinamente. Progredimos a passo de tartaruga, mas em minha longa vida constatei o muito que avançamos. Acho que ela e miss Taylor estariam orgulhosas do que obtiveram e continuariam lutando pelo que falta fazer. Ninguém nos dá nada, dizia Teresa, é preciso conseguir na marra, e, se a gente se descuidar, tiram o que já temos.

Eu nunca tinha falado desses assuntos com minha mãe e minhas tias, nem com Fabian, muito menos com a família dele. Escondida de meu noivo, lia os livros e as revistas que Teresa me dava e os comentava apenas com Lucinda e Abel, que eram quase tão radicais como a filha. Sentia uma rebeldia surda, uma raiva contida ao pensar que ia me casar, ter filhos, transformar-me em dona de casa e levar uma vida banal à sombra de meu marido.

—Não se case se não estiver convencida de que consegue passar o resto da vida com Fabian — disse-me miss Taylor.

— Ele me esperou muito tempo. Se não me casar agora, tenho de romper este noivado eterno.

— É melhor do que se casar em dúvida, Violeta.

— Vou fazer vinte e cinco anos. Tenho idade de sobra para me casar e ter filhos. Fabian é um homem maravilhoso e gosta muito de mim, será ótimo marido.

— E você? Acha que será boa esposa? Pense bem, Violeta. Você não me parece apaixonada. Sempre foi rebelde, escute a voz da intuição.

As dúvidas de miss Taylor eram semelhantes às minhas, mas eu estava comprometida com Fabian, aos olhos de todos éramos um casal, não havia razão válida para dar o fora naquele homem bom. Minha ideia era de que, sem ele, estava condenada a ficar solteira. Não tinha um talento ou vocação especial que me indicasse um caminho diferente do que se esperava de uma mulher. Aquela rebeldia que miss Taylor mencionava, em vez de me dar energia para segurar o destino em minhas mãos, me esmagava. Queria ser como ela e Teresa, mas o preço era alto demais. Não me atrevia a trocar segurança por liberdade.

Fabian e eu nos casamos em 1945, depois de quase cinco anos de noivado, supostamente platônico, como se usava, mas já fazia tempo que eu não era virgem; deixei de ser virgem sem premeditação, em algum dos malabarismos com Fabian. Descobri naquela noite, ao ver minha roupa íntima manchada de sangue, e eu não estava menstruada, mas fiquei calada, não disse a Fabian. Não me perguntes por quê, Camilo. Nossos agarramentos continuaram como sempre: nós nos excitávamos até a demência, seminus, culpados, desconfortáveis, temerosos e apressados, para que ele acabasse envergonhado, e eu, frustrada. Nossos encontros eram bem menos numerosos desde que eu me mudara para Sacramento. Quando ele chegava, ia para um hotel, onde poderíamos nos encontrar, se ele tivesse permitido. Na cama de um bom hotel, teríamos feito amor com premeditação e preservativos, que estavam ao alcance de qualquer homem. Às mulheres não eram vendidos. Precisaríamos ser muito discretos, porque, se José Antonio desconfiasse, me mataria, como me ameaçou mais de uma vez. Meu dever era cuidar da honra dele e da família, dizia, mas, quando lhe perguntei que relação havia entre a honra dele e minha virgindade, ficou indignado.

— Insolente! Essas ideias é a Teresa que põe na sua cabeça!

Em alguns aspectos, meu irmão era um troglodita, mas não acredito que tentaria concretizar essa ameaça. No fundo, sempre foi um bom sujeito.

Deixa-me abrir um parêntese, Camilo, para fazer alguns comentários sobre anticoncepcionais, embora não ache que o assunto te diga respeito. Minha mãe não pôde evitar ter seis filhos e várias gravidezes malogradas, até empregar o método recomendado pela primeira médica do país, que andava divulgando informações, com risco de ser excomungada pela Igreja e presa pelas autoridades. Seguindo as instruções do folheto da doutora, que minha mãe estudou às escondidas do marido, ela fazia uma ducha vaginal de glicerina antes do ato e outra com uma solução de água morna e peróxido depois, usando uns dispositivos que ocultava numa caixa de chapéu. Sabia que Arsenio del Valle, que se casara para prolongar o prestígio de seu sobrenome, gerando o maior número possível de descendentes, teria um ataque cardíaco se descobrisse o conteúdo da chapeleira. Ela o ouvira pontificar com frequência sobre o sagrado dever das mulheres de trazer filhos sadios ao mundo, tal qual fizera a mãe dele. Quando anunciei que, finalmente, ia me casar, minha tia Pía me entregou os componentes para a ducha, embrulhados em papel de jornal, para disfarçar, e me explicou seu uso falando baixinho, meio morta de vergonha.

No fim, acabaram-se minhas desculpas para novos adiamentos, e anunciamos que nos casaríamos em outubro, sem desconfiarmos que a guerra mundial terminaria um mês antes. O usual era que a família da noiva oferecesse a festa de casamento, mas com muita delicadeza, para não nos ofender, os Schmidt-Engler insistiram em celebrá-la no hotel Bavaria. Gozavam de um nível social e econômico superior ao nosso.

Minhas tias desempoeiraram a máquina de costura de pedal para completar meu enxoval, ajudadas por Lucinda, que já não saía a cavalo para ensinar, porque aos setenta e tantos anos seu corpo já não dava para tanto sacolejo, como dizia. Fizeram lençóis com as iniciais bordadas dos noivos e toalhas de mesa de vários tamanhos, mas eu não quis que ajustassem para mim o vestido de noiva de minha mãe, que havia sobrevivido numa caixa com naftalina desde fins do século anterior. Desejava um vestido próprio, nada de rendas cor de manteiga. Miss Taylor comprou na capital um vestido de noiva da moda e o mandou no trem. Era de cetim branco, sem adornos, cortado de viés, para ressaltar a silhueta, com uma touca na cabeça que me dava um ar de enfermeira.

Casamo-nos numa igreja encantadora, construída pelos primeiros imigrantes alemães na região. Entrei de braço dado com José Antonio, o único de meus irmãos que esteve presente, enquanto minhas tias choravam de emoção, acompanhadas pelos Rivas, por Torito, Facunda, miss Taylor, Teresa e os habitantes da pequena aldeia de Nahuel em massa. De um lado da nave estavam a família e os amigos do noivo, altos, luminosos e bem vestidos; do outro, estavam os meus, de aspecto bem mais humilde.

Quem chegou de surpresa foi Marko Kusanovic, que devia estar com uns sessenta anos; transformara-se num recluso, e o víamos raras vezes. Tinha um apartamento espartano em Sacramento, para supervisionar a fábrica, mas, assim que podia, ia percorrer os vastos pinheirais que tínhamos semeado para obter madeira sem exterminar os bosques nativos, ou a serraria das montanhas, onde era feliz. A administração, a contabilidade e os rendimentos da empresa não tinham a menor importância para ele; se meu irmão não tivesse feito voto de honestidade, poderia tê-lo espoliado facilmente.

Marko exibia frondosa barba de profeta e vestia-se como caçador, embora fosse incapaz de matar uma lebre. Deu-me de presente uma escultura talhada em pedra por ele mesmo, e assim ficamos a par daquele talento, que ele guardara bem. Soubemos que tinha um filho de quatro ou cinco anos, surgido tarde em sua vida. A mãe era uma jovem indígena, formada na escola secundária, que trabalhava numa tecelagem e estava criando o menino até que ele tivesse idade para ir a um bom colégio. Marko o reconhecera; o menino se chamava Anton Kusanovic e, segundo o pai, era muito inteligente.

— Vou lhe dar a melhor educação possível; ele e a mãe têm vida boa — disse, emocionado.

O fim da guerra, com a derrota da Alemanha e a morte de Hitler, pesava no ar como uma nuvem negra entre os colonos alemães. Ninguém mencionou o fato em meu casamento. A simpatia pelo Eixo ou pelos Aliados definia as pessoas e provocava discussões desagradáveis, que tínhamos evitado durante seis anos, e não era o caso de estragar a festa de casamento com aquele assunto. Os habitantes de Nahuel tinham demonstrado pouco interesse pelo conflito na Europa porque aquilo ocorria muito longe e não os afetava, mas havia sido importante para os Rivas, meu irmão, miss Taylor e Teresa. Tínhamos festejado a paz naquele 2 de setembro com um cordeiro assado, garrafões de chicha e a magnífica confeitaria de Facunda, sem incluir Fabian.

Finalmente pudemos fazer amor nus numa cama de hotel, como tantas vezes imaginei. Meu marido mostrou ser atencioso e terno.

No dia seguinte ao casamento, tomamos o trem para a capital, onde eu não estivera desde o enterro de minha mãe, quando não tive oportunidade de ver nada além do cemitério e só fiz algumas visitas a meus irmãos, mas para Fabian nada lá era novidade, pois ele ia com frequência por motivo de trabalho. A cidade tinha mudado muito; eu gostaria de ter ficado uns dias para percorrê-la, voltar a ver o bairro de minha infância e ir ao teatro, mas a lua de mel seria no Rio de Janeiro, onde Fabian ia dar uns cursos. Os voos comerciais, muito limitados durante os anos de guerra, haviam sido retomados. A experiência de voar pela primeira vez se traduziu em muitas horas aprisionada em meu traje de viagem: cinta, meias, saltos altos, terninho de saia e colete justos, chapéu, luvas e estola de pele, mareada, assustada e vomitando, com breves descansos mais ou menos a cada quatro horas, quando o avião fazia escala para se abastecer de combustível.

Mal consigo me lembrar de minha lua de mel, porque contraí um parasita intestinal e passei quase todo o tempo observando da janela a esplêndida praia de Copacabana e tomando chá, em vez das famosas caipirinhas. Fabian, quando não estava trabalhando, cuidava de mim com ternura. Prometeu que voltaríamos ao Brasil no futuro para uma lua de mel de verdade.

Fiel à palavra dada, meu irmão construiu nossa casa em uma semana e a coroou com teto duplo do melhor sapé da região. Nos anos em que trabalhei para ele, José Antonio havia prosperado mais do que jamais sonhou e posso dizer que tenho parte nesse mérito, porque tinha ideias que, por direito, deveriam ser do arquiteto. Uma das mais rentáveis foi construir uma comunidade de Casas Rústicas à margem do lago e vendê-las a preço exorbitante na capital, como casas de veraneio.

— É besteira, Violeta, estamos muito longe da capital, ninguém vai viajar tantas horas de trem ou de automóvel para vir tomar banho num lago gelado — alegou José Antonio, mas acabou concordando.

O resultado foi tão fantástico, que depois sobravam interessados em investir em projetos semelhantes. Eu me encarregava de procurar os lugares apropriados e gerir a compra do terreno e os alvarás de construção.

— Quero uma boa comissão por cada uma das casas que vendermos — exigi de meu irmão.

— Como assim, Violeta! Por acaso não somos uma família? — respondeu.

— Por isso mesmo.

Naquele tempo eu era muito frugal; tinha poucos gastos, porque morava com José Antonio, e em Sacramento não havia tentações. Juntei dinheiro, consegui um empréstimo no mesmo Banco Regional onde mantínhamos as contas das Casas Rústicas, comprei um terreno e financiei oito de nossas casas, com uma piscina comum e rodeadas de jardins, para justificar o preço. Foram muito bem vendidas, paguei o empréstimo e repeti a operação. Consegui construir quatro comunidades antes de me casar e, como expliquei a Fabian, planejava continuar investindo naquele negócio e em outros que se apresentassem no futuro. Aquilo era inusitado. As mulheres de meu ambiente social não trabalhavam, muito menos na província, onde vivíamos com várias décadas de atraso.

Garanti a Fabian que meu trabalho não interferiria em meu papel de boa esposa, dona de casa e futura mãe, e ele teve de aceitar a contragosto. Além do constrangimento social, significava que sua mulher ia ter um pé no campo e outro na cidade. Sou obstinada e, se me ponho alguma coisa na cabeça, não largo mais. Por isso, enquanto ele estudava, fazia experiências, escrevia e ensinava com a compulsão de um sábio louco, eu me encarregava dos gastos domésticos, poupava e pagava ao tio Bruno uma pensão mensal por minhas tias; ele a recusava toda vez, mas eu a depositava numa conta para emergências, que sempre ocorriam: Clotilde morreu, e ele precisou substituí-la, uma tempestade derrubou a cerca, a colheita foi ruim, o poço secou, a vesícula de Facunda parou de funcionar e foi preciso financiar sua operação.

O fato de eu trabalhar, ganhar dinheiro e manter a casa era ofensivo para meu marido. Eu me sentia culpada e tentava minimizar o esforço, nunca fazia referência a meu trabalho em público e, se alguém tocasse no assunto, eu dizia que era um passatempo temporário para me distrair e, claro, largaria tudo quando tivesse filhos. No fundo, porém, já não me considerava impotente e inútil, porque percebi que tinha habilidade para fazer dinheiro. Herdei-a de meu pai, com a diferença de que sou prudente, ao passo que ele era temerário. Eu penso e calculo, ele fazia falcatruas e desafiava a sorte.

Por que o amor morre? Essa é uma pergunta que me fiz muitas vezes. Fabian não me deu nenhuma razão para deixar de amá-lo; ao contrário, era um marido ideal, não me importunava nem pedia nada. Era e continuou sendo até morrer um homem fino. Vivíamos bem com o que eu ganhava e com a ajuda que ele recebia da família, tínhamos uma casa aconchegante, cuja fotografia apareceu numa revista de arquitetura como exemplo de construção pré-fabricada; os Schmidt-Engler me aceitaram tão bem quanto às outras noras, e eu me integrei à colônia alemã, embora nunca tenha conseguido aprender uma só palavra de seu idioma. Meu marido se tornara o especialista mais reconhecido do país em sua atividade, e eu tinha sucesso em todos os negócios que me passassem pela cabeça. Em resumo, tínhamos uma vida que, aos olhos dos outros, era quase perfeita.

Eu gostava de Fabian, mas sei que nunca fui apaixonada por ele, como miss Taylor me fez ver em mais de uma ocasião. Em nossos cinco anos de noivado cheguei a conhecê-lo pelo direito e pelo avesso, casei-me sabendo como ele era e que não mudaria, mas ele me conhecia pouco, e eu mudei muito. Aborrecia-me com seu temperamento amável e previsível, sua obsessão por procriadores e vacas prenhes, sua indiferença diante do que não lhe dizia respeito no plano pessoal, sua rigidez, seus princípios inamovíveis e antiquados, sua arrogância de ariano puro, fortalecida por anos de propaganda nazista, que chegava até aqui, no outro extremo do mundo. Se bem que não posso censurar esse seu senso de superioridade, porque todos aqui acreditávamos que os imigrantes da Europa eram melhores que nós.

Este é um país muito racista; sabes bem, Camilo, como tratamos os indígenas. Um parente meu, que era deputado em meados do século XIX, propunha submeter os indígenas à força ou eliminá-los, como fizeram nos Estados Unidos, porque eram brutos indomáveis, inimigos da civilização, viviam afundados em vícios, ociosidade, embriaguez, mentira e traição, e todo um conjunto de abominações que constituem a vida selvagem, segundo suas palavras exatas. Esse conceito estava tão difundido, que o governo convidava europeus, especialmente alemães, suíços e franceses, a virem colonizar o Sul para melhorar a raça. Se não tivemos imigração africana ou asiática foi porque os cônsules tinham instruções para impedir; judeus e árabes também não eram bem-vindos, mas chegavam de qualquer modo. Suponho que os colonos estrangeiros, que desprezavam os indígenas, também não tinham opinião favorável sobre os mestiços.

— Você não é mestiça, Violeta, todos os nossos antepassados são espanhóis ou portugueses, não há uma gota de sangue de índio em nossa família — disse a tia Pilar quando falamos do assunto.

Enquanto eu conservava as mesmas dúvidas que tivera antes de nos casarmos, Fabian nunca questionou nossa relação e não percebeu que eu estava me afastando, porque isso era inconcebível para ele; tínhamos feito juramento perante Deus e a sociedade de nos amar e respeitar até a morte. Isso significa muito tempo. Se eu tivesse ideia de como pode ser longa a vida, teria modificado essa cláusula do contrato matrimonial. Uma vez insinuei minha frustração a meu marido, com a cortesia habitual que havia entre nós, e ele não se preocupou nem um pouco. Deveria ter sido mais categórica para que ele prestasse atenção. Respondeu que no começo os casais costumam ter dificuldades, que é normal, mas com o tempo aprendem a conviver, ocupam seu lugar na sociedade e constituem sua família. Assim havia sido sempre, era um ditame biológico. Quando tivéssemos filhos eu me sentiria satisfeita; “a maternidade é o destino da mulher”, disse.

Esse foi o maior problema que tivemos: os filhos não chegavam. Imagino que, para um especialista em reprodução como Fabian, a infertilidade de sua mulher devia ser uma afronta pessoal, mas ele nunca se expressou assim diante de mim. Só me perguntava de vez em quando, esperançoso, se tínhamos alguma novidade, e em certa ocasião comentou de passagem que a inseminação artificial em seres humanos era conhecida desde a época dos sumérios, e que, de fato, a rainha Joana de Portugal teve uma filha com esse método em 1462. Respondi que ele não me confundisse com uma de suas vacas. A rainha Joana não voltou a ser mencionada.

Assustava-me a possibilidade de ter filhos, sabia que seria o fim de minha relativa liberdade, mas não os evitei, a não ser pelas promessas ao padre Quiroga, que na realidade não entram na categoria de anticonceptivos. Todo mês, ao constatar que menstruava, suspirava de alívio e pagava a devida quota ao santo numa igreja de Sacramento, onde havia um espantoso quadro a óleo do pároco com uma pá na mão, rodeado de órfãos.

Meu marido desejava uma mulher tão incondicional no amor quanto ele o era, alguém que se somasse a seu projeto de vida, que o assistisse e lhe devotasse a admiração de que se achava merecedor, mas teve o azar de se apaixonar por mim. Eu não podia lhe dar nada disso, mas juro que tentei tenazmente, porque essa era a missão que me tocava. Supus que, de tanto fingir, acabaria sendo a esposa perfeita que se esperava de mim, sem aspirações próprias, existindo através do marido e dos filhos. A única pessoa conhecida que desafiava esse ditame social e divino era Teresa Rivas, que professava sem disfarces seu horror ao casamento porque o considerava fatal para as mulheres.

Eu conseguia enganar tão bem com minha atitude de esposa complacente, que minhas cunhadas, quatro valquírias alegres e trabalhadoras, caçoavam carinhosamente de meu modo de mimar e servir meu marido como uma gueixa. Eu era assim na aparência, sobretudo quando elas estavam por perto. Procurava fazer com que Fabian se sentisse à vontade e lisonjeado, como recomendavam as revistas femininas, porque isso era fácil para mim e evitava que ele perscrutasse meus sentimentos; estava convencido de que, se ele era feliz, eu era também. Mas a fantasia de gueixa ocultava uma mulher irada.

A viagem da vida é feita de longos trechos tediosos, passo a passo, dia a dia, sem que aconteça nada de impactante, mas a memória é feita de acontecimentos inesperados que marcam o trajeto. São esses que vale a pena contar. Numa existência tão longa como a minha, há algumas pessoas e muitos acontecimentos inesquecíveis, e minha sorte é que a mente nunca me faltou; ao contrário de meu pobre corpo desgastado, meu cérebro se mantém intacto. Recordar é meu vício, Camilo, mas vou saltar os três anos e tanto que estive casada com Fabian, porque foram de tranquilidade conventual, sem nada de trágico nem de esplêndido que contar. Para ele foram anos muito satisfatórios, por isso não pôde entender que diabo aconteceu, por que um dia eu fui embora.


10

Julián Bravo tinha sido piloto da Real Força Aérea da Grã-Bretanha durante a guerra; era um dos poucos latino-americanos que participaram dessa maneira do conflito. Foi condecorado por atos de bravura e por sua habilidade suicida para travar duelo no ar com os aviões alemães. Segundo a lenda, que ele não repetia, mas sem dúvida deixava circular, com seu Spitfire ele abateu mais de oitenta aviões inimigos. Um dia ele caiu do céu em minha vida, precedido por essa fama de guerreiro, mas, mesmo sem aquele passado romântico, a impressão que ele me causaria teria sido igualmente poderosa. Era o herói dos romances.

Pousou na água do lago num avião anfíbio, trazendo como passageiros dois integrantes da realeza da Dinamarca e seus acompanhantes, que estavam em visita oficial no país e pretendiam pescar em nossos rios. Dirigiram-se ao hotel Bavaria, o melhor da região, onde foram recebidos sem estardalhaço, como se se tratasse de hóspedes habituais. Essa simplicidade estudada foi ideia de minha sogra e revelou-se um acerto, porque os nobres dinamarqueses prolongaram a visita e ficaram uma semana conosco. Ali, no hotel Bavaria, diante do olhar astuto de minha sogra e das risadinhas abafadas de minhas cunhadas, conheci Julián.

Ele estava sentado na beirada de um dos terraços do jardim, com um pé no chão, um cigarro numa das mãos e um copo de uísque na outra; vestia calças cáqui e camisa branca de mangas curtas, que punha em evidência seu tórax e seus braços de atleta. Irradiava algo sexual e perigoso, como a força contida de um animal grande, que percebi claramente a vários metros de distância. Não posso definir de outra maneira. Aquela irresistível energia viril de Julián, que o caracterizava na juventude, permaneceu imutável até sua morte, quarenta e tantos anos depois.

Incapaz de me mover, admiti com um misto de terror e urgente premonição que naquele instante minha vida dava uma guinada irrevogável. Ele deve ter sentido a intensidade de meu pressentimento, porque se virou para mim com um meio sorriso de curiosidade. Demorou longos segundos para pôr o outro pé no chão, deixar o copo na beira do terraço e avançar com aquele seu jeito de andar gingando, como os vaqueiros dos faroestes. Mais tarde me assegurou que havia sentido o mesmo que eu: a certeza de que tínhamos vivido até então nos procurando e finalmente nos encontrávamos.

Parou a dois passos de mim, percorrendo-me da cabeça aos pés com um olhar de leiloeiro. Eu me senti nua em meu discreto vestido branco de verão.

— Nós nos conhecemos, não? — perguntou.

Assenti, muda.

— Venha comigo — acrescentou, esmagando o cigarro com o pé e tomando minha mão.

Descemos quase correndo até a praia pela trilha que ziguezagueava entre os terraços do jardim; eu o segui hipnotizada, sem soltar sua mão e sem pensar que podia ser vista por meu marido e pela metade da família dele. Não opus resistência quando se deixou cair de joelhos na areia, me atraiu a seu lado e me beijou com uma intensidade nova e aterradora.

— É inevitável que a gente se ame — afirmou, e eu assenti de novo.

Assim começou a paixão que haveria de acabar com meu casamento e determinar meu futuro. Julián Bravo marcou encontro comigo em seu quarto, e meia hora depois estávamos nus em plena luz do dia, explorando-nos com um desespero perverso no hotel de minha sogra, a poucos metros de meu marido, que estava tomando cerveja com os dinamarqueses e explicando-lhes, por meio de um intérprete, sua técnica fascinante de inseminação artificial. E no segundo andar, entre quatro paredes de madeira que exalavam o perfume do bosque nativo, sob a luz que se peneirava por uma rústica cortina de juta crua, numa cama de plumas com lençóis de linho, como todas as do hotel, aprendi aos vinte e oito anos as surpreendentes possibilidades do prazer e a diferença fundamental entre um marido pouco inspirado e um amante de romance.

Até aquela tarde com Julián Bravo, a ignorância sobre meu próprio corpo era tão descomunal que só pode ser explicada pelo tempo e pelo lugar em que me coube nascer. Fui criada com uma mãe pudica que teve seis filhos trazidos do céu pelo Menino Jesus, como ela afirmava aos sussurros, e com duas tias solteironas que nunca mencionavam “os países baixos”, isto é, a zona entre a cintura e os joelhos. A tia Pía morreu virgem, e a outra, bom, sabe-se lá, porque na velhice pode ter se deitado com Bruno Rivas, coisa que ela nunca confessou. Quanto a Josephine Taylor, limitou-se a me mostrar ilustrações do corpo humano num livro, porque, apesar de suas ideias revolucionárias, era tão puritana quanto minhas tias. Com ela aprendi a pôr e tirar a roupa com contorções de circo para evitar a vulgaridade da nudez. Não tive amigas de minha idade, não fui à escola; meu escasso conhecimento provinha dos animais que acasalavam no sítio. Quando me casei, continuei me despindo do modo como havia aprendido de miss Taylor, e com Fabian fazia amor no escuro e em silêncio; eu não imaginava outras opções, e acho que para ele aqueles encontros entre nós eram menos interessantes que a reprodução entre bovinos.

Julián arrancou meu vestido num vapt-vupt, com naturalidade de puma, sem me dar a oportunidade de protestar. Com um beijo, silenciou minha primeira exclamação de susto, e dali em diante desisti de qualquer ensaio de resistência, querendo me dissipar e desaparecer em suas mãos e querendo ficar ali mesmo, com a porta fechada para sempre e nunca mais ver ninguém que não fosse ele. Observou-me por todos os lados, medindo e pesando e comentando com admiração lisonjeira a forma de meus seios e quadris, o brilho de meus cabelos, a suavidade de minha pele, meu cheiro de sabonete e outros aspectos em que eu nunca tinha prestado atenção e que, francamente, não eram excepcionais.

Percebeu que aquela enumeração me deixava acanhada e quase me carregou até o espelho grande do armário, onde vi uma desconhecida nua, trêmula e despenteada, a própria imagem da depravação que teria escandalizado minhas tias e teve a virtude de me relaxar, porque àquelas alturas já não cabiam pudores, e nada me importava. Então me levou de volta para a cama e com toda a calma do mundo me acariciou inteira com um atrevimento lento e delicioso, sem esperar nada em troca, murmurando um rosário de insensatez, mimo e indecência. O contraste entre meu embaraço e a sabedoria dele deve ter sido cômico, mas isso não arrefeceu seu entusiasmo, só aumentou seu esforço por me dar prazer.

Espero que não te escandalizes com esta leve referência ao sexo, Camilo. Ela é necessária para que entendas por que me submeti ao domínio de Julián Bravo durante muitos anos. Tive alguns amantes na vida, mas não vou me gabar, não foram muitos. A experiência perfeita é fazer amor amando, mas não foi esse o caso com Julián naquela tarde. Nada houve de amor, só desejo simples e puro, desejo brutal, cru, sem rodeios nem remorsos, desejo sem consideração por nada nem por ninguém; éramos o único homem e a única mulher no universo, entregues ao prazer absoluto. A revelação do orgasmo foi tão drástica quanto a revelação da mulher que eu trazia escondida dentro de mim, a desconhecida do espelho, a impudica, a infiel desafiadora e feliz.

Passamos a tarde juntos, e imagino que naquelas horas Fabian deve ter-se perguntado se alguém tinha me visto. Ouvi o sino anunciando que a sala de jantar estava aberta para o jantar e compreendi que precisava sacudir a modorra que me impedia de abrir os olhos ou de me mexer. Estava extenuada. Julián me deixou aninhada na cama, vestiu-se rapidamente e saiu. Não sei como se arranjou para conseguir que na cozinha lhe dessem pão, queijo, salmão defumado, uva e uma garrafa de vinho, nem como fez para subir com aquele lanche até o quarto sem levantar suspeita. Comemos sentados no chão, nus; bebi vinho da boca dele, e ele comeu uvas da minha.

Pude observá-lo, como ele fizera antes comigo, e apreciá-lo. Sem dúvida era o homem mais atraente que vi de perto em toda a minha vida: musculoso, flexível, bronzeado da cabeça aos pés pelos esportes e o ar livre, como se tomasse sol sem roupa; tinha uma risada irresistível que lhe apertava os olhos como dois riscos, cabelo escuro, íris claras, que, de acordo com a luz, eram verdes ou azuladas, e algumas rugas profundas, como que esculpidas a cinzel no rosto. Não soube naquele dia, mas logo depois descobri que ele tinha uma acariciadora voz de tenor e em alguma época de aperto econômico ganhara a vida cantando em cabarés da Inglaterra e dos Estados Unidos.

Naquela noite não voltei para casa. Acordei ao amanhecer, envolvida pelos braços de Julián num ninho de lençóis amarfanhados, úmida de transpiração e sexo, aturdida, sem me lembrar claramente de onde estava. Demorei mais de um minuto para compreender que nada voltaria a ser como antes. Eu teria de enfrentar Fabian e explicar o ocorrido.

— Calma, Violeta. Isso tem jeito. Diga ao seu marido que você não estava se sentindo bem e dormiu no hotel — sugeriu Julián, ao ver minha agitação, mas era um álibi absurdo.

— Estamos no hotel da minha sogra. Se eu tivesse dormido sozinha, ela saberia, porque eu teria ocupado um quarto.

— O que você está pensando em dizer a Fabian?

— A verdade. Você há de entender que eu não posso voltar para ele.

— Olhe, muitos maridos fazem vista grossa para evitar problemas. Qualquer coisa que você disser, ele vai acreditar — replicou, alarmado.

— É essa a sua experiência? — perguntei, com a vaga sensação de estar pisando em terreno escorregadio.

— Não sou cínico, Violeta, sou prático. Ninguém nos viu, podemos evitar problemas. Não pretendo estragar sua vida...

— Já está estragada. O que vamos fazer agora?

Vestimo-nos depressa, e ele saiu antes de mim. Passei o pente de Julián pelos cabelos e saí sem me lavar, nas pontas dos pés pelos corredores, rezando para que ninguém me visse. Esperei escondida no jardim, e alguns minutos depois Julián me apanhou com um dos automóveis que estavam à disposição dos dinamarqueses e me levou à estação, onde tomei o trem para Sacramento. Às dez da manhã já estava no escritório das Casas Rústicas com meu irmão.

— O que está fazendo aqui, Violeta? Achei que você estava no hotel Bavaria com os dinamarqueses.

— Deixei o Fabian.

— Onde?

— Larguei dele, José Antonio. Não vou voltar para ele, o casamento foi pra cucuia.

— Santo Deus! O que aconteceu?

Meu irmão me ouviu com o horror e a incredulidade pintados na sua cara de patriarca substituto, responsável pela honra da família, mas tal como eu havia imaginado, em vez de me julgar ou tentar me convencer de que aquele erro podia ser reparado, perguntou simplesmente, secando a testa com o punho da camisa, como podia me ajudar. Depois pegou o telefone e deixou um recado para Fabian na fazenda dos Schmidt-Engler e no hotel Bavaria.

Ao meio-dia meu marido se comunicou com o escritório, tranquilizado ao saber que eu estava com meu irmão na cidade. Finalmente, tudo estava esclarecido; pediu que eu avisasse a que horas ia chegar, pois ele me esperaria na estação.

— Acho que você vai ter de vir aqui, Fabian. Violeta tem uma coisa importante para lhe dizer — anunciou José Antonio.

Meu marido chegou a Sacramento horas depois, e nos enfrentamos no escritório, com meu irmão montando guarda no aposento ao lado, para o caso de meu marido me dar uma surra. O que pareceria plenamente justificável a José Antonio.

— Passei uma noite de cão te procurando em todo lugar, Violeta. Fui até Nahuel perguntar de você às tuas tias. Por que saiu sem me avisar?

— Perdi a cabeça e saí fugindo.

— Nunca vou te entender, Violeta. Bom, não importa, vamos voltar para casa.

— Quero me separar.

— O que é que você está dizendo?

— Que não vou voltar com você. Estou apaixonada por Julián Bravo.

— O piloto? Mas você o conheceu ontem! Está louca!

O impacto da notícia o obrigou a sentar-se. A possibilidade de ser abandonado pela mulher era tão remota quanto a de ela desaparecer por combustão espontânea.

— Ninguém se separa, Violeta! Os problemas entre casais são normais e devem ser resolvidos entre quatro paredes, sem escândalo.

— Vamos anular o casamento, Fabian.

— Você perdeu completamente o juízo. Não pode jogar o casamento fora por causa de um tesão.

— Quero a anulação — insisti, tão nervosa que minha voz tremia.

— Não diga bobagens, Violeta. Você está confusa. Sou seu marido, e meu dever é protegê-la. Eu cuido da situação. Fique tranquila, vou resolver esse problema, ninguém precisa saber o que aconteceu. Vou falar com aquele desgraçado.

— Isto não tem nada a ver com Julián, é entre mim e você. Vamos ter de anular o casamento, Fabian — repeti pela terceira vez.

— Nunca vou concordar com esse embuste! Estamos casados perante a lei, Deus, a sociedade e, principalmente, perante as nossas famílias! — disse, gaguejando.

— Pense bem, Fabian, a anulação deixaria você também em liberdade — interveio meu irmão, que apareceu, ao perceber que a situação ia subindo de tom.

— Não preciso de liberdade! Preciso da minha mulher! — gritou meu marido, e de repente sua ira se esgotou, e ele desmoronou numa cadeira com o rosto entre as mãos, soluçando.

Como sabes, Camilo, neste país não houve divórcio até o século XXI, quando eu tinha oitenta e quatro anos, e ele já não me servia para nada. Antes, a única saída legal do casamento era anulá-lo com mutretas de rábula, provando a incompetência do oficial do registro civil, geralmente por algum equívoco no domicílio dos contraentes. Era fácil, desde que ambas as partes estivessem de acordo; bastava contar com duas testemunhas dispostas a cometer perjúrio e um juiz complacente.

Fabian se negou a sequer pensar na ideia, que lhe parecia perversa na origem e escandalosa na execução. Tinha certeza, disse, de que poderia me reconquistar, que eu lhe desse uma oportunidade, que havia me amado assim que me viu, que nunca amara outra mulher, que sem mim a vida não tinha sentido, que vivia inteiramente dedicado ao trabalho e se descuidara de mim, e assim continuou descarregando a alma até que ficou sem voz e sem lágrimas.

José Antonio sugeriu que déssemos um tempo para pensar; enquanto isso, eu podia ficar com ele em Sacramento, isso aquietaria as perguntas da família. Por fim, Fabian concordou em darmos uma trégua, até que os ânimos se acalmassem. Por coincidência, ele tinha uma viagem para a Argentina, onde ia inseminar novecentas vacas num rancho da Patagônia, miscigenando raças Holstein, Jersey e Montbéliarde, como explicou sem que viesse ao caso naquele momento. Estaria ausente várias semanas e eu teria oportunidade de reconsiderar. Na despedida, deu-me um beijo na testa e pediu a meu irmão que cuidasse de mim até a volta dele, para que eu não fizesse mais loucuras.

Meu irmão ligou para Julián na fazenda de meus sogros, onde o tinham convidado para domar cavalos. Fiquei sabendo que ele era campeão de salto — outro de seus talentos que eu desconhecia — e sabia tanto de cavalos que nunca tinha perdido dinheiro ao apostar nas corridas.

— Melhor vir imediatamente a Sacramento, moço. Precisamos falar com o senhor — ordenou meu irmão em tom ameaçador que não admitia postergação.

Era impossível intimidar Julián Bravo. Ele tinha arriscado a vida durante vários anos na guerra, amava esportes radicais, pulava de paraquedas no coração do Amazonas, fazia surfe nas ondas mais altas do mundo em Portugal, escalava sem cordas os picos inacessíveis dos Andes. Brincava com a morte. Sua temeridade implacável o conduziria naturalmente para os negócios ilícitos, mas isso aconteceu mais tarde, quando foi recrutado pela máfia. Obedeceu à convocação de meu irmão não por temor, mas porque a noite que havíamos passado juntos o deixou comovido e pensando em mim. Chegou a Sacramento no primeiro trem do dia seguinte e permaneceu comigo o resto da semana, até que precisou voltar ao hotel Bavaria e a seu avião anfíbio no lago para transportar os dinamarqueses de volta à civilização.


11

Julián e eu passamos aqueles dias numa orgia clandestina, sem outra ocupação senão a de fazer amor e beber vinho branco. Não dei explicações a meu irmão, mas ele entendeu que nada poderia me dissuadir, e o melhor era esperar que a paixão se esgotasse e eu recobrasse o juízo. Afundei no pântano delicioso do desejo satisfeito e imediatamente renovado, porque nada podia saciar minha sede primordial por aquele homem. Eu me imaginava para sempre em seus braços, renunciando ao mundo que existia fora daquele quarto, um mundo gelado, um mundo sem ele.

Permaneci em seu quarto de hotel, nua ou coberta por uma de suas camisas (porque tinha só o que vestia quando saí do hotel Bavaria), esperando-o, antecipando, contando os minutos e as horas que passava sozinha. Foram muitas, porque Julián não suportava a clausura e ia montar no Clube Hípico ou nas fazendas dos amigos. Eu esquecia tudo ao sentir seus passos do outro lado da porta e ao vê-lo de pé no umbral, viril, sorridente, úmido do suor do exercício, dominador e contente. Os momentos que passamos juntos e as noites que dormi estreitada a seu corpo bastaram para dissipar minhas dúvidas e alimentar uma ilusão de adolescente. Entreguei-me à aflição de amá-lo com uma sujeição absoluta que agora, à luz dos anos, me parece incompreensível. Perdi a razão e o sossego; nada me importava, só estar com ele.

Depois, quando ele precisou ir embora, comprei a roupa indispensável para sobreviver e um batom vermelho para ganhar ânimo. Instalei-me no apartamento de José Antonio sem a intenção de voltar para a minha vida anterior, como anunciei a Fabian quando ele retornou da Argentina e apareceu com um buquê de flores para me buscar. Repetiu que nem morto me daria a anulação e perguntou como ia me virar sozinha, porque, pelo visto, o maldito piloto tinha evaporado.

Julián não havia desaparecido, como supunha Fabian. Ia me ver quando seu trabalho permitia, e cada encontro acrescentava um elo à cadeia em que eu mesma me havia aprisionado com pouco esforço da parte dele. Depois da guerra, ele trabalhou um tempo como piloto comercial, até que conseguiu comprar seu avião anfíbio e passou a transportar passageiros e mercadoria para lugares onde não existiam pistas de aterrissagem. Era uma pitoresca máquina amarela, com a qual ele percorria a América do Sul em contratos privados. Na época, o Sul deste país era conhecido como o paraíso da pesca e da observação de aves, de modo que ele vinha amiúde com clientes. Eu o recebia contando as horas e os minutos que passaríamos juntos e me despedia dele marcando sua ausência num calendário.

Acredito que minha cega ingenuidade o deixou confuso, porque não conseguiu se desprender de mim como talvez planejasse e se viu preso na teia de aranha de um amor que não cabia em sua existência aventureira. Aferrei-me a ele com uma ansiedade de órfão e me neguei a contemplar a montanha de obstáculos que havia à minha frente; mas não foi isso que quebrou a resistência dele, e sim Juan Martín.

Numa de nossas conversas íntimas, José Antonio me perguntou se eu pensava em ser amante de Julián Bravo até o fim de meus dias. Não, claro que esse não era meu plano. Pensava em ser esposa dele assim que conseguisse vencer a teimosia de meu marido legítimo, sem imaginar que o despeito de Fabian duraria vários anos. Estava tão segura de que logo poderia me casar com Julián, que não fiquei devidamente atenta quando nos esbaldávamos na cama com a paixão desesperada que ele conseguia provocar em mim. Tomávamos cuidado, mas não muito; às vezes usávamos preservativo e às vezes esquecíamos ou estávamos com pressa. Eu tinha a ideia sem muito fundamento de que era estéril e por isso não tivera filhos no casamento. A consequência lógica de tantos descuidos me tomou de surpresa.

Julián ficou sabendo que eu estava grávida numa de suas visitas, e a primeira coisa que perguntou foi se por acaso o responsável era Fabian.

— Como vai ser ele, se não o vejo há cinco meses — respondi, ofendida.

Vermelho de raiva, ele andava de um lado para outro com passadas largas, acusando-me de ter feito aquilo de propósito, dizendo que, se daquele jeito eu achava que o agarraria, estava muito enganada, que ele nunca iria sacrificar sua liberdade, e mais isso e mais aquilo, até que percebeu que eu estava encolhida num sofá, chorando apavorada.

Pareceu despertar de um transe; a explosão refluiu em poucos segundos, e ele caiu de joelhos a meu lado, murmurando desculpas, pedindo que lhe perdoasse, dizendo que tinha reagido assim por causa da surpresa, claro que não era só minha culpa, ele também era responsável e tínhamos de decidir como íamos resolver o problema.

— Não é um problema, Julián, é nosso bebê — respondi.

Aquilo teve a virtude de emudecê-lo; ele não tinha pensado nisso até aquele instante.

Alguns momentos depois, quando ambos estávamos mais calmos, Julián se serviu de uísque e me confessou que, em seus trinta e tantos anos de aventuras amorosas em quatro continentes, nunca se vira diante do dilema de se transformar em pai.

— De modo que você também achava que era estéril — disse-lhe, e nós dois começamos a rir, subitamente aliviados e alegres, dando desde já as boas-vindas ao ser que navegava à deriva em meu ventre.

Achei que, ao saber da notícia, Fabian reconsideraria. Por que continuaria casado com uma mulher grávida de outro? Marquei encontro com ele numa confeitaria de Sacramento para chegar a um acordo. Estava nervosa, preparando-me para uma briga, mas ele me desarmou logo de começo, ao segurar minhas duas mãos e me dar um beijo na testa. Estava contente por me ver, disse, tinha sentido muita saudade de mim. Enquanto nos serviam chá, falamos de trivialidades, pusemos em dia as notícias da família, contei-lhe da tia Pía, que sofria de dores de estômago e estava fraca. Visto que os rituais e os remédios de Yaima tinham sido inúteis, a tia Pilar a traria ao hospital de Sacramento, para fazer exames. Sobreveio um silêncio incômodo, que aproveitei para informá-lo de meu estado, de supetão, com metade da cara escondida pela xícara.

Ele ficou de pé, surpreso, com um sorriso esperançoso a bailar em seus olhos, mas, antes que perguntasse, afirmei que ele não era o pai.

— Vai ter um filho ilegítimo? — murmurou, deixando-se cair na cadeira.

— Depende de você, Fabian.

— Não conte com a anulação do casamento. Você sabe o que penso a respeito.

— Não é questão de princípios, mas de maldade. Você quer me prejudicar. Está bem, não vou pedir outra vez. Mas você precisa me dar a metade de nossos bens, embora na realidade me caiba o total, porque eu o sustentei desde que nos casamos, e o que há na conta comum de poupança fui eu que ganhei e me pertence.

— De onde você tirou a ideia de que, abandonando o lar, tem direito a alguma coisa?

— Vou exigir, Fabian, mesmo que seja em juízo.

— Pergunte a seu irmão, para ver qual seria o resultado disso. Ele não é advogado? As contas do banco estão em meu nome, assim como a casa e o restante do que temos. Não é minha intenção prejudicá-la, como você disse, mas protegê-la, Violeta.

— De quê?

— De você mesma. Você está desequilibrada. Eu sou seu marido e te amo com toda a minha alma. Vou te amar sempre. Posso perdoar tudo, Violeta. Não é tarde para nos reconciliarmos...

— Estou grávida!

— Não importa, estou disposto a criar teu filho como se fosse meu. Me deixe ajudar, estou suplicando...

Não voltei a ver Fabian até um ano e meio depois. José Antonio confirmou que eu não poderia obter nada do dinheiro ao qual achava ter direito; qualquer cifra que eu conseguisse dependeria da boa vontade de meu marido. Passei os meses seguintes entre o apartamento de meu irmão e o escritório, sem ver ninguém, além de alguns clientes das Casas Rústicas. Por telefone, avisei minhas tias, os Rivas, Josephine e Teresa. Todos me felicitaram, menos minhas tias, que já tinham sofrido bastante ao saberem que eu deixara Fabian, e aquela notícia caiu sobre elas como uma paulada. O único consolo delas era que estávamos longe da família e da bisbilhotice da capital.

— Menina, pelo amor de Deus, nunca houve bastardos entre nós — disse-me a tia Pía entre soluços.

— Há dezenas, tia, mas, como são dos homens da família, ninguém leva em conta — expliquei-lhe.

Quando minha barriga começou a ser notada, mantive-me meio escondida para evitar a família de Fabian e os amigos comuns.

Meu filho nasceu no hospital de Sacramento no mesmo dia em que internaram a tia Pía para fazer uma série de exames; graças a isso estive acompanhada por aquelas duas velhas queridas e por José Antonio, que se fez passar por meu marido. Miss Taylor e Teresa não apareceram, porque as mulheres acabavam de obter o direito a votar em eleições presidenciais e parlamentares. Teresa tinha lutado por isso anos a fio, e a vitória a surpreendeu na cadeia, para onde tinha ido de novo, por provocar distúrbios e incitar à greve. Foi solta naquela mesma semana e pôde celebrar o voto feminino dançando na rua.

Julián andava pelo Uruguai e ficou sabendo uma semana depois, quando o bebê já estava batizado e registrado com o nome de Juan Martín Bravo del Valle. Dei-lhe o nome de Juan em honra ao padre Quiroga, para que o protegesse na vida, e de Martín porque sempre tinha gostado desse nome.

Esse menino transformou Julián, que não suspeitava ter já alcançado a idade de desejar a transcendência. Seu filho representava a continuidade, sua oportunidade de viver de novo por meio dele, de lhe dar as chances que ele não tivera, de criar uma versão mais completa de si mesmo. Julián ia criar Juan Martín para ser uma extensão sua: audaz, corajoso, aventureiro, amante da vida, de espírito livre, mas com um coração sereno. Havia perseguido a felicidade desde pequeno, mas ela escapulia no último instante, quando achava tê-la ao alcance das mãos. Era o que também acontecia com seus projetos: sempre havia outro mais interessante um pouco adiante. Nada lhe bastava, nem as medalhas de herói de guerra ou de campeão de equitação, nem sua máquina de voar, nem o sucesso em tudo o que empreendia, nem sua voz de tenor ou seu talento para ser o centro das atenções onde quer que estivesse. Essa busca constante de algo melhor também se aplicava a seus afetos e amores. Não tinha família, desprendia-se dos amigos assim que eles deixavam de servir a seus fins, seduzia as mulheres com afã de colecionador e as abandonava se outra mais atraente cruzasse seu caminho. Por isso desejava um coração sereno para Juan Martín. Seu filho não sofreria dessa perene ansiedade, ia ser um homem contente, ele se encarregaria disso.

Fomos morar numa casa pequena no bairro antigo de Sacramento, com árvores centenárias e rosas silvestres que cresciam por obra de magia nas calçadas, mesmo no inverno, apesar da chuva e da neblina. Julián começou a selecionar os clientes por posição geográfica, para que suas ausências fossem breves e ele pudesse dispor de tempo para o filho.

Quando começamos a conviver como uma família normal, Julián me incumbiu de ajudá-lo a administrar racionalmente sua pequena empresa de transporte aéreo. Como admitia rindo, não sabia somar dois mais dois. Tínhamos dois registros, um oficial e outro que só nós conhecíamos. No primeiro, que o fisco examinava e, às vezes, a polícia também, eram anotados os detalhes de cada voo: data, lugares, distância, passageiros ou mercadoria; no segundo registrávamos a identidade de cada pessoa, onde havia sido apanhada, onde desembarcara e a data. Eram judeus sobreviventes do Holocausto, rejeitados em quase todos os países latino-americanos, que entravam por rotas sem vigilância e se estabeleciam com a ajuda de grupos simpatizantes ou por meio de subornos. Depois da guerra o país recebera centenas de imigrantes alemães, acolhidos pelo partido nazista nacional, que, com a derrota da Alemanha, mudou de nome, mas não de ideologia. De vez em quando, porém, tratava-se de um criminoso acusado de atrocidades, fugido da justiça da Europa, que Julián, por preço adequado, encarregava-se de introduzir no país em seu avião. Judeus ou nazistas, para Julián dava no mesmo, desde que pagassem o que ele estipulava.

A tia Pilar voltou para Santa Clara, onde era esperada pelo trabalho de verão, mas a tia Pía ficou conosco para receber tratamento contra o câncer no hospital. Assim que teve Juan Martín nos braços pela primeira vez, esqueceu sua condição de filho ilegítimo e entregou-se ao prazer de mimá-lo como avó. Esse seria seu consolo nos onze meses que lhe restavam neste mundo. Deitava-se na cama ou no sofá com o menino em cima, cantando baixinho para adormecê-lo, e isso lhe acalmava a dor mais que as pílulas dos doutores, dizia.

Tinham me assegurado que, enquanto estivesse amamentando Juan Martín, eu estaria protegida de outra gravidez, mas essa era mais uma das balelas tão difundidas na época. Dessa vez, Julián, amaciado pela influência do filho, reagiu sem escândalo, mas me comunicou, sem chance de interpretações, que seria a última. Não planejava encher-se de filhos; com um já estava preso a responsabilidades e perdera a liberdade, disse.

Na verdade, Julián continuava tão livre como antes; nunca me opus às suas viagens, e, quanto a se sentir preso, acho que exagerava, porque contribuía pouquíssimo para suprir às necessidades da família. Ia e vinha com a disposição amável de um parente próximo. Gastava sem vacilar na última versão de uma máquina fotográfica ou numa joia para mim, mas não pagava as contas de luz e água. Assumi as despesas, tal como fizera durante o casamento, sem que isso me pesasse, porque ganhava o suficiente, mas com Fabian aprendera uma lição de que me lembraria sempre: não adianta só ganhar dinheiro, é preciso saber administrá-lo. Isso, que agora me parece indiscutível, na minha juventude era uma novidade. Pressupunha-se que as mulheres eram sustentadas, primeiro pelo pai e depois pelo marido, e, caso tivessem bens próprios, herdados ou adquiridos, precisavam de um homem para administrá-los. Não era feminino falar de dinheiro nem ganhá-lo, muito menos investi-lo. Nunca informei Julián de quanto dispunha nem como gastava; tinha minhas próprias economias e fazia negócios sem o consultar e sem sua participação. O fato de não estarmos casados dava-me uma independência que teria sido impossível de outra maneira. Mulher casada não podia abrir conta em banco sem o consentimento e a assinatura do marido, que no meu caso era Fabian; para vencer esse obstáculo, minhas contas estavam em nome de José Antonio.


12

A tia Pía morreu em minha casa, em calma e quase sem dor, graças a uma planta milagrosa dada por Yaima, a curandeira indígena. Torito a cultivava no sítio, porque servia para aliviar muitos males e, seguindo as instruções de Yaima, utilizavam as sementes e as folhas como era devido. Com isso, Facunda fazia biscoitos, que eram mandados de trem, e no fim, quando a doente já não digeria, Torito preparava uma tintura, que eu punha debaixo da língua dela, com conta-gotas. Nos últimos dias, a tia Pía dormia quase o tempo todo, e, nos raros momentos de consciência, pedia que lhe trouxéssemos Juan Martín. Não reconhecia ninguém, só o menino.

— Você vai ter uma irmãzinha — sussurrou-lhe antes de morrer.

Foi assim que eu soube que teria uma menina e comecei a pensar num nome adequado.

Foi enterrada no diminuto cemitério de Nahuel, tal como desejava, e não no mausoléu de sua família na capital, onde estaria entre mortos de que já não se lembrava. O povoado inteiro acorreu naquela manhã para se despedir dela, tal como acorrera ao meu casamento, e uma delegação indígena liderada por Yaima prestou-lhe homenagem com tambores e flautas. Era um dia esplendoroso, o ar recendia à flor da esponjeira, o céu estava sem nuvens, e um véu de vapor flutuava sobre a terra úmida, aquecida pelo sol.

Ali, em torno da cova que recebeu o caixão de minha tia, voltei a ver Fabian, que chegou com traje de passeio e gravata preta, mais loiro e solene que nunca, como se no ano e tanto que estivemos sem nos ver tivesse envelhecido.

— Gostava muito da tua tia, ela sempre me tratou com carinho — disse, entregando-me um de seus lenços, porque o meu estava ensopado.

A tia Pilar, os Rivas e até Torito e Facunda o abraçaram com tanta afeição, que senti esse abraço como uma censura: Fabian era da família, e eu o traíra. Depois o convidaram para almoçar em Santa Clara, onde Facunda deixara preparada uma de suas especialidades: torta de batatas com carne e queijo.

— Estou vendo que aquele homem não veio com você — comentou Fabian num momento em que nos afastamos um pouco.

Respondi que Julián estava voando com uns passageiros no arquipélago, o que em parte não passava de desculpa, porque na verdade Julián não era visto com bons olhos por minha família. A tia Pilar semeara a ideia de que ele era um galinha mulherengo e jogador, que me seduzira com artimanhas, destruíra minha vida, meu casamento e minha reputação, engravidando-me e deixando-me praticamente abandonada.

Visto de fora, era isso mesmo, mas nada é tão simples como parece, ninguém sabe o que acontece na intimidade de um casal nem por que alguém suporta aquilo que para os outros é indesculpável. Julián era um homem deslumbrante, não conheci ninguém que possa se comparar a ele, ninguém com sua capacidade de atrair os outros, como um poderoso ímã. Os homens o seguiam e imitavam, ou tentavam desafiá-lo; as mulheres revoluteavam ao redor dele como mariposas em torno de uma lâmpada. Ele era vivaz, inteligente, grande narrador e contador de piadas. Exagerava e mentia, mas isso também era parte de seu encanto, e ninguém criticava. Recorria a irresistíveis truques de sedução, como me fazer uma serenata na rua, com sua voz operística, para se desculpar depois de uma briga. Sempre o admirei, apesar de seus tremendos defeitos.

Estava orgulhosa de ter sido escolhida por Julián, pois isso provava que eu também era especial. Desde o nascimento de Juan Martín decidimos nos apresentar como marido e mulher e ter vida social de casal, embora estivéssemos plenamente conscientes de que pelas costas ferviam comentários. Tal como José Antonio me advertira, eu era rejeitada em certos círculos; as esposas dos amigos dele não me recebiam, e perdemos alguns clientes que se negaram a tratar comigo no escritório; eu também não me arriscava a ir aos clubes da cidade, porque podiam impedir minha entrada. Como é óbvio, ninguém da colônia alemã, muito menos do clã Schmidt-Engler, me tolerava. Nas poucas vezes que cruzei com eles, olharam-me de cima para baixo, com ar de desprezo, e eu poderia jurar que mais de um me chamou de puta entre dentes.

Julián, em compensação, ia a todos os lugares; estava isento de culpa: a infiel, a concubina, a mulher extraviada que se atrevia a pavonear-se grávida do amante era eu. Se minhas tias, que gostavam tanto de mim e me haviam criado, consideravam que minha conduta era contrária à moral, posso imaginar como os outros me julgavam. “Não se preocupe, mais cedo ou mais tarde Fabian vai querer se casar e ter sua própria família, então virá oferecer a anulação em bandeja de prata”, dizia Julián.

Sua simpatia irresistível foi abrindo portas para nós. Ele começava a contar uma de suas aventuras ou a cantar canções românticas de seu vasto repertório, e logo se formava um círculo a seu redor. A atração irresistível que exercia sobre as mulheres me lisonjeava, porque eu era a eleita. Fui feliz com Julián durante os dois primeiros anos, até ficar grávida de novo.

Na época em que esperava minha filha, ainda achava estar vivendo um amor excepcional, embora já houvesse sinais inconfundíveis de que Julián estava desencantado comigo e preocupado com sua própria vida. Era palpável sua contrariedade diante dos estragos da gravidez em meu corpo, mas eu imaginava que aquele era um mal temporário. Ele dormia no sofá da sala, evitava me tocar, repetia com frequência que não queria outro filho, culpava-me por tê-lo feito cair em nova armadilha, sem admitir que havia participado da gestação tanto quanto eu.

Acredito que só Juan Martín o retinha em casa. O menino ainda não tinha feito dois anos, e o pai já o treinava para se tornar homem, como dizia, e isso incluía persegui-lo com o jato da mangueira, fechá-lo em lugar escuro, fazê-lo girar no ar até vomitar ou pôr uma gota de molho picante nos seus lábios. “Homem não chora” era seu lema. Os brinquedos de Juan Martín eram armas de plástico. Torito lhe deu um coelho, que durou até que Julián voltasse de uma viagem e lhe desse sumiço.

— Homem não brinca com coelho. Se quiser um bicho, compramos um cachorro.

Neguei-me, porque não tinha tempo nem ânimo para cuidar de um cachorro.

Imagino que, enquanto eu engordava, ele estava envolvido com outra mulher, ou com várias. Parecia aborrecido e impaciente, perdia facilmente a cabeça, provocava brigas com outros homens, pelo gosto de esmurrar e ser esmurrado, apostava em cavalos, corridas de automóvel, bilhar, roleta e qualquer jogo de azar que estivesse a seu alcance. Mas de repente se transformava no companheiro mais afetuoso e solícito do mundo, cobria-me de atenções e presentes, brincava com Juan Martín como um pai normal, saíamos os três para fazer piquenique, tomávamos banho no lago. Então meu ressentimento retrocedia, e eu voltava a ser a apaixonada incondicional.

Aprendi na marra a não interferir nos furores de Julián, a não ser quando precisava defender o menino. Se eu tentasse dizer que ele estava bebendo demais ou apostando mais do que podia, recebia de volta um rosário de insultos e depois, a sós, um murro. Nunca me bateu no rosto, tomava o cuidado de não deixar marcas. Enfrentávamo-nos como gladiadores, porque minha fúria era superior ao medo que ele conseguia me inspirar com seus punhos, mas era sempre eu que terminava no chão, e ele me pedindo perdão e dizendo que não sabia o que lhe tinha dado, que eu o provocava e o fazia perder a cabeça.

Depois de cada batalha, em que eu jurava deixá-lo para sempre, terminávamos abraçados. Essas reconciliações ardentes duravam algum tempo, até que ele explodia de novo por qualquer motivo trivial, como se acumulasse a fúria sob pressão e em algum momento precisasse deixá-la escapar; mas podíamos ser felizes entre episódios de ódio, que nem sempre implicavam tapas; em geral, o abuso era de palavra. Julián tinha rara habilidade para adivinhar os pontos mais vulneráveis de seu oponente. Atacava-me onde mais doía.

Ninguém soube dessa guerra subterrânea, nem José Antonio, que eu encontrava diariamente no escritório. Tinha vergonha de suportar a violência de Julián e mais vergonha ainda de perdoá-lo. Estava escravizada pela paixão sexual e pela crença de que, sem ele, estaria perdida. Como ia criar os filhos? Como ia enfrentar a sociedade e a família com um segundo fracasso? Como ia sobreviver à alcunha de amante repudiada? Eu tinha acabado com meu casamento e desafiado o mundo para ficar com Julián, não podia aceitar que a lenda que eu mesma inventara fosse um erro.

Dez dias antes da data em que eu daria à luz, ficamos sabendo que o bebê estava atravessado. Lamentei mais uma vez que a tia Pía já não estivesse conosco, porque a tinha visto em algumas ocasiões usar suas mãos mágicas para virar uma criança no ventre materno, tal como às vezes fazia com um bezerro para colocá-lo em posição de nascer. Segundo ela, conseguia ver a criança claramente com os olhos da alma e movê-la com massagem, energia amorosa e orações à Virgem Maria, mãe universal. Fui ao sítio, e o tio Bruno me levou para consultar Yaima, mas para esse problema a curandeira tinha menos poder que a tia Pía. Depois de fazer uma cerimônia de recitativo e tambor, de esfregar minha barriga e de me dar um chá de ervas, nada mudou. O médico decidiu fazer uma cesárea para evitar complicações.

Julián e eu tivéramos uma de nossas brigas monumentais, que costumavam durar mais de uma semana. Enquanto ele estava na capital, apanhando uns engenheiros que planejavam construir uma represa, foi à nossa casa procurá-lo uma moça que se apresentou como sua namorada. Imagino o que aquela infeliz sentiu ao deparar comigo, mulher com olheiras, cara manchada, balançando uma barriga do tamanho de uma melancia sobre pernas inchadas, dizendo ser esposa de Julián. Fiquei com tanta pena dela e de mim, que a fiz entrar na sala, ofereci-lhe uma limonada e choramos juntas.

— Ele me disse que era inevitável nos amarmos — balbuciou.

— A mim ele disse a mesma coisa, quando me conheceu — contei.

Julián havia-lhe dito que estava livre, que nunca se casara, que tinha vivido à espera dela.

Nunca saberei como se resolveu o assunto entre eles. Nos dias que Julián esteve ausente, vivi numa montanha-russa de emoções opostas. Queria ir para longe, não voltar a vê-lo mais, fugir para sempre, inventar outra identidade em outro país, mas não podia nem sonhar com isso, estava a ponto de parir e logo teria um filho de dois anos dependurado da saia e um recém-nascido nos braços. Não. Não devia deixar minha casa por motivo nenhum. Devia era mandá-lo embora, ele que se fosse com aquela namorada de última hora, que desaparecesse de minha vida e da vida das crianças.

Três dias depois Julián chegou com um tanque de guerra de latão para Juan Martín e um colar de lazurita para mim. Eu tinha chorado todas as lágrimas, e uma ferocidade de hiena ocupara o lugar do despeito; recebi-o aos gritos e arranhões no rosto. Quando conseguiu me dominar, soltou um de seus longos argumentos sinuosos, em que as palavras torciam a realidade com uma lógica malvada, anulando minha capacidade de raciocinar.

— Que direito você tem de estar com ciúme, Violeta? O que mais quer de mim? Fiquei apaixonado assim que vi você pela primeira vez. Você era a única mulher que podia me fisgar, a única que eu queria por esposa.

— O amor durou muito pouco!

— Porque você mudou, não é nem sombra da moça que conheci.

— O tempo passa para você também.

— Eu sou o mesmo de sempre, mas para você a única coisa que importa é o trabalho, os negócios, ganhar dinheiro, como se eu fosse incapaz de manter a minha família.

— Poderia tentar...

— Por acaso você me dá oportunidade? — interrompeu-me aos gritos. — Você respeita mais o seu irmão do que a mim! Continuo a seu lado porque você é a mãe do meu filho, embora já não seja a companheira nem a amante que eu desejo. Ficou gorda, deformada com a primeira gravidez e nem quero pensar na catástrofe que é esta. Você perdeu a beleza, a feminilidade e a juventude.

— Só tenho trinta e um anos!

— Parece que tem cinquenta, está acabada. Com essa estampa e essa atitude, nem o homem mais desesperado se deitaria com você. Me dá pena. Entendo que esse é o preço da maternidade. A natureza é impiedosa com as mulheres, mas também é implacável com os homens, que precisam satisfazer suas necessidades.

— Os filhos são dos dois, Julián. Nem você nem eu temos licença para a infidelidade.

— Não posso viver como um monge. O mundo está cheio de jovens atraentes. Você deve ter notado que elas me perseguem. Eu precisaria ser impotente para resistir.

E assim continuou até me deixar em frangalhos. Então, quando me viu arrasada, tomou-me amorosamente nos braços e começou a me ninar como a um bebê, a me consolar com a promessa de que podíamos passar uma borracha e recomeçar, de que não era tarde para ressuscitar o amor, desde que eu colaborasse, prometesse que não teríamos mais filhos e fizesse um regime para recuperar minha aparência de antes. Ele me ajudaria, faríamos aquilo juntos; depois ele conseguiria que Fabian me desse a anulação, mesmo que tivesse de se bater em duelo, e nos casaríamos, disse.

E assim foi como aceitei ser esterilizada.

Julián decidiu que aproveitaríamos a operação da cesárea para ligar as trompas. Se ele fosse meu marido, é possível que o médico o tivesse feito sem me perguntar, mas, como não era, teve de pedir minha aprovação. Aprovei, porque aquela era a condição que Julián me impusera para ficar comigo, e achei que dois filhos eram suficientes, sem imaginar o ressentimento insuperável que eu haveria de nutrir contra ele para sempre, por ter sido obrigada àquilo.

Quando miss Taylor soube, perguntou por que ele não tinha feito uma vasectomia, já que não queria pôr mais filhos no mundo. Ela era avançada para seu tempo. Eu não teria me atrevido a propor a Julián essa solução que era castigo para criminosos e um atentado à sua masculinidade. O atentado a mim era de menor importância.

Minha filha nasceu no dia em que o vulcão amanheceu fumegando e nevado até a base. Ainda aturdida pela anestesia, eu o vi ao longe pela janela do quarto da clínica, majestoso com sua pluma de fumaça e seu manto branco contra um céu safirino, e decidi que a menina se chamaria Nieves. Esse não era nenhum dos nomes que eu escolhera antes. Para fazer meu gosto, Julián o aceitou, embora tivesse escolhido Leonora, nome de sua mãe, mas a mim esse nome lembrava a vaca dos Rivas.

A operação foi menos simples que o esperado; tive uma infecção que me deixou prostrada durante duas semanas, e a ferida demorou a fechar, deixando uma cicatriz arroxeada e alta, como uma cenoura na barriga. Julián se desdobrou para me atender; talvez me amasse mais do que acreditava, ou pensasse na desgraça de ficar sozinho com duas crianças para cuidar.

Josephine Taylor conseguiu licença no colégio onde lecionava para cuidar de mim no primeiro mês, e aproveitamos para nos pôr em dia sobre nossa vida desde a última vez em que estivéramos juntas. Contou-me que Teresa tinha sempre pronta uma maleta com roupa e artigos de higiene para a cadeia, onde ia parar com frequência, por ser rebelde e simpatizante do partido comunista, que estava na clandestinidade. A polícia a tolerava, era uma senhora meio pirada, e as outras presas a recebiam como heroína. Os juízes, cansados de vê-la reincidir, soltavam-na poucos dias depois com a recomendação inútil de que se portasse como uma dama decente. Para Teresa havia causas de sobra para defender, depois de ter lutado anos pelo sufrágio feminino. Faltava muito por fazer, disse-me miss Taylor; havia uma longa lista de reivindicações femininas, nas quais eu nunca tinha pensado. Dentro de alguns meses nós, mulheres, poderíamos votar pela primeira vez na eleição presidencial, e Teresa andava de porta em porta explicando o processo, porque nada mudaria se não exercêssemos esse direito. Eu nem sequer me cadastrara.

Josephine estava transformada numa matrona de carnes fartas, vestida de missionária, com o cabelo grisalho e a pele marcada por rugas finas e diminutas veias vermelhas, mas conservava os mesmos olhos azuis redondos e a mesma energia da juventude. José Antonio fez visitas diárias, com o pretexto de vigiar minha saúde, mas na realidade para ver o único amor de sua vida. Também ele estava prematuramente envelhecido pelo hábito da solidão. Ao vê-lo eufórico, tomando chá e jogando dominó com miss Taylor, como nos tempos da casa-grande das camélias, pensei em fazer uma promessa ao padre Quiroga, pedindo que miss Taylor aceitasse finalmente casar-se com ele, mas isso significaria eliminar Teresa Rivas. Era uma ideia cruel.

Aos oito anos de idade, já era evidente que Juan Martín não se parecia fisicamente ao pai nem herdara seu caráter; era um menino tranquilo, que se entretinha sozinho durante horas, bom estudante, cauteloso e assustadiço. Os jogos bruscos com que o pai tentava despertar sua masculinidade causavam-lhe terror; ele sofria de pesadelos, asma e alergia ao pólen, ao pó, a penas e a nozes, mas era dono de uma inteligência precoce e de uma brandura de temperamento que o tornavam irresistível.

Julián exigia o que o menino não podia dar e não disfarçava a frustração. “Até quando vai mimá-lo, Violeta! Está criando um maricas”, gritava diante de Juan Martín. Era uma obsessão. Via sinais perturbadores de possível homossexualidade: ele lia demais, juntava-se às meninas no colégio, usava cabelos compridos. Obrigava-o a beber vinho, para aprender a beber com boa cabeça e nunca chegar a ser bêbado; a apostar a mesada no pôquer, para saber ganhar e perder com indiferença; a jogar futebol, para o qual o menino não tinha a menor aptidão. Levava-o a caçar ou a ver lutas de box e ficava furioso se Juan Martín chorasse pelo animal ferido ou tapasse os olhos diante da brutalidade do espetáculo. Meu filho cresceu com a aspiração impossível de obter a aprovação do pai, sabendo que nada do que fizesse seria suficiente. “Aprenda com sua irmã”, costumava ordenar Julián. Todos os atributos que ele desejava no filho, quem tinha era Nieves.

Desde o primeiro instante em que arribou no mundo, Nieves foi bonita. Nasceu sem esforço, com cara de boneca e olhos abertos, gritona, exigente e comilona. Com um ano já não usava fraldas e andava como um pato pela casa, abrindo gavetas, engolindo insetos e batendo a cabeça nas paredes. Aos seis galopava a cavalo e se atirava de cabeça do trampolim mais alto da piscina do clube. Tinha a temeridade e o senso de aventura do pai. Era tão bonita que os desconhecidos nos paravam na rua para admirá-la, e tão sedutora que meu irmão implorava que não o deixassem sozinho com ela, porque daria qualquer coisa que Nieves pedisse, como ocorreu numa ocasião em que ela quis seu dente de ouro, e ele mandou o dentista fazer outro igual e o pendurou numa correntinha. Ela cantava com voz rouca e sensual, inadequada para sua idade, e, para se exibirem em dueto, Julián lhe ensinou seu repertório de canções, inclusive as mais picantes. Ela cresceu mimada e egoísta. Eu tentava impor-lhe alguma disciplina, mas meus propósitos eram desbaratados por Julián; ela conseguia o que pedia, e eu era repreendida. Não tive autoridade sobre meus filhos. Juan Martín não precisava, mas para Nieves teria sido bom.

Foi por rebeldia a Julián, e não por amor, que depois do nascimento de Nieves adotei uma disciplina espartana para recuperar algo de minha aparência anterior, que, segundo ele, havia sido meu único atributo memorável. Queria provar que ele estava enganado a meu respeito, que eu tinha controle sobre meu corpo e minha vida. Comia só mato, como os burros, contratei um treinador de futebol para me submeter aos exercícios rigorosos de seus jogadores e renovei meu guarda-roupa de acordo com a moda imposta por Dior: saias muito amplas e coletes ajustados na cintura. Os resultados, vistos em pouco tempo, não contribuíram para melhorar o clima entre mim e Julián, mas me deram armas para deixá-lo com ciúmes. Aquilo me divertia, apesar de ter de suportar seus arroubos de fúria. Em certa ocasião, atirou em mim uma travessa de camarões em molho de tomate porque meu vestido de seda preta lhe parecera muito decotado, e eu me negara a trocá-lo. Estávamos num evento para arrecadar fundos para uma escola de surdos, havia um jornalista presente com uma câmera fotográfica, e nós saímos no jornal, como dois lunáticos.

Havia vários anos que estávamos juntos; as pessoas se acostumaram a nos ver como um casal, e os questionamentos sobre nosso estado civil eram feitos onde Julián não ouvisse. Tínhamos prosperado, vivíamos bem e éramos aceitos em sociedade, mas não pudemos matricular Juan Martín e Nieves nos melhores colégios, que eram católicos. Apesar do que havíamos conseguido, eu vivia com um punho fechado na boca do estômago, perpetuamente assustada, sem saber de fato por quê. Segundo Julián, eu não tinha de que me queixar, minhas apreensões eram como cuspir para o alto, o que mais eu queria, não estava satisfeita com nada, era um poço sem fundo.

Nada nos faltava no plano material, é certo, mas me parecia estar sempre balançando em corda bamba, a ponto de cair e arrastar as crianças comigo. Julián desaparecia durante semanas e voltava sem avisar, às vezes eufórico e carregado de presentes, outras vezes extenuado e deprimido, sem dar explicações sobre onde estivera nem o que havia feito. De nos casarmos não se falava, apesar das promessas de Teresa Rivas, de que seria aprovada a lei do divórcio. Fabian não tinha namorada conhecida, e não havia esperança de que viesse me oferecer a anulação em bandeja de prata, como Julián havia prognosticado. No entanto, a legalização de nossa união, que durante anos tinha sido uma obsessão para mim, importava-me muito menos, porque era cada vez mais comum a separação de casais que depois se juntavam a outras pessoas. Além disso, eu compreendia, em nível visceral, que não convinha me amarrar a Julián. Solteira, eu tinha mais poder e liberdade.

José Antonio também não parecia ter pressa de se casar. “Está na cara que é bicha”, afirmava Julián, que mal o suportava, porque meu irmão era a fonte de meus proventos e minha única proteção contra a autoridade avassaladora dele. Seus ganhos como piloto eram tão desiguais que pareciam produto da sorte em mesas de jogo; em contrapartida, eu tinha rendimentos seguros, porque as Casas Rústicas haviam crescido como um polvo, com tentáculos em várias províncias. Anos antes eu convencera José Antonio e Marko Kusanovic de que, em vista do clima de nosso país, com invernos de tempestades e verões secos, precisávamos pensar em painéis isolantes, como existiam em outros lugares. Fui aos Estados Unidos, investiguei a indústria da construção pré-fabricada, e aplicamos o mesmo nas Casas Rústicas: um sanduíche de lã de rocha como isolante, entre dois painéis de madeira aglomerada. As primitivas moradas de madeira para trabalhadores rurais, povoações operárias e balneários do litoral transformaram-se nas casas pré-fabricadas preferidas por casais jovens da classe média. Tinham nosso selo: paredes brancas, com molduras de janelas, venezianas e portas em azul-anil, e sapé no teto.

Em fins da década de 1950, Julián ia com frequência à Argentina em voos misteriosos, que eram anotados na segunda contabilidade com um código que só ele conhecia, porque eram assuntos militares, como me explicou. Essa prática do caixa dois de contabilidade, que foi a ruína de meu pai, haveria de me atormentar nos anos de minha relação com Julián. Juan Perón andava exilado de um país para outro e fora substituído por governantes decididos a apagar seu legado e acabar com qualquer forma de oposição. Não precisei decifrar o código para adivinhar que as viagens de Julián estavam relacionadas com dinheiro da corrupção e pessoas do governo em missões secretas.

Também começaram suas viagens para Cuba e Miami, que eram tão frequentes quanto as da Argentina, mas não implicavam segredos militares e eram discutidas comigo. Graças à sua merecida reputação de piloto audaz, ele havia sido empregado pela máfia, cujo império criminoso operava em Cuba desde os anos 1920, florescendo sob os auspícios da ditadura de Fulgencio Batista, quando controlava cassinos, cabarés, prostíbulos, hotéis e o narcotráfico, contribuindo esplendidamente para a corrupção do governo. Julián transportava bebidas, drogas e mulheres, além de prestar outros serviços bem remunerados. De vez em quando, porém, traficava armas, que, por canais clandestinos, iam para as mãos dos rebeldes de Fidel Castro, que lutavam para derrubar Batista.

— Quer dizer, você serve dois inimigos. Se descobrirem, não quero nem pensar o que vão fazer com você — avisei.

Mas ele garantiu que não corria perigo, que sabia muito bem o que fazia.

Numa das viagens em que o acompanhei, ficamos alojados como reis no recém-inaugurado hotel Riviera, convidados por uns tipos fanfarrões, divertidos e hospitaleiros, que até me deram pilhas de fichas para eu passar o tempo apostando no cassino enquanto Julián fazia algumas diligências para eles. Só soube que eram da máfia vários anos depois, quando reconheci a foto do célebre gângster Lucky Luciano, publicada por motivo de seu grandioso funeral em Nova York.

Passei aqueles dias em Havana jogando e perdendo na roleta, embalada pela voz de Frank Sinatra em pessoa, tomando sol na piscina do hotel, onde se exibiam mulheres bonitas e coquetes em trajes mínimos de banho, bebendo pink martinis no famoso cabaré Tropicana e dançando em várias discotecas o irresistível ritmo afro-cubano que se popularizara em todos os lugares, acolhida por acompanhantes de uma noite. Um de meus anfitriões, que deve ter sido um mandachuva no mundo do crime, convidou-me para uma festa no palácio presidencial, onde Batista me cumprimentou com um beija-mão, enquanto as ruas eram patrulhadas por veículos militares. Ninguém imaginava que a orgia perpétua da ilha ia terminar bem depressa.

Em vista dos maços de dinheiro que Julián costumava pôr no cofre, porque não podia depositá-los no banco sem chamar atenção, sugeri que comprasse outro avião, só para uso de turistas e homens de negócios, e contratasse pilotos de confiança; um negócio legítimo, limpo e bem rentável. Ofereci-me para financiar a metade do investimento com minhas economias, desde que estipulássemos minha participação como sócia num cartório. Ficou furioso, porque eu não confiava na palavra dele, mas no fim cedeu, pois a ideia o seduziu. A aviação comercial dependia dos aeroportos existentes, que ainda se contavam nos dedos de uma das mãos, mas os aviões anfíbios iam a qualquer lugar onde houvesse água suficiente.

Assim nasceu a empresa privada Air Gaviota, que, com o tempo, quando tivemos vários aviões, interligaria a maior parte do território nacional. Foi desse modo que, sem premeditar, realizei o sonho que meu pai alimentara antes de meu nascimento, de investir em aviões. Incumbiu-me viajar com frequência para a capital, onde tivemos de abrir um escritório, porque neste país tudo está centralizado, e o que não aconteça ali é como se não existisse. Mas Julián se fartou da empresa assim que ela ficou organizada, porque lhe faltava a excitação oferecida pelo perigo; rotina era para os outros pilotos, ele andava atrás de façanhas. A receita era anotada na contabilidade oficial, e metade era minha.

Com os anos, Julián não perdeu nada de sua assombrosa vitalidade, que lhe permitia beber como um pirata, pilotar quarenta horas sem dormir, participar de competições hípicas de saltos de obstáculo e jogar várias partidas de squash numa única manhã. Também não se acalmou o seu mau gênio, que explodia como pólvora com qualquer chispa insignificante; mas ele parou de me bater. Eu era depositária de seus segredos e podia causar-lhe muito dano.

— Pense bem, Violeta. Se me deixar, eu serei obrigado a matá-la — gritou uma vez.

— Você também, Julián, pense bem, porque vai precisar de algo mais que ameaças para me segurar — gritei de volta.

Estabelecemos uma trégua por tempo indefinido, e eu me resignei a sobreviver com comprimidos para a ansiedade e outros para dormir.

O que eu temia? Temia as explosões violentas de Julián, as brigas mortais presenciadas pelas crianças, que provocavam crises de asma e enxaquecas em Juan Martín, minha fraqueza para cair vezes sem conta nas armadilhas que ele estendia para mim, temia aceitar as reconciliações tumultuosas e perdoá-lo. Temia que suas “missões” o levassem à prisão ou à morte; temia que as autoridades descobrissem a segunda contabilidade; temia que seus ganhos fossem em troca de sangue; temia os homens suspeitos que ligavam para ele de madrugada e temia que, de tanto andar com criminosos, ele tivesse sido inoculado pela maldade. Julián, em compensação, não temia nada nem ninguém. Tinha boa estrela, gozara de impunidade nos muitos anos que vivera no fio da navalha, era invencível.

No último dia do ano de 1958, Fulgencio Batista e seus colaboradores mais próximos fugiram em dois aviões, levando cem milhões de dólares que lhes garantiriam um exílio de ouro. Nos últimos dias da ditadura, quando já se sentia no ar que nada poderia deter os guerrilheiros, Julián Bravo fazia viagens de ida e volta a Miami, transportando fugitivos, dinheiro e um ou outro mafioso com suas amantes. Logo os revolucionários ocuparam toda a ilha e impuseram o paredão para fuzilar tanto os inimigos políticos quanto aqueles que tinham enriquecido ilicitamente durante a ditadura, decididos que estavam a varrer a corrupção e acabar com o império do vício. O turismo sexual dos americanos terminou, e a máfia abandonou seus bordéis e cassinos; Cuba já não era rentável.

Julián estabeleceu sua base em hotéis de Miami, mas eu me neguei a deixar meu trabalho nas Casas Rústicas e na Air Gaviota, a me afastar de meu irmão, de minhas amizades, de minha casa e de meu estilo de vida em Sacramento para ir viver como turista naquela cidade onde não conhecia ninguém e onde as crianças e eu ficaríamos sozinhos, porque Julián andava mais no ar do que em terra. Íamos para Miami vê-lo de vez em quando, e durante alguns dias ele nos cobria de atenções e presentes, até que outra missão o obrigasse a se despedir ou nós tivéssemos uma daquelas brigas lendárias, seguida por uma reconciliação indecente. Certa vez, quando perguntei a meu filho Juan Martín o que queria de aniversário, ele sussurrou ao meu ouvido “que você se separe para sempre de meu pai”.


13

O terremoto de 1960 me surpreendeu com meus dois filhos em Santa Clara. O sítio dos Rivas continuava sendo meu refúgio, meu lugar favorito de veraneio e descanso, longe de Julián, que nunca nos acompanhava naquelas escapadas. Dos antigos habitantes de Santa Clara só restavam a tia Pilar, Torito e Facunda. Os Rivas tinham morrido uns anos antes, e sentíamos muita falta deles. Por iniciativa própria, os habitantes de Nahuel puseram uma placa de bronze com os nomes deles na estação ferroviária. Vai vê-la, Camilo, ainda deve estar lá, mesmo já não havendo trens, pois agora se viaja de ônibus.

O sítio pertencia a Teresa, única herdeira, pois o irmão lhe cedera sua parte, mas, como ela não podia mantê-lo, assumi os gastos, e, embora nunca tivesse sido esse o meu intuito, com o tempo ele acabou sendo meu. Os dois pastos eram alugados aos Moreau, que tinham plantado vinhedos; tínhamos uma única vaca; os cavalos e as mulas haviam sido substituídos por bicicletas e por uma caminhonete, e o chiqueiro se reduzira a uma porca apenas, da qual Torito cuidava como a uma filha, porque as crias eram sua única fonte de renda. Ainda tínhamos galinhas, cachorros e gatos. Facunda contava com uma moderna cozinha a gás e com dois fornos de barro para fazer seus bolos e empanadas, que eram vendidos em Nahuel e em outros povoados próximos.

Não conheci o marido que Facunda dizia ter. Na verdade, como ninguém jamais o viu, acreditávamos que era inventado. Ela sustentou as duas filhas com a ajuda dos pais; as meninas moraram com os avós enquanto a mãe trabalhava, até se tornarem independentes. Uma delas, Narcisa, teve três filhos em cinco anos, tão diferentes entre si que estava evidente que não tinham o mesmo pai. “Essa menina me saiu destrambelhada”, suspirava Facunda para explicar o desfile de homens que saíam com sua filha e a tendência dela a ficar grávida sem namorado responsável.

Quando o tio Bruno morreu e a casa ficou meio vazia, Facunda levou Narcisa e os netos para morar com ela; assim podia criar as crianças tal como seus pais haviam criado as suas. Os pais que aquelas crianças não tinham foram substituídos por Torito, ainda que, pela idade, ele pudesse ser seu avô. Torito devia estar pelos cinquenta e cinco anos, que só eram notados porque ele perdera alguns dentes e andava mais encurvado. Continuava fazendo suas longas excursões para “ir conhecendo”, e na época acho que já sabia de cor o mapa detalhado de toda a província e mais além.

Facunda chorou a morte do tio Bruno como uma mãe, e eu chorei como uma filha. Aquele homem me adotou de coração quando cheguei ao sítio em tempos de Desterro e deu-me um amor incondicional, como o que recebi de Torito. Facunda levaria flores a seu túmulo todos os sábados até morrer, em 1997. Foi enterrado junto à tia Pía, onde também quero ser enterrada, Camilo. Nada de me cremar e de jogar as cinzas em qualquer lugar; melhor que meus ossos fertilizem a terra. Agora os corpos podem ser colocados numa caixa biodegradável, envolvidos em manta, sabias? Disso eu gosto; deve ser barato.

A tia Pilar desmoronou quando o tio Bruno morreu. Dizia que tinham chegado a ser como irmãos gêmeos, mas prefiro pensar que foram amantes. Quando quis arrancar a verdade de Torito e Facunda, eles responderam com evasivas que confirmaram minhas suspeitas. Já estava na hora. Para a tia Pilar eram muito pesados os seus setenta e sete anos; andava de bengala por ter dor nos joelhos e já não se interessava pelos trabalhos da terra, pelos animais ou pelas pessoas. Ela, que tinha sido um prodígio de energia e otimismo, recolheu-se em si mesma. Passava horas calada, com as mãos ociosas e o olhar perdido. Mais de uma vez a surpreendi falando com o tio Bruno. Quando lhe sugeri que algum dia teríamos de instalar um telefone em Santa Clara, respondeu com plena convicção que, se esse aparelho não comunicava com os mortos, por que diabos precisávamos dele?

Naquele verão Teresa e miss Taylor chegaram com vários baús e um papagaio numa gaiola, para ficar algum tempo e tomar ar, disseram. A verdade é que Teresa estivera presa em solitária por causa de suas atividades a favor dos comunistas, e aqueles dezoito meses numa cela de castigo haviam minado sua saúde. Estava magra e lívida, com tosse de tuberculosa e tonturas que a deixavam desorientada. Fomos esperá-las na estação, e Torito teve de carregá-la nos braços para descer do trem, porque o longo trajeto a deixara extenuada. Tinham se recusado a viajar num anfíbio da Air Gaviota, como lhes ofereci.

Naquela noite, depois do banquete de boas-vindas preparado por Facunda para recebê-las, miss Taylor me confessou entre lágrimas que Teresa estava morrendo aos poucos. Tinha câncer muito avançado nos pulmões.

Para meu filho Juan Martín, aquelas semanas que passávamos anualmente em Santa Clara eram paradisíacas. Ele ficava milagrosamente curado das alergias e da asma e passava o dia ao sol, seguindo Torito, que lhe ensinou a dirigir o caminhão e a cuidar dos leitões. Perdia-se de nós durante horas quando se punha a ler, deitado no chão da Passareira, que ainda estava em pé e tinha na porta o letreiro que proibia a entrada de pessoas de ambos os sexos. “Deixe-me aqui em Santa Clara, mamãe”, pedia Juan Martín todo ano, e eu adivinhava o resto da frase, “longe de meu pai”. Na puberdade, desistiu de tentar agradar a Julián, e a ansiosa admiração que sentira por ele na infância transformou-se em apreensão. Tinha medo dele.

Nieves, em compensação, detestava o campo. Em certa ocasião, comentou com Julián que a tia Pilar era uma velha seca, e Torito, um homenzarrão tarado, o que foi recebido com muita risada. Eu quis mandá-la de castigo para o quarto, por ser atrevida, mas o pai impediu, dizendo que a menina tinha razão: Pilar era uma bruxa, e Torito, um idiota. Mas, apesar da insolência e do aparente cinismo, minha filha era admirável. Ao pensar nela, vejo-a como uma ave de plumagem colorida e voz rouca, alegre, graciosa, pronta para alçar voo e deixar tudo para trás, desprendida.

Sua têmpera ficou provada naquele dia do terremoto, o mais forte até então registrado: durou dez minutos, destruiu duas províncias, provocou tsunamis gigantescos que chegaram até o Havaí e carregaram um barco pesqueiro até o meio de uma praça de Sacramento, deixando um saldo de milhares de vítimas. Foi uma tragédia, mesmo neste país, onde estamos acostumados a ver a terra tremer e o mar se enfurecer. A velha casa de Santa Clara balançou durante longos minutos antes de desabar, o que nos deu tempo de escapar com a gaiola do papagaio em meio a densas nuvens de poeira, sob o estrépito de vigas e pedaços de paredes que caíam por todos os lados e o ronco terrível que se erguia do ventre do planeta.

Abriu-se uma fenda enorme no chão, que engoliu várias galinhas, enquanto os cachorros uivavam. Não conseguíamos nos manter em pé, tudo dava voltas, o mundo virou do avesso. O tremor continuou por uma eternidade, e, quando achávamos que finalmente havia acabado, vinha outra sacudida tremenda. Então ouvimos um estrondo e vimos as chamas. O fogão a gás havia explodido, e o que restava da casa estava pegando fogo.

Em meio ao caos, à fumarada e ao terror, Nieves se deu conta de que a única pessoa que não estava entre nós era Teresa. Não vimos a menina correr para a casa em chamas; se tivéssemos visto, teríamos impedido. Também não sei como as coisas aconteceram, só sei que minutos depois a ouvimos chamar Torito, mas não conseguíamos identificar a direção de seus gritos, e ninguém pensou que vinham da casa. De repente, através da fumaça e do pó, vislumbrei minha filha, arrastando Teresa a duras penas pela roupa. Torito foi o primeiro a alcançá-la. Levantou o corpo inerte de Teresa com um braço e Nieves com o outro, e as afastou do incêndio com sua força de gigante, multiplicada pela emergência. Nieves não tinha nem dez anos.

Naquele dia e naquela noite, que passamos ao relento, tremendo de frio e pavor, percebi a dimensão do caráter de minha filha, que ela havia herdado do pai; tinha a mesma índole heroica dele. Não se lembrava bem de como fizera aquilo e respondia a nosso interrogatório encolhendo os ombros, sem dar nenhuma importância ao fato. Só conseguimos saber que entrou engatinhando nas ruínas, esquivou-se dos obstáculos em chamas, atravessou os restos da salinha e chegou à poltrona de vime onde tinha visto Teresa momentos antes do terremoto. Esta estava meio asfixiada pela fumaça, sem sentidos. Nieves deu um jeito de atravessar de novo o inferno, puxando um peso muito superior ao seu, sempre de gatinhas porque, segundo disse, podia respirar melhor rente ao chão.

Teresa estava agonizando. Seus pulmões, debilitados pelo câncer, não resistiram ao incêndio, e ela morreu algumas horas depois, nos braços de miss Taylor, sua companheira de vida. Nieves saiu com queimaduras de segundo grau nas costas e nas pernas e com os cabelos chamuscados, mas com o rosto intacto e sem nenhum trauma emocional. Para ela, o terremoto que fez história foi apenas um incidente curioso que contaria ao pai. Naquele mesmo dia nós a levamos a Yaima, porque a estrada estava interrompida, e os trilhos do trem, enroscados; era impossível chegar ao hospital mais próximo.

Na comunidade indígena, as choças tinham se desmanchado como que desmanteladas por um vento terrível que encheu o ar de palha e poeira, mas não houve vítimas. As pessoas estavam tranquilas, recolhendo seus míseros pertences e juntando as ovelhas e os cavalos espavoridos. A Mãe Terra e a Grande Serpente que habita nos vulcões tinham ficado irritadas com os homens e as mulheres, mas o Espírito Primordial ia restabelecer a ordem. Era preciso convocá-lo. Yaima adiou os preparativos da cerimônia para atender Nieves com um breve ritual e seus unguentos prodigiosos.

Depois da morte de Teresa, miss Taylor se despediu de nós e voltou para a Irlanda, onde não pusera os pés em quatro décadas. Planejava encontrar os irmãos dispersos desde a infância, mas, depois de uma semana lá, desistiu, pois aquele já não era seu país, e sua única família éramos nós, conforme anunciou a José Antonio num telegrama. Meu irmão lhe respondeu com uma única linha: “Espere, vou buscá-la.”

Trouxe-a num transatlântico que demorava vinte e nove dias de um porto a outro, e assim teve tempo de convencê-la de que ela havia cometido um erro ao rejeitá-lo sistematicamente, mas ainda havia como remediar, e lhe mostrou o anel de granate e brilhantes que conservara desde sempre. Ela argumentou que estava muito velha e triste para se casar, mas aceitou o anel e o guardou no bolso.

José Antonio era muito reservado e nunca teria me contado os detalhes daquela viagem, mas eu soube por miss Taylor que haviam combinado ter um casamento branco. Diante de minha expressão de ignorância, ela explicou que era uma união platônica, como uma boa amizade. O propósito da castidade durou até o Panamá. José Antonio tinha cinquenta e sete anos; ela, sessenta e dois. Viveram juntos mais de vinte anos, os mais felizes de meu irmão.

Torito e Facunda cuidaram da tia Pilar em Santa Clara durante os dois anos que lhe restariam de vida. Ela foi se apagando dia a dia sem nenhum mal visível; simplesmente perdeu interesse pelo humano e pelo divino. Havia rezado milhares de rosários e novenas ao longo da existência, mas, justamente quando mais precisava do sustentáculo da fé, deixou de crer em Deus e no céu. “A única coisa que quero é fechar os olhos e deixar de existir, dissolver-me no vazio, como a neblina do amanhecer”, escreveu numa carta de despedida que entregou a Facunda. Passaram-se muitos anos desde então, e a lembrança de minhas tias ainda me arranca lágrimas; aquelas mulheres foram as fadas de minha infância.

Miss Taylor, que herdara de Teresa o sítio de Santa Clara, decidiu que não valia a pena vendê-lo, apesar da boa oferta feita pelos Moreau, que, depois de desapossarem várias famílias indígenas, estavam engolindo aos poucos os terrenos próximos, para expandir sua propriedade. José Antonio substituiu a casa incendiada pelo melhor que podíamos oferecer nas Casas Rústicas, e eu continuei provendo aos gastos, que eram mínimos. Torito vivera ali a maior parte de sua vida, era seu mundo, não podia viver em nenhum outro lugar. Realizei meu plano de passar várias semanas por ano no sítio, mesmo quando meu destino se enredou; assim mantive as raízes em minha terra.

As pessoas da região dividiram sua vida em antes e depois do terremoto. Perderam quase todas as coisas que possuíam e demoraram anos para reavê-las, mas não passou pela mente de ninguém ir para longe do vulcão ou da falha geológica sobre a qual estávamos assentados. O barco pesqueiro ficou no meio da praça como lembrança da falta de permanência do humano e da insegurança do mundo. Trinta anos depois, coberto de ferrugem e corroído pelo tempo, foi fotografado por uma revista, como monumento histórico.

José Antonio cunhou um lema que sempre me pareceu cínico demais para ser repetido: “quando há catástrofe, compram-se propriedades.” A realidade é que nunca tivéramos tanta demanda para nossas casas pré-fabricadas do que então, quando foi preciso levantar do chão povoados e cidades, e nunca houvera tanta oferta de terrenos para construir nossas vilas.

Comecei a comprar ouro com minhas economias, porque a inflação havia disparado no país e nossa moeda estava se desvalorizando tanto que Julián teve a ideia de comprar fichas do cassino e levá-las a um cassino de Las Vegas, onde as fichas eram idênticas, e trocá-las por dólares. Fez essa gracinha duas vezes nas barbas da máfia, mas na terceira se assustou; o risco de acabar crivado de balas no deserto de Mojave superava o prazer do perigo. Enquanto isso, o valor de meu ouro subia legalmente, na escuridão do subterrâneo do banco. O único que estava a par do meu caminhar rumo à riqueza era meu irmão, que tinha a segunda chave do cofre.

Fabian Schmidt-Engler chegou um domingo à casa de José Antonio para consultá-lo como advogado sobre um assunto confidencial, como disse. Meu irmão, que sempre teve pena dele, pela desgraça de ter-se casado comigo, recebeu-o com amabilidade. Um grupo numeroso de imigrantes alemães que se estabelecera numa comunidade agrícola da região estava precisando dos serviços de um advogado discreto, explicou Fabian.

Tínhamos ouvido rumores contraditórios sobre a colônia Esperanza. Diziam que estava sob o comando de um criminoso de guerra fugitivo; ali ocorriam coisas misteriosas, e a área parecia uma prisão, rodeada por arame farpado, onde ninguém podia entrar nem sair. Fabian negou esses boatos. Disse a meu irmão que conhecia o chefe e estivera várias vezes na propriedade como veterinário. Aqueles imigrantes viviam em paz, de acordo com sólidos princípios de trabalho, ordem e harmonia. A colônia não tinha problemas legais, mas às vezes era preciso tratar com as autoridades, que costumavam ser impertinentes.

José Antonio teve a impressão de que a questão era suspeita e desculpou-se com o pretexto de que estava muito ocupado com sua empresa. Ao se despedir, perguntou em tom casual se por acaso ele havia pensado no assunto da anulação do casamento.

— Não há nada para pensar nesse assunto — respondeu Fabian.

No entanto, poucos anos depois, apareceu no escritório das Casas Rústicas para vender a anulação porque estava precisando de dinheiro para financiar um laboratório. Havia sido descoberta a forma de congelar sêmen por tempo indefinido, e isso descortinava infinitas possibilidades no universo da genética animal e humana. José Antonio regateou o preço, redigiu um acordo, deu metade do dinheiro a Fabian e depositou o restante quando o juiz deferiu a anulação. Para isso serviu uma parte de minhas moedas de ouro. Quando menos esperava, tornei-me uma mulher solteira.


TERCEIRA PARTE

Os ausentes

(1960-1983)


14

Ao rever o passado, percebo que perdi Nieves muito antes do que pensava. Minha filha tinha catorze anos quando Julián decidiu que, em vez das férias costumeiras em Santa Clara, ela passaria esse período com ele, os dois sozinhos, numa lua de mel de pai e filha. Ele perdera a esperança de fazer Juan Martín “ser homem”, quer dizer, homem à sua imagem. Seu filho era um adolescente embaraçado e romântico, que parecia mais interessado em ler Albert Camus e Franz Kafka do que as revistas Playboy que o pai lhe trazia de Miami, que preferia discutir marxismo e imperialismo com um punhado de amigos tão atormentados quanto ele a bolinar as amigas da irmã em algum canto escondido.

Nos anos seguintes, Julián viajou com Nieves e lhe ensinou a dirigir automóvel e a copilotar. Quando a pegou fumando e bebendo restos de coquetéis nos copos, começou a abastecê-la de cigarros mentolados e a instruiu na arte de beber com moderação, embora ele mesmo exagerasse no álcool. Bem cedo Nieves passou a se vestir com roupas provocativas e a usar maquiagem de modelo para sair a se exibir com o pai em cabarés e cassinos, onde apostavam juntos nas mesas de jogo sem que ninguém desconfiasse de sua idade; a diversão dos dois era ver que a tomavam pela última conquista de Julián. As queimaduras que ela sofrera na infância haviam deixado cicatrizes muito leves, graças, imagino, à intervenção de Yaima. Sua beleza, segundo Julián, fechava o comércio. Aos dezoito anos ela cantava canções da moda em hotéis e cassinos, onde os fregueses lhe davam gorjetas, o que Julián achava muito engraçado. Ele gostava daquele jogo de provocar desejo em outros homens exibindo a filha a prudente distância, mas afugentava qualquer rapaz que se aproximasse dela. “Assim nunca vou arranjar namorado, papai”, queixava-se Nieves. “Na sua idade, a última coisa de que você precisa é namorado. Ele teria de passar por cima do meu cadáver”, respondia ele. Era ciumento como um amante.

Enquanto isso, eu vivia em nosso país com Juan Martín, que estava estudando filosofia e história. Aos olhos do pai era perda de tempo, não servia para nada. Como a universidade ficava na capital, aluguei um apartamento onde morávamos juntos, mas nos víamos pouco; eu tinha um pé em Sacramento e ia com frequência aos Estados Unidos, para ver Nieves. Meu filho passava longas temporadas sozinho.

A anulação do casamento chegou quando eu já não a queria. Tinha me acomodado às vantagens de minha situação; para efeitos práticos, gozava de liberdade e, para satisfazer as exigências da paixão, contava com um homem impetuoso que, depois de tantos anos de hábitos comuns, cumplicidade inevitável e rancores acumulados, ainda conseguia me dominar com beijos. Como é longa a servidão do desejo! Ela nunca foi tão humilhante como na metade de minha vida, quando na mulher do espelho se notavam os cinquenta anos de luta e cansaço no corpo e na alma. Para Julián, em contrapartida, a idade era optativa; ele decidiu ter sempre trinta anos e quase conseguiu. Continuou sendo jovem, despreocupado, alegre e mulherengo até uma idade em que o restante dos mortais contempla a morte inexorável. “A única coisa de que a gente se arrepende no final é dos pecados que não cometeu”, dizia.

Os períodos em que me juntava a Julián eram de excitação e sofrimento. Preparava-me para aqueles encontros como uma noiva, prevendo o momento em que estaríamos sozinhos, nos abraçaríamos com renovado entusiasmo e faríamos amor com a sabedoria dada pela muita prática, dormiria grudada às suas costas, aspirando seu cheiro de homem são e vigoroso, acordaria aturdida de carícias e sonhos, tomaríamos nus o primeiro café da manhã e andaríamos pelas ruas de mãos dadas, pondo em dia tudo o que tivesse acontecido em nossa ausência. Assim era por alguns dias. Depois começava o tormento dos ciúmes. Eu me observava no espelho, comparando-me às jovens da idade de minha filha, que ele seduzia sem dissimulação. Por sua vez, Julián censurava minha independência, o tempo que passava longe dele, a fortuna que eu guardava escondida para evitar dividir com ele. Acusava-me de ambiciosa; na época, era um insulto, se dirigido a uma mulher. De fato, ele sempre dava um jeito de avançar sobre uma parte de minhas economias. Por suas mãos passava um rio de dinheiro, mas ele vivia de crédito e acumulava dívidas.

Confesso, Camilo, que mais de uma vez roguei ao céu que Julián se espatifasse em um de seus aviões e até cheguei a sonhar em assassiná-lo, para ficar livre dele. Não teria sido a primeira nem a última mulher que mata o amante porque já não o suporta.

Julián tanto insistiu em vivermos juntos outra vez, que me mudei para Miami. Não o fiz para satisfazê-lo, mas para tentar me aproximar de Nieves, que tinha abandonado os estudos antes de terminar a escola secundária, dormia o dia inteiro, desaparecia à noite e nunca estava disponível quando eu lhe telefonava. Havia perdido o pouco respeito que alguma vez tivera por mim e exercia com perfeição a arte de usar o pai para me humilhar. Por ele ela nutria verdadeira adoração; era eu que a impedia de se divertir: antiquada, severa, avarenta, puritana, velha chata, como me chamava sem rodeios.

Na época, a cidade estava cheia de cubanos exilados, alguns com muito dinheiro. Havia muitos iates nas marinas, Cadillacs nas ruas e bares-restaurantes com a melhor cozinha da ilha; o ar vibrava com música latina e conversas aos gritos, com aquela inflexão de consoantes que soam como vogais. A cidade já não era nem sombra daquela espécie de sala de espera da morte para velhos aposentados que havia sido antes.

Julián alugou uma mansão isolada perto do mar, com uma cortina de palmeiras e uma piscina com jatos de água e luzes, que exigia numeroso pessoal doméstico. Era uma imitação da arquitetura mediterrânea da Itália, adaptada ao gosto de novos-ricos: ampla, esparramada, com terraço de lajotas pintadas, toldos azuis e plantas esmaecidas pelo calor em vasos de cerâmica. A decoração interior era tão pretensiosa quanto sua aparência externa de bolo cor-de-rosa. Em nome da tradição, ele me levantou nos braços para cruzar a soleira pela primeira vez e levou-me para percorrê-la, orgulhoso com a cozinha digna de um hotel — não gosto de cozinhar, nem ele —, os seis banheiros com motivos de sereias e delfins, os salões com cheiro de musgo e desinfetante e o torreão com um telescópio para espiar as embarcações que costumavam ancorar à noite nas proximidades da praia.

A mansão passou a ser o centro das atividades comerciais de Julián e das reuniões com as pessoas que ele chamava de sócios. Alguns dos sócios tinham pinta de burocrata que se apresentavam de terno e colete, apesar da umidade e do calor; outros eram americanos de camisa de manga curta e chapéu, ou então cubanos de sandálias e guayaberas. Também desfilavam tipos com anéis vistosos e charutos, que falavam inglês com sotaque italiano e vinham acompanhados por guarda-costas mal-encarados, grotescas caricaturas de mafiosos.

— Trate-os com amabilidade, são meus clientes — avisou, quando eu quis indagar, mas quase nunca tratei com eles; a casa era grande, e não topávamos uns com outros.

Com vinte e quatro horas de convivência no bolo cor-de-rosa, Julián pôs na mesa da sala de jantar duas caixas de papelão cheias de papéis e me pediu que o ajudasse a separar o conteúdo. Então entendi que seu interesse por me ter a seu lado não era sentimental, mas prático; eu sempre tinha sido sua administradora, secretária e contadora. Naquelas caixas havia de tudo, desde contas pendentes, tíquetes de compras, endereços e itinerários até anotações à mão cujo significado nem ele conseguia decifrar. Ao tentar pôr em ordem aquele emaranhado, fui percebendo a natureza das atividades de meu companheiro, em sua maioria ilegais, como já imaginava.

Pesadas maletas pretas entravam e saíam regularmente, cheias de maços de notas. Nos aposentos da casa havia um arsenal, mas Julián, que nunca andava armado, explicou que nada lhe pertencia, que só guardava aquilo para os amigos. Ao fim de uma semana desistiu da tentativa de me enganar e falou dos cubanos que conspiravam contra a revolução de Fidel Castro, da máfia que controlava o crime na Flórida e em Nevada e da CIA, cujo propósito era impedir por qualquer meio o avanço das ideias de esquerda na América Latina.

— Há movimentos guerrilheiros em quase todos os países do continente. Você há de entender que não se pode permitir outra revolução como a cubana entre nós — explicou.

— E o que você tem a ver com isso? O que você faz para a CIA?

— Transporte, de vez em quando, alguns voos que não podem ser conhecidos. Recolho informação dos cubanos e dos contatos que tenho em outros lugares, nada de importante.

— Pagam?

— Pouco, mas tenho muitas vantagens. Os americanos me deixam agir, não me incomodam.

— Juan Martín diz que, com o pretexto da Guerra Fria, a CIA derruba democracias e apoia ditaduras brutais, que beneficiam as elites e impõem terror ao povo. Há tanta injustiça, desigualdade e miséria que com razão o comunismo pega em nossas terras.

— É pena, mas isso não nos diz respeito. Juan Martín está metido num antro de comunas que lhe estão fazendo lavagem cerebral.

— É a Universidade Católica, Julián!

— Pode ser, mas o teu filho é um moleirão.

— É teu filho também.

— Tem certeza? Não parece...

Eram assim as conversas que levavam rapidamente a uma batalha cruenta; começávamos qualquer assunto e acabávamos nos agredindo.

Lembro-me de Zoraida Abreu com admiração, por razões que logo contarei. Naquela época, ela era uma jovem porto-riquenha exuberante, que podia ser confundida com uma belezoca burra, por causa da roupa provocativa e da voz enjoativa, mas na realidade era uma amazona. Julián se apaixonou por ela numa de suas viagens e, tal como aconteceu comigo, não conseguiu deixá-la. No meu caso foi porque fiquei grávida; no dela, não posso saber, mas suponho que aquela mulher era mais aguerrida que ele. Zoraida, que aos dezessete anos havia sido rainha da beleza num concurso do rum Boricua, seguiu Julián quando ele foi morar em Miami. Julián abominava qualquer amarra e a manteve ao largo dizendo que estava casado comigo e em seu país não havia divórcio, que adorava os filhos e nunca os deixaria.

Conheci-a porque ela se atreveu a me convidar para tomar um trago no bar do hotel Fontainebleau. Era alta, vistosa, tinha uma cabeleira abundante, que dava para duas perucas, e chegou vestida com calça capri justa, sandálias de saltos altos e uma blusa amarrada com um nó na cintura, que ressaltava seus seios. Apesar dessa pinta de periguete briguenta, não era vulgar. Todos os homens do pedaço se viraram para olhá-la quando ela entrou e mais de um assobiou. Pedimos dois coquetéis, e ela passou a me dizer sem preâmbulos que era amante de meu marido fazia quatro anos e dois meses.

— Desculpe, eu precisava dizer isso a você porque não consigo viver de mentiras.

— Quer minha autorização? Vá em frente, mulher, é todo seu — disse-lhe, uma vez que eu não poderia impedir aquilo de modo algum e na época já não me importavam os casos de Julián.

— Julián me disse que vocês estão juntos porque não podem se divorciar, mas não se amam.

— Não estamos casados. Se ele quiser, está livre para se casar com você.

Passamos uma hora em estranha cumplicidade. Zoraida se recompôs da surpresa e da raiva com a segunda taça e decidiu deixar a situação como estava; não ia enfrentar Julián com a verdade que havia descoberto, porque só conseguiria perdê-lo. Aquela informação poderia servir-lhe no momento apropriado. Para ela era conveniente que ele fingisse estar casado, pois isso afastaria outras rivais, e a mim convinha que ela o mantivesse ocupado.

— Não sou puta, não quero o dinheiro nem nada dele, também não penso em chantageá-lo. Sou sadia e católica — explicou, com uma lógica impecável.

Pelo visto, eu não entrava na categoria de rival; era inócua, mulher madura vestida de tailleur estilo Jacqueline Kennedy, que já estava saindo de moda, porque se usava minissaia. Pareceu-me cruel esclarecer que naquele exato momento, enquanto bebíamos martinis, ele talvez estivesse com outra. Zoraida achava que cedo ou tarde Julián se casaria com ela. Tinha vinte e seis anos e muita paciência.

A CIA me preocupava muito menos do que os gângsteres responsáveis pelas maletas pretas, pelo arsenal de guerra que havia na casa e pelos pacotes sem identificação que apareceram umas duas vezes diante da nossa porta. Julián me ordenou que não os tocasse, porque podiam explodir. Ali ficaram, tostando ao sol, até que Julián trouxe um homenzinho com cara de rato que se encarregou do problema. O rato era um veterano de guerra especialista em bombas, que auscultava o pacote e depois passava a abri-lo com delicadeza de cirurgião. Da primeira vez, tratava-se de garrafas de uísque; da segunda, de vários quilos da melhor carne bovina — filé, costela, costeletas —, que vinha envolta em gelo, mas a espera ao sol a transformara em massa sanguinolenta e fétida. Eram presentes de clientes agradecidos.

Voltei a sentir o punho fechado do medo na boca do estômago, como me ocorria sempre que passava algum tempo com Julián; perguntava-me que diabo eu estava fazendo em Miami.

No verão fomos atingidos por um daqueles furacões que põem o mundo de pernas para o ar. Estávamos numa colina elevada, por isso não temíamos as ondas; limitamo-nos a tapar as janelas e reforçar as portas contra o vendaval. Foi uma experiência memorável; a vantagem do furacão sobre o terremoto é que ele avisa com certa antecedência. O vento e a água açoitaram a casa, arrancaram várias palmeiras e levaram embora tudo o que estava solto. Quando a tormenta se acalmou, a mesa de pingue-pongue de alguém que morava a meio quilômetro de distância estava flutuando em nossa piscina, e no terraço do segundo andar encontramos um cachorro aterrorizado que tinha chegado voando, pobre animal.

Dois dias depois, quando a terra começava a secar, Julián descobriu que a fossa séptica tinha transbordado e ficou frenético. Negou-se a chamar alguém para consertar e resolveu destapá-la ele mesmo, com luvas e botas de borracha, metido até os joelhos numa sopa asquerosa, praguejando a plenos pulmões. Logo vi por que ele não podia pedir ajuda. Retirou do buraco uma bolsa imunda, arrastou-a para a cozinha e esparramou o conteúdo no chão: maços de notas molhadas e sujas de cocô.

A ponto de vomitar, vi que Julián planejava limpar o dinheiro na máquina de lavar roupa.

— Não! Nem pense em fazer isso! — gritei, histérica.

Ele deve ter adivinhado que eu ia impedi-lo com derramamento de sangue, porque, sem pensar, catei a maior faca da cozinha.

— Okay, Violeta! Calma! — suplicou, assustado pela primeira vez na vida.

Deu um telefonema, e pouco depois tínhamos dois brutamontes da máfia à nossa disposição. Fomos a uma lavanderia, onde os mafiosos puseram uma nota de dez dólares na mão de três senhoras que estavam lavando a roupa das respectivas famílias, tiraram-nas do local com instruções de esperar lá fora e plantaram-se na porta para vigiar, enquanto Julián lavava as notas cagadas. Depois foi preciso secá-las e colocá-las numa sacola. Levou-me porque não tinha ideia de como operar aquelas máquinas.

— Ah-ha, agora entendo o que é lavagem de dinheiro — comentei.

Era o que faltava para eu entender de uma vez por todas que convinha mais ser amante de Julián do que esposa. Voltei para Sacramento no dia seguinte.

Demorei para falar mais de Nieves porque é um assunto muito doloroso, Camilo. Talvez eu tenha culpado Julián injustamente pelo destino de minha filha. A realidade é que cada um é responsável por sua própria vida. Nascemos com certas cartas, e com elas jogamos nosso jogo; alguns recebem cartas ruins e perdem tudo, mas outros jogam magistralmente com essas mesmas cartas e triunfam. O baralho determina quem somos: idade, gênero, raça, família, nacionalidade etc., e não podemos mudar essas coisas, só podemos usá-las o melhor possível. Nesse jogo há obstáculos e oportunidades, estratégias e ciladas. Nieves recebeu cartas extraordinárias: tinha inteligência, coragem, audácia, generosidade, encanto, voz cativante e beleza. Eu a amava com toda a minha alma, como as mães normais amam seus filhos, mas meu amor não podia igualar-se à adoração do pai. Nieves foi a única pessoa deste mundo que Julián amou mais do que a si mesmo.

Dizem que toda menina se apaixona pelo pai na primeira infância; parece que isso se chama complexo de Electra e é superado naturalmente. Às vezes, porém, o pai se apaixona pela filha, e então os sentimentos se emaranham como novelo de lã nas garras de um gato. Algo assim aconteceu entre Nieves e Julián. Ele ficou obcecado pela menina assim que adivinhou nela as qualidades que admirava e que seu filho não tinha; ela era como ele, de seu sangue e espírito, ao contrário de Juan Martín, que ele considerava fracote e afeminado. Este não conseguia competir com a irmã, e chegou um momento em que abandonou qualquer tentativa e se resignou a ocupar um canto invisível à sombra dela. Fez isso com tanta eficiência que o pai praticamente se esqueceu de sua existência.

Certa vez, na piscina, vi Julián passando bronzeador em Nieves, como fizera muitas vezes, mas alguma coisa na cena me inquietou, e a chamei, para eu mesma passá-lo.

— Meu pai passa melhor — respondeu com expressão brincalhona.

Mais tarde me atrevi a enfrentar Julián; como resposta, levei um bofetão na cara. Fazia tempo que ele não me batia, e nunca me marcara o rosto. Acusou-me de ser uma megera imunda que manchava tudo com suspeitas, ciúmes e inveja, disse que tinha me suportado durante anos, mas não ia tolerar que eu destruísse a inocência de Nieves com minha maldade.

No ano que convivi com Julián na horrenda mansão rosada de Miami, em companhia de mafiosos, conspiradores e espiões, Nieves estava conosco em teoria, porque na prática a vi muito pouco. A propriedade ficava distante do centro da cidade, e com frequência minha filha dormia na casa de amigas, dizia. Às vezes eu a encontrava deitada numa espreguiçadeira junto à piscina, tomando pinha colada e descansando depois de uma noitada de farra. Algumas noites ficava em tal estado de aturdimento causado pelo álcool e, suponho, também por drogas, que não podia dirigir e, se não encontrasse alguém que a levasse para casa, ligava para Julián pedindo que fosse buscá-la. Aliviava a ressaca com cocaína, que ele sempre tinha à mão e considerava tão inócua quanto o tabaco.

Minha filha cantava em cabarés e cassinos, que sem dúvida eram controlados pela máfia, aonde Julián me levou algumas vezes para ouvi-la. Parece que a vejo agora como ela era naquelas noites, menina pintada como cortesã, com um vestido justo de lentejoulas e aspergida de falsos diamantes, acariciando o microfone e seduzindo o público com sua voz rouca e sensual. O pai a aplaudia entusiasmado, assobiava e soltava galanteios como outros homens do público, enquanto eu me retorcia com dor de estômago, rogando ao céu que o espetáculo terminasse logo.

Dois anos depois, um sujeito “descobriu” Nieves num daqueles antros e a levou para Las Vegas da noite para o dia, com promessas de amor e sucesso nos palcos. Chamava-se Joe Santoro e apresentava-se como agente, mas era apenas um ator de pouca importância, um daqueles jovens americanos bonitos, de poucas luzes e menos escrúpulos, que existem aos montões. Nieves embrulhou suas coisas em segredo e foi embora sem dizer nada ao pai. Dois dias depois, quando ele já havia recorrido à polícia para encontrá-la, ela lhe ligou de Las Vegas. Sem vacilar, Julián foi buscá-la, enlouquecido de raiva e ciúmes. Ele tinha contatos na cidade, aonde ia em viagens para clientes e de onde provinham algumas das maletas pretas. Seu plano consistia em contratar um pistoleiro para pulverizar os joelhos do tal Santoro a tiros e puxar a filha pela orelha de volta a seu lado.

Encontrou Nieves numa casa asquerosa que Joe Santoro dividia com um montão de hippies e vagabundos de passagem que dormiam algumas noites ali e desapareciam, deixando um rastro de imundície e estragos. Minha filha estava deitada com seu jovem amante num colchonete ensebado no chão, em meio a uma bagunça de roupa espalhada, latas de cerveja e restos de pizza fossilizada. Os dois viajavam por outros universos com uma combinação de LSD e maconha, mas em Nieves restava lucidez suficiente para adivinhar o objetivo do pai. Seminua, com olheiras de maquiagem e desgrenhada, plantou-se diante do gângster de aluguel, segurou o cano da pistola com as duas mãos e jurou ao pai, pelo que havia de mais sagrado, que, se tocassem em Joe, ele não voltaria a vê-la nunca mais na porra de sua vida, porque ela ia se suicidar.

A filha assestou em Julián o único golpe que podia minar sua fortaleza de titã. Nieves simplesmente o abandonou com a ferocidade de quem tenta afastar-se de um risco de morte. Acho que Nieves sentiu em nível celular aquilo que sua mente não podia admitir; precisava escapar da paixão do pai e de sua própria fixação e dependência. Cortou os laços com uma única tesourada, negando-se a voltar a Miami com ele ou a aceitar qualquer forma de ajuda. A ira que dominava Julián ao chegar a Las Vegas foi substituída por desespero, ao ver Nieves enfrentá-lo como a um inimigo. Ofereceu-lhe o que ela quisesse, prometeu-lhe que faria todos os seus gostos, disse que estava disposto a mantê-la em bom nível de vida com aquele Joe Santoro ou qualquer outro desgraçado que ela escolhesse, porque não era possível que sua filha vivesse numa pocilga; suplicou, humilhou-se, chorou, mas nada demoveu a vontade pétrea de sua filha. Então ele compreendeu que ela era exatamente como ele, indômita, atrevida e disposta a fazer o que lhe desse na veneta, sem consideração por ninguém. Nieves podia semear infortúnio por onde passasse com a mesma indiferença dele. Sua filha era o espelho em que ele contemplava sua própria imagem.

Nieves ficou em Las Vegas. Julián tentou instalar-se por perto, para intervir quando fosse indispensável, mas precisou desistir, porque ela não queria vê-lo nem de longe, e ele também não podia afastar-se de seus negócios em Miami. Imagino que seus clientes não estavam dispostos a largá-lo, porque era problemático conseguir pilotos capazes de voar à noite abaixo do sinal do radar em território inimigo ou pousar num pântano infestado de jacarés para entregar ou recolher pacotes misteriosos.

Para vigiar a filha, contratou um detetive, Roy Cooper, que haveria de desempenhar papel fundamental em tua vida, Camilo. Era um ex-presidiário especializado em chantagem, pelo que eu soube, mas não me ficou claro se ganhava a vida fazendo chantagem ou resolvendo casos de chantagem.

As informações de Roy partiram o coração de Julián. Sua filha ia descendo a ladeira diretamente para a morte. Tinha ficado com Joe Santoro por algum tempo, mas logo o largou, ou foi ele que a largou; o fato é que Nieves se viu na rua. O famoso Verão do Amor em San Francisco ocorrera uns anos antes, mas a contracultura dos hippies ainda florescia em muitas cidades do país, entre as quais Las Vegas. Aqueles jovens cabeludos, tatuados, ociosos e felizes que vagavam por toda a Califórnia e logo fariam história em Woodstock, não eram tolerados em outros lugares e corriam o risco de apanhar ou ser presos. Julián não tinha visto nenhum em Miami.

Nieves imergiu naquele grupo vistoso de rapazes e moças brancos de classe média, que optavam por viver como mendigos, em promiscuidade, com música psicodélica e drogas. Roy ia no encalço dela, mandando frequentes informações a Julián. Nas fotografias, Nieves aparecia vestida de farrapos enfeitados com espelhinhos e flores nos cabelos, numa manifestação com um punhado de jovens, contra a guerra do Vietnã; aparecia sentada em posição de lótus aos pés de um guru descabelado ou cantando baladas e pedindo esmola num parque. Dormia em comunidades, na rua, em algum carro caindo aos pedaços, uma noite aqui, outra acolá, com o espírito errante de tantos outros jovens daquela época. Entregou-se ao atrativo da liberdade sem rumo, do amor de um dia e da embriaguez da dissipação. Abraçou a estética inspirada na Índia, a igualdade e a camaradagem, mas não tinha interesse pela filosofia oriental nem pelas ideias políticas e sociais do movimento. Protestava contra a guerra para se divertir e desafiar a polícia, mas nem sabia onde ficava aquele lugar chamado Vietnã.

Roy tinha instruções de providenciar para que ela não passasse fome e de protegê-la como pudesse, sem levantar suspeitas de ser um enviado do seu pai, o que acabava sendo fácil, porque Nieves vivia perdida numa nuvem de maconha e ácido. No afã de experimentar de tudo e tragar a vida em grandes sorvos, também começou a cafungar heroína. A ideia de Julián era dar corda a Nieves para ela chegar ao fundo do poço sem sofrer danos, e então poder resgatá-la. Para Roy era impossível contar os homens com que Nieves mantinha relações casuais; não valia a pena averiguar nomes porque, se ela permanecia com algum, era só por três ou quatro dias. Nas fotos que enviava a Julián, tiradas de longe ou de passagem, todos pareciam ser o mesmo indivíduo: barbudo, cabelama comprida, colar de contas ou flores, sandálias e guitarra.

O único diferente era Joe Santoro, que entrava e saía da vida de Nieves com certa regularidade. Não era um hippie da massa. Vendia metanfetamina e heroína numa atividade de formiguinha, tão insignificante que a polícia não o incomodava. Seus compradores eram escriturários, gente de terceiro escalão na indústria do entretenimento e hóspedes dos hotéis. Os hippies preferiam maconha e alucinógenos, que eram repartidos de graça; a maioria desprezava as drogas pesadas e o álcool. Nunca saberemos se ele iniciou Nieves na heroína ou se apenas a abastecia quando ela estava desesperada. O caminho do vício é reto e bem pavimentado; Nieves o percorreu depressa.

Não fiquei sabendo de nada disso até um ano depois, porque Julián, por telefone e quando vinha a nosso país, garantia que Nieves estava bem, que dividia um apartamento com duas amigas e estava estudando arte. Falava com ela duas vezes por semana, disse, mas não a visitava porque ela queria voar com suas próprias asas por um tempo, o que era normal na sua idade. Também não queria que eu fosse vê-la. Eu não devia me preocupar se ela não respondesse às minhas cartas, porque Nieves sempre tinha sido ruim para se comunicar. Uma vez, quando fui a Miami pôr os papéis de Julián em dia, ele deu um jeito de desculpar a ausência e o silêncio de minha filha. Eu poderia ter indagado mais, e não o fiz. Também eu sou culpada.

Julián e eu continuávamos unidos apenas pelo longo hábito de nos detestar e desejar. E por Nieves, claro. Juan Martín não conta, porque, por ele, Julián e eu teríamos nos separado quinze anos antes. É impossível explicar essa mescla obscena de atração e rejeição, paixão e raiva, esse costume necessário de brigar e reconciliar-se; eu mesma não entendo, porque com o tempo a gente se lembra dos fatos, mas as emoções se apagam. Já não sou a mulher que fui então.

De cada viagem a Miami que fiz naqueles anos, voltava para casa em Sacramento ou ao apartamento que dividia com meu filho na capital determinada a nunca mais acudir à convocação de Julián, mas reincidia inevitavelmente, como um cachorro adestrado a pancadas. Ele me chamava quando se via afogado no caos, para que eu pusesse ordem, e vinha me ver quando precisava fugir de alguma encrenca com rabo de saia ou dinheiro. A presença dele era um tufão que alterava completamente minha existência bem regulada e a paz de espírito que eu sentia longe dele. Essas eram as únicas ocasiões em que eu bebia até ficar bêbada e usava maconha; segundo Julián, eu precisava disso para gozar a vida como uma pessoa normal. “Gosto de você quando está relaxada. Não posso estar bem a seu lado se a única coisa que você tem na cabeça são preocupações e negócios”, dizia.

Essa era uma causa recorrente de briga: meus negócios. Tenho faro para fazer dinheiro, como sabes, Camilo; eu economizava, sabia investir e vivia frugalmente. Para Julián, essa prudência em matéria de dinheiro era avareza, outro defeito meu, mas, enquanto me criticava, era capaz de desbaratar meus ganhos de um ano em cinco minutos.


15

Meu irmão José Antonio e Josephine Taylor, os únicos que sabiam do abuso de Julián, muitas vezes me censuraram por permitir que isso acontecesse. Por insistência deles, acabei no consultório de um psiquiatra, para que ele me ajudasse a resolver aquela dependência emocional que tanto prejuízo me causava.

O doutor Levy era um judeu que estudara em Viena com Carl Jung; era professor da universidade e autor de vários livros; uma eminência. Calculo que tinha uns oitenta anos, mas é possível que fosse mais novo e estivesse desgastado pelo sofrimento. Conhecia Julián porque tinha sido um dos imigrantes trazidos por ele clandestinamente ao país, em seu avião anfíbio, depois da guerra. Perdera toda a família nos campos de extermínio, mas esse luto monumental não lhe deixou amargura, e sim uma infinita compaixão pela fraqueza humana. Eu me sentia envergonhada por fazer um sobrevivente do Holocausto perder tempo com meus míseros problemas sentimentais, mas ele me tranquilizava com um único olhar. Fechava a porta do consultório, e o ar se detinha naquele aposento abarrotado de livros; nada existia, só ele e eu.

— Tive uma vida banal, doutor Levy. Não fiz nada que valha a pena mencionar, sou uma pessoa medíocre — disse numa sessão.

Ele respondeu que todas as vidas são banais e todos somos medíocres, dependendo da pessoa com quem nos comparamos.

— Por que quer uma vida trágica, Violeta? — perguntou-me, e sua voz se embargou; talvez pensasse no sofrimento que o atingira. — Existe uma maldição chinesa que vem ao caso: “desejo-lhe uma vida interessante.” A bênção correspondente seria “desejo-lhe uma vida banal” — acrescentou.

Graças ao doutor Levy, que me conduziu pela mão, consegui me separar de Julián. Não aconteceu logo; foi um longo caminho de introspecção, que se iniciou em minha infância na casa-grande das camélias, onde descobri o corpo de meu pai, e, ao longo das paisagens da memória, me levou a miss Taylor, a minhas tias, ao sítio dos Rivas, à escolinha itinerante, ao ataque de Pascual Freire do qual fui salva por Torito, a Fabian, a Julián e a meus filhos, até chegar aos cinquenta anos, cansada de luta e solidão.

Comecei anunciando a Julián que ele não devia contar nunca mais comigo para tirá-lo de encrencas, financiar suas extravagâncias, pagar suas dívidas, fazer milagres com sua contabilidade ou recolher os pedaços dos destroços que ele deixava por onde passava. Também não voltaria a pisar no bolo cor-de-rosa de Miami; nada de dinheiro sujo de merda na lavadora, de gângsteres e espiões. Se quisesse vir me ver, teria de ficar num hotel e tratar Juan Martín com respeito. Por fim, ele precisava saber que, se voltasse a levantar a mão para mim, lamentaria seriamente.

— Você vai precisar de força e clareza para concretizar seus propósitos, Violeta. Aconselho a desistir do álcool quando estiver com Julián — disse o doutor Levy.

Até aquele momento eu não havia relacionado isso com o poder que Julián exercia sobre mim.

Julián achou que era mais uma das ameaças vãs que, fazia anos, eu repetia, mas daquela vez quem estava por trás de mim era o doutor Levy. Dois meses depois, cansado de me suplicar que fosse ajudá-lo em Miami, conformou-se em delegar a outra pessoa o quebra-cabeça daquilo que ele chamava de suas empresas, mas que na realidade era uma série de tráficos e transações de bandido. Essa pessoa era Zoraida Abreu, a jovem amante de longa trajetória e boa vontade, com quem tomei martinis no hotel Fontainebleau. Sua escolha mostrou-se perfeita, pois ela era contadora profissional, além de eficiente, discreta e disposta a servi-lo por amor, como eu fizera. Enquanto eu lidara por instinto com os números loucos da contabilidade dupla, ela tinha método e conhecimento total das leis americanas. Sabia como manter as contas secretas, sonegar impostos e lavar dinheiro. Julián estava muito melhor com ela do que comigo.

Imagino a rainha do rum Boricua, toda curvas e cabeleira leonina, impondo sua autoridade aos sócios e clientes de Julián e mantendo ao largo as apaixonadas temporárias. Ela me dissera que era metódica, requisito necessário em sua profissão, e pouco tolerante com o desperdício; seus pais eram muito austeros, e ela havia estudado em colégio de freiras. De vez em quando me ligava para contar o último dramalhão ou pedir conselho. Era uma mulher imponente, mandona, segura de si e de suas opiniões, que soavam cômicas na sua irritante maneira infantilizada de falar. Duvido que Julián pudesse dominá-la ou atemorizá-la; acho que num pega pra capar ela poderia esmagá-lo como uma barata.

A existência de Zoraida foi uma bênção para mim, porque me ajudou a soltar as últimas amarras sentimentais que me prendiam a Julián.

Julián começou a vir ao país muitas vezes seguidas, em missões ultrassecretas que diziam respeito à misteriosa comunidade de alemães, a colônia Esperanza, segundo me disse. Fiz-lhe notar que não deviam ser tão secretas, já que ele me contava enquanto almoçávamos ostras e ouriços-do-mar num restaurante do porto.

— Você é minha alma, Violeta. Me conhece melhor que ninguém, com você não tenho segredos — respondeu.

Abstive-me de perguntar se os tinha com Zoraida, porque era melhor que não desconfiasse da inusitada camaradagem entre mim e ela.

Julián via o filho em poucas ocasiões. Juan Martín recusava com educação seus poucos convites para ir a Miami, pretextando estudos, e, quando o pai aparecia na capital, viam-se o mínimo possível. Ambos evitavam se aprofundar em qualquer assunto, sobretudo política, que poderia ser um pavio a acender a aversão mútua. Para Julián, o filho era um permanente desencanto, e para Juan Martín o pai era um safado vendido ao imperialismo ianque.

Quem acabava de ganhar as eleições presidenciais era um socialista que representava uma coalizão de partidos de esquerda, para quem Juan Martín havia trabalhado incansavelmente na campanha. O pai tinha certeza de que ele não duraria mais que uns meses no governo, porque nem a direita nem os Estados Unidos permitiriam, mas não lhe disse isso. Preferiu adverti-lo por meu intermédio.

— Diga ao seu filho que se cuide. Este país não será outra Cuba. Pode haver um banho de sangue.

Não precisei lhe perguntar como sabia.

Coube a Roy, o homem contratado por Julián como detetive particular, salvar a vida de Nieves. Numa daquelas tardes quentes do deserto de Nevada, ele percebeu que havia uma semana não transmitia o informe obrigatório ao patrão. Espionar a moça era um trabalho maçante, indigno de alguém tão preparado como ele para cometimentos criminosos, mas a remuneração lhe convinha.

Procurou-a em vão nos locais de costume, inclusive nas esquinas onde, em dias desesperados, Nieves se oferecia aos transeuntes. Isso ele não contara ao pai, que devia saber dessas coisas, por ser esse o recurso habitual de quem está precisando de outra dose. Roy tinha certeza de que alguém como Julián Bravo conhecia muito bem o mundo das drogas, desde a produção, o transporte, a corrupção e o crime vinculado ao produto até a última degradação do dependente. Era uma ironia dolorosa que sua própria filha fosse uma das vítimas. Preocupado, porque nunca a perdera de vista durante tanto tempo, Roy indagou entre os hippies com quem ela se juntava, grupos de jovens prostrados em terrenos baldios, longe do cintilante bairro de luzes e champanhe da Strip, e assim descobriu que alguém tinha visto Nieves com Joe Santoro.

Já era noite quando Roy localizou Joe num boliche; estava limpo, bem vestido e barbeado, jogando e bebendo cerveja com dois amigos.

— Nieves? Não sou anjo da guarda dela — respondeu, desdenhoso.

A moça já não lhe interessava, ele se limitava a lhe vender drogas pesadas; ele mesmo não as usava e a advertira que elas costumam ser um caminho sem retorno, disse. Roy o agarrou por um braço e o arrastou para o banheiro, onde começou por lhe dar uma joelhada na virilha, que o deitou de bruços, depois o levantou pelo cinto do chão salpicado de urina e se preparou para lhe quebrar o nariz, mas Joe o deteve, protegendo o rosto, e balbuciou que Nieves estava no ônibus.

Roy sabia a que ele se referia. Era um ônibus sem assentos e sem rodas, inteiramente coberto de grafites, plantado no pátio de um prédio abandonado. Roy estivera horas antes naquele mesmo prédio, refúgio de dependentes e vagabundos, mas não lhe ocorrera procurar no ônibus. Encontrou Nieves inconsciente no chão, entre dois rapazes adormecidos ou chapados. Tentou fazê-la levantar-se, sem nem olhar os outros, que não eram seus clientes, mas a moça se desminlinguiu entre suas mãos. Ele lhe deu duas palmadas e a sacudiu, para obrigá-la a respirar, buscou seu pulso sem o encontrar e por fim pegou-a no colo e saiu correndo até seu automóvel, estacionado a um quarteirão de distância. Nieves pesava como uma criancinha, estava pele e osso.

Do hospital, o detetive ligou para Julián. Em Miami já era cerca de meia-noite.

— A menina chegou ao fundo do poço, venha logo — anunciou.

Julián chegou a Las Vegas ao meio-dia, pilotando um jatinho providenciado por um de seus clientes, e aterrissou num aeroporto particular. Dois dias depois, quando deram alta a Nieves, ele e Roy a levaram sem contemplação diretamente para o avião. Estava recuperada da overdose que quase a matara, mas sofria os efeitos terríveis da abstinência. Os dois homens juntos mal conseguiam segurá-la, pois ela se debatia com a força sobre-humana do desespero, gritando grosserias que teriam atraído a polícia se estivesse em lugar público. Dentro do avião, o pai lhe injetou um sedativo, que a deixou arriada por dez horas, tempo suficiente para aterrissar em Miami e interná-la numa clínica.

Só então Julián me ligou para contar o que estava ocorrendo. Fazia dois anos que eu desconfiava que minha filha se drogava, mas supunha que usasse maconha e cocaína, que, segundo seu pai, eram tão inofensivas quanto o cigarro e não afetavam em nada a capacidade de Nieves funcionar normalmente neste mundo. Eu tinha dado um jeito de ignorar a evidência do que acontecia com Nieves, assim como não tinha desejado ver que Julián era alcoólatra. Repetia o que ele dizia: que tinha boa cabeça para bebida, que podia beber o dobro do que qualquer mortal bebia e ninguém notava, que precisava ter um uísque à mão para controlar a dor nas costas e outros pretextos. Nieves acabava de sair de um transe mortal por uso de heroína e estava submetida a rigoroso programa de desintoxicação e reabilitação, mas não achei que fosse dependente. Acreditei em Julián: tinha sido um lamentável acidente que não se repetiria; a menina tinha aprendido a lição.

Uma semana depois tivemos permissão de visitar Nieves na clínica. Ela havia superado os piores dias da abstinência; estava limpa, com os cabelos molhados, de calça jeans e camiseta, muda, com o olhar no chão, desconectada. Abracei-a, chorando, chamando-a, sem conseguir nenhuma reação, mas, quando Julián lhe perguntou como estava, ela conseguiu focalizar o olhar.

— Os Seres me elegeram, papai, preciso transmitir uma mensagem para a humanidade — disse.

O conselheiro que estava presente explicou que o estado de confusão era normal depois do trauma que ela sofrera e do efeito dos sedativos.

Fiquei em Miami durante os três meses de internação de Nieves naquela clínica e os meses seguintes ao seu desaparecimento. Fui vê-la em todos os dias de visita; no começo, duas vezes por semana, depois quase todos os dias. Os encontros eram muito breves e sempre vigiados. Fiquei sabendo do horror da abstinência, da angústia terrível, da insônia, das cãibras e das dores de barriga, do suor gelado, dos vômitos e da febre. Nos primeiros dias, ela foi ajudada com sedativos e analgésicos, mas depois teve de enfrentar a frio o suplício da dependência.

Em algumas visitas Nieves parecia recuperada, tinha ido à piscina ou jogado voleibol, estava corada, seus olhos brilhavam. Outras vezes suplicava que a tirássemos de lá porque estava sendo torturada, não lhe davam comida, era amarrada, surrada. Não voltou a falar dos Seres. Seu pai e eu tivemos várias sessões com o psiquiatra e os conselheiros, que nos martelaram a necessidade do amor severo e da imposição de restrições e disciplina, mas Nieves estava para fazer vinte e um anos, e a partir daí não teríamos autoridade para defendê-la de si mesma.

No mesmo dia do aniversário, ela desapareceu da clínica de reabilitação. Foi embora com a roupa do corpo e os quinhentos dólares que o pai lhe dera de presente de aniversário, apesar das advertências do psiquiatra. Imaginamos que tivesse voltado para Las Vegas, onde tinha sua rede de conexões, mas Roy não conseguiu encontrá-la. Por algum tempo, não soubemos dela.

Julián quis que eu ficasse em sua mansão horrível durante minha estada em Miami, mas eu havia decidido não voltar a viver sob o mesmo teto que ele. Se houvesse a oportunidade, eu sabia que terminaria de novo na cama dele e depois lamentaria. Aluguei um pequeno estúdio com cozinha, onde tive silêncio e solidão, que tanta falta me faziam naquele período doloroso em que fui penetrando na atormentada realidade de minha filha.

Zoraida Abreu também não morava com Julián; tinha sido instalada por ele num apartamento de luxo em Coconut Grove, onde a mantinha por perto, sem perder a liberdade. Ele nunca me falou dela e não podia saber que nos reuníamos com frequência no bar do Fontainebleau e que assim acabei por me afeiçoar àquela jovem. Ela tinha a audácia que me faltava.

Zoraida mantinha Julián sob rédeas curtas, mas não lhe parecia necessário vigiá-lo, porque podia ler suas intenções e traições com um único olhar. Julián não tinha mistérios para ela. Perguntei-lhe se era ciumenta, respondeu com uma gargalhada.

— Claro que sou! Não tenho ciúmes de você, Violeta, porque você pertence ao passado, mas, se o pego com outra, vou matá-lo.

Sentia-se plenamente segura em sua posição de favorita, porque sabia de cor as atividades ilegais de Julián, e ele jamais faria a besteira de deixá-la enfurecida.

— Eu o tenho na palma da mão — disse.

Estava esperando, com louvável paciência, o momento adequado para exigir que ele se casasse com ela. Fazia o possível para ficar grávida, sem que ele suspeitasse, porque lhe dar um filho seria seu trunfo, mas não conseguia.

— Você não se importaria, certo? Não competiria com os teus filhos, que já são adultos — acrescentou.

Naqueles três meses dediquei-me a Nieves, mas me mantive em contato frequente com José Antonio. O presidente socialista havia estabelecido um programa de moradias populares para resolver o drama dos bairros pobres, onde as pessoas viviam em casinhas miseráveis de papelão e madeira, sem água potável, esgoto e eletricidade. José Antonio concorreu a uma licitação pública, avalizado pela experiência de muitos anos e pelo prestígio de ter aperfeiçoado o sistema de construção pré-fabricada. As Casas Rústicas eram a empresa favorita dos jovens de classe média, que com grande esforço adquiriam a primeira moradia, mas isso mudaria se os mais pobres, das povoações marginais, morassem em casas semelhantes.

— Lembre-se do preconceito de classe que há neste país, mano. Vamos fazer as mesmas casas básicas de praia, mas com outra cor e outro nome; vão se chamar Minha Casa Própria, o que acha? — sugeri.

Ganhamos uma parte substancial do contrato, porque ninguém pôde competir com nosso preço. A margem de lucro era muito baixa, mas Anton Kusanovic, filho de Marko, que ocupava seu lugar fazia um ano, demonstrou que o negócio compensava com um volume enorme. O truque era a velocidade de produção e instalação das casas, e para isso precisávamos oferecer incentivos. Dobramos as instalações das fábricas e começamos a pagar comissão aos trabalhadores, além do salário, com o que mantivemos apaziguado o sindicato que se formou na empresa.

No começo dos anos 1970, a situação política no país era desastrosa; havia uma crise econômica e social profunda, o governo estava paralisado pela desordem de seus partidos, que raramente entravam em acordo, e pela oposição intransigente da direita, disposta a sacrificar o que fosse para destruir a experiência socialista. A oposição contava com o apoio da CIA, tal como Juan Martín me lembrava com frequência e Julián justificava; era preciso destruir a guerrilha. “Aqui não há guerrilha, papai, esta é uma coalizão de partidos de centro e de esquerda eleita pelo povo. Os americanos não têm nada que fazer neste país”, rebatia Juan Martín nas raras ocasiões em que se falavam.

Nada disso afetava José Antonio e a mim; sobrava trabalho, e nossos operários estavam satisfeitos, um milagre naquele ambiente de conflito permanente, violência crescente, greves e paralisações, passeatas enormes de apoio ao governo e outras semelhantes da oposição. O país estava polarizado, dividido em duas frações inconciliáveis; não havia diálogo, ninguém transigia. Apesar do contrato que havíamos obtido, José Antonio e Anton Kusanovic se contavam entre os inimigos do governo, como todos os empresários, inclusive nossos amigos e conhecidos. Eu votava na direita para imitar meu irmão. Os únicos que simpatizavam com a esquerda eram meu filho e miss Taylor, que aos setenta e tantos anos não esquecera a paixão política comungada com Teresa Rivas; seu papel de esposa de meu irmão não a domesticara nesse aspecto.

Juan Martín tinha trocado de universidade porque não fazia o menor sentido ficar na católica, como explicou, e estudava jornalismo na Universidade Nacional, “um antro de comunas”, como dizia o pai. Estava tão entregue à política que assistia a pouquíssimas aulas. Ficava escandalizado com minha neutralidade e a qualificava de indiferença, ignorância e complacência. “Como você pode votar na direita, mãe! Não está vendo a desigualdade e a pobreza neste país?”, dizia. Eu percebia, mas nada podia fazer a respeito, achava que o problema era da alçada do governo ou da Igreja; eu fazia o suficiente dando trabalho a meus operários e escriturários. Foi preciso acontecer muita coisa para eu pôr os pés na realidade, Camilo. Dei um jeito de não ver, não ouvir e não falar durante os anos críticos. Teria feito o mesmo durante a longa ditadura, caso o guante da repressão não tivesse me golpeado diretamente.


16

Enquanto o país se precipitava rumo a uma tragédia inevitável, passei três anos viajando amiúde entre Miami, Las Vegas e Los Angeles, e desse modo perdi de vista grande parte da experiência socialista em meu país. Nos Estados Unidos a informação era tendenciosa, repetia-se a propaganda da direita, que contribuía para pintar o país como outra Cuba. Voltava para casa com frequência por causa dos negócios, e em cada viagem podia apreciar como aumentavam o caos e a violência e como Juan Martín escapava de minhas mãos. Meu filho se tornou um desconhecido. Falava comigo em tom condescendente, como se fala a um bicho de estimação; havia perdido o entusiasmo por me doutrinar, considerava-me outra causa perdida; eu entrava na categoria de “múmia”. Estava irreconhecível, de barba grande e cabelama suja, magro e arrebatado. Pouco restava do rapazinho tímido que havia sido.

Nieves desapareceu durante alguns meses. Julián acionou seus contatos para tentar localizá-la em Miami, onde ela não havia deixado o menor rastro. Investigou em linhas aéreas e empresas de ônibus, sem resultado; o nome dela não aparecia em listas de passageiros, mas isso não significava nada, porque há outros meios de transporte. Enquanto a procurava, fui me introduzindo no submundo de mendigos, dependentes e marginais de rua. Julián não conhecia esse mundo, sua participação no tráfico e na delinquência era em outra escala; ele nunca se viu num beco imundo, com zumbis esfarrapados. Eu fiz isso. O que pensariam de mim? Uma matrona burguesa, bem vestida e desesperada, que perguntava chorando por uma tal Nieves. Conheci alguns jovens que me partiram o coração, mas não tentei ajudá-los; meu único propósito era conseguir informação sobre minha filha. Vivi desse jeito algumas semanas, as mais duras que possas imaginar, Camilo, e a única coisa que descobri foi que ninguém conhecia Nieves.

Estávamos nisso quando Roy ligou para dizer que acreditava tê-la encontrado em Las Vegas. Tinha deixado de procurá-la, mas viu Joe Santoro por acaso e, seguindo-o, deu com Nieves. Fui com Julián para lá imediatamente.

A moça que Roy havia visto não andava entre os poucos jovens errantes que iam ficando na ressaca do movimento hippie, mas “trabalhando” junto a outras pessoas de ambos os sexos no famoso Strip. Tinha o cabelo muito curto e pintado de um loiro quase branco, maquiagem teatral e roupa provocativa que em qualquer lugar teria sido considerada uma fantasia, mas ali combinava com o ambiente. Segundo Roy, não permitiam sua entrada em nenhum dos hotéis e bares de luxo; ela vivia na rua, de um quarto de aluguel a outro, distribuindo droga, roubando e prostituindo-se. Os meses na clínica de reabilitação de Miami não tinham produzido efeito em Nieves, que voltou à situação anterior, mais sozinha e mais desesperada.

— Não seria de estranhar se Santoro fosse o gigolô dela — disse o detetive.

— Juro que ele vai se arrepender! — exclamou Julián, transtornado.

Nieves e eu fomos convidadas por Julián a ficar no Caesars Palace, onde dividi o quarto com minha filha evasiva, porque ela se negou a dormir na suíte do pai, que tinha dois quartos, sala, vista panorâmica daquela cidade artificial e até um piano de cauda pintado de branco, que, segundo disseram, era do pomposo pianista Liberace. Na presença dela, eu me sentia inibida, culpada e envergonhada. Vi-me com os olhos de Nieves, julgada duramente e desprezada; ela nos tolerava porque podia arrancar dinheiro do pai e de mim, só isso, mas eu não podia censurá-la, porque me bastara aquele passeio superficial por seu mundo para sentir imensa compaixão por ela. Eu lhe teria dado tudo o que possuía neste mundo, Camilo, caso isso a ajudasse de algum modo.

A primeira coisa que Nieves fez no hotel foi mergulhar num longo banho de espuma. Fui lhe levar uma xícara de chá e a encontrei adormecida na água quase fria. Ajudei-a a sair da banheira e, quando me preparei para envolvê-la na toalha, vi uma grande cicatriz em suas costas.

— O que aconteceu, Nieves! — exclamei, alarmada.

— Nada. Um arranhão — respondeu, encolhendo os ombros.

Nunca quis contar o que aconteceu, assim como se negou a falar da vida que levava e de Joe Santoro.

— Não sei nada dele, faz um ano que não o vejo — mentiu.

Minha filha chegou sem nada além de uma sacola com duas calças, sapatilhas de ginástica e maquiagem; nem escova de dentes tinha. Enquanto eu tentava acompanhá-la, ou melhor, vigiá-la, Julián comprou uma maleta e a encheu de roupa de estilistas das lojas de luxo do Strip. Sua forma de suportar a espantosa angústia que lhe oprimia o peito era gastar com ela.

Nieves ficou no hotel conosco cerca de uma semana, o suficiente para Julián acreditar que podia salvá-la, mas não comunguei seu otimismo. Eu tinha percebido com clareza os sintomas que já havia visto em outros: coceira pelo corpo, insônia, calafrios, cãibras, dor nos ossos, náuseas, pupilas dilatadas, confusão e angústia. Num descuido, Nieves saía do quarto e voltava apaziguada; sempre havia fornecedores, e ela sabia encontrá-los. Acho até que lhe traziam droga ao quarto, disfarçada na bandeja da comida ou na sacola da lavanderia. A breve trégua no Caesars Palace terminou subitamente quando ela conseguiu dinheiro suficiente do pai. De mim, roubou o relógio, uma corrente de ouro e o passaporte, desaparecendo de novo.

Daquela vez Julián sabia onde encontrá-la e, com a ajuda de Roy e de outro homem, raptou-a na força bruta, não há outra forma de dizer, como tinham feito antes. Absteve-se de me avisar, porque sabia que eu me oporia. Nieves estava passeando na rua ao entardecer quando um carro parou, e ela se aproximou, acreditando que se tratava de um possível cliente. Roy e seu ajudante desceram ao mesmo tempo, jogaram um paletó sobre sua cabeça e a enfiaram à força no carro. Ela resistiu como fera enredada, mas o paletó amorteceu seus gritos e ninguém interveio, embora, tenho certeza, várias pessoas devam ter assistido ao espetáculo, inclusive os guardas de segurança; era a hora mais movimentada dos cassinos e restaurantes.

Julián internou Nieves numa clínica psiquiátrica, nas cercanias de uma cidade de Utah, onde lhe puseram uma camisa de força e a trancaram num quarto acolchoado. Ela já era maior de idade, e o pai não tinha autoridade para tomar medida semelhante, mas nada era impossível para Julián; sempre existia alguma maneira de realizar seus propósitos, às vezes com dinheiro, outras com suas estranhas conexões, que funcionavam com o sistema de troca de favores.

No dia seguinte, Julián me contou o que tinha feito e disse que íamos regressar a Miami, já que Nieves não precisava de nós; a clínica nos avisaria quando ela tivesse alta e pudéssemos ir buscá-la. Então teríamos um plano para ajudá-la; primeiro era preciso curá-la da dependência. Uma vez mais, ele me excluía da vida de minha filha.

— Não, Julián. Vou ficar perto dela — anunciei.

Discutimos, como era habitual, mas no fim ele cedeu.

— Nesse caso, vou pedir a Roy que te leve, não quero que você vá de ônibus.

Fizemos o trajeto de duas horas por uma paisagem desértica e quente, em silêncio, suando, com todas as janelas abertas, porque Roy fumava um cigarro atrás do outro e teríamos sufocado no ar-condicionado. A clínica era uma construção de dois andares de alvenaria com certo ar de convento, no meio de um jardim de cactos e pedras, rodeado por uma cerca de madeira e mato. Não havia nada habitável na redondeza, só um imenso deserto de areia, pedra e depósitos de sal.

Fomos recebidos por uma mulher que se apresentou como a administradora e explicou que só podia falar do caso com o senhor Bravo, que ele não deixara instruções a meu respeito.

— Sou a mãe da paciente! — gritei, a ponto de agredir aquela megera, como teria feito qualquer dos lunáticos de sua clínica.

— Vamos, Violeta, venha comigo; voltamos amanhã — rogou Roy, abraçando-me.

Afundei o nariz em sua camisa molhada de suor e fedendo a fumo e desatei a chorar.

Roy conseguiu dois quartos numa pensão que oferecia cama e café da manhã, mandou-me tomar uma ducha e trocar de roupa, depois me levou a um restaurante de caminhoneiros à margem da rodovia.

Não me permitiram ver Nieves nem falar com os médicos. Eu ficava esperando na recepção da clínica desde a manhã até que me expulsassem, convencida de que minha filha estava sofrendo. Desconfiava que, em vez de ajudá-la, o método consistia em castigá-la. A megera se compadeceu de mim, ao me ver ali dia após dia; oferecia-me xícaras de chá com biscoitos e me dizia que Nieves estava tranquila, descansando e recuperando-se, mas não quis esclarecer em que condições a mantinham, se estava em isolamento, manietada ou aturdida com narcóticos.

— Como pode imaginar uma coisa dessas, minha senhora, esta é uma instituição moderna, não estamos na Idade Média.

Naquela espera prolongada e dura, tive por companhia o mais inesperado amigo: Roy ficou comigo todo aquele tempo. Deixa-me falar dele, Camilo, porque foi muito importante para tua mãe e para ti.

Dizia chamar-se Roy Cooper, mas é possível que seu nome fosse outro, porque era um tipo sigiloso que não fornecia nenhuma informação sobre si mesmo. Não soube de onde era, nem nada de seu passado, seu estado civil ou sua verdadeira ocupação, embora passássemos horas juntos. Julián tinha me dito que ele se especializara em chantagem, mas ninguém vive disso. Roy devia ter mais ou menos a minha idade, em torno de cinquenta anos, e mantinha-se em muito boa forma; talvez fosse um daqueles fanáticos que levantam peso e correm como fugitivos ao amanhecer. Tinha feições rudes, expressão hostil e pele marcada por varíola, mas me parecia bonito; havia certa beleza naquele rosto de gladiador sofrido. Deixava-me na clínica e ia me buscar; levava-me para comer e, de vez em quando, ao cinema, a uma piscina ou a jogar boliche.

— Precisa se distrair um pouco, Violeta. Ficar chorando não vai ajudar sua filha — dizia.

Falando assim, Camilo, parece que eu pouco me importava com a sorte de Nieves, mas ali os dias eram muito longos e quentes, e sobrava muito tempo depois das horas eternas na clínica. Roy era meu único apoio, e passei a sentir afeição e admiração por ele, embora tivéssemos poucos assuntos de conversa ou interesses comuns. Sem querer, fui contando minha vida àquele homem estranho, que talvez fosse um assassino do narcotráfico ou da máfia.

— Você sabe tudo sobre mim, Roy, tem material de sobra para me fazer chantagem, mas eu não sei nada sobre você — disse-lhe uma vez.

— Não há o que contar sobre mim, Violeta, sou só um desalmado de pouca importância.

— Julián te paga para me vigiar?

— Bravo me contratou para vigiar sua filha em Las Vegas, só isso. Estou aqui porque quero.

— Gosta tanto assim da minha companhia? — perguntei, num impulso de coqueteria.

— Gosto — respondeu, sério.

Naquela noite fui ao quarto dele. Não te espantes, Camilo, nem sempre fui uma velha desvalida; aos cinquenta e um anos ainda era atraente, e meus hormônios funcionavam. Para que vou te falar de outras relações amorosas que tive em minha longa vida, a maioria breves e pouco memoráveis? De nenhuma me arrependo; ao contrário, lamento as oportunidades que deixei passar por puritanismo, por andar apressada ou por temer falatórios. Passei a maior parte da vida solteira e não devia fidelidade a ninguém; às mulheres de minha geração era negada a liberdade sexual que os homens consideravam direito deles. Um bom exemplo era Julián, que, sendo cronicamente infiel, dava-se ao luxo de ser ciumento. Na época em que conheci Roy Cooper, os ciúmes dele já não me afetavam; Julián e eu tínhamos deixado de ser um casal muito antes, e na época incumbia a Zoraida Abreu lidar com ele.

Eu te pouparei dos detalhes; só direi que fazia alguns anos que eu não tinha a quem abraçar, e Roy Cooper me devolveu a alegria do corpo, essa que vem quando fazemos amor. A partir daquele momento passávamos juntos boa parte do dia e todas as noites. Eu não teria suportado aquelas semanas sem ele. Era um companheiro agradável, não pedia nada, ajudava-me a aguentar a aflição e me fazia sentir jovem e desejada, o que era um presente maravilhoso naquelas circunstâncias.

Nieves não teve alta da clínica. Dezessete dias depois da internação, recebemos uma ligação para avisar que ela tinha se “retirado”, para não dizerem que tinha fugido. Acho que, se ela tivesse saído tranquilamente pela porta principal, eles não poderiam impedir, pois Julián Bravo não tinha poder legal para confiná-la num manicômio, mas Nieves não sabia disso. Deve ter sido fácil sair na calada da noite, uma vez que os sedativos haviam sido reduzidos e ela recuperara sua vontade férrea, mas não deve ter sido tão fácil localizar-se naquele terreno desértico e conseguir transporte. No quarto, deixou um bilhete para o pai, ordenando que não a procurasse, porque não queria saber nunca mais dele.

Fui para a clínica assim que Julián me ligou do aeroporto de Miami. Eu só conhecia a recepção e os estranhos jardins de pedras e cactos, imaginando o restante como um lugar sinistro, onde falsos médicos sádicos dopavam os pacientes e os torturavam com jatos de água gelada e choques elétricos, mas a psicóloga que me atendeu deu mostras de amabilidade e disposição para responder a minhas perguntas. Disse que esperaríamos Julián para nos reunir no dia seguinte com o psiquiatra que tratara de Nieves, mas, enquanto isso, levou-me para percorrer as instalações, que não eram os calabouços com grades de ferro de meus pesadelos, mas quartos privados, pintados em alegres tons pastel, salas de jogos, de ginástica, spa, piscina aquecida e até uma sala de projeções, onde exibiam documentários inócuos de golfinhos e bonobos, nada que pudesse perturbar os hóspedes. Não os chamavam “pacientes”.

O psiquiatra nos recebeu ao lado da diretora da clínica, uma indiana que não se deixou amedrontar pelas ameaças de Julián, de processar a clínica por negligência.

— Isto aqui não é uma prisão, senhor Bravo. Não seguramos os hóspedes contra a vontade — anunciou-lhe secamente e passou a nos explicar o tratamento de Nieves.

Durante a desintoxicação, que era a parte mais dura do tratamento, ela permanecera sedada para suportar essa etapa com o mínimo de angústia. Depois teve uns dias de descanso e recreação, com banhos e massagens no spa, até começar a comer normalmente e mostrar-se disposta a participar das sessões de terapia individual e de grupo. Descreveram sua atitude como agressiva e zombeteira no começo, mas depois ela foi relaxando, e da hostilidade passou ao silêncio. Finalmente, poucos dias antes de ir embora, tinha começado a falar do passado anterior às drogas pesadas. Nieves era um caso de imaturidade emocional, estava presa aos catorze ou quinze anos e se debatia entre o amor e o ódio ao pai — figura onisciente em seu psiquismo —, entre a dependência e a necessidade de se separar dele. Tinha ido embora da clínica justamente quando começava a explorar traumas da infância e da adolescência. Não conseguiu enfrentá-los, disseram. Nesse ponto Julián perdeu a paciência.

— Não sei para que serve tudo isso! Vocês não foram capazes de ajudar minha filha. Foi perda de tempo e de dinheiro!

Ficou de pé e saiu batendo a porta. Pela janela, eu o vi passeando a passos largos pela trilha de pedrinhas do jardim.

Continuei lá, para receber o informe sobre a saúde de minha filha, que o pai devia ter ouvido dos próprios profissionais; quando eu quis repetir para ele, mandou-me calar a boca.

— Não são médicos, são charlatães! — gritou.

— Isso você deveria ter averiguado antes de internar Nieves ali na marra — rebati.

Além do desgaste físico produzido pelas drogas, minha filha fizera dois abortos, sofria de desnutrição, osteoporose e úlceras do estômago; precisaram dar-lhe antibióticos por causa de uma cistite e um contágio venéreo.

Novamente Julián tentou localizar a filha, mas dessa vez Roy se negou a ajudá-lo.

— Entenda, Bravo, você já não tem autoridade sobre ela; deixe-a em paz. Se Nieves quiser sua ajuda, saberá onde encontrá-lo.

Com a frustração e a dor estampada no rosto, Julián voltou a Miami.

Em nossa última noite, despedi-me de Roy sem fazer amor, porque o fantasma de Nieves estava no quarto, observando-nos. Ficamos acordados várias horas, abraçados, e adormeci sobre a sereia tatuada em seu ombro de halterofilista. No dia seguinte ele me deixou no aeroporto e, ao se despedir, beijou-me nos lábios e disse que ficaríamos em contato.


17

Ao chegar a Sacramento, desmoronei diante de José Antonio e de miss Taylor, que estavam me esperando. Fiquei na capital apenas uma hora no aeroporto, antes de voar para o Sul, porque Juan Martín estava no Norte com outros estudantes de jornalismo, filmando um documentário. Falei-lhes de Nieves, amaldiçoando Julián Bravo pelos danos que causara à filha, pela crueldade para com o filho e pelos maus-tratos que me infligira. Deixaram-me descarregar o ressentimento e chorar à vontade. Depois me puseram a par da situação do país, à qual eu prestara pouquíssima atenção.

É inacreditável como eu pude ignorar o que estava ocorrendo; a única explicação é que eu andava mergulhada em meu próprio drama; a política não afetava minhas empresas, e eu dispunha de recursos para pagar serviço doméstico e comprar o que quisesse no mercado negro. Nunca tive de entrar em fila para conseguir açúcar ou azeite, quem fazia isso era a cozinheira. Em meu bairro, tanto na capital quanto em Sacramento, eu vivia isolada da desordem das ruas. Raríssimas vezes tinha de ir ao centro da cidade e lidar com o tráfego e o mau humor das pessoas. Das manifestações de massa nas ruas eu ficava sabendo pela televisão, em que aquelas cenas de fervor coletivo pareciam mais festivas que violentas. Não olhava duas vezes para os cartazes de soldados soviéticos arrastando crianças para os gulags da Sibéria, que a direita afixava, nem para murais de operários e camponeses entre pombas da paz e bandeiras, que a esquerda pintava.

Meus amigos, familiares e clientes eram da oposição, e o assunto obrigatório era acusar o governo de violar a Constituição, encher o país de cubanos e armar o povo para uma revolução que acabaria com a propriedade privada. Quando o presidente aparecia na telinha para defender seu programa, eu mudava de canal. Não gostava daquele homem de ar arrogante, traidor de sua classe, filhinho de papai que vestia terno italiano e se proclamava socialista. E qual era a diferença entre socialismo e comunismo? Eram a mesma coisa, segundo me explicara José Antonio, e ninguém queria ver o país transformado em satélite da União Soviética. Meu irmão estava preocupado com a crise econômica, que mais cedo ou mais tarde ia nos afetar, e com a imagem ruim que tínhamos em nosso círculo social pelo contrato de Minha Casa Própria com o governo. A palavra de ordem era sabotar, nunca colaborar, mas não éramos os únicos que se beneficiavam daquela maneira. Quase todas as obras públicas eram realizadas por meio de contratos privados.

Reuni-me com Juan Martín na capital, quando ele voltou do Norte. O documentário dele era sobre as empresas das companhias norte-americanas, que o governo havia nacionalizado, negando-se a pagar indenização, porque elas tinham lucrado de sobra durante mais de meio século e deviam uma fortuna ao Estado em impostos, explicou. Não era isso o que eu ouvira, mas sabia pouco sobre aquele assunto e não pude contradizê-lo.

— Você vive numa bolha, mamãe — acusou-me Juan Martín e, sem pedir minha opinião, levou-me para alguns bairros onde eu nunca pusera os pés.

Ali viviam os possíveis beneficiários de Minha Casa Própria, pessoas muito humildes que talvez pudessem realizar o sonho de obter uma moradia popular. Para mim, aquelas casas tinham sido até então um desenho numa planta, um ponto num mapa ou uma construção-modelo para ser fotografada. Andei por povoações muito pobres, por ruelas de poeira e barro, entre cães vadios e ratos, entre crianças sem escola, jovens ociosos e mulheres envelhecidas pelo trabalho. As casas pré-fabricadas deixaram de ser apenas uma boa ideia ou um bom negócio, e entendi o que significavam para aquelas famílias. Por todo lado, vi os típicos murais de pombas, naquele horrível estilo de realismo soviético, e nas casas vi fotos do presidente ao lado de imagens do padre Juan Quiroga, como santos protetores. O homem arrogante, de terno italiano, adquiriu outro aspecto a meus olhos.

Depois fomos tomar chá na casa de um professor da escola elementar, que me falou do copo de leite e do almoço que o Ministério da Educação dava a seus alunos, o que para alguns era o único alimento do dia; falou de sua mulher, que trabalhava no hospital San Lucas, o mais antigo do país, onde os médicos estavam fazendo greve de protesto contra o governo e tinham sido substituídos pelos estudantes de medicina; falou do filho, que estava fazendo serviço militar e queria estudar topografia, e de seus parentes e vizinhos, uma classe média baixa que estudara em boas escolas públicas e universidades gratuitas, politizada e esquerdista.

— E eu poderia levar você para conhecer algumas pessoas da classe média acomodada que também votaram nesse governo, mamãe; são estudantes, profissionais liberais, padres, freiras e várias pessoas dessas que você chama de “gente como a gente” — disse Juan Martín, e passou a mencionar vários primos, sobrinhos, amigos e conhecidos com sobrenomes aristocráticos. — Ah, mamãe! Por sinal, o professor que você acaba de conhecer é ateu e comunista — acrescentou, debochado.

Vários meses depois, recebi no escritório um telefonema de Roy Cooper. Não tivera notícias dele e não esperava que se lembrasse de mim, embora frequentemente pensasse nele com inevitável saudade. Não era homem de perder tempo com banalidades e me comunicou em poucas palavras o propósito da ligação.

— Encontrei Nieves, e ela está precisando de ajuda. Você pode vir logo a Los Angeles? — perguntou.

Respondi que chegaria o mais depressa possível.

— Não diga nada a Julián Bravo — avisou.

Roy estava me esperando no aeroporto e quase não o reconheci. Usava jeans desbotado, sandálias e um boné de beisebol. No longo trajeto pelas ruas congestionadas daquela cidade, perguntei por que havia procurado minha filha e como a tinha localizado.

— Não procurei, foi ela que me ligou, Violeta. Quando ajudei Bravo a raptá-la em Las Vegas, pus meu cartão na carteira dela. Fiquei com pena, coitada... No meu trabalho preciso lidar com gente desprezível. Sua filha é exceção.

— Qual é seu trabalho, Roy?

— Digamos que resolvo problemas. Alguém se mete numa encrenca, e eu resolvo à minha maneira.

— Alguém? Quem, por exemplo?

— Alguma celebridade ou um político, ou qualquer outro que não queira ser preso, chantageado ou aparecer na imprensa. O caso mais recente foi um pastor do Texas, que acabou com um cadáver num quarto de hotel.

— Ele matou alguém?

— Não. Levou um rapaz para o quarto, e ele morreu acidentalmente. Teve um choque diabético, e o pastor não pediu ajuda para evitar escândalo. Os fiéis dele não perdoam a homossexualidade. Precisei passar o corpo para outro quarto, subornar o pessoal e a polícia, você sabe, o de sempre.

— Por que Nieves ligou para você?

— Ela não tem ideia do que eu faço, Violeta. Ligou por desespero. Não quer recorrer ao pai. Acha que Bravo mandou matar Joe Santoro.

— Pelo amor de Deus! Isso é impossível.

Não respondeu. Ocorreu-me que Roy Cooper poderia ter ligado para Julián e vendido a informação sobre Nieves por bom preço, mas preferiu ir até Los Angeles para ajudá-la. Levou-me para uma região da cidade que ele chamou de gueto mexicano, de casas simples, comércio popular com letreiros em espanhol e baiucas de comida barata. Explicou que tinha conseguido instalá-la na casa de uma velha amiga.

Nieves estava nos esperando e, ao me ver, veio correndo me abraçar como não fazia há uma eternidade. “Mamãe, mamãe...”, repetia. Por um momento retrocedeu à infância e voltou a ser a menina mimada que se sentava em meu colo para que eu lhe escovasse o cabelo. Sua aparência era muito melhor que da última vez, não estava esquelética nem abatida, tinha engordado um pouco, e seu rosto sem maquiagem parecia muito jovem e vulnerável. Os cabelos estavam curtos, em sua cor natural, com as pontas ainda esbranquiçadas pela tintura anterior.

— Estou grávida, mamãe — anunciou com voz trêmula.

Só então reparei em sua barriga, que eu não notara sob o vestido solto. Não soube o que responder, mantive-a abraçada, sem sentir as lágrimas que corriam pelo meu rosto.

A dona da casa, uma senhora mexicana, aguardou que nos serenássemos e depois me cumprimentou com os devidos beijos nas faces. Apresentou-se como “Rita Linares, modista”, com a saudação habitual, “esteja à vontade, a casa é sua”. Sua casa era semelhante a outras da mesma rua, de alvenaria, modesta, cômoda, com um jardinzinho e teto de telhas. Os móveis, ordinários e pretensiosos, estavam cobertos com capas de plástico, havia um televisor enorme e um refrigerador na sala, além de uma profusão de enfeites, desde flores artificiais até caveiras pintadas do Dia de Finados.

Levou-me a um quarto com uma cama larga, um crucifixo pendurado acima da cabeceira e várias fotografias sobre a cômoda. Nieves explicou que ela nos cedera sua cama e dormiria no outro aposento, onde ficava seu ateliê de costura. Rita nos chamou à mesa e, sem aceitar ajuda, serviu um jantar delicioso de tacos de peixe, arroz, feijão e abacate. A Roy e a mim ofereceu cerveja; diante de Nieves pôs um copo de leite. Notei que, ao passar perto dela, acariciou-lhe a cabeça com um gesto tão íntimo e maternal que senti uma alfinetada de ciúmes. Nieves me contou que saíra da clínica de Utah durante a noite com a cumplicidade do porteiro, que lhe indicou a direção da rodovia, onde pediu carona ao primeiro caminhão que passou; assim, de um veículo a outro, deu um jeito de chegar à Califórnia. Imagino que nos meses seguintes ganhou a vida do modo como havia feito antes.

— A boa notícia é que não está consumindo droga — esclareceu Roy.

Nieves me disse que, quando confirmou a gravidez, decidiu que daquela vez não abortaria e se aferrou à ideia do menino ou menina que estava gestando para combater a dependência química. O que não foi obtido pelos tratamentos caríssimos a que se submetera, foi conseguido pelo desejo de ter um bebê sadio. Esclareceu que, para paliar a ansiedade, fumava charuto e maconha, bebia enorme quantidade de café e comia doces demais.

— Assim vou acabar ficando obesa — riu.

— Você precisa comer em dobro, por você e pelo bebê — rebateu Rita, servindo-lhe outro taco.

Quando Nieves se viu sem dinheiro e na miséria, porque não conseguia trabalho e já não traficava nem arranjava clientes, recorreu a diferentes programas das igrejas e refúgios para mulheres sem teto, onde podia passar a noite, mas às sete da manhã estava na rua de novo; aquilo ia ficando cada vez mais difícil, à medida que seu estado avançava. Um dia apareceu em sua carteira o cartão de Roy Cooper, e, num impulso, telefonou para ele em Las Vegas. Para sondá-lo, perguntou por Joe Santoro, mas Roy não sabia nada, e isso lhe deu confiança.

— Levou um tiro na nuca — disse-lhe Nieves, que recebera essa notícia da misteriosa rede de informações dos traficantes.

Roy garantiu que não tinha nada a ver com aquilo, não era um assassino de aluguel; havia perdido o cafetão de vista e também não estava em contato com Julián Bravo. Ofereceu-se para lhe enviar dinheiro de imediato.

— O que eu preciso não é de dinheiro, mas de um amigo — respondeu ela. — Não diga a meu pai onde estou — acrescentou.

Roy não se fez esperar. Acostumado a resolver problemas, como dizia, foi para Los Angeles e cuidou da situação. O fato é que aquela era sua cidade natal, ele a conhecia bem e ali contava com amigos, conhecidos e mais de um cliente de Hollywood, a quem havia tirado de algum apuro. Teve um padrasto mexicano, que levou a família para morar no bairro dos imigrantes latinos, onde Roy cresceu falando espanhol e brigando feio. Los Angeles era a segunda cidade do mundo com maior população mexicana.

— Aqui nunca vão me encontrar, mamãe — disse Nieves.

— De quem está fugindo, filha, pelo amor de Deus?

— De meu pai. Ele matou Joe Santoro.

— Você não pode acusar seu pai de um crime assim, Nieves, é uma suspeita monstruosa.

— Ele não apertou o gatilho, mas é responsável. Você sabe que ele é capaz de qualquer coisa. Tenho medo dele.

— Ele nunca te faria mal, Nieves, ele te adora.

— Você tem má memoria, mamãe. Se me encontrar, vai tentar impor sua vontade de novo. Nunca vai me deixar tranquila.

Rita e Roy foram para o quintal fumar e ficamos sozinhas.

— Vai me perguntar quem é o pai dessa criança, mamãe?

— É sua, e essa é a única coisa que importa. Imagino que seja daquele moço, como era mesmo o nome dele? Joe Santoro...

— Não. É impossível. Não sei quem é o pai, pode ser qualquer um. Também não sei exatamente quando vai nascer, porque minhas regras eram muito irregulares.

— Por causa das drogas?

— Isso às vezes acontece. A parteira que está cuidando de mim calcula que vai nascer em outubro. Sabe, mamãe? Não quero que nasça tão depressa, quero ficar com ele muito tempo aqui dentro, quero descansar nesta casa com Rita, dormir, dormir...

José Antonio assumiu meu trabalho e pude ficar em Los Angeles. Sobre Nieves só contei a ele, a Josephine e a Juan Martín, fazendo-os prometer que não divulgariam nenhuma informação. Quando Julián Bravo viajou para suas missões com a colônia Esperanza, disseram-lhe que eu estava de férias num cruzeiro pelo Mediterrâneo. Talvez tenha estranhado que o cruzeiro durasse vários meses, mas não indagou, porque não estava precisando de mim e preferia não me ver. Fiquei sabendo, pelo correio dos novidadeiros, que ele andava com uma garota de vinte e tantos anos mais nova que ele, que era apresentada como sua namorada; deduzi que não podia ser Zoraida Abreu, porque ele não teria viajado com ela. Mais tarde, fiquei sabendo que era uma certa Anushka.

Para mim, a estadia na casinha do bairro mexicano foi um dos melhores momentos de minha vida, férias do espírito mil vezes melhores que qualquer cruzeiro de luxo; foi quando pude por fim restabelecer com minha filha o carinho que tinha se esfarelado pelo caminho. Dividi a cama com ela, no começo um pouco inibida, porque fazia muitos anos que não tínhamos contato físico, mas logo nos acostumamos. Lembro a sensação de dormir lado a lado com ela e despertar com seu braço descansando em meu peito, uma felicidade doce e triste, porque não podia durar.

Roy Cooper viajava com frequência para Las Vegas e outros lugares aos quais fosse levado por seu curioso ofício de reparador de imbróglios. Alojava-se num motel das proximidades porque não havia outra cama disponível na casa e, segundo dizia, era demasiado o estrogênio que flutuava no ar, mas aproveitava os momentos livres para levar-nos, às três, comer em restaurantes mexicanos ou chineses, à praia ou ao cinema. Escolhia filmes de ação, com sangue e murros, mas também se submetia aos românticos que lhe impúnhamos. Convidava-me a passar a noite em seu motel, e eu ia sem dar explicações a Nieves e a Rita, porque supusemos que nada do que disséssemos seria do agrado delas.

Rita Linares chegara aos Estados Unidos a pé, pelo deserto de Sonora, aos doze anos, à procura do pai, e vivia há mais de trinta sem documentos em Los Angeles. Era amiga de Roy desde sempre.

— Era o único garoto branco da escola. Você tinha que ver, Violeta, como os outros batiam nele, até que ele aprendeu a correr muito e bater de volta — contou.

Estava viúva, seus filhos viviam em outros estados e só se reuniam para o Natal e o Ano-Novo; sentia-se sozinha, por isso aceitou Nieves quando Roy lhe pediu que hospedasse por algum tempo uma moça grávida e sem família. Acolheu-a nos braços sem vacilar; precisava de companhia e de alguém para cuidar.

Nieves passou as últimas semanas deitada no jardim, bronzeando-se sistematicamente ao sol, volumosa e esgotada, cochilando. Rita e eu costurávamos a seu lado e falávamos de nossa vida e da dos outros, das telenovelas, de meu país e do dela. Perguntei se alguma vez estivera apaixonada por Roy Cooper, e ela respondeu, escandalizada, que era mulher de um homem só, seu marido, “que descanse em paz”. Na cozinha, onde Nieves não pudesse ouvir, falávamos dela. Rita estava tão entusiasmada quanto eu com a próxima chegada do bebê; havia preparado um berço e estava fazendo roupinhas.

— Espero em Deus que Nieves fique morando comigo. Minha única neta vive com os pais em Portland. Eu ficaria muito feliz de ter o bebê nesta casa — disse, mas a ideia de Nieves ficar em Los Angeles me parecia descabida; ela deveria voltar a seu país, onde sua família a ajudaria.

Minha filha tinha sempre vivido o dia a dia, improvisando, confiante na sorte, sem planos, metas e projetos. Nisso também se parecia com Julián. Em várias oportunidades eu quis perguntar o que ela pensava fazer depois de dar à luz, mas recebia respostas evasivas.

— Por que se antecipar? O futuro reserva surpresas — dizia.

A única decisão que havia tomado era o nome: o bebê se chamaria Camila, se fosse menina, Camilo, se menino.

Na terceira sexta-feira de outubro, Nieves acordou muito cedo, gemendo de dor de cabeça. Duas horas mais tarde, após a terceira xícara de café preto — que, segundo dizia, era o remédio universal para todos os seus males —, ela se levantou, e a seus pés se formou uma grande poça de líquido amniótico. Rita ligou para Roy, que por acaso estava em Los Angeles naquela semana, e logo estávamos os quatro na antessala da maternidade. Nieves não tinha contrações, só se queixava de uma insuportável dor de cabeça.

Depois de chegarmos, esperamos um bom tempo até que a examinassem e descobrissem que sua pressão estava nas nuvens. Tudo aconteceu com tal confusão, que as horas e os dias seguintes se fundem numa única noite longa de imagens fragmentadas, num caleidoscópio de rostos, corredores, elevadores, jalecos azuis e brancos, cheiro de desinfetante, prescrições, seringas, a mão grande de Roy Cooper segurando-me pelo braço. Eclampsia, disseram. Eu nunca tinha ouvido esse termo.

— Estou bem, mamãe — murmurou Nieves, com os olhos fechados e uma mão na testa, protegendo-se do brilho ofuscante das lâmpadas do teto.

Foi a última coisa que vi dela. Levaram-na numa maca, correndo em direção a uma porta de duas folhas, atrás da qual desapareceram, deixando-nos sozinhos num corredor gelado.

Disseram que tinham feito o possível para salvá-la, mas não puderam controlar sua pressão; ela teve convulsões, perdeu os sentidos, entrou em coma. Conseguiram fazer uma cesárea e retirar o bebê, mas o coração de Nieves não resistiu, e ela morreu minutos depois. Lamento infinitamente, Camilo. Gostaria que, ao nasceres, chegasses a repousar ao menos um instante sobre o peito de tua mãe, que conhecesses o cheiro e o calor dela, o roçar de suas mãos e sua voz dizendo teu nome.

Quanto tempo esperamos? Uma eternidade. Em algum momento uma enfermeira pôs o bebê em meus braços, envolto num xale branco, com um gorro azul-celeste na cabeça.

— Camilo, Camilo... — sussurrei entre lágrimas.

Miudinho, enrugado, leve como um punhado de algodão, mal respirando.

— A senhora é a avó, não? Seu neto está bem, mas precisa passar pelo pediatra e fazer os exames necessários — disse a mulher.

Precisavas ficar em observação no berçário, onde poderíamos te visitar; seria coisa de alguns dias apenas; tinhas pouco peso, icterícia, nada grave, normalmente se resolve sozinha, disseram, mas... A enfermeira permitiu que eu te segurasse alguns minutos, depois nos separaram.

Serviram-nos suco de maçã, e Roy me deu uma pílula, que engoli sem fazer perguntas; imagino que era tranquilizante. Eu ainda não tinha assimilado o ocorrido, não entendia as explicações, perguntava por Nieves como se não tivesse ouvido falar de sua morte. Outra pessoa, que se apresentou como capelão do hospital, levou-nos a uma capelinha, sala de madeira clara sem imagens religiosas, iluminada pela luz que se filtrava através dos vitrais, onde já estava minha filha estendida numa maca, para que nos despedíssemos dela.

Nieves estava adormecida. Mostrava-se serena e mais bela que nunca, com o rosto delicado, de pele dourada e cílios de boneca, emoldurado pelos cabelos cor de mel com pontas brancas. Roy anunciou que ia preencher os formulários e levou consigo Rita e o capelão, para que eu pudesse falar com minha filha sem testemunhas. Foi naquele quarto de hospital, com o coração partido de dor, que prometi a Nieves que ia ser mãe, pai e avó de seu filho, muito melhor mãe do que tinha sido para ela, o pai abnegado e correto que ela não tivera e a melhor avó do mundo; que ia viver os anos que ela não vivera para que Camilo nunca fosse órfão, e que ia lhe dar tanto e tanto amor que ele o teria de sobra para doar aos outros. Isso e muito mais eu lhe disse entre soluços, tropeçando nas palavras, uma promessa atrás da outra, para que ela se fosse em paz.

Ao contar-te isso, Camilo, sinto de novo a cutilada de dor que atravessou meu peito naquele dia e retorna com tenacidade, uma dor recorrente que me ataca o tempo todo. Não pode haver dor pior que essa; é tão grande que não tem nome. Eu sei, eu sei... do que estou me queixando? A morte de minha filha não foi castigo, sou apenas uma estatística, esse é o sofrimento mais antigo e comum da humanidade; antigamente ninguém esperava que todos os filhos continuassem vivos; vários morriam na infância, e ainda é assim em grande parte do mundo, mas isso não atenua em nada o horror quando a mãe somos nós. Senti que estava esvaziada por dentro, era uma cavidade sangrenta, o ar não chegava até mim, os ossos eram de cera, a alma em fuga. E o mundo continuava girando como se nada tivesse acontecido; levantar-me, dar um passo e mais outro, soltar a voz e responder, não perdi o juízo, tomo água, a boca cheia de areia, os olhos ardendo, e minha menina rígida, gelada, esculpida em alabastro, minha filha que não voltará a me chamar mamãe, que deixa uma marca tremenda de sua passagem por minha vida, a memória de seu riso, de sua graça, de sua rebeldia, de seu martírio.

Tive permissão de ficar algumas horas junto a Nieves naquela capela nua. A luz do dia foi se apagando nos vitrais, alguém chegou para acender umas luzes que imitavam círios e quis pôr uma xícara de chá nas minhas mãos, mas não consegui segurá-la. Fiquei com minha filha, as duas sozinhas, conversando, e pude dizer-lhe finalmente o que não lhe dissera em vida, quanto a amava, como sentira sua falta anos a fio. Pude despedir-me, dizer-lhe adeus, beijá-la, pedir-lhe perdão pelos pecados de omissão e negligência, agradecer-lhe por ter existido, prometer-lhe que ela viveria em meu coração e no de seu filho, pedir-lhe que não me abandonasse, que me visitasse em sonhos, que me mandasse sinais e códigos, que voltasse encarnada em cada jovem bonita que eu visse na rua, e que me aparecesse em espírito na hora mais profunda da noite e na reverberação da luz ao meio-dia. Nieves. Nieves.

Por fim, Rita e Roy foram me buscar. Ajudaram-me a ficar de pé e me abraçaram, formando um círculo; assim me sustentaram até que me tranquilizei, envolta no calor de sua amizade. Despedimo-nos de Nieves com um beijo na testa, e eles me levaram para a saída. Lá fora já era noite.

Dois dias depois, enquanto estavas em observação no hospital, tua mãe foi incinerada. Entende, Camilo, eu não ia deixar seu corpo abandonado em Los Angeles, tão longe de sua família e de seu país. Mantive as cinzas comigo até que pude enterrar a urna no local reservado para nossa família no cemitério de Nahuel. Ali vou me reunir a ela.

Novamente foi Roy Cooper que me socorreu nos momentos mais tristes de minha vida. Segundo a ordem natural, em qualquer família normal, eu assumiria a criança, mas Roy me fez ver que, por nascimento, meu neto era cidadão estadunidense, e seria complicado obter autorização para tirá-lo do país. Na falta de mãe e pai, um juiz de menores decidiria sua sorte, mas esse trâmite podia demorar bastante e, enquanto isso, o bebê ficaria num lar designado pelo juizado de menores. Nem acabou de me explicar o problema, eu já havia perdido a cabeça; a primeira coisa que me ocorreu foi roubar meu neto do hospital e fazê-lo desaparecer. Sem dúvida, Julián Bravo poderia me ajudar a escamoteá-lo e levá-lo para o Sul do mundo; seus recursos para burlar a lei eram infinitos.

— Não será necessário. Vamos registrar Camilo como meu filho — interrompeu Roy.

— Como assim?

— Vamos fazer de conta que tive uma relação breve com Nieves. Reconheço minha paternidade e aceito a responsabilidade econômica. O menino não terá meu sobrenome, por desejo expresso da mãe. Ela pediu que fosse registrado com o nome de Camilo del Valle, porque também não queria usar o sobrenome Bravo. Entende?

— Não.

— Eu decido sobre o menino porque supostamente sou pai dele. Posso entregá-lo à avó e dar autorização para que ela o leve a seu país. Esqueça Julián Bravo.

— Diga a verdade, você é o pai de Camilo?

— Não, mulher, pelo amor de Deus! Como lhe passa pela cabeça que eu ia me deitar com Nieves?

— Mas, Roy, então por quê...

— Eu não disse que ganho a vida resolvendo problemas alheios? Este é mais um.

Foi assim que aconteceu, Camilo. Roy Cooper figura como teu pai na certidão de nascimento por conveniência, mas está claro que não o era. Protegeu tua mãe nos últimos meses de vida e prestou-se a esse engodo por causa da afeição que teve por ela e por mim, uma mentira piedosa. Graças a essa estratégia, pude tirar-te sem problemas dos Estados Unidos e depois te registrei aqui. Por isso tens dupla nacionalidade.

Tinhas sete dias quando, por fim, te deram alta do hospital e pude sair de lá contigo nos braços. Estavas recuperado da icterícia, que te deixou amarelo como gema de ovo, e teu peso estava estabilizado. Disseram que não se tratava de um prematuro, embora parecesse. Eras muito pequeno e feio, careca, pálido, orelhudo e mudo; mal te movias e nem choravas.

— Esse ratinho precisa tomar banho de sol e ouvir música latina, para ver se ganha vontade de viver — recomendou Roy, brincando, mas acabou sendo um bom conselho.

Fiquei contigo na casa de Rita, porque não estavas em condições de viajar, e começou a tarefa de te criar. No começo não sugavas, e eu ficava histérica, tentando te impor a mamadeira, mas Rita teve a ideia de te dar leite com um conta-gotas. Santa mulher. Passava horas fazendo isso.

E teu avô Julián? Que papel teve nisso? Avisei-o por telefone do ocorrido, era impossível esconder, e, pela primeira vez nos muitos anos de convivência, ouvi-o soluçar. Chorou pela filha adorada um bom tempo, sem conseguir falar e, quando falou, não foi para pedir detalhes, mas para oferecer ajuda: nada faltaria a esse neto enquanto ele estivesse vivo, prometeu. Eu não quis dizer que ia assumir o encargo da criança, e não precisava, porque teria sido cruel deixá-lo de lado. Tive de explicar como Nieves tinha vivido depois de fugir de Utah e o papel desempenhado por Roy Cooper.

— Cooper? O que Cooper tem a ver com minha filha?

— Nieves recorreu a ele. Ele se portou como um pai com ela.

— O pai de Nieves sou eu!

— Não sei o que aconteceu entre Nieves e você, mas ela não quis que você soubesse dela ou de sua gravidez.

— Eu teria ajudado.

— Só posso dizer que passou os últimos meses da vida tranquila, sem drogas, bem-cuidada por uma amiga mexicana, e que o menino é sadio. Se quiser vê-lo agora, venha a Los Angeles. Assim que puder, vou levá-lo para casa. Ali será criado por todos juntos.

Teu avô não pôde viajar a Los Angeles e te conheceu dois meses depois em Sacramento, mas mandou um cheque a Roy Cooper e um bilhete de agradecimento. Roy, lívido, rasgou o cheque.

Entre conta-gotas, sol e rancheiras, joropos e rumbas na rádio, o ratinho sobreviveu; seis semanas depois nos despedimos de Roy Cooper e Rita Linares, que tanto fizeram por nós, e pudemos viajar de volta para casa. Um bebê é trabalho em tempo integral, consome energia, sono e saúde mental, é um grave inconveniente para uma mulher de cinquenta e dois anos, como era eu então, mas me rejuvenesceu. Fiquei apaixonada por ti, Camilo, e isso me ajudou a enfrentar o desafio de te criar e de transformar o luto pela morte de minha filha em celebração pela vida de meu neto.


18

Facunda me contou que a reforma agrária havia desapropriado várias propriedades dos arredores de Santa Clara, como a dos Moreau, mas não afetou os Schmidt-Engler. Meu ex-sogro decidiu que não venderia seus produtos pelo preço oficial imposto pelo governo, fechou a fazenda leiteira e a fábrica de queijos. As vacas sumiram, acho que foram levadas para o outro lado da fronteira, onde aguardariam até a volta da normalidade neste país.

Circulavam rumores inquietantes sobre a colônia Esperanza. Um jornalista começou a indagar, chamando-a de enclave de estrangeiros que viviam à margem da lei, um perigo para a segurança nacional, mas ninguém lhe fez caso. Os colonos não tinham cometido nenhum delito comprovado e estavam ganhando o respeito dos vizinhos por terem aberto um pequeno consultório para atender gratuitamente as pessoas das cercanias, além de entregarem regularmente à igreja caixas de hortaliças para serem repartidas entre as famílias mais pobres.

— Não vão tocar nela, está protegida pelos militares. Ali treinam forças especiais — disse-me Julián em uma de suas viagens.

Fiquei sabendo que ele fazia para a colônia voos particulares que não ficavam registrados em lugar nenhum. O exército planejava construir ali uma pista de pouso, mas, enquanto isso não acontecia, o anfíbio de Julián podia chegar ao lago. Perguntei o que ele transportava para aquela gente enigmática, mas não me respondeu.

Juan Martín, que em breve se formaria na universidade, tinha sido eleito presidente da federação de estudantes. Andava de poncho indígena, cabelo comprido e barba não aparada, como era moda entre os jovens de esquerda. Aparecia na televisão, muitas vezes representando os estudantes, e, embora tivesse ideias revolucionárias, seu tom era conciliador. Advertia contra as manobras fascistas da oposição, mas também denunciava as táticas dos grupos de extrema esquerda, que causavam tanto mal quanto os de direita. Isso lhe angariou inimigos nas suas próprias fileiras. Vivia-se nos extremos da paixão política, ninguém ouvia as vozes razoáveis que chamavam para o diálogo ou para a negociação.

Onze meses depois de teu nascimento, um golpe militar derrubou o governo num banho de sangue, tal como Julián Bravo vinha prognosticando desde a eleição do presidente socialista. Suas viagens ao país se tornaram tão seguidas que foi como se ele tivesse se mudado para cá. Estava muito ocupado com assuntos de Estado, como me informou, sem esclarecer em que consistiam esses assuntos. Nós nos víamos pouco, porque eu estava instalada em Sacramento, tinha virado avó, e ele passava a maior parte do tempo na capital. Se vinha ao Sul, raramente me avisava.

O golpe foi organizado como uma estratégia de guerra. As forças armadas e a polícia se rebelaram ao amanhecer de uma terça-feira de primavera, e ao meio-dia tinham bombardeado o palácio presidencial, o presidente estava morto, e o país, sob comando militar. A repressão começou de imediato. Em Sacramento não houve resistência; pelo contrário, gente que eu conhecia aplaudia das sacadas, porque passara três anos esperando que os heroicos soldados salvassem a pátria de uma hipotética ditadura comunista, mas também ali valia o estado de sítio. A cidade era controlada por soldados em camuflagem de guerra, com os rostos pintados como apaches de cinema, para não serem identificados, e pelas forças de segurança em carros pretos. Helicópteros zuniam como varejeiras, tanques e caminhões pesados desfilavam, mordendo o asfalto e espantando os cães vadios, que tradicionalmente eram donos das ruas. Ouviam-se sirenes policiais, gritos, tiros e explosões. Era proibido circular, foram suspensas as viagens de avião, de trem e de ônibus; nas estradas foram instalados controles para caçar subversivos, terroristas e guerrilheiros. Não era a primeira vez que ouvíamos menção a esses inimigos da pátria; a imprensa de direita havia avisado que eram agentes da União Soviética, que preparavam uma revolução armada e que tinham listas das pessoas que seriam executadas.

As comunicações tornaram-se muito difíceis, não consegui falar com Juan Martín, que estava na capital, nem com José Antonio, que vivia a poucos quarteirões de minha casa. Julián, em compensação, chegou de improviso, quando eu achava que ele estava em Miami, e me anunciou que não tinha problemas para se deslocar; contava com um salvo-conduto porque prestava serviços essenciais à Junta de Governo.

— Obedeça às instruções dadas pela televisão, Violeta, fique em casa, não vá para o escritório enquanto a situação não se acalmar. Se quiser me localizar, deixe recado no hotel.

Nos primeiros três dias houve toque de recolher absoluto em todo o país, não se podia sair à rua sem permissão especial ou, em caso de emergência grave, desfraldando um lenço branco. Os soldados, exaltados, jogavam gente aos empurrões e cacetadas em caminhões do exército e levavam para destino desconhecido; acendiam fogueiras na praça, onde queimavam livros, documentos e registros eleitorais, porque a democracia estava suspensa até segunda ordem, e se veria no momento devido se voltaríamos a votar. Os partidos políticos e o Congresso foram declarados em recesso indefinido, e a imprensa, censurada. Eram proibidas reuniões de mais de seis pessoas, mas em vários clubes e hotéis, inclusive no Bavaria, muita gente se juntava para beber champanhe e cantar o hino nacional. Refiro-me às pessoas influentes, que haviam esperado o golpe militar com ansiedade, em especial os agricultores da região, que aspiravam a recuperar suas terras confiscadas pela reforma agrária. Os defensores do governo socialista, operários, camponeses, estudantes e pobres em geral, estavam calados em seus esconderijos, explicou-me Julián Bravo. Nas telas só víamos quatro generais entre a bandeira e o escudo nacional, dando ordens aos cidadãos, e desenhos animados de Walt Disney. Os rumores iam e vinham com força de furacão, mas eram contraditórios e impossíveis de confirmar. Fechei-me em casa, como Julián mandou. Estava muito ocupada com meu neto, que já engatinhava pelos cantos, enfiando os dedos nas tomadas e comendo terra com minhocas. Achei que logo se restabeleceria a normalidade.

Três dias depois, quando o toque de recolher foi suspenso por algumas horas, miss Taylor veio me visitar a pretexto de trazer leite em pó para o menino, que não conseguíamos fazia vários meses. Imediatamente as prateleiras dos mercados se encheram dos artigos que antes faltavam. Sentamo-nos na sala para tomar o costumeiro chá Darjeeling, o predileto de minha ex-preceptora, e então ela expôs a verdadeira razão de sua visita.

— Invadiram a universidade na capital, Violeta. Prenderam vários professores e estudantes, especialmente de jornalismo e sociologia. Dizem que as paredes da faculdade estão salpicadas de sangue.

— Juan Martín! — exclamei, e minha xícara se espatifou no chão.

— Teu filho está na lista negra. Precisa se apresentar num quartel da polícia, está sendo procurado. Como presidente da federação de estudantes, encabeça a lista.

— O que aconteceu com ele?

— Apareceu lá em casa essa noite, em pleno toque de recolher. Não sei como conseguiu atravessar várias províncias. Não veio à tua casa porque esse será o primeiro lugar onde vão procurá-lo. Está escondido, mas precisa ser tirado do país.

— Julián é o único que pode ajudar nisso.

— Não, Violeta. Teu filho diz que Julián é cúmplice dos militares e trabalha para a CIA, que está por trás disso.

— Ele nunca denunciaria o próprio filho!

— Disso não temos certeza. José Antonio acha que podemos esconder Juan Martín em Santa Clara, pelo menos por algum tempo. Ninguém irá procurá-lo no sítio. Como poderíamos mandá-lo até lá? O trem não está funcionando, há controles por todos os lados.

— Eu me encarrego disso, Josephine.

Meu único recurso para salvar Juan Martín era o pai dele, que estava no país fazia duas semanas. Consegui fazê-lo vir a Sacramento falar comigo, embora estivesse muito ocupado naqueles dias turbulentos, segundo me disse.

— Quantas vezes avisei esse rapaz para ter cuidado? E agora você vem me pedir ajuda! Não é meio tarde?

— Esse rapaz é teu filho, Julián.

— Olhe, Violeta, não posso fazer nada. Quer que eu arrisque minha carreira? Estou sendo vigiado. Se Juan Martín conseguiu chegar até Sacramento em pleno toque de recolher, também pode dar um jeito de encontrar um lugar seguro.

— Achei que ele poderia ir...

— Não me diga nada! Não quero saber onde ele está nem para onde vai. Quanto menos eu souber, melhor. Não posso ser cúmplice disso.

— Desta vez não se trata de você, Julián. Agora a única coisa que importa é Juan Martín. Você não vê que estão matando as pessoas?

— É a guerra contra o comunismo. O fim justifica os meios.

Julián Bravo era um bandido e tinha péssima relação com o filho, mas, como eu imaginava, a contragosto me ajudou a tirar Juan Martín de Sacramento. Demorou menos de duas horas para me trazer uma autorização de viagem do comandante da região. Eram outros tempos, Camilo. Agora, em menos de um minuto, se pode investigar a identidade de alguém e até os detalhes mais íntimos de sua vida, mas nos anos setenta era coisa demorada e nem sempre possível. O segundo salvo-conduto estava em nome de Lorena Benítez, empregada doméstica.

Trinta e seis horas depois, assim que o toque de recolher terminou às seis da manhã, coloquei no carro meu neto, a roupa indispensável e um pouco de comida, e fui buscar Juan Martín num dos depósitos das Casas Rústicas, onde meu irmão o escondera. Da última vez que o tinha visto, ele parecia um profeta hirsuto, mas a pessoa que estava me esperando era uma mulher alta e magra, com coque na nuca e avental azul-celeste: Lorena Benítez. Apesar do disfarce, reconheceste teu tio sem vacilar e puseste os braços em torno do pescoço dele. Menos mau que ainda não sabias falar.

Não trocamos nem uma palavra até sairmos de Sacramento. Passamos o primeiro controle e enveredamos pela rodovia rumo ao Sul. Os soldados de guarda eram uns sujeitos nervosos e agressivos, armados até os dentes, que leram os salvo-condutos com a vagareza dos semiletrados, examinaram minha carteira de identidade, mandaram-nos descer do automóvel e o revistaram por inteiro, tiraram até os assentos, mas olharam só de relance para a suposta empregada. O infalível sistema de classes sociais e o desprezo machista pelas mulheres ajudaram-nos naquele posto de controle e nos outros que enfrentamos pelo caminho.

Perguntei a Juan Martín por que não se entregara; disse que quem se apresentava voluntariamente não tinha nada que temer, era o que haviam dito na televisão.

— Em que mundo você vive, mamãe? Se me entrego, posso desaparecer para sempre.

— Como assim desaparecer? Não estou entendendo.

— Qualquer um pode ser preso, eles não precisam de pretexto, depois negam que te prenderam, ninguém sabe de nada, você vira fantasma. Mataram vários estudantes da minha faculdade e levaram mais de vinte professores.

— Bom, algum mal terão feito, Juan Martín — murmurei, repetindo o que tinha ouvido tantas vezes no círculo de minhas amizades.

— Tanto quanto eu, mamãe, defender o governo eleito democraticamente.

A viagem de trem de Sacramento até o sítio demorava pouco mais de duas horas; de carro, três ou quatro, mas fomos parados tantas vezes pelo caminho que demoramos quase sete horas para chegar a Nahuel, com os nervos em frangalhos e extenuados. Por sorte dormiste quase todo o caminho no colo de Lorena Benítez, a babá, que em nenhum momento levantou suspeitas.

Chegamos algumas horas antes do toque de recolher, que ninguém fazia cumprir naquela lonjura. Torito e Facunda nos receberam sem comentários, apesar de provavelmente se surpreenderem por ver Juan Martín vestido de mulher. Acho que entenderam, sem necessidade de explicações, que era uma questão de vida ou morte. Meu filho lhes contou em poucas palavras o que estava acontecendo na capital e no restante do país. Santa Clara era um oásis de paz.

— Preciso cruzar a fronteira — disse.

Chegaste faminto, Camilo, meio morto de sede e com as fraldas ensopadas, diretamente para os braços de Etelvina Muñoz, a neta mais velha de Facunda. Narcisa, a mãe, a teve aos quinze anos. A menina ajudara a avó a criar seus irmãos e a plantar; era larga de costas, hábil de mãos e redonda de rosto, com uma inteligência prodigiosa para os aspectos fundamentais da existência. Não tinha ido à escola, mal sabia ler e escrever, graças a Lucinda Rivas, que lhe ensinara o que pôde antes de ser derrotada pela velhice e, finalmente, pela morte.

Naquela noite dormiste aninhado num catre, entre Facunda e Etelvina, e eu me deitei com meu filho na cama de ferro que tinha sido de minha mãe. Passei horas na escuridão, alerta aos ruídos externos, esperando que a qualquer momento chegasse um jipe do exército ou da polícia para buscar Juan Martín, e pensando em meu papel de mãe, em como lhe faltara tantas vezes por andar entregue ao trabalho, em como a irmã dele havia sempre monopolizado toda a atenção, em seu espírito idealista que o levara a chocar-se com o pai desde a infância. Adormeci ao amanhecer e dormi umas duas horas; quando acordei, Facunda já tinha preparado o desjejum; Etelvina tinha ido ordenhar a vaca e te levara enganchado numa anca; Juan Martín estava ajudando Torito com os animais. Ainda fazia frio à noite, o orvalho brilhava nas folhas das árvores, e um vapor azulado subia da terra aquecida pelo sol. Como sempre, o aroma fresco e penetrante do loureiro me trouxe recordações muito vívidas de minha infância em Santa Clara, que para mim sempre será sagrada. Passamos o dia sem nos mostrar fora da casa para não chamar atenção, embora a propriedade estivesse bastante isolada. Num baú havia alguma roupa deixada por José Antonio anos antes, e encontramos calças, botas e dois pulôveres meio roídos pelas traças, mas ainda úteis para o fugitivo.

Quando nos reunimos em torno da mesa com xícaras de chá e pão ainda quente feito por Facunda, Juan Martín nos falou de julgamentos sumários e execuções arbitrárias; de presos que morriam torturados; de milhares de pessoas detidas que eram levadas à força em pleno dia, diante dos olhos de quem se atrevesse a pôr a cara para fora; dos postos policiais, quartéis militares, estádios e até escolas cheios de prisioneiros; disse que estavam improvisando campos de concentração para trancafiar os que haviam sido detidos e contou outros horrores que considerei inverossímeis, porque éramos um exemplo de convivência democrática neste continente devastado por caudilhos, ditaduras e golpes de Estado. Em nosso país nunca poderia acontecer nada daquilo que Juan Martín estava contando, era propaganda comunista. Embora naquele momento não tenha acreditado em quase nada do que meu filho alegava, entendi que ele devia ter boas razões para ter fugido disfarçado de mulher, e me abstive de contradizê-lo.

Ao entardecer, Torito começou a embalar o necessário em seu embrulho de excursões.

— Você vem comigo, Juanito — disse a meu filho.

— Tem uma arma, Torito?

— Isto — replicou o gigante, mostrando o facão de açougueiro que tinha mil utilidades e sempre ia com ele em suas escapadas.

— Estou falando de arma de fogo — insistiu Juan Martín.

— Isto aqui não é faroeste, aqui ninguém tem armas. Espero que você não esteja pensando em sair dando tiros — interrompi.

— Você não pode deixar que me peguem vivo, Torito. Promete?

— Prometo.

— Pelo amor de Deus, filho! O que é que você está insinuando? — exclamei.

— Prometo — repetiu Torito.

Saíram assim que escureceu. Era uma noite tépida de primavera; com a lua cheia, havia luz suficiente e pudemos vê-los afastar-se na direção oposta ao caminho. Tive o terrível pressentimento de que aquela era uma despedida definitiva, mas fiquei calada, porque não se deve chamar desgraça, como diziam minhas tias. Torito daí a poucos anos faria setenta, segundo nossos cálculos, mas não duvidei de que era capaz de escalar a cadeia de montanhas para cruzar a pé uma fronteira invisível, sem mais bagagem que a roupa do corpo, duas mantas e utensílios básicos de caça e pesca. Ele conhecia as antigas trilhas e passagens da cordilheira que só os velhos guias e alguns indígenas usavam. Em compensação, Juan Martín, que era no mínimo quarenta e cinco anos mais novo, estava mal preparado para aquela aventura, podia ser vencido pelo cansaço, pelo pânico ou pelo frio, podia escorregar e cair num precipício. Era um intelectual, nunca se destacou nos esportes e tinha temperamento prudente e cauteloso, muito diferente da irmã. Nieves estaria em seu elemento, fugindo de algum inimigo.


19

Passei treze dias em Santa Clara esperando notícias de meu filho e de Torito, em companhia de Facunda, Etelvina e seus irmãos. Narcisa tinha partido atrás do último namorado, deixando a sua ninhada a cargo da filha mais velha e da mãe, e não conseguiu voltar; sabe-se lá onde terá sido pilhada pelo estado de sítio. Cada hora transcorrida era um tormento, eu contava os minutos, marcava os dias no calendário sem compreender por que Torito demorava tanto para voltar; a não ser que tivesse ocorrido uma desgraça, teria sobrado tempo para ele ir até a fronteira e voltar. Eu passava a maior parte do dia espiando o caminho e os arredores, tão ansiosa que me faltava ânimo para cuidar de meu neto, que gatinhava seminu entre as galinhas, comendo terra como um selvagem. As outras crianças eram bem maiores e não gostavam de ter um pirralho atrás delas por toda parte. Tentando alcançá-las, deste os primeiros passos, Camilo. Eu não soube disso, como não soube da primeira palavra que pudeste articular: Tina, porque não conseguias pronunciar Etelvina. Assim a chamaste desde então.

Facunda manteve suas rotinas de sempre: cuidava da horta e dos trabalhos domésticos, fazia empanadas e tortas para vender, ia ao mercado, conversava com as comadres de Nahuel e voltava com as últimas notícias. Havia um contingente de soldados aquartelados a dois quilômetros de Santa Clara, disse. Tinham levado vários camponeses em caminhões do exército e não se sabia nada deles; os patrões haviam recuperado à força suas propriedades confiscadas e estavam adotando represálias contra os ocupantes; todos foram despedidos, muitos apanharam, outros foram presos.

Na região não havia um único veranista ou turista, embora já tivessem começado os calores do verão; as praças e as praias estavam vazias. Os hotéis também, menos o Bavaria, ao qual costumavam chegar militares e funcionários do governo. Em Nahuel os soldados juntaram um grupo de jovens a cacetadas e os obrigaram a caiar os muros pintados com propaganda política. Quebraram a mandíbula de um homem no mercado porque ele pronunciou a palavra “companheiro”, que agora estava proibida, assim como “povo”, “democracia” e “golpe militar”. O termo correto era “movimento militar”.

— Homem com barba ou cabelo comprido eles prendem, batem e raspam o cabelo e a barba. Nós, mulheres, não podemos usar calça comprida, porque os milicos não gostam, mas como é que nós vamos arar a terra e limpar o estábulo de saia? — comentou Facunda.

As pessoas estavam assustadas, e ninguém queria problemas; o mais prudente era permanecer dentro de casa. Por isso, ficamos surpresos quando, certo dia, um estrangeiro entrou no sítio; era alto como um jogador de basquetebol, tinha pés enormes, pele queimada pelo sol, cabelos quase brancos e olhos azuis; falava um espanhol de dicionário. Apresentou-se como Harald Fiske e perguntou se tínhamos telefone, porque a central de Nahuel estava fechada àquela hora. Era um dos observadores de pássaros que todo ano chegavam inexplicavelmente, porque nossa variedade é patética, se comparada à exuberância de aves multicoloridas da bacia amazônica ou da floresta centro-americana.

Harald Fiske tinha uns quarenta anos, corpo desengonçado de rapaz que cresceu num só estirão e rugas prematuras por excesso de sol. Andava com uma mochila descomunal, três binóculos, várias câmeras fotográficas e um grosso caderno com anotações em código, como um espião. Era tão desligado que planejava dedicar-se a aves no clima ameaçador do início da ditadura, quando o país se declarava em estado de guerra e até o ar que respirávamos estava sob controle das armas. Pensava até em montar uma tenda e acampar na praia.

— Escute, não seja tonto. Quer ser morto? — perguntei.

— Há vários anos venho a este país no verão, minha senhora. Nunca me assaltaram — insistiu o homem.

— Na falta de assaltantes, agora temos soldados.

— Sou diplomata — disse.

— Seu passaporte vai lhe servir bem pouco se dispararem antes de perguntar. Melhor dormir aqui.

— Eu lhe empresto a cama de Torito, mas, se ele voltar esta noite, o senhor vai precisar dormir no chão — ofereceu Facunda.

Foi assim que aquele homem entrou em nossa vida, Camilo. Ele era funcionário do Serviço Exterior da Noruega, encarregado de negócios na Holanda, onde era esperado pela esposa e por dois filhos. Disse ser apaixonado pela América Latina, que percorrera de norte a sul durante as férias, em especial nosso país. Facunda o adotou como a um filho meio pateta, e, durante os anos em que continuou indo ao Sul atrás de seus pássaros, sempre se alojou em Santa Clara.

Ao cabo de treze dias de espera inútil, Yaima apareceu montada numa mula. A curandeira indígena, que durante décadas resistira incólume à passagem do tempo, havia sucumbido finalmente à deterioração da idade. Eu não a via desde o enterro da tia Pilar e na verdade achava que tinha morrido. Mas, apesar da aparência de bruxa milenar, ela continuava forte e lúcida como sempre. Conhecia-me desde que eu era adolescente, mas, como nunca tinha demonstrado o menor interesse por mim, achei estranho que aparecesse para me dar um recado, que Facunda traduziu, porque o espanhol de Yaima era tão precário quanto meu conhecimento de sua língua.

— Fuchan, o amigo grande, foi levado pelos soldados.

Facunda caiu de joelhos, soluçando, e eu só pensei em meu filho.

— Fuchan ia com outro homem, um rapaz. O que aconteceu com ele, Yaima? — perguntei, sacudindo-a.

— Fuchan nós vimos. O outro não vimos. Haverá cerimônia para Fuchan. Avisamos.

Isso queria dizer que os indígenas já davam Torito por morto. Se Torito estava sozinho, sem dúvida vinha de volta, e isso significava que meu filho podia ter escapado. Eu não quis imaginar nem por um instante que o bom homem tivesse cumprido sua promessa de impedir por qualquer meio que Juan Martín caísse vivo nas mãos dos militares. Era preciso resgatar Torito, e a única ideia que me ocorreu foi recorrer a Julián. Com seus contatos, ele decerto poderia investigar o destino dele e de seu filho. Temíamos que os telefones estivessem interceptados, que cada cidadão estivesse sendo espionado, o que era impossível, claro, mas ninguém se atrevia a verificar se o rumor era um exagero. Eu não tinha outra opção.

Julián vivia em Miami e não tinha residência fixa neste país; quando vinha, alojava-se num hotel da capital ou de Sacramento, sempre os mesmos. Liguei para os dois hotéis do telefone público de Nahuel, porque, depois de tantos anos, ainda não tínhamos telefone no sítio, e deixei o recado de que tentaria de novo naquela mesma noite.

— Imagino que tenha ligado por causa do batizado de Camilo. O tio dele vai ser o padrinho, não? — perguntou antes que eu conseguisse dizer uma palavra.

— É, sim... — respondi, desconcertada.

— Como vai o tio?

— Não sei. Você pode vir?

— Vou estar amanhã no hotel Bavaria, tenho uma reunião por esses lados. Passo aí para te ver.

Este diálogo absurdo em código confirmou, para mim, a dimensão da violência em que vivíamos, tal como Juan Martín advertira. Se Julián não se sentia seguro, ninguém estava seguro. A propaganda da oposição havia vaticinado durante três anos o terror de uma ditadura comunista; agora experimentávamos o terror de uma de direita. A Junta dos generais tinha anunciado que se tratava de medidas temporárias, mas por tempo indefinido, até segunda ordem, enquanto se restabeleciam na pátria os valores cristãos e ocidentais. Aferrei-me à ilusão de que nosso país tinha a mais sólida tradição democrática do continente, de que tínhamos sido um exemplo de civismo no mundo, de que logo teríamos eleições, e a democracia voltaria. Então Juan Martín poderia regressar.

Julián me garantiu que não conseguiu descobrir nada sobre o destino de Torito, mas não acreditei; ele tinha contatos nos círculos mais altos do poder, sem dúvida era suficiente dar um telefonema para saber quem o prendera, se tinha sido a polícia, os corpos de segurança ou os militares, e onde estava. Ele deveria estar tão interessado quanto eu em seu resgate, mesmo que fosse só para lhe perguntar o que tinha acontecido com nosso filho. Era um suplício imaginar as diversas formas como Juan Martín poderia ter morrido.

— Você sempre pensa o pior, Violeta. Na certa está dançando tango em Buenos Aires — disse-me.

O tom debochado com que abordou a sorte do filho confirmou minha suspeita de que ele sabia de alguma coisa e escondia. Senti ódio dele por isso.

Era inútil continuar esperando notícias no sítio. Despedi-me de Facunda, que ficou no papel de dona nominal de Santa Clara, encarregada do pouco que ia sobrando da propriedade, e voltei a Sacramento. No último momento, Facunda me pediu que levasse Etelvina, porque, enterrada no campo, sua neta teria uma vida de trabalho, pobreza e sofrimento.

— Ela pode ajudar a criar Camilo. Não precisa pagar muito, mas ensine-lhe tudo o que puder; ela quer aprender — disse.

Isso foi há quarenta e sete anos, pelos meus cálculos, Camilo. Nunca imaginei que Etelvina seria mais importante em minha vida do que meus dois maridos e a soma de todos os homens que me amaram.

Meu irmão José Antonio precisava de mim em Sacramento, tínhamos muito trabalho pela frente, para salvar o que nos restava. A Junta Militar estava investigando a fundo nossa colaboração com o governo anterior e, enquanto isso, congelou o contrato de Minha Casa Própria. Fomos intimados várias vezes a comparecer no gabinete de um coronel, que nos interrogou como se fôssemos criminosos, mas finalmente nos deixou em paz. Perdemos muito, porque tínhamos investido em máquinas e material para produzir as casas em tempo recorde, mas administrávamos outros negócios. Não posso me queixar, nunca me faltou dinheiro, pude viver bem com meu trabalho.

Passei anos atormentada pelas dúvidas a respeito da sorte de Juan Martín; estava de luto pela morte de minha filha e pela possível morte de meu filho. Tu eras meu consolo. Foste um pirralho muito travesso, Camilo, não me davas trégua. Eras baixinho e magro, cresceste na adolescência, quando eu precisava comprar o uniforme escolar três números maiores que o teu, para durar um ano, e sapatos novos a cada sete semanas. Tinhas a coragem da tua mãe e o idealismo de teu tio Juan Martín. Aos sete anos chegaste um dia com sangue no nariz e um olho roxo por ter enfrentado um grandalhão que estava maltratando um animal. Davas tudo de presente, desde teus brinquedos até minha roupa, que pegavas escondido. “Menininho endiabrado! Vou mandar te prender, para ver se aprendes!”, dizia eu. Mas nunca consegui te castigar; no fundo, admirava tua generosidade. Eras meu filho/neto, meu comparsa, meu amigão da alma. És ainda, é preciso dizer.

Não há por que me estender em demasia, contando os longos anos da ditadura, Camilo, é história velha e bem conhecida. Já faz trinta anos que temos democracia, e o pior do passado veio à luz: os campos de concentração, a tortura, os assassinatos e a repressão que tanta gente padeceu. Nada disso se pode negar, mas na época não sabíamos, não havia informação, só rumores. Ainda há quem justifique, acreditando que eram medidas necessárias para impor ordem e salvar o país do comunismo. Havia ditaduras em muitos países da América Latina, não fomos o único. Eram os tempos da guerra fria entre os Estados Unidos e a União Soviética, e nós estávamos na área de influência dos norte-americanos, que não iam permitir ideias de esquerda no continente, tal como Julián Bravo avisara com uma década de antecedência. Os russos também impunham sua ideologia na parte do mundo que controlavam.

Na superfície, o país nunca estivera melhor. Os visitantes ficavam maravilhados com os arranha-céus, as rodovias, a limpeza e a segurança; nada de muros rabiscados, de agitações de rua, de estudantes entrincheirados nos colégios, de mendigos pedindo esmola ou cachorros vadios; tudo isso desapareceu. Ninguém falava de política, era perigoso. As pessoas aprenderam a ser pontuais, a respeitar a hierarquia e a autoridade, a trabalhar; quem não trabalha não come, era o lema. Com a mão de ferro do regime terminou a politicagem e avançamos para o futuro, deixamos de ser um país pobre e subdesenvolvido e, na marra, viramos um país próspero e disciplinado. Esse era o discurso oficial. Por dentro, porém, éramos um país doente. Por dentro, Camilo, eu também estava doente de dor pelo filho fugitivo, por Torito desaparecido e porque precisaria ser cega para desconhecer a situação precária de meus operários e escriturários, empobrecidos e com medo.

Pegamos o costume de ser prudentes na linguagem, evitar certos assuntos, não chamar atenção e obedecer às regras. Até nos acostumamos ao toque de recolher, que durou quinze anos, porque obrigava os maridos gaviões e os adolescentes rebeldes a chegar cedo em casa. A criminalidade diminuiu muito. Os crimes quem cometia era o Estado, mas podíamos andar na rua e dormir à noite sem sermos assaltados por delinquentes comuns. Foi uma época muito dura para os trabalhadores, que não tinham direitos e podiam ser demitidos da noite para o dia; havia muito desemprego, era o paraíso dos empresários. Essa prosperidade de alguns tinha enorme custo social. O auge econômico durou vários anos, até que desmoronou com estrépito. Por algum tempo fomos motivo de inveja para os vizinhos; éramos os favoritos dos Estados Unidos. Fala-se de corrupção, agora chamada de enriquecimento ilícito, mas na ditadura era legal. José Antonio e eu fizemos muito dinheiro, e não me envergonho disso, porque não cometemos nenhum crime, só aproveitamos as oportunidades que apareceram. Os militares estavam em tudo e cobravam suas comissões; cumpria pagar-lhes, essa era a norma.

José Antonio tinha sofrido um ataque do coração e estava aposentado, em casa, sob os cuidados de miss Taylor, mas continuou sendo o presidente de nossas empresas. Conhecia meio mundo em Sacramento, tinha centenas de amigos, era querido e respeitado. Sua experiência e seus contatos eram indispensáveis para conseguir contratos e empréstimos, mas o trabalho era feito por Anton Kusanovic e por mim. Dispensávamos o melhor tratamento possível ao nosso pessoal, mas precisávamos manter os custos baixos para competir num mercado selvagem.

— Pelo menos eles têm trabalho e são tratados com dignidade, Violeta — lembrava-me Anton.

Manter o equilíbrio entre justiça, compaixão e cobiça era algo que me contrariava tanto, que acabei convencendo José Antonio a vender nossa parte do negócio de casas pré-fabricadas a Anton, pois assim ele poderia passar seus últimos anos em paz, e eu poderia me dedicar a outra coisa. Era o momento ideal para especular em propriedades e fazer outros negócios. Muita gente estava vendendo a preço de banana e indo para o estrangeiro, alguns exilados e outros porque não gostavam do regime ou iam buscar oportunidades econômicas lá fora. Podia-se comprar barato e vender caro, como tinha sido o lema de meu pai.

Fixei residência na capital, onde o mercado de moradias e instalações comerciais era mais variado e interessante do que nas províncias. Convinha-me. Havia muita oferta, e eu tinha bom olho para escolher e sabia pechinchar; comprava propriedades muito bem localizadas, mesmo que estivessem em mau estado, modernizava-as e as vendia com um lucro substancial. Em pouco tempo me especializei em construção, reformas, decoração de interiores e empréstimos dos bancos; essa é a base do que chamas de minha fortuna, Camilo, mas esse termo aplicado a mim é ridículo. O que tenho é desprezível, se comparado à forma imoral como outros enriqueceram na época. São os bilionários de hoje.

Quem cuidava de ti era Etelvina, porque ainda eras muito pequeno para o colégio San Ignacio, o melhor do país, mesmo sendo de padres. Aquela boa mulher e eu te mimávamos tanto que, se fosses qualquer outro menino, terias sido um monstro de egoísmo e mau comportamento, mas eras encantador. Na minha consciência pesava o fato de ter descuidado de meus filhos quando eram pequenos, e fixei como meu objetivo não permitir que isso ocorresse com meu neto. Sempre dava um jeito de estar contigo, te ajudava nas tarefas, íamos com Etelvina a teus eventos esportivos e representações teatrais, que eram um horror, e passávamos as férias em Santa Clara, onde Facunda nos recebia com o melhor de sua cozinha. Eu só te deixava para ir me encontrar com Roy, aquele homem cheio de segredos, nos Estados Unidos.

O apartamento onde moramos muitos anos era dos antigos, antes que os ventos da modernidade reduzissem os espaços, impusessem a frieza do vidro e o rigor do aço. Ficava em frente ao Parque Japonês; comprei barato porque o bairro estava fora de moda, embora ainda restassem algumas mansões e várias embaixadas, e o vendi a preço de ouro, porque em seu lugar iam levantar uma torre de trinta andares. As mansões dos novos-ricos surgiam como fortalezas nas encostas dos morros, rodeadas de muros altos e vigiadas por mastins, enquanto a classe média e o comércio ocupavam a zona onde vivíamos. Na entrada de nosso edifício ficavam dia e noite dois porteiros amáveis, os gêmeos Sepúlveda, tão parecidos que era impossível saber qual estava de plantão. Nosso apartamento ocupava todo o terceiro andar; os corredores eram tão largos e compridos que neles aprendeste a andar de bicicleta. Ele tinha um ar de nobreza decadente, pés-direitos altos, piso de tacos e vidraças biseladas, que me lembravam a casa-grande das camélias, onde nasci.

No início, o apartamento parecia grande demais para mim, para Etelvina e um menininho, mas poucos meses depois José Antonio e miss Taylor vieram morar conosco, porque o coração dele continuava falhando, e em Sacramento não era possível receber a mesma atenção que na Clínica Inglesa da capital, aonde com frequência era preciso levá-lo às pressas. Chegava meio morto e toda vez era milagrosamente ressuscitado. Os dois detestavam o barulho, a poluição e o trânsito da cidade, por isso saíam pouco; ficaram viciados em telenovelas, que eles acompanhavam assiduamente com Etelvina e contigo. Aos quatro anos estavas a par das mais violentas paixões humanas e repetias os diálogos mais escabrosos com sotaque mexicano. Eu não via a hora de meu neto ter idade suficiente para ir ao colégio e ampliar um pouco seus horizontes.

Aqueles foram os anos mais duros da ditadura, quando o poder se consolidou por meio da violência, mas, exceto pela terrível incerteza sobre o destino de Juan Martín, para nossa pequena família foram anos relativamente bons. Pude ajudar meu irmão na velhice, recuperei a estreita amizade que tive na juventude com miss Taylor e aproveitei plenamente a infância de meu neto.

Etelvina dirigia a casa sem minha interferência, porque as prendas domésticas nunca me interessaram; ela administrava os gastos diários e supervisionava duas empregadas, de quem exigia o uso de uniforme. Memorizava as receitas dadas em programas de televisão e chegou a cozinhar melhor que qualquer chef. Miss Taylor lhe ensinou o refinamento antiquado, que ninguém mais praticava, aprendido aos dezessete anos de sua segunda patroa, aquela viúva de Londres. Na falta de um pajem de libré, como nas telenovelas, Etelvina nos impôs rituais palacianos. “Para que temos porcelana fina se não é para usar?”, dizia, e punha a mesa com candelabros e três taças por lugar. Aprendeste a usar faca de manteiga e talher para comer caranguejo antes de saberes amarrar os cadarços dos sapatos.

A idade não me pesava em nada. Eu me aproximava dos sessenta anos e me sentia tão forte e produtiva como aos trinta. Ganhava mais que o suficiente para manter a família e economizar sem me matar de trabalhar; jogava tênis para ficar em forma, sem entusiasmo, porque o afã de dar raquetadas numa bola me parecia absurdo; tinha vida social ativa, com encontros amorosos que me entusiasmavam por alguns dias e eram esquecidos logo depois, sem deixar rastros. Meu amor de então foi Roy Cooper, mas estávamos separados por milhares de quilômetros.

À sua maneira, Julián gostava muito de ti, Camilo. Ficava entediado contigo, e não o culpo, porque as crianças são uma chatice, mas o que lhe faltava de paciência sobrava-lhe de entusiasmo. Dava-te presentes de marajá, que produziam desconcerto em ti e caos doméstico. Ensinou-te tudo o que seu filho Juan Martín se recusou a aprender: uso de armas, tiro com arco, box e hipismo, mas ficava irritado porque não sobressaías em nenhuma dessas atividades. Comprou um cavalo, que acabou ficando a cargo de Facunda no sítio, pastando no campo, em vez de saltar obstáculos e competir no hipódromo.

Uma vez mencionaste a vontade de ter um cachorro, e teu avô trouxe um filhote. Com o pouco tempo ele se transformou num animalão preto que apavorava os outros inquilinos do edifício, embora tivesse temperamento muito doce. Refiro-me a Crispín, o dobermann pinscher que foi teu bichinho de estimação e dormiu a teu lado até ires para o internato San Ignacio.


20

Passei quatro anos sem saber de Juan Martín, indagando aqui e ali com prudência, para não chamar atenção. O nome dele continuava na lista negra; era procurado, e isso me dava esperanças de que continuasse vivo. Assim como seu pai havia sugerido sarcasticamente, ele passou algum tempo na Argentina, mas não dançando tango, e sim fazendo jornalismo e ganhando apenas o suficiente para subsistir. Escrevia artigos para diversos meios de comunicação e assinava com pseudônimo; havia conseguido um passaporte falso e mandava notícias da ditadura e da resistência em nosso país para a Europa, em especial para a Alemanha, onde havia interesse pela América Latina e simpatia pelos milhares de exilados que tinham chegado lá.

Poderia ter mandado alguma mensagem, pelo menos para me comunicar que estava vivo, mas não mandou. Não queria que o pai soubesse onde ele estava: essa foi sua única explicação para aquele terrível silêncio, que me induziu a me despedir dele mil vezes, temendo que tivesse morrido na travessia das montanhas ou depois.

Seus amigos eram jornalistas, artistas e intelectuais que compartilhavam suas inquietações. Entre eles, destacava-se Vania Halperin, filha de judeus sobreviventes do Holocausto, frágil, pálida, de olhos e cabelos pretos, com um rosto de madona renascentista. Quem visse aquela jovem delicada, que tocava violino na Orquestra Sinfônica, não podia adivinhar sua paixão revolucionária. O irmão pertencia aos montoneros, a organização guerrilheira que os militares estavam decididos a arrancar pela raiz. Para Juan Martín, aquela moça seria inesquecível. Perseguiu-a com a tenacidade solene do primeiro amor, mas ela agiu de tal modo que, ao mesmo tempo que rechaçava suas atenções, mantinha-o apaixonado.

Buenos Aires, sofisticada e fascinante, era a Paris da América Latina; com uma vida cultural exuberante, o melhor teatro e a melhor música, era o berço de escritores conhecidos no mundo inteiro. Juan Martín costumava passar a noite em alguma água-furtada com um grupo de jovens como ele, discutindo filosofia e política em torno de garrafas de vinho barato, intoxicado de fumaça de cigarro e paixão revolucionária. Não voltou a usar barba, como seus comparsas boêmios, porque precisava ficar parecido com a foto do passaporte falso. Reviveu os tempos da euforia da universidade e podia contar aos outros a experiência do governo de esquerda, o despertar da sociedade, a ilusão do poder nas mãos do povo. Digo ilusão porque na realidade isso nunca aconteceu, Camilo, nem antes nem agora. O poder econômico e militar, que é o que conta, sempre esteve nas mesmas mãos, aqui não tivemos a revolução russa nem a cubana, tivemos apenas um governo progressista, como vários que existem na Europa. Estávamos no hemisfério errado e defasados no tempo, por isso pagamos um preço muito alto.

Juan Martín já estava deitando raízes naquela cidade magnífica, quando também ali se desencadeou o terror de um golpe militar. O comandante-chefe proclamou que morreriam tantas pessoas quantas fossem necessárias para restabelecer a segurança no país; isso significou a impunidade absoluta dos esquadrões da morte. Tal como ocorreu em nosso país e em outros, milhares de pessoas foram raptadas e desapareceram, ou então foram torturadas e assassinadas, e os corpos nunca foram encontrados. Agora sabemos, Camilo, da infame Operação Condor, criada nos Estados Unidos para estabelecer ditaduras de direita em nosso continente e coordenar as estratégias mais cruéis para acabar com os dissidentes.

A repressão na Argentina não aconteceu em um dia nem foi uma guerra declarada, como a nossa, foi uma guerra suja que se infiltrou em todos os âmbitos da sociedade de forma sorrateira. Explodia uma bomba num teatro de vanguarda, um deputado era metralhado na rua, aparecia o cadáver destroçado de um dirigente sindical. Conhecia-se a localização dos centros de tortura, e começaram a desaparecer artistas, jornalistas, professores, líderes políticos e outros que fossem considerados suspeitos. As mulheres procuravam em vão seus homens; depois as mães se atreveram a marchar com as fotografias de filhos e filhas ausentes penduradas no peito, e logo foram as avós, porque os bebês das jovens assassinadas na prisão depois de dar à luz perderam-se nos labirintos da adoção ilegal.

Quanto disso era do conhecimento de Julián Bravo? Até que ponto ele participou? Sei que recebeu treinamento na Escola das Américas, no Panamá, como os oficiais encarregados da repressão em nossos países. Contava com a confiança dos generais, porque era um piloto extraordinário; imagino que a coragem, a experiência e a falta de escrúpulos lhe abriram as portas do poder. Uma vez, com uma garrafa de uísque na mão, ficou loquaz demais e me confessou que às vezes os passageiros de seu avião eram presos políticos, que iam algemados, amordaçados e dopados. Jurou, porém, que nunca precisou atirar nenhum daqueles infelizes ao mar, pois isso era feito por pilotos militares com helicópteros.

— São os chamados “voos da morte” — acrescentou.

Primeiro levaram Vania Halperin. Esperaram que ela terminasse o concerto de Vivaldi no teatro Colón e a prenderam nos camarins, diante dos olhos dos outros integrantes da orquestra.

— Venha conosco, senhorita. Não se preocupe, é um procedimento de rotina. Não vai precisar do violino, nós a traremos de volta — dizem que disseram.

As agressões começaram no automóvel. É provável que tivesse sido detida para averiguação do irmão montonero, mas a família não sabia nada dele fazia meses. Outros músicos da orquestra, testemunhas do ocorrido, avisaram os pais de Vania, e eles espalharam a notícia entre os amigos e começaram o calvário de tentar resgatá-la. A última coisa que se soube dela é que foi vista na Escola de Mecânica da Armada, que era usada como centro de tortura.

Depois sequestraram dois integrantes do grupo de boêmios, e os restantes se dispersaram rapidamente. O editor de um dos jornais para o qual Juan Martín escrevia marcou sigilosamente um encontro com ele num boteco para avisar que agentes da Segurança tinham ido ao seu escritório e perguntado por ele.

— Vá imediatamente para o mais longe possível — aconselhou, mas Juan Martín não podia ir sem saber de Vania; precisava descobrir seu paradeiro, mover céus e mares para libertá-la.

No entanto, naquele mesmo dia, ao se aproximar de sua água-furtada, avistou a silhueta inconfundível de um dos temíveis carros pretos. Deu meia-volta e saiu andando, sem pressa, para não chamar atenção. Não se atreveu a pedir ajuda entre os amigos, porque podia envolvê-los.

Naquela noite dormiu encolhido entre os túmulos do cemitério da Recoleta e no dia seguinte, na falta de ideia melhor, dirigiu-se a uma residência de missionários belgas. A Igreja católica colaborava com a bestial repressão, inclusive com os infames voos da morte, mas havia padres e freiras dissidentes que arriscavam tudo pelas vítimas, e muitos pagariam com a vida. Os belgas o acolheram por duas noites. Garantiram que tentariam localizar Vania Halperin, tinham listas de pessoas sequestradas, com dados e fotografias, mas de nada serviria ele se expor naquele momento. Sua relação com Vania seria descoberta, era questão de tempo. Sua única esperança, disseram, era asilar-se em alguma embaixada; o terrorismo de Estado estava coordenado internacionalmente, e, se ele figurava na lista negra de seu país, também estava na da Argentina.

Juan Martín tinha um contato que seria fundamental: a adida cultural da embaixada da Alemanha, com quem ele costumava compartilhar os artigos que enviava a seu país. Embora o povo alemão tenha acolhido e amparado milhares de refugiados de nosso continente, o governo apoiava discretamente as ditaduras do Cone Sul da América Latina por razões comerciais e talvez ideológicas; era a luta contra o comunismo. O embaixador era amigo pessoal de um dos generais da Junta, mas aquela adida cultural simpatizava com Juan Martín. Como não podia lhe oferecer refúgio em sua própria sede diplomática, levou-o em seu carro à embaixada da Noruega.

Meu filho ficou asilado durante cinco semanas, dormindo num catre de campanha num dos escritórios, à espera de notícias de Vania Halperin. Viveu cada minuto imaginando o calvário pelo qual a moça estava passando, interrogatórios, torturas, estupros, cães amestrados, choques elétricos, ratos, tudo o que já se sabia. Se não encontrassem o irmão fugitivo, podiam deter os pais e martirizá-los na frente dela.

Trinta e três dias depois, apareceu na embaixada um dos missionários belgas com a notícia de que o corpo da jovem tinha sido encontrado num necrotério. Não havia dúvida de que era ela, pois os pais a tinham identificado. Arrasado pela dor e pela culpa de continuar vivo sem ela, Juan Martín partiu para a Europa com a documentação falsa que a embaixada lhe forneceu.

E então, quando ele já estava a salvo na Noruega, recebi a visita mais inesperada: Harald Fiske, o ornitólogo que eu conhecera no sítio Santa Clara, trazia notícias e uma breve carta escrita por meu filho momentos antes de ir para o aeroporto acompanhado por um funcionário da embaixada. Era uma missiva de tom frio, nada pessoal, em que me comunicava que logo poderia me dar a informação que eu queria sobre o produto. Ou seja, em código.

— Por enquanto, ele não quer que o pai saiba onde ele está — disse Harald.

Eu tinha suportado com relativa serenidade e infinita paciência quase quatro anos de angústia pela sorte do único filho que me restava, e quando compreendi que aquele norueguês o tinha visto poucos dias antes, meus joelhos se dobraram, e eu caí numa cadeira, soluçando. A sensação de alívio foi semelhante à descarga de adrenalina provocada pelo terror, um vazio no centro do corpo, seguido por uma rajada de fogo nas veias. Meu choro escandaloso atraiu Etelvina, e logo o restante da família estava em volta de mim, chorando também, enquanto o mensageiro observava aquela expansão emocional paralisado pelo desconcerto.

Fazia um ano que Harald exercia cargo diplomático na Argentina, onde estava só porque se divorciara, e os filhos estudavam na universidade na Europa. Tinha voado de Buenos Aires para me falar de Juan Martín, do modo como ele escapou a tempo, de sua vida em Buenos Aires até que se desencadeasse a guerra suja e ele precisasse se esconder, de seu trabalho como jornalista, de sua existência discreta com falsa identidade, de seus amigos e de seu amor por Vania Halperin.

— Ele não queria partir sem ela — disse.

Não sabíamos na época, mas dos sete anos que esse genocídio durou na Argentina ficaria um saldo de mais de trinta mil assassinados e desaparecidos.

Ainda se passaria um ano antes que eu pudesse me encontrar finalmente com Juan Martín. Ele chegou à Noruega com o coração partido, assustado e deprimido, mas o Conselho Norueguês para Refugiados, que existia desde o final da Segunda Guerra Mundial, estava ali para ajudá-lo. Na porta do avião, era esperado por um representante que o levou ao pequeno estúdio que lhe haviam destinado no centro de Oslo; era equipado com o necessário para uma estada cômoda, incluindo agasalhos de seu tamanho, porque ele tinha saído do hemisfério sul no verão e ali era inverno fechado. O Conselho e, em especial, aquele bom homem, seriam seus salva-vidas nos primeiros meses, quando lhe forneceram dinheiro para as despesas diárias, guiaram-no na burocracia para conseguir visto de residente e identificação com seu nome verdadeiro, ensinaram-lhe como se movimentar na cidade e normas de convivência, puseram-no em contato com outros refugiados latino-americanos e o inscreveram em cursos para aprender o idioma. Ofereceram-lhe até terapia psicológica, como a recebida por outros imigrantes, para adaptar-se a suas novas condições e superar o passado, mas Juan Martín explicou que tinha escapado a tempo e não se sentia traumatizado. Mais que terapia, precisava trabalhar, não podia ficar ocioso, vivendo de caridade.

Fui à Noruega visitá-lo, acompanhada por Etelvina e por ti, Camilo; tinhas seis anos e acho que não te lembras. No longo tempo que ficáramos separados, meu filho havia mudado tanto que, se ele não se aproximasse no aeroporto, teríamos passado ao largo, sem o reconhecer. Lembrava-me dele magro, desengonçado e cabeludo, e me vi diante de um homem maciço, de óculos e com calvície precoce. Tinha vinte e oito anos, mas parecia quarenta. Senti-me perdida diante daquele estranho e, por um minuto, que pareceu um século, não consegui me mexer, mas ele me atraiu num abraço imenso, enterrando-me na lã áspera de seu suéter, e então voltamos a ser os mesmos de sempre, mãe, filho, amigos.

Juan Martín já não morava no pequeno estúdio do início, tinha se mudado para um apartamento modesto na periferia da cidade e estava empregado pelo Conselho Norueguês para Refugiados como tradutor e anfitrião. Agora cabia a ele ajudar outros refugiados, especialmente os provenientes da América Latina, tal como havia sido ajudado; sua vantagem era ter em comum com eles o idioma e uma história.

Meu filho tirou uma semana de férias para fazermos turismo e ver o país, ao qual eu voltaria muitas vezes nos anos seguintes. Em cada viagem verifiquei as mudanças na existência dele: como aprendeu a falar norueguês com um sotaque terrível, como foi se adaptando e fazendo amigos, como um dia me apresentou a Ulla, a jovem que viria a ser minha nora e mãe de dois netos meus. Pela descrição que tenho de Vania Halperin, acredito que o segundo amor de Juan Martín é o oposto do primeiro. Naquele tempo, Ulla era uma moça bronzeada pelo sol do verão e pela neve do inverno, esportista, forte, alegre e sem nenhuma das complicações existenciais ou políticas de Vania.

A distância esfuma os contornos e a cor das lembranças. Tenho cartas e fotografias da família que Juan Martín formou na Noruega; ele me telefona e veio me ver nos últimos anos, quando deixei de ter forças para uma viagem tão longa, mas, ao pensar em meu filho, não consigo precisar suas feições ou sua voz. Os anos no norte do mundo o afastaram desta terra, e ele me parece tão estrangeiro quanto Ulla e seus filhos. Está muito melhor na paz de seu país de adoção do que na desordem deste. Dizem que se vive mais feliz na Noruega do que em qualquer outra parte do mundo. Eu me acostumei a amar Juan Martín e a sua família de longe, sem expectativas. Na teoria, sinto saudade das famílias grandes como a de meus avós ou de meus pais, dos almoços dominicais obrigatórios, quando todos se reuniam na casa-grande das camélias, e da segurança de viver numa comunidade fechada, mas, como não pude ter nada disso, na prática não me faz falta.

A demência foi tomando conta de José Antonio. Ele teve uma série de AVCs leves, tinha o coração fraco, a pressão muito alta e um começo de surdez, que sei eu, mil achaques que foram se somando e acabaram por desprendê-lo da realidade. Os sintomas começaram muito antes do diagnóstico; primeiro ele se perdia na rua e esquecia o que tinha comido; depois se perdia no apartamento e esquecia quem era.

— Você é José Antonio, meu marido — repetia miss Taylor, e mostrava-lhe os álbuns de fotografias e contava sua vida, enriquecida, para melhorar as recordações, mas era um esforço inútil, porque ele retinha muito pouco.

Começou a ter medo de Crispín, achava que o cão podia devorá-lo; o bicho tinha aspecto ameaçador, mas era manso como um coelho e vivia conosco havia anos. O mais doloroso de sua condição era o medo. Não temia só Crispín, mas também ficar sozinho, ser mandado para um asilo de velhos, não ter dinheiro suficiente, haver um incêndio ou outro terremoto, o envenenamento de sua comida, a morte. Reconhecia miss Taylor, mas às vezes perguntava quem era eu e por que vinha todos os dias almoçar sem ser convidada. Uma vez saiu nu, de chapéu e bengala; desceu para o térreo e se foi andando depressa pela rua. Foram duas vizinhas de boa vontade que o trouxeram de volta, antes que isso fosse feito pela polícia.

— Eu estava indo ao banco tirar dinheiro, para não ser roubado — foi a explicação.

Enquanto miss Taylor e eu sofríamos, vendo que a doença estava transformando José Antonio num desconhecido, Etelvina e tu, Camilo, lidavam com ele naturalmente. Respondiam à mesma pergunta cem vezes, consolavam-no quando ele começava a chorar sem motivo, distraíam-no de seus terrores. A ti ele também reconhecia, achava que eras neto dele e ficava irritado quando Julián Bravo chegava com ares de ser teu avô legítimo.

Vários anos depois, Crispín também sofreria de demência. Nunca quiseste admitir, Camilo, mas foi o que aconteceu. Os animais também ficam lunáticos. Assim como José Antonio, o cachorro se perdia no apartamento, esquecia que tinha comido, latia sem motivo, com o nariz contra a parede, ficava aterrorizado quando passavam aspirador porque achava que a terra estava tremendo, e não me reconhecia. Aquele cachorro amável, que antes me dava boas-vindas com uma coreografia, depois grunhia para mim toda vez que eu entrava em casa.

Meu irmão morreu aos oitenta anos, depois de passar mais de quatro em outra dimensão. Na última etapa não teve paz nem alegria, e raríssimas vezes voltamos a ouvir sua risada sonora. Também não teve ternura, porque não podia recebê-la; irritava-se com miss Taylor, rejeitava seu carinho, frequentemente a insultava com termos que nunca havia usado com ninguém. Tinha sido alto e encorpado, mas a má saúde o reduziu a um velhinho mirrado; graças a isso, podíamos dominá-lo quando ficava agressivo e atacava a bengaladas quem se pusesse à sua frente. Seu olhar perdeu brilho e luz, ele se tornou um menino malcriado. Sua mulher o suportava com fleuma britânica; dizia que não era o mesmo homem que a perseguira durante décadas, com a perseverança de um apaixonado invencível, e a amara com a fidelidade do melhor dos maridos. Era desse modo que queria lembrar-se dele, e não como o velho furioso em que se transformou.

A agonia de José Antonio foi dolorosa porque ele tinha pavor da morte e defendeu-se dela durante longas semanas. Todos sofremos naqueles dias em que ele lutava por respirar, com um gorgolejo rouco no peito, debatendo-se, queixando-se e reclamando enquanto teve voz. Foi um alívio quando por fim se entregou, esgotado, mas, ao vê-lo rijo e frio, com aquela cor amarelenta dos mortos, senti com a violência de um tufão a lembrança do que ele havia significado em minha vida e quanto lhe devia. Tive muito pouco contato com quatro irmãos meus, que faleceram já faz vários anos, mas José Antonio foi a árvore grande que me deu proteção e sombra desde que nasci; tomou conta de mim desde aquela manhã remota em que descobri meu pai na biblioteca.

Um ano depois foi a vez de Josephine Taylor, que partiu com seus bons modos e sua discrição de costume. Não queria incomodar. Havia algum tempo lutava contra o câncer, que, segundo ela, era sequela daquele tumor do tamanho de uma laranja que tivera anteriormente. É pouco provável, pois a laranja tinha sido extirpada quando ela era jovem, e o câncer surgiu meio século depois. Poderia ter-se submetido a um tratamento de quimioterapia, mas decidiu que, sem José Antonio, sua vida não tinha propósito, e aos oitenta e seis anos já estava cansada. Parece que a vejo naqueles últimos dias, uma velhinha de conto de fadas, antiquada, deliciosa, sentada junto à janela, com um livro no colo, que já não conseguia ler, e Crispín a seus pés.

Sem dúvida te lembras daquele dia com clareza, Camilo, porque o reviveste em pesadelos, quando acordavas chorando, angustiado, e a única coisa que conseguias dizer era o nome de miss Taylor, como sempre a chamaste. Voltaste do colégio desarrumado, descabelado e suando, como sempre; atiraste a mochila no chão e assobiaste para chamar Crispín, estranhando que ele não tivesse vindo te receber. Foste procurá-lo, chamando-o. Etelvina e eu estávamos na cozinha, entretidas na telenovela; tu nos deste um beijo correndo e seguiste para a sala. Era inverno, lá fora estava escuro, e a lareira, acesa. Ali, à luz das chamas e de um abajur, viste miss Taylor em sua poltrona. Crispín estava ao lado dela, com a cabeçorra preta apoiada em seu colo, imóvel. Então entendeste o que tinha acontecido.


QUARTA PARTE

Renascer

(1983-2020)


21

Facunda me deu a notícia por telefone antes de sua divulgação pela imprensa, nota perdida num pé de página, para passar despercebida. Ficara sabendo do fato por seus familiares indígenas, que usavam o mesmo método desde a época da conquista, quinhentos anos atrás, de passar a informação boca a boca, como numa sequência de postos de correio. A censura, tão eficiente e temida, não conseguiu calar o clamor. Era a primeira vez que se encontravam corpos de pessoas desaparecidas; aqueles não tinham sido atirados ao mar nem dinamitados no deserto, mas metidos na caverna de uma montanha, com entrada vedada.

Um missionário e ativista francês chamado Albert Benoît, que morava numa comunidade periférica, onde a repressão do governo era especialmente dura, ficou sabendo, no confessionário, da existência do túmulo coletivo. Era um daqueles padres dissidentes que contabilizavam as vítimas da repressão, tinha sido preso e torturado duas vezes e recebido do cardeal a ordem de não fazer barulho e de se manter invisível, mas não a cumprira. Diferentemente da Igreja católica da Argentina, a nossa não colaborava com a ditadura e se mantinha num equilíbrio precário entre denunciar os abusos e proteger quem desafiava o regime. Um dos assassinos, policial da zona rural próxima a Nahuel, que estava aposentado e morava na comunidade, contou a Benoît o que tinha feito, indicou a localização da caverna, na encosta da montanha, numa área florestal, e autorizou-o a comunicar o fato a seus superiores.

Benoît quis verificar a veracidade da confissão antes de recorrer ao cardeal e viajou ao Sul. Com uma mochila nas costas, uma bússola no bolso e uma picareta amarrada à bicicleta, aventurou-se na direção que lhe havia sido indicada, evitando os controles policiais. Depois que ultrapassou os povoados, deixou de se preocupar com o toque de recolher, porque não havia vigilância. Continuou por uma trilha quase encoberta, aparentemente abandonada fazia anos, e, quando ela desapareceu, engolida pela vegetação, ele se orientou pela bússola e com ajuda da prece.

Logo o terreno o obrigou a largar a bicicleta, e ele continuou a pé, agradecendo por ser verão, pois teria sido difícil avançar com chuva. Dormiu a primeira noite ao relento e andou boa parte do dia seguinte antes de encontrar finalmente a entrada da caverna, vedada com pranchas e pedras, conforme lhe indicara seu paroquiano. Começava a escurecer, e ele preferiu esperar até o dia seguinte. Tinha calculado mal o tempo que demoraria no trajeto, suas escassas provisões haviam terminado, e fazia horas que tinha fome, mas um pouco de jejum cairia bem, pensou. O terreno era irregular, verde e mais verde, vegetação compacta e água. Água por todo lado, charcos, lagoas, riachos, cascatas que vinham das montanhas, água de chuva e de neve derretida. Diferentemente da selva tropical, que ele havia conhecido na juventude, quando o mandaram para a fronteira da Venezuela com o Brasil, esta era fria mesmo no verão; no inverno só autóctones experientes sabiam transitar por ela.

O ar cheirava a húmus, a folhas fragrantes das árvores nativas, a cogumelos aderidos aos troncos. De vez em quando era possível ver, nas alturas, pendentes dos galhos, as flores vermelhas e brancas das trepadeiras. Durante todo o dia ele ouvira a bulha tremenda dos pássaros, o grito da águia, o rumor da vida animal na vegetação, mas, ao cair da noite, o mundo se calou.

Sentiu um abismo de solidão naquela paisagem inabitada e rezou em voz alta: “Aqui estou, Jesus, me metendo em encrenca de novo, porque, se eu encontrar o que estou procurando, vou precisar desobedecer à ordem de invisibilidade. Você está entendendo, não? Não me abandone nesta empreitada, olhe, estou precisando de você mais que nunca.” Por fim, adormeceu em seu saco de dormir, tiritando, faminto, dolorido. Não estava acostumado ao esgotamento físico, o único esporte que praticava era o futebol com as crianças da comunidade, e cada músculo de seu corpo clamava por descanso.

Com a primeira luz do amanhecer, tomou água e mastigou lentamente as últimas amêndoas que lhe restavam; depois deu início ao trabalho de mover as pedras, arrancar os arbustos e retirar as pranchas que tapavam a boca da caverna, usando a picareta como alavanca. Ao desprender o último obstáculo, um bafo fétido do interior o obrigou a retroceder. Tirou a camiseta e a amarrou no rosto, cobrindo boca e nariz. Invocou o amigo Jesus mais uma vez e entrou. Viu-se num túnel estreito, mas com altura suficiente para avançar agachado. Levava a lanterna na mão e a câmera fotográfica a tiracolo. Custava-lhe respirar, a cada passo o ar se tornava mais denso, e a pestilência, mais intensa; parecia estar entrando numa cripta, mas continuou em frente, porque o lugar era tal e qual o descrito. Logo o túnel se abriu numa abóbada ampla, onde ele pôde ficar em pé. Então o feixe da lanterna iluminou os primeiros ossos.

Os detalhes do que contei, Camilo, só foram publicados vários anos depois, quando a história de Benoît finalmente veio à luz. Ninguém ficou sabendo do nome desse homem nem do papel que ele desempenhou, porque, se sua identidade ficasse conhecida, ele teria pagado muito caro esse atrevimento. Em sua declaração judicial, o cardeal se negou a responder às perguntas que podiam incriminá-lo, protegido pelo segredo da confissão. A verdade completa ficou conhecida quando recuperamos a democracia. Então Benoît escreveu um relato do ocorrido, houve uma exposição das fotografias que ele tirou naquele dia e de muitas mais, algumas dos ossos na Procuradoria e outras dos despojos expostos no quartel; fizeram até um filme.

Com as provas nas mãos, o cardeal agiu com tanta habilidade, que o governo não conseguiu impedi-lo. Tinha consciência de que, além de sua autoridade moral, estava respaldado por dois mil anos de exercício do poder terreno. Uma coisa era prender e às vezes assassinar padres e freiras; outra, muito mais grave para o governo, teria sido entrar em conflito com a hierarquia da Igreja católica e com o representante do Papa. Nos anos da repressão, o cardeal aprendera a manobrar com astúcia para cumprir a missão que se propusera, de ajudar as vítimas, que somavam vários milhares. Para isso, criou um vicariato especial e o instalou dentro da catedral. Para investigar a caverna, formou uma delegação em segredo; esta incluía um diplomata da nunciatura do Vaticano, a diretora da Cruz Vermelha, um observador da Comissão de Direitos Humanos e dois jornalistas.

O cardeal já não tinha idade para excursionar ao alto das montanhas, mas viajou com seu secretário até Nahuel, onde esperou os outros, que tinham saído separados da capital, para não chamar atenção. Apesar das precauções, a gente do povoado percebeu que algo sério devia ter ocorrido para que o cardeal aparecesse por aqueles lados. Ele chegou com roupa esportiva, mas foi reconhecido; seu rosto de raposa velha era bem conhecido.

A primeira declaração à imprensa foi feita pelo cardeal em Nahuel, quando seus emissários voltaram da caverna. Naqueles dias já circulava entre a gente dos arredores a notícia de que tinham sido encontrados restos humanos. Facunda me ligou em Sacramento.

— Dizem que são dos camponeses desaparecidos, os que foram levados dias depois do golpe, lembra?

A versão oficial foi que se tratava de um acidente, possivelmente turistas que morreram asfixiados por gases venenosos dentro da caverna; depois atribuíram o fato a uma vingança entre guerrilheiros, ou a delinquentes que se mataram entre si; finalmente, pressionados pela opinião pública, pela Igreja católica e pelo fato de todas as caveiras apresentarem um orifício de bala, atribuíram-no a execuções cometidas por fardados que tinham agido por iniciativa própria no fragor da batalha, ansiosos por salvar a pátria do comunismo, sem o conhecimento dos superiores. Seriam devidamente repreendidos, garantiram, calculando que as pessoas têm memória fraca, e seria preciso ganhar tempo para embaralhar as provas.

Puseram tapumes e cercaram as proximidades da caverna com arame farpado para impedir a passagem dos que foram chegando: jornalistas, advogados, delegações internacionais, curiosos que nunca faltam e, depois, as silenciosas peregrinações de familiares de desaparecidos, alguns vindos de longe, com as fotos das vítimas. Não foi possível despachá-los com os métodos habituais. Aquelas pessoas se instalaram na encosta da montanha e ficaram lá vários dias e noites, até os restos mortais serem levados. As autoridades entraram na caverna cobertos dos pés à cabeça, com máscaras e luvas de borracha, e retiraram trinta e dois sacos de plástico preto, enquanto lá fora os peregrinos cantavam as canções revolucionárias que não eram ouvidas desde vários anos, mas não tinham sido esquecidas. Eles precisavam consumar o luto; tinham passado anos procurando seus desaparecidos, esperando que continuassem vivos e um dia voltassem ao lar. Entre eles estava Facunda, vergada pela artrite, mas forte como sempre, acampando com os outros.

Vendo que o burburinho não se calou em poucos dias, como era esperado, o governo ordenou uma investigação e, finalmente, várias semanas depois, permitiu que os familiares das supostas vítimas participassem da identificação. Foi uma maneira de lhes dar a consumação que reivindicavam, porque na realidade a perícia forense havia determinado exatamente a que pessoas correspondiam os ossos da caverna, mas o informe foi selado até segunda ordem.

Facunda me avisou, e tomei o trem de Nahuel para ir com ela ao quartel. O outono já se notava na cor da natureza e no ar frio e úmido; logo cairiam as chuvas. Haviam sido intimadas as famílias dos camponeses da região, detidos e desaparecidos nos primeiros dias do golpe militar; entre eles, quatro irmãos, o menor com quinze anos, que tinham sido arrendatários na propriedade dos Moreau. Por ali todos se conheciam, Camilo, não é como agora, que a agricultura está industrializada, a terra pertence a corporações, e os camponeses foram substituídos por trabalhadores temporários, errantes, sem raízes. Na época as pessoas dos arredores tinham laços de parentesco, haviam nascido e crescido por aqueles lados, tinham ido juntas à escola primária, jogado futebol na infância, namorado e casado entre si. A população era pequena, porque muitos jovens iam para as cidades em busca de oportunidades, de modo que qualquer ausência era notada. Aqueles homens que desapareceram faziam parte de uma rede de relações, tinham rosto, nome, família e amigos que sentiam falta deles.

Esperamos quase duas horas em fila na rua; éramos mais de vinte mulheres e algumas crianças agarradas às saias das mães. A maioria se conhecia, eram parentes ou amigas; quase todas tinham os traços indígenas da mestiçagem, tão comum naquela região. Haviam sido marcadas pelo trabalho duro e pela pobreza; a angústia de muitos anos lhes dava uma pátina trágica. Vestiam com modéstia a roupa descolorida de segunda mão que eram trazidas dos Estados Unidos e vendidas no mercado das pulgas. Algumas, as de mais idade, e uma que estava grávida, sentaram-se no chão, mas Facunda continuou em pé, o mais erguida que a artrite lhe permitia; estava vestida inteiramente de preto pelo luto antecipado, com uma expressão pétrea que não era de dor, mas de raiva. Conosco havia dois advogados de direitos humanos enviados pelo cardeal e uma jornalista com um cameraman da televisão.

Senti vergonha do meu jeans americano, das botas de camurça, da bolsa Gucci, de ser mais alta e branca que as outras, mas nenhuma daquelas mulheres deu mostras de ter prestado atenção à minha estampa de burguesa endinheirada; aceitaram-me como uma a mais, unidas todas pelo mesmo pesar. Perguntaram-me quem eu estava procurando e, antes de eu responder, Facunda interveio.

— O irmão, está procurando o irmão — disse.

E então me dei conta de que na verdade Apolonio Toro era como meu irmão. Tinha mais ou menos a idade de José Antonio e estivera em minha vida desde que eu me conhecia por gente. Rezei em silêncio, pedindo ao céu que ali não houvesse prova nenhuma de que ele tinha sido assassinado, porque nesse caso era preferível a dúvida à certeza. Sonhava que Torito levasse existência de ermitão nas grutas das montanhas, vida adequada a seu caráter e a seu conhecimento da natureza. Não queria constatar sua morte.

Um oficial saiu e se pôs a berrar instruções: dispúnhamos de meia hora, era proibido fotografar, não se podia tocar em nada, era bom olhar com atenção, porque não teríamos outra oportunidade; precisávamos entregar a cédula de identidade, que seria devolvida na saída. Os advogados e os jornalistas teriam de permanecer lá fora. Entramos.

Debaixo de um toldo, no meio do pátio do quartel, havia duas mesas compridas e estreitas, vigiadas por guardas. Não vimos ossos, como supúnhamos, mas pedaços de roupa esfarrapada, carcomida pelo tempo, sapatos, chinelos, uma caderneta, carteiras, tudo numerado. Desfilamos devagar pela frente daqueles tristes despojos. As mulheres, chorando, detinham-se diante de um pulôver de lã, um cinto, um boné, e diziam “isto é do meu irmão”, “isto é do meu marido”, “isto é do meu filho”.

No final da segunda mesa, quando tínhamos quase perdido a esperança, Facunda e eu encontramos a prova que não desejávamos.

— Isto é do Torito — murmurou Facunda, e um soluço lhe embargou a voz.

Ela o procurara e esperara muitos anos. Ali estava a cruz de madeira que eu havia talhado para o primeiro aniversário de Apolonio Toro que celebramos, quando minha mãe, minhas tias e os Rivas estavam vivos, quando Facunda era jovem e eu era uma menina. Estava presa a uma tira de couro, com a madeira polida pelo uso e pelos anos, mas ainda era possível ler claramente meu nome, Violeta. Do outro lado devia estar o nome de Torito. O choro convulsivo me dobrou como um soco no estômago, e senti os braços de Facunda me sustentando. Nisso soou um apito, e ordenaram que saíssemos do local. Sem vacilar, cegada pelas lágrimas, agarrei num impulso a cruz e a escondi no decote.

Essa cruz é mágica, Camilo. Nada do que tenho te interessa, sei disso, mas, quando eu morrer, quero que fiques com a cruz, que a pendures no pescoço em lugar dessa que tens e a uses sempre, para que te proteja como me protegeu. Por isso sempre a tenho comigo. Está carregada da lealdade, da inocência e da fortaleza de Apolonio Toro, que a carregou sobre o peito durante muitos anos e morreu para salvar teu tio Juan Martín. Torito foi meu anjo e será o teu também. Promete, Camilo.

Há encruzilhadas no destino que não podemos reconhecer no momento em que se apresentam, mas, quando se vive tanto, como vivi, é possível vê-las com nitidez. Ali onde os caminhos se cruzam ou bifurcam precisamos decidir a direção que vamos tomar. Essa decisão pode determinar o curso do restante de nossa vida. Foi o que me ocorreu no dia em que recuperei a cruz de Torito, agora sei. Até então eu tinha vivido comodamente, sem questionar o mundo onde me coube nascer; meu único propósito indiscutível tinha sido criar o menino que Nieves deixou órfão.

Naquela noite, quando tirei a roupa, vi a marca que a cruz tosca de madeira, apertada pelo sutiã, havia deixado sobre meu peito, e chorei de novo, durante muito tempo, por Torito, por Facunda, que gostava tanto dele, pelas outras mulheres que encontraram seus mortos, por mim. Pensei em minha casa, nas contas dos bancos, nos investimentos em propriedades, no montão de antiguidades e outras bobagens adquiridas em leilões, nas amizades de minha classe social, em meus infinitos privilégios, e me senti sobrecarregada, como se puxasse uma carroça abarrotada de tudo aquilo e do peso do tempo malbaratado. Não imaginei que aquela noite seria o começo de minha segunda vida.


22

Os nomes das vítimas da caverna não foram divulgados oficialmente durante vários meses, e a imprensa não se atreveu a desafiar a censura e publicá-los, embora já fossem conhecidos, porque as mulheres os haviam identificado naquele quartel. A estratégia do governo consistia em controlar essa informação o maior tempo possível, alegando razões de segurança, pois assim se evitava o constrangimento causado pelas famílias que reivindicavam os ossos para enterrá-los com dignidade. Os restos retirados da caverna tinham sido enfiados em sacos, misturados, e o trabalho de recompor cada esqueleto era muito complicado. O melhor seria atirá-los numa vala comum e esquecê-los para sempre, mas era tarde para isso.

Imagino que Facunda tenha contado sobre Torito à sua família e a alguns amigos, mas eu só pude comentar com Etelvina e miss Taylor, que ainda estava viva, as únicas que se lembravam daquele gigante querido, e, por carta, com Juan Martín, que fazia anos nos perguntava o que tinha acontecido com o homem que o ajudara a cruzar a fronteira e sobre quem não se soube mais nada depois. Por isso soou em mim um alerta quando Julián Bravo o mencionou.

Ele chegou à capital de passagem numa de suas viagens apressadas por motivo de negócios, como descrevia suas atividades, inclusive a lavagem de dinheiro e o transporte de mercadoria ilegal. Como de costume, passou para nos ver e ficou para jantar, porque Etelvina tinha preparado pato com cerejas, seu prato favorito. Continuava sendo o homem bonito e atlético de antes, o sedutor alegre e autoconfiante.

— Estava com saudades de mim? — disse rindo.

— De jeito nenhum. Como vai Anushka?

Anushka era uma modelo eternamente lânguida, porque não comia, coitadinha, vivia faminta. A ela também ele prometera casamento, como a Zoraida, e a manteve enganada durante anos.

— Chata. E você, Violeta, por onde andou ultimamente?

— Estive em Nahuel...

— Ah! Por causa dos mortos da caverna, imagino.

— Como você sabe disso se nem mora neste país? Encontraram os restos de quinze homens desaparecidos. Foram detidos pela polícia nos dias do golpe militar, assassinados, e seus corpos foram escondidos.

— Não é a primeira vez nem será a última — comentou, examinando a etiqueta da garrafa de vinho.

— No quartel exibiram pedaços de roupa e outras coisas da caverna. Fui com Facunda...

— Encontraram alguma coisa de Torito? — perguntou distraído, pondo vinho em sua taça.

Foi exatamente naquele momento, sentada à mesa, diante de uma travessa de pato com molho de cerejas e uma garrafa de cabernet sauvignon, que por fim se encaixaram os pedaços soltos do quebra-cabeça que era Julián Bravo. Por anos e anos tive sinais, indícios, evidências, mas não quis ver o óbvio porque isso significaria admitir minha própria cumplicidade. Lembrei-me de minha pobre filha, de sua trágica vida, das drogas, da miséria, da prostituição, de Joe Santoro morto com um tiro na nuca, do temor que minha filha tinha do pai, semelhante ao que Juan Martín também sentia. Lembrei-me também de meu próprio medo, das bofetadas e das humilhações do passado, dos tipos mal-encarados da máfia, dos agentes da CIA, dos maços de notas e das armas, de sua conexão com a ditadura. Como pude deixar passar tudo aquilo?

Julián conhecia o destino que Torito tivera, sempre soube, assim como soube que Juan Martín tinha encontrado refúgio na Argentina, e escondeu esses fatos de mim durante mais de quatro anos. Não posso provar que tivesse culpa na morte de Torito, mas é possível que o tenha denunciado para se livrar dele depois de ter posto Juan Martín a salvo. Era preferível que não houvesse testemunhas. De qualquer modo, sabia que seus restos estavam na caverna e sabia também que ali havia outros corpos.

Por aqueles dias Juan Martín me enviara a tradução inglesa de uma extensa reportagem sobre a colônia Esperanza, publicada na Alemanha e reproduzida na Europa.

— Meu pai faz voos especiais para essa gente, não? — perguntou.

Segundo a reportagem, não era a comunidade agrícola paradisíaca que imaginávamos, mas uma área hermética de imigrantes que tinham chegado atrás de uma utopia e acabaram controlados por um psicopata que impunha disciplina selvagem às mais de duzentas pessoas de seu feudo, muitas delas crianças e adolescentes. Ninguém entrava nem saía sem autorização, os colonos recebiam treinamento paramilitar e suportavam castigos físicos e abuso sexual. Um deles, que escapou de alguma maneira e conseguiu sair do país para depor na Alemanha, contou que, desde o golpe militar, a colônia era um centro de tortura e extermínio de opositores do governo. Nada daquilo era conhecido em nosso país, pois a censura se encarregara de evitá-lo.

Para o transporte de prisioneiros da ditadura, a Colônia contava com uma pista de pouso para teco-tecos particulares e helicópteros militares. A relação de Julián com a colônia Esperanza revelou-se para mim com indiscutível certeza, e entendi a causa de ele estar tão bem informado e conectado: a Operação Condor, sua colaboração com a CIA e com a ditadura.

— Meu pai é capaz de qualquer coisa — diziam meus filhos.

O lema de Julián Bravo era que o fim justifica os meios. Ele empregara os meios mais duvidosos para obter seus fins com total impunidade. Declarava-se invulnerável, invencível, livre das limitações de outros mortais; só obedecia às normas que lhe convinham porque as leis são feitas pelos poderosos para controlar os outros. Chegara a hora de eu aplicar o axioma dele: seu fim justificou meus meios.

No dia seguinte a essa cena reveladora, peguei o avião para Miami. Ia falar com Zoraida Abreu antes da volta de Julián. Tínhamos permanecido em contato esporádico, e eu sabia que o amor dela por ele fora se desgastando com o tempo. Tal como em ocasiões anteriores, eu a esperei no bar do hotel Fontainebleau, que havia adquirido nova vida depois de remodelado. Zoraida tinha pouco mais de quarenta anos e continuava sendo a dourada rainha do rum Boricua, com as mesmas ancas desafiadoras, pernas de dançarina e seios frutiformes. Chegou com um vestidinho amarelo de verão, mais apropriado à praia. Abraçamo-nos com o afeto nascido do desencanto comungado; ela também perdera a ilusão que alguma vez Julián lhe tivesse inspirado. Tirou os óculos escuros, e então notei a idade em seu rosto; a cirurgia plástica lhe esticara a pele sem retirar a expressão de fadiga.

Pusemo-nos em dia sobre a vida de cada uma. A dela continuava sendo mais ou menos a mesma de antes, em sua função de secretária, contadora, governanta, amante e confidente de Julián Bravo. Cedera à pressão dele para amarrar as trompas, tal como eu, porque ele queria ter certeza de que ela não traria filhos dele ao mundo. Zoraida lamentaria para sempre ter renunciado à maternidade por amor àquele homem. Quando me contou isso, fiquei pensando nas tantas mulheres das quais Julián teria exigido o mesmo para evitar o incômodo de usar preservativo.

— Sou empregada dele para todo serviço — disse Zoraida em tom amargo.

— Ele paga bem...

— O dinheiro não compensa o abuso. Não tenho vida, que não seja a dele; é ciumento. Não me permitiu ter filhos e já não gosta de mim, nem sequer se deita comigo.

— Você poderia abandoná-lo.

— Ele nunca permitiria; precisa muito de mim.

— Por que continua com ele? — insisti.

— Um dia vai se casar comigo, nem que seja para eu cuidar dele na velhice.

— Você tem medo dele?

— Antes tinha, mas agora não. Agora quero castigá-lo, estou farta — disse.

— Foi por isso que eu vim, Zoraida — e lhe contei de Anushka, que, segundo Julián, era a mulher mais cara de sua vida.

Anushka mostrou que era mais esperta que Zoraida e que eu. Convenceu Julián de que era estéril e, na hora certa, o surpreendeu com uma gravidez; anunciou-a quando já era tarde para um aborto. Era o fim de sua carreira de modelo, disse, embora, na realidade, com trinta e cinco anos completos, já não fosse fácil conseguir trabalho. Julián se negou a casar-se e nunca viveu com ela, mas a sustentava generosamente assim como à filha que tiveram. Zoraida suportara as múltiplas traições de Julián, casos sem glória nem duração, mas não imaginava que durante anos ele tivesse mantido uma amante e uma filha. Deduziu de imediato que, se ele não se casara com a mãe daquela menina, também não se casaria com ela. Não entendia como Julián conseguira esconder esse fato durante tanto tempo nem como sustentava aquela mulher sem que isso se refletisse em suas finanças. Os gastos não apareciam em lugar nenhum. Ela fazia a contabilidade oficial e a outra, a que ninguém mais via, a contabilidade secreta das transações ilegais. Gabava-se de que nem um dólar passava pelas mãos de Julián sem que ela soubesse, mas acabava de descobrir que existia uma terceira contabilidade às suas costas. Talvez não fosse a única, podia haver outras. Doeu-lhe mais o engano do dinheiro do que o despeito da infidelidade. Perguntou se eu tinha alguma foto de Anushka, e eu lhe mostrei várias, recortadas de uma revista de moda uns cinco anos antes. Zoraida as examinou com atenção de entomologista.

— Essa fulaninha sofre de anorexia — foi seu comentário.

Ao nos despedirmos, garantiu que Julián ia maldizer o dia em que a conhecera.

A vingança de Zoraida Abreu foi rápida e drástica. Ela havia servido Julián Bravo com lealdade e paciência durante dezesseis anos, amando-o, apesar de tudo, com o entusiasmo de seu coração apaixonado. A mesma paixão lhe serviu para afundá-lo, tal como imaginei quando fui até Miami para recrutá-la. A rainha da beleza era inteligente demais para ceder ao impulso de contratar um pistoleiro, provocar um acidente ou envenenar Julián, como nos romances e como eu às vezes fantasiava. O plano que ela elaborou em menos de duas horas, com três martinis no corpo, era muito mais sofisticado.

Enquanto eu voava de volta, embaralhando a culpa pelo que tinha desencadeado com a satisfação de ter feito justiça, Zoraida Abreu ligava para seu primeiro amor, um advogado que ela tinha deixado plantado com a aliança de casamento quando conheceu Julián. O homem estava casado e tinha três filhos, mas, ao receber a ligação de Zoraida, colocou-se à sua disposição sem vacilar. Ninguém podia esquecer uma mulher daquelas. Juntos elaboraram a estratégia que ela havia discutido comigo.

Zoraida se protegeu atrás do anonimato, enquanto ele a representava perante o agente especial encarregado de investigações criminais da Agência de Impostos Internos, para denunciar Julián Bravo por conspiração fraudulenta e sonegação fiscal. Para provar a credibilidade de sua cliente e conseguir sua imunidade, o advogado contava com a prova que se teria levado anos para conseguir de outra maneira: os livros da contabilidade secreta, os nomes das empresas fraudulentas no Panamá e nas Bermudas, os números das contas bancárias na Suíça e em outros países, as combinações dos cofres com dinheiro em espécie, drogas e documentos, os contatos com o crime organizado. Só em impostos atrasados dos últimos cinco anos, o caso contemplava vários milhões, como explicou o agente especial ao fiscal federal encarregado.

Zoraida também forneceu informações sobre o tráfico de drogas no avião de Julián Bravo, o que serviu para detê-lo, mantê-lo preso e impedi-lo de fugir dos Estados Unidos. A investigação, que em circunstâncias normais demoraria dois ou três anos, levou apenas onze meses, graças às provas apresentadas pelo advogado de Zoraida.

Desconheço os detalhes legais, que pouco importam. Passaram-se trinta e cinco anos desde então, e acho que a única pessoa que ainda saboreia essa deliciosa vingança é Zoraida Abreu. Parece que a vejo transformada em mulher madura, satisfeita e bela, rememorando tudo isso no bar de algum hotel de luxo com a azeitona do martini entre os dentes. Espero que tenha levado boa vida.

Julián pagou a multa e os impostos devidos, com juros, e contratou um escritório de advocacia conhecido por defender criminosos, que conseguiu reduzir sua pena a quatro anos numa prisão federal de baixa segurança, para condenados por crimes de colarinho-branco. Merecia pena muito maior, mas não foi julgado por seus pecados capitais, só por alguns de seus pecados veniais.

Nesses anos perdeu a confiança dos antigos clientes: a última coisa que eles desejavam era ter problemas com a lei, e acho que até os agentes americanos o abandonaram, mas ele havia ganhado muito dinheiro, e grande parte estava a salvo. Saiu da prisão magro, forte e saudável, porque matou o tédio fazendo ginástica, e quase tão rico como antes. Um dia foi me visitar como se tivéssemos nos visto na semana anterior. Na época eu tinha me mudado para outro bairro, mas foi fácil me localizar. Vinha me contar que tinha se afastado dos negócios e comprado uma fazenda na Patagônia argentina para passar a velhice criando ovelhas e cavalos de raça, e preferia fazer isso em boa companhia.

— Nós dois estamos um bocado velhos e solteiros, deveríamos nos casar, Violeta — me propôs.

Percebi que não desconfiava de minha participação no desastre que sofrera em Miami.

— Vamos nos casar. Camilo iria gostar da Patagônia — insistiu.

Recusei a oferta e lhe perguntei novamente por Anushka. Contou que ela tinha se casado com um industrial brasileiro depois de lhe confessar que a menina que ele tinha sustentado durante vários anos não era filha dele.


23

Deixa-me falar um pouco de Roy Cooper, o consertador de enguiços com pinta de pugilista de bairro pobre, de quem tanto gostei, o homem que figura como teu pai em tua certidão de nascimento. Tu o conheceste, mas talvez não te lembres dele porque eras muito pequeno quando fomos os três à Disneyworld, acho que tinhas sete ou oito anos. Foi a única vez que o viste, mas ele e eu nos mantivemos sempre em contato. Viajávamos juntos uma ou duas vezes por ano, quando eu podia deixar-te com Etelvina ou no sítio, com Facunda.

Roy tinha se mudado para Los Angeles, onde continuava exercendo seu trabalho. Sobravam casos, aquela era a cidade ideal para um homem como ele, que se movia com fluidez de enguia entre pecadores de diversas naturezas, bandidos e delinquentes, policiais corruptos e jornalistas curiosos. É espantoso que vivesse naquele ambiente e mantivesse serenidade e generosidade suficientes para me amar sem nunca pedir nada, nem sequer ser amado na mesma medida, e para fazer o que fez por Nieves e por ti.

É pouco delicado ficar falando de meus amantes, já que és meu neto e padre, mas Roy foi exceção. Julián eu não incluo na categoria de amante, porque é o pai de meus filhos, apesar de nunca nos termos casado. Roy era de poucas palavras, tinha um senso de humor tosco e uma cultura de rua; a única coisa que lia eram as páginas de esportes nos jornais e romances policiais em edições de bolso. Cheirava a cigarro e a uma colônia adocicada, tinha mãos ásperas de pedreiro, seus modos à mesa me chocavam e ele parecia vestir-se com roupas de segunda mão, porque ficavam apertadas e estavam tremendamente fora de moda. Em resumo, tinha pinta de guarda-costas de algum criminoso.

Ninguém imaginaria que aquele homem tivesse sentimentos delicados e, à sua maneira, fosse muito galante. Tratava-me com uma mescla de respeito, ternura e desejo. Sim, Camilo, ele me desejava com tal constância que, ao lado dele, o número de meus anos e as más recordações se apagavam, e eu voltava a ser jovem e sensual. Com ninguém me senti tão bonita e elogiada como com ele. Nós nos amávamos com leveza, risadas e pouca imaginação, o oposto da paixão carnal que conheci com Julián Bravo, um desfile de acrobacias de que muitas vezes eu saía com hematomas. Com Roy repetíamos a mesma rotina, tranquilos, na certeza de que os dois sentiam o mesmo prazer, e depois descansávamos abraçados, calmos e satisfeitos. Falávamos pouco, o passado não importava e não existia futuro. Ele sabia de Julián Bravo e desconfiava das razões pelas quais deixei de amá-lo, mas evitava fazer perguntas; para ele só contava o tempo que podíamos passar juntos. Eu também não indagava. Nunca soube se tinha família, se alguma vez foi casado ou o que fazia antes de se dedicar à sua estranha ocupação.

Roy tinha um trailer modesto, e nele saíamos por duas ou três semanas, percorrendo diferentes partes do país, especialmente os parques nacionais. Aquele reboque não era dos mais modernos e luxuosos, mas cumpria sua função sem nunca falhar. Consistia em uma salinha com uma mesa para múltiplas utilidades, uma cozinha básica, um banheiro tão minúsculo que, se o sabonete caísse, eu não conseguia me abaixar para pegar, e, no fundo, uma cama separada do restante por uma porta corrediça. Contava com um depósito de água no teto, eletricidade quando podíamos nos ligar em algum acampamento, e um sanitário químico. O espaço era suficiente, a não ser que chovesse vários dias e precisássemos permanecer fechados, mas isso era pouco frequente.

Os Estados Unidos são um universo que contém várias nações e todas as paisagens dentro de seu território. Roy e eu viajávamos com calma e sem itinerário fixo; íamos aonde a intuição do momento nos levasse. Assim, fomos desde o Vale da Morte na Califórnia, onde os fantasmas dos que pereceram no deserto passeavam num calor de 52 °C, até um glaciar do Alasca, onde andamos num trenó puxado por doze cachorros. Parávamos pelo caminho em qualquer lugar. Dávamos longas caminhadas, tomávamos banho em rios e lagos, pescávamos, cozinhávamos ao ar livre.

Lembro-me como se fosse ontem da última noite que dormimos juntos no trailer. Eu tinha sessenta e quatro anos e me sentia com trinta. Tínhamos passado uma semana magnífica no parque de Yosemite, no início do outono, quando há menos turistas, e a paisagem muda magicamente, pois as árvores ganham cores vibrantes, vermelho, laranja e amarelo. Como todas as tardes, assamos o jantar na grelha, um peixe fresco e verduras. De repente apareceu um urso a pouca distância, um animal enorme e escuro, que avançava rebolando em nossa direção, tão perto que ouvíamos o seu resfolegar e eu poderia jurar que era até possível sentir o seu hálito. Tínhamos recebido instruções para essa emergência, mas naquele instante de pânico elas sumiram da minha memória. Tinham dito que devíamos permanecer imóveis, não gritar nem o olhar nos olhos, mas eu comecei a gritar e pular de terror.

O urso se levantou em duas patas, ergueu os braços para o céu e me respondeu com um tremendo grunhido gutural que ficou reverberando como um longo eco. Roy não perdeu tempo. Agarrou-me pelo casaco e praticamente me arrastou para o trailer. Conseguimos entrar e bater a porta no nariz do urso, que arremeteu contra o veículo e o sacudiu um monte de vezes, furioso, antes de dirigir a atenção para a comida que estávamos preparando. Depois de satisfazer a fome com o nosso jantar e com o saco de lixo, sentou-se para observar o anoitecer com a paz de um budista.

Naquela noite não pusemos a cara para fora e comemos feijão em lata. Em algum momento o urso foi embora, e pela manhã recolhemos nossas coisas depressa e partimos. Acho que poucas vezes tive tanto medo. Desde então fui várias vezes ao zoológico para observar os ursos; de longe são lindos.

Naquelas férias o que me chamou atenção foi que a roupa de Roy estava larga; ele tinha perdido peso, mas, como demonstrava a mesma energia e o entusiasmo de sempre, não dei importância. No dia seguinte nos despedimos no aeroporto de Los Angeles. Quando nos abraçamos, notei que ele estava emocionado e com os olhos marejados, o que nunca tinha acontecido e não correspondia à imagem de macho forte que ele projetava.

— Dê lembranças ao meu filho Camilo — disse, enxugando uma lágrima com uma passada de mão.

Ele sempre perguntava por ti e se lembrava da brincadeira de teu registro como filho dele.

Naquele dia não desconfiei de que não voltaríamos a dormir juntos nunca mais. Roy morreu de câncer um ano depois. Escondeu de mim a doença porque queria que eu me lembrasse dele sadio, apaixonado e cheio de energia, mas Rita Linares me avisou.

— Está sozinho, Violeta, ninguém veio vê-lo, parece que não tem família e não me deu permissão para chamar nenhum amigo. Quando já não podia suportar a dor, concordou em vir ficar comigo. Somos amigos desde a escola, ele fez parte da minha vida desde que cheguei a este país, quando era uma menininha imigrante que mal falava inglês; sempre me ajudou quando precisei, é como meu irmão — disse, chorando.

Voei imediatamente para Los Angeles com a esperança de encontrá-lo ainda na casa de Rita, mas ele já havia sido levado para o hospital. Era o mesmo hospital onde nasceste e onde vi Nieves pela última vez, com os mesmos corredores largos, as luzes fluorescentes, os pisos de linóleo, o cheiro de desinfetante e a capela dos vitrais. Roy estava sob respirador, ainda consciente. Não podia falar, mas pude ver em seus olhos que me reconheceu, e quero pensar que minha presença foi um consolo para ele.

— Te amo, Roy, te amo tanto, tanto... — repeti mil vezes.

No dia seguinte ele morreu, segurando minha mão e a de Rita.

Cresceste tão depressa, Camilo, que uma noite vieste ao meu quarto para dizer boa-noite e levei um susto com a presença de um jovem desconhecido. Estavas com o uniforme escolar de sexta-feira, quer dizer, com o suor e a sujeira do resto da semana, com os cabelos parecendo um escovão e a expressão exaltada. Tinhas perdido a bicicleta e corrido mais de vinte quarteirões para chegar antes do toque de recolher.

— Por onde andavas? São quase dez, Camilo.

— Num protesto.

— Contra o quê, se pode saber?

— Contra os milicos, ué, e contra o que mais seria?

— Estás louco! Eu te proíbo!

— Parece que não tens autoridade moral para proibir — disseste, dando uma piscada com aquela sagacidade jocosa que sempre conseguiu me desarmar.

É verdade que tinham me colocado um parafuso na clavícula porque me meti num protesto, mas foi por azar. Naquele tempo eu ainda não me arriscava, ia simplesmente passando pela rua, fui atropelada pela multidão e não consegui escapar. A polícia arremeteu contra os manifestantes com cassetetes, gases lacrimogêneos e jatos de água imunda. Um daqueles jatos me lançou contra a parede de um edifício. Lutei contra a dor dos três primeiros dias depois da operação com analgésicos poderosos e maconha, mas já estava um mês com o braço na tipoia e perdendo a paciência. Naquela noite tive o primeiro vislumbre do que seria meu martírio nos quatro anos mais que duraria a ditadura. Se já estavas na guerra aos catorze anos, não chegarias à maioridade; os milicos se encarregariam de impedir. Sofrendo por ti fiquei de cabelos brancos, molequinho danado.

Já não morávamos no antigo apartamento que dava para o Parque Japonês, agora chamado Parque da Pátria, porque, depois que José Antonio e miss Taylor morreram, aquele ficou grande para nós; além disso, já não se ajustava a meu novo estado de espírito. Fomos os quatro, Etelvina, Crispín, tu e eu, para aquela casinha que caiu num terremoto, lembras? Ficava longe do centro e da Escola Militar, locais onde ocorria a maioria dos distúrbios. A mudança de casa foi mais um passo no caminho de desapego das besteiras que antes me pareciam indispensáveis e depois me sufocavam. Eliminei os móveis maciços, os tapetes persas, a profusão de enfeites e fiquei só com os utensílios domésticos essenciais. Depois de Etelvina escolher o que queria guardar para quando decidisse viver em seu próprio apartamento, que na época estava alugado e lhe servia de renda, chamei a tropa de sobrinhos e sobrinhas, com quem na realidade tinha pouco contato, para levarem o que quisessem; em menos de dois dias desapareceu quase tudo. Fizemos a mudança do mínimo, diante do embaraço de Etelvina, que não entendia o capricho de viver como gente mediana se podíamos viver como ricos.

É difícil fazer dinheiro trabalhando, como em minha juventude. Quanto mais duro o trabalho, pior a remuneração. Muito mais fácil é enriquecer sem produzir nada, movimentando dinheiro de um lugar para outro, especulando, aproveitando oportunidades da Bolsa, investindo no esforço de outros. Também é fácil perder tudo e ficar na rua quando se vive do trabalho cotidiano, mas é difícil gastar uma fortuna, porque dinheiro atrai mais dinheiro, que se multiplica na misteriosa dimensão das contas bancárias e dos investimentos. Consegui acumular muito, antes de ter em mente como gastar.

Primeiro foram as mulheres que conheci naquele dia em que fomos identificar os despojos da caverna. Digna, Rosario, Gladys, María, Malva, Dionisia e várias outras, em especial Sonia, a mãe dos quatro irmãos Navarro, baixa, gorducha, firme como um carvalho, que teve naquele dia a prova de que seus filhos haviam sido assassinados, como suspeitara durante muitos anos, mas, em vez de afundar no luto, pôs-se à frente das outras para exigir que lhes entregassem os ossos e castigassem os culpados. Todas eram camponesas das proximidades de Nahuel, muitas delas conhecidas de Facunda, pilares das respectivas famílias, porque os homens que restavam estavam ausentes ou entregues à desesperança. Elas trabalhavam de sol a sol desde meninas e continuariam assim até o final. Sonhavam que os filhos ou os netos terminassem a escola, aprendessem um ofício e tivessem vida mais sossegada que elas.

Comecei a visitá-las uma a uma, quase sempre acompanhada por Facunda. Contavam de seus desaparecidos, como tinham sido quando vivos, como foram levados, da eterna burocracia da procura, de bater em portas, de mandar cartas, de sentar-se diante dos quartéis para clamar por eles, de ser expulsas, silenciadas e ameaçadas, de não recuar e continuar perguntando. Choravam sem estardalhaço e às vezes riam. Ofereciam chá, tisanas de ervas, mate. Café não tinham. Facunda me preveniu contra os presentes, que podiam ser humilhantes, porque elas não tinham como retribuir. Eu lhes levava remédios, quando precisavam, e sapatilhas de esportes para as crianças, coisas que aceitavam; por sua vez, elas me davam ovos ou uma galinha.

Aos poucos, fui me integrando ao grupo, com prudência para não ofender. Resignei-me a ser diferente delas sem dissimular, porque teria sido inútil. Aprendi a ouvir sem tentar resolver os problemas ou dar conselhos. Facunda teve a ideia de fazer reuniões às sextas-feiras no sítio. Vivia com a filha Narcisa, que tinha virado uma matrona gorda e autoritária, e com uma neta chamada Susana, de quem te falarei mais adiante. Fazia mais de um ano que havia deixado de enfornar iguarias porque seu corpo já não aguentava tanta labuta, como dizia, mas com a ajuda de Narcisa se esmerava em preparar suas famosas tortas para as mulheres das sextas-feiras. Eu ia mais ou menos uma vez por mês, porque a viagem da capital até lá era muito longa.

Naquela época voltei a entrar em contato com Anton Kusanovic e conheci sua filha Mailén, uma menina de doze anos, magra, que só tinha cotovelos, joelhos e nariz, mas com seriedade de notário; apresentou-se como feminista. Lembrei-me de Teresa Rivas, a única feminista que havia conhecido. Perguntei o que significava isso para ela, e me informou que lutava contra o patriarcado, ou seja, contra os homens em geral.

— Não faça caso, Violeta, agora ela está nessa, mas logo vai passar. No ano passado, era vegetariana — esclareceu o pai.

A intensidade do propósito daquela menina me impressionou naquela hora, mas logo esqueci. Não podia adivinhar que ela chegaria a ser tão importante para mim e para ti, Camilo.

Aquelas mulheres do campo me ensinaram que a coragem é contagiosa e que a força está no número; o que não se consegue sozinha obtém-se juntas, e, quanto mais gente, melhor. Pertenciam a um agrupamento nacional de centenas de mães e esposas de desaparecidos; eram tão determinadas, que o governo não tinha conseguido dispersá-las. A versão oficial negava que houvesse gente desaparecida, dizendo tratar-se de propaganda comunista, e qualificava aquelas mulheres de loucas subversivas e antipatrióticas. A imprensa acatava a censura e não as mencionava, mas no exterior elas eram bem conhecidas, graças aos ativistas de direitos humanos e às pessoas que estavam no exílio e haviam mantido durante anos uma campanha de denúncia da ditadura.

Nas reuniões das sextas-feiras com as tortas de Facunda, fiquei sabendo que, havia décadas, existiam muitos grupos femininos com diferentes propósitos, que nem o machismo militar tinha conseguido esmagar. A ação era mais difícil na ditadura, mas não impossível. Entrei em contato com grupos que lutavam para obter uma lei de divórcio ou para descriminalizar o aborto. Eram operárias, mulheres de classe média, profissionais liberais, artistas, intelectuais. Assistia àquelas reuniões para aprender, sem ter nada com que contribuir, até que encontrei o modo de ajudar.


24

Neste ponto do relato, está na hora de lembrar que em 1986 Harald Fiske, o norueguês observador de aves, reapareceu em minha vida. Eu o tinha visto anos antes, quando veio de Buenos Aires para me dizer que Juan Martín havia escapado da guerra suja e estava asilado na Noruega. Embora eu tenha ido ver Juan Martín várias vezes, não encontrei Harald porque sua profissão de diplomata o levava de um país a outro. Em fins de ano ele costumava me enviar uma mensagem de boas-festas pelo correio, uma daquelas circulares que alguns estrangeiros mandam a amigos com as notícias domésticas e fotografias da família triunfante. Nessas cartas coletivas só se contam sucessos, viagens, nascimentos e núpcias; ninguém vai à falência, ninguém é preso nem tem câncer, ninguém se suicida nem se divorcia. Por sorte, essa tradição estúpida não existe entre nós. As circulares de Harald Fiske eram piores ainda que as fantasias familiares: pássaros e mais pássaros, pássaros de Bornéu, pássaros da Guatemala, pássaros do Ártico. É incrível, no Ártico também há pássaros.

Acho que já te contei que aquele homem era apaixonado por nosso país; dizia que era o mais belo do mundo e que tínhamos todas as paisagens: um deserto lunar, as montanhas mais altas, lagos primitivos, vales de hortas e vinhedos, fiordes e glaciares. Achava que éramos amáveis e hospitaleiros porque nos julgava com seu coração romântico e com pouco conhecimento. Enfim, fossem quais fossem as razões, decidiu que terminaria seus dias aqui. Nunca entendi, Camilo; porque, podendo viver legalmente na Noruega, só podia estar louco para querer viver neste país de catástrofes. Faltando-lhe alguns anos para se afastar do trabalho, ele conseguiu ser nomeado embaixador em nosso país, onde planejava aposentar-se em futuro próximo e passar a velhice. Era o ápice do que sempre havia desejado. Comprou novas lentes capazes de fotografar um condor no pico mais elevado da cordilheira, instalou-se num apartamento com a simplicidade desses escandinavos luteranos de que tanto caçoa Etelvina, e depois me localizou.

Meu último amor, Roy Cooper, tinha morrido um ano antes. Com sua partida me despedi de qualquer ilusão romântica, porque achava que não voltaria a me apaixonar. Tinha saúde e energia, as organizações femininas me haviam dado um propósito, estava aprendendo e participando, sentia-me muito contente com a vida e jovem para tudo, menos para os sobressaltos da intimidade com um homem. Hormônio conta, Camilo, e naquela idade os meus tinham diminuído bastante. Em outra época ou em outra cultura, digamos alguma aldeia da Calábria, uma mulher de sessenta e poucos anos seria uma velha vestida de preto. Era assim que me sentia no que se refere ao sexo — tanto esforço para satisfação tão breve! —, mas minha vaidade continuava intacta, e, embora tivesse perdido interesse pela roupa, tingia os cabelos e usava lentes de contato. Gabava-me de que de vez em quando alguém achava que eu era tua mãe, e não tua avó.

Harald foi se acomodando aos poucos em minhas rotinas. No começo, dava um jeito de ir comigo com frequência para o sítio Santa Clara. Levava-me em seu Volvo, porque a estrada era tão prática quanto o trem, e parávamos nas baiucas das aldeias da costa, onde nos serviam os melhores peixes e mariscos do mundo. “Com esta mesma matéria-prima, em meu país a comida é insossa”, comentava Harald, que também elogiava nossos vinhos com igual reverência. Eu ia para ver Facunda e as mulheres do grupo, e ele ia em busca das mesmas aves que já havia visto umas cem vezes. Ficávamos alojados no hotel de Nahuel, que já não era o pequeno povoado dos tempos do Desterro, com uma única rua e casas de madeira, mas havia prosperado: tinha um banco, lojas, bares, cabeleireiros e até um suspeito salão de massagem com ninfas asiáticas. Harald transformou-se rapidamente em meu melhor amigo e companheiro; íamos a concertos da orquestra sinfônica, andávamos pelas montanhas, ele me convidava para alguns dos tediosos jantares da embaixada, onde pretendia que eu fizesse o papel de senhora do lar, já que ele não tinha esposa. Eu retribuía levando-o aos protestos, cada vez mais numerosos e ousados.

Ainda não sabíamos, mas a ditadura estava com os dias contados; o poder monolítico dos militares esfarelava-se por dentro, e as pessoas começavam a perder o medo. Os partidos políticos estavam proibidos, mas haviam ressuscitado na clandestinidade e mobilizavam-se para exigir o retorno da democracia. Harald ia às manifestações de rua vestido de explorador, de bermuda, colete com inúmeros bolsos, botas e câmera fotográfica a tiracolo. Era um espetáculo: muito alto e loiro, desligado da realidade, com o entusiasmo de um menino no carnaval. “Nada mais divertido!”, exclamava, fotografando os milicos a curta distância. Por milagre nunca levou uma cacetada na cabeça nem foi derrubado por um jato de água; dos gases lacrimogêneos ele se protegia com óculos de natação e um lenço ensopado de vinagre. Depois mandava suas fotos para a imprensa da Europa.

Enquanto isso, fugias do colégio para ir à comunidade operária onde morava Albert Benoît, o homem que abriu a caverna dos mortos. Aquele francês era teu herói. Pregava o Evangelho do Cristo operário e da Igreja de Libertação, condenado como subversivo. Plantava-se de braços abertos diante dos carros blindados e das metralhadoras dos soldados para impedir que aniquilassem os ocupantes; também detinha a multidão furiosa que pretendia combatê-los com pedradas, e conseguia acalmá-la, para que não fosse massacrada. Uma vez se atirou de bruços diante das rodas de um caminhão do exército para impedir que ele avançasse, assim como expunha o peito às balas. E tu, Camilo, ias atrás, confundido com os rapazes da comunidade, um a mais entre os pobres, enfrentando a violência institucionalizada de braços abertos, como Benoît. Foi ali, entre pedras, balas e gases lacrimogêneos, que nasceu a semente de tua vocação?

Outros religiosos foram presos ou assassinados, mas Benoît, protegido pelo céu, só foi expulso do país. As vozes contra o regime militar aumentaram como um clamor ensurdecedor, até que se esgotaram os recursos selvagens para silenciá-las.

Numa das sextas-feiras no sítio, apresentei Harald às mulheres do grupo, que o identificaram de imediato como o forasteiro lunático que às vezes elas viam examinando o céu com binóculos, espiando os anjos. Várias daquelas mulheres bordavam ingênuas tapeçarias, com pedacinhos de diversos panos costurados sobre uma base de aniagem, representando a dureza da vida, as prisões, as filas diante dos quartéis e das sopas dos pobres. Harald achou-as extraordinárias e começou a mandá-las para a Europa, onde eram bem vendidas e até expostas em galerias e museus como obras de arte da resistência. Como o dinheiro ia na totalidade para as criadoras, a notícia correu, e logo havia centenas de mulheres bordando aniagem em todo o país. Por mais telas que as autoridades confiscassem, sempre apareciam mais; então o governo criou um programa para o fomento de telas otimistas, com crianças brincando de roda e camponesas com maços de flores nos braços. Ninguém as quis.

Naquela noite, falando com Harald daquele grupo e de outros, contei que eles tinham me dado nova vida, mas sentia que minha contribuição era uma gota d’água num deserto de necessidades.

— Há tanta coisa para fazer, Harald!

— Você faz bastante, Violeta. Não pode aliviar todos os casos que aparecem.

— Como é possível proteger as mulheres? Uma vez, uma menininha de doze anos me disse que o objetivo final é derrubar o patriarcado.

— Concordo, mas no momento é um projeto meio ambicioso. Aqui, antes é preciso derrubar a ditadura.

— O que tenho de fazer é criar uma fundação para financiar programas, em vez de casos individuais. É preciso mudar as leis...

Assegurei-me de que teria o suficiente para viver com decência e proteger meu neto e apliquei o restante na Fundação Nieves. Quando eu me for deste mundo, ela será a única coisa que ficará de mim, porque a dotação, bem investida, produzirá juros e continuará funcionando por um bom tempo. Mailén Kusanovic é quem a gere, embora essa devesse ser tua incumbência, Camilo. Poderias fazer muita coisa boa com meu dinheiro, mas te falta talento para administrar a fundação, és muito desligado. Tua teoria é que Deus proverá, mas Deus não provê nada em matéria de dinheiro. É muito louvável essa história de optar pela pobreza, como fizeste, mas se quiseres ajudar os outros, é bom ser mais ativo. Não devo me adiantar, senão me confundo. Nesta parte do relato, Mailén ainda está na puberdade, faltam alguns anos para ela entrar em nossa vida, ainda é uma pirralha três anos mais nova que tu, mas muito mais inteligente e madura.

Eras interno do colégio San Ignacio, onde se supunha que os padres te mantinham a salvo de ti mesmo. Como conseguias escapulir de vez em quando sem que te pilhassem? Tinhas posto à prova a minha paciência desde pequeno, com tuas travessuras, sempre protegido por Etelvina, que te dava apoio. Mandei-te para o internato porque não conseguia te controlar, e não porque quisesse me livrar de ti, como disseste, com reprovação. Parece que tinhas esquecido as maldades que cometias. A gota d’água que fez o copo transbordar foi quando foste com um amigo roubar uma casa que acreditavam estar desocupada, e de lá saiu uma senhora com uma espingarda e por pouco não estoura a cabeça dos dois a tiros. Querias que eu fizesse o quê? Mandar-te como interno a um colégio de padres, claro. Castigo físico já não se usava; é pena, porque te fariam muito bem umas boas palmadas na bunda.

Voltemos a Harald Fiske. Quem ia imaginar que aquele escandinavo viria a ser meu marido? Costumo dizer que é meu único marido porque me esqueço de que estive casada com Fabian Schmidt-Engler na juventude. Aquele veterinário não deixou marcas em mim, nem sequer me lembro de ter deitado com ele alguma vez, e isso mostra como a memória é seletiva. Antes eu contabilizava os amores breves e os furtivos, escrevia nomes, datas, circunstâncias e atribuía notas de um a dez pelo desempenho, mas deixei de fazer isso porque era uma lista patética que só ocupava duas páginas da caderneta.

Fazia bom tempo que me encontrava com Harald várias vezes por semana como bons amigos; viajávamos juntos para o Sul e nos divertíamos nas manifestações de rua, quando Etelvina me enfiou na cabeça a ideia de que ele estava apaixonado por mim.

— Como você pode imaginar isso, mulher? Ele é muito mais novo que eu. Nunca me insinuou nada do tipo.

— Vai ver que é tímido, ué — insistiu ela.

— Não é tímido, Etelvina, é norueguês. No país dele ninguém sofre dos arrebatamentos de paixão das tuas telenovelas.

— Por que a senhora não pergunta a ele? Assim tiramos a dúvida e esclarecemos tudo.

— E o que é que isso tem a ver com você, Etelvina?

— Eu também vivo nesta casa, não? Tenho direito de conhecer seus planos.

— Não tenho planos.

— Mas pode ser que o senhor Harald tenha...

Aquela dúvida não me saiu da cabeça, e comecei a observar Harald com atenção, em busca de sinais reveladores. Quem procura encontra. Pareceu-me que ele aproveitava qualquer pretexto para me tocar, que me olhava com olho de peixe morto, enfim, acabou minha tranquilidade. Pouco depois, estávamos num daqueles restaurantes da praia de que te falei, dividindo uma corvina assada e uma garrafa de vinho branco, quando, não suportando mais a incerteza, perguntei:

— Diga uma coisa, Harald, quais são suas intenções a meu respeito?

— Por quê? — perguntou ele, perplexo.

— Porque eu tenho sessenta e seis anos e estou pensando na velhice. Além disso, Etelvina quer saber.

— Diga a ela que eu estou esperando que você peça minha mão em casamento — respondeu com uma piscada.

— Harald Fiske, desejas casar-te com Violeta del Valle? — propus.

— Depende. Essa mulher promete respeitar-me, obedecer-me e cuidar de mim até o fim de meus dias?

— Bom, ela se compromete pelo menos a cuidar de você.

Brindamos por nós e por Etelvina, contentes porque o futuro se descortinava diante de nossos olhos com um leque de possibilidades. No carro, voltando, ele segurou minha mão e por todo o caminho foi cantarolando, enquanto eu vislumbrava com temor o momento em que teria de tirar a roupa diante dele. Nunca havia frequentado academia, tinha carne dependurada nos braços, um pneu na barriga, e os seios iam descendo rumo aos joelhos. No entanto, esse momento não chegou tão cedo como eu imaginava, porque em casa era esperada por uma péssima notícia.

Encontramos o diretor do colégio San Ignacio consolando Etelvina, que estava chorando como um bezerro desmamado porque tinham posto na cadeia a luz de seus olhos. Não era a primeira vez que o diretor te acusava de alguma diabrura; antes tinha ameaçado te expulsar quando cagaste em cima da mascote do colégio, uma tartaruga, e quando subiste feito aranha pela fachada do Banco Central, te dependuraste da haste da bandeira, e os bombeiros precisaram te resgatar. Mas daquela vez era muito mais sério.

— Camilo fugiu mais uma vez do colégio e foi visto por uma patrulha fazendo pichação contra a ditadura. Com ele estavam outros dois rapazes, que não eram alunos nossos. Esses conseguiram fugir, mas seu neto foi pego com a lata de spray na mão. Já nos mobilizamos, tentando descobrir para onde ele foi levado, dona Violeta, e logo teremos alguma informação — disse o diretor.

Confesso que perdi a cabeça. Os métodos da polícia eram sobejamente conhecidos, e o fato de meu neto ser menor de idade não era atenuante. Num instante desfilaram na minha frente as histórias terríveis que eu tinha ouvido em minha fundação e a lembrança das vítimas da caverna de Nahuel. Naquelas poucas horas transcorridas eles podiam ter te destroçado.

Nunca vou te perdoar aquela estupidez, Camilo. Eras um pirralho idiota e quase me matas do coração; ainda fico irritada quando me lembro. Foste completamente irresponsável, sabias como a repressão funcionava, mas achaste que, de novo, podias te dar ao luxo de uma travessura sem arcar com as consequências. Escolheste a base de mármore do Monumento aos Salvadores da Pátria, uma monstruosidade do mais puro estilo Terceiro Reich, coroada por uma tocha eterna que fumega no céu da capital, para atacá-la com tinta preta. Quero pensar que não foi ideia tua, mas dos teus cupinchas. Nunca revelaste os nomes deles, nem ao diretor, nem a mim, nem a ninguém; só me disseste confidencialmente que eram da comunidade de Albert Benoît. A polícia te partiu a cara. “Quem eram os outros?” “Onde os conheceu?” “Os nomes! Fala, fedelho de merda!”

Naquela situação eu teria dado a vida para ter Julián Bravo a meu lado. Teu avô tinha sido um homem de infinitos recursos e contatos, e em outro tempo saberia o que fazer, a quem recorrer, quem subornar, mas por minha culpa ele perdera o poder e estava afastado do mundo em sua fazenda da Patagônia. Caso atendesse a meu chamado e ainda tivesse alguns contatos nas esferas do governo, não chegaria a tempo. Fui com o diretor à catedral, para ver se conseguíamos ajuda de algum dos advogados do Vicariato. Eu estava em tal estado de nervos que foi ele quem preencheu o formulário, enquanto eu morria de impaciência, contando os minutos que perdíamos naquele trâmite.

— Tenha força, minha senhora, isto pode demorar algum tempo... — tentou me explicar, mas eu não o ouvia, estava desesperada.

Enquanto isso, Harald Fiske entrou em ação. A embaixada da Noruega, como várias outras sedes diplomáticas, estava na mira do governo, porque fazia anos que dava asilo a fugitivos do regime. Como representante daquele país, Harald não tinha influência, mas era amigo do embaixador dos Estados Unidos, com quem escalava montanhas de bicicleta. Na época, o governo já não contava com o apoio incondicional dos americanos, porque a ditadura estava desgastada, e a situação do mundo estava mudando. Não convinha apoiar um regime desprestigiado. O embaixador dos Estados Unidos tinha a missão secreta de preparar o terreno para a volta da democracia em nosso país. Democracia sob condições, claro.

— O garoto é filho da minha noiva. Fez uma besteira, mas não é terrorista — disse Harald.

Na verdade, tratava-se de meu neto, eu ainda não era noiva oficial dele e tu foste um terrorista desde os dois anos de idade, mas os detalhes eram de pouca importância. O americano prometeu interceder.

Imagino que te lembres muito bem dos dois dias que passaste nas mãos da polícia. Eu nunca me esqueci nem por um minuto daqueles horríveis dois dias, que poderiam ter sido uma eternidade se tivesses sido transferido para a Direção de Segurança, de onde nem o bendito embaixador americano poderia ter te resgatado. Bateram até te deixar inconsciente e teriam repetido a surra se não tivesses o sobrenome del Valle e não fosses aluno do San Ignacio. Também ali, nos calabouços do quartel da polícia, funcionava a hierarquia de classe social, Camilo. Agradece por não seres um dos outros dois rapazes que estavam pintando o monumento contigo. Com eles a sanha teria sido muito maior.

Eles te soltaram num estado deplorável, com a cara inchada como uma abóbora, os olhos roxos, a camisa ensanguentada e hematomas por todo o corpo. Enquanto Etelvina te aplicava gelo, te dava beijos de amor e, ao mesmo tempo, tapas por seres burro, o diretor do colégio me explicava que meu neto causava muitos problemas, tirava notas baixas porque não tinha vontade de fazer as tarefas, e seu comportamento era péssimo.

— Camilo pôs um rato dentro da bolsa da professora de música e esvaziou um frasco de laxante na comida dos professores. Foi pego fumando maconha no banheiro e rifando fotos pornográficas entre os alunos da escola elementar. Em resumo, seu neto estaria melhor num colégio militar...

— A culpa é dos senhores! — interrompi aos gritos. — Como ele conseguiu maconha, laxantes e fotos de mulheres peladas? Quem vigia as crianças nesse internato?

— Somos um colégio, minha senhora, não uma cadeia. Partimos do princípio de que os alunos não são delinquentes.

— O senhor não pode expulsar o Camilo, padre — supliquei, mudando de tática.

— Eu temo, minha senhora, que...

— Meu neto está virando marxista e ateu...

— O que foi que disse?

— Isso que o senhor ouviu, padre. Marxista e ateu. Está numa idade difícil, precisa ser guiado espiritualmente. Nenhum sargento de colégio militar pode fazer isso, concorda?

O diretor me lançou um daqueles olhares que matam e, depois de longa pausa, começou a rir com vontade. Não te expulsou do colégio. Muitas vezes me perguntei se aquela não foi uma dessas encruzilhadas que decidem nosso destino, das que já te falei. Se tivesses sido expulso do San Ignacio, hoje talvez fosses marxista e ateu, em vez de padre. Nesse caso serias um sujeito normal, estarias casado com uma moça muito de meu gosto e terias me dado vários bisnetos. Enfim, sonhar não custa.


25

O mundo, o país e nossa vida mudaram muito no início da década de 1990. Em 1989 caiu o muro de Berlim e pudemos ver na televisão a euforia dos berlinenses derrubando a marteladas, numa só noite, a muralha que durante vinte e oito anos dividiu a Alemanha. Pouco depois terminou oficialmente a guerra fria entre os Estados Unidos e a União Soviética, e por um tempo demasiadamente breve respiramos aliviados com a esperança de paz, mas sempre há guerra em algum lugar. Nosso sofrido continente, com algumas tristes exceções, começava a se curar da praga de caudilhos, revoluções, guerrilhas, golpes militares, tiranias, assassinatos, tortura e genocídios do passado recente.

Aqui a ditadura caiu pelo próprio peso, empurrada de baixo pelo esforço coletivo, sem violência nem estrépito, e amanhecemos um dia com a novidade da democracia, que os jovens não conheciam e nós outros tínhamos esquecido. Saímos eufóricos para celebrar nas ruas, e tu ficaste desaparecido dois dias: estavas na comunidade onde tinhas tantos amigos. Preparavam uma festa para dar boas-vindas a Albert Benoît, que nunca desfez as malas na França porque esperava o momento de voltar à sua terra de adoção. As mesmas pessoas que ele havia defendido, plantando-se de braços abertos na frente dos tanques e das balas, fizeram-lhe uma recepção de herói. Alguns, que eram garotos imberbes quando marchavam com ele armados de pedras, como tu, já eram homens e mulheres, mas Benoît se lembrava de um por um e de seus nomes.

Primeiro houve um governo de transição, uma democracia limitada, cautelosa, que duraria vários anos. A democracia não trouxe o caos que a propaganda da ditadura prognosticara; os que se beneficiaram de forma escandalosa com o sistema econômico continuaram tendo poder; ninguém pagou pelos crimes cometidos. Emergiram os partidos políticos que tinham sobrevivido na sombra e outros novos; as instituições que acreditávamos mortas ressuscitaram, e aceitamos o tácito acordo de fazer o mínimo de barulho para não provocar os militares. O ditador voltou tranquilamente para casa, aclamado por seguidores e defendido pela direita. A imprensa se livrou do peso da censura e aos poucos fomos conhecendo os aspectos mais sinistros dos anos anteriores, mas a palavra de ordem era tapar o passado com um manto de esquecimento para construir o futuro.

Entre os segredos ventilados quando houve liberdade de imprensa, estava o da colônia Esperanza, que tinha sido protegida pelos militares durante anos; finalmente, o governo pôde abri-la. Tinha se transformado numa prisão clandestina, onde se faziam experimentos médicos com os prisioneiros políticos, muitos dos quais foram executados. O chefe escapou ileso, e acho que viveu pacatamente na Suíça até morrer. Estás vendo o que digo, Camilo? Os maus têm sorte. Foi um escândalo tremendo, porque se confirmou o que havia sido publicado na Alemanha vários anos antes: que os colonos, inclusive as crianças, também eram vítimas de um regime de terror.

Na televisão apareceram algumas pessoas ligadas à infame colônia, entre elas Fabian Schmidt-Engler. Ele tinha aparência muito diferente do marido de minha juventude. Estava com uns setenta e seis anos, havia engordado e lhe restavam poucos cabelos; se não tivessem dito seu nome, talvez eu não o tivesse reconhecido. Mencionaram a respeitada e honrada família Schmidt-Engler, que estabelecera uma dinastia de agricultores e hoteleiros prósperos no Sul. Disseram que Fabian havia servido de elo entre a colônia e os aparatos de segurança dos militares, mas desconhecia as atrocidades cometidas naquela área e não foi acusado de nenhuma infâmia em particular. Procurei por todo lado alguma informação sobre Julián Bravo e seus misteriosos voos, mas não encontrei. Só mencionaram os helicópteros do exército que transportavam prisioneiros, mas nada dos teco-tecos particulares que ele pilotava.

Essa foi a última vez que eu soube de Fabian, até a morte dele em 2000, quando li seu obituário no jornal. Deixou uma esposa, duas filhas e vários netos. Segundo me contaram, as filhas eram adotivas, porque ele também não teve descendência com a segunda mulher. Fiquei feliz ao saber que conseguira constituir a família que não pôde ter comigo.

Juan Martín veio com a mulher e meus netos celebrar a mudança política. Já não existia a infame lista negra. Seu plano era ficar um mês, ir para o Norte e para o Sul, aproveitar o melhor do turismo, mas, antes de se completarem duas semanas, percebeu que já não era daqui e encontrou um pretexto para voltar à Noruega. Ali tinha se sentido estrangeiro durante muitos anos, mas lhe bastaram aquelas duas semanas para se curar da saudade, o mal dos exilados, e deitar raízes definitivas no lugar que o acolhera quando a pátria lhe faltou. Desde então veio nos visitar em raras ocasiões e sempre vem sozinho. Acho que a mulher e os filhos não tiveram boa impressão deste país, ao contrário do que aconteceu com Harald Fiske.

Minha vida também mudou naqueles anos; entrei em outra etapa de minha trajetória. Segundo o poema de Antonio Machado, “não há caminho, o caminho se faz ao andar”, mas em meu caso não fiz caminho, transitei levando tombos por veredas estreitas e tortuosas que com frequência se apagavam e desapareciam no matagal. De caminho propriamente, nada. Entrei na casa dos setenta com espírito leve, livre de amarras materiais e com um novo amor.

Harald Fiske era o companheiro ideal para essa etapa, e posso dizer com pleno conhecimento de causa que é possível se apaixonar na velhice com a mesma intensidade e entusiasmo da juventude. A única diferença é que há uma sensação de urgência: não se pode perder tempo com bobagens. Amei Harald sem ciúmes, brigas, impaciência, intolerância e outros inconvenientes que enodoam as relações. O amor dele por mim foi tranquilo, muito diferente do drama constante que vivi com Julián Bravo. Quando ele se aposentou do serviço diplomático, optamos por morar em Sacramento, onde podíamos levar vida tranquila e visitar o sítio com frequência para respirar o ar do campo. Depois que Facunda morreu, sua filha Narcisa cuidava da propriedade. Aluguei a casa da capital e não voltei a ocupá-la, de modo que me doeu pouco o fato de ela ter desmoronado num terremoto. Por sorte, os inquilinos estavam de férias, e ninguém ficou esmagado sob os escombros.

Em Sacramento, comprei uma casa antiga para que Harald se divertisse consertando seus inúmeros estragos. Cresceu ajudando o pai e o avô na carpintaria da família; seu primeiro trabalho, na adolescência, foi como soldador num estaleiro, e seu hobby, afora os pássaros, era o encanamento. Podia passar horas de felicidade debaixo da pia da cozinha. De eletricidade sabia pouco, mas improvisava, e só uma vez esteve a ponto de morrer eletrocutado. Tinha orgulho de suas mãos calosas, com unhas lascadas e pele ressequida e avermelhada, “mãos de operário, mãos honestas”, dizia.

Com a volta da democracia, vários grupos femininos que minha fundação ajudava livraram-se do peso machista da mentalidade militar, floresceram e existem até hoje. Graças a elas agora há divórcio e legislação sobre o aborto. É certo que avançamos, mas a passo de caranguejo: dois para a frente e um para trás.

A fundação finalmente encontrou sua missão. Antes repartia dinheiro sem estratégia, até que consegui lhe dar o enfoque que se manteve desde então, e espero que continue se mantendo depois que eu morrer: trabalhar contra a violência doméstica. Foi inspirado por uma jovem chamada Susana, irmã mais nova de Etelvina. Sabes de quem estou falando, Camilo.

Na juventude, Narcisa, filha de Facunda, teve vários filhos de diferentes homens; deixava as crianças com a mãe, para criá-las, enquanto partia em nova aventura com outro namorado. Estava com um deles quando foi surpreendida pelo golpe militar e ficou sumida durante dois ou três meses. Reapareceu sozinha e grávida, como havia ocorrido várias vezes antes, e, em tempo devido, teve a filha Susana. Vi a menina em muitas ocasiões no sítio, crescendo sob o manto protetor da avó, rodeada por irmãos mais velhos. Acabava de fazer dezesseis anos quando se foi com um policial para um povoado que ficava a uns trinta quilômetros de Nahuel; eu só tinha notícias dela por Facunda, que me contou que a neta levava vida miserável, porque o sujeito bebia como um cossaco e batia nela. Tinha cerca de dezoito anos e já perdera vários dentes por causa dos bofetões.

Um dia, uma mulher chegou a Santa Clara com um bebê e uma menininha que mal andava, ainda em cueiros, e os deixou lá para serem cuidados por Facunda e Narcisa. Eram os filhos de Susana, que estava no hospital com fraturas num braço e em várias costelas. Num acesso de raiva, o homem havia investido contra ela com cintadas e pontapés. Não era a primeira vez que Susana ia parar no hospital. Naquela semana eu por acaso estava no sítio quando a mulher nos contou o ocorrido. Disse ela que, ao ouvir os gritos, chamou outras vizinhas, que apareceram em bando, armadas de frigideiras e paus de vassoura para resgatá-la.

— Temos de nos unir para nos defender, sempre estamos preparadas, mas às vezes não ouvimos ou chegamos tarde — acrescentou.

Fui com Facunda ver Susana, e a encontramos numa enfermaria, com um braço engessado, estendida numa cama sem travesseiro, por causa das pancadas na cabeça. Uma médica comentou que o pior de seu trabalho era atender as vítimas de violência doméstica que chegavam várias vezes ao setor de emergência.

— Um dia deixam de voltar. Muitas mulheres são assassinadas pelo marido, pelo amante, às vezes pelo pai.

— E a polícia?

— Lava as mãos.

— No caso de Susana, o agressor é da polícia.

— Com esse não vai acontecer nada, mesmo que a mate. Vai dizer que foi em legítima defesa — suspirou a doutora.

Na época fazia vários anos que eu trabalhava em grupos de mulheres e havia adquirido um pouco de humildade na busca do modo de ajudar, em vez de me atirar contra a realidade, como havia feito no começo. Elas tinham experiência e podiam dar soluções; meu papel era contribuir no que me pedissem, mas o caso de Susana, por se tratar da neta de Facunda e da irmã de Etelvina, fez meu sangue ferver. Fui para Sacramento falar com um juiz, que tinha sido colega de meu irmão José Antonio, apesar de ser vários anos mais novo que ele.

— A polícia não pode entrar numa casa sem mandado de busca e apreensão, Violeta — respondeu ele quando lhe expus o ocorrido.

— Mesmo que alguém esteja sendo brutalmente agredido?

— Não exagere, amiga.

— Este é um dos países com mais violência doméstica do mundo, sabia?

— Na maioria das vezes se trata de assunto particular no seio do lar, que não é da competência das forças da ordem pública.

— A coisa começa com surras e acaba em assassinato!

— Nesse caso a lei intervém.

— Entendo. É preciso esperar que aquele degenerado mate Susana para o senhor emitir uma medida protetiva. É isso o que está me dizendo?

— Calma. Vou cuidar pessoalmente para que o agressor receba forte advertência, o que pode significar sua expulsão da corporação policial.

— Se se tratasse de sua filha ou de sua neta, o senhor ficaria tranquilo, sabendo que ele está solto e pode atacá-la de novo?

Susana ainda estava no hospital quando o homem apareceu no sítio com o pretexto de ver os filhos, porque estava com muita saudade deles, disse. Veio fardado e com arma na cintura. Explicou que Susana era muito desajeitada e tinha caído de uma escada. Facunda e Narcisa não lhe permitiram ver as crianças e o expulsaram aos gritos; o homem foi embora jurando que voltaria, e então elas veriam quem era ele. Percebi que a promessa do juiz só tinha servido para me fazer sair de seu escritório.

— Susana precisa largar esse homem agora mesmo. A violência sempre tende a aumentar — disse eu a Facunda.

— Ela não se atreve, Violeta. O sujeito já ameaçou matá-la e às crianças também.

— Ela vai precisar se esconder.

— Onde?

— Em minha casa, Facunda. Vou buscá-la quando tiver alta do hospital. Deixe as crianças prontas.

Levei Susana engessada, debilitada e aterrorizada, e as duas crianças para minha casa, onde eram esperados por Etelvina. No trajeto tive tempo de refletir sobre minha própria história. Suportei durante anos os maus-tratos de Julián Bravo sem dar a isso o nome de violência doméstica, e sim desculpando: foi um acidente; perdeu o controle porque bebeu demais; fui eu que provoquei; está com problemas e descarregou em mim, mas não vai fazer de novo, garantiu, pediu perdão. Nada me ligava a ele, eu não precisava dele, era livre e me sustentava sozinha, e mesmo assim demorei anos para acabar com aquele abuso. Medo? Sim, havia temor, mas também insegurança, dependência emocional, inércia e a regra do silêncio que me impedia de falar do que estava me acontecendo; isolei-me.

Etelvina me fez ver que Susana tinha sorte porque em nossa casa estava segura, mas havia milhões de mulheres que não podiam escapar. A Fundação Nieves financiava alguns refúgios para mulheres vítimas de abuso, espalhados em vários lugares, mas era preciso fazer muito mais. Conversando com uma mulher que administrava uma daquelas casas de acolhida e conhecia bem a situação das vítimas das quais cuidava, porque sofrera o mesmo, concluímos que, ainda que multiplicássemos os refúgios, eles nunca seriam suficientes. Disse-me que a violência contra a mulher é um segredo de polichinelo que precisa ser ventilado, para ser conhecido por todos.

— Denunciar, informar, educar, proteger, castigar os culpados, legislar, isso é o que temos de fazer, Violeta — disse.

E foi assim, Camilo, que atribuí uma missão concreta à fundação. Isso me manteve ativa e entusiasmada na fase que chamam de terceira idade, embora em meu caso venha a ser quarta ou quinta. Agora essa tarefa é de Mailén Kusanovic, que na época era uma adolescente exaltada pela sede de justiça. Enquanto essa menina dedicava o tempo livre ao ativismo feminista, tu andavas babando por uma empregada do supermercado. Quanta dor de cabeça me deste, Camilo!

Susana e os filhos, que chegaram à minha casa com o plano de se esconder por alguns dias daquele maldito policial, ficaram conosco vários anos, porque era perigoso voltarem a Nahuel, onde o homem podia encontrá-los. Harald financiou os dentes novos da moça, e, quando ela deixou de tapar o rosto com a mão e pôde sorrir com dentadura completa, descobrimos que se parecia muito com a avó Facunda na juventude. Também herdou dela a seriedade e a fortaleza. Recuperou-se do trauma e, assim que pôde mandar a menina para o jardim de infância, começou a trabalhar numa das casas de acolhida da fundação. Etelvina ficava encarregada do bebê e cuidava dele com o mesmo carinho que dedicara a ti quando eras pequeno, Camilo. Hoje esse menino tem trinta anos e é professor de biologia. Não faço ideia do que aconteceu com o policial, que simplesmente evaporou no esquecimento.


26

Tu te formaste no San Ignacio com as piores notas da classe, mas com o prêmio de melhor companheiro, transformado no favorito do diretor, com quem debatias de igual para igual sobre Deus e a vida.

— Às vezes seu neto me tira do sério, Violeta, mas gosto muito dele porque ele me desafia e me faz rir. Sabe que ideia teve recentemente? Que Deus, se existir — o que, segundo ele, não é um fato, mas apenas uma opinião —, será marxista. Lamento não o ter no colégio ano que vem — comentou.

Naquela idade não sabias nada de Deus nem da vida, mas, em compensação, sabias bastante de mulheres, parece. Desde pequeno andavas sempre apaixonado por alguém com intensidade melodramática. Aos nove anos ameaçavas suicidar-te por uma jovem vizinha de dezessete anos que nem sequer sabia da tua existência até que roubaste meu anel de brilhantes para lhe dar de presente. Acho que te lembras dela. A pobre menina, vermelha de vergonha, veio devolvê-lo.

— O Camilo me pediu que o espere para se casar comigo quando sair do colégio — confessou.

Depois dessa grave desilusão amorosa mudavas de namorada a cada duas semanas. Etelvina espantava todas. “Não me traga periguetes para esta casa, Camilito!” Referia-se a meninas de meias e uniforme escolar.

Pouco depois de terminares o colégio, quando estavas inscrito na universidade para estudar engenharia mecânica, te apaixonaste por uma senhora que tinha o dobro da tua idade; gostavas das mulheres mais velhas. Por sorte não me lembro do nome dela e espero que nem tu. Pretendias casar-te com ela e ainda eras incapaz de assoar o nariz, como dizia Etelvina com muita razão. Separada do marido, com filhos adolescentes, gerente de um supermercado, francamente não sei o que ela via em ti; devia estar muito necessitada para pôr os olhos em cima de um garoto cabeludo e malvestido como eras. Bom, ainda és.

Tive de interferir nesse assunto, porque meu dever sempre foi proteger-te, como prometi a Nieves. Primeiro fui dar uma volta pelo supermercado com a intenção de botar juízo na cabeça da dama em questão. Ela me recebeu no escritório, um verdadeiro chiqueiro atrás da seção de carnes e frangos. Era bem vulgar, na minha opinião, mas se portou com respeito comigo quando avisei que, para seu próprio bem, devia deixar de ver meu neto, que era um desequilibrado indecente e mulherengo, alcoólatra, ladrão e de caráter violento.

— Agradeço ter me dito isso, senhora del Valle, vou pensar muito no assunto — respondeu, acompanhando-me delicadamente para a porta.

Vendo que a senhora do supermercado não me fez caso, combinei com Juan Martín que ele te receberia na Noruega durante as férias; eu pretendia que te distraísses com algumas donzelas escandinavas. A oferta que recebeste de trabalhar no verão na indústria do salmão não caiu do céu por teus méritos, como te fizemos acreditar; quem conseguiu foi Harald, com alguma dificuldade, porque naquele tempo não servias para nada e bastava te olhar uma vez para adivinhar que eras um rebelde. O plano era te reter lá o máximo possível. Deu certo, mas eu não imaginei que com aquilo ias te afastar da engenharia mecânica. Herdaste essa vocação por via materna. A tia Pilar, como te disse, era um gênio da mecânica. Conseguia consertar defeitos e inventar máquinas, como aquela geringonça de secar garrafas, uma espécie de enorme escultura aérea com aspecto de fóssil pré-histórico. Esse dom te foi transmitido através dos complexos labirintos do sangue ancestral, e, graças a isso, pudeste fazer mais bem do que com a oração. Foi muito útil no lixão, quero dizer, na tua comunidade.

Por algum motivo de que já não me lembro — pode ter sido pelo caso daquela menina de onze anos, engravidada pelo padrasto, a quem foi negado um aborto terapêutico e morreu no parto —, milhares de mulheres saíram em passeata pelas ruas de várias cidades. Na época isso podia ser feito sem risco. Na multidão topei com Mailén Kusanovic e não a reconheci; a pirralha magra e feia estava transformada numa amazona que marchava à frente de um grupo que desfraldava um estandarte.

— Violeta! Eu sou a filha de Anton! — saudou-me aos gritos.

Por um lado, me tratou com familiaridade, como se fôssemos da mesma idade, e por outro me felicitou por participar da manifestação, como se eu fosse uma velha decrépita.

A partir daquele dia fiquei de olho nela, Camilo. Minha ideia original, antes que te desse a ideia de virar padre, era de te casares com ela, mas agora preciso me conformar com o fato de ser tua melhor amiga, a menos que no futuro pendures a batina e jogues a castidade pela janela. A propósito, a castidade é um fardo; antes talvez inspirasse respeito, mas agora é suspeita, ninguém deixa uma criança sozinha com um padre. Temos trezentos padres pedófilos reconhecidos neste país. Convidei Mailén para tomar chá, como se usava então, para examiná-la antes de apresentá-la a ti. Teríamos privacidade, porque Harald estava pescando com uns amigos. Não aprovo esse esporte cruel de capturar um peixe infeliz, arrancar-lhe o anzol, deixar sua boca em carne viva e devolvê-lo à água, onde sofrerá morte lenta ou será devorado por um tubarão atraído pelo sangue. Enfim, parece que estou divagando. Voltemos a Mailén.

Eu esperava a moça gritalhona e suada que tinha visto na passeata; mas ela se esforçou por me causar boa impressão e chegou maquiada, com os cabelos recém-lavados, calças boca de sino, como era moda, e botas brancas com plataforma. Etelvina havia preparado um bolo de merengue, que a convidada repetiu sem se preocupar com as calorias; esse detalhe acabou por me convencer de que aquela era a garota ideal para meu neto, pois gosto de gente que engorda feliz.

Fiquei sabendo que ela estava cursando psicologia e faltavam três anos para se formar. Perguntou se eu tinha feito psicanálise, o que não interpretei como impertinência, mas como curiosidade profissional. No fim, sabia do doutor Levy, porque os livros dele eram textos de estudo na faculdade, e ficou impressionada quando soube que eu o tinha conhecido pessoalmente. Ele morreu antes de ela nascer. Acho que naquele momento ela fez as contas de meus anos e concluiu que eu era antiga como as pirâmides, mas não mudou o seu tom de camaradagem.

Aproveitei para falar de meu neto, um jovem estupendo, de bons sentimentos e sólidos princípios, bonito, trabalhador e muito inteligente. Etelvina, que estava servindo outro pedaço de bolo, ficou parada com a faca no ar e perguntou a quem eu me referia. Eu disse a Mailén que tinhas um contrato fabuloso na Noruega, sem especificar que se tratava de destripar salmões, que tinhas começado a estudar engenharia antes de viajar e planejavas terminar o curso na volta, e que logo virias me ver em Sacramento.

— Gostaria que vocês se conhecessem — acrescentei em tom casual.

Etelvina soltou um suspiro sarcástico e foi para a cozinha.

A mãe de Anton Kusanovic era indígena pura, mas ele tinha puxado os traços do pai croata. Casou-se com uma canadense que percorria a América do Sul como turista, apaixonou-se aqui e nunca mais voltou para seu país. Mailén contou que foi amor à primeira vista, e que seus pais continuavam tão apaixonados como no primeiro dia, depois de terem posto sete filhos no mundo. Ela é a única que tem algo da avó indígena: cabelos lisos cor azeviche, olhos pretos e pômulos proeminentes; o resto da família tem aparência europeia. A mistura de raças a torna muito atraente.

Eu não podia imaginar que naquele momento, enquanto procurava uma noiva para ti, estavas planejando entrar no seminário.

Naquela época eu estava vivendo profundamente o amor com Harald, que, com seu entusiasmo, me mantinha jovem. Uma das aventuras que me impôs foi ir à Antártida. Viajamos num barco da Armada com licença especial que ele obteve por ser diplomata e por ter alegado ser cientista. Aquele mundo branco, silencioso e solitário é transformador, pode mudar uma pessoa para sempre. Imagino que é desse modo o território da morte, para onde logo irei em busca de meus amores passados; ali vou encontrar Nieves e tantos outros que se foram antes. Agora que há viagens turísticas, deverias ir, Camilo, antes que aquele continente degele e até as focas se extingam. Meu marido viu pássaros desconhecidos e pôde passear com sua câmera no meio de uma multidão imensa de pinguins. Eles têm cheiro de peixe. Uma das diversões a bordo era atirar-se ao mar entre fragmentos de gelo azul; a pessoa era resgatada bem depressa, antes de morrer de hipotermia. Para salvar nossa honra, Harald e eu nos sentimos obrigados a imitar os jovens marinheiros e mergulhar nas águas mais frias do planeta. Desde então tenho os pés gelados. Harald tinha essas ideias extravagantes, e eu o acompanhava sem reclamar, porque compreendi que ele tinha no sangue o amor ao ar livre. A verdade é que passei muito susto e dor nos ossos com ele.

À parte o vício de observar pássaros, que parece ser muito popular em seu país, Harald gostava de trabalhar com ferramentas; isso ele teve em comum contigo desde o começo. Lembras que ele te ensinou os princípios fundamentais da carpintaria? Dizia que as ferramentas e o trabalho manual são a linguagem comum dos homens; que não há barreiras de comunicação quando isso se compartilha. Os antepassados dele foram todos carpinteiros e marceneiros na pequena cidade de Ulefoss, onde ele nasceu e cresceu na mesma casa que o avô ergueu com suas próprias mãos em 1880. Da última vez que estive em Ulefoss a população devia girar em menos de três mil pessoas, e as principais ocupações ainda eram o ferro, a madeira e o comércio, como em séculos anteriores. Na infância, Harald ia com amigos pular sobre as toras que flutuavam no rio largo que divide a cidade, diversão suicida, porque bastava um escorregão para morrer esmagado ou afogado.

Passamos todos os verões noruegueses, quando nunca é completamente noite, numa cabana escondida num bosque a três horas de Ulefoss. O próprio Harald a construíra, e isso se notava nos detalhes. Digamos que media uns sessenta metros quadrados, e a latrina era um buraco numa casinha externa. À noite fazia um frio polar, nem quero imaginar como seria no inverno. Não havia eletricidade e água corrente, mas Harald instalou um gerador e contávamos com latões de água. Ele tomava banhos de água fria, eu me ensaboava de vez em quando com uma esponja, mas compartilhávamos a sauna, um quartinho de madeira a poucos metros da casa, onde nos pelávamos no vapor de pedras ferventes; depois mergulhávamos por um minuto ou dois no rio de água gelada. O aquecimento fazíamos com lenha em estufas de ferro; Harald era hábil em partir troncos a machadadas e acender o fogo com um único fósforo. A melhor lenha é a de bétula, e havia muitas no bosque. Ele pescava e caçava; eu fazia tricô e planejava novos negócios. Comíamos macarrão, batata, trutas e qualquer mamífero que ele conseguisse com suas armadilhas ou sua espingarda e, para matar o tempo, nos aturdíamos com aquavita, 40 % de álcool puro, a bebida nacional. O reboque de Roy Cooper era um palácio comparado à cabana de Harald, mas admito que tenho saudades daquelas longas luas de mel com meu marido naqueles bosques espetaculares.

No início do outono, bandos de gansos silvestres emigravam, e os dias amanheciam com um véu de neblina no ar e um espelho de geada sobre a terra; as noites se tornavam muito longas, e os dias, curtos e cinzentos. Então nos despedíamos da cabana. Harald não trancava a porta à chave, para o caso de alguém se perder e precisar se abrigar por uma noite ou duas. Deixava pilhas de lenha, velas, querosene, alimentos e agasalhos para esse possível hóspede. Era um costume imposto pelo pai, originalmente para amparar fugitivos durante a guerra, quando a Noruega estava ocupada pelos alemães.

Uma vez perguntei a Harald qual era seu desejo mais duradouro; ele respondeu que sempre tinha sido passar a velhice no silêncio e na solidão de alguma pequena ilha das cinquenta mil que existem na fragmentada geografia da Noruega, mas, desde que se apaixonara por mim, só desejava morrer a meu lado, no Sul de meu país. Em algumas ocasiões, muito raras, falava como um trovador. Tenho certeza de que me amava muito, mas tinha dificuldade em expressar esse sentimento; era de poucas palavras, ferozmente independente, como esperava que eu também fosse, e prático demais para meu gosto. Nada de flores ou perfumes; seus presentes consistiam em um canivete, tesouras de podar, inseticida, uma bússola etc. Evitava manifestações românticas ou sentimentais, considerava-as suspeitas. Quando se ama de verdade, que necessidade há de proclamá-lo? Gostava muito de música, mas morria de vergonha com a breguice de certas canções e os enredos melodramáticos das óperas; preferia as italianas, pois assim podia ouvir Pavarotti sem ficar a par das bobagens que ele cantava. Evitava falar de si mesmo, levava ao extremo o conceito nórdico de janteloven, que significa: “Não acredites que és especial ou melhor que os outros; lembra-te de que é sobre o prego mais saliente que cai a martelada.” Nem dos pássaros que descobria ele se vangloriava.

Em cada viagem, fazíamos uma visita a Juan Martín e sua família em Oslo, mas por poucos dias. Acho que meu filho ficava mais à vontade amando-me a distância. Tinha vivido muitos anos na Noruega, adaptando-se a uma cultura muito diferente da nossa. Nada resta do jovem revolucionário que escapou da guerra suja; virou um senhoraço com barriga, que vota nos conservadores. Claro, os conservadores de lá estão à esquerda dos socialistas daqui.


27

Naquele ano em que te mandei para a Noruega a fim de te arrancar das garras da gerente do supermercado, fui com Harald te ver, antes de irmos para a cabana do bosque. A indústria do salmão tinha já mais de vinte anos de prosperidade, e o país era o maior exportador desse peixe no mundo. Esses noruegueses são admiráveis, Camilo. Eram pobres até encontrarem petróleo no Norte, quando caiu uma fortuna nas mãos deles. Em vez de esbanjá-la, como aconteceu em tantos outros lugares, usaram o dinheiro para dar prosperidade a toda a população. E com o mesmo talento prático, amor à ciência e bom governo que usaram nos campos de petróleo, criaram as salmoneiras.

Como naqueles fiordes onde estavas o verão demorava a chegar, andavas de parca cor de laranja, colete salva-vidas verde-garrafa, gorro, cachecol, botas e luvas de borracha. Nós te vimos de longe, trabalhando na estreita passarela circular das gaiolas flutuantes de salmão; parecias um astronauta sob aqueles céus de nuvens rosadas, rodeado de montanhas cobertas de neve, que se refletiam no mar calmo de águas cristalinas e geladas. O ar era tão puro que doía respirar. A vida nas salmoneiras era muito rude, e gostei de ver que havia muitas mulheres fazendo o mesmo trabalho dos homens. Se algum machismo tinhas, por culpa de Etelvina, nunca por culpa minha, ali o perdeste.

Em teoria podias poupar tudo o que ganhavas, mas nunca soubeste administrar o dinheiro, que escorre entre teus dedos como areia; nisso também pareces tua mãe. Lá gastavas tudo em cerveja e aquavita para todos os companheiros. Eras muito popular. Minha preocupação era que não tinhas uma ou várias namoradas, porque a finalidade daquela viagem tinha sido justamente te manter distraído para te esqueceres daquela senhora. Harald adivinhou antes de mim que tuas distrações eram outras.

No processamento do peixe, as mulheres tinham todas a mesma aparência: inteiramente cobertas por aventais azuis e cabelos enfiados em boinas de plástico, mas na hora da aquavita era possível ver algumas moças bonitas da tua idade, que estavam fazendo trabalho de verão ou estágio de universidade.

— Percebeu que Camilo nem olha para elas? — comentou Harald.

— Tem razão, no que andará pensando?

— Faz discursos sobre a injustiça, as infinitas necessidades da humanidade e a angústia de não poder solucioná-las. Anda inquieto e sombrio, quando deveria estar eufórico nesta paisagem — disse Harald.

— E não menciona as garotas de jeito nenhum. Você acha que esse menino é gay? — perguntei.

— Não, mas pode ser comunista ou está pensando em virar padre — respondeu, e começamos a rir juntos.

No segundo dia perguntaste se acreditávamos em Deus, e então a brincadeira do dia anterior já não me pareceu tão divertida. Para Harald, a religião ocupava um lugar mínimo na vida. Na infância, assistia com os pais ao culto luterano, mas fazia muitos anos que se afastara da religião. Quanto a mim, criaram-me numa espécie de paganismo católico, em constante regateio com o céu entre promessas, rosários, velas e missas, adorando cruzes e estátuas. Pensamento mágico. Quando rompi com Fabian e me juntei a Julián, fui expulsa da Igreja por adultério. Senti aquilo como castigo, porque me marcava com um estigma de pária em minha família e em minha comunidade, mas não causou impacto espiritual. A Igreja não me fazia falta.

Naquele ano de 1993, antes de ir te ver na Noruega, paguei a promessa que fizera ao padre Juan Quiroga quando te prenderam por vandalizar o Monumento aos Salvadores da Pátria, que agora se chama Monumento à Liberdade. Essa promessa eu postergara ano após ano. Naquela ocasião, prometi ao santo, de joelhos, que, se recuperasse meu neto com vida, faria boa parte do caminho de Santiago de Compostela a pé. Como eu precisava fazer isso sozinha, Harald aproveitou para ir ao Amazonas enquanto eu viajava à Espanha. Com setenta e três anos, eu era uma das pessoas de mais idade na peregrinação entre Oviedo e Santiago, mas andei com pé firme durante dezesseis dias, apoiada num cajado, com uma mochila nas costas. Foram dias de esgotamento e euforia, de paisagens inesquecíveis, de encontros emocionantes com outros caminhantes e de reflexão espiritual. Passei em revista a minha vida inteira e, ao chegar finalmente à catedral de Santiago de Compostela, levava a certeza de que a morte é um umbral rumo a outra forma de existência. A alma transcende.

Aquela foi a primeira de muitas reflexões que fiz sobre a fé, Camilo.

Voltaste da Noruega antes do previsto, sem nenhuma intenção de retornar à universidade e decidido a começar o noviciado, contra a minha vontade, porque nem eu nem ninguém que te conhecesse podia suspeitar que ias escolher esse caminho árduo.

— Isso não é vocação, é capricho! — gritei.

Disso me lembraste umas cem vezes desde então. Estive a ponto de ir falar com o provincial, ou quem quer que fosse encarregado dos jesuítas, para dizer o que pensava sobre esse assunto, mas Harald e Etelvina impediram. Estavas para fazer vinte e dois anos, e eles não acharam adequado que a avó interferisse.

— Não se preocupe com Camilito, senhora, ele não vai ficar muito tempo com os padres, é certeza que vai ser expulso por má-criação — consolou-me Etelvina.

Mas não foi assim, como sabemos. Esperavam-te catorze anos de estudo e preparação, e uma vida de sacerdócio.

A única maneira de explicar tua transformação espiritual, Camilo, é reler algo do que me escreveste vários anos depois, do Congo, quando já estavas ordenado. Talvez não te lembres daquela carta. Os próprios homens com quem trabalhavas, a quem servias, atacaram o recinto da missão, atearam-lhe fogo e esfaquearam as duas freiras maravilhosas que viviam contigo. Escapaste por milagre; acho que tinhas ido obter provisões para as crianças da escola. Saiu na imprensa do mundo inteiro, e eu quase enlouqueci de angústia sem notícias tuas.

Tua carta demorou um mês para chegar. Escreveste: “Para mim a fé é um compromisso total. Meu compromisso é com tudo o que Jesus disse. O que está no Evangelho é verdade, vovó. Nunca vi a força de gravidade, mas tenho evidências de que ela existe a todo momento. Assim sinto a verdade de Cristo, como uma força prodigiosa que se manifesta em tudo e dá sentido à minha vida. Posso dizer que, apesar das dúvidas que tenho sobre a Igreja, com todas as minhas falhas e limitações, sou profundamente feliz. Não temas por mim, vovó, porque eu não temo por mim.”

Foste para o seminário e deixaste um vazio imenso. Etelvina e eu choramos como se tivesses ido para a guerra; para nós, foi difícil tocar a vida em tua ausência.

Em 1997 Facunda morreu aos oitenta e sete anos, tão forte e sadia como sempre. Caiu do cavalo que teu avô Julián te deu de presente, aquele lindo animal que teve existência feliz no sítio Santa Clara e era o meio de transporte dela. Disseram que não morreu da queda, mas da parada cardíaca que teve montada. Seja como for, minha boa amiga teve o final súbito e sem dor que merecia. Foi velada na propriedade onde passou a maior parte da vida; durante dois dias houve um desfile de amigos, habitantes de Nahuel e de outros povoados próximos, e de indígenas da região, muitos deles parentes dela. Havia tanta gente que tivemos de fazer o velório no pátio, onde pusemos o caixão debaixo de um toldo perfumado de flores e ramos de loureiro. Pena que não estivesses presente, Camilo, porque estavas fazendo o noviciado; Harald tirou centenas de fotos e fez vários filmes; deves pedi-los a Etelvina.

O pároco de Nahuel rezou missa e depois houve uma cerimônia indígena para a despedida de Facunda. Os participantes chegaram com seus trajes cerimoniais e seus instrumentos musicais, porque a despedida se faz cantando. Como não podia faltar comida, assamos vários cordeiros no espeto, servimos milho tenro na espiga, salada de cebola e tomate, pão fresco, doces e muita aguardente e vinho, porque dor se suporta melhor com álcool. A regra do velório é que os animais sacrificados precisam ser totalmente consumidos; a comida não pode ser desperdiçada. Um ancião da comunidade, que havia substituído Yaima, fez a exortação em sua língua, que eu não pude compreender, mas me explicaram que ele disse a Facunda que ela havia deixado de existir e não devia voltar em busca de filhos ou netos, que devia entregar-se ao sono da Mãe Terra, onde estavam os que se foram antes.

Para ajudar o espírito de Facunda em sua passagem para o plano dos antepassados, o ancião lhe mandou as últimas instruções por meio de uma galinha, sobre a qual soprou fumaça de charuto, molhando-a com gotas de bebida destilada antes de torcer seu pescoço e atirá-la ao fogo, onde se reduziu a cinzas. Vários homens que ainda estavam sóbrios levantaram o caixão e o carregaram nos ombros até o cemitério de Nahuel, porque ela havia dito diversas vezes que queria ser enterrada junto aos Rivas, e não no cemitério indígena. Quem pôde, seguiu o cortejo a pé; os outros foram em dois ônibus que contratei para a ocasião. A distância era muito curta, mas tínhamos bebido demais. A cerimônia se concluiu em torno do buraco cavado para o caixão, onde demos o último adeus ao corpo de Facunda e desejamos boa viagem a seu espírito.

Além de Facunda, a quem eu era unida por tantos laços, naquele ano perdemos Crispín. O cachorro tinha treze anos, estava surdo, meio cego e um bocado maluco, como costumam ficar os velhos. O veterinário duvidava que os animais sofressem de demência, mas, como vi meu irmão José Antonio afundar cada vez mais no labirinto do esquecimento, posso dizer, Camilo, que os sintomas de Crispín eram idênticos. Morreu nos braços de Etelvina, depois de devorar um filé moído, pois lhe restavam poucos dentes, graças a uma injeção misericordiosa, aplicada por aquele mesmo veterinário que negava sua condição. Escondi-me no último rincão da casa; não fui capaz de presenciar o fim daquele amigo leal. Não te avisamos, porque terias sentido tremendamente não poderes estar com ele naquele momento; só te dissemos que ele havia se apagado suavemente deitado em minha cama, onde dormia desde que foste para o internato.

Quando entraste no seminário, tive de aprender a te amar de longe. Nem te conto como aquilo foi difícil, Camilo, até que me acostumei às cartas. Um dia poderás ler as tuas de então e reviver a efervescência de tua juventude com Jesus por companheiro e aqueles anos de intenso estudo de filosofia, história e teologia, janelas escancaradas para o conhecimento humano. Tiveste sorte com os professores que pegaste, que te ensinaram a aprender, a saber o que não sabes e a perguntar. Alguns eram verdadeiros eruditos. Lembras-te do velhinho que ensinava direito canônico? Na primeira aula te disse que ias aprender o assunto pelo direito e pelo avesso... para puderes encontrar a brecha por onde libertar o ser humano. Parece que isso fizeste sempre, aprendeste a lição de cor.

Também encontras a brecha para ti mesmo. Fiquei sabendo que há pouco foste chamado pelo bispo, que te repreendeu por teres feito o casamento de um casal de mulheres gay, ambas vestidas de branco, felizes. Pôs diante de teu nariz a foto das núpcias, que saiu no Facebook.

— Parece uma primeira comunhão — disseste, brincando.

— O senhor tem de se retratar e pedir desculpas! — ordenou o bispo.

Recorreste a uma brecha do voto de obediência.

— Tenho a opção de comunicar à imprensa o que o senhor me ordenou, reverendíssimo. Não posso me retratar, iria contra minha consciência, pois creio que todo ser humano tem direito ao amor. Arco com as consequências.

Contaste-me por telefone, e eu escrevi para não esquecer, porque essa era exatamente tua resposta quando na infância eu te apanhava em alguma malandragem: “Não posso pedir desculpas porque iria contra minha consciência, vovó. Todo ser humano tem direito a jogar ovos com estilingue, mas se te der prazer, podes castigar.” Já então, aos dez anos, argumentavas como um jesuíta.

Nunca quiseste me dizer por que te mandaram para a África, mas imagino que foi castigo para te silenciar quando tentaste denunciar a pedofilia de alguns colegas, ou então pediste para ir como missionário por amor ao risco, quer dizer, pelo mesmo motivo que te fez convencer teu avô Julián a te levar para mergulhar entre tubarões aos onze anos de idade. Quase morri quando fiquei sabendo que te baixaram numa jaula com uma máquina fotográfica num mar infestado daqueles animais carnívoros, enquanto teu avô bebia cerveja com o capitão no barco.

No início aquela missão cristã no Congo me pareceu um projeto poético, dava para um romance inspirador do século XIX: jovens idealistas vão difundir sua fé e melhorar as condições de vida de povos bárbaros. Fiquei comovida ao saber que estudaste suaíli, tu que mal aprendeste inglês e o maltratas com sotaque de bandido. Tinhas mais entusiasmo por fazer bom uso das mãos do que por rezar missa, mas o tom demasiadamente otimista de tuas cartas me pôs em alerta. Alguma coisa estavas me escondendo.

Mandavas fotos do veículo inútil que consertaste com peças que fazias numa forja, das crianças na cantina escolar que construíste com tuas mãos, do poço que estavas instalando na aldeia, da freira basca de invencível coragem, da freira africana que te fazia rir e do cachorrinho que afinal era fêmea, mas evitavas mencionar o ambiente em que estavas. Eu nada sabia da África, de sua diversidade, de sua história ou de seus infortúnios, era incapaz de distinguir um país de outro e achava que havia elefantes e leões em todo o continente. Resolvi pesquisar e descobri que o Congo é um país enorme e riquíssimo em recursos, mas é também o lugar mais violento do mundo, mais que qualquer zona em guerra.

Fui arrancando a verdade carta após carta e compreendi que, em outro contexto, estavas emulando o missionário Albert Benoît, que tinha morrido uns anos antes na comunidade à qual dedicara a vida. Fui ao funeral em teu nome; a capital ficou paralisada por causa da multidão pesarosa que o acompanhou ao cemitério. Tal como aquele padre francês, pretendias comungar até as últimas consequências a sorte das pessoas mais vulneráveis. Fiquei sabendo dos conflitos tribais, da guerra, da pobreza, dos grupos armados, dos campos de refugiados, dos maus-tratos brutais impostos às mulheres, que valem menos que o gado, do fato de se poder perder a vida a qualquer momento sem outra causa além do azar. Contaste a história dos dois rapazes que haviam sido meninos soldados, recrutados aos oito anos à força e obrigados a cometer o ato atroz de assassinar a mãe, o pai ou um irmão, para que o sangue em suas mãos os unisse à milícia e os separasse para sempre da família e da tribo; fiquei sabendo das mulheres violentadas quando iam buscar água no poço, e do fato de os homens não irem porque seriam mortos; da corrupção, da cobiça e do abuso de poder, da terrível herança da colonização.

Aqui sempre viveste contrariado. Ficavas enfurecido com a injustiça, com o sistema de classes, com a pobreza; a hierarquia da Igreja, a religião supersticiosa, a estupidez e a falta de discernimento dos políticos, dos empresários e de tantos clérigos te revoltavam. No Congo, onde havia problemas muito mais graves, estavas contente; eras carpinteiro e mecânico, davas aulas às crianças, plantavas e criavas porcos. Não era teu país, não pretendias mudá-lo, só ajudar no que fosse possível. “Eu sou de trabalhar com as mãos e tentar resolver assuntos práticos, vovó, não sirvo para pregar. Como missionário sou um fracasso”, escreveste. Tornar-te humilde, Camilo, foi a grande lição do Congo.

Agora vives nessa comunidade que, antes de tua chegada, era um lixão. Fiquei muito emocionada quando me levaste para conhecê-la, tão limpa e organizada, com casas muito modestas, mas decentes, uma escola, oficinas de diferentes ofícios e até uma biblioteca. O que mais me emocionou foi a casinha com chão de terra batida, onde moras com a cadela e a gata que te adotaram. Sabes, Camilo? Senti uma pontada de inveja, um desejo de ser jovem e começar de novo, jogar fora tudo o que é supérfluo e ficar só com o essencial, servir e compartilhar. Sei que entre essas pessoas és plenamente feliz. Aceitaste que não podes mudar o país, muito menos o mundo, mas podes ajudar algumas pessoas. O espírito do padre Albert Benoît te acompanha. Não sabes quantas vezes dei graças a Deus por teres sido tão jovem durante a ditadura e, apesar de tantas imprudências, teres escapado das garras da repressão. Agora o bispo puxa tuas orelhas e há quem te acuse de comunista por trabalhares com os pobres; naqueles anos terias sido exterminado como uma barata.

Juro que desisti há muito tempo do plano de te unir a Mailén Kusanovic. Claro que é brincadeira pedir que te cases com ela quando largares a batina. Mal me resta um sopro de vida, e não vou desperdiçá-lo em sonhos infundados; sei que continuarás sendo padre até a morte. A tua, não a minha. Foi por acaso que ela reapareceu no horizonte quando estavas na África; não fui buscá-la.

Mailén tinha ouvido falar da Fundação Nieves — que já contava vários anos de existência e tinha boa reputação — e aproximou-se para fazer uma solicitação. Já não era mocinha, devia ter mais de trinta anos, mas não demorei a descobrir que estava solteira. Naquele tempo tudo passava por minhas mãos na fundação, eu tinha apenas uma secretária, para gastar o mínimo possível com administração. Mailén se surpreendeu ao me ver atrás de minha escrivaninha porque não me imaginava ligada à filantropia, e eu me surpreendi ao constatar que ela não havia se afastado do projeto feminista que tinha aos doze anos. Precisava do apoio de minha fundação para um programa de anticoncepcionais e educação sexual.

Tínhamos elegido a primeira mulher presidente da República, e ela dava prioridade aos assuntos femininos, sobretudo no combate ao mal endêmico da violência doméstica, que ela chamava de vergonha nacional. Tive várias reuniões com ela quando assumiu o cargo, porque minha experiência podia ser útil. A missão de minha fundação coincidia exatamente com o seu propósito de denunciar a violência, informar, educar, proteger as vítimas e mudar as leis. Com isso, a Fundação Nieves começou a receber ajuda do governo, adquiriu maior visibilidade e atraiu doadores que ainda hoje, depois de tantos anos, contribuem para seu financiamento.

— Achei que o novo Ministério da Mulher tivesse esse programa nas escolas — disse a Mailén.

Ela me mostrou que, como sempre, as verbas não eram suficientes para atingir as zonas rurais mais afastadas e para as comunidades indígenas. Explicou que contava com voluntárias e com o material fornecido pelo governo, mas faltavam caminhonetes para o transporte e um montante para gasolina e manutenção das voluntárias em seus deslocamentos. O que ela pedia era razoável; fizemos as contas e chegamos a um acordo em menos de quinze minutos.

Depois fomos jantar num restaurante onde a comida, uma cacetada para a vesícula, era deliciosa; antes da sobremesa, eu lhe propus que trabalhasse comigo na fundação.

— Daqui a dois anos faço noventa. Não planejo me aposentar, mas preciso de ajuda —disse-lhe.

Foi assim que Mailén entrou de novo em minha vida, dessa vez para ficar. Desde então ela se tornou uma filha para mim e se somou à nossa minúscula família. Naturalmente, em menos de seis meses dirigia a Fundação Nieves. Associar-me com ela não foi um estratagema de casamenteira, Camilo. Basta que ela seja tua melhor amiga e te trate como a um irmão; quando eu me for, ela cuidará de ti; tem muito mais bom senso que tu. Seu papel é impedir que faças bobagens demais.

Ingressei na última década de minha existência, mas como tinha saúde e tinha Harald, não me senti a caminho do território da morte. Passamos a vida negando o fato irrefutável de que vamos morrer, e isso não muda aos noventa anos. Continuei achando que tinha muito tempo pela frente, até que Harald faleceu. Fomos um par de avós românticos, nos deitávamos à noite de mãos dadas e amanhecíamos com os corpos enroscados. Como sou madrugadora, acordava antes dele e podia passar uma abençoada meia hora de dorme-acorda na escuridão e no silêncio de nosso quarto, dando graças por tanta felicidade compartilhada. Essa é minha maneira de rezar.

Minha vaidade durou enquanto ele esteve comigo, porque me achava bonita. Lembras-te de como eu era antes, Camilo? Chegaste à minha vida quando eu tinha mais ou menos a idade que tens agora, mas minha aparência era muito melhor que a tua. A bondade desgasta muito, já te avisei. Os maus se divertem mais e chegam à velhice em melhores condições que os santos como tu. Se já não existe o inferno e há dúvidas sobre o céu, parece-me pouco razoável esmerar-se tanto em ser boa pessoa.

Sinto muita saudade de Harald. O normal seria ele estar aqui, segurando minha mão em meus últimos dias. Teria oitenta e sete anos. Do ponto de vista do século que completei, isso não é nada. Aos oitenta e sete eu ainda era uma jovenzinha e estava aprendendo a dançar rumba como forma de exercício, pois acho a ginástica muito tediosa, e fui com ele navegar de canoa nas águas cor de turquesa do rio Futaleufú, na Patagônia, um dos mais bravios do mundo, segundo soube depois. Imagina, Camilo, oito pessoas desatinadas num bote inflável amarelo, com colete salva-vidas, para que o cadáver possa flutuar, e capacete, para evitar que o cérebro se esparrame em caso de a cabeça arrebentar contra uma rocha.

Gostei tanto daquele marido! Não lhe perdoo ter-me abandonado. Era tão sadio que eu não estava preparada para o fato de o coração dele parar de repente. Teve a falta de cortesia de morrer antes de mim, apesar de ser treze anos mais novo. Foi quando fiz noventa e cinco anos; morreu em plena festa de meu aniversário, com uma taça de champanhe na mão. Harald teve uma vida linda e uma morte linda, porque se foi cantando, bebendo e apaixonado, mas para mim foi um golpe baixo; partiu meu coração.


28

Lembro que aos sessenta e quatro anos estive à beira de ceder à ideia de envelhecer, mas então a cruz de Torito me obrigou a mudar de rumo e começar outra vida, deu-me um propósito, uma oportunidade de ser útil e uma liberdade maravilhosa da alma. Desprendi-me de boa parte da carga material e dos temores, menos o temor de que acontecesse alguma coisa contigo, Camilo. Vivi os trinta e cinco anos seguintes com o mesmo ímpeto da juventude. O espelho me revelava as inevitáveis mudanças da idade, mas por dentro eu não as sentia de jeito nenhum. Como o processo de envelhecer foi paulatino, a ancianidade me tomou de surpresa. Velhice e ancianidade não são a mesma coisa.

O instinto de permanência me mantém viva para além da dignidade. Nos últimos três anos a implacável natureza foi me despojando da energia, da boa saúde e da independência, até me deixar transformada na anciã que sou hoje. Fiz noventa e sete anos sem me sentir velha, porque estava atenta a meus projetos, tinha curiosidade pelo mundo e ainda podia me indignar diante de uma mulher agredida. Não pensava na morte porque estava entusiasmada com a vida. Fazia dois anos que vivia sem Harald, o homem que mais felicidade me deu em minha longa existência, mas não estava sozinha, porque tinha a ti, Etelvina, Mailén e tantas mulheres com quem trabalhamos na Fundação Nieves.

Então, como sabes, caí da escada. Nada grave. Uma operação de rotina para repor a pelve e vários meses de exercícios para voltar a andar, mas já não sozinha: precisava de uma bengala, do braço firme de Etelvina, de um andador e, por fim, de uma cadeira de rodas. O pior da cadeira é que meu nariz fica na altura do umbigo dos outros, e a primeira coisa que vejo neles são os pelos do nariz. Adeus automóvel, escritório no segundo andar, teatro e fundação; esta ficou completamente nas mãos de Mailén, embora, na verdade, já estivesse há anos. Tive de admitir que precisava de ajuda. Com humildade, é menos doída a humilhação cotidiana de depender. No entanto, a invalidez do corpo me trouxe um presente inesperado: uma imensa liberdade da mente. Já não tinha deveres e podia me ocupar escrevendo aos poucos este relato e preparando o espírito para minha partida.

Decidi vir para o sítio Santa Clara depois da operação, porque adivinhei que seria meu último tempo, e era uma pena passá-lo na cidade. Neste lugar Etelvina nasceu, e aqui nós duas estamos mais contentes. Pensar que, chegando a este lugar idílico com minha mãe e minhas tias, nós o apelidamos de Desterro, assim, com maiúscula... Não foi um desterro, mas um refúgio. Esta é a mesma casa pré-fabricada que meu irmão e eu erguemos para substituir a dos Rivas, quando ela desmoronou e se incendiou no terremoto de 1960. Durou desde então, só troquei o sapé do teto a cada quatro anos e instalei calefação, porque no inverno o frio e a umidade penetram. Está rodeada por jasmins e hortênsias, e uma primavera arroxeada emoldura a entrada. Trouxe minha cama e alguns móveis; é muito acolhedora e sinto entre estas paredes a presença dos que habitaram aqui antes: minha mãe e minhas tias, os Rivas, Facunda e Torito.

Aqui, estou perto do cemitério de Nahuel, onde estão meus seres mais queridos, inclusive Harald, porque os filhos dele concordaram que seus restos mortais ficassem aqui, como ele desejava. Vieram para o enterro com respectivas famílias, umas pessoas altas e loiras como Harald, que tiveram problemas de estômago logo que chegaram, como sempre acontece com gente civilizada. Ali estão as cinzas de tua mãe numa urna de cerâmica; também há um túmulo para Torito, embora nunca venhamos a saber se os ossos que nos entregaram são dele ou de outro homem. E lá me colocarás no caixão biodegradável que está à espera na Passareira.

Sei que andas escarafunchando minhas gavetas em busca das economias que Etelvina e eu escondemos por precaução. É prudente manter à mão dinheiro em espécie, para o caso de sermos assaltadas, porque, se nos pegam sem nada, nos degolam. Não te esqueças de que isso já aconteceu uma vez, e levamos um susto tremendo, com aqueles safados que entraram por uma janela e saíram na disparada quando comecei a gritar a plenos pulmões, mas pode ser que da próxima vez nos falte sorte ou me faltem pulmões. Claro que isso foi em Sacramento; aqui seria muito estranho que acontecesse.

Essas notas amarradas com fitas de Natal em seus esconderijos não fazem o bem a ninguém. Logo, em questão de dias, no máximo, Etelvina vai entregá-las para tuas cadernetas mágicas. Não me contaste nada disso, mas vi na imprensa e na televisão; dizem que até os bilionários, que normalmente não dão nada aos pobres, porque tem mais glamour doar à Sinfônica, estão contribuindo para tuas cadernetas. Segundo Etelvina, fazem isso mais por vergonha que por compaixão. Ela me explicou que entregas uma caderneta a cada família que está passando por grandes necessidades, para que compre a crédito no armazém do bairro, anote na caderneta, e no fim do mês pagas a conta. Isso garante que haja comida na mesa, evita a humilhação de receber caridade e mantém em funcionamento o armazém que de outro modo teria de fechar as portas. É uma boa ideia, como algumas que te ocorrem de vez em quando.

Lembra que tudo o que está no porão de Sacramento é de Etelvina, para o apartamento dela, para onde ela vai se mudar assim que se livrar de mim. Finalmente, poderá se levantar tarde, tomar o café da manhã na cama e veranear neste sítio, que já lhe pertence. Vai viver tranquila como merece. Imagino que o que herdares será para os pobres, por isso te deixo apenas dinheiro, exceto o valor que será de Etelvina e o que corresponde a Juan Martín e à fundação, como está estipulado em meu testamento. Terás uma surpresa, Camilo, pois receberás o suficiente para centenas de cadernetas mágicas.

Seria inútil pedir que gastes algo contigo, embora precises de roupa; deverias trocar essas botas de soldado com sola furada. Acho que batina está fora de moda, assim como os hábitos das freiras; andas sempre com o mesmo jeans desbotado e o pulôver que Etelvina tricotou para ti faz mil anos. Vamos ver se Mailén faz algo a respeito. És pobre de verdade. Dos três votos do sacerdócio, o da pobreza não te custa nada.

Talvez eu tenha falhado como mãe para Juan Martín e Nieves, por andar enredada em minhas paixões e meus negócios, mas fui muito boa mãe para ti, Camilo. És o amor mais intenso de minha vida, e começou quando eras um girino nadando em líquido amniótico na barriga de Nieves. Ela te amou desde tua primeira centelha de vida e deixou as drogas, que a tinham sustentado no furacão do infortúnio, para te proteger, para nasceres sadio. Nunca te abandonou, esteve sempre contigo; imagino que sintas a companhia dela, tal como eu. Meu carinho por ti se consolidou na primeira vez que te tive nos braços, e desde aquele instante só fez crescer e crescer, disso podes ter certeza. Não poderia ser de outro modo. És um tipo excepcional, e não digo isso por corujice, pois metade deste país concorda comigo, e a outra metade não tem peso nenhum.

Contigo termina minha estirpe emocional, embora haja outros que carregam meu sangue nas veias. Nas fotografias que Juan Martín me envia, sua família aparece em paisagens límpidas de neve e gelo, sorrindo com dentes demais e com um suspeito excesso de otimismo. Não é teu caso. Tua dentadura deixa a desejar, e vives uma vida bastante dura. Por isso te admiro e te amo tanto. És meu amigo e confidente, meu companheiro espiritual, o amor mais profundo de minha longa vida. Eu adoraria que tivesses filhos, e que eles fossem como tu, mas nem sempre se consegue o que se deseja neste mundo.

Há um tempo para viver e um tempo para morrer. Entre ambos há tempo para recordar. Isso eu fiz no silêncio destes dias em que pude escrever os detalhes que me faltavam para completar este testamento, que é de sentimentos, mais que de assuntos materiais. Faz vários anos que não consigo escrever à mão, minha letra é ilegível, perdeu a elegância de antes, que aprendi com miss Taylor na infância, mas a artrite não me impede de usar meu computador, o membro mais útil de meu corpo entrevado. Brincas comigo, Camilo, dizes que sou a única centenária moribunda mais agarrada ao computador do que às rezas.

Nasci em 1920, na pandemia de influenza espanhola, e vou morrer em 2020, na pandemia do coronavírus. Caramba, que nome elegante para um bicho tão maligno. Vivi um século e tenho boa memória, além de setenta e tantos diários e milhares de cartas para provar minha passagem pelo mundo. Fui testemunha de muitos acontecimentos e acumulei experiência, mas, por andar distraída ou muito ocupada, alcancei pouca sabedoria. Se fosse verdade essa história de reencarnação, eu teria de voltar ao mundo para realizar o que ficou faltando. É uma possibilidade aterradora.

O mundo está paralisado, e a humanidade, em quarentena. É uma estranha simetria eu ter nascido numa pandemia e morrer em outra. Vi na televisão que as ruas das cidades estão vazias, há eco entre os arranha-céus de Nova York e borboletas entre os monumentos de Paris. Não posso receber visitas, o que me permite despedir-me aos poucos e em paz. Em todos os lugares a atividade parou e reina a angústia, mas aqui em Santa Clara nada mudou: os animais e a vegetação não sabem do vírus, o ar é puro, e é tão profunda a calma que, da minha cama, posso ouvir os grilos da lagoa, lá longe.

Tu e Etelvina são as únicas pessoas que podem me acompanhar; os outros são espíritos. Gostaria de me despedir de Juan Martín, dizer-lhe que o amo muito, tenho saudades dele e lamento não ter conhecido melhor seus filhos, mas ele não pôde vir, é perigoso viajar de tão longe. Por sorte estás comigo, Camilo. Obrigada por ter vindo até aqui e por ficar. Não terás de esperar muito, prometo. Minha preocupação é que andas repartindo ajuda justamente onde a doença está causando uma tremenda mortandade. Cuida-te. Muita gente precisa de ti.


Adeus, Camilo

Agora é o fim. Aqui estou eu, esperando-o em companhia de Etelvina, da gata Frida, dos cachorros do sítio, que não pertencem a ninguém e vêm de vez em quando deitar-se aos meus pés, e dos fantasmas que me rodeiam. Torito é o mais persistente, porque esta é a casa dele, e eu sou sua hóspede. Não mudou nada; os mortos não mudam. É o mesmo homenzarrão doce que vi afastar-se pela última vez em direção às montanhas com Juan Martín. Ele se senta na banqueta do canto, calado, para talhar bichinhos de madeira. Perguntei-lhe o que aconteceu na montanha, como o pegaram, por que o mataram, mas ele dá de ombros como resposta, não quer falar disso. Também lhe perguntei como é o outro lado da vida, e ele me disse que logo terei tempo para ir conhecendo.

Há vários dias, pelo menos uma semana, estou agonizando e recordando. A hemorragia aconteceu de repente, sem aviso prévio, quando eu estava vendo as notícias do vírus na televisão; não consegui me preparar como se deve, e agora uma senhora, que deve ser a morte, está sentada aos pés de minha cama, convidando-me a segui-la. Já não distingo claramente entre o dia e a noite, o que dá no mesmo, porque dor e memória não se medem em relógios. A morfina me adormece e me transporta para a dimensão dos sonhos e das visões. Etelvina teve de tirar o quadro dos camponeses chineses que sempre esteve diante da minha cama, porque aquele casal habitualmente imóvel, com sua cesta de piquenique e seus chapéus cônicos de palha, saiu da moldura e se pôs a passear em meu quarto, arrastando suas alpargatas. Efeito da morfina, imagino, porque estou lúcida, sempre estive; meu corpo já não dá para mais nada, mas tenho o cérebro íntegro. Os camponeses peripatéticos foram-se para a casa-grande das camélias, onde eram esperados por meu pai, que está fumando na biblioteca. Levaram-lhe o arroz da esperança.

Se o médico tiver se enganado, e eu não morrer, terá sido uma mancada dos três, tremenda frustração. Mas isso não vai acontecer. De vez em quando me elevo como uma coluna de fumaça e, de cima, me vejo nesta cama, lutando para respirar, tão reduzida que mal se delineia minha silhueta debaixo do cobertor. Ah! Essa magnífica experiência de desprender-se do corpo e flutuar! Livre. Morrer exige muito esforço, Camilo. Imagino que não haja pressa, porque vou ficar morta por muito tempo, mas essa espera me aborrece. A única coisa que lamento é que já não estaremos juntos, mas, enquanto te lembrares de mim, continuarei contigo de alguma maneira. Quando te perguntei se vais sentir saudades de mim, respondeste que estarei sempre sentada numa cadeira de balanço em teu coração. Às vezes és bem brega, Camilo. Não acredito que sintas saudades de mim, porque vives muito ocupado com teus pobres irremediáveis e não terás tempo de pensar em mim, mas espero que sintas falta de minhas cartas. Se minha ausência te deixar um pouco triste, Mailén vai te consolar; agora me ocorre que ela está apaixonada por ti. Tenho certeza de que não vai durar muito esse acerto que fizeram, de serem só amigos; vivi demais para acreditar em voto de castidade e outras bobagens. Além disso, te ouvi dizer que celibato e castidade não são a mesma coisa. Só podias mesmo ser jesuíta.

Etelvina chora, achando que não ouço. Ela foi minha melhor amiga e é meu sustentáculo nesta idade de ossos ineptos, em que preciso de ajuda até para ir ao banheiro. Logo abandonarei este corpo desarmado que tão bem me serviu durante um século inteiro, mas está finalmente derrotado.

— Estou morrendo, Etelvina?

— Sim, senhora. Tem medo?

— Não. Estou contente e sinto curiosidade. O que haverá do outro lado?

— Não sei.

— Pergunte ao Camilo.

— Já perguntei, senhora. Disse que também não sabe.

— Se o Camilo não sabe, é porque não há nada.

— Venha a senhora nos assombrar e contar como é morrer — pediu-me com aquele seu ar maroto.

É verdade que estou contente e sinto curiosidade, mas de vez em quando também tenho um pouco de medo. Do outro lado poderia haver somente desolação, eterno vagar no espaço sideral chamando e chamando. Não. Não será assim. Haverá luz, muita luz. Essas ondas de incerteza são muito breves. É a vida que me puxa de volta, e é difícil abandoná-la.

Etelvina quer que eu me confesse e comungue, aproveitando que estás aqui; receia que meus pecados sejam muitos e me condenem. Concordo contigo, que a confissão não deveria ser um hábito; bastaria confessar-se algumas vezes na vida, quando houvesse necessidade imperiosa de descarregar a alma de culpas. Além disso, nos últimos vinte anos, faltaram-me oportunidades de pecar, e pelos erros anteriores eu já paguei. Guiei-me por uma norma de conduta simples: tratar os outros como quero que eles me tratem. No entanto, prejudiquei algumas pessoas. Foi sem má intenção, com exceção de Fabian, que eu traí e abandonei porque não pude evitar, e de Julián, porque ele merecia. Não me arrependo do que lhe fiz, porque era o único castigo que me ocorreu.

Sinto os pés mais gelados que nunca. Não sei se é noite ou dia, às vezes a noite parece tão longa que se junta com as noites anteriores e com a seguinte. Se pergunto a Etelvina que dia é hoje, ela responde sempre a mesma coisa: “O que a senhora quiser; aqui todos os dias são iguais.” Ela é sábia, adivinhou que só existe o presente. E tu, Camilo? O que pensas da morte? O assunto te faz sorrir; ainda tens aquelas covinhas que deixam teus olhos menores quando ris; também nisso te pareces com tua mãe. Logo farás cinquenta anos e viste mais crueldade e sofrimento que o comum dos mortais, mas manténs teu ar inocente de menino.

Depois de viver um século, sinto que o tempo escorreu entre meus dedos. Para onde foram esses cem anos?

Não posso me confessar contigo, Camilo, és meu neto, mas, se te parecer bom, podes me dar a absolvição para tranquilizar a Etelvina. As almas sem culpa vão flutuando leves para o espaço sideral e se transformam em pó de estrelas.

Adeus, Camilo, Nieves veio me buscar. O céu está lindo...

 

 

                                                                  Isabel Allende

 

 

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