Biblio "SEBO"
A Casa Real dos Karedes
VIRGEM PROIBIDA
Uma família real dividida por orgulho e sede de poder, reconciliada pela inocência e pela paixão.
Kalila Zadar fora prometida em casamento ao futuro rei de Calista. Por isso, ela teria de ser levada a seu noivo, e Aarif AlTarisi, irmão do rei, um sheik sedutor que carrega as cicatrizes de um passado doloroso, foi escolhido para escoltá-la. Durante a viagem, a princesa tenta fugir, e Aarif é obrigado a trazê-la de volta. No calor do deserto, o desejo proibido acende a paixão entre Kalila e Aarif. Mas o destino dela é o altar, e seu noivo a espera...
Ele teve o mesmo sonho novamente. Era uma avalanche de sentimentos e lembranças, imagens difusas, mãos ávidas em movimento, o mar sufocante. Aarif AlTarisi dormia com os olhos bem fechados, as mãos agarradas no lençol e a pele banhada em suor.
"Ajude-me... ajude-me...Aarif."
O grito desesperado chamando por ele ecoava de novo por sua mente.
Subitamente Aarif acordou, abriu os olhos e esperou que os olhos se acostumassem à escuridão de seu quarto. Uma lua pálida iluminava o chão. Ele respirou fundo, sentou-se na cama e depois jogou as pernas para o lado.
Esperou alguns segundos para que seu coração acelerado se acalmasse. A cada suspiro, sua respiração se tornava mais estável e afastava aquelas lembranças sombrias. Por enquanto. Passou a mão nos cabelos emaranhados, ainda molhados de suor, e levantou-se da cama.
Da varanda do Palácio Real de Calisto, ele avistava um enorme trecho de areia enluarada. Era o deserto árido que se estendia ao longo do rio Kordela, com seus diamantes, a grande riqueza de Calista, perdidos em seu leito. O olhar de Aarif se perdeu nas ondulações das areias e nas promessas do rio com seus tesouros guardados, e ele deixou sua respiração voltar ao normal enquanto o vento do deserto refrescava sua pele molhada.
Ele odiava esses sonhos que até hoje, 20 anos mais tarde, ainda o deixavam abalado, amedrontado e desamparado. E fraco. Instintivamente, Aarif balançou a cabeça como se negasse o sonho e a realidade. Porque, na verdade, por mais difícil que fosse, ele havia fracassado com seu irmão e sua família há muito tempo atrás e estava destinado a reviver em sua mente aqueles momentos de agonia sempre que voltava a ter esses sonhos.
Ele não sonhava havia meses e isso lhe deu a falsa sensação de segurança e proteção. No entanto, ele sabia que nunca teria nenhuma das duas coisas. Como poderia estar a salvo de si mesmo, protegido das intermináveis repercussões da sua própria falha?
Com um suspiro de frustração, Aarif deixou a varanda e a noite escura de céu estrelado. Foi atrás do laptop que deixara na escrivaninha ao lado de sua cama, pois sabia que não conseguiria dormir. Aproveitaria o tempo para trabalhar.
Ligou o computador enquanto vestia uma calça de algodão confortável, mas continuou descalço e sem camisa. Viu seu rosto refletido no espelho sobre a escrivaninha. Viu também o medo que sentira estampado em seu semblante, brilhando em seus olhos, e fez uma expressão de desgosto com relação a si mesmo.
Depois de tantos anos, ainda se sentia amedrontado. Balançou a cabeça mais uma vez e se concentrou no computador. Primeiro checou suas mensagens; tinha várias reuniões importantes agendados com clientes para a semana seguinte. Os diamantes de Calista eram muito valiosos, mas a ilha não possuía as reservas da África ou da Austrália, portanto os clientes eram muito importantes e precisavam ser tratados com todo o cuidado.
Porém, não havia nenhuma nova mensagem de cliente em sua caixa de entrada. Só havia uma mensagem de seu irmão, rei Zakari de Calista. Aarif leu com atenção as instruções do irmão.
Preciso seguir uma pista do diamante. Vá até Zaraq para buscar Kalila. Um abraço de seu irmão, Zakari.
O diamante... o diamante Stefani, a pedra da coroa de Adamas que fora dividida m duas partes quando as ilhas se tornaram independentes uma da outra. Aarif nunca vira o diamante original pois a coroa de Calista possuía apenas metade dela. A outra metade que deveria estar na coroa de Aristo, desaparecera. Pela tradição, unir os dois diamantes seria o caminho para juntar os dois reinos de Aristo e Calista para sempre. Aarif sabia o quanto Zakari estava decidido a recuperar a pedra preciosa e, consequentemente, reinar absoluto sobre as duas ilhas.
Sua determinação era tanta que resolvera delegar esta responsabilidade a Aarif. A mensagem de Zakari continha uma simples ordem, porém, carregada de decisões, detalhes e desastres latentes, pois a princesa Kalila Zadar era a prometida de Zakari e o casamento deles estava previsto para se realizar em duas semanas.
O resgate de uma noiva real era um assunto delicado e complexo, pois envolvia regras de protocolo. Aarif sabia que teria que desempenhar seu papel, e de seu irmão, com muita cautela para não ofender Kalila, nem seu pai, rei Bahir, nem o povo de Zaraq. A aliança feita com Zaraq era de suma importância e não poderia ser desrespeitada.
Aarif contraiu o rosto antes de começar a digitar uma resposta simples ao irmão: agirei conforme suas instruções. Seu criado, Aarif.
Não havia a menor possibilidade de questionar Zakari, muito menos deixar de atender o pedido do irmão. Nem por um momento Aarif considerou isso. Tinha grande noção de obediência e responsabilidade, e sua família e seu reino, vinham em primeiro lugar, sempre.
Aarif viu que já estava começando a amanhecer quando finalmente desviou sua atenção da tela do computador. Estreitas faixas de sol iluminavam as dunas abaixo tomadas pela neblina. Na meia-luz, Aarif vislumbrou sua imagem no espelho e chegou a se assustar com seu reflexo. Ainda se surpreendia com a cicatriz que ia desde a sobrancelha até o maxilar, uma recordação eterna do dia em que não cumprira com suas obrigações diante de sua família e de seu reino.
Nunca mais cometeria um erro como aquele.
Kalila acordou de uma noite mal dormida assim que o sol invadiu seu quarto, no Palácio Zaraquan, e a brisa quente agitou as cortinas de voal transparente.
Nervosa, levou a mão ao coração, como se fosse capaz de, com este gesto, apaziguar os pensamentos e temores que a dominavam.
Naquele dia, se encontraria com seu futuro marido.
Rapidamente, ela se levantou da cama e caminhou descalça até a janela. O céu já estava claro, sem uma nuvem sequer. Abaixo dele, o deserto se estendia até o mar que, de onde ela estava, não passava de uma linha azul no horizonte, demarcado por uma estreita faixa de campo verdejante à margem da praia. O resto do reino de Zaraq era todo de deserto. A única receita daquela terra seca e árida vinha das minas de cobre e níquel.
Kalila engoliu em seco, pois aquela era a razão de ela estar se casando. Zaraq precisava de Calista. Seu pai precisava da segurança das minas de diamante de Calista, e Calista precisava de Zaraq, um reino com mais de cem anos de governo estável e independente. Infelizmente, essa era a verdade. Ela era um joguete, uma peça daquele acordo, e ela sempre soubera disso.
Kalila descansou a testa nas pedras de cantaria da janela, ainda frias da noite, mesmo que o sol já lhe esquentasse a pele.
Como estaria Zakari depois de tantos anos? O que pensaria dela? Sabia que ele não a amava. Não a via desde quando ela era uma criança magrinha e desengonçada, com muito cabelo e um sorriso onde faltavam vários dentes. Ela mal se lembrava dele: em suas lembranças, Zakari era um homem alto, forte e autoritário. E carismático. Sorrira para ela, fizera um carinho em sua cabeça e nada mais. Até o presente momento, quando aquele estranho estava prestes a se tornar seu marido.
Hoje, finalmente, eles se encontrariam. Será que ele gostaria de ver sua noiva? E ela, gostaria de vê-lo?
Alguém bateu na porta de leve e em seguida sua aia, Juhanah, entrou no quarto.
— Que bom que está acordada! Trouxe seu café da manhã e você precisa se preparar brevemente. Sua Majestade deve chegar aqui por volta do meio-dia, segundo me disseram. Temos muito que fazer.
Kalila reprimiu um suspiro ao sair da janela. Seu pai lhe dissera na véspera o tipo de recepção que teriam que fazer para o sheik Zakari.
— Ele deve vê-la como uma moça tradicional, bem-educada e preparada para ser uma noiva real. Não deve falar nem olhar para ele, pois seria muito atrevimento — rei Bahir lhe alertara, com um sorriso carinhoso, mesmo mantendo a seriedade no olhar. — Compreende, Kalila? Seu encontro amanhã com o sheik Zakari é muito importante, e é fundamental que passe uma imagem correta para ele. Juhanah vai ajudá-la a se preparar.
Nem falar? A sensibilidade ocidental de Kalila veio à tona para reclamar.
— Por que motivo sheik Zakari não pode me ver como sou de verdade? — ela protestou, tentando evitar um tom petulante em sua voz. Tinha 24 anos de idade, educação universitária e estava prestes a se casar, no entanto, ainda se sentia como uma criança indisciplinada na presença do pai. Moderou seu tom de voz, empenhando-se para sorrir ao responder. — Claro meu pai, é da maior importância que ele saiba quem sua noiva é de fato. Se passarmos a imagem errada...
— Sei bem qual seria a imagem errada — Bahir a interrompeu com autoridade. — Também sei qual a imagem correta. Haverá muito tempo para ele conhecê-la, como você deseja, mais tarde — ele acrescentou, e Kalila recuou diante do flagrante desrespeito ao seu desejo. Bahir levantou uma das mãos como se estivesse lhe dando sua bênção, apesar de parecer mais um aviso, uma reprimenda. — O dia amanhã não será dedicado a você nem ao seu casamento, mas à tradição e ao protocolo, uma aliança entre países e famílias. Sempre foi assim.
— Com minha mãe foi assim também? — Kalila quis saber.
— Também. Sua mãe era moderna, Kalila, mas não era teimosa. Permiti que você fosse para Cambridge completar seus estudos. Você teve oportunidade de se dedicar aos seus interesses. Agora está na hora de retribuir sua família e seu país, e terá de cumprir sua obrigação. A partir de amanhã. —Apesar do lampejo de compaixão em seus olhos, ele foi direto. Kalila endireitou o corpo, altiva, antes de falar com o pai.
— Sei disso, meu pai. — Mas ela não pôde deixar de absorver as palavras dele. Ela teve oportunidade de buscar seus interesses, ele dissera, mas não seus sonhos. E de que serviam os interesses se precisavam ser colocados de lado em nome de suas obrigações? E quais eram os seus sonhos?
Sua mente se deteve naquele questionamento, naquela possibilidade. Seus sonhos eram nebulosos, indefinidos, visões de alegria, felicidade, razão, propósito... e amor. A palavra surgiu de súbito em sua mente, uma semente criando raízes na terra fértil de sua imaginação.
Amor... mas não havia amor numa união entre dois estranhos. Não havia sequer afeição, e Kalila nem sabia se algum dia poderia existir afeto entre eles. Será que Zakari poderia amá-la algum dia? E, naquele momento, enquanto Juhanah se agitava em seu quarto, ela se perguntava se seria capaz de amá-lo.
— Agora coma. — Juhanah lhe mostrou uma bandeja onde havia uma tigela cheia de labneh, um iogurte encorpado, e uma xícara de café forte. — Precisa de energia. Temos muito a fazer hoje.
Kalila se sentou e começou a comer.
— Posso saber exatamente o que vamos fazer hoje, Juhanah?
A criada estufou o peito antes de falar.
— Seu pai quer que esteja vestida como antigamente, quando se dava valor à tradição. — A aia franziu as sobrancelhas e Kalila entendeu que ela se referia a seus modos ocidentais, herdados de sua mãe inglesa e reforçados depois de quatro anos de vida independente em Cambridge.
Certa vez, ao avistar uma calça jeans de Kalila jogada no chão, Juhanah pegara aquela roupa ofensiva com apenas dois dedos gordos, mantendo-a longe do corpo como se estivesse contaminada. Kalila riu com a lembrança.
— Sua Majestade há de querer vê-la vestida de forma adequada para uma noiva — disse Juhanah repetindo as palavras que o pai dissera na véspera.
Kalila sorriu, mas seus olhos eram travessos.
— Quando poderei chamá-lo de Zakari?
— Quando ele estiver em sua cama — Juhanah respondeu com franqueza. — Antes disso, minha querida, não se atreva. Os homens não gostam de moças petulantes.
— Ah, Juhanah! — Kalila sacudiu a cabeça. — Você nunca saiu de Zaraq, não tem ideia de como é a vida lá fora. Zakari frequentou a universidade, é um homem do mundo. — Pelo menos foi o que ela lera nos jornais e revistas. E ela esperava que fosse verdade.
Juhanah fez um ar de desprezo:
— E por acaso eu preciso saber de tais coisas? O que importa é o aqui e agora, minha princesa. Príncipe Zakari vai querer ver hoje a princesa real, e não uma moça moderna com seu diploma sofisticado. — Juhanah falou revirando os olhos. Kalila sabia que ela não dava a menor importância aos anos em que passara estudando na Inglaterra. E, na verdade, sentada ali diante da sua bandeja de café da manhã, aqueles anos valiam mesmo muito pouco.
O que importava era sua árvore genealógica, sua família, seu corpo. Zakari queria uma aliança e não uma parceira. Não estava à procura de uma amante, ou uma companheira. Nem de sua alma gêmea.
Kalila sabia de tudo isso. Todos os dias ela lembrava que estava esperando pelo seu casamento, pelo seu marido. E agora que a espera terminara, ela parecia ainda mais ansiosa.
— Não está com fome, ya daanayc?. — Juhanah perguntou ao empurrar a tigela de labneh para induzir Kalila a comer.
Kalila respondeu balançando a cabeça e afastando a tigela. Estava muito ansiosa e não conseguiria colocar mais nada no estômago.
— Quero apenas café — disse sorrindo para a aia e tomando um gole do café. A bebida estava tão quente que queimou sua língua e tudo mais por dentro dela.
Os preparativos ocuparam a manhã inteira. Kalila esperava por isso e queria apresentar seu melhor. No entanto, no meio de tantas loções, cremes, pinturas e pós, ela se sentia como uma galinha sendo recheada e temperada antes de ir para a panela.
Só Juhanah e uma criada exerciam a função de sua negaffa, as mulheres que preparam a noiva. Depois que sua mãe morreu, o palácio de Zaraq mantinha um quadro reduzido de empregados.
Pra começar, ela tomou um banho de leite no aposento de banho das mulheres, uma antiga tradição que Kalila não estava certa de ter gostado. Teoricamente o leite de cabra fazia bem à pele, mas tinha um cheiro muito forte.
— Preferia tomar um belo banho de espuma — ela resmungou baixinho e nem Juhanah nem a criada a ouviram. Mas elas não entenderiam.
Enquanto Juhanah a enxugava e passava uma loção adocicada em sua pele, Kalila pensou com tristeza em sua mãe, que morrera quando tinha apenas 17 anos. Amélia, sua mãe, era inglesa. Ela era calma e encantadora, e se estivesse viva seria dela o dever de preparar Kalila para encontrar-se com seu noivo.
Kalila tinha certeza de que sua mãe teria compreendido sua preferência por um bom banho de espuma. As duas provavelmente iriam brincar, rir e se divertir mesmo sabendo dos deveres que teria pela frente e da vida que passaria a ter.
Mesmo assim, ela pensou, poderia ser moderna depois. Poderia ser ela mesma, mais tarde, quando ela e Zakari estivessem sozinhos. Só de pensar no assunto, Kalila já ficou com a boca seca e os nervos à flor da pele de novo.
Mas eles não ficariam sozinhos naquele dia: haveria apenas um encontro formal entre rei e sua noiva, apenas uma encenação, onde ela não passava de um enfeite, entre tantos outros.
— Nada de cara amarrada — disse Juhanah gentilmente. — Hoje é dia de sorrir, minha princesa!
Kalila tentou forçar um sorriso, mas percebeu o desânimo tomar conta dela. O futuro lhe parecia sombrio e seu destino era uma estrada sinuosa.
Kalila não vira ou falara com Zakari desde que ela era uma criança. Depois disso, enviaram algumas cartas, presentes de aniversário, apenas trocas impessoais e educadas. Conforme a tradição, eles não poderiam ter nada além disso, e naquele dia, ela o encontraria. E dentro de duas semanas eles se casariam.
Era uma situação absurda, arcaica, mas era a vida dela. Ou, pelo menos, o que restava de sua vida. Kalila engoliu em seco.
— Olhe — Juhanah apontava para o espelho.
Mesmo depois de tanto tempo de preparativos, Kalila não esperava uma mudança como a que viu no espelho. Ela parecia uma estranha.
O kaftan dourado e vermelho parecia engolir sua frágil figura, e seu cabelo estava preso para trás, em tranças. Pesadas joias de ouro cobriam seus pulsos, seu pescoço e seu rosto...
Kalila mal se reconheceu quando se viu de batom vermelho e olhos escuros delineados em kohl. Uma figura exótica e estranha. Ridícula, pensou com uma repentina amargura. Como se fosse a realização de uma fantasia masculina.
— Está linda, não é mesmo? — Juhanah perguntou alegre, e a criada assentiu. Kalila limitou-se a fitar a imagem. — E agora, o toque final... — Juhanah colocou um véu sobre sua cabeça, a peça do vestuário feminino de grande orgulho, o hijab. Uma parte da peça cobria os cabelos e outra o rosto; o pano translúcido era enfeitado com moedas douradas e prateadas, deixando à vista somente aqueles olhos grandes valorizados pelo kohl. — Pronto — disse Juhanah orgulhosa.
Com o olhar fixo na sua imagem exótica refletida no espelho, era difícil de acreditar que há oito meses ela estava em Cambridge participando de debates filosóficos e comendo pizza com os amigos em seu apartamento de estudante. Naquela ocasião, ela usava jeans, vivia sem acompanhantes e tinha uma vida de liberdade, oportunidade, realização intelectual e muita alegria.
Alegria. Era exatamente o contrário do que sentia naquele momento, sentada ali, como uma total estranha. Quem era ela? Era a garota de Cambridge que ria, flertava e discutia sobre política ou era a garota refletida no espelho, com olhos pintados e rosto coberto?
Há oito meses, seu pai esteve na Inglaterra, levou-a para jantar fora e a ouviu por um bom tempo. Achou que o pai estava lhe fazendo uma simples visita. Imaginou que sentira sua falta. Engano seu. Por trás de seu gesto havia um plano, com sempre.
Kalila ainda se lembrava do momento em que percebeu o rosto do pai se transformar para uma expressão sombria, pousar a mão sobre a dela e deixá-la muda, sem assunto.
— O que foi? — ela perguntou, mesmo já sabendo da resposta.
Claro que sabia. Ela sempre soube, desde os 12 anos de idade, quando teve sua festa de noivado.
Ela e Zakari trocaram anéis, apesar de mal se lembrar da cerimónia. Aquele momento para ela não passava de uma sucessão de imagens pouco nítidas, de cheiro de jasmim, do anel pesado com um diamante de Calista que Zakari havia colocado em seu dedo. O anel ficou grande demais, por isso Kalila o guardara na sua caixa de joias e lá o deixara desde então.
Talvez devesse usá-lo hoje, Kalila pensou.
— Sei que o casamento já foi adiado várias vezes — disse Bahir estranhamente delicado. Isso fez os olhos de Kalila arderem e ela fixou o olhar no prato. — Por causa de problemas familiares de ambos os lados. Mas agora, finalmente, o rei Zakari está pronto para se casar e já marcou a data: 25 de maio.
Kalila engoliu em seco. Estavam no fim de setembro, as folhas começavam a mudar de cor e cobriam o chão de Cambridge, e o período da faculdade estava para iniciar.
— Mas... — ela tentou argumentar, mas seu pai balançou a cabeça.
— Kalila, sempre soubemos qual seria seu destino. Seu dever. Já conversei com a direção da faculdade. Sua matrícula já foi cancelada.
Ela levantou a cabeça abruptamente, olhou nos olhos dele e viu que ele não recuaria.
— Você não tinha esse direito...
— Claro que tinha — Bahir respondeu. — Sou seu pai e seu rei. Você já recebeu seu diploma, o curso de pós-graduação era apenas um passatempo.
— Era mais do que isso para mim — ela falou baixinho.
— Talvez — Bahir reconheceu encolhendo os ombros. — Mas sempre soube qual seria seu futuro. Sua mãe e eu nunca escondemos isso de você.
Não, eles não haviam escondido. Haviam conversado com ela antes daquela festa deplorável, explicando o que significava ser uma princesa e a alegria que se sentia ao cumprir um dever. E Kalila, imatura, acreditara. Ficou deslumbrada pelo príncipe herdeiro de Calista, apesar de não se lembrar muito de Zakari, a não ser de que era alto, carismático e com um sorriso paciente, ou seria condescendente? Afinal, ela só tinha 12 anos.
— Você vai voltar para casa comigo — disse Bahir ao mesmo tempo em que fazia sinal para o garçom retirar os pratos. — Terá um dia para se despedir de seus amigos e fazer as malas.
— Só um dia? — Kalila repetiu descrente. Num instante, sua vida estava sendo desmantelada, como se não tivesse havido significado algum.
E para seu pai, de fato não tivera.
— Quero vê-la em casa, que é seu lugar — disse Bahir.
— Mas o casamento está marcado para maio...
— Sua presença é necessária em seu país, Kalila. — O tom de Bahir se tornara duro, ela já abusara da paciência dele. — Seu povo precisa vê-la. Você está longe de casa há quase quatro anos. É hora de voltar.
Naquela noite, enquanto juntava seus escassos pertences, Kalila idealizou um plano, uma solução inimaginável. Pensou em desafiar seu pai e fugir de seu destino. Ficaria em Cambridge para construir sua própria vida, encontrar um marido ou amante...
Mas mesmo quando essas ideias desesperadas e perigosas passavam por sua cabeça, ela as descartava. Para onde correria? Com que dinheiro? E o que faria?
Além disso, ela compreendia perfeitamente que muito de sua vida, de seu sangue estava ligado àquele país, àquele mundo. O futuro de Zaraq estava muito ligado a Calista para ela se dar ao luxo de pensar em sua realização, em detrimento do bem estar do seu povo. Jamais poderia trair seu pai e seu país daquela forma. Seria como se traísse a si mesma.
Então ela voltou para casa com seu pai, em seu avião particular, e tentou se adaptar à vida naquele palácio vazio com seus poucos criados. Passava os dias vagando de quarto em quarto, no princípio tentando continuar seus estudos para depois, desanimada, colocá-los de lado.
Desempenhou suas responsabilidades cívicas visitando crianças doentes em hospitais, cumprimentando gente e cortando fitas inaugurais, sorrindo e acenando. Gostava de interagir com o povo de Zaraq, mas às vezes parecia que sua vida se limitaria àquilo dali para frente: ao trabalho e ao dever.
Aquele era seu destino.
De volta ao presente, olhando naquele espelho, gostaria muito que seu destino fosse diferente. Acreditava que viera ao mundo para algo mais do que apenas isso.
— Princesa? — ela ouviu a voz carinhosa de Juhanah. — Está muito linda, não concorda?
Kalila teve uma vontade súbita de arrancar o véu do rosto. Jamais tivera o hábito do véu, assim como sua mãe, que nunca o adotara, ela usava apenas roupas ocidentais e sua única concessão à tradição era um pano sobre a cabeça em ocasiões formais. E seu pai se importara. Ele se casara com uma inglesa como parte de um plano para introduzir hábitos mais ocidentais em seu país. E agora, Kalila pensava, ela parecia um personagem das As Mil e Uma Noites: uma moça destinada para um harém. As moedas tilintavam quando ela se movia.
— Que beleza—Juhanah murmurou.
Os dedos de Kalila encostaram no tecido do seu kaftan e sua unha puxou um fio de ouro.
Juhanah afastou a mão de Kalila do tecido. Mas alguém bateu na porta do quarto e Juhanah foi atender, enquanto Kalila se olhava fixamente no espelho.
O que será que Zakari pensaria dela vestida daquele jeito? Era o que ela queria? Será que seu futuro seria da mesma forma?
Kalila engoliu em seco e tentou se livrar de seus temores e dúvidas. Era tarde demais. Sabia qual era seu dever.
Só não soube prever como se sentiria.
Juhanah voltou para o quarto e deu uns retoques na produção de Kalila.
— Você está luminosa — disse a aia enquanto Kalila fazia uma careta embaixo do véu. Será que Juhanah se recusava a ver por ser cega ou por estar feliz? Sua aia estava encantada por Kalila estar cumprindo seu destino como princesa. Uma rainha. — Está na hora — ela continuou, seus olhos brilhavam, suas bochechas estavam mais vermelhas do que o normal. — O sheik acabou de chegar, vem direto do avião. Finalmente ele está aqui.
Aarif estava com calor, cansado e coberto de poeira. O curto trajeto de jipe entre o campo de pouso e o palácio já foi o suficiente para cobri-lo de poeira. Foi recebido no aeroporto por um oficial do palácio que o levaria até o salão do trono, onde poderia apresentar os cumprimentos à noiva e ao pai dela, em nome de Zakari.
Tenso, Aarif engoliu em seco e, ao fazê-lo, sentiu a poeira entrar em sua garganta e também nos olhos. Ele já tinha visto que o oficial notara sua cicatriz no rosto. A eterna lembrança, para ele e para todos, de suas falhas, seus fracassos.
O palácio surgiu à distância, comprido e baixo, revestido em pedra de tom dourado suave, com duas torres nas extremidades. Só havia deserto, para todos os lados, mas Aarif teve a sensação de ter visto um ajuntamento de construções em barro e pedra na direção oeste, para Makaris, que era a capital do país.
O jipe parou na frente de uma porta dupla de madeira entalhada de forma elaborada embaixo de um dossel de pedra, que era a entrada principal do palácio.
— Vou acompanhá-lo para se lavar e se preparar, sua Alteza — disse o oficial, curvando-se em sinal de respeito. — Rei Bahir o aguarda no salão do trono.
Aarif acenou com a cabeça e seguiu o oficial para dentro do palácio, passando por um corredor fresco e depois por uma sala de espera com mesa e bancos. Havia uma jarra de limonada e Aarif, sedento, logo se serviu de um copo e tomou antes de trocar sua roupa e colocar seu bisht, o roupão longo e formal usado para cerimônias daquele tipo. No banheiro contíguo, ele retirou a poeira do rosto para então olhar fixamente para sua imagem no espelho.
Quando alguém bateu de leve na porta, Aarif desviou a atenção daquela cruel lembrança e saiu do banheiro para cumprimentar a noiva e atender o pedido de seu irmão.
O oficial o conduziu até as portas duplas do salão do trono, e lá dentro o silêncio tomou conta do ambiente.
— Sua Eminência — o oficial anunciou com voz grave e afetada em francês, a língua oficial de Zaraq. — Apresento Sua Alteza Real, rei Zakari.
Aarif quase engasgou com aquele comunicado, que foi seguido por uma onda de sussurros vindos do pessoal do palácio, reunido ali para participar daquela honrosa ocasião. Bastou o rei Bahir dar uma olhadela para verificar que aquele que estava ali não era o rei, mas o irmão dele, um modesto príncipe.
Aarif sentiu um lampejo de fúria dirigido a ele. Imaginou que havia ali um terrível mal-entendido. Ele assumira aquela missão com o objetivo de ajudar, mas deveria ter escrito antes explicando que viria no lugar do irmão.
Agora teria que explicar sua presença ali, diante de todos, e temia que tomassem aquele gesto como um insulto.
— Sua Eminência — ele falou, também em francês, ao entrar no salão comprido e estreito com seu teto coberto de afrescos e paredes nuas. Ele se curvou em sinal de respeito e percebeu que Bahir se remexia em seu trono. — Infelizmente, meu irmão, rei Zakari, não pôde cumprir esta missão festiva devido a assuntos reais prementes. Será uma honra poder escoltar a princesa Kalila até Calista em seu lugar.
Bahir manteve-se calado, então Aarif se levantou, sufocando uma ponta de tensão. Percebia que Bahir o observava com olhos astutos e os lábios comprimidos de decepção ou desprazer, talvez ambos.
Mas antes que Bahir se pronunciasse, Aarif teve sua atenção atraída para a figura silenciosa ao lado direito de Bahir.
Era Kalila, sua filha, claro. Aarif guardara na lembrança a imagem de uma linda e precoce criança. Ele trocara algumas poucas palavras com ela na sua festa de noivado, há mais de dez anos. No entanto, agora a mulher que estava diante dele era adorável mesmo que se pudesse ver muito pouco dela.
Sua cabeça estava inclinada para frente e seu corpo envolvido em um kaftan. Naquele momento, ela levantou a cabeça como se sentisse sua energia, e os olhares se cruzaram.
Foi somente o que ele pôde ver dela, os olhos. Eles eram amendoados, grandes e escuros, luxuosamente delineados por um tom de dourado escuro. Havia muita emoção naqueles olhos, mesmo quando se deslocaram rapidamente para sua cicatriz.
Aarif achou ter visto um sinal de repulsa cintilar nas profundezas do olhar dela, e ele se odiou por isso.
Então ele não veio, pensou Kalila. E fitou aquele homem diante dela, ouviu suas palavras, suas explicações, a bajulação de praxe, as desculpas, mas nada daquilo fazia sentido para ela.
Nem sua mente nem seu coração podiam compreender por que seu futuro marido não se dera ao trabalho de aparecer. Será que viria para o casamento? Será que não imaginou que ela estava aguardando, pensando e desejando?
Ou será que ele nem pensou nela?
Kalila engoliu o riso histérico que quase soltou. Seu pai estava falando, com uma voz baixa e melodiosa, convidando aquele homem, quem era ele? Kalila esforçou-se para recordar as palavras ditas ali, príncipe Aarif? O irmão mais novo de Zakari, enviado para esta missão festiva. Ela abriu um sorriso cínico, mas claro, ninguém poderia vê-lo debaixo daquele maldito véu.
Ela agarrou a lateral de seu vestido e apertou os dedos. Sua vontade era de rasgar o véu e acabar com aquela farsa, pois era apenas isso: uma farsa, uma mentira.
Uma peça de teatro da qual ela não queria mais fazer parte.
Gostaria de sair correndo sem olhar para trás até chegar a um lugar seguro e diferente, um lugar onde ela pudesse ser ela mesma, fosse quem fosse, e as pessoas saberiam apreciar.
Onde poderia ser esse lugar? Não acreditava tê-lo encontrado ainda.
Seu pai tinha se levantado e ela sabia que aquele era o sinal para ela recuar. Esta parte tinha sido muito bem ensaiada. Então ela fez uma reverência, abaixando a cabeça com sua trança grossa e o estranho véu, e lentamente deixou o salão, com cuidado para não tropeçar no pesado traje. Mal podia esperar para se livrar daquelas roupas e se sentir livre.
Kalila arrancou o véu do rosto logo que saiu do salão, e logo suspendeu a frente do vestido para poder caminhar livremente até seu quarto. Juhanah a seguiu, resmungando.
— Cuidado, esse tecido é muito delicado! — ela protestava tentando pegar o véu que Kalila segurava em uma das mãos.
— Não me importo — ela respondeu, enquanto Juhanah tirava o véu das mãos de Kalila, alisando-o cuidadosamente.
— Está decepcionada e com toda a razão. Mas o rei é um homem muito ocupado, com muitas obrigações. É melhor ir se acostumando logo com isso, ya daanaya.
—Antes mesmo de nos encontrarmos? — Kalila perguntou sarcástica. Precisava dar vazão aos seus sentimentos, suas frustrações, pois Juhanah tinha razão, ela estava decepcionada. E magoada.
Mas sem motivo, pois nunca pensara que Zakari a amasse. Como poderia? Então, o que pretendia? Não sabia e não poderia responder, mas sentiu que alguma coisa tinha se perdido hoje, irremediavelmente. Só não sabia o que era.
Kalila respirou aliviada quando se viu de volta ao refúgio de seu quarto. Não fazia sentido se comportar como uma criança mimada. Era uma mulher feita, com uma vida inteira pela frente. Com deveres e fardos de mulher.
Sua imaginação vagou pelo tempo até se fixar naquela noite em Cambridge, há oito meses, quando ela estava sozinha em seu apartamento, pensando em fugir do pai, da família, do país e de sua cultura. Em parte, desejou tê-lo feito.
Mas não foi o que aconteceu. E, apesar das infindáveis incertezas e tristezas, ela possuía obrigações com sua família e consigo mesma.
Mas jamais poderia esperar por aquilo. O episódio daquela noite lhe trouxera mágoa, decepção e dor.
Só então ela percebeu que vinha sonhando com aquele momento há tempos. E seus sonhos agora tomavam forma. Ela queria que Zakari fosse até lá, ansioso por aquele dia, e que ficasse sem fala ao vê-la. Queria que ele ficasse encantado, enamorado, apaixonado.
E tudo isso sem ao menos conhecê-la! Ela era muito tola. Só uma criança para acreditar em tais fantasias, para se deixar ter esperança. Logo ela, que pensava estar sendo realista, responsável. Ela se enganara.
Kalila suspirou ao fitar seu rosto pintado no espelho. Um ventilador de teto girava lentamente sobre ela, mas o calor do meio-dia era sufocante, ainda mais com as roupas pesadas que usava.
— Ajude-me, por favor Juhanah — ela disse. — Quero tirar isto.
— Claro, claro — disse Juhanah se apressando para ajudá-la. — Vai querer descansar e se refrescar para esta noite.
— Por quê? O que vai acontecer esta noite? — Kalila indagou.
— Você não ouviu? Seu pai convidou o príncipe Aarif para jantar com vocês dois esta noite. Ele disse que era um jantar informal. — Juhanah sorriu antes de completar. — Nada de kaftan nem de hijab.
Kalila respirou aliviada enquanto afastava o pesado volume de cabelo da nuca.
— Ainda bem — ela comentou.
— Sabia que esta roupa foi de sua mãe? — perguntou Juhanah ao ajudá-la a tirar o vestido.
— Foi mesmo? — Kalila perguntou, incrédula. — Nunca a vi vestida assim.
— De fato, ela raramente se vestia dessa forma. Mas ela usou esta roupa em sua festa de noivado. Seu pai lhe deu como presente de casamento. Ela ficou muito linda nele.
Kalila tentou imaginar sua mãe, alta, magra e loura, no vestido ela usava no momento. A roupa que a oprimia pelo peso e pelas expectativas. Ela se perguntou como sua mãe teria se sentido ao usá-la. Será que ficou sufocada e reprimida como Kalila? Ou será que viu na roupa apenas um belo traje?
Kalila sabia que sua mãe escolhera se casar com Bahir. Contrariando todas as expectativas, foi um casamento por amor.
Então, por que ela não poderia ter o mesmo destino, pensou Kalila enquanto Juhanah saia do quarto e ela se deitava na cama.
E mesmo ansiosa e zangada, Kalila logo adormeceu. Teve um sono agitado e até em seu sonho ela parecia infeliz.
Ao acordar, o sol já estava baixando no céu e uma brisa fresca entrava pela janela.
Kalila tirou o cabelo dos olhos e encaminhou-se para a janela. O sol parecia uma bola de fogo que iluminava o céu já a ponto de escurecer. Era uma imagem simples, mas linda de se ver, e ela não se cansava de admirar. Sentira muita falta deste pôr do sol quando estivera na Inglaterra. Sentira falta da pureza do ar e da luz, do brilho intenso das cores.
Olhou o relógio e percebeu que precisava se arrumar rapidamente. A pessoa que o príncipe Aarif ia ver aquela noite não seria nada igual à mulher tradicional que ele vira à tarde, Kalila cuidaria disso. O tempo de ostentação e atuação teatral já tinha acabado. Além disso, ela se lembrou ao entrar num banho escaldante, não teria que impressionar ninguém. Zakari nem estaria lá.
Ela esfregou o corpo para se livrar do kohl e do batom vermelho, dos perfumes de jasmim e sândalo. Esfregou o rosto até ele ficar totalmente limpo e cheirando apenas a sabonete.
Kalila colocou um vestido de festa curto e simples para os padrões ocidentais, mas totalmente diferente da roupa que vestira mais cedo. Era um vestido justo, de seda azul lavanda, que modelava seu corpo. Colocou um sapato combinando com o vestido e prendeu o cabelo num coque. Desta vez, limitou-se a usar um brilho nos lábios como maquiagem.
Kalila respirou fundo antes de se dirigir até as escadas e descer.
O Príncipe Aarif já estava na sala de jantar, a menor e menos formal do palácio, com um drinque na mão quando ela chegou. Kalila parou na soleira da porta e reparou que havia três lugares na mesa e que o príncipe estava virado de costas, junto à janela. Seu pai ainda não havia chegado.
Ela não havia parado para pensar no hóspede inesperado desde que o vira aquela tarde. Sua mente ocupou-se apenas com a ausência de Zakari.
Naquele momento, porém, ela o observava, cheia de curiosidade. Ele estava muito elegante de terno ocidental cinza escuro. Parecia tão diferente com aquelas roupas comparado ao seu bisht e tão mais acessível e humano. Kalila se perguntou se ela também estaria melhor depois de se trocar.
Então, como se sentisse presença dela, ele se virou e Kalila levou um susto ao ver seu rosto, com olhar distante, lábios sorridentes e uma cicatriz vertical em curva ao longo da bochecha. Mesmo sorrindo, ele parecia formal e sério, quase zangado.
Kalila sorriu também.
— Boa noite, príncipe Aarif.
— Princesa — ele fez um aceno de cabeça.
Ela entrou na sala sabendo que estariam sozinhos, mesmo que isso fosse ilusório. Criados estariam nas proximidades e seu pai chegaria a qualquer momento, sem dúvida.
— Teve uma tarde agradável?
— Muito instrutiva — ele disse vacilante, antes de tomar um gole de sua bebida. — Aceita um drinque?
E como se fosse uma cena ensaiada, logo surgiu um criado a quem Kalila pediu um copo de suco de fruta. Queria manter a mente lúcida.
— Eu me lembro de você — disse Kalila sorrindo. — Mas receio que seja o irmão mais novo de Zakari. Sei que ele tem vários irmãos e irmãs.
— Na verdade. Somos sete. — Aarif a fitou. — Eu me lembro de você. Era bem jovem na festa de noivado, não era? Usava um vestido branco e um laço no cabelo.
— Naquela época eu tinha 12 anos — Kalila falou com a voz meio rouca. Estava emocionada e perturbada por ele se lembrar dela nos mínimos detalhes.
— Vestida como estava, parecia pronta para ir a uma festa de criança. Talvez se sentisse assim — disse Aarif desviando o olhar.
Kalila assentiu, impressionada por ele entender exatamente como ela se sentira naquele dia.
— Foi exatamente assim que me senti. E achava que estava ganhando o melhor dos presentes. — O tom de amargura em sua voz deve ter alertado Aarif, pois ele a fitou com um certo ar de censura, estragando um momento de intimidade com aquela confissão.
— O casamento é uma honra e uma bênção.
Ele falava igual ao pai dela, pensou Kalila. Como todos os homens que discursavam sobre os deveres das mulheres.
— É casado, príncipe Aarif? — ela o questionou.
— Não — ele se limitou a responder ao perceber que o pai dela entrava na sala.
— Ah, príncipe Aarif. Kalila, vejo que descansou. Fico feliz. — Ele se aproximou, esfregando as mãos uma na outra, o retrato de um soberano benevolente. — Disse para o príncipe Aarif que nós não somos muito formais aqui, especialmente com a família e os amigos.
Então, qual a razão daquele espetáculo mais cedo, Kalila pensou. Claro que ela sabia: tradição, formalidade. Orgulho. Kalila reparou que seu pai os observava atentamente e, instintivamente, ela se afastou do príncipe. Pelo tom da conversa de seu pai, Kalila entendeu o quanto fora inadequada sua breve conversa com o príncipe.
— Sim, claro. Estamos felizes em recebê-lo em Zaraq, príncipe Aarif.
— E estou feliz por estar aqui — ele respondeu num tom grave, agradável, porém destituído de sinceridade.
Kalila o examinou e constatou que seu olhar era inexpressivo. Ele estava usando uma máscara, ela pensou, um véu, assim como aquele que ela usara naquela tarde. Kalila se perguntou o que ele estaria querendo esconder.
Bahir puxou a cadeira para Kalila e depois se sentou. O príncipe fez o mesmo.
— Aarif me explicou o motivo de rei Zakari não poder estar aqui hoje — disse Bahir enquanto servia vinho a todos.
Kalila tomou um gole da bebida. Leve e refrescante, o vinho desceu bem.
— É mesmo? — ela disse levantando o olhar.
— Ele está muito ocupado, claro — continuou Bahir. — Com seus afazeres reais. Aliás, ele nem está em Calista no momento... — Ele parou propositalmente, e Kalila observou com interesse enquanto Aarif apertava os lábios.
— Não está? — ela perguntou. — Onde ele está, príncipe Aarif?
— Por favor, me chame de Aarif. — Havia um certo nervosismo no tom de sua voz o que só fez despertar ainda mais a curiosidade de Kalila.
— Então deve me chamar de Kalila — ela retrucou educadamente.
No entanto, com essa brincadeira, Aarif a fitou intensamente, fazendo um frio percorrer-lhe a espinha.
Kalila tomou outro gole de vinho enquanto estudava Aarif. Ele não era o tipo clássico de beleza masculina e a cicatriz o prejudicava bastante. Mas, mesmo sem ela, o rosto ainda era duro e carrancudo. Não havia sinal algum de bondade naquele rosto, nem bom humor ou compaixão. A única qualidade que ela enxergava em seus olhos escuros e nos lábios tensos era determinação.
Kalila se perguntava o que ele estaria tão determinado a fazer.
O primeiro prato, frango ensopado com coentro e páprica, foi servido e logo todos começaram a comer.
— Ouvi rumores sobre diamantes — disse Bahir delicadamente depois de alguns instantes.
Aarif demorou alguns segundos para reagir, depois encolheu os ombros e respondeu sorrindo.
— Sempre circulam rumores.
— Mas este dizia que metade do diamante Stefani estava desaparecido — Bahir falou com a voz ligeiramente mais dura. Ele fez uma pausa e Kalila notou que Aarif continuava comendo tranquilamente. — Será esse o motivo da preocupação de seu irmão, Aarif?
O príncipe engoliu a comida e tomou um gole de vinho. O clima estava tenso e Kalila olhava de um para o outro, ambos sorriam cordiais, mas eram astutos demais.
O que estava acontecendo ali?
— Meu irmão está, de fato, muito preocupado com o diamante Stefani — Aarif finalmente informou. — Há muito tempo ele deseja juntar as duas partes do diamante e unir os reinos de Calista e Aristo. — Novamente desviou seu olhar para Kalila, e de novo ela sentiu um frio dentro dela. — Isso, claro, irá beneficiá-la, princesa. Pois se tornará rainha não só de Calista, mas de Aristo também.
Kalila sorriu, mas na verdade ela nem levara em consideração o fato de se tornar rainha. Só se imaginava sendo a esposa de alguém, não a rainha de um país, muito menos de dois.
Rainha. Ela tentou sentir emoção, mas só havia decepção e medo. Ela não almejava títulos, queria apenas ser amada.
— Desejo muito sucesso ao seu irmão — ela disse educadamente enquanto um criado veio tirar os pratos.
— Ele terá sucesso — disse Aarif, sorrindo, apesar de haver uma estranha monotonia em seus olhos e em sua voz. — Quando alguém tem determinação, certamente alcança o sucesso.
— De fato, é uma excelente máxima para nos orientar na vida — disse Bahir servindo mais vinho.
Kalila mal tocou na comida do prato seguinte, salada de couscous, pepinos e tomates. Seu apetite sumiu e ela se sentiu insegura novamente, apesar de estar sendo ela mesma e vestindo roupas confortáveis.
Não sabia o que causava tal mal-estar e insatisfação. Seria a ausência de Zakari ou a presença de Aarif? Seu olhar se fixou rapidamente no rosto obstinado de Aarif, em sua cicatriz saliente e mais uma vez sentiu uma certa ansiedade alegre dentro dela. De repente, ela percebeu que era interesse por ele. Estava fascinada por Aarif.
Será que Zakari teria provocado o mesmo sentimento nela? A vaga imagem que guardava da infância não tinha o mesmo encanto se comparada à presença enigmática daquele homem, que não era e nem nunca seria seu marido.
Aarif a encarou, fazendo Kalila sentir-se exposta, como se alguém pudesse ler seus pensamentos perturbadores.
— Kalila? — Bahir chamou sua atenção para a conversa.
— Por favor, me perdoe — disse Kalila rezando para não corar. — Meu pensamento estava longe. Pois não, meu pai?
— Príncipe Aarif falava de levar você para Calista; ele quer partir amanhã. Também lhe falava dos nossos costumes — Bahir sorria educadamente para Aarif. — Sabe, príncipe Aarif, aqui em Zaraq temos uma tradição. O povo ama a família real, sempre foi assim. — Tomou um gole de vinho antes de continuar. — Talvez seja este o motivo de vivermos em paz há mais de cem anos. — Kalila sabia que o pai estava lembrando, delicadamente, do poder e prestígio que Zaraq significava para a aliança matrimonial em questão.
— O povo de Makaris, a capital do país, gosta de realizar um festival quando um membro da família real se casa. — Bahir ergueu um das mãos esperando pela resposta de Aarif, mas ele não se mexeu e nem falou. Apenas aguardou. — Sei que este festival poderia muito bem se realizar após o casamento, mas então Kalila estará em Calista, e é importante que o povo veja o casal feliz... ou uma noiva radiante. — Não havia crítica alguma na voz de Bahir, mas Aarif deve ter entendido assim, pois estava muito sério.
— Se meu irmão tivesse conhecimento de tais tradições, garanto que teria feito um esforço para estar aqui — ele disse depois de alguns momentos, e Bahir inclinou a cabeça em reconhecimento.
— Claro, claro. No entanto, você está aqui, e não ele. E para o bem de nosso povo e paz de nosso país, o festival deve acontecer como foi planejado. É um evento pequeno e simples, com comida, música e dança. Pensei que talvez — ele fez uma pequena pausa — você pudesse parar em Makaris no caminho para o aeroporto e aproveitar a festa por uma ou duas horas, não mais. O povo gosta de ver a família real, apenas isso.
— A caminho do aeroporto? — Aarif repetiu, educadamente. — Achei que fosse partir do aeroporto do palácio.
— Sim, claro — ele disse abanando uma das mãos. — Você tem razão em achar isso. Mas, como eu lhe disse, o povo de Zaraq tem muita admiração pela família real, principalmente pela princesa Kalila, que é minha única herdeira e é muito querida. O povo quer vê-la e despedir-se dela, sabe como é. — Ele sorriu, mas o lampejo de astúcia em seus olhos não enganava ninguém.
Aarif limpou a boca com o guardanapo antes de sorrir, mas Kalila notou seu olhar tão incisivo quanto o de seu pai.
— Claro. Precisamos agradar o povo, rei Bahir. Que assim seja.
Bahir sorriu satisfeito, e Kalila sentiu uma repentina prostração só de pensar que teria que passar horas seguidas conversando, sorrindo, cumprimentando e acenando para satisfazer o povo e sua necessidade de acreditar em contos de fadas.
Mas se era preciso, então seria feito. Tudo fazia parte dos deveres de uma princesa, de uma rainha.
— Perdoe-me por ter de levá-la às pressas de sua casa, princesa — Aarif disse ao se virar para ela. — Mas, como sabe, o casamento será dentro de duas semanas e ainda temos muito que preparar até lá. — Ele fez uma pausa antes de completar. — E o rei Zakari está ansioso para vê-la, claro.
— Claro. — Kalila abaixou a cabeça e fitou seu prato intacto. No momento, ela estava com dificuldade de acreditar que Zakari tivesse outro interesse que não fosse o diamante de sua coroa.
O resto da noite transcorreu calmamente e Bahir fez questão de manter uma conversa agradável e os copos cheios de vinho.
— Ouvi dizer que a maioria dos príncipes de AlTarisi estudou em Oxford — ele disse durante a sobremesa de ameixas assadas com cardamomo e noz moscada. — Eu mesmo cursei a Sandhurst, onde conheci minha falecida esposa, rainha Amélia, que Deus a tenha. O irmão dela foi um de meus melhores amigos. — Bahir sorriu. — Você estudou em Oxford, Aarif?
— Estudei. Depois voltei para Calista para cuidar de nossa indústria de diamantes.
— Então é um homem de negócios?
— Exatamente.
E ele tinha mesmo a aparência de um homem de negócios, Kalila pensou. Então lidava com exploração, comércio e avaliações. Até seus olhos tinham a mesma dureza dos diamantes.
— Kalila cursou a universidade de Cambridge — Bahir continuou. — Mas tenho certeza de que sabe disso, ou ao menos seu irmão sabe. Ela estudou História e aproveitou bem o tempo que passou lá, não foi minha querida?
— Sim, aproveitei. — Kalila sorriu sem graça, pois não gostava quando seu pai exibia suas proezas como se ela fosse um cavalo de exposição. Uma égua puro-sangue.
—A educação é importante para qualquer soberano, não acha? — Bahir continuou. Então Aarif girou o corpo ligeiramente para pousar aquele olhar carrancudo e resoluto em Kalila.
Kalila congelou com aquele olhar, e sentiu de novo um calor no rosto e um reboliço na barriga. Estranho ela sentir isto, pois a pressão dele era dura e os olhos, obstinados. Ela devia sufocar d baixo daquele olhar, mas não era o que acontecia. Ela se alegrava E ela queria mais, mas de quê? O que poderia lhe dar um homem como Aarif?
— Sim— ele disse e então desviou o olhar.
Finalmente o jantar terminou e Bahir convidou Aarif para fumar um charuto e tomar um vinho do porto em seu escritório. Tratava-se de uma tradição entre os homens, cada país tinha a sua e bastou um olhar de seu pai para Kalila entender que fora dispensada. Geralmente ela ficava aborrecida com este hábito de excluir as mulheres dos assuntos de grande importância, mas naquela noite ela estava conformada.
Kalila queria ficar sozinha, precisava pensar.
Ela esperou até que Bahir e Aarif estivessem instalados no escritório para, então, ir até o jardim privativo do palácio, que era um verdadeiro oásis verdejante e calmo. Ela adorava aquele jardim, com suas variedades de arbustos e flores, com seus caminhos sinuosos que podiam desembocar em uma fonte, em uma escultura ou em um banco de jardim; era sempre uma surpresa agradável e encantadora.
Kalila sentiu os aromas de lavanda e rosa, importados da Inglaterra por Bahir para satisfazer a esposa e matar sua saudade de casa.
O ar estava úmido e fresco graças ao borrifador automático que Bahir instalara no jardim, mas Kalila ainda assim podia sentir o clima seco e frio da noite no deserto. Bem que podia ter trazido um agasalho, mas como não trouxera, cruzou os braços para se esquentar.
Ela não queria se casar com Zakari. Compreendia isso perfeitamente depois de enxergar a realidade sem falsas esperanças. Não queria viajar para outro país para se tornar uma rainha, nem que fosse perto como Calista. Não queria a vida que foi escolhida para ela há tantos anos
Não queria cumprir seu dever.
Estranho ela ter entendido isso naquele momento, quando já era tarde demais, quando o casamento era iminente e os convites já haviam sido enviados. Será que haviam mesmo? Estranho, também, ela não ter tomado conhecimento dos detalhes do próprio casamento, e nem mesmo de seu noivo.
Kalila suspirou. O caminho por onde andava a levou a um clarão rodeado por uma cerca viva, com uma pequena fonte cujas águas pareciam escuras à noite, refletindo a lua que começava a surgir. Ela se sentou no banco, encolheu as pernas até o peito e apoiou o queixo nos joelhos, numa posição que desde criança a deixava confortável.
Encheu a mão de pedrinhas apanhadas do chão e foi deixando-as cair, uma de cada vez. Ela não se dera conta de sua verdadeira situação até aquele momento porque, na verdade, não tinha parado para analisar a conjuntura com o devido distanciamento.
Desde seus 12 anos, portanto metade de sua vida, ela já sabia que se casaria com rei Zakari. Tinha uma foto dele, tirada de um jornal, na sua gaveta de calcinhas, mas mantinha segredo sobre isso. Quando estava sozinha, Kalila tirava a foto da gaveta e alisava o papel, examinando a foto desgastada e se perguntando como seria aquele homem, que seria seu marido, pai de seus filhos, seu companheiro.
Naquele tempo, ela fantasiava sobre ele, sobre sua beleza, sua coragem, inteligência e senso de humor. Kalila fez dele um rei bem antes de ele ser coroado. Mas aquela ingenuidade pueril não durou muito tempo, claro. Na época em que chegou a Cambridge, ela já sabia que Zakari não poderia ser o homem dos seus sonhos. Homem nenhum poderia ser.
E até quando pensava que estava sendo realista, exercendo seus deveres com nobreza, ela ainda se apegava às velhas fantasias. Ficaram recolhidas em seu peito, e só quando Aarif se apresentou no salão do trono foi que ela se lembrou delas.
Ela ainda acreditava. Ainda queria aquele homem impossível, maravilhoso e, de alguma forma, real.
Pois aquele homem a amava, quem quer que ele fosse.
Foi quando, de repente, a imagem de Aarif passou por sua mente e ela rapidamente sacudiu a cabeça como se quisesse negar o que estava percebendo. Não, ela se convenceu, só pensou em Aarif, porque Zakari não estava lá.
No entanto, ela não conseguia se livrar da sensação de sua presença, o ligeiro tremor no seu sorriso. Você usava um vestido branco e um laço no cabelo.
Uma simples declaração, mas que revelava uma estranha intimidade naquela memória.
— Perdoe-me.
Kalila levou um susto com aquela voz forte de repente. Aarif era uma grande sombra na escuridão junto à fonte. Eles se olharam ao som de folhas farfalhando ao longe e um leve assobio de um bacurau.
— Não sabia que havia alguém aqui fora — disse Aarif depois de alguns segundos.
— Pensei que ainda estivesse com meu pai.
— Já encerramos nossa conversa e ele quis se deitar.
Perdida em seus pensamentos, Kalila nem tinha reparado que o tempo passara.
— Vou embora — disse Aarif já se virando.
— Por favor, não vá. — Kalila se apressou em dizer, surpreendendo-se. Não sabia o que queria daquele homem tão estranho e egoísta. Mas também não queria que ele se fosse, ela não tinha mais vontade de ficar sozinha. Kalila se deu conta de que queria ficar com ele. Desejava conhecê-lo melhor, mesmo que não fizesse sentido.
Já de costas para ir embora, Aarif hesitou, e depois se virou lentamente. Kalila não podia ver seu rosto naquela escuridão.
— Precisa de algo, princesa?
— Sente-se, por favor — ela disse, batendo a mão de leve no banco onde estava sentada.
Algum tempo se passou e Kalila achou ter visto Aarif fitando o banco vazio antes de se decidir e sentar junto a ela, mas a uma certa distância de forma a não encostar nela.
O seu constrangimento já era uma revelação em si, deduziu Kalila. Será que ele percebia a tensão que provocava nela, que desencadeava uma sensação estonteante, coisa que ela nunca experimentara antes?
Será que ele sentia o mesmo?
Impossível, pensou Kalila, ou então ele estava disfarçando muito bem. Ele estava sentado bem ereto com as mãos pousadas sobre as coxas, imóvel, totalmente controlado, não se mexia nem emitia qualquer som.
— É um jardim belíssimo — disse Aarif depois de alguns minutos, e Kalila ficou feliz por ele ter falado.
— Sempre adorei este jardim — ela concordou. — Meu pai fez para agradar minha mãe, para ela se sentir em casa.
— Igual aos Jardins Suspensos da Babilônia, feitos por Nabucodonosor para agradar sua esposa, Amitis.
— Sim — Kalila sorriu satisfeita por ele ter feito a conexão. — Meu pai costumava chamá-la carinhosamente de Amitis. — Ela disse num tom melancólico.
— Sinto muito por sua perda — disse Aarif, formal e distante. — A morte de um dos pais traz um grande sofrimento.
— É verdade.
— Quando foi que ela morreu?
— Quando eu tinha 17 anos. Morreu de câncer. — Kalila murmurou. Foi tudo tão inesperado e rápido. Passaram-se apenas algumas semanas entre o diagnóstico e a morte dela para depois ficar um enorme vazio na vida deles. Sua ida para Cambridge foi um alívio, um recomeço, mesmo que Kalila soubesse que nunca superaria a morte da mãe. Era uma perda que carregaria para o resto da vida.
— Sinto muito —Aarif disse baixinho, e Kalila sentiu sinceridade nele. Acima deles, um bacurau voltou a cantar.
— Sei que você perdeu seu pai e sua madrasta há alguns anos — ela disse, vacilante. — Perdoe-me, mas ouvi dizer. — Na época ela escreveu para Zakari para enviar suas condolências e recebeu dele uma carta formal de agradecimento. Agora ela se perguntava se de fato foi ele quem a escrevera.
— Obrigado. Foi bem difícil superar essa dor. — Aarif disse apenas isso e Kalila não teve coragem de perguntar mais nada. Ele se mexeu e Kalila se perguntou se estaria desconfortável. Havia uma estranha e silenciosa intimidade naquela escuridão, quando os sons noturnos pairavam suavemente, hipnotizando-os. Kalila queria poder ver o rosto dele, mas a lua se escondera atrás de uma nuvem e ela só conseguia ver o contorno de seu ombro, do queixo e da bochecha.
— Fale-me de Calista — ela pediu. — Nunca estive lá.
— É uma beleza — ele disse depois de algum tempo. — Parece bastante com seu país. Claro que nem todos apreciam a beleza do deserto. É uma beleza agreste. Sua mãe encontrou alguma dificuldade para viver aqui?
— De certa forma, sim. Mas ela viajava para a Inglaterra com uma certa frequência. Tanto que passei minhas primeiras férias em Bournemouth.
A lua surgiu por trás das nuvens e Kalila vislumbrou o brilho de seus dentes e deduziu que ele estava sorrindo. Ligeiramente. Ela ficou surpresa, pois ele não sorrira vez alguma desde que chegou. Ela gostaria de ter visto melhor. Então se perguntou se seu sorriso iluminava seu olhar, se atenuava suas feições duras, e se deu conta de que gostaria de saber mais sobre ele.
— E ela tinha o jardim para consolá-la — ela concluiu. — Minha mãe adorava ficar aqui.
— E quanto a você? Vai sentir falta de sua terra? — quis saber Aarif.
— Sim, acho que sim — ela murmurou.
Ele não disse nada, mas ela sentia sua censura como se pudesse tocá-la. E por que ele não estaria surpreso e até mesmo desapontado? Ali estava ela, admitindo que não sabia se sentiria saudades de sua própria terra! Ela já ia falar sobre o turbilhão de emoções confusas e de sonhos frustrados, mas desistiu. O que ela poderia dizer a ele, e o que aquele homem ia querer ouvir?
Estranhamente, no entanto, ela achava que ele a entenderia. Ou será que isso não passava de uma fantasia de uma mulher cujos sonhos não se concretizaram?
— Sentirei falta de Zaraq, claro — ela disse, querendo se explicar. — E também sentirei falta de meu pai, de meus amigos... — Sua voz sumiu. Ela não podia explicar a indescritível falta que sentia de alguma coisa que não sabia dizer o que era. Algo que ela não sabia se já tivera algum dia.
— Este é um momento delicado — Aarif disse. A voz dele ainda era fria, mas Kalila teve a nítida impressão de ter visto ele levantar uma das mãos como se fosse tocá-la, e logo desistir. O coração dela passou a bater mais forte. — Quando estiver em Calista, vai se sentir melhor. O povo vai recebê-la muito bem, tenho certeza de que vão amá-la.
O povo, não Zakari. E o que será que Zakari vai sentir? E quanto a Aarif? A pergunta era risível e tão ridícula e inadequada que Kalila corou, protegida pela escuridão.
— Obrigada — ela murmurou. — Sei que estou parecendo cheia de auto piedade, mas espero, ou melhor, eu sei que isso vai passar com o tempo.
— O tempo cura quase tudo — Aarif concordou, mas Kalila sentiu que ele falava de outra coisa, de algo bem significante.
Aarif se mexeu e Kalila entendeu que ele queria ir embora. A noite ficara silenciosa demais e a conversa deles, excessivamente íntima. Mas ela não gostava da ideia de ele ir, então ela pediu:
— Conte-me alguma coisa sobre seu irmão.
As palavras soaram como as pedrinhas de sua mão, perturbando o plácido silêncio. Kalila se arrependeu de ter falado. Por que foi perguntar sobre Zakari? Ela não queria saber dele. Não queria nem pensar nele.
Mas você precisa saber. Ele vai ser seu marido.
— Que tipo de homem é ele? — ela perguntou. Sentia vergonha de perguntar. Parecia que estava se expondo para Aarif, como se mostrasse a fotografia desbotada que guardava na gaveta.
— É um homem bom — ele respondeu depois de um breve silêncio durante o qual ele se manteve imóvel e com a cabeça virada para o outro lado. — Um homem melhor do que eu sou. E um bom rei. — Kalila estava impressionada com sua confissão. Um homem melhor do que eu. Por quê? Que tipo de homem é você? Ela quis perguntar, mas não o fez, e Aarif encerrou dizendo: — Cumprirá seu dever.
Seu dever. Um alto elogio para um homem como Aarif, claro, mas para Kalila isso parecia mais uma reprovação. Ela queria muito mais do que apenas um dever. Fez um esforço para rir.
— Será que não tem mais nada a me dizer?
Aarif se virou para fitá-la, com olhos e rosto inexpressivos.
— Infelizmente não poderei lhe contar o tipo de coisa que uma noiva deseja saber sobre seu noivo. O que, aliás, em breve, você saberá.
— Pensei que ele viria me ver. — Kalila mordeu os lábios, arrependida do que falara. Mas logo deu de ombros e disse com ar de desafio. — Ele devia ter vindo.
Kalila sabia que havia ido longe demais, quase insultara o rei Zakari. Seu marido. Então ela fechou os olhos e só voltou a abri-los quando ouviu a voz de Aarif.
— Por culpa minha você estava esperando o rei Zakari. Eu deveria ter explicado sobre essa mudança antes de vir para cá.
Kalila olhou cheia de curiosidade para ele. Mesmo sem se mexer, ela podia notar que ele emanava tensão. Ele não era do tipo de homem que se esqueceria de uma coisa dessas, ela pensou, então o que foi que aconteceu? Por que motivo ele estava se culpando?
— Não tem importância — ela disse. Ela tinha dificuldades de explicar por que aquilo era tão importante. — O rei Zakari estará me esperando em Calista. O casamento já foi adiado tantas vezes, e agora será por mais alguns dias, não é mesmo?
— Percebo que isso importa para você — Aarif retrucou.
Kalila desviou o rosto. Naquela tarde, de fato, fora um problema. Ficara decepcionada, magoada, como uma criança em sua festa de aniversário que abre um presente e descobre que a caixa está vazia. Mas naquele momento ela se sentia pior, pois estava insensível e indiferente. Finalmente se dera conta de que nunca houvera presente, nem mesmo a ilusão de um presente. Só havia uma caixa vazia.
E não havia nada que ela pudesse fazer a esse respeito.
— Princesa Kalila, preciso ir — Aarif se levantou do banco. — Não é aconselhável que fiquemos aqui.
— Por que não? Seremos irmãos em algumas semanas — Kalila replicou, com ar de desafio.
— É verdade. Mas você sabe tão bem quanto eu que, em países como os nossos, homens e mulheres que não sejam casados não ficam sozinhos, por muito tempo, desacompanhados.
— E você é descomprometido? — Kalila falou sem pensar, mas no fundo era o que ela queria saber. Não era casado, mas será que havia uma mulher em sua vida? Uma namorada ou amante?
Ela não devia perguntar, não precisava saber. No entanto, ela queria saber alguma coisa sobre aquele olhar calmo e observador, que despertava nela a vontade de conhecer o homem ali escondido.
— Sou. E agora devo lhe desejar uma boa noite. Tem certeza de que sabe o caminho de volta?
— Sim... — De onde estava, o luar batia no rosto dele e iluminava a linha lívida que ia da sobrancelha até o queixo, e Kalila não podia deixar de perguntar. — Como foi que se machucou?
Aarif levou um susto com aquela indagação, mas se virou para ela. Pelo jeito dele, como se tivesse sido encurralado, Kalila percebeu que não devia ter perguntado. Não era um assunto sobre o qual Aarif gostava de falar. Mesmo assim, nervosa e cheia de dúvidas, ela esperou ele responder
— Foi um acidente tolo — respondeu Aarif, tenso, como se não estivesse acostumado a explicar. Talvez não estivesse mesmo.
— Deve ter sido mesmo. — Ela o observou ardentemente, desejando suavizar o momento, querendo fazê-lo sorrir de novo. — Parece que alguém o golpeou com uma cimitarra — ela disse tentando fazer graça. — E você venceu? — ela perguntou, ofegante, esperando por sua reação.
Passou um bom tempo até Aarif abrir um ligeiro sorriso. Aquela demonstração de senso de humor fez seu coração pular, e um redemoinho de emoções se formou em sua barriga, pois de repente ele não parecia o homem de antes. Ele se mostrara um homem inteiramente diferente. Alguém que ela queria conhecer, o homem por trás da máscara estava se revelando.
— Você acreditaria se eu lhe dissesse que eu sozinho venci três ladrões de camelos?
Ele a encarava sorrindo, e Kalila sorriu também.
— Eu acredito.
Subitamente, o momento de leviandade tomou um rumo inquietante, algo estava acontecendo entre eles, aproximando-os, mesmo sem eles se moverem.
Os olhos de Aarif se fixaram nos dela. Ela esticou uma das mãos para se despedir e, para sua surpresa, ele segurou sua mão e agarrou-a, e um choque inesperado de alerta percorreu seu braço e, depois, todo o seu corpo.
Os dedos dela apertaram os dele e, por um bom tempo, nenhum dos dois se soltou. Kalila sabia que nenhum dos dois queria se soltar. Ela deveria ter tirado sua mão. Aarif também.
No entanto, ninguém fez movimento algum. E os minutos se passaram, suspensos, infindáveis, enquanto eles permaneciam unidos pelos dedos e fitando-se em silêncio. Kalila sentiu um clamor de várias emoções simultaneamente: a necessidade de compreensão e de ser tratada com carinho, de ser amada. E ela pensou que aquele homem poderia ser quem lhe daria tudo isso.
Mas então, como se acordasse de um sonho, Aarif sacudiu a cabeça, e seus olhos retomaram sua frieza e o sorriso desapareceu de seus lábios. Ele a soltou tão de repente que deixou a mão de Kalila cair sobre o colo dela. Ela fechou a mão que ardia com a lembrança de seu toque junto a sua coxa e viu Aarif se virar para ir embora.
— Boa noite, princesa — ele disse, sumindo silenciosamente no breu do jardim.
Quando Kalila acordou na manhã seguinte, a cidade já estava em plena atividade. Ela podia perceber isso da janela do quarto de vestir, que era virada para o leste, na direção de Makaris. O vento trazia da cidade o cheiro de carnes e condimentos refogados, odores que vinham no ar como se fossem coisas palpáveis.
Kalila sentiu uma reação de excitação dentro dela, mas sua mente se desviou do motivo daquilo. Não aguardava com ansiedade seu casamento, no entanto estava animada com a viagem a Calista. Na companhia de Aarif.
Chega. Ela não poderia pensar essas coisas, nem desejá-las. Mas seu desejo era indefinido, impessoal, e Kalila tinha certeza de que era melhor que continuasse assim. Era mais seguro. Dentro de 15 dias ela se casaria com Zakari. Não havia meio de fugir de seu destino. Porém, se ela pudesse se dar ao luxo de ter alguns breves e inofensivos momentos de prazer antes...
Chega.
— Kalila! Já devia estar vestida! — Juhanah entrou esbaforida no quarto, batendo palmas e transbordando de alegria. Ela ia acompanhá-la até Calista e ficaria por lá até que Kalila estivesse bem adaptada. Kalila se perguntava quanto tempo isso levaria, ao sentir o conhecido desespero tomar conta dela. Dias, meses, anos? A vida inteira?
— Kalila, minha princesa. — Juhanah se ajoelhou junto à janela, onde Kalila estava com um dos ombros apoiado na esquadria. — Está na hora. Príncipe Aarif quer que suas malas estejam prontas, tudo está preparado.
— Já? — Ela desviou o rosto da janela. Suas roupas e objetos pessoais já estavam nas malas. Muitas coisas suas ainda estavam em caixas desde quando chegara da Inglaterra. Não teve muita coisa para trazer de lá, apenas roupas, alguns livros e fotografias, nada mais. Pareciam sobras sendo levadas para um banquete, uma humilde e patética oferenda.
— Juhanah, eu não quero ir. — Suas palavras saíram de lábios trémulos. Ela apertou os lábios na esperança de não chorar. Não era hora para isso. Mas ela precisava falar sobre o medo que havia dentro dela. — Não quero me casar com ele — ela murmurou.
Juhanah ficou em silêncio. Kalila não ousou olhar para ela, estava envergonhada demais.
— Ora, ya daanaya — Juhanah finalmente disse ao se levantar e abraçá-la. Kalila apoiou a cabeça nos seios volumosos de Juhanah para se consolar. — Claro que está com medo agora. Se o rei Zakari tivesse vindo, talvez você se sentisse melhor. É uma situação muito difícil, viajar para um país estranho e casar-se com um desconhecido.
— Mas não acho que teria sido diferente — Kalila murmurou. — Compreendi isso na noite passada. Não quero fazer isso, Juhanah. Não me importa como ele seja. Ele não me ama.
— Com o tempo...
— Com o tempo virão afeição, compreensão e amabilidade — Kalila a interrompeu. — Talvez. E o que venho me dizendo há anos. Mas por que eu deveria me contentar com isso? Meu pai pode se casar por amor. O pai de Aarif e sua madrasta, Anya e Ashraf, se casaram por amor. Por que eu também não posso?
Juhanah a soltou e ela repetiu o que acabara de ouvir, fazendo-a corar.
— O pai de Aarif?
— O pai de Zakari também. Por que eu deveria me conformar?
— Estará fazendo isso em prol de seu país— Juhanah disse, e havia um aviso na voz da aia que fez Kalila se lembrar da vez em que foi pega roubando pão de mel na cozinha. — Precisa se comportar como a princesa que é, Kalila, e cumprir seu dever.
— Sei disso. — Ela já aceitara isso há muitos anos. Porém, todas as resoluções desmoronaram diante da crua realidade. — Sei disso — ela repetiu e, se Juhanah ouviu a hesitação na voz de Kalila, ela não fez comentário algum.
— Agora, vamos. Precisa se vestir.
— Não vou usar outro traje igual àquele — Kalila avisou. — Não vou me amarrar toda como se fosse uma garota de um harém para agradar o povo de Makaris.
— Claro que não — Juhanah lhe garantiu. — Além do mais, não seria nada confortável para viajar.
Kalila riu e Juhanah sorriu para encorajá-la. Ela estava tão envolvida que o riso a fez se lembrar de quem ela era. Quem ela costumava ser. Era uma moça que ria, amava a vida, e que se entregava com prazer a cada oportunidade.
Não era retraída, assustada ou desesperada. Não se permitia ser assim.
Finalmente escolheu para viajar uma calça comprida confortável, de algodão, e uma túnica verde com bordados prateados. Fez uma trança no cabelo, colocou brincos de argola e uma corrente com um medalhão de prata, que foram de sua mãe.
Juhanah saiu para supervisionar as criadas que faziam as malas e deixou Kalila sozinha no quarto que era seu desde criança. Dentro de pouco tempo estaria se despedindo daquele palácio, dos ajudantes e de seu pai. Bahir iria até Calista para o casamento, mas não seria a mesma coisa. Quando ela saísse do palácio, estaria deixando aquela vida para sempre.
A ideia a entristeceu. Crescera ali, explorara cada corredor vazio e sombrio, enroscara-se em cada banco banhado de sol, entrara sorrateiramente no escritório do pai e na cozinha do palácio. A primeira vez que se ausentara de casa por um período maior foi quando estivera em Cambridge.
E que vida diferente ela experimentou lá! Um apartamento dividido com outras estudantes, frequentando pubs à noite ou comendo pizza e saboreando um vinho em casa, tudo bem à vontade, bagunçado e divertido.
Parecia ser duas ao mesmo tempo, a princesa e a pessoa comum. A futura rainha e a garota moderna que só queria ser amada.
Mas não se podia ser duas pessoas ao mesmo tempo e ainda ser feliz. Ainda ser verdadeira. Então, como iria sobreviver nos próximos meses e anos, ao assumir os estranhos papéis de rainha e esposa? Como poderia ser feliz?
E mais uma vez a imagem de Aarif surgiu em sua mente, tentando-a, ameaçadora. Sentiu-se feliz em sua companhia. Sacudiu a cabeça para negar aquela verdade proibida e, em seguida, saiu do quarto. Da janela do corredor do andar de cima, ela avistou um desfile de carros no pátio do palácio. Havia uma van para suas malas, um carro para Aarif, outro para seu pai, um carro para ela e Juhanah e mais um para os oficiais do palácio que os acompanhariam até o aeroporto.
Era um desfile, e ela era a figura principal. Kalila fechou os olhos. Agarrou-se ao peitoril de pedra da janela como se fosse uma âncora.
— Não posso fazer isso — ela falou alto, mas não havia ninguém ali para ouvi-la. Apenas seu coração ouviu e respondeu. Não farei isso.
O sol castigava Aarif no pátio enquanto ele esperava por Kalila. Uma brisa leve soprou do deserto para amenizar seu desconforto e ele ficou avaliando. Levantara-se ao amanhecer para organizar a viagem, não queria se arriscar mais, não podia mais cometer erro algum.
O primeiro já fora o suficiente.
Aarif fez uma careta ao se lembrar do encontro particular que tivera com rei Bahir na noite anterior, após o jantar. O rei era por demais político e astuto para demonstrar seu desagrado, mas deixou bem claro que estava desapontado com Zakari.
Aarif fez o possível para justificar o ocorrido sem desvalorizar sua pessoa e nem a do irmão. Ele se perguntava se Bahir não estava exagerando sobre a ausência de Zakari para se garantir para uma futura barganha.
E quanto a Kalila? Sua mente o levou à noite no jardim e ao cheiro de rosas misturado ao estonteante perfume que ele acreditava, e temia, ser da própria princesa. Ele a observou pelo canto do olho enquanto esteve sentado ao seu lado, a menos de 30 centímetros de distância. Encantou-se com seus cabelos negros volumosos brilhando na luz do luar, e reparou na pele nua de sua nuca.
Segurou os dedos dela nos seus e não queria deixar de tocá-la. Aquele toque macio fora um bálsamo para ele, como se ela o compreendesse, como se quisesse compreendê-lo.
Mas, além da sua aparência e do seu toque, ele se impressionara com seu sorriso e com o que dissera. Parece que alguém o golpeou com uma cimitarra. Ninguém nunca lhe falava sobre a cicatriz, ninguém o pedia para se lembrar. Ninguém o fazia sorrir.
Exceto ela. Sem perceber, ela derrubara suas defesas, deixando-o inseguro e contente ao mesmo tempo.
Chega. Sua mente estava dominada por esses devaneios com a precisão e poder de uma poderosa armadilha. Não tinha o direito de pensar nela, afinal.
Estava destinada a ser a esposa de seu irmão. Ele estava ali como seu representante, um criado, e ele faria seu trabalho, cumpriria sua missão.
Ele não iria fracassar.
De repente, houve uma movimentação na entrada do palácio e Kalila surgiu no pátio. Seu pai, rei Bahir, vinha atrás dela, que estava vestida com simplicidade, assim como Aarif, que estava de camisa de algodão branca e calça caqui.
Na opinião de Aarif, estava quente demais para roupas mais formais. E ele imaginava que o festival em Makaris seria divertido e alegre, mais uma comemoração do que uma cerimônia.
Kalila se aproximou dele, com um ar fresco e sereno, seus olhos brilhando e um sorriso franco. Ao chegar mais perto Aarif reparou que ela estava com olheiras e que seu sorriso parecia um pouco forçado. Imaginou que ela devia estar um pouco nervosa e insegura.
— Bom dia, princesa.
— Príncipe Aarif — ela acenou com a cabeça ligeiramente. — Obrigada por ter organizado este passeio. Está me fazendo um grande favor.
— É um prazer e uma honra — disse ele se curvando. Terminadas as formalidades, ela falou num tom mais baixo.
— Obrigada pela atenção que me dispensou no jardim ontem à noite. Foi de grande ajuda.
Aarif ficou frio e seu sorriso congelou. Sentiu como se aquele agradecimento tivesse chamado atenção para a conversa inocente, que não fora nada inocente, fora? Nem seus pensamentos e nem seu toque.
Ele acenou bruscamente com a cabeça e viu surgir um ar de decepção nos olhos dela antes que ela acenasse de volta. Ele olhou para a fila de carros pretos.
— A hora está passando e o sol já está alto. Não devemos demorar mais, o povo de Makaris nos espera, estou certo.
Kalila chegou a cruzar os braços na altura da cintura, mas percebeu que sua postura era defensiva demais, então os deixou cair ao longo do corpo.
— Diga-me, o rei Zakari estará em Calista quando eu chegar lá? — Aarif hesitou antes de responder e Kalila o fitou. — Será que ele vai me esperar com um buquê de rosas?
Ele percebeu o tom de deboche em sua voz e sentiu que ela estava aborrecida e assustada. Será que a moça esperava um casamento por amor? Será que ela era assim tão ingénua ou apenas esperançosa?
Será que ela não merecia?
Ele tentou falar sem se comprometer.
— Estou certo de que rei Zakari terá prazer em restabelecer a amizade entre vocês.
— Se falar com ele — Kalila disse, e agora ele percebeu nitidamente que ela ria —, diga-lhe que, na verdade, não gosto de rosas, e o lírio é a minha flor predileta.
Aarif não respondeu e Kalila saiu andando com uma postura rígida, cheia de dignidade. Entendeu que ela estava irritada. E a última coisa que queria era ter de lidar com uma princesa magoada. De certo que ela sabia que aquele casamento era uma aliança entre dois países e não um belo romance! No entanto, pelo visto ela esperava algo assim, ou foi o que deu a entender na noite passada, quando ele percebeu um tom de decepção em sua voz...
Aarif decidiu não mais pensar na noite anterior e na silenciosa e proibida intimidade que viveram no jardim. Virou-se, então, para um dos oficiais do palácio que aguardava suas ordens.
— A bagagem já está pronta? — ele perguntou num tom exageradamente ríspido e abrupto.
— Sim, príncipe Aarif— disse o oficial de olhos baixos.
— Certo. — Aarif olhou para o céu, o azul sem fim borrado por uma fina lista de cinza no horizonte. — O vento parece estar entrando. Devemos partir logo.
Ainda se passaram mais 30 minutos até que finalmente começaram a percorrer os cinco quilômetros que os separavam de Makaris, enquanto criados e oficias corriam de um lado para outro, lembrando disso, esquecendo daquilo, e Aarif observava e esperava esforçando-se para controlar sua irritação.
Queria que aquele espetáculo terminasse logo. Queria estar de volta a Calista, em seu escritório, longe das distrações, das tentações.
E mais uma vez sua mente voltou aos pensamentos e ele sacudiu a cabeça para se livrar deles. Recusava-se a pensar naquilo, ou nela.
À medida que os carros iam entrando em Makaris, o povo ia se juntando nas calçadas para assistir ao desfile, obrigando-os a dirigir bem devagar. Na sua frente, Aarif via o carro de Kalila de janelas abertas, de onde saía um braço fino para receber os buquês de flores, papéis contendo orações, bênçãos e outros desejos. A multidão sorria, aplaudia e fazia votos de felicidade crianças com seus cachorros seguiam os carros quando avançavam em direção ao arco da cidade e entravam na Cidade Velha, com seus prédios de tijolos vermelhos, antes de chegar a uma grande praça, cercada de barraquinhas de comida, cheia de gente alegre.
Os carros pararam e rei Bahir saiu sorrindo e acenando, com seus oficias a seu lado. Aarif observou a multidão maltrapilha com certo constrangimento.
Havia muita gente e muita poeira, era impossível acompanhar Kalila. Qualquer um poderia se aproximar dela, qualquer coisa poderia acontecer ali. Aarif sabia que em questões de segundos tudo podia dar errado, terrivelmente errado. E ele, Aarif, seria o responsável. Mais uma vez.
Ele abriu a porta do carro e chamou um oficial.
— Fique ao lado da princesa. Não a perca de vista.
O homem correu na direção de Kalila, e Aarif ficou no centro da praça, protegendo os olhos do sol, à medida que a multidão se aproximava, desesperada para ver a família real e receber a bênção da princesa.
Num espaço reservado para dançar, algumas mulheres começaram a encenar um show enquanto uma banda formada por homens vestidos em mantos coloridos e turbantes, tocava instrumentos como baterias bandir, maqrunah e garagab. Tocados juntos, os instrumentos faziam um som dissonante de palheta, um som até bonito, mas com a multidão e o cheiro acentuado de comida excessivamente temperada das barraquinhas, Aarif ficou aborrecido, tenso e alerta.
'Aquilo era muito arriscado. Perigoso demais. Seu coração estava batendo mais rápido do que o normal e suas mãos começaram a suar. Ele sentia desprezo por si mesmo, desprezo pelo medo que sentia.
Desprezava a incerteza, o desconhecido.
Qualquer coisa poderia acontecer ali.
Olhou em volta, percorrendo a massa com os olhos e avistou Kalila em pé, diante de uma clareira, assistindo ao show, completamente distraída. O cabelo dela caiu nas costas em forma de trança e uma brisa modelou sua roupa ao corpo, então Aarif poder ver o volume delicado dos seus seios e quadris. Ele engoliu em seco e desviou seu olhar.
Junto a ele, um pequeno garoto esfarrapado puxava sua perna. Ao ver seu rosto sorridente, Aarif lhe deu uma moeda.
A apresentação terminou e mais uma vez os olhos de Aarif foram atraídos para a princesa. Ela batia palmas e sorria, conversando com as mulheres, abraçando-as como se fossem iguais, amigas.
Aarif sentiu admiração pela sua atitude. Sabia que ela estava debaixo de muita tensão, mesmo assim ela agia com um encanto natural. Agia como a verdadeira princesa que era e a rainha que seria. A esposa de seu irmão.
Virou-se e esquadrinhou a multidão do outro lado por algum sinal de perigo, escuridão...
— O rei pede que você se junte a ele e à princesa — um oficial murmurou em seu ouvido, curvando-se e Aarif teve que abrir caminho pela multidão até chegar junto ao rei Bahir e à princesa Kalila.
Ela deu uma olhada quando ele se aproximou, sorrindo ligeiramente, e Aarif curvou-se diante dela. O sorriso dela se intensificou, mas os olhos estavam tristes, e Aarif sentiu um nó na garganta. Ele quis fazê-la sorrir, mas afastou essa ideia. E quando Kalila voltou sua atenção para os dançarinos, ele fez o mesmo.
A dança foi seguida por outra e depois houve uma apresentação de crianças. Aarif assistia, mas estava ficando cansado, apesar de Kalila continuar a sorrir e aplaudir, conversando com todos que se aproximavam. Finalmente terminaram as representações e Aarif percebeu que começariam a servir uma refeição. Pensou que depois de comerem eles ficariam livres para ir para o aeroporto e voar para casa. Em segurança.
Mesas e bancos improvisados haviam sido armados junto às barraquinhas de comida, e Kalila e o pai sentaram ao lado de oficiais do palácio. Alguns moradores de cidade foram escolhidos a dedo para se sentarem com eles também, Aarif reparou, uma criança bonita, uma mulher sorridente e um comerciante gordo.
A comida foi servida, prato após prato de bife kebabs e frango com arroz de passas, ameixas cozidas e salada de berinjela. Aarif comeu de tudo para agradar, apesar de estar nervoso demais para apreciar a comida inesperadamente gostosa.
Os pratos foram retirados e a dança recomeçou na praça, sem sinais de terminar. Aarif reprimiu um suspiro de impaciência, pois os nervos estavam à flor da pele. Ele sentia calor e estava suado, tenso e irritado pelo tempo que demorava a passar. Estava na hora de dar as ordens.
Ele abriu caminho até Bahir, que sorria diante da dança vigorosa que estava sendo apresentada, onde homens de braços cruzados formavam um círculo e batiam os pés no chão. Instintivamente, Aarif procurou por Kalila, mas não a viu em lugar algum.
Olhou para o mercado, cheio de gente, procurando por sua figura distinta, com aquela trança, e sabia que se estivesse ali ele a encontraria.
Mas ela não estava. Ele sabia, e foi um choque que se espalhou pelo seu corpo em forma de ondas. De alguma forma, em algum lugar, ela sumira. Sentiu uma dor profunda de lembrança, raiva e medo. Seu corpo todo se retesou.
Viu Bahir olhando para ele em dúvida, mas Aarif não queria vê-lo agora. Queria ver Kalila. Queria se certificar de que estivesse segura. Precisava ter essa certeza.
Afastou-se de Bahir no meio da multidão, analisando cada rosto estranho e sorridente, procurando pelo rosto encantador que vira no jardim na noite anterior.
Onde estava ela?
Ele avistou o oficial que designara para ficar junto dela e o agarrou pelo braço.
— Onde está a princesa? — perguntou rudemente.
O homem se encolheu sob o domínio rude de Aarif.
— Ela foi até a igreja para se refrescar do calor. Achei que não faria mal nenhum...
Aarif praguejou em voz baixa e soltou o homem. Olhou pela praça até encontrar a velha igreja de estilo bizantino construída com pedra branca e enfeitada no alto com uma cruz azul. Ele partiu para lá com determinação inabalável.
A porta estava entreaberta e Aarif entrou tranquilamente. O ambiente dentro da igreja era escuro e fresco e praticamente vazio, exceto por alguns bancos e imagens enfeitando as paredes. Kalila estava sentada em um dos bancos de costas para Aarif. Algo sobre a sua postura, a posição rígida dos ombros e a cabeça se curvando desesperadamente, fez Aarif parar.
Ele respirou fundo e tentou se acalmar, convencendo-se de que seu temor havia sido injustificado. Exagerado. No entanto, por um momento, ele pensou que, ele lembrou...
Ao pigarrear, Kalila ficou de perfil e ele pôde ver suas lindas pestanas escuras.
— Veio me buscar? — ela perguntou delicadamente como se as paredes escutassem.
— Queria saber onde você estava — ele disse ao se aproximar.
— Vim descansar um pouco. Sempre gostei desta igreja. Meus pais se casaram aqui, sabia? Ela foi construída pelos bizantinos, há mais de mil anos. — Ela soltou um suspiro enquanto olhava em volta. — Ela sobreviveu às invasões dos bárbaros, dos otomanos e dos turcos. Um feito e tanto, você não acha, o de preservar a própria identidade em meio a tanta mudança?
Aarif se aproximou ainda mais dela.
— De fato, como fez seu país — disse Aarif ao tentar levar a conversa para assuntos mais impessoais. — Conheço a história de Zaraq também, princesa, tendo em vista ser vizinha de minha terra, Calista. Quando quase todos os reinos foram invadidos e dominados por centenas de anos, seu país foi o único que sobreviveu.
— Isso porque não tínhamos nada que interessasse aos invasores. — Ela deu uma risada meio cínica. — Cercada de montanhas, a maior parte de deserto e habitada por um povo disposto a lutar até a morte para defender suas terras; não foi à toa que sobrevivemos. Pelo menos até os franceses chegarem aqui e descobrirem nossas jazidas de níquel e cobre.
— A independência de seu país não é pouca coisa — Aarif afirmou. Naquele momento ele viu que Kalila fechava as mãos em punho no próprio colo.
— Não é mesmo não. Fico feliz que saiba disso. — Ela respondeu num tom cheio de coragem, o que surpreendeu Aarif. Ele sentiu uma certa tensão, talvez ela escondesse algum segredo.
Aarif lembrou que em menos de uma hora eles estariam voando para casa. Em três horas, estariam no Palácio de Calista, onde Kalila seria instalada na ala das mulheres, em segurança, ao lado de sua aia e longe dele. A ideia deveria tê-lo deixado mais calmo, porém o que sentiu foi uma estranha sensação de perda.
— Já apreciamos bastante os festejos, princesa — ele disse. — Mas agora temos que partir. Está ficando tarde e uma tempestade se aproxima, um siroco, e por viver no deserto você sabe bem o quanto isso pode ser perigoso.
— Uma tempestade? — Kalila se mostrou interessada. — Será que o avião vai atrasar?
— Se partirmos logo, não.
Ela hesitou e Aarif se refreou para não pegá-la nos braços. Queria ralhar com ela, dizer para não sentir pena de si mesma. Ao mesmo tempo, queria confortá-la, sentir-lhe o perfume do cabelo... Mas, irritado com seus próprios impulsos, ele falou num tom frio:
— Sinto muito, princesa, mas temos um dever a cumprir.
— Sempre havia um dever, por maior que fosse a carga ou mais difícil que a tarefa fosse.
— Está bem — ela disse, e falou de um jeito decidido que chegou a causar alívio em Aarif. Ela se levantou com elegância e o fitou, e mais uma vez Aarif ficou atônito com aquele olhar, mas daquela vez não entendeu o que seus olhos diziam.
— Perdoe-me, príncipe Aarif, pelo trabalho que lhe dei. — Ao falar, ela apoiou uma das mãos no braço dele, e seus dedos magros e frios queimavam a pele de Aarif. Queimavam como se fossem brasas, e ele resistiu ao desejo de colocar sua mão sobre a dela e sentir os dedos se entrelaçarem de novo. Um gesto simples e sedutor.
— Não foi trabalho algum, princesa. — Ele recolheu o braço com cuidado.
A mão de Kalila ficou pendurada e ela sorriu como se não acreditasse nele. Chegou a balançar a cabeça antes de se encaminhar para sair da igreja fresca em direção à praça quente e apinhada de gente.
As festividades estavam terminando quando chegaram à praça. Aarif ficou aliviado de ver que ninguém dera por falta deles, a não ser por Bahir, que antes de organizar uma despedida parada filha, lançou um olhar frio para eles. O pai beijou a filha dos dois lados do rosto e a abençoou, pois não iria acompanhá-los até o aeroporto.
Kalila se portou com dignidade, de cabeça baixa, e em seguida ela entrou no carro. Todos seguiram seu exemplo e fecharam as portas. Aarif respirou aliviado ao ver que finalmente estavam a caminho do aeroporto. Seguramente nada mais daria errado.
O comboio de carros se movimentou lentamente pelas ruas apinhadas da Cidade Velha, seguido por uma multidão de curiosos, depois pegou a avenida principal, uma reta larga, com palmeiras empoeiradas de ambos os lados, que os conduziria ao aeroporto.
O aeroporto estava a uma distância de 10 quilômetros, mas Aarif avistou com certa preocupação uma mancha escura no horizonte. Quanto tempo levaria para acomodar toda a bagagem no avião? Ele sabia o quanto essas coisas podiam se arrastar.
Coincidentemente, os carros pararam em seguida. Aarif abaixou o vidro da janela, mas não conseguiu ver nada por causa da poeira levantada pelos carros a sua frente.
Mais alguns segundos se passaram e nada mudou. Praguejando para si mesmo, Aarif abriu a porta do carro e caminhou pela estrada até o carro da princesa.
Aarif bateu de leve duas vezes no vidro do carro até que a aia de Kalila abaixou a janela.
— Príncipe Aarif!
— A princesa está bem? — ele perguntou. — Sabe qual o motivo de termos parado?
— Ela se sentiu mal — a aia balbuciou. — E pediu para ficar por alguns minutos... sozinha...
Um estranho pressentimento tomou conta de Aarif, bem mais agourento do que a tempestade que se anunciava no horizonte. Ele pensou no diálogo que tivera com Kalila há poucos instantes na igreja, sua conversa sobre independência, seu pedido de desculpas pelo trabalho que estava dando, e o presságio se intensificou.
— Onde está ela? — ele perguntou. A aia pareceu ofendida e recuou. Aarif tentou ser paciente. — Este não é um lugar seguro, senhora. Não creio que esteja em segurança num lugar tão inóspito. — Ele olhou para o céu e viu que o tempo estava piorando. Makaris ficara há cinco quilômetros para trás, o deserto se espalhava em todas as direções e a paisagem plana era marcada por enormes pedras arredondadas, que pareciam ter sido arremessa das ali por algum gigante invisível.
A aia hesitou e Aarif ficou ainda mais frustrado. Ele quis sacudir a tola mulher para lhe arrancar algumas respostas...
— Ela foi naquela direção. —A mulher apontou um dedo trêmulo para um grupo de pedras a 20 metros de distância. Um bom lugar para se esconder.
Aarif partiu naquela direção, decidido e furioso. Não sabia por que estava tão zangado, tão amedrontado. Talvez Kalila precisasse de fato de alguns momentos de privacidade. Talvez estivesse indisposta. Talvez fosse apenas a sua imaginação, sua paranoia. Fruto de suas lembranças.
Mas ele não poderia ignorar sua intuição, que estava forte e insistente em sua cabeça e em seu coração.
Alguma coisa estava errada. Alguma coisa sempre ia mal.
Mesmo assim, ao se aproximar das pedras, ele hesitou. Se realmente Kalila estivesse em uma situação inconveniente, não seria correto perturbá-la. Porém, se estivesse em perigo, ou pior ainda...
O que seria pior? O que poderia ser pior do que o perigo?
Mas quando Aarif ultrapassou as pedras que emergiam do solo, ele sabia. Sabia exatamente o tipo de temor que se abateu sobre ele desde que Kalila se desculpara na igreja, ou até antes disto, quando a viu suspirando infeliz no jardim.
Do outro lado das pedras, não havia nada, nenhuma princesa. Mas, no horizonte, indo exatamente em direção à tempestade, havia uma figura cavalgando solitária.
Kalila estava fugindo, Aarif constatou consternado.
Kalila sabia exatamente para onde ir. Com essa certeza, ela enfrentava o vento forte que alvoroçava o lenço em sua cabeça e jogava areia em seus olhos. Imaginou a cena atrás dela, a desordem que iria provocar em pouco tempo e sentiu uma pontada de culpa.
Quanto tempo levaria para Aarif perceber que ela fugira? E o que ele faria? Mesmo o conhecendo há pouco tempo, Kalila sabia perfeitamente que o príncipe do deserto iria atrás dela.
Só de pensar nisso, ela já ficou apreensiva e agarrou com mais força as rédeas. Preparar sua fuga não fora fácil. O plano só tinha se concretizado naquela manhã quando olhou para o pátio e viu que sua vida estava sendo desmantelada, e entendeu que não poderia enfrentar isso. Não poderia ser levada em sacrifício para Calista para se casar com um homem que não amava e nem conhecia.
Ainda agora, ao cavalgar em direção ao horizonte, para um futuro incerto, ela sabia que esta liberdade não duraria para sempre. Não poderia viver no deserto como uma nómade. Aarif a encontraria, senão ele, alguém mais o faria.
Mesmo assim, ela corria. Por causa do medo que sentia, ela concluiu. O medo fazia a pessoa se sentir miserável, doente e tonta. Desesperada. Decidida a fazer qualquer coisa, tentar qualquer coisa por mais arriscado e tolo que fosse. Por mais irresponsável e egoísta que pudesse ser.
Então, ela continuou cavalgando em direção ao lugar onde ficaria em segurança... ao menos por enquanto.
Dois quilômetros atrás dela vinha o desolado Aarif, com um turbante enrolado na cabeça para protegê-lo da poeira. O vento já estava jogando areia em seus olhos, picando suas bochechas. O que ela pensava, ele se perguntava furioso, para sair com um tempo daqueles? Ele a avisara sobre a tempestade e, certamente, como sempre viveu no deserto, ela sabia dos perigos que corria.
Será que ela era estúpida ou estava só desesperada?
Não tinha problema. Ela seria encontrada. Ele já mandara um oficial de volta à cidade para trazer um cavalo e provisões.
Os oficiais estavam assustados.
— Mas o rei Bahir precisa ser avisado! Ele vai mandar uma equipe de busca...
— Não temos tempo para organizar uma equipe de busca — disse Aarif apontando para o céu que escurecia. — Temos de encontrar a princesa o mais rápido possível. Nesse caso, irei sozinho. — E ele viu o oficial desviar o olhar diante de sua sugestão imprópria. — As circunstâncias são péssimas — ele disse. — Se a princesa não for encontrada, seus pescoços estão correndo risco. — E o dele também. Ele pensou em Zakari, em Bahir, nos países e famílias que dependiam do acordo que exigia que se levasse Kalila para Calista, e mais uma onda de raiva o varreu.
— Príncipe Aarif! — Um homem gritou para ele. — Temos aqui um cavalo, um pouco de água, pão e carne. Foi só o que conseguimos em tão pouco tempo.
— Está bem. — Aarif vestiu a túnica para proteger suas roupas do sol e da areia. Já trocara os sapatos por botas reforçadas e estava pronto para montar o cavalo velho disponível.
— Vá até o aeroporto e fique abrigado lá até a tempestade passar — ele instruiu o ajudante. — Não faça contato com o rei — ele abriu um sorriso tímido. — Não queremos que ele se preocupe à toa.
O homem engoliu em seco e acenou com a cabeça.
Virando de costas para o cortejo de carros, Aarif disparou rumo ao deserto.
O vento estava forte, picando a pequena parte de seu rosto que ficara desprotegida, mas Aarif sabia que poderia ficar bem pior do que isso. Em uma ou duas horas a visibilidade seria igual a zero e os ventos estariam acima de 160 km por hora e mortais.
Mortais para Kalila e também para ele. Mas ele estava preocupado com a princesa, pois sua própria vida ele já definira como inútil há muito tempo. Mas se fracassasse na tarefa de trazer a princesa de volta para Calista, se ela morresse aos seus cuidados...
Aarif apertou os olhos para tentar enxergar à sua frente e desviar sua mente de tais pensamentos. Precisava estar muito concentrado.
O cavalo velho refugava diante do terreno desconhecido para ele. Era um cavalo acostumado a andar na cidade, acostumado a arrastar-se pelas ruas e depois se abrigar nos estábulos para receber seu saco de aveia todas as noites. O vento e o terreno rochoso eram aterradores para ele, o que ficava óbvio a cada passo.
Aarif sempre fora bom com os animais; no seu entender era uma obrigação preocupar-se com os animais aos seus cuidados, mas agora suas mãos enluvadas agarravam as rédeas, impacientes, e ele se controlava para não gritar com o bicho, como se fosse ajudar. Como se qualquer coisa pudesse ajudar.
Onde estaria Kalila? Tentou ser racional. Ela deve ter escondido um cavalo nas pedras, portanto, recebeu a ajuda de alguém. Ela havia elaborado um plano com antecedência. A ideia o deixou irado, mas ele se controlou pois precisava raciocinar.
Se tinha um cavalo, provavelmente, também levara provisões. Não devia ser muita coisa, não mais do que ele, um pouco de comida, água e um cobertor. Era uma mulher inteligente, então devia ter um destino em mente, ele pensou. Um lugar seguro para se abrigar da tempestade, como eleja lhe dissera que estava para acontecer.
Mas onde?
Ele puxou as rédeas para o cavalo parar e observou atentamente o horizonte. Com o redemoinho de areia, ele mal podia enxergar contorno das pedras, dunas e a forma do deserto em constante transformação. Nada lhe parecia adequado para um refúgio, mas investigaria cada pedra, cada duna protegida. Era seu dever.
Seu dever. Não iria falhar no cumprimento do seu dever, ele vinha se dizendo isso há anos. No entanto, Aarif se perguntava quando ele não falhara. Irritado, deu de ombros, odiando a fraqueza de sua melancolia, pois até hoje era perseguido pelas lembranças.
Se você não tivesse ido... se você não tivesse deixado Zafir vir junto... se você não tivesse deslizado...
Se. Se. Se... Hipóteses malditas, perigosas, possibilidades que nunca existiram, mesmo assim elas o assombravam sempre.
Se... seu irmão ainda estaria vivo.
Aarif praguejou alto, as palavras foram jogadas ao vento, dilacerando sua garganta. O cavalo, exigido além de suas forças, relinchou.
E então ele viu algo. Um ponto cinza escuro no horizonte, mais escuro do que os turbilhões de areia, as nuvens. Pedras, muitas pedras reunidas, proporcionando um abrigo seguro, mais do que qualquer outro lugar visível. No seu íntimo, ele sabia que Kalila estaria indo naquela direção. Talvez já estivesse lá, ela devia conhecer o caminho.
Imaginou Kalila acampando, achando estar segura, rindo por achar que havia enganado a todos, enganado a ele, arriscando a vida de todos, com suas responsabilidades e código de honra...
Praguejando de novo, Aarif segurou as rédeas e partiu rumo ao horizonte.
Ela não cavalgava assim tão rápida e furiosamente há meses, anos talvez, e todos os músculos de seu corpo doíam. Sua mente e seu coração latejavam de desespero, sem saber por que tinha feito algo tão estúpido e arriscado. Tentou não pensar nisso, não poderia se dar ao luxo de se questionar agora. Não era o momento para sentir pena de si mesma.
Aarif tinha razão. A tempestade estava chegando, o fenômeno do siroco, quando os ventos úmidos do Mediterrâneo se encontravam com o calor seco do deserto, provocando uma terrível cacofonia de sons e fúria. Kalila suspeitava que teria, no máximo, mais meia hora para descobrir um abrigo seguro para ela e seu cavalo.
Seu pai a levara ali para acampar quando ela era criança, o local ficava a uma distância de doze quilómetros do palácio, mais perto do que Makaris, mas com todo aquele vento de areia, parecia estar a cem quilómetros.
Kalila resolveu se concentrar nas suas tarefas. A barraca era pequena, com espaço para duas pessoas.
Duas pessoas. Então passou uma ideia na cabeça de Kalila e ela ficou paralisada de medo. Se Aarif viesse atrás dela... e se ele a encontrasse...
Mas, não. Ele não sabia para onde ela ia e nunca estivera naquele deserto antes, não conhecia o terreno, se é que estava atrás dela. Na certa ele recuaria diante da tempestade, e esperaria até ela passar. Qualquer homem sensato faria isso.
Porém, Aarif não parecia ser um homem sensato. E Kalila, com o coração em disparada ao se lembrar daquele seu olhar frio, compreendeu que ele era um homem determinado.
O que ela faria se ele a encontrasse? O que ele faria?
Colocou esses pensamentos de lado, pois tinha coisas mais importantes no momento. Não havia tempo para questionar nem para ter medo. Estava na hora de entrar em ação.
Com o vento soprando cada vez mais forte, Kalila levou um certo tempo para armar a barraca. Ficou furiosa com a própria incompetência, com suas mãos delicadas demais e o coração acelerado.
Ela já armara uma barraca igual àquela, aliás, aquela mesma barraca, dez ou vinte vezes, mas agora tudo conspirava contra ela. Sentia câimbras nas mãos e elas ficavam escorregadias. Senti, nos músculos e até nos ossos. Seus olhos ardiam e sua boca estava seca. Seu coração batia freneticamente.
Finalmente ela terminou de armar a barraca e foi pegar os alforjes no cavalo com comida, água e cobertor, para guardá-los dentro da barraca. Cobriu o cavalo com um cobertor e o puxou para junto da pedra por segurança.
Ao se virar para retornar para a barraca, seu coração parou e ela ficou pasma. Diante dela havia um homem de turbante e túnica todo coberto, exceto pelos olhos, como ela ficara na véspera. Parecia uma criatura mítica, um heroi, ou um vilão, quem sabe, saído de um conto de fadas ou de contos árabes.
Então Kalila percebeu que era Aarif.
Ele a encontrara.
Sua mente congelou assim como seu corpo. Kalila permaneceu ali com o vento batendo nela, areia entrando nos olhos e na boca aberta. Então fechou a boca e se perguntou o que seria dela a partir daquele instante. Passado o susto, ela começou a raciocinar. Aarif parecia furioso, e, enquanto ela percebia isso, sentiu também um enorme alívio.
Então ele veio.
Será que na verdade ela desejava que ele a encontrasse? Sentiu-se envergonhada com as manobras secretas de seu coração, mas desviou tais pensamentos ao ver Aarif desmontar e levar o cavalo patético para abrigá-lo nas pedras. Seu corpo estava coberto em panos e ela só podia ver seus olhos, escuros, brilhantes e zangados.
Kalila engoliu em seco e sentiu que mais uma porção de areia descia por sua garganta. Aarif se aproximou com o cavalo tropeçando e relinchando atrás dele. Kalila ficou imóvel. Para onde poderia ir? Ela já tinha fugido e ele a encontrara. Foi tão fácil.
Aarif cuidou do cavalo primeiro. Do canto do olho, Kalila o viu acalmar o cavalo, dar-lhe água e comida. Fez um carinho no cavalo e o cobriu com um cobertor em movimentos firmes e ritmados, no entanto, Kalila podia ver a fúria que havia em cada traço do seu corpo. Podia sentir no ar, a energia que trocavam era tão intensa quanto a eletricidade da tempestade.
Assim que terminou de tratar do cavalo, ele se virou e a encarou. Novamente ela engoliu em seco, engasgou com a areia, mas não desviou seu olhar por um bom tempo até não aguentar mais.
O vento zunia alto em torno deles, em meia hora ou menos a tempestade atingiria seu ápice, mas nenhum dos dois se mexia.
— Olhe para mim — disse Aarif. Sua voz estava baixa, pulsando, e mesmo com o barulho do vento Kalila ouviu, seu corpo todo ouviu seu chamado.
Os dois se fitaram e Kalila percebeu seu olhar de crítica, de acusação. Aarif a encarou por mais de um minuto, deixando claro que estava contrariado, muito mais do que ela podia imaginar.
Ela fora tão boba.
Aarif murmurou alguma coisa, e em dois tempos estava diante dela, segurando-lhe o braço com um das mãos, com uma raiva controlada.
— O que estava pensando, princesa? — ele perguntou. Sua voz abafada pelo pano que lhe cobria a boca, então ele o abaixou. Kalila viu areia em suas bochechas, lábios e barba. Ela estava engolindo em seco, desesperada por água e ar.
— O que pensava em fazer, vindo até aqui com um tempo ruim destes? Fugir como se fosse uma criança travessa? — Ele apontou com desdém para a barraca. — Está querendo brincar de casinha, princesa? Isso é uma brincadeira para você? — Então diminuiu tom de voz e disse como se estivesse praguejando. — Não parou para pensar no risco que isso traria para você, para mim e para nossos países?
Kalila levantou a cabeça e tentou se soltar, mas Aarif a segurava firme e decidido.
— Solte-me — ela disse. Ainda queria manter sua dignidade, sua oposição. Era só o que lhe restava.
Ele soltou o braço dela, afastando-a como se ela lhe causasse repulsa. E talvez causasse.
— Você não tem ideia — ele disse com desprezo, fazendo com que Kalila se recolhesse, envergonhada. — Não tem ideia — ele repetiu balançando a cabeça. — E eu cheguei a pensar que tinha...
— Você não tem ideia do que se passa em minha mente, em meu coração... — Kalila retrucou.
— Nem quero ter.
— Não, claro que não. Então por que perguntou em que eu estava pensando? Você já me condenou.
O olhar dele a deixou rígida e empertigada, mas ela não se encolheria de medo agora.
— Talvez eu tenha condenado mesmo — Aarif concordou.
Ouviu-se então mais um som penetrante e agudo do vento e um estampido alarmante. Aarif olhou para cima e, antes que Kalila pudesse compreender o que estava acontecendo, empurrou-a contra a pedra, pressionando suas costas naquela superfície irregular, e jogou seu próprio corpo por cima dela.
Uma rachadura na rocha acima deles finalmente cedeu com o vento e uma pedra caiu do lado deles com um barulho surdo. Se Aarif não a tivesse tirado dali, a rocha teria caído sobre ela.
Kalila olhou novamente para Aarif e levou um susto ao vê-lo tão perto, o rosto dele a poucos centímetros do seu. Seu olhar fixo, penetrante e intimidador revelava uma sede premente, provocando um tumulto dentro dela.
Os olhos dele pareciam querer ler sua mente, sua alma. E o que ele via? O que ela queria que Aarif visse?
Kalila percebeu o coração dele batendo contra o seu num ritmo inconstante, uma sinfonia de vida em staccato. E, além da batida do coração, ela se deu conta de outra coisa, bem mais íntima, que era o corpo dele pressionando o dela. Mesmo com tantas camadas de roupa entre eles, ela podia sentir toda a extensão firme do seu torso, suas coxas, seu...
Kalila sufocou um grito alto e, blasfemando, Aarif deu um pulo para trás como se ela o queimasse. Kalila ficou ali, imóvel, com o corpo encostado na pedra, atordoada com o que acabara de descobrir.
Aarif a desejava.
— Não é seguro aqui — ele disse bruscamente, evitando olhá-la. — Você precisa abrigar-se na barraca.
Kalila acenou com a cabeça, sua mente ainda confusa com aquela novidade surpreendente. Mesmo com uma perspectiva sombria de futuro, não tinha a menor intenção de ser deixada para morrer no deserto embaixo de uma pedra.
Ela entrou na barraca com certa dificuldade e, depois de algum tempo, se deu conta de que Aarif não pretendia entrar.
Ele caminhou em passadas largas até onde estavam os cavalos e ela, olhando de soslaio, o viu agachar-se no chão, no estilo ocidental, entre os corpos suados dos animais, com as costas apoiadas na pedra e uma expressão soturna.
Kalila sentiu exasperação, alívio e decepção, tudo guerreando dentro dela. Claro que um homem como Aarif não iria querer dividir sua intimidade com ela dentro de uma barraca apertada. Claro que insistiria estoicamente em ficar ao relento durante a tempestade, tendo os cavalos como companhia. Isso quase, quase a fez querer rir.
Mas ela se lembrou da sensação de ter o corpo dele encostado no seu, vê-lo negar seus instintos e notar a reação do seu próprio corpo e se assustar.
Desejo. Era um pensamento estranho e novo. Nunca sentira isso por ninguém, não era o que ela imaginava ser desejo, aquela saudade implacável de outra pessoa. Nunca ficara tão próxima de alguém para sentir aquela doçura. Mesmo no tempo em que vivia com total liberdade em Cambridge, ela sabia que precisava se manter afastada dos outros. Uma princesa tinha que ser pura.
Mas, naquele momento, sentindo a evidência de seu desejo e vontade, ela reconheceu seu desejo por Aarif e sentiu um prazer doce e sensual. A sensação foi se expandindo dentro dela, subindo como vinho quente nas veias, até só enxergar a ele e mais nada.
Ele.
Foi a mesma sensação que sentiu durante o jantar e no jardim... desde que o conhecera. Agora estava óbvio que tipo de sentimento era aquele. Aquele desejo ardente, aquela necessidade. Ela conhecia o suficiente sobre a vida para reconhecer o que Aarif sentira há poucos minutos e entendeu sua reação física, assim como a dela também. Ela podia até ser ingênua, mas não era uma criança.
Não se sentia assim.
Ela respirou com tanta força que chegou a sentir dor nos pulmões. Precisava beber água. Kalila vasculhou seu alforje em busca do cantil e tomou apenas alguns poucos goles para amenizar sua garganta seca.
Respirou aliviada e voltou a raciocinar direito. Foi um momento ardente, ela admitiu, um acesso de cólera. Era só isso que poderia ser, tinha de ser. Não era real, ela achava que Aarif nem gostava dela. Pelo menos, não depois do que ela fizera aquele dia.
Nem sabia se ela ainda gostava de si mesma.
Kalila espiou pela abertura da barraca. Aarif estava a poucos metros, mas mal podia vê-lo. Suspirando de desespero, ela saiu aos trancos da barraca e foi tropeçando na escuridão quase total em direção a Aarif.
— Não devia estar aqui.
— Já passei por experiências bem piores, princesa — Aarif disse friamente. Continuava agachado, de braços cruzados. — Volte para a barraca que é seu lugar.
— Você conhece o deserto tanto quanto eu — Kalila respondeu. — É tolice esperar aqui fora, sem falar do perigo. Por que acha que eu trouxe a barraca?
— Acho que você vinha planejando sua pequena aventura há algum tempo.
Kalila suspirou e então se sentou ao seu lado.
— Não tanto quanto você pensa. Se insiste em ficar aqui tora, então eu também fico, e é provável que o vento carregue a barraca.
Ela cruzou os braços, olhando de soslaio para ele, enquanto o vento levantava seus cabelos, jogando-os em seu rosto. Aarif permaneceu em silêncio e Kalila esperou, determinada a vencer a batalha.
O desconforto era demais com o chão duro, o vento implacável, a areia picando cada pedaço de pele exposta e, pior do que tudo mais, o olhar fixo de Aarif. Mesmo assim, ela esperou.
— Você é a mulher mais teimosa que já conheci — ele disse finalmente, e mesmo que não tivesse uma conotação elogiosa. Kalila sorriu.
— Fico feliz que esteja começando a entender isso.
Eles ainda passaram um bom tempo suportando aquele vento até que Aarif, murmurando algo incompreensível para Kalila, se levantou e pegou seu alforje.
— Vamos, então — ele disse. — Não vou arriscar sua vida insensata só porque resolveu ser teimosa.
Kalila se levantou e ele colocou um braço nos ombros dela, um peso estranhamente confortador, para guiá-la de volta à barraca. Ambos se abaixaram e entraram rastejando pela abertura da barraca em um emaranhado deselegante de braços e pernas, praticamente caindo dentro daquele pequeno abrigo de lona.
O espaço era pequeno demais, Kalila percebeu alarmada. Ficar sem se encostar no outro seria uma tarefa difícil.
— Precisamos arranjar alguma maneira de vedar melhor esta barraca, caso contrário, teremos metade do Sahara aqui dentro pela manhã — disse Aarif.
— Tenho um pouco de fita isolante — disse Kalila vasculhando seu alforje para encontrá-la.
Aarif a olhou pensativo quando ela lhe entregou a fita.
— Você veio mesmo preparada.
— Estou acostumada a acampar no deserto, por isso sabia o que precisava trazer.
Aarif começou a vedar todas as frestas da barraca e Kalila se deu conta de que ficariam trancados ali dentro. Enclausurados.
Ela poderia muito bem remover as fitas, mesmo assim sentia-se prisioneira, sendo Aarif seu carcereiro.
Ele se virou e a examinou de cima a baixo para então, com sua franqueza, dizer:
— Você está horrível.
— Você também está — ela retrucou para, em seguida, notar que seu cabelo estava todo desgrenhado, com areia até no couro cabeludo.
— Posso imaginar como estou — Aarif respondeu. — Não estava preparado para sair caçando no deserto em plena tempestade. — Ele balançou a cabeça e falou com resignação. — Não sei se você é tola ou maluca.
— Desesperada — Kalila disse friamente, para depois desviar o olhar. O silêncio caiu sobre eles e ela passou a mão nos cabelos para se ocupar com alguma coisa. Sentiu que ele a observava enquanto tentava desembaraçar os cabelos.
— Para você, o casamento é tão abominável assim?
— Casar com uma pessoa estranha é — Kalila respondeu sem olhar.
E pelo canto do olho ela viu Aarif balançar a cabeça.
— Mas você sabia desde os 12 anos que se casaria com meu irmão. Por que decidiu fugir agora, e de forma tão imprudente?
— Porque não imaginava como ia me sentir. — Kalila enfiava os dedos nos cabelos com a ferocidade que tinha na alma e no coração. — Quando chegou a hora, quando achei que Zakari estaria lá...
— Então tudo isso é porque ele não veio buscá-la? Você se magoa com muita facilidade, princesa.
Kalila se virou repentinamente para encará-lo.
— Talvez, mas ontem ficou tudo muito claro para mim. Há muito tempo que espero, desejo, acreditando que vou cumprir meu dever e, de repente. — Ela balançou a cabeça lentamente. — Cheguei à conclusão de que talvez eu não quisesse fazer nada disso.
— Uma atitude infantil — comentou Aarif. — O que imaginava? Que se esconderia no deserto pelo resto da vida, vivendo como um beduíno? Acha que ninguém a encontraria?
— Eu sabia que alguém viria atrás de mim. E se não viessem, eu seria obrigada a voltar.
— E depois disso?
— Só queria me sentir livre — ela disse com simplicidade, percebendo sua sinceridade e carência flagrante. — Nem que fosse por um dia. Sabia que não duraria muito.
Aarif a fitou com indiferença. E ela deduziu que a liberdade para ele não era importante. Era desnecessária.
— Tem noção do que você arriscou por uma tarde de liberdade? — ele perguntou. — Se seu pai descobre, ou Zakari....
— Ninguém saiu prejudicado — Kalila protestou. — Estamos em segurança.
— Por enquanto, ainda não temos certeza de que nada nos acontecerá.
— Você é muito pessimista — ela respondeu levantando o queixo e mantendo sua atitude de oposição, apesar de ele rebater com palavras insensíveis. — Quando me encontrou na igreja, você agiu da mesma forma. Sempre espera que o pior aconteça, Aarif?
— É o que ocorre normalmente — ele disse ao tirar de seu alforje um cantil de água. Kalila o observou bebendo água e por algum motivo não pôde deixar de olhar para seu longo pescoço e o jeito como seus músculos se moviam enquanto bebia. Finalmente afastou o gargalo do cantil da boca, e ela viu minúsculas gotas de água nos seus lábios, no queixo e não conseguiu afastar o olhar. Ela o fitava, impotente e fascinada.
Lentamente seus olhos se elevaram para encontrar os dele e viu um olhar intenso. O que seria aquele sentimento? Raiva? Sarcasmo?
Desejo.
Eles ficaram ali se encarando, silenciosos, esperando, e Kalila se lembrou do momento em que teve seu corpo contra o dela, seu contorno firme pressionando-a, exigente e experiente. Kalila sabia que deveria desviar o olhar, e se comportar, se não recatadamente, ao menos com dignidade.
— Precisamos comer — ela se forçou a dizer. — Você deve estar com fome.
Aarif não respondeu e Kalila não arriscou olhar, percebendo o mistério incompreensível em seus olhos. Suas mãos tremiam ao se esticar para pegar o pão e o queijo, partindo-os em pedaços e passando-os para Aarif.
Ele os agradeceu num sussurro, e ambos ficaram em silêncio, calados, sem olhar um para o outro.
Será que tinha noção de que a tensão contida naquele pequeno espaço era bem mais ameaçadora do que o vento que uivava e gemia do lado de fora, sacudindo a barraca como se fosse arrastá-los para longe?
Mas ela não percebia isso. Ela nunca esteve tão sensível à presença de outro ser humano, aos barulhos que fazia mastigando, ao tecido que encostava em seu corpo e até à sua respiração. Nunca sentiu uma vontade tão insana e instintiva de tocar em alguém para sentir seu cabelo e sua pele. Será que sua barba espetava? E o cabelo, seria macio?
Horrorizada e ao mesmo tempo fascinada por aqueles pensamentos, Kalila engoliu um pedaço seco de pão e quebrou o silêncio entre eles.
— Você nunca se sentiu assim?
— De que forma?
— Querer ser livre, nem que fosse por um breve momento. Nunca quis... fugir?
Ele ficou calado por tanto tempo que Kalila achou que não responderia. Quando finalmente falou, sua resposta foi tão definitiva que Kalila sabia que não podia questioná-lo. Não ousaria fazê-lo.
— Talvez, quando era criança. Mas superei esses sonhos infantis. E você deveria fazer o mesmo.
Kalila não disse nada. Ela sabia que a fuga tinha sido um sonho infantil, desesperado, um momento de insanidade talvez. No entanto, fora tão bom estar no deserto, sozinha, responsável pelo próprio destino, mesmo que tenha sido apenas por uma hora. Foi bom, mesmo com todo o medo e arrependimento que sentia.
Por um curto espaço de tempo ela foi livre.
E se perguntava se Aarif entenderia isso.
— Além do mais — ele continuou. — Você teve seus anos em Cambridge para viver livremente, se é que a liberdade é mesmo tão importante para você. Acha que meu irmão vai colocar um véu em você e trancá-la nos aposentos das mulheres? Ele é um homem moderno, princesa.
— Ontem você me chamou de Kalila.
— Ontem não é hoje.
E Kalila ficou sem entender o que ele queria dizer. Quase perguntou o que significava aquilo, mas se lembrou da sensação do corpo dele colado ao seu, os olhos suplicando, e achou melhor não saber. Seria mais prudente.
— O que vai acontecer? Onde estão todos? — ela falou com voz trêmula.
— Espero que estejam abrigados no aeroporto. Acho que a tempestade deve continuar até de manhã. Só então voltaremos. — Sua voz era sinistra e Kalila sabia em que ele pensava.
— Como vai explicar nossa ausência?
— Como você vai explicar? — ele a desafiou. — O que dirá para sua aia, Kalila? Ela acreditou que você estava indisposta. O que dirá para todos os cidadãos do seu país que dariam a vida para protegê-la? Vai discursar sobre liberdade! — Com aquele tom de condenação, Kalila fechou os olhos.
— Não faça isso. Eu sei... — ela suspirou trémula. — Sei que fui tola. Egoísta. Eu sei — Ela sacudiu os farelos de pão do seu colo, sem jeito, desejando a liberdade que tanto perseguiu. E chorou de pensar na gravidade da situação que ela criara. Tudo por culpa dela, pensou arrasada.
— Como foi que conseguiu preparar a fuga? Quem trouxe o cavalo? E as provisões?
Ela o fitou enquanto lembrava da conversa que tivera com o cavalariço naquela manhã.
— Não quero falar sobre isso.
— Posso descobrir tudo facilmente — ele disse ao dar de ombros.
Ela pensou no garoto tímido que ela forçou a ajudá-la e sentiu mais culpa.
— Não quero que a pessoa seja prejudicada.
— Você é quem devia ser prejudicada — Aarif disparou. — E não alguma criada assustada, ou seria um cavalariço palerma? Quem quer que fosse, era fraco demais para contrariá-la!
Mais censura. Elas já estavam se amontoando sobre sua cabeça, um fardo que teria que carregar sozinha.
— Não faz diferença — ela sussurrou. — Você já sabe mesmo. — Ela levantou os olhos para fitá-lo tentando amolecer seu coração. — Mas me diga uma coisa, Aarif. Será que fui assim tão egoísta, sem direito a perdão, por querer me dar um dia, ou melhor, uma tarde de liberdade, quando o resto de minha vida já está traçado?
Sua pergunta parecia uma moeda jogada no lago, provocando ondulações nas águas paradas, em todas as direções. Ondulações de alerta, de sentimentos.
Aarif não respondeu, mas Kalila achou que ele estava mais compreensivo no olhar, então continuou.
— Não quero este casamento arranjado. Mesmo assim, estou disposta a enfrentá-lo e cumprirei meu dever para com Zakari. Vou me esforçar bastante. Mas quero ser amada e acho que é um desejo muito natural. Seres humanos foram feitos para amar. Amar e ser amado. E se Zakari um dia me amar, e sei que é apenas uma possibilidade, não será a mesma coisa. Não tivemos a chance de escolher. Seu pai e sua madrasta se amavam, assim como os meus pais. Por que eu não posso?
A pergunta dela ficou pairando no ar.
— Seu destino será diferente — ele respondeu friamente. E desviou seu olhar.
— Meu destino — Kalila repetiu suas palavras com ironia. — Um destino traçado por nossos pais, não por mim. Quero ter o direito de escolher meu próprio destino, acho que ele poderia ser diferente.
— Nem sempre podemos escolher, Kalila. — A voz dele era baixa e quase gentil, mas ainda não a encarava.
— E você? — Kalila quis saber. — Não quer amar alguém? Amar e ser amado? — Ela sabia que estava sendo impertinente e até imprudente. A questão sugeria pensamentos tristes, lembranças, desejos recolhidos.
Mas ela queria saber. Ela precisava saber.
— Não importa o que eu quero — disse Aarif dando a entender que estava encerrando a conversa. — O importante é saber qual a melhor maneira de servir à minha família e ao meu povo.
— Você nunca leva em consideração seus próprios anseios? — Kalila insistiu, e os olhos deles se encontraram.
— Não.
Kalila percebeu que a pergunta mexeu com ele, com alguma lembrança ou tristeza secreta que de repente tomou conta daquele espaço acanhado com sua presença venenosa.
Aarif tratou de tirar suas botas e estender seu cobertor o mais longe dela possível.
— Precisamos dormir. Vamos cavalgar assim que a tempestade passar.
Assentindo lentamente, Kalila pegou seu cobertor também. Aarif se deitou de lado, de costas para ela, e seu corpo ficou imóvel e tenso.
Ela também estendeu seu cobertor, retirou suas botas e se esticou com cuidado. Se ela mexesse um braço, poderia bater nas costas de Aarif, e por mais que quisesse sentir sua pele por baixo da camisa, uma súbita vontade que a surpreendeu, ela se encolheu para o lado oposto.
O vento ainda assobiava e guinchava de modo estridente e as laterais da barraca batiam incessantemente. Do lado de fora, os cavalos relinchavam irrequietos.
Amanhã ela estaria de volta à civilização, em Calista. Encontraria Zakari. E o que diria a ele? Como explicar o que havia feito? E por quê?
Kalila fechou os olhos, sem querer pensar nas respostas impossíveis para essas perguntas. Amanhã os problemas se resolveriam.
Kalila não sabia como eles poderiam dormir daquele jeito, mesmo assim o cansaço os derrotou. Mas seu corpo estava tenso demais para relaxar e dormir. Ela ficou deitada ouvindo o vento e a respiração ritmada de Aarif.
Será que Aarif dormira? Ela não se surpreenderia, pois era um homem de muito controle. O sono, como tudo mais, era um dever a ser cumprido.
Finalmente, depois do que pareceram várias horas, ela cochilou para logo acordar no meio da noite.
Tudo estava escuro e silencioso. A tempestade terminara e uma tensão sobrenatural pairava no ar durante a calmaria que se seguiu. Mas ela achou ter ouvido um barulho, um leve gemido, e se perguntou se seria o vento ou um dos animais. Ainda estava insegura naquele ambiente estranho.
Então, ela reparou que o barulho vinha de dentro da barraca. Bem junto dela, pouco mais do que uma respiração sofrida, um pedido aflito sussurrado. Ela se virou e tentou enxergar com a pouca luz da lua.
Aarif estava deitado de costas com o cobertor retorcido em seu corpo e o rosto suado. Os lábios entreabertos e os olhos fechados contraindo-se no que parecia ser um pesadelo.
Na certa, era um pesadelo que o deixara nervoso, Kalila entendeu, pois o barulho, o gemido digno de pena, vinha dele.
Era sempre a mesma coisa. Uma agonia, uma tortura, onde ele nunca podia mudar o que acontecia, se repetindo sempre enquanto ele observava impotente e descrente...
Ele sabia que era um sonho, mesmo assim não conseguia acordar. O pesadelo o dominava. Tudo que ouvia era o choro engasgado de desespero do irmão.
"Aarif..."
E ele não fez nada. Sentiu o calor ardente no rosto mais uma vez, as mãos esticadas tentando salvar seu irmão, mas Zarif estava longe demais, cada vez mais longe, o rosto pálido e apavorado. E quando Aarif mergulhou, a água lhe cobriu a boca, o nariz e toda a cabeça...
— Aarif... — A voz agora era doce e delicada, um sussurro de outro mundo, o mundo real, mas mesmo assim o sonho não o libertava. O corpo dele tremeu todo, balançando de agonia emocional.
"Aarif..." era Zafir novamente, sua voz desaparecendo, o choro de um garoto, uma criança condenada a morrer. — Salve-me...
A voz ecoou em seus olhos, pálida e desesperada, e não havia nada que Aarif pudesse fazer. Nunca poderia fazer nada.
Aarif se mexia, desassossegado, sobre o cobertor e seu rosto estava retorcido de dor e angústia.
— Aarif...— Kalila sussurrou, mas ele não ouviu.
Nem poderia Estava preso em um mundo bem mais terrível do que aquele onde eles viviam no momento. Kalila passou uma das mãos no ombro dele na tentativa de sacudi-lo até acordar, mas Aarif fez um movimento brusco assim que ela o tocou.
— Não... não! — O grito desesperado de Aarif tomou conta do silêncio da barraca e da noite e fez Kalila se encolher apavorada. O grito agudo de agonia era um barulho do qual ela jamais se esqueceria. Era o grito de um homem em agonia mental, em profundo sofrimento.
Aarif respirava ofegante, as mãos agarradas ao cobertor, e Kalila viu o brilho discreto de lágrimas escorrendo pelo seu rosto.
Seu coração ficou apertado de ver o sofrimento dele. Que tipo de sonho poderia prendê-lo em um cativeiro tão terrível?
— Aarif... — ela tentou de novo, mais alto desta vez. — Está tudo bem. Foi só um sonho. — Mesmo dizendo o contrário, ela sabia que não era só um sonho. Um simples sonho, uma ficção não poderia fazer de Aarif um escravo. Devia ser algo bem mais terrível, bem mais real.
Kalila não aguentava vê-lo sofrer tanto, cortava seu coração e ela mesma já começava a chorar. Ela se curvou sobre ele e afastou o cabelo molhado de sua testa.
— Aarif— ela disse de novo e calou-se ao vê-lo abrir os olhos. Seus rostos estavam muito próximos, tanto que quando ele abriu os olhos pareceu que a tocava. Kalila ainda lhe alisava a testa como se ele fosse uma criança precisando ser consolada.
Aarif a fitou, seu rosto ainda trazia vestígios do tormento que acabara de passar, ele então sufocou um choro e tentou se virar para o lado.
Mas não conseguiu, pois ela não deixou. Nem ela sabia bem porque, mas agiu instintivamente. Ninguém merecia passar sozinho por aquele sofrimento.
— Não faça isso — ela murmurou e ao mesmo tempo passava a mão em seus cabelos, fazendo-o encará-la. — O que é que lhe atormenta tanto? — Ele não respondeu, e Kalila sentia que seu coração estava acelerado e o viu engolir o choro mais uma vez. Delicadamente, ela acariciou seu rosto e deslizou um dedo pela cicatriz como se pudesse curá-lo daquela lembrança que o perseguia. O que seria?
Kalila não sabia, mas sentia, sabia que a dor que Aarif estava experimentando era devido a uma perda. Ele cobriu sua mão com a dele e entrelaçou os dedos, tentando falar, mas não conseguiu
Kalila manteve sua mão no rosto dele e Aarif fechou os olhos. O corpo todo dele estremeceu de emoção, e, com muita naturalidade, Kalila o envolveu nos braços e o puxou para perto dela.
Aarif apoiou a cabeça no ombro de Kalila, roçando seus cabelos sedosos nos lábios dela, e colando seu corpo forte e musculoso no dela. Ele a envolveu com os braços e Kalila se deu conta de que nunca experimentara tanta intimidade com um homem. Mas parecia uma coisa natural, certa, ter seus corpos emaranhados num abraço com o intuito de consolar. Ela ficou emocionada ao ver um homem como Aarif aceitar seu carinho, ou até mesmo precisar dele.
Ambos permaneceram calados.
O coração acelerado dele batia contra seu peito e só depois de um bom tempo foi que ela viu Aarif se acalmar. Ela passou a mão nos cabelos de Aarif e sentiu os dedos dele pressionarem seu ombro. Mas, fora esses pequenos gestos, nenhum dos dois se mexeu ou falou.
Kalila sabia que falar ou até pensar poderia quebrar o encanto daquele frágil momento de ternura. Depois de passarem um dia e uma noite fora da realidade, aquilo era muito real. E ela pensou, antes que sua mente se tornasse obscura e quieta, que parecia ser o certo a fazer.
Depois de um certo tempo, a respiração de Aarif se normalizou. Agora eles deveriam se separar, fechar os olhos e esquecer aquele breve momento de maravilhosa intimidade, um momento de satisfação pessoal roubado de uma vida dedicada ao cumprimento do dever.
Mas ela não queria se separar e entendeu com uma certeza emocionante que Aarif também não queria. E quando levantou a cabeça dele e o viu fitando-a avidamente, ela sabia o que ele faria.
E ele a beijou.
Não foi o beijo ardente que ela esperava, resultando de um instante de desespero. Mas um beijo delicado e experimental, quando ele moveu seus lábios levemente nos dela até progredir para algo mais forte, mais encantador, aprofundando-se, explorando-lhe os lábios e a boca, enquanto suas mãos lhe seguravam o rosto, aproximando-a ainda mais, como se quisesse algo dela, e ela se entregou.
Kalila correspondeu ao beijo, deixando que a emoção reverberasse por seu coração, mente, corpo e alma. Foi um beijo maravilhoso. Ela nunca fora beijada antes, não daquele jeito.
Ela teve o cuidado de se manter distante, pura, como sempre deveria ter sido, como era a obrigação de uma futura rainha, desde seus 12 anos. Mas, agora, ela não queria pensar nisso, pois se deu conta que o que estava fazendo era algo bem mais egoísta e condenável do que fugir.
Era uma traição da pior espécie, mas sua mente e seu coração se negavam a ver isso. Foi bom demais.
O beijo se prolongou e se tornou mais intenso, guiando suas mãos e transformando seus corpos em mapas prontos a serem explorados e desvendados.
Aarif se atrapalhou com as roupas dela, mas acabou conseguindo soltar botões e colchetes e alcançar sua pele nua, então lhe tocou com as mãos e em seguida com a boca, e Kalila arfava diante de tanta intimidade, uma exposição que a deixava vulnerável, mas também valorizada.
Sentia-se amada.
Os movimentos dele eram perfeitamente sincronizados, em silêncio, exceto pela respiração, pelos suspiros de prazer, pelo som da pele de um deslizando na pele do outro. Parecia um sonho, um sonho maravilhoso, com poder de cura, enquanto Aarif avançava sobre ela, apalpando-a em recantos que nunca receberam carícias de um homem.
Kalila se abriu toda para ele, separando as pernas e projetando o corpo em arco para que ele a tocasse, necessitando das suas carícias e daquela intimidade proibida.
Depois, ela o tocou, timidamente de início, explorando com as mãos, procurando e descobrindo seu peito rígido, sua barriga musculosa, a maciez de seu quadril, as saliências nas costas, mais cicatrizes.
Estava na hora de lhe perguntar a razão de tantas cicatrizes, que terríveis lembranças guardava em seu coração. Agora, pensou Kalila, enquanto percorria com os lábios os locais onde suas mãos tocaram, roçando aquela pele para curá-la.
Não pensaria no significado disso. Desviou tais pensamentos e suas implicações para se deixar embalar em sentimento e emoção, deixar as mãos e a boca de Aarif percorrê-la e se entregar a ele e ao redemoinho de prazer e espanto que ele provocava nela.
Ela nunca imaginou que tais sensações fossem tão fortes, e arfava quando ele a tocava, percebendo que Aarif sorria. Adorou ver que provocava satisfação e alegria nele.
E chegou a hora de parar, Kalila sabia que teria que parar; eles poderiam e deveriam ter parado. Com suas roupas amontoadas do lado deles, os corpos despidos e juntos, Aarif se colocou por cima dela, pronto para unir seu corpo ao dela num ato íntimo, sagrado, precioso e desconhecido, mas tão certo. Seus olhos encontraram os dela e pactuaram em silêncio. Fitaram-se e sem se falar, cúmplices, uniram seus corpos em um só.
Kalila sufocou um grito diante daquela primeira experiência, agarrou-se às costas dele, e o desconforto desapareceu para dar lugar a uma sensação deliciosa de união. Ele estava completamente ligado a ela e o sentimento de plenitude se espalhava por todo o seu corpo e penetrava em seu coração.
Aarif enterrou a cabeça no ombro dela, roçando-lhe os lábios com o cabelo, o corpo ainda tenso depois de se deleitarem, e ela o abraçou, arfando de prazer e de choque. Ela não queria que aquele momento terminasse, não queria se sentir mais sozinha...
Entender aquilo foi tão maravilhoso quanto a alegria de sentir o corpo de Aarif invadir o seu. E quando ela finalmente se rendeu ao ápice do prazer, percebeu que só então se tornara livre. Sabia quem ela era.
Qual a sua razão de ser.
A consequência disso, ela pensou enquanto Aarif se afastava dela era tão sinistra e silenciosa quanto a tempestade. Ele ficou deitado de costas com um dos braços lhe cobrindo o rosto. O silêncio que provocara um feitiço sedutor para aproximá-los há poucos instantes, agora servia para separá-los como se fosse uma cerca de arame afiado.
Kalila reparou que havia areia em seu couro cabeludo e em suas coxas. Há poucos minutos só sentia alegria, no entanto, o que ora sentia era bem ruim. Algo sórdido. Sentia-se usada, vulgar, suja, e não queria isso.
Porém, uma voz dentro dela falou, não é exatamente isso que você é? Acabou de trair seu noivo com o irmão dele.
Ela fechou os olhos e sentiu o remorso no qual evitara pensar enquanto o prazer dominava seu corpo e coração, prazer que até aquele instante ainda fazia seus ossos se derreterem feito cera. Sentiu um arrependimento varrê-la e imaginou como Aarif estaria se sentindo.
Aarif, era um homem preso aos seus deveres e sua honradez. Um homem com inúmeras responsabilidades. O que estaria pensando?
Ela deu uma olhadela e viu que ele não se mexera. E pensar que há poucos instantes ela tocara sua pele, o beijara e fizera amor com ele.
Amor.
Será que poderia amar Aarif?
Ela mal o conhecia. E ele era implacável, frio e desagradável No entanto, quando o teve em seus braços....
Quando ele a tocou como se a conhecesse, não apenas seu corpo, mas seu coração, sua mente.
Quando ele sorria.
Kalila engoliu em seco. Não poderia amar Aarif, mas o que aconteceu entre eles fora real, foi algo...
— Aarif. — E a voz dela saiu feito um grasnido. Não sabia o que ia dizer, por onde começar...
— Não. — Sua única palavra foi gutural, áspera e selvagem. Aarif ficou de pé num único movimento e, sem olhar para ela, arrancou a fita isolante da entrada da barraca. Kalila o observou com o coração batendo forte de ansiedade e tristeza.
Mais um puxão e ele retirou toda a vedação da barraca, e depois saiu para a noite escura.
Kalila ouviu seus passos na areia, um dos cavalos relinchar baixinho e um leve murmúrio de Aarif como resposta. Então surgiram as lágrimas em seus olhos. Ele era mais amável com os cavalos do que com ela.
No entanto, aquela voz dentro dela voltou, os cavalos não tinham feito nada. Eram inocentes. Coisa que você não é.
Inocência. Tão valorizada e tão preciosa. Tão importante par uma mulher como ela, mulher escolhida para se casar com rei, e ela não era mais inocente. Instintivamente, Kalila olho para baixo e viu uma pequena nódoa de sangue em sua coxa. Em outra circunstância, aquele sangue seria a prova da sua inocência, sua pureza, o motivo de ser uma esposa. Teria sido amplamente divulgado para a felicidade de todos. Em outro contexto, ela controlou um riso nervoso, ela teria sido morta pelo que acabara de fazer.
A inocência dela se fora.
Mas nem assim, apesar do arrependimento, da vergonha e do medo, ela não esquecia a sensação de ter Aarif em seus braços, dentro de seu corpo. Não podia nem queria esquecer.
Que tipo de mulher ela era?
Suspirou fundo, tentou acalmar seus pensamentos e seu coração acelerado. Precisava pensar e planejar alguma coisa. Precisava falar com Aarif.
Ela se limpou com um pouquinho de água do cantil, em seguida se vestiu e penteou os cabelos com os dedos.
Depois se encheu de coragem, deixou a barraca e saiu para a noite escura.
O ar estava fresco e o céu coalhado de estrelas. As dunas de areia estavam prateadas pela luz do luar, e após a tempestade, não havia nenhum vento.
A tempestade deixara rastros como rochas partidas e raízes de árvores expostas. Kalila fez uma rápida oração para proteger sua gente no abrigo do aeroporto, e rezou para que ninguém morresse por conta da irresponsabilidade dela.
Seu próprio egoísmo.
Caminhou lentamente sobre a areia até Aarif. Ele estava de costas para ela, apoiando o braço na rocha. Estava de cabeça baixa e visivelmente angustiado. Zangado.
Kalila parou a poucos metros dele, com os braços cruzados para se proteger do frio, e esperou.
O que diria? O que ele diria?
O que será que aconteceria dali em diante?
Depois de um longo silêncio, os cavalos se mexeram e uma leve brisa jogou seu cabelo no rosto. Então Aarif falou.
— Vamos fazer o seguinte — disse friamente, como se eles estivessem no meio de uma conversa. — Diremos a todos que só a encontrei esta manhã. Você acampou aqui, sozinha, e eu me abriguei em outro lugar. Assim sua reputação não será questionada. Não creio que haja alguém que queira duvidar de você e colocar em risco este acordo matrimonial.
Kalila ouviu suas palavras, que ecoaram por ela sem fazer sentido algum. Ele estava evitando encarar a situação de frente.
— Muito bem — ela disse quando conseguiu fazer sua voz sair. — Mas isto não muda o que aconteceu aqui.
— Não posso acreditar que queira que os oficias de seu pai saibam do que aconteceu. Estou tentando lhe salvar dessa enrascada, princesa.
— Como? Mentindo?
— Protegendo você! —Aarif se virou e Kalila, instintivamente, deu um passo atrás ao ver seu rosto alterado. — Deus sabe que fui eu que errei e sou eu quem vai achar uma solução.
— Como?
— Serei obrigado a contar para Zakari.
Ela fechou os olhos; não queria imaginar a conversa ou o significado daquilo para ela. Para o casamento dela.
— Aarif, se fizer isso, vai arruinar meu casamento antes de ele começar.
— Direi a Zakari que foi culpa minha...
— Acha que ele vai acreditar que você me estuprou? — Ela balançou a cabeça, decepcionada. Não queria ter esta conversa sórdida sobre o que acabara de acontecer entre eles. Não aguentava discutir logística quando seu coração o desejava.
— Eu fui responsável — Aarif insistiu. — Devia ter parado, ter me desviado. — Balançou a cabeça. — Eu lhe acusei de ser egoísta, Kalila, mas eu fui muito mais egoísta.
Kalila deu alguns passos em direção a ele. Queria tocá-lo, alcançá-lo, mas sabia que não devia. Ele se fechara totalmente, criara uma barreira e se isolara em suas responsabilidades e em sua culpa.
Mesmo assim ela tentou.
— Aarif, eu poderia ter protestado, poderia ter evitado. Nós dois temos culpa. — Ele estava de costas para ela e não disse nada. Ela se encheu de coragem para continuar. — Na verdade, eu não tinha essa intenção. Só queria estar com você, Aarif, desde o momento em que você me tocou. Desde o momento em que toquei em você, se é que vamos compartilhar a culpa. Então, eu fui a primeira a...
— Não romantize o que não passou de luxúria — ele a cortou.
Kalila piscou, assustada, como se ele tivesse batido em seu rosto.
Pior do que isso. Como se ele tivesse embolado todas as lembranças que acabaram de criar em uma bola e cuspido em cima.
— Não — ela murmurou. — Não foi isso. — Mas Aarif nada disse então ela continuou. —Aarif, não transforme isso em algo sórdido...
— Mas foi sórdido! — ele respondeu. — Tudo isso é sórdido, Kalila será que não enxerga? Meu irmão confiou em mim, confiou em mim para cuidar de você. Ele me pediu para vir buscá-la porque achou que podia contar comigo e, em troca, eu fiz a pior coisa que poderia fazer, eu o traí. — Ele se virou, repentinamente, e estava pálido. — Não há nada de positivo no que aconteceu, Kalila. Nada. Você pode ter sentido um breve prazer em meus braços, mas foi vulgar e inútil, e se você tivesse algum sentimento de honra ou dever, você saberia.
Kalila abriu a boca, mas não conseguiu pensar em nada para falar. Lágrimas escorreram de seus olhos. Aarif a fitou com tanto desprezo que ela se sentiu tão vulnerável e exposta quanto no momento em que esteve debaixo dele, com seu corpo descoberto para suas carícias.
— Sei o que está pensando — ele disse indiferente. — Está achando que o que sente por mim é amor. — Amor. Ele disse esta palavra com tal desdém que Kalila ficou pasma. — Você me contou que queria amar. Não quero um casamento arranjado, você disse. Então agora acha que é isso: amor. — Ele balançou a cabeça e ergueu uma das mãos para impedir que ela falasse, mas Kalila estava chocada e entorpecida demais para emitir uma sílaba que fosse. — Acho que não percebeu o que estava fazendo. Foi pega de surpresa como eu, e agora está desesperada para transformar a situação em algo relevante, para acreditar que temos algo. Bem, nós não temos, princesa. Tudo o que temos é um erro, e é minha obrigação retificá-lo. Quanto ao seu casamento, Zakari é um bom homem. Ele sabe perdoar. — Ele fez uma pausa. — Precisará perdoar. — Ele se virou para sair e deixá-la com suas palavras ásperas e fria condenação.
A cabeça de Kalila estava curvada com o peso daquele julgamento e ela falou com os lábios apertados.
— Você diz isso porque é a única maneira de aceitar o que aconteceu.
Aarif ficou imóvel.
— Ainda acredita em contos de fada? — Aarif a ridicularizou, mas ela percebeu que havia muito sofrimento e carência por trás de seu gracejo.
— Isso não se parece em nada com um conto de fadas — Kalila devolveu de cabeça erguida. — Não vou depreciar o que houve entre nós só porque foi errado, Aarif. Sei que foi um erro. Admito isso, mas também sei que, por alguns minutos, você precisou do meu apoio, precisou de mim, e eu precisei de você. E juntos sentimos o que nem todas as pessoas sentem. — Seus olhos estavam cheios de lágrimas e ela sentiu uma delas descer pelo rosto.
— Acredite no que quiser, se o faz se sentir melhor — ela disse. — Acredite na sua própria versão do conto de fadas, Aarif, mas eu sei qual é a verdade.
A boca de Aarif ficou fechada e seus olhos melancólicos pareciam zangados. Kalila olhou para cima e viu que o brilho das estrelas estava se apagando pelo amanhecer que se aproximava no horizonte.
— Já amanheceu — ela disse. — Está na hora de ir embora.
Eles desarmaram a barraca e juntaram as coisas em absoluto silêncio. Kalila se envolveu num torpor e resolveu deixar para sentir a dor, a concretização, a repercussão e as lembranças mais tarde. Pois elas viriam, ela não conseguiria evitá-las.
Por ora, ela se ocuparia das tarefas banais como dobrar os cobertores, desarmar a barraca, alimentar os animais e tornar-se minimamente apresentável, já que seus recursos eram limitados.
Ela não tinha um espelho, mas nem precisava dele para saber que seu cabelo estava todo embaraçado, os olhos secos e cheios de areia, o rosto vermelho pelo vento e as mãos ressecadas e ásperas.
Será que Zakari ia esperá-la no aeroporto de Calista? Será que a veria assim?
Será que saberia?
Pela primeira vez ela torceu para ele estar procurando por seus diamantes. Quanto mais tempo ele ficasse fora, mais tempo até o casamento. E mais tempo até o ajuste de contas.
Todavia, esse dia chegaria. Ela sabia que sim, e só de pensar nisso Kalila se transformava, ficava sem ar e o coração disparava de ansiedade até ela mergulhar novamente no torpor.
Eles levaram três horas até o aeroporto. Kalila chegou exausta e dolorida da cavalgada, mas consciente da nova delicadeza entre as pernas e do cansaço em cada músculo, tendão e osso.
Ela seguiu atrás de Aarif assim que o sol surgiu com seus raios impiedosos. Aarif foi calado enquanto cavalgavam pelas areias reviradas, a paisagem totalmente diferente da véspera, no entanto, ele andou com um senso de direção certeiro.
Claro que saberia chegar ao aeroporto, um local onde nunca estivera antes, Kalila pensou. Um homem como Aarif nunca se desviava do seu rumo, nunca fazia nada de errado...
Exceto uma vez. Como na noite passada.
O que será que o fez cometer aquele erro? De se apoiar em alguém como ela? Kalila sentiu um aperto no coração ao se lembrar de como foi tocar Aarif, e ser tocada por ele. Ser desejada, tocada, amada.
Está achando que o que sente por mim é amor.
Triste com a lembrança, Kalila abaixou a cabeça e se concentrou em seguir Aarif com sua égua se arrastado pela trilha irregular.
Kalila quase ficou aliviada ao avistarem o aeroporto, uma edificação simples, baixa, feita de concreto. Estava cansada da expectativa e da tensão. Queria resolver logo os problemas, as explicações, as mentiras. Depois queria tomar um bom banho.
Juhanah foi a primeira a aparecer, louca de ansiedade.
— Ah, ya daanaya! Minha criança! Temíamos que tivessem morrido, os dois! — Mesmo enquanto a abraçava, Kalila viu os olhos da velha aia investigando a figura de Aarif.
Então já começou, ela pensou, fechando os olhos e aproveitando o abraço. Os sussurros, os rumores. A reputação dela não estaria protegida da imaginação das pessoas.
E nem merecia ser.
— Encontrei princesa Kalila há poucas horas — disse Aarif. Ele desceu do cavalo e entregou as duas rédeas a um criado, dando instruções precisas que fossem devolvidos aos seus donos.
— Ela se abrigou da tempestade, assim como eu, e quando os ventos serenaram eu a encontrei. — Ele falou com toda a calma e frieza, sem olhar para ela uma única vez. E isso magoou a tola e idiota Kalila.
Kalila quase começou a acreditar nas terríveis coisas que ele dissera naquela manhã.
— Graças a Deus — disse Juhanah, sufocando Kalila em mais um abraço apertado. — Graças a Deus o senhor a encontrou, príncipe Aarif. — Ela segurou Kalila pelos ombros, sacudindo como se ainda fosse uma criança que precisava ser educada.
— O que pretendia, Kalila, fugindo daquela maneira? Se seu pai soubesse...
— Rei Bahir não precisa tomar conhecimento do momento de insensatez de uma jovem — Aarif a cortou delicadamente. A voz dele era agradável, mas seus olhos sinalizavam um aviso. — A princesa me explicou que passou por um momento de desatino, de medo. É algo assustador, para uma jovem mulher, o encontro com o marido que nunca viu. Por um momento, por um breve momento, a princesa pensou em fugir. Não foi longe e estava até pensando em retornar quando a tempestade a pegou. Não conseguiu chegar até a comitiva, então ela se abrigou junto às pedras. Eu a encontrei pela manhã e logo voltamos — Aarif encerrou sorrindo.
Seu discurso mentiroso fluiu tão facilmente que quase convenceu Kalila, apesar da óbvia evidência contrária. Mas se alguém teve dúvida ali, não ousou perguntar por que sua égua As Sabr, estava carregada de alforjes e provisões.
Seria melhor para todos que fingissem que aquilo não havia acontecido. Infelizmente, ela não sabia se conseguiria fazer isso. Os olhos dela procuraram por Aarif, mas ele não estava olhando. Seu rosto estava sério e resoluto e Kalila se perguntou se veria seu outro lado algum dia.
Diante do incômodo silêncio e vários pares de olhos observando-a, Kalila decidiu concordar e abaixar a cabeça.
— É verdade, Juhanah. Passei por um momento de fraqueza e me arrependo muito disso. Cometi um erro. — Ainda de cabeça baixa, olhou de esguelha para Aarif, esperando que ele dissesse alguma coisa, mas ele olhava para frente, frio e distante apesar do sorriso.
— Coitadinha — murmurou Juhanah. — Pelo menos ninguém se machucou.
— E aqui? Ficaram todos protegidos? — Aarif indagou, e quando recebeu a confirmação, ele acenou e prosseguiu para o aeroporto, já pegando seu celular no bolso e digitando um número. — Então, está na hora de voltar para Calista.
— Mas príncipe Aarif! — protestou Juhanah. — A princesa está cansada e suja. Ela não pode encontrar seu pretendente desta maneira. Precisamos voltar ao palácio para que ela tome um banho e se prepare...
Aarif se virou para contestá-la.
— Infelizmente, isso não seria prudente, madame. O lugar da princesa é em Calista agora. Quanto ao rei vê-la em desalinho, não se preocupe. — Ele suspendeu o celular. — Acabei de receber uma mensagem dizendo que ele vai se atrasar, por isso haverá bastante tempo para a princesa se preparar da melhor maneira possível... — Ele olhou para Kalila, que ficou sobressaltada com sua frieza.
Dito isto, Aarif se virou e saiu andando.
— Coitadinha — disse Juhanah de novo. — Não poderá se banhar nem trocar de roupa...
— Tem um banheiro no aeroporto — disse Kalila dando de ombros. Ela não queria a preocupação maternal de Juhanah, ela não merecia. — Vou lavar o rosto, pentear o cabelo e volto já.
Suas palavras tinham um tom falso, pois Kalila sabia que não voltaria mais a ser ela mesma. Ela se encontrara, encontrara sua liberdade nos braços de Aarif, e dificilmente ela o faria de novo.
O avião saiu do deserto árido de Zaraq para enfrentar uma grande área de mar azul turquesa, céu limpo e águas calmas depois da tempestade que devastara terra e mar.
Kalila encostou a cabeça na janela e fingiu dormir. Estava bastante cansada e o refugio do sono era uma ilusão. Mesmo assim ela queria evitar as perguntas, pois ao seu lado estava Juhanah, cheia de curiosidade.
Apenas a aia, Aarif e ela estavam no avião. O restante da equipe havia retornado ao palácio com sua própria versão dos acontecimentos. Kalila se perguntou o que seu pai acharia de sua fuga irresponsável, mas nem mesmo a ideia de enfurecê-lo conseguiu tirá-la de seu estado de letargia. Ela estava fora do alcance de seu pai, agora. Quem ela devia temer era Zakari, mas nem isso lhe era possível. Ela ficaria tranquila, pois ele ainda não chegara em Calista. Por enquanto.
Kalila chegou a dar uma olhada em Aarif, que estava sentado num banco de couro atrás dela com vários papéis espalhados no colo. Usava óculos e, por algum motivo, aquele pequeno sinal de fragilidade a tocou, a fez se lembrar do homem que se apoiou nela, que enterrou a cabeça no ombro dela. O homem que precisou dela.
Juhanah olhou para ela, séria, e Kalila desviou o olhar. Acomodou a cabeça na janela novamente e já ia fechar os olhos quando viu surgir um pedaço de terra, de deserto.
Calista.
Seu lar.
Kalila esticou o pescoço para ver aquela terra tão parecida com Zaraq, um rio sinuoso subindo pelas rochas, onde eram localizadas as famosas minas de diamantes de Calista. Mais adiante estava a Cidade Velha, parecida com Makaris. Observou um conjunto de prédios, com terraços em vez de telhados, e um grande mercado público no centro.
E, finalmente, o palácio. Feito de pedra amarelada, semelhante àquela usada no palácio de Zaraq, uma edificação de linhas arquitetônicas simples e elegantes que revelava centenas de anos de poder e realeza.
O avião sobrevoou o palácio e depois voou em direção ao aeroporto, e Kalila se acomodou no assento novamente.
Aarif não falou com ela quando desembarcaram do avião. Um grande carro preto veio do palácio para apanhá-los e mais uma vez Aarif a evitou, sentando-se na frente com o motorista enquanto ela e Juhanah se acomodaram no banco de trás.
Kalila deu pouca atenção à paisagem do deserto, palmeiras dispersas e depois, mais próximo da cidade, ao clube de polo e à parte nova da cidade com uma placa sinalizando para Jaladhar, o resort da ilha.
O cansaço físico e mental era de tal ordem que ela só queria dormir. E esquecer... nem que fosse apenas por poucas horas.
O carro chegou ao palácio localizado na Cidade Velha, e logo um criado uniformizado apareceu para recebê-los. A expressão do homem era de espanto ao se deparar com Kalila no estado em que estava. Apesar de ter tentado melhorar o estrago, ela não parecia ser a princesa que ele esperava recepcionar.
Ela sorriu e ele se curvou respeitosamente, expressando sua saudação, à qual Kalila quase não deu atenção.
— A princesa Kalila está muito cansada — disse Aarif sem olhar para ela e o criado se empertigou. — Leve-as aos seus aposentos e certifique-se de que tenham tudo para seu conforto.
Em seguida ele entrou no palácio sem olhar para trás. Kalila ficou espiando até ele sumir atrás da grande porta de madeira trabalhada e se perguntou quando voltaria a vê-lo. Tinha a impressão de que ele faria de tudo para evitá-la.
Kalila então seguiu o criado. Ao entrarem no palácio, uma criada as esperava para guiá-las por uma suntuosa escada e levá-las ao segundo andar, constituído por um estreito corredor de pedra cheio de janelas em arco no estilo mouro descortinando uma vista de céu azul e deserto sem fim.
Apesar de o palácio estar localizado na principal cidade da ilha Serapolis, nos limites da Cidade Velha, as dependências das mulheres ficavam de frente para um jardim privativo, um oásis verdejante muito parecido com o que havia em Zaraq, porém não tão familiar, Kalila refletiu da janela de seu quarto.
Tudo lá era estranho e até ela se sentia assim, estranha a ela mesma. Nas últimas 24 horas, agira de forma totalmente inusitada e agora não sabia que consequências enfrentaria, só sabia que seriam severas e duradouras.
Ela soltou um grande e profundo suspiro chamando a atenção de Juhanah que olhou preocupada.
— Você deve estar cansada. Vou preparar-lhe um banho.
— Obrigada, Juhanah — disse Kalila.
Enquanto a aia foi até o banheiro da suíte, Kalila examinou o quarto que fora escolhido para ser seu. Era um quarto simples, mas suntuoso. Uma cama grande com uma coberta de linho branco e uma cómoda de cedro aos pés. Uma escrivaninha do mesmo estilo, um espelho e duas janelas em arco que se abriam para o jardim.
Poucos minutos depois, Kalila entrou no banheiro luxuosamente equipado, desde a enorme banheira de mármore até as toalhas fofíssimas, e afundou com um suspiro de alívio naquela água quente e cheia de espuma. Do outro lado da porta fechada, ela ouvia a movimentação de Juhanah pelo quarto, significando que suas malas já haviam sido trazidas.
A sensação de se lavar e remover toda aquela areia era muito boa, mas nada seria suficiente para fazê-la se sentir limpa de novo. Completamente. Ainda se sentia infeliz e achava que jamais voltaria a ser como era antes.
Quem era ela? Presa entre dois mundos, duas vidas, dois sonhos. Dever e desejo. Só se sentira completa nos braços de Aarif, com suas carícias.
Juhanah bateu na porta.
— Está tudo bem, ya daanaya?
— Sim, estou bem.
O carinho da aia era muito bem-vindo, mas também enchia Kalila de culpa. Ela não merecia a preocupação de Juhanah. O que sua aia diria se soubesse...?
Kalila fechou os olhos. Não contaria nada a ela, nem a ninguém. Mas Aarif contaria para uma pessoa, segundo ele mesmo afirmou. Contaria a verdade a seu irmão.
Mas o que ela esperava que acontecesse? Será que imaginou que Aarif diria que a amava e que tudo seria diferente? Será que acreditou mesmo que uma ou duas horas de paixão mudariam as coisas? Qualquer coisa?
Mas isso parecia ser tão mais importante. Quando o teve nos braços e sentiu seu coração bater junto ao dela, parecia que eles eram uma só pessoa...
Ela entendeu que era exatamente isso que ela queria. Este era o motivo de ela resistir tanto ao casamento com o rei de Calista. Ela queria amar, e, por alguns momentos, ela imaginou que tinha encontrado isso com Aarif.
Está achando que o que sente por mim é amor. Suas palavras zombaram dela naquela manhã. Como poderia achar que fosse amor se ela mal o conhecia? E nem sabia se gostava do pouco que conhecia.
Ele era sério, implacável, soturno e determinado. No entanto,, ela vira sinais de bom humor, suavidade e carência.
Não, Kalila sabia que não o amava. Mas sabia que poderia vir a amá-lo.
Ela também se perguntava em relação ao sonho que o atormentara tanto. Que lembrança tão horrível ele carregava consigo? Esta lembrança poderia ser a chave para compreender Aarif.
Mas como compreendê-lo se ele passaria as próximas semanas fazendo de tudo para evitá-la? E, mais importante ainda, quando ela era a noiva de seu irmão?
A água do banho já esfriara, então Kalila tratou logo de se ensaboar e, de repente, percebeu que suas mãos tinham se fixado em sua barriga. E então ela se lembrou de que seu encontro com Aarif poderia ter consequências bem mais sérias, o que a gelou.
Uma gravidez, um bebê.
Um filho de Aarif.
Mesmo sorrindo com essa possibilidade, sua mente entendeu as consequências desastrosas que isso traria. Um herdeiro real bastardo, concebido antes do casamento.
Claro que Zakari poderia acredita que o filho fosse dele, concebido em sua futura noite de núpcias, mas se Aarif lhe contasse...
Kalila fechou os olhos novamente. Que confusão que ela arrumara. Um erro que ela não sabia como consertar. Ela então afastou tais pensamentos de sua mente. Era muita coisa para ela enfrentar, e Kalila achava que sempre seria demais.
O banho a deixou sonolenta. Kalila saiu do banheiro embrulhada num roupão e quando deu de cara com aquela cama enorme, confortável e convidativa com as cobertas puxadas, ela achou mais do que natural se deitar e dormir embalada pelo som do lento ventilador de teto. O último barulho que ouviu foi um clique baixinho da porta quando Juhanah saiu do quarto.
Kalila acordou com alguém batendo à sua porta, e percebeu que o sol já estava se pondo, enchendo o quarto de sombras e deixando o ar abafado.
— Juhanah? — Kalila perguntou depois de tirar o cabelo do rosto.
— Sim, princesa — Juhanah respondeu e entrou no quarto. Kalila a observou andando pelo quarto, sorrindo, mas notou que algo a perturbava.
— Que horas são? — perguntou Kalila já sentada na cama.
— Mais de 5h — ela informou.
— A que horas vamos jantar?
Juhanah fez uma pequena pausa antes de responder.
— Príncipe Aarif sugeriu que jantássemos em nossos aposentos hoje. Ele disse que a viagem a cansou demais para enfrentar um jantar formal.
Kalila fez uma careta para Juhanah, que não percebeu por causa da pouca iluminação do ambiente.
— Quanta gentileza — ela comentou com sarcasmo, sabendo muito bem o motivo de Aarif ter sugerido isso.
— Realmente — Juhanah concordou. — Mas não deixa de ser uma recepção fria para uma princesa real!
— Eu não me...
— Claro que não se importa — Juhanah a cortou, visivelmente zangada demais para deixar de reclamar. — Você é muito jovem e fácil de agradar. Mas não sei o que pensar de um palácio que mais parece uma caixa vazia, ninguém para recebê-la, a não ser um criado...
— Na verdade, ele pareceu bem importante...
— Ora! — Juhanah fez um gesto de desprezo com a mão.
— Isso não está certo.
— É preciso lembrar que a família real passou por vários transtornos — Kalila falou, mais para si mesma do que para Juhanah. — A morte do rei Aegeus de Aristo e os rumores do diamante desaparecido...
— E é isso que todos estão fazendo? Saindo numa busca tola por uma pedra qualquer? — Juhanah tinha as mãos nas cadeiras e Kalila se pegou rindo, e sentindo-se mais leve.
Ela se levantou para abraçar sua aia, que devolveu o abraço com certa surpresa. Kalila nunca fora uma criança muito afetuosa, mas naquele momento ela estava grata e precisava de carinho.
— Estou feliz por você estar aqui, Juhanah — ela disse. — Acho que não aguentaria isso sozinha.
Juhanah acariciou sua cabeça, afagando seus cachos despenteados.
— Ficarei em Calista pelo tempo que precisar, ya daanaya.
— Obrigada — Kalila sussurrou. De repente, ela sentiu uma saudade incontrolável de casa e uma vontade de chorar. Mas ela se controlou. — Mesmo jantando aqui no quarto, acho melhor me arrumar. — Kalila abriu a gaveta da cômoda onde Juhanah já guardara suas roupas.
Pouco tempo depois, um criado entrou no quarto trazendo um carrinho fechado em cúpula com uma refeição de três pratos em louça de porcelana. Mesmo que a maioria da família real não estivesse no palácio, o cozinheiro certamente estava. Depois de uma viagem de 24 horas, Kalila apreciou um jantar muitíssimo apetitoso: pimentões recheados de carne de carneiro, tahine de grão-de-bico com tomates e bolo de semolina com passas e canela.
Terminado o jantar, Kalila avisou a Juhanah que estava com sono e a aia se retirou do quarto.
Mas ela não dormiu. Do lado de fora, a lua parecia uma foice prateada no céu e o jardim, fresco e perfumado, chamava por ela. Kalila pensou em escapar para ir até lá e percorrer seus caminhos sinuosos de pedra, mas mudou de ideia. O jardim poderia ser explorado durante o dia.
Mas ela se recusava a ficar trancada no quarto como uma prisioneira. Aarif poderia preferir isso, mas Kalila não facilitaria as coisas para ele.
Primeiro ela se olhou no espelho para ver sua aparência, depois saiu pé ante pé pelo corredor para não acordar Juhanah, que estava no quarto ao lado.
O palácio estava em silêncio, o próprio deserto. Kalila se lembrou das palavras de Juhanah sobre estarem fechadas em uma caixa e chegou à conclusão de que ela descrevera bem a situação delas. Onde estava todo mundo? Aarif tinha irmãos e irmãs. Será que todos eles estavam caçando o tesouro? Será que foi de fato deixada sozinha por quase duas semanas a espera de seu futuro marido?
Kalila suspirou, mas depois deu de ombros. Não se importava em ficar sozinha. Aliás, tendo em vista o acontecido, ela até preferia.
No entanto agora, no escuro e no silêncio do palácio, ela se sentia um pouco sozinha.
Ela desceu com todo o cuidado pelas escadas até o hall de entrada. Até mesmo ali reinavam total silêncio e escuridão. Ela bisbilhotou em alguns salões pomposos e todos pareciam ser excessivamente formais e pouco acolhedores. Deviam ser usados apenas para recepcionar dignatários, não pareciam ser para o convívio familiar.
Ela continuou por outro corredor em direção à parte dos fundos do palácio, onde provavelmente estariam as dependências íntimas. Foi só quando viu uma fresta de luz saindo de uma porta semiaberta que ela admitiu para si mesma que não estava apenas explorando o palácio, mas procurando por Aarif.
Ao dar uma olhadela para o quarto, ela soube que o encontrara.
Ele estava sentado em uma cadeira estofada em seda, de óculos, com a cabeça baixa lendo um livro.
Kalila entrou no quarto, mas Aarif estava entretido demais na leitura para notá-la. Que livro tão pesado era aquele? Kalila se perguntou se o livro seria sobre preços de mercado de diamantes? Ou algum texto maçante sobre negócios? Aarif só a viu quando ela estava a poucos metros dele, e até lá ela já havia lido o título do livro e estava se controlando para não rir com tamanha surpresa.
— Agatha Christie?
Envergonhado, Aarif fechou rapidamente o livro.
— Ocasionalmente, gosto de fazer uma pausa nos assuntos de trabalho — ele disse sem jeito. — E a ficção me proporciona isso.
— Sem dúvida — Kalila concordou sorrindo. O fato de gostar de ler histórias policiais fazia dele uma pessoa mais humana, mais real.
— Eu também gosto de Agatha Christie. Diga-me, você prefere Poirot ou Miss Marple?
O sorriso vacilou e morreu, mas mesmo este pequeno gesto encheu Kalila de esperança. Esperança de quê? Ela não responderia a essa pergunta, mas sabia que gostava de descobrir qualquer afinidade que fosse entre eles.
— Poirot, claro — disse Aarif. E sorriu de novo, como se fosse a luz do sol entrando pela janela. Ele fez uma pausa. — E você?
— Poirot. Sempre achei Miss Marple um pouco enfadonha.
Ele riu, muito discretamente, e logo os sorrisos desapareceram em ambos os rostos e o silêncio se transformou em tensão e lembranças. Aarif desviou o olhar.
— Posso ajudá-la em alguma coisa, princesa?
— Vai falar comigo sempre nesse tom agora? — Kalila perguntou, e Aarif virou-se para fitá-la com um sorriso indiferente, meio surpreso.
— Não sei do que está falando.
— Com esta indiferença, como se não me conhecesse nem se importasse comigo.
— Acho que será melhor para nós dois — ele disse, baixinho — Será mais seguro.
— Mas acho que o tempo de se preocupar com segurança já passou.
Talvez, mas só porque eu cometi um engano não quer dizer que queira repeti-lo. Será mais sensato nos manter distantes um do outro no palácio, Kalila. Ao menos até que meu irmão volte.
E o que faço nas próximas duas semanas? Por um momento Aarif ficou confuso.
— O que você faz...? — Ele já ia começar a falar quando Kalila o cortou com uma risada.
— Além de ficar suspirando em meu quarto e comendo bombons. Não tem ninguém aqui, Aarif. Estou sozinha e sei que preciso fazer várias coisas antes de meu casamento. Você falou com meu pai que haveria preparativos para a festa, por isso tive que vir com tanta pressa! E agora devo divagar por este palácio feito uma noiva do barba-azul?
Aarif ameaçou um sorriso, mas logo se recompôs.
— Não é minha função entretê-la.
— Não? E o que diria seu irmão se soubesse que estava me ignorando? Ele não o instruiu para que cuidasse de mim?
— Ele me deu instruções para protegê-la — Aarif falou. — E eu falhei. Prefiro me omitir agora.
Kalila deu um passo atrás com a selvageria de suas palavras. Ela estava gostando daquela disputa verbal, encontrara liberdade nas palavras. Ela estava agitada, irritável, frustrada, mas a liberdade não viria dessa forma.
— Onde estão todos os seus irmãos? — ela quis saber, mas Aarif se limitou a dar de ombros.
— Devem estar ocupados.
— Eles virão para o casamento?
— Certamente. — Ele não parecia preocupado.
Kalila se acomodou em uma poltrona de frente para ele e analisou o ambiente, a biblioteca que imaginava ficar distante, as prateleiras repletas de livros com capa de couro e as cadeiras confortáveis. Era uma sala para se instalar, se perder no meio de tantas histórias guardadas ali.
Seu olhar voltou-se para Aarif, com sua expressão dura, obstinada, e ela chegou a duvidar que tivera aquele homem nos braços, que o beijara e o tocara. Parecia tão incrível agora, como se toda a aventura tivesse sido apenas um sonho.
Talvez tenha sido; fora tão bom quanto.
— Não imaginei que fosse ser assim.
— Nem eu — Aarif retrucou, e ela achou ter ouvido um tom de pesar em sua voz.
— Aarif sei que é difícil, tendo em vista o que aconteceu entre nós mas será que você não poderia me ajudar durante as próximas semanas? Gostaria de conhecer a ilha, a cidade. Quero conhecer o país onde serei rainha, não posso explorá-lo sozinha.
Aarif permaneceu calado, mas seus olhos denunciavam uma certa relutância. Kalila imaginava sua indecisão: a vontade de servir da melhor maneira possível seu irmão, e a obrigação de ficar longe dela. E talvez, com isso, uma vontade de ficar junto dela? Para conhecê-la, saber quem era de verdade?
Nem ela sabia direito quem era, só sabia que se sentira real, segura e certa quando estava nos braços de Aarif.
— Acho que posso — ele finalmente concordou falando lentamente. — Posso levá-la a Serapolis amanhã, se quiser.
Kalila sorriu sentindo-se leve de repente. Era bobagem ela ter esperanças, como se ele tivesse prometido algo além do que um passeio pela cidade, mas foi assim que se sentiu. Passaria um tempo ao lado de Aarif... algumas horas, e quem sabe o que poderia acontecer?
O que ela queria que acontecesse?
A pergunta a deixou preocupada.
Está achando que o que sente por mim é amor. O aviso de Aarif, sempre presente, insistia em ecoar em seu coração. Ela não se apaixonara, sabia que não.
Mas bem que poderia.
— Obrigada — ela murmurou, e Aarif balançou a cabeça como se assentisse
Não havia motivos permanecer naquela sala aconchegante, pouco iluminada e inundada pelo canto de cigarras. Mas ela queria ficar, se acomodar em uma poltrona e contar para Aarif coisas que nunca contara a ninguém.
As vezes, acho que não sei quem eu sou. Vejo-me entre dois mundos, duas vidas e me pergunto se não fiz a escolha errada.
Kalila se segurou para não contar seus segredos, pois sabia que Aarif não queria ouvi-los. Pior que isso, ele sentiria desprezo por ela se soubesse dessas coisas. Não é mesmo? Ou será que ele a compreenderia? Ela já vira aquele sinal de compaixão antes e sentiu como se fosse uma corrente entre eles.
Ela queria sentir aquilo novamente, não queria ir embora. Não queria ficar longe dele.
— Acho que vou pegar um livro. Tem mais algum da Agatha Christie aqui?
— Infelizmente, não.
Não, ela viu que as prateleiras estavam cheias de livros antigos, clássicos empoeirados, e como Aarif, ela queria uma leitura leve. Queria escapar.
— Ah! Bom — ela disse sorrindo e dando de ombros, e escolheu outro livro qualquer.
Instalou-se sorridente na poltrona em frente a ele e abriu o livro.
Era em alemão. Kalila olhou para aquelas palavras e fingiu estar interessada, mas o que pretendia com aquilo ela não sabia.
Aarif suspirou e sorriu levemente.
— Sabe falar alemão, Kalila?
— Não, você sabe?
— Não, mas meu pai sabia. A maioria dos livros aqui era dele. Por quanto tempo você ia olhar para o livro fingido estar lendo?
— Não sei. — Kalila fechou o livro, aliviada. — Não quero ficar sozinha.
— Não é correto...
— Ora Aarif, não acha que esse tempo já passou? — Kalila o cortou. — Que mal há em ficarmos assim na biblioteca? — Mas só de falar ela já sabia a resposta em seu coração. A sala estava à meia luz, iluminada apenas pelo abajur e do lado de fora estava escuro. O ambiente era perigosamente íntimo. Uma intimidade perigosa, e ao ver os olhos de Aarif ficarem alerta, ela se deu conta disso também.
Ela mesma sentiu isso, envolvendo seu coração, fazendo seu corpo formigar. Seria tão fácil levantar-se e ir na direção de Aarif, tirar-lhe os óculos e o livro, e...
— Vá se deitar, Kalila — ele disse baixinho. — Já é tarde.
Não era assim tão tarde, apenas nove horas ou algo em torno disso mas Kalila sabia o que ele queria dizer. Fique longe de mim.
Mas ela não conseguia. Não queria, mesmo que fosse arriscado. Mesmo que fosse errado.
Aarif ainda a fitava, mas sua expressão estava ficando dura e a atmosfera sensual tornava-se incomodamente gelada. Depois de certo tempo, Kalila se levantou, tentando manter sua dignidade, por mais difícil que fosse. Aarif não disse nada, apenas a observou dar um passo atrás.
— Boa noite — ela sussurrou. Em seguida, virou-se e foi embora.
Kalila teve uma certa dificuldade para encontrar o caminho de volta a seu quarto, mas bem que ela gostou. Por alguns minutos, ela se perdeu nos corredores escuros, e seus passos ecoavam na pedra. Não queria voltar para seu quarto, sua prisão.
Esta é a minha vida de agora em diante. Tudo isso, minha vida.
Ela fechou os olhos. Como não imaginou que seria assim? Um casamento arranjado, obrigado? Será que não imaginou como isso seria, em Cambridge, quando teve a chance de escolher?
Não pensara no quanto seria infeliz?
Contudo, não fazia diferença, pois no final, mesmo quando encontrou algo diferente e mais profundo com Aarif, ainda assim ela faria sua obrigação, e ele também. Era isso o que mais doía.
Rapidamente ela entrou em seu quarto, onde a brisa fresca da noite trazia um perfume de jasmim do jardim.
Kalila foi se sentar no banco junto à janela, toda encolhida, e encostou sua bochecha quente na pedra fria da parede. Observou o jardim abaixo, um emaranhado de plantas e arbustos, lembrou-se, então, do jardim de sua casa, o jardim que adorava e que não sabia se voltaria a ver, e soltou um choro desesperado.
Não quero ficar aqui.
Um a lágrima escorreu pelo seu rosto e ela ouviu alguém bater na porta.
Kalila saiu do banco e, limpando a lágrima do rosto, foi até a porta. Aarif estava ali, de cara fechada, os olhos sérios e a boca apertada.
— Algum problema...? — Kalila perguntou e Aarif jogou alguma coisa para ela.
— Isso aqui.
Kalila segurou o objeto instintivamente e depois viu que era um livro de Agatha Christie, um que ela não lera ainda. Ela sorriu e levantou a cabeça para Aarif.
— Obrigada.
— Achei que gostaria de ter um livro para ler e eu tinha este no meu quarto. — Então, como se já tivesse falado demais, fechou a boca com força.
Mas Kalila não pode evitar o sorriso. De certa forma, ele se importava com ela. Talvez só um pouquinho, mas... Estava ali.
— Obrigada — ela repetiu, quase num sussurro, e Aarif parecia querer dizer alguma coisa.
Ele chegou a levantar uma das mãos, e Kalila ficou tensa na eminência de seu toque, querendo e precisando dele, mas ele desistiu e abriu um sorriso discreto.
— Boa noite, Kalila — ele disse antes de se virar para caminhar pelo corredor escuro.
Ele precisava ficar longe dela. Aarif sabia disso, por instinto, no entanto, ele se negava a aceitar o que sua mente lhe dizia; se negava, mas falhava.
Falhou com seu irmão, falhou consigo mesmo, falhou com Kalila. Será que poderia existir algum teste em que ele não falhasse? Aarif se perguntou cinicamente. Será que alguém ainda poderia confiar nele?
Na última vez em que confiaram nele para cuidar de outra pessoa, o irmão havia morrido.
Cuide bem dele.
E ele não conseguiu.
Desta vez, ele roubara a inocência da princesa, sua pureza. Ele arruinara a vida dela. Pois mesmo que Zakari perdoasse sua noiva, as chances de Kalila obter o que tanto queria, amor e felicidade eram escassas. Como conquistar isso a partir de uma traição?
E ironicamente, Aarif reconheceu a origem dessa tragédia. Se ele não tivesse o pesadelo de sempre, Kalila não precisaria consolá-lo. Consequentemente, ele não teria se aninhado nos braços dela, ansiando por paz e sossego, e desejado mais.
Mais.
Ele vinha se mantendo distante da vida e do amor havia tanto tempo, mas naquele momento ele cedera, e se deixara aproveitar algo que não tinha o direito de ter.
E ele queria mais.
Ele continuava querendo tê-la em seus braços, sentir o cheiro delicioso dos seus cabelos, ver o sorriso brotar em seus lábios antes de beijá-la...
Ele entrou no quarto, passou a mão pelos cabelos, fechou as mãos em punho, sofrendo...
Como fazer para consertar tudo aquilo?
Ou será que estava condenado a viver com a culpa de seus erros e suas repercussões intermináveis, sem chance de cucarem salvação?
Lá fora, as cigarras permaneciam cantando e a lua surgia no céu escuro. Estava condenado, Aarif concluiu com tristeza, e merecia estar.
O amanhecer do dia seguinte foi luminoso, com uma brisa fresca vindo do mar. Kalila constatou que seria um dia perfeito para visitar os pontos turísticos da cidade e rapidamente vestiu uma calça comprida folgada e uma túnica verde clara.
— O que faremos hoje? — Juhanah perguntou ao entrar no quarto e ver Kalila fazendo tranças no cabelo.
O coração de Kalila ficou apertado. Em todas suas fantasias sobre o dia que tinha pela frente, ela não considerara a presença de Juhanah. Mas era óbvio que sua aia ia querer acompanhá-la até a cidade e que Aarif requisitaria sua presença. De repente, o dia mudou de figura e Kalila já imaginava como Aarif arranjaria meios para evitar passar tempo com ela.
E não seria essa a maneira correta de agir? Kalila voltou a sentir dor na consciência. Se tivesse senso de dever, de honra ou bom-senso, ela se manteria longe de Aarif, assim como ele deveria se manter longe dela. Era óbvio que, se o conhecesse melhor, se eles se tornassem amigos, só arranjariam complicações. Isso só os levaria a ter mais decepções e situações de perigo.
Mesmo assim, ela queria conhecê-lo melhor, saber o que o motivava, e também o que o fazia sorrir. Queria tê-lo por perto, sentir aquela ligação novamente. Na sua existência insípida e decepcionante, aquela era sua única esperança de felicidade.
— O príncipe Aarif vai nos levar a Serapolis — Kalila respondeu olhando para a própria imagem refletida no espelho, sabendo que Juhanah continuava atrás dela. — Ele se deu conta de que precisa desempenhar a função de anfitrião, já que não tem mais ninguém da família aqui.
— Você falou com ele?
Kalila hesitou e viu pelo espelho o jeito desconfiado de Juhanah.
— Ele me deu um livro na noite passada. Um livro da Agatha Christie. Você sabe como eu gosto de ler histórias policiais.
Juhanah ainda a olhava desconfiada, mas tratou de juntar as roupas e arrumar os lençóis, apesar de Kalila estar certa de que haveria alguma criada no palácio, designada para aquela tarefa.
— E ele disse quando rei Zakari vai voltar?
— Não. Não falamos sobre isso — disse Kalila, mordendo o lábio sem querer.
— Não falaram? — Ela disse sem esperar resposta.
Aarif as encontrou no pátio do palácio. Parecia que tinha acabado de sair do banho e vestia uma camisa creme, com o colarinho aberto e uma calça escura.
— Podemos ir de carro até a Cidade Velha — disse Aarif. — Será mais confortável e privativo. Ou, se preferirem, podemos caminhar. Serapolis é uma cidade pequena e não temos costumes rígidos aqui.
— Vamos andando — Kalila respondeu de pronto e Aarif sorriu.
— Eu tinha certeza de que ia preferir isso — ele murmurou, e só de vê-lo Kalila já sentiu uma enorme carga de eletricidade no ventre, a qual se espalhou rapidamente para todos os cantos de seu corpo. Ela sorriu, mas Aarif já começava a conversar com Juhanah.
E assim passou a primeira hora da caminhada deles pelas ruas estreitas e sinuosas que iam do palácio até o coração da Cidade Velha. Aarif apontou para vários pontos turísticos pelo caminho, mas na verdade estava falando para Juhanah, pois Kalila não estava prestando a menor atenção.
Aquela era sua cidade, seu país. Sua vida. Sua mente se desligou de tais pensamentos, mesmo com tantas pessoas se curvando ao reconhecer Aarif e algumas adivinhando quem seria ela. Em pouco tempo, ela já havia colecionado vários ramalhetes de flores e a barra de sua túnica estava suja pelas mãos das crianças que vinham pedir a benção, algumas falando em árabe, outras em grego, e até em inglês.
A boa vontade do povo de Calista comoveu Kalila, e ela sorria e afagava as cabeças das crianças, agradecida por seu afeto tão espontâneo. Se não podia ter o amor de seu marido, talvez se satisfizesse com o amor de seu povo. Muitas rainhas fizeram o mesmo.
Mas eu quero mais. O protesto surgiu dentro dela, espontaneamente, desesperado. Mais.
Pelo canto do olho, ela viu que Aarif olhava para ela. Mas havia algo de estranho, reprimido em seu olhar que ela não sabia definir. Não sabia se devia ficar assustada ou lisonjeada, mas gostou de ver que ele olhava para ela, que pensava nela. Consciente de estar sendo observado por ela, Aarif desviou sua atenção rapidamente para se concentrar na vista do mercado público diante deles.
O mercado estava cheio de barraquinhas, de onde vinham os gritos dos ambulantes desesperados para vender suas mercadorias. Kalila caminhava pelas barracas, divertindo-se com a variedade de cheiros, sons e artigos curiosos. Ela estivera em Makaris há apenas 48 horas, num mercado muito parecido com aquele e, no entanto, parecia que havia sido há muito tempo, em outra vida. Duas vidas, pois com toda a certeza ela não era mais a mesma mulher.
Ela sabia que não era.
Juhanah já estava encantada com uma peça de seda de damasco vermelha com fios de ouro e Kalila parou diante de uma peça de seda pura em tons degrade, do azul ao roxo. Parecia fresca e leve como água.
— Gostou disso? — Aarif perguntou e Kalila sorriu.
— É lindo.
Aarif disse algumas palavras em árabe para o vendedor, que retrucou alguma coisa com sua boca desdentada. Falavam rápido demais para Kalila entender, seu árabe não era assim tão bom mesmo, mas sabia que estavam regateando e ela achou graça da disposição de Aarif e como aquela simples troca iluminara seu semblante.
Finalmente chegaram a um acordo sobre preço e Kalila não se conteve.
— Então, fez um bom negócio?
Aarif se virou sorrindo e dando de ombros.
— Ele teria se ofendido se eu não pechinchasse.
— Claro. — Kalila observou o ambulante enrolar a peça de seda e Aarif deu instruções para que fosse entregue no palácio.
— Não precisava ter comprado isto para mim.
Aarif deu de ombros, mas, daquela vez, o movimento não foi com a mesma naturalidade de poucos minutos atrás. Foi tenso, num esforço para demonstrar indiferença, e ele não quis olhar para ela.
— Vai ficar muito bonito em você. Além do mais, em Calista, temos o costume de presentear as noivas.
— Mas essa não deveria ser uma providência de Zakari? — Kalila perguntou e logo se arrependeu ao ver o semblante de Aarif se fechar.
— Talvez, mas ele não está aqui para fazê-lo — respondeu com uma certa amargura. Por um segundo, Kalila chegou a se perguntar se Aarif estava na verdade criticando seu irmão.
— Obrigada — ela disse e, num gesto de ousadia, colocou a mão sobre o braço dele. Aarif ficou paralisado olhando para a mão dela e Kalila se sensibilizou ao sentir o calor daquela pele em seus dedos. Ela se perguntou se ele sempre a estimularia daquela forma. Era uma perspectiva maravilhosa e, ao mesmo tempo, assustadora.
— De nada — Aarif respondeu e em seguida elevou seu olhar para fitá-la, como se a repreendesse. Corando ligeiramente, Kalila retirou sua mão.
Eles continuaram em frente, passando pelas barracas de tecidos com uma enorme variedade de peças de sedas e cetins, além de outros tecidos mais em conta, como algodão e veludo cotelê, para depois chegar nas barracas de temperos, com seus aromas exóticos, fortemente coloridos em tons de amarelo e vermelho, e recipientes de vidro cheios de cardamomo, canela, páprica e o muito apreciado açafrão.
Ainda havia mais barracas, algumas vendendo cartões postais e outras vendendo artigos eletrônicos americanos falsificados.
Kalila se divertia com a gritaria, com o povo pechinchando e a concentração de energia e excitação que havia no mercado repleto de gente. Sentia-se viva e fazendo parte de algo maior do que ela, além de ser uma fuga abençoada da prisão de seu quarto e também de sua mente.
Aarif sugeriu almoçarem num restaurante elegante com salas privativas e poltronas macias e confortáveis, mas Kalila não quis, preferiu permanecer no ambiente tumultuado e barulhento do mercado. Ela desconfiava que, num local fechado e formal, ficaria muito distante dele. Do lado de fora, no mercado, ele ficaria mais acessível, mais livre, e ela também.
Em uma das barracas eles comeram suculentos e gordurosos kebabs e lamberam os dedos, depois tomaram orangina, e Kalila achou que foi uma das melhores refeições que já comera, mesmo com o sol esquentando sua cabeça e o olhar de Aarif aquecendo seu coração.
Ele não sorriu nem relaxou, no entanto Kalila achou que alguma coisa havia mudado entre eles, e ela ficou contente. Lembrou-se de como fora bom sentir sua pele na dela, seus lábios nos dela e, com um ligeiro arrepio, ela quis sentir aquilo de novo.
Sentir a intimidade do toque, como também outra maior ainda, uma intimidade espiritual. Ela mesma estava pasma por ter sentido isso com Aarif... Aarif, que era tão duro, ríspido e misterioso. Mas, o fato é que havia sentido, e parecia ser algo precioso, sagrada.
Depois de comerem, eles passearam pelo outro lado do mercado, onde vendedores exibiam, para uma plateia dividida entre a indiferença e o encanto , suas cobras enroscadas nas cestas levantando a cabeça, os lançadores de chamas e engolidores de fogo, e um sorridente 'dentista' com uma cesta cheia de dentes extraídos já amarelados ao lado de um alicate enferrujado.
— Ele só quer assustar os turistas — Aarif murmurou em seu ouvido. — Temos um serviço de saúde pública e posso lhe assegurar de que ele não faz parte dele.
Kalila riu.
— Então você não fez uso dos serviços oferecidos por este homem?
— Garanto-lhe que não — disse Aarif com sorriso descontraído.
Então ele colocou um braço em volta dos ombros dela e a conduziu até o lado de fora do mercado.
— Sua aia parece cansada — ele comentou. — Acho que está na hora de sentarmos um pouco. Pelo jeito dela, deve estar com dor nos pés.
Sentindo-se um pouco culpada, Kalila olhou para trás e viu Juhanah se arrastando a poucos passos atrás deles. De fato ela caminhava como se estivesse cansada e seu rosto abatido indicava que adoraria um descanso.
— Que tal tomarmos um chá? — Aarif perguntou. — Você pode ter preferido comer em pé, na rua, mas não creio que sua ama tenha gostado da ideia.
— Me perdoe, Juhanah — disse Kalila ao pegar a senhora pelo braço. — Eu estava distraída com tanta novidade e acabei não lhe dando a devida atenção.
E distraída com outras paisagens também, pelo que vi, Juhanah resmungou por entre dentes e Kalila olhou desconfiada para ela. Será que seus sentimentos por Aarif estavam assim tão visíveis? Nem ela sabia exatamente o que estava sentindo.
Aarif as levou até um café situado ao norte da praça. Ao entrarem, perceberam um vozerio entremeado de corpos que se curvavam para saudá-los, e foram logo conduzidos por uma escada até o terraço, aberto para o céu e o sol.
Sentaram-se em uma mesa com sombra e logo veio um garçom de roupa escura trazendo chá de hortelã e um prato de pistache.
Comeram e beberam em silêncio por alguns instantes, ouvindo ao longe a algazarra do mercado abaixo deles.
— Obrigada por me mostrar Serapolis — disse Kalila depois de um certo tempo.
— Ainda temos muita coisa para ver — disse Aarif sorrindo. — Se bem que nada se compara com a animação da praça em dia de feira.
— Gostei muito de passear por ela.
— Você deve ter visto muita coisa parecida com isto lá em Zaraq. O comércio de Makaris se parecia com o nosso.
— É verdade — Kalila concordou. — Ele é parecido, mas aqui tem algo diferente. — Ela olhou para o mercado lá em baixo e depois para o mar azul turquesa que se via em três direções. — Tem algo de internacional aqui. Talvez seja a energia. Em Zaraq, estamos separados do mundo pelas montanhas. Foi a nossa proteção contra invasões, mas elas também serviram para nos manter isolados.
— No entanto, seu país é bastante ocidental e progressista.
— Só nas aparências — Kalila concordou. — Mas não é na realidade. — Ela desviou o olhar, mas sabia que Aarif a fitava.
— Do que está falando? — Ele brincou com seu copo de chá entre as palmas das mãos e olhava para ela pensativo. — Está se referindo ao seu casamento? Seu casamento arranjado?
— Bem, esse não foi um costume muito ocidental.
— Mas necessário.
— É verdade.
— Você poderia ter declinado do pedido do seu pai quando estava em Cambridge — disse Aarif. Ele se inclinou para frente com uma expressão decidida. — Você poderia ter dito não.
Kalila levantou os olhos do chá, espantada ao perceber o que ele afirmava. Como ele adivinhara? Pois fora exatamente a vontade que ela teve em Cambridge, aquele pensamento maravilhoso e proibido do que poderia ter sido... mas que nunca seria.
— Acho que eu poderia ter me recusado. Suponho que sim. Mas eu sabia que nunca o faria.
— E por que não?
— Porque eu não poderia trair minha família, minha herança. Seria o mesmo que trair a mim mesma.
Aarif desviou seu olhar novamente, mas Kalila tinha a estranha sensação de que sua resposta o havia agradado de alguma forma. Olhou para Juhanah e constatou que a velha senhora tinha sucumbido aos prazeres de um cochilo e que seu queixo estava encostado no peito. Kalila dirigiu-se a Aarif sorrindo.
— Nós a cansamos.
— Não era para menos — disse Aarif.
E ela não pôde deixar de se aproveitar daquela privacidade que o cochilo de Juhanah lhe proporcionou.
— E quanto a você, Aarif. O que o trouxe de volta a Calista? Nunca se sentiu tentado a ficar em Oxford e fazer sua vida por lá.
— Não — ele disse enquanto percorria a borda do copo com o dedo.
— Nem por um instante? — Kalila insistiu, tentando provocá-lo, mas notando uma certa melancolia em sua voz, seu semblante.
— Não, meu dever sempre foi ficar aqui. Nunca pensei em fazer nada além disso. — Sua voz era fria e seu olhar se perdia no horizonte, talvez em memórias distantes.
— Sempre quis trabalhar no negócio de diamantes de Calista? Sempre, não. Mas por muito tempo... — Ele fez uma pausa e Kalila percebeu que ele media suas palavras. — Sim — ele acabou dizendo.
— E quanto aos seus outros irmãos? Eles também se interessam pelo negócio? — E, repentinamente, lhe veio à lembrança
— Você não tem um irmão gêmeo?
— Tenho, sim. Ele tem seus próprios negócios para se ocupar. — Aarif terminou de tomar seu chá e colocou o copo sobre a mesa. — Já está tarde e não é bom ficarmos assim tanto tempo ao sol. Por que você não acorda sua aia para irmos embora? — Ele se levantou e foi pagar a conta, deixando Kalila para trás e se sentindo dispensada. Ela sabia que havia perguntado demais. Tentou chegar perto demais.
No entanto, ela já estivera bem mais perto do que isso, no deserto. Não conseguia esquecer aquele momento maravilhoso de surpreendente intimidade, mas não podia dizer o mesmo de Aarif ao vê-lo se distanciar, caminhando entre as mesas, com ar de indiferença.
Kalila acordou Juhanah, que insistia em dizer que não estava dormindo, apenas descansando os olhos, e então eles fizeram o caminho de volta para o palácio em um silêncio sombrio.
Um criado uniformizado abriu-lhes a porta do palácio e, assim que entraram, Aarif fez uma reverência, agradeceu a companhia delas e desapareceu.
Kalila o observou com um ar decepcionado. Tinha um pressentimento de que Aarif não ia querer vê-la tão cedo. Ele fizera sua obrigação ao levá-las para conhecer a cidade. Agora teria uma desculpa para se manter longe. Ela já previa uma semana de refeições no quarto, seguidas pelo súbito e inexplicável casamento e percebeu uma sensação de perda dentro dela.
De volta ao seu quarto, a luz do fim de tarde desenhava longas e preguiçosas sombras pelo chão e o ventilador de teto girava sobre elas sem quase refrescar.
Sobre sua cama, havia um embrulho feito em papel e mesmo antes de abri-lo, Kalila já sabia do que se tratava.
Seu tecido de seda. O tecido que Aarif escolhera para ela, que dissera que ficaria lindo nela...
Kalila levou a mão fechada à boca para não chorar. Não podia chorar. Tarde demais, não havia nada que pudesse ser feito.
— Dalila! — Juhanah estava na entrada do quarto com as mãos na cintura. — Que tolice foi essa que você fez?
Kalila piscou repetidas vezes para evitar o choro.
— N... nada...
— Você se apaixonou, não é mesmo? — Juhanah entrou, fechou a porta e veio na direção dela, sacudindo a cabeça até chegar e colocar sua mão confortante sobre o ombro dela. — Você sentiu falta do rei então decidiu tomar para si o príncipe. — Kalila entendeu aquilo como uma crítica e um consolo. — Não é mesmo?
Kalila fechou os olhos. Estava cansada e triste demais para negá-lo. Juhanah suspirou.
— É lamentável, claro, mas vai passar. Só porque o rei não está aqui para vê-la, então, em meio à sua frustração, você olhou para outra pessoa.
Kalila se manteve de olhos fechados, e o rosto virado de lado. Não estava apaixonada por Aarif. Em alguns momentos ele era gentil e bondoso, mas era só isso...
— Não estou apaixonada por ele. — Pronto, ela falou. Saiu forte e seguro. Ela abriu os olhos e espantou as últimas lágrimas. — Ele tem sido muito gentil, Juhanah, e estou sozinha e com saudades de casa. Mas não passa disso.
— De fato. — Juhanah estava ironizando e pressionou os dedos no ombro de Kalila. — Nada aconteceu quando você fugiu? — ela perguntou. — Você esteve fora uma noite inteira...
— Juhanah! — Kalila fingiu estar chocada. Ela tirou a mão da aia do ombro, pegou a seda e guardou-a. — O que está dizendo? Príncipe Aarif me encontrou pela manhã. Ele mesmo contou isso para você.
— Foi sim... — Juhanah suspirou e depois fez um pequeno aceno de cabeça mostrando estar satisfeita.
Kalila não se deu conta de como seu coração batia acelerado até que sua aia saiu do quarto. Foi até a janela, as mãos pressionando as bochechas coradas, e tentou se acalmar.
Se Juhanah descobrisse o que tinha acontecido, Kalila achava que ela não contaria para ninguém, mas ela não aguentaria a decepção. Afinal, qual o problema se Juhanah descobrisse a verdade? E se qualquer outra pessoa descobrisse?
A única pessoa que não podia saber era Zakari, e Aarif estava decidido a lhe contar. O que será que ia acontecer depois disso? Suas chances de ser feliz acabariam de vez, pois do amor ela já havia desistido. Zakari iria odiá-la, e mesmo que a perdoasse, o relacionamento deles teria sempre aquela marca, a da traição dela.
Ela viveria debaixo de uma sombra, uma mancha que nunca poderia ser eliminada. O pensamento era devastador.
Não poderia deixar que isso acontecesse. Não por ela, mas pelo bem de Zakari e pelo bem do país. Não por Aarif.
Kalila respirou fundo e tomou uma decisão. Naquela noite, procuraria Aarif e o faria entender.
Depois de mais uma refeição no quarto com Juhanah, Kalila dispensou a aia com a desculpa de estar cansada e de querer dormir. Juhanah, no entanto, não acreditou muito na história e relutou em sair.
Kalila esperou por uma hora inteira antes de sair do quarto. Nesta hora os corredores quietos e escuros estavam iluminados apenas pelo luar e ela podia ouvir perfeitamente os roncos de Juhanah ao passar pela porta do quarto dela.
Demorou um pouco até Kalila achar o caminho da biblioteca pelos corredores sinuosos do palácio e, quando finalmente a encontrou, ela estava vazia. Observou a sala, completamente frustrada. Estava contando em encontrar Aarif ali.
Esperando por ela? Kalila fingiu não ouvir a voz dentro dela. Virou-se para ir embora, desolada. A noite parecia vazia e interminável para ela.
— Princesa? — Uma voz desconhecida flutuou na escuridão do corredor e Kalila congelou. De repente, as luzes se acenderam trazendo uma bem-vinda realidade à situação e um criado se curvou diante dela antes de lhe perguntar:
— Posso ajudá-la em alguma coisa, princesa?
— Eu...— Kalila titubeou e seu rosto corou Sentiu como se fosse pega fugindo depois da hora de dormir. No entanto, em poucas semanas ela seria a dona daquele palácio. Ao se lembrar disto ela se endireitou e olhou para o criado, cheia de dignidade.
— Estava procurando pelo jardim. Preciso de um pouco de ar fresco.
— Está escuro lá fora, princesa — ele disse respeitosamente, de cabeça inclinada.
— Não faz mal — Kalila respondeu.
Então o criado a indicou o caminho pelos corredores, até chegar a uma pesada porta de madeira que se abria para fora.
— Esperarei pela senhora aqui — ele disse.
— Obrigada, mas não será necessário. Tenho certeza de que vou conseguir encontrar o caminho de volta. — Na verdade, ela não tinha certeza de nada, mas não queria um protetor do seu lado.
Assim que saiu para o jardim escuro e fresco, ela divagou pelos caminhos sinuosos cercados de palmeiras e com um forte cheiro de jasmim no ar. O que fazer agora? Aonde ir? Sentiu-se tão sozinha e perdida como uma garotinha e não gostou disso. Segurando um suspiro que a levaria fatalmente a ter pena de si mesma, Kalila andou mais um pouco pelo jardim, até que um barulho de água salpicando chamou sua atenção e ela resolveu investigar.
Ela se virou na direção do barulho, deu a volta no canteiro e, em vez de encontrar um lago ou uma fonte, ela deu de cara com Aarif.
Ele usava apenas uma toalha em volta do corpo, presa nos quadris, e seu peito nu e bronzeado estava coberto de gotículas de agua. Kalila ficou ali, parada, olhando. Nunca o vira de peito nu, apenas o sentira contra a própria pele e agora estava hipnotizada pela visão daquele tórax forte e musculoso.
Aarif resmungou alguma coisa baixinho quando a viu e rodopiou jogando a camisa que segurava para se cobrir. Porém, naquele breve momento, com a luz do luar, Kalila viu as mesmas cicatrizes nas costas que ela já sentira com os dedos. Eram cicatrizes antigas, marcas compridas, recortadas, e logo ela entendeu o que eram.
Aarif havia sido açoitado.
Ela ia dizer alguma coisa, perguntar... mas Aarif já havia se virado e estava abotoando sua camisa.
— O que faz aqui fora, princesa?
— E você, o que faz? Tem piscina aqui?
Aarif olhou surpreso.
— Deve ter, a não ser que eu tenha pulado em alguma fonte.
— Pode me mostrar onde fica?
— Você quer nadar a esta hora?
Kalila deu de ombros, não iria admitir que queria apenas ficar com ele.
— Por que não? Você nadou.
— Mas você não está usando um maiô.
Ela sorriu timidamente.
— Será que preciso?
Aarif congelou e Kalila se arrependeu de ter sido tão provocante. Em seguida, ele começou a andar, e ela o seguiu pelo caminho sombrio.
Chegaram a um pátio aberto e, no escuro, a piscina era apenas uma superfície reluzente iluminada pelo luar, com o som das águas batendo nas bordas. Kalila ficou admirando e se achando meio boba. Ela não estava com vontade de nadar.
— Você gosta de nadar?
— Me obriguei a gostar — ele respondeu. Mas uma resposta tão estranha deu margem a outras perguntas.
— Como assim, você não gostava?
— Quase me afoguei quando mais jovem. Fiquei impressionado.
Kalila podia imaginar a determinação de Aarif para enfrentar seus próprios medos, forçando-se a nadar a contragosto.
— É uma linda piscina — ela disse sem muita convicção e reparou a expressão fria de Aarif à luz do luar. E tudo que ela tendia a dizer morreu ali, por causa daquela expressão. — Alguma notícia de Zakari? — ela finalmente conseguiu dizer.
O momento de silêncio já respondeu a pergunta de Kalila.
— Não — admitiu ele. — Mas ele deve fazer contato logo.
— Como é atencioso — Kalila retrucou.
— Devido às circunstâncias, achei que ficaria grata por uma prorrogação.
Uma prorrogação. Soava tão macabro, tão medonho.
— Quem sabe? — Kalila disse. — Mas eu não gosto de me sentir assim tão insignificante. Sinto como se tivesse sido descartada. Duas vezes.
— Não aconteceu nada entre nós, Kalila — ele disse baixinho.
— Não simplifique as coisas por estar infeliz e sozinha.
Era duro ouvir a verdade, mas ela também sabia que havia algo mais profundo do que aquilo.
— Sente alguma coisa por mim, Aarif? — ela perguntou, aproveitando que o jardim escuro não revelava seu rosto corado. Não gostava de ser tão franca, ficar tão vulnerável, pois sabia que isto só a faria se sentir rejeitada. Mesmo assim, ela quis perguntar, ela precisava saber. — Sentiu alguma coisa por mim naquela noite? — ela murmurou.
Aarif permaneceu em silêncio e, sob a luz do luar, Kalila mal podia ver seu rosto, no entanto, ela sabia que mesmo que estivessem em plena luz do dia ele não revelaria emoção alguma. Ele já se fechara para ela. Fazia isso com muita facilidade.
— Caso eu estivesse apaixonado por você, não faria diferença alguma — Aarif finalmente respondeu. — Você tem um compromisso com meu irmão, assim como eu.
— Mas faria diferença — Kalila murmurou. — Para mim.
Por um breve instante, Kalila achou que ele havia ficado arrasado, talvez tanto quanto ela. Kalila se aproveitou da única chance que teria para alcançá-lo e tocou-lhe o peito por cima da camisa molhada.
— Aarif, por favor... — Ela nem sabia exatamente o que estava pedindo, mas sabia que precisava dele. Precisava daquilo e para seu espanto e felicidade, ele lhe deu, segurando-lhe a mão e levando-a até ele.
A cabeça de Kalila caiu para trás, seus lábios se abriram e os olhos se fecharam, esperando, mas ela sentiu Aarif hesitar. Sabia que ele estava lutando, uma guerra particular consigo mesmo, e que a decisão mais sábia, a decisão correta, seria recuar e deixar que ambos mantivessem a dignidade e o dever acima de tudo.
Mas não foi o que ela fez, porque não conseguiria, ela o desejava muito. E quando Aarif abaixou a cabeça e roçou seus lábios nos dela, Kalila soltou um gemido de alívio e prazer.
Como ela sentira falta daquilo, daquela proximidade, daquela ligação e, claro, do prazer lhe percorrendo o corpo como mel nas veias, esquentando seu sangue, incendiando seu coração. A boca de Aarif roçava na sua, a língua procurava pela sua e, de repente, tudo acabou, ele a soltou e Kalila quase caiu para trás.
Ainda tonta com aquele beijo, Kalila o fitou e viu raiva estampada no seu rosto e brilho em seus olhos.
— O que você quer de mim, Kalila? Quer que eu desmaie sobre você, que banque o tolo? Quer a minha alma? Vai lhe ajudar em alguma coisa? Vai lhe ajudar quando estiver casada com meu irmão? — Suas palavras eram ásperas, desagradáveis e desaprovadoras. Desesperadas. Kalila deu um passo atrás.
— Não...
— Essa é a verdade. Eu me odeio pelo que aconteceu entre nós. E me odeio por ter traído meu irmão, minha família, a mim mesmo. E seja o que for que poderei sentir por você, se eu me permitir, não será nada, nada comparado àquilo. — Tanto sua voz quanto seu corpo tremiam, e Kalila olhava fixamente, horrorizada e humilhada pela torrente de emoções que jorravam de suas palavras.
— Aarif...
— É assim que tem de ser entre nós. E como será sempre. — Ele começou a se distanciar com passadas largas e Kalila, desesperada por não querer perdê-lo naquele momento, quando ainda sentia seu gosto nos lábios, o chamou.
— E se existir uma criança?
Aarif parou e se virou lentamente.
— Acha possível? — ele perguntou com tanta frieza que fez Kalila se encolher.
— Eu... eu não sei — ela admitiu, e depois, motivada pelo silêncio dele, ela acrescentou. — Provavelmente não.
— Então, iremos, como se diz por aí, atravessar esta ponte quando chegarmos a ela.
— Ainda está decidido a contar tudo para Zakari?
— Não posso deixar de contar. Não sou um mentiroso.
— Eu sei disso. Não estou... — Kalila fez uma pausa. — Que tal se eu mesma lhe contar?
— É minha obrigação...
— Esqueça suas obrigações, droga! — ela gritou. — Nada é mais importante para você do que isso, eu sei, mas será que pode pensar no que é melhor para Zakari, para mim e para nosso casamento? — A voz dela falhou ao pronunciar a palavra casamento. — Em vez de usar este exacerbado senso de dever como remédio para sua consciência? — Ela acrescentou, sabendo que só dissera aquilo para machucá-lo, e constatando que o havia surpreendido
— Se você prefere lhe contar, pode fazê-lo.
— Obrigada — ela disse, aliviada.
Aarif assentiu e ambos ficaram ali em silêncio, tomados de tristeza e perda. Kalila se perguntou por que Aarif não foi embora. Ele simplesmente ficou ali parado, e ela ficou imaginando em que ele estava pensando, além, é claro, do seu dever, e o que ele realmente queria.
Sabia que ele a queria, será que desejava mais do que um simples beijo roubado no escuro? Será que aquela noite no deserto fora algo sem importância, consequência da tempestade e do pesadelo assustador? Será que não passou de um sonho?
Fora mais do que isso. Para ela, fora bem mais do que isso. Kalila respirou fundo antes de falar.
— Se você foi capaz de me contar a verdade, então eu vou lhe contar também. Naquela noite no deserto, quando eu lhe segurei nos braços, não foi apenas porque estava sozinha e com medo. Foi mais do que isso para mim, Aarif. Foi real. Não o amava por não conhecê-lo o suficiente. Mas senti que poderia vir a amá-lo, e eu nunca havia sentido isso antes. — Aarif ficou calado, mas mesmo por trás das lágrimas dos olhos dela, Kalila pôde ver seu rosto se contraindo.
Ela deu um passo à frente, depois outro, até chegar perto para poder tocá-lo. Correu um dedo ao longo da cicatriz em seu rosto, do mesmo jeito que fizera antes de beijá-lo no deserto.
— Não sei o que lhe assombra, Aarif — ela sussurrou. — O que é que lhe obriga a ter este senso se dever. É culpa? Vergonha? — Ela balançou a cabeça lentamente. — Gostaria de poder livrá-lo disso. Gostaria de poder carregar esse fardo para você. — O rosto dele continuava resoluto sob dos dedos dela, mas ela notou que fechara os olhos, como se sentisse dor ou angústia, e ela sentiu uma ligação forte entre eles, como se fosse uma corrente conduzida pela sua mão tocando o rosto dele. — Queria que você deixasse — ela acrescentou. — Mas acho que só fiz aumentar seu sofrimento, e, de todas as razões para me lamentar sobre o que aconteceu entre nós, esta é a maior de todas.
Sob sua mão, ela percebeu que ele balançava a cabeça e depois, por um breve instante, os dedos dele tocaram os seus, e pressionaram sua mão contra o rosto dele antes de soltá-la e dar um passo atrás.
Kalila engoliu em seco.
— Boa noite — ela sussurrou, e depois se virou e trilhou o caminho de volta para a segurança e para o isolamento.
Para a solidão.
Kalila acordou cansada de uma noite sem sonhos quando Juhanah entrou em seu quarto trazendo o café da manhã. Depois de agradecer sua aia, ela fitou a bandeja com café e coalhada seca e seu apetite desapareceu.
Kalila afastou a bandeja, pulou da cama e foi até a janela. O sol já nascera e emitia longos raios de luz pelo jardim. Kalila respirou fundo o ar ainda frio da manhã e se virou para Juhanah.
— Não vou ficar trancada no palácio hoje. Vou enlouquecer se tiver que esperar uma semana aqui dentro. Quero sair.
— Nós saímos ontem — Juhanah contestou com suavidade. — O palácio tem jardins e uma piscina, Kalila. Poderia passar um dia bem agradável aqui.
A imagem de Aarif despido e molhado depois de nadar na piscina passou por sua mente e Kalila a afastou. E junto com aquela imagem veio outra, a lembrança daquela voz fria e distante ao falar com ela.
E seja o que for que poderei sentir por você, se eu me permitir, não será nada, nada comparado àquilo.
— Não — ela disse engolindo em seco. — Preciso fazer alguma coisa, ir a algum lugar... — E ela observou ao longe um conjunto de prédios que faziam parte dos domínios do palácio e sorriu. Eram as cocheiras. — Vou cavalgar — ela disse, decidida.
— Será prudente, princesa? — perguntou Juhanah. — Tendo em vista...
— Não vou fugir — Kalila a cortou. — É tarde demais para isso. De qualquer forma, Juhanah, isto aqui é uma ilha. Não tenho para onde fugir.
— Podíamos perguntar ao príncipe Aarif...
— Não. — Ela não queria outra confrontação com Aarif, as críticas que ele lhe fizera na véspera ainda estavam martelando na cabeça dela. — Não devemos incomodar o príncipe com esses assuntos — ela disse sem olhar para Juhanah. — Ele não é meu carcereiro.
— Mas ele se preocupa com seu bem-estar...
— Eu monto cavalos desde os meus 5 anos. Sei me cuidar sozinha. — Kalila sabia que estava sendo petulante, mas não tolerava a ideia de pedir permissão a Aarif para sair, de vê-lo hesitar e talvez até vetar seu pedido. — Deve ter alguém no palácio, além de Aarif, que possa providenciar um cavalo e uma sela para mim. — Ela já deixara ordens para trazerem sua égua, As Sabr, para Calista, mas sabia que isso levaria ainda alguns dias ou semanas.
— Vou ver o que posso fazer — Juhanah disse, saindo do quarto.
Levaram mais de uma hora para arranjar um criado que pudesse ir ao estábulo encontrar uma sela e um bom cavalo para montar. Kalila temia que Aarif surgisse de repente e a repreendesse por até mesmo pensar em cavalgar, considerando o que acontecera da última vez em que montara um cavalo. Mas ele não apareceu, e com o sol brilhando alto no céu azul, ela deixou o palácio e cavalgou em direção ao extenso e interminável deserto.
Cavalgar sob aquele sol e aquele céu, com o vento batendo em seu rosto e o ar fresco entrando em seus pulmões, era maravilhoso. Era incrível a sensação de liberdade.
Aarif segurava negligentemente um contrato nas mãos até deixa-lo de lado com um suspiro impaciente. Não conseguiu trabalhar aquela manhã, estava com dificuldade de se concentrar. Estava deitado, angustiado e um pouco zangado, e sabia o motivo
Kalila. Não conseguia tirá-la da cabeça. Gostou muito de passar o dia em Serapolis, sentiu-se leve e solto, e há muito tempo não sabia o que era se sentir livre, sorrir e aproveitar a vida.
E então ele se lembrou da noite anterior, do beijo roubado. Como foi doce e tentador aquele beijo. E quase que se transformou em algo mais. Ele queria arrastá-la e deitá-la nas lajotas molhadas da piscina e possuí-la ali mesmo, se enterrar no seu calor e esquecer... esquecer por alguns momentos de tudo que fizera dele o que era hoje.
Porém, mais arrasador do que a memória daquele beijo foi a honestidade nos olhos dela, o sorriso trêmulo, a lágrima em seu rosto que brilhava com o luar. A forma como seus dedos delicados tatearam o rosto e a cicatriz dele.
A cicatriz. E instintivamente Aarif levou a mão ao rosto para sentir aquela marca, que era uma lembrança do seu fracasso. Ele nunca contara a Kalila sobre aquele dia, ela não poderia saber, no entanto ela sabia.
Gostaria de poder carregar esse fardo para você. Só de desejar isso já foi uma prova da sua bondade, do seu espírito generoso. Se ela pudesse! Aarif abriu um sorriso triste. Ninguém poderia carregar seu fardo, pois a culpa era dele, a vergonha era dele, exatamente como ela falou. E por mais que tentasse se livrar disso, elas sempre voltavam para atormentar sua alma.
Aarif... ajude-me...
Este grito ficou gravado na sua mente e no seu coração. Um grito que ele não poderia jamais esquecer, que o perseguiria pelo resto da vida.
E ele não ajudou.
Aarif levantou-se de sua mesa de trabalho e saiu da sala; ainda estava muito agitado. Ao passar por um criado do palácio, ele perguntou gritando:
— Sabe onde está a princesa Kalila? — Ele nem sabia por que perguntava, não iria vê-la, ele não...
— Ela foi cavalgar, Sua Alteza — disse o criado respeitosamente.
— Cavalgar? — Aarif repetiu, incrédulo. — Ela foi cavalgar e ninguém pensou em me avisar?
— Imaginei que não teria problema — disse o criado.
Aarif acenou positivamente com a cabeça ao perceber que tinha sido controlador demais. Claro que não tinha problema Kalila poderia fazer o que bem quisesse. Era uma princesa e, em breve, se tornaria uma rainha. Ninguém ali sabia de sua tentativa de fuga e Aarif duvidava de que ela fosse tentar fugir novamente. Para onde iria?
No entanto, ele sentiu uma estranha ansiedade com a ideia de ela estar cavalgando sozinha pela ilha. Bobagem dele, Kalila era uma amazona experiente, uma mulher feita que podia tomar suas próprias decisões. Ainda assim, ele tinha medo. Sempre.
Ele se voltou para o criado que aguardava, inquieto.
— Mande selar meu cavalo — ele falou bruscamente e saiu andando pelo corredor.
O sol esquentava sua cabeça desprotegida e o vento levantava seu cabelo como uma cortina escura atrás dela. Kalila fazia o cavalo correr cada vez mais, precisando da velocidade, daquela adrenalina como se fosse uma droga.
Por algum tempo, ela queria tentar se esquecer das responsabilidades que a ameaçavam e sufocavam, só por algum tempo ela queria voltar a ser criança e correr mais do que o vento.
Surgiu uma palmeira seca caída em seu caminho, então ela enterrou os calcanhares na barriga do cavalo para obrigar o animal a ir em frente. Era simples, um salto fácil e o cavalo pulou o obstáculo sem problemas. Mas logo depois surgiu um gato selvagem por debaixo da palmeira que assustou o cavalo e o fez empinar.
Ela teria segurado firme na sela, até achou que estava, mas não estava preparada para aquilo. Por causa da pequena distração, foi pega de surpresa, ela escorregou da sela e caiu no chão.
A mente, tudo pareceu uma cena em câmara lenta: ela esta vendo o chão se aproximar cada vez mais e depois a dor aguda ao bater a cabeça em uma pedra.
Ela ficou ali deitada, tonta e com falta de ar, por alguns minutos olhando para o céu azul, mas achou que estava bem. Depois disso como se uma cortina escura fosse fechando sua mente, ela desmaiou.
Um pouco mais tarde, num estado intermediário entre dormir e acordar, ela percebeu que alguém se curvava sobre ela, que dedos delicados lhe tiravam o cabelo da testa, e uma voz baixa e segura murmurava algumas palavras. Sentiu estar sendo levantada por alguém e, em seguida, apagou de novo.
Percebeu depois que estava dentro de um carro, deitada no banco de trás, e sentiu a maciez do couro no rosto. E antes de apagar mais uma vez, ela entendeu que era Aarif quem a socorria e então relaxou.
Aarif estava ali. Ele a encontrara e cuidara dela.
— Você é bom nisso, não é mesmo? — Kalila balbuciou e ouviu ao longe que ele lhe perguntava o que tinha dito. — Sabe cuidar das pessoas — ela disse, e até para ela as palavras pareciam incompreensíveis. — Você cuidou de mim. — Então ela abriu os olhos e viu o rosto de Aarif curvado sobre ela, sua boca se mexendo, os olhos com um estranho brilho, mas logo ela se perdeu na escuridão mais uma vez.
Quando ela acordou, se viu num quarto muito claro, com uma pequena janela no alto da parede. Estava deitada em uma cama estranha, coberta por lençóis brancos e engomados. Uma cama de hospital.
Kalila tentou mexer a cabeça, mas sentiu uma dor forte. Tentou de novo e, então, viu um homem sentado perto de sua cama, com a cabeça apoiada no braço, dormindo. Aarif. Os traços de seu rosto atenuaram ao dormir e a barba do queixo cintilava. Kalila queria se esticar e tocá-lo, mas não tinha energia para isso, então se contentou em fitá-lo, embevecida pelo cabelo escuro, as sobrancelhas carrancudas e o nariz como de uma águia.
De repente, ele abriu os olhos e viu que ela o fitava, e Kalila ficou envergonhada de ter sido pega em flagrante observando-o. Um sorriso sonolento se abriu nos lábios de Aarif, e seu olhar intenso parecia envolver Kalila num casulo.
Quando Aarif se deu conta de que tinha acordado, sentou-se na poltrona e passou os dedos nos cabelos para ajeitá-los.
— Você acordou.
— Parece que sim. O que foi que aconteceu? — A voz dela parecia esganiçada e ela entendeu que sua boca estava completamente seca.
— Quer um pouco de água?
Ela sinalizou que sim, então Aarif serviu um copo da jarra que estava ao lado da sua cama e depois colocou um canudo em sua boca, num gesto simples de carinho e intimidade. Ela tomou com muita sede e depois apoiou a cabeça de volta no travesseiro.
— Como me encontrou?
— Tinha saído à sua procura — Aarif respondeu ao colocar o copo de volta na mesinha.
— Pensou que eu ia fugir de novo? — Kalila perguntou e, apesar de ter tido a ideia de provocá-lo, ela mesma percebeu o tom de mágoa em sua voz. Aarif também percebeu, e se virou para ela com um sorriso ligeiramente irónico.
— Não. Mas está sob os meus cuidados e eu queria ter certeza de que ficaria bem.
Kalila assentiu com a cabeça. Mal podia se irritar com aquilo, e, na verdade, ele salvara sua vida. Quem sabe o que teria acontecido se ela ficasse lá no deserto sozinha e inconsciente?
— Obrigada. Pela primeira vez estou feliz que você tenha este senso de responsabilidade exacerbado.
Aarif abriu um breve sorriso antes de concordar com ela.
— Eu também.
Kalila levantou uma das mãos e sentiu que havia uma atadura em sua cabeça, um curativo grosso cobrindo metade de seu crânio.
— Fiquei muito machucada? — ela perguntou a Aarif, que logo tratou de negar.
— Foi apenas uma concussão, mas os médicos querem mantê-la aqui até amanhã, para ficar em observação. Felizmente não é nada sério e deve ficar apenas uma pequena cicatriz.
Ela não se importava com o tamanho da cicatriz, mas se perguntou se Aarif achou isso. Seu semblante já retomara sua seriedade habitual, o que a entristeceu.
Há alguns instantes ele parecia tão próximo a ela. Por um momento, parecia que ele sentia por ela o mesmo que ela sentia...
Mas o que é que ela sentia? O que poderia sentir pelo homem que em breve seria o irmão de seu marido? Cansaço e desesperança a dominaram de repente e ela virou a cabeça para o outro lado.
— Obrigada — ela disse friamente. — Pode ir agora. Estou certa de que você tem muito que fazer. Não preciso de enfermeira.
Ela ficou esperando Aarif murmurar alguma coisa para depois sair. Queria que ele fosse embora, pois sofria quando estava perto dele sem que fosse do jeito como desejava, como precisava...
— Não quero ir embora — disse Aarif com voz baixa, e Kalila se virou para encará-lo e fez uma careta pela dor que o movimento causou.
Aarif parecia honestamente angustiado, o que partiu o coração dela. Ele estava admitindo uma coisa tão maravilhosa quanto terrível, e sabia bem disso.
Com um sorriso meio triste, ele se aproximou, tirou-lhe uma mecha de cabelo do rosto e deslizou os dedos por sua face.
— Não quero ir — repetiu num sussurro.
Em silêncio, ela colocou a mão sobre a dele, ainda em seu rosto, e pressionou com os dedos como ele fizera na noite anterior.
Ele fez o mesmo, e assim eles ficaram por um bom período de tempo. As sombras cresceram e atravessaram o quarto e depois anoiteceu.
No dia seguinte, ela deixou o hospital. Aarif havia passado a noite ao seu lado, sentado na poltrona, e eles se limitaram a falar trivialidades. No entanto, alguma coisa havia mudado, Kalila sabia. Algo havia mudado, ela só não sabia se era para melhor ou para pior.
Ela se sentia bem, maravilhosa. E Aarif não falava e nem agia tão diferente do que fazia antes, mas parecia melhor. Ele tomou consciência do que sentia por ela, pelo menos assim ela esperava, e isso derrubou a barreira que havia entre eles.
Porém, na verdade, nada mudara. Dentro de uma semana ela se casaria com Zakari. Afastou esse pensamento de sua mente e torceu desesperadamente para que alguma coisa mudasse, para que no final ela fosse resgatada, como num conta de fadas.
Seu cavaleiro em sua armadura reluzente, ela fantasiava. Mas sabia que o único cavaleiro que queria era Aarif.
Ele a levou de volta ao palácio naquela manhã, e ela passou o resto do dia repousando, tentando recuperar suas forças para enfrentar a celebração e os eventos que tinha pela frente.
Zakari ainda não mandara sinal de vida algum, e num momento de irritação Kalila comentou com Juhanah que ele era igual a um príncipe fantasma, que nunca aparecia.
— Um rei — Juhanah a corrigiu, achando graça. — E quando ele chegar, ya daanaya, você vai saber.
Três dias depois do acidente dela, Kalila foi até o jardim para conhecer a piscina. Ela estava instalada no meio de um jardim exuberante, cercado de pedras e uma fonte com uma pequena cachoeira que fez Kalila se imaginar no jardim do Éden e não num jardim planejado por homens. Kalila se acomodou em uma espreguiçadeira, disposta a ler o livro de Agatha Christie que Aarif lhe emprestara, mas ele ficou esquecido em suas mãos enquanto aquecia o corpo e a alma no sol quente do deserto, e acabou cochilando, embalada pelo barulho calmo e constante das águas e das palmeiras acima dela.
— Você parece estar bem melhor.
Os olhos de Kalila se abriram num instante. Não sabia há quanto tempo estava ali deitada, cochilando, mas agora estava bem acordada e entendeu que era Aarif quem estava diante dela. Ele estava usando uma calça social e uma camisa polo; estava cheiroso como se acabasse de sair do banho. Kalila, que usava um maiô muito decente para os padrões ocidentais, sentia-se exposta diante do olhar dele.
— Estou me sentindo melhor — ela disse sem graça.
Aarif ficou em silêncio por um instante e depois falou abruptamente.
— Achei que você gostaria de sair das dependências do palácio um pouco. Pensei em lhe mostrar as minas de diamantes, além de outros pontos turísticos de Calista.
Só de pensar no passeio, o coração de Kalila já disparou. Sair do palácio, e com Aarif. Era tentador, mas também perigoso.
— Sim, acho que é uma boa ideia.
— Ótimo — ele respondeu. — Podemos ir depois do almoço se quiser. — Kalila assentiu e ele saiu sem falar mais nada.
Depois disso, Kalila ficou tensa demais para permanecer esticada tomando sol na piscina, então voltou para seu quarto para tomar banho e se vestir.
Poucas horas depois, ela já comera em seu quarto, como sempre, e estava esperando no vestíbulo do palácio, usando uma blusa de algodão azul claro sem mangas e uma calça comprida folgada.
Ela ouviu umas passadas e virou-se para encontrar Aarif, com as chaves nas mãos, descendo as escadas. Ele não sorriu ao vê-la, mas se limitou a dizer:
— Que bom que está pronta.
Ele a conduziu para o lado de fora, onde estava estacionado um Jipe antigo com teto removível. Aarif abriu a porta do passageiro para ela e em poucos minutos eles já estavam saindo do palácio e das ruas estreitas e cheias de gente de Serapolis, indo em direção ao deserto descampado.
Seguiram em um silêncio amigável e Kalila pôde apreciar o calor, a brisa no rosto e a vista do deserto que se estendia ondulado até encontrar o mar azul-turquesa.
— Primeiro, vamos até o rio — disse Aarif depois de percorrer alguns quilômetros. — É onde fica a oficina de diamantes.
Kalila assentiu e tirou uma mecha de cabelo dos olhos, arrependida de não ter trazido um chapéu nem um grampo para prender o cabelo.
Aarif reparou sua aflição e sorriu.
— Estou acostumado a vê-la despenteada e acho até que gosto.
Não chegava a ser um elogio, mesmo assim provocou uma excitação deliciosa que subiu-lhe pelas veias, enchendo sua mente e seu coração de esperanças impossíveis.
Não se falaram mais até chegar ao rio, e avistaram um trecho sinuoso de gramado enlameado com alguns poucos barracões baixos, onde Kalila supôs que os diamantes fossem lapidados e polidos.
Aarif estacionou o jipe e, ao sair do carro, ela viu o local de onde eram extraídos os diamantes, uma barragem feita de pedra no rio coberta com andaimes e um sistema de drenagem.
— Os diamantes estão em locais de difícil acesso — disse Aarif para ela, segurando-a pelo braço ao conduzi-la pelo terreno acidentado. — Agora as pedras são extraídas somente por artesãos habilidosos. Existe corrupção demais na exploração do diamante.
Kalila ouvia tudo com muita atenção enquanto Aarif a levava pelo rio e depois para os barracões. Ele explicou todo o processo para ela, como os diamantes precisavam ser separados do lodo e do cascalho, e depois cuidadosamente lapidados e polidos. Ele abriu o cadeado de uma vitrine para lhe mostrar um diamante bruto que aparentemente não se diferenciava muito de um pedaço de vidro sujo, só depois de lapidado pareceria lindo, segundo Aarif, lhe garantiu.
— As vezes eu os prefiro assim mesmo — ele disse sorrindo. — Nada muito chamativo. Todo seu potencial, sua melhor parte, ainda por vir. A esperança.
Kalila entendeu perfeitamente o que ele queria dizer. Havia muito mais estímulo e esperança do que na pedra trabalhada, pronta conhecida e certamente inerte. Ela devolveu a pedra para ele.
— Entendo perfeitamente o que quer dizer.
— Estou lhe incomodando — disse ele ao trancar a vitrine novamente. — Às vezes me esqueço de que nem todos têm o mesmo interesse que eu nesse assunto.
— Não está incomodando, me interessa muito conhecer os diamantes, conhecer você. — Mas Aarif se manteve de costas, e Kalila respirou fundo e continuou. — Por que se interessou pelos diamantes?
— Alguém precisava se interessar.
— Mas você tem paixão por eles, isso está claro. — Kalila insistiu. Ele revelava essa paixão na voz e no brilho intenso dos olhos.
A mão que trancava a vitrine ficou momentaneamente parada depois ele enfiou a chave no bolso e deu de ombros ao falar.
— É importante para mim — ele respondeu cauteloso.
— O que estudou em Oxford? — Kalila perguntou, curiosa.
— Geologia.
Sua escolha era perfeitamente razoável, já que ele pretendia entrar para o ramo dos diamantes. No entanto Kalila achou que tocara em um assunto proibido. Algum assunto sobre o qual Aarif não queria falar.
— E quanto a você? O que estudou em Cambridge? Lembro-me de que seu pai mencionou um curso de história?
— Isso mesmo. Depois, comecei a fazer mestrado em História Medieval. — Ela sorriu, tímida. — Sei que não era muito útil, mas eu gostava de entender como os povos eram e viviam.
— Começou e não terminou? — Aarif perguntou.
— Teria terminado, mas...
— O casamento fora adiado tantas vezes que seu pai achou melhor trazê-la para casa.
— Exatamente.
— Então, você voltou — ele disse com olhar distante e mãos nos bolsos.
— Você não é o único a ter senso de responsabilidade.
— Não, não sou. — Ele se dirigiu para a porta. — Há um restaurante na beira da praia que tem uma vista deslumbrante. Podemos descansar por lá.
Percorreram o caminho em silêncio, pela estrada sinuosa ao longo da costa, e o sol que começava a descer tingia de dourado a superfície do mar.
O restaurante estava localizado no alto de um penhasco, com poucas mesas arrumadas no terraço e apenas um garçom, tão animado com a possibilidade de servir a família real que quase tropeçou ao trazer suco de laranja para eles e um prato de pão de gergelim recheado com passas e mel.
Enquanto comiam e bebiam, conversavam amigavelmente. Mas o silêncio logo se fez perceber, e ficou tenso devido a assuntos não discutidos, as lembranças e pensamentos.
Aarif olhava, pensativo, para o mar distante. Naquele exato instante, ele nem parecia se dar conta da presença de Kalila. Então, ela apoiou uma das mãos no braço dele e nem assim ele se deu conta do seu toque.
— No que está pensando, Aarif?
Ele se virou lentamente na direção dela, com uma expressão distante como se estivesse acordando de um sonho ou de uma lembrança.
— Pensava no mar. Parece tão calmo agora, tão bonito. Mas também pode se tornar bastante ameaçador.
E apesar do sol quente bater nos seus ombros e da brisa salgada brincar com seus cabelos, Kalila sentiu um arrepio. Não sabia que memórias perseguiam Aarif, mas entendeu que elas surgiam Tais uma vez para persegui-lo.
— Está ficando tarde — ele disse repentinamente ao virar o copo do suco num só gole. — Devemos retornar ao palácio para não deixar ninguém preocupado com nosso paradeiro.
Kalila seguiu Aarif ao sair do café, e o garçom se curvou e agradeceu respeitosamente. De volta ao carro, seguiram pela estrada em silêncio, e assim como a luz do sol desaparecia abrindo caminho para a noite, também sumira o amigável silêncio da viagem de ida, o qual ela nem sabia que apreciava.
Ela reprimiu um suspiro e se virou surpresa quando viu Aarif sair da estrada principal e pegar um desvio para a praia, faltando apenas poucos quilómetros para o palácio.
— O quê...?
— Quero lhe mostrar uma coisa — ele disse, a voz estranhamente rude, e Kalila o seguiu por um caminho acidentado de pedras. O sol se fora, deixando apenas alguns traços de cor púrpura no céu e compridas sombras na areia.
Aarif andou até a beira do mar, onde as marolas batiam na areia num ritmo cadenciado. Ficou ali em pé, olhando para o mar, com as mãos nos bolsos, enquanto Kalila esperava por ele na brisa já fria que despenteava seu cabelo e provocava arrepios em seus braços.
— Já faz algum tempo que não venho a esta praia — Aarif finalmente falou. Então se virou e, naquela meia claridade, Kalila reparou que, mesmo que não parecesse, ele sorria, e ela não ficou à vontade.
Aarif então se sentou na areia e apoiou os cotovelos nos joelhos. Kalila sentou-se ao seu lado. A areia estava fria e dura e ela ficou ali esperando, ouvindo apenas o barulho das ondas.
— As vezes, acho que toda a minha vida se resume a um só momento. Aqui. — E então ele levantou uma das mãos apontando para a praia. — Toda a minha vida tem sido refém do que ocorreu aqui.
Ele balançou a cabeça e Kalila esperou, apreensiva.
— Quando eu tinha 15 anos, meu irmão Kaliq e eu decidimos sair em uma aventura. Devíamos estar entediados — Ele fez urna pausa e Kalila chegou a duvidar de que ele fosse continuar. —. Construímos uma jangada — finalmente ele retomou a história — com toras de madeira e cordas. Não ficou muito bonita, mas funcionou bem. — Ele balançou a cabeça, perdido em seus pensamentos, e Kalila ficou sem saber o que fazer. Por que será que Aarif estava lhe contando tudo aquilo? Será que aquela aventura de criança era a mesma lembrança que o atormentava até quando dormia? Ela queria entender, mas não conseguia.
— Não sei o que poderia ter acontecido se Zafir não tivesse nos encontrado — ele disse. — Ele era meu irmão menor, tinha 6 anos de idade, e insistiu em nos acompanhar. — Kalila ficou nervosa ao reparar que ele havia dito que Zafir era seu irmão. — Eu permiti que ele fosse porque era o responsável, por ser o mais velho. Apesar de Kaliq e eu sermos gêmeos, eu nasci oito minutos antes dele, o que faz toda a diferença. Nunca esqueci que tinha a responsabilidade de cuidar dos irmãos mais novos, especialmente de Zafir, o queridinho do meu pai. Todos o adoravam. — Naquele momento, Aarif desviou o rosto, visivelmente tenso.
Kalila ergueu a mão querendo tocá-lo, querendo aliviá-lo daquela dor, mas ele recuou e ela desistiu.
— A jangada nos levou para o mar. Não sabíamos o que estávamos fazendo, e quando nos demos conta, já estávamos a uma distância de dois quilômetros da praia. Então vimos um barco e achamos que era a nossa salvação. Tiramos nossas camisas e sinalizamos para eles. O barco se aproximou e nem assim nós percebemos...
— Perceberam o quê?
— Eram contrabandistas de diamantes — disse Aarif. — Os piratas de hoje. Talvez eles nos teriam deixado em paz, mas Zafir, o pequeno Zafir, disse-lhes que nós éramos os filhos do rei de Calista e eles seriam recompensados por nos resgatarem. — Ele deu um sorriso triste. — Então, eles trocaram a recompensa pelo resgate, e nos levaram a bordo do barco deles.
— Ah, Aarif!
— Eles nos levaram para uma ilha deserta e nos amarraram como animais. Nunca vi Zafir tão desnorteado. Ele sempre vivera num ambiente de muito amor e carinho e, de repente, isso...! Aos 6 anos de idade. Aqueles homens eram cruéis, demoníacos.
Kalila balançou a cabeça, horrorizada, incapaz de imaginar o pavor que eles devem ter sentido.
— Depois de alguns dias — Aarif continuou. — Zafir conseguiu soltar as cordas que o amarravam. E, em seguida, nos soltou também. Ele foi tão corajoso! Quando os captores estavam ocupados, provavelmente bêbados, nós tentamos fugir. — Kalila estava comovida com seu relato.
— E depois? — ela perguntou baixinho, pois sabia que a história não terminava ali.
— Nós quase conseguimos — disse Aarif. — Chegamos até a jangada que eles haviam deixado na praia, talvez para fazer uma fogueira. Então... — ele tomou coragem antes de continuar. — Eles nos viram fugir e sabiam que, se fugíssemos, eles seriam mortos. Meu pai se encarregaria disso. Eles não tinham nada a perder, então começaram a atirar. Uma das balas me atingiu de raspão, mas eu caí na água. — Aarif tocou sua cicatriz do rosto, mas Kalila duvidava de que fosse um gesto consciente. — Não conseguia enxergar por causa do sangue, mas podia ouvir. E eu ouvi Kaliq entrar na água também, mas Zafir... Zafir... — Ele fez uma pausa com um pequeno estremecimento. Um minuto inteiro se passou até ele voltar a falar, num tom de sofrimento que fazia Kalila querer chorar. — Os contrabandistas nos arrastaram, Kaliq e eu, de volta para a praia e deixaram Zafir sozinho na jangada. A última vez em que o vi, ele era apenas um ponto escuro no horizonte. E eu o ouvi... eu sempre ouço sua voz me pedindo para ajudá-lo. Ele me pediu ajuda e eu falhei. Eu não fiz nada. — Ele balançou a cabeça, arrasado.
— O que aconteceu depois disso? — Kalila quis saber, pois mesmo que quisesse abraçá-lo, acariciá-lo e beijá-lo para aliviar sua dor, ela sabia que ele ainda tinha mais para contar.
— Eles nos fizeram prisioneiros, estavam furiosos e desesperados. Eles descarregaram toda a raiva em cima de nós, mas nada, nada mais parecia importar. — Kalila se lembrou das cicatrizes que vira em suas costas e sabia do que Aarif estava falando. — Meu pai pagou o resgate e nós fomos devolvidos. Os criminosos foram presos, mas depois conseguiram fugir. Porém... — ele respirou fundo antes de concluir — nunca mais vimos Zafir.
— Sinto muito, Aarif.
— Nunca falo sobre este assunto — ele contou. Naquele instante, ele virou para fitá-la. Kalila ficou apreensiva. — Ninguém gosta de lembrar desse episódio. Meu pai, e até minha madrasta, nunca mais foram os mesmos depois que perdemos Zafir. Era como se nossas vidas tivessem perdido a alegria, e nunca mais a encontraríamos.
— Deve ter sido...
— Estou lhe contando agora — Aarif cortou Kalila —, porque quero que entenda. Quando disse a meu pai que tomaria conta de Zafir, naquele dia, o fiz como um juramento, um dever sagrado; e eu falhei da pior forma possível.
— Mas não foi culpa sua...
Aarif levantou uma das mãos e o movimento a silenciou como se ele tivesse tapado sua boca.
— Eu falhei e nunca vou me esquecer disso. É um fardo que carrego até hoje e vou carregá-lo até a morte. Mas eu consigo me sentir melhor quando determino que nunca mais voltarei a falhar. Dediquei minha vida a minha família, a esta ilha, e ao negócio de diamantes para evitar que homens daquele tipo nunca saiam vitoriosos. Honro Zakari como meu irmão e meu rei, e agora que meu pai está morto, eu devo obediência a ele. — Ele fez uma pausa, e Kalila sabia que diria algo que ela não desejava ouvir. — Farei qualquer sacrifício e suportarei qualquer dor.
Kalila sentiu um nó na garganta.
— Refere-se a mim? — A voz dela saiu como um sussurro.
— Sim Kalila. Não vou mentir para você. Quando me pegou nos braços, eu quis você. Precisei de você. — Ele comprimiu os lábios e Kalila controlou-se para não chorar. — Nunca me senti tão bem como me senti naquele momento. — Ele balançou a cabeça — Talvez com o tempo eu poderia vir a amá-la. Não conheci muitas mulheres, não me permiti conhecer. Mas você foi diferente.
Kalila estava chorando e esticou uma das mãos em súplica, mas foi ignorada.
— Aarif...
— Não. Estou lhe dizendo isso agora para evitar seu sofrimento. Percebi nos últimos dias que você acredita que está apaixonada por mim, se bem que mal posso crer que você amaria um homem como eu. — Ele parou e balançou a cabeça quando Kalila tentou falar. — Eu a tratei com gentileza porque também queria estar ao seu lado, nem que fosse só para vê-la sorrir, para ver o brilho de seus olhos. Mas isso não é justo com você, pois lhe enche de esperanças. Não existe esperança para nós, Kalila. Não existe nós. Nunca poderá existir.
Os lábios de Kalila estavam secos e seu coração batia com. tanta força que parecia a ponto de explodir. Mas ela se forçou a falar.
— Porque estou noiva do seu irmão?
— Sim, claro.
— E se não estivesse?
— Não tem porque considerar esta hipótese.
Kalila sabia que não devia falar, mas estava tão desesperada e triste que falou.
— E se eu desmanchasse o noivado? Se me recusasse a casar com ele?
— Se fizesse tal coisa, então não seria a mulher que eu amo.
A mulher que eu amo. Então estava dizendo que a amava? Como poderia ficar tão agoniada com uma revelação daquelas? Kalila fechou os olhos e sentiu a mão de Aarif acariciar seu rosto. Ela se inclinou para a mão dele, precisando daquele toque, daquele consolo.
— Vamos agora, ayni. — O jeito carinhoso de falar, em árabe, escapou de sua boca e fez Kalila se sentir ainda mais carente. — Está ficando tarde e precisamos voltar ao palácio.
Kalila sabia que, ao voltar para o palácio, perderia Aarif para sempre. Mas como poderia perder algo que nunca chegou a ter?
Só que agora, com a lembrança dos dedos dele acariciando seu rosto, as palavras dele, a mulher que eu amo, ecoando em sua mente, ela se sentia como se de fato tivesse perdido algo muito precioso.
Calada, ela aceitou a ajuda dele para se levantar da areia dura e caminharam, silenciosos, em direção ao jipe.
A iluminação de Serapolis resplandecia no horizonte e em poucos minutos eles já haviam chegado ao palácio. Um criado pulou para abrir as portas do jipe e Aarif jogou as chaves do carro para ele. Com a luz do palácio iluminando a silhueta dele, Aarif se virou para Kalila com um sorriso pesaroso.
— Boa noite, princesa.
Emocionada, Kalila não conseguiu responder, e apenas observou Aarif se afastar dela.
Os dias se passavam terrivelmente nublados e infelizes. À medida que se aproximava o dia do casamento, Kalila notava algumas mudanças. Muita gente chegando, entre convidados, mais criados, irmãos e irmãs de Aarif; só faltava mesmo Zakari. Mas foi bom ele ficar longe, Kalila só tinha de agradecer.
Ela já estava sofrendo demais para pensar no casamento, que cada dia estava mais perto. Não podia evitar o enlace, e o futuro lentamente se transformava em presente.
Foi-se o tempo em que os dias eram longos e vazios no palácio; havia uma frenética atividade em Calista, que se preparava para celebrar um dos maiores eventos da década. Seu casamento.
Havia uma infinidade de jantares, festas, almoços e chás. O desfile de rostos que eram apenas borrões em sua memória. Mesmo assim, Kalila se esforçava para cumprimentar e conversar com os parentes de Aarif, mas tudo não passava de uma encenação.
Aarif se manteve distante, nunca se aproximou ou se dirigiu a ela. Para Kalila, parecia que o passado fora apenas um sonho... um maravilhoso e terrível sonho, pois ela sabia que seria atormentada por ele pelo resto de sua vida.
Dois dias antes do casamento, seu pai, rei Bahir, chegou ao palácio de helicóptero, acompanhado de seis criados, e Kalila e Aarif foram recebê-lo no heliporto do palácio. Kalila deu uma espiada em Aarif, mas ele estava de costas para ela, prestando atenção ao pouso do helicóptero.
Seu pai descia do helicóptero e ao ver o rosto familiar dele, os olhos escuros, as bochechas coradas e cabelos brancos ralos ao vento, Kalila saiu correndo para encontrá-lo.
— Papai! — ela gritou como se fosse ainda criança. — que bom vê-lo!
Bahir abraçou a filha para em seguida afastá-la e analisar sua aparência.
— Eu também estou feliz em vê-la, minha filha.
Mas Kalila viu um quê de desprazer em seus olhos, os lábios apertados, e ela se perguntou o que o deixara zangado. Será que ouvira a história de sua fuga no deserto... ou algo pior?
Aarif pigarreou antes de se curvar para cumprimentá-lo.
— Rei Bahir, estamos muito honrados.
— Devo deduzir, por sua presença, que rei Zakari ainda está em viagem de negócios?
— Infelizmente, sim. — A voz de Aarif tinha um tom impessoal e firme.
— Entendo. — Bahir assentiu. — Então quero tomar o chá no meu quarto, se for possível, príncipe Aarif. Foi um voo desagradável; detesto voar de helicóptero.
— Vou providenciar — disse Aarif.
— E a princesa vai tomar chá comigo — Bahir continuou. — Temos muito que conversar.
Pouco depois, na suíte de seu pai no andar de cima, Kalila estava em pé, nervosa, esperando que o criado entrasse com o carrinho de chá. Seu pai estava sentado junto à janela, o sol da tarde formando uma grande auréola em sua cabeça.
Ele esperou o criado sair antes de sinalizar para Kalila se sentar e servir chá para eles. Ela chegou para frente e serviu o chá com as mãos ligeiramente trémulas. Bahir a observou, calado, e Kalila evitou olhar para o pai.
— Você está bem? — ela finalmente perguntou ao lhe entregar de chá. Bahir o pegou e tomou um gole do chá com as sobrancelhas arqueadas por cima da borda do copo.
— Eu estou bem — ele disse depois de alguns segundos. — Mas eu preferia saber se você está bem.
Kalila olhou assustada para ele.
— Sim — ela gaguejou. — Estou bem.
Bahir pousou seu copo cuidadosamente sobre a mesa.
— Mas Kalila — ele falou delicadamente — você não me parece bem.
Naquele momento, Kalila se olhou no espelho acima da cômoda e se surpreendeu com sua imagem. Ela não se olhava direito há dias e passava as horas como um fantasma ou sonâmbula, só esperando o tempo passar. Se assustou ao ver seus olhos arregalados e seu rosto abatido e pálido. Olhou de volta para seu pai e viu que ele olhava para ela com muita percepção. Percepção e compaixão.
Qualquer que tenha sido a história que chegou aos ouvidos dele sobre sua fuga no deserto, ele não ficou zangado. Ele estava preocupado.
— É natural que eu esteja um pouquinho tensa — ela finalmente respondeu e se sentou em frente ao pai, forçando-se a tomar um pouco de chá. — O casamento será daqui a dois dias e...
— E você nem encontrou seu noivo ainda — Bahir terminou a frase para ela. Ele estava com um ar aborrecido que a surpreendeu. Ela achava que seu pai era quem melhor poderia compreender os compromissos de trabalho de Zakari. Bahir não esperaria que um rei fosse perder tempo para fazer a corte a sua noiva quando tinha tantos afazeres mais importantes, como encontrar diamantes e reunificar reinos.
Bahir ficou em silêncio, com o olhar triste e distante. Kalila conhecia bem seu pai e sabia que ele falaria na hora que achasse adequado. Ela estava feliz de ficar ali em silêncio e admirar o pôr do sol e todos os tons de amarelo e laranja que ele criava no céu.
— Quando sua mãe e eu arranjamos seu casamento, Kalila — finalmente Bahir resolveu falar — nós o fizemos com a melhor das intenções.
— Claro, meu pai...
Ele ergueu uma das mãos e Kalila se calou.
— Escolhemos o príncipe, digo, rei Zakari não apenas porque era de uma boa família e herdeiro de um importante principado mas porque era jovem e bonito e, pelo que sabíamos, um homem honrado. — Ele virou-se para fitá-la com um semblante de pesar e tristeza que chocou Kalila. — Filha, nós queríamos o melhor para você, para sua felicidade. Havia outras considerações, também claro. Não vou mentir para você. Essas coisas sempre são levadas em consideração quando se é rei, rainha ou princesa. — Ele abriu um sorriso triste. — Mas sua mãe e eu queríamos sua felicidade. E eu ainda quero.
— Eu sei — Kalila respondeu com um nó na garganta.
— Estou lhe dizendo isso porque estou preocupado. Não podia esperar que rei Zakari fosse deixá-la tão sozinha. Eu tinha esperança de que você, caso não se apaixonasse por ele, pelo menos criasse algum vínculo afetivo com ele antes do casamento.
— Acho que isso não será possível.
— Acho que os deveres de um monarca são importantes, até mesmo sagrados. Rei Zakari deve pensar primeiro em seu país. — Ele fez uma pausa e Kalila ouviu, achou que ouviu ele falar entretanto.
Entretanto, se Zakari tivesse ido buscá-la no lugar de Aarif. Entretanto, se estivesse aqui esperando por ela quando chegou. Se tivesse ao menos falado com ela...
Será que teria evitado sua paixão por Aarif? Há poucos dias, no máximo uma semana, ela achou que poderia se apaixonar por Aarif. A possibilidade, o maravilhoso talvez, a esperança contida num diamante bruto.
Mas a possibilidade se tornara presente, real, viva e um diamante lapidado.
Ela o amava. Isso era tão óbvio, tão devastador, que estava impressionada de não ter percebido até o momento. Agora, olhando para o todo sem enxergá-lo, ela sentiu aquele sentimento percorrer do o seu corpo, fazendo seus ossos vibrarem.
Então o amor é isso, ela pensou. É assim que nos sentimos quando sabemos por que vivemos e quem somos.
Era uma sensação tão boa, tão perfeita.
— Kalila? — Bahir a chamou carinhosamente. — Sei que é tarde demais para se arrepender, mas falo isso porque quero que você seja feliz e espero, e rezo que ainda consiga ser feliz com Zakari.
Kalila piscou seguidas vezes, estava com dificuldade para compreender o que seu pai dissera. Lentamente, ela se deu conta do significado das palavras dele e toda aquela realização se dissipou.
Por um momento entender que amava Aarif a fortaleceu e a deixou feliz. Em seguida, a realidade caiu sobre ela, inflexível e implacável. O que ela sentia por Aarif não tinha importância, porque mesmo assim ela se casaria com Zakari. Ela teria de casar, mesmo que ele não quisesse se casar com ela.
Mesmo que...
De repente, uma ideia maravilhosa lhe veio à cabeça. E se Zakari não quisesse se casar com ela? Ele tinha demonstrado tão pouco interesse por ela até o momento, e se ele aceitasse a ideia de um cancelamento?
E se ela pudesse ficar livre?
O pai dela a fitava, cheio de curiosidade e Kalila notou. Ela forçou um sorriso.
— Obrigada por suas palavras, meu pai. Também espero ser feliz.
Ela se limitou a dizer isso, mas achou que seu pai podia ouvir seus pensamentos, ler seu coração.
Felicidade que só teria com Aarif.
Ela não viu Aarif pelo resto daquele dia, ocupada com os preparativos do casamento. Ela precisou experimentar o vestido, que fora de sua mãe, para ver se seria necessário algum conserto de última hora.
Agora ela estava cercada de gente falando e rindo, e depois de passar duas semanas isolada do mundo, ela estava se sentindo sufocada e precisava de espaço e de um pouco de ar para respirar. E de Aarif. Toda vez que ela andava pelos corredores ou chegava perto de uma janela, seus olhos procuravam por ele. Queria muito vê-lo, com seus olhos escuros, sorriso tímido, a cicatriz varrendo-lhe o rosto... ela, então, se lembrou de todos os sacrifícios que ele fazia para retificar um erro que na verdade não fora dele.
Aarif, no entanto, parecia determinado a se manter distante, pois não viu nem sombra dele. Na manhã antes do casamento, ela foi conduzida à sala de banho das antigas dependências das mulheres no palácio, para se submeter à cerimônia tradicional do banho. Kalila foi levada pelas mulheres falantes e de boa vontade, mesmo achando que nada daquilo fosse importante, e ela se isolava em seus próprios pensamentos de apreensão e esperança. Precisava ver Aarif. Precisava falar com ele, explicar. Precisava lhe dizer que o amava.
O coração dela pulou e sua boca ficou seca ao pensar na revelação que faria a ele. Ela lembrou das palavras dele, tão insensível e tão soberbo naquela noite no deserto: você está achando que se apaixonou por mim.
Mas eu me apaixonei, ela pensou, desesperada, mas ainda, agarrada a uma esperança. Apaixonei-me.
A sala de banho parecia tirada das histórias do livro As Mil e uma Noites: uma banheira que, na verdade, era uma pequena piscina cheia de espuma e perfume de rosas. Kalila se deixou ser despida e conduzida até a banheira, permitiu que lavassem seu cabelo três vezes com um barro que mais parecia lama, e depois ser enxaguado com água de rosas.
O casamento seria feito no estilo ocidental, por isso as mulheres pularam a cerimônia da tintura das mãos e pés com henna, para envolvê-la num roupão de linho branco e depois levá-la de volta ao quarto.
O cheiro forte de essências, perfumes e sabão, mais as risadinhas e falatório das mulheres deixaram Kalila meio tonta e ao saírem da sala de banho, ela deu um passo atrás.
— Juhanah... deixe-as ir na frente, sem mim. Preciso descansar um pouco.
Juhanah ficou sensibilizada e balançou a cabeça positivamente.
— Só um pouquinho, então, ya daanaya. Mas você deve vir logo. Esta é a preparação para seu casamento. — E então ela a baixou o tom de voz. — Mesmo que você não queira.
Com seu senso de autoridade, Juhanah cercou as outras mulheres e as conduziu de volta ao quarto de Kalila. A princesa se recostou na pedra fria da parede e fechou os olhos, feliz pelo silêncio e solidão.
Não posso fazer isso.
Ela abriu os olhos, assustada, será que falara em voz alta? Seu corpo ainda estava molhado, seu coração disparado. No dia seguinte, se casaria com Zakari e durante a noite, ela se entregaria a ele.
O simples pensamento já fez com que se sentisse enjoada.
Não posso fazer isso.
Sua única esperança era poder falar com Aarif, mas com o passar do tempo ela sabia que as chances eram mínimas. Até se; tarde demais.
Tarde demais para ela, para Aarif, para Zakari. E tarde demais para a felicidade, para a esperança. Para o amor.
Ela tomou coragem, levantou e começou a andar, com pés pesados, em direção ao seu quarto e seu destino.
Ao sair da sala de banho e virar para o corredor, seu coração quase saiu pela boca e ela parou completamente. Ali, bem a sua frente, estava Aarif.
Ele olhou para Kalila, escandalizado e, ao mesmo tempo, cheio desejo. Seus olhos percorreram seu corpo coberto apenas por um roupão delicado, e ele podia ver a sombra entre seus seios e seu umbigo bem no centro da sua barriga plana...
Ele olhou rapidamente para ela e esforçou-se para encontrar uma palavra. Um pensamento.
Mas o que poderia dizer? Como justificar sua presença nas dependências privativas das mulheres, exceto para admitir que estivera observando, espionando, como na história de Davi com Betsabá?
Há horas ele andava pelo palácio, atormentado com pensamentos, sua alma angustiada. Não conseguia trabalhar nem pensar. Sua mente e seu coração, estavam dominados por Kalila, pelas imagens dos dois juntos naquela noite no deserto e depois, sofrendo, ele a imaginava ao lado de Zakari, como sua noiva, sua rainha. Ela é minha.
Mas não era, Aarif se dizia repetidas vezes. Ela não era sua, ela era proibida, tão proibida quanto Betsabá, e ele fora atraído por ela como Davi fora.
Se ele fosse Zakari, Aarif pensou de repente, com amargura, ele não a perderia de vista. Se fosse Zakari, ele a trataria com muito carinho para sempre. Mas ele não era.
— Aarif... — Ela falou com uma voz fina e parou, encarando-o, os dois se devorando com os olhos, um momento tão íntimo e estonteante quanto uma carícia, apesar de nenhum deles se mover ou se tocar.
Aarif abriu a boca, mas não saiu uma só palavra. E ele só pensava em segurá-la nos braços, apertá-la contra seu corpo, e sentir o cheiro dos seus cabelos, da sua pele...
— Desculpe- me — ele disse finalmente, meio rouco. Ela arregalou os olhos e ele se deu conta de quantas coisas ele precisava se desculpar. — Eu não devia estar aqui. Pensei que todas as mulheres já tinham ido embora.
— Procurava por mim? — ela quis saber, agarrando a faixa do roupão.
— Não — e seu tom era indiferente. Tinha que ser. Não havia mais tempo para ter esperança. Era tarde demais, sempre foi tarde demais. Ele engoliu todas as palavras que queria dizer, as declarações, as promessas. Não tinha sentido. — Desculpe-me — ele repetiu e recuou.
— Aarif...— Havia tanto desejo e carência naquela voz, naquela palavra. Seu nome. Tanto empenho, esperança e desespero. Se ela o chamasse mais uma vez, Aarif sabia que cederia. Perderia o controle, a tomaria nos braços e não se importaria com as consequências.
— Desculpe-me — ele voltou a dizer e sua voz fugiu, e alguma coisa dentro dele também se partiu, deixando-o em pedaços. E não havia nada que ele pudesse fazer. Balançando a cabeça, ele se virou e foi embora, apressado.
A lua era uma pálida lâmina prateada no céu quando Kalila saiu de seu quarto. Já passava da meia-noite e todos no palácio estavam dormindo.
A escuridão parecia ser algo palpável, vivo e delicado, que a envolvia em seu anonimato enquanto ela se movia furtivamente pelos corredores. Suas mãos estavam molhadas de suor e seus batimentos cardíacos tão acelerados que sentia o barulho nos ouvidos, e pareciam ecoar pelo corredor enquanto ela procurava pelo quarto de Aarif.
Ela teve aquela ideia, naquela tarde, ao ver uma criada arrumando os quartos no andar de cima. Perguntou à moça onde ficava o quarto de Aarif, pois precisava lhe devolver algo.
A criada ficou chocada com tal pergunta, mas Kalila estava tão desesperada que nem se importou. Ela estava tão séria que a criada, intimidada, acabou informando que o quarto dele era no final do corredor, na última porta à esquerda. Kalila agradeceu e foi embora.
Agora só lhe restava esperar... esperar até depois de um jantar interminável com uma dúzia de visitas desconhecidas, rodadas de brindes para Kalila e para o ainda ausente Zakari, e conversas sem sentido com dignatários visitantes. Nem se lembrava do que dissera aos diversos oficiais importantes ou reais, um após o outro, olhando desinteressadamente para o príncipe Sebastian herdeiro do trono de Aristo, e pelo que parecia, concorrente de Zakari.
Aarif se manteve distante durante toda a refeição e seus olhares não se cruzaram uma só vez. Ela evitou ficar aborrecida com isto, pois ainda tinha esperança para aquela noite.
Era tudo que tinha.
Quando o jantar finalmente terminou, ela ainda precisava esperar que Juhanah e as criadas preparassem sua cama, rindo à toa, e sorrindo e piscando para Kalila inutilmente.
— Tão romântico! Parece um conto de fadas, princesa. Não deve ver o rei até o dia do casamento... mas você sabe como ele é bonito!
Kalila não deu atenção a comentários, gracinhas, piadas, suspiros, piscadelas e acenos. Estava alheia a tudo aquilo. Só pensava em ver Aarif. Tudo que lhe restava, sua última cartada, seria encontrá-lo e ficar com ele aquela noite.
Ela manteve uma das mãos na parede para guiar seus passos ao longo do corredor escuro. E se alguém a encontrasse, o que diria? Como explicar?
Kalila rezava para ninguém aparecer.
A certa altura, ela ouviu vozes masculinas e se encostou na parede, aliviada pela escuridão. Os homens não vieram para o lado dela, foram adiante, em direção à outra ala do palácio. Kalila respirou aliviada.
Naquela escuridão, o corredor parecia não ter fim, uma sucessão de portas como os círculos do Inferno de Dante. Ela continuou tateando até finalmente chegar à última porta da esquerda. A porta de Aarif.
Ela segurou a maçaneta da porta e a virou, respirando com cuidado e rezando.
O quarto estava às escuras. As portas que se abriam para a varanda estavam totalmente abertas e ela podia escutar as cigarras cantando lá fora.
Assim que seus olhos se acostumaram com a escuridão, ela constatou que o quarto estava vazio. Os lençóis estavam desarrumados, mas não havia ninguém deitado na cama. O banheiro também estava vazio.
Kalila ficou arrasada e perdeu toda a esperança que a manteve animada a tarde toda, desde que traçara aquele plano.
Um plano maluco, sem sentido, que não tinha funcionado.
Kalila ficou ali, parada, sem querer sair, sem coragem de ir embora. Poderia esperar por Aarif, ela pensou, no entanto poderia vir alguém. E se ele não viesse para o quarto sozinho?
Ela ficou ali, nervosa, mordendo o lábio, hesitando, pois ainda tinha esperança, apesar da decepção. Sua escolha fora feita.
— Kalila! — Aarif estava ali na porta da varanda, e mesmo no escuro ela percebeu o choque e ar de reprovação dele. Mas ela estava aliviada demais para se importar.
— Aarif! — Ela entrou no quarto e fechou a porta, deixando os dois sozinhos no escuro, exceto pela luz dó luar.
— O que está fazendo aqui?
Kalila não podia deixar de admirá-lo. Aarif vestia apenas uma calça de linho, o peito forte e bronzeado estava nu. Ela queria tocá-lo para sentir sua pele na dele. Ansiava pelo contato, precisava daquela intimidade.
Aarif ficou aguardando e Kalila se encheu de coragem para falar.
— Preciso falar com você.
— Não temos nada para falar.
— Esta é nossa última chance de conversar antes do meu casamento — Kalila falou, controlada. —Acha que não temos nada para falar?
Aarif ficou calado por um bom tempo e depois deu um suspiro. Vestiu uma camisa que estava jogada na cadeira e acendeu a luz do abajur, que iluminou o quarto de decoração sóbria e simples.
— Muito bem. Se acha que ainda tem alguma coisa para dizer então fale. Mas seja breve. Você precisa sair daqui logo antes que alguém a veja.
Kalila esperava outra recepção, era o mesmo que falar para uma parede. Como poderia convencer Aarif a escutá-la? A ouvi-la? Como poderia saber o que dizer?
— Estive pensando muito nesses últimos dias — ela começou. — Acho que temos mais escolhas disponíveis do que você quer considerar.
— Você acha?
— Sim. — Ela enterrou as unhas na palma da mão, de tão nervosa. Queria tirar aquele sorriso cínico do rosto dele, arrancar sua couraça, para deixá-lo tão despido e vulnerável quanto ela.
— Hoje me dei conta de que Zakari não fez o menor esforço para me ver. — Ela fez uma pausa, sem jeito. Por que será que era tão difícil encontrar as palavras certas? — Então, cheguei à conclusão de que, assim como eu, ele não está muito interessado em nosso casamento.
Ela parou de falar e esperou que Aarif dissesse alguma coisa que a animasse. Talvez ainda exista alguma chance para nós. Mas ele não disse nada, ficou ali, calado, e com olhar de indiferença.
Kalila teve vontade de gritar. Mas por que será que estava tão abalada? Por que se expunha para ele daquela maneira, se ele parecia estar torcendo para ela ir embora?
Será que se enganara com ele?
— Talvez poderíamos conversar com Zakari — ela continuou tentando. — Ele poderia se convencer de que não precisa se casar comigo. E... — Ela não conseguiu dizer. Não poderia pedir que se casasse com ela, seria muita humilhação. — Aarif, por favor — ela sussurrou — não olhe assim para mim. Como se não se importasse comigo, quando disse exatamente o contrário. Estou tentando... — Ela teve que controlar o choro, pois sabia que, se começasse, não pararia mais. Queria gritar e se lamentar por todos os sonhos frustrados, mas não poderia fazer isso naquele momento. — Você me ama? — ela finalmente perguntou.
Mas Aarif não respondeu. Kalila notou que estava tenso, que estava lutando consigo mesmo. Era dever versus desejo. Honra versus amor.
— Ama? — ela voltou a perguntar.
— Isso não tem importância — ele disse. — Kalila, será que você não entende? Já tentei lhe dizer isso antes. O que eu sinto e o que eu quero não tem a menor importância...
— Por que não? — ela acabou gritando e quando viu Aarif olhar assustado, ela percebeu como era perigoso para ela estar ali, alguém poderia ouvi-la. — Por que não, Aarif? Por que seus sentimentos não são importantes, quem disse que não?
— Eu disse — respondeu secamente. — Já lhe disse antes, Kalila. Minha vida não me pertence desde aquele dia... não vou desonrar meu irmão por quer para mim o que é dele de direito...
— Você está falando de mim — Kalila interrompeu furiosa. — De mim, um ser humano, com coração, mente e alma. Não sou uma propriedade, nem sua nem de Zakari.
— Você concordou com este casamento.
— Sim, e vou honrar este acordo e me casar se for preciso. Mas talvez eu não precise, Aarif! Talvez Zakari ficasse aliviado, de se livrar do casamento comigo, e ainda manter a aliança entre nossos países. Não acha isso possível? Ou será que você tem medo de ter esperanças, de acreditar que merecemos isso?
Aarif não disse nada, apenas balançou a cabeça, e seu olhar era de tristeza. Kalila deu um passo à frente e estendeu as mãos, suplicando.
— Você me avisou naquela noite, quando nos tornamos uma só pessoa, que eu poderia achar que amava você. E talvez eu tenha me enganado, porque eu queria acreditar nisso. Queria ser resgatada. Mas agora eu não quero mais, Aarif, e eu conheço você o suficiente para saber que não saiu de um conto de fadas para me salvar. Quero decidir meu destino, minha identidade, e a única maneira que sei é amando você.
— Não...
— Sim. — Ela se sentia forte, graças ao amor que sentia por ele. — Amo você. Não como uma criança ou uma garota tola que acredita em conto de fadas, mas como mulher. Amo o homem que você é, um homem que acredita em honra, dever e sacrifício. Um homem que me faz rir e que gosta dos mesmos livros policias que eu gosto. — Kalila ficou feliz de ver um ligeiro sorriso nos lábios dele, então continuou. — Amo você e acredito que você me ama. Estou enganada?
O silêncio era interminável e mortificante. Kalila ficou olhando e esperando, não tinha nada a perder e era quase uma sensação boa.
— Não — Aarif disse suavemente. — Não está enganada.
Um alívio maravilhoso tomou conta dela, deixando-a tonta, e ela teve que se segurar na cadeira para não cair.
— Então, isso não pode ser ignorado. Não se encontra o amor todo dia. No entanto, você está querendo abrir mão disso sem ao menos conversar com seu irmão...
— Não percebe que está me pedindo uma coisa impossível? —Aarif a cortou. — Se contar para Zakari que a amo, Kalila, vou colocá-lo em uma situação difícil. Será pior do que a revelação que terei que fazer, a de ter roubado sua inocência.
— Ela não foi roubada...
— Mas foi! Você achando que tenha sido ou não. Eu devia ter evitado você naquela noite, mas não consegui. Eu quis você, precisei de você e deixei tudo de lado por sua causa. — Finalmente eles se olharam. — Encontrei uma paz em seus braços que nunca tive, que nunca mais vou encontrar.
— Não precisa ser assim...
— Nossas escolhas foram feitas. Kalila, contente-se em saber que a amo. Mas estará melhor ao lado de Zakari, pois tudo aquilo em que toco, destruo. Ao menos com ele, você será rainha.
— Não quero ser rainha! — A voz dela ecoou pelo quarto, ela estava furiosa demais para se importar. — Eu quero você. E não pode se punir a vida toda pelo que aconteceu. Zafir está morto e não é culpa sua...
— Pare— Ele falou baixinho, mas foi categórico.
Kalila sabia que estava entrando em um terreno muito perigoso, mas aquele era o âmago da questão, tinha que ser discutido. Não haveria futuro ou felicidade enquanto ele não se libertasse do passado.
— Não foi por culpa sua que ele morreu — ela disse carinhosamente. — Você era responsável por ele, é verdade, mas não o sequestrou. Não se feriu no rosto com um tiro e não provocou a morte dele. Você precisa superar isso.
Aarif ficou em silêncio, mas Kalila podia sentir a energia, a raiva pulsando no quarto.
— Você acha que eu não sei disso? Eu penso nisso todos os dias. Meus pais, meus irmãos e irmãs me dizem sempre a mesma coisa. Acha que adianta?
— Mas devia — Kalila sussurrou.
— Sabe com o que eu sonho? O pesadelo que você presenciou uma vez? Sonho que Zafir está me chamando, me pedindo para salvá-lo. Ele sempre volta nos meus sonhos. E sua voz vai ficando cada vez mais fraca, e de repente eu estou em baixo d'água e não consigo ouvi-lo. Pareço um homem morto.
Kalila reprimiu o choro. Estava cansada de chorar, cansada de ser triste. Ela queria ser feliz, queria que fossem felizes juntos.
— Você não vive sua vida, Aarif, pois vive esperando o julgamento final. Não se permite ser alegre, viver a vida, amar e ser feliz, e isso não está certo. Ninguém deseja isso para você. — Ele deu de ombros. Kalila sentiu uma irritação, pois depois de tanto tempo e tantas lágrimas, ele ainda estava irredutível. Determinado a se fechar em uma concha e viver uma vida que ninguém queria para ele.
— Sabe o que eu penso? Acho que você usa seu senso de dever como desculpa para não tentar. Assim é mais seguro, não é? Você não se arrisca. Está tão acostumado a isso que tem medo de viver novamente. E de amar. E este não é o comportamento de um homem honrado. Isto é próprio dos covardes.
Aarif estava bufando e Kalila se perguntou se tinha exagerado. E ela esperava que sim, pois era a única maneira de forçá-lo a reagir.
— Você não sabe nada sobre isso. Está querendo desistir da sua promessa só porque quer agarrar um pouquinho de felicidade para você. Isto, princesa, é ser muito egoísta.
— Talvez. Mas eu já lhe disse que ainda me casarei com Zakari se ele quiser. Diferentemente de você, Aarif, não estou disposta a me oferecer em sacrifício por nada. Martírio desnecessário não me cai bem.
Ele balançou a cabeça e se afastou sem oferecer-lhe nenhum argumento. Então era isso? Seu apelo não serviu de nada?
Alguns minutos de silêncio e depois Kalila voltou a falar.
— Se você não concorda com o que eu disse, não há nada a fazer. Mas pelo menos deixe-me falar com Zakari. Vou dizer a ele que não sou... inocente. Mas não direi que você foi o meu amante. Direi que foi alguém de Cambridge, há muito tempo...
— Vai mentir? — Aarif a cortou.
— Às vezes a mentira é mais útil do que a verdade. Do que adianta Zakari saber sobre nós, exceto talvez fazê-lo se sentir culpado por ter falhado em me proteger? Certamente, não vai beneficiá-lo, Aarif, nem a mim ou ao nosso casamento. Também não vai contribuir para a estabilidade da família ou do país. Servirá apenas para você sentir que se sacrificou mais uma vez para se redimir das falhas do passado. Mas nunca vai apagar o que aconteceu no passado. Só pode se perdoar e deixar que todos o perdoem.
— Você não...
— Não sei? — ela concluiu. — Mas eu sei e entendo mais do que você quer. Pensei que amasse a honra, mas agora fico achando que era apenas um disfarce, uma máscara. Uma forma de se proteger para ficar mais fácil. Pensei que me amasse, mas se isso fosse verdade, você estaria disposto a se arriscar.
— Não posso... Kalila, eu não posso. Não posso trair meu irmão, minha família e a mim mesmo. E não creio que você continuaria me amando se os traísse.
— Se fosse traição. Mas não é traição, Aarif, é honestidade.
Ele balançou a cabeça e Kalila sabia que ele estava sofrendo, ela não podia fazer nada para aliviá-lo. Ela queria ser salva do casamento com Zakari, mas agora sabia que isso não era possível. Só se pode moldar um destino, uma identidade, sua própria.
Ela deu um passo na direção dele, depois outro, até ficarem muito próximos. Ficou na ponta dos pés e passou um dedo sobre a cicatriz dele, delicadamente.
— Amo você — ela sussurrou.
Aarif pareceu engasgar e, em seguida, tomou-a nos braços e a beijou avidamente, como se nunca mais fosse soltá-la, mesmo que soubessem que seria a última vez que se tocavam.
Com as mãos emaranhadas nos seus cabelos, ele a puxou, seu corpo pressionado em cada pedaço dele, mesmo assim ele a queria mais perto, e a beijava com uma urgência e uma paixão que deixaram Kalila sem ar, mas querendo mais.
Ela o beijava com todo o amor e emoção que sentia e quando parecia que aquilo duraria para sempre, ela recuou, antes que Aarif a rejeitasse, porque ela sabia que ele o faria.
—Adeus — ela sussurrou baixinho e depois saiu para o corredor, desaparecendo na escuridão.
Aarif estava acordado quando o dia amanheceu. Não dormiu a maior parte da noite, ou até o dia começar a clarear e ele cochilar, e mais uma vez ter o mesmo pesadelo de sempre.
Aarif... Aarif... ajude-me...
Aarif se debatia entre os lençóis, com a voz de Zafir o assombrando como sempre fazia, em uma súplica interminável e frustrada.
Aarif...
Ele gemeu alto e se sentiu debaixo d'água, com a boca e os pulmões cheios de água salgada...
Aarif...
Mas daquela vez não ouviu choro, nem aflição para respirar. Apenas uma voz calma a delicada. Complacente. Aarif veio até a superfície e viu que o mar estava calmo.
Deitado em sua cama, ele sentiu o sonho retroceder de sua consciência como uma onda na praia, recuando lentamente até não restar mais nada, só silêncio e paz.
Zafir se fora. Ele não chorava mais, não gritava por socorro e Aarif soube que não ouviria mais a voz desesperada do irmão.
Era uma bênção acompanhada de pesar, e Aarif sentiu um certo alívio. O sonho se fora, e ele não tinha mais medo.
Aarif abriu os olhos para ver os primeiros traços de cor desenhados no céu, então respirou fundo.
Estava terminado.
Aarif jogou as pernas para o lado da cama e foi até a janela. Lá fora o deserto tremeluzia na luz da manhã e o ar estava fresco e calmo.
Aquele era o dia do casamento de Kalila. Ele a imaginou em eu quarto, deitada na cama: será que também tivera insónia como ele? Será que tivera pesadelos?
No entanto, fora ela a responsável pelo fim dos seus pesadelos Aarif se sentia em paz consigo mesmo, pela primeira vez em vinte anos. Ele fora perdoado.
Aquele era o presente de Kalila para ele.
E qual seria seu presente para ela?
Pensei que você me amasse, mas se me amasse de verdade, você se arriscaria.
Se ele a amasse... claro que ele a amava. Amava seu humor, sua honestidade e sua honradez. Amava o jeito como os olhos dela refletiam todos os seus pensamentos, como se fossem o espelho de sua alma. Ele a amava com todo seu ser, coração, mente, corpo e alma. E então ele compreendeu que Kalila estava certa, não podia jogar tudo isso fora.
Ele precisava se arriscar.
Kalila acordou antes que o dia amanhecesse e também viu os primeiros sinais de cor tingindo o céu. Seu corpo doía e seus olhos estavam secos e arranhavam, como se tivessem com areia, pois ela mal dormira naquela noite.
Mesmo deitada na cama, ela ouvia a movimentação no palácio, o canto dos pássaros no jardim e o assobio de um criado no pátio.
Era o dia do seu casamento. Estranho, ela pensou, pois não parecia afetá-la mais. Sentia-se lerda, pesada e inerte. A vida parecia ter sido drenada dela na noite anterior, quando Aarif a deixara ir embora.
Será que ela estava iludida com ele? Será que acreditara que Aarif iria confrontar Zakari, insistir em se casar com ela? A boca de Kalila formou um sorriso torto. Era incrível, mas ela se iludira.
Aarif não a amava, ou pelo menos não o suficiente. E isto fazia toda a diferença.
Ainda que, naquele momento, não importasse mais. Precisava pensar em seu casamento e na vida que teria como rainha de Calista, a noiva do rei Zakari.
Alguém bateu à porta e, antes que ela dissesse qualquer coisa, a cabeça de Juhanah surgiu na fresta da porta.
— Acordou cedo — Kalila disse tentando sorrir, sem conseguir.
— E você também. Hoje teremos um dia cheio.
— É verdade. — Kalila parecia desanimada, mas sabia que podia ser franca com Juhanah. Mais tarde precisaria de energia para bancar a esposa amorosa e feliz.
— Kalila. — Juhanah sentou-se na cama e colocou sua mão carinhosa sobre o braço dela. — Você não deve se torturar dessa forma.
— Não posso evitar, Juhanah, não quero me casar com ele.
— Não estou surpresa. Mas você nem o viu ainda! Ele não a cortejou, não lhe deu flores ou joias, não enviou uma carta ou mensagem.
— Mas isso não faria diferença.
— Não? Acha mesmo que não? — Juhanah olhou para ela, espantada. — Se soubesse que seu noivo estava aflito para vê-la, para deitar-se com você, então não teria tentado chamar a atenção de Aarif.
— Eu sei o que quer dizer — disse Kalila, sendo honesta.
— Mas não foi bem assim. Nunca pensei que fosse me apaixonar por Aarif. Ele parecia não ter nenhum atrativo no início. E mesmo que Zakari estivesse aqui, se dedicando a mim, isso aconteceria. — Ela se lembrou das palavras de Aarif: está escrito. E talvez estivesse mesmo. — Não pude evitá-lo, Juhanah, mesmo que tentasse, o que confesso que não fiz.
Juhanah a observava, quieta e preocupada.
— Bem agora tudo terminou. Hoje você será uma noiva, uma esposa, e não existe mais espaço para Aarif. — Havia um certo tom de censura no discurso de Juhanah que fez Kalila corar. E se a aia soubesse da verdade sobre aquela noite no deserto? Ou será que já adivinhara?
— Sei disso, Juhanah. Duvido que eu e Aarif voltemos a nos falar um dia. — Como ficaria a relação deles? Como sobreviveria ao vê-lo todos os dias, fingindo que era apenas seu cunhado? Como ele a veria como esposa de Zakari, segurando os filhos de Zakari, quando os únicos filhos que ela queria eram...?
Kalila sufocou um grito ao se dar conta do peso da decisão de Aarif na noite anterior. Ele a exilou de sua vida, forçou-a a uma prisão de infelicidade da qual nunca escaparia.
— Kalila — Juhanah disse, apertando o braço dela delicadamente. — Deve esquecê-lo. Seu futuro é ao lado de Zakari e você ainda pode amá-lo como uma esposa deve fazer.
Aquela ideia parecia uma maldição, no entanto Kalila sabia que Juhanah tinha razão. Zakari era negligente, mas ela tentaria ser uma boa esposa para ele. Era sua única esperança.
— Você tem razão, Juhanah, mas é muito difícil neste momento.
— Claro que é — Juhanah concordou. — Vou buscar seu café da manhã e já volto. Tente se compor, ya daanaya, pois logo as outras mulheres estarão chegando, e você terá companhia o dia todo.
E Juhanah tinha razão, pois logo depois do café da manhã, seu quarto foi invadido por um bando de mulheres, criadas, empregadas, parentes e visitas que queriam ajudar nos preparativos. Kalila se sentia uma espectadora, um fantasma, e se deixou ser arrumada com o vestido de noiva de sua mãe, que escorregou com tanta facilidade pelo seu corpo que ela achou que tinha emagrecido. Será? Deixou que frisassem seu cabelo em cachos e que pintassem seu rosto. Para completar, a enfeitaram com brincos de pérolas e um magnífico diamante de Calista em seu pescoço.
O sol já estava alto, o pátio do palácio cheio de gente que chegava em luxuosos carros pretos e conversíveis esportivos para assistir ao casamento da década.
Faltava menos de uma hora para o enlace e Zakari ainda não havia chegado.
Kalila forçou-se a comer o almoço, apesar de toda a tensão que passava. Sentia-se esquisita e tolhida em seu vestido de casamento, estranhando os metros e metros de cetim bordado em pérolas e a travessa do véu espetando sua cabeça. Estava desconfortável e com calor, e queria encontrar algum tipo de alegria ou esperança para conseguir esperar passar o resto do dia.
— Venha, estão esperando por você lá embaixo — disse Juhanah. Finalmente seu quarto estava vazio e Kalila estava sozinha, afortunadamente sozinha. — Precisa estar preparada.
Kalila engoliu em seco. Chegou a hora. Hora de enfrentar seu destino, seu dever.
— O rei Zakari já chegou? — ela perguntou.
Juhanah deu de ombros, mas logo Kalila teve a resposta à sua pergunta ao ouvir o barulho ensurdecedor de um helicóptero voando acima do palácio. Ela se aproximou da janela e viu o helicóptero com a insígnia da família real de Calista descer no heliporto. Era Zakari, ela sabia, e logo ela o veria...
Mas, em seguida, ela viu uma outra figura indo em direção ao helicóptero, uma figura familiar e amada: Aarif. Ele foi ao encontro de Zakari e logo Kalila entendeu que ele contaria tudo ao irmão. Ele não conseguiria deixar de falar a verdade.
Kalila fechou os olhos, pois não queria nem imaginar o resultado daquele encontro.
— Venha, princesa — Juhanah a afastava da janela. — Não há nada para ser visto. Verá seu marido ao entrar no salão, como deve ser.
Kalila assentiu e se deixou levar. Seu corpo e sua mente estavam entorpecidos, o que era uma bênção, enquanto Juhanah a conduzia pelos corredores do palácio até uma sala onde Kalila nunca estivera antes.
— Espere aqui até o momento de entrar — disse Juhanah. — Um criado vai bater na porta quando for a hora.
Kalila balançou a cabeça, concordando. A cerimônia de casamento seria realizada no salão nobre do palácio, um salão pomposo com colunas de mármore e afrescos no teto. Ela vira os criados arrumando as cadeiras em filas, várias filas.
Era uma tradição, emprestada dos gregos, que o noivo trouxesse o buque para a noiva, e Kalila se perguntou se Zakari se lembraria de suas flores. Mas claro que não precisaria. Alguém se encarregaria de lhe entregar um buque de rosas ou de outra flor qualquer, e ele o entregaria a ela com um sorriso, como se ele mesmo tivesse colhido as flores...
Tudo seria uma bela encenação.
Os minutos passavam lentamente. Juhanah permanecia junto à porta, empertigada e séria. Kalila se sentiu aliviada por estarem apenas elas duas ali. Ela não aguentava mais aquela agitação em torno dela. Tudo era feito para divertir, ela sabia disso, mas já estava enjoada daquilo.
— Por que está demorando tanto assim? — ela reclamou depois de se passarem quinze minutos de espera. A cerimónia já estava atrasada e ela preferia que já tivesse terminado.
— Não entendo — Juhanah disse. Ela abriu a porta e espiou no salão. — Não vejo ninguém...
— Então eu vou entrar — decidiu Kalila. Ela já estava ansiosa com aquela ociosidade, aquela espera interminável.
— Não! Você não pode ser vista.
— Não me importa...
— É importante se comportar com propriedade, Kalila — Juhanah disse.
— Eu irei.
A aia saiu para averiguar e Kalila suspirou, irrequieta, andando de um lado para outro, como um animal enjaulado querendo a liberdade.
Ela se viu refletida no espelho e parou para olhar. Seu rosto estava pálido sob a maquiagem e seus olhos estavam arregalados Mas o vestido estava lindo, o vestido de sua mãe, um traje feito para uma mulher apaixonada.
E eu conheci o amor, Kalila se deu conta, surpresa. Ela sabia como era amar e ser amada, por pouco tempo, mas fora um presente maravilhoso. Uma bênção. Ela se lembraria daquilo pelo resto de sua vida, sabendo que Aarif a amou um dia.
Ela teria que se contentar com isso. E jurou, se tudo corresse bem no dia de hoje naquele dia, que ela se contentaria com isso.
Juhanah voltou, muito nervosa.
— Não sei o que está acontecendo. Parece que vai haver um atraso...
— Atraso? — Kalila repetiu apavorada. — Mas por quê?
Juhanah sacudiu a cabeça.
— Eu não sei. Seu pai, rei Bahir, se retirou do salão para atender um chamado. Talvez rei Zakari queira discutir...
— Não. — Kalila pressionou os lábios, preocupada. Será que Aarif contara a verdade e Zakari se enfurecera? Será que ela passaria vergonha na frente de todos, e não apenas ela, mas Aarif também? O coração dela estava apertado por ele, pois Aarif já sofrera tanto na vida.
No entanto, se Zakari se recusasse a dar prosseguimento ao casamento, isso poderia significar que ela estava livre. Mas do que adiantava sua liberdade sem Aarif?
No momento em que estava distraída em seus pensamentos, alguém bateu na porta e Juhanah conversou rapidamente com o criado e voltou.
— Está na hora de entrar.
Estava na hora. Ela tivera tanto tempo, mas ele não existia mais. Só lhe restavam alguns minutos, ou segundos, antes de ela se encontrar com Zakari, sem nunca ter falado com ele, e empenhar sua vida. Jurar obediência.
Kalila desfilou pelo corredor do palácio, ouvindo seu vestido arrastar no chão de pedra e seu coração bater acelerado. Suas mãos estavam frias e úmidas, e ela se segurou para não limpá-las na ampla saia do vestido.
Na frente dela, o salão nobre se aproximava com suas enormes portas escancaradas e enfeitadas com lírios.
Kalila caminhou até se colocar no portal do salão e, então, viu o mar de rostos se virarem para ela com grande expectativa. Seus olhos percorreram todas as fileiras de convidados até chegarem a um homem, em pé, no fim do corredor. Alto, de ombros largos, cabelo curto e escuro, igual ao de Aarif, de costas para ela.
Kalila engoliu em seco e sentiu Juhanah lhe empurrar por trás. Suas pernas estavam bambas e a visão turva.
Pense em Aarif. Pense no seu amor.
Ela ia conseguir.
Ela precisava conseguir.
Então, lentamente, ela começou a caminhar. Um pé, depois o outro. A multidão de convidados se calara, e Kalila via rostos sorrindo para ela. Tentou sorrir de volta, mas seus lábios tremiam. Estava tão perto de chorar, sentia em suas pálpebras, na garganta...
Mas ela engoliu o choro e foi em frente.
O corredor era interminável. O barulho que suas anáguas faziam ao caminhar ecoava alto em seus ouvidos. Bem que Zakari podia virar de frente para ela, para que visse a expressão de seu rosto. Mas ela nem estava certa se queria. Talvez fosse pior.
Mais um passo, depois outro, estava quase chegando lá.
Finalmente, ele se virou, e Kalila quase tropeçou no salão, onde inúmeros convidados pareciam dançar diante de seus olhos, pois não era Zakari que estava ali.
Era Aarif.
Kalila tinha uma leve noção dos murmúrios vindos da multidão, mas não era nada comparado ao choque que fazia seu corpo todo vibrar. Ela ficou ali, parada, como se tivesse criado raízes no chão, incapaz de entender o que estava acontecendo...
Aarif estava tão perto que podia tocá-lo, então ele estendeu a mão e a segurou pelo braço, firmando-a, trazendo-a para perto dele.
Quando ela chegou bem perto, de forma que apenas ela o ouvisse, ele sussurrou:
— Você ainda me quer?
Kalila olhou para ele, espantada, e balançou a cabeça positivamente, de forma bem suave
— Kalila? — Aarif voltou a perguntar, sua voz ainda baixa. E então ela ouviu o que sempre quis.
— Amo você.
Ele sorriu, e Kalila viu lágrimas em seus olhos.
— Amo você mais do que tudo na vida.
Aarif entregou-lhe um buque de flores e Kalila o segurou automaticamente. Só depois ela olhou para o buquê e viu que era feito de delicados lírios. Seus favoritos, como contou para Aarif, e ele havia se lembrado.
Alguém pigarreou e Kalila percebeu que havia um homem ao lado de Aarif, também alto e de ombros largos, sorrindo discretamente. Era Zakari.
E ela sorriu de volta, sentindo-se meio confusa, mas absurdamente feliz e então a cerimônia começou.
Kalila quase não entendeu o que foi dito ali. Sua mente ainda estava tonta com a presença de Aarif e a constatação de que estava se casando com ele.
Só quando a cerimônia terminou e que eles estavam passando juntos pelo corredor, foi que ela compreendeu que era real. Ele era real.
E, depois de descerem o corredor, ela se virou para ele, ofegante, e perguntou:
— Diga-me...
— Depois. — Aarif a puxou e a beijou, um beijo sem segredo, sem vergonha, só de amor, tão puro quanto os melhores diamantes.
Kalila se entregou ao beijo e ao amor que fluía entre eles e dentro de suas veias, que borbulhavam de alegria.
Quando se afastou do beijo, rindo, seu cabelo já se desmanchando, ela quis saber.
— Conte-me, como foi que você trocou de lugar com seu irmão.
— Ficou feliz?
— Claro que fiquei.
Aarif riu, e foi um som que Kalila adorou ouvir. Ela não o ouvira muitas vezes e muito menos com tanta tranquilidade e felicidade.
Aarif a levou para longe daquela multidão de convidados, para uma sala vazia e calma.
Ele ficou sério e seu sorriso se desfez.
— Na noite passada, eu não conseguia dormir pensando em tudo que você me falara. Entre acusações e julgamentos, era tudo verdade.
— Aarif... — Kalila começou, mas ele levantou a mão.
— Espere. Deixe-me falar o que deveria ter dito ontem para você, e ambos teríamos conseguido dormir bem. Você estava certa quando disse que eu estava me culpando pela morte de Zafir até hoje. Nos últimos 21 anos, fiz de tudo para tentar me redimir pela morte dele. Amor e felicidade eram coisas com as quais eu não podia sonhar. Mas me acomodei nessa situação, sem riscos e perigos. E tudo que vi ao amá-la era que estava traindo meu irmão. E a noite que passamos juntos foi uma traição ao rei. Na noite passada, eu percebi que, se deixasse você se casar com Zakari, seria uma nova traição. Estaria me traindo, traindo você e tudo que vivemos.
— Então o que disse a Zakari?
— Contei a ele o que aconteceu entre nós e o quanto amava você. Pedi seu perdão e disse que queria me casar com você.
— E ele não ficou surpreso?
— Sim, mas ficou feliz por mim. Meu irmão é um bom homem. Disse-lhe que se quisesse se casar com você mesmo assim, eu seria obrigado a aceitar. Creio que você deixaria de me amar se eu não fizesse isso.
— Tem razão. Eu sinto o mesmo.
— Mas também lhe disse que nos amávamos e que eu faria de tudo para fazê-la feliz e honrar tanto Calista quanto Zaraq.
— E como ele reagiu? — Kalila não podia imaginar o que dissera o rei.
— Ele ficou chocado, na verdade. Mas depois riu, e me disse que tinha certeza do meu amor, pois nunca me vira tão feliz assim. E quem era ele para atrapalhar um amor como este?
— Então, realmente, é um homem bom.
— Ele é sim. —Aarif concordou. — E seu pai também. Zakari o chamou para conversar e ele não parecia perturbado e nem muito surpreso. Ele prontamente concordou, dizendo que a aliança entre os nossos países seria mantida.
— Ele disse que queria a minha felicidade.
— E será que ele conseguiu? — Aarif perguntou, pegando-lhe a mão e beijando-lhe os dedos. — Está feliz com este seu marido lento, que não compreendeu sua natureza até sua própria mulher lhe dizer?
— Estou muito feliz — Kalila murmurou e Aarif a beijou novamente.
Alguém bateu na porta e Kalila ouviu uma voz dizendo:
— Agora chega! Todos os convidados os esperam para a recepção!
Rindo, Aarif a conduziu daquela sala para outro salão do palácio, onde os convidados se serviam de champanha.
Ao entrarem no salão da recepção, todos bateram palmas e Kalila corou, envergonhada. Porém, ela admitia que era um fato pouco comum um noivo ser trocado por outro no dia do casamento. Mas estava alegre demais para ficar chocada e, pelos semblantes das pessoas, todos torciam pela felicidade do casal.
Depois de uma serie de brindes, Zakari se aproximou do casal com um riso irônico.
— Posso cumprimentar a noiva? — ele perguntou, curvando-se ligeiramente diante deles.
— Sim, claro. Obrigada — Kalila murmurou e depois viu que era tão bonito e charmoso quanto a imagem que ela guardara dele, na lembrança de menina. No entanto, ele não era Aarif.
— Kalila; você deve ser uma mulher realmente extraordinária para ter feito meu irmão, finalmente, cair em si. Nunca o vi tão livre de inquietações, tão feliz.
— Ela é maravilhosa — Aarif confirmou, colocando o braço em torno da cintura dela, puxando-a para ele. — Sinto-me abençoado.
— Espero ter essa mesma sorte um dia — disse Zakari, para, em seguida, acrescentar com um sorriso malicioso. — Mas parece que ainda não foi desta vez. Meu irmão, posso lhe falar antes que se retire com sua esposa? — Zakari indagou e, com um ligeiro aceno de cabeça, Kalila os viu se retirarem do salão.
— Reitero o que já lhe disse — Zakari falou em voz baixa, sua mão pesada no ombro de Aarif. — Estou feliz e abençoo a união de vocês.
— Obrigado — disse Aarif transbordando de felicidade com a bênção do irmão. — Você é um homem muito bom, Zakari.
— Você também é, meu irmão — devolveu Zakari — Embora você nem sempre pensasse assim. — Aarif balançou a cabeça, tomado de emoção, e ficou agradecido quando Zakari mudou de assunto e passou a falar de negócios.
— Felizmente os acontecimentos tomaram outro rumo, pois precisarei partir novamente esta noite. Corre um boato de que o rei Aegeus teve um caso com uma empregada do palácio, há muitos anos, mas talvez tenhamos novidades por aí.
— Uma pista do diamante? — Aarif perguntou e viu Zakari acenar concordando.
— Isso mesmo. Vou encontrar esse diamante, Aarif. Haja o que houver. — Aarif ouviu calado e assentiu. Ele nunca entendera o que levava seu irmão a perseguir aquele diamante com tanta determinação, mesmo assim ele aceitava. Cada um tinha suas próprias lembranças, assombrações e fantasmas.
Mas, graças a Kalila, ele havia se livrado de suas perseguições
— Que Deus o acompanhe na sua jornada —-ele disse, e os dois irmãos se abraçaram.
— Agora, aconselho você a fugir com sua noiva enquanto é tempo. Caso contrário, vai ficar se embebedando com os convidados, e isso não é maneira de passar sua noite de núpcias.
— De forma alguma — Aarif sorriu.
E logo que se despediu do irmão, ele voltou para Kalila.
A princesa sentiu a boca seca, de repente, e se sentiu um pouco tonta. Queria apenas se afastar dali e ficar sozinha com Aarif porém agora ela estava ficando estranhamente nervosa.
— Venha — Aarif sussurrou enquanto a levava para longe da multidão. Ele a conduziu, não para seu quarto, mas para outro quarto, em outra ala, separada do resto do palácio.
— Esta é a suíte nupcial de Calista — ele disse ao abrir a porta.
Kalila entrou e se admirou com o quarto enorme. Havia uma cama com dossel enfeitada com uma pilha de travesseiros e uma grande janela aberta para a noite. Alguém estivera ali recentemente e acendera as velas, deixando o quarto tomado por uma iluminação trêmula e delicada. Havia também uma garrafa de champanha dentro de um balde com gelo e duas taças esperando para serem preenchidas.
Parecia uma fantasia ou conta de fadas, algo que ela poderia ter sonhado quando era criança.
No entanto, era real. O conto de fadas era real.
— É um pouquinho diferente daquela barraca no deserto — ela disse sorrindo e Aarif a puxou para seus braços.
— É... e não sei qual delas prefiro.
— Essa pelo menos é mais confortável — Kalila brincou e Aarif a pegou pelo queixo e suspendeu-lhe o rosto.
— Ayni, está com medo?
— Com medo não, apenas um pouco insegura. É difícil acreditar que seja verdade, que seja real. Acreditar que o que estamos fazendo é a coisa certa.
— É um milagre, não é mesmo? Não existe vergonha, medo ou segredo. Apenas nós dois e o nosso amor.
Ele a abraçou e beijou, e Kalila não precisou mais chorar. Aarif a amava, e ela o amava também. Não era um conto de fadas, mas era bem melhor.
Kalila encontrou o amor, e eles dois se encontraram. E, sorrindo, sob as sombras vacilantes das velas, Kalila conduziu Aarif para o leito nupcial.
Kate Hewitt
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