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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


VIRADA DO AVESSO / Maria João Lopo de Carvalho
VIRADA DO AVESSO / Maria João Lopo de Carvalho

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblio "SEBO"

 

 

 

   

Como traduzir, desmontar uma impressão, perceber por que gostámos de um livro? Pode agarrar‑nos pelos colarinhos desde a primeira página, mas daí até sabermos explicar o que aconteceu passam dias, passam meses. Depois descobre‑se, de repente, sem se dar por isso. Há neste livro uma música que mulher nenhuma desconhece. É um chorar baixinho por detrás das palavras e do riso. O coração aderiu antes da cabeça, sinal do que não se explica. Venham os críticos, venham os escolásticos, venham os académicos de lupa na mão para estudar o fenómeno. Não importa: ouve‑se esta história como sendo a nossa. Uma sucessão inglória de dias, onde tudo o que existe, a única realidade, talvez seja mesmo, só, a expectativa. Não é ela que nos mantém vivos? Acordados? Em prova? A história é a de qualquer de nós, mesmo dos que vivem a dizer a si mesmos que existem mais coisas para além do amor. Ou que conseguem viver sem ele. Claro que existem. Claro que conseguem. Mas conseguem o quê? Sem ele, a vida tem o sabor de um cozinhado sem sal. A narradora é um pássaro triste que esbanja a última esperança sem saber que é a última no aceno de um homem, nas palavras de um outro, nas mentiras que ouve e diz a si mesma. São assim, muitas vezes, as heroínas dos romances. Elas perdem, a esperança vence ‑ que remédio ‑, ganharão quando muito uma resposta qualquer. E a resposta, onde está? Nem isso. É assim a vida: troca‑se tudo por uma resposta que pode não vir, que pode nunca vir, ou vir apenas quando já a vivemos sem a reconhecermos. Teresa, Diogo, Luísa, Eduardo. Nomes comuns, sentimentos comuns, somos nós aqui. No que concedemos, no que transgredimos, no que esperamos e desesperamos, no que quase nunca passa por nós. Ou que passa, claro que passa, mas ignoramos por onde, o que vai dar no mesmo. A vida é assim. Igual a si própria, sem momentos de glória ou fins grandiosos, ou com tudo isso e uma testemunha apenas: nós. O sexo disfarçado de amor, ou o contrário a baralhar ainda mais. E depois a pergunta, sempre nova e a mesma: «Quem está aí?» Somos nós ou o outro? Nós, claro, quase sempre, mas só mais tarde nos reconhecemos. Depois do trabalho do tempo. E do amor. Porque também o descobrimos no desamor, ou no mau amor, ou nos gestos desajeitados, nas cobardias, nas traições, nas batotas, nas precipitações. Amor. Anda por aqui, neste livro, pairando como uma alegria possível, mas só parece existir na cabeça da Teresa. É isso, finalmente: o amor da Teresa já existe. Intenso, brutal, disponível, humilde, devastador talvez. Tão grande que mete medo a quem se aproxima e afugenta quem ainda não está preparado para ele. Ou arranjou, há muito, uma definição de amor prática e portátil. Amor já há, sempre houve, mesmo naqueles que o temem ou declinam. Falta o objecto, sempre o objecto que o mereça ou não. E o amor, merece‑se? Ou é sortilégio, como juram os poetas? Não sei, ninguém sabe ainda, ninguém sabe nada, sobretudo quem ama. E a Teresa limita‑se a perguntar. Baixinho, muito baixinho:

«Onde está o amor a que eu tenho direito?» Tão baixinho.Mais baixo que o riso para não o espantar. E o riso será finalmente a última coisa. A última? A única? Não, há também a esperança. Mas não se sabe, no fim, se ela começa ou acaba. A Teresa continua a rir e a chorar ao mesmo tempo. E a esperança pode estar na dor ou no júbilo porque ninguém sabe onde a procurar. A Teresa procurou . Tê‑la‑á encontrado? É importante porque se a encontrou, talvez também o encontre. O amor, sim, que outra coisa? Hoje. Qualquer dia. «Até quando?», como ela mesma pergunta. «A mãe está diferente», diz‑lhe a filha no fim. Diferente? Diferente porquê? Será paz ou renúncia, lucidez ou cansaço? Mas é tão fácil aldrabar uma criança, não é? Reparem no que fazemos connosco ‑ alguma diferença?

 

 

 

 

Fui para a cama com o Eduardo. Aconteceu. Não por raiva ou despeito, não por sentir o Diogo longe, afastado, num Alentejo distante por debaixo de cobertores fortes e pesados, a consumar o seu casamento, os seus doze anos de compromisso. Esse Alentejo que o Diogo me contou, o Alentejo das noites frias, do crepitar das chamas na lareira da sala, das oliveiras e dos bezerros, era nosso um dia. Ruiu.

Fui para a cama com o Eduardo para povoar de outros sonhos o meu corpo. Ainda posso sonhar? Será que devo? Vingança? Nem sei... Escrúpulos? Talvez... Foi uma entrega amarga, era batota, não havia amor, é de facto possível transformar a ausência de amor em desejo, e esgotá‑lo, consumi‑lo. Pensei que não conseguia mas fui capaz... Aqui estou depois de ter traído o Diogo. Nua e crua é esta a verdade.

O Eduardo ensinou‑me o que era efémero no sexo: um momento mágico que se esgota na entrega dos nossos corpos... O Eduardo ensinou-me a não amar. Fiquei

proibida ou acabava‑se o jogo. Aceitei as regras. Queria chegar ao Diogo através do corpo do Eduardo. Também traí o Eduardo. Da mesma forma. Pensava no Diogo o tempo todo. Fui capaz disso.

Um dia o Diogo disse‑me que eu era "enorme" na minha dignidade. Não me senti menos digna por isto... Percebi que há um princípio e um fim. Quando o Eduardo refez o nó da gravata, vestiu o casaco, deu‑me um beijo apertado e largou um "até amanhã" despido de intenção, era o fim do que tivera início umas horas atrás. São assim as leis da vida. Não fiquei só, nem triste. Adormeci logo contente por ter sido Mulher. Acho que gostei daquela noite.

No outro dia, sol e vento forte, mais um sem o Diogo... Tirei as beatas dos cigarros, já frias, apodrecendo no cinzeiro. Recordações? Não sei, nem pensei nisso. Roubaram‑me o rádio do carro. Sempre desconfiei das sextas‑feiras treze. Nem a música me vai ajudar a chegar perto do Diogo. Para quê? Imagino‑o a beber o seu café antes de entrar no Banco. Da mesmíssima maneira. Com ou sem mim, os ritmos são os mesmos... maquinais pela sua repetição. A emoção é diferente? Será que cada minuto custa assim tanto a passar?

Dobro a esquina a correr. Já vou atrasada. Afinal a toda a gente já aconteceu roubarem o rádio do carro. Porque é que me havia de importar? O trabalho, sempre o mesmo... Estou cheia de frio e vem aí o Natal. Ai, O Natal, não vou agora pensar nisso... Mas porque é que não dei cem escudos ao arrumador? Não me tiinham roubado o rádio. Também não posso telefonar ao Diogo a contar. Quebrar regras? Rotinas? Não. O Diogo não existe. E digo para mim própria: Teresa, ele não existe. Nem ia gostar de ouvir a minha voz, está diferente ou é só impressão?

 

Hoje o Diogo faz anos. Lembrei‑me. Nem sequer penso em falar‑lhe. Para quê dar‑lhe os parabéns? A mesma palavra que se repete ano após ano, amarelecida pelo tempo, seca ou calorosa. Não, isso não. Passei à porta do Banco. Deixei um envelope ao segurança: Diogo Teixeira. Quando o abrir tem lá dentro uma só frase para repensar: "Tu tornas‑te eternamente responsável por aquilo que cativas", o Principezinho sempre me lembrou a importância do que vamos cativando e se torna único no mundo para nós. É altura de lhe passar a mensagem.

Detesto fazer anos, a obrigação de estarmos felizes e risonhos, a expectativa de que se lembrem de nós e cumpram a etiqueta de nos darem os rotineiros parabéns. Tudo seria menos mau, se não houvesse sistematicamente uma pessoa mais importante para mim, que também sistematicamente não telefona. O grau de importância que desempenhamos nos outros é de facto diferente da ansiedade que criamos em relação aos pequenos gestos, que nos tornam momentaneamente felizes.

A vida é assim: um permanente desencontro emocional.

Já lá vai o tempo, que agora tenho a sorte de reviver com os meus alunos e com as minhas filhas, em que fazer anos tem toda a dimensão de uma festa. O prazer que sentimos é directamente proporcional ao tamanho do presente que nos dão. Começa por uma noite mal dormida, com sonhos de todas as cores. Depois é uma sucessão de rituais, sempre com o sabor de novidade, em que o coração bate mais depressa a cada minuto que passa. A professora que nos dá um beijinho especial, faz‑nos sentir que somos mesmo especiais. Um dia mágico em que temos mais uma vela no bolo. Ficamos com a pretensa sensação de importância, de que somos só nós que contamos para o mundo.

Nunca mais me esqueço de um piano enorme em casa dos meus pais, ao qual, nem nas pontinhas dos pés chegava. Ano após ano era, em todas as festas, local de exposição dos presentes que recebia. Ao fim do dia, cansada, com o laço do vestido desabotoado e a boca suja de mousse de chocolate, subia a uma cadeira para apreciar o imenso espólio que a minha mãe ali arrumara meticulosamente por categorias: livros, jogos, discos, bonecas, guloseimas. Depois, cabia‑me a espinhosa tarefa de escolher um e só um para levar comigo. Hoje, ainda vivo esses momentos especiais, sentindo o cheiro da novidade nas páginas dos livros por abrir, no celofane à volta das caixas. Tudo por estrear!

Muito mais emocionante do que ouvir cantar os parabéns de mãos dadas com os dois eternos palhaços que nos vinham "distrair"! E por isso que continuo com medo de palhaços: homens estranhos com caras disfarçadas que são e não são o que vemos ali. Deixei de acreditar em palhaços quando, numa destas festas, entreabri a porta da cozinha e dei de caras com dois homens "normais", sentados à mesa com as empregadas, a falarem alto e a rirem muito.

Custou‑me esta decepção. Afinal não são palhaços, não têm nariz redondo, nem pés enormes e nem sequer estão a cantar a música do "Carrossel Mágico". Desde esse dia, nunca mais quis palhaços nas minhas festas. Era tudo mentira

Hoje, o dia é do Diogo. Com ou sem palhaços, com ou sem pretensa ilusão em que nos fazem crer, é um dia em que, se possível, estou mais próxima. Não existe já a magia das velas acesas, só a vaga sensação de que tudo acaba em fumo.

Sou de certeza a pessoa que ele espera, do outro lado da linha.

Não vai ouvir.

Fica no ar, apenas o eco de três palavras sem som: "Estou , Diogo!"

 

Passei com o Diogo só um final de Verão. Só? Uma eternidade. Juntos ou separados? A diferença é pouca... Cruzámos caminhos, encontros perdidos, que não tiveram lugar nem razão de existir. Pensei que era a sua "mulher". O Diogo viu‑me sofrer. Interromper a vida. Durante anos senti‑me adormecida ao lado de um "marido" chamado João. Ainda acredito em contos de fadas? Talvez. Fiz do João um homem seguro.

Veio para mim perdido, emocionalmente desamparado. Foi ganhando confiança, fi‑lo acreditar ser um cientista de mão cheia: o melhor, o mais inteligente, o mais poderoso. A referência para o próximo século.

Era assim o meu marido: um nicho de vida, um alienar de todas as emoções, uma entrega total e absoluta aos distintíssimos valores da ciência. Foi deste modo que o admirei, sem ver o fundo, sem tentar entrar desenfreada nessa toca de números, símbolos e fórmulas com que sempre me traiu. Não tentei descobrir o homem, mas admirá‑lo pelo lado de fora. Como a avó Salomé sempre me dizia: "para amar, primeiro tens de admirar"

Esgotei‑me no meu total e irreparável fascínio. Era este o João, tal como o desenhei: vaidoso da sua pessoa, da sua mulher, consciente das suas faculdades, dos dons que Deus lhe deu. Invejado por uns, desdenhado por outros, cobiçado na fortuna de ser o mais distinto, o mais elogiado, o mais perdido. Nem a si próprio tentou encontrar. Andava por lá vagueando entre tubos de ensaio e compostos químicos, andava para lá, onde não havia espaço para si, para as nossas filhas, para mim.

Fui arrumando o João em prateleiras, cada vez mais altas, onde mal chegava em bicos dos pés. Arrumadinho, pronto a ser visto, lido, saboreado, talvez. Sempre que olhava para dentro dos seus olhos esverdeados, sempre que me deitava a seu lado, sempre que descobria as suas mãos brancas e finas e adivinhava nelas sonhos que não passavam por mim, tinha pena. Pena por me ter perdido. Pena por não ser a sua prioridade, só constatação de um facto. Ser só, sua mulher. E, pela mulher que é a nossa, não se luta, está lá. Não é um raciocínio que se pretende mostrar como verdadeiro, é só uma mulher. Ali, para nos dar filhos, amor e sexo.

Perdeu‑me, ao deixar a vida passar ao lado.

É assim que acaba o que a sociedade denomina de casamento. Hoje é tão fácil, demasiado fácil pôr pontos finais. União de ideias na construção de um só projecto. Se calhar, nem projecto havia. Se calhar, é bem mais fácil desistir. E mais cómodo. Ninguém censura, ninguém nos aponta o dedo. Não deu certo, não se entenderam. Separaram‑se. Coitadas das crianças, elas é que sofrem. E só enquanto não houver outra história mais fascinante, vai esta bailando de boca em boca para logo, logo cair no esquecimento. Varremos as cinzas e deitamos tudo fora. Num gesto impetuoso, rasgamos as fotografias adormecidas nas molduras, sacudimos a escova de dentes do armário e com raiva deitamos para lavar o guardanapo abandonado na argola de prata. Acabou.

Ficaram as nossas filhas, para nos lembrar que existimos, para nos forçar a dar o nosso testemunho. Falhámos como marido e mulher, não falharei enquanto mãe. Deixarei que sigam o seu percurso na construção de um pai ausente, teórico, que um dia virá para constatar que existem e que estão crescidinhas e tão iguais como duas gotas de água. Nessa altura não sei qual será a factura a pagar. Anos de ciência corroem a ligação com aquela parte de nós que se libertou e se fez sozinha. Mas, se calhar não existe, não se traduz num número nem numa experiência enganadoramente correcta. As nossas filhas somos nós. Parte integrante.  

Foi no final desse Verão conturbado e "deserto", quando vivia um período de exclusividade ao lado da Cuca e da Marta, que tropecei no Diogo. Durante todos estes anos de João, nunca tentei descobrir nenhum Diogo.

Tudo começou com uma ida ao T‑Clube na Quinta do Lago. Parece uma história banal, igual a tantas. Uns amigos desafiaram‑me, amigos de circunstância, de Verão. Nem ia especialmente bonita, nem especialmente pintada, nem especialmente satisfeita. Fomos dançar, era suposto dançar‑se no T; mostrar‑se o bronze, mostrar que ali estávamos, de férias, risonhos e boémios, aliviados e distantes da vida. Fui para o meio da pista, aos cotovelões, encontrões, "desculpe lá...", dançava sem grande vontade e como sempre fazia, entretinha‑me a olhar à volta e imaginar o que faziam ali tantas "clonagens" de nós próprios. Mais mini‑saias, mais botas altas, mais brincos de arrasar, decotes ou calças justas, todas iguais, todas diferentes. Lembrava‑me das minhas tenebrosas aulas de ballet, forçada a equilibrar‑me nas pontas dos pés e imitar as meninas ágeis e bonitas. Esquecia‑me da mão e de tornar elegantes os meus dedos, esquecia‑me das pontas dos pés, da barriga para dentro e, pensativa, punha‑me a imaginar letras românticas, palavras que rodopiavam no ar em piruetas e pliés chocando com as notas do plano. Acordava de rompante com o ponteiro de madeira a apunhalar‑me pelas costas. "Então Teresa, estamos aqui ou onde estamos?" Naquele momento, Senhora professora de ballet, encontrava‑me no meio de uma pista, numa bôite, cheia de veraneantes conhecidos e desconhecidos com o olhar subitamente fixo, parado, colado num homem. Um homem de "mão fria" como, com alguma deselegância, chamamos àqueles seres que vivem encostados aos bares, com copos de whisky na mão. O da "mão fria" ficou também fixo, parado, colado, numa mulher: Eu! E, como nos contos de fadas, assim começou o feitiço. Tossi, virei‑me de costas, disfarcei, nada. Os olhos continuavam colados. Mesmo de costas viradas. Peguei na mão do meu par e fomo‑nos sentar. Passei por ele, mesmo perto. Estava sozinho, continuava, já sem disfarçar nada, só não disfarçava o seu silêncio. Só o seu silêncio existia. Percebi que estava viva. Se a minha amiga Luísa assistisse a esta cena pateticamente vazia diria: "Chega de galanço! Se quiser aqui tem o meu telefone". Eu seria incapaz, nem sequer ousava sair de perto dos outros, com medo de ser abordada, como é costume dos homens muito homens, na ida para a casa‑de‑banho!

Sentámo‑nos numa mesa cá fora. Pelo menos corria uma aragem. Pensava comigo: também, que ridículo, já vi centenas de homens bonitos, centenas de homens sensuais, centenas olharam para mim. Não daquela forma, não com aquela intensidade. Encolhi os ombros sem resposta.

- E se fossemos embora Teresa, já vão sendo horas! - sugeriram os meus amigos. Levantei‑me mais depressa do que nunca, fazendo um esforço sobre‑humano para descolar os olhos do bar.

‑ Vamos. Já chega e a música não está grande coisa.

O caminho para casa tinha o sabor de um suplício acabado. Uff, suspirei de alívio, aquele homem não era pêra doce, que cansaço!

Imaginava a sua voz, o seu cabelo liso e aloirado, a camisa de ganga e os olhos castanhos brilhantes, intensos. Reparei no relógio: um swatch último modelo, desportivo; sapatos de vela, calças beges claras sem cinto, uma cigarrilha na mão que fumava de uma forma quase imperceptível, deixando o fumo escapar‑se pelo canto da boca e...

Recomeçava, como se rebobinasse a cassete: cabelos lisos, tão lisos, tão lisos, olhos castanhos luminosos, expressivos, meus. Meus? Uma imagem, só uma imagem, por enquanto uma imagem. Difusa. Concreta.

Descalcei as botas e deitei‑me vestida sobre a cama, olhava o luar e pensava nas suas mãos, na maçã de Adão que não parava quieta no pescoço alto e esguio, nos cabelos lisos que com um só gesto sacudia para trás, na música: "do you believe in love after love..." E assim me tomou como sua. E assim o recebi, ausente, distante, vencida por uma imagem virtual, por uma outra dimensão. Será casado? Será? Será meu? Não, meu porquê? Será que o vou voltar a ver? Será que se lembra de mim? Será... e esvoacei para lá e para cá. Não havia distância possível que me separasse, nem qualquer vontade que me prendesse ali. E assim fiquei longas horas a olhar o reflexo do céu estrelado de Verão, e a luz pálida, desmaiada, projectada nas paredes brancas e quentes de um quarto branco e quente. A mesma luz de tantas noites com o sabor a Algarve. Abafado. O cheiro húmido, o som dos grilos, a minha respiração acelerada, o coração em batidas descompassadas sem conseguir adormecer!

Naquele dia de Setembro, ausente de mim perante a trivialidade de encher as férias das minhas filhas de dias inesquecíveis, de lhes dar tempo, o meu tempo,

abandonar‑me por elas, para as ver rir, correr, dar mergulhos fantásticos, ganhar campeonatos de "prego" na areia fina da praia da falésia. Naquele dia, o Diogo veio de mansinho, sem eu dar por isso. Tinha‑o descoberto na véspera, olhares intermináveis numa noite que me pareceu infinitamente grande. Desapareci. Depois, ainda pensei que tinha sonhado, nunca mais o iria ver.

Chegou. Vazio de ciência, a transbordar de vida. Mostrou‑me onde se punha o sol, que as conchas contavam histórias, como era bom ler na praia. Puxou‑me por um braço:

‑ Venha cá, leia isto.

Ri‑me com a sua ousadia. Não era daqueles textos que se mostram à primeira: "Na cama com a Psicanalista"! Foi a maneira que descobriu de se mostrar à primeira. Percebi‑o nas entrelinhas. Encontrei‑o por trás de si. Foi mágico esse encontro imprevisto, Julgava‑o adiado para sempre. Depois, os dias sucederam‑se às noites e as noites aos dias.

‑ Você é diferente Teresa, não a imaginava tão forte.

‑ Não sou forte, tenho o rótulo de forte. Luto para manter as aparências ‑ disse, enquanto remexia o açúcar na chávena do café.

‑ Gostava de ser assim, "grande".

‑ É uma questão de sobrevivência, Diogo.

‑ Tem‑me a mim ‑ e o seu café arrefecia.

‑ Só em meias palavras...

‑ Dei‑lhe o melhor de mim.

‑ Quase tudo, Diogo!

‑ Quando menos esperar paro o carro em frente da sua porta. Definitivo, irremediável esse momento, princesa...

Um final bonito, antes do último golo de café que adormecia nas nossas chávenas.

Acreditei no Diogo. Encheu‑me o cabelo de algas, as pernas de areia molhada. Transbordou em beijos a saberem a mar e a água salgada. Percorreu o meu corpo com as suas mãos finas e hábeis.

Fui sua. Numa noite, noutra e mais outra em que amei profundamente cada instante de si. Fiquei irremediavelmente perto. É isto o que há de mais sublime no sexo: sermos nós, num só, numa compaixão e dádiva absolutamente únicas pelo valor que lhe damos, pelo sentido do que ali entregamos um ao outro, em momentos que não têm passado nem futuro e que permanecem para sempre na nossa pele, no nosso corpo, tão vivos, tão intensos e tão prontos a ressuscitarem que nos fazem acreditar em tudo. O que dizemos, o que fica por dizer...

Foi assim, ao crepúsculo de um suave amanhecer no Algarve, enquadrados por um biombo de rocha escarlate que o Diogo me falou do seu medo:

‑ Não tem saudades do João?

‑ Tenho saudades de si ‑ desconversei.

- Admiro‑a Teresa, conseguiu pôr um ponto final.

Àquela hora da madrugada, tudo sabia a uma verdade inquestionável.

‑ Não me admire Diogo, isso não é tudo.

Encostei a cabeça ao seu ombro e fechei os olhos, invadida por um desejo imenso de adormecer assim, para sempre.

‑ Não sei se sou capaz Teresa, mas acho que a posso fazer feliz. Temos a vida suspensa. Um dia conto‑lhe uma história entre Cupido e Deus.

‑ A sério?

‑ Tonta! Como é que quer que seja a sério?

Deitados na areia, comungámos um do outro, momentos de pura intimidade. Nas minhas costas, queimadas pelo sol, ao som do rebentar das ondas e do piar distante de um mocho vagabundo, o Diogo passeava os seus dedos atrevidos, numa infindável sessão de "regalinhos", enquanto me segredava finais felizes para uma história que mal tinha começado. Adormecemos na areia da praia.

A minha inocência fascinava‑o. O Diogo tinha medo. Percebi que era impossível a ruptura com o passado. Um confronto inviável. Nunca a balança pesaria mais do meu lado, os doze anos, a família, um imenso privilégio, que força tão brutal!

Naquele momento pressenti que o tinha perdido para sempre...

A primeira aula do dia começava daí a meia hora! O liceu ficava longe e continuava sem comprar um rádio novo para o carro. Enfrentar o trânsito de Lisboa, comer um croquete a correr, esquecer‑me do Diogo e mergulhar na lírica de Camões, nada mau! Ah! A Cuca tinha prova de História. Prometi‑lhe fazer uns resumos. Troca‑me os cognomes todos. Não resisto!

 

A caminho do liceu, no meu carro encarnado com a chapa toda amolgada e sem rádio, normalmente aproveito para fazer uns quantos telefonemas em atraso, sem medo de ser apanhada pelos polícias que invariavelmente se comovem com o meu ar cândido... Marco a depilação, ligo à minha mãe que quer sempre saber coisas bizarras como por exemplo, quem ficou na pole position no grande prémio do Mónaco, o que destinei para o jantar daqui a nove dias ou onde encontrar linha bordeaux do tom exacto para rematar a bainha de umas calças que até já são velhas, mas ainda podem dar jeito. Nunca faço a menor ideia de nenhuma das respostas. Nunca tenho um lápis e um papel à mão para assentar o que ela me diz e a pouco e pouco acho que vai desistindo de me massacrar com interrogatórios fúteis! Quanto a mim, perco tempo e gasto chamadas. Aproveito também para dar os últimos recados à empregada: "não se esqueça de coser os botões no bibe da Marta" ou "deixei queimar o casaco na lareira da sala"... Naquele dia, nem isso me apetecia. Olhei para o telemóvel sem vontade e deixei‑o cair nas profundezas da minha carteira.

Pensei no Diogo, nas suas palavras bonitas, quejá há tanto tempo não ouvia, a saber a mar, a areia, a saber a Diogo, no mais fundo da sua voz. Daquelas vozes que falam do coração, como vasos intercomunicantes que jorram cá para fora segredos, sensações, energia. Que arrepio na espinha só de me lembrar.

Aquele Diogo da "mão fria", que eu não sabia ser Diogo, nem casado, nem nada; aquele Diogo que no dia seguinte tropeçou em mim na praia e me deu a ler uma passagem do livro, sem timidez, sem medo, sem escrúpulos; aquele Diogo que em cinco minutos me conhecia há anos. E ao final da tarde confessava o que há tanto trazia consigo:

‑ Ando no seu rasto há muito tempo. Vi‑a almoçar no Chá da Lapa. Conversava com uma amiga, lembra‑se de mim? Eu lia o Independente na mesa ao lado ‑ que não, não me lembrava. ‑ e vai ao supermercado nas Amoreiras, e tem duas filhas, que adoram o Mcdonald's sim, com esses mesmos óculos escuros, foi o seu marido que lhe deu? Vê, eu sei tudo. Naquela noite no Stone's estava linda de morrer! Quando foi andar de bicicleta com as miúdas na Expo, fantástica, desesperada para tentar meter as bicicletas dentro de um Fiat Punto. Viu‑me lá ao fundo? Não vai dizer que não!

Desconcertante, esta fixação que desconhecia por absoluto e me envolvia como uma arte mágica. Uma rede de mil fios prendia‑me cada vez com mais força, não me deixando espaço nem tempo, para um básico movimento de espírito. Diogo um predador?

As gémeas brincavam ali em frente ausentes de tudo.

‑ Ontem fui ostensivo? Para ver se reparava em mim. Quem era o outro? Não precisa de me dar explicações. Um gajo seu amigo? Anda a fazer‑se ao piso? Pudera você provoca!

Lembro‑me como hoje daquele turbilhão de perguntas e respostas do Diogo. Uma torrente de emoções mal disfarçadas. Nunca me falou de si.

Assim me perdia no Diogo, acordando com uma buzina frenética de uma senhora transfigurada pelos nervos, numa longa fila de carros ávidos de se ultrapassarem antes do semáforo cair.

‑ Então é para hoje ou para amanhã? ‑ esbracejava, debruçada sobre a janela, com um tom de voz irónico e metálico.

Hoje ou amanhã? Pois, hoje, é verdade! O trânsito, o liceu, vou a caminho. Acorda Teresa, não estás no Algarve, nem no T, por aqui não há nem sombras do Diogo. Não, não podes pôr música, roubaram‑te o rádio.

Encontrei o Manuel, filho do Diogo, lá no liceu. Vinha a correr. Já tinha dado o segundo toque. Passei comovida para a geração seguinte. Partidas do destino. Calho no liceu do filho, calha ele reconhecer‑me. Foi um acaso? Acaso que me virou do avesso.

Faz‑me ternura, o Manuel. Caracóis dourados, olhos cinzentos, umas botas enormes e o mesmo sorriso inconfundível. Põe‑se sempre em bicos dos pés para me dar um tímido beijo. Para ele, não passo de uma agradável mistura entre "tia" e Setôra. Só isto, mais nada. Como é bom acreditar que os muros não se abatem, que os adultos têm sempre razão, que o pai é um herói. Às vezes vejo‑o sair à tarde. Acena‑me de longe, mas hoje veio ter comigo.

‑ Sabe, vou ter 4 a Português!

‑ Boa Manuel, quer dizer que estudaste!

‑ Foi o pai.

‑ O pai? ‑ perguntei admirada. Não era costume.

‑ O pai. Leu‑me uma história e explicou‑me tudo.

‑ E então? ‑ aferi, sem perceber onde queria chegar.

‑ Fiz uma redacção igual e a minha Setôra adorou.

‑ Ah sim? E sobre quê?

‑ Uma aventura entre Cupido e Deus.

‑ Fiquei sem pinga de sangue. Compus‑me, tossi, respirei fundo e assumi a minha postura de Setôra. Dei‑lhe uma festa nos caracóis e vi‑o partir a correr. Um Golf cinzento buzinava furiosamente à porta do Liceu.

São assim as crianças, prontas a ensinarem‑nos. Com pequenas e grandes lições são nossas mestras, nossas amigas, nossas também para que as moldemos, para que connosco construam Pontes e criem circuitos. Adoro‑as. A cada momento, em cada esquina, não me esqueço de pensar que aprendo mais com elas, do que elas comigo.

 

No primeiro ano em que dei aulas, levei para casa a maior de todas as provas de amor. Fui colocada numa escola dos subúrbios. Alunos pobres, dissidentes, sem esperança nem vontade. Vinham para a escola com a roupa suja da véspera, tarde e a más horas, sem pequeno‑almoço, sobrevivendo a uma noite mal dormida. Tê‑los confinados ao espaço e ao tempo de uma aula de Português, era tarefa árdua. Sobrou para mim, uma daquelas turmas terríveis, escorraçada dos horários nobres dos professores calejados e experientes.

Resolvi não ter medo. Foi assim que os enfrentei. Nada tinha a perder. Tudo rapazes, metade cabo‑verdianos. Mal percebiam o que eu dizia. Muitos eram repetentes. Camões? Não faziam ideia. Gil Vicente? Uma equipa de Futebol. Pontuação, para que serve? Coelho era com q de nove e as aulas para faltar.

Mas eu tinha resolvido não ter medo. Sentei‑me ao pé deles e conversei. Conversei de tudo o que me apetecia. As vezes lia‑lhes textos bonitos. Desconfiados ao princípio, foram entrando neles sem darem por isso. Gostavam de me ouvir ler. Tinha uma voz agradável, era nova e alegre e afinal as palavras também eram bonitas e explicavam o que vai "cá dentro". Fui chegando mais perto, cada vez mais. Sem força, sem medo. Queriam ler a "Bola" na aula? ‑ Façam favor. Fingia que não via. Foram trocando a "Bola" pelo Adamastor. Riam‑se com a Barca do Inferno e tentaram fazer uma peça de teatro. Deixei. Aulas perdidas? Não acredito. Comecei a vê‑los rir com gosto, partilhar do meu entusiasmo, escrever numa emoção disfarçada pelos incomensuráveis erros ortográficos.

No final do ano nasceram as minhas filhas Cuca e Marta. Estava sozinha na clínica. O João tinha ido trabalhar. Depois de uma cesariana fui forçada a um repouso involuntário de seis intermináveis dias. Tratava das gémeas e descansava. Corrigia testes em atraso e pensava em mim. Nos meus desafios. Na vida nova que tinha pela frente. Iria sobreviver às crianças? Ao espírito tão científico do João?

Bateram timidamente à porta.

‑ Setôra, posso?

Perante os meus olhos incrédulos era o Carlitos. Fiquei sem palavras.

‑ Podes, claro! ‑ pensei que o Carlitos tinha vindo a pé do outro lado da cidade, porque de certeza que não tinha dinheiro para o bilhete do autocarro.

‑ Setôra, eu venho pelos meus colegas dar os parabéns pelas meninas da Setôra. Disse‑nos a Directora de Turma que elas eram lindas!

‑ Obrigada Carlos. Tenho pensado em vocês todos. Fazem‑me falta.

Agradeci com a voz mascarada de comoção.

‑ Sem a Setôra a escola não tem graça ‑ confessou timidamente, para que eu não pensasse que estava a "amanteigar".‑ Quando é que volta? ‑ perguntou, escondendo as

mãos nas mangas demasiado compridas.

‑ Depois do Verão, Carlos, ‑ afirmei, sem nenhuma certeza de ser colocada na mesma escola.

‑ Trago‑lhe aqui uma lembrança pequenina, como as filhas da Setôra, ‑ rematou mais convicto ‑ é de nós todos.

E o Carlitos tirou desajeitadamente um embrulhinho amachucado da algibeira das calças coçadas. Abri, com os olhos cheios de lágrimas. Eram duas minúsculas pulseiras de ouro, com os nomes das minhas filhas gravados: Catarina, a minha Cuca, e Marta. Não sei onde fui buscar forças para reagir. Não disse nada. Tentei sussurrar obrigada, a minha voz não se fez ouvir. Senti‑me recompensada, não merecedora de um tão nobre gesto. O Carlos, e todos eles deram‑me o maior dos estímulos; desejei que as minhas filhas aprendessem com estes meninos das barracas o que é amar assim. Dar sem retorno. Sacrificar o nosso universo por alguém de quem gostamos na verdade. Não sei se algum dia vou ser capaz de agradecer este presente que a vida me deu.

‑ Continua a escrever, mãe? É que esta conta é um nojo, não dá resto zero ‑ refila a Marta.

A Marta refila sempre que as contas não dão resto zero. Pudera! Com um lápis tão mal afiado, uma borracha que suja e um caderno com as pontas todas reviradas, nenhuma conta pode dar resto zero!

‑ Já veio Marta, vá tentando.

É sempre já vejo, nunca pode, nunca me ajuda. Não consigo, não consigo, não consigo. A professora não explicou, pronto!

Sentei‑me, desdobrando‑me em paciência, ao seu lado. Fazendo das tripas coração, tentei descobrir um zero na conta da Marta, que me olhava de lado, pronta para me desafiar na Matemática.

‑ A mãe não vai ser capaz, é uma naba!

Tenho de inventar tempo para elas. As contas da Marta são tão importantes como a guerra em Timor, ou como a massa que se cola ao fundo da panela. Não tenho direito de as perder, de não as gozar de bibe e sapatos desabotoados, tão iguais e tão diferentes, únicas e impossíveis de aturar. Avassaladoras para mim.

A Marta e a Cuca são uma urgência!

 

O João telefonou~me por causa dos papéis do divórcio. Veio cá, apareceu. A medo, nervoso. Foi‑se deixando ir. Falou, falou. Está vazio. Imagine‑se! Não sei se tem pena. Mas a vida não está fácil. Depois levou os quadros. Ficaram os pregos sem nada, as paredes despidas, frias e nuas. Ninguém o viu. Só eu. Frio? Não, gelado. Passou no Doutoramento com distinção e louvor. Tinha‑me dedicado a tese, estava impressa. Não foi a tempo. As miúdas dormiam já. Foi vê‑las. Mal entrou no quarto. Iguais a mim, cada vez mais. Fechou a porta, nem se mexeram. Contei‑lhe da Cuca. Acha que isto de os pais se separarem é uma tortura!

Encolheu os ombros.

‑ Passa com o tempo.

Senti‑me culpada. Pena, escrúpulos, alívio. Uma embrulhada de sentimentos contraditórios, que em cada segundo suplicam para que se anulem uns aos outros.

Fechou a porta atrás de si. Ainda ia trabalhar.

Abandonei‑me no sofá da sala. Queria muito ser amada à antiga com flores e ternura de uma forma biunívoca e exclusiva. Olhei para dentro. Um desalinho total de emoções. O Diogo longe, com outra gente que quase desconheço, e que procuro a todo o custo vencer pela ausência. Um custo alto, resta‑me a certeza de que cada dia que passa é menos um que falta.

E agora este Eduardo: o meu advogado, o meu flirt, o meu amante das últimas horas. Vem para me baralhar... ciclicamente. Irrita‑me sentir‑me baralhada. Assunto sempre adiado. Fala‑me do seu trabalho, das estagiárias e das noites vazias na Kapital. Acha‑me triste. Diz‑me piadas a seguir a piadas para me fazer rir. Depois beija‑me. Muito. Sinto‑me bem perto dele. Estranhamente bem. É tudo um cenário de inconsequência. Uma relação coxa desde o princípio, mesmo assim baralha‑me. Mais do que na primeira vez, para varrer o Diogo, menos do que na próxima. Não dizia Nietzsche: "o tempo é um círculo, tudo se repete"? Tenho medo de sentir de novo esta perda imensa, prefiro a confusão organizada e sobretudo não ser forçada a decidir, a romper, a aceitar. Enfim, não fazer nada e de braços cruzados esperar que a vida decida por mim.

‑ Tens de alinhar ideias, Terezinha ‑ disse‑me o Eduardo, num serão à lareira.

‑ Parece‑te fácil?

Para o Eduardo tudo o que a razão mandasse era fácil.

‑ Esquece o Diogo, ele não vai sair de casa nunca. Não tem força.

‑ Também já não sei se é isso que quero.

‑ Ai não minha maluca! É só isso que tu queres.

Calei‑me por instantes. De facto, já pouca esperança tinha de encontrar alguém diferente, ou de tornar diferente este Eduardo tão previsível, ou o Diogo ausente e senhor de outra vida.

‑ Sei lá... Estou perdida. Não sei escolher caminhos. Os homens são todos uns cabrões.

‑ Continuas com um lindo palavreado, mas olha que há excepções.

‑ Há? Onde? ‑ perguntei eu. ‑ Ou estão casados, ou se são divorciados, têm sempre uma vaga nostalgia do passado.

‑ E isso torna‑os cabrões? Parece‑me que continuas a confundir cabronice com sinceridade!

‑ São cabrões porque nos fazem sofrer, porque têm sempre medo, porque fogem de compromissos e basicamente porque nós mulheres precisamos horrorosamente deles!

‑ Que parvoíce Teresa, tu não precisas de ninguém. já deste provas. És forte como poucas. E, acredita no que te digo: os homens precisam mais das mulheres do que as mulheres dos homens.

‑ Pois não parece! Precisam talvez da mulher submissa, que lhes prepara o jantarinho e lhes põe a botija na cama. Das outras, têm um medo horroroso. A mulher independente, despachada, senhora do seu nariz? Fogem a sete pés. Não sabem o que hão‑de fazer com ela. O macho sente‑se ameaçado, desde que a mulher saiu à rua e lhe deu com a porta na cara! Essa do forte faz‑me rir... Pára de pensar assim, Eduardo. Trata‑me como uma donzela romântica, fraca e desprotegida, que definha de amor. Mais valia.

‑ Já viste alguém morrer de amor? O que arde cura, filha! A única coisa que o amor não cura é a paixão. Protege‑te a ti mesma, não te deixes levar e sobretudo nunca acredites nas palavras. Falar, todos falam! Sabes quanto vale? Zero!

Calámo‑nos os dois e ficámos assim, longos instantes a olhar para a lareira.

‑ Gosto dos teus beijos. São quentes ‑ murmurou o Eduardo enquanto me apertava com força nos seus braços.

‑ Não servem de nada Eduardo. Queres que sejam vazios.

‑ Perturbas‑me Terezinha...

‑ Não é suposto Eduardo. Entre nós claras. Tu assim quiseste.

Sempre que me sentia aproximar do Eduardo, fazia um esforço para me lembrar das proibições que ele me impunha. Conseguia confundir‑me. Estava perigosamente mais perto do limite.

‑ Poucas coisas são supostas.

‑ Às vezes acho que me ensinas a vida.

‑ A vida vive‑se Terezinha.

E mais uma vez o Eduardo levou‑me para toda a sua sensualidade escondida. Tirou‑me de repente a saia curta, a blusa azul desmaiado, com um sorriso maroto a ralar a perversidade e aquele "brilhozinho nos olhos", num gesto repetido e maquinal mas sempre diferente... fui envolta pelos seus braços fortes, pelo seu cheiro amargo e doce, pela sua respiração ofegante e vazia de palavras, pela sua vontade desmedida; lúcida, infelizmente com a consciência crua de um acto tão inviável de emoção. Sentia‑me protegida, sentia‑me quente, sentia‑me desaparecer e transformar‑me num só corpo, numa só alma, como um redemoinho que leva tudo com ele. E quanto melhores, mais intensos e urgentes se tornam estes momentos, mais ténues e mal delineadas são as fronteiras entre sexo e amor; que horrorosa confusão, que terreno inóspito e surpreendentemente perigoso. Mesmo certa que depois só iam restar brasas na lareira, desejava, suplicava para dentro, gritava em silêncio, queria ouvir naquele momento de alívio e paixão disfarçada, queria ouvir mesmo, enquanto cansada me abandonava nos seus braços, que ele me amava. Nunca o ouvi, e fui aprendendo a nunca o esperar. Era mentira, ou verdade mascarada. Que importava. Claro que importava e muito. No depois, só isso importava.

Ficaram apenas brasas na lareira... Fui‑me deitar. Cansada. Torturada por tantos e repetidos actos inconsequentes... Triste, pela fraqueza da minha carne. Sugestionada? Se calhar não sei ter amigos assim... Esta espécie rara de amigos. Derreto‑me como a neve. Eu não quero isto, desta forma. Pesa‑me a consciência. Nem a mim me reconheço.

 

Falou‑me a Luísa. já não sabia novidades minhas há um ror de tempo. Os exageros do costume. Uma boa amiga que adora hiper‑valorizar as palavras e, mais grave, as acções.

Queria saber de mim e se havia notícias do Diogo. Respondi‑lhe o costume:

‑ Não sei nada dele ‑ disse, sem qualquer convicção...

‑ Já o esqueceste, foi? Quem é agora o sortudo?

Quem me dera, pensei...

‑ Não Luísa, eu só disse que não sei nada do Diogo e não sei mesmo.

- Não acredito que não tenha nem um telefonemazinho!

- Sabes que a mulher dele, tirou‑lhe o telemóvel! Pô‑lo de castigo!

‑ Grande coisa, ligavas para o Banco ‑ a Luísa arranjava solução para tudo! ‑ Já agora diz‑me, o que é que viste nesse Diogo?

‑ Nada e tudo Luísa. Encantou‑me. Não sei se foram os olhos, a voz, a poesia das suas palavras, a sua sensibilidade, a sua inteligência... Gostar é assim, não se sabe como, nem porquê. Aconteceu quando eu menos esperava, reconheço que este gostar é tão forte que dá conta de mim! Ninguém escolhe de quem vai gostar. Nos momentos bons e maus, gostar é sempre gostar! E nunca ouviste dizer que "tudo o que vai regressa"?

‑ Com grande sofrimento Teresa, reconheces, não?

‑ Reconheço, mas não há nada que o tempo não cure! que esta máxima me ajude, disse para comigo mesma.

‑ Então telefona‑lhe, não seria bom deixares de ser teimosa? Liga‑lhe, o que é que perdes?

‑ Nunca mais Luísa, o Diogo morreu!

‑ Não morreu não, menina! Ainda ontem o vi a sair do Doce Julião, ali na Baixa e parecia que ia para um enterro!

Mais uma saída surpreendente da Luísa! Nunca acreditei em coincidências, estes encontros imprevistos não acontecem por acaso. E com o Diogo, encontros desencontrados eram quase rotina.

‑ Também não deve ser fácil para ele Luísa, não sou só eu a passar um mau bocado.

‑ Não deve ser fácil? Não estás boa da cabeça! Facílimo! Tem os filhos, os chinelos ao fundo da cama e o jantar a horas na mesa. Facílimo é o que te digo! Se desistires, estás a dá‑lo de bandeja, à legítima.

A Luísa é assim. Irredutível e estupidamente pragmática. Ou sim ou sopas, não há hipóteses nem meios‑termos. É solteirona há anos, por pura convicção. Ou gostam dela 100% ou manda‑os à vida. Acabar sozinha não é motivo de preocupação, "pas de drame" diz, sacudindo a sua longa cabeleira loira, "antes só do que mal acompanhada" e dá‑me óptimos conselhos que só a ela não levo a mal. Pode‑me dizer tudo, permito‑lhe

todas as inconfidências, é tão diferente de mim como a água do azeite, mas acima de tudo um exemplo de coragem e determinação. A Luísa sabe sempre o que quer, como quer e vende a sua história como ninguém.

‑ Quando crescer quero ser como tu ‑ digo‑lhe, em jeito de brincadeira!

‑ Tu não sabes crescer. Deixas que cresçam por ti. És fortalhaça mas insegura. Um paradoxo, Teté!

Chamava‑me "Teté" como nos tempos em que andávamos no colégio de freiras, de aparelho nos dentes, borbulhas na cara e a farda azul desbotado, a imitar mini‑saia, à bulha pelo único rapaz que conhecíamos: o irmão da gorda da aula! Dávamos voltas intermináveis ao claustro, sem deixar que ninguém percebesse os nossos segredos e risinhos cúmplices, colávamos pastilhas no cabelo da melhor aluna, a "estúpida" da Paula e trocávamos infinitos bilhetinhos a uma velocidade absolutamente imparável, durante as aulas de Física. Chamavam‑nos unha com carne ou gémeas falsas, mas nós pouco nos importávamos, aliás a única coisa realmente importante era o toque das vinte para as quatro, passaporte para a saída, onde as hipóteses de termos alguém divino, sentado numa mota à nossa espera, cresciam potencialmente de semana para semana.

‑ Um dia vais ficar espantada Luísa, vais ver que aprendo a crescer.

‑ Se calhar nessa altura é que o Diogo vem. Nenhum homem gosta de mulheres neuras e deprimidas. Se tens problemas, suicida‑te, atira‑te da ponte. Estão‑se nas tintas para os nossos dramas. Querem o nosso corpo, c'est tout!

‑ Bolas Luísa, também não é tanto assim...

‑ Cresce e aparece Teté. Verás que tenho razão. Por isso é que eu não quero homem nenhum!

Fiquei a pensar se teria razão. Não quer homem nenhum? grande tanga! Quanto mais o diz, pior. Ela tem quase sempre razão nas suas verdades absolutas e inquestionáveis. Apesar de redutora, a Luísa é tramada. Faz‑me bem ouvi‑la. Conhece‑me como ninguém. Levo na cara, mas sinto‑me renovada. Será que também se engana?

 

Soube que o meu "ex" João foi ontem jantar a casa do Pedro. Não sei porque, aquilo irritou‑me. O Pedro é suposto ser meu amigo. Ou melhor, meio amigo, meio irmão. Daqueles que nunca, jamais, em tempo algum... Sou irrecuperavelmente ciumenta da sua amizade e até o simples facto de os imaginar a conversar de mim, ou de futuras noivas para o João, me transtorna!

Ao pé do Pedro, eu sou eu. Não jogo, não seduzo, não provoco. Ele entra na casa‑de‑banho e, se eu estiver no duche, fica sentado no banquinho para conversarmos. Não tenho pejo nem cerimónias com o Pedro: come do que houver, fico calada quando não me apetece falar, ou adormece comigo no sofá da sala, depois de um bom vídeo. Uma partilha, destas não pode ser violada pelo João. E como se quisesse entrar de novo na minha intimidade.

O Pedro separou‑se há um ano. Conheço‑o como as palmas das minhas mãos e nunca acreditei que isso fosse possível. Nem sequer pus em causa. Um casamento longo que sobrevive a todas as crises. Um dia telefonou‑me:

‑ Teresa, adivinha quem se separou?

Depois de me ver experimentar todo um leque infindável de possibilidades, confessou com uma voz soturna:

‑ Eu!

Engoli em seco e fiquei calada por uns instantes. Apanhou‑me em falso.

‑ Tu?

‑ Teve de ser ‑ disse quase em surdina.

‑ E agora?

‑ Não sei. Parece que vou ter de ficar uns dias em tua casa.

‑ Claro Pedro, vem quando quiseres. Já, por exemplo!

E o Pedro aí estava, de mala aviada. Alto e magro, levemente encurvado, sempre com os mesmos óculos redondos, por detrás dos quais se adivinham uns olhos azuis, muito azuis. A Luísa teima em classificá‑lo como totalmente "infodível" o que longe de ser pejorativo, revela exactamente aquilo que sinto por ele: nada mais do que uma profunda amizade.

O Pedro, aliás o Senhor Pedro Sacadura, trabalha para uma importante firma de construção civil. Está bem na vida. Colecciona quadros e móveis bons. Adora antiguidades. Ali à minha frente, o Pedro não tem para onde ir.

Bizarra e estranha a amizade. Ficou por uns tempos. Depois foi‑se embora. Arranjou casa, melhorou os ânimos. Dei‑lhe confiança. Tinha medo de não sobreviver ao Natal. Agora cede a jantarinhos com o João, vão juntos para a noite.

Continuamos amigos, claro. Conta‑me tudo, conto‑lhe tudo. Chama‑me palerma e diz‑me que valho muito mais do que penso.

O João jantou ontem com o Pedro, o meu amigo Pedro! Sinto nisto um estranho sabor a traição. O João preocupa‑me. Acho desumana tanta frieza. Não preciso de saber tudo o que conversaram. Curiosidade feminina. Não vou saber nada de nada, os homens fecham‑se em copas e daquela redoma não sai nem uma gota de informação, bem posso alegar a minha amizade! No fundo, o que eu gostava mesmo era que o "falecido" João tivesse saudades minhas. Se calhar a ciência não substitui tudo.

Tenho sono, mais um dia em que o Diogo não telefonou. É melhor nem os contar. Vão ser todos, todos, todos...

Amanhã vou almoçar com a Luísa. Carregar baterias!

 

Foi giro o nosso almoço. A Luísa falou, falou, falou. Não ouvi metade. Perguntou‑me o que queria a Cuca pelo Natal. É madrinha e sempre teve com ela uma afinidade especial.

Para a Cuca, a madrinha é assim uma espécie de fada, que vem para a salvar das situações mais inóspitas. Se quer "fugir" de casa, diz que vai viver com a madrinha, quando o quadro está negro suspira: ‑ Se não fosse a madrinha, o que seria de mim? Madrinha como a salvadora das Marés Vivas e antídoto para todos os males. Vê o vídeo da Gata Borralheira centenas de vezes e fica sempre fascinada com a transformação do vestido, do cão e da abóbora. A Cuca acredita em fadas e se elas não existissem, inventava‑as.

Quando as minhas filhas nasceram e se revelaram tão iguais, criando a sensação de uma enorme falta de imaginação, só a Luísa e eu as distinguíamos.

‑ A Minha é muito mais bonita! ‑ afirmava a Luísa com uma certeza inabalável!

Mas por falar em Natal, a Luísa decidiu ir passar o Natal a Évora, a casa da tia Graça. Ou melhor, a tia que ela adora e que me causa um certo fascínio.

Todo o almoço relembrámos a tia Graça, a força das suas palavras, o brilhantismo do seu exemplo. Não chorei o Diogo ausente, nem o Eduardo sempre fisicamente presente, nem sequer os amores e desamores da Luísa. Não, falámos de uma tia que não precisa de nome porque é de facto extraordinária! Noites e noites que nos ouviu, nos períodos conturbados da nossa adolescência. Dizia sermos o complemento uma da outra mas, no final, os nossos caminhos soltos não diferiam assim tanto.

A tia Graça tinha sempre alguma razão. Achava‑a uma tia nova, mas uma tia; agora vejo como nada tem de tia, e tudo o que nos fez ver era certo! Casou‑se cedo e teve de rajada quatro filhos. Moral católica? Talvez. Mas sempre soube o que queria, sempre agiu em consonância com os seus princípios. E isto o mais difícil. Os filmes cor‑de‑rosa, não são tão fáceis como parecem. Lugares comuns como ser boa mãe, boa mulher e boa dona de casa têm um custo elevado. A tia Graça é tudo isto e acima de tudo uma mulher do caraças! Nem hoje nem nunca nos deu conselhos. Fazia‑nos pensar. Chegar lá por nós mesmas. Descobrir o nosso valor e decidir. O mais importante era a passagem pelas decisões dificeis que se vão tomando.

Sempre que íamos a Évora fazia uma festa, não porque fosse dia de anos de alguém, Natal ou Páscoa mas porque adorava festas. A rapidez com que organizava um jantar para trinta ou quarenta pessoas, era desarmante. Os pratos, copos, talheres, toalhas e guardanapos saltavam dos armários com uma perícia invejável. À hora marcada lá vinha o famoso caldo verde, seguido de arroz de pato e pelos menos três sobremesas proibitivas. Todos ajudavam. Os quatro filhos cresceram naquela azáfama dos jantares, matanças e garraiadas e encaravam este virote da mãe com a maior das naturalidades. O que a tia Graça mais gostava, não era da festa mas sim, como ela dizia: ‑ o tirar dos sapatos. Depois de todos saírem, ou fazerem tenções de sair porque os mais facciosos acabavam por adormecer na relva, a tia Graça sentava‑se connosco à frente da lareira, já só em brasas e a noite recomeçava numa tentativa de refazer todos os planos, de juntar as várias peças.

A tia Graça tem uma capacidade superior para retratar estados de alma. Faz autênticas radiografias que assustam pela sua veracidade. Nunca a vi dizer mal gratuitamente, pensa que cada um tem uma alma e uma consciência e que o mal geral passa pelo olhar para fora e não para dentro. Apesar desta inquestionável seriedade de carácter, a tia Graça adora umas boas anedotas brejeiras, e sabe criticar uns sapatos de verniz bicudos ou uma gravata de gosto suspeito.

Os filhos adoram‑na numa relação próxima. Tratados como personalidades distintas e respeitados nesta diferença. Cresceram na província, envoltos por uma família tradicional que lhes passou o testemunho, na prática de uma vivência cristã, onde laços de amor são sempre laços de amor e como tal inquebráveis e únicos. Fortes nos seus valores, destemidos na sua fé, crentes dos seus ideais. Como todos os outros jovens: normalíssimos nas iras, guerrilhas e desavenças; tal como eles, o mundo acabava sempre que a Inês resolvia não emprestar a camisola à Maria do Carmo, ou que o Zé Maria fazia troça do cheiro entranhado de perfume no quarto do António.

Talvez o Diogo a venha a conhecer. A vida real estará tão para lá da ficção? Tudo o que aqui deixo, é apenas porque não consigo criar um espaço meu, neste desalinho de almas, de confidências de encontros adiados. Um dia, quem sabe?

Talvez faça sentido partilhar com o Diogo o monte, a sala quentinha, os olhos fundos, o ar distinto de uma mulher que sabe o que quer desta vida.

Talvez também venha a fazer sentido voltar com o Diogo àquela praia, em Setembro. No outro dia, outro e mais outro, em que me surpreendia sempre diferente, sempre virado do avesso. ‑ Vá lá, vire o seu saco do avesso. Não descobriu? Entre cremes e toalhas cheias de areia saltava um papelinho: "Entraste por mim adentro"! Um sinal e outro e mais outro. Ia deixando um rasto. ‑ Tem que se estar atento aos sinais. Indicam. Apontam. Não lhes vire as costas, Teresa.

Foi exactamente isso que o Diogo fez, virou as costas à vida, ingenuamente acreditei nesses mesmos sinais que ilustraram tão bem a relação relâmpago que nos tocou aos dois, com a mesma descarga eléctrica, contaminante, decisiva, brutal. Para logo desaparecer. Fugaz como um raio, deixei‑a escapar por entre os dedos.

‑ Deixe Teresa, rematava a tia Graça. O Diogo é.um homem. Aceite as suas decisões. É assim o amor. Injusto? Se calhar. Vozes mais altas se levantam.

De certa forma, invejo‑a. A família. Conseguiu construí‑la. Tenho pena de não ter podido dar à Cuca e à Marta uma família assim. O Diogo tem a sua, tal como a Tia Graça. Não a vou destruir. Remorsos, altruísmo, o que quiserem. A tia Graça serve‑me de exemplo.

É tempo de Natal. Tenho medo. Deus queira que passe depressa!

A Luísa vai a Évora, está fascinada com a prima Maria do Carmo. Cresceu dez centímetros em altura e em refilice. Está mais alta do que a Inês, mais popular e sempre decidida. Deu o pulo. Virou. Olha agora para a sombra. A Inês deixou de ser a única a ir sair à noite. No Sábado chegaram as duas às 6 da manhã!

Eu vou ficando por cá, a cobrir de branco o meu Natal. Fui dar aulas, a seguir ao almoço com a Luísa. Só falámos da tia Graça. É bom chegar perto de uma alma tão forte.

 

Estou torturada pelo Natal.

As miúdas ajudaram‑me a enfeitar a árvore. Fingi transbordar de espírito mas o nó apertava com força. A azáfama das compras é de fugir, ou pareceu‑me ainda mais de fugir este ano. Evitei. Tomei tudo de uma vez, quase de olhos fechados. O consumismo é de facto o mal da quadra, encobrindo todo o espírito subjacente. Ideais de pobreza, humildade e renúncia como aprendemos na catequese? Bolas. Está tudo invertido!

Sonhos de estrelas cintilantes, canções envolventes, crianças vestidas a rigor numa noite de Inverno? Passo ao lado. Represento. Para as minhas filhas, como para todas as crianças, o Natal é mágico. Sou forçada a partilhar dessa magia e fazê‑las acreditar que não estou só, que me preenchem totalmente, que a vida só passa por elas e com elas, apenas num sentido unívoco e pleno.

A Cuca jurava a pés juntos que o Pai Natal existia.

‑ Dizem que são os pais, mas não são, pois não?

Nunca soube o que responder. As crianças confiam plenamente em nós adultos, detentores de verdades absolutas. Tudo o que lhes digo é ainda inquestionável. Falei‑lhe do Pólo Norte, das renas e do frio, de um velho que lá vivia há muitos, muitos anos a quem chamavam Velho de Natal. Fi‑la ver a sorte que tinha de ter nascido Cuca tal como é. E como Cuca, poder sonhar com pilhas de presentes no sapatinho, com Jesus nascido em Belém, com a mãe que sabe contar histórias antes de adormecer.

Mesmo assim, não tinha resposta para a Cuca.

A Marta nunca pôs a questão. Tanto lhe fazia que o Pai Natal existisse ou não, desde que os presentes aparecessem ‑ tudo bem! Dramas filosóficos não eram com ela. Aliás, dramas de qualquer tipo, não faziam parte de si. Quem me dera este desprendimento da Marta. Muito tenho aprendido com ela. A alegria de viver, as suas gargalhadas sentidas, a vontade de conseguir chegar a tudo o que quer. Dor? Quando a sente, fecha a porta e chora aos gritos durante meia hora. Aquilo passa‑lhe, limpa os olhos à colcha da cama e sal do quarto de cabeça erguida. Boa, Marta! Que me sirva de exemplo!

O Diogo disse‑me que queria ter um filho meu. Numa noite amena, no final daquele Verão.

‑ Vou raptá‑la, miúda!

Desconfiei. Quem era aquele Diogo? Raptar‑me, que sabor a mistério. A aliança brilhava‑lhe na mão esquerda. Como diria a Luísa, o Diogo tem o irreparável "defeito" no dedo!

‑ Não seja teimosa, nem infantil. Quero que conheça o meu mundo.

‑ Mas Diogo, a sua mulher? Os seus filhos? Acha? ‑ balbuciei com a voz entrecortada pela emoção.

‑ Mulher? Filhos? Esquece miúda, esse problema é só meu. Passo às 5 horas em sua casa. Deu‑me um beijo sentido na testa, abriu‑me a porta do jeep, nem tive tempo

para reagir. E no dia seguinte, pontualmente, cumpria o combinado. Atirei uns calções e uma t‑shirt curtinha para o saco, o creme de noite, a touca do duche e o perfume. Era melhor nem pensar muito.

Atravessámos todo o Alentejo, cálido, imenso, de mãos dadas por cima da maneta das mudanças. Ouvimos músicas escolhidas para a ocasião: "Hey, if you happen to see the most beautiful girl in the world", cruzámos sobreiros velozes e planícies douradas, a perder de vista, como nós, no Range Rover do Diogo, perdemo‑nos da vista de todos. Até à vista, até à vista...

O Diogo deslumbrava‑me. O monte, os bezerros, o celeiro antigo, o burro velhote e o pastor alemão que nos dava as boas vindas em latidos consecutivos e bem‑dispostos.

A empregada antiga, cúmplice do patrão, recebeu‑nos com um sorriso disfarçado e desaprovador ‑ pois bem, o senhor Engenheiro lá sabia... O senhor Engenheiro que contasse com ela, dali não saía nada; pois a senhora coitadinha, os homens têm destas coisas. Vá‑se lá a perceber. O Tibério dela, o seu homem, às vezes também se perdia com garotas loirinhas, lá da terra, pois, os homens são como as ondas do mar ora vêm ora vão, paciência e saúde é o que é preciso, e os meninos coitadinhos, lá se criam, o senhor Engenheiro é um bom pai, lá isso é...

E o senhor Engenheiro tinha a sopa quentinha na mesa comprida da casa de jantar, fresca e austera do monte. Discretamente, a Alzira retirara‑se. Jantámos à luz pálida do fim do dia. O Diogo falou todo o tempo, eu mal conseguia engolir o entrecosto feito pela Alzira e se calhar ou de propósito envenenado, tal seria a sua fidelidade à patroa.

‑ Mas que ideia, poderíamos ter ido para uma Pousada, há tantas, tão bonitas. ‑ O Diogo fazia questão de me mostrar o seu feudo. A cama de dossel (que horror Ela deitava‑se sempre ali, a legítima), as portadas verde seco, o toucador Dona Maria, da bisavó. Não era o meu espaço. O Diogo transbordava felicidade por todos os poros. E foi com a maior das ternuras, que me agarrou suavemente pelas costas e me encheu o pescoço de beijos lentos e profundos. A seguir, como sempre fazia, desapareceu para surgir daí a cinco minutos em cena, com um toalhão imaculadamente branco à cintura. Pediu‑me que fizesse o mesmo. Reapareci de lingerie cor de tijolo!

‑ Uauh, princesa! Não sei se sou digno. Que honra, e que sardas e que decote e que corpo... ‑ quase pensei que era verdade.

E a cama de dossel deixou de existir, assim como a cómoda, as portadas, o solar e todo o Alentejo. Ficámos nós os dois, num só momento que jurámos ser eterno, perdidos, apaixonados, sôfregos. Quando o Diogo me confessou ao ouvido que queria ter um filho meu... Assim, desta forma tão completa e irresistível. E era eu Teresa, e o Diogo, o seu perfume, os seus cabelos lisos, e a minha cabeça andava à roda, à roda sem parar, uma e outra vez, até a noite ser dia e esgotados adormecermos depois de em surdina pronunciar as últimas três palavras que suavemente segredava, afastando os meus cabelos da testa, tão baixinho tão baixinho, que só nos lábios lhe consegui ler: ‑ Adoro‑te ouviste, miúda?! ‑ E eu acreditei, acreditava sempre nestas palavras tão ao jeito do Diogo, rematadas com um beijo paternalista na testa. Sentia‑me amada para sempre. Era assim o princípio, eu também queria ter um filho dele, queria muito, porque o amava como não seria possível amar ninguém.

Mentira, tudo mentira, o Diogo bem casado, outra família, três filhos, uma história toda do avesso. Teresa, só. Havia a Cuca, havia a Marta, a minha casa de Lisboa.

Que grande privilégio este. Afinal ruiu o baralho de cartas, se houvesse uma esperança, enfim... Acalentada talvez pelos olhares indiscretos da Alzira, acalentada talvez pelo sabor a mar que sempre tinham os beijos do Diogo, acalentada talvez pelas

suas palavras, que saboreio hoje, amanhã, numa eternidade.

Não há maior prova de amor,

Já lá vai esse tempo, já lá vai a esperança. Nada que me toque mais fundo. Gerar em nós um filho, porque o desejamos como prova de carne e osso do nosso encontro, da intensidade do nosso amor, sem medir consequências, sem prever o futuro é um acto selvático de loucura, mas envolve, pesa, tem força como nenhum outro. Pelo Diogo seria outra vez capaz.

Agora, Jesus também vai nascer. Mais um sonho de Natal.

Vou ficar quase sozinha neste Natal. As miúdas vão para casa do pai. Passam o dia 25 comigo...

Tenho medo.

O Natal é branco? Parece‑me cinzento escuro!

 

Uff, o Natal, fim do ano, reis... Já tudo passou. Que alívio! Ficámos recolhidos em Santarém, nas Olaias, solar antigo da minha avó Salomé, onde as paredes contam histórias, impregnadas que estão de memórias de outros tempos. Vozes passadas que ainda se ouvem, como um eco surdo quando subimos a escadaria de pedra, emoldurada por dois corrimões de ferro antigo. Parece que veio a avó Salomé, apoiada na sua eterna bengala de cabo de prata, sempre acompanhada pelo distintíssimo Nilo, basset de estimação, já tão idoso como a dona, de pêlo ruço e orelhas brancas caídas, em sinal de total submissão.

A avó sabia o que queria. Severa e determinada, de profundos olhos verde‑esmeralda e cabelos brancos, mesmo brancos, que enrolava numa trança grossa atrás, na nuca.

Um dia, quando eu ainda era rente ao chão, descobri‑a a pentear‑se em frente ao espelho de mármore rosa. Os cabelos compridos, desiguais, chegavam‑lhe a meio das costas. Não me pareceu possível uma avó tão diferente. Desde então, adorava vê‑la nesse ritual.

Os pentes, pelo menos três de formas e tamanhos diferentes; uns de cabo de tartaruga, outros de prata com as suas iniciais gravadas. Depois, tinha uma extensa colecção de espelhos de todos os feitios que estranhamente davam a mesma imagem, antagónica, mas sempre igual, da avó de mãos sardentas e enrugadas e da neta de mãos pequenas e unhas roídas. Prometeram‑me uns patins novos se não as roesse. Nunca me deram os ansiados patins, nunca deixei de roer as unhas. Mas os espelhos, os pentes e os minúsculos frasquinhos de perfume, ficaram para mim. Cá estão, em cima da minha cómoda nas Olaias, como testemunho vivido de uma avó que nos marcou a todos os vinte netos e trinta e cinco bisnetos, com os estigmas da sua personalidade, a força da sua presença, o brilho da sua história.

Ali, nas Olaias, sentada nos degraus soalheiros, perdi‑me na distância imensa que ainda me separava do Diogo. Adorava que ali estivesse. O lago oitavado, onde nasce e se impõe uma elegante menina de pedra, as palmeiras seculares e as olaias adormecidas por anos e anos em que testemunharam segredos e confidências da nossa gente, projectam as suas sombras na terra batida do largo. Nos bancos verdes de jardim, imaginamos gerações seguidas de gerações, contando histórias iguais às nossas, tão estranhamente iguais que nos fazem relativizar a importância que damos aos nossos pequenos grandes dramas.

Sentada ao sol de Inverno, nem dei pela presença do Pedro.

‑ Então marquesa? Ainda aí a olhar para ontem?!

‑ Relembrava a avó Salomé. Tenho saudades dela...

Certas alturas sentia‑a mais presente do que nunca.

‑ Olha que se ela aqui estivesse, a Marta de certeza que não fazia pinos em cima do sofá da sala!

O Pedro conhecera bem os tempos áureos da dinastia da avó Salomé, em que ninguém ousava infringir a mais pequena das regras.        

‑ Oh! A avó ia adorar a Marta. Eu conhecia bem as suas preferências! ‑ Porque te adorava a ti, Terezinha.

       ‑ Se calhar.

       ‑ Pois ‑ concluí, numa palavra vazia. Sabia perfeitamente que na presença da avó, tudo seria diferente. As nossas atitudes não dependiam só de nós, teriam que seguir um percurso diferente. Aquela Senhora tinha o estranho poder de mudar o curso dos acontecimentos...

       ‑ Estás arrependida? 

       ‑ Nem por isso, mas nesta época custa mais.

 

E o Pedro lá se saiu com a pergunta chave:

       ‑ E o Diogo?

       ‑ Nem sei...

       ‑ Ainda esperas por ele?

       ‑ Não.   

Pensava exactamente o contrário. Quem me dera de novo aquele Verão alucinante, os bilhetinhos no meu saco de praia, o romance no Alentejo numa noite proibida. Parece ontem, parece hoje. Parece agora.   

       ‑ Homens há muitos, não desesperes...

       ‑ Não quero homem nenhum, Pedro.

       ‑ Mentirosa!

       O Pedro apanhava‑me nas curvas. Sempre a picar‑me; adorava o tema Diogo porque achava todo este romance inacabado absolutamente inacreditável.

       ‑ Devias sair mais com o teu amigo pianista.                    

‑ Quem? O Álvaro?   

       - Sim, aquele que dava aulas na tua escola.

       - Talvez - suspirei - mas para quê? Mais um melga a moer-me o juízo!

       - Os músicos não são melgas, são diferentes, se calhar até era uma boa solução!

       - Solução? Solução é o resultado de um problema, filho. Isto não é uma questão de arranjar uma solução, caramba!

       - Ver-te infeliz, a suspirar sempre pelo homem errado é que não me parece ser uma boa solução, marquesa. Pelo menos esse Álvaro distraía-te.

       - Levava-me a passear, queres tu dizer, e depois começava a babar-se, a olhar para as minhas pernas, a dizer tangas atrás de tangas e lá me convencia, se estivesse inspirado, a ir beber um copo a casa dele porque até, imagina tu, já tinha posto lençóis lavados na cama! Francamente Pedro, a história da Carochinha como um saudável divertimento. Já enjoa. Manter o Àlvaro por perto, mas longe ao mesmo tempo, ainda é como tu dizes a melhor solução!

       Fui disfarçando. Fugia das situações que me comprometessem, mesmo do Pedro. De facto, o Álvaro estava hibernado em mim. Ainda não tivera coragem de analisar esse episódio da minha vida. não o percebi. Foi uma amizade construída entre toques de saída e toques de entrada, com cafés bebidos à pressa e almoços engolidos na cantina fria e impessoal do liceu.

       Depois, saltámos o muro e fomos partilhando conversas Beethoven e Mozart, escalas, concertos, anedotas de orquestra, vozes, luzes, público, ensaios e aplausos.

       Rimos, rimos muito. O Álvaro era desconcertante. Intenso. Com uma alma grande e uma capacidade inigualável de me pôr bem-disposta.

       Falei-lhe do Diogo. Ele contou-me a história de uma violinista chamada Rebecca que amou por detrás das pautas de música, sem dizer nunca uma palavra.

Quando olhava dizia tudo, porque mais, era impossível. Depois voltou para a Rússia, integrada na Orquestra Nacional. Nunca mais a viu.

Há sempre um fim. Mesmo quando nunca começou. O que inventamos é vivido com maior intensidade pela emoção que nos transporta até lá, onde não se conhecem limites.

O Álvaro também sabia falar a sério. Encontrar esse outro lado do Álvaro não era fácil. Cheguei lá. Tinha tiradas rápidas mas profundas, que podiam passar desapercebidas se eu não fosse uma ouvinte atenta.

Criámos uma espécie de vício, de dependência. Às quintas‑feiras ele ia ao Liceu. Eu arranjava‑me melhor. Não sei porquê. Queria encantá‑lo, embora não soubesse se seria sensível às minhas feitiçarias.

Nem hoje sei. O Álvaro nunca me contou. Vamos jantar às vezes, ainda. Choro no seu ombro. Faz‑me festas nos cabelos e diz‑me que tenho alma. Como a música. Sinto que não sei nada dele. Que sabe tudo de mim. Como a música. Eu não a leio do mesmo modo.

Vou‑lhe telefonar a desejar bom ano. Afinal é mais um amigo. Deus queira.

Não é especial como o Diogo. Ninguém o é. E eu não tenho inspiração como o Álvaro.

Mas com ou sem inspiração, desconfio que o Diogo gosta de mim da mesma maneira. Ontem não pensava assim, amanhã provavelmente também não. Inconstantes, estamos todos desajustados. À toa. Escolheu‑me de um modo tão inconsequente, essencialmente por aquilo que sou e pelo que se consegue ver através de mim. Qual era o deus responsável pela inspiração artística?

 

A Luísa contou‑me uma história inacreditável! Nada de que eu não suspeitasse. Andou a esconder um romance surrealista durante quase um ano. Proibido, suspeito, difícil de acreditar.

Conheceu um pintor. Francisco Geada.

‑ E então Luísa? ‑ quis eu saber, numa daquelas noites, em que nos espojamos sem sapatos no meu sofá, prontas para passar horas e horas em confissões proibidas.

‑ Enfeitiçou‑me.

‑ Como, porquê? Conta‑me tudo.

‑ Começou numa exposição. Fui com uns amigos a uma galeria de arte onde expunha os seus quadros. Gostei daqueles olhos cinzentos rato, dos cabelos lisos e muito escuros, da pele morena. Pareceu‑me um cigano, Teresa. Daqueles ciganos batidos pela vida, curtidos pelo sol, que nos contam histórias de rua, da dureza dos tempos, da sorte e do azar, da tradição e da algazarra, dos dias movimentados por gente que segue o sol e as estrelas. Aprendeu a ser homem a pontapé. Sobreviveu, porque se foi levantando a tempo, até acontecer reparar em mim.

‑ E era mesmo cigano? ‑ perguntei inocentemente.

‑ Era e não era. Na pintura era, na vida não.

Que confusão, pensei incrédula.

‑ A pintura é um escape. Pinta um reflexo do que vai vendo: mulheres, ambientes, partes de corpos, pinceladas ao acaso, às vezes. De uns gosto, de outros não tanto. Estão lá partes do Francisco. É giro descobri‑las.

‑ Mas conta! Como chegou a ti? ‑ estava desejosa de saber.

‑ Fomos almoçar à Estalagem de Colares. Um lugar recatado e calmo. Distante de tudo. Era pouco provável sermos descobertos... Conferir ideias, percebes? Apaixonei‑me pelas suas mãos escuras. Nunca vi umas mãos assim. Falam, têm vida própria. Não consegui desviar os olhos nem um minuto. Foi‑me deixar a casa. Despediu‑se com um beijo frio. Seguiu, sem se voltar para trás. Vi‑o acender um cigarro e encostar‑se àjanela do carro com o olhar perdido. Não percebi se tinha gostado, se era para continuar.

‑ E depois? Telefonou‑te?

‑ Calma Teresa, não sejas apressada. Senti‑me perdida pela primeira vez. Apetecia‑me ligar logo para o telemóvel. Resisti e tornei a resistir. Durante uma semana não soube nada dele. Ou melhor: ia sabendo, pela secretária da galeria, a Dulce. Sabes? Aquela miudinha loira de olhos azuis que mora no prédio ao lado do meu.

‑ Tenho uma vaga ideia ‑ respondi, nada interessada na Dulce.

‑ Discretamente, ia tentando sacar nabos da púcara! Sim, achava que tinha um caso com uma jornalista do Público. Não, não vivia com ela nem era apologista de coisas sérias. Sim, muito, mesmo muito mulherengo. Dado a neuras? O mais possível; teve uma depressão enorme quando soube que não fora aceite na galeria de Nova Yorque, e que a ex‑mulher tinha ganho o concurso de chefe de serviço na repartição onde trabalhava. Sempre se sentiu inferior. Sem razão Teresa, ele é o máximo!

Os olhos da Luísa não mentiam!

‑ Está claro, Luizinha, para ti ele é o máximo! E depois? Continua...

‑ Bom, passado uma semana ligou‑me. Pediu‑me para ir ter com ele a Miraflores, a casa de um amigo. Não queria levar‑me no carro porque tinha medo de ser apanhado comigo, alguém podia ver‑nos num sinal vermelho. Não percebi, mas fui.

‑ Meu Deus... Porquê? Quase não o conhecias. Podia sair‑te um tarado!

Pensei naquele momento, que a história estava a ficar bem mais emocionante do que o previsível.

-... Ainda hoje não sei porque é que fui. O desejo era maior do que eu... bem - disse, depois de um suspiro fundo.

‑ Chegaste lá e depois?

‑ E depois ele abraçou‑me com força e ternura, um abraço que não acabava. Fiquei com a cabeça às voltas, confesso.

‑ Mas a casa, como era a casa? ‑ a minha eterna curiosi­dade ...

‑ Cheia de quadros; uns dele, outros não. Uma boa lareira já acesa, montes de fotografias dos netos do tal amigo. Uma cama enorme, rodeada de espelhos. E, olha... não reparei em mais nada, só que tocava uma ópera de Verdi. O Francisco serviu‑me um whisky e sentou‑se na poltrona com o copo na mão e o olhar fixo em mim.

‑ Pronto, já se está mesmo a ver o desfecho... Só não percebo porque é que não te levou para casa dele. Se vivia sozinho, não precisava de invadir o apartamento do amigo.

‑ Nem penses Teresa, foi tudo muito mais complicado do que isso. Tinha um medo imenso de ser visto comigo, como se eu fosse o diabo, imagina!

‑ Mais complicado como? Levou‑te para a cama e pronto!

‑ Não, não foi assim, foi pior... ‑ a Luísa ficou calada e muito séria por uns breves instantes.

‑ Pior? Maricas não é de certeza! Bateu‑te? Fez‑te mal?

A Luísa ia abanando a cabeça tristemente.

‑ Mandou‑me deitar no sofá da sala e disse‑me para subir a saia.

‑ E tu?‑ o pior estava para vir, pensei eu, morta por que toda a história fosse apenas um pesadelo.

‑ Eu? Subi. Queria desesperadamente agradar‑lhe.

‑ Parva!

‑ Então ficou um minuto em silêncio, enquanto fumava calmamente um charuto e dava uns vagos golos no seu whisky. Por fim, disse que eu era linda, que tinha umas pernas fabulosas.

‑ Não fez mais nada? Não acredito!

‑ Sentou‑se então no sofá ao pé de mim e deu‑me um demorado beijo na boca. Passou os dedos devagar pelo meu peito e assim ficou durante duas horas em que me falou de pintura: dos impressionistas, dos museus, dos pincéis que usava, das suas cores preferidas, de Lisboa e do rio. Falou, falou, falou... Quase não ouvi. Só a última parte em que disse que eu era proibida.

‑ Porquê? ‑ perguntei sem perceber.

‑ Porque tenho menos vinte anos do que ele.

‑ E o que é que isso tem?

‑ Acha que não deve. Que não tem o direito de me violar!

‑ Violar? Cada vez percebo menos! Acha‑se pedófilo é ?

‑ Olha Teresa, eu também não quis perceber, mas aceitei. Que remédio. Depois de fazer de conta que o ouvia, pediu‑me para me ir embora, dez minutos antes dele, para que ninguém nos visse juntos.

‑ E tu obedeceste, claro!

‑ Fiquei perplexa mas arranjei‑me e saí.

‑ E a despedida? ‑ ainda me restava alguma esperança de que as coisas se tivessem composto.

‑ Disse que eu era uma menina de cueiros mas que tinha graça pela minha jovialidade. Depois, deu‑me o mesmo abraço apertado e suplicou‑me para que saísse sem barulho. Abriu a porta do apartamento, certificou‑se de que ninguém estava no hall, chamou o elevador e ainda acrescentou que me telefonava um dia.

‑ Que te telefonava um dia?

‑ Sim, um dia qualquer. Fui para o meu carro e não parei de chorar até chegar a casa. Sentia‑me incapaz de tudo. Não sei mesmo onde fui buscar forças para guiar...

‑ Devias ter ido logo ter comigo... Também Luísa, o caso não me parece merecedor de tantas lágrimas. Tendo em conta que mal o conhecias, a coisa podia ter sido bem pior.

‑ Pior? Sabes lá o que é desejar alguém desta maneira, sem poder mudar o rumo dos acontecimentos.

‑ Oh Luísa, por amor de Deus, também não é tanto assim. Tu tens todos os homens que quiseres, é só mais um tarado! Nunca mais lá voltaste, espero!

‑ Nunca mais o tirei da minha cabeça, Teresa. Passei noites a fio sem dormir, ouvia a sua voz suave e lenta cheia de "erres", sentia o seu cheiro forte, o hálito a tabaco, o desejo que escondia. Imperfeito em mim, incompleto ainda. Tinha que o conseguir. Era uma questão de honra!

‑ Honra? Essa é boa. Honra foi o que tu não tiveste!

‑ Querer desta forma e não ter é uma questão de amor próprio, se quiseres. Tinha de conseguir. Voltei, passado uma semana. À mesma hora, no mesmo dia. A história repetiu‑se. Do mesmo modo, do mesmíssimo modo: o tal abraço forte, o beijo, o subir das saias.

‑ Tudo igual? ‑ perguntei, consciente de que a Luísa não desistia nunca.

- Mais ou menos. Dava passos em frente. De cada vez que lá ia pedia‑me para tirar uma peça de roupa. Até ficar nua. Ao fim de um mês queria‑me totalmente despida, deitada no sofá, enquanto bebia o eterno whisky e fumava um charuto cubano que, percebi, o descontraía.

‑ Mas a tal Dulce, secretária da galeria, não dizia que ele era um mulherengo? Que andava com a jornalista do Público? Duvido que alguma se sujeitasse a essas fitas.

‑ Era exactamente isso que me confundia. Tinha tomado o Francisco por um autêntico Don Juan. Mas não me importava, nem com as outras, nem com a jornalista do Público. jurou‑me que não existia ninguém. Quis acreditar nele. Por isso era desconcertante toda esta situação. Porque é que comigo não funcionava com a naturalidade de um qualquer romance sem consequências?

‑ Porque percebeu que estavas apaixonada e teve medo.

‑ Não Teresa, de facto apaixonei‑me por aquela imagem, mas acho que o Francisco teve um medo imenso de se apaixonar por mim!

‑ Ummm! Duvido! É muito batido para isso.

‑ Talvez, mas houve um dia em que me falou da paixão. Disse que na idade dele não havia casos ou paixonetas; havia gajas ou grandes paixões e era disso que fugia.

‑ Achaste que era contigo?

‑ Todas temos a mania de pensar que somos nós que mudamos os homens e que somos nós as únicas capazes de os apaixonar. Já não acredito em contos de fadas Teresa, mas que mexi com ele, disso, tenho a certeza. Deve ter tido medo de mim e que eu lhe desorganizasse a vida. Cobardola!

‑ Não te iludas Luizinha, nem confies nele.

‑ Iludi‑me Teresa. Iludi‑me que havia de o conseguir, custasse o que custasse. Por isso, semana atrás de semana, respondia aos seus pedidos, ia para o castigo quando ele me mandava, não ia quando não me queria lá. Nunca lhe telefonei, mas chorei noites a fio agarrada à minha almofada, sem contar nada a ninguém. Chorei, por não o ter inteiro e sem perceber onde tinha errado. Enfiada numa tela de aranha sem ver a saída, sofri como nunca, por uma situação que continuava tão inacabada como no primeiro dia.

‑ E o cenário? Era sempre o mesmo apartamento em Miraflores?

‑ O mesmíssimo. Nunca mais me levou a almoçar ou a jantar fora. Continuava com medo de ser visto comigo. Nunca me telefonou para o emprego, só para o telemóvel a horas impróprias, para que ninguém me ouvisse falar com ele.

- E não conseguiste pôr um ponto final?

- Só um ponto e vírgula. Tentei interromper, mas ele voltava à carga e não tive forças para o recusar. Viciei‑me nos seus beijos quentes, na forma como me tocava, no prazer inacabado que me conferia. Conhecia todas as partes do meu corpo. Brincava com elas e deixava‑me viajar até mundos impossíveis que nunca pensei existirem dessa forma. Continuava a sussurrar‑me ao ouvido como eu era linda, perfeita, escultural.

‑ Até parece que nunca te viste ao espelho!

A Luísa encolheu os ombros e não respondeu. Depois, deixou sair tudo de uma vez:

‑ Mas nunca, nunca me tocou de outra forma, com mais substrato, com uma finalidade diferente que não fosse a de enaltecer o meu ego. Também nunca me quis pintar. Dizia que eu era imortal de qualquer forma, não precisava de me passar para a tela. No dia em que o fizesse, era sinal de que tínhamos chegado a um fim. Levava‑me ao colo para a cama, e nos seus olhos via um brilho quente de felicidade. Não me deixava mais levantar. Dizia que eu era uma apressada e não parava quieta. Chamava‑me enfant terrible. Pedia‑me para trazer roupa diferente. Óleos ou cremes de aromas diferentes, sempre diferentes para espalhar no meu corpo e no dele, e assim passar horas perdidas a inventar brincadeiras novas, a encarnar personagens: a menina de escola, a professora açoriana, a criada de bar, a massagista tailandesa, mas para nunca lhe mostrar que tinha prazer. Era errado, explicava: se a mulher numa escala até dez tinha prazer oito, devia dar a perceber ao homem que só tinha prazer seis; desta forma aumentava as hipóteses de empenho, para chegar aos inatingíveis dez. Adorava as minhas gargalhadas, que não percebia serem fingidas. joguei com todas as armas que tinha. Nunca me mostrei triste ou decepcionada, mas mesmo assim não o consegui ter.

- Só me admira porque é que não me contaste. Não deve ter sido fácil! Esse teu Francisco saiu‑te um autêntico voyeur!

‑ Nunca arranjei coragem para falar disto. As semanas passavam‑se lentas e iguais, numa contagem decrescente para a hora H. Estive anestesiada durante um ano. Não fui capaz de olhar para mais ninguém, dominou‑me totalmente. Fazia de mim o que quisesse, que na prática era quase nada. Tornei‑me submissa, totalmente controlada por ele.

‑ Tu? Submissa? Bolas! Esse homem deu‑te a volta. E de que é que falavam?

‑ De tudo e de nada. Eu representava quadros fictícios. Ele falava. Aprendi a ouvir. A tentar perceber algum fragmento dele. Era difícil. O Francisco só dizia trivialidades: as pedras que escolhera para o chão do atelier, o carro que tinha de ir à revisão, os problemas com o dono da galeria. Fazia tempestades em copos de água e tudo era motivo para neura. Tudo era alibi para não estar feliz. Tão simples como isto.

‑ E sentimentos, emoções, enfim... do mais profundo, falava?

‑ Nem pensar. Era muito hábil a disfarçar afectos. Conversa tabu. Nunca descia de um discurso superficial e vazio que não me interessava em nada. Enquanto falava, falava, eu estava longe, perdida a olhar para dentro dele e a tentar descobrir outro homem, outro Francisco que teimava em esconder‑se de mim. Adivinhava‑o no gesto de pegar no charuto, na maneira como puxava o cabelo para trás, no retrato que se desenhava no seu olhar. Palavras cheias, vividas, transfiguradas pela força de alguma qualquer emoção, não existiam ou então eu não as conseguia ler.

‑ Mas sentias pelo menos alguma cumplicidade? Algum futuro numa relação assim tão perversa?

‑ Vivia o momento Teresa, e queria ganhar, queria sair vencedora.

‑ Ou seja: querias que ele se apaixonasse por ti!

‑ Se calhar...

Apesar de tudo, conhecia muito bem a Luísa. Determinada como sempre fora, predestinava‑lhe um sofrimento ainda maior. Isto não ia acabar bem. Era um braço de ferro. e a Luísa não desistia.

‑ A relação deixara de evoluir, Teresa. Estava estagnada nos mesmos gestos, no mesmo desejo que começava e nunca se cumpria. Só mudou o teor da conversa.

Começou a contar‑me todos os pormenores explícitos e concretos das alcovas onde tinha andado. Pareciam agulhas que se espetavam em mim. Eu não queria saber, nem sequer imaginar. Ele insistia que não tinha segredos comigo e que gostava que eu o ouvisse de uma forma clara e concreta para que não restassem dúvidas de que era um homem maduro e experiente.

‑ Essa dá‑me vontade de rir. Contigo não foi, ou então já não era capaz. Isto é tudo uma enorme promiscuidade Luísa.

‑ Talvez... Tinha de o ouvir. Enquanto estivesse entre as quatro paredes daquele apartamento, tinha de o ouvir. Tentava desligar mas o assunto prendia‑me como um abismo. Forçava‑me a ensurdecer, por dentro e por fora. As suas palavras feriam como lanças e cada vez era maior o meu ódio e a minha total submissão.

‑ Até que te fartaste, não? ‑ perguntei, desejosa de um happy end, pelo menos!

‑ Não. O mal foi esse ‑ e a Luísa parou de falar por uns instantes. Ajeitou o cabelo e continuou numa voz pausada e triste.

‑ Soube pela Dulce da galeria, que ia ser pai.

‑ Pai? Como? ‑ admirei‑me, sem dar demasiada importância a um facto, que nem me passou pela cabeça ser verdade.

- A jornalista do Público estava grávida – balbuciou a Luísa entre soluços.

‑ Há males que vêm por bem, Luizinha... Depois de toda aquela história já nada me conseguia surpreender. Se o final não fosse este, seria outro bem pior. Previsivelmente pior. Ainda aparecias a bolar no Tejo com uma meia amarrada ao pescoço. O teu pintor é no mínimo perigosíssimo! Mas conta‑me: pelos vistos ele mantinha uma vida dupla!

‑ E inviável, Teresa. Só que nunca me fez crer que ela existisse. Nem por uma só vez me falou da tal Guiomar.

‑ Claro que não. Não há pior cego do que aquele que não quer ver! Parece‑me lógico que nunca abordasse o tema. Ele é uma raposa velha, não te esqueças!

‑ Se eu tivesse a cabeça fria, não entrava neste folhetim. Mas perdi o controle da situação. Até ser forçada a acordar com um balde de água gelada.

‑ Disseste‑lhe que sabias de tudo? ‑ custava‑me a crer, como a Luísa sempre tão segura e decidida, se tinha deixado levar desta forma absurda e brutal.

‑ Nunca mais falei com ele. Não voltei a atender as suas chamadas. Olhava para o número e contava até três para reunir forças. Depois, desligava o telefone. Fiz isto durante uns tempos largos. Desistiu.

‑ Ficou com a tal Guiomar?

‑ Não sei, nem quero saber. Não voltei à galeria. Presumo que estejam juntos. Deve sentir‑se culpado. Imagino a neura...

‑ Não vais querer consolá‑lo, pois não?

‑ Durou um ano Teresa, agora chega. Ia‑me destruindo. Corroendo a minha intimidade. Tudo tem um fim. Foi agora.

A Luísa perdera a vivacidade e o brilho que lhe conhecia. Tive pena. Desiludiu‑me esta história. Não a sabia capaz de protagonizar uma aventura tão negra, tão inverosímil. Senti vontade de a recuperar, de a fazer renascer. Sei que se levanta por ela. Vai conseguir. O Francisco Geada seria o seu fim. Ainda bem que o destino foi outro. Apetecia‑me agradecer à tal Guiomar o que fez de bom pela minha amiga. O tempo encarregar‑se‑à de tudo o resto. E de devolver‑me a Luísa, igual a sempre.

Acaso? Desencontro? Vamos ver se ficou resolvido. Melodramas folhetinescos que às vezes até acontecem. Nunca connosco, mas chegam tão perto, tão perto que arrepiam pela sua proximidade.

 

Recomecei as aulas. Não com muito ânimo. Pergunto: Até quando? Até quando? Até quando? Mesmo assim, conformada com a dureza da realidade, a vida segue o seu curso. Digo a mim mesma vezes sem fim de que esta é a melhor opção: vencer o Diogo pelo silêncio. Não juro que vou aguentar sempre... Amanhã é outro dia.

Recomecei as aulas, ainda com a alma em luto pelo Diogo. Não posso nunca deixar de me lembrar de todos os instantes fugazes que fomos partilhando numa plenitude única, marcada umas vezes pela discrepância de emoções e ritmos, outras pela total e absoluta comunhão de ideias e sentimentos.

O fim, quase definitivo, aconteceu numa tarde bonita já em Outubro. Fomos à Comporta num sábado cheio de sol. A família, a outra família do Diogo dera‑lhe mais um dia de folga. Aproveitava sempre estes momentos calmos para partilhar com o Diogo o que se desenhava cá dentro.

‑ E agora Diogo? ‑ disse sem o olhar nos olhos, fingindo-me perdida no areal imenso, nas gaivotas já em terra, nas pessoas que se acotovelavam no Aqui há Peixe, para conseguirem uma mesa ao sol.

- Miguel não te esqueças de mim! Uma mesinha para dois, jà, jà escolhi o peixe. "Tás muita bom Miguel"? ‑ ria despreocupadamente, cumprimentando o proprietário com palmadas amigáveis. O Diogo voltava a mim: ‑ E agora, Teresa? Dê‑me uma semana. Uma semana para tentar perceber tudo. Tomar coragem Teté, são doze anos e há crianças. Conheço‑a há tão pouco tempo, tem o sabor de loucura o que me pede. Não sei se... Olhe por favor, uma imperial bem fresca e para a senhora uma água sem gás. Percebe? Não é fácil.

O Diogo falava com uma frieza inexplicável. E prosseguia:

- Viver sem si, também não é fácil. Mas é possível, tudo se consegue. Se vivi até aqui... renunciar, claro que custa. Se fôr esse o caso.

- Custa Diogo? Acha que é só, custa? Quer‑me por aí, perdida nos braços de outro qualquer?

- Quantas vezes já lhe disse Teresa, que você é espectacular, gira, inteligente, divertida, uma mulheraça em todos os sentidos. Com a sua cara, o seu corpo, o seu ar de miúda pequena e o seu espírito forte, não há‑de faltar quem a queira. E para além de tudo, a questão não se põe entre ser eu ou outro gajo, pode até preferir ficar sozinha.

‑ Bem, Diogo? Quantas vezes já ouvi essa conversa, as verdades de Monsieur de la Palice, sozinha, consigo em casa, no conforto da família, e eu apaixonada por si... Não me está a ver ad‑eterno como "a outra", a amante...

Os carabineiros à minha frente permaneciam intocáveis, não tinha a menor fome. O Diogo já ia a meio do segundo, deliciado.

‑ Realmente, aqui o nosso Miguel continua a ter o marisco fresquíssimo ‑ desconversava. ‑ Coma Teresa, não se porte agora como uma menina mimada. Eu não disse nada em definitivo. Tente perceber que, quando as pessoas se cruzam na vida é sempre por alguma razão, não é à toa que a conheci, que a procurei, que a seduzi e que me deixei seduzir. Vivemos momentos lindos, é indiscutível. Qual a razão? Ninguém sabe; para nos sintonizarmos, para vivermos "entrelaçados" durante estes meses, para ganhar confiança em si. Provavelmente ficámos mais fortes, mais reconstruídos, mais ricos por dentro. Nunca deve confundir a proximidade espiritual com a paixão. Poderemos seguir um dia caminhos paralelos, despertados por uma inquestionável paixão mas que, daqui a uns tempos, não passa de um confronto e equilíbrio de almas. Provavelmente, noutra vida qualquer, fomos almas gémeas, eu fui, imagine, seu pai, seu tutor, seu irmão se quiser assim.

Eu teimava:

‑ Não Diogo, não me venha com histórias de reencarnações para justificar o seu amor por mim, não compro essa. Não fui imperatriz romana, nem dançarina de cabaret, nem escrava no Brasil. O tempo vai‑me dar razão! Não vai poder viver sem mim. Pressinto‑o. Se ficar em casa, eu respeito as suas prioridades, mas duvido que seja feliz. Se eu lhe caí no meio da vida é um sinal, como costuma dizer e deve ficar atento, tentar ir atrás e percebê‑lo... Não! já lhe disse que pode acabar os meus, não me apetece mais, desculpe, só vou tomar café, devíamos ir embora, está a ficar frio.

O Diogo tirou a camisola amarela que tinha aos ombros e passou‑ma ternamente por cima da mesa.

‑ Vá lá Teté, não estrague tudo, vista a camisola e não faça beicinho. Volto a dizer que me despertou para um monte de sentimentos fortes, intensos e também contraditórios, como só senti no princípio com a minha mulher...

Só esta frase me irritava. Com a minha mulher? Qual delas? "Minha mulher" éramos as duas, não? Travei a língua a tempo, antes de disparar com toda a minha raiva.

‑ And so what? Contra factos não há argumentos, se sou eu a mulher da sua vida o que é que quer fazer? Decida e venha comigo.

‑ Tenho medo Teresa. Tento ser prudente.

O medo, sempre o medo. ‑ Olhe, medo tenho eu de entrar naquele mar com bandeira encarnada, medo tenho eu de não ser feliz, medo? Quem tem medo compra um cão!

‑ Não desconverse, princesa. Um dia, ainda compramos uma casa na Comporta, para podermos curtir uns fins de semana fantásticos com os miúdos. Já imaginou? Praia não falta! A calma, o silêncio, os petiscos, os pássaros, os arrozais, o deserto, o estuário, tudo nosso... Parece um paraíso... E quando quisermos também podemos ir ao Monte, às Olaias... o encanto está na variedade! Truques para fugir à rotina.

‑ O encanto está na variedade, não é Diogo? ‑ estupidamente redutor! O Diogo comprava a minha emoção e com paninhos quentes apunhalava‑me pelas costas.

‑ Que peluda Teresa, sonhar não faz mal, lembra‑se da história entre Cupido e Deus? ‑ perguntou, enquanto me abria a porta do carro. ‑Aconteceu aqui, na praia, em frente deste restaurante, num dia bonito como o de hoje. Estamos muito perto do paraíso, sabe Teresa? Muito perto mesmo, e tudo o que acontecer é porque era suposto. O melhor, para nós. Não passamos de marionetas nesta história, alguém lá em cima mexe todos os nossos cordelinhos.

Sentia‑me já sem argumentos e com um nó pavoroso que me estrangulava a garganta. Raiva? Desespero? Tristeza? Se ao menos fosse a Luísa, diplomada em homens, em estratégias eficazes, sabedora e misteriosa, não sou a Luísa, não percebo patavina, apaixono‑me perdidamente, não me controlo, não sou prudente e no meio desta artimanha não encontro saídas de cabeça erguida! Levantei~me de repente e fingi que ia à casa‑de‑banho. Velho truque para me aproximar de mim por alguns enormes minutos. Sentei‑me na tampa da retrete e chorei como uma Madalena; um choro reparador e reconfortante. Dentro do meu corpo havia um imenso vaso de loiça que se partia em mil bocados, desfazendo‑me de um só golpe mortal. Continuava sem saber gerir dias sublinhados a cinzento, emoções negras como carvão, mas intimamente uma secreta esperança não morria. Como iria agora disfarçar do Diogo a pintura toda borrada, tipo limpa chaminés; uns imensos olhos de tragédia, inchados e medonhos e o cabelo ensopado em lágrimas?

Convencia‑me do impossível. Uma semana. Cupido. Os cordelinhos. A praia. A areia nos sapatos. Os carabineiros que ficaram no prato, na Comporta, à porta do Paraíso. As crianças a apanharem cerejas e a rirem. O Diogo, sentado numa cadeira de baloiço, a ler ojornal. Pois.

Recomeçaram as aulas.

 

O Álvaro apareceu com dois bilhetes para o concerto de quinta‑feira na Gulbenkian. Acho que vou levar a Luísa. Não quer sair, nesta fase de derrota, mas vou obrigá‑la. Derrotados somos todos, impotentes perante os factos consumados que a vida nos ditou. A mim, resta‑me esperar, à Luísa resignar‑se e não esperar.

Fomos. Enquanto os músicos afinavam os instrumentos, reparei que o Álvaro não tirava os olhos do público, à nossa procura.

‑ Vês Luísa? É aquele de cabelos brancos.

‑ Qual? O que parece um senhor?

De facto, o Álvaro era o único com aspecto de senhor, sentado ao plano. Imponente, de casaca e sapatos bem engraxados.

‑ O que vamos ouvir, Teresa?

A Luísa parecia alheada da realidade.

‑ O primeiro concerto de Tchaikovski, Luizinha! Agora concentra‑te e sente a música.

Durante todo o concerto, a Luísa, de olhos fechados fazia por perceber a força e o sabor da música que, o Álvaro e a orquestra, naquela noite nos transmitiam.

De repente, toca o meu telemóvel. Raios! Esqueci‑me de o desligar. Fui ver. Tinha uma mensagem escrita: "Tenho saudades, telefona‑me". Era o Eduardo. Agora o Eduardo? Pensei se havia de lhe ligar ou não. Não me apeteceu. Se passava três dias sem me telefonar sentia uma vontade louca, um desejo inconfesso de que ele me desejasse e uma secreta magia de o ter. Se insistia, sem me dar espaço para sentir falta, então franzia o nariz a cada nova mensagem. As carências físicas não são tudo e nem sempre acontecem. Ou será que o meu corpo começa a estar insensível a todos os estímulos?

‑ Quem era? ‑ perguntou a Luísa em voz baixa.

‑ O Eduardo. Queria conversa.

‑ O que é que combinaste?

‑ Nada. Não me apeteceu.

‑ Então agora é que o vais ter à perna, querida.

‑ Chiu! Mandam‑nos embora não tarda.

Calámo‑nos. Cada uma de nós partilhou a emoção do momento.

Eu pensei em todos os Eduardos que me começavam a dar cansaço. Não pelo Eduardo em si, que dia a dia ia, sem querer, ganhando proximidade. Mas um cansaço surdo e absoluto feito de telefonemas e jantares desgastados, vazios. Um cansaço de toda a situação empurrada pela vida, empurrada pelo Diogo. E a vida, deste jeito, imprime‑me cansaço, só isso. Suspirei e pensei na melhor maneira de não telefonar ao Eduardo. Uma forma de reagir, ou será apenas um modo de o espicaçar? Deixei‑me levar pela música do Álvaro e percebi que devia ser bom amar um músico pela sua sensibilidade. Imaginei‑me deitada num quarto oitocentista. A minha frente, um plano de cauda. O Álvaro sen­tado, a tocar, à luz das velas. Uma lareira de ferro, ao fundo, onde a lenha crepitava. Cenários improváveis? Até quando?

Desci à sala de concertos da Gulbenkian. Vista de cima era um mar de coiffeures entre o grisalho e o loiro, um aroma misturado de vários perfumes todos igualmente intensos. As senhoras de meia idade desapareciam por debaixo dos visons, dos astracans e dos lodens. Os cavalheiros quase calvos ou de cabelos brancos puxados para trás, acompanhavam as suas mulheres num ritual que se tornava obrigatório semanalmente. Ponto de encontro como a missa dominical. Pretexto para algumas pancadinhas leves nas costas ou uma superficial troca de ideias sobre as últimas do Jet Set.

Antigamente, contava‑me a avó Salomé, no São Carlos as meninas eram namoradas nos seus camarotes, atrás dos leques e das saias das mães, pelos senhores galantes de binóculos atrevidos, que não deixavam escapar um bom dote numa menina de boas famílias. Hoje, a contrastar com as cabeleiras de pelo menos vinte centímetros de altura, as meninas e os meninos vão ouvir Tchalkoveski, de calças de ganga rotas nos joelhos, três brincos em cada orelha, cabelos às cores sortidas ou cristas verde‑alface, e grossas camisolas de lã, onde as mãos desaparecem dentro das mangas compridas. Já tem acontecido serem invadidos por uma onda de rock e em pleno concerto acenderem os isqueiros! Embalados pela música e pelas chamas transfiguraram todo o classicismo da sala num ambiente marcadamente pós‑moderno, perante o espanto da orquestra e os olhares de pânico da soprano temendo pelas suas cordas vocais. E, de longe ou de perto, não sei se são elas que vivem o concerto, mergulhadas na própria rebeldia, ou as tias que podem ser mães, preocupadas com as criadas, o almoço de sábado ou a festa de anos da Rucas. Como diz o Álvaro, diferentes formas de sentir ou não sentir: vegetar na música!

Esperámo‑lo no átrio. Reapareceu. Apresentei‑lhe a Luísa. Fomos beber um copo ao Speakeasy.

‑ Estou com o ânimo acelerado e em boa companhia.

Depois dos aplausos e de uma excelente performance, o Álvaro vinha com o ego a transbordar. Recarregado de energia, era dificil aguentar a pedalada deste outro e transfigurado Álvaro, no pós concerto!

Desliguei. Apesar da música aos berros, conversou com a Luísa horas a fio, entre gins e vodkas com laranja. A Luísa falou‑lhe da agência de publicidade onde trabalhava, o Álvaro digitava‑lhe música e riam, riam muito.

Faz‑lhe bem, pensei. Era a primeira vez que via a Luísa rir com vontade depois do episódio drástico que protagonizara nas mãos do pintor.

Era esta a grande qualidade que conhecia ao Álvaro: ria e fazia rir. Ninguém ficava imune.

Até conseguimos convencer a Luísa a ir ao T. Uma raridade absoluta. Como diria a minha filha Marta: "Já sei que a mãe hoje vai a uma letra".

Fomos a "uma letra" então. Mas, não ganhámos nada com isso! A "letra" continuava vazia, cheia e vazia. Aquelas pessoas simplesmente não existem à luz do dia.

Onde estão metidas tantas calças esterlicadas, olhos sombreados a dourado e silhuetas jingantes ao som do Mambo? Onde vivem? Onde trabalham? Como serão as suas casas? O Pedro, por brincadeira, costuma dizer que à uma da manhã chega o barco do Feijó carregadinho de meninas ávidas da "letra"!

Imaginemos qual o objectivo que as trará ali. E a tantos eles e elas impessoais que, pelas mesmas ou outras razões, frequentam no mesmo dia, o mesmo espaço que nós. Deslumbrar? Arranjar um namorado efémero? Ouvir música? Encontrar os amigos? Ver caras novas? Encostados ao bar, todos e todas são sensíveis aos elogios do próximo que, tal como a Cinderela, sucumbem ao soar das badaladas (cinco e não doze como na história).

Gosto de observar a noite. Fiquei feliz pela Luísa. Achei‑a bem. O Álvaro, apesar de cansado, não desarmava. Encontrei o Pedro, como de costume. Tinha feito uma das suas noites de ratos, como chamava às saídas loucas com os cinco amigos solitários.

‑ Então? Gritou ele. Sozinha e de mini‑saia? Não te quero ver assim nestes sítios.

‑ Primeiro não estou sozinha Vim com o Álvaro e a Luísa. Depois, não é uma saia tão estrondosamente curta.

‑ Mesmo assim, está na hora de ires para casa – sempre paternalista o Pedro.

Até ia, Pedrinho, mas agora, gozo da tua companhia.

‑ Nestas noites de ratos, o melhor é não seres minha companhia, porque nunca fico muito tempo em boa companhia! Ainda por cima, hoje não estou de serviço à menina Teresa, pois não? ‑ disse, largando uma gargalhada fulminante.

O Pedro tinha razão. Há que respeitar o espaço e as opções dos amigos. Afastei‑me. O Álvaro levou‑me a casa com a mesma ternura de sempre. Depois foi deixar a Luísa...

‑ Telefona‑me amanhã ‑ suplicou‑me ela.

Queria repensar a noite. Era sempre assim. Laços inquebráveis.

Meti a chave à porta. Tudo em silêncio. A Cuca e a Marta dormiam. A Maria do Carmo já se tinha ido deitar. No chão, mesmo em frente da porta de entrada estava caído um papelucho. Estranhei.­

"Mãe crida, o pai pediu pra a mãe ligar. Um sinhor chamado Fransisco jiada fala a manhã pra a manhã pra a mãe. Beiginhos! Marta."

Fiquei perplexa. Pelos erros da Marta e pelo inesperado do telefonema do Francisco.

Mas que noite, Deus meu!

Mais uma de frio. Os lençois estão gelados. Odeio dormir sozinha!

 

Acordei a correr, depois de uma noite sobressaltada de sonhos escuros. O Diogo ou o Eduardo, não percebi, uma figura híbrida, despejava uma garrafa de Moët Chandon para o chão e gritava: ‑ Vá, lambe, vês, não és capaz. Dá aos cães. Tenho tanta massa que dou champanhe aos cães. ‑ E num qualquer bar, pedia outra e mais outra garrafa. Sempre o mesmo fim. Um mar de champanhe chegava‑me já à cintura, estava ao longe, perdida, encharcada daquele líquido cheio de espuma e soltava gritos surdos. Queria correr mas não conseguia, as pernas não me obedeciam. A distância não encurtava. Fui forçada a acordar desta tortura. Queria mesmo acordar de vez desta tortura. Não posso, Diogo, não quero, Diogo. Gostava de decidir, ou melhor gostava que o Diogo decidisse. E nesse caso como resolveria o Eduardo? Também não sou forçada a resolver o Eduardo. Sei que algures, num Eduardo qualquer ou num Diogo qualquer, Deus escreve Teresa por linhas tortas. Gostava de poder decifrar este enigma. Nunca mais vou beber champanhe!

A Cuca veio dar‑me um beijo à cama. Percebi como são definitivamente importantes na minha vida. Parte de inim, como parte do João, em gente diferente mas do mesmo sangue. Cada um de nós deu os laços que quis, com quem quis, criando uma nova forma de família. As convicções, princípios, rotas em que queremos acreditar são de facto determinantes. Precisamos ouvi‑las no nosso silêncio e compreender o teor das palavras que nos são pronunciadas ao ouvido, de uma forma completa e definitiva.

Fui pô‑las à escola. A Marta continua com o bíbe roto, uma vergonha. Pediram para as vir buscar à tarde. Farei os possíveis. Equilibrar todas estas forças não é fácil. Corresponder ao que os filhos nos exigem, tentar não os desiludir com o nosso comportamento menos estável provocado pelo turbilhão emocional do momento, é dificílimo!

Engoli um café à pressa e fui para as aulas. Os infinitos "Bom dia Setôra" que ouço diariamente acompanhados de sorrisos inocentes e olhos brilhantes, enchem‑me a alma de novo ânimo. Sinto que vale a pena. Por todos eles darei o melhor de mim e não vou deixar enovelar as aulas pelo meu avesso. Eles não o podem descobrir, nem sequer adivinhar.

Naquela manhã de Inverno, falei‑lhes de coisas bonitas. Pedi que as sentissem como bonitas. Que conseguissem atingir a força e a beleza das palavras. Com intensidade. Com paixão. Lemos alguns sonetos de Camões.

Percebi que tinha tocado lá dentro. Poucas coisas na vida me dão maior felicidade. Como poucas coisas na vida me dão maior tristeza do que entrar na sala de professores e sobreviver aos cinco minutos de intervalo com tanto desânimo e apatia. Encarar tamanha falta de conteúdo daquelas pessoas a quem chamamos colegas e que, tal como nós, cumprem horários e programas tendo como única meta o toque de saída.

Quando me sentir tão despida como eles resignarei. Espero ter nessa altura passado o testemunho.

Aproveitei uma pausa para falar ao João. Queria saber das miúdas, das notas de Matemática e dos papéis. Claro que o principal motivo do telefonema de ontem, era a famosa burocracia que somos forçados a aceitar se queremos pôr um ponto final numa relação. Há que passar por isto tudo, o que representa para mim a pior de todas as angústias.

‑ Está a andar ‑ respondi, sem fazer ideia se estava ou não.

Continua com a frieza habitual que não me permite sequer descongelar os momentos que nos fizeram construir uma vida. Desliguei, anestesiada como sempre. Resolvi reunir forças para ligar ao Francisco da Luísa (note‑se: da Luísa!).

‑ Francisco? Fala a Teresa, amiga da Luísa. Recebi o seu recado ontem, já era tarde não lhe liguei.

‑ Pois claro, até que enfim que nos encontramos, tenho ouvido falar de si.

‑ Ah sim?

‑ Sabe, apeteceu‑me desabafar, não a conheço a si, mas bem vê, como é tão amiga da Luizinha, pensei que me poderia valer.

Que hipócrita, pensei eu ‑ "Luizinha", imagine‑se!!

‑ Então você já sabe de tudo?

‑ De tudo, o quê? ‑ fiz‑me de parva.

‑ De não ter sido possível dar certo com a Luísa.

‑ Tenho uma ideia, mas não vivo a situação.

‑ Pois, a razão do meu telefonema de ontem é a minha preocupação com a sua amiga.

‑ Agora? ‑ perguntei espantada ‑ Não a devia ter deixado chegar a este ponto, parece‑me.

‑ Não controlei a situação, e depois, aqui a Guiomar, está a ver? Coisas que surgem, até a um cinquentão como eu ‑ disse em jeito de desculpa.

‑ Não tem que me dar explicações, Francisco, eu nem o conheço ‑ não me apetecia avançar com a conversa. Nada resolvia.

‑ O facto é que estou preocupado com a Luísa.

‑ Parecia‑me mais sensato se tivesse sido você a dizer‑lhe, saber por terceiros é bem pior.

‑ Fazia tenções, mas os acontecimentos precipitaram‑se.

‑ A Luísa não está mal, tem bons amigos para a ajudarem.

‑ Calculo... ela fala muito em si, Teresa.

‑ Agora Francisco, espero que a deixe em paz. Tenha o mínimo de bom senso e desapareça.

‑ Eu é que não estou em paz.

Fiquei com a sensação de que a história não tinha acabado.

Acabada ou não, fica para segundo plano. Hoje, confesso que tenho uma prioridade: a minha aluna Joana. A Joana, neste momento passa à frente.

Estou preocupada. É da minha direcção de turma. Tem uns olhos enormes e tristes, uma aluna apagada, mas com um coração de ouro. Falta há já duas semanas. Tenho que telefonar aos pais. Não percebo. Até hoje nunca faltou. Estou com um mau pressentimento.

Deus queira que me engane! E que me engane também no meu desespero quase total em relação a um caminho conturbado. Veremos...

 

Eu tinha razão, a Joana está doente. Muito doente. A mãe procurou‑me lavada em lágrimas. Diagnosticaram‑lhe uma leucemia avançada.

Não lhe explicaram nada. Só que está anémica e fraca. Vai retomar as aulas, se conseguir ter forças. Pode ainda viver um ano, dois no máximo, se aguentar o transplante. Filha única, imagino o sofrimento daqueles pais, a coragem que vão precisar para a deixarem partir, ir embora para sempre. Será o último dia do principio da sua vida. É assim que a fé nos explica o mistério da morte, a nossa redenção, a esperança de que estamos no principio da eternidade. Eu não aceito.

Deus, se é grande e infinitamente bondoso, deveria poupar a Joana e os pais a uma separação prematura e tão dolorosa.

Deus, se é grande, deveria dar prioridade a todos aqueles que nos infernizam a vida e deixar a Joana mais tempo entre nós.

Deus, se é grande, deveria ter visto os olhos fundos da Joana e lido neles a sua vontade imperiosa de viver.

‑ Deus não existe, insiste a Luísa. Não vês que é tudo uma farsa para disfarçar o medo que todos temos da morte? Acabaremos da mesma forma, da mesmíssima forma: comidos por minhocas.

‑ A Fé não se discute Luísa, mas a vida não pode necessariamente ser tão curta. Tem de haver continuidade, ou nada faz sentido.

‑ O que não faz sentido é as horas que se perdem em orações transcendentais que mais não são do que ecos da nossa consciência. Verás Teresa, que não te serviu de nada o tempo que perdeste em missas e actos de contrição. É tudo invenção, para moralizar o povo e sacudir o medo do futuro.

Encolhi os ombros e supliquei a mim mesma, ou a Deus Pai, para que a Luísa não tivesse razão.

O meu pai era um poeta, como o da Fada Oriana e mesmo assim rezava todas as manhãs, à mesma hora, de joelhos no chão, em frente do crucifixo. O meu pai vivia numa "torre na floresta" e mesmo assim sentia a presença de Deus pousando uma mão forte e protectora em cima do seu ombro. Em todos os seus versos que nos lia em voz alta e vagarosa, medindo o peso de cada palavra para que fossemos sensíveis à beleza da poesia, Deus estava presente. De formas diferentes, estava lá.

Foi‑se embora para junto dele, talvez. Num dia triste de Inverno, sem me dizer adeus. A Luísa disse‑me que eu o procurava incessantemente. Descobri‑o. Uma parte pelo menos, está lá, na figura e na pessoa do Diogo. É assim que a Luísa vê este nosso enfeitiçamento. A mesma sensibilidade patética, a mesma incapacidade de decidir, os mesmos princípios fortes e enraízados, as mesmas prioridades. Encontro o meu afecto perdido entre as suas mãos finas e esguias, o brilho do seu olhar, a emoção da sua presença. Só lhe falta o lenço branco e amachucado que tirava da algibeira das calças quando me enxugava as lágrimas.

‑ Pronto, já passou Teté. Vai ver que já passou. E passava mesmo. O que o pai dizia, era lei.

Como eu gostava de ter o Diogo sentado na borda da minha cama. Vê‑lo tirar o mesmo lenço branco da algibeira das calças e ficar consolada, definitivamente consolada. Como eu gostava de acreditar que aparecia no meio da noite, para me abraçar com força e me fazer sentir amada, protegida, completa.

No dia seguinte, sentada nos seus joelhos contaria as mesmas histórias, ouvidas e repetidas centenas de vezes, sempre diferentes e sempre iguais: da Bruxa, mulher do Feiticeiro e mãe do Papão. Do seu primo Diabo e dos indispensáveis companheiros da família: o cão lazarento, o gato tinhoso e o papagaio sifilítico. Personagens quase reais que moravam numa casa velha de vidros partidos e telhado desfeito, em S. Pedro do Estoril, e que povoaram a minha infância de suspense, diabruras e finais felizes, com toda a família presa e o Papão de regresso à escola.

Recuso‑me a crescer, sou outra vez e eternamente criança pelos olhos da Cuca e da Marta. Sem pai por perto, sem avo, sem bisavó Salomé, vou‑lhes preenchendo esse vazio irreparável. O melhor que sei, o melhor que posso.

Fiquei de ir dar‑lhes um último beijo de boas noites, e aconchegar‑lhes os lençóis. Disse que ia já. Perdi‑me a escrever. Esperaram por mim em vão. Quando lá cheguei, tinham as duas adormecido com as luzes acesas e os livros abertos. Esperaram... eu não apareci. Cansadas, deixaram‑se dormir. Não me perdoo tê‑las desiludido. Amanhã serei melhor mãe. Não consigo desempenhar bem tantos papéis. Dá‑me vontade de desistir de tudo o resto. Viver para elas e fazê‑las acreditar que pelo menos esse papel sei representar.

Apetece‑me também deixar adormecer o Diogo. Não tem um lenço branco dentro da algibeira das calças, não sabe contar histórias de bruxas e fadas e nem sequer me dá o seu ombro forte para eu renascer.

Sonhar? Será que vale a pena? A Joaninha doente não vai sonhar mais porque não vale a pena...

 

Pus‑me a pensar nas certezas absolutas da avó Salomé. E podia começar assim: "Um dia tive uma avó"! Ou uma Rainha Mãe que tudo controlava, tudo dominava. Cegamente respeitada.

Não existia distância entre mim e ela. Só o caminho de terra batida que percorria de bicicleta à velocidade da luz sempre que embirrava com a minha mãe. Às vezes ia contra as silvas e chegava à avó toda arranhada, as lágrimas de fúria e desgosto tapavam‑me os olhos e nem via o caminho.

A avó sabia tudo, sobre tudo. E essa segurança, trazida pela idade e pela postura, faziam com que perto de si toda a tempestade acalmasse. Se havia uma inundação, a família deslocava‑se em peso para casa da avó. Lá, não íamos ao fundo. Quando aconteceu o tremor de terra em Lisboa, refugiámo‑nos na avó assim que pudemos. Mostrar que resistimos e esperar pelo eco perto de si. Havia a certeza absoluta que ali nenhum muro desabava. Sinal da força do tempo, pilar de segurança e de amparo. Antes de tudo, primeiro do que tudo, e última instância antes da derrocada.

De tal forma eu vivia as suas convicções, de tal forma entrara no meu espírito que, se ainda existisse, certamente não teria ousado separar‑me do João. Magoava‑a, porque assumia que falhara. Antes do casamento fizera o diagnóstico: "se não o admiras, não cases com ele; mas se o fizeres, nunca durmam em camas separadas. Não é possível adormecerem zangados se dividirem a mesma cama!"

Foi assim que aprendi a nunca adormecer zangada. Nem com o João, nem com ninguém. O casamento acabou, ficou a admiração. Será suficiente para continuar? Como a avó nos deixou antes da Cuca e da Marta nascerem, não pude partilhar o desencanto que a vida me foi imprimindo, nos anos que se seguiram. Pelo menos, nunca chorei ao atravessado em cima da cama que, como ela dizia, era o que mais irritava um homem!

Por atalhos traçados mais ou menos ao acaso, seguirei o seu trilho. Embora com um medo secreto de que, um dia, ainda tenha que ajustar contas com a avó Salomé.

Fui ver a joana ao IPO.

Tive que reunir forças e fingir‑me descontraída. Perguntou‑me pelo Liceu, pelos testes e disse‑me que não se sentia forte para estudar.

Estava muito branca, com os olhos ainda mais fundos e encovados. Um frasco de soro pendendo ao lado da cama, com uma agulha grossa enfiada numa das veias azuladas da sua mão. Esperava o transplante e a seguir, talvez um longo tempo de convalescença.

Era bem tratada ali, mas queria voltar para casa, para as aulas... Esperanças talvez vãs... Não sei que futuro esperava a Joana, mas tudo o que lhe disse tinha o gosto amargo da mentira. Previsivelmente iria sofrer muito, mas muito mais. Que enorme

injustiça. A Joana priva‑se da vida aos 14 anos, com tudo, absolutamente tudo, pela frente. Os privilégios da adolescência, as aventuras, os desencantos, os ideais ainda pouco sólidos para ir conferindo. De tudo, teria de se despedir.

Relativizei as coisas. Sou feliz com a Cuca e a Marta, vivemos juntas e nada nos falta. Que egoísmo medonho e cruel o meu.

Estou assoberbada pela Joana. Não esqueço os seus olhos macios com o sabor de despedida. Prioridade é a ajuda que lhe podemos dar. Peço aos médicos que a salvem. Tudo o resto é inútil.

A Joana passou à frente.

O Eduardo não me larga. Nem sempre tenho vontade, mas vou dependendo dos seus telefonemas mais ou menos assíduos e dos almoços semanais em que me enche de supostos bons conselhos. Conheci o Eduardo há uns largos anos, em casa da Luísa que era colega da mulher, na agência onde trabalhava. Nessa altura ainda casado, bem casado. Foi muito atencioso comigo, ficou sentado ao meu lado e fez‑me rir todo o jantar. Dizia que o João era um homem cheio de sorte, tinha conseguido o prémio grande e a lotaria. Eu encolhia os ombros, mas corava sempre. Depois, a vida encarregou‑se de nos aproximar. Noutra etapa. Os dois sozinhos, cruzámo‑nos aqui e ali. Um jantarinho já mal me lembrava dele, telefonou‑me para o liceu.

‑ Teresa, adivinhe quem fala?

Não fazia a mais pálida ideia, não reconheci o número, nem a voz.

‑ Sou um antigo admirador seu. Apetece‑me vê‑la.

- Vá lá... é que hoje não estou perspicaz, não faço a míni­ma ideia.

‑ Então Teresa? Estou a ficar decepcionado. Em casa da Luísa, no ano passado, estava você casadíssima, ficou ao meu lado na mesa, e o seu decote, não me foi de todo indiferente.

‑ Ahhhh, Eduardo! ‑ tinha‑me passado ao lado ‑ pois é, como vai? A sua mulher, os seus filhos, que é feito? ‑ uma conversa de circunstância para ganhar tempo.

‑ Ora aí é que você se engana, os miúdos estão óptimos, mas o resto, foi‑se. Voltei à base, reviravoltas da vida... olhe, falando de outra coisa, apetecia‑me ir jantar consigo.

Por momentos entupi, apanhou‑me em falso. Numa fracção de segundo relembrei o quadro deste homem, que nunca passara de uma ausência; lembrei o tal jantar na Luísa, não me pareceu nem bem, nem mal. Uma pessoa estranhamente desajustada, sentia‑se ali uma inquietude, uma ânsia. Não parava quieto com as mãos que passeavam freneticamente dos talheres para o copo, do copo para o guardanapo, remexia‑se na cadeira, ajeitava a gravata, enfim, deixou‑me ficar uma sensação de cansaço mas, ao mesmo tempo, uma vontade inexplicável de o perceber. A mulher, lindíssima, nem olhava para ele, ignorava‑o, pensei eu, rotinas criadas por tantos anos juntos; traçava a perna e fazia charme à direita e à esquerda. Ele, espiava todos os seus gestos pelo canto do olho, enquanto pelo outro, fixava insistentemente o meu decote, e enrolava a conversa, batendo bolas altas para atrair a atenção.

À noite, de regresso a casa, o João acusou o toque ‑ Achaste muita piada àquele minorca casado com a boazona. E olha que ela era vinte valores, tinha cá uns olhos e não só... Enxerga‑te Teresa, tu é que ficas mal, ali numa conversa fiada com um gajo que mal conhecias, e se queres saber, a mulher não estava a achar a menor graça. Já viste o meu papel de parvo, ignoras o teu marido toda a noite, e desfazes‑te em

atenções e piadinhas com um gajo que nem tem tamanho para levar um estalo! E depois, ainda me dizes que não te ligo nenhuma. ‑ Foi assim o início de uma cena que se prolongou pela noite dentro. Eu, claro, paguei‑lhe na mesma moeda e acusei‑o de não tirar os olhos das manias da boazona e não sei mais quantas histórias inventei para me defender. Realmente, espicaçar em legítima defesa, não é a melhor táctica. Mas, uma vez que nunca adormeço zangada, tive de levar a cena às últimas instâncias, até ter o inimigo rendido ali no campo de batalha e poder deliciar‑me com o troféu da vitória: uma noite de sexo, fulminante de raiva e vontade.

Aceitei ojantar com o Eduardo.

Tive medo de não o reconhecer. Fomos ao Blues Café. Igual, um charme discreto, desfazendo‑se em amabilidades, a abrir a porta do carro para eu entrar, a tecer elogios ao meu vestido Versace que me ficava a matar, a mexer‑se e a remexer‑se perante o meu olhar confundido com tanta energia.

Sentámo‑nos no andar de cima e enquanto escolhíamos o famoso bife e uns camarões com piri ‑piri, o Eduardo pediu‑me para não lhe falar no passado, nem na mulher nem em nada que o magoasse. Perguntou‑me por mim, pelo João e contou‑me a cena pavorosa que tivera ao chegar a casa no dia do jantar da Luísa, pois ela cismou que eu era uma espevitada, atiradiça que me faltava despir‑me no meio da sala. Tudo isto adornado por mais não sei quantos adjectivos insinuosos que ele não me quis parafrasear. Fingi não dar importância ao assunto, nem perceber onde ele queria chegar, mas o paralelismo das duas histórias arrepiava. A minha consciência ditou‑me naquele instante, que mais uma vez, nada é por acaso. Não lhe dei ouvidos e tentei mudar o leme do barco para outra direcção.

Desembocámos numa conversa subtilmente mais atrevida.

‑ Sabe Teresa, você é uma das tais mulheres que adoram provocar. Se calhar, até nem tem mais nenhum propósito senão o da provocação pura e simples. Dá‑lhe gozo? Quando naquela noite a minha mulher encenou todo aquele disparate, tinha alguma razão. Sentiu‑se ameaçada.

‑ Ameaçada Eduardo? Então você convida‑me para jantar, para me acusar de um episódio do qual já mal me lembro, e com a agravante de me ter posto numa situação desconfortável, controlada pela sua conversa, desculpe, de engate durante toda a noite? Limitei‑me a ser simpática e a falar consigo, você puxou por mim, tinha as garras de fora ou não? Se quer saber, varri a história para sempre da minha cabeça. Passou‑se um ano Eduardo, não teve qualquer importância, percebe? ‑ Sentia‑me agredida por aquele homem minúsculo, que mais parecia o brinde de um bolo rei.

Percebo é que você adora seduzir, por que razão veio hoje com um vestido tão sexy? Por si ou por mim? ‑ tudo isto, esboçando um riso irónico que me pôs histérica!

- Não é de todo um vestido sexy, e vim por sua insistência, apetecia‑me sair, foi você que me desafiou ou não? Quis estar consigo e...

‑ Agradar, Teresa, nunca ouviu dizer que "ninguém é manipulado contra a sua vontade, como ninguém é seduzido contra o seu desejo?"

Apeteceu‑me atirar‑lhe com o copo de vinho à cara e fugir: "O que é que eu estou aqui a fazer?"

‑ Gosta de jazz?

‑ Mais ou menos, ‑ disse amuada ‑você deve odiar, todo posto por ordem...

‑ Porquê ? Gostar de jazz é pecado?

‑ Pecado? Pecado é cairmos nas nossas tentações.

Acabava de dar o flanco, exactamente o que menos devia. É claro que o Eduardo pegou na deixa...

‑ Isso quer dizer que sou uma tentação? Também eu sou uma tentação para si, não é Teresa? ‑ continuou ele ‑ e você procura fugir dela e esconder a cabeça na areia...

Era sempre assim, um beco sem saída. Que história, Deus meu, vou sair com um tipo de quem mal me lembro, que não seduzi coisa nenhuma, com quem esperava rir e passar uma noite agradável e saiu‑me tudo do avesso, não quer falar dele, acusa‑me de ser uma sedutora, das cenas que teve com a mulher por minha causa e conduz toda a conversa para a cama. Bolas. O que me irrita é ter acabado a noite tão confusa. Que estranho poder teria este homem?

No dia seguinte, voltamos a ver‑nos, fomos almoçar à Praia Grande; já mais calmo, não queria nada comigo, não sabia gostar, mas ali estava, quase rendido: sempre o primeiro a chegar, sempre o último a sair. Protegia‑se, limitava‑se, travava a fundo. Que incoerência. Continuava, com o que hoje percebo ser apenas e tanto, uma profunda mágoa inconsolável.

Uma figura engraçada, a do Eduardo. Baixo, meio careca, com os poucos cabelos que ainda lhe restam puxados para trás. Sempre vestido de Rosa & Teixeira, gravatas clássicas e camisas lisas e discretas, rematando com uns antiquados sapatos de "avô", daqueles com furinhos e atacadores que só são possíveis de encontrar num avô. Com a particularidade de não usar boxers, o Eduardo é tudo menos um homem sensual. No entanto, a sua constituição fisica forte e robusta marcada por anos de ténis e musculação tornam‑no num cinquentão, no mínimo apetecível!

Todo este retrato aliado a uma personalidade marcada, de princípios rígidos, verdades absolutas e certezas inquestionáveis. Foi assim que gostei da sua figura e da sua presença que, reconheço, se foram tornando dia a dia mais convincentes.

Advogado, por uma longa tradição familiar, advogado, por pura e convicta vocação. Não há lei que desconheça, não há causa que o atormente. Habituado a grandes decisões, dotado de um fascinante poder oratório, este Eduardo vai repartindo o seu tempo entre o escritório na Rua Castilho, a casa no Restelo, os clientes, os filhos e a vontade.

O Eduardo sabe jogar, odeia perder. É um adversário forte, que tem o condão de me pôr a pensar, acabando por lhe dar razão. Supremacia típica dos advogados, em que tudo se reduz a certo ou errado, branco ou preto e se não fôr uma coisa nem outra, por um truque de raciocínio chega‑se lá. Se as premissas forem válidas, o silogismo é perfeito. Cheio de teias de aranha, o que gradualmente me faz pensar que é espécie rara, a dos homens que chegam até nós soltos, sem fantasmas ou situações por resolver. Já mal podemos com os nossos fardos às costas, quanto mais com o peso das histórias dos homens que se atravessam em nós. De vez em quando deixo‑o vir. Adoro sentir‑me importante, ou relativamente importante. Fala‑me "dela", a sua diva, a sua ex; diz‑me que ainda acredita num recomeço, eu aceito‑o assim, com todas estas desgastantes e dolorosas nuances. Nada posso esperar, mas também nada posso dar, porque tudo isto não passa de um compasso de espera pelo Diogo.

Com um poder sobrenatural de cortar com todas as amarras, mal sente que elas existem, o Eduardo não permite que nenhuma relação tome sequer contornos mais ou menos reais. Vive isolado numa ilha, onde o único elo de ligação é o passado; tudo o resto são personagens fictícias que só existem enquanto tiver esse livro na mão. À medida que a leitura vai exigindo um maior grau de envolvimento, deixa o livro de parte, acabando por abandoná‑lo. Racionaliza tudo, porque sem o que a razão nos dita não vamos a lado nenhum. Será esse o meu destino? Só é isso que me espera, encher‑me de pó? E estranhamente tenho medo de o perder. Até lá, vou deixando que nada transpareça, nem a minha vontade, nem o facto de me fazer esquecer o Diogo, pelo menos nos instantes que passamos juntos. Tem sido um bom antídoto para a solidão. Um dia, o feitiço pode bem virar‑se contra a feiticeira e aí vou perder o jogo, nunca fui forte nestas brincadeiras emocionais.

Honestamente, não gostava de ser transformada num caso qualquer na história da sua vida. Só por pura magia poderia ser mais do que uma migalha, nas escolhas das suas importâncias. Combater contra dragões dez vezes maiores e continuar uma formiga? É para lá que a história caminha, uma sucessão inacabada de insucessos. Por enquanto deixo‑me ir, quando me apetece, quando lhe apetece. Umas vezes sim, outras não. É sempre bom ouvir tocar o telemóvel e decidir não atender. Para mim tem o mesmo efeito do café, põe‑me surpreendentemente bem disposta.

Sinto‑me só, cheia de gente mas só, o Eduardo ajuda‑me a combater este estado de sítio. Diz‑me que a solidão é o mal característico da maior parte dos homens e mulheres que por aí vegetam... Só que, raramente se assumem deste modo... Eu estou só e reconheço. É isto que nos mantém sintonizados. Partilhamos uma fatia de vida. Não sei se lhe resisto muito mais, e se um dia o amar, saio de jogo, não quero voltar a tropeçar. Chega. De certeza que não vou a lado nenhum, mas tem sido exactamente esta a minha conduta...

 

O Álvaro e a Luísa foram ontem jantar lá a casa. Falámos de arte! A Luísa é redutora: a arte é apenas trabalho de génio. Nada, nem ninguém pode banalizar o conceito, chamando arte ao que não passa de uma tarefa bem feita. O Álvaro tem uma visão bem mais lata da arte. Ao contrário do que seria suposto, vê‑a como uma forma de vida. Em cada um dos nossos gestos pode haver arte e citava Nietzsche: "a arte existe para não morrermos de verdade". A discussão, ou melhor, o confronto de ideias foi‑se desenvolvendo à volta da mesa. Entre garfadas de lombo com ameixas e golos de vinho tinto, fomos alinhavando ideias numa conversa, profunda e saudável.

Às vezes faz bem, catalisa‑nos. Entrámos na bandalheira total: socialmente só falamos dos outros, de programas, toilettes, crianças, intrigas e sexo. Temas que povoam de espírito o nosso quotidiano, temas que entraram no domínio comum, sem tabus, sem censuras. Dar um passo em frente é sempre saudável e reconfortante. Afinal sabemos pensar, e ouvir pensar. Gostei. Ou se calhar não gostei assim tanto, porque nessa altura atendi o chamamento do Eduardo. Mandei‑o vir, melhor: aceitei que viesse. Arranjei uma desculpa bem montada e consegui que o Álvaro e a Luísa saíssem. Bem educadamente, sugeri que fossem beber um copo e me deixassem sozinha. Perceberam a ligação com o telefonema que acabara de receber.

Chegou. Molhado pela chuva, dominado pela vontade de me ter. Esqueci a arte, o pianista e a Luísa, deixei‑me ir. Abandonei‑me uma e outra vez nos seus braços fortes, que me apertavam até ao limite. Não me disse uma só palavra, nunca me diz uma só palavra, as palavras comprometem mas, nos seus olhos e na maneira como me fazia sentir, vi que a minha importância transcendia em muito o momento presente. Era bem mais valiosa agora, do que aquilo que lhe ditava a razão. Nem sempre as causas se resolvem friamente, às vezes sem querer acabamos por nos envolver. Acontece. E então? Tinha de acontecer, nem tudo necessita de uma explicação lógica.

Ainda não consigo adormecer em paz perto do Eduardo, dou voltas e mais voltas com o coração a sair‑me pela boca! Ao meu lado não tardaram dois segundos para o Eduardo mergulhar num sono profundo. Como uma mãe que vela pelo sossego do seu filho, assim eu olho o Eduardo numa paixão disfarçada e perco‑me horas sem perceber nada de nada. Será que a Luísa tem razão com a sua história das energias? Será que aquele homem ali deitado imana uma espécie de energia, tal é o seu poder interior e a força dos seus conflitos com o passado? Imagino que uma aura o cerca e me contamina, não me deixando sequer, fechar os olhos. Não o sinto como meu, "gente que não é nossa,, , estranha e distante apesar de partilharmos o corpo e a alma, em gestos que, por mais que repetidos, se tornam mais intensos, mais próximos da paixão, mais sentidos.

Foi‑se embora de manhãzinha, sem que a Cuca e a Marta o descobrissem. Fiquei aliviada por me sentir feliz. Estranhamente feliz. Apesar das escassas horas de sono que acabaram por me vencer. Aliviada por ter sido tão curto? Quem sabe... Ainda que os momentos da sua presença se tornem cada vez maiores, consigo reduzi‑los às quatro paredes do quarto e não permito que transponham barreiras e entrem em crise com as minhas prioridades.

Bateu com a porta da rua e eu respirei de alívio. Acabou finalmente. Tem sempre o sabor de suplício, de prazer não merecido, inacabado e finito ao mesmo tempo. Ainda não me pertence, eu ainda não lhe pertenço. Não se apercebeu como representa uma parte válida nas minhas opções de vida. Não quer ver para além do que lhe mostro, o papel que represento é para minha defesa e para seu agrado. Quando lhe digo que não corre risco afectivo comigo, deve pensar que é um truque para o apanhar. E a pura verdade, ocupa fisicamente a minha cabeça, enquanto me liberto de um pesadelo chamado João, enquanto espero pelo ruído do carro a gasóleo do Diogo à frente da minha porta.

Impasse, instante de espera? O Eduardo é tanto mais para mim quanto o pouco que vou exteriorizando, porque sinto que o jogo vai lentamente chegando ao fim. Gerir esta dissonância é trabalho de génio. Arte? A Luísa diria que sim!

Fui hoje almoçar com a tia Graça que veio de Évora e, também, com a Luísa. Está preocupada com a Maria do Carmo. Parece que quer viver tudo de uma vez.

‑ Virou saltimbanca.

‑ Saltimbanca?

‑ Não pára em casa. Tem sempre uma mala no carro, já preparada para o que der e vier. Ou vai dormir a casa de uma amiga, ou a Lisboa com a Luísa ou com as primas; tem a técnica de fazer e desfazer malas apuradíssima.

‑ E não há travões a esse espírito nómada? ‑ quis saber a Luísa.

‑ Os máximos e os mínimos, meninas! Exigimos os máximos dá‑nos os mínimos!

‑ O mal é ela ser tão gira e divertida!

‑ E bem formada ‑ acrescentou a Luísa. Nunca lhe vi nada menos normal ou menos aceitável!

‑ Temos sempre medo pelos filhos, sobretudo pelas filhas. Nunca se sabe. É uma lotaria...

‑ E a Inês está igual?

‑ Não, a Inês é pacata, gosta do conforto da casa, de nos acompanhar, é cada vez mais raro fazer noitadas. Leva o curso de Gestão muito à séria. A Inês, não é por enquanto grande preocupação.

‑ Às vezes sinto que a Maria do Carmo não sabe onde é o seu lugar. Na verdade, sempre assim foi. Diferente dos irmãos, habituada a dormir cada noite em sua cama. O mal foi nosso, que fomos permitindo, permitindo... ‑ confessou a tia Graça.

‑ E namorados, casos, ou como eles dizem, "curtir", em que é que ficamos?

- Bem, a Maria do Carmo sempre teve alguns complexos em relação à Inês. Era baixa, morena, destoava do ar distinto e nórdico da Inês. As pessoas em geral comentavam sempre a beleza da Inês, o seu porte, a sua elegância, da Maria do Carmo ninguém dizia nada. Só "que diferentes, nem parecem irmãs"!!

‑ Essa é a história do Patinho Feio ‑ concluí.

‑ Pois, de facto a Maria do Carmo deu um pulo, desabrochou e agora faz frente à Inês. Morena, de pele escura e uns olhos vivissimos, redondos. Está bem gira...‑ acrescentou, babada!

‑ Honestamente tia, ‑ disse a Luísa ‑ eu sempre a achei mais gira do que a Inês e mais esperta, a tia desculpe...

‑ A Inês é talvez mais parada, por isso, neste momento torna‑se quase invisível quando a Maria do Carmo está por perto.

‑ Bom, mas falavamos de namorados, não é, tia?

‑ Olha Teresa, que eu saiba não, a Maria do Carmo costuma contar tudo, mas aos dezoito anos tudo é relativo.

Percebi que a tia Graça não sabia nada do que se passava com a Maria do Carmo... Ali havia história... a minha intuição dizia‑me que tanta instabilidade era sinal de um percurso pouco claro. Vamos ver. Vou armar‑me em detective. Gosto muito da Maria do Carmo, não a quero ver desiludir‑se.

Cheguei, mais uma vez das Olaias. Convidei a Maria do Carmo. Eu e a Luísa conseguimos convencê‑la a ir lá passar uma noite. Espremêmo‑la o mais que pudemos. Curte com o Rui, que define como radical e porreirinho, mas que traz uma educação logicamente diferente. Não quis que o conhecessemos, mas percebemos que usa brinco e cabelo rapado, botas de couro e uma tatuagem no braço. Fuma de quando em vez uns charritos sem importância. A Maria do Carmo conheceu‑o na 24 de Julho, numa das noitadas... Deu‑lhe boleia de moto até casa dos avós. Está irremediavelmente enfeitiçada.

Era o que imaginava. Nestas coisas, não adianta dizer que não é o tipo de homem certo, que não a merece, ou qualquer desses chavões de pessoa mais velha... É deixar andar... Sinto‑a instável e pouco feliz. Há‑de descobrir por si própria que provavelmente o Rui não a levará a lado nenhum. A Maria do Carmo acha‑o sensível mas destemido, carinhoso e apaixonado. Nem me atrevi a conjecturar sobre o futuro... Só Deus sabe...

Fi‑la ver que o Rui não iria ser muito bem aceite em Évora, que não seria o tipo ideal para cair nas boas graças dos pais. A Maria do Carmo parece não ver o amanhã e insiste que está a curtir o momento presente. Os seus olhos perdidos traziam desconforto à minha alma. Senti que se afastava, e fiquei impotente perante os factos. Acordar a Maria do Carmo? Restituir‑lhe a paz, devolver‑lhe alguns princípios e relembrar‑lhe as prioridades. Como?

Se soubesse o antídoto para esta poção mágica,... confesso que, com toda a minha vontade, continuo sem vislumbrar estratégias eficazes.

Joguei com o Diogo na noite de sábado, nas Olaias. Soube que vinha de surpresa. Conseguiu convencer a mulher que precisava de ir ao Alentejo. Senti‑o a morrer de saudades, daquelas que apertam cá dentro e são impossíveis de transpôr. Telefonou, vinhajantar. Abri uma excepção. À minha frente o Eduardo que acabara de almoçar, sorria desconfiado.

‑ Quem era, pode‑se saber? ‑ perguntou cinicamente.

‑ O Diogo ‑, balbuciei com um estranho sabor a pecado.

‑ E tu ainda atendes telefonemas desse pateta inconsequente? Ainda por cima pões esse ar libidinoso a olhar para o telefone!

‑ Não resisto Eduardo, trato‑o normalmente como a qualquer outra pessoa ‑ menti.

Que moralidade tinha, para fazer qualquer comentário sobre o assunto, quando ele próprio tentava através de mim aquecer o tempo, no intervalo que estabelecera separando‑se da mulher? Era exactamente isto que me fascinava no Eduardo: o poder que, sem saber e sem querer, tinha sobre mim.

‑ O Diogo não é um homem, é um boneco. Se não deixou tudo por ti, se te tirou o tapete, fazendo‑te sofrer assim, tenha ou não sido pretexto para dar sal à vida, não presta e não deves deixar que te atormente. A não ser que gostes dele. Lá está Teresa, palavras leva‑as o vento e as atitudes onde estão?

Calei‑me e o meu silêncio deixou que uma dúvida pairasse sobre o Eduardo. Não uma dúvida, uma certeza. Naquele momento, ficou a saber que o Diogo ainda existia.

O Eduardo tinha aceite o meu convite para passar um dia nas Olaias; pensei que não viesse, que não era merecedora deste frete de fazer quilómetros num dia de sol. Veio. Inesperado! Depois soube que o Diogo se meteu a caminho. Olhei‑o, sentado ao sol de fim de tarde, não parecia apressado. E agora?

Infelizmente o Eduardo tem a sua quota parte de razão. Mas, vindo de quem é, e no âmbito da nossa pseudo relação é no mínimo estranha a agressividade com que fala do Diogo. E certo que deveria continuar proibido, longe e distante, inacessível. É certo também que devia mandá‑lo embora, para dar lugar ao Diogo.

Não foi isso que fiz. Não foi isso que me apeteceu fazer.

A Luísa percebeu logo que havia coisa...

As Olaias estavam cheias naquele dia. Fui repescar amizades antigas, famílias bem postas e certinhas, alqueires de crianças sujas de terra e lama, despenteadas e sorridentes. Que cenário tão aprazível para esta novela, pensei.

O Diogo cada vez mais próximo. Decidi impedi‑lo de vir. Travei‑o a tempo de chocar impiedosamente com o que menos queria. Inventei uma desculpa... que ia para Lisboa, que as miúdas estavam doentes... Fui horrível, mas imaginar o confronto dos dois, isso é que nunca! Mais uma vez quem falou foi o meu medo da solidão, medo de os perder de uma só vez, medo de sair maltratada desta história mirabolesca...

Ele vinha feliz, mestrio a chegar, tinha acabado de comprar uma caixa de chocolates para trazer às miúdas; enquanto isso, o Eduardo ali estava, no trono das minhas preferências, como quem veio para ficar.

Como fui injusta, como o traí! Deveria ter arranjado um modo forçado que o fizesse voltar para casa, mas não consegui. Nunca me senti tão fragilizada. Rejeitei um. Qualquer? Não entendo as minhas próprias opções... Quando estou perto de Eduardo, não me sinto eu. Há uma química estranha, uma vontade de agradar, como se quisesse ganhar um concurso... Ser a primeira do pelotão das suas escolhas.

Ninguém percebeu o que se passara, consegui desmanchar a bomba mesmo a tempo de ela rebentar! Desta vez saí‑me bem, mas convém não repetir a graça, êxitos destes não voltam a acontecer!

Só ficou a minha angústia e um cansaço exacerbado. Saiu‑me um peso de cima dos ombros... Durante todo o dia o Eduardo sentiu‑me tensa, nervosa, pouco natural. Não fui coerente com o meu discurso dos últimos dias... Fiz‑lhe ver que tínhamos chegado a uma pausa, não lhe mostrei naquele dia nenhuma pausa, nem tenções de a fazer. Que irresistível incoerência...

Ficou para jantar. A noite foi‑se arrastando entre bocejos e conversas fúteis. Estava tudo estragado. Disse‑me adeus com um beijo quente, no varandim das Olaias. O nevoeiro encobria o jardim e a estátua de pedra, que permanecia há séculos na mesma posição. Quando vi os faróis desaparecerem ao fundo da estrada de areia, dei um profundo suspiro de alívio... Dois carros, dois homens, duas histórias, a caminho de Lisboa. Nenhum deles disponível para eu amar, os dois disponíveis para me amarem, ou apenas desejarem, egoisticamente, sem escolhas nem soluções.

‑ Bolas Luísa, desta vez foi à tangente!

‑ Só tu tens o condão de te meteres nestas alhadas, inutilmente!

‑ Foi inesperado: dois cavaleiros na disputa da mesma diva! ‑ disse já a sorrir...

‑ Ou uma diva que não quer perder nenhum dos cavaleiros, ‑acrescentou a Luísa num tom de gozo...

‑ Muitos dragões vão ter de matar, muitos duelos combater, para decidir qual dos dois beneficiará do meu amor!

‑ Que te tenha servido de exemplo, Teresa! Não nos faças mais jogos destes que eu não resisto... é uma perfeita tempestade emocional!

‑ Espero que não haja melindres... Será que o Eduardo percebeu?

‑ Não me parece, mas ele é realmente muito esperto. Se te conhece bem, pelo menos notou uma certa tensão, uma certa inquietude...

‑ Veremos... sinceramente, pouco me importa, não quero magoar ninguém mas também não quero ser magoada... faço com eles o que eles fazem connosco, e que nós nem nos apercebemos. É a vingança do chinês! Quantas e quantas vezes nos deixam plantadas, nos trocam no último minuto, usam e abusam de nós, sem termos capacidade de resposta. Assim, até sabe bem! O doce sabor da vitória! Pelo menos desta vez fui eu que deitei as cartas. Os homens são uns parvos, julgam que dominam sempre! Enganam‑se!

‑ Eu diria mais, Teresa: metafisicamente foi sugestivo, um episódio que dá que pensar, "ser ou não ser eis a questão"!

‑ "Querer ou não querer eis a questão", não será assim Luísa?

E ali ficámos conversando, com os ânimos já mais leves e as pulsações mais compassadas. Reviver o dia, analisá‑lo, perceber o que de bom e de mau fizemos. Não querendo fazer juízos de valor, revejo o sucedido como arriscado, um jogo perigoso. Não tenho a certeza se saberei jogar!

Já passou a tempestade, ou melhor esta tempestade. É sem­pre bom percebermos as nossas escolhas. Foi isso que me levou a ir ao IPO, visitar a Joana, pela última vez.

Sentei‑me aos pés da cama e ela esboçou um sorriso triste e apagado, já mal conseguindo falar... Como sempre, nestas alturas, não devemos deixar transparecer o mínimo sinal de dor. Os cabelos aloirados, pálidos, caíam‑lhe finíssimos e ralos até aos ombros. As olheiras fundas e escuras emolduravam‑lhe os olhos cada vez com menos brilho. Um quadro de profunda agonia, contrastando com o sol forte de Janeiro que inundava o quarto de luz, fazendo reflectir na cama a sombra das rosas que, na jarra da mesa de cabeceira, tentavam impingir o seu perfume ao último dia da Joana. Ao lado das rosas, uma Nossa Senhora de madeira, de mãos postas e olhar doce, trazida pelo tio da Joana, para a proteger e salvar como fizera a si próprio nos seus tempos de forcado. Ajudara‑o, velara por ele nos momentos difíceis em que tivera de enfrentar com a sua coragem e bravura uma praça apinhada de gente, a quem iria demonstrar que era capaz.

Também a Nossa Senhora ajudaria a sobrinha a vencer, com a mesma coragem e determinação a doença que a aterrorizava. Sairia vencedora como de uma pega de caras.

‑ Não me deixe morrer, Setôra, faça qualquer coisa...

‑ Que conversa absurda Joaninha, não tarda nada voltas às aulas e nem vais ter mãos a medir com tantos trabalhos em atraso ‑ menti, fazendo um esforço sobre‑humano para não desatar a chorar.

O tom de súplica na sua voz mortiça era já uma constante. Uma voz trémula e distante mas com a força de um grito de socorro. Ao olhar o seu fim, percebi que tudo deixava de fazer sentido. De facto, a nossa vida resulta de uma constante entre dois pontos: nascer e morrer. A linha que vamos traçando pode ser mais ou menos curta, mas sempre finita. Tudo se resume a uma pausa, um compasso de espera.

A Joana tinha percorrido uma linha muito curta, era chegada a sua hora. Fechei a porta do quarto e respeitei profundamente o luto que ali se fazia sentir. O eco e a frieza dos corredores do IPO, nada mais eram naquela manhã de Inverno do que o trilho de um mundo vazio... Um luto constante, onde nada há já a esperar, apenas que o eco de vozes distantes e passos perdidos se torne tão absurdo e despido, que nos dê uma vontade louca de fugir dali, como se de um inferno se tratasse.

Magoa‑me tanta indiferença. Enfermeiras, médicos, empre­gadas e maqueiros que por ali transitam indiferentes ao drama que reveste as paredes daquele hospital. A banalidade das suas conversas, o que é o almoço, onde está a última revista Caras, não sei da escova que deixei no gabinete dos pensos, ou quem vai casar com quem na novela da SIC. Dois pisos acima, a Joana morre com 14 anos, e tudo o que fazem é beber bicas e discutir trivialidades? Este mundo não tem coração. Que profunda revol­ta senti. A vida continua; lá está: rotinas, quotidianos, aquela outra gente criou as defesas necessárias à própria sobrevivência.

Ficámos ainda mais sós e no dia seguinte fizemos na escola uma sentida homenagem. Arrumámos os seus dossiers, estojo e estirador. Foi definitivo. Sentimos a sua presença profunda e permanente ao depararmos com uma carteira vazia, desta vez, vazia para sempre. Deixámo‑la ficar ali, para que a relembrassemos em cada aula.

A nossa homenagem foi apenas uma conversa aberta sobre o que é, e sempre será para nós, a Joana. Um sorriso franco e aberto, uma timidez mal disfarçada, uma capacidade inigualável de sonhar. Nunca mais me hei‑de esquecer de uma redacção em que me escreveu sobre os homens dos Descobrimentos: "tiveram que vencer os seus medos para alcançar os seus sonhos" e depois explicava: ‑ é mesmo assim, ainda hoje, em tudo o que faço e me custa um bocadinho, penso que devo vencer o medo do principio, se quero chegar mais perto do que sempre sonhei, e que parece estar fora do meu alcance.

O que sonhou, ficou por saber... Venceu o medo da morte, terá chegado onde quis?

Chorámos, rimos, ouvimos, como ela fazia, nos seus headphones, a música do Titanic, lemos alto uma passagem do Diário de Anne Frank de que tanto gostava. Ficou para sempre entre nós, renascida agora de uma outra forma, mais etérea, mais mística, mais forte para todos, que com ela crescemos, que com ela cumprimos uma parcela da vida. Nunca pensámos que fosse a maior de todas.

Tudo é incrivelmente relativo. Numa história controversa, triste e bonita como poucas, resta‑nos aceitar um lugar vazio, com o peso da derrota, criado pelo vazio de um lugar.

A ternura faz toda a diferença.

Nestes momentos de maior solidão, o Eduardo parece não entender a força e o carisma que podem nascer de uma profunda comunhão de afectos. Entre mim e o Diogo havia brilho, sedução, o desvendar de um caminho sem limites. Impor limites para tudo, confinar o prazer ao momento físico e não deixar transpor essa barreira nem um milímetro é não aceitar a voz da vida. A razão pouco ou nada ajuda a cicatrizar as profundas feridas que diz ter. Não sei jogar assim, estar de pernas e braços atados, logo no início, é devastador.

Lembro com uma saudade quase infinita os tempos de ontem com o Diogo, em que tudo era permitido: o peso das palavras, o despertar do sentidos, o envolvimento cada vez maior na descoberta dos nossos corpos.

A ternura faz toda a diferença. Digo e repito para mim mesma, enquanto assisto impotente ao percurso que vou fazendo nos braços do Eduardo. O seu corpo e o seu espírito que se manifestam frios, distantes, apagados. Toda a força da personalidade que teima em mostrar‑me é inversamente proporcional à fraqueza da sua vontade, ao sentir‑se atraído por este íman a que me compara. Não quer, não pode, não deve.

O Diogo, podia, queria, fazia‑me sentir que devia. Mas é fraco, fraco como poucos e não optou por mim. Tudo isto contrasta como branco no preto. A quente envolvência, os momentos de total submissão, a magia das palavras e a entrega apaixonada que conferíamos em cada segundo, tudo contrasta com a sua incapacidade de reagir, de decidir, de fugir e de procurar ser feliz.

Parece uma suprema banalidade de ideias; "está nos livros", como diz a Luísa, está nos livros o facto de o Diogo ter medo, está nos livros não querer trocar o certo pelo duvidoso, está nos livros a dificuldade acrescida que é mudar, dizer "não quero mais o que tive até aqui, quero arriscar, escolher de novo, entrar numa nova roda da fortuna."

Estou assim de mãos dadas com quem não amo, e com quem diz que não me ama, porque renuncio total e eficazmente a quem amo e a quem me ama. Estranho... Uma opção destas, de prioridades invertidas não parece exequível mas é‑o, tanto mais quanto a outra opção seria o vazio. E de vazios, mesmo vazios tenho um medo escuro. Inexplicável.

Seja o Eduardo e o perigo eminente que representa ao preencher este espaço ainda que parcialmente, ainda que com a sentença de morte marcada algures num futuro próximo. Atemoriza‑me voltar a sofrer, deixar‑me ir é vaticinio de um sofrimento tão grande quanto o anterior. Pelo menos. Tudo começou torto, com regras e leis a mais. Subtraí‑las? Apagá‑las? Tábua rasa? Duvido... Enchi de nós cegos mais este fio. Confesso que não sou profeta e não percebo nada de nada.

- Deixa o tempo correr, Teresa, não queiras Precipitar tudo. Por enquanto não te vejo com grande vontade de lutares por mim ‑ queixava‑se o Eduardo depois de um jantar tête‑à‑tête no XL.

- Lutar por ti? Tu não vives hoje, Eduardo, ainda estás em ontem, a tua cabeça, o teu espírito nunca aqui estão...

‑ Não entendo as mulheres, é isso, estou cansado de tentar entender a minha ex, o meu esforço vai ainda todo nesse sentido, perder é uma porra...

‑ Esquece Eduardo, acabou pronto, agora a vida segue. Eu também tenho de viver nas cinzas de um insucesso, de um falhanço se quiseres, mas como tu o dizes: deixa, que o tempo ajuda e faz milagres.

‑ Que conceito tão banalizado, Teresa! Em última análise, não acredito nas relações profundas entre homem e mulher; digo‑te mais, não acredito nas mulheres, absolutamente nada.

‑ Quer dizer que também não acreditas em mim?

‑ Tenho razões para acreditar?

‑ Se eu te disser que gosto de ti, Eduardo, e que aconteceu sem eu dar por isso, acreditas?

‑ Não se responde a uma pergunta com outra pergunta.

‑ Está claro, Eduardo, o futuro o dirá.

‑ O futuro o dirá, mas vais ter de ser muito paciente, muito lutadora, muito resignada, o que duvido, duvido de um qualquer futuro ao teu lado, tu vais desistir a meio da caminhada. Eu sei. Avisei‑te para não te deixares ir comigo, sou instável, incapaz de me concentrar só e apenas em ti, incapaz de calmamente me deixar envolver. Magoas‑te, miúda. Gostar é diferente; não me perguntes o que é gostar, o que é isso da paixão, eu sei bem e custa horrores a sarar; as paixões são funestas porque vivem, desamparadas, no maior egocentrismo. Sobretudo, se não se percebe como acabam.

O Eduardo parou o carro à porta de minha casa e com toda a sua crueldade dissimulada, resmungou entre dentes ‑ vou‑me deitar, hoje não subo ‑ era assim, de repente, sem eu dar por isso. Tirei a chave da carteira, encostei a minha cara à dele e sussurrei ‑ Até amanhã, mau feitio! ‑ odiei a sua crueldade, porque naquele minuto, nada me apetecia mais do que tê‑lo ali e desfrutar de uma noite de "prazer físico", como ele deselegantemente classificava. Mesmo assim, de uma forma tão redutora, apetecia‑me ir muito.

Fechei a porta, mordida de raiva atirei a carteira para cima da cama, acho que adormeci a insultá‑lo.

O Eduardo, no dia seguinte, pediu‑me para tentar voltar para o João. A Cuca e a Marta pedem‑me para haver outra vez família. O Pedro obriga‑me a reflectir e a pensar nas minhas opções. A Luísa já nada diz porque o Francisco Geada reapareceu. O Álvaro toca piano para sobreviver e inspira‑se na Luísa e em mim como se as duas fossemos uma só. É este o ponto da situação. E eu deixo‑me ir nas teias da vida.

‑ A Cuca estava preocupada, Teresa, não nos queria dizer onde tinhas ido no fim‑de‑semana ‑ disse a Luísa em tom de crítica, enquanto jantava em minha casa, os habituais "redon"!

‑ Tem sempre medo de pôr o pé em ramo verde. Tenho que desresponsabilizá‑la um bocado, parece que carrega às costas todos os males do mundo.

‑ Já agora pode‑se saber? ‑ perguntou inquisidora dando a última garfada no puré.

‑ O Eduardo e eu, fugimos...

‑ E então? Está a ficar mais sério?

‑ Nem por isso, foi só uma escapadela até ao Algarve, foi encontrar‑se com uns clientes e aproveitou para me levar a passear, imagina... não teve valor acrescentado.

‑ E vocês, entenderam‑se, quer dizer foi uma pseudo lua‑de‑mel, não?

‑ O Eduardo protege‑se, Luísa, é bom assistir ao desmoronamento das suas muralhas, percebes? Mas, não é ainda um gajo apaixonado por mim que ali está.

‑ Ou disfarça bem, não será Teresa?

‑ Não me parece, protege‑se naquela couraça e pouco há a fazer; é totalmente e irrecuperavelmente incoerente... ‑ queria ter dito exactamente o contrário...

‑ Até quando é que vais atrás dessa miragem?

‑ Enquanto der... ‑ suspirei. ‑ passa‑me a água, este assunto põe‑me seca!

‑ Estou cansada Luísa, e detesto não ser a rainha da história; sinto que perto do Eduardo não tenho qualquer autonomia. Ele põe e dispõe e vai abrindo feridas cada vez mais profundas...

A Luísa levantou‑se para buscar o cinzeiro, acendeu o cigarro e depois de duas passas demoradas, acrescentou:

‑ Porque tu deixas. Era suposto ser um romance levezinho, a tal história das gavetas...

‑ Pois era, agora só quero ter força para fechar a gaveta Eduardo e fechar também definitivamente a do Diogo.

‑ Ainda? julguei que era caso arrumado.

‑ Nem tu sabes Luísa, o arrumado que está, tão arrumado como o teu Francisco Geada...

Apanhei‑a de surpresa. A Luísa arrastou a cadeira, mudou de posição, olhou‑me de frente e perguntou, admirada com a minha perspicácia:

‑ Como é que sabes?

‑ Não sei, suspeito que também não fechaste a gaveta.

Levantei‑me irritada e fui pôr os pratos à cozinha. – Queres café?

‑ Se tiveres descafeínado, aceito.

Quando voltei com o reparador café, a Luísa retomou o tema:

- Ele é único Teresa, não imaginas o prazer que eu tinha no meio de tanto sofrimento...

‑ Voltou a procurar‑te, foi?

‑ Voltou.

‑ E então?

‑ Não consegui.

‑ Não conseguiste o quê?

‑ Renunciar ‑ concluiu a Luísa.

‑ Ou seja: foste ter com ele... Estava‑se mesmo a ver!

‑ Mais ou menos, ele agora diz que me ama!

‑ Boa Luísa, era o que te faltava... e a Guiomar grávida. Que quadro tão patético!

‑ Não está a viver com ela, mas assumiu a criança...

Este assunto fazia doer. Via‑se o transtorno causado na cara da Luísa, que direito teria eu de remexer na ferida?

‑ Também não faz tenções de viver contigo, não é Luísa?

‑ Nem eu quero. Vou ter de pôr um fim a esta novela.

‑ E já Luísa! Chega, não te parece? Assim não vais a lado nenhum. Nem o ganhas, nem o perdes. O melhor que podias fazer era dar uma hipótese ao Álvaro. Acho que encaixa ‑ talvez seja por aí o caminho da Luísa, comprometi‑me a fazê‑la encaixar no Álvaro!

‑ Tenho estado com ele, mas sem chama. Telefona‑me vezes sem fim lá para a agência...

‑ Continuas a gostar do trabalho, Luísa?

A Luísa tinha mudado há dois meses para outra agência de publicidade. Tudo era novidade!

‑ É giro, um ambiente descontraído e nem sequer muito stressante. No meu departamento destoo um bocado, por fora pelo menos. Ao princípio faziam cerimónia, por eu ser mais velha, agora já me tratam de igual para igual.

E o teu colega da frente, ainda te divertes com ele? ‑ por aqui conseguia tornar a conversa mais leve.

‑ Qual? O das camisas às cores sortidas que descombinam com a gravata de Goofy, fantasminhas ou Tim‑Tim? Com o bigode mal semeado e três pelos de cabelo no cimo da cabeça? perguntou a Luísa a rir... ‑ Esse, continua com um vago ar de criativo que lhe assenta às mil maravilhas. Aliás, ‑ continuou ela ‑ a agência é povoada de seres de todas as espécies, desde os tradicionais accounts de gravata, sapatos engraxados e peito inchado, às meninas da outra batida com T‑shirts coladas de modo a serem objecto de "uma boa leitura", não esquecendo os putos, estagiários com cabelos cor‑de‑laranja! Uma "fauna" invejável, um desfile de tipos diferentes, de conversas surrealistas de cochichares e segredos, lobbys e influências, onde querer ser melhor, caindo nas boas graças do chefe, é uma constante. Como eu me estou positivamente a marimbar para este tipo de promoção, quero é cumprir e não dever nada a ninguém, acho divertidíssimo. Passa‑me ao lado. Positivamente, ‑ rematou.

‑ É tudo assim?

‑ Uma grande mistura de pessoas e personalidades, Teresa. A agência está minada de miúdos de vinte e poucos anos no princípio de vida, desmesuradamente criativos e ainda cheios de ilusões...

‑ E tu desmentes?

‑ Não confirmo nem desminto, mas faz‑me ternura verem a vida tão pintada de cor‑de‑rosa. Um deles vai casar‑se agora, vive todo o frenesim buliçoso das vésperas.

Eu não tenho ilusões nem nunca as tive, a vida vem‑me cansando dia para dia, já ninguém luta, já ninguém se esforça por agradar, enfim, já ninguém cede. Quando assistimos a estas marchas nupciais em frente dos nossos olhos, só me apetece dizer‑lhes que a história é mentira e que ainda vão a tempo de acordarem. O mundo parece não me querer ouvir, Teresa.

‑ A quem o dizes Luísa, e tu nunca foste casada! O desgaste que o dia a dia imprime no casamento, é o pior dos inimigos. Nas vésperas tudo o que os padres nos dizem é inútil, os bons conselhos e as vozes da experiência parecem totalmente desprovidos de sentido. Depois, no terreno, com o passar dos anos, aí sim são precisas e ouvidas todas as preces, aí sentimos necessidade de uma prancha, de uma ilha para não deixarmos que tudo nos fuja entre os dedos, ‑ desabafei, totalmente convicta das minhas palavras.

‑ Passo o dia na agência a ouvir relatar os preparativos, a organização, o entusiasmo, Teresa. É tudo inversamente proporcional ao meu permanente desacreditar. Se pudesse voltar atrás, também queria ter hipótese de encarnar um romance na praia, ao pôr‑do‑sol, com todos os ingredientes, com todos os sentidos. Não foi isso que nve, não foi o que escolhi e agora já é tarde... ‑ E a conversa vinha, sem querer, dar ao mesmo ponto.

‑ Nunca é tarde Luísa, nem podemos desejar aos outros todo o mal que nos pesa nas costas. Se estamos desiludidas, se calhar a culpa é nossa, tudo o que nos vai acontecendo, de bom e de mau, é por nossa culpa; não soubemos gerir este carrossel em que nos metemos. Andamos à volta à volta, e não saímos do sítio.

- Exactamente, uma lufada de ar fresco é que nos convinha, ‑ sugeriu a Luísa.

‑ Ou uma paixão arrebatadora, daquelas que não acabam...

E que consomem... ‑ acrescentou, acendendo um novo cigarro ‑ tens pastilhas?

‑ Talvez, ‑ disse remexendo na carteira ‑ o Eduardo deve ter deixado algumas por aqui, era viciado em Chicletes.

Passei‑lhe a caixa, depois de saborear os primeiros instantes, suspirou profundamente desiludida...

‑ O melhor ainda seria apagar tudo e reescrever desde o princípio, só que não há borrachas assim...

‑ Quem me dera, podes crer que começava já. Estou farta de romances inacabados e desencantos forçados, estou farta de tudo!

- Já reparaste que só falamos de homens e de histórias de amor? A vida não se resume a isso, nós é que lhe imprimimos uma importância fundamental. Eu tenho as minhas filhas, os meus alunos, a Joaninha que nos deixou com 14 anos, os amigos, tudo. Mas acabo sempre por dar a maior fatia ao privilégio de um romance. Parece que me desgasto, nesta vivência acelerada de um caso de amor.

‑ Inutilmente, tudo o que começa acaba, o que fica são as tuas filhas, a família, os amigos... o resto vai como o pó. Não dizia Lavoisier: "nada se perde, nada se cria, tudo se transforma" é isso mesmo, tudo se transforma, temos é que aceitar essa eterna e às vezes dolorosa transformação.

‑ Só gostava de saber Luísa, onde vamos buscar forças... nem pareço uma pessoa forte, sinto uma imensa inércia e nem me dá vontade de lutar por nada, apetece‑me aceitar o destino, seja ele qual for.

‑ Ninguém faz isso, ninguém aceita de mãos beijadas o que o destino lhe traz... Devemos interferir.

‑ Não sei se acato essa Luísa, a nossa história está escrita e se ainda não aconteceu é porque não era para acontecer. Tenho fé que alguém, algures, saiba o que é melhor para mim. Estamos numa má onda, por agora não temos tido a sorte que achamos merecida, será altura de fazermos uma pausa?

‑ Queres dizer, uma pausa no Eduardo, e eu uma pausa no Francisco?

‑ Se forem eles o factor do nosso desencanto, então acho que sim. Merecem uma pausa ‑ concordou a Luísa.

‑ Façamos então uma pausa, ou uma tentativa de stand by para que desembaciemos as nossas vidas. Somos fortes? ‑ perguntei.

‑ Muito, ‑ respondeu a Luísa.

‑ Então concordamos que os atormentadores de espírito vão adormecer em nós?

Acho que sim... Merecemos sobreviver. Lembra‑te do provérbio que tão bem resume todos os stand by da vida: "o amor está para a distância, assim como o vento está para o fogo; quando ele é grande torna‑o maior, quando é pequeno apaga‑o de vez"! Façamos pois um brinde aos dias que hão‑de vir.

Com os restos de vinho das Olaias no copo, brindámos ao stand by e à nossa força. Nada, nem ninguém iria conseguir derrubar a tão imperiosa vontade de seguir em frente, a rir, sem medos, sem reticências...

E foi assim que conversei com a Luísa, fiquei a pensar no provérbio, sem querer a Luísa dera‑me animo para continuar... Ficámos de conseguir a tal pausa, a fim de ganharmos pontos e de vencermos a nossa própria batalha. Ser derrotada por mim própria, nem pensar. Vamos conseguir! Descobri que a minha prioridade sou eu. Vai ser óptimo não depender de telemóveis e de encontros fortuitos... vamos agora medir a minha coragem.

 

Será que consigo ver o Diogo e ficar indiferente? Temo esse momento a cada dia que passa. De cada vez que me cruzo com o filho no liceu, o meu coração pára de bater. Através dele, adivinho uma parcela do quotidiano de uma outra família que não é a minha... Não quero destruir o que o Diogo chama de felicidade, embora saiba que tudo continua a ser um entrelaçado de vidas cruzadas. A ausência afasta ou aproxima? A Luísa diria que, no mínimo, a ausencia é salutar. Eu não estou ausente do Diogo, porque inventei um Diogo para falar, já o fazia Fernando Pessoa com o seu Chevalier des Pas. Ele telefona de quando em vez e nesses instantes, o ar fica pesado e a atmosfera desce, encobrindo de dúvidas cada novo momento em que ouço a sua voz. Não desisto, nunca desisti, mas preciso de vitaminas para continuar.

Não me esqueço mais de toda a desilusão trágica, que veio rematar o final do Diogo.

Foi esperar o filho ao liceu, numa tarde amarelecida pelo Outono, pretexto para me ver. Apareceu com um sorriso lindo.

E de súbito atacou com uma tirada fora de contexto Acredita em bruxas Teté?

‑ Em bruxas ? A que propósito? ‑ desta vez não percebia onde o Diogo queria chegar. Surpreendente!

‑ O Halloween em Nova Yorque, dizem que é fantástico!

‑ Talvez Diogo e...

‑ E... ‑ continuou ele ‑ vamos no sábado de manhã princesa, às 11 horas no aeroporto!

‑ Deve estar a brincar Diogo, eu consigo em Nova Iorque, os dois? Eu e você no fim‑de‑semana? E a sua mulher, como consegue? ‑ engasguei‑me e prossegui ‑ nem acredito! Acha?

‑ Vou em trabalho, quer dizer, ela pensa que é assim, e depois as crianças, o emprego, não está para aí virada.

Saltei ao pescoço do Diogo. Acreditei.

‑ Vá lá miúda, organize tudo com as suas filhas, depois ligo‑lhe. Vem aí o Manel, já estou atrasado, como de costume.

Mal o Diogo virou costas, soltei um grito que se ouviu em todo o liceu, em toda a Lisboa, em todo o mundo: ‑ Yes!! Fui aos saltos para o carro, abri a janela e voei até casa, o João que sim, ficava com as miúdas, até gostava. Liguei à Luísa, eu excitadíssima, ela menos esfuziante, eu é que sabia, pois claro, se achava bem, então que fosse e que me divertisse; no outro dia as aulas correram como nunca, a Setôra hoje está contente, muito contente, pois claro é sexta‑feira e estes textos são tão bonitos que até dá gosto; e ao fim do dia jantar na cozinha, com as crianças, no dia seguinte estaria ajantar à luz das velas por debaixo da ponte de Brooklin; a mala, dizem que está a nevar em Nova Iorque, roupas quentinhas, na Internet prevêem uma vaga de frio, sapatos bons para andar e o body preto de que o Diogo tanto gosta; não esquecer a mala da Cuca e da Marta, os livros para estudarem com o Pai, que lirismo! O passaporte, sim estava em dia, e finalmente tentar dormir ! Depois de quinhentas voltas na cama lá adormeci, um sono irrequieto, povoado de sonhos. O Diogo aparecia e desaparecia, deixando o meu corpo coberto de lírios, e de perfume e regava‑me. Eu, transformava‑me em pó e em nuvem e voltava ao meu corpo mas ele não me via, nem me tocava, segredava‑me ao ouvido em surdina palavras lindas, lindas e contava‑me histórias sem nexo, mas cheias de sons, de cores e pouco importava, era o seu calor, o seu cabelo liso, o seu cheiro... Desejei que fosse manhã, para o ter inteiro, de verdade, perto de mim a caminho do dia das bruxas, a caminho de Nova Iorque. Saltei da cama antes do despertador tocar, precipitei‑me para o duche, vesti umas calças cinzentas justas e uma camisolona verde clara de gola alta, apressei as crianças e depositei‑as no colégio com mil beijos repenicados em cada uma. Enfim, a caminho do Diogo.

Partidas Internacionais 11 horas, ele traria os bilhetes e eu não me tinha esquecido do passaporte. Bom, deve estar a chegar. Nada, o Diogo atrasara‑se. Bebi um café à pressa com os olhos colados à porta. Continuava sem aparecer. Podia‑me ter vindo buscar, achou que levantava a lebre, independentes, para não haver suspeitas. Vem de táxi, chegam tantos, parecia vê‑lo! Não, era um homem mais alto com um cão. já sei, deve ter ido tomar o pequeno‑almoço. 11 h30, começo a ficar inquieta, o voo é à uma da tarde, temos tempo. 11 h45, nem sombras de Diogo. Ligo‑lhe para o telemóvel, desligado. Deixou‑o em casa, não adianta deixar mensagem, vem a caminho. Começo a suar, está calor aqui, mas em Nova Iorque deve estar um gelo. Vou comprar um chocolate. Não, claro que não posso fazer o check‑in, não tenho o bilhete. Ideia maluca que me ocorreu, ligar para casa. E a mulher? Pois é, foi trabalhar e se ligasse mesmo? ‑ O senhor Engenheiro? Saiu para o emprego, minha senhora, deseja o telefone? ‑ Não, não desejo, obrigada. ‑ Desliguei já a soluçar. Ligo para o emprego. ‑ O Engenheiro Diogo Teixeira? Está em reunião com a direcção. ‑ Mal consigo balbuciar um obrigada

frio. Rendo‑me sem forças. Tudo do avesso. Sentei‑me nos degraus do aeroporto indiferente àquela azáfama de passageiros felizes, empurrando malas a transbordar de vida. Apoiei a cabeça nos braços e chorei, um choro desenfreado. Pela primeira vez tive pena de mim. Mais uma sacudidela. Fiquei imóvel, longos e tristes momentos em que não pensei em mais nada senão no Diogo, via‑o em imagens confusas que se multiplicavam até à exaustão. Não tinha como sair dali, daquele espaço chamado aeroporto, daquele espaço chamado Diogo, que me acorrentava, me desfazia, me matava. Apesar da avó me ter dito que ninguém morria de paixão, eu tinha a certeza que era mentira. Ia morrer ali, naquelas escadas sozinha, para sempre.

Limpei os olhos à manga da camisola, talvez fosse melhor não fazer cenas em público e morrer em casa. Já não há compaixão. Encaminhei‑me aos ziguezagues para a porta e chamei um táxi.

Não olhei para trás.

A Maria do Carmo apareceu lá no Liceu, essa precisa de vitaminas para parar! Está acelerada, frenética, bebendo uma nova forma de vida imposta pelo Rui. Esta instabilidade é própria, só própria, mas passa, depois do seu período de lactência. Com os meus alunos tenho aprendido a temporalizar os momentos e a ouvir. Quando quero passar uma ideia, primeiro tenho que sentir toda a erupção dos seus pensamentos, e tentar envolvê‑los num discurso qualquer que lhes interesse. É giro, ver como os mais rebeldes acabam por ser os mais entusiastas, nestes confrontos de ideias. Quando falo, nunca exijo atenção ou silêncio absoluto. Tem a sua graça senti‑los primeiro distantes e indiferentes e a pouco e pouco, ao constatarem que a conversa lhes interessa, começarem a aproximar‑se e a tecerem alguns comentários soltos, no seguimento dos quais vem crescendo toda a sua irreverência e revolta. Deixá‑los falar é meio caminho andado.

Pedi à Maria do Carmo para me apresentar o Rui.

‑ Então és tu o eleito?

‑ Parece que sim Setôra! ‑ respondeu, meio envergonhado!

‑ Sabes Rui, a Maria do Carmo põe‑te nos píncaros! Tens qualquer arte mágica para a teres enfeitiçado deste modo.

O Rui riu‑se mas não respondeu. Começou a olhar à volta tentando mostrar‑se desprendido da conversa. Eu continuei:

‑ Em que ano andas?

‑ No 12º, estou farto.

‑ Estar farto agora é uma parvoíce. Quais são os teus planos para o próximo ano? ‑ fui directa e olhei‑o nos olhos.

‑ Não tenho planos... Gostava de ir para arquitectura mas não tenho notas.

Vi no Rui um olhar profundamente vencido. A Maria do Carmo, essa, irradiava alegria e entusiasmo. Detectei um desajuste. Ocorreu‑me falar à Luísa no Rui, porque não? Há sempre uma saída...

‑ Olha Rui, não te posso prometer nada, mas vou falar com a Luisa, prima da Maria do Carmo, pode ser que te arranje um biscate na agência de publicidade onde trabalha. Que te parece?

O Rui ficou calado uns instantes, como se não tivesse resposta pronta.

- Um biscate para mim? Porquê? Eu não valho nada, as minhas notas são médias e ando meio perdido, à toa, por aí.

‑ Exactamente por andares à toa, confio na opinião da Maria do Carmo, gostava de conhecer essa tua chama, vamos ver o que posso fazer.

‑ Porque é que havia de confiar em mim? Nem sequer me conhece... Desconfio...

‑ Não me costumo enganar Rui, tens força e capacidade. As oportunidades surgem, é preciso saber merecê‑las.

‑ Sim, mas há aí tipos com bué de notas e que fariam melhor figura.

O Rui jogava à defesa, e deitava as garras de fora...

‑ Está claro Rui, mas tu és igualmente capaz, as notas pouco revelam ...

‑ Então, é só para fazer um favor à Maria do Carmo... Não percebo porque é que me protege. A família dela é uma quequice pegada, só me querem ver longe...

‑ Se tu não deres provas, não duvides que primeiro está o bem‑estar dela. Tudo depende de ti. O resto vem com o tempo.

‑ Nem que eu fosse o melhor do mundo, para eles ninguém é baril!

‑ Isso é o que tu julgas! Já és crescidinho e dono da tua vida, não precisas da aceitação dos outros. Esforça‑te – sugeri, tentando não ser demasiado paternalista.

‑ Também não preciso de conselhos e digo já que não acredito em milagres, nem que seja eu o escolhido para trabalhar. Tretas...

A arrogância do Rui transbordava os limites...

‑ Olha Rui, tenho que ir andando. Vou falar com a Luísa, vê se arranjas mais confiança em ti ‑ disse a rir, de modo a tornar o ambiente menos pesado... A Maria do Carmo olhava estupefacta para todo aquele cenário. Uma fronteira social bem desenhada separava de facto aqueles miúdos, que aprendiam agora a realidade de dois mundos diferentes. As calças de ganga esfarrapadas em patch work, a camisola à cintura, os sapatos de borracha com cunha e o ar de gaiata divertida que a Maria do Carmo ainda aparentava, contrastavam abissalmente com o blusão de cabedal preto do Ruí, rematado por umas botas de tropa mal engraxadas.

Vou mesmo falar à Luísa. Enquanto conversava com o Rui, o filho do Diogo passou a correr com a pasta de rodinhas atrás, como se fosse um cãozinho. É um constante relembrar de que ele existe. Disse‑me adeus com a mão e seguiu viagem. Que turbilhão! Se aqui estivesse diria. ‑ vidas cruzadas Teté! ‑ Mas não estava, reconciliara‑se depois da trafulhice.

Ela descobrira o plano secreto Halloween, e os bilhetes de avião foram directos para o lixo, rasgados em mil bocados. Uma cena, está claro, das grandes. Telemóvel no cofre, inacessível mais uma vez, até ordem em contrário. Foi levá‑lo ao Banco, e ficou sentada na entrada, à espera da hora de almoço, queria ali estar, porque sim, só porque sim. Guarda‑costas do marido 24 horas. A tirana por excelência. Agora é assim, vais ver como fia mais fino. Telefonou‑me nesse mesmo dia: ‑ O meu marido não vai consigo para Nova Iorque, nem hoje, nem nunca percebe? Saia da vida dele, de uma vez por todas. É o melhor que tem a fazer ‑ isto, abreviando os insultos. No dia seguinte, uma chamada do Diogo: ‑ Querida não pude, não foi possível, desculpe, ‑ as lágrimas tropeçavam na sua voz. ‑ Adoro‑te!

Opções. Não tenho condição de as avaliar. Renúncia? Amor?

Afinal não morri.

Desisto.

Gostava de alinhar a vida. Só quero recuperar a estabilidade que também eu perdi na ruptura com o meu ex‑marido, João. Perinanentemente insatisfeita. É assim o meu auto‑retrato e, numa visão queiroziana com o título: "vencidos da vida".

 

Como se não bastasse, a Cuca partiu o compasso, a Marta veio do pai com o trabalho de Ciências por fazer, o computador estragou‑se e a empregada deixou esquecido na lixivia o meu blusão favorito. Tudo, numa 2ª feira à noite em que as miúdas chegam a casa chorosas e mal humoradas. Os fins‑de‑semana do pai, acabam sempre mal. A Marta é perita em atirar‑me à cara ter‑me separado do João. A Cuca aceita. Faz chantagem mas aceita.

Temos que fazer pequenas cedências aqui e ali, acho... também não me serve de nada achar... Quando ouço a Marta dizer aos gritos, que sou a culpada de tudo e que nem lhe expliquei nada porque é que me separei do pai, quando entre soluços desesperados me confessa que aos dez anos não quer mais viver, porque tem saudades da mãe, quando está com o pai e do pai quando está com a mãe, confesso que me sinto culpada, amassada, deprimida e angustiada. Tudo! Ou seja: culpa minha, que não sei gerir a estabilidade de um casamento, nem sei tornar felizes os meus filhos que, como diz a Cuca usando um chavão já antigo "não pedimos para nascer". Que bom lembrarem‑me!

A Marta com as suas fúrias, o bibe descosido, os cabelos pela cara abaixo e a sua paixão por esparguete, sempre põe cá para fora a raiva que tem de não ter sido uma menina exemplar. Não é boa a Matemática nem a Português, mas é um ás a futebol. Tratada como rapaz pelos rapazes, considerada de igual para igual, o que nesta idade é, de facto, uma promoção. A Cuca é o oposto: perfeccionista e determinada, capaz de vencer papões de noite, na floresta mais escura e tenebrosa. Uma força da natureza. Chora quando só consegue 80% nas provas, sofre sozinha, mas tem‑me como um modelo: copia o meu penteado, usa as minhas cores preferidas e devora chocolate. No Peter Pan a Marta revê‑se no herói, adorava não crescer e viver na terra do Nunca. A Cuca, pelo contrário é um espelho da Wendy, certinha e alinhada, características que herdou do João, e forte, como me retratam.

É assim! Não sei para onde me virar. Apetece‑me desistir, como no dia em que elas nasceram: não me cansei de gritar que queria desistir. Não me serviu de nada, claro. O João só lá esteve no fim, primeiro foi acabar uma experiência que tinha em curso. Todos os dias agradeço ter vivido esses momentos, a emoção de as ver a nascer é única e impossível de definir. Nunca me senti tão realizada e completa. Ainda que sozinha. Ainda que magoada pela relativa indiferença do João. Todos os momentos que se seguiram não foram em nada tão intensos como os primeiros. Velo a rotina, o cansaço, o desgaste fisico e emocional.

Agora, já lá vão dez anos de Cuca e Marta e posso confirmar que, apesar de serem inteiramente dependentes de mim, de ser eu a única responsável imediata por tudo o que lhes aconteça, vale a pena o esforço e a dedicação. Tento manter a calma ao ver o trabalho de casa sujo e atrapalhado da Marta, ou ao travar a Cuca de mais uma ida ao jardim de bicicleta quando já é quase noite. Tento mostrar‑me forte e clara nos meus princípios, nas minhas opções, quando por dentro não tenho nada, a não ser uma manta de farrapos mal alinhavada. É nesta permanente equação que tento ser uma mãe equilibrada, uma boa profissional, uma mulher paciente e resignada.

Telefonaram‑me do colégio das miúdas, são seis horas e esqueci‑me de as ir buscar. Estão no banquinho à porta, na esperança de que algum daqueles carros que descem apressados a calçada, seja o meu. Não pode voltar a acontecer.

 

Consegui convencer a Luísa a tentar dar uma oportunidade ao Rui. Franziu o sobrolho e desconfiou das minhas boas intenções.

‑ Ele ainda me arranja sarilhos, Teté!

‑ Não me parece Luísa, estes miúdos precisam é que os responsabilizemos. Depois se verá... Paguei o almoço à Luísa, numa tasquinha simpática ao pé do meu liceu.­

‑ Posso falar lá na agência, mas não sei se a tia Graça vai aprovar esta nossa pretensa protecção. Também não tem nada a ver com isto. Afinal, é visível e sabido que ela não gosta do rapaz. Para a próxima sou eu que pago, ouviste bem?

‑ Deixa‑te disso Luísa, ‑ disse enquanto mergulhava na carteira à procura do meu multibanco ‑ ninguém lhe pede que goste, estamos só a tentar dar um rumo diferente à vida dele, independentemente da relação curta, com certeza, que tenha com a Maria do Carmo.

‑ Veremos, Teté. Vou falar com o director criativo amanhã, o mais que lhe posso arranjar é um estágio na área do design, não tenho certeza nenhuma... E agora toca a andar para mais uma maratona na agência. Depois de almoço dá‑me um sono inexplicável, só lá vai à custa de cafés!

‑ Vais ver que consegues... pensamento positivo! ‑ concluí, despedindo‑me da Luísa com um piscar de olhos comprometedor!

Foi com esta certeza, de pelo menos estar a ser útil a alguém, que me senti melhor o resto do dia. As sombras, ora vêm ora vão, é a isto que defino como a minha instabilidade, pequenos dramas e pequenas alegrias vão tecendo contornos cada vez mais relevantes em mim.

Fui jantar com o Pedro. Levou‑me à Travessa como habitualmente. O Pedro adorava mexilhões, e ali era o local ideal para nos debatermos com duas travessas a transbordarem, sem parecer mal devorarmos tudo até à última concha!

‑ Não és só tu Teresa, ou pensas que esse vazio de que falas só é sentido por ti?

A conversa estava a ficar séria. Por detrás dos óculos encavalitados na ponta do nariz, o Pedro era tão frágil quanto eu e tinha a qualidade rara nos homens de o reconhecer, sem preconceitos.

‑ Já estás há um tempo sozinho Pedro, esta fase de adaptação a uma nova realidade custa bastante. Embora as mulheres sejam muitíssimo mais penalizadas pela sociedade. Mulheres sós é perigo à vista!

‑ A quem o dizes. Só estás sozinha quando queres. Tens as tuas filhas a viverem contigo, eu nem isso! Para os homens, é bem mais duro: há que deixar a casa, a família, a vida estável e fazer dos filhos um part‑time job!

‑ Sim! Saírem quando querem, com quem querem, terem o mundo aos pés. Nem por isso ficam mal vistos! ‑ afirmei, corada pelo picante do molho.

‑ Nem penses, eu ainda não consigo olhar por cima, nesta situação... bebe água Teresa parece que pegas fogo.

Continuei para não perder o fio à meada:

‑ Não consigo estar sozinha, nem um minuto... De mansinho começam a chegar os fantasmas do passado, o Diogo, o João... Parece que escolhem sempre a pior altura para aparecerem.

‑ Não os deixes chegar Teresa, fecha‑lhes a porta na cara! Só tu é que podes decidir deixá‑los entrar ou não. Se queres martirizar‑te, abre‑lhes a porta. ‑ um bom conselheiro, o Pedro, na teoria é tudo muito bonito.

Bebi litros de água para apagar o fogo que ateava a minha garganta. As moules estavam mesmo fortes. Bolas!

Continuei: ‑ Não a consigo fechar, Pedro. Às vezes forço‑me para me encontrar, para definir uma estratégia... Ainda é pior, só me sinto minimamente equilibrada se não for forçada a pensar. Quando tenho gente à minha volta, não penso, ou melhor conduzo linhas de pensamento, mas partilho‑as e o peso repartido, torna‑se mais leve.

‑ O teu ex, o João, também não está melhor, ‑ o Pedro tenta alcançar o ansiado equilíbrio entre um casal já inexistente ‑ a história dele é igual à tua, ou melhor, é a de nós todos. Histórias sozinhas mas que se repetem por todo o lado. Tenho descoberto muita gente à deriva, sem rumo...

Eu atalhei, contra atacando:

- Que pelo menos o João aproveite esta tareia para rever as prioridades. Talvez tenha crescido a ponto de perceber, que a ciência sozinha não traz o milagre da felicidade.

‑ Queixa‑se de não ter as filhas, mas de facto, o que o aflige, é estar longe de ti... Embora não reconheça!

Ganhei um ponto, pensei e acrescentei de enfiada:

‑ "Raramente me engano", não era a frase que ele dizia? Talvez seja esse o seu principal defeito, não assume os erros e a sua conduta é sempre por ele vista como correcta e a única possível no momento.

- Está mais quebrado, Teresa... também devias assumir que ele te faz falta... ‑ confessou com um sorrizinho irónico.

‑ Uma certa falta Pedro, sobretudo junto das miúdas. Arcar sozinha com todas as responsabilidades não é pêra doce. As mulheres são mesmo o sexo forte. Luto contra fantasmas, má‑criações e horas tardias para se deitarem, para além dos trabalhos de casa, micro‑ondas avariados, chávenas partidas e cereais que acabaram! Um pai ausente dá jeito e é, sobretudo para o João, muito mais prático e menos cansativo. Só tem horas de "pegar". Leva‑as, de cabelos lavados e roupa engomada para as devolver cansadas e divididas, profundamente aliviado por poder nos próximos quinze dias dedicar‑se à nobre causa de uma profissão supremamente exigente. As meias, nunca vêm aos pares, as calças não combinam com as camisolas e o casaco ficou esquecido em casa da avó. O trabalho de Matemática? ‑ Ah! não tivemos tempo de o fazer! ‑ Bolas Pedro, é inaguentável! - afirmei de uma só tirada, sem respirar...

Com este desabafo, a que o Pedro sorriu, encolhendo amargamente os ombros, deixamos o restaurante. Não estava com disposição para sair. Vim para casa. Despedi‑me da Maria do Carmo, sempre pronta para me ajudar e fui‑me deitar revoltada. Não adormeci logo. Pensei nos bandidos de que a Marta tinha medo. Se Calhar, ainda tinha mais medo do que ela. Só que me habituei a disfarçar tudo. Tudo e mais alguma coisa.

 

O Eduardo tem à sua razão, quando me diz que vegetam por aí muitas pessoas sozinhas e protundamente desinteressantes. Achei que era mais uma tentativa para me iludir. Tenho visto que não. Estanms rodeados de gente como nós, igual a nós, com os mesmíssimos problemas mas que procuram a todo o custo mascarar a realidade de uma vida isolada, com momentos perdidos e sem regras. E assim se cria a crença no "vale tudo", porque tudo é permitido. A Luísa na sua loucura organizada como a defino, acredita que as únicas regras agora existentes entre homem e mulher são os contratos que se estabelecem com as mulheres de ma vida. Aí sim, as leis são intransponiveis e ninguem as ousa quebrar. Tudo o resto é um barco à deriva que pára onde parar, embarca quem embarcar. Não há alianças que nos valham, famílias que nos prendam, princípios que nos honrem.

‑ Mesmo assim, os homens são melhores que as mulheres ‑ afirma a Luísa.

‑ Já sabes que não concordo Luísa, são uns cabrões. Continuo a achar.

‑ E as mulheres, umas falsas! Nunca dizem o que pensam e pensam tudo o que não dizem. Para além do mais são hipócritas! Não achas Teté?

‑ Acho que, mais uma vez, não há regras. Era disso que falávamos. O meu mal é ser demasiado sincera, não jogo, e quando tento, perco sempre.

‑ O nosso mal Teté, ‑ corrigiu a Luísa ‑ é estarmos para tudo dependentes dos homens. O mundo não gira sem eles. São vitais e todo o nosso percurso é infelizmente uma procura de estabilidade que passa obrigatoriamente pelas decisões deles e não unicamente pela nossa vontade. Estamos ao seu dispor...

‑ Nisso tens razão Luísa, o mal está nos meios que escolhemos para os atingir. Nem sempre são os mais idóneos.

‑ Nem sempre pensamos...

‑ E muitas vezes agimos do avesso. Não damos tempo, o nosso tempo, para curar feridas, vamos abrindo novas etapas sem cicatrizar as primeiras.

‑ Então deveríamos tentar não ser iguais às outras. Como diria a tia Graça, optar pela nossa pose snob de "marquesas" distantes e frias, cientes do nosso valor.

‑ Pelo menos Teté, não andamos por aí a cair de bêbedas nas boites, agarradas a uns e a outros, falando alto com a voz entranielada, entregando‑nos a beijos fáceis em homens fáceis.

‑ Essas mulheres Luísa, estão tão sós como nós e todas somos igualmente irracionais nas atitudes que tomamos. Temos que tentar perceber...

‑ Isto das carências, tem muito que se lhe diga...

‑ Mas vive‑se de qualquer modo. Nós é que as sobrevalorizamos.

‑ E no dia seguinte a pele fica mais baça, os olhos rodeados de olheiras, e a vontade de viver é ainda menor.

- É um ciclo.

- A vida é um ciclo, Teté.

Será assim? Com trinta e poucos anos abrimos ou encerramos um ciclo?

 

Fui ao cinema com o Pedro. Revelou‑me um segredo. Anda entusiasmado com uma miúda novinha. Haja alguém sintonizado.

‑ As coisas acontecem assim Teresa, quando a gente menos imagina ‑ disse à saída.

‑ Só espero que ela te mereça, e que desta vez não sofras.

‑ Só sofro se me deixar envolver demasiado. É esse o truque, manter sempre uma certa distância. Tudo o que tu nunca fizeste, Teresa.

‑ Tentei com o Eduardo. Aliás, continuo a tentar!

‑ E até quando? Vai ser a mesma cena do que com o Diogo, menina! Foste bem parva em acreditar nele.

‑ Não sei se acreditei ou se acredito ‑ disse, agora já revoltada pelo facto do Pedro ter encontrado uma chama nova, e eu continuar resignada a insucessos!

‑ És uma ciumenta, Teresa. Devias ficar contente por mim.

Estava tudo menos contente, nem conseguia mostrar o mínimo entusiasmo pelo romance do Pedro. Só me sentia perdida. Ainda mais.

Menos um amigo pensei, de um modo totalmente irracional. Menos um Pedro bem disposto e prestável para me aturar as neuras.

Entrámos para o táxi. O Pedro, era daqueles raros homens que não têm carta, por princípio. O táxi é muito mais prático, um motorista sempre às ordens sem subsídios de férias, nem décimos terceiros meses para pagar.

Entrámos para o táxi e de facto, no Pedro havia uma alegria diferente. Pensei como merecia um gozo destes. O Pedro já tinha passado por um caminho bem difícil. Que género de pessoa o teria cativado? Curiosidade feminina. Falou‑me muito nela, no seu idealismo, na capacidade de sonhar e, claro, nas suas pernas altas e magras, uma tara dizia! Que bom para ele, que mau para mim. Sentia que acabara de perder muito da sua companhia. Era natural que isto acontecesse mas, secretamente, tinha a esperança que não desse resultado. Talvez se fartasse daquelas pernas e em breve a achasse uma miúda parva e vazia.

Querer o mal do meu maior amigo? Não, mas egoisticamente prefiro tê‑lo mais tempo para mim, incondicional como antes.

Mudei de conversa:

‑ Fui ontem à primeira conferência no tribunal. Um horror.

‑ Calculo Teresa, a minha está marcada para daqui a duas semanas; de facto, quando temos um escudo para nos defender e amparar é muitíssimo mais fácil.

‑ Esse escudo bem falta me fez, só tenho escudos fictícios.

‑ Porque não queres, Teresa. Devias olhar o Eduardo com outros olhos, pelo menos não é um malandreco que por aí anda. E é teu amigo. No fundo, no fundo acho que gosta de ti! Protege‑se. Também ele tem medo de um compromisso para o qual não se sente preparado. Disso tenho a certeza.

       O táxi parou à minha porta.

‑ Hoje não vou entrar, tenho que passar ainda em casa da minha miúda. Para a semana apresento‑a. Deixa‑te de neuras e vive a vida! És gira, nova e cheia de interesse. Vai por mim, já que não achas graça ao Álvaro, o Eduardo é uma boa aposta. Pensa nisto.

Entrei em casa sem barulho, para não acordar as miúdas. Fui‑me deitar, mais uma vez não conseguia adormecer, pensei no Diogo, no nosso mundo cada vez mais perdido, pensei no Eduardo. Senti as suas mãos fortes e seguras, os seus olhos cor de amêndoa, o cheiro do seu perfume. Relembrei quase uma por uma, todas as vezes em que estivemos juntos. Senti como nunca a sua ausência, e fiquei ainda mais baralhada.

Decidi seguir os conselhos da Luísa e no dia seguinte marcar uma consulta com o psiquiatra. Talvez me ajude pensei, já nem a mim própria consigo entender...

Dormi mal e sobressaltada, sonhei com um Pedro ausente, perto de uma boazona de unhas, azul ferrete e cabeleira loira. Sonhei com um Eduardo diferente que me amasse e me desejasse ao mesmo tempo. Sonhei com o Diogo, no seu monte alentejano rodeado de filhos e feliz. Sem mim, mas feliz. Tocou o despertador, pensei que fosse o toque de saída de uma aula que tinha perdido.

 

A Luísa telefonou‑me logo de manhãzinha. O Rui foi aceite para um estágio na agência. Durante seis meses, terá que dar o melhor dos melhores, pelo menos tem um objectivo concreto pelo qual lutar. Vamos lá ver qual será a reacção da tia Graça e se conseguimos que a sua cotação suba. A Maria do Carmo ficou felicíssima. Não cabia em si de contente. Levantei‑me a correr, preparei os almoços das miúdas e a minha prioridade foi marcar a consulta: segunda‑feira às 16h15, disse‑me uma voz metálicamente antipática.

Já estava atrasada, no espelho percebi que tinha arrancado mais uma borbulha e que uma ruga nova estava prestes a aparecer ao canto dos olhos. Se calhar a fortuna que todos os meses gasto em cremes, não está a ser eficaz. Tomei um duche à pressa, que o Eduardo classifica como o melhor duche de Lisboa, vesti uns jeans e a minha camisola preta de eleição, pus uma camada de creme com cor para disfarçar o mau aspecto que começo a ter de manhã, engoli um copo de leite à pressa, limpei os bigodes brancos, besuntei a boca com um baton discreto, depositei as miúdas no colégio e finalmente parti para o liceu.

Agradeci o facto de ser dia de teste para todas as turmas. Não tinha energia para filosofar em Fernando Pessoa. A minha cabeça estava longe com um secreto medo da consulta no psiquiatra. O Eduardo não telefonou o dia todo, o que me fez acrescer de uma estranha sensação de o ter perdido. Quando o tenho na mão, continuo com o sintoma do "pouco me importo", encolho os ombros e penso: lá está ele, quando me evita ou não me dá a importancia que mereço sentir, subo paredes para o ter. Que bicho estranho é a mulher!

O toque de saída foi bem vindo como nunca, não estava ali, sentia‑me a navegar noutras águas. Cheguei pontual à consulta e em vez de um médico de bata branca e óculos na ponta do nariz, ávido de escrever tudo o que eu ousasse dizer, apareceu‑me um senhor grisalho com cara de caso, que se sentou confortavelmente numa poltrona ao lado da minha, numa sala que no início pensei ser a sala de espera e que se limitou a dizer uma palavra para começar: "Diga..."

Falei o que devia e o quejurei que não devia. Para me relembrar que estava ali, pedia‑me a par e passo que fosse mais para trás, sempre mais para trás. Não deu importância ao Diogo e demorou‑se no Eduardo, fazendo‑me criar a sensação de que ele agora assumia um papel bem maior do que eu tentava mostrar. Apesar da densidade da conversa, não me conseguia abstrair da fortuna que se consumia a cada minuto que passava. já não dá para o livro que namorei na Bertrand, nem para aquele vestido justo da Stretch... Saí com um nó na garganta, e apesar da minha habitual forretice, que depois de passar o cheque deixou de me preocupar, não gostei mesmo nada que me fizesse relembrar episódios antigos que julgava estarem arrumadinhos, esquecidos num qualquer cartório no fim do mundo. Tirou‑me todos os documentos para fora e forçou‑me a revê‑los e a meditar sobre eles. Nada agradável,confesso.

À saída falei para o Eduardo, não resisti, queria sentir a força e o ânimo que as suas palavras sempre me trazem. Respirei fundo e cheguei a casa com mais vontade de ajudar as gémeas na espinhosa tarefa de se prepararem para o ponto de História. Revi a matéria, obriguei‑as a darem resposta por escrito a todas as perguntas desde Afonso Henriques à Dinastia de Bragança, sabiam tudo. Fi‑las engolir os bifes panados e o arroz até à última garfada e saí a correr atrasada para jantar com o Álvaro.

Esperava‑me uma surpresa. Na Vela Latina, a Luísa sentada à mesa, recebia‑me sorridente e aparentemente calma. Pensei que tivesse sido por mero acaso. Estava tudo combinado. Assumiam agora um romance que ingenuamente classificavam de lindo. Para trás ficavam os dramas já arrefecidos de um Francisco Geada perturbado, de uma Guiomar gravidíssima, de uns olhares trocados entre o pianista e a professora de Português. Nas palavras do meu psiquiatra, o caso ou melhor, os casos ficaram resolvidos. A Luísa justificava‑ se de ter encoberto meses esta relação, dizendo ter medo dos seus próprios sentimentos. Não estava segura. O Álvaro insistira desde o primeiro momento e acreditava que a alegria da Luísa sempre fora contagiante e saudável.

‑ Aconteceu devagarzinho, ‑ explicava o Álvaro com a maior ternura.

Brindámos a este novo romance da Luísa que me deixou preocupada, como sempre. Não por ser com o Álvaro, não por haver em mim uma ponta de ciúmes, mas antes por não querer ver a minha amiga ser magoada, sofrer e cair numa nova e constante desilusão. Lá diria o Pedro: "mordedura de cão, cura‑se com mordedura de cão". Deixei o meu cepticismo de parte e tentei comungar da ilusão do momento que, pelo menos tinha a beneficio de emprestar à Luísa e ao Álvaro alguns momentos de tranquilidade, de sincronia, de uma confessa e transbordante sensação de felicidade.

Saímos do restaurante a rir, como já era costume. Depois de bem bebidos e bem comidos, não havia lugar a grandes e profundos pensamentos. Deixaram‑me em casa, sozinha para variar e partiram os dois de mãos dadas, depois de me desejarem bons sonhos, qualquer dia é a tua vez!

A porta fechou‑se atrás de mim, deixei cair a carteira, encostei‑me à ombreira e chorei convulsivamente como a Marta sempre fazia. Até quando? E por não conseguir ouvir a resposta, nem nenhum toque do telemóvel me fizesse ter um rasto de esperança, sentei‑me no chão, acendi um cigarro e tentei arrumar ideias. Estava tudo baralhado e nada resolvido. Dia para dia a confusão parecia maior, povoada de secretos desejos do Eduardo, de saudades inconfessas do Diogo, de uma angústia crescente por não ter a capacidade de fazer futurologia. Naquela noite, sentia‑me só a mulher mais feia, infeliz e falhada do mundo.

 

Confesso que tudo me dói. Não deve haver nada pior. Para não me sentir tão miserável, fui reciclar‑me com a Luísa.

Encontrámo‑nos à porta da agência para irmos mais uma vez almoçar. A Luísa apareceu à hora marcada com o cabelo espantoso as unhas miraculosamente arranjadas e um ar de garota apaixonada como raras vezes a vira. Almoçamos na pizzaria ali perto. O Rui estava a dar‑se bem, cumpridor e pontual, nada a realçar. Que sim, a Maria do Carmo já o tinha ido buscar no Beetle novo que a mãe lhe dera, ele ia trabalhar com uma postura e uma vestimenta diferente, sim, a maior parte das vezes de fato e gravata. Parecia feliz, a Maria do Carmo e os pais não estavam descontentes.

Encomendámos as pizzas e fui direita ao assunto:

‑ Explica‑me Luísa, como e porquê?

‑ Olha Teté resolvi dar uma hipótese a mim mesma. O que é que queres?

A Luísa estava calma e bonita. Falava devagar, medindo cada palavra.

‑ O Álvaro foi insistente, conseguiu, Levou‑me a concertos, cantou‑me baladas e leu‑me poemas da Florbela Espanca. Bateu‑me no fundo. Rendi‑me.

- Isso quer dizer que o amas? ‑ perguntei desconfiada, mordendo os lábios, o que em mim era sinónimo de situação desconfortável!

‑ Pela primeira vez, acho que sim, Teresa. Veio devagar mas cheguei lá. ‑ disse a rir, contrastando com o meu ar perdido...

Eu tinha tudo menos vontade de rir. Porque seria que esta dádiva de amar alguém sem limites, nunca me batia à porta de um modo consequente?

‑ E o pintor? Não podes dizer que não foi forte? Bolas. Vi‑te perdida nessa altura.

As pizzas chegaram e a Luísa confessou‑se enjoada pelo fogo da paixão. Foi engolindo a custo, em pequenas garfadas, enquanto eu, sem cerimónias, devorei a minha pizza transbordante de ananás e cogumelos, indiferente ao fastio da Luísa.

‑ Foi um amor doloroso e sofrido Teresa, talvez por ter sido tão diferente tão pouco materializado, nunca aconteceu, doeu‑me muito.

- E o que é ficou Luísa? Deixou-te cicatrizes, isso de certeza!

‑ Claro Teté, mas como sempre acontece quando os casos são profundos, cria‑se uma enorme cumplicidade entre nós. Se queres ficar descansada, ainda na semana passada falei com ele, a criança vai nascer. Parece calmo e assumindo com uma certa alegria o facto consumado. Contei‑lhe do Álvaro, falámos calmamente, rimos das partidas que a vida nos prega. De facto, a amizade é mesmo tudo o que fica, depois de tudo acabar.

Pedimos a conta, eu cheíssima e apressada para as aulas da tarde, a Luísa com um nó no estômago, apesar de ter cumprido a obrigação de se alimentar. Lá fomos, a correr, obedecendo às ordens do relógio.

‑ Não te contei nada Teresa até ontem, porque não tinha a certeza de mim. Agora é a tua vez, como sempre te disse, para ti, aposto no Eduardo.

Despedimo‑nos e cada uma foi à sua vida. A vontade de trabalhar era pouca, de certeza que a Luísa iria ficar encostada ao computador a sonhar... e eu, com trinta crianças pela frente que não me deixavam sonhar. Nem sonhos bons, nem sonhos maus. Apenas tinha desânimo na alma; uma violência, quando devemos levar‑lhes tudo menos desânimo. Aos alunos para quem somos deuses ou oráculos, só temos por função passar‑lhes o nosso saber e a nossa ternura.

Não fui capaz.

Graças a Deus, havia uma visita de estudo ao último tempo o que me permitiu sair uma hora mais cedo. Como precisava de repor o stock dos meus cremes, corri para as Amoreiras e entrei à pressa numa perfumaria. Peguei em tudo o que precisava e quando me dirigia para a caixa, hesitei uns momentos em frente do expositor dos perfumes de homem. Deve haver poucas coisas no mundo a que eu seja mais sensível.

Pensei nas recordações que os cheiros diferentes me traziam: o quarto nas Olaias, o hospital onde as gémeas nasceram, a igreja onde ia com a avó Salomé, e inevitavelmente o cheiro a Bulgari do Diogo, inconfundível. Peguei no tester do dito Bulgari e pus no pulso direito. Fechei os olhos e esqueci‑me da pressa. Ele estava ali. Logo a seguir os meus olhos deram de caras com a embalagem de Armani. Era o Eduardo, enfrascado para me seduzir! Pulverizei o pulso esquerdo. Que magia, o Eduardo também ali estava, de carne e osso para me mostrar a verdade da sua força, a força da sua personalidade sempre conturbada. Levei alternadamente a mão direita e a esquerda à cara. Que confusão de perfumes entrelaçados, que confusão de sentimentos e vontades. Se os dois fossem um só! Suspirei, sem saber decidir. Só não procurei o perfume do João. Não me apeteceu...

Virei as costas ao expositor, culpando‑o. Foi o destino que o pôs na minha frente. Apre, vou fugir! Aqui há cheiros que se transformam em gente e que ma trazem para incrivelmente perto. Paguei os cremes e saí entorpecida pela violência das sensações contraditórias. Nem de propósito, choquei de frente com um vulto que me pareceu familiar.

‑ Olá está boa, Teresa? ‑ disse uma voz profunda, arrastando os "erres".

Com eu não respondesse, olhando para o homem admirada, voltou ao ataque:

‑ Você não é a Teresa?

‑ Por acaso sou, ‑ respondi, sem dar saída.

‑ A amiga da Luísa?

‑ Sim e daí? Conheço‑o? Então desculpe mas não estou a ver.

‑ Sou o Francisco, acho que já a vi uma vez e falámos pelo telefone.

‑ Ah!! ‑ nem de propósito, pensei.

‑ Tem sabido da Luísa?

Fiquei sem resposta. Gaguejei e na minha cara deve ter nascido uma expressão de desconforto.

‑ Pois, a Luizinha faz‑me uma falta inimaginável, nem você supõe... Se pudesse casava com ela. ‑ disse em jeito de brincadeira.

Achei melhor abrir o jogo:

‑ A Luísa está óptima e felicíssima.

- Acha? Pois diga‑lhe da minha parte que eu estou infelicíssimo sem ela, e já agora ajude‑me: qual é o perfume que ela prefere? Tenho absolutamente que lhe dar um presente especial. - Na sua voz, já não havia nenhum tom de brincadeira.

- Olhe Francisco, tenha juízo, sabe? Você vai ser pai em breve, deixe a Luísa em paz, ela tem direito a um merecido sossego.

‑ Ela não me dá paz, quanto maior é o afastamento pior. Medidas radicais como a sua amiga quer, comigo não funcionam. Vai‑me ajudar a escolher o perfume? ‑ insistiu.

Fiquei uns instantes calada, sem saber o que responder, se o Eduardo ali estivesse diria: "compre mas é um perfume para a mãe do seu filho e vá jantar com ela, a Luísa tem dono", o Eduardo não estava ali, só o seu perfume no meu pulso esquerdo, para me lembrar...

‑ Não, a Luísa não precisa de perfumes. Agora vou andando. Quer um conselho? Não lhe apareça, não a perturbe.

Desta vez, foi ele que ficou sem resposta. Voltei atrás para buscar o chapéu de chuva que ficara esquecido no balcão da perfumaria. Olhei de relance para o Francisco, dirigia‑se ao expositor dos perfumes de mulher e parecia incrivelmente baralhado.

Com que então amigos, cumplicidade de amigos! Com os amigos não se vai para a cama, ou melhor, não se fazem cenários perversos na cama, que eu saiba! Os homens são todos iguais, uns básicos, como sempre pensei. Vê a Luísa escapar‑lhe e vai contra atacar. São adultos, entendam‑se, deixei de me preocupar. Inspirei mais uma vez os dois aromas diferentes, tão diferentes que assustavam.

Demorei‑me no pulso esquerdo, incomparavelmente mais. Outra partida do Eduardo, omnipresente para variar.

Medidas radicais evaporam os momentos, por mais fortes que sejam. Como o perfume.

 

Depois das notícias bombásticas da Luísa, do reencontro com um Francisco atraiçoado, e do relembrar de tempos perto do Eduardo, constatei que a vida tem dado um rumo diferente a estas personagens que, por aqui, se vão movendo. Como estava um dia de sol, fazendo prever o nascer da Primavera, abri a capota do carro e ainda que sem música (nunca mais comprei um novo rádio para o carro), guiei até casa, sem qualquer mágoa nem neura, experimentando um destes momentos em que nos sentimos inexplicavelmente bem dispostas. Seria por ter um jantar com os meus amigos de sempre, seria por acreditar que a melhor coisa do mundo são as minhas filhas, ali para me lembrarem que sou fundamental, não sei.

Ao chegar a casa, a Cuca feliz pela nota do teste de história, um Muito Bom bem merecido, pediu‑me para ligar ao "tio Pedro" que tinha um recado para a mãe.

Assinei o teste, irritei‑me com a Marta por se ter esquecido da data da Restauração o que lhe valeu apenas um "suficiente alto", e sentei‑me na sala, ou melhor esparramei‑me no sofá da sala sem pressas nem aflições.

‑ Ah! Ligar ao Pedro, pensei. Não deve estar em casa, vou tentar o telemóvel. Consegui apanhá‑lo. Combinámos ir sair depois do meu jantar. Não, a namorada não ia, tinha um traba­lho com uns colegas sim, um caso pendurado. Não fazia mal íamos sair os dois.

Assim o fizemos, o tal jantar foi divertido e animado, no Guarda‑Mor, esperava‑me gente que eu não via há anos, ressuscitada naquela noite. Seguimos outros caminhos, pouco tínhamos a ver uns com os outros, a vida tem destas partidas, prepara‑nos afastamentos, premedita‑nos encontros pontuais para nos lembrar que somos só peças de um jogo de xadrez. Tal como combinado, arranjei uma desculpa e à uma da manhã passei nas docas para apanhar o Pedro.

‑ Embora marquesa, vamos beber um copo, ‑ disse bem disposto.

Fomos ao Stone's. Pedimos um sumo de laranja e um whisky forte. O Pedro recostou‑se na cadeira. Acendeu‑me o cigarro e conversámos longamente sobre tudo e nada. É de facto uma sorte não estarmos sós, fisicamente sós; quando precisava, o Pedro lá estava para me ouvir, para que eu o ouvisse. Como sempre, a conversa foi dar ao Diogo e ao Eduardo, tal como ontem na perfumaria com os dois perfumes tão diferentes e tão subitamente iguais.

‑ O Eduardo tem tido em mim uma importância crescente, confessei ao lembrar‑me da força do seu perfume. ‑ Talvez por não estar demasiado em cima, por me saber dizer que não e por ser forte como um touro. Constantemente, para me lembrar a cada instante que com ele, não faço farinha.

‑ Achas? ‑ perguntou o Pedro desconfiado.

Estranhei a pergunta, e o silêncio do Pedro.

Voltei à carga:

‑ Até acho mais: acredito que tenha o que chama de amigas, várias, todas "penduradas" na cama, mas não me parece. Gosta de me chocar com a crueldade dos factos consumados, gosta da inconsequência dos seus actos e, por ser tão pouco coerente, presumo que se deixou envolver comigo, mais do que supunha.

‑ Achas? ‑ voltou a perguntar o Pedro, com um tom de dúvida na voz.

‑ Conheço‑o Pedro, foram alguns meses intensos, a sua única prisão é a ex‑mulher, com essa, não consigo ganhar a batalha. Acredito que vai com calma, deixemos o tempo agir.

‑ Tu não percebes nada de homens Teté, nadinha! ‑ disse abanando a cabeça ‑ dá‑me um cigarro Teresa, os meus acabaram.

Acendi o cigarro ao Pedro, e acrescentei a medo: ‑ talvez não perceba nada da vida.

‑ O Eduardo não é assim tão puro. Abre os olhos, miúda.

‑ Tu mal o conheces, Pedro, não faças juízos de valor bebi o último golo do meu sumo de laranja e enfrentei‑o: ‑ não é puro, porquê? Por não conseguir esquecer o passado? Por não me prometer nada? Desembucha!

‑ Não é puro, porque não te respeita. É só isso!

‑ Não me respeita? As regras do jogo foram claramente definidas. Eu ultrapassei‑as, ganhei ou perdi terreno, mas o único mal que vejo nisto, é o facto de não ter previsto que as coisas tomassem um rumo diferente. Deixei‑me envolver, não veio onde está a falta de respeito...

‑ Bom, já que não percebes vou ser bruto: no fim‑de‑semana passado, soubeste dele?

‑ Soube. Porquê? Falou‑me na sexta‑feira a dizer que ia para Madrid, como de costume, em trabalho. Uma seca confessou, tinha que fazer destes fretes uma vez por mês.

‑ Para Madrid? ‑ questionou ironicamente o Pedro - Olha Teresa, sabes que eu até "apostei" no Eduardo, ‑ enfatizou ele ‑no inicio, pareceu‑me ser uma boa para ti. Fazia‑te adiar o Diogo. Era pertinente embarcares numa relação suave, se fosse exclusiva e consequente, claro. Uma mulher como tu não pode contentar‑se com migalhas, entendes? Mas esse Eduardo, não é o que parece e tu, uma mulheraça, há aqui um profundo desajuste.

‑ Sim, mas porquê? O que tem a ida a Madrid com o resto?

‑ Olha querida, custa‑me dizer‑te, custa‑me aceitar que te induzi em erro, wrong choice... o teu Eduardozinho é o maior sacana, passou o fim‑de‑semana passado em Paris com uma tal Sofia. Isto e mais nada. Percebes?

Por um momento senti tudo a girar à minha volta. Fechei os olhos e tive a sensação que as paredes iam cair.

‑ Acorda miúda! Sabes quem é essa tipa?

‑ Tenho uma ideia. Um caso antigo. Andou com ela antes de me conhecer. Pouco antes. Mas não é uma tipa qualquer, acho.

‑ Ainda o defendes? Acreditas que merece uma pinga de consideração?

‑ Não, não sei, não digas mais nada, ‑ supliquei.

‑ Pronto Teté, o pior já passou. Não te quis magoar, mas é melhor saberes com quem andas metida. A mim, também me enganou. Não o julguei capaz de te ter como segunda escolha. Reconheço que não tem sido um período fácil para ti. O Diogo indeciso e fraco, não optou; o Eduardo, misturou‑te com outras. Afinal, tu é que foste lúcida desde sempre; tentaste ser prudente com ele, não valeu de nada é certo, mas serviu pelo menos para aceitares com clareza que chega de Eduardo, definitivamente!

O Pedro chamou o empregado, pagou as bebidas, passou-me o braço por detrás dos ombros e com a maior das ternuras encaminhou-me para o carro.

‑ Queres que fique em tua casa esta noite, para te fazer companhia?

‑ Não Pedro, deixa. Isto passa. ‑ Menti.

‑ Tenta entender Teresa. Vais ver que quando o fizeres consegues ir esquecendo e quando finalmente esqueceres, podes então perdoar. É um processo lento, mas chegas lá. Com coragem como costumas fazer. Também a mim o Eduardo me pregou uma partida. Digo‑te que sou eu o primeiro a não perceber, como é que tendo‑te a ti, um homem se vai perder, comprando outra qualquer Sofia com uma ida a Paris. Para além desta, parece‑me que ainda há o fantasma da outra ... Sinceramente, escapa‑me.

‑ Opções. ‑ respondi. O Eduardo ainda não resolveu a ex e já me tinha falado nesta Sofia. Uma coisa forte. Cortou. Não queria laços nenhuns. Com ninguém. Agora voltou? Sintomático.

‑ Não fales mais com ele Teresa, para teu bem. Quando te telefonar finge que não o conheces. Que é engano. Defende‑te miúda.

- Outra sacudidela, outro problema, já tenho a reserva das forças no limite, Pedro. Não me devias ter contado.

‑ Um problema só é problema enquanto tu quiseres que o seja, Teté.

‑ Que graça! Não há maneira de sair dele ou há?

‑ Quando tentares resolvê‑lo, passa a ser assunto em curso, e não problema. Se, pelo contrário, cruzares os braços e continuares a ver tudo à tua volta como uma manta de retalhos, vais fazendo um somatório cada vez maior de "dramas" e depois não há ponta por onde lhes pegues. Esquece. Entende e esquece. O Eduardo nunca existiu. Conheces algum Eduardo? Eu não, disse a rir.

‑ Vou tentar não conhecer, Pedro, prometo‑te pelo menos isso. Faço um esforço.

‑ Tens a certeza que não queres que eu entre? ‑ perguntou, enquanto estacionávamos à porta de casa. ‑ Não Pedro, quero estar sozinha. Chama o táxi. Faz isso por mim.

O táxi chegou quase de repente. O Pedro continua a não ter carta, não é compreensível. Poucas coisas são compreensíveis.

‑ Adeus miúda. Amanhã telefono‑te. Anima‑te, não é o fim do mundo.

Mais uma vez a noite pela frente. Nua e fria. Vou ter de a enfrentar. Não, não vou ser capaz. Fui dar um beijo de boas noites à Cuca e à Marta, enquanto repetia vezes sem fim para dentro de mim: não vou pensar, não vou pensar, não vou pensar...

Despi‑me em frente do espelho, como sempre faço. Nessa noite murmurei: "és tão parvo Eduardo, és tão parvo Diogo". Não sou feia, nem gorda, nem burra. Então porquê? Este episódio tem o estranho sabor do déjà‑vií. Viagens amaldiçoadas. Em tempos o Diogo deixou,‑me esquecida no aeroporto, o Halloween aconteceu sem nós, em Nova Iorque; hoje, descubro o Eduardo e a Sofia em Paris. O mundo gira com todas estas personagens deambulando por aí, contra a minha vontade. Não há nada que as pare, que as demova, que as faça pensar... Não são capazes.

Eu também não vou ser capaz de pensar. Fui à casa‑de‑banho. Procurei o remédio para dormir que a Luísa um dia me receitara. Decidi: hoje vou dormir bem. Mesmo muito bem. Se um comprimido não vai ser suficiente, dois talvez sejam e três é remédio santo para uma santa noite. Tomei três de seguida. Não me lembro de mais nada. Estendi‑me na cama. Foi imediato. Não sonhei, não chorei e felizmente não pensei.

Era meio‑dia quando a empregada irrompeu pelo meu quarto aflitíssima.

‑ Menina Teresa, menina Teresa é quase hora de almoço!

Não consegui abrir os olhos, nem queria, nem me esforcei.

Soube mais tarde, que as miúdas víram‑me dormir sem dar pelo despertador e telefonaram ao pai. Foi ele que as levou ao colégio. Pensaram que eu estivesse cansada. Só cansada. Antes isso. O João não acreditou num cansaço destes. Nunca me acontecera antes.

Não saí da cama nesse dia, não atendi o telemóvel, nem quis saber do Diogo, muito menos do Eduardo. Não me importei. Fui desmaiando aos poucos e nem chorar consegui.

 

Durante todo o dia não quis ver ninguém, falar com ninguém; o João foi buscar as miúdas ao colégio, jantaram fora, a minha empregada veio deitá‑las, disse‑lhes que a mãe estava engripada, e muito cansada, coitada! Pela primeira vez, desde a minha separação, alguém organizou vinte e quatro horas na rotina das minhas filhas. Não devem ter percebido nada, ignorei que existia gente à minha volta.

No dia seguinte, acordei com uma estranha sensação de paz. Há muito que não era invadida por um sentimento assim. Reparei que as árvores do jardim já tinham folhas, que nas ruas se respirava um aroma primaveril e que eu não era a pessoa mais infeliz do mundo.

Não sei, nem como lá cheguei, nem porquê. É mesmo verdade que as coisas não acontecem por acaso. Nada é um mero acaso, tudo faz parte de um plano de vida pré‑elaborado e que nós felizmente não conhecemos. Chegou a minha hora de acordar.

Vi‑me ao espelho, era a mesma de ontem, pelo menos por fora. Os cabelos iguais, continuo a precisar de fazer nuances, as mãos iguais com as unhas roídas, a boca igual e o mesmo riso cómico que o Diogo tanto gostava... Ri‑me ao espelho. Há quanto tempo isto não acontecia! Olheiras tinha várias, bem pretas confesso, emolduradas por algumas rugas idiotas, que renasciam mais fundas e marcadas a cada crise de choro. Naquela manhã, havia qualquer coisa mais profunda, no fundo dos meus olhos.

Sem me reconhecer, tomei um duche rápido, enfiei umas calças pretas e uma camisa branca, engoli um café gelado (que horror!) e fiz com que as miúdas também engolissem cada qual o seu Danoninho. Fomos a correr para o carro, a rir, sempre a rir.

Que estranho, até a Cuca reparou!

‑ A Mãe está diferente! Está a rir muito.

Não respondi, mas pisquei‑lhe o olho!

Larguei‑as mais uma vez à porta do colégio e resolvi faltar às aulas para ir pensar. Pus‑me a caminho do Guincho. Que pena terem‑me roubado o rádio do carro. Situação por resolver.

Saí do automóvel e percebi que não estava vento. Boa ideia, pensei. Apostei certo. Um dia bonito sem vento. Vou andar, andar e tentar perceber alguma coisa.

Cheguei ao fundo do poço. Fui magoada, estive dividida, baralhada, corri riscos, fiz o que nunca aceitei fazer. Cheguei ao fundo. Daqui para a frente só há um sentido, unívoco e inconfundível, o caminho certo, cheio de luz, com tranquilidade e paz de espírito. Pior, já não pode ser. Chega!

Sentei‑me na areia. É isso mesmo. O Eduardo, o Diogo, o Álvaro, a Luísa e o Pedro, são personagens de ficção. Não existem. Eu sou a única prioridade, a única pessoa em quem interessa investir. Que se lixem os outros, não vou deixar que me façam mal.

Senti o meu pai ali tão perto, perto como nunca ... Os seus olhos que só diziam a verdade, sempre.

É isso mesmo. É tempo de me reconstruir.

Foram horas intensas e profundas que ali passei, tendo por única companhia as gaivotas, o barulho das ondas e os raios de sol forte da primavera.

Só interesso eu, a minha paz interior e o que assim conseguir alcançar. Os outros vão perceber um dia, tal como eu.

Chegou o momento certo de acreditar em mim. Não sei porquê hoje, mas se não fosse assim, nada faria sentido. Fruto dos acontecimentos que se precipitaram, fruto de dias e dias tão desconcertantes, fruto de ter fugido de mim, sempre a pensar nos outros e naquilo que me podiam transmitir. Chegou a altura de parar.

Deixei passar o tempo. Descansei os olhos, o corpo, a cabeça. Perdi‑me de mim. Falei comigo, agradeci ao meu pai ter‑me hoje dado tanta tranquilidade, isto tem a sua mão! Ali fiquei, a beber palavras misturadas que confluíam surdas à procura de uma lógica qualquer. palavras, que loucas procuravam o embate de um raciocínio válido que com alguma ordem, sobrevivesse a todas as crises e me tornasse de facto sem recuos nem avanços, naquela mulheraça que os outros em mim viam. Instantes e mais instantes vazios e cheios de uma plenitude mística, onde só contava o som surdo das ondas a rebentar com força na areia da praia.

Deixei passar o tempo, até ser tempo de ainda ir a tempo...

Galguei dunas desertas e, num momento qualquer de lucidez, tirei finalmente as chaves do carro da carteira, sacudi os sapatos e quando me preparava para abrir a porta, outro carro chegou e parou ao lado do meu. Nem reparei, confesso.

‑ Por aqui? ‑ balbuciou uma voz familiar.

Engoli em seco três vezes, quando percebi que era o Diogo. Não respondi. Fiquei com a voz presa às cordas vocais.

‑ Bem, calculo que tivemos a mesma ideia ‑ acrescentou.

Não nos mexemos, não nos abraçámos, não reagimos.

‑ Isto não está resolvido princesa, ‑ continuou o Diogo.

‑ Não está resolvido?

‑ Não. Vê aquela gaivota?

‑ Vejo e...

‑ Sabe para onde vai?

‑ Não faço ideia, nem sei se é importante ‑ respondi com a voz a tremer.

‑ Ninguém sabe, nem ela própria ‑ filosofou o Diogo, como sempre fazia, ‑ assim somos nós, assim se percebe que nada é irreparável. A gaivota volta, a vida volta em círculos, e o princípio e o fim... num só ponto, são o mesmo.

Não me apeteceu responder, nem continuar a olhar o Diogo de frente, com a mesma intensidade arrefecida por esta pausa no tempo. Como se o tivesse visto ontem...

‑ Bom, vou andando... ‑ sugeri, com a voz sumida...

Fiz um esforço por mexer a minhas pernas que teimavam em ficar imóveis, coladas ao chão, coladas à presença inequívoca do meu Diogo.

‑ Até um dia, tenho pena... ‑ sussurrou, aproximando‑se de mim e roçando a sua pele macia ao de leve, na minha cara. Adoro‑te, ouviste miúda?

‑ Oxalá! ‑ concluí, batendo com força a porta do carro... até quando?

Acelerei a fundo.

Ficou o Guincho para trás. Parei cem metros adiante com os olhos rasos de lágrimas. Rompi em pranto encostada à berma da estrada...

Nada acontece por acaso, não é Diogo? Até um dia! Nesta vida ou noutra vida qualquer. Lá dentro há a paz, virada do avesso.

Encontrei‑a hoje.

  

                                                                                Maria João Lopo de Carvalho

 

 

                      

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