16.
O LADO JAMAICANO
Eram duas horas da madrugada. Bond tirou o carro de junto da amurada e atravessou a cidade até pegar a 4th Street, a rodovia para Tampa.
Seguiu despreocupado pelas quatro pistas cimentadas da rodovia, atravessando o infindável corredor polonês de motéis, campings e lojas de beira de estrada, que vendiam mobília de praia e gnomos de concreto.
Parou no Gulf Winds Bar and Snacks e pediu um Old Grandad duplo com gelo. Enquanto o barman o servia, foi ao banheiro se limpar. As ataduras na mão esquerda estavam cobertas de sujeira e a mão latejava dolorosamente. A tala quebrara na barriga do Ladrão. Não havia nada que ele pudesse fazer. Os olhos estavam vermelhos de tensão e falta de sono. Foi até o bar, bebeu o Bourbon e pediu outro. O barman parecia um desses universitários que custeavam as próprias férias trabalhando duro. Estava a fim de conversar, mas em Bond não restara nenhuma vontade de falar. Ficou sentado, olhando o copo, pensando em Leiter e no Ladrão, e ouvindo o grunhido repugnante do tubarão devorando a presa.
Pagou, saiu e atravessou de novo a Gandy Bridge, com o ar fresco da baía lhe batendo no rosto. No final da ponte, virou à esquerda em direção ao aeroporto e parou no primeiro motel que parecia aberto.
O casal de proprietários de meia-idade ouvia um programa cubano de rumbas na madrugada, com uma garrafa de Rye entre eles. Bond contou uma história sobre um pneu furado entre Sarasota e Silver Springs. Não estavam interessados. Queriam apenas os seus dez dólares. Bond levou o carro até o quarto 5, o sujeito abriu a porta e acendeu as luzes. Havia uma cama de casal, um banheiro com chuveiro e duas cadeiras. O branco e o azul davam o tom nas paredes. Parecia limpo e Bond colocou a sacola no chão com um sentimento de gratidão, ao se despedir do dia. Despiu-se, jogou as roupas sem dobrar em uma cadeira. Em seguida tomou uma rápida chuveirada, escovou os dentes, gargarejou com um dentifrício forte e entrou na cama.
Mergulhou logo em um sono tranquilo. Era a primeira noite, desde que chegara à América, em que não se sentia ameaçado por uma nova batalha contra o destino na manhã seguinte.
Acordou ao meio-dia e caminhou pela estrada até uma cafeteria, onde o cozinheiro lhe preparou no balcão um delicioso sanduíche de três andares, que ele comeu enquanto tomava café. Em seguida, voltou ao quarto e escreveu um relatório minucioso ao FBI em Tampa. Omitiu todas as referências ao ouro nos tanques de peixes venenosos, com medo de que Big Man encerrasse os negócios na Jamaica. Eles ainda precisavam ser investigados. Bond sabia que os danos que ele provocara na máquina de Big Man na América não mudavam nada o objetivo principal de sua missão — a descoberta da fonte do ouro, sua captura e a destruição, se possível, do próprio Mr. Big.
Foi de carro até o aeroporto e pegou o quadrimotor prateado, faltando apenas poucos minutos para a partida. Deixou o carro de Leiter no estacionamento, conforme dissera no seu relatório ao FBI. Pensou que fora algo desnecessário, quando avistou um sujeito vestindo uma capa esdrúxula, à toa em uma loja de lembranças. As capas de chuva pareciam ser praticamente o uniforme do FBI. Bond estava certo de que queriam ter certeza de que ele pegaria o avião. Ficariam satisfeitos de vê-lo pelas costas. Por onde passara na América, deixara um rastro de cadáveres. Antes de embarcar no avião, ligou para o hospital em St. Petersburg. Arrependeu-se. Leiter ainda estava inconsciente e não tinham prognósticos. Sim, ligariam de volta quando tivessem alguma notícia definitiva.
Eram cinco da tarde quando o avião circulou sobre Tampa Bay, rumo ao leste. O sol estava baixo no horizonte. Um grande jato vindo de Pensacola passou ventando, bem a bombordo, deixando quatro rastros de vapor pairando quase imóveis no ar parado. Em breve o voo de reconhecimento terminaria e ele voltaria para pousar na costa do Golfo, cheia de idosos com camisetas estampadas. Bond se alegrava de estar a caminho das doces encostas verdes do litoral da Jamaica, deixando para trás o grande e rijo continente de Eldollarado.
O avião avançava, atravessando a cintura da Flórida, os hectares de floresta e de mangue sem nenhum sinal de habitantes humanos, com suas luzes da asa piscando, verdes e vermelhas, na escuridão que chegava. Em breve sobrevoavam Miami e as monstruosas arapucas para otários da costa oriental, cujas artérias brilhavam, entupidas de néon. Longe, a bombordo, a rodovia estadual nº 1 sumia subindo o litoral, uma fita dourada de motéis, postos de gasolina e barracas de suco de frutas, passando por Palm Beach, Daytona e Jacksonville, a quatrocentos e cinquenta quilômetros. Bond pensou no café da manhã que tomara em Jacksonville, por volta de três dias antes, e em tudo o que acontecera depois. Dentro em breve, após uma curta parada em Nassau, sobrevoaria Cuba, talvez sobre o esconderijo em que Mr. Big ocultara Solitaire. Ela ouviria o barulho do avião e talvez sua intuição a fizesse olhar para cima e sentir, por um instante, que ele estava próximo.
Bond ficou pensando se jamais se encontrariam de novo para acabar o que haviam começado. Mas isso teria de vir mais tarde, quando seu trabalho estivesse terminado — o prêmio de um itinerário perigoso que começara três semanas antes, em meio ao nevoeiro de Londres.
Depois de um coquetel e um jantar cedo, chegaram a Nassau e passaram meia hora na ilha mais rica do mundo, aquela faixa arenosa onde milhões e milhões de libras esterlinas são enterradas com grande susto nas mesas de canastra, e onde bangalôs, cercados de uma parede fina de pinheiros e casuarinas, trocam de mãos por cinquenta mil libras.
Deixaram para trás a escala rápida na ilha de platina, e em breve sobrevoavam as madrepérolas cintilantes das luzes de Havana, tão diferentes, em seus modestos tons pastel, das berrantes cores primárias das cidades americanas à noite.
Voavam a cinco mil metros quando, logo depois de passar por Cuba, encontraram uma daquelas tempestades tropicais que de repente fazem com que as aeronaves se transformem, de confortáveis salas de estar, em armadilhas mortíferas sacolejantes. O grande avião cambaleou e deu um mergulho, com as hélices ora roncando no vácuo, ora mordendo com força os paredões compactos de ar. O cilindro esguio de metal estremecia e balançava. A louça se espatifava na copa, e a chuva forte martelava as vidraças.
Bond agarrou os braços da poltrona, provocando dor na mão esquerda, praguejando baixinho consigo mesmo.
Olhou para as prateleiras das revistas e pensou: não serão de muita utilidade quando o aço acusar fadiga, a cinco mil metros de altitude, nem a água de colônia no banheiro, as refeições personalizadas, o barbeador gratuito, a “orquídea para sua senhora” agora trêmula na geladeira. Muito menos os cintos de segurança e os coletes salva-vidas, com o apito que realmente apita, segundo a demonstração da aeromoça, nem a luz de resgate engraçadinha que emite um brilho vermelho.
Não. Quando as tensões se tornam excessivas no metal fatigado, quando o mecânico de manutenção que testa o equipamento de descongelamento está apaixonado e faz mal o serviço, lá em Londres, Idlewild, Gander, Montreal; quando essas ou muitas outras coisas acontecem, então a pequena sala aquecida, com hélices na frente, cai como uma pedra do céu, na terra ou no mar, mais pesada que o ar, falível, imprestável. E as quarenta pessoas mais pesadas que o ar, frágeis dentro da fragilidade do avião, desamparadas dentro do desamparo maior do avião, despencam com ele, abrindo pequenos buracos na terra, ou espirrando água no mar. De qualquer modo, é o destino, então por que se preocupar? As pessoas estão conectadas aos dedos descuidados do mecânico de manutenção em Nassau, do mesmo modo que estão conectadas ao homenzinho no sedã da família, que confunde o sinal verde com o vermelho e bate de frente, pela primeira e última vez, na pessoa que dirigia tranquilamente para casa depois de um programa clandestino. Não se pode fazer nada. Começamos a morrer desde o dia em que nascemos. A vida inteira é um jogo de cartas com a morte. Por isso tenha calma. Acenda um cigarro e seja grato por ainda estar vivo, enquanto traga a fumaça profundamente nos seus pulmões. Nosso destino já permitiu que percorrêssemos um longo caminho desde que abandonamos o útero da mãe e choramingamos ao contato com o ar frio do mundo. Talvez ele até permita que cheguemos à Jamaica esta noite. Não está escutando as vozes animadas da torre de controle que passaram o dia falando, tranquilas: “Pode pousar, BOAC. Pode pousar, Panam. Pode pousar, KLM”? Não as escuta também nos chamando: “Pode pousar, Transcarib. Pode pousar, Transcarib”? Não perca a fé no destino. Lembre aquele momento terrível em que enfrentou a morte diante da arma do Ladrão, na noite passada. Ainda está vivo, não está? Pronto, já não corremos mais perigo. Isso foi só para lembrar que ser rápido no gatilho não quer dizer que você seja realmente forte. Não se esqueça. Este pouso feliz no Aeroporto Palisadoes é cortesia de seu destino. Melhor agradecer a ele.
Bond desatou o cinto de segurança e limpou o suor do rosto.
Ao diabo com tudo isso, pensou, ao desembarcar da aeronave enorme e resistente.
Strangways, o chefe do serviço secreto do Caribe, veio encontrá-lo no aeroporto, e assim ele passou depressa pela alfândega, imigração e fiscalização financeira.
Eram quase onze horas de uma noite quente, tranquila. Ouvia-se o som agudo dos grilos nas fileiras de cactos de ambos os lados da estrada do aeroporto, e Bond absorvia com gratidão os ruídos e os cheiros tropicais, enquanto a caminhonete militar atravessava a periferia de Kingston, em direção aos contrafortes cintilantes e enluarados das Montanhas Azuis.
Conversaram em monossílabos até se instalarem na varanda aconchegante da bela casa branca de Strangways, em Junction Road, abaixo de Stony Hill.
Strangways serviu um uísque com soda reforçado para os dois e, em seguida, fez um relato conciso de todo o lado jamaicano do problema.
Era um sujeito esguio e bem-humorado de mais ou menos trinta e cinco anos, ex-tenente e comandante da Seção Especial da Reserva Voluntária da Marinha Real. Tinha uma venda negra sobre um olho e o tipo de beleza aquilina associada à ponte de comando dos destróieres. Mas debaixo do bronzeado havia um rosto marcado, e Bond percebeu, pelos gestos rápidos e frases entrecortadas, seu ânimo nervoso e tenso. Era certamente eficiente, tinha senso de humor e não demonstrava nenhum sinal de ciúme diante de alguém que viera da matriz para se meter em seu território. Bond sentiu que se dariam bem, antecipando com prazer essa parceria.
Eis a história que Strangways tinha para contar.
Sempre circularam boatos sobre a presença de um tesouro na ilha da Surpresa, e tudo que se sabia sobre Morgan, o Sanguinário, confirmava essa suspeita.
A pequena ilha ficava no centro exato da baía dos Tubarões, um pequeno porto no final da Junction Road, que corre pela cintura fina da Jamaica, de Kingston à costa norte.
O grande bucaneiro fizera da baía dos Tubarões seu quartel-general. Gostava de ter toda a largura da ilha de permeio entre ele e o governador em Port Royal, de modo que pudesse sair e entrar nas águas jamaicanas em total segredo. O governador também gostava desse arranjo. A Coroa queria que ele fechasse os olhos à pirataria de Morgan até que os espanhóis fossem expulsos do Caribe. Quando isso ocorreu, Morgan foi recompensado com um título de nobreza e o posto de governador da Jamaica. Até então, suas ações tinham de ser repudiadas para evitar uma guerra contra a Espanha, na Europa.
No entanto, durante o longo período antes que a raposa recebesse a chave do galinheiro, Morgan utilizou a baía dos Tubarões como porto de partida para suas investidas. Construiu três casas na propriedade vizinha, denominada Llanrumney, em homenagem ao seu local de nascimento no País de Gales. Essas casas se chamavam “Casa de Morgan”, “Casa do Médico” e “Casa da Dama”. Ainda hoje se descobrem moedas e fivelas em suas ruínas.
O ancoradouro de seus navios sempre foi a baía dos Tubarões, e os reparos nas embarcações eram feitos, a sotavento, na ilha da Surpresa, um pedaço de coral e calcário acidentado que surge do centro da baía, encimado por um platô cheio de mato de cerca de meio hectare.
Quando partiu para sempre da Jamaica, em 1683, foi como preso, para ser julgado por seus pares por menosprezo à Coroa. Seu tesouro foi abandonado em algum lugar na Jamaica e ele morreu na miséria, sem revelar seu paradeiro. Deve ter sido um vasto butim, fruto de incontáveis investidas contra Hispaniola, da captura de inúmeros navios que levavam tesouros para La Plata, do saque do Panamá e da pilhagem de Maracaibo. Mas sumiu sem deixar vestígios.
Sempre se pensou que o segredo jazia em algum lugar da ilha da Surpresa, mas duzentos anos de mergulhos e de escavações da parte dos caçadores de tesouros não revelaram nada. Então, disse Strangways, há apenas seis meses, duas coisas aconteceram em poucas semanas. Um jovem pescador desapareceu do povoado da baía dos Tubarões e nunca mais se soube dele, e um sindicato anônimo de Nova York adquiriu a ilha por mil libras do atual proprietário de Llanrumney, agora uma próspera propriedade de cultivo de banana e de criação de gado.
Poucas semanas depois da venda, o iate Secatur chegara à baía dos Tubarões e fundeara no antigo ponto de ancoragem de Morgan, a sotavento da ilha. Veio com uma tripulação exclusivamente negra. Puseram-se a trabalhar, cavando uma escada na face do rochedo, construindo no topo uma série de cabanas baixas de taipa, ao estilo jamaicano.
Pareciam estar perfeitamente aprovisionados e só compravam peixe fresco e água dos pescadores da baía.
Era um pessoal ordeiro e taciturno, que não dava trabalho. Explicaram à alfândega da vizinha Santa Maria, que os havia liberado, que estavam ali para pescar peixes tropicais, especialmente as variedades venenosas, e coletar conchas para a Ourobouros Inc, de St. Petersburg. Depois que se estabeleceram, compraram grandes quantidades deles dos pescadores da baía dos Tubarões, Port Maria e Oracabessa.
Durante uma semana realizaram explosões na ilha, dizendo que era para a escavação de um grande tanque de peixes.
O Secatur começou a fazer uma rota quinzenal para o Golfo do México, e observadores com binóculos confirmaram que, antes de zarpar, sempre embarcavam tanques portáteis de peixe. Meia dúzia de homens era deixada para trás. Quaisquer canoas que se aproximassem da ilha recebiam ameaças de um guarda, na base da escadaria no rochedo, que ficava o dia inteiro pescando em um molhe estreito onde o Secatur atracava, preso a duas âncoras no mar, bem abrigado dos ventos nordeste.
Jamais alguém conseguiu desembarcar na ilha de dia e, depois de duas tentativas trágicas, ninguém voltou a tentar um desembarque noturno.
A primeira tentativa foi a de um pescador local, instigado pelos boatos de um tesouro enterrado que nenhuma conversa sobre peixes tropicais podia abafar. Partiu a nado uma noite e seu corpo fora devolvido pelo mar, por cima do recife, no dia seguinte. Os tubarões e as barracudas só deixaram o torso e um pedaço da coxa.
Mais ou menos na hora em que ele deveria chegar à ilha, toda a aldeia da baía dos Tubarões foi acordada pelo batuque mais terrível. Parecia vir do interior da ilha. Reconheceram-no como um batuque do vodu. Começou tranquilo e foi em um crescendo trovejante. Depois baixou novamente e parou. Durou cerca de cinco minutos.
Desde aquele momento a ilha se tornou ju-ju, ou obeah, como se diz na Jamaica, e, mesmo à luz do dia, as canoas ficam a uma distância segura.
A essa altura, Strangways teve seu interesse despertado e fez um relatório completo a Londres. Desde 1950, a Jamaica se tornara um alvo estratégico importante, graças à exploração, pela Reynolds Metal e pela Kaiser Corporation, de enormes depósitos de bauxita encontrados na ilha. Na opinião de Strangways, as atividades na ilha da Surpresa bem poderiam estar ligadas à construção de uma base de submarinos de um só tripulante, prevendo uma situação de guerra, especialmente porque a baía dos Tubarões estava no âmbito da rota dos navios da Reynolds até o novo porto de embarque de bauxita de Ocho Ríos, alguns quilômetros costa abaixo.
Londres investigou, junto com Washington, com base no relatório, e veio à tona a informação de que o sindicato que comprara a ilha era inteiramente de propriedade de Mr. Big.
Isso há três meses. Strangways recebeu ordens de entrar na ilha de qualquer maneira e descobrir o que estava acontecendo. Montou uma operação e tanto. Alugou uma propriedade no braço ocidental da baía dos Tubarões, chamada Beau Desert, onde existem as ruínas de um dos famosos casarões jamaicanos do começo do século dezenove, e também uma casa de praia moderna bem em frente ao ancoradouro do Secatur na ilha da Surpresa.
Trouxe dois bons nadadores da base naval na Bermuda e organizou uma observação permanente da ilha através de binóculos diurnos e noturnos. Nada foi visto que parecesse suspeito e, em uma noite calma e escura, ele mandou os dois nadadores com ordens de fazer uma vistoria submarina das fundações da ilha.
Strangways contou o pavor que sentiu quando, uma hora depois de partirem a nado para atravessar os trezentos metros de mar, começou um terrível batuque em algum lugar dentro dos penhascos da ilha.
Naquela noite os dois não voltaram.
No dia seguinte, ambos apareceram na praia, em lugares diferentes da baía. Ou melhor, o que sobrou de seus corpos devorados pelos tubarões e barracudas.
Nesta altura da história de Strangways, Bond interrompeu-o.
“Um minuto só”, disse, “que história é essa de tubarões e barracudas? Geralmente eles não são agressivos nestas águas. Não existem muitos na Jamaica e raramente se alimentam de noite. Aliás, não creio que nenhum deles ataque seres humanos, a não ser que haja sangue na água. Podem dar uma mordida, uma vez ou outra, em algum pé branco, por curiosidade. Já houve notícias anteriores de comportamento assim na Jamaica?”
“Nunca houve outro caso, desde que uma garota teve o pé devorado em Kingston Harbour, em 1942”, disse Strangways. “Ela estava sendo rebocada por uma lancha, batendo os pés. Seus pés brancos devem ter parecido especialmente apetitosos. E, além disso, estavam viajando em uma velocidade que convidava ao ataque. Todo mundo concorda com sua teoria. E meus homens tinham arpões e facas. Achei que fizera de tudo para protegê-los. Foi algo medonho. Imagine só como me senti. Desde então não fizemos mais nada, exceto tentar legalizar o acesso à ilha através da Secretaria das Colônias e de Washington. Mas o proprietário é cidadão americano. Então o processo é penosamente lento, sobretudo porque não há nada contra essa gente. Parecem dispor de uma boa proteção em Washington e de alguns advogados muito bons em direito internacional. Estamos absolutamente emperrados. Londres me disse para esperar até que você viesse.” Strangways deu um gole no uísque e olhou para Bond com expectativa.
“Quais são os movimentos do Secatur?”, perguntou Bond.
“Ainda está em Cuba. Deve zarpar dentro de uma semana, de acordo com a CIA.”
“Quantas viagens fez?”
“Cerca de vinte.”
Bond multiplicou cento e cinquenta mil dólares por vinte. Se seus cálculos estivessem certos, Mr. Big já levara um milhão de libras em ouro da ilha.
“Fiz alguns arranjos provisórios para você”, disse Strangways. “Tem a casa em Beau Desert. Há um carro, Sunbeam Talbot, sedã. Pneus novos. Corre bem. Ideal para essas estradas. Arranjei um sujeito ótimo para ser seu faz-tudo. Um ilhéu das ilhas Cayman, chamado Quarrel. O melhor pescador e nadador do Caribe. Muito prestativo. Grande sujeito. E peguei emprestada a casa de repouso da West Indian Citrus Company na Baía Manatee. Fica na outra extremidade da ilha. Você podia descansar lá uma semana e se exercitar um pouco até a chegada do Secatur. Precisará estar em forma se quiser chegar à ilha da Surpresa, e acredito francamente que só isso nos dará a resposta. Tem mais alguma coisa que eu possa fazer? Estarei por aí, claro, mas preciso ficar em Kingston para manter a comunicação com Londres e Washington. Eles vão querer saber tudo que fizermos. Há mais alguma coisa que você gostaria que eu providenciasse?”
Bond estivera se decidindo.
“Sim”, respondeu. “Pode pedir a Londres que consiga junto ao Almirantado uma de suas roupas de mergulho, completa, com os cilindros de ar comprimido. E muitos sobressalentes. E um bom par de arpões. Os franceses, ‘Champion’, são os melhores. Uma boa lanterna subaquática. Uma faca de guerra dos comandos. Toda a informação que puderem arranjar no Museu de História Natural sobre tubarões e barracudas. E um pouco daquele repelente de tubarões que os americanos usaram no Pacífico. Peça à BOAC para trazer tudo pelo seu serviço direto.”
Bond fez uma pausa. “Ah, sim”, disse. “E uma daquelas coisas que nossos sabotadores costumavam usar contra os navios durante a guerra. Uma mina naval, com diversos detonadores.”
17.
O VENTO PAPA-DEFUNTO
Mamão com uma rodela de limão, um prato cheio de bananas avermelhadas, caimitos roxos, ovos mexidos com bacon, café Blue Mountain — o mais delicioso do mundo —, geleia de laranja jamaicana, quase preta, e geleia de goiaba.
Enquanto Bond, trajando shorts e sandálias, tomava café na varanda, contemplando o panorama ensolarado de Kingston e Port Royal, pensou que tinha sorte pela existência de momentos tão magníficos a compensar o perigo e o ambiente sombrio de sua profissão.
Bond conhecia bem a Jamaica. Estivera no país durante uma longa missão logo após a guerra, quando o quartel-general comunista em Cuba procurava infiltrar os sindicatos jamaicanos. Tinha sido um serviço malresolvido e inconcluso, mas ele aprendera a amar a grande ilha verde e seu povo alegre e leal. Agora estava contente por ter retornado e pela semana inteira de folga antes de recomeçar o trabalho duro.
Depois do café da manhã, Strangways surgiu na varanda com um sujeito alto de pele morena, trajando uma camisa azul desbotada e velhas calças de sarja marrons.
Era Quarrel, o ilhéu das ilhas Cayman, com quem Bond logo simpatizou. Tinha sangue dos soldados de Cromwell e de bucaneiros. Seu rosto era forte e anguloso, com uma boca quase severa e olhos cinzentos. Apenas o nariz achatado e as palmas das mãos descoradas eram negroides.
Bond apertou sua mão.
“Bom dia, capitão”, falou Quarrel. Vindo da raça de pescadores mais famosa do mundo, esse era o tratamento mais honroso que ele podia merecer. Mas não havia nenhum desejo de agradar, ou humildade, na sua voz. Falava como marujo, de maneira direta e franca.
Esse momento definiu o relacionamento deles. Parecia a relação entre um senhor de terras escocês e seu caçador-chefe; o reconhecimento subentendido da autoridade, sem espaço para qualquer servilismo.
Depois de discutirem seus planos, Bond pegou o volante do pequeno carro que Quarrel trouxera de Kingston e tomaram a Junction Road, deixando Strangways ocupado com os pedidos de Bond.
Partiram antes das nove e ainda estava fresco quando atravessaram as montanhas que se estendem pelo dorso da Jamaica como a parte dentada da couraça do crocodilo. A estrada descia serpenteando em direção às planícies do norte, através de um dos cenários mais bonitos do mundo, em que a vegetação tropical se modificava com a mudança de altitude. Os flancos verdes das serras, emplumados de bambus intercalados com o verde escuro e brilhoso da fruta-pão e a súbita explosão colorida do flamboyant, cediam lugar, mais para baixo, à floresta de ébano, mogno, hibiscos e pau-campeche. Quando chegaram às várzeas do vale de Agualta, o mar verde dos bananais e canaviais se espraiava até onde a orla afastada dos bosques de palmeiras brotava cintilante ao longo da costa norte.
Quarrel foi boa companhia no passeio e um guia maravilhoso. Falou sobre as aranhas que faziam suas casas na terra, encimadas por pequenos alçapões perfeitos, ao passarem pelos famosos jardins de palmeiras de Castleton. Contou que assistira a uma briga entre uma centopeia gigante e um escorpião e explicou a diferença entre o mamão-macho e o mamão-fêmea. Descreveu os venenos da mata e as propriedades medicinais das ervas tropicais, a pressão exercida pela noz para romper o coco, o comprimento da língua do beija-flor, a maneira como os crocodilos carregam os filhotes na boca, ao comprido, como sardinhas em lata.
Falava em termos precisos, mas sem conhecimento técnico, empregando o linguajar jamaicano em que as plantas são humanizadas, “se esforçam”, “desanimam”, “mariposas” são “morcegos” e “amar” é sempre usado no lugar de “gostar”. Enquanto falava, levantava a mão em um gesto de saudação para as pessoas na estrada, que também gesticulavam e gritavam seu nome.
“Você parece conhecer gente à beça”, comentou Bond, quando o motorista de um ônibus apinhado, com a palavra ROMANCE escrita em grandes letras em cima do para-brisa, saudou-o com dois toques de sua buzina de ar comprimido.
“Faz três meses que ando observando a ilha da Surpresa, capitão”, disse Quarrel, “e passando por esta estrada duas vezes por semana. Todo mundo fica logo conhecido na Jamaica. O pessoal tem vista boa.”
Às dez e meia já tinham passado Port Maria e enveredado por uma pequena estrada vicinal que levava à baía dos Tubarões. Ao fazer uma curva, se depararam com ela embaixo, e Bond parou o carro e saíram.
A baía tinha a forma de um crescente e talvez uns mil e duzentos metros de largura entre um pontal e outro. Sua superfície azul estava encrespada pela leve brisa que soprava do nordeste, vizinha dos ventos alísios que nasciam a oitocentos quilômetros, no Golfo do México, e de lá partiam para sua longa viagem em volta do mundo.
A um quilômetro e meio de onde estavam, uma longa arrebentação sinalizava o recife fora da baía e o estreito de águas calmas que era a única entrada para o ancoradouro. No meio do crescente, a ilha da Surpresa assomava com seus trinta e poucos metros acima do mar, orlada no seu lado leste pela espuma das pequenas ondas que quebravam, e por águas calmas a sotavento.
Era quase redonda, parecendo um bolo alto e cinzento encimado por uma camada verde de açúcar glacê, tudo sobre um prato de porcelana azul.
Haviam parado a cerca de trinta metros do pequeno amontoado de cabanas de pescadores, atrás da praia orlada de coqueiros, e estavam no mesmo nível que o topo plano e verde da ilha, a quatrocentos metros de distância. Quarrel mostrou os telhados de palha das cabanas de taipa no meio das árvores, no centro da ilha. Bond examinou-as através dos binóculos de Quarrel. Não havia nenhum sinal de vida, exceto por um magro fiapo de fumaça levado pela brisa.
Abaixo deles, a água da baía era verde-clara perto da areia branca. Em seguida, se aprofundava e ficava azul-escura antes do marrom intercalado da borda submersa de um recife interno, que formava um largo semicírculo a cem metros da ilha. Depois tornava-se novamente azul, com manchas de azul mais claro e verde-mar. Quarrel informou que a profundidade do ancoradouro do Secatur era de aproximadamente dez metros.
À esquerda, no meio do braço ocidental da baía, escondida entre as árvores e atrás de uma minúscula praia de areia branca, ficava sua base de operações, Beau Desert. Quarrel descreveu a disposição da casa e Bond permaneceu dez minutos examinando os trezentos metros de distância entre ela e o ancoradouro do Secatur, junto à ilha.
Ao todo, Bond passou uma hora fazendo o reconhecimento do local e depois, sem se aproximar da casa ou do povoado, viraram o carro e voltaram para a estrada principal ao longo da costa.
Seguiram de carro através do belo e pequeno porto de embarque de bananas de Oracabessa e de Ocho Ríos, com sua nova e enorme usina de extração de bauxita, seguindo a costa norte até a baía de Montego, a duas horas de distância. Era fevereiro, no auge da estação. A pequena aldeia e os grandes hotéis esparsos estavam mergulhados na corrida de ouro de quatro meses que os sustentava pelo resto do ano. Pararam em uma pousada do outro lado da ampla baía, onde almoçaram, para, em seguida, prosseguirem no calor da tarde até a ponta ocidental da ilha, depois de mais duas horas de viagem.
Ali, graças à presença dos enormes mangues costeiros, nada acontecera desde que Colombo usara a baía de Manatee como um ancoradouro ocasional. Os pescadores jamaicanos haviam tomado o local dos índios Arawak, mas, exceto isso, tinha-se a impressão de que o tempo havia parado.
Bond achou-a a praia mais bonita que já havia visto, oito quilômetros de areia branca descendo suavemente até as ondas e, atrás, a marcha desordenada, porém graciosa, das palmeiras rumo ao horizonte. Debaixo delas, as canoas cinza descansavam fora da água, ao lado de monturos rosados de conchas descartadas. Do meio do palmeiral subia a fumaça das palhoças dos pescadores, na sombra entre o mangue e o mar.
Em uma clareira entre as palhoças, construída sobre estacas em um gramado malcuidado de grama das Bahamas, ficava a casa de fim de semana dos trabalhadores da West Indian Citrus Company. Fora construída sobre estacas para evitar os cupins e era cuidadosamente telada contra mosquitos e borrachudos. Bond saiu da estrada irregular e estacionou sob a casa. Enquanto Quarrel escolhia e arrumava dois quartos, Bond enrolou uma toalha na cintura e caminhou entre as palmeiras até o mar, a vinte metros de distância.
Nadou e boiou preguiçosamente durante uma hora na água quente em que flutuava sem dificuldade, pensando na ilha da Surpresa e em seu segredo, fixando na mente aqueles trezentos metros, pensando nos tubarões e barracudas e demais perigos do mar, essa grande biblioteca cheia de livros que ainda não conseguimos ler.
Ao caminhar de volta para o pequeno chalé de madeira, Bond levou suas primeiras picadas de mosquito pólvora. Quarrel deu uma risada ao ver as mordidas empoladas nas suas costas, que em breve coçariam como o diabo.
“Não se pode fazer nada para nos livrar deles, capitão”, observou. “Mas posso parar essa coceira. Melhor tomar uma chuveirada, primeiro, para tirar o sal. Eles só mordem mesmo durante uma hora, ao entardecer, e gostam de sal no jantar.”
Quando Bond saiu do chuveiro, Quarrel apareceu com uma velha garrafa de remédio e passou um líquido marrom, que cheirava a creolina, nas mordidas.
“A gente tem mais mosquitos pólvora e borrachudos nas ilhas Cayman do que em qualquer outro lugar do mundo”, falou, “mas não nos incomodam desde que tenhamos este remédio”.
Os dez minutos de crepúsculo tropical trouxeram sua breve melancolia. Depois as estrelas e a lua em quarto crescente começaram a brilhar, e o mar se reduziu a um sussurro. Houve uma curta calmaria entre os dois grandes ventos da Jamaica e, em seguida, as palmeiras voltaram a murmurar.
Quarrel fez um gesto da cabeça em direção à janela.
“O vento Papa-Defunto”, comentou.
“Como assim?”, perguntou Bond, espantado.
“Vento terral, como dizem os marinheiros”, acrescentou Quarrel. “O Papa-Defunto sopra, expulsando o ar ruim da ilha durante a noite, das seis às seis da manhã. Em seguida, o ‘vento Médico’ chega, soprando o ar fresco do mar para a ilha. Pelo menos é assim que os chamamos na Jamaica.”
Quarrel olhou perplexo para Bond.
“Acho que Papa-Defunto e você têm praticamente a mesma tarefa, capitão”, comentou, meio brincando.
Bond deu uma breve risada. “Ainda bem que não preciso respeitar o mesmo horário”, respondeu.
Lá fora os grilos e as pererecas começaram a ciciar e coaxar, e as grandes mariposas forçavam as telas das janelas, onde se agarravam, olhando, em um êxtase agoniado, para as duas lamparinas a óleo penduradas em duas travessas dentro de casa.
Uma vez ou outra dois pescadores, ou um grupo de garotas aos risinhos, iam andando até a praia a caminho do único e pequeno bar na ponta da baía. Ninguém andava sozinho, com medo dos lobisomens sob as árvores, ou do garrote rolador, animal terrível que vinha de encontro às pessoas rolando pelo chão, com as pernas presas por correntes e botando fogo pelas ventas.
Enquanto Quarrel preparava uma refeição suculenta de peixe, ovos e legumes que haveria de se tornar a dieta regular de ambos, Bond sentou-se sob a luz e debruçou-se sobre os livros que Strangways pegara emprestado do Instituto Jamaicano. Livros sobre o mar tropical e seus habitantes, por Beebe e Allyn, e outros, sobre caça submarina, de Cousteau e Hass. Quando partisse para atravessar aqueles trezentos metros de mar, estava determinado a fazê-lo com todo o conhecimento possível, sem confiar no acaso. Conhecia a capacidade de Mr. Big e apostava que as defesas da ilha da Surpresa seriam tecnicamente brilhantes. Achou que não se resumiriam a explosivos e armas. Mr. Big precisava trabalhar sem ser incomodado pela polícia. Precisava permanecer fora do alcance da lei. Bond supunha que as forças do mar haviam sido, de certo modo, domesticadas para fazer o trabalho de Mr. Big, e era sobre essas que Bond se concentrava: o assassinato por meio de tubarões e barracudas, talvez polvos e jamantas.
Os fatos expostos pelos naturalistas eram medonhos e horripilantes, mas as experiências de Cousteau no Mediterrâneo e de Hass, no mar Vermelho, eram mais animadoras.
Naquela noite Bond teve muitos sonhos de encontros aterrorizantes com polvos gigantescos e raias-lixas, tubarões cabeça de martelo e barracudas de dentes serrilhados, de modo que gemeu e suou durante o sono.
No dia seguinte começou a se exercitar, sob o olhar crítico de Quarrel. Toda manhã nadava mil e seiscentos metros na praia antes do café da manhã e corria pela areia firme até o chalé. Lá pelas nove partiam em uma canoa, cuja única vela triangular os transportava rápido até a baía Sangrenta e Orange Bay, onde a areia termina em penhascos e pequenas cavernas, e o recife se aproxima da costa.
Ali deixavam a canoa na praia e Quarrel o levava, com fisgas, máscaras e um velho arpão submarino, em expedições de tirar o fôlego, no tipo de mar que ele encontraria na baía dos Tubarões.
Pescavam em silêncio, separados por poucos metros, com Quarrel se movendo com facilidade em um elemento no qual quase se sentia em casa.
Não demorou para que Bond aprendesse a não lutar contra o mar, e sim ceder e aproveitar as correntes e os rodamoinhos, usando táticas de judô dentro d’água.
No primeiro dia chegou em casa cortado e envenenado pelo coral e com uma dúzia de espinhos de ouriço espetados em seu flanco. Quarrel sorriu e tratou as feridas com mertiolato e Milton. Depois, como fazia toda noite, massageou Bond por meia hora com óleo de coco, enquanto ia falando em voz baixa sobre os peixes que haviam encontrado naquele dia, explicando os hábitos dos carnívoros e não carnívoros, a camuflagem dos peixes e seu modo de mudar de cor através da corrente sanguínea.
Ele também jamais ouvira falar de peixe algum que atacasse o homem, a não ser em desespero ou porque havia sangue na água. Explicou que os peixes raramente passam fome nas águas tropicais e que a maioria de suas armas é defensiva, e não ofensiva. A única exceção, admitia, era a barracuda. “Peixes maus”, conforme dizia, que não conheciam o medo, já que não possuíam outro inimigo que não a doença, capazes de atingir oitenta quilômetros por hora em distâncias curtas, e donos dos dentes mais perigosos do que os de qualquer outro peixe de mar.
Um dia alvejaram uma de dez quilos que nadava em volta deles, sumindo na distância cinzenta e depois reaparecendo, silenciosa, imóvel, quase em cima da água, com seus olhos zangados de tigre fitando-os de muito perto, de modo que podiam ver o lento funcionamento de suas guelras e os dentes brilhando, como as presas de um lobo, ao longo da queixada cruel e prognata.
Quarrel finalmente pegou o arpão de Bond e alvejou-a gravemente, atravessando sua barriga aerodinâmica. Ela veio diretamente em cima deles, com as mandíbulas escancaradas, como uma cascavel pronta para o bote. Bond deu uma fisgada desajeitada quando ela investia contra Quarrel. Errou, mas o arpão entrou pelas suas mandíbulas. Elas se fecharam imediatamente sobre o espeto de aço, e quando o peixe arrancou a fisga da mão de Bond, Quarrel apunhalou-a com a faca e ela enlouqueceu, correndo dentro d’água com as entranhas à mostra, a fisga presa entre os dentes e o arpão pendente do corpo. Quarrel mal podia segurar a linha enquanto o peixe procurava retirar a ponta que lhe atravessava a barriga. Mas seguiu-o nadando em direção a um recife submerso, no qual subiu, puxando lentamente o peixe.
Depois que Quarrel cortou as guelras e retirou a fisga de suas mandíbulas, encontraram as marcas profundas dos dentes no aço.
Levaram o peixe para a praia, Quarrel cortou sua cabeça e abriu a bocarra com um pedaço de pau. A mandíbula superior se erguia quase em ângulo reto em relação à inferior, revelando fantásticas fileiras de dentes, tão abundantes que se sobrepunham como telhas no telhado. Até mesmo a língua tinha várias fileiras de pequenos dentes afiados e curvos e, na frente, duas presas enormes, que se projetavam para a frente como as de uma serpente.
Embora só pesasse pouco mais que cinco quilos, passava de um metro e trinta centímetros, uma bala niquelada só de músculo e tecido firme.
“Não vamos matar mais barracudas”, comentou Quarrel. “Mas se não fosse por você eu teria que passar um mês no hospital e talvez perder meu rosto. Foi uma tolice minha. Se a gente tivesse nadado em sua direção, ela teria fugido. Sempre fazem isso. São covardes como todos os peixes. Não se preocupe com esses aqui”, apontou para os dentes, “jamais tornará a vê-los”.
“Espero que não”, desabafou Bond. “Não tenho rosto sobressalente.”
No fim de uma semana Bond estava bronzeado e rijo. Cortara os cigarros para dez por dia e não tomara sequer um drinque. Conseguia nadar três quilômetros sem cansar, a mão estava completamente sarada e ele havia eliminado todas as sequelas da vida urbana.
Quarrel se alegrou. “Você está pronto para a ilha da Surpresa, capitão”, disse, “e eu não gostaria de ser o peixe que tentasse devorá-lo”.
Ao entardecer do oitavo dia, voltaram para a casa de descanso e encontraram Strangways à espera deles.
“Tenho boas notícias para lhe dar”, disse. “Seu amigo Felix Leiter vai ficar bom. Apesar de tudo, não morrerá. Precisaram amputar o resto de um braço e de uma perna. Os cirurgiões plásticos começaram agora a reconstruir o rosto. Ligaram para mim ontem de St. Petersburg. Parece que ele insistiu em lhe mandar um recado. Foi a primeira coisa que lhe veio à cabeça quando voltou a si. Disse que sente muito não poder estar aqui e para você não molhar os pés — ou pelo menos não molhá-los tanto como ele.”
O coração de Bond ficou apertado. Olhou pela janela. “Diga a ele para se restabelecer logo”, disse abruptamente. “E também que sinto a sua falta.” Voltou os olhos para a sala. “E quanto ao equipamento? Tudo bem?”
“Está tudo aqui”, respondeu Strangways, “e o Secatur zarpa amanhã para a ilha da Surpresa. Depois de passar pela alfândega em Port Maria, devem lançar âncora antes do anoitecer. Mr. Big está a bordo — é só a segunda vez que veio aqui. Ah, e trouxe uma mulher. Uma garota chamada Solitaire, de acordo com a CIA. Sabe alguma coisa sobre ela?”
“Não muito”, respondeu Bond. “Mas gostaria de tirá-la dele. Ela não pertence ao seu time.”
“Uma espécie de donzela em apuros”, disse o romântico Strangways. “Pois é. De acordo com a CIA, ela é uma graça.”
Mas Bond fora para a varanda e olhava as estrelas. Jamais tivera de brigar por um cacife tão alto na vida. O segredo do tesouro, a derrota de um grande criminoso, o esmagamento de um círculo de espionagem comunista e a destruição de um tentáculo da SMERSH, a cruel engrenagem que constituía seu próprio alvo particular. E agora Solitaire, a maior das recompensas pessoais.
As estrelas piscavam no seu Morse cifrado e ele não possuía chave alguma para decifrar o seu código.
18.
BEAU DESERT
Strangways voltou sozinho depois do jantar e Bond decidiu que eles partiriam ao amanhecer. O inglês deixou uma nova pilha de livros e panfletos sobre tubarões e barracudas, que Bond estudou com grande atenção.
Pouco acrescentou ao conhecimento prático que aprendera com Quarrel. Os autores eram todos cientistas e grande parte dos dados era sobre ataques ocorridos nas praias do Pacífico, onde qualquer corpo que brilhasse na arrebentação pesada excitaria a curiosidade dos peixes.
Mas parecia haver uma concordância geral que o perigo para os mergulhadores submarinos com aqualungs era muito menor do que para os nadadores de superfície. Estes podiam ser atacados por qualquer representante da família dos tubarões, especialmente quando o tubarão era estimulado e excitado pela presença de sangue no mar, pelo cheiro da vítima ou pela vibração sensorial causada por alguém ferido na água. Mas às vezes podiam ser espantados, segundo a literatura, por barulhos altos dentro d’água — até mesmo por gritos sob a superfície, e muitas vezes fugiam quando perseguidos pelo nadador.
A fórmula mais bem-sucedida de repelente de tubarões era, segundo os testes dos laboratórios de pesquisa naval da marinha americana, uma combinação de acetato de cobre e um corante preto chamado nigrosina, que vinha sendo adicionada, sob a forma de pelotas, aos coletes salva-vidas de todas as forças armadas dos Estados Unidos.
Bond chamou Quarrel. O ilhéu de Cayman não acreditara, até que Bond lesse para ele o que o Departamento Naval tinha a dizer sobre suas pesquisas, no final da guerra, sobre os bandos de tubarões estimulados por uma situação descrita como “condições exacerbadas de comportamento grupal”: “... os tubarões eram atraídos para a popa do barco de pesca de camarões, com refugo de peixes”, leu Bond. “Os tubarões apareceram sob a forma de um cardume exasperado, espadanante. Preparamos uma tina com peixes frescos, e outra com peixes misturados ao pó repelente. Aproximamo-nos do cardume e o fotógrafo começou a rodar a câmera. Despejei os peixes frescos por trinta segundos, repetindo três vezes esse procedimento. Da primeira vez os tubarões demonstraram grande ferocidade ao se alimentar dos peixes frescos bem na popa do barco. Mas ficaram devorando-os só durante cinco segundos depois que o pó repelente foi jogado ao mar. Uns poucos voltaram depois que jogamos peixe fresco imediatamente após o repelente. Em uma segunda tentativa, trinta minutos depois, um cardume feroz se alimentou durante os trinta segundos em que lhe fornecemos peixe fresco, mas se afastou assim que o repelente foi jogado na água. Na terceira tentativa, só conseguimos atrair os tubarões até uma distância de vinte metros da popa do barco.”
“O que acha disso?”, perguntou Bond.
“É melhor arranjar um pouco desse negócio”, respondeu Quarrel a contragosto, mas impressionado.
Bond estava disposto a concordar. Washington havia mandado mensagem de que as pelotas do material estavam a caminho. Mas ainda não tinham chegado e não eram esperadas antes de quarenta e oito horas. Se o repelente não chegasse, não seria problema para Bond. Não imaginava encontrar condições tão perigosas no seu percurso submarino até a ilha.
Antes de ir para a cama, chegara à conclusão de que nada o atacaria se não houvesse sangue na água, ou se ele não parecesse amedrontado diante da ameaça de algum peixe. Quanto aos polvos, peixes-escorpião e moreias, simplesmente precisava tomar cuidado onde punha os pés. Para ele, os espinhos de sete centímetros do ouriço eram o maior perigo para as atividades submarinas nos trópicos, mas a dor que causavam não bastaria para interferir em seus planos.
Partiram antes das seis da manhã e chegaram a Beau Desert às dez e meia.
A propriedade era uma bela plantação antiga de cerca de quatrocentos hectares, com as ruínas da bela casa grande dominando a baía. Era dedicada ao cultivo de pimentões e cítricos, e cercada de madeiras de lei e palmeiras, e sua história remontava à época de Cromwell. O nome romântico estava em moda no século dezoito, quando as propriedades jamaicanas se chamavam Bellair, Bellevue, Boscobel, Harmony, Nymphenburg, ou eram batizadas de Panorama, Satisfação, Repouso.
Uma trilha entre as árvores, que não era visível da ilha na baía, levava à pequena casa de praia. Depois dos piqueniques semanais na baía de Manatee, os banheiros e a mobília confortável de bambu pareciam um luxo, e os tapetes de cores vivas pareciam de veludo sob os pés calejados de Bond.
Pelas rótulas das janelas Bond contemplou o pequeno jardim flamejante de hibiscos, buganvílias e roseiras, que acabava no minúsculo crescente de areia branca, meio tapado pelos troncos das palmeiras. Sentou-se no braço de uma poltrona e deixou que seu olhar passeasse, palmo a palmo, pelos diferentes azuis e marrons do mar e dos recifes, até morrer na base da ilha. A metade superior estava obscurecida pelos leques das plumas das palmeiras em primeiro plano, mas o pedaço de penhasco vertical dentro de seu campo de visão parecia cinzento e formidável na meia sombra projetada pelo sol forte.
Quarrel preparou o almoço em um fogareiro a álcool, de modo que nenhuma fumaça os denunciasse, e de tarde Bond fez uma sesta e depois examinou o equipamento enviado de Londres e trazido de Kingston por Strangways. Experimentou a roupa de mergulho de borracha fina que o cobria, desde a máscara apertada na cabeça com o óculo de vidro temperado, até as longas nadadeiras em seus pés. Tudo cabia como uma luva, e Bond louvou a eficiência do setor “Q” de M.
Testaram os cilindros duplos de mil litros de ar natural comprimido a duzentas atmosferas, e Bond achou fácil o funcionamento das válvulas de distribuição de ar e de reserva, à prova de acidentes. Na profundidade em que agiria, aquele volume dava para durar quase duas horas.
Havia uma nova espingarda submarina potente, marca Champion, e uma faca projetada pela Wilkinson para os comandos durante a guerra. Finalmente, em uma caixa coberta de avisos de perigo, estava a pesada mina naval, um cone de fundo achatado, repleto de explosivos, montado sobre uma base cheia de largas saliências de cobre, tão imantadas que a mina grudava como um marisco em qualquer casco metálico. Havia uma dúzia de detonadores de metal e de vidro, parecidos com lápis, com temporizadores que iam de dez minutos até oito horas, e um meticuloso livrinho de instruções, tão simples quanto o próprio equipamento. Havia até uma caixa de cápsulas de benzedrina para dar resistência e aguçar a percepção de Bond durante a tarefa, e várias lanternas submarinas, inclusive uma que projetava apenas um feixe da largura de um lápis.
Bond e Quarrel testaram tudo, acoplamentos, contatos, até se darem por satisfeitos e concluírem que não restava mais nada a ser feito. Em seguida, Bond desceu até o meio das árvores e observou as águas da baía, calculando as profundidades, traçando rotas para percorrer a passagem pelo recife e prevendo a trajetória da lua, que seria sua única referência no decorrer da tortuosa travessia.
Às cinco horas chegou Strangways com notícias do Secatur.
“Passaram por Port Maria”, informou. “Chegarão aqui dentro de dez minutos, no máximo. Mr. Big tem um passaporte com o nome de Gallia e a garota com o nome de Latrelle. Ela está na sua cabine, mareada, segundo o capitão negro do Secatur. É possível. Há uma porção de tanques de peixe a bordo. Mais de cem. Exceto isso, nada que levantasse suspeita, e foram liberados. Eu queria ir a bordo como parte da turma da alfândega, mas achei melhor deixar que o espetáculo se desenrolasse de modo absolutamente normal. Mr. Big permaneceu na sua cabine. Estava lendo quando foram verificar seus documentos. Como está o equipamento?”
“Perfeito”, respondeu Bond. “Acho que agiremos amanhã à noite. Espero que haja um pouco de vento. Se descobrirem as bolhas de ar, estaremos em apuros.”
Quarrel entrou, avisando: “O iate está passando pelo recife agora, capitão.”
Foram até a máxima distância que podiam arriscar ir, na praia, e assestaram os seus binóculos na direção do barco.
Era uma bela embarcação, negra, com uma superestrutura cinza, setenta pés de comprimento e construída em função da velocidade — de pelo menos vinte nós, imaginou Bond. Conhecia sua história. Havia sido construída para um milionário em 1947, era movida por dois motores a diesel da General Motors, tinha casco de aço e todas as geringonças de comunicação de último tipo, inclusive telefone do barco para a terra e um navegador Decca. Trazia hasteados um pavilhão vermelho nos vaus dos joanetes e a bandeira americana à popa, e progredia a três nós através da abertura de sete metros no recife.
Virou abruptamente, depois de romper a passagem, e rumou para a parte da ilha a bombordo. Ao mesmo tempo, três negros em calças brancas de brim desceram correndo a escada íngreme até o molhe estreito e se posicionaram para amarrar as guias. Foram necessárias poucas manobras para prendê-las, diante dos observadores em terra firme, e as duas âncoras foram arriadas ruidosamente, entre as pedras e o coral na areia do fundo, junto à base da ilha. O barco estava bem protegido, até mesmo do vento norte. Bond calculou uma profundidade de sete metros sob a sua quilha.
Enquanto observavam, a enorme figura de Mr. Big surgiu no convés. Desembarcou no molhe e começou a subir lentamente a escadaria a prumo. Parou várias vezes, e Bond pensou na dificuldade que seu coração avariado teria para bombear o sangue naquele corpanzil preto acinzentado.
Seguiam-no dois tripulantes negros carregando uma maca leve, levando um corpo humano amarrado. Pelos binóculos, Bond reconheceu os cabelos negros de Solitaire. Ficou perplexo e preocupado, sentiu um aperto no coração diante daquela proximidade. Rezou para que a maca fosse apenas uma precaução para evitar que Solitaire fosse reconhecida da costa.
Em seguida, formou-se uma fila de doze homens na escadaria e os tanques de peixe foram sendo passados de um para outro. Quarrel contou cento e vinte.
Depois, alguns gêneros foram levados para cima da mesma maneira.
“Não está trazendo muita coisa desta vez”, comentou Strangways, depois da operação terminada. “Somente uma dúzia de caixotes. Geralmente são cinquenta. Não deve ficar muito tempo.”
Mal acabara de falar quando um tanque de peixe, que seus binóculos mostravam estar meio cheio de água e areia, desceu cuidadosamente de volta ao barco, por meio daquela escada feita de mãos. Em seguida outro, e mais outro, a intervalos de cinco minutos.
“Meu Deus”, exclamou Strangways. “Já estão carregando o barco. O que significa que deverão zarpar pela manhã. Será que resolveram liquidar as operações na ilha e este será seu último carregamento?”
Bond observou com cuidado e depois subiram em silêncio através do arvoredo, deixando Quarrel atrás para se manter a par dos acontecimentos.
Sentaram-se na sala, e enquanto Strangways preparava um uísque com soda para ele mesmo, Bond olhava pela janela e organizava seus pensamentos.
Eram seis horas e os vagalumes começaram a aparecer na penumbra. A lua, de um amarelo pálido, já ia alta no lado do oriente, e o dia morria rápido às suas costas. Uma brisa ligeira encrespava a baía e pequenas ondas quebravam na praia branca no final do gramado. Pequeninas nuvens rosa e alaranjadas, ao poente, vagavam nas alturas, e as folhas das palmeiras se esbarravam de mansinho no vento fresco do Papa-Defunto.
“Vento Papa-Defunto”, pensou Bond, sorrindo de esguelha. Tal como teria de ser esta noite. Era a única chance, e as condições quase perfeitas. Só o repelente de tubarões é que não chegaria a tempo. Mas isso era apenas um requinte. Não poderia ser um pretexto. Era para isto que ele viajara três mil quilômetros e matara cinco. No entanto, sentiu um calafrio ao prever a aventura submarina angustiante, que ele já havia transferido em sua mente para o dia seguinte. De repente sentiu ódio e medo do mar e de tudo que lhe dizia respeito. Dos milhões de pequenas antenas que se mexeriam e o seguiriam quando ele passasse de noite, dos olhos que acordariam para espiá-lo, das batidas de coração que falhariam por um centésimo de segundo para continuar batendo silenciosamente, das gavinhas gelatinosas que se estenderiam em sua direção, tão cegas na luz quanto no escuro.
Iria passar no meio de milhares de segredos. No espaço de trezentos metros, sozinho e com frio, transporia às cegas uma floresta misteriosa em direção a uma cidadela mortífera, cujos guardas já haviam matado três homens. Ele, Bond, depois de uma semana ensolarada de canoagem com sua babá ao lado, ia esta noite, dentro de poucas horas, caminhar sozinho sob aquele lençol escuro de água. Era uma maluquice, algo impensável. Seu corpo se encolheu e ele cravou os dedos nas palmas da mão molhadas.
Houve uma batida na porta e Quarrel entrou. Bond se alegrou de poder levantar da cadeira, se afastar da janela e se aproximar do lugar onde Strangways apreciava seu drinque, debaixo de um abajur.
“Estão trabalhando à luz de lampiões agora, capitão. Um tanque ainda a cada cinco minutos. Calculo que terão dez horas de trabalho. Acabarão mais ou menos às cinco da manhã. Não zarparão antes das seis. É perigoso demais tentar passar pelo canal sem luz suficiente.”
Os olhos cinzentos e amistosos de Quarrel, naquele esplêndido rosto cor de mogno, fitavam Bond, aguardando ordens.
“Começarei às dez em ponto”, Bond se surpreendeu com as próprias palavras. “Das pedras à esquerda da praia. Pode nos fazer um jantar e depois levar o equipamento até o gramado? As condições estão perfeitas. Chegarei lá dentro de meia hora.” Contou nos dedos. “Dê-me os detonadores de cinco e de oito horas. E o de quinze minutos, como reserva, caso algo saia errado. Está certo?”
“Sim senhor, capitão”, respondeu Quarrel. “Pode deixar comigo.”
E saiu.
Bond olhou para a garrafa de uísque e, em seguida, se decidiu, servindo-se de meio copo em cima de três cubos de gelo. Tirou a caixa de benzedrina do bolso e botou um tablete entre os dentes.
“À sorte”, disse a Strangways, tomando um grande gole. Sentou-se apreciando o gosto áspero de seu primeiro drinque em mais de uma semana. “Agora”, perguntou, “diga exatamente o que eles fazem quando estão prontos para zarpar. Levam quanto tempo para se afastar da ilha e passar pelo recife? Se esta for a última vez, não se esqueça de que estarão levando seis homens adicionais e algumas provisões. Vamos tentar prever isso o mais exatamente possível.”
Um momento depois Bond já mergulhara em um mar de detalhes práticos, e a sombra do medo recuara até as zonas de escuridão debaixo das palmeiras.
Exatamente às dez horas, sem sentir nada além da excitação e da expectativa, a figura preta e luzidia como um morcego pulou das pedras dentro de três metros de água, sumindo debaixo do mar.
“Vá com segurança”, disse Quarrel, dirigindo-se ao ponto em que Bond desaparecera. Persignou-se. Em seguida, ele e Strangways voltaram para casa, por entre as sombras, para dormir em turnos, sobressaltados, aguardando, temerosos, o desenrolar dos acontecimentos.
19.
O VALE DAS SOMBRAS
Bond foi levado direto ao fundo pelo peso da mina naval que prendera a seu peito através de fitas, e pelo cinto de chumbo, usado para corrigir a flutuabilidade dos cilindros.
Sem hesitar um instante, cobriu imediatamente os primeiros cinquenta metros de areia do fundo em um rápido crawl, com o rosto pouco acima do leito. As longas nadadeiras quase teriam dobrado sua velocidade normal, não fosse o estorvo do peso que carregava e da leve espingarda de arpão na mão esquerda. Mas avançava depressa e em menos de um minuto parou para descansar na sombra de um grande maciço de coral.
Parou e estudou suas sensações.
Estava aquecido na roupa de mergulho, sentindo mais calor do que se estivesse nadando ao sol. Achou que seus movimentos lhe vinham com facilidade e a respiração era perfeitamente simples, desde que fosse regular e descontraída. Contemplou as bolhas denunciadoras subindo rente ao coral em um repuxo de pérolas prateadas e rezou para que as pequenas ondas as encobrissem.
No espaço desimpedido, sua visibilidade era perfeita. A luz era leitosa e macia, mas não suficientemente forte para dissolver as sombras encarneiradas das ondas na superfície, que enxadrezavam a areia do fundo. Agora, junto ao recife, não havia reflexos no leito do mar, e as sombras sob as pedras eram negras e impenetráveis.
Arriscou uma olhada rápida com a lanterna fina, e imediatamente a paisagem oculta da massa marrom dos arbustos de coral ganhou vida. Anêmonas de miolo carmesim acenavam para ele com seus tentáculos de veludo, uma colônia de ouriços eriçou seus espinhos de aço de Toledo, subitamente assustada, e uma centopeia do mar peluda estacou sua centena de passos, inquirindo-o com sua cabeça cega. Na areia da base da árvore de coral, um peixe-sapo recolheu delicadamente sua horrível cabeça verrugosa de volta à loca, e uma porção de vermes do mar, parecidos com flores, desapareceu em seus tubos gelatinosos. Um cardume de peixes-borboleta e peixes-anjo, coloridos como joias, flertava na luz. Bond distinguiu a forma chata e espiralada de uma estrela-do-mar de grandes pontas.
Bond enfiou a lanterna de volta no cinto.
Acima dele a superfície do mar era uma colcha de mercúrio. Ouvia-se um crepitar baixinho, como gordura fritando na frigideira. Adiante, o luar mergulhava no vale irregular e profundo, cujas encostas afundavam, se afastando da rota que ele devia seguir. Abandonou sua aconchegante árvore de coral e avançou lentamente. Agora não mais com a mesma facilidade. A luz era fraca e enganosa, e a floresta petrificada do recife de coral cheia de becos sem saída e caminhos tentadores, porém ilusórios.
Às vezes era obrigado a subir quase à superfície para transpor o emaranhado de algum arbusto de coral, e quando isso acontecia, aproveitava para verificar sua posição pela lua que brilhava como uma pálida descarga de foguete, no final do caminho que abrira na água. Às vezes a cintura de ampulheta de um rochedo de coral lhe fornecia abrigo, e ele podia descansar por alguns instantes, sabendo que as pequenas borbulhas do respirador ficariam escondidas pela saliência acima da superfície. Então concentrava seu olhar nos rabiscos fosforescentes da minúscula vida noturna submarina e distinguia colônias e populações inteiras às voltas com suas atividades microscópicas.
Não havia peixes grandes nas imediações, mas muitas lagostas fora de suas locas, parecendo bichos enormes e pré-históricos, graças ao efeito de ampliação da água. Seus olhos saltados e vermelhos o fitavam, e suas longas antenas de trinta centímetros pediam-lhe uma senha. Em alguns momentos recuavam nervosamente para seus abrigos, levantando areia com suas caudas potentes, agachadas nas pontas de seus oito pés peludos, à espera de o perigo passar. Certa vez os grandes filamentos de uma caravela passaram flutuando lentamente. Quase tocaram sua cabeça a partir da superfície, cinco metros acima, e ele lembrou a queimadura causada pelo contato com uma delas, que ardera por três dias durante a temporada em Manatee Bay. Se atingisse alguém na altura do coração, poderia ser mortal. Ele viu inúmeras moreias verdes e pintadas, estas últimas se movendo como grandes serpentes pretas e amarelas ao longo da areia do fundo, as verdes mostrando os dentes de dentro de algum buraco na pedra, e vários baiacus, como corujas castanhas, com seus enormes e plácidos olhos verdes. Espetou um deles com a extremidade de sua arma e ele inchou até ficar do tamanho de uma bola de futebol, tornando-se uma massa de perigosos espinhos brancos. Largas gorgônias balançavam, fazendo gestos convidativos nos rodamoinhos, refletindo o luar nos vales cinzentos, acenando fantasmagóricas, como restos das mortalhas de homens sepultados no mar. Muitas vezes Bond distinguia nas sombras movimentos pesados e misteriosos, águas revoltas e o súbito brilho de olhos grandes, que imediatamente se extinguiam. Então, virava-se, destravando o arpão, olhando fixamente o escuro. Mas não atirou em nada e nada o atacou enquanto subia e deslizava pelo recife.
Levou quinze minutos para percorrer cem metros do coral. Depois disso descansou em um pedaço redondo de coral esponjoso, abrigado por um último pedaço de recife. Alegrou-se por só ter de enfrentar uns cem metros de água cinza-claro. Ainda se sentia descansado, conservando a elação e a clareza de espírito provocadas pela benzedrina, mas o labirinto de perigos que enfrentara para atravessar o recife o tinha cansado e causado uma preocupação constante, além do temor de rasgar a roupa de borracha. Agora a floresta de corais afiados como navalhas já havia sido ultrapassada, para ceder lugar aos tubarões e às barracudas, ou talvez à súbita banana de dinamite jogada no meio da sua pequena flor de borbulhas na superfície.
Foi enquanto calculava os perigos ainda por enfrentar que o polvo agarrou-o. Em volta dos dois tornozelos.
Estava sentado com os pés na areia, quando de repente foram presos na base do cogumelo redondo de coral sobre o qual descansava. Quando compreendeu o que tinha acontecido, um tentáculo começou a serpentear pela sua perna acima, e outro, roxo na luz fraca, desceu pela nadadeira esquerda.
Teve um sobressalto de terror e repugnância, levantando-se de imediato, esfregando os pés, esforçando-se por se libertar. Mas não houve afrouxamento de um centímetro sequer, e os movimentos de Bond deram ao polvo a oportunidade de apertar e puxar os calcanhares mais ainda sob a saliência da pedra redonda. A força do bicho era prodigiosa, e Bond sentiu que perdia rapidamente o equilíbrio. Percebeu que num instante seria jogado no chão e aí, atrapalhado pela mina em seu peito e o cilindro nas costas, talvez fosse quase impossível atacar o polvo.
Bond tirou a faca do cinto e espetou entre suas pernas. Mas a saliência da rocha o atrapalhou, e ele ficou apavorado de cortar sua roupa de mergulho. De repente foi derrubado, caindo deitado na areia. De imediato seus pés começaram a ser puxados para dentro de uma larga fenda lateral debaixo da pedra. Esgaravatou a areia e tentou se dobrar para poder ter acesso à faca. Porém, a grande protuberância da mina em seu peito impediu-o de fazê-lo. À beira do pânico, lembrou-se do arpão. Antes não lhe dera importância, achando que era uma arma inútil naquela pequena distância, mas agora era a sua única chance. Permanecia na areia onde o deixara. Pegou-o e destravou-o. A mina impediu-o de fazer mira. Escorregou o cano ao longo das pernas e cutucou cada pé com a ponta do arpão para descobrir a distância entre eles. Um tentáculo agarrou imediatamente a ponta de aço e começou a puxar. A arma escorregou entre seus pés aprisionados e ele apertou o gatilho às cegas.
Uma grande nuvem de tinta viscosa e pegajosa saiu em rolos da fenda, em direção a seu rosto. Mas uma perna estava livre, em seguida a outra, e ele se aprumou e pegou o cabo do arpão de um metro, no local em que já ia desaparecendo sob a rocha. Puxou e forcejou até que, com um esgarçar de tecidos, conseguiu tirar a arma de dentro da névoa negra que envolvia o buraco. Ofegante, levantou-se e se afastou da rocha, com suor escorrendo pelo rosto, sob a máscara. Acima dele, a fieira prateada de bolhas subiu direto à superfície, e ele praguejou contra aquele animal barrigudo, ferido em seu abrigo.
Mas não podia perder tempo se preocupando com ele. Recarregou a arma e partiu com a lua sobre o seu ombro direito.
Agora avançava bem através da água cinzenta e enevoada, concentrando-se em manter o rosto apenas alguns centímetros acima da areia, com a cabeça bastante baixa para reduzir o atrito de seu corpo com a água. A certa altura, viu, de relance, uma raia-lixa do tamanho de uma mesa de pingue-pongue se desviar habilmente de seu caminho, batendo as asas pontudas e manchadas, como um pássaro, e arrastando atrás de si sua cauda farpada. Não lhe deu atenção, lembrando-se do que Quarrel dissera: que as raias jamais atacam a não ser em autodefesa. Calculou que ela provavelmente viera dos recifes externos para botar seus ovos — ou “bolsas de sereias”, como chamavam os pescadores, porque têm a forma de um travesseiro com dois fios pretos e rígidos em cada canto — no fundo abrigado de areia.
Muitos vultos de peixes grandes nadavam preguiçosamente sobre a areia enluarada, alguns do seu tamanho. Quando um deles seguiu Bond por pelo menos um minuto, ele levantou os olhos, distinguindo a barriga branca de um tubarão cinco metros acima dele, como um zepelim afunilado verde e azul. Seu nariz arredondado estava mergulhado com curiosidade na coluna de bolhas de ar. O grande rasgo em forma de foice de sua boca parecia uma cicatriz repuxada. Virou de lado e olhou para ele embaixo com um olhar duro e rosado e, em seguida, abanou sua cauda, também em forma de foice, e se afastou devagar dentro do muro de névoa cinzenta.
Bond amedrontou uma família de polvos, pesando de três quilos aos cento e cinquenta gramas de um filhote, frágil e luminoso à meia-luz, suspensa quase na vertical em um cordão declinante. Eles se endireitaram e fugiram rápido, a propulsão a jato.
Bond descansou por um instante na metade do caminho e então prosseguiu. Agora havia barracudas por ali, grandes, de até nove quilos. Pareciam tão mortíferas quanto as recordações que tinha delas. Planavam acima dele como submarinos prateados, olhando para baixo com seus olhos de tigre zangado. Sentiam curiosidade a seu respeito e a respeito das bolhas, e seguiram-no por cima e em torno dele, como uma alcateia de lobos silenciosos. Quando Bond encontrou o primeiro pedaço de coral, indício de que se aproximava da ilha, havia cerca de vinte delas se movendo em silêncio, vigilantes, saindo e entrando da parede opaca que o envolvia.
A pele de Bond se encolheu debaixo da roupa de borracha, mas ele não podia fazer nada a respeito delas e concentrou-se em sua meta.
De repente havia uma longa forma metálica suspensa acima dele na água. Atrás dela um monte de pedras quebradas que subiam de maneira íngreme.
Era a quilha do Secatur, e o coração de Bond deu um pulo no peito.
Consultou seu Rolex. Eram onze e três. Escolheu o detonador de sete horas do punhado que tirou de um bolso lateral com zíper, inserindo-o na cavidade apropriada da mina, apertando-o. Enterrou na areia o restante dos detonadores, de modo que, se fosse capturado, ninguém desconfiaria da existência da mina.
Ao nadar em direção à superfície, carregando a mina entre as mãos, com a base para cima, percebeu um rebuliço na água atrás dele. Uma barracuda passou depressa, com as mandíbulas meio abertas, quase colidindo com ele e com os olhos fixos em algo às suas costas. Mas Bond estava concentrado apenas no meio da quilha do barco, em um ponto pouco mais de um metro acima da superfície.
A mina quase o arrastou pelos últimos metros, pois seus enormes ímãs buscavam o beijo metálico com o casco. Bond precisou lutar contra eles para evitar o barulho do choque. Em seguida, tendo colocado a mina no lugar adequado e agora livre do seu peso, Bond precisou nadar com força para se contrapor à sua nova flutuabilidade e afundar de novo, afastando-se da superfície.
Foi quando se virou para nadar em direção às duas hélices, a caminho do abrigo das pedras, que conseguiu ver as coisas terríveis que ocorriam às suas costas.
O bando enorme de barracudas parecia ter enlouquecido. Giravam e mordiam como cães histéricos. Três tubarões que haviam se juntado a eles arremetiam pela água com um frenesi pouco menor. A água fervilhava com esses peixes terríveis, e Bond levou um encontrão no rosto, recebendo outros tantos por várias vezes em uma distância de poucos metros. Percebeu que a qualquer momento sua pele de borracha se rasgaria, junto com a carne debaixo dela, e então o bando viria atrás dele.
“Condições exacerbadas de comportamento grupal.” A frase do Departamento Naval pipocou na sua mente. Era exatamente nesta situação que o repelente de tubarões poderia salvá-lo. Na sua ausência, teria talvez alguns minutos a mais de vida.
Em desespero, nadou espalhafatosamente, ao longo da quilha do barco, com o arpão destravado, que agora não passava de um brinquedo diante daquele bando de peixes canibais ensandecidos.
Alcançou as duas grandes hélices de cobre, agarrando-se a uma delas, ofegante, com os lábios formando um esgar de medo e os olhos arregalados, ao se dar conta do frenesi no mar fervilhante a seu redor.
Viu de repente que as bocas dos peixes que arremetiam furiosos estavam meio abertas e que eles mergulhavam e saíam de uma nuvem marrom, que se espalhava desde a superfície. Perto dele, uma barracuda se deteve por um instante, com algo marrom e reluzente nas suas mandíbulas. Engoliu de uma bocada, depois virou e voltou para a confusão.
Ao mesmo tempo, Bond notou que escurecia. Olhou para cima e percebeu, com uma nova compreensão, que a superfície de mercúrio do mar tornara-se vermelha, um horrível carmesim brilhante.
Fiapos dessa substância chegaram flutuando até seu alcance. Puxou-os com a extremidade de sua arma. Segurou-os contra sua máscara.
Não havia mais dúvida.
Alguém lá em cima atirava sangue e vísceras na superfície do mar.
20.
A CAVERNA DE MORGAN, O SANGUINÁRIO
Bond compreendeu de imediato o motivo de todas aquelas barracudas e tubarões estarem rondando a ilha, de como eram mantidos naquele frenesi voraz por esse banquete noturno, por que os três homens, desafiando todas as explicações plausíveis, haviam sido devolvidos à praia, meio devorados pelos peixes.
Mr. Big tinha apenas posto as forças do mar para trabalhar em seu proveito, utilizando-as para sua proteção. Era um invento típico — imaginativo, criativo, tecnicamente à prova de erro e fácil de pôr em prática.
No exato momento em que Bond compreendera isso tudo, algo lhe deu um terrível golpe no ombro e uma barracuda de dez quilos recuou, com carne e borracha preta entre as mandíbulas. Bond não sentiu dor, ao largar a hélice de bronze e nadar desesperadamente até as pedras, só uma náusea terrível na boca do estômago, ao pensar que um pedaço seu se encontrava entre aquelas centenas de dentes afiados como uma navalha. A água começou a vazar entre a borracha aderente e a sua pele. Não demoraria até chegar a seu pescoço e penetrar na máscara.
Já ia desistir e subir disparado pelos sete metros até a tona, quando viu uma larga fissura nas pedras diante dele. Ao lado havia um grande pedregulho tombado de lado e, de algum modo, ele conseguiu se esconder atrás dele. Virou-se, naquele abrigo precário, no momento exato em que a mesma barracuda investia outra vez, com o maxilar superior em ângulo reto em relação ao inferior, a boca escancarada pronta para o bote terrível.
Bond atirou quase às cegas com o arpão. As tiras de borracha dispararam cano abaixo e o arpão dentado pegou o grande peixe no centro da mandíbula superior erguida, atravessando-a e penetrando até a metade do cabo, com a linha ainda livre.
A barracuda estacou a um metro da barriga de Bond. Tentou fechar as mandíbulas e, em seguida, deu uma enorme sacudida na longa cabeça de réptil. Depois se afastou em disparada, ziguezagueando loucamente, arrancando da mão de Bond o arpão e a linha, que arrastou atrás de si. Bond sabia que, antes de ela percorrer cem metros, os demais peixes a atacariam e a fariam em pedaços.
Deu graças a Deus por essa manobra diversiva. Seu ombro estava agora envolto por uma nuvem de sangue. Os outros peixes sentiriam o cheiro em questão de segundos. Contornou o pedregulho imaginando se arranjaria um meio de se abrigar debaixo do atracadouro, escondendo-se de algum modo acima da superfície da água, até pensar em outro plano.
Então viu a caverna que o pedregulho escondera.
Era de fato quase uma porta na base da ilha. Se Bond não estivesse nadando para salvar sua vida, poderia ter entrado nela andando. Mas, naquelas circunstâncias, mergulhou direto na abertura e só parou quando poucos metros o separavam de sua entrada bruxuleante.
Então ficou de pé na areia macia e acendeu a lanterna. Um tubarão talvez pudesse vir atrás dele, mas no espaço confinado seria quase impossível que o mordesse com sua boca situada muito embaixo. Com certeza não viria precipitadamente, porque até o tubarão tem medo de arriscar a pele entre as pedras, e Bond teria ampla oportunidade de procurar atingir seus olhos com a faca.
Bond iluminou o teto e os lados da caverna com a lanterna. Certamente fora modelada ou acabada pela mão do homem. Bond calculou que deveria ter sido escavada de dentro para fora, a partir de algum lugar no centro da ilha.
“Faltam pelo menos vinte metros para acabar, gente”, Morgan, o Sanguinário, deve ter dito aos feitores de escravos. E então as picaretas devem ter rompido de repente o resto da parede que ainda separava a caverna do mar, e uma confusão de pernas, braços e bocas gritando, sufocadas para sempre pela água, teriam sido arremessadas para trás contra a pedra, juntando-se aos cadáveres das demais testemunhas.
O grande pedregulho na entrada deve ter sido posicionado para vedar a saída para o mar. O pescador da baía dos Tubarões que desapareceu de repente, seis meses atrás, deve tê-la descoberto um dia. Fora afastada de sua posição original por alguma tempestade ou tsunami consecutivo a um tufão. Então descobrira o tesouro e percebera que precisava de ajuda para dispor dele. Um branco o enganaria. Melhor procurar o grande gângster negro no Harlem e fazer o melhor acordo que pudesse. O ouro pertencia aos negros que haviam morrido para escondê-lo. Deveria ser devolvido aos negros.
Ali de pé, balançando na correnteza do túnel, Bond imaginou mais um barril cimentado mergulhando no lodo do rio Harlem.
Foi então que ouviu os tambores.
Lá fora, entre os peixes grandes, ouvira uma leve trovoada na água, que aumentara quando entrou na caverna. Mas julgara que eram apenas as ondas batendo na base da ilha e, de qualquer modo, tinha outras coisas em mente.
Mas agora podia distinguir um ritmo definido, e o som ribombava e crescia à sua volta, com um rufo abafado, como se o próprio Bond estivesse preso dentro de um vasto atabaque. A água parecia tremular por causa desse barulho. Ele imaginou o duplo objetivo do batuque. Era um grande chamado aos peixes, usado quando havia invasores, para atrair e excitá-los ainda mais. Quarrel lhe contara como os pescadores noturnos costumam bater nos lados da canoa com o remo para acordar e atrair os peixes. Aquilo deveria ser algo parecido. Ao mesmo tempo seria um aviso macabro do vodu para o pessoal da costa, duplamente eficaz quando algum cadáver era devolvido pelo mar no dia seguinte.
Mais um dos requintes de Mr. Big, pensou Bond. O batuque significava que ele fora descoberto. O que pensariam Strangways e Quarrel ao ouvi-lo? Seriam simplesmente obrigados a aguentar firme, sentados. Bond já havia percebido que os tambores eram algum truque e fizera os dois prometer que não iriam interferir, a não ser que o Secatur escapasse incólume. Pois isso significaria que todos os planos de Bond haviam fracassado. Ele contara a Strangways onde o ouro estava escondido, e neste caso o barco teria de ser interceptado em alto-mar.
Agora o inimigo fora alertado, mas não sabia quem era o invasor, nem se ele ainda estava vivo. Ele precisava prosseguir, nem que fosse para impedir por todos os meios que Solitaire embarcasse no iate condenado.
Bond consultou o relógio. Era meia-noite e meia. Para ele, poderia ter se passado uma semana desde que iniciara sua incursão pelo mar dos perigos.
Apalpou a Beretta sob a roupa de borracha, pensando se já não estaria avariada pela água que entrara pelo rasgo feito pelos dentes da barracuda.
Então, com o troar dos atabaques se aproximando cada vez mais de um crescendo, avançou na caverna, projetando adiante um pequeno feixe de luz com a lanterna.
Avançara cerca de dez metros quando viu um leve brilho na água à sua frente. Apagou a lanterna e foi se aproximando com cautela. O piso arenoso da caverna começou a se inclinar para cima, e a cada metro a luz se tornava mais forte. Agora podia ver dezenas de pequenos peixes que brincavam à sua volta e, mais adiante, a água estava cheia deles, atraídos pela luz da caverna. Caranguejos olhavam atentos de pequenas frestas nas pedras e um polvo novinho se achatou contra o teto, tomando a forma de uma estrela fosforescente.
Em seguida, pôde divisar o final da caverna e uma larga piscina brilhante, além, cujo fundo arenoso era branco como o dia. O roncar dos atabaques aumentava. Parou na sombra da entrada e percebeu que a superfície ficava apenas poucos centímetros acima e que havia lâmpadas sobre a piscina.
Bond estava em um dilema. Mais um passo e ficaria em plena vista de qualquer um que estivesse olhando para a piscina. Ao hesitar, argumentando consigo mesmo, ficou horrorizado ao ver uma fina nuvem de sangue de seu ombro se espalhando pela entrada. Esquecera o ferimento no ombro, que agora começara a latejar, e quando moveu o braço sentiu a ferroada de uma dor intensa em toda sua extensão. Havia também o fino jato de bolhas dos cilindros, mas ele esperava que elas fossem flutuando lentamente para arrebentar na beirinha da entrada.
No exato momento em que recuou alguns centímetros, seu futuro já estava selado.
Sobre sua cabeça percebeu apenas uma enorme pancada na água, e depois dois negros, nus a não ser pelas máscaras de mergulho nos rostos, com longas facas seguras como lanças em suas mãos esquerdas, investiram contra ele.
Antes que sua mão pudesse pegar a faca no cinto, já haviam agarrado seus dois braços e o puxavam para a superfície.
Desesperado, Bond teve de deixar que o tirassem à força da piscina e o jogassem na areia lisa. Depois de ser obrigado a se levantar, abriram os zíperes de seu traje de mergulho. Seu capuz foi retirado da cabeça, o coldre de seu ombro, e de repente ele se achou de pé entre os frangalhos da roupa preta de mergulho, como uma serpente trocando a pele, nu, exceto pelo pequeno calção de banho. O sangue escorria do buraco irregular no ombro esquerdo.
Quando tiraram seu capuz, Bond quase ensurdeceu com a batida e o rufar dos atabaques. O barulho penetrava nele e mexia com tudo em volta. O ritmo rápido e sincopado galopava e latejava nas suas veias. Parecia capaz de acordar toda a Jamaica. Bond fez uma careta e seus sentidos procuraram resistir aos golpes daquela tempestade sonora. Em seguida, os guardas o fizeram se virar e se deparar com uma cena tão grotesca que o som dos atabaques recuou para o fundo e toda sua consciência se concentrou no que via.
No primeiro plano, em uma mesa de jogo com tampo de veludo verde, apinhada de papéis, e sentado em uma cadeira de dobrar, estava Mr. Big, com uma caneta na mão, olhando-o sem curiosidade. Um Mr. Big em um terno castanho-amarelado, bem cortado, de tropical, com camisa branca e gravata de tricô de seda preta. O queixo largo descansava na sua mão esquerda e ele levantou os olhos para Bond como se tivesse sido incomodado, em seu escritório, por alguém de sua equipe pedindo um aumento de salário. Parecia polido, porém levemente entediado.
A alguns passos dele, sinistro e absurdo, o espantalho da efígie do Baron Samedi, ereto sobre uma pedra, observava Bond debaixo de seu chapéu-coco.
Mr. Big tirou a mão do queixo e seus grandes olhos dourados estudaram Bond da cabeça aos pés.
“Bom dia, senhor James Bond”, disse finalmente, projetando a voz inexpressiva contra o barulho já decrescente dos tambores. “A mosca levou mesmo muito tempo para chegar à aranha, ou talvez devesse dizer ‘o lambari à baleia’. Você deixou um belo rastro de bolhas no recife.”
Recostou-se na cadeira e se calou. Os atabaques batiam e rufavam mais baixo.
Então fora a luta contra o polvo que o traíra. A mente de Bond registrou o fato automaticamente, enquanto olhava para além do homem na mesa.
Estava em um salão de pedra grande como uma igreja. Metade do piso era ocupada pela enorme piscina clara e branca pela qual chegara, e que se transformava em verde-mar e depois azul perto do buraco de entrada submarino. Em seguida, havia a faixa estreita de areia em que ele pisava, e o resto do piso era de pedra lisa e plana, marcado por algumas estalagmites cinzentas e brancas.
A alguma distância atrás de Mr. Big uma escadaria íngreme levava a um teto abobadado, do qual pendiam estalactites curtas de calcário. De seus brancos mamilos a água gotejava intermitentemente na piscina, ou sobre as jovens estalagmites que se erguiam do chão, a seu encontro.
Havia uma dúzia de luzes fosforescentes muito claras fixadas alto nas paredes, criando reflexos dourados nos torsos nus de um grupo de negros em pé, à sua esquerda, no piso de pedra, observando Bond de olhos arregalados, mostrando os dentes em sorrisos cruéis e satisfeitos.
Em volta de seus pés pretos e rosados, entre destroços de madeira quebrada e anéis de ferro enferrujados, tiras mofadas de couro e lona decomposta, havia um mar fulgurante de moedas de ouro — metros, cascatas de moedas redondas de ouro, do qual emergiam as pernas pretas, como se tivessem sido detidas no meio de um passeio entre as chamas.
Ao lado deles, empilhadas fileira após fileira, ficavam bandejas rasas de madeira. Algumas estavam no chão, parcialmente cheias de moedas de ouro, e embaixo da escada, um único negro parara na subida, segurando uma delas repleta de moedas de ouro em quatro fileiras cilíndricas, estendida como se estivesse sendo oferecida à venda.
Mais à esquerda, em um canto do salão, havia dois negros próximos a um caldeirão de ferro arredondado, suspenso acima de três maçaricos sibilantes, até que seu fundo ficasse vermelho incandescente. Seguravam escumadeiras de ferro, lambuzadas de ouro até metade de seus cabos. Ao lado deles havia uma miscelânea de peças de ouro, talheres, objetos de altar, copos, cruzes e uma pilha de lingotes de ouro de diversos tamanhos. Ao longo da parede viam-se, próximas a eles, fileiras de bandejas para esfriar o metal, cujas superfícies segmentadas irradiavam um brilho dourado, e uma bandeja vazia descansava no piso perto do caldeirão, junto com uma longa concha manchada de ouro e o cabo envolto em pano.
Acocorado no chão, não muito distante de Mr. Big, um único negro segurava uma faca em uma das mãos, e uma taça ornamentada de brilhantes na outra. A seu lado, em um prato de lata, uma pilha de joias cintilava, embaçadas, vermelhas, azuis e verdes, sob o brilho das lâmpadas fluorescentes.
Estava quente e abafado no grande salão de pedra e, no entanto, Bond tiritava ao abarcar toda essa esplêndida cena com os olhos. O brilho das lâmpadas violeta esbranquiçadas, o bronzeado tremeluzente dos corpos suados, o brilho forte do ouro, o arco-íris do recipiente com os brilhantes, a água marinha em tom leitoso da piscina. Ele tremia diante da beleza daquilo tudo, diante daquela dança petrificada da grande arca do tesouro de Morgan, o Sanguinário.
Seus olhos voltaram para o quadrado de veludo verde e para a grande face de zumbi, olhando aquele rosto e seus olhos amarelos com respeito, quase com reverência.
“Pare os tambores”, disse Mr. Big, para ninguém em particular. O batuque se reduzira a um quase sussurro, a um murmúrio cujo acento recaía sobre o ritmo do coração nas veias. Um dos negros deu dois passos, acompanhados de barulhos metálicos entre as moedas, abaixando-se. Um aparelho de som portátil estava no chão, com um potente amplificador ao lado, contra a parede de pedra. Depois de um clique os tambores pararam. O negro fechou a tampa do aparelho e voltou a seu lugar.
“Andem com o trabalho”, ordenou Mr. Big. E de repente todas as figuras começaram a se mover, como se alguém tivesse posto uma moeda em um caça-níquel. Mexeram o caldeirão, pegaram o ouro e o puseram nas caixas, o sujeito procurava retirar a pedraria da taça, e o negro com a bandeja de ouro prosseguiu subindo a escada.
Bond continuava de pé, pingando suor e sangue.
Big Man descansou a caneta e se levantou devagar. Afastou-se da mesa.
“Assuma meu lugar”, ordenou a um dos homens que guardavam Bond, e o sujeito nu rodeou a mesa, sentou na cadeira de Mr. Big e pegou a caneta.
“Traga-o aqui para cima.” Mr. Big foi até os degraus na rocha e começou a subi-los lentamente.
Bond sentiu uma picada do lado. Acabou de despir os restos de sua segunda pele preta e seguiu a figura que subia devagar.
Ninguém levantou os olhos do trabalho. Ninguém descuidava do serviço quando Mr. Big saía. Ninguém seria capaz de enfiar um brilhante ou uma moeda na boca.
O Baron Samedi assumira a chefia.
Apenas seu zumbi deixara a caverna.
21.
“BOA NOITE A AMBOS”
Subiram vagarosamente por cerca de treze metros, passando por uma porta aberta perto do teto, e pararam em um grande patamar na pedra. Ali um único negro, à luz de um lampião de acetileno, arrumava bandejas cheias de moedas de ouro no meio dos tanques de peixe, muitos já se encontrando empilhados contra a parede.
Enquanto esperavam, dois negros desceram a escada, vindos da superfície, pegaram um tanque pronto e voltaram para cima com ele.
Bond achava que eles enchiam os tanques com areia, plantas aquáticas e peixes em algum lugar no alto, e depois os desciam através da corrente humana ao longo da face do rochedo.
Notou que alguns dos tanques à espera tinham lingotes de ouro fixados no centro, e outros, pedrarias espalhadas como cascalho. Então refez os cálculos sobre o tesouro, quadruplicando seu valor até cerca de quatro milhões de libras esterlinas.
Mr. Big ficou um tempo com o olhar no chão de pedra. Respirava fundo, mas de maneira controlada. Em seguida, subiram.
Vinte degraus acima havia outro patamar, menor, com uma porta de saída. Nela havia corrente e cadeado novos. A própria porta era feita de grades de ferro marrons, achatadas, corroídas pela ferrugem.
Mr. Big parou de novo e ficaram lado a lado na pequena plataforma de pedra.
Por um momento Bond pensou em fugir, mas, como se tivesse lido a sua mente, o guarda negro cercou-o contra a parede, longe de Big Man. E Bond sabia que sua maior obrigação era se manter vivo e chegar a Solitaire, e arranjar um jeito de afastá-la do barco condenado pela mina, em que o ácido roía lentamente o cobre do detonador.
Do alto vinha uma forte correnteza pelo vão da escada, e Bond sentiu que seu suor secava. Pôs a mão direita no ferimento do ombro, sem se assustar com a picada no flanco feita pela faca do guarda. O sangue já secara em crostas e a maior parte do braço doía tremendamente.
Mr. Big falou:
“Este vento, sr. Bond”, apontou para o vão, “é conhecido na Jamaica como ‘vento Papa-Defunto’”.
Bond sacudiu o ombro direito, poupando o fôlego.
Mr. Big virou para a porta de ferro, tirou a chave do bolso e abriu-a. Passou e foi seguido por Bond e seu guarda.
Era um cômodo que consistia em uma estreita passagem, com grilhões enferrujados presos embaixo na parede, a menos de dez metros de intervalo.
Na outra extremidade, onde uma lamparina pendia do teto de pedra, uma figura imóvel estava deitada no chão, embrulhada em um cobertor. Havia mais uma lamparina na porta, em cima de suas cabeças, mas, exceto isso, apenas o cheiro de pedra úmida, torturas antigas e morte.
“Solitaire”, falou Bond, baixinho.
O coração de Bond deu um salto e ele quis se adiantar. Imediatamente uma mão enorme agarrou seu braço.
“Pare aí, seu branco”, vociferou o guarda, torcendo o punho dele entre as espáduas, levantando-o ainda mais, até que Bond deu um chute com o calcanhar esquerdo. Acertou na canela do homem, mas doeu mais em Bond do que no guarda.
Mr. Big se virou. Tinha uma pequena arma quase encoberta pela mão enorme.
“Solte-o”, ordenou em voz baixa. “Se quiser mais um umbigo, senhor Bond, é só dizer. Tenho seis aqui nesta arma.”
Bond passou esbarrando em Big Man. Solitaire se levantara, vindo em sua direção. Quando viu seu rosto, desandou a correr, estendendo as mãos.
“James”, soluçou. “James.”
Ela quase caiu a seus pés. Suas mãos se agarraram.
“Arranje corda”, ordenou Mr. Big no vão da porta.
“Está tudo bem, Solitaire”, disse Bond, sabendo que não estava. “Está tudo bem. Estou aqui agora.”
Ele pegou-a, mantendo-a a distância de seu braço estendido. O braço esquerdo doeu. Ela estava pálida e desarrumada, com um machucado na testa e olheiras. No seu rosto encardido as lágrimas escorriam deixando marcas na pele lívida. Estava sem maquiagem. Trajava um terninho branco sujo e sandálias. Parecia magra.
“O que esse desgraçado anda fazendo com você?”, perguntou Bond. Apertou-a de repente contra si. Ela se agarrou a ele, com o rosto enterrado em seu pescoço.
Em seguida, se afastou e olhou para a mão dele.
“Você está sangrando”, disse. “O que é?”
Virou-o pela metade e viu o sangue preto no seu ombro e pelo braço abaixo.
“Ah, meu querido, o que foi?”
Começou a chorar de novo, desamparada, desesperada, percebendo subitamente que ambos estavam perdidos.
“Amarre-os”, ordenou Big Man, da porta. “Aqui, debaixo da luz. Preciso dizer-lhes umas coisas.”
O negro estava vindo e Bond se virou. Valeria a pena arriscar? O negro só tinha a corda na mão. Mas Big Man deu um passo para o lado, vigiando-o, segurando a arma displicentemente, meio apontada para o chão.
“Não, senhor Bond”, avisou apenas.
Bond lançou um olhar para o negro enorme e pensou em Solitaire e no seu próprio ombro ferido.
O negro chegou e Bond deixou que amarrasse seus braços atrás das costas. Os nós foram bem dados. Não havia folga. Doíam.
Bond sorriu para Solitaire. Piscou um olho pela metade. Não passava de uma bravata, mas percebeu uma vivacidade esperançosa renascer em meio a suas lágrimas.
O negro levou-o de volta à porta.
“Ali”, disse Big Man, fazendo um gesto para um dos grilhões.
O negro derrubou Bond com uma rasteira repentina. Este caiu em cima do ombro ferido. O negro puxou-o pela corda até o grilhão, testou-o, passou a corda por ele e então amarrou Bond pelos tornozelos, muito bem amarrado. Enfiara sua faca em uma fresta na pedra. Tirou-a, cortou a corda e voltou para onde Solitaire estava.
Bond ficou sentado no chão de pedra, com as pernas esticadas para a frente, com os braços suspensos, amarrados por trás. O sangue pingava do ferimento reaberto. Apenas os resíduos da benzedrina no seu corpo o impediam de desmaiar.
Solitaire foi amarrada e colocada quase defronte a ele. Um metro separava os pés de ambos.
Com a tarefa concluída, Big Man consultou o relógio.
“Vá”, ordenou ao guarda. Fechou a porta de ferro depois que o sujeito se foi, ficando encostado nela.
Bond e a garota se entreolharam e Big Man contemplou os dois no chão.
Depois de um de seus longos silêncios, dirigiu-se a Bond. Este levantou os olhos para ele. A enorme bola de futebol cinzenta que era sua cabeça parecia, sob o lampião, a cabeça de um elemental, de algum espectro maligno do centro da terra, pairando no ar, com os olhos dourados ardendo firmes, e o grande corpo na sombra. Bond precisou lembrar-se de que já ouvira o coração dele batendo no peito, já o ouvira respirar, já vira suor na pele cinzenta. Não passava de um homem, da mesma espécie dele, um homem grande, com uma mente brilhante, mas ainda assim um homem que caminhava e defecava, um homem mortal, com uma doença no coração.
A boca larga e borrachuda se abriu, os lábios achatados, levemente virados, recuaram dos grandes dentes brancos.
“Você é o melhor de todos os que foram mandados para me combater”, disse Mr. Big. Sua voz baixa e insossa era pensativa, calculada. “E conseguiu matar quatro de meus ajudantes. Meus seguidores acham isso inacreditável. Já é mais do que tempo de liquidarmos nossas contas. O que aconteceu ao americano não bastou. A traição desta garota”, ele ainda olhava para Bond, “que tirei da sarjeta e estava pronto a colocar na minha mão direita, também questionou a minha infalibilidade. Eu estava imaginando como ela deveria morrer, quando a providência, ou o Baron Samedi, como meus seguidores gostam de acreditar, também trouxe você para o altar de cabeça baixa, pronto para o machado”.
A boca parou, com os lábios entreabertos. Bond viu os dentes se juntarem para formar a palavra seguinte.
“De modo que é conveniente que os dois morram juntos. Isso acontecerá de um modo adequado”, Big Man consultou seu relógio, “dentro de duas horas e meia. Às seis horas, alguns minutos a mais ou a menos”, acrescentou.
“Alguns minutos a mais”, comentou Bond. “Gosto da vida.”
“Na história de emancipação dos negros”, continuou Mr. Big em tom de conversa despreocupada, “já surgiram grandes atletas, grandes músicos, grandes escritores, grandes médicos e cientistas. No seu devido tempo, como aconteceu na história do desenvolvimento de outras raças, hão de surgir negros famosos em todos os demais setores da vida”. Fez uma pausa. “Infelizmente para você, senhor Bond, e para esta garota, vocês encontraram o primeiro dos grandes criminosos negros. Uso esta palavra vulgar, senhor Bond, porque seria a mesma que você, senhor Bond, como uma espécie de policial, usaria. Mas prefiro me considerar uma pessoa que possui a habilidade, as capacidades mentais e nervosas para criar as próprias leis e agir segundo elas, em vez de aceitar as leis que convêm ao mínimo denominador comum das pessoas. Sem dúvida você já leu Os instintos do rebanho na paz e na guerra, de Trotter. Pois bem, sou lobo por índole e opção, e vivo segundo as leis do lobo. É natural que os carneiros descrevam este indivíduo como ‘criminoso’.
“O fato, senhor Bond”, prosseguiu Big Man, depois de uma pausa, “de que sobrevivo e, na verdade, gozo de um sucesso ilimitado, embora seja eu sozinho contra milhões de carneiros, se deve às técnicas modernas que lhe descrevi por ocasião de nossa última conversa, e a uma infinita capacidade de me esforçar. Não os esforços tediosos, vulgares, e sim os artísticos e sutis. E eu noto, senhor Bond, que não é difícil enganar os carneiros, não importa quantos, com muita dedicação ao trabalho e, naturalmente, se formos um lobo extremamente bem dotado.
“Deixe-me ilustrar, por exemplo, como funciona a minha mente. Estudemos o método pelo qual decidi que ambos morrerão. É uma variação moderna do método usado na época do meu generoso patrono, sir Henry Morgan. Naquele tempo, era conhecido como ‘arrastamento pela quilha’.”
“Por favor, continue”, disse Bond, sem olhar para Solitaire.
“Temos uma paravana a bordo do iate”, prosseguiu Mr. Big, como se fosse um cirurgião descrevendo uma operação delicada para um grupo de estudantes, “que usamos para rebocar tubarões e outros peixes de grande porte. Esta paravana é, como sabem, um aparelho com a forma de um torpedo, que boia puxado por um cabo, distante do barco. Pode ser usada para sustentar a extremidade de uma rede, rebocando-a através da água, com o barco em movimento. Também pode ser equipada com um instrumento de corte, para cortar os cabos de amarração das minas em época de guerra.
“Pretendo”, continuou Mr. Big, em um tom de voz discursivo e natural, “amarrá-los juntos à extremidade de um cabo preso a essa paravana e rebocá-los pelo mar até que sejam devorados pelos tubarões”.
Fez uma pausa, enquanto seu olhar passava de um para outro. Solitaire mirava de olhos arregalados para Bond, que se esforçava em pensar, com o olhar ausente, perscrutando o futuro. Sentiu que deveria dizer alguma coisa.
“Você é um homem grande”, afirmou, “e um dia morrerá de uma morte igualmente grande e terrível. Se nos matar, essa morte virá em breve. Já a providenciei. Está enlouquecendo a olhos vistos, senão perceberia a repercussão que nosso assassinato terá sobre sua vida”.
Enquanto falava, a mente de Bond funcionava rápido, contando horas e minutos, sabendo que a própria morte de Big Man chegaria devagar, com o ácido corroendo o detonador seguindo o ponteiro dos minutos, rumo à hora do encontro final com seu destino. Mas estariam ele e Solitaire mortos, antes que soasse essa hora? Minutos, talvez segundos, fariam a diferença. O suor escorria do seu rosto para o peito. Sorriu para Solitaire. Ela lhe deu um olhar ausente, sem enxergá-lo.
De repente deu um grito agoniado que sacudiu os nervos de Bond.
“Não sei”, gritou. “Não consigo ver. Está tão perto, tão próximo. Há muitas mortes. Mas...”
“Solitaire”, gritou Bond, apavorado com a possibilidade de que as coisas estranhas que ela previsse, quaisquer que fossem, pudessem servir de aviso a Big Man. “Controle-se.”
Havia um toque de raiva em sua voz.
Os olhos dela clarearam, olhando mudos para ele, sem compreender.
Big Man falou de novo.
“Não estou ficando louco, senhor Bond”, avisou calmamente, “e nenhuma providência sua me afetará. Vocês morrerão além do recife e não restará nenhum indício. Rebocarei os restos de seus corpos até que não sobre nada. Isso faz parte da sagacidade dos meus planos. Vocês também devem saber que o tubarão e a barracuda desempenham um papel no voduísmo. Eles receberão seus sacrifícios e o Baron Samedi será apaziguado. Meus seguidores ficarão satisfeitos. Da mesma forma, desejo continuar minhas experiências com os peixes carnívoros. Acredito que só atacam quando há sangue na água. Por isso seus corpos serão rebocados desde a ilha. A paravana os rebocará sobre o recife. Acho que não serão atacados antes da barra. O sangue e as vísceras que são jogados todas as noites nessas águas já terão sido dispersos ou consumidos. Mas quando seus corpos forem rebocados por cima do recife, infelizmente sangrarão, ficarão em carne viva. Então veremos se minhas teorias estão corretas.”
Big Man estendeu a mão para trás e abriu a porta.
“Eu os deixarei agora”, falou, “para que reflitam sobre a excelência do método que criei para matá-los juntos. Não restará indício algum. A superstição ficará satisfeita. Meus seguidores também. Os corpos serão utilizados para a pesquisa científica.
“Isso é o que eu chamo, senhor James Bond, de uma capacidade infinita de refinamento artístico.”
Parou no vão da porta e olhou para os dois.
“Uma noite breve, porém boa. É o que desejo a ambos.”
22.
TERROR NO MAR
O dia ainda não clareara quando os guardas vieram buscá-los. As cordas que prendiam suas pernas foram cortadas e, com os braços ainda atados, foram levados pelos últimos degraus de pedra que faltavam para a superfície.
Ficaram entre algumas árvores esparsas e Bond aspirou o ar frio da manhã. Olhou através das árvores na direção do oriente e viu que as estrelas estavam mais pálidas e havia uma luminosidade no horizonte que anunciava o raiar da aurora. O cicio noturno dos grilos quase terminara e, em algum canto da ilha, um tordo ensaiava as primeiras notas do dia.
Bond calculou que deviam ser mais ou menos cinco e meia.
Ficaram ali vários minutos. Os negros passavam próximos a eles, carregando embrulhos e malas de fibra de palmeira, entre cochichos cautelosos. As portas do punhado de palhoças entre as árvores estavam escancaradas. Os homens andavam em fila até a beira do penhasco, à direita de Bond e Solitaire, desaparecendo por ali. Não voltavam. Era uma evacuação. Toda a guarnição da ilha levantava acampamento.
Bond esfregou o ombro desnudo contra Solitaire e ela se aninhou contra ele. Fazia frio depois da masmorra abafada, e Bond tiritava. Mas era melhor estar em movimento do que prolongar o suspense lá de baixo.
Ambos sabiam o que precisava ser feito, a natureza do risco.
Depois que Big Man os deixara, Bond não perdera tempo. Falando baixinho, contara à garota sobre a mina magnética presa ao costado do barco, prevista para explodir alguns minutos depois das seis horas, e explicara os fatores decisivos para saber quem morreria ou não naquela manhã.
Primeiro, apostara na mania de exatidão e de eficiência de Mr. Big. O Secatur precisava zarpar às seis horas em ponto. Portanto, não deveria haver nenhuma nuvem, se não a visibilidade na meia-luz do amanhecer não seria suficiente para assegurar a passagem do barco através do recife, e Mr. Big adiaria a partida. Se Bond e Solitaire estivessem no atracadouro ao lado do iate, morreriam junto com Mr. Big.
Supondo que o barco zarpasse na hora exata, a que distância e de que lado dele seriam rebocados? Teria de ser a bombordo para que a paravana ficasse desimpedida na hora de deixar a ilha. Bond supôs que o cabo de reboque da paravana teria cinquenta metros de comprimento, e que eles seriam rebocados vinte ou trinta metros atrás da paravana.
Se ele estivesse certo, seriam arrastados por cima do recife externo cerca de cinquenta metros depois de o Secatur ter rompido pelo canal. Provavelmente se aproximaria da passagem nos recifes a cerca de três nós e, em seguida, pegaria velocidade até chegar a dez, ou até mesmo a vinte. De início seus corpos seriam rebocados da ilha em um lento arco, virando e se retorcendo na ponta da linha de reboque. Logo depois a paravana se endireitaria e, mesmo após o barco ter transposto o recife, eles ainda não teriam chegado a ele. Portanto, a paravana passaria pelo recife quando o barco já o tivesse ultrapassado em quarenta metros, e depois eles a seguiriam a alguns metros a mais de distância.
Bond estremeceu ao pensar nos ferimentos que seus corpos sofreriam se fossem arrastados, a qualquer velocidade, sobre os dez metros de árvores e recifes de coral, afiados como uma navalha. Ficariam com as costas e as pernas esfoladas.
Depois de atravessarem o recife, não passariam de uma isca sanguinolenta, e seria apenas uma questão de minutos até que o primeiro tubarão ou barracuda avançasse neles.
E Mr. Big, sentado confortavelmente no deque da popa, assistiria à carnificina, talvez de binóculos, marcando os segundos e os minutos enquanto a isca viva ia diminuindo de tamanho, até que finalmente os peixes só abocanhassem o cabo ensanguentado.
Até que não restasse coisa alguma.
Então a paravana seria içada a bordo e o iate cortaria o mar graciosamente rumo à longínqua Florida Keys, a Cape Sable e ao atracadouro ensolarado no porto de St. Petersburg.
E se a mina explodisse quando eles ainda estivessem na água, a cinquenta metros do barco? Qual seria o efeito do deslocamento de ar em seus corpos? Talvez não fosse fatal. O casco do iate absorveria a maior parte. O recife talvez os protegesse.
Bond só podia adivinhar e manter a esperança.
Sobretudo, precisavam continuar vivos até o último segundo possível. Precisavam continuar respirando enquanto fossem arrastados, como um pacote vivo, pelo mar. Muita coisa dependia da maneira como eles os amarrariam um ao outro. Mr. Big haveria de querer que continuassem vivos. Não lhe interessaria uma isca morta.
Se ainda estivessem vivos quando a primeira barbatana de tubarão surgisse à tona atrás deles, Bond decidira afogar friamente Solitaire. Afogá-la torcendo seu corpo debaixo do seu e segurando-o ali. Em seguida, tentaria se afogar torcendo o corpo morto dela de volta para que o seu ficasse por baixo.
Cada volteio de seu pensamento esbarrava em um pesadelo, no horror nauseante de cada detalhe medonho da tortura monstruosa que aquele homem havia preparado para eles. Mas Bond sabia que precisava conservar o sangue-frio e a resolução absoluta de lutar pelas suas vidas até o fim. Havia ao menos uma sensação calorosa na ideia de que Mr. Big e a maioria de seus homens também morreriam. E um lampejo de esperança de que ele e Solitaire talvez sobrevivessem. A não ser que a mina falhasse, o inimigo não poderia contar com nenhuma esperança.
Tudo isso e uma centena de outros pormenores e planos passaram pela cabeça de Bond na última hora antes de serem levados pelo vão da escada até a superfície. Com Solitaire compartilhou todas as suas esperanças. Nenhum dos seus temores.
Ela ficara deitada à sua frente, com seus olhos azuis e cansados fixos nele, obedientes, confiantes, bebendo seu rosto e suas palavras, dóceis, amorosos.
“Não se preocupe comigo, querido”, dissera, quando os homens vieram buscá-los. “Sinto-me feliz de estar de novo com você. Meu coração está cheio de felicidade. De algum modo, não estou com medo, apesar de pressentir uma grande matança. Você me ama um pouquinho?”
“Sim”, respondeu Bond. “E vamos ainda aproveitar o nosso amor.”
“Vambora”, disse um dos homens.
E agora, no alto do morro, clareava. Bond ouviu os dois grandes motores a diesel tossirem e roncarem embaixo do penhasco. Uma leve brisa soprava a barlavento, mas a sota-vento, onde estava o barco, a baía era um espelho de bronze.
Mr. Big apareceu no alto da escadaria, com uma pasta de executivo na mão. Ficou por um momento olhando em volta, recuperando o fôlego. Não prestou nenhuma atenção a Bond ou Solitaire, nem aos dois guardas ao lado deles, de revólveres na mão.
Olhou para o céu e de repente clamou, em um tom de voz nítido, na direção da orla do sol.
“Obrigado, sir Henry Morgan. Seu tesouro será bem gasto. Dê-nos um vento de popa.”
Os guardas negros arregalaram os olhos.
“O vento Papa-Defunto”, disse Bond.
Big Man olhou-o.
“Já está tudo embaixo?”, perguntou aos guardas.
“Sim senhor, patrão”, respondeu um deles.
“Leve-os”, ordenou Big Man.
Foram até a beira do penhasco e desceram a escadaria íngreme, com um guarda na frente, outro atrás e Mr. Big a seguir.
Os motores do longo e elegante iate giravam sossegados, com o escape borbulhando gravemente, e um fio de vapor azul a se erguer da popa.
Três sujeitos no molhe cuidavam das guias. Só havia três homens no convés, além do capitão, e o piloto na ponte escura, bem projetada. Não havia mais espaço para ninguém. Todo o espaço disponível no convés, exceto por uma cadeira de pesca presa no lado direito da popa, era preenchido pelos tanques de peixe. Com o pavilhão vermelho arriado, só a bandeira americana pendia imóvel da popa.
Distante alguns metros do barco, a paravana vermelha em forma de torpedo, com cerca de dois metros de comprimento, flutuava tranquilamente na água, agora verde-mar ao primeiro amanhecer. Estava ligada a uma grossa pilha de cabos metálicos, enrolados no convés da popa. Parecia a Bond que eles deveriam ter uns bons cinquenta metros. A água estava cristalina e não havia peixes rondando por perto.
O vento Papa-Defunto morria aos poucos. Dentro em breve o vento Médico começaria a soprar vindo do mar. Dentro de quanto tempo?, perguntou-se Bond. Seria um presságio?
Ao longe, além do barco, ele conseguia avistar o teto de Beau Desert entre as árvores, mas o molhe, o barco e a trilha no penhasco ainda estavam mergulhados em profunda sombra. Bond pensou se os binóculos de visão noturna conseguiriam vê-los. Se pudessem, o que pensaria Strangways?
No molhe, Mr. Big supervisionava a tarefa de amarrá-los.
“Tire a roupa dela”, ordenou ao guarda.
Bond se encolheu. Deu uma olhada de relance para o relógio de pulso de Mr. Big. Nele, faltavam dez minutos para as seis. Bond manteve silêncio. Não deveria haver nem um minuto de atraso.
“Jogue as roupas a bordo”, disse Mr. Big. “Amarre uns panos no ombro dele. Não quero que haja sangue na água ainda.”
As roupas de Solitaire foram cortadas a faca. Ela permaneceu ali, nua e pálida. Abaixou a cabeça e seus cabelos pesados caíram para a frente, tapando seu rosto. O ombro de Bond foi atado grosseiramente com tiras do seu vestido de linho.
“Canalha”, desabafou Bond, de dentes cerrados.
Sob a direção de Mr. Big, primeiro soltaram as mãos dos dois. Seus corpos foram atados frente a frente, e seus braços passados pela cintura um do outro, e depois novamente atados com força.
Bond sentiu a pressão dos seios macios de Solitaire. Ela encostou o queixo no ombro direito dele.
“Eu não queria que fosse assim”, sussurrou, trêmula.
Bond não respondeu. Mal sentia o corpo dela. Contava os segundos.
No molhe havia uma corda enovelada que ia até a paravana. Mergulhava na água e Bond a distinguia seguindo no fundo de areia até surgir de encontro à barriga do torpedo vermelho.
Sua extremidade solta foi passada debaixo das axilas de Bond e Solitaire, e bem amarrada com um nó que ficava no espaço entre seus pescoços. Tudo feito com muito cuidado. Não havia possibilidade de fuga.
Bond contava os segundos. De acordo com ele, faltavam cinco para as seis.
Mr. Big deu uma última olhada nos dois.
“Deixem as pernas soltas”, comentou. “Dão uma isca apetitosa.” Deixou o molhe e embarcou no convés do iate.
Os dois guardas também embarcaram. Depois de soltarem as guias, os dois sujeitos no molhe os seguiram. As hélices revolveram a água mansa e, com os motores a meia velocidade, o Secatur se afastou rapidamente da ilha.
Mr. Big foi para a popa, sentando-se na cadeira de pesca. Podiam ver o seu olhar fixo neles. Não disse nada. Não fez gesto algum. Apenas contemplava.
O Secatur cortava a água em direção ao recife. Bond podia ver o cabo da paravana se desenrolando no costado. A paravana começou a se mover lentamente atrás do barco. De repente mergulhou o nariz, endireitou-se e disparou, com o leme se dobrando na direção contrária à esteira do barco.
O rolo de corda ao lado deles deu um súbito sinal de vida.
“Cuidado”, avisou Bond, com urgência, agarrando-se com mais força à garota.
Seus braços quase se desconjuntaram com o solavanco do puxão, quando caíram do molhe no mar.
Por um instante ambos submergiram, depois voltaram à tona, com seus corpos unidos rasgando a água.
Bond procurava respirar em meio às ondas e aos borrifos que passavam depressa por ele, inundando sua boca retorcida. Podia ouvir a respiração entrecortada de Solitaire ao lado do seu ouvido.
“Respire, respire”, gritou, através da avalanche de água. “Prenda suas pernas nas minhas.”
Ela ouviu-o e ele sentiu entre as coxas a pressão dos joelhos dela. Solitaire teve um acesso de tosse. Em seguida, a respiração dela tornou-se mais regular junto ao seu ouvido e as batidas do coração da mulher acalmaram-se contra o seu peito. Ao mesmo tempo, a velocidade em que eram rebocados sofreu uma redução.
“Prenda a respiração”, gritou Bond. “Preciso dar uma olhada. Pronta?”
Ela respondeu com uma pressão dos braços. Ele sentiu o peito dela inflar quando seus pulmões se encheram de ar.
Usando o peso do corpo, girou-a para baixo, de maneira que a cabeça dele agora estava totalmente fora d’água.
Cortavam o mar a cerca de três nós. Dobrou a cabeça acima da pequena marola que faziam.
O Secatur entraria na passagem entre os recifes dentro de aproximadamente oitenta metros, segundo calculou. A paravana deslizava lentamente, quase em ângulo reto em relação ao barco. Faltavam trinta metros para o torpedo vermelho atravessar as águas encrespadas sobre o recife. Trinta metros atrás da paravana, eles navegavam devagar na superfície da baía.
Sessenta metros até o recife.
Bond girou o corpo e Solitaire emergiu, ofegante.
Continuaram a avançar lentamente na água.
Cinco metros, dez, quinze, vinte...
Apenas quarenta metros para atingirem o banco de coral.
O Secatur deveria ter acabado de transpô-lo. Bond recuperou o fôlego. Já devia passar das seis. Que teria acontecido com a porcaria da mina? Bond fez uma rápida e fervorosa oração. Que Deus nos salve, disse dentro d’água.
De repente sentiu que a corda apertava sob seus braços.
“Respire, Solitaire, respire”, gritou quando retomaram a velocidade e a água começou a passar sibilante por eles.
Agora voavam pelo mar em direção ao recife submerso.
Houve uma ligeira diminuição de velocidade. Bond imaginou que a paravana tivesse batido em uma pedra ou algum coral na superfície. Em seguida, seus corpos voltaram a disparar no seu abraço mortal.
Faltavam trinta metros, vinte, dez...
Meu Deus, pensou Bond. Não escaparemos. Contraiu os músculos para enfrentar a dor lancinante do impacto, empurrando Solitaire mais para cima, para protegê-la do pior.
De repente o ar fugiu com um chiado de seus pulmões, e um punho gigantesco socou-o contra Solitaire, de modo que ela se ergueu totalmente fora do mar e voltou a cair. Uma fração de segundo depois, um clarão iluminou o céu e ouviu-se o ribombar de uma explosão.
Estacaram de repente, e Bond percebeu que o peso da corda solta os puxava para baixo.
Suas pernas afundaram sob seu corpo atordoado e a água inundou sua boca.
Foi o que o fez recuperar a consciência. As pernas dele se debateram no fundo, voltando a trazer suas bocas até a tona. A garota era um peso morto em seus braços. Ele revolvia a água em desespero e olhava à sua volta, segurando a cabeça desmaiada de Solitaire em seu ombro, acima da superfície.
A primeira coisa que viu foram as águas revoltas do recife, a não mais de cinco metros de distância. Sem a sua proteção, ambos teriam sido esmagados pelo impacto da explosão. Ele sentiu o repuxo e o rodamoinho da correnteza em volta das pedras. Avançou desesperado em direção a ele, aspirando golfadas de ar sempre que possível. Seu peito ardia com o esforço e ele via o céu através de uma película vermelha. A corda o puxava para baixo e o cabelo da garota enchia sua boca, quase o sufocando.
De repente sentiu um arranhão agudo do coral contra a parte de trás das pernas. Chutou-as procurando desesperadamente um apoio para os pés, esfolando a pele a cada movimento.
Mal sentia dor.
Agora eram seus braços e suas costas que estavam sendo arranhados. Tropeçou, desajeitado, com os pulmões ardendo no peito. Em seguida sentiu uma camada de agulhas sob os pés. Arriou o peso nela, inclinando-se para trás para resistir à forte correnteza que procurava desalojá-lo. Seus pés resistiram e havia rocha às suas costas. Inclinou-se para trás, ofegante, com o sangue escorrendo em volta dele na água, segurando contra si o corpo frio da garota, que mal respirava.
Descansou por um minuto, com gratidão, olhos fechados e o sangue pulsando nas veias, tossindo dolorosamente, à espera de que seus sentidos se reanimassem. Seu primeiro pensamento foi em relação ao sangue na água à sua volta. Mas desconfiou de que os grandes peixes não se aventuravam até o recife. Aliás, não havia nada que ele pudesse fazer quanto a isso.
Em seguida, olhou para o mar.
Não havia sinal algum do Secatur.
No alto do céu tranquilo via-se um cogumelo de fumaça, que o vento Médico começava a arrastar em direção à terra.
Havia destroços espalhados sobre toda a extensão do mar e cabeças que subiam e desciam. A água estava toda coalhada com as barrigas brancas dos peixes atordoados ou mortos pela explosão. Um cheiro forte de explosivo pairava no ar. Na orla dos destroços a paravana vermelha jazia tranquila com o casco para baixo, ancorada pelo cabo cuja outra ponta deveria se encontrar em algum lugar no fundo. Colunas de bolhas emergiam na superfície vítrea do mar.
Na beira do círculo de peixes mortos e cabeças balouçantes, algumas barbatanas triangulares cortavam rápido o mar. Mais delas surgiram enquanto Bond observava. Em uma ocasião viu um grande focinho surgir da água e abocanhar alguma coisa. As barbatanas espirravam água ao chapinhar entre os escolhos. Dois braços negros se ergueram de repente no ar, desaparecendo em seguida. Ouviram-se gritos. Algumas pessoas davam braçadas agitadas no mar em direção ao recife. Alguém parou para bater na água diante dele com a mão espalmada. Depois as mãos desapareceram sob a superfície. Ouviram-se os gritos de quando seu corpo foi sacudido para lá e para cá dentro d’água. Uma barracuda o devorando, disse Bond consigo mesmo, atordoado.
Mais uma cabeça se aproximava, procurando chegar ao ponto do recife onde estava Bond, pequenas ondas quebrando sob suas axilas, e o cabelo preto da garota caído nas suas costas.
Era uma cabeça grande. Uma cortina de sangue escorria pelo seu rosto, de um ferimento no crânio imenso e calvo.
Bond observava a sua aproximação.
Big Man executava um nado de peito desajeitado, fazendo tanto espalhafato na água que era capaz de atrair qualquer peixe que já não estivesse ocupado.
Bond perguntou a si mesmo se ele conseguiria chegar. Seus olhos se estreitaram e sua respiração se acalmou, contemplando e esperando a decisão que o mar cruel tomaria.
A cabeça se aproximava. Bond podia ver os dentes à mostra em uma contração de agonia e de esforço titânico. O sangue tapava os olhos que Bond sabia estarem esbugalhados. Podia quase ouvir o grande coração doente batendo debaixo da pele preta acinzentada. Pararia antes que a isca fosse abocanhada?
Big Man continuava a vir. Os ombros estavam nus, as roupas haviam sido arrancadas pela explosão, imaginou Bond, porém, a gravata de seda preta resistira e aparecia em volta do pescoço grosso, arrastada atrás da cabeça como um rabicho de chinês.
Um borrifo de água limpou um pouco do sangue de seus olhos. Estavam arregalados, olhando desvairados para Bond. Neles não havia nenhuma súplica, somente o olhar fixo da exaustão física.
No instante mesmo em que Bond os contemplava, agora a apenas dez metros, fecharam-se de repente e o grande rosto se contorceu em uma careta de dor.
“Aarrh”, gritou a boca retorcida.
Os dois braços pararam de bater na água e a cabeça afundou e voltou à tona de novo. Uma nuvem de sangue escureceu o mar. Duas sombras esguias e marrons de três metros se afastaram da nuvem e, em seguida, voltaram rápido para ela. O corpo na água foi sacudido de lado. Metade do braço de Big Man surgiu à tona. Sem mão, sem pulso, nem relógio.
Mas a grande cabeça de nabo, a boca arreganhada cheia de dentes brancos que quase a dividiam ao meio, ainda estava viva. E agora berrava. Um grande berro gorgolejante que só dava quando alguma barracuda abocanhava seu corpo.
Ouviu-se um grito distante na baía, atrás de Bond. Mas ele não prestou atenção. Todos os seus sentidos estavam concentrados na cena horripilante no mar diante dele.
Uma barbatana rasgou a superfície a alguns metros de distância e parou.
Bond pôde ver o tubarão apontando o focinho como um cachorro, com os olhos míopes, rosados e redondos, tentando penetrar a nuvem de sangue e avaliar a presa. Então arremeteu contra o torso, e a cabeça que gritava afundou tão rápido quanto um peso de chumbo.
Algumas bolhas estouraram na superfície.
Houve um rodamoinho causado pela cauda manchada de marrom de um grande tubarão-leopardo, que recuou para engolir e para atacar de novo.
A cabeça voltou a flutuar. A boca estava fechada. Os olhos amarelos pareciam ainda se fixar em Bond.
O focinho do tubarão saiu da água e avançou para a cabeça, com a mandíbula inferior aberta e a luz brilhando em seus dentes. Houve um rangido horrível de osso triturado e um rodamoinho. Depois, o silêncio.
Os olhos dilatados de Bond continuaram a mirar a mancha marrom que cada vez mais se espalhava no mar.
A garota deu um gemido e Bond recuperou a lucidez.
Ouviu-se outro grito atrás dele e Bond virou a cabeça para a baía.
Era Quarrel, seu peito moreno e luzidio avultando sobre o casco esguio da canoa, com os braços trabalhando o remo, seguido, a uma longa distância, por todas as outras canoas da baía dos Tubarões deslizando sobre as pequenas ondas que haviam começado a encrespar a superfície.
Os ventos elísios do nordeste haviam começado a soprar e o sol brilhava na água azul e nos doces flancos verdes da Jamaica.
As primeiras lágrimas que brotaram dos olhos azuis-acinzentados de James Bond desde a sua infância escorreram pelo seu rosto contraído, caindo no mar manchado de sangue.
23.
LICENÇA PAIXÃO
Como dois pingentes de esmeralda, dois beija-flores faziam a última ronda pelos hibiscos. Um tordo começara sua cantoria vespertina, mais doce que a do rouxinol, em cima de um arbusto perfumado de jasmim da noite.
A sombra irregular de uma fragata deslizou por cima do gramado verde, enquanto planava nas correntes de ar que subiam a costa até alguma distante colônia, e o martim-pescador azul-acinzentado chilreou, irritado, ao ver o homem sentado em uma cadeira no jardim. Mudou a direção do voo e guinou, atravessando o mar, até a ilha. Uma borboleta sulfurina flertava entre as sombras roxas das palmeiras.
O mar de variados tons de azul da baía estava bastante calmo. Os penhascos da ilha eram de um rosa profundo, à luz do sol que se punha atrás da casa.
Havia um cheiro de entardecer e de frescor depois do calor do dia, e um leve perfume de farinha de mandioca torrada vindo das cabanas de pescadores, no povoado à direita, a distância.
Solitaire saiu da casa de pés descalços e atravessou o gramado. Carregava uma bandeja com uma coqueteleira e dois copos. Colocou-a na mesa de bambu ao lado da cadeira de Bond.
“Espero ter feito direito”, comentou. “Seis partes para uma parece terrivelmente forte. Nunca tomei martíni de vodca.”
Bond olhou para ela. Vestia um de seus pijamas brancos de seda. Eram demasiado grandes. Parecia absurdamente infantil.
Ela riu. “O que acha de meu batom de Port Maria?”, perguntou. “E as sobrancelhas delineadas com lápis HB? Não consegui fazer mais nada para me ajeitar, além de tomar banho.”
“Está uma maravilha”, disse Bond. “Você é de longe a garota mais bonita da baía dos Tubarões. Se eu tivesse pernas e braços, me levantaria para lhe dar um beijo.”
Solitaire se inclinou e lhe deu um longo beijo na boca, com o braço apertado em volta de seu pescoço. Levantou-se e afastou a mecha curva de cabelos sobre a testa dele.
Olharam um para o outro. Em seguida, ela virou para a mesa e lhe serviu um coquetel. Despejou meio copo para si e sentou no gramado quente, com a cabeça contra o joelho de Bond. Ele brincou com a mão direita entre os cabelos dela e ficaram um instante sentados, olhando o mar entre as palmeiras e a luz que declinava na ilha.
O dia fora dedicado a lamber as feridas e ajeitar o que sobrara da confusão.
Quando Quarrel desembarcara com eles na pequena praia de Beau Desert, Bond carregara Solitaire pelo gramado até o banheiro. Enchera a banheira de água quente. Sem que ela soubesse o que estava acontecendo, ele ensaboara e lavara todo seu corpo e seus cabelos. Depois de tirar todo o sal e musgo do coral, ajudou-a a sair, secou-a e botou mertiolato nos cortes de coral que marcavam suas costas e suas coxas. Depois lhe deu um comprimido para dormir e colocou-a nua entre os lençóis de sua própria cama. Beijou-a. Antes de fechar as venezianas, ela já dormia.
Entrou no banheiro e Strangways o ensaboou. Depois quase o banhou em mertiolato. Sangrava e estava esfolado em centenas de lugares, com o braço esquerdo dormente por causa da mordida da barracuda. Perdera um bocado de músculo do ombro. A ardência do mertiolato fez com que trincasse os dentes. Vestiu um roupão e Quarrel o levou ao hospital em Port Maria.
Antes de partir, tomou um café da manhã reforçado e fumou um bendito cigarro. Dormiu no carro, dormiu na mesa de operações e na cama onde finalmente o puseram, como uma massa de ataduras e esparadrapo cirúrgico.
Quarrel trouxe-o de volta no começo da tarde. A essa altura Strangways já agira de acordo com as instruções que Bond lhe dera. Mandaram um destacamento de polícia para a ilha da Surpresa. Os destroços do Secatur, a trinta e seis metros de profundidade, receberam uma boia de sinalização, que passou a ser patrulhada pela lancha da alfândega de Port Maria. O rebocador de salvamento e os mergulhadores estavam a caminho a partir de Kingston. Os repórteres da imprensa local tinham recebido uma breve declaração, e havia policiais em guarda na entrada de Beau Desert, para conter a avalanche de repórteres que chegariam à Jamaica, depois que toda a história corresse o mundo. Enquanto isso, um relatório completo fora enviado a M e a Washington, de modo que o bando de Big Man no Harlem e em St. Petersburg pudesse ser preso provisoriamente sob a acusação preventiva de contrabando de ouro.
Não houve sobreviventes do Secatur, mas os pescadores locais trouxeram quase uma tonelada de peixes mortos naquela manhã.
A Jamaica estava fervilhando de boatos. Fileiras de carros paravam, lado a lado, nos penhascos acima da baía e ao longo da praia embaixo. Espalhara-se a notícia do tesouro de Morgan, o Sanguinário, porém, o bando de tubarões e barracudas também o protegia. Por causa deles não havia nadador que arriscasse ir até a cena do naufrágio na calada da noite.
Veio um médico visitar Solitaire. Ele encontrou-a preocupada principalmente em arranjar roupas e o batom no tom certo. Strangways encomendara uma amostra completa deles de Kingston, que chegaria no dia seguinte. Por enquanto, ela fazia experiências com o conteúdo da valise de Bond e uma tigela de hibiscos.
Strangways voltou de Kingston após a saída de Bond do hospital. Trouxe um telegrama cifrado de M para Bond, no qual se lia:
SUPONHO REIVINDICOU TESOURO EM SEU NOME REPRESENTANDO UNIVERSAL EXPORT PONTO PROSSIGA IMEDIATAMENTE SALVAMENTO PONTO CONTRATEI ADVOGADO DEFENDER DIREITOS JUNTO TESOURO E MINISTÉRIO COLÔNIAS PONTO ENQUANTO ISSO PARABÉNS PONTO CONCEDIDA LICENÇA PAIXÃO QUINZE DIAS PONTO FINAL
“Suponho que ele queira dizer ‘compaixão’”, comentou Bond.
Strangways tinha um aspecto solene. “Acho que sim”, respondeu. “Fiz um relatório completo dos danos que você sofreu. E a garota também”, acrescentou.
“Hmm”, disse Bond. “As expressões cifradas geralmente são precisas. Mesmo assim.”
Strangways olhou propositalmente pela janela, reprimindo um sorriso.
“Bem típico da velha raposa, pensar primeiro no ouro”, comentou Bond. “Suponho que ele ache que conseguirá obter o que quer, descobrindo um modo de contornar a redução da verba secreta quando houver nova reunião do Parlamento para avaliá-la. Creio que passa metade de sua vida brigando com o Tesouro. Mesmo assim, está muito errado se pensa que conseguirá.”
“Dei entrada na sua reivindicação na sede do governo, assim que recebi a mensagem”, relatou Strangways. “Mas será difícil. A Coroa virá atrás do tesouro e a América entrará nisso de alguma forma, porque Big Man era cidadão americano. Vai dar pano pra manga.”
Haviam conversado mais um pouco e depois Strangways partira. Bond caminhara cheio de dores até o jardim, para se sentar um pouco ao sol, sozinho com seus pensamentos.
Recapitulou a série de riscos que correra na sua longa busca por Big Man e pelo tesouro fabuloso, revivendo os episódios em que enfrentara a morte cara a cara.
Agora terminara e ele estava sentado ao sol, entre as flores, com a recompensa aos seus pés e sua mão entre os longos cabelos pretos dela. Agarrou bem aquele instante e pensou nos catorze dias seguintes que lhes pertenceriam.
Ouviram-se um barulho de louça quebrada na cozinha, nos fundos da casa, e o som da voz de Quarrel praguejando contra alguém.
“Pobre Quarrel”, disse Solitaire. “Arranjou a melhor cozinheira do povoado e varreu os mercados atrás de surpresas para nós. Chegou a encontrar caranguejos negros, os primeiros da época. Depois passou a assar o pobrezinho de um leitão ainda mamando e a fazer uma salada de abacate, para terminar com goiabas e manjar de coco. E o Comandante Strangways deixou uma caixa do melhor champanhe da Jamaica. Já estou com água na boca. Mas não se esqueça de que deve ser segredo. Cheguei de surpresa na cozinha e ele quase fez a cozinheira chorar.”
“Virá com a gente na nossa licença paixão”, disse Bond. Contou-lhe sobre o telegrama de M. “Vamos para uma casa sobre estacas, com palmeiras e oito quilômetros de areia dourada. E você terá de cuidar de mim muito bem, porque não poderei fazer amor com um braço só.”
Havia uma sensualidade óbvia no olhar de Solitaire, quando ela o ergueu para ele, sorrindo inocentemente.
“E eu com as minhas costas?”, disse ela.
16.
O LADO JAMAICANO
Eram duas horas da madrugada. Bond tirou o carro de junto da amurada e atravessou a cidade até pegar a 4th Street, a rodovia para Tampa.
Seguiu despreocupado pelas quatro pistas cimentadas da rodovia, atravessando o infindável corredor polonês de motéis, campings e lojas de beira de estrada, que vendiam mobília de praia e gnomos de concreto.
Parou no Gulf Winds Bar and Snacks e pediu um Old Grandad duplo com gelo. Enquanto o barman o servia, foi ao banheiro se limpar. As ataduras na mão esquerda estavam cobertas de sujeira e a mão latejava dolorosamente. A tala quebrara na barriga do Ladrão. Não havia nada que ele pudesse fazer. Os olhos estavam vermelhos de tensão e falta de sono. Foi até o bar, bebeu o Bourbon e pediu outro. O barman parecia um desses universitários que custeavam as próprias férias trabalhando duro. Estava a fim de conversar, mas em Bond não restara nenhuma vontade de falar. Ficou sentado, olhando o copo, pensando em Leiter e no Ladrão, e ouvindo o grunhido repugnante do tubarão devorando a presa.
Pagou, saiu e atravessou de novo a Gandy Bridge, com o ar fresco da baía lhe batendo no rosto. No final da ponte, virou à esquerda em direção ao aeroporto e parou no primeiro motel que parecia aberto.
O casal de proprietários de meia-idade ouvia um programa cubano de rumbas na madrugada, com uma garrafa de Rye entre eles. Bond contou uma história sobre um pneu furado entre Sarasota e Silver Springs. Não estavam interessados. Queriam apenas os seus dez dólares. Bond levou o carro até o quarto 5, o sujeito abriu a porta e acendeu as luzes. Havia uma cama de casal, um banheiro com chuveiro e duas cadeiras. O branco e o azul davam o tom nas paredes. Parecia limpo e Bond colocou a sacola no chão com um sentimento de gratidão, ao se despedir do dia. Despiu-se, jogou as roupas sem dobrar em uma cadeira. Em seguida tomou uma rápida chuveirada, escovou os dentes, gargarejou com um dentifrício forte e entrou na cama.
Mergulhou logo em um sono tranquilo. Era a primeira noite, desde que chegara à América, em que não se sentia ameaçado por uma nova batalha contra o destino na manhã seguinte.
Acordou ao meio-dia e caminhou pela estrada até uma cafeteria, onde o cozinheiro lhe preparou no balcão um delicioso sanduíche de três andares, que ele comeu enquanto tomava café. Em seguida, voltou ao quarto e escreveu um relatório minucioso ao FBI em Tampa. Omitiu todas as referências ao ouro nos tanques de peixes venenosos, com medo de que Big Man encerrasse os negócios na Jamaica. Eles ainda precisavam ser investigados. Bond sabia que os danos que ele provocara na máquina de Big Man na América não mudavam nada o objetivo principal de sua missão — a descoberta da fonte do ouro, sua captura e a destruição, se possível, do próprio Mr. Big.
Foi de carro até o aeroporto e pegou o quadrimotor prateado, faltando apenas poucos minutos para a partida. Deixou o carro de Leiter no estacionamento, conforme dissera no seu relatório ao FBI. Pensou que fora algo desnecessário, quando avistou um sujeito vestindo uma capa esdrúxula, à toa em uma loja de lembranças. As capas de chuva pareciam ser praticamente o uniforme do FBI. Bond estava certo de que queriam ter certeza de que ele pegaria o avião. Ficariam satisfeitos de vê-lo pelas costas. Por onde passara na América, deixara um rastro de cadáveres. Antes de embarcar no avião, ligou para o hospital em St. Petersburg. Arrependeu-se. Leiter ainda estava inconsciente e não tinham prognósticos. Sim, ligariam de volta quando tivessem alguma notícia definitiva.
Eram cinco da tarde quando o avião circulou sobre Tampa Bay, rumo ao leste. O sol estava baixo no horizonte. Um grande jato vindo de Pensacola passou ventando, bem a bombordo, deixando quatro rastros de vapor pairando quase imóveis no ar parado. Em breve o voo de reconhecimento terminaria e ele voltaria para pousar na costa do Golfo, cheia de idosos com camisetas estampadas. Bond se alegrava de estar a caminho das doces encostas verdes do litoral da Jamaica, deixando para trás o grande e rijo continente de Eldollarado.
O avião avançava, atravessando a cintura da Flórida, os hectares de floresta e de mangue sem nenhum sinal de habitantes humanos, com suas luzes da asa piscando, verdes e vermelhas, na escuridão que chegava. Em breve sobrevoavam Miami e as monstruosas arapucas para otários da costa oriental, cujas artérias brilhavam, entupidas de néon. Longe, a bombordo, a rodovia estadual nº 1 sumia subindo o litoral, uma fita dourada de motéis, postos de gasolina e barracas de suco de frutas, passando por Palm Beach, Daytona e Jacksonville, a quatrocentos e cinquenta quilômetros. Bond pensou no café da manhã que tomara em Jacksonville, por volta de três dias antes, e em tudo o que acontecera depois. Dentro em breve, após uma curta parada em Nassau, sobrevoaria Cuba, talvez sobre o esconderijo em que Mr. Big ocultara Solitaire. Ela ouviria o barulho do avião e talvez sua intuição a fizesse olhar para cima e sentir, por um instante, que ele estava próximo.
Bond ficou pensando se jamais se encontrariam de novo para acabar o que haviam começado. Mas isso teria de vir mais tarde, quando seu trabalho estivesse terminado — o prêmio de um itinerário perigoso que começara três semanas antes, em meio ao nevoeiro de Londres.
Depois de um coquetel e um jantar cedo, chegaram a Nassau e passaram meia hora na ilha mais rica do mundo, aquela faixa arenosa onde milhões e milhões de libras esterlinas são enterradas com grande susto nas mesas de canastra, e onde bangalôs, cercados de uma parede fina de pinheiros e casuarinas, trocam de mãos por cinquenta mil libras.
Deixaram para trás a escala rápida na ilha de platina, e em breve sobrevoavam as madrepérolas cintilantes das luzes de Havana, tão diferentes, em seus modestos tons pastel, das berrantes cores primárias das cidades americanas à noite.
Voavam a cinco mil metros quando, logo depois de passar por Cuba, encontraram uma daquelas tempestades tropicais que de repente fazem com que as aeronaves se transformem, de confortáveis salas de estar, em armadilhas mortíferas sacolejantes. O grande avião cambaleou e deu um mergulho, com as hélices ora roncando no vácuo, ora mordendo com força os paredões compactos de ar. O cilindro esguio de metal estremecia e balançava. A louça se espatifava na copa, e a chuva forte martelava as vidraças.
Bond agarrou os braços da poltrona, provocando dor na mão esquerda, praguejando baixinho consigo mesmo.
Olhou para as prateleiras das revistas e pensou: não serão de muita utilidade quando o aço acusar fadiga, a cinco mil metros de altitude, nem a água de colônia no banheiro, as refeições personalizadas, o barbeador gratuito, a “orquídea para sua senhora” agora trêmula na geladeira. Muito menos os cintos de segurança e os coletes salva-vidas, com o apito que realmente apita, segundo a demonstração da aeromoça, nem a luz de resgate engraçadinha que emite um brilho vermelho.
Não. Quando as tensões se tornam excessivas no metal fatigado, quando o mecânico de manutenção que testa o equipamento de descongelamento está apaixonado e faz mal o serviço, lá em Londres, Idlewild, Gander, Montreal; quando essas ou muitas outras coisas acontecem, então a pequena sala aquecida, com hélices na frente, cai como uma pedra do céu, na terra ou no mar, mais pesada que o ar, falível, imprestável. E as quarenta pessoas mais pesadas que o ar, frágeis dentro da fragilidade do avião, desamparadas dentro do desamparo maior do avião, despencam com ele, abrindo pequenos buracos na terra, ou espirrando água no mar. De qualquer modo, é o destino, então por que se preocupar? As pessoas estão conectadas aos dedos descuidados do mecânico de manutenção em Nassau, do mesmo modo que estão conectadas ao homenzinho no sedã da família, que confunde o sinal verde com o vermelho e bate de frente, pela primeira e última vez, na pessoa que dirigia tranquilamente para casa depois de um programa clandestino. Não se pode fazer nada. Começamos a morrer desde o dia em que nascemos. A vida inteira é um jogo de cartas com a morte. Por isso tenha calma. Acenda um cigarro e seja grato por ainda estar vivo, enquanto traga a fumaça profundamente nos seus pulmões. Nosso destino já permitiu que percorrêssemos um longo caminho desde que abandonamos o útero da mãe e choramingamos ao contato com o ar frio do mundo. Talvez ele até permita que cheguemos à Jamaica esta noite. Não está escutando as vozes animadas da torre de controle que passaram o dia falando, tranquilas: “Pode pousar, BOAC. Pode pousar, Panam. Pode pousar, KLM”? Não as escuta também nos chamando: “Pode pousar, Transcarib. Pode pousar, Transcarib”? Não perca a fé no destino. Lembre aquele momento terrível em que enfrentou a morte diante da arma do Ladrão, na noite passada. Ainda está vivo, não está? Pronto, já não corremos mais perigo. Isso foi só para lembrar que ser rápido no gatilho não quer dizer que você seja realmente forte. Não se esqueça. Este pouso feliz no Aeroporto Palisadoes é cortesia de seu destino. Melhor agradecer a ele.
Bond desatou o cinto de segurança e limpou o suor do rosto.
Ao diabo com tudo isso, pensou, ao desembarcar da aeronave enorme e resistente.
Strangways, o chefe do serviço secreto do Caribe, veio encontrá-lo no aeroporto, e assim ele passou depressa pela alfândega, imigração e fiscalização financeira.
Eram quase onze horas de uma noite quente, tranquila. Ouvia-se o som agudo dos grilos nas fileiras de cactos de ambos os lados da estrada do aeroporto, e Bond absorvia com gratidão os ruídos e os cheiros tropicais, enquanto a caminhonete militar atravessava a periferia de Kingston, em direção aos contrafortes cintilantes e enluarados das Montanhas Azuis.
Conversaram em monossílabos até se instalarem na varanda aconchegante da bela casa branca de Strangways, em Junction Road, abaixo de Stony Hill.
Strangways serviu um uísque com soda reforçado para os dois e, em seguida, fez um relato conciso de todo o lado jamaicano do problema.
Era um sujeito esguio e bem-humorado de mais ou menos trinta e cinco anos, ex-tenente e comandante da Seção Especial da Reserva Voluntária da Marinha Real. Tinha uma venda negra sobre um olho e o tipo de beleza aquilina associada à ponte de comando dos destróieres. Mas debaixo do bronzeado havia um rosto marcado, e Bond percebeu, pelos gestos rápidos e frases entrecortadas, seu ânimo nervoso e tenso. Era certamente eficiente, tinha senso de humor e não demonstrava nenhum sinal de ciúme diante de alguém que viera da matriz para se meter em seu território. Bond sentiu que se dariam bem, antecipando com prazer essa parceria.
Eis a história que Strangways tinha para contar.
Sempre circularam boatos sobre a presença de um tesouro na ilha da Surpresa, e tudo que se sabia sobre Morgan, o Sanguinário, confirmava essa suspeita.
A pequena ilha ficava no centro exato da baía dos Tubarões, um pequeno porto no final da Junction Road, que corre pela cintura fina da Jamaica, de Kingston à costa norte.
O grande bucaneiro fizera da baía dos Tubarões seu quartel-general. Gostava de ter toda a largura da ilha de permeio entre ele e o governador em Port Royal, de modo que pudesse sair e entrar nas águas jamaicanas em total segredo. O governador também gostava desse arranjo. A Coroa queria que ele fechasse os olhos à pirataria de Morgan até que os espanhóis fossem expulsos do Caribe. Quando isso ocorreu, Morgan foi recompensado com um título de nobreza e o posto de governador da Jamaica. Até então, suas ações tinham de ser repudiadas para evitar uma guerra contra a Espanha, na Europa.
No entanto, durante o longo período antes que a raposa recebesse a chave do galinheiro, Morgan utilizou a baía dos Tubarões como porto de partida para suas investidas. Construiu três casas na propriedade vizinha, denominada Llanrumney, em homenagem ao seu local de nascimento no País de Gales. Essas casas se chamavam “Casa de Morgan”, “Casa do Médico” e “Casa da Dama”. Ainda hoje se descobrem moedas e fivelas em suas ruínas.
O ancoradouro de seus navios sempre foi a baía dos Tubarões, e os reparos nas embarcações eram feitos, a sotavento, na ilha da Surpresa, um pedaço de coral e calcário acidentado que surge do centro da baía, encimado por um platô cheio de mato de cerca de meio hectare.
Quando partiu para sempre da Jamaica, em 1683, foi como preso, para ser julgado por seus pares por menosprezo à Coroa. Seu tesouro foi abandonado em algum lugar na Jamaica e ele morreu na miséria, sem revelar seu paradeiro. Deve ter sido um vasto butim, fruto de incontáveis investidas contra Hispaniola, da captura de inúmeros navios que levavam tesouros para La Plata, do saque do Panamá e da pilhagem de Maracaibo. Mas sumiu sem deixar vestígios.
Sempre se pensou que o segredo jazia em algum lugar da ilha da Surpresa, mas duzentos anos de mergulhos e de escavações da parte dos caçadores de tesouros não revelaram nada. Então, disse Strangways, há apenas seis meses, duas coisas aconteceram em poucas semanas. Um jovem pescador desapareceu do povoado da baía dos Tubarões e nunca mais se soube dele, e um sindicato anônimo de Nova York adquiriu a ilha por mil libras do atual proprietário de Llanrumney, agora uma próspera propriedade de cultivo de banana e de criação de gado.
Poucas semanas depois da venda, o iate Secatur chegara à baía dos Tubarões e fundeara no antigo ponto de ancoragem de Morgan, a sotavento da ilha. Veio com uma tripulação exclusivamente negra. Puseram-se a trabalhar, cavando uma escada na face do rochedo, construindo no topo uma série de cabanas baixas de taipa, ao estilo jamaicano.
Pareciam estar perfeitamente aprovisionados e só compravam peixe fresco e água dos pescadores da baía.
Era um pessoal ordeiro e taciturno, que não dava trabalho. Explicaram à alfândega da vizinha Santa Maria, que os havia liberado, que estavam ali para pescar peixes tropicais, especialmente as variedades venenosas, e coletar conchas para a Ourobouros Inc, de St. Petersburg. Depois que se estabeleceram, compraram grandes quantidades deles dos pescadores da baía dos Tubarões, Port Maria e Oracabessa.
Durante uma semana realizaram explosões na ilha, dizendo que era para a escavação de um grande tanque de peixes.
O Secatur começou a fazer uma rota quinzenal para o Golfo do México, e observadores com binóculos confirmaram que, antes de zarpar, sempre embarcavam tanques portáteis de peixe. Meia dúzia de homens era deixada para trás. Quaisquer canoas que se aproximassem da ilha recebiam ameaças de um guarda, na base da escadaria no rochedo, que ficava o dia inteiro pescando em um molhe estreito onde o Secatur atracava, preso a duas âncoras no mar, bem abrigado dos ventos nordeste.
Jamais alguém conseguiu desembarcar na ilha de dia e, depois de duas tentativas trágicas, ninguém voltou a tentar um desembarque noturno.
A primeira tentativa foi a de um pescador local, instigado pelos boatos de um tesouro enterrado que nenhuma conversa sobre peixes tropicais podia abafar. Partiu a nado uma noite e seu corpo fora devolvido pelo mar, por cima do recife, no dia seguinte. Os tubarões e as barracudas só deixaram o torso e um pedaço da coxa.
Mais ou menos na hora em que ele deveria chegar à ilha, toda a aldeia da baía dos Tubarões foi acordada pelo batuque mais terrível. Parecia vir do interior da ilha. Reconheceram-no como um batuque do vodu. Começou tranquilo e foi em um crescendo trovejante. Depois baixou novamente e parou. Durou cerca de cinco minutos.
Desde aquele momento a ilha se tornou ju-ju, ou obeah, como se diz na Jamaica, e, mesmo à luz do dia, as canoas ficam a uma distância segura.
A essa altura, Strangways teve seu interesse despertado e fez um relatório completo a Londres. Desde 1950, a Jamaica se tornara um alvo estratégico importante, graças à exploração, pela Reynolds Metal e pela Kaiser Corporation, de enormes depósitos de bauxita encontrados na ilha. Na opinião de Strangways, as atividades na ilha da Surpresa bem poderiam estar ligadas à construção de uma base de submarinos de um só tripulante, prevendo uma situação de guerra, especialmente porque a baía dos Tubarões estava no âmbito da rota dos navios da Reynolds até o novo porto de embarque de bauxita de Ocho Ríos, alguns quilômetros costa abaixo.
Londres investigou, junto com Washington, com base no relatório, e veio à tona a informação de que o sindicato que comprara a ilha era inteiramente de propriedade de Mr. Big.
Isso há três meses. Strangways recebeu ordens de entrar na ilha de qualquer maneira e descobrir o que estava acontecendo. Montou uma operação e tanto. Alugou uma propriedade no braço ocidental da baía dos Tubarões, chamada Beau Desert, onde existem as ruínas de um dos famosos casarões jamaicanos do começo do século dezenove, e também uma casa de praia moderna bem em frente ao ancoradouro do Secatur na ilha da Surpresa.
Trouxe dois bons nadadores da base naval na Bermuda e organizou uma observação permanente da ilha através de binóculos diurnos e noturnos. Nada foi visto que parecesse suspeito e, em uma noite calma e escura, ele mandou os dois nadadores com ordens de fazer uma vistoria submarina das fundações da ilha.
Strangways contou o pavor que sentiu quando, uma hora depois de partirem a nado para atravessar os trezentos metros de mar, começou um terrível batuque em algum lugar dentro dos penhascos da ilha.
Naquela noite os dois não voltaram.
No dia seguinte, ambos apareceram na praia, em lugares diferentes da baía. Ou melhor, o que sobrou de seus corpos devorados pelos tubarões e barracudas.
Nesta altura da história de Strangways, Bond interrompeu-o.
“Um minuto só”, disse, “que história é essa de tubarões e barracudas? Geralmente eles não são agressivos nestas águas. Não existem muitos na Jamaica e raramente se alimentam de noite. Aliás, não creio que nenhum deles ataque seres humanos, a não ser que haja sangue na água. Podem dar uma mordida, uma vez ou outra, em algum pé branco, por curiosidade. Já houve notícias anteriores de comportamento assim na Jamaica?”
“Nunca houve outro caso, desde que uma garota teve o pé devorado em Kingston Harbour, em 1942”, disse Strangways. “Ela estava sendo rebocada por uma lancha, batendo os pés. Seus pés brancos devem ter parecido especialmente apetitosos. E, além disso, estavam viajando em uma velocidade que convidava ao ataque. Todo mundo concorda com sua teoria. E meus homens tinham arpões e facas. Achei que fizera de tudo para protegê-los. Foi algo medonho. Imagine só como me senti. Desde então não fizemos mais nada, exceto tentar legalizar o acesso à ilha através da Secretaria das Colônias e de Washington. Mas o proprietário é cidadão americano. Então o processo é penosamente lento, sobretudo porque não há nada contra essa gente. Parecem dispor de uma boa proteção em Washington e de alguns advogados muito bons em direito internacional. Estamos absolutamente emperrados. Londres me disse para esperar até que você viesse.” Strangways deu um gole no uísque e olhou para Bond com expectativa.
“Quais são os movimentos do Secatur?”, perguntou Bond.
“Ainda está em Cuba. Deve zarpar dentro de uma semana, de acordo com a CIA.”
“Quantas viagens fez?”
“Cerca de vinte.”
Bond multiplicou cento e cinquenta mil dólares por vinte. Se seus cálculos estivessem certos, Mr. Big já levara um milhão de libras em ouro da ilha.
“Fiz alguns arranjos provisórios para você”, disse Strangways. “Tem a casa em Beau Desert. Há um carro, Sunbeam Talbot, sedã. Pneus novos. Corre bem. Ideal para essas estradas. Arranjei um sujeito ótimo para ser seu faz-tudo. Um ilhéu das ilhas Cayman, chamado Quarrel. O melhor pescador e nadador do Caribe. Muito prestativo. Grande sujeito. E peguei emprestada a casa de repouso da West Indian Citrus Company na Baía Manatee. Fica na outra extremidade da ilha. Você podia descansar lá uma semana e se exercitar um pouco até a chegada do Secatur. Precisará estar em forma se quiser chegar à ilha da Surpresa, e acredito francamente que só isso nos dará a resposta. Tem mais alguma coisa que eu possa fazer? Estarei por aí, claro, mas preciso ficar em Kingston para manter a comunicação com Londres e Washington. Eles vão querer saber tudo que fizermos. Há mais alguma coisa que você gostaria que eu providenciasse?”
Bond estivera se decidindo.
“Sim”, respondeu. “Pode pedir a Londres que consiga junto ao Almirantado uma de suas roupas de mergulho, completa, com os cilindros de ar comprimido. E muitos sobressalentes. E um bom par de arpões. Os franceses, ‘Champion’, são os melhores. Uma boa lanterna subaquática. Uma faca de guerra dos comandos. Toda a informação que puderem arranjar no Museu de História Natural sobre tubarões e barracudas. E um pouco daquele repelente de tubarões que os americanos usaram no Pacífico. Peça à BOAC para trazer tudo pelo seu serviço direto.”
Bond fez uma pausa. “Ah, sim”, disse. “E uma daquelas coisas que nossos sabotadores costumavam usar contra os navios durante a guerra. Uma mina naval, com diversos detonadores.”
17.
O VENTO PAPA-DEFUNTO
Mamão com uma rodela de limão, um prato cheio de bananas avermelhadas, caimitos roxos, ovos mexidos com bacon, café Blue Mountain — o mais delicioso do mundo —, geleia de laranja jamaicana, quase preta, e geleia de goiaba.
Enquanto Bond, trajando shorts e sandálias, tomava café na varanda, contemplando o panorama ensolarado de Kingston e Port Royal, pensou que tinha sorte pela existência de momentos tão magníficos a compensar o perigo e o ambiente sombrio de sua profissão.
Bond conhecia bem a Jamaica. Estivera no país durante uma longa missão logo após a guerra, quando o quartel-general comunista em Cuba procurava infiltrar os sindicatos jamaicanos. Tinha sido um serviço malresolvido e inconcluso, mas ele aprendera a amar a grande ilha verde e seu povo alegre e leal. Agora estava contente por ter retornado e pela semana inteira de folga antes de recomeçar o trabalho duro.
Depois do café da manhã, Strangways surgiu na varanda com um sujeito alto de pele morena, trajando uma camisa azul desbotada e velhas calças de sarja marrons.
Era Quarrel, o ilhéu das ilhas Cayman, com quem Bond logo simpatizou. Tinha sangue dos soldados de Cromwell e de bucaneiros. Seu rosto era forte e anguloso, com uma boca quase severa e olhos cinzentos. Apenas o nariz achatado e as palmas das mãos descoradas eram negroides.
Bond apertou sua mão.
“Bom dia, capitão”, falou Quarrel. Vindo da raça de pescadores mais famosa do mundo, esse era o tratamento mais honroso que ele podia merecer. Mas não havia nenhum desejo de agradar, ou humildade, na sua voz. Falava como marujo, de maneira direta e franca.
Esse momento definiu o relacionamento deles. Parecia a relação entre um senhor de terras escocês e seu caçador-chefe; o reconhecimento subentendido da autoridade, sem espaço para qualquer servilismo.
Depois de discutirem seus planos, Bond pegou o volante do pequeno carro que Quarrel trouxera de Kingston e tomaram a Junction Road, deixando Strangways ocupado com os pedidos de Bond.
Partiram antes das nove e ainda estava fresco quando atravessaram as montanhas que se estendem pelo dorso da Jamaica como a parte dentada da couraça do crocodilo. A estrada descia serpenteando em direção às planícies do norte, através de um dos cenários mais bonitos do mundo, em que a vegetação tropical se modificava com a mudança de altitude. Os flancos verdes das serras, emplumados de bambus intercalados com o verde escuro e brilhoso da fruta-pão e a súbita explosão colorida do flamboyant, cediam lugar, mais para baixo, à floresta de ébano, mogno, hibiscos e pau-campeche. Quando chegaram às várzeas do vale de Agualta, o mar verde dos bananais e canaviais se espraiava até onde a orla afastada dos bosques de palmeiras brotava cintilante ao longo da costa norte.
Quarrel foi boa companhia no passeio e um guia maravilhoso. Falou sobre as aranhas que faziam suas casas na terra, encimadas por pequenos alçapões perfeitos, ao passarem pelos famosos jardins de palmeiras de Castleton. Contou que assistira a uma briga entre uma centopeia gigante e um escorpião e explicou a diferença entre o mamão-macho e o mamão-fêmea. Descreveu os venenos da mata e as propriedades medicinais das ervas tropicais, a pressão exercida pela noz para romper o coco, o comprimento da língua do beija-flor, a maneira como os crocodilos carregam os filhotes na boca, ao comprido, como sardinhas em lata.
Falava em termos precisos, mas sem conhecimento técnico, empregando o linguajar jamaicano em que as plantas são humanizadas, “se esforçam”, “desanimam”, “mariposas” são “morcegos” e “amar” é sempre usado no lugar de “gostar”. Enquanto falava, levantava a mão em um gesto de saudação para as pessoas na estrada, que também gesticulavam e gritavam seu nome.
“Você parece conhecer gente à beça”, comentou Bond, quando o motorista de um ônibus apinhado, com a palavra ROMANCE escrita em grandes letras em cima do para-brisa, saudou-o com dois toques de sua buzina de ar comprimido.
“Faz três meses que ando observando a ilha da Surpresa, capitão”, disse Quarrel, “e passando por esta estrada duas vezes por semana. Todo mundo fica logo conhecido na Jamaica. O pessoal tem vista boa.”
Às dez e meia já tinham passado Port Maria e enveredado por uma pequena estrada vicinal que levava à baía dos Tubarões. Ao fazer uma curva, se depararam com ela embaixo, e Bond parou o carro e saíram.
A baía tinha a forma de um crescente e talvez uns mil e duzentos metros de largura entre um pontal e outro. Sua superfície azul estava encrespada pela leve brisa que soprava do nordeste, vizinha dos ventos alísios que nasciam a oitocentos quilômetros, no Golfo do México, e de lá partiam para sua longa viagem em volta do mundo.
A um quilômetro e meio de onde estavam, uma longa arrebentação sinalizava o recife fora da baía e o estreito de águas calmas que era a única entrada para o ancoradouro. No meio do crescente, a ilha da Surpresa assomava com seus trinta e poucos metros acima do mar, orlada no seu lado leste pela espuma das pequenas ondas que quebravam, e por águas calmas a sotavento.
Era quase redonda, parecendo um bolo alto e cinzento encimado por uma camada verde de açúcar glacê, tudo sobre um prato de porcelana azul.
Haviam parado a cerca de trinta metros do pequeno amontoado de cabanas de pescadores, atrás da praia orlada de coqueiros, e estavam no mesmo nível que o topo plano e verde da ilha, a quatrocentos metros de distância. Quarrel mostrou os telhados de palha das cabanas de taipa no meio das árvores, no centro da ilha. Bond examinou-as através dos binóculos de Quarrel. Não havia nenhum sinal de vida, exceto por um magro fiapo de fumaça levado pela brisa.
Abaixo deles, a água da baía era verde-clara perto da areia branca. Em seguida, se aprofundava e ficava azul-escura antes do marrom intercalado da borda submersa de um recife interno, que formava um largo semicírculo a cem metros da ilha. Depois tornava-se novamente azul, com manchas de azul mais claro e verde-mar. Quarrel informou que a profundidade do ancoradouro do Secatur era de aproximadamente dez metros.
À esquerda, no meio do braço ocidental da baía, escondida entre as árvores e atrás de uma minúscula praia de areia branca, ficava sua base de operações, Beau Desert. Quarrel descreveu a disposição da casa e Bond permaneceu dez minutos examinando os trezentos metros de distância entre ela e o ancoradouro do Secatur, junto à ilha.
Ao todo, Bond passou uma hora fazendo o reconhecimento do local e depois, sem se aproximar da casa ou do povoado, viraram o carro e voltaram para a estrada principal ao longo da costa.
Seguiram de carro através do belo e pequeno porto de embarque de bananas de Oracabessa e de Ocho Ríos, com sua nova e enorme usina de extração de bauxita, seguindo a costa norte até a baía de Montego, a duas horas de distância. Era fevereiro, no auge da estação. A pequena aldeia e os grandes hotéis esparsos estavam mergulhados na corrida de ouro de quatro meses que os sustentava pelo resto do ano. Pararam em uma pousada do outro lado da ampla baía, onde almoçaram, para, em seguida, prosseguirem no calor da tarde até a ponta ocidental da ilha, depois de mais duas horas de viagem.
Ali, graças à presença dos enormes mangues costeiros, nada acontecera desde que Colombo usara a baía de Manatee como um ancoradouro ocasional. Os pescadores jamaicanos haviam tomado o local dos índios Arawak, mas, exceto isso, tinha-se a impressão de que o tempo havia parado.
Bond achou-a a praia mais bonita que já havia visto, oito quilômetros de areia branca descendo suavemente até as ondas e, atrás, a marcha desordenada, porém graciosa, das palmeiras rumo ao horizonte. Debaixo delas, as canoas cinza descansavam fora da água, ao lado de monturos rosados de conchas descartadas. Do meio do palmeiral subia a fumaça das palhoças dos pescadores, na sombra entre o mangue e o mar.
Em uma clareira entre as palhoças, construída sobre estacas em um gramado malcuidado de grama das Bahamas, ficava a casa de fim de semana dos trabalhadores da West Indian Citrus Company. Fora construída sobre estacas para evitar os cupins e era cuidadosamente telada contra mosquitos e borrachudos. Bond saiu da estrada irregular e estacionou sob a casa. Enquanto Quarrel escolhia e arrumava dois quartos, Bond enrolou uma toalha na cintura e caminhou entre as palmeiras até o mar, a vinte metros de distância.
Nadou e boiou preguiçosamente durante uma hora na água quente em que flutuava sem dificuldade, pensando na ilha da Surpresa e em seu segredo, fixando na mente aqueles trezentos metros, pensando nos tubarões e barracudas e demais perigos do mar, essa grande biblioteca cheia de livros que ainda não conseguimos ler.
Ao caminhar de volta para o pequeno chalé de madeira, Bond levou suas primeiras picadas de mosquito pólvora. Quarrel deu uma risada ao ver as mordidas empoladas nas suas costas, que em breve coçariam como o diabo.
“Não se pode fazer nada para nos livrar deles, capitão”, observou. “Mas posso parar essa coceira. Melhor tomar uma chuveirada, primeiro, para tirar o sal. Eles só mordem mesmo durante uma hora, ao entardecer, e gostam de sal no jantar.”
Quando Bond saiu do chuveiro, Quarrel apareceu com uma velha garrafa de remédio e passou um líquido marrom, que cheirava a creolina, nas mordidas.
“A gente tem mais mosquitos pólvora e borrachudos nas ilhas Cayman do que em qualquer outro lugar do mundo”, falou, “mas não nos incomodam desde que tenhamos este remédio”.
Os dez minutos de crepúsculo tropical trouxeram sua breve melancolia. Depois as estrelas e a lua em quarto crescente começaram a brilhar, e o mar se reduziu a um sussurro. Houve uma curta calmaria entre os dois grandes ventos da Jamaica e, em seguida, as palmeiras voltaram a murmurar.
Quarrel fez um gesto da cabeça em direção à janela.
“O vento Papa-Defunto”, comentou.
“Como assim?”, perguntou Bond, espantado.
“Vento terral, como dizem os marinheiros”, acrescentou Quarrel. “O Papa-Defunto sopra, expulsando o ar ruim da ilha durante a noite, das seis às seis da manhã. Em seguida, o ‘vento Médico’ chega, soprando o ar fresco do mar para a ilha. Pelo menos é assim que os chamamos na Jamaica.”
Quarrel olhou perplexo para Bond.
“Acho que Papa-Defunto e você têm praticamente a mesma tarefa, capitão”, comentou, meio brincando.
Bond deu uma breve risada. “Ainda bem que não preciso respeitar o mesmo horário”, respondeu.
Lá fora os grilos e as pererecas começaram a ciciar e coaxar, e as grandes mariposas forçavam as telas das janelas, onde se agarravam, olhando, em um êxtase agoniado, para as duas lamparinas a óleo penduradas em duas travessas dentro de casa.
Uma vez ou outra dois pescadores, ou um grupo de garotas aos risinhos, iam andando até a praia a caminho do único e pequeno bar na ponta da baía. Ninguém andava sozinho, com medo dos lobisomens sob as árvores, ou do garrote rolador, animal terrível que vinha de encontro às pessoas rolando pelo chão, com as pernas presas por correntes e botando fogo pelas ventas.
Enquanto Quarrel preparava uma refeição suculenta de peixe, ovos e legumes que haveria de se tornar a dieta regular de ambos, Bond sentou-se sob a luz e debruçou-se sobre os livros que Strangways pegara emprestado do Instituto Jamaicano. Livros sobre o mar tropical e seus habitantes, por Beebe e Allyn, e outros, sobre caça submarina, de Cousteau e Hass. Quando partisse para atravessar aqueles trezentos metros de mar, estava determinado a fazê-lo com todo o conhecimento possível, sem confiar no acaso. Conhecia a capacidade de Mr. Big e apostava que as defesas da ilha da Surpresa seriam tecnicamente brilhantes. Achou que não se resumiriam a explosivos e armas. Mr. Big precisava trabalhar sem ser incomodado pela polícia. Precisava permanecer fora do alcance da lei. Bond supunha que as forças do mar haviam sido, de certo modo, domesticadas para fazer o trabalho de Mr. Big, e era sobre essas que Bond se concentrava: o assassinato por meio de tubarões e barracudas, talvez polvos e jamantas.
Os fatos expostos pelos naturalistas eram medonhos e horripilantes, mas as experiências de Cousteau no Mediterrâneo e de Hass, no mar Vermelho, eram mais animadoras.
Naquela noite Bond teve muitos sonhos de encontros aterrorizantes com polvos gigantescos e raias-lixas, tubarões cabeça de martelo e barracudas de dentes serrilhados, de modo que gemeu e suou durante o sono.
No dia seguinte começou a se exercitar, sob o olhar crítico de Quarrel. Toda manhã nadava mil e seiscentos metros na praia antes do café da manhã e corria pela areia firme até o chalé. Lá pelas nove partiam em uma canoa, cuja única vela triangular os transportava rápido até a baía Sangrenta e Orange Bay, onde a areia termina em penhascos e pequenas cavernas, e o recife se aproxima da costa.
Ali deixavam a canoa na praia e Quarrel o levava, com fisgas, máscaras e um velho arpão submarino, em expedições de tirar o fôlego, no tipo de mar que ele encontraria na baía dos Tubarões.
Pescavam em silêncio, separados por poucos metros, com Quarrel se movendo com facilidade em um elemento no qual quase se sentia em casa.
Não demorou para que Bond aprendesse a não lutar contra o mar, e sim ceder e aproveitar as correntes e os rodamoinhos, usando táticas de judô dentro d’água.
No primeiro dia chegou em casa cortado e envenenado pelo coral e com uma dúzia de espinhos de ouriço espetados em seu flanco. Quarrel sorriu e tratou as feridas com mertiolato e Milton. Depois, como fazia toda noite, massageou Bond por meia hora com óleo de coco, enquanto ia falando em voz baixa sobre os peixes que haviam encontrado naquele dia, explicando os hábitos dos carnívoros e não carnívoros, a camuflagem dos peixes e seu modo de mudar de cor através da corrente sanguínea.
Ele também jamais ouvira falar de peixe algum que atacasse o homem, a não ser em desespero ou porque havia sangue na água. Explicou que os peixes raramente passam fome nas águas tropicais e que a maioria de suas armas é defensiva, e não ofensiva. A única exceção, admitia, era a barracuda. “Peixes maus”, conforme dizia, que não conheciam o medo, já que não possuíam outro inimigo que não a doença, capazes de atingir oitenta quilômetros por hora em distâncias curtas, e donos dos dentes mais perigosos do que os de qualquer outro peixe de mar.
Um dia alvejaram uma de dez quilos que nadava em volta deles, sumindo na distância cinzenta e depois reaparecendo, silenciosa, imóvel, quase em cima da água, com seus olhos zangados de tigre fitando-os de muito perto, de modo que podiam ver o lento funcionamento de suas guelras e os dentes brilhando, como as presas de um lobo, ao longo da queixada cruel e prognata.
Quarrel finalmente pegou o arpão de Bond e alvejou-a gravemente, atravessando sua barriga aerodinâmica. Ela veio diretamente em cima deles, com as mandíbulas escancaradas, como uma cascavel pronta para o bote. Bond deu uma fisgada desajeitada quando ela investia contra Quarrel. Errou, mas o arpão entrou pelas suas mandíbulas. Elas se fecharam imediatamente sobre o espeto de aço, e quando o peixe arrancou a fisga da mão de Bond, Quarrel apunhalou-a com a faca e ela enlouqueceu, correndo dentro d’água com as entranhas à mostra, a fisga presa entre os dentes e o arpão pendente do corpo. Quarrel mal podia segurar a linha enquanto o peixe procurava retirar a ponta que lhe atravessava a barriga. Mas seguiu-o nadando em direção a um recife submerso, no qual subiu, puxando lentamente o peixe.
Depois que Quarrel cortou as guelras e retirou a fisga de suas mandíbulas, encontraram as marcas profundas dos dentes no aço.
Levaram o peixe para a praia, Quarrel cortou sua cabeça e abriu a bocarra com um pedaço de pau. A mandíbula superior se erguia quase em ângulo reto em relação à inferior, revelando fantásticas fileiras de dentes, tão abundantes que se sobrepunham como telhas no telhado. Até mesmo a língua tinha várias fileiras de pequenos dentes afiados e curvos e, na frente, duas presas enormes, que se projetavam para a frente como as de uma serpente.
Embora só pesasse pouco mais que cinco quilos, passava de um metro e trinta centímetros, uma bala niquelada só de músculo e tecido firme.
“Não vamos matar mais barracudas”, comentou Quarrel. “Mas se não fosse por você eu teria que passar um mês no hospital e talvez perder meu rosto. Foi uma tolice minha. Se a gente tivesse nadado em sua direção, ela teria fugido. Sempre fazem isso. São covardes como todos os peixes. Não se preocupe com esses aqui”, apontou para os dentes, “jamais tornará a vê-los”.
“Espero que não”, desabafou Bond. “Não tenho rosto sobressalente.”
No fim de uma semana Bond estava bronzeado e rijo. Cortara os cigarros para dez por dia e não tomara sequer um drinque. Conseguia nadar três quilômetros sem cansar, a mão estava completamente sarada e ele havia eliminado todas as sequelas da vida urbana.
Quarrel se alegrou. “Você está pronto para a ilha da Surpresa, capitão”, disse, “e eu não gostaria de ser o peixe que tentasse devorá-lo”.
Ao entardecer do oitavo dia, voltaram para a casa de descanso e encontraram Strangways à espera deles.
“Tenho boas notícias para lhe dar”, disse. “Seu amigo Felix Leiter vai ficar bom. Apesar de tudo, não morrerá. Precisaram amputar o resto de um braço e de uma perna. Os cirurgiões plásticos começaram agora a reconstruir o rosto. Ligaram para mim ontem de St. Petersburg. Parece que ele insistiu em lhe mandar um recado. Foi a primeira coisa que lhe veio à cabeça quando voltou a si. Disse que sente muito não poder estar aqui e para você não molhar os pés — ou pelo menos não molhá-los tanto como ele.”
O coração de Bond ficou apertado. Olhou pela janela. “Diga a ele para se restabelecer logo”, disse abruptamente. “E também que sinto a sua falta.” Voltou os olhos para a sala. “E quanto ao equipamento? Tudo bem?”
“Está tudo aqui”, respondeu Strangways, “e o Secatur zarpa amanhã para a ilha da Surpresa. Depois de passar pela alfândega em Port Maria, devem lançar âncora antes do anoitecer. Mr. Big está a bordo — é só a segunda vez que veio aqui. Ah, e trouxe uma mulher. Uma garota chamada Solitaire, de acordo com a CIA. Sabe alguma coisa sobre ela?”
“Não muito”, respondeu Bond. “Mas gostaria de tirá-la dele. Ela não pertence ao seu time.”
“Uma espécie de donzela em apuros”, disse o romântico Strangways. “Pois é. De acordo com a CIA, ela é uma graça.”
Mas Bond fora para a varanda e olhava as estrelas. Jamais tivera de brigar por um cacife tão alto na vida. O segredo do tesouro, a derrota de um grande criminoso, o esmagamento de um círculo de espionagem comunista e a destruição de um tentáculo da SMERSH, a cruel engrenagem que constituía seu próprio alvo particular. E agora Solitaire, a maior das recompensas pessoais.
As estrelas piscavam no seu Morse cifrado e ele não possuía chave alguma para decifrar o seu código.
18.
BEAU DESERT
Strangways voltou sozinho depois do jantar e Bond decidiu que eles partiriam ao amanhecer. O inglês deixou uma nova pilha de livros e panfletos sobre tubarões e barracudas, que Bond estudou com grande atenção.
Pouco acrescentou ao conhecimento prático que aprendera com Quarrel. Os autores eram todos cientistas e grande parte dos dados era sobre ataques ocorridos nas praias do Pacífico, onde qualquer corpo que brilhasse na arrebentação pesada excitaria a curiosidade dos peixes.
Mas parecia haver uma concordância geral que o perigo para os mergulhadores submarinos com aqualungs era muito menor do que para os nadadores de superfície. Estes podiam ser atacados por qualquer representante da família dos tubarões, especialmente quando o tubarão era estimulado e excitado pela presença de sangue no mar, pelo cheiro da vítima ou pela vibração sensorial causada por alguém ferido na água. Mas às vezes podiam ser espantados, segundo a literatura, por barulhos altos dentro d’água — até mesmo por gritos sob a superfície, e muitas vezes fugiam quando perseguidos pelo nadador.
A fórmula mais bem-sucedida de repelente de tubarões era, segundo os testes dos laboratórios de pesquisa naval da marinha americana, uma combinação de acetato de cobre e um corante preto chamado nigrosina, que vinha sendo adicionada, sob a forma de pelotas, aos coletes salva-vidas de todas as forças armadas dos Estados Unidos.
Bond chamou Quarrel. O ilhéu de Cayman não acreditara, até que Bond lesse para ele o que o Departamento Naval tinha a dizer sobre suas pesquisas, no final da guerra, sobre os bandos de tubarões estimulados por uma situação descrita como “condições exacerbadas de comportamento grupal”: “... os tubarões eram atraídos para a popa do barco de pesca de camarões, com refugo de peixes”, leu Bond. “Os tubarões apareceram sob a forma de um cardume exasperado, espadanante. Preparamos uma tina com peixes frescos, e outra com peixes misturados ao pó repelente. Aproximamo-nos do cardume e o fotógrafo começou a rodar a câmera. Despejei os peixes frescos por trinta segundos, repetindo três vezes esse procedimento. Da primeira vez os tubarões demonstraram grande ferocidade ao se alimentar dos peixes frescos bem na popa do barco. Mas ficaram devorando-os só durante cinco segundos depois que o pó repelente foi jogado ao mar. Uns poucos voltaram depois que jogamos peixe fresco imediatamente após o repelente. Em uma segunda tentativa, trinta minutos depois, um cardume feroz se alimentou durante os trinta segundos em que lhe fornecemos peixe fresco, mas se afastou assim que o repelente foi jogado na água. Na terceira tentativa, só conseguimos atrair os tubarões até uma distância de vinte metros da popa do barco.”
“O que acha disso?”, perguntou Bond.
“É melhor arranjar um pouco desse negócio”, respondeu Quarrel a contragosto, mas impressionado.
Bond estava disposto a concordar. Washington havia mandado mensagem de que as pelotas do material estavam a caminho. Mas ainda não tinham chegado e não eram esperadas antes de quarenta e oito horas. Se o repelente não chegasse, não seria problema para Bond. Não imaginava encontrar condições tão perigosas no seu percurso submarino até a ilha.
Antes de ir para a cama, chegara à conclusão de que nada o atacaria se não houvesse sangue na água, ou se ele não parecesse amedrontado diante da ameaça de algum peixe. Quanto aos polvos, peixes-escorpião e moreias, simplesmente precisava tomar cuidado onde punha os pés. Para ele, os espinhos de sete centímetros do ouriço eram o maior perigo para as atividades submarinas nos trópicos, mas a dor que causavam não bastaria para interferir em seus planos.
Partiram antes das seis da manhã e chegaram a Beau Desert às dez e meia.
A propriedade era uma bela plantação antiga de cerca de quatrocentos hectares, com as ruínas da bela casa grande dominando a baía. Era dedicada ao cultivo de pimentões e cítricos, e cercada de madeiras de lei e palmeiras, e sua história remontava à época de Cromwell. O nome romântico estava em moda no século dezoito, quando as propriedades jamaicanas se chamavam Bellair, Bellevue, Boscobel, Harmony, Nymphenburg, ou eram batizadas de Panorama, Satisfação, Repouso.
Uma trilha entre as árvores, que não era visível da ilha na baía, levava à pequena casa de praia. Depois dos piqueniques semanais na baía de Manatee, os banheiros e a mobília confortável de bambu pareciam um luxo, e os tapetes de cores vivas pareciam de veludo sob os pés calejados de Bond.
Pelas rótulas das janelas Bond contemplou o pequeno jardim flamejante de hibiscos, buganvílias e roseiras, que acabava no minúsculo crescente de areia branca, meio tapado pelos troncos das palmeiras. Sentou-se no braço de uma poltrona e deixou que seu olhar passeasse, palmo a palmo, pelos diferentes azuis e marrons do mar e dos recifes, até morrer na base da ilha. A metade superior estava obscurecida pelos leques das plumas das palmeiras em primeiro plano, mas o pedaço de penhasco vertical dentro de seu campo de visão parecia cinzento e formidável na meia sombra projetada pelo sol forte.
Quarrel preparou o almoço em um fogareiro a álcool, de modo que nenhuma fumaça os denunciasse, e de tarde Bond fez uma sesta e depois examinou o equipamento enviado de Londres e trazido de Kingston por Strangways. Experimentou a roupa de mergulho de borracha fina que o cobria, desde a máscara apertada na cabeça com o óculo de vidro temperado, até as longas nadadeiras em seus pés. Tudo cabia como uma luva, e Bond louvou a eficiência do setor “Q” de M.
Testaram os cilindros duplos de mil litros de ar natural comprimido a duzentas atmosferas, e Bond achou fácil o funcionamento das válvulas de distribuição de ar e de reserva, à prova de acidentes. Na profundidade em que agiria, aquele volume dava para durar quase duas horas.
Havia uma nova espingarda submarina potente, marca Champion, e uma faca projetada pela Wilkinson para os comandos durante a guerra. Finalmente, em uma caixa coberta de avisos de perigo, estava a pesada mina naval, um cone de fundo achatado, repleto de explosivos, montado sobre uma base cheia de largas saliências de cobre, tão imantadas que a mina grudava como um marisco em qualquer casco metálico. Havia uma dúzia de detonadores de metal e de vidro, parecidos com lápis, com temporizadores que iam de dez minutos até oito horas, e um meticuloso livrinho de instruções, tão simples quanto o próprio equipamento. Havia até uma caixa de cápsulas de benzedrina para dar resistência e aguçar a percepção de Bond durante a tarefa, e várias lanternas submarinas, inclusive uma que projetava apenas um feixe da largura de um lápis.
Bond e Quarrel testaram tudo, acoplamentos, contatos, até se darem por satisfeitos e concluírem que não restava mais nada a ser feito. Em seguida, Bond desceu até o meio das árvores e observou as águas da baía, calculando as profundidades, traçando rotas para percorrer a passagem pelo recife e prevendo a trajetória da lua, que seria sua única referência no decorrer da tortuosa travessia.
Às cinco horas chegou Strangways com notícias do Secatur.
“Passaram por Port Maria”, informou. “Chegarão aqui dentro de dez minutos, no máximo. Mr. Big tem um passaporte com o nome de Gallia e a garota com o nome de Latrelle. Ela está na sua cabine, mareada, segundo o capitão negro do Secatur. É possível. Há uma porção de tanques de peixe a bordo. Mais de cem. Exceto isso, nada que levantasse suspeita, e foram liberados. Eu queria ir a bordo como parte da turma da alfândega, mas achei melhor deixar que o espetáculo se desenrolasse de modo absolutamente normal. Mr. Big permaneceu na sua cabine. Estava lendo quando foram verificar seus documentos. Como está o equipamento?”
“Perfeito”, respondeu Bond. “Acho que agiremos amanhã à noite. Espero que haja um pouco de vento. Se descobrirem as bolhas de ar, estaremos em apuros.”
Quarrel entrou, avisando: “O iate está passando pelo recife agora, capitão.”
Foram até a máxima distância que podiam arriscar ir, na praia, e assestaram os seus binóculos na direção do barco.
Era uma bela embarcação, negra, com uma superestrutura cinza, setenta pés de comprimento e construída em função da velocidade — de pelo menos vinte nós, imaginou Bond. Conhecia sua história. Havia sido construída para um milionário em 1947, era movida por dois motores a diesel da General Motors, tinha casco de aço e todas as geringonças de comunicação de último tipo, inclusive telefone do barco para a terra e um navegador Decca. Trazia hasteados um pavilhão vermelho nos vaus dos joanetes e a bandeira americana à popa, e progredia a três nós através da abertura de sete metros no recife.
Virou abruptamente, depois de romper a passagem, e rumou para a parte da ilha a bombordo. Ao mesmo tempo, três negros em calças brancas de brim desceram correndo a escada íngreme até o molhe estreito e se posicionaram para amarrar as guias. Foram necessárias poucas manobras para prendê-las, diante dos observadores em terra firme, e as duas âncoras foram arriadas ruidosamente, entre as pedras e o coral na areia do fundo, junto à base da ilha. O barco estava bem protegido, até mesmo do vento norte. Bond calculou uma profundidade de sete metros sob a sua quilha.
Enquanto observavam, a enorme figura de Mr. Big surgiu no convés. Desembarcou no molhe e começou a subir lentamente a escadaria a prumo. Parou várias vezes, e Bond pensou na dificuldade que seu coração avariado teria para bombear o sangue naquele corpanzil preto acinzentado.
Seguiam-no dois tripulantes negros carregando uma maca leve, levando um corpo humano amarrado. Pelos binóculos, Bond reconheceu os cabelos negros de Solitaire. Ficou perplexo e preocupado, sentiu um aperto no coração diante daquela proximidade. Rezou para que a maca fosse apenas uma precaução para evitar que Solitaire fosse reconhecida da costa.
Em seguida, formou-se uma fila de doze homens na escadaria e os tanques de peixe foram sendo passados de um para outro. Quarrel contou cento e vinte.
Depois, alguns gêneros foram levados para cima da mesma maneira.
“Não está trazendo muita coisa desta vez”, comentou Strangways, depois da operação terminada. “Somente uma dúzia de caixotes. Geralmente são cinquenta. Não deve ficar muito tempo.”
Mal acabara de falar quando um tanque de peixe, que seus binóculos mostravam estar meio cheio de água e areia, desceu cuidadosamente de volta ao barco, por meio daquela escada feita de mãos. Em seguida outro, e mais outro, a intervalos de cinco minutos.
“Meu Deus”, exclamou Strangways. “Já estão carregando o barco. O que significa que deverão zarpar pela manhã. Será que resolveram liquidar as operações na ilha e este será seu último carregamento?”
Bond observou com cuidado e depois subiram em silêncio através do arvoredo, deixando Quarrel atrás para se manter a par dos acontecimentos.
Sentaram-se na sala, e enquanto Strangways preparava um uísque com soda para ele mesmo, Bond olhava pela janela e organizava seus pensamentos.
Eram seis horas e os vagalumes começaram a aparecer na penumbra. A lua, de um amarelo pálido, já ia alta no lado do oriente, e o dia morria rápido às suas costas. Uma brisa ligeira encrespava a baía e pequenas ondas quebravam na praia branca no final do gramado. Pequeninas nuvens rosa e alaranjadas, ao poente, vagavam nas alturas, e as folhas das palmeiras se esbarravam de mansinho no vento fresco do Papa-Defunto.
“Vento Papa-Defunto”, pensou Bond, sorrindo de esguelha. Tal como teria de ser esta noite. Era a única chance, e as condições quase perfeitas. Só o repelente de tubarões é que não chegaria a tempo. Mas isso era apenas um requinte. Não poderia ser um pretexto. Era para isto que ele viajara três mil quilômetros e matara cinco. No entanto, sentiu um calafrio ao prever a aventura submarina angustiante, que ele já havia transferido em sua mente para o dia seguinte. De repente sentiu ódio e medo do mar e de tudo que lhe dizia respeito. Dos milhões de pequenas antenas que se mexeriam e o seguiriam quando ele passasse de noite, dos olhos que acordariam para espiá-lo, das batidas de coração que falhariam por um centésimo de segundo para continuar batendo silenciosamente, das gavinhas gelatinosas que se estenderiam em sua direção, tão cegas na luz quanto no escuro.
Iria passar no meio de milhares de segredos. No espaço de trezentos metros, sozinho e com frio, transporia às cegas uma floresta misteriosa em direção a uma cidadela mortífera, cujos guardas já haviam matado três homens. Ele, Bond, depois de uma semana ensolarada de canoagem com sua babá ao lado, ia esta noite, dentro de poucas horas, caminhar sozinho sob aquele lençol escuro de água. Era uma maluquice, algo impensável. Seu corpo se encolheu e ele cravou os dedos nas palmas da mão molhadas.
Houve uma batida na porta e Quarrel entrou. Bond se alegrou de poder levantar da cadeira, se afastar da janela e se aproximar do lugar onde Strangways apreciava seu drinque, debaixo de um abajur.
“Estão trabalhando à luz de lampiões agora, capitão. Um tanque ainda a cada cinco minutos. Calculo que terão dez horas de trabalho. Acabarão mais ou menos às cinco da manhã. Não zarparão antes das seis. É perigoso demais tentar passar pelo canal sem luz suficiente.”
Os olhos cinzentos e amistosos de Quarrel, naquele esplêndido rosto cor de mogno, fitavam Bond, aguardando ordens.
“Começarei às dez em ponto”, Bond se surpreendeu com as próprias palavras. “Das pedras à esquerda da praia. Pode nos fazer um jantar e depois levar o equipamento até o gramado? As condições estão perfeitas. Chegarei lá dentro de meia hora.” Contou nos dedos. “Dê-me os detonadores de cinco e de oito horas. E o de quinze minutos, como reserva, caso algo saia errado. Está certo?”
“Sim senhor, capitão”, respondeu Quarrel. “Pode deixar comigo.”
E saiu.
Bond olhou para a garrafa de uísque e, em seguida, se decidiu, servindo-se de meio copo em cima de três cubos de gelo. Tirou a caixa de benzedrina do bolso e botou um tablete entre os dentes.
“À sorte”, disse a Strangways, tomando um grande gole. Sentou-se apreciando o gosto áspero de seu primeiro drinque em mais de uma semana. “Agora”, perguntou, “diga exatamente o que eles fazem quando estão prontos para zarpar. Levam quanto tempo para se afastar da ilha e passar pelo recife? Se esta for a última vez, não se esqueça de que estarão levando seis homens adicionais e algumas provisões. Vamos tentar prever isso o mais exatamente possível.”
Um momento depois Bond já mergulhara em um mar de detalhes práticos, e a sombra do medo recuara até as zonas de escuridão debaixo das palmeiras.
Exatamente às dez horas, sem sentir nada além da excitação e da expectativa, a figura preta e luzidia como um morcego pulou das pedras dentro de três metros de água, sumindo debaixo do mar.
“Vá com segurança”, disse Quarrel, dirigindo-se ao ponto em que Bond desaparecera. Persignou-se. Em seguida, ele e Strangways voltaram para casa, por entre as sombras, para dormir em turnos, sobressaltados, aguardando, temerosos, o desenrolar dos acontecimentos.
19.
O VALE DAS SOMBRAS
Bond foi levado direto ao fundo pelo peso da mina naval que prendera a seu peito através de fitas, e pelo cinto de chumbo, usado para corrigir a flutuabilidade dos cilindros.
Sem hesitar um instante, cobriu imediatamente os primeiros cinquenta metros de areia do fundo em um rápido crawl, com o rosto pouco acima do leito. As longas nadadeiras quase teriam dobrado sua velocidade normal, não fosse o estorvo do peso que carregava e da leve espingarda de arpão na mão esquerda. Mas avançava depressa e em menos de um minuto parou para descansar na sombra de um grande maciço de coral.
Parou e estudou suas sensações.
Estava aquecido na roupa de mergulho, sentindo mais calor do que se estivesse nadando ao sol. Achou que seus movimentos lhe vinham com facilidade e a respiração era perfeitamente simples, desde que fosse regular e descontraída. Contemplou as bolhas denunciadoras subindo rente ao coral em um repuxo de pérolas prateadas e rezou para que as pequenas ondas as encobrissem.
No espaço desimpedido, sua visibilidade era perfeita. A luz era leitosa e macia, mas não suficientemente forte para dissolver as sombras encarneiradas das ondas na superfície, que enxadrezavam a areia do fundo. Agora, junto ao recife, não havia reflexos no leito do mar, e as sombras sob as pedras eram negras e impenetráveis.
Arriscou uma olhada rápida com a lanterna fina, e imediatamente a paisagem oculta da massa marrom dos arbustos de coral ganhou vida. Anêmonas de miolo carmesim acenavam para ele com seus tentáculos de veludo, uma colônia de ouriços eriçou seus espinhos de aço de Toledo, subitamente assustada, e uma centopeia do mar peluda estacou sua centena de passos, inquirindo-o com sua cabeça cega. Na areia da base da árvore de coral, um peixe-sapo recolheu delicadamente sua horrível cabeça verrugosa de volta à loca, e uma porção de vermes do mar, parecidos com flores, desapareceu em seus tubos gelatinosos. Um cardume de peixes-borboleta e peixes-anjo, coloridos como joias, flertava na luz. Bond distinguiu a forma chata e espiralada de uma estrela-do-mar de grandes pontas.
Bond enfiou a lanterna de volta no cinto.
Acima dele a superfície do mar era uma colcha de mercúrio. Ouvia-se um crepitar baixinho, como gordura fritando na frigideira. Adiante, o luar mergulhava no vale irregular e profundo, cujas encostas afundavam, se afastando da rota que ele devia seguir. Abandonou sua aconchegante árvore de coral e avançou lentamente. Agora não mais com a mesma facilidade. A luz era fraca e enganosa, e a floresta petrificada do recife de coral cheia de becos sem saída e caminhos tentadores, porém ilusórios.
Às vezes era obrigado a subir quase à superfície para transpor o emaranhado de algum arbusto de coral, e quando isso acontecia, aproveitava para verificar sua posição pela lua que brilhava como uma pálida descarga de foguete, no final do caminho que abrira na água. Às vezes a cintura de ampulheta de um rochedo de coral lhe fornecia abrigo, e ele podia descansar por alguns instantes, sabendo que as pequenas borbulhas do respirador ficariam escondidas pela saliência acima da superfície. Então concentrava seu olhar nos rabiscos fosforescentes da minúscula vida noturna submarina e distinguia colônias e populações inteiras às voltas com suas atividades microscópicas.
Não havia peixes grandes nas imediações, mas muitas lagostas fora de suas locas, parecendo bichos enormes e pré-históricos, graças ao efeito de ampliação da água. Seus olhos saltados e vermelhos o fitavam, e suas longas antenas de trinta centímetros pediam-lhe uma senha. Em alguns momentos recuavam nervosamente para seus abrigos, levantando areia com suas caudas potentes, agachadas nas pontas de seus oito pés peludos, à espera de o perigo passar. Certa vez os grandes filamentos de uma caravela passaram flutuando lentamente. Quase tocaram sua cabeça a partir da superfície, cinco metros acima, e ele lembrou a queimadura causada pelo contato com uma delas, que ardera por três dias durante a temporada em Manatee Bay. Se atingisse alguém na altura do coração, poderia ser mortal. Ele viu inúmeras moreias verdes e pintadas, estas últimas se movendo como grandes serpentes pretas e amarelas ao longo da areia do fundo, as verdes mostrando os dentes de dentro de algum buraco na pedra, e vários baiacus, como corujas castanhas, com seus enormes e plácidos olhos verdes. Espetou um deles com a extremidade de sua arma e ele inchou até ficar do tamanho de uma bola de futebol, tornando-se uma massa de perigosos espinhos brancos. Largas gorgônias balançavam, fazendo gestos convidativos nos rodamoinhos, refletindo o luar nos vales cinzentos, acenando fantasmagóricas, como restos das mortalhas de homens sepultados no mar. Muitas vezes Bond distinguia nas sombras movimentos pesados e misteriosos, águas revoltas e o súbito brilho de olhos grandes, que imediatamente se extinguiam. Então, virava-se, destravando o arpão, olhando fixamente o escuro. Mas não atirou em nada e nada o atacou enquanto subia e deslizava pelo recife.
Levou quinze minutos para percorrer cem metros do coral. Depois disso descansou em um pedaço redondo de coral esponjoso, abrigado por um último pedaço de recife. Alegrou-se por só ter de enfrentar uns cem metros de água cinza-claro. Ainda se sentia descansado, conservando a elação e a clareza de espírito provocadas pela benzedrina, mas o labirinto de perigos que enfrentara para atravessar o recife o tinha cansado e causado uma preocupação constante, além do temor de rasgar a roupa de borracha. Agora a floresta de corais afiados como navalhas já havia sido ultrapassada, para ceder lugar aos tubarões e às barracudas, ou talvez à súbita banana de dinamite jogada no meio da sua pequena flor de borbulhas na superfície.
Foi enquanto calculava os perigos ainda por enfrentar que o polvo agarrou-o. Em volta dos dois tornozelos.
Estava sentado com os pés na areia, quando de repente foram presos na base do cogumelo redondo de coral sobre o qual descansava. Quando compreendeu o que tinha acontecido, um tentáculo começou a serpentear pela sua perna acima, e outro, roxo na luz fraca, desceu pela nadadeira esquerda.
Teve um sobressalto de terror e repugnância, levantando-se de imediato, esfregando os pés, esforçando-se por se libertar. Mas não houve afrouxamento de um centímetro sequer, e os movimentos de Bond deram ao polvo a oportunidade de apertar e puxar os calcanhares mais ainda sob a saliência da pedra redonda. A força do bicho era prodigiosa, e Bond sentiu que perdia rapidamente o equilíbrio. Percebeu que num instante seria jogado no chão e aí, atrapalhado pela mina em seu peito e o cilindro nas costas, talvez fosse quase impossível atacar o polvo.
Bond tirou a faca do cinto e espetou entre suas pernas. Mas a saliência da rocha o atrapalhou, e ele ficou apavorado de cortar sua roupa de mergulho. De repente foi derrubado, caindo deitado na areia. De imediato seus pés começaram a ser puxados para dentro de uma larga fenda lateral debaixo da pedra. Esgaravatou a areia e tentou se dobrar para poder ter acesso à faca. Porém, a grande protuberância da mina em seu peito impediu-o de fazê-lo. À beira do pânico, lembrou-se do arpão. Antes não lhe dera importância, achando que era uma arma inútil naquela pequena distância, mas agora era a sua única chance. Permanecia na areia onde o deixara. Pegou-o e destravou-o. A mina impediu-o de fazer mira. Escorregou o cano ao longo das pernas e cutucou cada pé com a ponta do arpão para descobrir a distância entre eles. Um tentáculo agarrou imediatamente a ponta de aço e começou a puxar. A arma escorregou entre seus pés aprisionados e ele apertou o gatilho às cegas.
Uma grande nuvem de tinta viscosa e pegajosa saiu em rolos da fenda, em direção a seu rosto. Mas uma perna estava livre, em seguida a outra, e ele se aprumou e pegou o cabo do arpão de um metro, no local em que já ia desaparecendo sob a rocha. Puxou e forcejou até que, com um esgarçar de tecidos, conseguiu tirar a arma de dentro da névoa negra que envolvia o buraco. Ofegante, levantou-se e se afastou da rocha, com suor escorrendo pelo rosto, sob a máscara. Acima dele, a fieira prateada de bolhas subiu direto à superfície, e ele praguejou contra aquele animal barrigudo, ferido em seu abrigo.
Mas não podia perder tempo se preocupando com ele. Recarregou a arma e partiu com a lua sobre o seu ombro direito.
Agora avançava bem através da água cinzenta e enevoada, concentrando-se em manter o rosto apenas alguns centímetros acima da areia, com a cabeça bastante baixa para reduzir o atrito de seu corpo com a água. A certa altura, viu, de relance, uma raia-lixa do tamanho de uma mesa de pingue-pongue se desviar habilmente de seu caminho, batendo as asas pontudas e manchadas, como um pássaro, e arrastando atrás de si sua cauda farpada. Não lhe deu atenção, lembrando-se do que Quarrel dissera: que as raias jamais atacam a não ser em autodefesa. Calculou que ela provavelmente viera dos recifes externos para botar seus ovos — ou “bolsas de sereias”, como chamavam os pescadores, porque têm a forma de um travesseiro com dois fios pretos e rígidos em cada canto — no fundo abrigado de areia.
Muitos vultos de peixes grandes nadavam preguiçosamente sobre a areia enluarada, alguns do seu tamanho. Quando um deles seguiu Bond por pelo menos um minuto, ele levantou os olhos, distinguindo a barriga branca de um tubarão cinco metros acima dele, como um zepelim afunilado verde e azul. Seu nariz arredondado estava mergulhado com curiosidade na coluna de bolhas de ar. O grande rasgo em forma de foice de sua boca parecia uma cicatriz repuxada. Virou de lado e olhou para ele embaixo com um olhar duro e rosado e, em seguida, abanou sua cauda, também em forma de foice, e se afastou devagar dentro do muro de névoa cinzenta.
Bond amedrontou uma família de polvos, pesando de três quilos aos cento e cinquenta gramas de um filhote, frágil e luminoso à meia-luz, suspensa quase na vertical em um cordão declinante. Eles se endireitaram e fugiram rápido, a propulsão a jato.
Bond descansou por um instante na metade do caminho e então prosseguiu. Agora havia barracudas por ali, grandes, de até nove quilos. Pareciam tão mortíferas quanto as recordações que tinha delas. Planavam acima dele como submarinos prateados, olhando para baixo com seus olhos de tigre zangado. Sentiam curiosidade a seu respeito e a respeito das bolhas, e seguiram-no por cima e em torno dele, como uma alcateia de lobos silenciosos. Quando Bond encontrou o primeiro pedaço de coral, indício de que se aproximava da ilha, havia cerca de vinte delas se movendo em silêncio, vigilantes, saindo e entrando da parede opaca que o envolvia.
A pele de Bond se encolheu debaixo da roupa de borracha, mas ele não podia fazer nada a respeito delas e concentrou-se em sua meta.
De repente havia uma longa forma metálica suspensa acima dele na água. Atrás dela um monte de pedras quebradas que subiam de maneira íngreme.
Era a quilha do Secatur, e o coração de Bond deu um pulo no peito.
Consultou seu Rolex. Eram onze e três. Escolheu o detonador de sete horas do punhado que tirou de um bolso lateral com zíper, inserindo-o na cavidade apropriada da mina, apertando-o. Enterrou na areia o restante dos detonadores, de modo que, se fosse capturado, ninguém desconfiaria da existência da mina.
Ao nadar em direção à superfície, carregando a mina entre as mãos, com a base para cima, percebeu um rebuliço na água atrás dele. Uma barracuda passou depressa, com as mandíbulas meio abertas, quase colidindo com ele e com os olhos fixos em algo às suas costas. Mas Bond estava concentrado apenas no meio da quilha do barco, em um ponto pouco mais de um metro acima da superfície.
A mina quase o arrastou pelos últimos metros, pois seus enormes ímãs buscavam o beijo metálico com o casco. Bond precisou lutar contra eles para evitar o barulho do choque. Em seguida, tendo colocado a mina no lugar adequado e agora livre do seu peso, Bond precisou nadar com força para se contrapor à sua nova flutuabilidade e afundar de novo, afastando-se da superfície.
Foi quando se virou para nadar em direção às duas hélices, a caminho do abrigo das pedras, que conseguiu ver as coisas terríveis que ocorriam às suas costas.
O bando enorme de barracudas parecia ter enlouquecido. Giravam e mordiam como cães histéricos. Três tubarões que haviam se juntado a eles arremetiam pela água com um frenesi pouco menor. A água fervilhava com esses peixes terríveis, e Bond levou um encontrão no rosto, recebendo outros tantos por várias vezes em uma distância de poucos metros. Percebeu que a qualquer momento sua pele de borracha se rasgaria, junto com a carne debaixo dela, e então o bando viria atrás dele.
“Condições exacerbadas de comportamento grupal.” A frase do Departamento Naval pipocou na sua mente. Era exatamente nesta situação que o repelente de tubarões poderia salvá-lo. Na sua ausência, teria talvez alguns minutos a mais de vida.
Em desespero, nadou espalhafatosamente, ao longo da quilha do barco, com o arpão destravado, que agora não passava de um brinquedo diante daquele bando de peixes canibais ensandecidos.
Alcançou as duas grandes hélices de cobre, agarrando-se a uma delas, ofegante, com os lábios formando um esgar de medo e os olhos arregalados, ao se dar conta do frenesi no mar fervilhante a seu redor.
Viu de repente que as bocas dos peixes que arremetiam furiosos estavam meio abertas e que eles mergulhavam e saíam de uma nuvem marrom, que se espalhava desde a superfície. Perto dele, uma barracuda se deteve por um instante, com algo marrom e reluzente nas suas mandíbulas. Engoliu de uma bocada, depois virou e voltou para a confusão.
Ao mesmo tempo, Bond notou que escurecia. Olhou para cima e percebeu, com uma nova compreensão, que a superfície de mercúrio do mar tornara-se vermelha, um horrível carmesim brilhante.
Fiapos dessa substância chegaram flutuando até seu alcance. Puxou-os com a extremidade de sua arma. Segurou-os contra sua máscara.
Não havia mais dúvida.
Alguém lá em cima atirava sangue e vísceras na superfície do mar.
20.
A CAVERNA DE MORGAN, O SANGUINÁRIO
Bond compreendeu de imediato o motivo de todas aquelas barracudas e tubarões estarem rondando a ilha, de como eram mantidos naquele frenesi voraz por esse banquete noturno, por que os três homens, desafiando todas as explicações plausíveis, haviam sido devolvidos à praia, meio devorados pelos peixes.
Mr. Big tinha apenas posto as forças do mar para trabalhar em seu proveito, utilizando-as para sua proteção. Era um invento típico — imaginativo, criativo, tecnicamente à prova de erro e fácil de pôr em prática.
No exato momento em que Bond compreendera isso tudo, algo lhe deu um terrível golpe no ombro e uma barracuda de dez quilos recuou, com carne e borracha preta entre as mandíbulas. Bond não sentiu dor, ao largar a hélice de bronze e nadar desesperadamente até as pedras, só uma náusea terrível na boca do estômago, ao pensar que um pedaço seu se encontrava entre aquelas centenas de dentes afiados como uma navalha. A água começou a vazar entre a borracha aderente e a sua pele. Não demoraria até chegar a seu pescoço e penetrar na máscara.
Já ia desistir e subir disparado pelos sete metros até a tona, quando viu uma larga fissura nas pedras diante dele. Ao lado havia um grande pedregulho tombado de lado e, de algum modo, ele conseguiu se esconder atrás dele. Virou-se, naquele abrigo precário, no momento exato em que a mesma barracuda investia outra vez, com o maxilar superior em ângulo reto em relação ao inferior, a boca escancarada pronta para o bote terrível.
Bond atirou quase às cegas com o arpão. As tiras de borracha dispararam cano abaixo e o arpão dentado pegou o grande peixe no centro da mandíbula superior erguida, atravessando-a e penetrando até a metade do cabo, com a linha ainda livre.
A barracuda estacou a um metro da barriga de Bond. Tentou fechar as mandíbulas e, em seguida, deu uma enorme sacudida na longa cabeça de réptil. Depois se afastou em disparada, ziguezagueando loucamente, arrancando da mão de Bond o arpão e a linha, que arrastou atrás de si. Bond sabia que, antes de ela percorrer cem metros, os demais peixes a atacariam e a fariam em pedaços.
Deu graças a Deus por essa manobra diversiva. Seu ombro estava agora envolto por uma nuvem de sangue. Os outros peixes sentiriam o cheiro em questão de segundos. Contornou o pedregulho imaginando se arranjaria um meio de se abrigar debaixo do atracadouro, escondendo-se de algum modo acima da superfície da água, até pensar em outro plano.
Então viu a caverna que o pedregulho escondera.
Era de fato quase uma porta na base da ilha. Se Bond não estivesse nadando para salvar sua vida, poderia ter entrado nela andando. Mas, naquelas circunstâncias, mergulhou direto na abertura e só parou quando poucos metros o separavam de sua entrada bruxuleante.
Então ficou de pé na areia macia e acendeu a lanterna. Um tubarão talvez pudesse vir atrás dele, mas no espaço confinado seria quase impossível que o mordesse com sua boca situada muito embaixo. Com certeza não viria precipitadamente, porque até o tubarão tem medo de arriscar a pele entre as pedras, e Bond teria ampla oportunidade de procurar atingir seus olhos com a faca.
Bond iluminou o teto e os lados da caverna com a lanterna. Certamente fora modelada ou acabada pela mão do homem. Bond calculou que deveria ter sido escavada de dentro para fora, a partir de algum lugar no centro da ilha.
“Faltam pelo menos vinte metros para acabar, gente”, Morgan, o Sanguinário, deve ter dito aos feitores de escravos. E então as picaretas devem ter rompido de repente o resto da parede que ainda separava a caverna do mar, e uma confusão de pernas, braços e bocas gritando, sufocadas para sempre pela água, teriam sido arremessadas para trás contra a pedra, juntando-se aos cadáveres das demais testemunhas.
O grande pedregulho na entrada deve ter sido posicionado para vedar a saída para o mar. O pescador da baía dos Tubarões que desapareceu de repente, seis meses atrás, deve tê-la descoberto um dia. Fora afastada de sua posição original por alguma tempestade ou tsunami consecutivo a um tufão. Então descobrira o tesouro e percebera que precisava de ajuda para dispor dele. Um branco o enganaria. Melhor procurar o grande gângster negro no Harlem e fazer o melhor acordo que pudesse. O ouro pertencia aos negros que haviam morrido para escondê-lo. Deveria ser devolvido aos negros.
Ali de pé, balançando na correnteza do túnel, Bond imaginou mais um barril cimentado mergulhando no lodo do rio Harlem.
Foi então que ouviu os tambores.
Lá fora, entre os peixes grandes, ouvira uma leve trovoada na água, que aumentara quando entrou na caverna. Mas julgara que eram apenas as ondas batendo na base da ilha e, de qualquer modo, tinha outras coisas em mente.
Mas agora podia distinguir um ritmo definido, e o som ribombava e crescia à sua volta, com um rufo abafado, como se o próprio Bond estivesse preso dentro de um vasto atabaque. A água parecia tremular por causa desse barulho. Ele imaginou o duplo objetivo do batuque. Era um grande chamado aos peixes, usado quando havia invasores, para atrair e excitá-los ainda mais. Quarrel lhe contara como os pescadores noturnos costumam bater nos lados da canoa com o remo para acordar e atrair os peixes. Aquilo deveria ser algo parecido. Ao mesmo tempo seria um aviso macabro do vodu para o pessoal da costa, duplamente eficaz quando algum cadáver era devolvido pelo mar no dia seguinte.
Mais um dos requintes de Mr. Big, pensou Bond. O batuque significava que ele fora descoberto. O que pensariam Strangways e Quarrel ao ouvi-lo? Seriam simplesmente obrigados a aguentar firme, sentados. Bond já havia percebido que os tambores eram algum truque e fizera os dois prometer que não iriam interferir, a não ser que o Secatur escapasse incólume. Pois isso significaria que todos os planos de Bond haviam fracassado. Ele contara a Strangways onde o ouro estava escondido, e neste caso o barco teria de ser interceptado em alto-mar.
Agora o inimigo fora alertado, mas não sabia quem era o invasor, nem se ele ainda estava vivo. Ele precisava prosseguir, nem que fosse para impedir por todos os meios que Solitaire embarcasse no iate condenado.
Bond consultou o relógio. Era meia-noite e meia. Para ele, poderia ter se passado uma semana desde que iniciara sua incursão pelo mar dos perigos.
Apalpou a Beretta sob a roupa de borracha, pensando se já não estaria avariada pela água que entrara pelo rasgo feito pelos dentes da barracuda.
Então, com o troar dos atabaques se aproximando cada vez mais de um crescendo, avançou na caverna, projetando adiante um pequeno feixe de luz com a lanterna.
Avançara cerca de dez metros quando viu um leve brilho na água à sua frente. Apagou a lanterna e foi se aproximando com cautela. O piso arenoso da caverna começou a se inclinar para cima, e a cada metro a luz se tornava mais forte. Agora podia ver dezenas de pequenos peixes que brincavam à sua volta e, mais adiante, a água estava cheia deles, atraídos pela luz da caverna. Caranguejos olhavam atentos de pequenas frestas nas pedras e um polvo novinho se achatou contra o teto, tomando a forma de uma estrela fosforescente.
Em seguida, pôde divisar o final da caverna e uma larga piscina brilhante, além, cujo fundo arenoso era branco como o dia. O roncar dos atabaques aumentava. Parou na sombra da entrada e percebeu que a superfície ficava apenas poucos centímetros acima e que havia lâmpadas sobre a piscina.
Bond estava em um dilema. Mais um passo e ficaria em plena vista de qualquer um que estivesse olhando para a piscina. Ao hesitar, argumentando consigo mesmo, ficou horrorizado ao ver uma fina nuvem de sangue de seu ombro se espalhando pela entrada. Esquecera o ferimento no ombro, que agora começara a latejar, e quando moveu o braço sentiu a ferroada de uma dor intensa em toda sua extensão. Havia também o fino jato de bolhas dos cilindros, mas ele esperava que elas fossem flutuando lentamente para arrebentar na beirinha da entrada.
No exato momento em que recuou alguns centímetros, seu futuro já estava selado.
Sobre sua cabeça percebeu apenas uma enorme pancada na água, e depois dois negros, nus a não ser pelas máscaras de mergulho nos rostos, com longas facas seguras como lanças em suas mãos esquerdas, investiram contra ele.
Antes que sua mão pudesse pegar a faca no cinto, já haviam agarrado seus dois braços e o puxavam para a superfície.
Desesperado, Bond teve de deixar que o tirassem à força da piscina e o jogassem na areia lisa. Depois de ser obrigado a se levantar, abriram os zíperes de seu traje de mergulho. Seu capuz foi retirado da cabeça, o coldre de seu ombro, e de repente ele se achou de pé entre os frangalhos da roupa preta de mergulho, como uma serpente trocando a pele, nu, exceto pelo pequeno calção de banho. O sangue escorria do buraco irregular no ombro esquerdo.
Quando tiraram seu capuz, Bond quase ensurdeceu com a batida e o rufar dos atabaques. O barulho penetrava nele e mexia com tudo em volta. O ritmo rápido e sincopado galopava e latejava nas suas veias. Parecia capaz de acordar toda a Jamaica. Bond fez uma careta e seus sentidos procuraram resistir aos golpes daquela tempestade sonora. Em seguida, os guardas o fizeram se virar e se deparar com uma cena tão grotesca que o som dos atabaques recuou para o fundo e toda sua consciência se concentrou no que via.
No primeiro plano, em uma mesa de jogo com tampo de veludo verde, apinhada de papéis, e sentado em uma cadeira de dobrar, estava Mr. Big, com uma caneta na mão, olhando-o sem curiosidade. Um Mr. Big em um terno castanho-amarelado, bem cortado, de tropical, com camisa branca e gravata de tricô de seda preta. O queixo largo descansava na sua mão esquerda e ele levantou os olhos para Bond como se tivesse sido incomodado, em seu escritório, por alguém de sua equipe pedindo um aumento de salário. Parecia polido, porém levemente entediado.
A alguns passos dele, sinistro e absurdo, o espantalho da efígie do Baron Samedi, ereto sobre uma pedra, observava Bond debaixo de seu chapéu-coco.
Mr. Big tirou a mão do queixo e seus grandes olhos dourados estudaram Bond da cabeça aos pés.
“Bom dia, senhor James Bond”, disse finalmente, projetando a voz inexpressiva contra o barulho já decrescente dos tambores. “A mosca levou mesmo muito tempo para chegar à aranha, ou talvez devesse dizer ‘o lambari à baleia’. Você deixou um belo rastro de bolhas no recife.”
Recostou-se na cadeira e se calou. Os atabaques batiam e rufavam mais baixo.
Então fora a luta contra o polvo que o traíra. A mente de Bond registrou o fato automaticamente, enquanto olhava para além do homem na mesa.
Estava em um salão de pedra grande como uma igreja. Metade do piso era ocupada pela enorme piscina clara e branca pela qual chegara, e que se transformava em verde-mar e depois azul perto do buraco de entrada submarino. Em seguida, havia a faixa estreita de areia em que ele pisava, e o resto do piso era de pedra lisa e plana, marcado por algumas estalagmites cinzentas e brancas.
A alguma distância atrás de Mr. Big uma escadaria íngreme levava a um teto abobadado, do qual pendiam estalactites curtas de calcário. De seus brancos mamilos a água gotejava intermitentemente na piscina, ou sobre as jovens estalagmites que se erguiam do chão, a seu encontro.
Havia uma dúzia de luzes fosforescentes muito claras fixadas alto nas paredes, criando reflexos dourados nos torsos nus de um grupo de negros em pé, à sua esquerda, no piso de pedra, observando Bond de olhos arregalados, mostrando os dentes em sorrisos cruéis e satisfeitos.
Em volta de seus pés pretos e rosados, entre destroços de madeira quebrada e anéis de ferro enferrujados, tiras mofadas de couro e lona decomposta, havia um mar fulgurante de moedas de ouro — metros, cascatas de moedas redondas de ouro, do qual emergiam as pernas pretas, como se tivessem sido detidas no meio de um passeio entre as chamas.
Ao lado deles, empilhadas fileira após fileira, ficavam bandejas rasas de madeira. Algumas estavam no chão, parcialmente cheias de moedas de ouro, e embaixo da escada, um único negro parara na subida, segurando uma delas repleta de moedas de ouro em quatro fileiras cilíndricas, estendida como se estivesse sendo oferecida à venda.
Mais à esquerda, em um canto do salão, havia dois negros próximos a um caldeirão de ferro arredondado, suspenso acima de três maçaricos sibilantes, até que seu fundo ficasse vermelho incandescente. Seguravam escumadeiras de ferro, lambuzadas de ouro até metade de seus cabos. Ao lado deles havia uma miscelânea de peças de ouro, talheres, objetos de altar, copos, cruzes e uma pilha de lingotes de ouro de diversos tamanhos. Ao longo da parede viam-se, próximas a eles, fileiras de bandejas para esfriar o metal, cujas superfícies segmentadas irradiavam um brilho dourado, e uma bandeja vazia descansava no piso perto do caldeirão, junto com uma longa concha manchada de ouro e o cabo envolto em pano.
Acocorado no chão, não muito distante de Mr. Big, um único negro segurava uma faca em uma das mãos, e uma taça ornamentada de brilhantes na outra. A seu lado, em um prato de lata, uma pilha de joias cintilava, embaçadas, vermelhas, azuis e verdes, sob o brilho das lâmpadas fluorescentes.
Estava quente e abafado no grande salão de pedra e, no entanto, Bond tiritava ao abarcar toda essa esplêndida cena com os olhos. O brilho das lâmpadas violeta esbranquiçadas, o bronzeado tremeluzente dos corpos suados, o brilho forte do ouro, o arco-íris do recipiente com os brilhantes, a água marinha em tom leitoso da piscina. Ele tremia diante da beleza daquilo tudo, diante daquela dança petrificada da grande arca do tesouro de Morgan, o Sanguinário.
Seus olhos voltaram para o quadrado de veludo verde e para a grande face de zumbi, olhando aquele rosto e seus olhos amarelos com respeito, quase com reverência.
“Pare os tambores”, disse Mr. Big, para ninguém em particular. O batuque se reduzira a um quase sussurro, a um murmúrio cujo acento recaía sobre o ritmo do coração nas veias. Um dos negros deu dois passos, acompanhados de barulhos metálicos entre as moedas, abaixando-se. Um aparelho de som portátil estava no chão, com um potente amplificador ao lado, contra a parede de pedra. Depois de um clique os tambores pararam. O negro fechou a tampa do aparelho e voltou a seu lugar.
“Andem com o trabalho”, ordenou Mr. Big. E de repente todas as figuras começaram a se mover, como se alguém tivesse posto uma moeda em um caça-níquel. Mexeram o caldeirão, pegaram o ouro e o puseram nas caixas, o sujeito procurava retirar a pedraria da taça, e o negro com a bandeja de ouro prosseguiu subindo a escada.
Bond continuava de pé, pingando suor e sangue.
Big Man descansou a caneta e se levantou devagar. Afastou-se da mesa.
“Assuma meu lugar”, ordenou a um dos homens que guardavam Bond, e o sujeito nu rodeou a mesa, sentou na cadeira de Mr. Big e pegou a caneta.
“Traga-o aqui para cima.” Mr. Big foi até os degraus na rocha e começou a subi-los lentamente.
Bond sentiu uma picada do lado. Acabou de despir os restos de sua segunda pele preta e seguiu a figura que subia devagar.
Ninguém levantou os olhos do trabalho. Ninguém descuidava do serviço quando Mr. Big saía. Ninguém seria capaz de enfiar um brilhante ou uma moeda na boca.
O Baron Samedi assumira a chefia.
Apenas seu zumbi deixara a caverna.
21.
“BOA NOITE A AMBOS”
Subiram vagarosamente por cerca de treze metros, passando por uma porta aberta perto do teto, e pararam em um grande patamar na pedra. Ali um único negro, à luz de um lampião de acetileno, arrumava bandejas cheias de moedas de ouro no meio dos tanques de peixe, muitos já se encontrando empilhados contra a parede.
Enquanto esperavam, dois negros desceram a escada, vindos da superfície, pegaram um tanque pronto e voltaram para cima com ele.
Bond achava que eles enchiam os tanques com areia, plantas aquáticas e peixes em algum lugar no alto, e depois os desciam através da corrente humana ao longo da face do rochedo.
Notou que alguns dos tanques à espera tinham lingotes de ouro fixados no centro, e outros, pedrarias espalhadas como cascalho. Então refez os cálculos sobre o tesouro, quadruplicando seu valor até cerca de quatro milhões de libras esterlinas.
Mr. Big ficou um tempo com o olhar no chão de pedra. Respirava fundo, mas de maneira controlada. Em seguida, subiram.
Vinte degraus acima havia outro patamar, menor, com uma porta de saída. Nela havia corrente e cadeado novos. A própria porta era feita de grades de ferro marrons, achatadas, corroídas pela ferrugem.
Mr. Big parou de novo e ficaram lado a lado na pequena plataforma de pedra.
Por um momento Bond pensou em fugir, mas, como se tivesse lido a sua mente, o guarda negro cercou-o contra a parede, longe de Big Man. E Bond sabia que sua maior obrigação era se manter vivo e chegar a Solitaire, e arranjar um jeito de afastá-la do barco condenado pela mina, em que o ácido roía lentamente o cobre do detonador.
Do alto vinha uma forte correnteza pelo vão da escada, e Bond sentiu que seu suor secava. Pôs a mão direita no ferimento do ombro, sem se assustar com a picada no flanco feita pela faca do guarda. O sangue já secara em crostas e a maior parte do braço doía tremendamente.
Mr. Big falou:
“Este vento, sr. Bond”, apontou para o vão, “é conhecido na Jamaica como ‘vento Papa-Defunto’”.
Bond sacudiu o ombro direito, poupando o fôlego.
Mr. Big virou para a porta de ferro, tirou a chave do bolso e abriu-a. Passou e foi seguido por Bond e seu guarda.
Era um cômodo que consistia em uma estreita passagem, com grilhões enferrujados presos embaixo na parede, a menos de dez metros de intervalo.
Na outra extremidade, onde uma lamparina pendia do teto de pedra, uma figura imóvel estava deitada no chão, embrulhada em um cobertor. Havia mais uma lamparina na porta, em cima de suas cabeças, mas, exceto isso, apenas o cheiro de pedra úmida, torturas antigas e morte.
“Solitaire”, falou Bond, baixinho.
O coração de Bond deu um salto e ele quis se adiantar. Imediatamente uma mão enorme agarrou seu braço.
“Pare aí, seu branco”, vociferou o guarda, torcendo o punho dele entre as espáduas, levantando-o ainda mais, até que Bond deu um chute com o calcanhar esquerdo. Acertou na canela do homem, mas doeu mais em Bond do que no guarda.
Mr. Big se virou. Tinha uma pequena arma quase encoberta pela mão enorme.
“Solte-o”, ordenou em voz baixa. “Se quiser mais um umbigo, senhor Bond, é só dizer. Tenho seis aqui nesta arma.”
Bond passou esbarrando em Big Man. Solitaire se levantara, vindo em sua direção. Quando viu seu rosto, desandou a correr, estendendo as mãos.
“James”, soluçou. “James.”
Ela quase caiu a seus pés. Suas mãos se agarraram.
“Arranje corda”, ordenou Mr. Big no vão da porta.
“Está tudo bem, Solitaire”, disse Bond, sabendo que não estava. “Está tudo bem. Estou aqui agora.”
Ele pegou-a, mantendo-a a distância de seu braço estendido. O braço esquerdo doeu. Ela estava pálida e desarrumada, com um machucado na testa e olheiras. No seu rosto encardido as lágrimas escorriam deixando marcas na pele lívida. Estava sem maquiagem. Trajava um terninho branco sujo e sandálias. Parecia magra.
“O que esse desgraçado anda fazendo com você?”, perguntou Bond. Apertou-a de repente contra si. Ela se agarrou a ele, com o rosto enterrado em seu pescoço.
Em seguida, se afastou e olhou para a mão dele.
“Você está sangrando”, disse. “O que é?”
Virou-o pela metade e viu o sangue preto no seu ombro e pelo braço abaixo.
“Ah, meu querido, o que foi?”
Começou a chorar de novo, desamparada, desesperada, percebendo subitamente que ambos estavam perdidos.
“Amarre-os”, ordenou Big Man, da porta. “Aqui, debaixo da luz. Preciso dizer-lhes umas coisas.”
O negro estava vindo e Bond se virou. Valeria a pena arriscar? O negro só tinha a corda na mão. Mas Big Man deu um passo para o lado, vigiando-o, segurando a arma displicentemente, meio apontada para o chão.
“Não, senhor Bond”, avisou apenas.
Bond lançou um olhar para o negro enorme e pensou em Solitaire e no seu próprio ombro ferido.
O negro chegou e Bond deixou que amarrasse seus braços atrás das costas. Os nós foram bem dados. Não havia folga. Doíam.
Bond sorriu para Solitaire. Piscou um olho pela metade. Não passava de uma bravata, mas percebeu uma vivacidade esperançosa renascer em meio a suas lágrimas.
O negro levou-o de volta à porta.
“Ali”, disse Big Man, fazendo um gesto para um dos grilhões.
O negro derrubou Bond com uma rasteira repentina. Este caiu em cima do ombro ferido. O negro puxou-o pela corda até o grilhão, testou-o, passou a corda por ele e então amarrou Bond pelos tornozelos, muito bem amarrado. Enfiara sua faca em uma fresta na pedra. Tirou-a, cortou a corda e voltou para onde Solitaire estava.
Bond ficou sentado no chão de pedra, com as pernas esticadas para a frente, com os braços suspensos, amarrados por trás. O sangue pingava do ferimento reaberto. Apenas os resíduos da benzedrina no seu corpo o impediam de desmaiar.
Solitaire foi amarrada e colocada quase defronte a ele. Um metro separava os pés de ambos.
Com a tarefa concluída, Big Man consultou o relógio.
“Vá”, ordenou ao guarda. Fechou a porta de ferro depois que o sujeito se foi, ficando encostado nela.
Bond e a garota se entreolharam e Big Man contemplou os dois no chão.
Depois de um de seus longos silêncios, dirigiu-se a Bond. Este levantou os olhos para ele. A enorme bola de futebol cinzenta que era sua cabeça parecia, sob o lampião, a cabeça de um elemental, de algum espectro maligno do centro da terra, pairando no ar, com os olhos dourados ardendo firmes, e o grande corpo na sombra. Bond precisou lembrar-se de que já ouvira o coração dele batendo no peito, já o ouvira respirar, já vira suor na pele cinzenta. Não passava de um homem, da mesma espécie dele, um homem grande, com uma mente brilhante, mas ainda assim um homem que caminhava e defecava, um homem mortal, com uma doença no coração.
A boca larga e borrachuda se abriu, os lábios achatados, levemente virados, recuaram dos grandes dentes brancos.
“Você é o melhor de todos os que foram mandados para me combater”, disse Mr. Big. Sua voz baixa e insossa era pensativa, calculada. “E conseguiu matar quatro de meus ajudantes. Meus seguidores acham isso inacreditável. Já é mais do que tempo de liquidarmos nossas contas. O que aconteceu ao americano não bastou. A traição desta garota”, ele ainda olhava para Bond, “que tirei da sarjeta e estava pronto a colocar na minha mão direita, também questionou a minha infalibilidade. Eu estava imaginando como ela deveria morrer, quando a providência, ou o Baron Samedi, como meus seguidores gostam de acreditar, também trouxe você para o altar de cabeça baixa, pronto para o machado”.
A boca parou, com os lábios entreabertos. Bond viu os dentes se juntarem para formar a palavra seguinte.
“De modo que é conveniente que os dois morram juntos. Isso acontecerá de um modo adequado”, Big Man consultou seu relógio, “dentro de duas horas e meia. Às seis horas, alguns minutos a mais ou a menos”, acrescentou.
“Alguns minutos a mais”, comentou Bond. “Gosto da vida.”
“Na história de emancipação dos negros”, continuou Mr. Big em tom de conversa despreocupada, “já surgiram grandes atletas, grandes músicos, grandes escritores, grandes médicos e cientistas. No seu devido tempo, como aconteceu na história do desenvolvimento de outras raças, hão de surgir negros famosos em todos os demais setores da vida”. Fez uma pausa. “Infelizmente para você, senhor Bond, e para esta garota, vocês encontraram o primeiro dos grandes criminosos negros. Uso esta palavra vulgar, senhor Bond, porque seria a mesma que você, senhor Bond, como uma espécie de policial, usaria. Mas prefiro me considerar uma pessoa que possui a habilidade, as capacidades mentais e nervosas para criar as próprias leis e agir segundo elas, em vez de aceitar as leis que convêm ao mínimo denominador comum das pessoas. Sem dúvida você já leu Os instintos do rebanho na paz e na guerra, de Trotter. Pois bem, sou lobo por índole e opção, e vivo segundo as leis do lobo. É natural que os carneiros descrevam este indivíduo como ‘criminoso’.
“O fato, senhor Bond”, prosseguiu Big Man, depois de uma pausa, “de que sobrevivo e, na verdade, gozo de um sucesso ilimitado, embora seja eu sozinho contra milhões de carneiros, se deve às técnicas modernas que lhe descrevi por ocasião de nossa última conversa, e a uma infinita capacidade de me esforçar. Não os esforços tediosos, vulgares, e sim os artísticos e sutis. E eu noto, senhor Bond, que não é difícil enganar os carneiros, não importa quantos, com muita dedicação ao trabalho e, naturalmente, se formos um lobo extremamente bem dotado.
“Deixe-me ilustrar, por exemplo, como funciona a minha mente. Estudemos o método pelo qual decidi que ambos morrerão. É uma variação moderna do método usado na época do meu generoso patrono, sir Henry Morgan. Naquele tempo, era conhecido como ‘arrastamento pela quilha’.”
“Por favor, continue”, disse Bond, sem olhar para Solitaire.
“Temos uma paravana a bordo do iate”, prosseguiu Mr. Big, como se fosse um cirurgião descrevendo uma operação delicada para um grupo de estudantes, “que usamos para rebocar tubarões e outros peixes de grande porte. Esta paravana é, como sabem, um aparelho com a forma de um torpedo, que boia puxado por um cabo, distante do barco. Pode ser usada para sustentar a extremidade de uma rede, rebocando-a através da água, com o barco em movimento. Também pode ser equipada com um instrumento de corte, para cortar os cabos de amarração das minas em época de guerra.
“Pretendo”, continuou Mr. Big, em um tom de voz discursivo e natural, “amarrá-los juntos à extremidade de um cabo preso a essa paravana e rebocá-los pelo mar até que sejam devorados pelos tubarões”.
Fez uma pausa, enquanto seu olhar passava de um para outro. Solitaire mirava de olhos arregalados para Bond, que se esforçava em pensar, com o olhar ausente, perscrutando o futuro. Sentiu que deveria dizer alguma coisa.
“Você é um homem grande”, afirmou, “e um dia morrerá de uma morte igualmente grande e terrível. Se nos matar, essa morte virá em breve. Já a providenciei. Está enlouquecendo a olhos vistos, senão perceberia a repercussão que nosso assassinato terá sobre sua vida”.
Enquanto falava, a mente de Bond funcionava rápido, contando horas e minutos, sabendo que a própria morte de Big Man chegaria devagar, com o ácido corroendo o detonador seguindo o ponteiro dos minutos, rumo à hora do encontro final com seu destino. Mas estariam ele e Solitaire mortos, antes que soasse essa hora? Minutos, talvez segundos, fariam a diferença. O suor escorria do seu rosto para o peito. Sorriu para Solitaire. Ela lhe deu um olhar ausente, sem enxergá-lo.
De repente deu um grito agoniado que sacudiu os nervos de Bond.
“Não sei”, gritou. “Não consigo ver. Está tão perto, tão próximo. Há muitas mortes. Mas...”
“Solitaire”, gritou Bond, apavorado com a possibilidade de que as coisas estranhas que ela previsse, quaisquer que fossem, pudessem servir de aviso a Big Man. “Controle-se.”
Havia um toque de raiva em sua voz.
Os olhos dela clarearam, olhando mudos para ele, sem compreender.
Big Man falou de novo.
“Não estou ficando louco, senhor Bond”, avisou calmamente, “e nenhuma providência sua me afetará. Vocês morrerão além do recife e não restará nenhum indício. Rebocarei os restos de seus corpos até que não sobre nada. Isso faz parte da sagacidade dos meus planos. Vocês também devem saber que o tubarão e a barracuda desempenham um papel no voduísmo. Eles receberão seus sacrifícios e o Baron Samedi será apaziguado. Meus seguidores ficarão satisfeitos. Da mesma forma, desejo continuar minhas experiências com os peixes carnívoros. Acredito que só atacam quando há sangue na água. Por isso seus corpos serão rebocados desde a ilha. A paravana os rebocará sobre o recife. Acho que não serão atacados antes da barra. O sangue e as vísceras que são jogados todas as noites nessas águas já terão sido dispersos ou consumidos. Mas quando seus corpos forem rebocados por cima do recife, infelizmente sangrarão, ficarão em carne viva. Então veremos se minhas teorias estão corretas.”
Big Man estendeu a mão para trás e abriu a porta.
“Eu os deixarei agora”, falou, “para que reflitam sobre a excelência do método que criei para matá-los juntos. Não restará indício algum. A superstição ficará satisfeita. Meus seguidores também. Os corpos serão utilizados para a pesquisa científica.
“Isso é o que eu chamo, senhor James Bond, de uma capacidade infinita de refinamento artístico.”
Parou no vão da porta e olhou para os dois.
“Uma noite breve, porém boa. É o que desejo a ambos.”
22.
TERROR NO MAR
O dia ainda não clareara quando os guardas vieram buscá-los. As cordas que prendiam suas pernas foram cortadas e, com os braços ainda atados, foram levados pelos últimos degraus de pedra que faltavam para a superfície.
Ficaram entre algumas árvores esparsas e Bond aspirou o ar frio da manhã. Olhou através das árvores na direção do oriente e viu que as estrelas estavam mais pálidas e havia uma luminosidade no horizonte que anunciava o raiar da aurora. O cicio noturno dos grilos quase terminara e, em algum canto da ilha, um tordo ensaiava as primeiras notas do dia.
Bond calculou que deviam ser mais ou menos cinco e meia.
Ficaram ali vários minutos. Os negros passavam próximos a eles, carregando embrulhos e malas de fibra de palmeira, entre cochichos cautelosos. As portas do punhado de palhoças entre as árvores estavam escancaradas. Os homens andavam em fila até a beira do penhasco, à direita de Bond e Solitaire, desaparecendo por ali. Não voltavam. Era uma evacuação. Toda a guarnição da ilha levantava acampamento.
Bond esfregou o ombro desnudo contra Solitaire e ela se aninhou contra ele. Fazia frio depois da masmorra abafada, e Bond tiritava. Mas era melhor estar em movimento do que prolongar o suspense lá de baixo.
Ambos sabiam o que precisava ser feito, a natureza do risco.
Depois que Big Man os deixara, Bond não perdera tempo. Falando baixinho, contara à garota sobre a mina magnética presa ao costado do barco, prevista para explodir alguns minutos depois das seis horas, e explicara os fatores decisivos para saber quem morreria ou não naquela manhã.
Primeiro, apostara na mania de exatidão e de eficiência de Mr. Big. O Secatur precisava zarpar às seis horas em ponto. Portanto, não deveria haver nenhuma nuvem, se não a visibilidade na meia-luz do amanhecer não seria suficiente para assegurar a passagem do barco através do recife, e Mr. Big adiaria a partida. Se Bond e Solitaire estivessem no atracadouro ao lado do iate, morreriam junto com Mr. Big.
Supondo que o barco zarpasse na hora exata, a que distância e de que lado dele seriam rebocados? Teria de ser a bombordo para que a paravana ficasse desimpedida na hora de deixar a ilha. Bond supôs que o cabo de reboque da paravana teria cinquenta metros de comprimento, e que eles seriam rebocados vinte ou trinta metros atrás da paravana.
Se ele estivesse certo, seriam arrastados por cima do recife externo cerca de cinquenta metros depois de o Secatur ter rompido pelo canal. Provavelmente se aproximaria da passagem nos recifes a cerca de três nós e, em seguida, pegaria velocidade até chegar a dez, ou até mesmo a vinte. De início seus corpos seriam rebocados da ilha em um lento arco, virando e se retorcendo na ponta da linha de reboque. Logo depois a paravana se endireitaria e, mesmo após o barco ter transposto o recife, eles ainda não teriam chegado a ele. Portanto, a paravana passaria pelo recife quando o barco já o tivesse ultrapassado em quarenta metros, e depois eles a seguiriam a alguns metros a mais de distância.
Bond estremeceu ao pensar nos ferimentos que seus corpos sofreriam se fossem arrastados, a qualquer velocidade, sobre os dez metros de árvores e recifes de coral, afiados como uma navalha. Ficariam com as costas e as pernas esfoladas.
Depois de atravessarem o recife, não passariam de uma isca sanguinolenta, e seria apenas uma questão de minutos até que o primeiro tubarão ou barracuda avançasse neles.
E Mr. Big, sentado confortavelmente no deque da popa, assistiria à carnificina, talvez de binóculos, marcando os segundos e os minutos enquanto a isca viva ia diminuindo de tamanho, até que finalmente os peixes só abocanhassem o cabo ensanguentado.
Até que não restasse coisa alguma.
Então a paravana seria içada a bordo e o iate cortaria o mar graciosamente rumo à longínqua Florida Keys, a Cape Sable e ao atracadouro ensolarado no porto de St. Petersburg.
E se a mina explodisse quando eles ainda estivessem na água, a cinquenta metros do barco? Qual seria o efeito do deslocamento de ar em seus corpos? Talvez não fosse fatal. O casco do iate absorveria a maior parte. O recife talvez os protegesse.
Bond só podia adivinhar e manter a esperança.
Sobretudo, precisavam continuar vivos até o último segundo possível. Precisavam continuar respirando enquanto fossem arrastados, como um pacote vivo, pelo mar. Muita coisa dependia da maneira como eles os amarrariam um ao outro. Mr. Big haveria de querer que continuassem vivos. Não lhe interessaria uma isca morta.
Se ainda estivessem vivos quando a primeira barbatana de tubarão surgisse à tona atrás deles, Bond decidira afogar friamente Solitaire. Afogá-la torcendo seu corpo debaixo do seu e segurando-o ali. Em seguida, tentaria se afogar torcendo o corpo morto dela de volta para que o seu ficasse por baixo.
Cada volteio de seu pensamento esbarrava em um pesadelo, no horror nauseante de cada detalhe medonho da tortura monstruosa que aquele homem havia preparado para eles. Mas Bond sabia que precisava conservar o sangue-frio e a resolução absoluta de lutar pelas suas vidas até o fim. Havia ao menos uma sensação calorosa na ideia de que Mr. Big e a maioria de seus homens também morreriam. E um lampejo de esperança de que ele e Solitaire talvez sobrevivessem. A não ser que a mina falhasse, o inimigo não poderia contar com nenhuma esperança.
Tudo isso e uma centena de outros pormenores e planos passaram pela cabeça de Bond na última hora antes de serem levados pelo vão da escada até a superfície. Com Solitaire compartilhou todas as suas esperanças. Nenhum dos seus temores.
Ela ficara deitada à sua frente, com seus olhos azuis e cansados fixos nele, obedientes, confiantes, bebendo seu rosto e suas palavras, dóceis, amorosos.
“Não se preocupe comigo, querido”, dissera, quando os homens vieram buscá-los. “Sinto-me feliz de estar de novo com você. Meu coração está cheio de felicidade. De algum modo, não estou com medo, apesar de pressentir uma grande matança. Você me ama um pouquinho?”
“Sim”, respondeu Bond. “E vamos ainda aproveitar o nosso amor.”
“Vambora”, disse um dos homens.
E agora, no alto do morro, clareava. Bond ouviu os dois grandes motores a diesel tossirem e roncarem embaixo do penhasco. Uma leve brisa soprava a barlavento, mas a sota-vento, onde estava o barco, a baía era um espelho de bronze.
Mr. Big apareceu no alto da escadaria, com uma pasta de executivo na mão. Ficou por um momento olhando em volta, recuperando o fôlego. Não prestou nenhuma atenção a Bond ou Solitaire, nem aos dois guardas ao lado deles, de revólveres na mão.
Olhou para o céu e de repente clamou, em um tom de voz nítido, na direção da orla do sol.
“Obrigado, sir Henry Morgan. Seu tesouro será bem gasto. Dê-nos um vento de popa.”
Os guardas negros arregalaram os olhos.
“O vento Papa-Defunto”, disse Bond.
Big Man olhou-o.
“Já está tudo embaixo?”, perguntou aos guardas.
“Sim senhor, patrão”, respondeu um deles.
“Leve-os”, ordenou Big Man.
Foram até a beira do penhasco e desceram a escadaria íngreme, com um guarda na frente, outro atrás e Mr. Big a seguir.
Os motores do longo e elegante iate giravam sossegados, com o escape borbulhando gravemente, e um fio de vapor azul a se erguer da popa.
Três sujeitos no molhe cuidavam das guias. Só havia três homens no convés, além do capitão, e o piloto na ponte escura, bem projetada. Não havia mais espaço para ninguém. Todo o espaço disponível no convés, exceto por uma cadeira de pesca presa no lado direito da popa, era preenchido pelos tanques de peixe. Com o pavilhão vermelho arriado, só a bandeira americana pendia imóvel da popa.
Distante alguns metros do barco, a paravana vermelha em forma de torpedo, com cerca de dois metros de comprimento, flutuava tranquilamente na água, agora verde-mar ao primeiro amanhecer. Estava ligada a uma grossa pilha de cabos metálicos, enrolados no convés da popa. Parecia a Bond que eles deveriam ter uns bons cinquenta metros. A água estava cristalina e não havia peixes rondando por perto.
O vento Papa-Defunto morria aos poucos. Dentro em breve o vento Médico começaria a soprar vindo do mar. Dentro de quanto tempo?, perguntou-se Bond. Seria um presságio?
Ao longe, além do barco, ele conseguia avistar o teto de Beau Desert entre as árvores, mas o molhe, o barco e a trilha no penhasco ainda estavam mergulhados em profunda sombra. Bond pensou se os binóculos de visão noturna conseguiriam vê-los. Se pudessem, o que pensaria Strangways?
No molhe, Mr. Big supervisionava a tarefa de amarrá-los.
“Tire a roupa dela”, ordenou ao guarda.
Bond se encolheu. Deu uma olhada de relance para o relógio de pulso de Mr. Big. Nele, faltavam dez minutos para as seis. Bond manteve silêncio. Não deveria haver nem um minuto de atraso.
“Jogue as roupas a bordo”, disse Mr. Big. “Amarre uns panos no ombro dele. Não quero que haja sangue na água ainda.”
As roupas de Solitaire foram cortadas a faca. Ela permaneceu ali, nua e pálida. Abaixou a cabeça e seus cabelos pesados caíram para a frente, tapando seu rosto. O ombro de Bond foi atado grosseiramente com tiras do seu vestido de linho.
“Canalha”, desabafou Bond, de dentes cerrados.
Sob a direção de Mr. Big, primeiro soltaram as mãos dos dois. Seus corpos foram atados frente a frente, e seus braços passados pela cintura um do outro, e depois novamente atados com força.
Bond sentiu a pressão dos seios macios de Solitaire. Ela encostou o queixo no ombro direito dele.
“Eu não queria que fosse assim”, sussurrou, trêmula.
Bond não respondeu. Mal sentia o corpo dela. Contava os segundos.
No molhe havia uma corda enovelada que ia até a paravana. Mergulhava na água e Bond a distinguia seguindo no fundo de areia até surgir de encontro à barriga do torpedo vermelho.
Sua extremidade solta foi passada debaixo das axilas de Bond e Solitaire, e bem amarrada com um nó que ficava no espaço entre seus pescoços. Tudo feito com muito cuidado. Não havia possibilidade de fuga.
Bond contava os segundos. De acordo com ele, faltavam cinco para as seis.
Mr. Big deu uma última olhada nos dois.
“Deixem as pernas soltas”, comentou. “Dão uma isca apetitosa.” Deixou o molhe e embarcou no convés do iate.
Os dois guardas também embarcaram. Depois de soltarem as guias, os dois sujeitos no molhe os seguiram. As hélices revolveram a água mansa e, com os motores a meia velocidade, o Secatur se afastou rapidamente da ilha.
Mr. Big foi para a popa, sentando-se na cadeira de pesca. Podiam ver o seu olhar fixo neles. Não disse nada. Não fez gesto algum. Apenas contemplava.
O Secatur cortava a água em direção ao recife. Bond podia ver o cabo da paravana se desenrolando no costado. A paravana começou a se mover lentamente atrás do barco. De repente mergulhou o nariz, endireitou-se e disparou, com o leme se dobrando na direção contrária à esteira do barco.
O rolo de corda ao lado deles deu um súbito sinal de vida.
“Cuidado”, avisou Bond, com urgência, agarrando-se com mais força à garota.
Seus braços quase se desconjuntaram com o solavanco do puxão, quando caíram do molhe no mar.
Por um instante ambos submergiram, depois voltaram à tona, com seus corpos unidos rasgando a água.
Bond procurava respirar em meio às ondas e aos borrifos que passavam depressa por ele, inundando sua boca retorcida. Podia ouvir a respiração entrecortada de Solitaire ao lado do seu ouvido.
“Respire, respire”, gritou, através da avalanche de água. “Prenda suas pernas nas minhas.”
Ela ouviu-o e ele sentiu entre as coxas a pressão dos joelhos dela. Solitaire teve um acesso de tosse. Em seguida, a respiração dela tornou-se mais regular junto ao seu ouvido e as batidas do coração da mulher acalmaram-se contra o seu peito. Ao mesmo tempo, a velocidade em que eram rebocados sofreu uma redução.
“Prenda a respiração”, gritou Bond. “Preciso dar uma olhada. Pronta?”
Ela respondeu com uma pressão dos braços. Ele sentiu o peito dela inflar quando seus pulmões se encheram de ar.
Usando o peso do corpo, girou-a para baixo, de maneira que a cabeça dele agora estava totalmente fora d’água.
Cortavam o mar a cerca de três nós. Dobrou a cabeça acima da pequena marola que faziam.
O Secatur entraria na passagem entre os recifes dentro de aproximadamente oitenta metros, segundo calculou. A paravana deslizava lentamente, quase em ângulo reto em relação ao barco. Faltavam trinta metros para o torpedo vermelho atravessar as águas encrespadas sobre o recife. Trinta metros atrás da paravana, eles navegavam devagar na superfície da baía.
Sessenta metros até o recife.
Bond girou o corpo e Solitaire emergiu, ofegante.
Continuaram a avançar lentamente na água.
Cinco metros, dez, quinze, vinte...
Apenas quarenta metros para atingirem o banco de coral.
O Secatur deveria ter acabado de transpô-lo. Bond recuperou o fôlego. Já devia passar das seis. Que teria acontecido com a porcaria da mina? Bond fez uma rápida e fervorosa oração. Que Deus nos salve, disse dentro d’água.
De repente sentiu que a corda apertava sob seus braços.
“Respire, Solitaire, respire”, gritou quando retomaram a velocidade e a água começou a passar sibilante por eles.
Agora voavam pelo mar em direção ao recife submerso.
Houve uma ligeira diminuição de velocidade. Bond imaginou que a paravana tivesse batido em uma pedra ou algum coral na superfície. Em seguida, seus corpos voltaram a disparar no seu abraço mortal.
Faltavam trinta metros, vinte, dez...
Meu Deus, pensou Bond. Não escaparemos. Contraiu os músculos para enfrentar a dor lancinante do impacto, empurrando Solitaire mais para cima, para protegê-la do pior.
De repente o ar fugiu com um chiado de seus pulmões, e um punho gigantesco socou-o contra Solitaire, de modo que ela se ergueu totalmente fora do mar e voltou a cair. Uma fração de segundo depois, um clarão iluminou o céu e ouviu-se o ribombar de uma explosão.
Estacaram de repente, e Bond percebeu que o peso da corda solta os puxava para baixo.
Suas pernas afundaram sob seu corpo atordoado e a água inundou sua boca.
Foi o que o fez recuperar a consciência. As pernas dele se debateram no fundo, voltando a trazer suas bocas até a tona. A garota era um peso morto em seus braços. Ele revolvia a água em desespero e olhava à sua volta, segurando a cabeça desmaiada de Solitaire em seu ombro, acima da superfície.
A primeira coisa que viu foram as águas revoltas do recife, a não mais de cinco metros de distância. Sem a sua proteção, ambos teriam sido esmagados pelo impacto da explosão. Ele sentiu o repuxo e o rodamoinho da correnteza em volta das pedras. Avançou desesperado em direção a ele, aspirando golfadas de ar sempre que possível. Seu peito ardia com o esforço e ele via o céu através de uma película vermelha. A corda o puxava para baixo e o cabelo da garota enchia sua boca, quase o sufocando.
De repente sentiu um arranhão agudo do coral contra a parte de trás das pernas. Chutou-as procurando desesperadamente um apoio para os pés, esfolando a pele a cada movimento.
Mal sentia dor.
Agora eram seus braços e suas costas que estavam sendo arranhados. Tropeçou, desajeitado, com os pulmões ardendo no peito. Em seguida sentiu uma camada de agulhas sob os pés. Arriou o peso nela, inclinando-se para trás para resistir à forte correnteza que procurava desalojá-lo. Seus pés resistiram e havia rocha às suas costas. Inclinou-se para trás, ofegante, com o sangue escorrendo em volta dele na água, segurando contra si o corpo frio da garota, que mal respirava.
Descansou por um minuto, com gratidão, olhos fechados e o sangue pulsando nas veias, tossindo dolorosamente, à espera de que seus sentidos se reanimassem. Seu primeiro pensamento foi em relação ao sangue na água à sua volta. Mas desconfiou de que os grandes peixes não se aventuravam até o recife. Aliás, não havia nada que ele pudesse fazer quanto a isso.
Em seguida, olhou para o mar.
Não havia sinal algum do Secatur.
No alto do céu tranquilo via-se um cogumelo de fumaça, que o vento Médico começava a arrastar em direção à terra.
Havia destroços espalhados sobre toda a extensão do mar e cabeças que subiam e desciam. A água estava toda coalhada com as barrigas brancas dos peixes atordoados ou mortos pela explosão. Um cheiro forte de explosivo pairava no ar. Na orla dos destroços a paravana vermelha jazia tranquila com o casco para baixo, ancorada pelo cabo cuja outra ponta deveria se encontrar em algum lugar no fundo. Colunas de bolhas emergiam na superfície vítrea do mar.
Na beira do círculo de peixes mortos e cabeças balouçantes, algumas barbatanas triangulares cortavam rápido o mar. Mais delas surgiram enquanto Bond observava. Em uma ocasião viu um grande focinho surgir da água e abocanhar alguma coisa. As barbatanas espirravam água ao chapinhar entre os escolhos. Dois braços negros se ergueram de repente no ar, desaparecendo em seguida. Ouviram-se gritos. Algumas pessoas davam braçadas agitadas no mar em direção ao recife. Alguém parou para bater na água diante dele com a mão espalmada. Depois as mãos desapareceram sob a superfície. Ouviram-se os gritos de quando seu corpo foi sacudido para lá e para cá dentro d’água. Uma barracuda o devorando, disse Bond consigo mesmo, atordoado.
Mais uma cabeça se aproximava, procurando chegar ao ponto do recife onde estava Bond, pequenas ondas quebrando sob suas axilas, e o cabelo preto da garota caído nas suas costas.
Era uma cabeça grande. Uma cortina de sangue escorria pelo seu rosto, de um ferimento no crânio imenso e calvo.
Bond observava a sua aproximação.
Big Man executava um nado de peito desajeitado, fazendo tanto espalhafato na água que era capaz de atrair qualquer peixe que já não estivesse ocupado.
Bond perguntou a si mesmo se ele conseguiria chegar. Seus olhos se estreitaram e sua respiração se acalmou, contemplando e esperando a decisão que o mar cruel tomaria.
A cabeça se aproximava. Bond podia ver os dentes à mostra em uma contração de agonia e de esforço titânico. O sangue tapava os olhos que Bond sabia estarem esbugalhados. Podia quase ouvir o grande coração doente batendo debaixo da pele preta acinzentada. Pararia antes que a isca fosse abocanhada?
Big Man continuava a vir. Os ombros estavam nus, as roupas haviam sido arrancadas pela explosão, imaginou Bond, porém, a gravata de seda preta resistira e aparecia em volta do pescoço grosso, arrastada atrás da cabeça como um rabicho de chinês.
Um borrifo de água limpou um pouco do sangue de seus olhos. Estavam arregalados, olhando desvairados para Bond. Neles não havia nenhuma súplica, somente o olhar fixo da exaustão física.
No instante mesmo em que Bond os contemplava, agora a apenas dez metros, fecharam-se de repente e o grande rosto se contorceu em uma careta de dor.
“Aarrh”, gritou a boca retorcida.
Os dois braços pararam de bater na água e a cabeça afundou e voltou à tona de novo. Uma nuvem de sangue escureceu o mar. Duas sombras esguias e marrons de três metros se afastaram da nuvem e, em seguida, voltaram rápido para ela. O corpo na água foi sacudido de lado. Metade do braço de Big Man surgiu à tona. Sem mão, sem pulso, nem relógio.
Mas a grande cabeça de nabo, a boca arreganhada cheia de dentes brancos que quase a dividiam ao meio, ainda estava viva. E agora berrava. Um grande berro gorgolejante que só dava quando alguma barracuda abocanhava seu corpo.
Ouviu-se um grito distante na baía, atrás de Bond. Mas ele não prestou atenção. Todos os seus sentidos estavam concentrados na cena horripilante no mar diante dele.
Uma barbatana rasgou a superfície a alguns metros de distância e parou.
Bond pôde ver o tubarão apontando o focinho como um cachorro, com os olhos míopes, rosados e redondos, tentando penetrar a nuvem de sangue e avaliar a presa. Então arremeteu contra o torso, e a cabeça que gritava afundou tão rápido quanto um peso de chumbo.
Algumas bolhas estouraram na superfície.
Houve um rodamoinho causado pela cauda manchada de marrom de um grande tubarão-leopardo, que recuou para engolir e para atacar de novo.
A cabeça voltou a flutuar. A boca estava fechada. Os olhos amarelos pareciam ainda se fixar em Bond.
O focinho do tubarão saiu da água e avançou para a cabeça, com a mandíbula inferior aberta e a luz brilhando em seus dentes. Houve um rangido horrível de osso triturado e um rodamoinho. Depois, o silêncio.
Os olhos dilatados de Bond continuaram a mirar a mancha marrom que cada vez mais se espalhava no mar.
A garota deu um gemido e Bond recuperou a lucidez.
Ouviu-se outro grito atrás dele e Bond virou a cabeça para a baía.
Era Quarrel, seu peito moreno e luzidio avultando sobre o casco esguio da canoa, com os braços trabalhando o remo, seguido, a uma longa distância, por todas as outras canoas da baía dos Tubarões deslizando sobre as pequenas ondas que haviam começado a encrespar a superfície.
Os ventos elísios do nordeste haviam começado a soprar e o sol brilhava na água azul e nos doces flancos verdes da Jamaica.
As primeiras lágrimas que brotaram dos olhos azuis-acinzentados de James Bond desde a sua infância escorreram pelo seu rosto contraído, caindo no mar manchado de sangue.
23.
LICENÇA PAIXÃO
Como dois pingentes de esmeralda, dois beija-flores faziam a última ronda pelos hibiscos. Um tordo começara sua cantoria vespertina, mais doce que a do rouxinol, em cima de um arbusto perfumado de jasmim da noite.
A sombra irregular de uma fragata deslizou por cima do gramado verde, enquanto planava nas correntes de ar que subiam a costa até alguma distante colônia, e o martim-pescador azul-acinzentado chilreou, irritado, ao ver o homem sentado em uma cadeira no jardim. Mudou a direção do voo e guinou, atravessando o mar, até a ilha. Uma borboleta sulfurina flertava entre as sombras roxas das palmeiras.
O mar de variados tons de azul da baía estava bastante calmo. Os penhascos da ilha eram de um rosa profundo, à luz do sol que se punha atrás da casa.
Havia um cheiro de entardecer e de frescor depois do calor do dia, e um leve perfume de farinha de mandioca torrada vindo das cabanas de pescadores, no povoado à direita, a distância.
Solitaire saiu da casa de pés descalços e atravessou o gramado. Carregava uma bandeja com uma coqueteleira e dois copos. Colocou-a na mesa de bambu ao lado da cadeira de Bond.
“Espero ter feito direito”, comentou. “Seis partes para uma parece terrivelmente forte. Nunca tomei martíni de vodca.”
Bond olhou para ela. Vestia um de seus pijamas brancos de seda. Eram demasiado grandes. Parecia absurdamente infantil.
Ela riu. “O que acha de meu batom de Port Maria?”, perguntou. “E as sobrancelhas delineadas com lápis HB? Não consegui fazer mais nada para me ajeitar, além de tomar banho.”
“Está uma maravilha”, disse Bond. “Você é de longe a garota mais bonita da baía dos Tubarões. Se eu tivesse pernas e braços, me levantaria para lhe dar um beijo.”
Solitaire se inclinou e lhe deu um longo beijo na boca, com o braço apertado em volta de seu pescoço. Levantou-se e afastou a mecha curva de cabelos sobre a testa dele.
Olharam um para o outro. Em seguida, ela virou para a mesa e lhe serviu um coquetel. Despejou meio copo para si e sentou no gramado quente, com a cabeça contra o joelho de Bond. Ele brincou com a mão direita entre os cabelos dela e ficaram um instante sentados, olhando o mar entre as palmeiras e a luz que declinava na ilha.
O dia fora dedicado a lamber as feridas e ajeitar o que sobrara da confusão.
Quando Quarrel desembarcara com eles na pequena praia de Beau Desert, Bond carregara Solitaire pelo gramado até o banheiro. Enchera a banheira de água quente. Sem que ela soubesse o que estava acontecendo, ele ensaboara e lavara todo seu corpo e seus cabelos. Depois de tirar todo o sal e musgo do coral, ajudou-a a sair, secou-a e botou mertiolato nos cortes de coral que marcavam suas costas e suas coxas. Depois lhe deu um comprimido para dormir e colocou-a nua entre os lençóis de sua própria cama. Beijou-a. Antes de fechar as venezianas, ela já dormia.
Entrou no banheiro e Strangways o ensaboou. Depois quase o banhou em mertiolato. Sangrava e estava esfolado em centenas de lugares, com o braço esquerdo dormente por causa da mordida da barracuda. Perdera um bocado de músculo do ombro. A ardência do mertiolato fez com que trincasse os dentes. Vestiu um roupão e Quarrel o levou ao hospital em Port Maria.
Antes de partir, tomou um café da manhã reforçado e fumou um bendito cigarro. Dormiu no carro, dormiu na mesa de operações e na cama onde finalmente o puseram, como uma massa de ataduras e esparadrapo cirúrgico.
Quarrel trouxe-o de volta no começo da tarde. A essa altura Strangways já agira de acordo com as instruções que Bond lhe dera. Mandaram um destacamento de polícia para a ilha da Surpresa. Os destroços do Secatur, a trinta e seis metros de profundidade, receberam uma boia de sinalização, que passou a ser patrulhada pela lancha da alfândega de Port Maria. O rebocador de salvamento e os mergulhadores estavam a caminho a partir de Kingston. Os repórteres da imprensa local tinham recebido uma breve declaração, e havia policiais em guarda na entrada de Beau Desert, para conter a avalanche de repórteres que chegariam à Jamaica, depois que toda a história corresse o mundo. Enquanto isso, um relatório completo fora enviado a M e a Washington, de modo que o bando de Big Man no Harlem e em St. Petersburg pudesse ser preso provisoriamente sob a acusação preventiva de contrabando de ouro.
Não houve sobreviventes do Secatur, mas os pescadores locais trouxeram quase uma tonelada de peixes mortos naquela manhã.
A Jamaica estava fervilhando de boatos. Fileiras de carros paravam, lado a lado, nos penhascos acima da baía e ao longo da praia embaixo. Espalhara-se a notícia do tesouro de Morgan, o Sanguinário, porém, o bando de tubarões e barracudas também o protegia. Por causa deles não havia nadador que arriscasse ir até a cena do naufrágio na calada da noite.
Veio um médico visitar Solitaire. Ele encontrou-a preocupada principalmente em arranjar roupas e o batom no tom certo. Strangways encomendara uma amostra completa deles de Kingston, que chegaria no dia seguinte. Por enquanto, ela fazia experiências com o conteúdo da valise de Bond e uma tigela de hibiscos.
Strangways voltou de Kingston após a saída de Bond do hospital. Trouxe um telegrama cifrado de M para Bond, no qual se lia:
SUPONHO REIVINDICOU TESOURO EM SEU NOME REPRESENTANDO UNIVERSAL EXPORT PONTO PROSSIGA IMEDIATAMENTE SALVAMENTO PONTO CONTRATEI ADVOGADO DEFENDER DIREITOS JUNTO TESOURO E MINISTÉRIO COLÔNIAS PONTO ENQUANTO ISSO PARABÉNS PONTO CONCEDIDA LICENÇA PAIXÃO QUINZE DIAS PONTO FINAL
“Suponho que ele queira dizer ‘compaixão’”, comentou Bond.
Strangways tinha um aspecto solene. “Acho que sim”, respondeu. “Fiz um relatório completo dos danos que você sofreu. E a garota também”, acrescentou.
“Hmm”, disse Bond. “As expressões cifradas geralmente são precisas. Mesmo assim.”
Strangways olhou propositalmente pela janela, reprimindo um sorriso.
“Bem típico da velha raposa, pensar primeiro no ouro”, comentou Bond. “Suponho que ele ache que conseguirá obter o que quer, descobrindo um modo de contornar a redução da verba secreta quando houver nova reunião do Parlamento para avaliá-la. Creio que passa metade de sua vida brigando com o Tesouro. Mesmo assim, está muito errado se pensa que conseguirá.”
“Dei entrada na sua reivindicação na sede do governo, assim que recebi a mensagem”, relatou Strangways. “Mas será difícil. A Coroa virá atrás do tesouro e a América entrará nisso de alguma forma, porque Big Man era cidadão americano. Vai dar pano pra manga.”
Haviam conversado mais um pouco e depois Strangways partira. Bond caminhara cheio de dores até o jardim, para se sentar um pouco ao sol, sozinho com seus pensamentos.
Recapitulou a série de riscos que correra na sua longa busca por Big Man e pelo tesouro fabuloso, revivendo os episódios em que enfrentara a morte cara a cara.
Agora terminara e ele estava sentado ao sol, entre as flores, com a recompensa aos seus pés e sua mão entre os longos cabelos pretos dela. Agarrou bem aquele instante e pensou nos catorze dias seguintes que lhes pertenceriam.
Ouviram-se um barulho de louça quebrada na cozinha, nos fundos da casa, e o som da voz de Quarrel praguejando contra alguém.
“Pobre Quarrel”, disse Solitaire. “Arranjou a melhor cozinheira do povoado e varreu os mercados atrás de surpresas para nós. Chegou a encontrar caranguejos negros, os primeiros da época. Depois passou a assar o pobrezinho de um leitão ainda mamando e a fazer uma salada de abacate, para terminar com goiabas e manjar de coco. E o Comandante Strangways deixou uma caixa do melhor champanhe da Jamaica. Já estou com água na boca. Mas não se esqueça de que deve ser segredo. Cheguei de surpresa na cozinha e ele quase fez a cozinheira chorar.”
“Virá com a gente na nossa licença paixão”, disse Bond. Contou-lhe sobre o telegrama de M. “Vamos para uma casa sobre estacas, com palmeiras e oito quilômetros de areia dourada. E você terá de cuidar de mim muito bem, porque não poderei fazer amor com um braço só.”
Havia uma sensualidade óbvia no olhar de Solitaire, quando ela o ergueu para ele, sorrindo inocentemente.
“E eu com as minhas costas?”, disse ela.
16.
O LADO JAMAICANO
Eram duas horas da madrugada. Bond tirou o carro de junto da amurada e atravessou a cidade até pegar a 4th Street, a rodovia para Tampa.
Seguiu despreocupado pelas quatro pistas cimentadas da rodovia, atravessando o infindável corredor polonês de motéis, campings e lojas de beira de estrada, que vendiam mobília de praia e gnomos de concreto.
Parou no Gulf Winds Bar and Snacks e pediu um Old Grandad duplo com gelo. Enquanto o barman o servia, foi ao banheiro se limpar. As ataduras na mão esquerda estavam cobertas de sujeira e a mão latejava dolorosamente. A tala quebrara na barriga do Ladrão. Não havia nada que ele pudesse fazer. Os olhos estavam vermelhos de tensão e falta de sono. Foi até o bar, bebeu o Bourbon e pediu outro. O barman parecia um desses universitários que custeavam as próprias férias trabalhando duro. Estava a fim de conversar, mas em Bond não restara nenhuma vontade de falar. Ficou sentado, olhando o copo, pensando em Leiter e no Ladrão, e ouvindo o grunhido repugnante do tubarão devorando a presa.
Pagou, saiu e atravessou de novo a Gandy Bridge, com o ar fresco da baía lhe batendo no rosto. No final da ponte, virou à esquerda em direção ao aeroporto e parou no primeiro motel que parecia aberto.
O casal de proprietários de meia-idade ouvia um programa cubano de rumbas na madrugada, com uma garrafa de Rye entre eles. Bond contou uma história sobre um pneu furado entre Sarasota e Silver Springs. Não estavam interessados. Queriam apenas os seus dez dólares. Bond levou o carro até o quarto 5, o sujeito abriu a porta e acendeu as luzes. Havia uma cama de casal, um banheiro com chuveiro e duas cadeiras. O branco e o azul davam o tom nas paredes. Parecia limpo e Bond colocou a sacola no chão com um sentimento de gratidão, ao se despedir do dia. Despiu-se, jogou as roupas sem dobrar em uma cadeira. Em seguida tomou uma rápida chuveirada, escovou os dentes, gargarejou com um dentifrício forte e entrou na cama.
Mergulhou logo em um sono tranquilo. Era a primeira noite, desde que chegara à América, em que não se sentia ameaçado por uma nova batalha contra o destino na manhã seguinte.
Acordou ao meio-dia e caminhou pela estrada até uma cafeteria, onde o cozinheiro lhe preparou no balcão um delicioso sanduíche de três andares, que ele comeu enquanto tomava café. Em seguida, voltou ao quarto e escreveu um relatório minucioso ao FBI em Tampa. Omitiu todas as referências ao ouro nos tanques de peixes venenosos, com medo de que Big Man encerrasse os negócios na Jamaica. Eles ainda precisavam ser investigados. Bond sabia que os danos que ele provocara na máquina de Big Man na América não mudavam nada o objetivo principal de sua missão — a descoberta da fonte do ouro, sua captura e a destruição, se possível, do próprio Mr. Big.
Foi de carro até o aeroporto e pegou o quadrimotor prateado, faltando apenas poucos minutos para a partida. Deixou o carro de Leiter no estacionamento, conforme dissera no seu relatório ao FBI. Pensou que fora algo desnecessário, quando avistou um sujeito vestindo uma capa esdrúxula, à toa em uma loja de lembranças. As capas de chuva pareciam ser praticamente o uniforme do FBI. Bond estava certo de que queriam ter certeza de que ele pegaria o avião. Ficariam satisfeitos de vê-lo pelas costas. Por onde passara na América, deixara um rastro de cadáveres. Antes de embarcar no avião, ligou para o hospital em St. Petersburg. Arrependeu-se. Leiter ainda estava inconsciente e não tinham prognósticos. Sim, ligariam de volta quando tivessem alguma notícia definitiva.
Eram cinco da tarde quando o avião circulou sobre Tampa Bay, rumo ao leste. O sol estava baixo no horizonte. Um grande jato vindo de Pensacola passou ventando, bem a bombordo, deixando quatro rastros de vapor pairando quase imóveis no ar parado. Em breve o voo de reconhecimento terminaria e ele voltaria para pousar na costa do Golfo, cheia de idosos com camisetas estampadas. Bond se alegrava de estar a caminho das doces encostas verdes do litoral da Jamaica, deixando para trás o grande e rijo continente de Eldollarado.
O avião avançava, atravessando a cintura da Flórida, os hectares de floresta e de mangue sem nenhum sinal de habitantes humanos, com suas luzes da asa piscando, verdes e vermelhas, na escuridão que chegava. Em breve sobrevoavam Miami e as monstruosas arapucas para otários da costa oriental, cujas artérias brilhavam, entupidas de néon. Longe, a bombordo, a rodovia estadual nº 1 sumia subindo o litoral, uma fita dourada de motéis, postos de gasolina e barracas de suco de frutas, passando por Palm Beach, Daytona e Jacksonville, a quatrocentos e cinquenta quilômetros. Bond pensou no café da manhã que tomara em Jacksonville, por volta de três dias antes, e em tudo o que acontecera depois. Dentro em breve, após uma curta parada em Nassau, sobrevoaria Cuba, talvez sobre o esconderijo em que Mr. Big ocultara Solitaire. Ela ouviria o barulho do avião e talvez sua intuição a fizesse olhar para cima e sentir, por um instante, que ele estava próximo.
Bond ficou pensando se jamais se encontrariam de novo para acabar o que haviam começado. Mas isso teria de vir mais tarde, quando seu trabalho estivesse terminado — o prêmio de um itinerário perigoso que começara três semanas antes, em meio ao nevoeiro de Londres.
Depois de um coquetel e um jantar cedo, chegaram a Nassau e passaram meia hora na ilha mais rica do mundo, aquela faixa arenosa onde milhões e milhões de libras esterlinas são enterradas com grande susto nas mesas de canastra, e onde bangalôs, cercados de uma parede fina de pinheiros e casuarinas, trocam de mãos por cinquenta mil libras.
Deixaram para trás a escala rápida na ilha de platina, e em breve sobrevoavam as madrepérolas cintilantes das luzes de Havana, tão diferentes, em seus modestos tons pastel, das berrantes cores primárias das cidades americanas à noite.
Voavam a cinco mil metros quando, logo depois de passar por Cuba, encontraram uma daquelas tempestades tropicais que de repente fazem com que as aeronaves se transformem, de confortáveis salas de estar, em armadilhas mortíferas sacolejantes. O grande avião cambaleou e deu um mergulho, com as hélices ora roncando no vácuo, ora mordendo com força os paredões compactos de ar. O cilindro esguio de metal estremecia e balançava. A louça se espatifava na copa, e a chuva forte martelava as vidraças.
Bond agarrou os braços da poltrona, provocando dor na mão esquerda, praguejando baixinho consigo mesmo.
Olhou para as prateleiras das revistas e pensou: não serão de muita utilidade quando o aço acusar fadiga, a cinco mil metros de altitude, nem a água de colônia no banheiro, as refeições personalizadas, o barbeador gratuito, a “orquídea para sua senhora” agora trêmula na geladeira. Muito menos os cintos de segurança e os coletes salva-vidas, com o apito que realmente apita, segundo a demonstração da aeromoça, nem a luz de resgate engraçadinha que emite um brilho vermelho.
Não. Quando as tensões se tornam excessivas no metal fatigado, quando o mecânico de manutenção que testa o equipamento de descongelamento está apaixonado e faz mal o serviço, lá em Londres, Idlewild, Gander, Montreal; quando essas ou muitas outras coisas acontecem, então a pequena sala aquecida, com hélices na frente, cai como uma pedra do céu, na terra ou no mar, mais pesada que o ar, falível, imprestável. E as quarenta pessoas mais pesadas que o ar, frágeis dentro da fragilidade do avião, desamparadas dentro do desamparo maior do avião, despencam com ele, abrindo pequenos buracos na terra, ou espirrando água no mar. De qualquer modo, é o destino, então por que se preocupar? As pessoas estão conectadas aos dedos descuidados do mecânico de manutenção em Nassau, do mesmo modo que estão conectadas ao homenzinho no sedã da família, que confunde o sinal verde com o vermelho e bate de frente, pela primeira e última vez, na pessoa que dirigia tranquilamente para casa depois de um programa clandestino. Não se pode fazer nada. Começamos a morrer desde o dia em que nascemos. A vida inteira é um jogo de cartas com a morte. Por isso tenha calma. Acenda um cigarro e seja grato por ainda estar vivo, enquanto traga a fumaça profundamente nos seus pulmões. Nosso destino já permitiu que percorrêssemos um longo caminho desde que abandonamos o útero da mãe e choramingamos ao contato com o ar frio do mundo. Talvez ele até permita que cheguemos à Jamaica esta noite. Não está escutando as vozes animadas da torre de controle que passaram o dia falando, tranquilas: “Pode pousar, BOAC. Pode pousar, Panam. Pode pousar, KLM”? Não as escuta também nos chamando: “Pode pousar, Transcarib. Pode pousar, Transcarib”? Não perca a fé no destino. Lembre aquele momento terrível em que enfrentou a morte diante da arma do Ladrão, na noite passada. Ainda está vivo, não está? Pronto, já não corremos mais perigo. Isso foi só para lembrar que ser rápido no gatilho não quer dizer que você seja realmente forte. Não se esqueça. Este pouso feliz no Aeroporto Palisadoes é cortesia de seu destino. Melhor agradecer a ele.
Bond desatou o cinto de segurança e limpou o suor do rosto.
Ao diabo com tudo isso, pensou, ao desembarcar da aeronave enorme e resistente.
Strangways, o chefe do serviço secreto do Caribe, veio encontrá-lo no aeroporto, e assim ele passou depressa pela alfândega, imigração e fiscalização financeira.
Eram quase onze horas de uma noite quente, tranquila. Ouvia-se o som agudo dos grilos nas fileiras de cactos de ambos os lados da estrada do aeroporto, e Bond absorvia com gratidão os ruídos e os cheiros tropicais, enquanto a caminhonete militar atravessava a periferia de Kingston, em direção aos contrafortes cintilantes e enluarados das Montanhas Azuis.
Conversaram em monossílabos até se instalarem na varanda aconchegante da bela casa branca de Strangways, em Junction Road, abaixo de Stony Hill.
Strangways serviu um uísque com soda reforçado para os dois e, em seguida, fez um relato conciso de todo o lado jamaicano do problema.
Era um sujeito esguio e bem-humorado de mais ou menos trinta e cinco anos, ex-tenente e comandante da Seção Especial da Reserva Voluntária da Marinha Real. Tinha uma venda negra sobre um olho e o tipo de beleza aquilina associada à ponte de comando dos destróieres. Mas debaixo do bronzeado havia um rosto marcado, e Bond percebeu, pelos gestos rápidos e frases entrecortadas, seu ânimo nervoso e tenso. Era certamente eficiente, tinha senso de humor e não demonstrava nenhum sinal de ciúme diante de alguém que viera da matriz para se meter em seu território. Bond sentiu que se dariam bem, antecipando com prazer essa parceria.
Eis a história que Strangways tinha para contar.
Sempre circularam boatos sobre a presença de um tesouro na ilha da Surpresa, e tudo que se sabia sobre Morgan, o Sanguinário, confirmava essa suspeita.
A pequena ilha ficava no centro exato da baía dos Tubarões, um pequeno porto no final da Junction Road, que corre pela cintura fina da Jamaica, de Kingston à costa norte.
O grande bucaneiro fizera da baía dos Tubarões seu quartel-general. Gostava de ter toda a largura da ilha de permeio entre ele e o governador em Port Royal, de modo que pudesse sair e entrar nas águas jamaicanas em total segredo. O governador também gostava desse arranjo. A Coroa queria que ele fechasse os olhos à pirataria de Morgan até que os espanhóis fossem expulsos do Caribe. Quando isso ocorreu, Morgan foi recompensado com um título de nobreza e o posto de governador da Jamaica. Até então, suas ações tinham de ser repudiadas para evitar uma guerra contra a Espanha, na Europa.
No entanto, durante o longo período antes que a raposa recebesse a chave do galinheiro, Morgan utilizou a baía dos Tubarões como porto de partida para suas investidas. Construiu três casas na propriedade vizinha, denominada Llanrumney, em homenagem ao seu local de nascimento no País de Gales. Essas casas se chamavam “Casa de Morgan”, “Casa do Médico” e “Casa da Dama”. Ainda hoje se descobrem moedas e fivelas em suas ruínas.
O ancoradouro de seus navios sempre foi a baía dos Tubarões, e os reparos nas embarcações eram feitos, a sotavento, na ilha da Surpresa, um pedaço de coral e calcário acidentado que surge do centro da baía, encimado por um platô cheio de mato de cerca de meio hectare.
Quando partiu para sempre da Jamaica, em 1683, foi como preso, para ser julgado por seus pares por menosprezo à Coroa. Seu tesouro foi abandonado em algum lugar na Jamaica e ele morreu na miséria, sem revelar seu paradeiro. Deve ter sido um vasto butim, fruto de incontáveis investidas contra Hispaniola, da captura de inúmeros navios que levavam tesouros para La Plata, do saque do Panamá e da pilhagem de Maracaibo. Mas sumiu sem deixar vestígios.
Sempre se pensou que o segredo jazia em algum lugar da ilha da Surpresa, mas duzentos anos de mergulhos e de escavações da parte dos caçadores de tesouros não revelaram nada. Então, disse Strangways, há apenas seis meses, duas coisas aconteceram em poucas semanas. Um jovem pescador desapareceu do povoado da baía dos Tubarões e nunca mais se soube dele, e um sindicato anônimo de Nova York adquiriu a ilha por mil libras do atual proprietário de Llanrumney, agora uma próspera propriedade de cultivo de banana e de criação de gado.
Poucas semanas depois da venda, o iate Secatur chegara à baía dos Tubarões e fundeara no antigo ponto de ancoragem de Morgan, a sotavento da ilha. Veio com uma tripulação exclusivamente negra. Puseram-se a trabalhar, cavando uma escada na face do rochedo, construindo no topo uma série de cabanas baixas de taipa, ao estilo jamaicano.
Pareciam estar perfeitamente aprovisionados e só compravam peixe fresco e água dos pescadores da baía.
Era um pessoal ordeiro e taciturno, que não dava trabalho. Explicaram à alfândega da vizinha Santa Maria, que os havia liberado, que estavam ali para pescar peixes tropicais, especialmente as variedades venenosas, e coletar conchas para a Ourobouros Inc, de St. Petersburg. Depois que se estabeleceram, compraram grandes quantidades deles dos pescadores da baía dos Tubarões, Port Maria e Oracabessa.
Durante uma semana realizaram explosões na ilha, dizendo que era para a escavação de um grande tanque de peixes.
O Secatur começou a fazer uma rota quinzenal para o Golfo do México, e observadores com binóculos confirmaram que, antes de zarpar, sempre embarcavam tanques portáteis de peixe. Meia dúzia de homens era deixada para trás. Quaisquer canoas que se aproximassem da ilha recebiam ameaças de um guarda, na base da escadaria no rochedo, que ficava o dia inteiro pescando em um molhe estreito onde o Secatur atracava, preso a duas âncoras no mar, bem abrigado dos ventos nordeste.
Jamais alguém conseguiu desembarcar na ilha de dia e, depois de duas tentativas trágicas, ninguém voltou a tentar um desembarque noturno.
A primeira tentativa foi a de um pescador local, instigado pelos boatos de um tesouro enterrado que nenhuma conversa sobre peixes tropicais podia abafar. Partiu a nado uma noite e seu corpo fora devolvido pelo mar, por cima do recife, no dia seguinte. Os tubarões e as barracudas só deixaram o torso e um pedaço da coxa.
Mais ou menos na hora em que ele deveria chegar à ilha, toda a aldeia da baía dos Tubarões foi acordada pelo batuque mais terrível. Parecia vir do interior da ilha. Reconheceram-no como um batuque do vodu. Começou tranquilo e foi em um crescendo trovejante. Depois baixou novamente e parou. Durou cerca de cinco minutos.
Desde aquele momento a ilha se tornou ju-ju, ou obeah, como se diz na Jamaica, e, mesmo à luz do dia, as canoas ficam a uma distância segura.
A essa altura, Strangways teve seu interesse despertado e fez um relatório completo a Londres. Desde 1950, a Jamaica se tornara um alvo estratégico importante, graças à exploração, pela Reynolds Metal e pela Kaiser Corporation, de enormes depósitos de bauxita encontrados na ilha. Na opinião de Strangways, as atividades na ilha da Surpresa bem poderiam estar ligadas à construção de uma base de submarinos de um só tripulante, prevendo uma situação de guerra, especialmente porque a baía dos Tubarões estava no âmbito da rota dos navios da Reynolds até o novo porto de embarque de bauxita de Ocho Ríos, alguns quilômetros costa abaixo.
Londres investigou, junto com Washington, com base no relatório, e veio à tona a informação de que o sindicato que comprara a ilha era inteiramente de propriedade de Mr. Big.
Isso há três meses. Strangways recebeu ordens de entrar na ilha de qualquer maneira e descobrir o que estava acontecendo. Montou uma operação e tanto. Alugou uma propriedade no braço ocidental da baía dos Tubarões, chamada Beau Desert, onde existem as ruínas de um dos famosos casarões jamaicanos do começo do século dezenove, e também uma casa de praia moderna bem em frente ao ancoradouro do Secatur na ilha da Surpresa.
Trouxe dois bons nadadores da base naval na Bermuda e organizou uma observação permanente da ilha através de binóculos diurnos e noturnos. Nada foi visto que parecesse suspeito e, em uma noite calma e escura, ele mandou os dois nadadores com ordens de fazer uma vistoria submarina das fundações da ilha.
Strangways contou o pavor que sentiu quando, uma hora depois de partirem a nado para atravessar os trezentos metros de mar, começou um terrível batuque em algum lugar dentro dos penhascos da ilha.
Naquela noite os dois não voltaram.
No dia seguinte, ambos apareceram na praia, em lugares diferentes da baía. Ou melhor, o que sobrou de seus corpos devorados pelos tubarões e barracudas.
Nesta altura da história de Strangways, Bond interrompeu-o.
“Um minuto só”, disse, “que história é essa de tubarões e barracudas? Geralmente eles não são agressivos nestas águas. Não existem muitos na Jamaica e raramente se alimentam de noite. Aliás, não creio que nenhum deles ataque seres humanos, a não ser que haja sangue na água. Podem dar uma mordida, uma vez ou outra, em algum pé branco, por curiosidade. Já houve notícias anteriores de comportamento assim na Jamaica?”
“Nunca houve outro caso, desde que uma garota teve o pé devorado em Kingston Harbour, em 1942”, disse Strangways. “Ela estava sendo rebocada por uma lancha, batendo os pés. Seus pés brancos devem ter parecido especialmente apetitosos. E, além disso, estavam viajando em uma velocidade que convidava ao ataque. Todo mundo concorda com sua teoria. E meus homens tinham arpões e facas. Achei que fizera de tudo para protegê-los. Foi algo medonho. Imagine só como me senti. Desde então não fizemos mais nada, exceto tentar legalizar o acesso à ilha através da Secretaria das Colônias e de Washington. Mas o proprietário é cidadão americano. Então o processo é penosamente lento, sobretudo porque não há nada contra essa gente. Parecem dispor de uma boa proteção em Washington e de alguns advogados muito bons em direito internacional. Estamos absolutamente emperrados. Londres me disse para esperar até que você viesse.” Strangways deu um gole no uísque e olhou para Bond com expectativa.
“Quais são os movimentos do Secatur?”, perguntou Bond.
“Ainda está em Cuba. Deve zarpar dentro de uma semana, de acordo com a CIA.”
“Quantas viagens fez?”
“Cerca de vinte.”
Bond multiplicou cento e cinquenta mil dólares por vinte. Se seus cálculos estivessem certos, Mr. Big já levara um milhão de libras em ouro da ilha.
“Fiz alguns arranjos provisórios para você”, disse Strangways. “Tem a casa em Beau Desert. Há um carro, Sunbeam Talbot, sedã. Pneus novos. Corre bem. Ideal para essas estradas. Arranjei um sujeito ótimo para ser seu faz-tudo. Um ilhéu das ilhas Cayman, chamado Quarrel. O melhor pescador e nadador do Caribe. Muito prestativo. Grande sujeito. E peguei emprestada a casa de repouso da West Indian Citrus Company na Baía Manatee. Fica na outra extremidade da ilha. Você podia descansar lá uma semana e se exercitar um pouco até a chegada do Secatur. Precisará estar em forma se quiser chegar à ilha da Surpresa, e acredito francamente que só isso nos dará a resposta. Tem mais alguma coisa que eu possa fazer? Estarei por aí, claro, mas preciso ficar em Kingston para manter a comunicação com Londres e Washington. Eles vão querer saber tudo que fizermos. Há mais alguma coisa que você gostaria que eu providenciasse?”
Bond estivera se decidindo.
“Sim”, respondeu. “Pode pedir a Londres que consiga junto ao Almirantado uma de suas roupas de mergulho, completa, com os cilindros de ar comprimido. E muitos sobressalentes. E um bom par de arpões. Os franceses, ‘Champion’, são os melhores. Uma boa lanterna subaquática. Uma faca de guerra dos comandos. Toda a informação que puderem arranjar no Museu de História Natural sobre tubarões e barracudas. E um pouco daquele repelente de tubarões que os americanos usaram no Pacífico. Peça à BOAC para trazer tudo pelo seu serviço direto.”
Bond fez uma pausa. “Ah, sim”, disse. “E uma daquelas coisas que nossos sabotadores costumavam usar contra os navios durante a guerra. Uma mina naval, com diversos detonadores.”
17.
O VENTO PAPA-DEFUNTO
Mamão com uma rodela de limão, um prato cheio de bananas avermelhadas, caimitos roxos, ovos mexidos com bacon, café Blue Mountain — o mais delicioso do mundo —, geleia de laranja jamaicana, quase preta, e geleia de goiaba.
Enquanto Bond, trajando shorts e sandálias, tomava café na varanda, contemplando o panorama ensolarado de Kingston e Port Royal, pensou que tinha sorte pela existência de momentos tão magníficos a compensar o perigo e o ambiente sombrio de sua profissão.
Bond conhecia bem a Jamaica. Estivera no país durante uma longa missão logo após a guerra, quando o quartel-general comunista em Cuba procurava infiltrar os sindicatos jamaicanos. Tinha sido um serviço malresolvido e inconcluso, mas ele aprendera a amar a grande ilha verde e seu povo alegre e leal. Agora estava contente por ter retornado e pela semana inteira de folga antes de recomeçar o trabalho duro.
Depois do café da manhã, Strangways surgiu na varanda com um sujeito alto de pele morena, trajando uma camisa azul desbotada e velhas calças de sarja marrons.
Era Quarrel, o ilhéu das ilhas Cayman, com quem Bond logo simpatizou. Tinha sangue dos soldados de Cromwell e de bucaneiros. Seu rosto era forte e anguloso, com uma boca quase severa e olhos cinzentos. Apenas o nariz achatado e as palmas das mãos descoradas eram negroides.
Bond apertou sua mão.
“Bom dia, capitão”, falou Quarrel. Vindo da raça de pescadores mais famosa do mundo, esse era o tratamento mais honroso que ele podia merecer. Mas não havia nenhum desejo de agradar, ou humildade, na sua voz. Falava como marujo, de maneira direta e franca.
Esse momento definiu o relacionamento deles. Parecia a relação entre um senhor de terras escocês e seu caçador-chefe; o reconhecimento subentendido da autoridade, sem espaço para qualquer servilismo.
Depois de discutirem seus planos, Bond pegou o volante do pequeno carro que Quarrel trouxera de Kingston e tomaram a Junction Road, deixando Strangways ocupado com os pedidos de Bond.
Partiram antes das nove e ainda estava fresco quando atravessaram as montanhas que se estendem pelo dorso da Jamaica como a parte dentada da couraça do crocodilo. A estrada descia serpenteando em direção às planícies do norte, através de um dos cenários mais bonitos do mundo, em que a vegetação tropical se modificava com a mudança de altitude. Os flancos verdes das serras, emplumados de bambus intercalados com o verde escuro e brilhoso da fruta-pão e a súbita explosão colorida do flamboyant, cediam lugar, mais para baixo, à floresta de ébano, mogno, hibiscos e pau-campeche. Quando chegaram às várzeas do vale de Agualta, o mar verde dos bananais e canaviais se espraiava até onde a orla afastada dos bosques de palmeiras brotava cintilante ao longo da costa norte.
Quarrel foi boa companhia no passeio e um guia maravilhoso. Falou sobre as aranhas que faziam suas casas na terra, encimadas por pequenos alçapões perfeitos, ao passarem pelos famosos jardins de palmeiras de Castleton. Contou que assistira a uma briga entre uma centopeia gigante e um escorpião e explicou a diferença entre o mamão-macho e o mamão-fêmea. Descreveu os venenos da mata e as propriedades medicinais das ervas tropicais, a pressão exercida pela noz para romper o coco, o comprimento da língua do beija-flor, a maneira como os crocodilos carregam os filhotes na boca, ao comprido, como sardinhas em lata.
Falava em termos precisos, mas sem conhecimento técnico, empregando o linguajar jamaicano em que as plantas são humanizadas, “se esforçam”, “desanimam”, “mariposas” são “morcegos” e “amar” é sempre usado no lugar de “gostar”. Enquanto falava, levantava a mão em um gesto de saudação para as pessoas na estrada, que também gesticulavam e gritavam seu nome.
“Você parece conhecer gente à beça”, comentou Bond, quando o motorista de um ônibus apinhado, com a palavra ROMANCE escrita em grandes letras em cima do para-brisa, saudou-o com dois toques de sua buzina de ar comprimido.
“Faz três meses que ando observando a ilha da Surpresa, capitão”, disse Quarrel, “e passando por esta estrada duas vezes por semana. Todo mundo fica logo conhecido na Jamaica. O pessoal tem vista boa.”
Às dez e meia já tinham passado Port Maria e enveredado por uma pequena estrada vicinal que levava à baía dos Tubarões. Ao fazer uma curva, se depararam com ela embaixo, e Bond parou o carro e saíram.
A baía tinha a forma de um crescente e talvez uns mil e duzentos metros de largura entre um pontal e outro. Sua superfície azul estava encrespada pela leve brisa que soprava do nordeste, vizinha dos ventos alísios que nasciam a oitocentos quilômetros, no Golfo do México, e de lá partiam para sua longa viagem em volta do mundo.
A um quilômetro e meio de onde estavam, uma longa arrebentação sinalizava o recife fora da baía e o estreito de águas calmas que era a única entrada para o ancoradouro. No meio do crescente, a ilha da Surpresa assomava com seus trinta e poucos metros acima do mar, orlada no seu lado leste pela espuma das pequenas ondas que quebravam, e por águas calmas a sotavento.
Era quase redonda, parecendo um bolo alto e cinzento encimado por uma camada verde de açúcar glacê, tudo sobre um prato de porcelana azul.
Haviam parado a cerca de trinta metros do pequeno amontoado de cabanas de pescadores, atrás da praia orlada de coqueiros, e estavam no mesmo nível que o topo plano e verde da ilha, a quatrocentos metros de distância. Quarrel mostrou os telhados de palha das cabanas de taipa no meio das árvores, no centro da ilha. Bond examinou-as através dos binóculos de Quarrel. Não havia nenhum sinal de vida, exceto por um magro fiapo de fumaça levado pela brisa.
Abaixo deles, a água da baía era verde-clara perto da areia branca. Em seguida, se aprofundava e ficava azul-escura antes do marrom intercalado da borda submersa de um recife interno, que formava um largo semicírculo a cem metros da ilha. Depois tornava-se novamente azul, com manchas de azul mais claro e verde-mar. Quarrel informou que a profundidade do ancoradouro do Secatur era de aproximadamente dez metros.
À esquerda, no meio do braço ocidental da baía, escondida entre as árvores e atrás de uma minúscula praia de areia branca, ficava sua base de operações, Beau Desert. Quarrel descreveu a disposição da casa e Bond permaneceu dez minutos examinando os trezentos metros de distância entre ela e o ancoradouro do Secatur, junto à ilha.
Ao todo, Bond passou uma hora fazendo o reconhecimento do local e depois, sem se aproximar da casa ou do povoado, viraram o carro e voltaram para a estrada principal ao longo da costa.
Seguiram de carro através do belo e pequeno porto de embarque de bananas de Oracabessa e de Ocho Ríos, com sua nova e enorme usina de extração de bauxita, seguindo a costa norte até a baía de Montego, a duas horas de distância. Era fevereiro, no auge da estação. A pequena aldeia e os grandes hotéis esparsos estavam mergulhados na corrida de ouro de quatro meses que os sustentava pelo resto do ano. Pararam em uma pousada do outro lado da ampla baía, onde almoçaram, para, em seguida, prosseguirem no calor da tarde até a ponta ocidental da ilha, depois de mais duas horas de viagem.
Ali, graças à presença dos enormes mangues costeiros, nada acontecera desde que Colombo usara a baía de Manatee como um ancoradouro ocasional. Os pescadores jamaicanos haviam tomado o local dos índios Arawak, mas, exceto isso, tinha-se a impressão de que o tempo havia parado.
Bond achou-a a praia mais bonita que já havia visto, oito quilômetros de areia branca descendo suavemente até as ondas e, atrás, a marcha desordenada, porém graciosa, das palmeiras rumo ao horizonte. Debaixo delas, as canoas cinza descansavam fora da água, ao lado de monturos rosados de conchas descartadas. Do meio do palmeiral subia a fumaça das palhoças dos pescadores, na sombra entre o mangue e o mar.
Em uma clareira entre as palhoças, construída sobre estacas em um gramado malcuidado de grama das Bahamas, ficava a casa de fim de semana dos trabalhadores da West Indian Citrus Company. Fora construída sobre estacas para evitar os cupins e era cuidadosamente telada contra mosquitos e borrachudos. Bond saiu da estrada irregular e estacionou sob a casa. Enquanto Quarrel escolhia e arrumava dois quartos, Bond enrolou uma toalha na cintura e caminhou entre as palmeiras até o mar, a vinte metros de distância.
Nadou e boiou preguiçosamente durante uma hora na água quente em que flutuava sem dificuldade, pensando na ilha da Surpresa e em seu segredo, fixando na mente aqueles trezentos metros, pensando nos tubarões e barracudas e demais perigos do mar, essa grande biblioteca cheia de livros que ainda não conseguimos ler.
Ao caminhar de volta para o pequeno chalé de madeira, Bond levou suas primeiras picadas de mosquito pólvora. Quarrel deu uma risada ao ver as mordidas empoladas nas suas costas, que em breve coçariam como o diabo.
“Não se pode fazer nada para nos livrar deles, capitão”, observou. “Mas posso parar essa coceira. Melhor tomar uma chuveirada, primeiro, para tirar o sal. Eles só mordem mesmo durante uma hora, ao entardecer, e gostam de sal no jantar.”
Quando Bond saiu do chuveiro, Quarrel apareceu com uma velha garrafa de remédio e passou um líquido marrom, que cheirava a creolina, nas mordidas.
“A gente tem mais mosquitos pólvora e borrachudos nas ilhas Cayman do que em qualquer outro lugar do mundo”, falou, “mas não nos incomodam desde que tenhamos este remédio”.
Os dez minutos de crepúsculo tropical trouxeram sua breve melancolia. Depois as estrelas e a lua em quarto crescente começaram a brilhar, e o mar se reduziu a um sussurro. Houve uma curta calmaria entre os dois grandes ventos da Jamaica e, em seguida, as palmeiras voltaram a murmurar.
Quarrel fez um gesto da cabeça em direção à janela.
“O vento Papa-Defunto”, comentou.
“Como assim?”, perguntou Bond, espantado.
“Vento terral, como dizem os marinheiros”, acrescentou Quarrel. “O Papa-Defunto sopra, expulsando o ar ruim da ilha durante a noite, das seis às seis da manhã. Em seguida, o ‘vento Médico’ chega, soprando o ar fresco do mar para a ilha. Pelo menos é assim que os chamamos na Jamaica.”
Quarrel olhou perplexo para Bond.
“Acho que Papa-Defunto e você têm praticamente a mesma tarefa, capitão”, comentou, meio brincando.
Bond deu uma breve risada. “Ainda bem que não preciso respeitar o mesmo horário”, respondeu.
Lá fora os grilos e as pererecas começaram a ciciar e coaxar, e as grandes mariposas forçavam as telas das janelas, onde se agarravam, olhando, em um êxtase agoniado, para as duas lamparinas a óleo penduradas em duas travessas dentro de casa.
Uma vez ou outra dois pescadores, ou um grupo de garotas aos risinhos, iam andando até a praia a caminho do único e pequeno bar na ponta da baía. Ninguém andava sozinho, com medo dos lobisomens sob as árvores, ou do garrote rolador, animal terrível que vinha de encontro às pessoas rolando pelo chão, com as pernas presas por correntes e botando fogo pelas ventas.
Enquanto Quarrel preparava uma refeição suculenta de peixe, ovos e legumes que haveria de se tornar a dieta regular de ambos, Bond sentou-se sob a luz e debruçou-se sobre os livros que Strangways pegara emprestado do Instituto Jamaicano. Livros sobre o mar tropical e seus habitantes, por Beebe e Allyn, e outros, sobre caça submarina, de Cousteau e Hass. Quando partisse para atravessar aqueles trezentos metros de mar, estava determinado a fazê-lo com todo o conhecimento possível, sem confiar no acaso. Conhecia a capacidade de Mr. Big e apostava que as defesas da ilha da Surpresa seriam tecnicamente brilhantes. Achou que não se resumiriam a explosivos e armas. Mr. Big precisava trabalhar sem ser incomodado pela polícia. Precisava permanecer fora do alcance da lei. Bond supunha que as forças do mar haviam sido, de certo modo, domesticadas para fazer o trabalho de Mr. Big, e era sobre essas que Bond se concentrava: o assassinato por meio de tubarões e barracudas, talvez polvos e jamantas.
Os fatos expostos pelos naturalistas eram medonhos e horripilantes, mas as experiências de Cousteau no Mediterrâneo e de Hass, no mar Vermelho, eram mais animadoras.
Naquela noite Bond teve muitos sonhos de encontros aterrorizantes com polvos gigantescos e raias-lixas, tubarões cabeça de martelo e barracudas de dentes serrilhados, de modo que gemeu e suou durante o sono.
No dia seguinte começou a se exercitar, sob o olhar crítico de Quarrel. Toda manhã nadava mil e seiscentos metros na praia antes do café da manhã e corria pela areia firme até o chalé. Lá pelas nove partiam em uma canoa, cuja única vela triangular os transportava rápido até a baía Sangrenta e Orange Bay, onde a areia termina em penhascos e pequenas cavernas, e o recife se aproxima da costa.
Ali deixavam a canoa na praia e Quarrel o levava, com fisgas, máscaras e um velho arpão submarino, em expedições de tirar o fôlego, no tipo de mar que ele encontraria na baía dos Tubarões.
Pescavam em silêncio, separados por poucos metros, com Quarrel se movendo com facilidade em um elemento no qual quase se sentia em casa.
Não demorou para que Bond aprendesse a não lutar contra o mar, e sim ceder e aproveitar as correntes e os rodamoinhos, usando táticas de judô dentro d’água.
No primeiro dia chegou em casa cortado e envenenado pelo coral e com uma dúzia de espinhos de ouriço espetados em seu flanco. Quarrel sorriu e tratou as feridas com mertiolato e Milton. Depois, como fazia toda noite, massageou Bond por meia hora com óleo de coco, enquanto ia falando em voz baixa sobre os peixes que haviam encontrado naquele dia, explicando os hábitos dos carnívoros e não carnívoros, a camuflagem dos peixes e seu modo de mudar de cor através da corrente sanguínea.
Ele também jamais ouvira falar de peixe algum que atacasse o homem, a não ser em desespero ou porque havia sangue na água. Explicou que os peixes raramente passam fome nas águas tropicais e que a maioria de suas armas é defensiva, e não ofensiva. A única exceção, admitia, era a barracuda. “Peixes maus”, conforme dizia, que não conheciam o medo, já que não possuíam outro inimigo que não a doença, capazes de atingir oitenta quilômetros por hora em distâncias curtas, e donos dos dentes mais perigosos do que os de qualquer outro peixe de mar.
Um dia alvejaram uma de dez quilos que nadava em volta deles, sumindo na distância cinzenta e depois reaparecendo, silenciosa, imóvel, quase em cima da água, com seus olhos zangados de tigre fitando-os de muito perto, de modo que podiam ver o lento funcionamento de suas guelras e os dentes brilhando, como as presas de um lobo, ao longo da queixada cruel e prognata.
Quarrel finalmente pegou o arpão de Bond e alvejou-a gravemente, atravessando sua barriga aerodinâmica. Ela veio diretamente em cima deles, com as mandíbulas escancaradas, como uma cascavel pronta para o bote. Bond deu uma fisgada desajeitada quando ela investia contra Quarrel. Errou, mas o arpão entrou pelas suas mandíbulas. Elas se fecharam imediatamente sobre o espeto de aço, e quando o peixe arrancou a fisga da mão de Bond, Quarrel apunhalou-a com a faca e ela enlouqueceu, correndo dentro d’água com as entranhas à mostra, a fisga presa entre os dentes e o arpão pendente do corpo. Quarrel mal podia segurar a linha enquanto o peixe procurava retirar a ponta que lhe atravessava a barriga. Mas seguiu-o nadando em direção a um recife submerso, no qual subiu, puxando lentamente o peixe.
Depois que Quarrel cortou as guelras e retirou a fisga de suas mandíbulas, encontraram as marcas profundas dos dentes no aço.
Levaram o peixe para a praia, Quarrel cortou sua cabeça e abriu a bocarra com um pedaço de pau. A mandíbula superior se erguia quase em ângulo reto em relação à inferior, revelando fantásticas fileiras de dentes, tão abundantes que se sobrepunham como telhas no telhado. Até mesmo a língua tinha várias fileiras de pequenos dentes afiados e curvos e, na frente, duas presas enormes, que se projetavam para a frente como as de uma serpente.
Embora só pesasse pouco mais que cinco quilos, passava de um metro e trinta centímetros, uma bala niquelada só de músculo e tecido firme.
“Não vamos matar mais barracudas”, comentou Quarrel. “Mas se não fosse por você eu teria que passar um mês no hospital e talvez perder meu rosto. Foi uma tolice minha. Se a gente tivesse nadado em sua direção, ela teria fugido. Sempre fazem isso. São covardes como todos os peixes. Não se preocupe com esses aqui”, apontou para os dentes, “jamais tornará a vê-los”.
“Espero que não”, desabafou Bond. “Não tenho rosto sobressalente.”
No fim de uma semana Bond estava bronzeado e rijo. Cortara os cigarros para dez por dia e não tomara sequer um drinque. Conseguia nadar três quilômetros sem cansar, a mão estava completamente sarada e ele havia eliminado todas as sequelas da vida urbana.
Quarrel se alegrou. “Você está pronto para a ilha da Surpresa, capitão”, disse, “e eu não gostaria de ser o peixe que tentasse devorá-lo”.
Ao entardecer do oitavo dia, voltaram para a casa de descanso e encontraram Strangways à espera deles.
“Tenho boas notícias para lhe dar”, disse. “Seu amigo Felix Leiter vai ficar bom. Apesar de tudo, não morrerá. Precisaram amputar o resto de um braço e de uma perna. Os cirurgiões plásticos começaram agora a reconstruir o rosto. Ligaram para mim ontem de St. Petersburg. Parece que ele insistiu em lhe mandar um recado. Foi a primeira coisa que lhe veio à cabeça quando voltou a si. Disse que sente muito não poder estar aqui e para você não molhar os pés — ou pelo menos não molhá-los tanto como ele.”
O coração de Bond ficou apertado. Olhou pela janela. “Diga a ele para se restabelecer logo”, disse abruptamente. “E também que sinto a sua falta.” Voltou os olhos para a sala. “E quanto ao equipamento? Tudo bem?”
“Está tudo aqui”, respondeu Strangways, “e o Secatur zarpa amanhã para a ilha da Surpresa. Depois de passar pela alfândega em Port Maria, devem lançar âncora antes do anoitecer. Mr. Big está a bordo — é só a segunda vez que veio aqui. Ah, e trouxe uma mulher. Uma garota chamada Solitaire, de acordo com a CIA. Sabe alguma coisa sobre ela?”
“Não muito”, respondeu Bond. “Mas gostaria de tirá-la dele. Ela não pertence ao seu time.”
“Uma espécie de donzela em apuros”, disse o romântico Strangways. “Pois é. De acordo com a CIA, ela é uma graça.”
Mas Bond fora para a varanda e olhava as estrelas. Jamais tivera de brigar por um cacife tão alto na vida. O segredo do tesouro, a derrota de um grande criminoso, o esmagamento de um círculo de espionagem comunista e a destruição de um tentáculo da SMERSH, a cruel engrenagem que constituía seu próprio alvo particular. E agora Solitaire, a maior das recompensas pessoais.
As estrelas piscavam no seu Morse cifrado e ele não possuía chave alguma para decifrar o seu código.
18.
BEAU DESERT
Strangways voltou sozinho depois do jantar e Bond decidiu que eles partiriam ao amanhecer. O inglês deixou uma nova pilha de livros e panfletos sobre tubarões e barracudas, que Bond estudou com grande atenção.
Pouco acrescentou ao conhecimento prático que aprendera com Quarrel. Os autores eram todos cientistas e grande parte dos dados era sobre ataques ocorridos nas praias do Pacífico, onde qualquer corpo que brilhasse na arrebentação pesada excitaria a curiosidade dos peixes.
Mas parecia haver uma concordância geral que o perigo para os mergulhadores submarinos com aqualungs era muito menor do que para os nadadores de superfície. Estes podiam ser atacados por qualquer representante da família dos tubarões, especialmente quando o tubarão era estimulado e excitado pela presença de sangue no mar, pelo cheiro da vítima ou pela vibração sensorial causada por alguém ferido na água. Mas às vezes podiam ser espantados, segundo a literatura, por barulhos altos dentro d’água — até mesmo por gritos sob a superfície, e muitas vezes fugiam quando perseguidos pelo nadador.
A fórmula mais bem-sucedida de repelente de tubarões era, segundo os testes dos laboratórios de pesquisa naval da marinha americana, uma combinação de acetato de cobre e um corante preto chamado nigrosina, que vinha sendo adicionada, sob a forma de pelotas, aos coletes salva-vidas de todas as forças armadas dos Estados Unidos.
Bond chamou Quarrel. O ilhéu de Cayman não acreditara, até que Bond lesse para ele o que o Departamento Naval tinha a dizer sobre suas pesquisas, no final da guerra, sobre os bandos de tubarões estimulados por uma situação descrita como “condições exacerbadas de comportamento grupal”: “... os tubarões eram atraídos para a popa do barco de pesca de camarões, com refugo de peixes”, leu Bond. “Os tubarões apareceram sob a forma de um cardume exasperado, espadanante. Preparamos uma tina com peixes frescos, e outra com peixes misturados ao pó repelente. Aproximamo-nos do cardume e o fotógrafo começou a rodar a câmera. Despejei os peixes frescos por trinta segundos, repetindo três vezes esse procedimento. Da primeira vez os tubarões demonstraram grande ferocidade ao se alimentar dos peixes frescos bem na popa do barco. Mas ficaram devorando-os só durante cinco segundos depois que o pó repelente foi jogado ao mar. Uns poucos voltaram depois que jogamos peixe fresco imediatamente após o repelente. Em uma segunda tentativa, trinta minutos depois, um cardume feroz se alimentou durante os trinta segundos em que lhe fornecemos peixe fresco, mas se afastou assim que o repelente foi jogado na água. Na terceira tentativa, só conseguimos atrair os tubarões até uma distância de vinte metros da popa do barco.”
“O que acha disso?”, perguntou Bond.
“É melhor arranjar um pouco desse negócio”, respondeu Quarrel a contragosto, mas impressionado.
Bond estava disposto a concordar. Washington havia mandado mensagem de que as pelotas do material estavam a caminho. Mas ainda não tinham chegado e não eram esperadas antes de quarenta e oito horas. Se o repelente não chegasse, não seria problema para Bond. Não imaginava encontrar condições tão perigosas no seu percurso submarino até a ilha.
Antes de ir para a cama, chegara à conclusão de que nada o atacaria se não houvesse sangue na água, ou se ele não parecesse amedrontado diante da ameaça de algum peixe. Quanto aos polvos, peixes-escorpião e moreias, simplesmente precisava tomar cuidado onde punha os pés. Para ele, os espinhos de sete centímetros do ouriço eram o maior perigo para as atividades submarinas nos trópicos, mas a dor que causavam não bastaria para interferir em seus planos.
Partiram antes das seis da manhã e chegaram a Beau Desert às dez e meia.
A propriedade era uma bela plantação antiga de cerca de quatrocentos hectares, com as ruínas da bela casa grande dominando a baía. Era dedicada ao cultivo de pimentões e cítricos, e cercada de madeiras de lei e palmeiras, e sua história remontava à época de Cromwell. O nome romântico estava em moda no século dezoito, quando as propriedades jamaicanas se chamavam Bellair, Bellevue, Boscobel, Harmony, Nymphenburg, ou eram batizadas de Panorama, Satisfação, Repouso.
Uma trilha entre as árvores, que não era visível da ilha na baía, levava à pequena casa de praia. Depois dos piqueniques semanais na baía de Manatee, os banheiros e a mobília confortável de bambu pareciam um luxo, e os tapetes de cores vivas pareciam de veludo sob os pés calejados de Bond.
Pelas rótulas das janelas Bond contemplou o pequeno jardim flamejante de hibiscos, buganvílias e roseiras, que acabava no minúsculo crescente de areia branca, meio tapado pelos troncos das palmeiras. Sentou-se no braço de uma poltrona e deixou que seu olhar passeasse, palmo a palmo, pelos diferentes azuis e marrons do mar e dos recifes, até morrer na base da ilha. A metade superior estava obscurecida pelos leques das plumas das palmeiras em primeiro plano, mas o pedaço de penhasco vertical dentro de seu campo de visão parecia cinzento e formidável na meia sombra projetada pelo sol forte.
Quarrel preparou o almoço em um fogareiro a álcool, de modo que nenhuma fumaça os denunciasse, e de tarde Bond fez uma sesta e depois examinou o equipamento enviado de Londres e trazido de Kingston por Strangways. Experimentou a roupa de mergulho de borracha fina que o cobria, desde a máscara apertada na cabeça com o óculo de vidro temperado, até as longas nadadeiras em seus pés. Tudo cabia como uma luva, e Bond louvou a eficiência do setor “Q” de M.
Testaram os cilindros duplos de mil litros de ar natural comprimido a duzentas atmosferas, e Bond achou fácil o funcionamento das válvulas de distribuição de ar e de reserva, à prova de acidentes. Na profundidade em que agiria, aquele volume dava para durar quase duas horas.
Havia uma nova espingarda submarina potente, marca Champion, e uma faca projetada pela Wilkinson para os comandos durante a guerra. Finalmente, em uma caixa coberta de avisos de perigo, estava a pesada mina naval, um cone de fundo achatado, repleto de explosivos, montado sobre uma base cheia de largas saliências de cobre, tão imantadas que a mina grudava como um marisco em qualquer casco metálico. Havia uma dúzia de detonadores de metal e de vidro, parecidos com lápis, com temporizadores que iam de dez minutos até oito horas, e um meticuloso livrinho de instruções, tão simples quanto o próprio equipamento. Havia até uma caixa de cápsulas de benzedrina para dar resistência e aguçar a percepção de Bond durante a tarefa, e várias lanternas submarinas, inclusive uma que projetava apenas um feixe da largura de um lápis.
Bond e Quarrel testaram tudo, acoplamentos, contatos, até se darem por satisfeitos e concluírem que não restava mais nada a ser feito. Em seguida, Bond desceu até o meio das árvores e observou as águas da baía, calculando as profundidades, traçando rotas para percorrer a passagem pelo recife e prevendo a trajetória da lua, que seria sua única referência no decorrer da tortuosa travessia.
Às cinco horas chegou Strangways com notícias do Secatur.
“Passaram por Port Maria”, informou. “Chegarão aqui dentro de dez minutos, no máximo. Mr. Big tem um passaporte com o nome de Gallia e a garota com o nome de Latrelle. Ela está na sua cabine, mareada, segundo o capitão negro do Secatur. É possível. Há uma porção de tanques de peixe a bordo. Mais de cem. Exceto isso, nada que levantasse suspeita, e foram liberados. Eu queria ir a bordo como parte da turma da alfândega, mas achei melhor deixar que o espetáculo se desenrolasse de modo absolutamente normal. Mr. Big permaneceu na sua cabine. Estava lendo quando foram verificar seus documentos. Como está o equipamento?”
“Perfeito”, respondeu Bond. “Acho que agiremos amanhã à noite. Espero que haja um pouco de vento. Se descobrirem as bolhas de ar, estaremos em apuros.”
Quarrel entrou, avisando: “O iate está passando pelo recife agora, capitão.”
Foram até a máxima distância que podiam arriscar ir, na praia, e assestaram os seus binóculos na direção do barco.
Era uma bela embarcação, negra, com uma superestrutura cinza, setenta pés de comprimento e construída em função da velocidade — de pelo menos vinte nós, imaginou Bond. Conhecia sua história. Havia sido construída para um milionário em 1947, era movida por dois motores a diesel da General Motors, tinha casco de aço e todas as geringonças de comunicação de último tipo, inclusive telefone do barco para a terra e um navegador Decca. Trazia hasteados um pavilhão vermelho nos vaus dos joanetes e a bandeira americana à popa, e progredia a três nós através da abertura de sete metros no recife.
Virou abruptamente, depois de romper a passagem, e rumou para a parte da ilha a bombordo. Ao mesmo tempo, três negros em calças brancas de brim desceram correndo a escada íngreme até o molhe estreito e se posicionaram para amarrar as guias. Foram necessárias poucas manobras para prendê-las, diante dos observadores em terra firme, e as duas âncoras foram arriadas ruidosamente, entre as pedras e o coral na areia do fundo, junto à base da ilha. O barco estava bem protegido, até mesmo do vento norte. Bond calculou uma profundidade de sete metros sob a sua quilha.
Enquanto observavam, a enorme figura de Mr. Big surgiu no convés. Desembarcou no molhe e começou a subir lentamente a escadaria a prumo. Parou várias vezes, e Bond pensou na dificuldade que seu coração avariado teria para bombear o sangue naquele corpanzil preto acinzentado.
Seguiam-no dois tripulantes negros carregando uma maca leve, levando um corpo humano amarrado. Pelos binóculos, Bond reconheceu os cabelos negros de Solitaire. Ficou perplexo e preocupado, sentiu um aperto no coração diante daquela proximidade. Rezou para que a maca fosse apenas uma precaução para evitar que Solitaire fosse reconhecida da costa.
Em seguida, formou-se uma fila de doze homens na escadaria e os tanques de peixe foram sendo passados de um para outro. Quarrel contou cento e vinte.
Depois, alguns gêneros foram levados para cima da mesma maneira.
“Não está trazendo muita coisa desta vez”, comentou Strangways, depois da operação terminada. “Somente uma dúzia de caixotes. Geralmente são cinquenta. Não deve ficar muito tempo.”
Mal acabara de falar quando um tanque de peixe, que seus binóculos mostravam estar meio cheio de água e areia, desceu cuidadosamente de volta ao barco, por meio daquela escada feita de mãos. Em seguida outro, e mais outro, a intervalos de cinco minutos.
“Meu Deus”, exclamou Strangways. “Já estão carregando o barco. O que significa que deverão zarpar pela manhã. Será que resolveram liquidar as operações na ilha e este será seu último carregamento?”
Bond observou com cuidado e depois subiram em silêncio através do arvoredo, deixando Quarrel atrás para se manter a par dos acontecimentos.
Sentaram-se na sala, e enquanto Strangways preparava um uísque com soda para ele mesmo, Bond olhava pela janela e organizava seus pensamentos.
Eram seis horas e os vagalumes começaram a aparecer na penumbra. A lua, de um amarelo pálido, já ia alta no lado do oriente, e o dia morria rápido às suas costas. Uma brisa ligeira encrespava a baía e pequenas ondas quebravam na praia branca no final do gramado. Pequeninas nuvens rosa e alaranjadas, ao poente, vagavam nas alturas, e as folhas das palmeiras se esbarravam de mansinho no vento fresco do Papa-Defunto.
“Vento Papa-Defunto”, pensou Bond, sorrindo de esguelha. Tal como teria de ser esta noite. Era a única chance, e as condições quase perfeitas. Só o repelente de tubarões é que não chegaria a tempo. Mas isso era apenas um requinte. Não poderia ser um pretexto. Era para isto que ele viajara três mil quilômetros e matara cinco. No entanto, sentiu um calafrio ao prever a aventura submarina angustiante, que ele já havia transferido em sua mente para o dia seguinte. De repente sentiu ódio e medo do mar e de tudo que lhe dizia respeito. Dos milhões de pequenas antenas que se mexeriam e o seguiriam quando ele passasse de noite, dos olhos que acordariam para espiá-lo, das batidas de coração que falhariam por um centésimo de segundo para continuar batendo silenciosamente, das gavinhas gelatinosas que se estenderiam em sua direção, tão cegas na luz quanto no escuro.
Iria passar no meio de milhares de segredos. No espaço de trezentos metros, sozinho e com frio, transporia às cegas uma floresta misteriosa em direção a uma cidadela mortífera, cujos guardas já haviam matado três homens. Ele, Bond, depois de uma semana ensolarada de canoagem com sua babá ao lado, ia esta noite, dentro de poucas horas, caminhar sozinho sob aquele lençol escuro de água. Era uma maluquice, algo impensável. Seu corpo se encolheu e ele cravou os dedos nas palmas da mão molhadas.
Houve uma batida na porta e Quarrel entrou. Bond se alegrou de poder levantar da cadeira, se afastar da janela e se aproximar do lugar onde Strangways apreciava seu drinque, debaixo de um abajur.
“Estão trabalhando à luz de lampiões agora, capitão. Um tanque ainda a cada cinco minutos. Calculo que terão dez horas de trabalho. Acabarão mais ou menos às cinco da manhã. Não zarparão antes das seis. É perigoso demais tentar passar pelo canal sem luz suficiente.”
Os olhos cinzentos e amistosos de Quarrel, naquele esplêndido rosto cor de mogno, fitavam Bond, aguardando ordens.
“Começarei às dez em ponto”, Bond se surpreendeu com as próprias palavras. “Das pedras à esquerda da praia. Pode nos fazer um jantar e depois levar o equipamento até o gramado? As condições estão perfeitas. Chegarei lá dentro de meia hora.” Contou nos dedos. “Dê-me os detonadores de cinco e de oito horas. E o de quinze minutos, como reserva, caso algo saia errado. Está certo?”
“Sim senhor, capitão”, respondeu Quarrel. “Pode deixar comigo.”
E saiu.
Bond olhou para a garrafa de uísque e, em seguida, se decidiu, servindo-se de meio copo em cima de três cubos de gelo. Tirou a caixa de benzedrina do bolso e botou um tablete entre os dentes.
“À sorte”, disse a Strangways, tomando um grande gole. Sentou-se apreciando o gosto áspero de seu primeiro drinque em mais de uma semana. “Agora”, perguntou, “diga exatamente o que eles fazem quando estão prontos para zarpar. Levam quanto tempo para se afastar da ilha e passar pelo recife? Se esta for a última vez, não se esqueça de que estarão levando seis homens adicionais e algumas provisões. Vamos tentar prever isso o mais exatamente possível.”
Um momento depois Bond já mergulhara em um mar de detalhes práticos, e a sombra do medo recuara até as zonas de escuridão debaixo das palmeiras.
Exatamente às dez horas, sem sentir nada além da excitação e da expectativa, a figura preta e luzidia como um morcego pulou das pedras dentro de três metros de água, sumindo debaixo do mar.
“Vá com segurança”, disse Quarrel, dirigindo-se ao ponto em que Bond desaparecera. Persignou-se. Em seguida, ele e Strangways voltaram para casa, por entre as sombras, para dormir em turnos, sobressaltados, aguardando, temerosos, o desenrolar dos acontecimentos.
19.
O VALE DAS SOMBRAS
Bond foi levado direto ao fundo pelo peso da mina naval que prendera a seu peito através de fitas, e pelo cinto de chumbo, usado para corrigir a flutuabilidade dos cilindros.
Sem hesitar um instante, cobriu imediatamente os primeiros cinquenta metros de areia do fundo em um rápido crawl, com o rosto pouco acima do leito. As longas nadadeiras quase teriam dobrado sua velocidade normal, não fosse o estorvo do peso que carregava e da leve espingarda de arpão na mão esquerda. Mas avançava depressa e em menos de um minuto parou para descansar na sombra de um grande maciço de coral.
Parou e estudou suas sensações.
Estava aquecido na roupa de mergulho, sentindo mais calor do que se estivesse nadando ao sol. Achou que seus movimentos lhe vinham com facilidade e a respiração era perfeitamente simples, desde que fosse regular e descontraída. Contemplou as bolhas denunciadoras subindo rente ao coral em um repuxo de pérolas prateadas e rezou para que as pequenas ondas as encobrissem.
No espaço desimpedido, sua visibilidade era perfeita. A luz era leitosa e macia, mas não suficientemente forte para dissolver as sombras encarneiradas das ondas na superfície, que enxadrezavam a areia do fundo. Agora, junto ao recife, não havia reflexos no leito do mar, e as sombras sob as pedras eram negras e impenetráveis.
Arriscou uma olhada rápida com a lanterna fina, e imediatamente a paisagem oculta da massa marrom dos arbustos de coral ganhou vida. Anêmonas de miolo carmesim acenavam para ele com seus tentáculos de veludo, uma colônia de ouriços eriçou seus espinhos de aço de Toledo, subitamente assustada, e uma centopeia do mar peluda estacou sua centena de passos, inquirindo-o com sua cabeça cega. Na areia da base da árvore de coral, um peixe-sapo recolheu delicadamente sua horrível cabeça verrugosa de volta à loca, e uma porção de vermes do mar, parecidos com flores, desapareceu em seus tubos gelatinosos. Um cardume de peixes-borboleta e peixes-anjo, coloridos como joias, flertava na luz. Bond distinguiu a forma chata e espiralada de uma estrela-do-mar de grandes pontas.
Bond enfiou a lanterna de volta no cinto.
Acima dele a superfície do mar era uma colcha de mercúrio. Ouvia-se um crepitar baixinho, como gordura fritando na frigideira. Adiante, o luar mergulhava no vale irregular e profundo, cujas encostas afundavam, se afastando da rota que ele devia seguir. Abandonou sua aconchegante árvore de coral e avançou lentamente. Agora não mais com a mesma facilidade. A luz era fraca e enganosa, e a floresta petrificada do recife de coral cheia de becos sem saída e caminhos tentadores, porém ilusórios.
Às vezes era obrigado a subir quase à superfície para transpor o emaranhado de algum arbusto de coral, e quando isso acontecia, aproveitava para verificar sua posição pela lua que brilhava como uma pálida descarga de foguete, no final do caminho que abrira na água. Às vezes a cintura de ampulheta de um rochedo de coral lhe fornecia abrigo, e ele podia descansar por alguns instantes, sabendo que as pequenas borbulhas do respirador ficariam escondidas pela saliência acima da superfície. Então concentrava seu olhar nos rabiscos fosforescentes da minúscula vida noturna submarina e distinguia colônias e populações inteiras às voltas com suas atividades microscópicas.
Não havia peixes grandes nas imediações, mas muitas lagostas fora de suas locas, parecendo bichos enormes e pré-históricos, graças ao efeito de ampliação da água. Seus olhos saltados e vermelhos o fitavam, e suas longas antenas de trinta centímetros pediam-lhe uma senha. Em alguns momentos recuavam nervosamente para seus abrigos, levantando areia com suas caudas potentes, agachadas nas pontas de seus oito pés peludos, à espera de o perigo passar. Certa vez os grandes filamentos de uma caravela passaram flutuando lentamente. Quase tocaram sua cabeça a partir da superfície, cinco metros acima, e ele lembrou a queimadura causada pelo contato com uma delas, que ardera por três dias durante a temporada em Manatee Bay. Se atingisse alguém na altura do coração, poderia ser mortal. Ele viu inúmeras moreias verdes e pintadas, estas últimas se movendo como grandes serpentes pretas e amarelas ao longo da areia do fundo, as verdes mostrando os dentes de dentro de algum buraco na pedra, e vários baiacus, como corujas castanhas, com seus enormes e plácidos olhos verdes. Espetou um deles com a extremidade de sua arma e ele inchou até ficar do tamanho de uma bola de futebol, tornando-se uma massa de perigosos espinhos brancos. Largas gorgônias balançavam, fazendo gestos convidativos nos rodamoinhos, refletindo o luar nos vales cinzentos, acenando fantasmagóricas, como restos das mortalhas de homens sepultados no mar. Muitas vezes Bond distinguia nas sombras movimentos pesados e misteriosos, águas revoltas e o súbito brilho de olhos grandes, que imediatamente se extinguiam. Então, virava-se, destravando o arpão, olhando fixamente o escuro. Mas não atirou em nada e nada o atacou enquanto subia e deslizava pelo recife.
Levou quinze minutos para percorrer cem metros do coral. Depois disso descansou em um pedaço redondo de coral esponjoso, abrigado por um último pedaço de recife. Alegrou-se por só ter de enfrentar uns cem metros de água cinza-claro. Ainda se sentia descansado, conservando a elação e a clareza de espírito provocadas pela benzedrina, mas o labirinto de perigos que enfrentara para atravessar o recife o tinha cansado e causado uma preocupação constante, além do temor de rasgar a roupa de borracha. Agora a floresta de corais afiados como navalhas já havia sido ultrapassada, para ceder lugar aos tubarões e às barracudas, ou talvez à súbita banana de dinamite jogada no meio da sua pequena flor de borbulhas na superfície.
Foi enquanto calculava os perigos ainda por enfrentar que o polvo agarrou-o. Em volta dos dois tornozelos.
Estava sentado com os pés na areia, quando de repente foram presos na base do cogumelo redondo de coral sobre o qual descansava. Quando compreendeu o que tinha acontecido, um tentáculo começou a serpentear pela sua perna acima, e outro, roxo na luz fraca, desceu pela nadadeira esquerda.
Teve um sobressalto de terror e repugnância, levantando-se de imediato, esfregando os pés, esforçando-se por se libertar. Mas não houve afrouxamento de um centímetro sequer, e os movimentos de Bond deram ao polvo a oportunidade de apertar e puxar os calcanhares mais ainda sob a saliência da pedra redonda. A força do bicho era prodigiosa, e Bond sentiu que perdia rapidamente o equilíbrio. Percebeu que num instante seria jogado no chão e aí, atrapalhado pela mina em seu peito e o cilindro nas costas, talvez fosse quase impossível atacar o polvo.
Bond tirou a faca do cinto e espetou entre suas pernas. Mas a saliência da rocha o atrapalhou, e ele ficou apavorado de cortar sua roupa de mergulho. De repente foi derrubado, caindo deitado na areia. De imediato seus pés começaram a ser puxados para dentro de uma larga fenda lateral debaixo da pedra. Esgaravatou a areia e tentou se dobrar para poder ter acesso à faca. Porém, a grande protuberância da mina em seu peito impediu-o de fazê-lo. À beira do pânico, lembrou-se do arpão. Antes não lhe dera importância, achando que era uma arma inútil naquela pequena distância, mas agora era a sua única chance. Permanecia na areia onde o deixara. Pegou-o e destravou-o. A mina impediu-o de fazer mira. Escorregou o cano ao longo das pernas e cutucou cada pé com a ponta do arpão para descobrir a distância entre eles. Um tentáculo agarrou imediatamente a ponta de aço e começou a puxar. A arma escorregou entre seus pés aprisionados e ele apertou o gatilho às cegas.
Uma grande nuvem de tinta viscosa e pegajosa saiu em rolos da fenda, em direção a seu rosto. Mas uma perna estava livre, em seguida a outra, e ele se aprumou e pegou o cabo do arpão de um metro, no local em que já ia desaparecendo sob a rocha. Puxou e forcejou até que, com um esgarçar de tecidos, conseguiu tirar a arma de dentro da névoa negra que envolvia o buraco. Ofegante, levantou-se e se afastou da rocha, com suor escorrendo pelo rosto, sob a máscara. Acima dele, a fieira prateada de bolhas subiu direto à superfície, e ele praguejou contra aquele animal barrigudo, ferido em seu abrigo.
Mas não podia perder tempo se preocupando com ele. Recarregou a arma e partiu com a lua sobre o seu ombro direito.
Agora avançava bem através da água cinzenta e enevoada, concentrando-se em manter o rosto apenas alguns centímetros acima da areia, com a cabeça bastante baixa para reduzir o atrito de seu corpo com a água. A certa altura, viu, de relance, uma raia-lixa do tamanho de uma mesa de pingue-pongue se desviar habilmente de seu caminho, batendo as asas pontudas e manchadas, como um pássaro, e arrastando atrás de si sua cauda farpada. Não lhe deu atenção, lembrando-se do que Quarrel dissera: que as raias jamais atacam a não ser em autodefesa. Calculou que ela provavelmente viera dos recifes externos para botar seus ovos — ou “bolsas de sereias”, como chamavam os pescadores, porque têm a forma de um travesseiro com dois fios pretos e rígidos em cada canto — no fundo abrigado de areia.
Muitos vultos de peixes grandes nadavam preguiçosamente sobre a areia enluarada, alguns do seu tamanho. Quando um deles seguiu Bond por pelo menos um minuto, ele levantou os olhos, distinguindo a barriga branca de um tubarão cinco metros acima dele, como um zepelim afunilado verde e azul. Seu nariz arredondado estava mergulhado com curiosidade na coluna de bolhas de ar. O grande rasgo em forma de foice de sua boca parecia uma cicatriz repuxada. Virou de lado e olhou para ele embaixo com um olhar duro e rosado e, em seguida, abanou sua cauda, também em forma de foice, e se afastou devagar dentro do muro de névoa cinzenta.
Bond amedrontou uma família de polvos, pesando de três quilos aos cento e cinquenta gramas de um filhote, frágil e luminoso à meia-luz, suspensa quase na vertical em um cordão declinante. Eles se endireitaram e fugiram rápido, a propulsão a jato.
Bond descansou por um instante na metade do caminho e então prosseguiu. Agora havia barracudas por ali, grandes, de até nove quilos. Pareciam tão mortíferas quanto as recordações que tinha delas. Planavam acima dele como submarinos prateados, olhando para baixo com seus olhos de tigre zangado. Sentiam curiosidade a seu respeito e a respeito das bolhas, e seguiram-no por cima e em torno dele, como uma alcateia de lobos silenciosos. Quando Bond encontrou o primeiro pedaço de coral, indício de que se aproximava da ilha, havia cerca de vinte delas se movendo em silêncio, vigilantes, saindo e entrando da parede opaca que o envolvia.
A pele de Bond se encolheu debaixo da roupa de borracha, mas ele não podia fazer nada a respeito delas e concentrou-se em sua meta.
De repente havia uma longa forma metálica suspensa acima dele na água. Atrás dela um monte de pedras quebradas que subiam de maneira íngreme.
Era a quilha do Secatur, e o coração de Bond deu um pulo no peito.
Consultou seu Rolex. Eram onze e três. Escolheu o detonador de sete horas do punhado que tirou de um bolso lateral com zíper, inserindo-o na cavidade apropriada da mina, apertando-o. Enterrou na areia o restante dos detonadores, de modo que, se fosse capturado, ninguém desconfiaria da existência da mina.
Ao nadar em direção à superfície, carregando a mina entre as mãos, com a base para cima, percebeu um rebuliço na água atrás dele. Uma barracuda passou depressa, com as mandíbulas meio abertas, quase colidindo com ele e com os olhos fixos em algo às suas costas. Mas Bond estava concentrado apenas no meio da quilha do barco, em um ponto pouco mais de um metro acima da superfície.
A mina quase o arrastou pelos últimos metros, pois seus enormes ímãs buscavam o beijo metálico com o casco. Bond precisou lutar contra eles para evitar o barulho do choque. Em seguida, tendo colocado a mina no lugar adequado e agora livre do seu peso, Bond precisou nadar com força para se contrapor à sua nova flutuabilidade e afundar de novo, afastando-se da superfície.
Foi quando se virou para nadar em direção às duas hélices, a caminho do abrigo das pedras, que conseguiu ver as coisas terríveis que ocorriam às suas costas.
O bando enorme de barracudas parecia ter enlouquecido. Giravam e mordiam como cães histéricos. Três tubarões que haviam se juntado a eles arremetiam pela água com um frenesi pouco menor. A água fervilhava com esses peixes terríveis, e Bond levou um encontrão no rosto, recebendo outros tantos por várias vezes em uma distância de poucos metros. Percebeu que a qualquer momento sua pele de borracha se rasgaria, junto com a carne debaixo dela, e então o bando viria atrás dele.
“Condições exacerbadas de comportamento grupal.” A frase do Departamento Naval pipocou na sua mente. Era exatamente nesta situação que o repelente de tubarões poderia salvá-lo. Na sua ausência, teria talvez alguns minutos a mais de vida.
Em desespero, nadou espalhafatosamente, ao longo da quilha do barco, com o arpão destravado, que agora não passava de um brinquedo diante daquele bando de peixes canibais ensandecidos.
Alcançou as duas grandes hélices de cobre, agarrando-se a uma delas, ofegante, com os lábios formando um esgar de medo e os olhos arregalados, ao se dar conta do frenesi no mar fervilhante a seu redor.
Viu de repente que as bocas dos peixes que arremetiam furiosos estavam meio abertas e que eles mergulhavam e saíam de uma nuvem marrom, que se espalhava desde a superfície. Perto dele, uma barracuda se deteve por um instante, com algo marrom e reluzente nas suas mandíbulas. Engoliu de uma bocada, depois virou e voltou para a confusão.
Ao mesmo tempo, Bond notou que escurecia. Olhou para cima e percebeu, com uma nova compreensão, que a superfície de mercúrio do mar tornara-se vermelha, um horrível carmesim brilhante.
Fiapos dessa substância chegaram flutuando até seu alcance. Puxou-os com a extremidade de sua arma. Segurou-os contra sua máscara.
Não havia mais dúvida.
Alguém lá em cima atirava sangue e vísceras na superfície do mar.
20.
A CAVERNA DE MORGAN, O SANGUINÁRIO
Bond compreendeu de imediato o motivo de todas aquelas barracudas e tubarões estarem rondando a ilha, de como eram mantidos naquele frenesi voraz por esse banquete noturno, por que os três homens, desafiando todas as explicações plausíveis, haviam sido devolvidos à praia, meio devorados pelos peixes.
Mr. Big tinha apenas posto as forças do mar para trabalhar em seu proveito, utilizando-as para sua proteção. Era um invento típico — imaginativo, criativo, tecnicamente à prova de erro e fácil de pôr em prática.
No exato momento em que Bond compreendera isso tudo, algo lhe deu um terrível golpe no ombro e uma barracuda de dez quilos recuou, com carne e borracha preta entre as mandíbulas. Bond não sentiu dor, ao largar a hélice de bronze e nadar desesperadamente até as pedras, só uma náusea terrível na boca do estômago, ao pensar que um pedaço seu se encontrava entre aquelas centenas de dentes afiados como uma navalha. A água começou a vazar entre a borracha aderente e a sua pele. Não demoraria até chegar a seu pescoço e penetrar na máscara.
Já ia desistir e subir disparado pelos sete metros até a tona, quando viu uma larga fissura nas pedras diante dele. Ao lado havia um grande pedregulho tombado de lado e, de algum modo, ele conseguiu se esconder atrás dele. Virou-se, naquele abrigo precário, no momento exato em que a mesma barracuda investia outra vez, com o maxilar superior em ângulo reto em relação ao inferior, a boca escancarada pronta para o bote terrível.
Bond atirou quase às cegas com o arpão. As tiras de borracha dispararam cano abaixo e o arpão dentado pegou o grande peixe no centro da mandíbula superior erguida, atravessando-a e penetrando até a metade do cabo, com a linha ainda livre.
A barracuda estacou a um metro da barriga de Bond. Tentou fechar as mandíbulas e, em seguida, deu uma enorme sacudida na longa cabeça de réptil. Depois se afastou em disparada, ziguezagueando loucamente, arrancando da mão de Bond o arpão e a linha, que arrastou atrás de si. Bond sabia que, antes de ela percorrer cem metros, os demais peixes a atacariam e a fariam em pedaços.
Deu graças a Deus por essa manobra diversiva. Seu ombro estava agora envolto por uma nuvem de sangue. Os outros peixes sentiriam o cheiro em questão de segundos. Contornou o pedregulho imaginando se arranjaria um meio de se abrigar debaixo do atracadouro, escondendo-se de algum modo acima da superfície da água, até pensar em outro plano.
Então viu a caverna que o pedregulho escondera.
Era de fato quase uma porta na base da ilha. Se Bond não estivesse nadando para salvar sua vida, poderia ter entrado nela andando. Mas, naquelas circunstâncias, mergulhou direto na abertura e só parou quando poucos metros o separavam de sua entrada bruxuleante.
Então ficou de pé na areia macia e acendeu a lanterna. Um tubarão talvez pudesse vir atrás dele, mas no espaço confinado seria quase impossível que o mordesse com sua boca situada muito embaixo. Com certeza não viria precipitadamente, porque até o tubarão tem medo de arriscar a pele entre as pedras, e Bond teria ampla oportunidade de procurar atingir seus olhos com a faca.
Bond iluminou o teto e os lados da caverna com a lanterna. Certamente fora modelada ou acabada pela mão do homem. Bond calculou que deveria ter sido escavada de dentro para fora, a partir de algum lugar no centro da ilha.
“Faltam pelo menos vinte metros para acabar, gente”, Morgan, o Sanguinário, deve ter dito aos feitores de escravos. E então as picaretas devem ter rompido de repente o resto da parede que ainda separava a caverna do mar, e uma confusão de pernas, braços e bocas gritando, sufocadas para sempre pela água, teriam sido arremessadas para trás contra a pedra, juntando-se aos cadáveres das demais testemunhas.
O grande pedregulho na entrada deve ter sido posicionado para vedar a saída para o mar. O pescador da baía dos Tubarões que desapareceu de repente, seis meses atrás, deve tê-la descoberto um dia. Fora afastada de sua posição original por alguma tempestade ou tsunami consecutivo a um tufão. Então descobrira o tesouro e percebera que precisava de ajuda para dispor dele. Um branco o enganaria. Melhor procurar o grande gângster negro no Harlem e fazer o melhor acordo que pudesse. O ouro pertencia aos negros que haviam morrido para escondê-lo. Deveria ser devolvido aos negros.
Ali de pé, balançando na correnteza do túnel, Bond imaginou mais um barril cimentado mergulhando no lodo do rio Harlem.
Foi então que ouviu os tambores.
Lá fora, entre os peixes grandes, ouvira uma leve trovoada na água, que aumentara quando entrou na caverna. Mas julgara que eram apenas as ondas batendo na base da ilha e, de qualquer modo, tinha outras coisas em mente.
Mas agora podia distinguir um ritmo definido, e o som ribombava e crescia à sua volta, com um rufo abafado, como se o próprio Bond estivesse preso dentro de um vasto atabaque. A água parecia tremular por causa desse barulho. Ele imaginou o duplo objetivo do batuque. Era um grande chamado aos peixes, usado quando havia invasores, para atrair e excitá-los ainda mais. Quarrel lhe contara como os pescadores noturnos costumam bater nos lados da canoa com o remo para acordar e atrair os peixes. Aquilo deveria ser algo parecido. Ao mesmo tempo seria um aviso macabro do vodu para o pessoal da costa, duplamente eficaz quando algum cadáver era devolvido pelo mar no dia seguinte.
Mais um dos requintes de Mr. Big, pensou Bond. O batuque significava que ele fora descoberto. O que pensariam Strangways e Quarrel ao ouvi-lo? Seriam simplesmente obrigados a aguentar firme, sentados. Bond já havia percebido que os tambores eram algum truque e fizera os dois prometer que não iriam interferir, a não ser que o Secatur escapasse incólume. Pois isso significaria que todos os planos de Bond haviam fracassado. Ele contara a Strangways onde o ouro estava escondido, e neste caso o barco teria de ser interceptado em alto-mar.
Agora o inimigo fora alertado, mas não sabia quem era o invasor, nem se ele ainda estava vivo. Ele precisava prosseguir, nem que fosse para impedir por todos os meios que Solitaire embarcasse no iate condenado.
Bond consultou o relógio. Era meia-noite e meia. Para ele, poderia ter se passado uma semana desde que iniciara sua incursão pelo mar dos perigos.
Apalpou a Beretta sob a roupa de borracha, pensando se já não estaria avariada pela água que entrara pelo rasgo feito pelos dentes da barracuda.
Então, com o troar dos atabaques se aproximando cada vez mais de um crescendo, avançou na caverna, projetando adiante um pequeno feixe de luz com a lanterna.
Avançara cerca de dez metros quando viu um leve brilho na água à sua frente. Apagou a lanterna e foi se aproximando com cautela. O piso arenoso da caverna começou a se inclinar para cima, e a cada metro a luz se tornava mais forte. Agora podia ver dezenas de pequenos peixes que brincavam à sua volta e, mais adiante, a água estava cheia deles, atraídos pela luz da caverna. Caranguejos olhavam atentos de pequenas frestas nas pedras e um polvo novinho se achatou contra o teto, tomando a forma de uma estrela fosforescente.
Em seguida, pôde divisar o final da caverna e uma larga piscina brilhante, além, cujo fundo arenoso era branco como o dia. O roncar dos atabaques aumentava. Parou na sombra da entrada e percebeu que a superfície ficava apenas poucos centímetros acima e que havia lâmpadas sobre a piscina.
Bond estava em um dilema. Mais um passo e ficaria em plena vista de qualquer um que estivesse olhando para a piscina. Ao hesitar, argumentando consigo mesmo, ficou horrorizado ao ver uma fina nuvem de sangue de seu ombro se espalhando pela entrada. Esquecera o ferimento no ombro, que agora começara a latejar, e quando moveu o braço sentiu a ferroada de uma dor intensa em toda sua extensão. Havia também o fino jato de bolhas dos cilindros, mas ele esperava que elas fossem flutuando lentamente para arrebentar na beirinha da entrada.
No exato momento em que recuou alguns centímetros, seu futuro já estava selado.
Sobre sua cabeça percebeu apenas uma enorme pancada na água, e depois dois negros, nus a não ser pelas máscaras de mergulho nos rostos, com longas facas seguras como lanças em suas mãos esquerdas, investiram contra ele.
Antes que sua mão pudesse pegar a faca no cinto, já haviam agarrado seus dois braços e o puxavam para a superfície.
Desesperado, Bond teve de deixar que o tirassem à força da piscina e o jogassem na areia lisa. Depois de ser obrigado a se levantar, abriram os zíperes de seu traje de mergulho. Seu capuz foi retirado da cabeça, o coldre de seu ombro, e de repente ele se achou de pé entre os frangalhos da roupa preta de mergulho, como uma serpente trocando a pele, nu, exceto pelo pequeno calção de banho. O sangue escorria do buraco irregular no ombro esquerdo.
Quando tiraram seu capuz, Bond quase ensurdeceu com a batida e o rufar dos atabaques. O barulho penetrava nele e mexia com tudo em volta. O ritmo rápido e sincopado galopava e latejava nas suas veias. Parecia capaz de acordar toda a Jamaica. Bond fez uma careta e seus sentidos procuraram resistir aos golpes daquela tempestade sonora. Em seguida, os guardas o fizeram se virar e se deparar com uma cena tão grotesca que o som dos atabaques recuou para o fundo e toda sua consciência se concentrou no que via.
No primeiro plano, em uma mesa de jogo com tampo de veludo verde, apinhada de papéis, e sentado em uma cadeira de dobrar, estava Mr. Big, com uma caneta na mão, olhando-o sem curiosidade. Um Mr. Big em um terno castanho-amarelado, bem cortado, de tropical, com camisa branca e gravata de tricô de seda preta. O queixo largo descansava na sua mão esquerda e ele levantou os olhos para Bond como se tivesse sido incomodado, em seu escritório, por alguém de sua equipe pedindo um aumento de salário. Parecia polido, porém levemente entediado.
A alguns passos dele, sinistro e absurdo, o espantalho da efígie do Baron Samedi, ereto sobre uma pedra, observava Bond debaixo de seu chapéu-coco.
Mr. Big tirou a mão do queixo e seus grandes olhos dourados estudaram Bond da cabeça aos pés.
“Bom dia, senhor James Bond”, disse finalmente, projetando a voz inexpressiva contra o barulho já decrescente dos tambores. “A mosca levou mesmo muito tempo para chegar à aranha, ou talvez devesse dizer ‘o lambari à baleia’. Você deixou um belo rastro de bolhas no recife.”
Recostou-se na cadeira e se calou. Os atabaques batiam e rufavam mais baixo.
Então fora a luta contra o polvo que o traíra. A mente de Bond registrou o fato automaticamente, enquanto olhava para além do homem na mesa.
Estava em um salão de pedra grande como uma igreja. Metade do piso era ocupada pela enorme piscina clara e branca pela qual chegara, e que se transformava em verde-mar e depois azul perto do buraco de entrada submarino. Em seguida, havia a faixa estreita de areia em que ele pisava, e o resto do piso era de pedra lisa e plana, marcado por algumas estalagmites cinzentas e brancas.
A alguma distância atrás de Mr. Big uma escadaria íngreme levava a um teto abobadado, do qual pendiam estalactites curtas de calcário. De seus brancos mamilos a água gotejava intermitentemente na piscina, ou sobre as jovens estalagmites que se erguiam do chão, a seu encontro.
Havia uma dúzia de luzes fosforescentes muito claras fixadas alto nas paredes, criando reflexos dourados nos torsos nus de um grupo de negros em pé, à sua esquerda, no piso de pedra, observando Bond de olhos arregalados, mostrando os dentes em sorrisos cruéis e satisfeitos.
Em volta de seus pés pretos e rosados, entre destroços de madeira quebrada e anéis de ferro enferrujados, tiras mofadas de couro e lona decomposta, havia um mar fulgurante de moedas de ouro — metros, cascatas de moedas redondas de ouro, do qual emergiam as pernas pretas, como se tivessem sido detidas no meio de um passeio entre as chamas.
Ao lado deles, empilhadas fileira após fileira, ficavam bandejas rasas de madeira. Algumas estavam no chão, parcialmente cheias de moedas de ouro, e embaixo da escada, um único negro parara na subida, segurando uma delas repleta de moedas de ouro em quatro fileiras cilíndricas, estendida como se estivesse sendo oferecida à venda.
Mais à esquerda, em um canto do salão, havia dois negros próximos a um caldeirão de ferro arredondado, suspenso acima de três maçaricos sibilantes, até que seu fundo ficasse vermelho incandescente. Seguravam escumadeiras de ferro, lambuzadas de ouro até metade de seus cabos. Ao lado deles havia uma miscelânea de peças de ouro, talheres, objetos de altar, copos, cruzes e uma pilha de lingotes de ouro de diversos tamanhos. Ao longo da parede viam-se, próximas a eles, fileiras de bandejas para esfriar o metal, cujas superfícies segmentadas irradiavam um brilho dourado, e uma bandeja vazia descansava no piso perto do caldeirão, junto com uma longa concha manchada de ouro e o cabo envolto em pano.
Acocorado no chão, não muito distante de Mr. Big, um único negro segurava uma faca em uma das mãos, e uma taça ornamentada de brilhantes na outra. A seu lado, em um prato de lata, uma pilha de joias cintilava, embaçadas, vermelhas, azuis e verdes, sob o brilho das lâmpadas fluorescentes.
Estava quente e abafado no grande salão de pedra e, no entanto, Bond tiritava ao abarcar toda essa esplêndida cena com os olhos. O brilho das lâmpadas violeta esbranquiçadas, o bronzeado tremeluzente dos corpos suados, o brilho forte do ouro, o arco-íris do recipiente com os brilhantes, a água marinha em tom leitoso da piscina. Ele tremia diante da beleza daquilo tudo, diante daquela dança petrificada da grande arca do tesouro de Morgan, o Sanguinário.
Seus olhos voltaram para o quadrado de veludo verde e para a grande face de zumbi, olhando aquele rosto e seus olhos amarelos com respeito, quase com reverência.
“Pare os tambores”, disse Mr. Big, para ninguém em particular. O batuque se reduzira a um quase sussurro, a um murmúrio cujo acento recaía sobre o ritmo do coração nas veias. Um dos negros deu dois passos, acompanhados de barulhos metálicos entre as moedas, abaixando-se. Um aparelho de som portátil estava no chão, com um potente amplificador ao lado, contra a parede de pedra. Depois de um clique os tambores pararam. O negro fechou a tampa do aparelho e voltou a seu lugar.
“Andem com o trabalho”, ordenou Mr. Big. E de repente todas as figuras começaram a se mover, como se alguém tivesse posto uma moeda em um caça-níquel. Mexeram o caldeirão, pegaram o ouro e o puseram nas caixas, o sujeito procurava retirar a pedraria da taça, e o negro com a bandeja de ouro prosseguiu subindo a escada.
Bond continuava de pé, pingando suor e sangue.
Big Man descansou a caneta e se levantou devagar. Afastou-se da mesa.
“Assuma meu lugar”, ordenou a um dos homens que guardavam Bond, e o sujeito nu rodeou a mesa, sentou na cadeira de Mr. Big e pegou a caneta.
“Traga-o aqui para cima.” Mr. Big foi até os degraus na rocha e começou a subi-los lentamente.
Bond sentiu uma picada do lado. Acabou de despir os restos de sua segunda pele preta e seguiu a figura que subia devagar.
Ninguém levantou os olhos do trabalho. Ninguém descuidava do serviço quando Mr. Big saía. Ninguém seria capaz de enfiar um brilhante ou uma moeda na boca.
O Baron Samedi assumira a chefia.
Apenas seu zumbi deixara a caverna.
21.
“BOA NOITE A AMBOS”
Subiram vagarosamente por cerca de treze metros, passando por uma porta aberta perto do teto, e pararam em um grande patamar na pedra. Ali um único negro, à luz de um lampião de acetileno, arrumava bandejas cheias de moedas de ouro no meio dos tanques de peixe, muitos já se encontrando empilhados contra a parede.
Enquanto esperavam, dois negros desceram a escada, vindos da superfície, pegaram um tanque pronto e voltaram para cima com ele.
Bond achava que eles enchiam os tanques com areia, plantas aquáticas e peixes em algum lugar no alto, e depois os desciam através da corrente humana ao longo da face do rochedo.
Notou que alguns dos tanques à espera tinham lingotes de ouro fixados no centro, e outros, pedrarias espalhadas como cascalho. Então refez os cálculos sobre o tesouro, quadruplicando seu valor até cerca de quatro milhões de libras esterlinas.
Mr. Big ficou um tempo com o olhar no chão de pedra. Respirava fundo, mas de maneira controlada. Em seguida, subiram.
Vinte degraus acima havia outro patamar, menor, com uma porta de saída. Nela havia corrente e cadeado novos. A própria porta era feita de grades de ferro marrons, achatadas, corroídas pela ferrugem.
Mr. Big parou de novo e ficaram lado a lado na pequena plataforma de pedra.
Por um momento Bond pensou em fugir, mas, como se tivesse lido a sua mente, o guarda negro cercou-o contra a parede, longe de Big Man. E Bond sabia que sua maior obrigação era se manter vivo e chegar a Solitaire, e arranjar um jeito de afastá-la do barco condenado pela mina, em que o ácido roía lentamente o cobre do detonador.
Do alto vinha uma forte correnteza pelo vão da escada, e Bond sentiu que seu suor secava. Pôs a mão direita no ferimento do ombro, sem se assustar com a picada no flanco feita pela faca do guarda. O sangue já secara em crostas e a maior parte do braço doía tremendamente.
Mr. Big falou:
“Este vento, sr. Bond”, apontou para o vão, “é conhecido na Jamaica como ‘vento Papa-Defunto’”.
Bond sacudiu o ombro direito, poupando o fôlego.
Mr. Big virou para a porta de ferro, tirou a chave do bolso e abriu-a. Passou e foi seguido por Bond e seu guarda.
Era um cômodo que consistia em uma estreita passagem, com grilhões enferrujados presos embaixo na parede, a menos de dez metros de intervalo.
Na outra extremidade, onde uma lamparina pendia do teto de pedra, uma figura imóvel estava deitada no chão, embrulhada em um cobertor. Havia mais uma lamparina na porta, em cima de suas cabeças, mas, exceto isso, apenas o cheiro de pedra úmida, torturas antigas e morte.
“Solitaire”, falou Bond, baixinho.
O coração de Bond deu um salto e ele quis se adiantar. Imediatamente uma mão enorme agarrou seu braço.
“Pare aí, seu branco”, vociferou o guarda, torcendo o punho dele entre as espáduas, levantando-o ainda mais, até que Bond deu um chute com o calcanhar esquerdo. Acertou na canela do homem, mas doeu mais em Bond do que no guarda.
Mr. Big se virou. Tinha uma pequena arma quase encoberta pela mão enorme.
“Solte-o”, ordenou em voz baixa. “Se quiser mais um umbigo, senhor Bond, é só dizer. Tenho seis aqui nesta arma.”
Bond passou esbarrando em Big Man. Solitaire se levantara, vindo em sua direção. Quando viu seu rosto, desandou a correr, estendendo as mãos.
“James”, soluçou. “James.”
Ela quase caiu a seus pés. Suas mãos se agarraram.
“Arranje corda”, ordenou Mr. Big no vão da porta.
“Está tudo bem, Solitaire”, disse Bond, sabendo que não estava. “Está tudo bem. Estou aqui agora.”
Ele pegou-a, mantendo-a a distância de seu braço estendido. O braço esquerdo doeu. Ela estava pálida e desarrumada, com um machucado na testa e olheiras. No seu rosto encardido as lágrimas escorriam deixando marcas na pele lívida. Estava sem maquiagem. Trajava um terninho branco sujo e sandálias. Parecia magra.
“O que esse desgraçado anda fazendo com você?”, perguntou Bond. Apertou-a de repente contra si. Ela se agarrou a ele, com o rosto enterrado em seu pescoço.
Em seguida, se afastou e olhou para a mão dele.
“Você está sangrando”, disse. “O que é?”
Virou-o pela metade e viu o sangue preto no seu ombro e pelo braço abaixo.
“Ah, meu querido, o que foi?”
Começou a chorar de novo, desamparada, desesperada, percebendo subitamente que ambos estavam perdidos.
“Amarre-os”, ordenou Big Man, da porta. “Aqui, debaixo da luz. Preciso dizer-lhes umas coisas.”
O negro estava vindo e Bond se virou. Valeria a pena arriscar? O negro só tinha a corda na mão. Mas Big Man deu um passo para o lado, vigiando-o, segurando a arma displicentemente, meio apontada para o chão.
“Não, senhor Bond”, avisou apenas.
Bond lançou um olhar para o negro enorme e pensou em Solitaire e no seu próprio ombro ferido.
O negro chegou e Bond deixou que amarrasse seus braços atrás das costas. Os nós foram bem dados. Não havia folga. Doíam.
Bond sorriu para Solitaire. Piscou um olho pela metade. Não passava de uma bravata, mas percebeu uma vivacidade esperançosa renascer em meio a suas lágrimas.
O negro levou-o de volta à porta.
“Ali”, disse Big Man, fazendo um gesto para um dos grilhões.
O negro derrubou Bond com uma rasteira repentina. Este caiu em cima do ombro ferido. O negro puxou-o pela corda até o grilhão, testou-o, passou a corda por ele e então amarrou Bond pelos tornozelos, muito bem amarrado. Enfiara sua faca em uma fresta na pedra. Tirou-a, cortou a corda e voltou para onde Solitaire estava.
Bond ficou sentado no chão de pedra, com as pernas esticadas para a frente, com os braços suspensos, amarrados por trás. O sangue pingava do ferimento reaberto. Apenas os resíduos da benzedrina no seu corpo o impediam de desmaiar.
Solitaire foi amarrada e colocada quase defronte a ele. Um metro separava os pés de ambos.
Com a tarefa concluída, Big Man consultou o relógio.
“Vá”, ordenou ao guarda. Fechou a porta de ferro depois que o sujeito se foi, ficando encostado nela.
Bond e a garota se entreolharam e Big Man contemplou os dois no chão.
Depois de um de seus longos silêncios, dirigiu-se a Bond. Este levantou os olhos para ele. A enorme bola de futebol cinzenta que era sua cabeça parecia, sob o lampião, a cabeça de um elemental, de algum espectro maligno do centro da terra, pairando no ar, com os olhos dourados ardendo firmes, e o grande corpo na sombra. Bond precisou lembrar-se de que já ouvira o coração dele batendo no peito, já o ouvira respirar, já vira suor na pele cinzenta. Não passava de um homem, da mesma espécie dele, um homem grande, com uma mente brilhante, mas ainda assim um homem que caminhava e defecava, um homem mortal, com uma doença no coração.
A boca larga e borrachuda se abriu, os lábios achatados, levemente virados, recuaram dos grandes dentes brancos.
“Você é o melhor de todos os que foram mandados para me combater”, disse Mr. Big. Sua voz baixa e insossa era pensativa, calculada. “E conseguiu matar quatro de meus ajudantes. Meus seguidores acham isso inacreditável. Já é mais do que tempo de liquidarmos nossas contas. O que aconteceu ao americano não bastou. A traição desta garota”, ele ainda olhava para Bond, “que tirei da sarjeta e estava pronto a colocar na minha mão direita, também questionou a minha infalibilidade. Eu estava imaginando como ela deveria morrer, quando a providência, ou o Baron Samedi, como meus seguidores gostam de acreditar, também trouxe você para o altar de cabeça baixa, pronto para o machado”.
A boca parou, com os lábios entreabertos. Bond viu os dentes se juntarem para formar a palavra seguinte.
“De modo que é conveniente que os dois morram juntos. Isso acontecerá de um modo adequado”, Big Man consultou seu relógio, “dentro de duas horas e meia. Às seis horas, alguns minutos a mais ou a menos”, acrescentou.
“Alguns minutos a mais”, comentou Bond. “Gosto da vida.”
“Na história de emancipação dos negros”, continuou Mr. Big em tom de conversa despreocupada, “já surgiram grandes atletas, grandes músicos, grandes escritores, grandes médicos e cientistas. No seu devido tempo, como aconteceu na história do desenvolvimento de outras raças, hão de surgir negros famosos em todos os demais setores da vida”. Fez uma pausa. “Infelizmente para você, senhor Bond, e para esta garota, vocês encontraram o primeiro dos grandes criminosos negros. Uso esta palavra vulgar, senhor Bond, porque seria a mesma que você, senhor Bond, como uma espécie de policial, usaria. Mas prefiro me considerar uma pessoa que possui a habilidade, as capacidades mentais e nervosas para criar as próprias leis e agir segundo elas, em vez de aceitar as leis que convêm ao mínimo denominador comum das pessoas. Sem dúvida você já leu Os instintos do rebanho na paz e na guerra, de Trotter. Pois bem, sou lobo por índole e opção, e vivo segundo as leis do lobo. É natural que os carneiros descrevam este indivíduo como ‘criminoso’.
“O fato, senhor Bond”, prosseguiu Big Man, depois de uma pausa, “de que sobrevivo e, na verdade, gozo de um sucesso ilimitado, embora seja eu sozinho contra milhões de carneiros, se deve às técnicas modernas que lhe descrevi por ocasião de nossa última conversa, e a uma infinita capacidade de me esforçar. Não os esforços tediosos, vulgares, e sim os artísticos e sutis. E eu noto, senhor Bond, que não é difícil enganar os carneiros, não importa quantos, com muita dedicação ao trabalho e, naturalmente, se formos um lobo extremamente bem dotado.
“Deixe-me ilustrar, por exemplo, como funciona a minha mente. Estudemos o método pelo qual decidi que ambos morrerão. É uma variação moderna do método usado na época do meu generoso patrono, sir Henry Morgan. Naquele tempo, era conhecido como ‘arrastamento pela quilha’.”
“Por favor, continue”, disse Bond, sem olhar para Solitaire.
“Temos uma paravana a bordo do iate”, prosseguiu Mr. Big, como se fosse um cirurgião descrevendo uma operação delicada para um grupo de estudantes, “que usamos para rebocar tubarões e outros peixes de grande porte. Esta paravana é, como sabem, um aparelho com a forma de um torpedo, que boia puxado por um cabo, distante do barco. Pode ser usada para sustentar a extremidade de uma rede, rebocando-a através da água, com o barco em movimento. Também pode ser equipada com um instrumento de corte, para cortar os cabos de amarração das minas em época de guerra.
“Pretendo”, continuou Mr. Big, em um tom de voz discursivo e natural, “amarrá-los juntos à extremidade de um cabo preso a essa paravana e rebocá-los pelo mar até que sejam devorados pelos tubarões”.
Fez uma pausa, enquanto seu olhar passava de um para outro. Solitaire mirava de olhos arregalados para Bond, que se esforçava em pensar, com o olhar ausente, perscrutando o futuro. Sentiu que deveria dizer alguma coisa.
“Você é um homem grande”, afirmou, “e um dia morrerá de uma morte igualmente grande e terrível. Se nos matar, essa morte virá em breve. Já a providenciei. Está enlouquecendo a olhos vistos, senão perceberia a repercussão que nosso assassinato terá sobre sua vida”.
Enquanto falava, a mente de Bond funcionava rápido, contando horas e minutos, sabendo que a própria morte de Big Man chegaria devagar, com o ácido corroendo o detonador seguindo o ponteiro dos minutos, rumo à hora do encontro final com seu destino. Mas estariam ele e Solitaire mortos, antes que soasse essa hora? Minutos, talvez segundos, fariam a diferença. O suor escorria do seu rosto para o peito. Sorriu para Solitaire. Ela lhe deu um olhar ausente, sem enxergá-lo.
De repente deu um grito agoniado que sacudiu os nervos de Bond.
“Não sei”, gritou. “Não consigo ver. Está tão perto, tão próximo. Há muitas mortes. Mas...”
“Solitaire”, gritou Bond, apavorado com a possibilidade de que as coisas estranhas que ela previsse, quaisquer que fossem, pudessem servir de aviso a Big Man. “Controle-se.”
Havia um toque de raiva em sua voz.
Os olhos dela clarearam, olhando mudos para ele, sem compreender.
Big Man falou de novo.
“Não estou ficando louco, senhor Bond”, avisou calmamente, “e nenhuma providência sua me afetará. Vocês morrerão além do recife e não restará nenhum indício. Rebocarei os restos de seus corpos até que não sobre nada. Isso faz parte da sagacidade dos meus planos. Vocês também devem saber que o tubarão e a barracuda desempenham um papel no voduísmo. Eles receberão seus sacrifícios e o Baron Samedi será apaziguado. Meus seguidores ficarão satisfeitos. Da mesma forma, desejo continuar minhas experiências com os peixes carnívoros. Acredito que só atacam quando há sangue na água. Por isso seus corpos serão rebocados desde a ilha. A paravana os rebocará sobre o recife. Acho que não serão atacados antes da barra. O sangue e as vísceras que são jogados todas as noites nessas águas já terão sido dispersos ou consumidos. Mas quando seus corpos forem rebocados por cima do recife, infelizmente sangrarão, ficarão em carne viva. Então veremos se minhas teorias estão corretas.”
Big Man estendeu a mão para trás e abriu a porta.
“Eu os deixarei agora”, falou, “para que reflitam sobre a excelência do método que criei para matá-los juntos. Não restará indício algum. A superstição ficará satisfeita. Meus seguidores também. Os corpos serão utilizados para a pesquisa científica.
“Isso é o que eu chamo, senhor James Bond, de uma capacidade infinita de refinamento artístico.”
Parou no vão da porta e olhou para os dois.
“Uma noite breve, porém boa. É o que desejo a ambos.”
22.
TERROR NO MAR
O dia ainda não clareara quando os guardas vieram buscá-los. As cordas que prendiam suas pernas foram cortadas e, com os braços ainda atados, foram levados pelos últimos degraus de pedra que faltavam para a superfície.
Ficaram entre algumas árvores esparsas e Bond aspirou o ar frio da manhã. Olhou através das árvores na direção do oriente e viu que as estrelas estavam mais pálidas e havia uma luminosidade no horizonte que anunciava o raiar da aurora. O cicio noturno dos grilos quase terminara e, em algum canto da ilha, um tordo ensaiava as primeiras notas do dia.
Bond calculou que deviam ser mais ou menos cinco e meia.
Ficaram ali vários minutos. Os negros passavam próximos a eles, carregando embrulhos e malas de fibra de palmeira, entre cochichos cautelosos. As portas do punhado de palhoças entre as árvores estavam escancaradas. Os homens andavam em fila até a beira do penhasco, à direita de Bond e Solitaire, desaparecendo por ali. Não voltavam. Era uma evacuação. Toda a guarnição da ilha levantava acampamento.
Bond esfregou o ombro desnudo contra Solitaire e ela se aninhou contra ele. Fazia frio depois da masmorra abafada, e Bond tiritava. Mas era melhor estar em movimento do que prolongar o suspense lá de baixo.
Ambos sabiam o que precisava ser feito, a natureza do risco.
Depois que Big Man os deixara, Bond não perdera tempo. Falando baixinho, contara à garota sobre a mina magnética presa ao costado do barco, prevista para explodir alguns minutos depois das seis horas, e explicara os fatores decisivos para saber quem morreria ou não naquela manhã.
Primeiro, apostara na mania de exatidão e de eficiência de Mr. Big. O Secatur precisava zarpar às seis horas em ponto. Portanto, não deveria haver nenhuma nuvem, se não a visibilidade na meia-luz do amanhecer não seria suficiente para assegurar a passagem do barco através do recife, e Mr. Big adiaria a partida. Se Bond e Solitaire estivessem no atracadouro ao lado do iate, morreriam junto com Mr. Big.
Supondo que o barco zarpasse na hora exata, a que distância e de que lado dele seriam rebocados? Teria de ser a bombordo para que a paravana ficasse desimpedida na hora de deixar a ilha. Bond supôs que o cabo de reboque da paravana teria cinquenta metros de comprimento, e que eles seriam rebocados vinte ou trinta metros atrás da paravana.
Se ele estivesse certo, seriam arrastados por cima do recife externo cerca de cinquenta metros depois de o Secatur ter rompido pelo canal. Provavelmente se aproximaria da passagem nos recifes a cerca de três nós e, em seguida, pegaria velocidade até chegar a dez, ou até mesmo a vinte. De início seus corpos seriam rebocados da ilha em um lento arco, virando e se retorcendo na ponta da linha de reboque. Logo depois a paravana se endireitaria e, mesmo após o barco ter transposto o recife, eles ainda não teriam chegado a ele. Portanto, a paravana passaria pelo recife quando o barco já o tivesse ultrapassado em quarenta metros, e depois eles a seguiriam a alguns metros a mais de distância.
Bond estremeceu ao pensar nos ferimentos que seus corpos sofreriam se fossem arrastados, a qualquer velocidade, sobre os dez metros de árvores e recifes de coral, afiados como uma navalha. Ficariam com as costas e as pernas esfoladas.
Depois de atravessarem o recife, não passariam de uma isca sanguinolenta, e seria apenas uma questão de minutos até que o primeiro tubarão ou barracuda avançasse neles.
E Mr. Big, sentado confortavelmente no deque da popa, assistiria à carnificina, talvez de binóculos, marcando os segundos e os minutos enquanto a isca viva ia diminuindo de tamanho, até que finalmente os peixes só abocanhassem o cabo ensanguentado.
Até que não restasse coisa alguma.
Então a paravana seria içada a bordo e o iate cortaria o mar graciosamente rumo à longínqua Florida Keys, a Cape Sable e ao atracadouro ensolarado no porto de St. Petersburg.
E se a mina explodisse quando eles ainda estivessem na água, a cinquenta metros do barco? Qual seria o efeito do deslocamento de ar em seus corpos? Talvez não fosse fatal. O casco do iate absorveria a maior parte. O recife talvez os protegesse.
Bond só podia adivinhar e manter a esperança.
Sobretudo, precisavam continuar vivos até o último segundo possível. Precisavam continuar respirando enquanto fossem arrastados, como um pacote vivo, pelo mar. Muita coisa dependia da maneira como eles os amarrariam um ao outro. Mr. Big haveria de querer que continuassem vivos. Não lhe interessaria uma isca morta.
Se ainda estivessem vivos quando a primeira barbatana de tubarão surgisse à tona atrás deles, Bond decidira afogar friamente Solitaire. Afogá-la torcendo seu corpo debaixo do seu e segurando-o ali. Em seguida, tentaria se afogar torcendo o corpo morto dela de volta para que o seu ficasse por baixo.
Cada volteio de seu pensamento esbarrava em um pesadelo, no horror nauseante de cada detalhe medonho da tortura monstruosa que aquele homem havia preparado para eles. Mas Bond sabia que precisava conservar o sangue-frio e a resolução absoluta de lutar pelas suas vidas até o fim. Havia ao menos uma sensação calorosa na ideia de que Mr. Big e a maioria de seus homens também morreriam. E um lampejo de esperança de que ele e Solitaire talvez sobrevivessem. A não ser que a mina falhasse, o inimigo não poderia contar com nenhuma esperança.
Tudo isso e uma centena de outros pormenores e planos passaram pela cabeça de Bond na última hora antes de serem levados pelo vão da escada até a superfície. Com Solitaire compartilhou todas as suas esperanças. Nenhum dos seus temores.
Ela ficara deitada à sua frente, com seus olhos azuis e cansados fixos nele, obedientes, confiantes, bebendo seu rosto e suas palavras, dóceis, amorosos.
“Não se preocupe comigo, querido”, dissera, quando os homens vieram buscá-los. “Sinto-me feliz de estar de novo com você. Meu coração está cheio de felicidade. De algum modo, não estou com medo, apesar de pressentir uma grande matança. Você me ama um pouquinho?”
“Sim”, respondeu Bond. “E vamos ainda aproveitar o nosso amor.”
“Vambora”, disse um dos homens.
E agora, no alto do morro, clareava. Bond ouviu os dois grandes motores a diesel tossirem e roncarem embaixo do penhasco. Uma leve brisa soprava a barlavento, mas a sota-vento, onde estava o barco, a baía era um espelho de bronze.
Mr. Big apareceu no alto da escadaria, com uma pasta de executivo na mão. Ficou por um momento olhando em volta, recuperando o fôlego. Não prestou nenhuma atenção a Bond ou Solitaire, nem aos dois guardas ao lado deles, de revólveres na mão.
Olhou para o céu e de repente clamou, em um tom de voz nítido, na direção da orla do sol.
“Obrigado, sir Henry Morgan. Seu tesouro será bem gasto. Dê-nos um vento de popa.”
Os guardas negros arregalaram os olhos.
“O vento Papa-Defunto”, disse Bond.
Big Man olhou-o.
“Já está tudo embaixo?”, perguntou aos guardas.
“Sim senhor, patrão”, respondeu um deles.
“Leve-os”, ordenou Big Man.
Foram até a beira do penhasco e desceram a escadaria íngreme, com um guarda na frente, outro atrás e Mr. Big a seguir.
Os motores do longo e elegante iate giravam sossegados, com o escape borbulhando gravemente, e um fio de vapor azul a se erguer da popa.
Três sujeitos no molhe cuidavam das guias. Só havia três homens no convés, além do capitão, e o piloto na ponte escura, bem projetada. Não havia mais espaço para ninguém. Todo o espaço disponível no convés, exceto por uma cadeira de pesca presa no lado direito da popa, era preenchido pelos tanques de peixe. Com o pavilhão vermelho arriado, só a bandeira americana pendia imóvel da popa.
Distante alguns metros do barco, a paravana vermelha em forma de torpedo, com cerca de dois metros de comprimento, flutuava tranquilamente na água, agora verde-mar ao primeiro amanhecer. Estava ligada a uma grossa pilha de cabos metálicos, enrolados no convés da popa. Parecia a Bond que eles deveriam ter uns bons cinquenta metros. A água estava cristalina e não havia peixes rondando por perto.
O vento Papa-Defunto morria aos poucos. Dentro em breve o vento Médico começaria a soprar vindo do mar. Dentro de quanto tempo?, perguntou-se Bond. Seria um presságio?
Ao longe, além do barco, ele conseguia avistar o teto de Beau Desert entre as árvores, mas o molhe, o barco e a trilha no penhasco ainda estavam mergulhados em profunda sombra. Bond pensou se os binóculos de visão noturna conseguiriam vê-los. Se pudessem, o que pensaria Strangways?
No molhe, Mr. Big supervisionava a tarefa de amarrá-los.
“Tire a roupa dela”, ordenou ao guarda.
Bond se encolheu. Deu uma olhada de relance para o relógio de pulso de Mr. Big. Nele, faltavam dez minutos para as seis. Bond manteve silêncio. Não deveria haver nem um minuto de atraso.
“Jogue as roupas a bordo”, disse Mr. Big. “Amarre uns panos no ombro dele. Não quero que haja sangue na água ainda.”
As roupas de Solitaire foram cortadas a faca. Ela permaneceu ali, nua e pálida. Abaixou a cabeça e seus cabelos pesados caíram para a frente, tapando seu rosto. O ombro de Bond foi atado grosseiramente com tiras do seu vestido de linho.
“Canalha”, desabafou Bond, de dentes cerrados.
Sob a direção de Mr. Big, primeiro soltaram as mãos dos dois. Seus corpos foram atados frente a frente, e seus braços passados pela cintura um do outro, e depois novamente atados com força.
Bond sentiu a pressão dos seios macios de Solitaire. Ela encostou o queixo no ombro direito dele.
“Eu não queria que fosse assim”, sussurrou, trêmula.
Bond não respondeu. Mal sentia o corpo dela. Contava os segundos.
No molhe havia uma corda enovelada que ia até a paravana. Mergulhava na água e Bond a distinguia seguindo no fundo de areia até surgir de encontro à barriga do torpedo vermelho.
Sua extremidade solta foi passada debaixo das axilas de Bond e Solitaire, e bem amarrada com um nó que ficava no espaço entre seus pescoços. Tudo feito com muito cuidado. Não havia possibilidade de fuga.
Bond contava os segundos. De acordo com ele, faltavam cinco para as seis.
Mr. Big deu uma última olhada nos dois.
“Deixem as pernas soltas”, comentou. “Dão uma isca apetitosa.” Deixou o molhe e embarcou no convés do iate.
Os dois guardas também embarcaram. Depois de soltarem as guias, os dois sujeitos no molhe os seguiram. As hélices revolveram a água mansa e, com os motores a meia velocidade, o Secatur se afastou rapidamente da ilha.
Mr. Big foi para a popa, sentando-se na cadeira de pesca. Podiam ver o seu olhar fixo neles. Não disse nada. Não fez gesto algum. Apenas contemplava.
O Secatur cortava a água em direção ao recife. Bond podia ver o cabo da paravana se desenrolando no costado. A paravana começou a se mover lentamente atrás do barco. De repente mergulhou o nariz, endireitou-se e disparou, com o leme se dobrando na direção contrária à esteira do barco.
O rolo de corda ao lado deles deu um súbito sinal de vida.
“Cuidado”, avisou Bond, com urgência, agarrando-se com mais força à garota.
Seus braços quase se desconjuntaram com o solavanco do puxão, quando caíram do molhe no mar.
Por um instante ambos submergiram, depois voltaram à tona, com seus corpos unidos rasgando a água.
Bond procurava respirar em meio às ondas e aos borrifos que passavam depressa por ele, inundando sua boca retorcida. Podia ouvir a respiração entrecortada de Solitaire ao lado do seu ouvido.
“Respire, respire”, gritou, através da avalanche de água. “Prenda suas pernas nas minhas.”
Ela ouviu-o e ele sentiu entre as coxas a pressão dos joelhos dela. Solitaire teve um acesso de tosse. Em seguida, a respiração dela tornou-se mais regular junto ao seu ouvido e as batidas do coração da mulher acalmaram-se contra o seu peito. Ao mesmo tempo, a velocidade em que eram rebocados sofreu uma redução.
“Prenda a respiração”, gritou Bond. “Preciso dar uma olhada. Pronta?”
Ela respondeu com uma pressão dos braços. Ele sentiu o peito dela inflar quando seus pulmões se encheram de ar.
Usando o peso do corpo, girou-a para baixo, de maneira que a cabeça dele agora estava totalmente fora d’água.
Cortavam o mar a cerca de três nós. Dobrou a cabeça acima da pequena marola que faziam.
O Secatur entraria na passagem entre os recifes dentro de aproximadamente oitenta metros, segundo calculou. A paravana deslizava lentamente, quase em ângulo reto em relação ao barco. Faltavam trinta metros para o torpedo vermelho atravessar as águas encrespadas sobre o recife. Trinta metros atrás da paravana, eles navegavam devagar na superfície da baía.
Sessenta metros até o recife.
Bond girou o corpo e Solitaire emergiu, ofegante.
Continuaram a avançar lentamente na água.
Cinco metros, dez, quinze, vinte...
Apenas quarenta metros para atingirem o banco de coral.
O Secatur deveria ter acabado de transpô-lo. Bond recuperou o fôlego. Já devia passar das seis. Que teria acontecido com a porcaria da mina? Bond fez uma rápida e fervorosa oração. Que Deus nos salve, disse dentro d’água.
De repente sentiu que a corda apertava sob seus braços.
“Respire, Solitaire, respire”, gritou quando retomaram a velocidade e a água começou a passar sibilante por eles.
Agora voavam pelo mar em direção ao recife submerso.
Houve uma ligeira diminuição de velocidade. Bond imaginou que a paravana tivesse batido em uma pedra ou algum coral na superfície. Em seguida, seus corpos voltaram a disparar no seu abraço mortal.
Faltavam trinta metros, vinte, dez...
Meu Deus, pensou Bond. Não escaparemos. Contraiu os músculos para enfrentar a dor lancinante do impacto, empurrando Solitaire mais para cima, para protegê-la do pior.
De repente o ar fugiu com um chiado de seus pulmões, e um punho gigantesco socou-o contra Solitaire, de modo que ela se ergueu totalmente fora do mar e voltou a cair. Uma fração de segundo depois, um clarão iluminou o céu e ouviu-se o ribombar de uma explosão.
Estacaram de repente, e Bond percebeu que o peso da corda solta os puxava para baixo.
Suas pernas afundaram sob seu corpo atordoado e a água inundou sua boca.
Foi o que o fez recuperar a consciência. As pernas dele se debateram no fundo, voltando a trazer suas bocas até a tona. A garota era um peso morto em seus braços. Ele revolvia a água em desespero e olhava à sua volta, segurando a cabeça desmaiada de Solitaire em seu ombro, acima da superfície.
A primeira coisa que viu foram as águas revoltas do recife, a não mais de cinco metros de distância. Sem a sua proteção, ambos teriam sido esmagados pelo impacto da explosão. Ele sentiu o repuxo e o rodamoinho da correnteza em volta das pedras. Avançou desesperado em direção a ele, aspirando golfadas de ar sempre que possível. Seu peito ardia com o esforço e ele via o céu através de uma película vermelha. A corda o puxava para baixo e o cabelo da garota enchia sua boca, quase o sufocando.
De repente sentiu um arranhão agudo do coral contra a parte de trás das pernas. Chutou-as procurando desesperadamente um apoio para os pés, esfolando a pele a cada movimento.
Mal sentia dor.
Agora eram seus braços e suas costas que estavam sendo arranhados. Tropeçou, desajeitado, com os pulmões ardendo no peito. Em seguida sentiu uma camada de agulhas sob os pés. Arriou o peso nela, inclinando-se para trás para resistir à forte correnteza que procurava desalojá-lo. Seus pés resistiram e havia rocha às suas costas. Inclinou-se para trás, ofegante, com o sangue escorrendo em volta dele na água, segurando contra si o corpo frio da garota, que mal respirava.
Descansou por um minuto, com gratidão, olhos fechados e o sangue pulsando nas veias, tossindo dolorosamente, à espera de que seus sentidos se reanimassem. Seu primeiro pensamento foi em relação ao sangue na água à sua volta. Mas desconfiou de que os grandes peixes não se aventuravam até o recife. Aliás, não havia nada que ele pudesse fazer quanto a isso.
Em seguida, olhou para o mar.
Não havia sinal algum do Secatur.
No alto do céu tranquilo via-se um cogumelo de fumaça, que o vento Médico começava a arrastar em direção à terra.
Havia destroços espalhados sobre toda a extensão do mar e cabeças que subiam e desciam. A água estava toda coalhada com as barrigas brancas dos peixes atordoados ou mortos pela explosão. Um cheiro forte de explosivo pairava no ar. Na orla dos destroços a paravana vermelha jazia tranquila com o casco para baixo, ancorada pelo cabo cuja outra ponta deveria se encontrar em algum lugar no fundo. Colunas de bolhas emergiam na superfície vítrea do mar.
Na beira do círculo de peixes mortos e cabeças balouçantes, algumas barbatanas triangulares cortavam rápido o mar. Mais delas surgiram enquanto Bond observava. Em uma ocasião viu um grande focinho surgir da água e abocanhar alguma coisa. As barbatanas espirravam água ao chapinhar entre os escolhos. Dois braços negros se ergueram de repente no ar, desaparecendo em seguida. Ouviram-se gritos. Algumas pessoas davam braçadas agitadas no mar em direção ao recife. Alguém parou para bater na água diante dele com a mão espalmada. Depois as mãos desapareceram sob a superfície. Ouviram-se os gritos de quando seu corpo foi sacudido para lá e para cá dentro d’água. Uma barracuda o devorando, disse Bond consigo mesmo, atordoado.
Mais uma cabeça se aproximava, procurando chegar ao ponto do recife onde estava Bond, pequenas ondas quebrando sob suas axilas, e o cabelo preto da garota caído nas suas costas.
Era uma cabeça grande. Uma cortina de sangue escorria pelo seu rosto, de um ferimento no crânio imenso e calvo.
Bond observava a sua aproximação.
Big Man executava um nado de peito desajeitado, fazendo tanto espalhafato na água que era capaz de atrair qualquer peixe que já não estivesse ocupado.
Bond perguntou a si mesmo se ele conseguiria chegar. Seus olhos se estreitaram e sua respiração se acalmou, contemplando e esperando a decisão que o mar cruel tomaria.
A cabeça se aproximava. Bond podia ver os dentes à mostra em uma contração de agonia e de esforço titânico. O sangue tapava os olhos que Bond sabia estarem esbugalhados. Podia quase ouvir o grande coração doente batendo debaixo da pele preta acinzentada. Pararia antes que a isca fosse abocanhada?
Big Man continuava a vir. Os ombros estavam nus, as roupas haviam sido arrancadas pela explosão, imaginou Bond, porém, a gravata de seda preta resistira e aparecia em volta do pescoço grosso, arrastada atrás da cabeça como um rabicho de chinês.
Um borrifo de água limpou um pouco do sangue de seus olhos. Estavam arregalados, olhando desvairados para Bond. Neles não havia nenhuma súplica, somente o olhar fixo da exaustão física.
No instante mesmo em que Bond os contemplava, agora a apenas dez metros, fecharam-se de repente e o grande rosto se contorceu em uma careta de dor.
“Aarrh”, gritou a boca retorcida.
Os dois braços pararam de bater na água e a cabeça afundou e voltou à tona de novo. Uma nuvem de sangue escureceu o mar. Duas sombras esguias e marrons de três metros se afastaram da nuvem e, em seguida, voltaram rápido para ela. O corpo na água foi sacudido de lado. Metade do braço de Big Man surgiu à tona. Sem mão, sem pulso, nem relógio.
Mas a grande cabeça de nabo, a boca arreganhada cheia de dentes brancos que quase a dividiam ao meio, ainda estava viva. E agora berrava. Um grande berro gorgolejante que só dava quando alguma barracuda abocanhava seu corpo.
Ouviu-se um grito distante na baía, atrás de Bond. Mas ele não prestou atenção. Todos os seus sentidos estavam concentrados na cena horripilante no mar diante dele.
Uma barbatana rasgou a superfície a alguns metros de distância e parou.
Bond pôde ver o tubarão apontando o focinho como um cachorro, com os olhos míopes, rosados e redondos, tentando penetrar a nuvem de sangue e avaliar a presa. Então arremeteu contra o torso, e a cabeça que gritava afundou tão rápido quanto um peso de chumbo.
Algumas bolhas estouraram na superfície.
Houve um rodamoinho causado pela cauda manchada de marrom de um grande tubarão-leopardo, que recuou para engolir e para atacar de novo.
A cabeça voltou a flutuar. A boca estava fechada. Os olhos amarelos pareciam ainda se fixar em Bond.
O focinho do tubarão saiu da água e avançou para a cabeça, com a mandíbula inferior aberta e a luz brilhando em seus dentes. Houve um rangido horrível de osso triturado e um rodamoinho. Depois, o silêncio.
Os olhos dilatados de Bond continuaram a mirar a mancha marrom que cada vez mais se espalhava no mar.
A garota deu um gemido e Bond recuperou a lucidez.
Ouviu-se outro grito atrás dele e Bond virou a cabeça para a baía.
Era Quarrel, seu peito moreno e luzidio avultando sobre o casco esguio da canoa, com os braços trabalhando o remo, seguido, a uma longa distância, por todas as outras canoas da baía dos Tubarões deslizando sobre as pequenas ondas que haviam começado a encrespar a superfície.
Os ventos elísios do nordeste haviam começado a soprar e o sol brilhava na água azul e nos doces flancos verdes da Jamaica.
As primeiras lágrimas que brotaram dos olhos azuis-acinzentados de James Bond desde a sua infância escorreram pelo seu rosto contraído, caindo no mar manchado de sangue.
23.
LICENÇA PAIXÃO
Como dois pingentes de esmeralda, dois beija-flores faziam a última ronda pelos hibiscos. Um tordo começara sua cantoria vespertina, mais doce que a do rouxinol, em cima de um arbusto perfumado de jasmim da noite.
A sombra irregular de uma fragata deslizou por cima do gramado verde, enquanto planava nas correntes de ar que subiam a costa até alguma distante colônia, e o martim-pescador azul-acinzentado chilreou, irritado, ao ver o homem sentado em uma cadeira no jardim. Mudou a direção do voo e guinou, atravessando o mar, até a ilha. Uma borboleta sulfurina flertava entre as sombras roxas das palmeiras.
O mar de variados tons de azul da baía estava bastante calmo. Os penhascos da ilha eram de um rosa profundo, à luz do sol que se punha atrás da casa.
Havia um cheiro de entardecer e de frescor depois do calor do dia, e um leve perfume de farinha de mandioca torrada vindo das cabanas de pescadores, no povoado à direita, a distância.
Solitaire saiu da casa de pés descalços e atravessou o gramado. Carregava uma bandeja com uma coqueteleira e dois copos. Colocou-a na mesa de bambu ao lado da cadeira de Bond.
“Espero ter feito direito”, comentou. “Seis partes para uma parece terrivelmente forte. Nunca tomei martíni de vodca.”
Bond olhou para ela. Vestia um de seus pijamas brancos de seda. Eram demasiado grandes. Parecia absurdamente infantil.
Ela riu. “O que acha de meu batom de Port Maria?”, perguntou. “E as sobrancelhas delineadas com lápis HB? Não consegui fazer mais nada para me ajeitar, além de tomar banho.”
“Está uma maravilha”, disse Bond. “Você é de longe a garota mais bonita da baía dos Tubarões. Se eu tivesse pernas e braços, me levantaria para lhe dar um beijo.”
Solitaire se inclinou e lhe deu um longo beijo na boca, com o braço apertado em volta de seu pescoço. Levantou-se e afastou a mecha curva de cabelos sobre a testa dele.
Olharam um para o outro. Em seguida, ela virou para a mesa e lhe serviu um coquetel. Despejou meio copo para si e sentou no gramado quente, com a cabeça contra o joelho de Bond. Ele brincou com a mão direita entre os cabelos dela e ficaram um instante sentados, olhando o mar entre as palmeiras e a luz que declinava na ilha.
O dia fora dedicado a lamber as feridas e ajeitar o que sobrara da confusão.
Quando Quarrel desembarcara com eles na pequena praia de Beau Desert, Bond carregara Solitaire pelo gramado até o banheiro. Enchera a banheira de água quente. Sem que ela soubesse o que estava acontecendo, ele ensaboara e lavara todo seu corpo e seus cabelos. Depois de tirar todo o sal e musgo do coral, ajudou-a a sair, secou-a e botou mertiolato nos cortes de coral que marcavam suas costas e suas coxas. Depois lhe deu um comprimido para dormir e colocou-a nua entre os lençóis de sua própria cama. Beijou-a. Antes de fechar as venezianas, ela já dormia.
Entrou no banheiro e Strangways o ensaboou. Depois quase o banhou em mertiolato. Sangrava e estava esfolado em centenas de lugares, com o braço esquerdo dormente por causa da mordida da barracuda. Perdera um bocado de músculo do ombro. A ardência do mertiolato fez com que trincasse os dentes. Vestiu um roupão e Quarrel o levou ao hospital em Port Maria.
Antes de partir, tomou um café da manhã reforçado e fumou um bendito cigarro. Dormiu no carro, dormiu na mesa de operações e na cama onde finalmente o puseram, como uma massa de ataduras e esparadrapo cirúrgico.
Quarrel trouxe-o de volta no começo da tarde. A essa altura Strangways já agira de acordo com as instruções que Bond lhe dera. Mandaram um destacamento de polícia para a ilha da Surpresa. Os destroços do Secatur, a trinta e seis metros de profundidade, receberam uma boia de sinalização, que passou a ser patrulhada pela lancha da alfândega de Port Maria. O rebocador de salvamento e os mergulhadores estavam a caminho a partir de Kingston. Os repórteres da imprensa local tinham recebido uma breve declaração, e havia policiais em guarda na entrada de Beau Desert, para conter a avalanche de repórteres que chegariam à Jamaica, depois que toda a história corresse o mundo. Enquanto isso, um relatório completo fora enviado a M e a Washington, de modo que o bando de Big Man no Harlem e em St. Petersburg pudesse ser preso provisoriamente sob a acusação preventiva de contrabando de ouro.
Não houve sobreviventes do Secatur, mas os pescadores locais trouxeram quase uma tonelada de peixes mortos naquela manhã.
A Jamaica estava fervilhando de boatos. Fileiras de carros paravam, lado a lado, nos penhascos acima da baía e ao longo da praia embaixo. Espalhara-se a notícia do tesouro de Morgan, o Sanguinário, porém, o bando de tubarões e barracudas também o protegia. Por causa deles não havia nadador que arriscasse ir até a cena do naufrágio na calada da noite.
Veio um médico visitar Solitaire. Ele encontrou-a preocupada principalmente em arranjar roupas e o batom no tom certo. Strangways encomendara uma amostra completa deles de Kingston, que chegaria no dia seguinte. Por enquanto, ela fazia experiências com o conteúdo da valise de Bond e uma tigela de hibiscos.
Strangways voltou de Kingston após a saída de Bond do hospital. Trouxe um telegrama cifrado de M para Bond, no qual se lia:
SUPONHO REIVINDICOU TESOURO EM SEU NOME REPRESENTANDO UNIVERSAL EXPORT PONTO PROSSIGA IMEDIATAMENTE SALVAMENTO PONTO CONTRATEI ADVOGADO DEFENDER DIREITOS JUNTO TESOURO E MINISTÉRIO COLÔNIAS PONTO ENQUANTO ISSO PARABÉNS PONTO CONCEDIDA LICENÇA PAIXÃO QUINZE DIAS PONTO FINAL
“Suponho que ele queira dizer ‘compaixão’”, comentou Bond.
Strangways tinha um aspecto solene. “Acho que sim”, respondeu. “Fiz um relatório completo dos danos que você sofreu. E a garota também”, acrescentou.
“Hmm”, disse Bond. “As expressões cifradas geralmente são precisas. Mesmo assim.”
Strangways olhou propositalmente pela janela, reprimindo um sorriso.
“Bem típico da velha raposa, pensar primeiro no ouro”, comentou Bond. “Suponho que ele ache que conseguirá obter o que quer, descobrindo um modo de contornar a redução da verba secreta quando houver nova reunião do Parlamento para avaliá-la. Creio que passa metade de sua vida brigando com o Tesouro. Mesmo assim, está muito errado se pensa que conseguirá.”
“Dei entrada na sua reivindicação na sede do governo, assim que recebi a mensagem”, relatou Strangways. “Mas será difícil. A Coroa virá atrás do tesouro e a América entrará nisso de alguma forma, porque Big Man era cidadão americano. Vai dar pano pra manga.”
Haviam conversado mais um pouco e depois Strangways partira. Bond caminhara cheio de dores até o jardim, para se sentar um pouco ao sol, sozinho com seus pensamentos.
Recapitulou a série de riscos que correra na sua longa busca por Big Man e pelo tesouro fabuloso, revivendo os episódios em que enfrentara a morte cara a cara.
Agora terminara e ele estava sentado ao sol, entre as flores, com a recompensa aos seus pés e sua mão entre os longos cabelos pretos dela. Agarrou bem aquele instante e pensou nos catorze dias seguintes que lhes pertenceriam.
Ouviram-se um barulho de louça quebrada na cozinha, nos fundos da casa, e o som da voz de Quarrel praguejando contra alguém.
“Pobre Quarrel”, disse Solitaire. “Arranjou a melhor cozinheira do povoado e varreu os mercados atrás de surpresas para nós. Chegou a encontrar caranguejos negros, os primeiros da época. Depois passou a assar o pobrezinho de um leitão ainda mamando e a fazer uma salada de abacate, para terminar com goiabas e manjar de coco. E o Comandante Strangways deixou uma caixa do melhor champanhe da Jamaica. Já estou com água na boca. Mas não se esqueça de que deve ser segredo. Cheguei de surpresa na cozinha e ele quase fez a cozinheira chorar.”
“Virá com a gente na nossa licença paixão”, disse Bond. Contou-lhe sobre o telegrama de M. “Vamos para uma casa sobre estacas, com palmeiras e oito quilômetros de areia dourada. E você terá de cuidar de mim muito bem, porque não poderei fazer amor com um braço só.”
Havia uma sensualidade óbvia no olhar de Solitaire, quando ela o ergueu para ele, sorrindo inocentemente.
“E eu com as minhas costas?”, disse ela.
16.
O LADO JAMAICANO
Eram duas horas da madrugada. Bond tirou o carro de junto da amurada e atravessou a cidade até pegar a 4th Street, a rodovia para Tampa.
Seguiu despreocupado pelas quatro pistas cimentadas da rodovia, atravessando o infindável corredor polonês de motéis, campings e lojas de beira de estrada, que vendiam mobília de praia e gnomos de concreto.
Parou no Gulf Winds Bar and Snacks e pediu um Old Grandad duplo com gelo. Enquanto o barman o servia, foi ao banheiro se limpar. As ataduras na mão esquerda estavam cobertas de sujeira e a mão latejava dolorosamente. A tala quebrara na barriga do Ladrão. Não havia nada que ele pudesse fazer. Os olhos estavam vermelhos de tensão e falta de sono. Foi até o bar, bebeu o Bourbon e pediu outro. O barman parecia um desses universitários que custeavam as próprias férias trabalhando duro. Estava a fim de conversar, mas em Bond não restara nenhuma vontade de falar. Ficou sentado, olhando o copo, pensando em Leiter e no Ladrão, e ouvindo o grunhido repugnante do tubarão devorando a presa.
Pagou, saiu e atravessou de novo a Gandy Bridge, com o ar fresco da baía lhe batendo no rosto. No final da ponte, virou à esquerda em direção ao aeroporto e parou no primeiro motel que parecia aberto.
O casal de proprietários de meia-idade ouvia um programa cubano de rumbas na madrugada, com uma garrafa de Rye entre eles. Bond contou uma história sobre um pneu furado entre Sarasota e Silver Springs. Não estavam interessados. Queriam apenas os seus dez dólares. Bond levou o carro até o quarto 5, o sujeito abriu a porta e acendeu as luzes. Havia uma cama de casal, um banheiro com chuveiro e duas cadeiras. O branco e o azul davam o tom nas paredes. Parecia limpo e Bond colocou a sacola no chão com um sentimento de gratidão, ao se despedir do dia. Despiu-se, jogou as roupas sem dobrar em uma cadeira. Em seguida tomou uma rápida chuveirada, escovou os dentes, gargarejou com um dentifrício forte e entrou na cama.
Mergulhou logo em um sono tranquilo. Era a primeira noite, desde que chegara à América, em que não se sentia ameaçado por uma nova batalha contra o destino na manhã seguinte.
Acordou ao meio-dia e caminhou pela estrada até uma cafeteria, onde o cozinheiro lhe preparou no balcão um delicioso sanduíche de três andares, que ele comeu enquanto tomava café. Em seguida, voltou ao quarto e escreveu um relatório minucioso ao FBI em Tampa. Omitiu todas as referências ao ouro nos tanques de peixes venenosos, com medo de que Big Man encerrasse os negócios na Jamaica. Eles ainda precisavam ser investigados. Bond sabia que os danos que ele provocara na máquina de Big Man na América não mudavam nada o objetivo principal de sua missão — a descoberta da fonte do ouro, sua captura e a destruição, se possível, do próprio Mr. Big.
Foi de carro até o aeroporto e pegou o quadrimotor prateado, faltando apenas poucos minutos para a partida. Deixou o carro de Leiter no estacionamento, conforme dissera no seu relatório ao FBI. Pensou que fora algo desnecessário, quando avistou um sujeito vestindo uma capa esdrúxula, à toa em uma loja de lembranças. As capas de chuva pareciam ser praticamente o uniforme do FBI. Bond estava certo de que queriam ter certeza de que ele pegaria o avião. Ficariam satisfeitos de vê-lo pelas costas. Por onde passara na América, deixara um rastro de cadáveres. Antes de embarcar no avião, ligou para o hospital em St. Petersburg. Arrependeu-se. Leiter ainda estava inconsciente e não tinham prognósticos. Sim, ligariam de volta quando tivessem alguma notícia definitiva.
Eram cinco da tarde quando o avião circulou sobre Tampa Bay, rumo ao leste. O sol estava baixo no horizonte. Um grande jato vindo de Pensacola passou ventando, bem a bombordo, deixando quatro rastros de vapor pairando quase imóveis no ar parado. Em breve o voo de reconhecimento terminaria e ele voltaria para pousar na costa do Golfo, cheia de idosos com camisetas estampadas. Bond se alegrava de estar a caminho das doces encostas verdes do litoral da Jamaica, deixando para trás o grande e rijo continente de Eldollarado.
O avião avançava, atravessando a cintura da Flórida, os hectares de floresta e de mangue sem nenhum sinal de habitantes humanos, com suas luzes da asa piscando, verdes e vermelhas, na escuridão que chegava. Em breve sobrevoavam Miami e as monstruosas arapucas para otários da costa oriental, cujas artérias brilhavam, entupidas de néon. Longe, a bombordo, a rodovia estadual nº 1 sumia subindo o litoral, uma fita dourada de motéis, postos de gasolina e barracas de suco de frutas, passando por Palm Beach, Daytona e Jacksonville, a quatrocentos e cinquenta quilômetros. Bond pensou no café da manhã que tomara em Jacksonville, por volta de três dias antes, e em tudo o que acontecera depois. Dentro em breve, após uma curta parada em Nassau, sobrevoaria Cuba, talvez sobre o esconderijo em que Mr. Big ocultara Solitaire. Ela ouviria o barulho do avião e talvez sua intuição a fizesse olhar para cima e sentir, por um instante, que ele estava próximo.
Bond ficou pensando se jamais se encontrariam de novo para acabar o que haviam começado. Mas isso teria de vir mais tarde, quando seu trabalho estivesse terminado — o prêmio de um itinerário perigoso que começara três semanas antes, em meio ao nevoeiro de Londres.
Depois de um coquetel e um jantar cedo, chegaram a Nassau e passaram meia hora na ilha mais rica do mundo, aquela faixa arenosa onde milhões e milhões de libras esterlinas são enterradas com grande susto nas mesas de canastra, e onde bangalôs, cercados de uma parede fina de pinheiros e casuarinas, trocam de mãos por cinquenta mil libras.
Deixaram para trás a escala rápida na ilha de platina, e em breve sobrevoavam as madrepérolas cintilantes das luzes de Havana, tão diferentes, em seus modestos tons pastel, das berrantes cores primárias das cidades americanas à noite.
Voavam a cinco mil metros quando, logo depois de passar por Cuba, encontraram uma daquelas tempestades tropicais que de repente fazem com que as aeronaves se transformem, de confortáveis salas de estar, em armadilhas mortíferas sacolejantes. O grande avião cambaleou e deu um mergulho, com as hélices ora roncando no vácuo, ora mordendo com força os paredões compactos de ar. O cilindro esguio de metal estremecia e balançava. A louça se espatifava na copa, e a chuva forte martelava as vidraças.
Bond agarrou os braços da poltrona, provocando dor na mão esquerda, praguejando baixinho consigo mesmo.
Olhou para as prateleiras das revistas e pensou: não serão de muita utilidade quando o aço acusar fadiga, a cinco mil metros de altitude, nem a água de colônia no banheiro, as refeições personalizadas, o barbeador gratuito, a “orquídea para sua senhora” agora trêmula na geladeira. Muito menos os cintos de segurança e os coletes salva-vidas, com o apito que realmente apita, segundo a demonstração da aeromoça, nem a luz de resgate engraçadinha que emite um brilho vermelho.
Não. Quando as tensões se tornam excessivas no metal fatigado, quando o mecânico de manutenção que testa o equipamento de descongelamento está apaixonado e faz mal o serviço, lá em Londres, Idlewild, Gander, Montreal; quando essas ou muitas outras coisas acontecem, então a pequena sala aquecida, com hélices na frente, cai como uma pedra do céu, na terra ou no mar, mais pesada que o ar, falível, imprestável. E as quarenta pessoas mais pesadas que o ar, frágeis dentro da fragilidade do avião, desamparadas dentro do desamparo maior do avião, despencam com ele, abrindo pequenos buracos na terra, ou espirrando água no mar. De qualquer modo, é o destino, então por que se preocupar? As pessoas estão conectadas aos dedos descuidados do mecânico de manutenção em Nassau, do mesmo modo que estão conectadas ao homenzinho no sedã da família, que confunde o sinal verde com o vermelho e bate de frente, pela primeira e última vez, na pessoa que dirigia tranquilamente para casa depois de um programa clandestino. Não se pode fazer nada. Começamos a morrer desde o dia em que nascemos. A vida inteira é um jogo de cartas com a morte. Por isso tenha calma. Acenda um cigarro e seja grato por ainda estar vivo, enquanto traga a fumaça profundamente nos seus pulmões. Nosso destino já permitiu que percorrêssemos um longo caminho desde que abandonamos o útero da mãe e choramingamos ao contato com o ar frio do mundo. Talvez ele até permita que cheguemos à Jamaica esta noite. Não está escutando as vozes animadas da torre de controle que passaram o dia falando, tranquilas: “Pode pousar, BOAC. Pode pousar, Panam. Pode pousar, KLM”? Não as escuta também nos chamando: “Pode pousar, Transcarib. Pode pousar, Transcarib”? Não perca a fé no destino. Lembre aquele momento terrível em que enfrentou a morte diante da arma do Ladrão, na noite passada. Ainda está vivo, não está? Pronto, já não corremos mais perigo. Isso foi só para lembrar que ser rápido no gatilho não quer dizer que você seja realmente forte. Não se esqueça. Este pouso feliz no Aeroporto Palisadoes é cortesia de seu destino. Melhor agradecer a ele.
Bond desatou o cinto de segurança e limpou o suor do rosto.
Ao diabo com tudo isso, pensou, ao desembarcar da aeronave enorme e resistente.
Strangways, o chefe do serviço secreto do Caribe, veio encontrá-lo no aeroporto, e assim ele passou depressa pela alfândega, imigração e fiscalização financeira.
Eram quase onze horas de uma noite quente, tranquila. Ouvia-se o som agudo dos grilos nas fileiras de cactos de ambos os lados da estrada do aeroporto, e Bond absorvia com gratidão os ruídos e os cheiros tropicais, enquanto a caminhonete militar atravessava a periferia de Kingston, em direção aos contrafortes cintilantes e enluarados das Montanhas Azuis.
Conversaram em monossílabos até se instalarem na varanda aconchegante da bela casa branca de Strangways, em Junction Road, abaixo de Stony Hill.
Strangways serviu um uísque com soda reforçado para os dois e, em seguida, fez um relato conciso de todo o lado jamaicano do problema.
Era um sujeito esguio e bem-humorado de mais ou menos trinta e cinco anos, ex-tenente e comandante da Seção Especial da Reserva Voluntária da Marinha Real. Tinha uma venda negra sobre um olho e o tipo de beleza aquilina associada à ponte de comando dos destróieres. Mas debaixo do bronzeado havia um rosto marcado, e Bond percebeu, pelos gestos rápidos e frases entrecortadas, seu ânimo nervoso e tenso. Era certamente eficiente, tinha senso de humor e não demonstrava nenhum sinal de ciúme diante de alguém que viera da matriz para se meter em seu território. Bond sentiu que se dariam bem, antecipando com prazer essa parceria.
Eis a história que Strangways tinha para contar.
Sempre circularam boatos sobre a presença de um tesouro na ilha da Surpresa, e tudo que se sabia sobre Morgan, o Sanguinário, confirmava essa suspeita.
A pequena ilha ficava no centro exato da baía dos Tubarões, um pequeno porto no final da Junction Road, que corre pela cintura fina da Jamaica, de Kingston à costa norte.
O grande bucaneiro fizera da baía dos Tubarões seu quartel-general. Gostava de ter toda a largura da ilha de permeio entre ele e o governador em Port Royal, de modo que pudesse sair e entrar nas águas jamaicanas em total segredo. O governador também gostava desse arranjo. A Coroa queria que ele fechasse os olhos à pirataria de Morgan até que os espanhóis fossem expulsos do Caribe. Quando isso ocorreu, Morgan foi recompensado com um título de nobreza e o posto de governador da Jamaica. Até então, suas ações tinham de ser repudiadas para evitar uma guerra contra a Espanha, na Europa.
No entanto, durante o longo período antes que a raposa recebesse a chave do galinheiro, Morgan utilizou a baía dos Tubarões como porto de partida para suas investidas. Construiu três casas na propriedade vizinha, denominada Llanrumney, em homenagem ao seu local de nascimento no País de Gales. Essas casas se chamavam “Casa de Morgan”, “Casa do Médico” e “Casa da Dama”. Ainda hoje se descobrem moedas e fivelas em suas ruínas.
O ancoradouro de seus navios sempre foi a baía dos Tubarões, e os reparos nas embarcações eram feitos, a sotavento, na ilha da Surpresa, um pedaço de coral e calcário acidentado que surge do centro da baía, encimado por um platô cheio de mato de cerca de meio hectare.
Quando partiu para sempre da Jamaica, em 1683, foi como preso, para ser julgado por seus pares por menosprezo à Coroa. Seu tesouro foi abandonado em algum lugar na Jamaica e ele morreu na miséria, sem revelar seu paradeiro. Deve ter sido um vasto butim, fruto de incontáveis investidas contra Hispaniola, da captura de inúmeros navios que levavam tesouros para La Plata, do saque do Panamá e da pilhagem de Maracaibo. Mas sumiu sem deixar vestígios.
Sempre se pensou que o segredo jazia em algum lugar da ilha da Surpresa, mas duzentos anos de mergulhos e de escavações da parte dos caçadores de tesouros não revelaram nada. Então, disse Strangways, há apenas seis meses, duas coisas aconteceram em poucas semanas. Um jovem pescador desapareceu do povoado da baía dos Tubarões e nunca mais se soube dele, e um sindicato anônimo de Nova York adquiriu a ilha por mil libras do atual proprietário de Llanrumney, agora uma próspera propriedade de cultivo de banana e de criação de gado.
Poucas semanas depois da venda, o iate Secatur chegara à baía dos Tubarões e fundeara no antigo ponto de ancoragem de Morgan, a sotavento da ilha. Veio com uma tripulação exclusivamente negra. Puseram-se a trabalhar, cavando uma escada na face do rochedo, construindo no topo uma série de cabanas baixas de taipa, ao estilo jamaicano.
Pareciam estar perfeitamente aprovisionados e só compravam peixe fresco e água dos pescadores da baía.
Era um pessoal ordeiro e taciturno, que não dava trabalho. Explicaram à alfândega da vizinha Santa Maria, que os havia liberado, que estavam ali para pescar peixes tropicais, especialmente as variedades venenosas, e coletar conchas para a Ourobouros Inc, de St. Petersburg. Depois que se estabeleceram, compraram grandes quantidades deles dos pescadores da baía dos Tubarões, Port Maria e Oracabessa.
Durante uma semana realizaram explosões na ilha, dizendo que era para a escavação de um grande tanque de peixes.
O Secatur começou a fazer uma rota quinzenal para o Golfo do México, e observadores com binóculos confirmaram que, antes de zarpar, sempre embarcavam tanques portáteis de peixe. Meia dúzia de homens era deixada para trás. Quaisquer canoas que se aproximassem da ilha recebiam ameaças de um guarda, na base da escadaria no rochedo, que ficava o dia inteiro pescando em um molhe estreito onde o Secatur atracava, preso a duas âncoras no mar, bem abrigado dos ventos nordeste.
Jamais alguém conseguiu desembarcar na ilha de dia e, depois de duas tentativas trágicas, ninguém voltou a tentar um desembarque noturno.
A primeira tentativa foi a de um pescador local, instigado pelos boatos de um tesouro enterrado que nenhuma conversa sobre peixes tropicais podia abafar. Partiu a nado uma noite e seu corpo fora devolvido pelo mar, por cima do recife, no dia seguinte. Os tubarões e as barracudas só deixaram o torso e um pedaço da coxa.
Mais ou menos na hora em que ele deveria chegar à ilha, toda a aldeia da baía dos Tubarões foi acordada pelo batuque mais terrível. Parecia vir do interior da ilha. Reconheceram-no como um batuque do vodu. Começou tranquilo e foi em um crescendo trovejante. Depois baixou novamente e parou. Durou cerca de cinco minutos.
Desde aquele momento a ilha se tornou ju-ju, ou obeah, como se diz na Jamaica, e, mesmo à luz do dia, as canoas ficam a uma distância segura.
A essa altura, Strangways teve seu interesse despertado e fez um relatório completo a Londres. Desde 1950, a Jamaica se tornara um alvo estratégico importante, graças à exploração, pela Reynolds Metal e pela Kaiser Corporation, de enormes depósitos de bauxita encontrados na ilha. Na opinião de Strangways, as atividades na ilha da Surpresa bem poderiam estar ligadas à construção de uma base de submarinos de um só tripulante, prevendo uma situação de guerra, especialmente porque a baía dos Tubarões estava no âmbito da rota dos navios da Reynolds até o novo porto de embarque de bauxita de Ocho Ríos, alguns quilômetros costa abaixo.
Londres investigou, junto com Washington, com base no relatório, e veio à tona a informação de que o sindicato que comprara a ilha era inteiramente de propriedade de Mr. Big.
Isso há três meses. Strangways recebeu ordens de entrar na ilha de qualquer maneira e descobrir o que estava acontecendo. Montou uma operação e tanto. Alugou uma propriedade no braço ocidental da baía dos Tubarões, chamada Beau Desert, onde existem as ruínas de um dos famosos casarões jamaicanos do começo do século dezenove, e também uma casa de praia moderna bem em frente ao ancoradouro do Secatur na ilha da Surpresa.
Trouxe dois bons nadadores da base naval na Bermuda e organizou uma observação permanente da ilha através de binóculos diurnos e noturnos. Nada foi visto que parecesse suspeito e, em uma noite calma e escura, ele mandou os dois nadadores com ordens de fazer uma vistoria submarina das fundações da ilha.
Strangways contou o pavor que sentiu quando, uma hora depois de partirem a nado para atravessar os trezentos metros de mar, começou um terrível batuque em algum lugar dentro dos penhascos da ilha.
Naquela noite os dois não voltaram.
No dia seguinte, ambos apareceram na praia, em lugares diferentes da baía. Ou melhor, o que sobrou de seus corpos devorados pelos tubarões e barracudas.
Nesta altura da história de Strangways, Bond interrompeu-o.
“Um minuto só”, disse, “que história é essa de tubarões e barracudas? Geralmente eles não são agressivos nestas águas. Não existem muitos na Jamaica e raramente se alimentam de noite. Aliás, não creio que nenhum deles ataque seres humanos, a não ser que haja sangue na água. Podem dar uma mordida, uma vez ou outra, em algum pé branco, por curiosidade. Já houve notícias anteriores de comportamento assim na Jamaica?”
“Nunca houve outro caso, desde que uma garota teve o pé devorado em Kingston Harbour, em 1942”, disse Strangways. “Ela estava sendo rebocada por uma lancha, batendo os pés. Seus pés brancos devem ter parecido especialmente apetitosos. E, além disso, estavam viajando em uma velocidade que convidava ao ataque. Todo mundo concorda com sua teoria. E meus homens tinham arpões e facas. Achei que fizera de tudo para protegê-los. Foi algo medonho. Imagine só como me senti. Desde então não fizemos mais nada, exceto tentar legalizar o acesso à ilha através da Secretaria das Colônias e de Washington. Mas o proprietário é cidadão americano. Então o processo é penosamente lento, sobretudo porque não há nada contra essa gente. Parecem dispor de uma boa proteção em Washington e de alguns advogados muito bons em direito internacional. Estamos absolutamente emperrados. Londres me disse para esperar até que você viesse.” Strangways deu um gole no uísque e olhou para Bond com expectativa.
“Quais são os movimentos do Secatur?”, perguntou Bond.
“Ainda está em Cuba. Deve zarpar dentro de uma semana, de acordo com a CIA.”
“Quantas viagens fez?”
“Cerca de vinte.”
Bond multiplicou cento e cinquenta mil dólares por vinte. Se seus cálculos estivessem certos, Mr. Big já levara um milhão de libras em ouro da ilha.
“Fiz alguns arranjos provisórios para você”, disse Strangways. “Tem a casa em Beau Desert. Há um carro, Sunbeam Talbot, sedã. Pneus novos. Corre bem. Ideal para essas estradas. Arranjei um sujeito ótimo para ser seu faz-tudo. Um ilhéu das ilhas Cayman, chamado Quarrel. O melhor pescador e nadador do Caribe. Muito prestativo. Grande sujeito. E peguei emprestada a casa de repouso da West Indian Citrus Company na Baía Manatee. Fica na outra extremidade da ilha. Você podia descansar lá uma semana e se exercitar um pouco até a chegada do Secatur. Precisará estar em forma se quiser chegar à ilha da Surpresa, e acredito francamente que só isso nos dará a resposta. Tem mais alguma coisa que eu possa fazer? Estarei por aí, claro, mas preciso ficar em Kingston para manter a comunicação com Londres e Washington. Eles vão querer saber tudo que fizermos. Há mais alguma coisa que você gostaria que eu providenciasse?”
Bond estivera se decidindo.
“Sim”, respondeu. “Pode pedir a Londres que consiga junto ao Almirantado uma de suas roupas de mergulho, completa, com os cilindros de ar comprimido. E muitos sobressalentes. E um bom par de arpões. Os franceses, ‘Champion’, são os melhores. Uma boa lanterna subaquática. Uma faca de guerra dos comandos. Toda a informação que puderem arranjar no Museu de História Natural sobre tubarões e barracudas. E um pouco daquele repelente de tubarões que os americanos usaram no Pacífico. Peça à BOAC para trazer tudo pelo seu serviço direto.”
Bond fez uma pausa. “Ah, sim”, disse. “E uma daquelas coisas que nossos sabotadores costumavam usar contra os navios durante a guerra. Uma mina naval, com diversos detonadores.”
17.
O VENTO PAPA-DEFUNTO
Mamão com uma rodela de limão, um prato cheio de bananas avermelhadas, caimitos roxos, ovos mexidos com bacon, café Blue Mountain — o mais delicioso do mundo —, geleia de laranja jamaicana, quase preta, e geleia de goiaba.
Enquanto Bond, trajando shorts e sandálias, tomava café na varanda, contemplando o panorama ensolarado de Kingston e Port Royal, pensou que tinha sorte pela existência de momentos tão magníficos a compensar o perigo e o ambiente sombrio de sua profissão.
Bond conhecia bem a Jamaica. Estivera no país durante uma longa missão logo após a guerra, quando o quartel-general comunista em Cuba procurava infiltrar os sindicatos jamaicanos. Tinha sido um serviço malresolvido e inconcluso, mas ele aprendera a amar a grande ilha verde e seu povo alegre e leal. Agora estava contente por ter retornado e pela semana inteira de folga antes de recomeçar o trabalho duro.
Depois do café da manhã, Strangways surgiu na varanda com um sujeito alto de pele morena, trajando uma camisa azul desbotada e velhas calças de sarja marrons.
Era Quarrel, o ilhéu das ilhas Cayman, com quem Bond logo simpatizou. Tinha sangue dos soldados de Cromwell e de bucaneiros. Seu rosto era forte e anguloso, com uma boca quase severa e olhos cinzentos. Apenas o nariz achatado e as palmas das mãos descoradas eram negroides.
Bond apertou sua mão.
“Bom dia, capitão”, falou Quarrel. Vindo da raça de pescadores mais famosa do mundo, esse era o tratamento mais honroso que ele podia merecer. Mas não havia nenhum desejo de agradar, ou humildade, na sua voz. Falava como marujo, de maneira direta e franca.
Esse momento definiu o relacionamento deles. Parecia a relação entre um senhor de terras escocês e seu caçador-chefe; o reconhecimento subentendido da autoridade, sem espaço para qualquer servilismo.
Depois de discutirem seus planos, Bond pegou o volante do pequeno carro que Quarrel trouxera de Kingston e tomaram a Junction Road, deixando Strangways ocupado com os pedidos de Bond.
Partiram antes das nove e ainda estava fresco quando atravessaram as montanhas que se estendem pelo dorso da Jamaica como a parte dentada da couraça do crocodilo. A estrada descia serpenteando em direção às planícies do norte, através de um dos cenários mais bonitos do mundo, em que a vegetação tropical se modificava com a mudança de altitude. Os flancos verdes das serras, emplumados de bambus intercalados com o verde escuro e brilhoso da fruta-pão e a súbita explosão colorida do flamboyant, cediam lugar, mais para baixo, à floresta de ébano, mogno, hibiscos e pau-campeche. Quando chegaram às várzeas do vale de Agualta, o mar verde dos bananais e canaviais se espraiava até onde a orla afastada dos bosques de palmeiras brotava cintilante ao longo da costa norte.
Quarrel foi boa companhia no passeio e um guia maravilhoso. Falou sobre as aranhas que faziam suas casas na terra, encimadas por pequenos alçapões perfeitos, ao passarem pelos famosos jardins de palmeiras de Castleton. Contou que assistira a uma briga entre uma centopeia gigante e um escorpião e explicou a diferença entre o mamão-macho e o mamão-fêmea. Descreveu os venenos da mata e as propriedades medicinais das ervas tropicais, a pressão exercida pela noz para romper o coco, o comprimento da língua do beija-flor, a maneira como os crocodilos carregam os filhotes na boca, ao comprido, como sardinhas em lata.
Falava em termos precisos, mas sem conhecimento técnico, empregando o linguajar jamaicano em que as plantas são humanizadas, “se esforçam”, “desanimam”, “mariposas” são “morcegos” e “amar” é sempre usado no lugar de “gostar”. Enquanto falava, levantava a mão em um gesto de saudação para as pessoas na estrada, que também gesticulavam e gritavam seu nome.
“Você parece conhecer gente à beça”, comentou Bond, quando o motorista de um ônibus apinhado, com a palavra ROMANCE escrita em grandes letras em cima do para-brisa, saudou-o com dois toques de sua buzina de ar comprimido.
“Faz três meses que ando observando a ilha da Surpresa, capitão”, disse Quarrel, “e passando por esta estrada duas vezes por semana. Todo mundo fica logo conhecido na Jamaica. O pessoal tem vista boa.”
Às dez e meia já tinham passado Port Maria e enveredado por uma pequena estrada vicinal que levava à baía dos Tubarões. Ao fazer uma curva, se depararam com ela embaixo, e Bond parou o carro e saíram.
A baía tinha a forma de um crescente e talvez uns mil e duzentos metros de largura entre um pontal e outro. Sua superfície azul estava encrespada pela leve brisa que soprava do nordeste, vizinha dos ventos alísios que nasciam a oitocentos quilômetros, no Golfo do México, e de lá partiam para sua longa viagem em volta do mundo.
A um quilômetro e meio de onde estavam, uma longa arrebentação sinalizava o recife fora da baía e o estreito de águas calmas que era a única entrada para o ancoradouro. No meio do crescente, a ilha da Surpresa assomava com seus trinta e poucos metros acima do mar, orlada no seu lado leste pela espuma das pequenas ondas que quebravam, e por águas calmas a sotavento.
Era quase redonda, parecendo um bolo alto e cinzento encimado por uma camada verde de açúcar glacê, tudo sobre um prato de porcelana azul.
Haviam parado a cerca de trinta metros do pequeno amontoado de cabanas de pescadores, atrás da praia orlada de coqueiros, e estavam no mesmo nível que o topo plano e verde da ilha, a quatrocentos metros de distância. Quarrel mostrou os telhados de palha das cabanas de taipa no meio das árvores, no centro da ilha. Bond examinou-as através dos binóculos de Quarrel. Não havia nenhum sinal de vida, exceto por um magro fiapo de fumaça levado pela brisa.
Abaixo deles, a água da baía era verde-clara perto da areia branca. Em seguida, se aprofundava e ficava azul-escura antes do marrom intercalado da borda submersa de um recife interno, que formava um largo semicírculo a cem metros da ilha. Depois tornava-se novamente azul, com manchas de azul mais claro e verde-mar. Quarrel informou que a profundidade do ancoradouro do Secatur era de aproximadamente dez metros.
À esquerda, no meio do braço ocidental da baía, escondida entre as árvores e atrás de uma minúscula praia de areia branca, ficava sua base de operações, Beau Desert. Quarrel descreveu a disposição da casa e Bond permaneceu dez minutos examinando os trezentos metros de distância entre ela e o ancoradouro do Secatur, junto à ilha.
Ao todo, Bond passou uma hora fazendo o reconhecimento do local e depois, sem se aproximar da casa ou do povoado, viraram o carro e voltaram para a estrada principal ao longo da costa.
Seguiram de carro através do belo e pequeno porto de embarque de bananas de Oracabessa e de Ocho Ríos, com sua nova e enorme usina de extração de bauxita, seguindo a costa norte até a baía de Montego, a duas horas de distância. Era fevereiro, no auge da estação. A pequena aldeia e os grandes hotéis esparsos estavam mergulhados na corrida de ouro de quatro meses que os sustentava pelo resto do ano. Pararam em uma pousada do outro lado da ampla baía, onde almoçaram, para, em seguida, prosseguirem no calor da tarde até a ponta ocidental da ilha, depois de mais duas horas de viagem.
Ali, graças à presença dos enormes mangues costeiros, nada acontecera desde que Colombo usara a baía de Manatee como um ancoradouro ocasional. Os pescadores jamaicanos haviam tomado o local dos índios Arawak, mas, exceto isso, tinha-se a impressão de que o tempo havia parado.
Bond achou-a a praia mais bonita que já havia visto, oito quilômetros de areia branca descendo suavemente até as ondas e, atrás, a marcha desordenada, porém graciosa, das palmeiras rumo ao horizonte. Debaixo delas, as canoas cinza descansavam fora da água, ao lado de monturos rosados de conchas descartadas. Do meio do palmeiral subia a fumaça das palhoças dos pescadores, na sombra entre o mangue e o mar.
Em uma clareira entre as palhoças, construída sobre estacas em um gramado malcuidado de grama das Bahamas, ficava a casa de fim de semana dos trabalhadores da West Indian Citrus Company. Fora construída sobre estacas para evitar os cupins e era cuidadosamente telada contra mosquitos e borrachudos. Bond saiu da estrada irregular e estacionou sob a casa. Enquanto Quarrel escolhia e arrumava dois quartos, Bond enrolou uma toalha na cintura e caminhou entre as palmeiras até o mar, a vinte metros de distância.
Nadou e boiou preguiçosamente durante uma hora na água quente em que flutuava sem dificuldade, pensando na ilha da Surpresa e em seu segredo, fixando na mente aqueles trezentos metros, pensando nos tubarões e barracudas e demais perigos do mar, essa grande biblioteca cheia de livros que ainda não conseguimos ler.
Ao caminhar de volta para o pequeno chalé de madeira, Bond levou suas primeiras picadas de mosquito pólvora. Quarrel deu uma risada ao ver as mordidas empoladas nas suas costas, que em breve coçariam como o diabo.
“Não se pode fazer nada para nos livrar deles, capitão”, observou. “Mas posso parar essa coceira. Melhor tomar uma chuveirada, primeiro, para tirar o sal. Eles só mordem mesmo durante uma hora, ao entardecer, e gostam de sal no jantar.”
Quando Bond saiu do chuveiro, Quarrel apareceu com uma velha garrafa de remédio e passou um líquido marrom, que cheirava a creolina, nas mordidas.
“A gente tem mais mosquitos pólvora e borrachudos nas ilhas Cayman do que em qualquer outro lugar do mundo”, falou, “mas não nos incomodam desde que tenhamos este remédio”.
Os dez minutos de crepúsculo tropical trouxeram sua breve melancolia. Depois as estrelas e a lua em quarto crescente começaram a brilhar, e o mar se reduziu a um sussurro. Houve uma curta calmaria entre os dois grandes ventos da Jamaica e, em seguida, as palmeiras voltaram a murmurar.
Quarrel fez um gesto da cabeça em direção à janela.
“O vento Papa-Defunto”, comentou.
“Como assim?”, perguntou Bond, espantado.
“Vento terral, como dizem os marinheiros”, acrescentou Quarrel. “O Papa-Defunto sopra, expulsando o ar ruim da ilha durante a noite, das seis às seis da manhã. Em seguida, o ‘vento Médico’ chega, soprando o ar fresco do mar para a ilha. Pelo menos é assim que os chamamos na Jamaica.”
Quarrel olhou perplexo para Bond.
“Acho que Papa-Defunto e você têm praticamente a mesma tarefa, capitão”, comentou, meio brincando.
Bond deu uma breve risada. “Ainda bem que não preciso respeitar o mesmo horário”, respondeu.
Lá fora os grilos e as pererecas começaram a ciciar e coaxar, e as grandes mariposas forçavam as telas das janelas, onde se agarravam, olhando, em um êxtase agoniado, para as duas lamparinas a óleo penduradas em duas travessas dentro de casa.
Uma vez ou outra dois pescadores, ou um grupo de garotas aos risinhos, iam andando até a praia a caminho do único e pequeno bar na ponta da baía. Ninguém andava sozinho, com medo dos lobisomens sob as árvores, ou do garrote rolador, animal terrível que vinha de encontro às pessoas rolando pelo chão, com as pernas presas por correntes e botando fogo pelas ventas.
Enquanto Quarrel preparava uma refeição suculenta de peixe, ovos e legumes que haveria de se tornar a dieta regular de ambos, Bond sentou-se sob a luz e debruçou-se sobre os livros que Strangways pegara emprestado do Instituto Jamaicano. Livros sobre o mar tropical e seus habitantes, por Beebe e Allyn, e outros, sobre caça submarina, de Cousteau e Hass. Quando partisse para atravessar aqueles trezentos metros de mar, estava determinado a fazê-lo com todo o conhecimento possível, sem confiar no acaso. Conhecia a capacidade de Mr. Big e apostava que as defesas da ilha da Surpresa seriam tecnicamente brilhantes. Achou que não se resumiriam a explosivos e armas. Mr. Big precisava trabalhar sem ser incomodado pela polícia. Precisava permanecer fora do alcance da lei. Bond supunha que as forças do mar haviam sido, de certo modo, domesticadas para fazer o trabalho de Mr. Big, e era sobre essas que Bond se concentrava: o assassinato por meio de tubarões e barracudas, talvez polvos e jamantas.
Os fatos expostos pelos naturalistas eram medonhos e horripilantes, mas as experiências de Cousteau no Mediterrâneo e de Hass, no mar Vermelho, eram mais animadoras.
Naquela noite Bond teve muitos sonhos de encontros aterrorizantes com polvos gigantescos e raias-lixas, tubarões cabeça de martelo e barracudas de dentes serrilhados, de modo que gemeu e suou durante o sono.
No dia seguinte começou a se exercitar, sob o olhar crítico de Quarrel. Toda manhã nadava mil e seiscentos metros na praia antes do café da manhã e corria pela areia firme até o chalé. Lá pelas nove partiam em uma canoa, cuja única vela triangular os transportava rápido até a baía Sangrenta e Orange Bay, onde a areia termina em penhascos e pequenas cavernas, e o recife se aproxima da costa.
Ali deixavam a canoa na praia e Quarrel o levava, com fisgas, máscaras e um velho arpão submarino, em expedições de tirar o fôlego, no tipo de mar que ele encontraria na baía dos Tubarões.
Pescavam em silêncio, separados por poucos metros, com Quarrel se movendo com facilidade em um elemento no qual quase se sentia em casa.
Não demorou para que Bond aprendesse a não lutar contra o mar, e sim ceder e aproveitar as correntes e os rodamoinhos, usando táticas de judô dentro d’água.
No primeiro dia chegou em casa cortado e envenenado pelo coral e com uma dúzia de espinhos de ouriço espetados em seu flanco. Quarrel sorriu e tratou as feridas com mertiolato e Milton. Depois, como fazia toda noite, massageou Bond por meia hora com óleo de coco, enquanto ia falando em voz baixa sobre os peixes que haviam encontrado naquele dia, explicando os hábitos dos carnívoros e não carnívoros, a camuflagem dos peixes e seu modo de mudar de cor através da corrente sanguínea.
Ele também jamais ouvira falar de peixe algum que atacasse o homem, a não ser em desespero ou porque havia sangue na água. Explicou que os peixes raramente passam fome nas águas tropicais e que a maioria de suas armas é defensiva, e não ofensiva. A única exceção, admitia, era a barracuda. “Peixes maus”, conforme dizia, que não conheciam o medo, já que não possuíam outro inimigo que não a doença, capazes de atingir oitenta quilômetros por hora em distâncias curtas, e donos dos dentes mais perigosos do que os de qualquer outro peixe de mar.
Um dia alvejaram uma de dez quilos que nadava em volta deles, sumindo na distância cinzenta e depois reaparecendo, silenciosa, imóvel, quase em cima da água, com seus olhos zangados de tigre fitando-os de muito perto, de modo que podiam ver o lento funcionamento de suas guelras e os dentes brilhando, como as presas de um lobo, ao longo da queixada cruel e prognata.
Quarrel finalmente pegou o arpão de Bond e alvejou-a gravemente, atravessando sua barriga aerodinâmica. Ela veio diretamente em cima deles, com as mandíbulas escancaradas, como uma cascavel pronta para o bote. Bond deu uma fisgada desajeitada quando ela investia contra Quarrel. Errou, mas o arpão entrou pelas suas mandíbulas. Elas se fecharam imediatamente sobre o espeto de aço, e quando o peixe arrancou a fisga da mão de Bond, Quarrel apunhalou-a com a faca e ela enlouqueceu, correndo dentro d’água com as entranhas à mostra, a fisga presa entre os dentes e o arpão pendente do corpo. Quarrel mal podia segurar a linha enquanto o peixe procurava retirar a ponta que lhe atravessava a barriga. Mas seguiu-o nadando em direção a um recife submerso, no qual subiu, puxando lentamente o peixe.
Depois que Quarrel cortou as guelras e retirou a fisga de suas mandíbulas, encontraram as marcas profundas dos dentes no aço.
Levaram o peixe para a praia, Quarrel cortou sua cabeça e abriu a bocarra com um pedaço de pau. A mandíbula superior se erguia quase em ângulo reto em relação à inferior, revelando fantásticas fileiras de dentes, tão abundantes que se sobrepunham como telhas no telhado. Até mesmo a língua tinha várias fileiras de pequenos dentes afiados e curvos e, na frente, duas presas enormes, que se projetavam para a frente como as de uma serpente.
Embora só pesasse pouco mais que cinco quilos, passava de um metro e trinta centímetros, uma bala niquelada só de músculo e tecido firme.
“Não vamos matar mais barracudas”, comentou Quarrel. “Mas se não fosse por você eu teria que passar um mês no hospital e talvez perder meu rosto. Foi uma tolice minha. Se a gente tivesse nadado em sua direção, ela teria fugido. Sempre fazem isso. São covardes como todos os peixes. Não se preocupe com esses aqui”, apontou para os dentes, “jamais tornará a vê-los”.
“Espero que não”, desabafou Bond. “Não tenho rosto sobressalente.”
No fim de uma semana Bond estava bronzeado e rijo. Cortara os cigarros para dez por dia e não tomara sequer um drinque. Conseguia nadar três quilômetros sem cansar, a mão estava completamente sarada e ele havia eliminado todas as sequelas da vida urbana.
Quarrel se alegrou. “Você está pronto para a ilha da Surpresa, capitão”, disse, “e eu não gostaria de ser o peixe que tentasse devorá-lo”.
Ao entardecer do oitavo dia, voltaram para a casa de descanso e encontraram Strangways à espera deles.
“Tenho boas notícias para lhe dar”, disse. “Seu amigo Felix Leiter vai ficar bom. Apesar de tudo, não morrerá. Precisaram amputar o resto de um braço e de uma perna. Os cirurgiões plásticos começaram agora a reconstruir o rosto. Ligaram para mim ontem de St. Petersburg. Parece que ele insistiu em lhe mandar um recado. Foi a primeira coisa que lhe veio à cabeça quando voltou a si. Disse que sente muito não poder estar aqui e para você não molhar os pés — ou pelo menos não molhá-los tanto como ele.”
O coração de Bond ficou apertado. Olhou pela janela. “Diga a ele para se restabelecer logo”, disse abruptamente. “E também que sinto a sua falta.” Voltou os olhos para a sala. “E quanto ao equipamento? Tudo bem?”
“Está tudo aqui”, respondeu Strangways, “e o Secatur zarpa amanhã para a ilha da Surpresa. Depois de passar pela alfândega em Port Maria, devem lançar âncora antes do anoitecer. Mr. Big está a bordo — é só a segunda vez que veio aqui. Ah, e trouxe uma mulher. Uma garota chamada Solitaire, de acordo com a CIA. Sabe alguma coisa sobre ela?”
“Não muito”, respondeu Bond. “Mas gostaria de tirá-la dele. Ela não pertence ao seu time.”
“Uma espécie de donzela em apuros”, disse o romântico Strangways. “Pois é. De acordo com a CIA, ela é uma graça.”
Mas Bond fora para a varanda e olhava as estrelas. Jamais tivera de brigar por um cacife tão alto na vida. O segredo do tesouro, a derrota de um grande criminoso, o esmagamento de um círculo de espionagem comunista e a destruição de um tentáculo da SMERSH, a cruel engrenagem que constituía seu próprio alvo particular. E agora Solitaire, a maior das recompensas pessoais.
As estrelas piscavam no seu Morse cifrado e ele não possuía chave alguma para decifrar o seu código.
18.
BEAU DESERT
Strangways voltou sozinho depois do jantar e Bond decidiu que eles partiriam ao amanhecer. O inglês deixou uma nova pilha de livros e panfletos sobre tubarões e barracudas, que Bond estudou com grande atenção.
Pouco acrescentou ao conhecimento prático que aprendera com Quarrel. Os autores eram todos cientistas e grande parte dos dados era sobre ataques ocorridos nas praias do Pacífico, onde qualquer corpo que brilhasse na arrebentação pesada excitaria a curiosidade dos peixes.
Mas parecia haver uma concordância geral que o perigo para os mergulhadores submarinos com aqualungs era muito menor do que para os nadadores de superfície. Estes podiam ser atacados por qualquer representante da família dos tubarões, especialmente quando o tubarão era estimulado e excitado pela presença de sangue no mar, pelo cheiro da vítima ou pela vibração sensorial causada por alguém ferido na água. Mas às vezes podiam ser espantados, segundo a literatura, por barulhos altos dentro d’água — até mesmo por gritos sob a superfície, e muitas vezes fugiam quando perseguidos pelo nadador.
A fórmula mais bem-sucedida de repelente de tubarões era, segundo os testes dos laboratórios de pesquisa naval da marinha americana, uma combinação de acetato de cobre e um corante preto chamado nigrosina, que vinha sendo adicionada, sob a forma de pelotas, aos coletes salva-vidas de todas as forças armadas dos Estados Unidos.
Bond chamou Quarrel. O ilhéu de Cayman não acreditara, até que Bond lesse para ele o que o Departamento Naval tinha a dizer sobre suas pesquisas, no final da guerra, sobre os bandos de tubarões estimulados por uma situação descrita como “condições exacerbadas de comportamento grupal”: “... os tubarões eram atraídos para a popa do barco de pesca de camarões, com refugo de peixes”, leu Bond. “Os tubarões apareceram sob a forma de um cardume exasperado, espadanante. Preparamos uma tina com peixes frescos, e outra com peixes misturados ao pó repelente. Aproximamo-nos do cardume e o fotógrafo começou a rodar a câmera. Despejei os peixes frescos por trinta segundos, repetindo três vezes esse procedimento. Da primeira vez os tubarões demonstraram grande ferocidade ao se alimentar dos peixes frescos bem na popa do barco. Mas ficaram devorando-os só durante cinco segundos depois que o pó repelente foi jogado ao mar. Uns poucos voltaram depois que jogamos peixe fresco imediatamente após o repelente. Em uma segunda tentativa, trinta minutos depois, um cardume feroz se alimentou durante os trinta segundos em que lhe fornecemos peixe fresco, mas se afastou assim que o repelente foi jogado na água. Na terceira tentativa, só conseguimos atrair os tubarões até uma distância de vinte metros da popa do barco.”
“O que acha disso?”, perguntou Bond.
“É melhor arranjar um pouco desse negócio”, respondeu Quarrel a contragosto, mas impressionado.
Bond estava disposto a concordar. Washington havia mandado mensagem de que as pelotas do material estavam a caminho. Mas ainda não tinham chegado e não eram esperadas antes de quarenta e oito horas. Se o repelente não chegasse, não seria problema para Bond. Não imaginava encontrar condições tão perigosas no seu percurso submarino até a ilha.
Antes de ir para a cama, chegara à conclusão de que nada o atacaria se não houvesse sangue na água, ou se ele não parecesse amedrontado diante da ameaça de algum peixe. Quanto aos polvos, peixes-escorpião e moreias, simplesmente precisava tomar cuidado onde punha os pés. Para ele, os espinhos de sete centímetros do ouriço eram o maior perigo para as atividades submarinas nos trópicos, mas a dor que causavam não bastaria para interferir em seus planos.
Partiram antes das seis da manhã e chegaram a Beau Desert às dez e meia.
A propriedade era uma bela plantação antiga de cerca de quatrocentos hectares, com as ruínas da bela casa grande dominando a baía. Era dedicada ao cultivo de pimentões e cítricos, e cercada de madeiras de lei e palmeiras, e sua história remontava à época de Cromwell. O nome romântico estava em moda no século dezoito, quando as propriedades jamaicanas se chamavam Bellair, Bellevue, Boscobel, Harmony, Nymphenburg, ou eram batizadas de Panorama, Satisfação, Repouso.
Uma trilha entre as árvores, que não era visível da ilha na baía, levava à pequena casa de praia. Depois dos piqueniques semanais na baía de Manatee, os banheiros e a mobília confortável de bambu pareciam um luxo, e os tapetes de cores vivas pareciam de veludo sob os pés calejados de Bond.
Pelas rótulas das janelas Bond contemplou o pequeno jardim flamejante de hibiscos, buganvílias e roseiras, que acabava no minúsculo crescente de areia branca, meio tapado pelos troncos das palmeiras. Sentou-se no braço de uma poltrona e deixou que seu olhar passeasse, palmo a palmo, pelos diferentes azuis e marrons do mar e dos recifes, até morrer na base da ilha. A metade superior estava obscurecida pelos leques das plumas das palmeiras em primeiro plano, mas o pedaço de penhasco vertical dentro de seu campo de visão parecia cinzento e formidável na meia sombra projetada pelo sol forte.
Quarrel preparou o almoço em um fogareiro a álcool, de modo que nenhuma fumaça os denunciasse, e de tarde Bond fez uma sesta e depois examinou o equipamento enviado de Londres e trazido de Kingston por Strangways. Experimentou a roupa de mergulho de borracha fina que o cobria, desde a máscara apertada na cabeça com o óculo de vidro temperado, até as longas nadadeiras em seus pés. Tudo cabia como uma luva, e Bond louvou a eficiência do setor “Q” de M.
Testaram os cilindros duplos de mil litros de ar natural comprimido a duzentas atmosferas, e Bond achou fácil o funcionamento das válvulas de distribuição de ar e de reserva, à prova de acidentes. Na profundidade em que agiria, aquele volume dava para durar quase duas horas.
Havia uma nova espingarda submarina potente, marca Champion, e uma faca projetada pela Wilkinson para os comandos durante a guerra. Finalmente, em uma caixa coberta de avisos de perigo, estava a pesada mina naval, um cone de fundo achatado, repleto de explosivos, montado sobre uma base cheia de largas saliências de cobre, tão imantadas que a mina grudava como um marisco em qualquer casco metálico. Havia uma dúzia de detonadores de metal e de vidro, parecidos com lápis, com temporizadores que iam de dez minutos até oito horas, e um meticuloso livrinho de instruções, tão simples quanto o próprio equipamento. Havia até uma caixa de cápsulas de benzedrina para dar resistência e aguçar a percepção de Bond durante a tarefa, e várias lanternas submarinas, inclusive uma que projetava apenas um feixe da largura de um lápis.
Bond e Quarrel testaram tudo, acoplamentos, contatos, até se darem por satisfeitos e concluírem que não restava mais nada a ser feito. Em seguida, Bond desceu até o meio das árvores e observou as águas da baía, calculando as profundidades, traçando rotas para percorrer a passagem pelo recife e prevendo a trajetória da lua, que seria sua única referência no decorrer da tortuosa travessia.
Às cinco horas chegou Strangways com notícias do Secatur.
“Passaram por Port Maria”, informou. “Chegarão aqui dentro de dez minutos, no máximo. Mr. Big tem um passaporte com o nome de Gallia e a garota com o nome de Latrelle. Ela está na sua cabine, mareada, segundo o capitão negro do Secatur. É possível. Há uma porção de tanques de peixe a bordo. Mais de cem. Exceto isso, nada que levantasse suspeita, e foram liberados. Eu queria ir a bordo como parte da turma da alfândega, mas achei melhor deixar que o espetáculo se desenrolasse de modo absolutamente normal. Mr. Big permaneceu na sua cabine. Estava lendo quando foram verificar seus documentos. Como está o equipamento?”
“Perfeito”, respondeu Bond. “Acho que agiremos amanhã à noite. Espero que haja um pouco de vento. Se descobrirem as bolhas de ar, estaremos em apuros.”
Quarrel entrou, avisando: “O iate está passando pelo recife agora, capitão.”
Foram até a máxima distância que podiam arriscar ir, na praia, e assestaram os seus binóculos na direção do barco.
Era uma bela embarcação, negra, com uma superestrutura cinza, setenta pés de comprimento e construída em função da velocidade — de pelo menos vinte nós, imaginou Bond. Conhecia sua história. Havia sido construída para um milionário em 1947, era movida por dois motores a diesel da General Motors, tinha casco de aço e todas as geringonças de comunicação de último tipo, inclusive telefone do barco para a terra e um navegador Decca. Trazia hasteados um pavilhão vermelho nos vaus dos joanetes e a bandeira americana à popa, e progredia a três nós através da abertura de sete metros no recife.
Virou abruptamente, depois de romper a passagem, e rumou para a parte da ilha a bombordo. Ao mesmo tempo, três negros em calças brancas de brim desceram correndo a escada íngreme até o molhe estreito e se posicionaram para amarrar as guias. Foram necessárias poucas manobras para prendê-las, diante dos observadores em terra firme, e as duas âncoras foram arriadas ruidosamente, entre as pedras e o coral na areia do fundo, junto à base da ilha. O barco estava bem protegido, até mesmo do vento norte. Bond calculou uma profundidade de sete metros sob a sua quilha.
Enquanto observavam, a enorme figura de Mr. Big surgiu no convés. Desembarcou no molhe e começou a subir lentamente a escadaria a prumo. Parou várias vezes, e Bond pensou na dificuldade que seu coração avariado teria para bombear o sangue naquele corpanzil preto acinzentado.
Seguiam-no dois tripulantes negros carregando uma maca leve, levando um corpo humano amarrado. Pelos binóculos, Bond reconheceu os cabelos negros de Solitaire. Ficou perplexo e preocupado, sentiu um aperto no coração diante daquela proximidade. Rezou para que a maca fosse apenas uma precaução para evitar que Solitaire fosse reconhecida da costa.
Em seguida, formou-se uma fila de doze homens na escadaria e os tanques de peixe foram sendo passados de um para outro. Quarrel contou cento e vinte.
Depois, alguns gêneros foram levados para cima da mesma maneira.
“Não está trazendo muita coisa desta vez”, comentou Strangways, depois da operação terminada. “Somente uma dúzia de caixotes. Geralmente são cinquenta. Não deve ficar muito tempo.”
Mal acabara de falar quando um tanque de peixe, que seus binóculos mostravam estar meio cheio de água e areia, desceu cuidadosamente de volta ao barco, por meio daquela escada feita de mãos. Em seguida outro, e mais outro, a intervalos de cinco minutos.
“Meu Deus”, exclamou Strangways. “Já estão carregando o barco. O que significa que deverão zarpar pela manhã. Será que resolveram liquidar as operações na ilha e este será seu último carregamento?”
Bond observou com cuidado e depois subiram em silêncio através do arvoredo, deixando Quarrel atrás para se manter a par dos acontecimentos.
Sentaram-se na sala, e enquanto Strangways preparava um uísque com soda para ele mesmo, Bond olhava pela janela e organizava seus pensamentos.
Eram seis horas e os vagalumes começaram a aparecer na penumbra. A lua, de um amarelo pálido, já ia alta no lado do oriente, e o dia morria rápido às suas costas. Uma brisa ligeira encrespava a baía e pequenas ondas quebravam na praia branca no final do gramado. Pequeninas nuvens rosa e alaranjadas, ao poente, vagavam nas alturas, e as folhas das palmeiras se esbarravam de mansinho no vento fresco do Papa-Defunto.
“Vento Papa-Defunto”, pensou Bond, sorrindo de esguelha. Tal como teria de ser esta noite. Era a única chance, e as condições quase perfeitas. Só o repelente de tubarões é que não chegaria a tempo. Mas isso era apenas um requinte. Não poderia ser um pretexto. Era para isto que ele viajara três mil quilômetros e matara cinco. No entanto, sentiu um calafrio ao prever a aventura submarina angustiante, que ele já havia transferido em sua mente para o dia seguinte. De repente sentiu ódio e medo do mar e de tudo que lhe dizia respeito. Dos milhões de pequenas antenas que se mexeriam e o seguiriam quando ele passasse de noite, dos olhos que acordariam para espiá-lo, das batidas de coração que falhariam por um centésimo de segundo para continuar batendo silenciosamente, das gavinhas gelatinosas que se estenderiam em sua direção, tão cegas na luz quanto no escuro.
Iria passar no meio de milhares de segredos. No espaço de trezentos metros, sozinho e com frio, transporia às cegas uma floresta misteriosa em direção a uma cidadela mortífera, cujos guardas já haviam matado três homens. Ele, Bond, depois de uma semana ensolarada de canoagem com sua babá ao lado, ia esta noite, dentro de poucas horas, caminhar sozinho sob aquele lençol escuro de água. Era uma maluquice, algo impensável. Seu corpo se encolheu e ele cravou os dedos nas palmas da mão molhadas.
Houve uma batida na porta e Quarrel entrou. Bond se alegrou de poder levantar da cadeira, se afastar da janela e se aproximar do lugar onde Strangways apreciava seu drinque, debaixo de um abajur.
“Estão trabalhando à luz de lampiões agora, capitão. Um tanque ainda a cada cinco minutos. Calculo que terão dez horas de trabalho. Acabarão mais ou menos às cinco da manhã. Não zarparão antes das seis. É perigoso demais tentar passar pelo canal sem luz suficiente.”
Os olhos cinzentos e amistosos de Quarrel, naquele esplêndido rosto cor de mogno, fitavam Bond, aguardando ordens.
“Começarei às dez em ponto”, Bond se surpreendeu com as próprias palavras. “Das pedras à esquerda da praia. Pode nos fazer um jantar e depois levar o equipamento até o gramado? As condições estão perfeitas. Chegarei lá dentro de meia hora.” Contou nos dedos. “Dê-me os detonadores de cinco e de oito horas. E o de quinze minutos, como reserva, caso algo saia errado. Está certo?”
“Sim senhor, capitão”, respondeu Quarrel. “Pode deixar comigo.”
E saiu.
Bond olhou para a garrafa de uísque e, em seguida, se decidiu, servindo-se de meio copo em cima de três cubos de gelo. Tirou a caixa de benzedrina do bolso e botou um tablete entre os dentes.
“À sorte”, disse a Strangways, tomando um grande gole. Sentou-se apreciando o gosto áspero de seu primeiro drinque em mais de uma semana. “Agora”, perguntou, “diga exatamente o que eles fazem quando estão prontos para zarpar. Levam quanto tempo para se afastar da ilha e passar pelo recife? Se esta for a última vez, não se esqueça de que estarão levando seis homens adicionais e algumas provisões. Vamos tentar prever isso o mais exatamente possível.”
Um momento depois Bond já mergulhara em um mar de detalhes práticos, e a sombra do medo recuara até as zonas de escuridão debaixo das palmeiras.
Exatamente às dez horas, sem sentir nada além da excitação e da expectativa, a figura preta e luzidia como um morcego pulou das pedras dentro de três metros de água, sumindo debaixo do mar.
“Vá com segurança”, disse Quarrel, dirigindo-se ao ponto em que Bond desaparecera. Persignou-se. Em seguida, ele e Strangways voltaram para casa, por entre as sombras, para dormir em turnos, sobressaltados, aguardando, temerosos, o desenrolar dos acontecimentos.
19.
O VALE DAS SOMBRAS
Bond foi levado direto ao fundo pelo peso da mina naval que prendera a seu peito através de fitas, e pelo cinto de chumbo, usado para corrigir a flutuabilidade dos cilindros.
Sem hesitar um instante, cobriu imediatamente os primeiros cinquenta metros de areia do fundo em um rápido crawl, com o rosto pouco acima do leito. As longas nadadeiras quase teriam dobrado sua velocidade normal, não fosse o estorvo do peso que carregava e da leve espingarda de arpão na mão esquerda. Mas avançava depressa e em menos de um minuto parou para descansar na sombra de um grande maciço de coral.
Parou e estudou suas sensações.
Estava aquecido na roupa de mergulho, sentindo mais calor do que se estivesse nadando ao sol. Achou que seus movimentos lhe vinham com facilidade e a respiração era perfeitamente simples, desde que fosse regular e descontraída. Contemplou as bolhas denunciadoras subindo rente ao coral em um repuxo de pérolas prateadas e rezou para que as pequenas ondas as encobrissem.
No espaço desimpedido, sua visibilidade era perfeita. A luz era leitosa e macia, mas não suficientemente forte para dissolver as sombras encarneiradas das ondas na superfície, que enxadrezavam a areia do fundo. Agora, junto ao recife, não havia reflexos no leito do mar, e as sombras sob as pedras eram negras e impenetráveis.
Arriscou uma olhada rápida com a lanterna fina, e imediatamente a paisagem oculta da massa marrom dos arbustos de coral ganhou vida. Anêmonas de miolo carmesim acenavam para ele com seus tentáculos de veludo, uma colônia de ouriços eriçou seus espinhos de aço de Toledo, subitamente assustada, e uma centopeia do mar peluda estacou sua centena de passos, inquirindo-o com sua cabeça cega. Na areia da base da árvore de coral, um peixe-sapo recolheu delicadamente sua horrível cabeça verrugosa de volta à loca, e uma porção de vermes do mar, parecidos com flores, desapareceu em seus tubos gelatinosos. Um cardume de peixes-borboleta e peixes-anjo, coloridos como joias, flertava na luz. Bond distinguiu a forma chata e espiralada de uma estrela-do-mar de grandes pontas.
Bond enfiou a lanterna de volta no cinto.
Acima dele a superfície do mar era uma colcha de mercúrio. Ouvia-se um crepitar baixinho, como gordura fritando na frigideira. Adiante, o luar mergulhava no vale irregular e profundo, cujas encostas afundavam, se afastando da rota que ele devia seguir. Abandonou sua aconchegante árvore de coral e avançou lentamente. Agora não mais com a mesma facilidade. A luz era fraca e enganosa, e a floresta petrificada do recife de coral cheia de becos sem saída e caminhos tentadores, porém ilusórios.
Às vezes era obrigado a subir quase à superfície para transpor o emaranhado de algum arbusto de coral, e quando isso acontecia, aproveitava para verificar sua posição pela lua que brilhava como uma pálida descarga de foguete, no final do caminho que abrira na água. Às vezes a cintura de ampulheta de um rochedo de coral lhe fornecia abrigo, e ele podia descansar por alguns instantes, sabendo que as pequenas borbulhas do respirador ficariam escondidas pela saliência acima da superfície. Então concentrava seu olhar nos rabiscos fosforescentes da minúscula vida noturna submarina e distinguia colônias e populações inteiras às voltas com suas atividades microscópicas.
Não havia peixes grandes nas imediações, mas muitas lagostas fora de suas locas, parecendo bichos enormes e pré-históricos, graças ao efeito de ampliação da água. Seus olhos saltados e vermelhos o fitavam, e suas longas antenas de trinta centímetros pediam-lhe uma senha. Em alguns momentos recuavam nervosamente para seus abrigos, levantando areia com suas caudas potentes, agachadas nas pontas de seus oito pés peludos, à espera de o perigo passar. Certa vez os grandes filamentos de uma caravela passaram flutuando lentamente. Quase tocaram sua cabeça a partir da superfície, cinco metros acima, e ele lembrou a queimadura causada pelo contato com uma delas, que ardera por três dias durante a temporada em Manatee Bay. Se atingisse alguém na altura do coração, poderia ser mortal. Ele viu inúmeras moreias verdes e pintadas, estas últimas se movendo como grandes serpentes pretas e amarelas ao longo da areia do fundo, as verdes mostrando os dentes de dentro de algum buraco na pedra, e vários baiacus, como corujas castanhas, com seus enormes e plácidos olhos verdes. Espetou um deles com a extremidade de sua arma e ele inchou até ficar do tamanho de uma bola de futebol, tornando-se uma massa de perigosos espinhos brancos. Largas gorgônias balançavam, fazendo gestos convidativos nos rodamoinhos, refletindo o luar nos vales cinzentos, acenando fantasmagóricas, como restos das mortalhas de homens sepultados no mar. Muitas vezes Bond distinguia nas sombras movimentos pesados e misteriosos, águas revoltas e o súbito brilho de olhos grandes, que imediatamente se extinguiam. Então, virava-se, destravando o arpão, olhando fixamente o escuro. Mas não atirou em nada e nada o atacou enquanto subia e deslizava pelo recife.
Levou quinze minutos para percorrer cem metros do coral. Depois disso descansou em um pedaço redondo de coral esponjoso, abrigado por um último pedaço de recife. Alegrou-se por só ter de enfrentar uns cem metros de água cinza-claro. Ainda se sentia descansado, conservando a elação e a clareza de espírito provocadas pela benzedrina, mas o labirinto de perigos que enfrentara para atravessar o recife o tinha cansado e causado uma preocupação constante, além do temor de rasgar a roupa de borracha. Agora a floresta de corais afiados como navalhas já havia sido ultrapassada, para ceder lugar aos tubarões e às barracudas, ou talvez à súbita banana de dinamite jogada no meio da sua pequena flor de borbulhas na superfície.
Foi enquanto calculava os perigos ainda por enfrentar que o polvo agarrou-o. Em volta dos dois tornozelos.
Estava sentado com os pés na areia, quando de repente foram presos na base do cogumelo redondo de coral sobre o qual descansava. Quando compreendeu o que tinha acontecido, um tentáculo começou a serpentear pela sua perna acima, e outro, roxo na luz fraca, desceu pela nadadeira esquerda.
Teve um sobressalto de terror e repugnância, levantando-se de imediato, esfregando os pés, esforçando-se por se libertar. Mas não houve afrouxamento de um centímetro sequer, e os movimentos de Bond deram ao polvo a oportunidade de apertar e puxar os calcanhares mais ainda sob a saliência da pedra redonda. A força do bicho era prodigiosa, e Bond sentiu que perdia rapidamente o equilíbrio. Percebeu que num instante seria jogado no chão e aí, atrapalhado pela mina em seu peito e o cilindro nas costas, talvez fosse quase impossível atacar o polvo.
Bond tirou a faca do cinto e espetou entre suas pernas. Mas a saliência da rocha o atrapalhou, e ele ficou apavorado de cortar sua roupa de mergulho. De repente foi derrubado, caindo deitado na areia. De imediato seus pés começaram a ser puxados para dentro de uma larga fenda lateral debaixo da pedra. Esgaravatou a areia e tentou se dobrar para poder ter acesso à faca. Porém, a grande protuberância da mina em seu peito impediu-o de fazê-lo. À beira do pânico, lembrou-se do arpão. Antes não lhe dera importância, achando que era uma arma inútil naquela pequena distância, mas agora era a sua única chance. Permanecia na areia onde o deixara. Pegou-o e destravou-o. A mina impediu-o de fazer mira. Escorregou o cano ao longo das pernas e cutucou cada pé com a ponta do arpão para descobrir a distância entre eles. Um tentáculo agarrou imediatamente a ponta de aço e começou a puxar. A arma escorregou entre seus pés aprisionados e ele apertou o gatilho às cegas.
Uma grande nuvem de tinta viscosa e pegajosa saiu em rolos da fenda, em direção a seu rosto. Mas uma perna estava livre, em seguida a outra, e ele se aprumou e pegou o cabo do arpão de um metro, no local em que já ia desaparecendo sob a rocha. Puxou e forcejou até que, com um esgarçar de tecidos, conseguiu tirar a arma de dentro da névoa negra que envolvia o buraco. Ofegante, levantou-se e se afastou da rocha, com suor escorrendo pelo rosto, sob a máscara. Acima dele, a fieira prateada de bolhas subiu direto à superfície, e ele praguejou contra aquele animal barrigudo, ferido em seu abrigo.
Mas não podia perder tempo se preocupando com ele. Recarregou a arma e partiu com a lua sobre o seu ombro direito.
Agora avançava bem através da água cinzenta e enevoada, concentrando-se em manter o rosto apenas alguns centímetros acima da areia, com a cabeça bastante baixa para reduzir o atrito de seu corpo com a água. A certa altura, viu, de relance, uma raia-lixa do tamanho de uma mesa de pingue-pongue se desviar habilmente de seu caminho, batendo as asas pontudas e manchadas, como um pássaro, e arrastando atrás de si sua cauda farpada. Não lhe deu atenção, lembrando-se do que Quarrel dissera: que as raias jamais atacam a não ser em autodefesa. Calculou que ela provavelmente viera dos recifes externos para botar seus ovos — ou “bolsas de sereias”, como chamavam os pescadores, porque têm a forma de um travesseiro com dois fios pretos e rígidos em cada canto — no fundo abrigado de areia.
Muitos vultos de peixes grandes nadavam preguiçosamente sobre a areia enluarada, alguns do seu tamanho. Quando um deles seguiu Bond por pelo menos um minuto, ele levantou os olhos, distinguindo a barriga branca de um tubarão cinco metros acima dele, como um zepelim afunilado verde e azul. Seu nariz arredondado estava mergulhado com curiosidade na coluna de bolhas de ar. O grande rasgo em forma de foice de sua boca parecia uma cicatriz repuxada. Virou de lado e olhou para ele embaixo com um olhar duro e rosado e, em seguida, abanou sua cauda, também em forma de foice, e se afastou devagar dentro do muro de névoa cinzenta.
Bond amedrontou uma família de polvos, pesando de três quilos aos cento e cinquenta gramas de um filhote, frágil e luminoso à meia-luz, suspensa quase na vertical em um cordão declinante. Eles se endireitaram e fugiram rápido, a propulsão a jato.
Bond descansou por um instante na metade do caminho e então prosseguiu. Agora havia barracudas por ali, grandes, de até nove quilos. Pareciam tão mortíferas quanto as recordações que tinha delas. Planavam acima dele como submarinos prateados, olhando para baixo com seus olhos de tigre zangado. Sentiam curiosidade a seu respeito e a respeito das bolhas, e seguiram-no por cima e em torno dele, como uma alcateia de lobos silenciosos. Quando Bond encontrou o primeiro pedaço de coral, indício de que se aproximava da ilha, havia cerca de vinte delas se movendo em silêncio, vigilantes, saindo e entrando da parede opaca que o envolvia.
A pele de Bond se encolheu debaixo da roupa de borracha, mas ele não podia fazer nada a respeito delas e concentrou-se em sua meta.
De repente havia uma longa forma metálica suspensa acima dele na água. Atrás dela um monte de pedras quebradas que subiam de maneira íngreme.
Era a quilha do Secatur, e o coração de Bond deu um pulo no peito.
Consultou seu Rolex. Eram onze e três. Escolheu o detonador de sete horas do punhado que tirou de um bolso lateral com zíper, inserindo-o na cavidade apropriada da mina, apertando-o. Enterrou na areia o restante dos detonadores, de modo que, se fosse capturado, ninguém desconfiaria da existência da mina.
Ao nadar em direção à superfície, carregando a mina entre as mãos, com a base para cima, percebeu um rebuliço na água atrás dele. Uma barracuda passou depressa, com as mandíbulas meio abertas, quase colidindo com ele e com os olhos fixos em algo às suas costas. Mas Bond estava concentrado apenas no meio da quilha do barco, em um ponto pouco mais de um metro acima da superfície.
A mina quase o arrastou pelos últimos metros, pois seus enormes ímãs buscavam o beijo metálico com o casco. Bond precisou lutar contra eles para evitar o barulho do choque. Em seguida, tendo colocado a mina no lugar adequado e agora livre do seu peso, Bond precisou nadar com força para se contrapor à sua nova flutuabilidade e afundar de novo, afastando-se da superfície.
Foi quando se virou para nadar em direção às duas hélices, a caminho do abrigo das pedras, que conseguiu ver as coisas terríveis que ocorriam às suas costas.
O bando enorme de barracudas parecia ter enlouquecido. Giravam e mordiam como cães histéricos. Três tubarões que haviam se juntado a eles arremetiam pela água com um frenesi pouco menor. A água fervilhava com esses peixes terríveis, e Bond levou um encontrão no rosto, recebendo outros tantos por várias vezes em uma distância de poucos metros. Percebeu que a qualquer momento sua pele de borracha se rasgaria, junto com a carne debaixo dela, e então o bando viria atrás dele.
“Condições exacerbadas de comportamento grupal.” A frase do Departamento Naval pipocou na sua mente. Era exatamente nesta situação que o repelente de tubarões poderia salvá-lo. Na sua ausência, teria talvez alguns minutos a mais de vida.
Em desespero, nadou espalhafatosamente, ao longo da quilha do barco, com o arpão destravado, que agora não passava de um brinquedo diante daquele bando de peixes canibais ensandecidos.
Alcançou as duas grandes hélices de cobre, agarrando-se a uma delas, ofegante, com os lábios formando um esgar de medo e os olhos arregalados, ao se dar conta do frenesi no mar fervilhante a seu redor.
Viu de repente que as bocas dos peixes que arremetiam furiosos estavam meio abertas e que eles mergulhavam e saíam de uma nuvem marrom, que se espalhava desde a superfície. Perto dele, uma barracuda se deteve por um instante, com algo marrom e reluzente nas suas mandíbulas. Engoliu de uma bocada, depois virou e voltou para a confusão.
Ao mesmo tempo, Bond notou que escurecia. Olhou para cima e percebeu, com uma nova compreensão, que a superfície de mercúrio do mar tornara-se vermelha, um horrível carmesim brilhante.
Fiapos dessa substância chegaram flutuando até seu alcance. Puxou-os com a extremidade de sua arma. Segurou-os contra sua máscara.
Não havia mais dúvida.
Alguém lá em cima atirava sangue e vísceras na superfície do mar.
20.
A CAVERNA DE MORGAN, O SANGUINÁRIO
Bond compreendeu de imediato o motivo de todas aquelas barracudas e tubarões estarem rondando a ilha, de como eram mantidos naquele frenesi voraz por esse banquete noturno, por que os três homens, desafiando todas as explicações plausíveis, haviam sido devolvidos à praia, meio devorados pelos peixes.
Mr. Big tinha apenas posto as forças do mar para trabalhar em seu proveito, utilizando-as para sua proteção. Era um invento típico — imaginativo, criativo, tecnicamente à prova de erro e fácil de pôr em prática.
No exato momento em que Bond compreendera isso tudo, algo lhe deu um terrível golpe no ombro e uma barracuda de dez quilos recuou, com carne e borracha preta entre as mandíbulas. Bond não sentiu dor, ao largar a hélice de bronze e nadar desesperadamente até as pedras, só uma náusea terrível na boca do estômago, ao pensar que um pedaço seu se encontrava entre aquelas centenas de dentes afiados como uma navalha. A água começou a vazar entre a borracha aderente e a sua pele. Não demoraria até chegar a seu pescoço e penetrar na máscara.
Já ia desistir e subir disparado pelos sete metros até a tona, quando viu uma larga fissura nas pedras diante dele. Ao lado havia um grande pedregulho tombado de lado e, de algum modo, ele conseguiu se esconder atrás dele. Virou-se, naquele abrigo precário, no momento exato em que a mesma barracuda investia outra vez, com o maxilar superior em ângulo reto em relação ao inferior, a boca escancarada pronta para o bote terrível.
Bond atirou quase às cegas com o arpão. As tiras de borracha dispararam cano abaixo e o arpão dentado pegou o grande peixe no centro da mandíbula superior erguida, atravessando-a e penetrando até a metade do cabo, com a linha ainda livre.
A barracuda estacou a um metro da barriga de Bond. Tentou fechar as mandíbulas e, em seguida, deu uma enorme sacudida na longa cabeça de réptil. Depois se afastou em disparada, ziguezagueando loucamente, arrancando da mão de Bond o arpão e a linha, que arrastou atrás de si. Bond sabia que, antes de ela percorrer cem metros, os demais peixes a atacariam e a fariam em pedaços.
Deu graças a Deus por essa manobra diversiva. Seu ombro estava agora envolto por uma nuvem de sangue. Os outros peixes sentiriam o cheiro em questão de segundos. Contornou o pedregulho imaginando se arranjaria um meio de se abrigar debaixo do atracadouro, escondendo-se de algum modo acima da superfície da água, até pensar em outro plano.
Então viu a caverna que o pedregulho escondera.
Era de fato quase uma porta na base da ilha. Se Bond não estivesse nadando para salvar sua vida, poderia ter entrado nela andando. Mas, naquelas circunstâncias, mergulhou direto na abertura e só parou quando poucos metros o separavam de sua entrada bruxuleante.
Então ficou de pé na areia macia e acendeu a lanterna. Um tubarão talvez pudesse vir atrás dele, mas no espaço confinado seria quase impossível que o mordesse com sua boca situada muito embaixo. Com certeza não viria precipitadamente, porque até o tubarão tem medo de arriscar a pele entre as pedras, e Bond teria ampla oportunidade de procurar atingir seus olhos com a faca.
Bond iluminou o teto e os lados da caverna com a lanterna. Certamente fora modelada ou acabada pela mão do homem. Bond calculou que deveria ter sido escavada de dentro para fora, a partir de algum lugar no centro da ilha.
“Faltam pelo menos vinte metros para acabar, gente”, Morgan, o Sanguinário, deve ter dito aos feitores de escravos. E então as picaretas devem ter rompido de repente o resto da parede que ainda separava a caverna do mar, e uma confusão de pernas, braços e bocas gritando, sufocadas para sempre pela água, teriam sido arremessadas para trás contra a pedra, juntando-se aos cadáveres das demais testemunhas.
O grande pedregulho na entrada deve ter sido posicionado para vedar a saída para o mar. O pescador da baía dos Tubarões que desapareceu de repente, seis meses atrás, deve tê-la descoberto um dia. Fora afastada de sua posição original por alguma tempestade ou tsunami consecutivo a um tufão. Então descobrira o tesouro e percebera que precisava de ajuda para dispor dele. Um branco o enganaria. Melhor procurar o grande gângster negro no Harlem e fazer o melhor acordo que pudesse. O ouro pertencia aos negros que haviam morrido para escondê-lo. Deveria ser devolvido aos negros.
Ali de pé, balançando na correnteza do túnel, Bond imaginou mais um barril cimentado mergulhando no lodo do rio Harlem.
Foi então que ouviu os tambores.
Lá fora, entre os peixes grandes, ouvira uma leve trovoada na água, que aumentara quando entrou na caverna. Mas julgara que eram apenas as ondas batendo na base da ilha e, de qualquer modo, tinha outras coisas em mente.
Mas agora podia distinguir um ritmo definido, e o som ribombava e crescia à sua volta, com um rufo abafado, como se o próprio Bond estivesse preso dentro de um vasto atabaque. A água parecia tremular por causa desse barulho. Ele imaginou o duplo objetivo do batuque. Era um grande chamado aos peixes, usado quando havia invasores, para atrair e excitá-los ainda mais. Quarrel lhe contara como os pescadores noturnos costumam bater nos lados da canoa com o remo para acordar e atrair os peixes. Aquilo deveria ser algo parecido. Ao mesmo tempo seria um aviso macabro do vodu para o pessoal da costa, duplamente eficaz quando algum cadáver era devolvido pelo mar no dia seguinte.
Mais um dos requintes de Mr. Big, pensou Bond. O batuque significava que ele fora descoberto. O que pensariam Strangways e Quarrel ao ouvi-lo? Seriam simplesmente obrigados a aguentar firme, sentados. Bond já havia percebido que os tambores eram algum truque e fizera os dois prometer que não iriam interferir, a não ser que o Secatur escapasse incólume. Pois isso significaria que todos os planos de Bond haviam fracassado. Ele contara a Strangways onde o ouro estava escondido, e neste caso o barco teria de ser interceptado em alto-mar.
Agora o inimigo fora alertado, mas não sabia quem era o invasor, nem se ele ainda estava vivo. Ele precisava prosseguir, nem que fosse para impedir por todos os meios que Solitaire embarcasse no iate condenado.
Bond consultou o relógio. Era meia-noite e meia. Para ele, poderia ter se passado uma semana desde que iniciara sua incursão pelo mar dos perigos.
Apalpou a Beretta sob a roupa de borracha, pensando se já não estaria avariada pela água que entrara pelo rasgo feito pelos dentes da barracuda.
Então, com o troar dos atabaques se aproximando cada vez mais de um crescendo, avançou na caverna, projetando adiante um pequeno feixe de luz com a lanterna.
Avançara cerca de dez metros quando viu um leve brilho na água à sua frente. Apagou a lanterna e foi se aproximando com cautela. O piso arenoso da caverna começou a se inclinar para cima, e a cada metro a luz se tornava mais forte. Agora podia ver dezenas de pequenos peixes que brincavam à sua volta e, mais adiante, a água estava cheia deles, atraídos pela luz da caverna. Caranguejos olhavam atentos de pequenas frestas nas pedras e um polvo novinho se achatou contra o teto, tomando a forma de uma estrela fosforescente.
Em seguida, pôde divisar o final da caverna e uma larga piscina brilhante, além, cujo fundo arenoso era branco como o dia. O roncar dos atabaques aumentava. Parou na sombra da entrada e percebeu que a superfície ficava apenas poucos centímetros acima e que havia lâmpadas sobre a piscina.
Bond estava em um dilema. Mais um passo e ficaria em plena vista de qualquer um que estivesse olhando para a piscina. Ao hesitar, argumentando consigo mesmo, ficou horrorizado ao ver uma fina nuvem de sangue de seu ombro se espalhando pela entrada. Esquecera o ferimento no ombro, que agora começara a latejar, e quando moveu o braço sentiu a ferroada de uma dor intensa em toda sua extensão. Havia também o fino jato de bolhas dos cilindros, mas ele esperava que elas fossem flutuando lentamente para arrebentar na beirinha da entrada.
No exato momento em que recuou alguns centímetros, seu futuro já estava selado.
Sobre sua cabeça percebeu apenas uma enorme pancada na água, e depois dois negros, nus a não ser pelas máscaras de mergulho nos rostos, com longas facas seguras como lanças em suas mãos esquerdas, investiram contra ele.
Antes que sua mão pudesse pegar a faca no cinto, já haviam agarrado seus dois braços e o puxavam para a superfície.
Desesperado, Bond teve de deixar que o tirassem à força da piscina e o jogassem na areia lisa. Depois de ser obrigado a se levantar, abriram os zíperes de seu traje de mergulho. Seu capuz foi retirado da cabeça, o coldre de seu ombro, e de repente ele se achou de pé entre os frangalhos da roupa preta de mergulho, como uma serpente trocando a pele, nu, exceto pelo pequeno calção de banho. O sangue escorria do buraco irregular no ombro esquerdo.
Quando tiraram seu capuz, Bond quase ensurdeceu com a batida e o rufar dos atabaques. O barulho penetrava nele e mexia com tudo em volta. O ritmo rápido e sincopado galopava e latejava nas suas veias. Parecia capaz de acordar toda a Jamaica. Bond fez uma careta e seus sentidos procuraram resistir aos golpes daquela tempestade sonora. Em seguida, os guardas o fizeram se virar e se deparar com uma cena tão grotesca que o som dos atabaques recuou para o fundo e toda sua consciência se concentrou no que via.
No primeiro plano, em uma mesa de jogo com tampo de veludo verde, apinhada de papéis, e sentado em uma cadeira de dobrar, estava Mr. Big, com uma caneta na mão, olhando-o sem curiosidade. Um Mr. Big em um terno castanho-amarelado, bem cortado, de tropical, com camisa branca e gravata de tricô de seda preta. O queixo largo descansava na sua mão esquerda e ele levantou os olhos para Bond como se tivesse sido incomodado, em seu escritório, por alguém de sua equipe pedindo um aumento de salário. Parecia polido, porém levemente entediado.
A alguns passos dele, sinistro e absurdo, o espantalho da efígie do Baron Samedi, ereto sobre uma pedra, observava Bond debaixo de seu chapéu-coco.
Mr. Big tirou a mão do queixo e seus grandes olhos dourados estudaram Bond da cabeça aos pés.
“Bom dia, senhor James Bond”, disse finalmente, projetando a voz inexpressiva contra o barulho já decrescente dos tambores. “A mosca levou mesmo muito tempo para chegar à aranha, ou talvez devesse dizer ‘o lambari à baleia’. Você deixou um belo rastro de bolhas no recife.”
Recostou-se na cadeira e se calou. Os atabaques batiam e rufavam mais baixo.
Então fora a luta contra o polvo que o traíra. A mente de Bond registrou o fato automaticamente, enquanto olhava para além do homem na mesa.
Estava em um salão de pedra grande como uma igreja. Metade do piso era ocupada pela enorme piscina clara e branca pela qual chegara, e que se transformava em verde-mar e depois azul perto do buraco de entrada submarino. Em seguida, havia a faixa estreita de areia em que ele pisava, e o resto do piso era de pedra lisa e plana, marcado por algumas estalagmites cinzentas e brancas.
A alguma distância atrás de Mr. Big uma escadaria íngreme levava a um teto abobadado, do qual pendiam estalactites curtas de calcário. De seus brancos mamilos a água gotejava intermitentemente na piscina, ou sobre as jovens estalagmites que se erguiam do chão, a seu encontro.
Havia uma dúzia de luzes fosforescentes muito claras fixadas alto nas paredes, criando reflexos dourados nos torsos nus de um grupo de negros em pé, à sua esquerda, no piso de pedra, observando Bond de olhos arregalados, mostrando os dentes em sorrisos cruéis e satisfeitos.
Em volta de seus pés pretos e rosados, entre destroços de madeira quebrada e anéis de ferro enferrujados, tiras mofadas de couro e lona decomposta, havia um mar fulgurante de moedas de ouro — metros, cascatas de moedas redondas de ouro, do qual emergiam as pernas pretas, como se tivessem sido detidas no meio de um passeio entre as chamas.
Ao lado deles, empilhadas fileira após fileira, ficavam bandejas rasas de madeira. Algumas estavam no chão, parcialmente cheias de moedas de ouro, e embaixo da escada, um único negro parara na subida, segurando uma delas repleta de moedas de ouro em quatro fileiras cilíndricas, estendida como se estivesse sendo oferecida à venda.
Mais à esquerda, em um canto do salão, havia dois negros próximos a um caldeirão de ferro arredondado, suspenso acima de três maçaricos sibilantes, até que seu fundo ficasse vermelho incandescente. Seguravam escumadeiras de ferro, lambuzadas de ouro até metade de seus cabos. Ao lado deles havia uma miscelânea de peças de ouro, talheres, objetos de altar, copos, cruzes e uma pilha de lingotes de ouro de diversos tamanhos. Ao longo da parede viam-se, próximas a eles, fileiras de bandejas para esfriar o metal, cujas superfícies segmentadas irradiavam um brilho dourado, e uma bandeja vazia descansava no piso perto do caldeirão, junto com uma longa concha manchada de ouro e o cabo envolto em pano.
Acocorado no chão, não muito distante de Mr. Big, um único negro segurava uma faca em uma das mãos, e uma taça ornamentada de brilhantes na outra. A seu lado, em um prato de lata, uma pilha de joias cintilava, embaçadas, vermelhas, azuis e verdes, sob o brilho das lâmpadas fluorescentes.
Estava quente e abafado no grande salão de pedra e, no entanto, Bond tiritava ao abarcar toda essa esplêndida cena com os olhos. O brilho das lâmpadas violeta esbranquiçadas, o bronzeado tremeluzente dos corpos suados, o brilho forte do ouro, o arco-íris do recipiente com os brilhantes, a água marinha em tom leitoso da piscina. Ele tremia diante da beleza daquilo tudo, diante daquela dança petrificada da grande arca do tesouro de Morgan, o Sanguinário.
Seus olhos voltaram para o quadrado de veludo verde e para a grande face de zumbi, olhando aquele rosto e seus olhos amarelos com respeito, quase com reverência.
“Pare os tambores”, disse Mr. Big, para ninguém em particular. O batuque se reduzira a um quase sussurro, a um murmúrio cujo acento recaía sobre o ritmo do coração nas veias. Um dos negros deu dois passos, acompanhados de barulhos metálicos entre as moedas, abaixando-se. Um aparelho de som portátil estava no chão, com um potente amplificador ao lado, contra a parede de pedra. Depois de um clique os tambores pararam. O negro fechou a tampa do aparelho e voltou a seu lugar.
“Andem com o trabalho”, ordenou Mr. Big. E de repente todas as figuras começaram a se mover, como se alguém tivesse posto uma moeda em um caça-níquel. Mexeram o caldeirão, pegaram o ouro e o puseram nas caixas, o sujeito procurava retirar a pedraria da taça, e o negro com a bandeja de ouro prosseguiu subindo a escada.
Bond continuava de pé, pingando suor e sangue.
Big Man descansou a caneta e se levantou devagar. Afastou-se da mesa.
“Assuma meu lugar”, ordenou a um dos homens que guardavam Bond, e o sujeito nu rodeou a mesa, sentou na cadeira de Mr. Big e pegou a caneta.
“Traga-o aqui para cima.” Mr. Big foi até os degraus na rocha e começou a subi-los lentamente.
Bond sentiu uma picada do lado. Acabou de despir os restos de sua segunda pele preta e seguiu a figura que subia devagar.
Ninguém levantou os olhos do trabalho. Ninguém descuidava do serviço quando Mr. Big saía. Ninguém seria capaz de enfiar um brilhante ou uma moeda na boca.
O Baron Samedi assumira a chefia.
Apenas seu zumbi deixara a caverna.
21.
“BOA NOITE A AMBOS”
Subiram vagarosamente por cerca de treze metros, passando por uma porta aberta perto do teto, e pararam em um grande patamar na pedra. Ali um único negro, à luz de um lampião de acetileno, arrumava bandejas cheias de moedas de ouro no meio dos tanques de peixe, muitos já se encontrando empilhados contra a parede.
Enquanto esperavam, dois negros desceram a escada, vindos da superfície, pegaram um tanque pronto e voltaram para cima com ele.
Bond achava que eles enchiam os tanques com areia, plantas aquáticas e peixes em algum lugar no alto, e depois os desciam através da corrente humana ao longo da face do rochedo.
Notou que alguns dos tanques à espera tinham lingotes de ouro fixados no centro, e outros, pedrarias espalhadas como cascalho. Então refez os cálculos sobre o tesouro, quadruplicando seu valor até cerca de quatro milhões de libras esterlinas.
Mr. Big ficou um tempo com o olhar no chão de pedra. Respirava fundo, mas de maneira controlada. Em seguida, subiram.
Vinte degraus acima havia outro patamar, menor, com uma porta de saída. Nela havia corrente e cadeado novos. A própria porta era feita de grades de ferro marrons, achatadas, corroídas pela ferrugem.
Mr. Big parou de novo e ficaram lado a lado na pequena plataforma de pedra.
Por um momento Bond pensou em fugir, mas, como se tivesse lido a sua mente, o guarda negro cercou-o contra a parede, longe de Big Man. E Bond sabia que sua maior obrigação era se manter vivo e chegar a Solitaire, e arranjar um jeito de afastá-la do barco condenado pela mina, em que o ácido roía lentamente o cobre do detonador.
Do alto vinha uma forte correnteza pelo vão da escada, e Bond sentiu que seu suor secava. Pôs a mão direita no ferimento do ombro, sem se assustar com a picada no flanco feita pela faca do guarda. O sangue já secara em crostas e a maior parte do braço doía tremendamente.
Mr. Big falou:
“Este vento, sr. Bond”, apontou para o vão, “é conhecido na Jamaica como ‘vento Papa-Defunto’”.
Bond sacudiu o ombro direito, poupando o fôlego.
Mr. Big virou para a porta de ferro, tirou a chave do bolso e abriu-a. Passou e foi seguido por Bond e seu guarda.
Era um cômodo que consistia em uma estreita passagem, com grilhões enferrujados presos embaixo na parede, a menos de dez metros de intervalo.
Na outra extremidade, onde uma lamparina pendia do teto de pedra, uma figura imóvel estava deitada no chão, embrulhada em um cobertor. Havia mais uma lamparina na porta, em cima de suas cabeças, mas, exceto isso, apenas o cheiro de pedra úmida, torturas antigas e morte.
“Solitaire”, falou Bond, baixinho.
O coração de Bond deu um salto e ele quis se adiantar. Imediatamente uma mão enorme agarrou seu braço.
“Pare aí, seu branco”, vociferou o guarda, torcendo o punho dele entre as espáduas, levantando-o ainda mais, até que Bond deu um chute com o calcanhar esquerdo. Acertou na canela do homem, mas doeu mais em Bond do que no guarda.
Mr. Big se virou. Tinha uma pequena arma quase encoberta pela mão enorme.
“Solte-o”, ordenou em voz baixa. “Se quiser mais um umbigo, senhor Bond, é só dizer. Tenho seis aqui nesta arma.”
Bond passou esbarrando em Big Man. Solitaire se levantara, vindo em sua direção. Quando viu seu rosto, desandou a correr, estendendo as mãos.
“James”, soluçou. “James.”
Ela quase caiu a seus pés. Suas mãos se agarraram.
“Arranje corda”, ordenou Mr. Big no vão da porta.
“Está tudo bem, Solitaire”, disse Bond, sabendo que não estava. “Está tudo bem. Estou aqui agora.”
Ele pegou-a, mantendo-a a distância de seu braço estendido. O braço esquerdo doeu. Ela estava pálida e desarrumada, com um machucado na testa e olheiras. No seu rosto encardido as lágrimas escorriam deixando marcas na pele lívida. Estava sem maquiagem. Trajava um terninho branco sujo e sandálias. Parecia magra.
“O que esse desgraçado anda fazendo com você?”, perguntou Bond. Apertou-a de repente contra si. Ela se agarrou a ele, com o rosto enterrado em seu pescoço.
Em seguida, se afastou e olhou para a mão dele.
“Você está sangrando”, disse. “O que é?”
Virou-o pela metade e viu o sangue preto no seu ombro e pelo braço abaixo.
“Ah, meu querido, o que foi?”
Começou a chorar de novo, desamparada, desesperada, percebendo subitamente que ambos estavam perdidos.
“Amarre-os”, ordenou Big Man, da porta. “Aqui, debaixo da luz. Preciso dizer-lhes umas coisas.”
O negro estava vindo e Bond se virou. Valeria a pena arriscar? O negro só tinha a corda na mão. Mas Big Man deu um passo para o lado, vigiando-o, segurando a arma displicentemente, meio apontada para o chão.
“Não, senhor Bond”, avisou apenas.
Bond lançou um olhar para o negro enorme e pensou em Solitaire e no seu próprio ombro ferido.
O negro chegou e Bond deixou que amarrasse seus braços atrás das costas. Os nós foram bem dados. Não havia folga. Doíam.
Bond sorriu para Solitaire. Piscou um olho pela metade. Não passava de uma bravata, mas percebeu uma vivacidade esperançosa renascer em meio a suas lágrimas.
O negro levou-o de volta à porta.
“Ali”, disse Big Man, fazendo um gesto para um dos grilhões.
O negro derrubou Bond com uma rasteira repentina. Este caiu em cima do ombro ferido. O negro puxou-o pela corda até o grilhão, testou-o, passou a corda por ele e então amarrou Bond pelos tornozelos, muito bem amarrado. Enfiara sua faca em uma fresta na pedra. Tirou-a, cortou a corda e voltou para onde Solitaire estava.
Bond ficou sentado no chão de pedra, com as pernas esticadas para a frente, com os braços suspensos, amarrados por trás. O sangue pingava do ferimento reaberto. Apenas os resíduos da benzedrina no seu corpo o impediam de desmaiar.
Solitaire foi amarrada e colocada quase defronte a ele. Um metro separava os pés de ambos.
Com a tarefa concluída, Big Man consultou o relógio.
“Vá”, ordenou ao guarda. Fechou a porta de ferro depois que o sujeito se foi, ficando encostado nela.
Bond e a garota se entreolharam e Big Man contemplou os dois no chão.
Depois de um de seus longos silêncios, dirigiu-se a Bond. Este levantou os olhos para ele. A enorme bola de futebol cinzenta que era sua cabeça parecia, sob o lampião, a cabeça de um elemental, de algum espectro maligno do centro da terra, pairando no ar, com os olhos dourados ardendo firmes, e o grande corpo na sombra. Bond precisou lembrar-se de que já ouvira o coração dele batendo no peito, já o ouvira respirar, já vira suor na pele cinzenta. Não passava de um homem, da mesma espécie dele, um homem grande, com uma mente brilhante, mas ainda assim um homem que caminhava e defecava, um homem mortal, com uma doença no coração.
A boca larga e borrachuda se abriu, os lábios achatados, levemente virados, recuaram dos grandes dentes brancos.
“Você é o melhor de todos os que foram mandados para me combater”, disse Mr. Big. Sua voz baixa e insossa era pensativa, calculada. “E conseguiu matar quatro de meus ajudantes. Meus seguidores acham isso inacreditável. Já é mais do que tempo de liquidarmos nossas contas. O que aconteceu ao americano não bastou. A traição desta garota”, ele ainda olhava para Bond, “que tirei da sarjeta e estava pronto a colocar na minha mão direita, também questionou a minha infalibilidade. Eu estava imaginando como ela deveria morrer, quando a providência, ou o Baron Samedi, como meus seguidores gostam de acreditar, também trouxe você para o altar de cabeça baixa, pronto para o machado”.
A boca parou, com os lábios entreabertos. Bond viu os dentes se juntarem para formar a palavra seguinte.
“De modo que é conveniente que os dois morram juntos. Isso acontecerá de um modo adequado”, Big Man consultou seu relógio, “dentro de duas horas e meia. Às seis horas, alguns minutos a mais ou a menos”, acrescentou.
“Alguns minutos a mais”, comentou Bond. “Gosto da vida.”
“Na história de emancipação dos negros”, continuou Mr. Big em tom de conversa despreocupada, “já surgiram grandes atletas, grandes músicos, grandes escritores, grandes médicos e cientistas. No seu devido tempo, como aconteceu na história do desenvolvimento de outras raças, hão de surgir negros famosos em todos os demais setores da vida”. Fez uma pausa. “Infelizmente para você, senhor Bond, e para esta garota, vocês encontraram o primeiro dos grandes criminosos negros. Uso esta palavra vulgar, senhor Bond, porque seria a mesma que você, senhor Bond, como uma espécie de policial, usaria. Mas prefiro me considerar uma pessoa que possui a habilidade, as capacidades mentais e nervosas para criar as próprias leis e agir segundo elas, em vez de aceitar as leis que convêm ao mínimo denominador comum das pessoas. Sem dúvida você já leu Os instintos do rebanho na paz e na guerra, de Trotter. Pois bem, sou lobo por índole e opção, e vivo segundo as leis do lobo. É natural que os carneiros descrevam este indivíduo como ‘criminoso’.
“O fato, senhor Bond”, prosseguiu Big Man, depois de uma pausa, “de que sobrevivo e, na verdade, gozo de um sucesso ilimitado, embora seja eu sozinho contra milhões de carneiros, se deve às técnicas modernas que lhe descrevi por ocasião de nossa última conversa, e a uma infinita capacidade de me esforçar. Não os esforços tediosos, vulgares, e sim os artísticos e sutis. E eu noto, senhor Bond, que não é difícil enganar os carneiros, não importa quantos, com muita dedicação ao trabalho e, naturalmente, se formos um lobo extremamente bem dotado.
“Deixe-me ilustrar, por exemplo, como funciona a minha mente. Estudemos o método pelo qual decidi que ambos morrerão. É uma variação moderna do método usado na época do meu generoso patrono, sir Henry Morgan. Naquele tempo, era conhecido como ‘arrastamento pela quilha’.”
“Por favor, continue”, disse Bond, sem olhar para Solitaire.
“Temos uma paravana a bordo do iate”, prosseguiu Mr. Big, como se fosse um cirurgião descrevendo uma operação delicada para um grupo de estudantes, “que usamos para rebocar tubarões e outros peixes de grande porte. Esta paravana é, como sabem, um aparelho com a forma de um torpedo, que boia puxado por um cabo, distante do barco. Pode ser usada para sustentar a extremidade de uma rede, rebocando-a através da água, com o barco em movimento. Também pode ser equipada com um instrumento de corte, para cortar os cabos de amarração das minas em época de guerra.
“Pretendo”, continuou Mr. Big, em um tom de voz discursivo e natural, “amarrá-los juntos à extremidade de um cabo preso a essa paravana e rebocá-los pelo mar até que sejam devorados pelos tubarões”.
Fez uma pausa, enquanto seu olhar passava de um para outro. Solitaire mirava de olhos arregalados para Bond, que se esforçava em pensar, com o olhar ausente, perscrutando o futuro. Sentiu que deveria dizer alguma coisa.
“Você é um homem grande”, afirmou, “e um dia morrerá de uma morte igualmente grande e terrível. Se nos matar, essa morte virá em breve. Já a providenciei. Está enlouquecendo a olhos vistos, senão perceberia a repercussão que nosso assassinato terá sobre sua vida”.
Enquanto falava, a mente de Bond funcionava rápido, contando horas e minutos, sabendo que a própria morte de Big Man chegaria devagar, com o ácido corroendo o detonador seguindo o ponteiro dos minutos, rumo à hora do encontro final com seu destino. Mas estariam ele e Solitaire mortos, antes que soasse essa hora? Minutos, talvez segundos, fariam a diferença. O suor escorria do seu rosto para o peito. Sorriu para Solitaire. Ela lhe deu um olhar ausente, sem enxergá-lo.
De repente deu um grito agoniado que sacudiu os nervos de Bond.
“Não sei”, gritou. “Não consigo ver. Está tão perto, tão próximo. Há muitas mortes. Mas...”
“Solitaire”, gritou Bond, apavorado com a possibilidade de que as coisas estranhas que ela previsse, quaisquer que fossem, pudessem servir de aviso a Big Man. “Controle-se.”
Havia um toque de raiva em sua voz.
Os olhos dela clarearam, olhando mudos para ele, sem compreender.
Big Man falou de novo.
“Não estou ficando louco, senhor Bond”, avisou calmamente, “e nenhuma providência sua me afetará. Vocês morrerão além do recife e não restará nenhum indício. Rebocarei os restos de seus corpos até que não sobre nada. Isso faz parte da sagacidade dos meus planos. Vocês também devem saber que o tubarão e a barracuda desempenham um papel no voduísmo. Eles receberão seus sacrifícios e o Baron Samedi será apaziguado. Meus seguidores ficarão satisfeitos. Da mesma forma, desejo continuar minhas experiências com os peixes carnívoros. Acredito que só atacam quando há sangue na água. Por isso seus corpos serão rebocados desde a ilha. A paravana os rebocará sobre o recife. Acho que não serão atacados antes da barra. O sangue e as vísceras que são jogados todas as noites nessas águas já terão sido dispersos ou consumidos. Mas quando seus corpos forem rebocados por cima do recife, infelizmente sangrarão, ficarão em carne viva. Então veremos se minhas teorias estão corretas.”
Big Man estendeu a mão para trás e abriu a porta.
“Eu os deixarei agora”, falou, “para que reflitam sobre a excelência do método que criei para matá-los juntos. Não restará indício algum. A superstição ficará satisfeita. Meus seguidores também. Os corpos serão utilizados para a pesquisa científica.
“Isso é o que eu chamo, senhor James Bond, de uma capacidade infinita de refinamento artístico.”
Parou no vão da porta e olhou para os dois.
“Uma noite breve, porém boa. É o que desejo a ambos.”
22.
TERROR NO MAR
O dia ainda não clareara quando os guardas vieram buscá-los. As cordas que prendiam suas pernas foram cortadas e, com os braços ainda atados, foram levados pelos últimos degraus de pedra que faltavam para a superfície.
Ficaram entre algumas árvores esparsas e Bond aspirou o ar frio da manhã. Olhou através das árvores na direção do oriente e viu que as estrelas estavam mais pálidas e havia uma luminosidade no horizonte que anunciava o raiar da aurora. O cicio noturno dos grilos quase terminara e, em algum canto da ilha, um tordo ensaiava as primeiras notas do dia.
Bond calculou que deviam ser mais ou menos cinco e meia.
Ficaram ali vários minutos. Os negros passavam próximos a eles, carregando embrulhos e malas de fibra de palmeira, entre cochichos cautelosos. As portas do punhado de palhoças entre as árvores estavam escancaradas. Os homens andavam em fila até a beira do penhasco, à direita de Bond e Solitaire, desaparecendo por ali. Não voltavam. Era uma evacuação. Toda a guarnição da ilha levantava acampamento.
Bond esfregou o ombro desnudo contra Solitaire e ela se aninhou contra ele. Fazia frio depois da masmorra abafada, e Bond tiritava. Mas era melhor estar em movimento do que prolongar o suspense lá de baixo.
Ambos sabiam o que precisava ser feito, a natureza do risco.
Depois que Big Man os deixara, Bond não perdera tempo. Falando baixinho, contara à garota sobre a mina magnética presa ao costado do barco, prevista para explodir alguns minutos depois das seis horas, e explicara os fatores decisivos para saber quem morreria ou não naquela manhã.
Primeiro, apostara na mania de exatidão e de eficiência de Mr. Big. O Secatur precisava zarpar às seis horas em ponto. Portanto, não deveria haver nenhuma nuvem, se não a visibilidade na meia-luz do amanhecer não seria suficiente para assegurar a passagem do barco através do recife, e Mr. Big adiaria a partida. Se Bond e Solitaire estivessem no atracadouro ao lado do iate, morreriam junto com Mr. Big.
Supondo que o barco zarpasse na hora exata, a que distância e de que lado dele seriam rebocados? Teria de ser a bombordo para que a paravana ficasse desimpedida na hora de deixar a ilha. Bond supôs que o cabo de reboque da paravana teria cinquenta metros de comprimento, e que eles seriam rebocados vinte ou trinta metros atrás da paravana.
Se ele estivesse certo, seriam arrastados por cima do recife externo cerca de cinquenta metros depois de o Secatur ter rompido pelo canal. Provavelmente se aproximaria da passagem nos recifes a cerca de três nós e, em seguida, pegaria velocidade até chegar a dez, ou até mesmo a vinte. De início seus corpos seriam rebocados da ilha em um lento arco, virando e se retorcendo na ponta da linha de reboque. Logo depois a paravana se endireitaria e, mesmo após o barco ter transposto o recife, eles ainda não teriam chegado a ele. Portanto, a paravana passaria pelo recife quando o barco já o tivesse ultrapassado em quarenta metros, e depois eles a seguiriam a alguns metros a mais de distância.
Bond estremeceu ao pensar nos ferimentos que seus corpos sofreriam se fossem arrastados, a qualquer velocidade, sobre os dez metros de árvores e recifes de coral, afiados como uma navalha. Ficariam com as costas e as pernas esfoladas.
Depois de atravessarem o recife, não passariam de uma isca sanguinolenta, e seria apenas uma questão de minutos até que o primeiro tubarão ou barracuda avançasse neles.
E Mr. Big, sentado confortavelmente no deque da popa, assistiria à carnificina, talvez de binóculos, marcando os segundos e os minutos enquanto a isca viva ia diminuindo de tamanho, até que finalmente os peixes só abocanhassem o cabo ensanguentado.
Até que não restasse coisa alguma.
Então a paravana seria içada a bordo e o iate cortaria o mar graciosamente rumo à longínqua Florida Keys, a Cape Sable e ao atracadouro ensolarado no porto de St. Petersburg.
E se a mina explodisse quando eles ainda estivessem na água, a cinquenta metros do barco? Qual seria o efeito do deslocamento de ar em seus corpos? Talvez não fosse fatal. O casco do iate absorveria a maior parte. O recife talvez os protegesse.
Bond só podia adivinhar e manter a esperança.
Sobretudo, precisavam continuar vivos até o último segundo possível. Precisavam continuar respirando enquanto fossem arrastados, como um pacote vivo, pelo mar. Muita coisa dependia da maneira como eles os amarrariam um ao outro. Mr. Big haveria de querer que continuassem vivos. Não lhe interessaria uma isca morta.
Se ainda estivessem vivos quando a primeira barbatana de tubarão surgisse à tona atrás deles, Bond decidira afogar friamente Solitaire. Afogá-la torcendo seu corpo debaixo do seu e segurando-o ali. Em seguida, tentaria se afogar torcendo o corpo morto dela de volta para que o seu ficasse por baixo.
Cada volteio de seu pensamento esbarrava em um pesadelo, no horror nauseante de cada detalhe medonho da tortura monstruosa que aquele homem havia preparado para eles. Mas Bond sabia que precisava conservar o sangue-frio e a resolução absoluta de lutar pelas suas vidas até o fim. Havia ao menos uma sensação calorosa na ideia de que Mr. Big e a maioria de seus homens também morreriam. E um lampejo de esperança de que ele e Solitaire talvez sobrevivessem. A não ser que a mina falhasse, o inimigo não poderia contar com nenhuma esperança.
Tudo isso e uma centena de outros pormenores e planos passaram pela cabeça de Bond na última hora antes de serem levados pelo vão da escada até a superfície. Com Solitaire compartilhou todas as suas esperanças. Nenhum dos seus temores.
Ela ficara deitada à sua frente, com seus olhos azuis e cansados fixos nele, obedientes, confiantes, bebendo seu rosto e suas palavras, dóceis, amorosos.
“Não se preocupe comigo, querido”, dissera, quando os homens vieram buscá-los. “Sinto-me feliz de estar de novo com você. Meu coração está cheio de felicidade. De algum modo, não estou com medo, apesar de pressentir uma grande matança. Você me ama um pouquinho?”
“Sim”, respondeu Bond. “E vamos ainda aproveitar o nosso amor.”
“Vambora”, disse um dos homens.
E agora, no alto do morro, clareava. Bond ouviu os dois grandes motores a diesel tossirem e roncarem embaixo do penhasco. Uma leve brisa soprava a barlavento, mas a sota-vento, onde estava o barco, a baía era um espelho de bronze.
Mr. Big apareceu no alto da escadaria, com uma pasta de executivo na mão. Ficou por um momento olhando em volta, recuperando o fôlego. Não prestou nenhuma atenção a Bond ou Solitaire, nem aos dois guardas ao lado deles, de revólveres na mão.
Olhou para o céu e de repente clamou, em um tom de voz nítido, na direção da orla do sol.
“Obrigado, sir Henry Morgan. Seu tesouro será bem gasto. Dê-nos um vento de popa.”
Os guardas negros arregalaram os olhos.
“O vento Papa-Defunto”, disse Bond.
Big Man olhou-o.
“Já está tudo embaixo?”, perguntou aos guardas.
“Sim senhor, patrão”, respondeu um deles.
“Leve-os”, ordenou Big Man.
Foram até a beira do penhasco e desceram a escadaria íngreme, com um guarda na frente, outro atrás e Mr. Big a seguir.
Os motores do longo e elegante iate giravam sossegados, com o escape borbulhando gravemente, e um fio de vapor azul a se erguer da popa.
Três sujeitos no molhe cuidavam das guias. Só havia três homens no convés, além do capitão, e o piloto na ponte escura, bem projetada. Não havia mais espaço para ninguém. Todo o espaço disponível no convés, exceto por uma cadeira de pesca presa no lado direito da popa, era preenchido pelos tanques de peixe. Com o pavilhão vermelho arriado, só a bandeira americana pendia imóvel da popa.
Distante alguns metros do barco, a paravana vermelha em forma de torpedo, com cerca de dois metros de comprimento, flutuava tranquilamente na água, agora verde-mar ao primeiro amanhecer. Estava ligada a uma grossa pilha de cabos metálicos, enrolados no convés da popa. Parecia a Bond que eles deveriam ter uns bons cinquenta metros. A água estava cristalina e não havia peixes rondando por perto.
O vento Papa-Defunto morria aos poucos. Dentro em breve o vento Médico começaria a soprar vindo do mar. Dentro de quanto tempo?, perguntou-se Bond. Seria um presságio?
Ao longe, além do barco, ele conseguia avistar o teto de Beau Desert entre as árvores, mas o molhe, o barco e a trilha no penhasco ainda estavam mergulhados em profunda sombra. Bond pensou se os binóculos de visão noturna conseguiriam vê-los. Se pudessem, o que pensaria Strangways?
No molhe, Mr. Big supervisionava a tarefa de amarrá-los.
“Tire a roupa dela”, ordenou ao guarda.
Bond se encolheu. Deu uma olhada de relance para o relógio de pulso de Mr. Big. Nele, faltavam dez minutos para as seis. Bond manteve silêncio. Não deveria haver nem um minuto de atraso.
“Jogue as roupas a bordo”, disse Mr. Big. “Amarre uns panos no ombro dele. Não quero que haja sangue na água ainda.”
As roupas de Solitaire foram cortadas a faca. Ela permaneceu ali, nua e pálida. Abaixou a cabeça e seus cabelos pesados caíram para a frente, tapando seu rosto. O ombro de Bond foi atado grosseiramente com tiras do seu vestido de linho.
“Canalha”, desabafou Bond, de dentes cerrados.
Sob a direção de Mr. Big, primeiro soltaram as mãos dos dois. Seus corpos foram atados frente a frente, e seus braços passados pela cintura um do outro, e depois novamente atados com força.
Bond sentiu a pressão dos seios macios de Solitaire. Ela encostou o queixo no ombro direito dele.
“Eu não queria que fosse assim”, sussurrou, trêmula.
Bond não respondeu. Mal sentia o corpo dela. Contava os segundos.
No molhe havia uma corda enovelada que ia até a paravana. Mergulhava na água e Bond a distinguia seguindo no fundo de areia até surgir de encontro à barriga do torpedo vermelho.
Sua extremidade solta foi passada debaixo das axilas de Bond e Solitaire, e bem amarrada com um nó que ficava no espaço entre seus pescoços. Tudo feito com muito cuidado. Não havia possibilidade de fuga.
Bond contava os segundos. De acordo com ele, faltavam cinco para as seis.
Mr. Big deu uma última olhada nos dois.
“Deixem as pernas soltas”, comentou. “Dão uma isca apetitosa.” Deixou o molhe e embarcou no convés do iate.
Os dois guardas também embarcaram. Depois de soltarem as guias, os dois sujeitos no molhe os seguiram. As hélices revolveram a água mansa e, com os motores a meia velocidade, o Secatur se afastou rapidamente da ilha.
Mr. Big foi para a popa, sentando-se na cadeira de pesca. Podiam ver o seu olhar fixo neles. Não disse nada. Não fez gesto algum. Apenas contemplava.
O Secatur cortava a água em direção ao recife. Bond podia ver o cabo da paravana se desenrolando no costado. A paravana começou a se mover lentamente atrás do barco. De repente mergulhou o nariz, endireitou-se e disparou, com o leme se dobrando na direção contrária à esteira do barco.
O rolo de corda ao lado deles deu um súbito sinal de vida.
“Cuidado”, avisou Bond, com urgência, agarrando-se com mais força à garota.
Seus braços quase se desconjuntaram com o solavanco do puxão, quando caíram do molhe no mar.
Por um instante ambos submergiram, depois voltaram à tona, com seus corpos unidos rasgando a água.
Bond procurava respirar em meio às ondas e aos borrifos que passavam depressa por ele, inundando sua boca retorcida. Podia ouvir a respiração entrecortada de Solitaire ao lado do seu ouvido.
“Respire, respire”, gritou, através da avalanche de água. “Prenda suas pernas nas minhas.”
Ela ouviu-o e ele sentiu entre as coxas a pressão dos joelhos dela. Solitaire teve um acesso de tosse. Em seguida, a respiração dela tornou-se mais regular junto ao seu ouvido e as batidas do coração da mulher acalmaram-se contra o seu peito. Ao mesmo tempo, a velocidade em que eram rebocados sofreu uma redução.
“Prenda a respiração”, gritou Bond. “Preciso dar uma olhada. Pronta?”
Ela respondeu com uma pressão dos braços. Ele sentiu o peito dela inflar quando seus pulmões se encheram de ar.
Usando o peso do corpo, girou-a para baixo, de maneira que a cabeça dele agora estava totalmente fora d’água.
Cortavam o mar a cerca de três nós. Dobrou a cabeça acima da pequena marola que faziam.
O Secatur entraria na passagem entre os recifes dentro de aproximadamente oitenta metros, segundo calculou. A paravana deslizava lentamente, quase em ângulo reto em relação ao barco. Faltavam trinta metros para o torpedo vermelho atravessar as águas encrespadas sobre o recife. Trinta metros atrás da paravana, eles navegavam devagar na superfície da baía.
Sessenta metros até o recife.
Bond girou o corpo e Solitaire emergiu, ofegante.
Continuaram a avançar lentamente na água.
Cinco metros, dez, quinze, vinte...
Apenas quarenta metros para atingirem o banco de coral.
O Secatur deveria ter acabado de transpô-lo. Bond recuperou o fôlego. Já devia passar das seis. Que teria acontecido com a porcaria da mina? Bond fez uma rápida e fervorosa oração. Que Deus nos salve, disse dentro d’água.
De repente sentiu que a corda apertava sob seus braços.
“Respire, Solitaire, respire”, gritou quando retomaram a velocidade e a água começou a passar sibilante por eles.
Agora voavam pelo mar em direção ao recife submerso.
Houve uma ligeira diminuição de velocidade. Bond imaginou que a paravana tivesse batido em uma pedra ou algum coral na superfície. Em seguida, seus corpos voltaram a disparar no seu abraço mortal.
Faltavam trinta metros, vinte, dez...
Meu Deus, pensou Bond. Não escaparemos. Contraiu os músculos para enfrentar a dor lancinante do impacto, empurrando Solitaire mais para cima, para protegê-la do pior.
De repente o ar fugiu com um chiado de seus pulmões, e um punho gigantesco socou-o contra Solitaire, de modo que ela se ergueu totalmente fora do mar e voltou a cair. Uma fração de segundo depois, um clarão iluminou o céu e ouviu-se o ribombar de uma explosão.
Estacaram de repente, e Bond percebeu que o peso da corda solta os puxava para baixo.
Suas pernas afundaram sob seu corpo atordoado e a água inundou sua boca.
Foi o que o fez recuperar a consciência. As pernas dele se debateram no fundo, voltando a trazer suas bocas até a tona. A garota era um peso morto em seus braços. Ele revolvia a água em desespero e olhava à sua volta, segurando a cabeça desmaiada de Solitaire em seu ombro, acima da superfície.
A primeira coisa que viu foram as águas revoltas do recife, a não mais de cinco metros de distância. Sem a sua proteção, ambos teriam sido esmagados pelo impacto da explosão. Ele sentiu o repuxo e o rodamoinho da correnteza em volta das pedras. Avançou desesperado em direção a ele, aspirando golfadas de ar sempre que possível. Seu peito ardia com o esforço e ele via o céu através de uma película vermelha. A corda o puxava para baixo e o cabelo da garota enchia sua boca, quase o sufocando.
De repente sentiu um arranhão agudo do coral contra a parte de trás das pernas. Chutou-as procurando desesperadamente um apoio para os pés, esfolando a pele a cada movimento.
Mal sentia dor.
Agora eram seus braços e suas costas que estavam sendo arranhados. Tropeçou, desajeitado, com os pulmões ardendo no peito. Em seguida sentiu uma camada de agulhas sob os pés. Arriou o peso nela, inclinando-se para trás para resistir à forte correnteza que procurava desalojá-lo. Seus pés resistiram e havia rocha às suas costas. Inclinou-se para trás, ofegante, com o sangue escorrendo em volta dele na água, segurando contra si o corpo frio da garota, que mal respirava.
Descansou por um minuto, com gratidão, olhos fechados e o sangue pulsando nas veias, tossindo dolorosamente, à espera de que seus sentidos se reanimassem. Seu primeiro pensamento foi em relação ao sangue na água à sua volta. Mas desconfiou de que os grandes peixes não se aventuravam até o recife. Aliás, não havia nada que ele pudesse fazer quanto a isso.
Em seguida, olhou para o mar.
Não havia sinal algum do Secatur.
No alto do céu tranquilo via-se um cogumelo de fumaça, que o vento Médico começava a arrastar em direção à terra.
Havia destroços espalhados sobre toda a extensão do mar e cabeças que subiam e desciam. A água estava toda coalhada com as barrigas brancas dos peixes atordoados ou mortos pela explosão. Um cheiro forte de explosivo pairava no ar. Na orla dos destroços a paravana vermelha jazia tranquila com o casco para baixo, ancorada pelo cabo cuja outra ponta deveria se encontrar em algum lugar no fundo. Colunas de bolhas emergiam na superfície vítrea do mar.
Na beira do círculo de peixes mortos e cabeças balouçantes, algumas barbatanas triangulares cortavam rápido o mar. Mais delas surgiram enquanto Bond observava. Em uma ocasião viu um grande focinho surgir da água e abocanhar alguma coisa. As barbatanas espirravam água ao chapinhar entre os escolhos. Dois braços negros se ergueram de repente no ar, desaparecendo em seguida. Ouviram-se gritos. Algumas pessoas davam braçadas agitadas no mar em direção ao recife. Alguém parou para bater na água diante dele com a mão espalmada. Depois as mãos desapareceram sob a superfície. Ouviram-se os gritos de quando seu corpo foi sacudido para lá e para cá dentro d’água. Uma barracuda o devorando, disse Bond consigo mesmo, atordoado.
Mais uma cabeça se aproximava, procurando chegar ao ponto do recife onde estava Bond, pequenas ondas quebrando sob suas axilas, e o cabelo preto da garota caído nas suas costas.
Era uma cabeça grande. Uma cortina de sangue escorria pelo seu rosto, de um ferimento no crânio imenso e calvo.
Bond observava a sua aproximação.
Big Man executava um nado de peito desajeitado, fazendo tanto espalhafato na água que era capaz de atrair qualquer peixe que já não estivesse ocupado.
Bond perguntou a si mesmo se ele conseguiria chegar. Seus olhos se estreitaram e sua respiração se acalmou, contemplando e esperando a decisão que o mar cruel tomaria.
A cabeça se aproximava. Bond podia ver os dentes à mostra em uma contração de agonia e de esforço titânico. O sangue tapava os olhos que Bond sabia estarem esbugalhados. Podia quase ouvir o grande coração doente batendo debaixo da pele preta acinzentada. Pararia antes que a isca fosse abocanhada?
Big Man continuava a vir. Os ombros estavam nus, as roupas haviam sido arrancadas pela explosão, imaginou Bond, porém, a gravata de seda preta resistira e aparecia em volta do pescoço grosso, arrastada atrás da cabeça como um rabicho de chinês.
Um borrifo de água limpou um pouco do sangue de seus olhos. Estavam arregalados, olhando desvairados para Bond. Neles não havia nenhuma súplica, somente o olhar fixo da exaustão física.
No instante mesmo em que Bond os contemplava, agora a apenas dez metros, fecharam-se de repente e o grande rosto se contorceu em uma careta de dor.
“Aarrh”, gritou a boca retorcida.
Os dois braços pararam de bater na água e a cabeça afundou e voltou à tona de novo. Uma nuvem de sangue escureceu o mar. Duas sombras esguias e marrons de três metros se afastaram da nuvem e, em seguida, voltaram rápido para ela. O corpo na água foi sacudido de lado. Metade do braço de Big Man surgiu à tona. Sem mão, sem pulso, nem relógio.
Mas a grande cabeça de nabo, a boca arreganhada cheia de dentes brancos que quase a dividiam ao meio, ainda estava viva. E agora berrava. Um grande berro gorgolejante que só dava quando alguma barracuda abocanhava seu corpo.
Ouviu-se um grito distante na baía, atrás de Bond. Mas ele não prestou atenção. Todos os seus sentidos estavam concentrados na cena horripilante no mar diante dele.
Uma barbatana rasgou a superfície a alguns metros de distância e parou.
Bond pôde ver o tubarão apontando o focinho como um cachorro, com os olhos míopes, rosados e redondos, tentando penetrar a nuvem de sangue e avaliar a presa. Então arremeteu contra o torso, e a cabeça que gritava afundou tão rápido quanto um peso de chumbo.
Algumas bolhas estouraram na superfície.
Houve um rodamoinho causado pela cauda manchada de marrom de um grande tubarão-leopardo, que recuou para engolir e para atacar de novo.
A cabeça voltou a flutuar. A boca estava fechada. Os olhos amarelos pareciam ainda se fixar em Bond.
O focinho do tubarão saiu da água e avançou para a cabeça, com a mandíbula inferior aberta e a luz brilhando em seus dentes. Houve um rangido horrível de osso triturado e um rodamoinho. Depois, o silêncio.
Os olhos dilatados de Bond continuaram a mirar a mancha marrom que cada vez mais se espalhava no mar.
A garota deu um gemido e Bond recuperou a lucidez.
Ouviu-se outro grito atrás dele e Bond virou a cabeça para a baía.
Era Quarrel, seu peito moreno e luzidio avultando sobre o casco esguio da canoa, com os braços trabalhando o remo, seguido, a uma longa distância, por todas as outras canoas da baía dos Tubarões deslizando sobre as pequenas ondas que haviam começado a encrespar a superfície.
Os ventos elísios do nordeste haviam começado a soprar e o sol brilhava na água azul e nos doces flancos verdes da Jamaica.
As primeiras lágrimas que brotaram dos olhos azuis-acinzentados de James Bond desde a sua infância escorreram pelo seu rosto contraído, caindo no mar manchado de sangue.
23.
LICENÇA PAIXÃO
Como dois pingentes de esmeralda, dois beija-flores faziam a última ronda pelos hibiscos. Um tordo começara sua cantoria vespertina, mais doce que a do rouxinol, em cima de um arbusto perfumado de jasmim da noite.
A sombra irregular de uma fragata deslizou por cima do gramado verde, enquanto planava nas correntes de ar que subiam a costa até alguma distante colônia, e o martim-pescador azul-acinzentado chilreou, irritado, ao ver o homem sentado em uma cadeira no jardim. Mudou a direção do voo e guinou, atravessando o mar, até a ilha. Uma borboleta sulfurina flertava entre as sombras roxas das palmeiras.
O mar de variados tons de azul da baía estava bastante calmo. Os penhascos da ilha eram de um rosa profundo, à luz do sol que se punha atrás da casa.
Havia um cheiro de entardecer e de frescor depois do calor do dia, e um leve perfume de farinha de mandioca torrada vindo das cabanas de pescadores, no povoado à direita, a distância.
Solitaire saiu da casa de pés descalços e atravessou o gramado. Carregava uma bandeja com uma coqueteleira e dois copos. Colocou-a na mesa de bambu ao lado da cadeira de Bond.
“Espero ter feito direito”, comentou. “Seis partes para uma parece terrivelmente forte. Nunca tomei martíni de vodca.”
Bond olhou para ela. Vestia um de seus pijamas brancos de seda. Eram demasiado grandes. Parecia absurdamente infantil.
Ela riu. “O que acha de meu batom de Port Maria?”, perguntou. “E as sobrancelhas delineadas com lápis HB? Não consegui fazer mais nada para me ajeitar, além de tomar banho.”
“Está uma maravilha”, disse Bond. “Você é de longe a garota mais bonita da baía dos Tubarões. Se eu tivesse pernas e braços, me levantaria para lhe dar um beijo.”
Solitaire se inclinou e lhe deu um longo beijo na boca, com o braço apertado em volta de seu pescoço. Levantou-se e afastou a mecha curva de cabelos sobre a testa dele.
Olharam um para o outro. Em seguida, ela virou para a mesa e lhe serviu um coquetel. Despejou meio copo para si e sentou no gramado quente, com a cabeça contra o joelho de Bond. Ele brincou com a mão direita entre os cabelos dela e ficaram um instante sentados, olhando o mar entre as palmeiras e a luz que declinava na ilha.
O dia fora dedicado a lamber as feridas e ajeitar o que sobrara da confusão.
Quando Quarrel desembarcara com eles na pequena praia de Beau Desert, Bond carregara Solitaire pelo gramado até o banheiro. Enchera a banheira de água quente. Sem que ela soubesse o que estava acontecendo, ele ensaboara e lavara todo seu corpo e seus cabelos. Depois de tirar todo o sal e musgo do coral, ajudou-a a sair, secou-a e botou mertiolato nos cortes de coral que marcavam suas costas e suas coxas. Depois lhe deu um comprimido para dormir e colocou-a nua entre os lençóis de sua própria cama. Beijou-a. Antes de fechar as venezianas, ela já dormia.
Entrou no banheiro e Strangways o ensaboou. Depois quase o banhou em mertiolato. Sangrava e estava esfolado em centenas de lugares, com o braço esquerdo dormente por causa da mordida da barracuda. Perdera um bocado de músculo do ombro. A ardência do mertiolato fez com que trincasse os dentes. Vestiu um roupão e Quarrel o levou ao hospital em Port Maria.
Antes de partir, tomou um café da manhã reforçado e fumou um bendito cigarro. Dormiu no carro, dormiu na mesa de operações e na cama onde finalmente o puseram, como uma massa de ataduras e esparadrapo cirúrgico.
Quarrel trouxe-o de volta no começo da tarde. A essa altura Strangways já agira de acordo com as instruções que Bond lhe dera. Mandaram um destacamento de polícia para a ilha da Surpresa. Os destroços do Secatur, a trinta e seis metros de profundidade, receberam uma boia de sinalização, que passou a ser patrulhada pela lancha da alfândega de Port Maria. O rebocador de salvamento e os mergulhadores estavam a caminho a partir de Kingston. Os repórteres da imprensa local tinham recebido uma breve declaração, e havia policiais em guarda na entrada de Beau Desert, para conter a avalanche de repórteres que chegariam à Jamaica, depois que toda a história corresse o mundo. Enquanto isso, um relatório completo fora enviado a M e a Washington, de modo que o bando de Big Man no Harlem e em St. Petersburg pudesse ser preso provisoriamente sob a acusação preventiva de contrabando de ouro.
Não houve sobreviventes do Secatur, mas os pescadores locais trouxeram quase uma tonelada de peixes mortos naquela manhã.
A Jamaica estava fervilhando de boatos. Fileiras de carros paravam, lado a lado, nos penhascos acima da baía e ao longo da praia embaixo. Espalhara-se a notícia do tesouro de Morgan, o Sanguinário, porém, o bando de tubarões e barracudas também o protegia. Por causa deles não havia nadador que arriscasse ir até a cena do naufrágio na calada da noite.
Veio um médico visitar Solitaire. Ele encontrou-a preocupada principalmente em arranjar roupas e o batom no tom certo. Strangways encomendara uma amostra completa deles de Kingston, que chegaria no dia seguinte. Por enquanto, ela fazia experiências com o conteúdo da valise de Bond e uma tigela de hibiscos.
Strangways voltou de Kingston após a saída de Bond do hospital. Trouxe um telegrama cifrado de M para Bond, no qual se lia:
SUPONHO REIVINDICOU TESOURO EM SEU NOME REPRESENTANDO UNIVERSAL EXPORT PONTO PROSSIGA IMEDIATAMENTE SALVAMENTO PONTO CONTRATEI ADVOGADO DEFENDER DIREITOS JUNTO TESOURO E MINISTÉRIO COLÔNIAS PONTO ENQUANTO ISSO PARABÉNS PONTO CONCEDIDA LICENÇA PAIXÃO QUINZE DIAS PONTO FINAL
“Suponho que ele queira dizer ‘compaixão’”, comentou Bond.
Strangways tinha um aspecto solene. “Acho que sim”, respondeu. “Fiz um relatório completo dos danos que você sofreu. E a garota também”, acrescentou.
“Hmm”, disse Bond. “As expressões cifradas geralmente são precisas. Mesmo assim.”
Strangways olhou propositalmente pela janela, reprimindo um sorriso.
“Bem típico da velha raposa, pensar primeiro no ouro”, comentou Bond. “Suponho que ele ache que conseguirá obter o que quer, descobrindo um modo de contornar a redução da verba secreta quando houver nova reunião do Parlamento para avaliá-la. Creio que passa metade de sua vida brigando com o Tesouro. Mesmo assim, está muito errado se pensa que conseguirá.”
“Dei entrada na sua reivindicação na sede do governo, assim que recebi a mensagem”, relatou Strangways. “Mas será difícil. A Coroa virá atrás do tesouro e a América entrará nisso de alguma forma, porque Big Man era cidadão americano. Vai dar pano pra manga.”
Haviam conversado mais um pouco e depois Strangways partira. Bond caminhara cheio de dores até o jardim, para se sentar um pouco ao sol, sozinho com seus pensamentos.
Recapitulou a série de riscos que correra na sua longa busca por Big Man e pelo tesouro fabuloso, revivendo os episódios em que enfrentara a morte cara a cara.
Agora terminara e ele estava sentado ao sol, entre as flores, com a recompensa aos seus pés e sua mão entre os longos cabelos pretos dela. Agarrou bem aquele instante e pensou nos catorze dias seguintes que lhes pertenceriam.
Ouviram-se um barulho de louça quebrada na cozinha, nos fundos da casa, e o som da voz de Quarrel praguejando contra alguém.
“Pobre Quarrel”, disse Solitaire. “Arranjou a melhor cozinheira do povoado e varreu os mercados atrás de surpresas para nós. Chegou a encontrar caranguejos negros, os primeiros da época. Depois passou a assar o pobrezinho de um leitão ainda mamando e a fazer uma salada de abacate, para terminar com goiabas e manjar de coco. E o Comandante Strangways deixou uma caixa do melhor champanhe da Jamaica. Já estou com água na boca. Mas não se esqueça de que deve ser segredo. Cheguei de surpresa na cozinha e ele quase fez a cozinheira chorar.”
“Virá com a gente na nossa licença paixão”, disse Bond. Contou-lhe sobre o telegrama de M. “Vamos para uma casa sobre estacas, com palmeiras e oito quilômetros de areia dourada. E você terá de cuidar de mim muito bem, porque não poderei fazer amor com um braço só.”
Havia uma sensualidade óbvia no olhar de Solitaire, quando ela o ergueu para ele, sorrindo inocentemente.
“E eu com as minhas costas?”, disse ela.
16.
O LADO JAMAICANO
Eram duas horas da madrugada. Bond tirou o carro de junto da amurada e atravessou a cidade até pegar a 4th Street, a rodovia para Tampa.
Seguiu despreocupado pelas quatro pistas cimentadas da rodovia, atravessando o infindável corredor polonês de motéis, campings e lojas de beira de estrada, que vendiam mobília de praia e gnomos de concreto.
Parou no Gulf Winds Bar and Snacks e pediu um Old Grandad duplo com gelo. Enquanto o barman o servia, foi ao banheiro se limpar. As ataduras na mão esquerda estavam cobertas de sujeira e a mão latejava dolorosamente. A tala quebrara na barriga do Ladrão. Não havia nada que ele pudesse fazer. Os olhos estavam vermelhos de tensão e falta de sono. Foi até o bar, bebeu o Bourbon e pediu outro. O barman parecia um desses universitários que custeavam as próprias férias trabalhando duro. Estava a fim de conversar, mas em Bond não restara nenhuma vontade de falar. Ficou sentado, olhando o copo, pensando em Leiter e no Ladrão, e ouvindo o grunhido repugnante do tubarão devorando a presa.
Pagou, saiu e atravessou de novo a Gandy Bridge, com o ar fresco da baía lhe batendo no rosto. No final da ponte, virou à esquerda em direção ao aeroporto e parou no primeiro motel que parecia aberto.
O casal de proprietários de meia-idade ouvia um programa cubano de rumbas na madrugada, com uma garrafa de Rye entre eles. Bond contou uma história sobre um pneu furado entre Sarasota e Silver Springs. Não estavam interessados. Queriam apenas os seus dez dólares. Bond levou o carro até o quarto 5, o sujeito abriu a porta e acendeu as luzes. Havia uma cama de casal, um banheiro com chuveiro e duas cadeiras. O branco e o azul davam o tom nas paredes. Parecia limpo e Bond colocou a sacola no chão com um sentimento de gratidão, ao se despedir do dia. Despiu-se, jogou as roupas sem dobrar em uma cadeira. Em seguida tomou uma rápida chuveirada, escovou os dentes, gargarejou com um dentifrício forte e entrou na cama.
Mergulhou logo em um sono tranquilo. Era a primeira noite, desde que chegara à América, em que não se sentia ameaçado por uma nova batalha contra o destino na manhã seguinte.
Acordou ao meio-dia e caminhou pela estrada até uma cafeteria, onde o cozinheiro lhe preparou no balcão um delicioso sanduíche de três andares, que ele comeu enquanto tomava café. Em seguida, voltou ao quarto e escreveu um relatório minucioso ao FBI em Tampa. Omitiu todas as referências ao ouro nos tanques de peixes venenosos, com medo de que Big Man encerrasse os negócios na Jamaica. Eles ainda precisavam ser investigados. Bond sabia que os danos que ele provocara na máquina de Big Man na América não mudavam nada o objetivo principal de sua missão — a descoberta da fonte do ouro, sua captura e a destruição, se possível, do próprio Mr. Big.
Foi de carro até o aeroporto e pegou o quadrimotor prateado, faltando apenas poucos minutos para a partida. Deixou o carro de Leiter no estacionamento, conforme dissera no seu relatório ao FBI. Pensou que fora algo desnecessário, quando avistou um sujeito vestindo uma capa esdrúxula, à toa em uma loja de lembranças. As capas de chuva pareciam ser praticamente o uniforme do FBI. Bond estava certo de que queriam ter certeza de que ele pegaria o avião. Ficariam satisfeitos de vê-lo pelas costas. Por onde passara na América, deixara um rastro de cadáveres. Antes de embarcar no avião, ligou para o hospital em St. Petersburg. Arrependeu-se. Leiter ainda estava inconsciente e não tinham prognósticos. Sim, ligariam de volta quando tivessem alguma notícia definitiva.
Eram cinco da tarde quando o avião circulou sobre Tampa Bay, rumo ao leste. O sol estava baixo no horizonte. Um grande jato vindo de Pensacola passou ventando, bem a bombordo, deixando quatro rastros de vapor pairando quase imóveis no ar parado. Em breve o voo de reconhecimento terminaria e ele voltaria para pousar na costa do Golfo, cheia de idosos com camisetas estampadas. Bond se alegrava de estar a caminho das doces encostas verdes do litoral da Jamaica, deixando para trás o grande e rijo continente de Eldollarado.
O avião avançava, atravessando a cintura da Flórida, os hectares de floresta e de mangue sem nenhum sinal de habitantes humanos, com suas luzes da asa piscando, verdes e vermelhas, na escuridão que chegava. Em breve sobrevoavam Miami e as monstruosas arapucas para otários da costa oriental, cujas artérias brilhavam, entupidas de néon. Longe, a bombordo, a rodovia estadual nº 1 sumia subindo o litoral, uma fita dourada de motéis, postos de gasolina e barracas de suco de frutas, passando por Palm Beach, Daytona e Jacksonville, a quatrocentos e cinquenta quilômetros. Bond pensou no café da manhã que tomara em Jacksonville, por volta de três dias antes, e em tudo o que acontecera depois. Dentro em breve, após uma curta parada em Nassau, sobrevoaria Cuba, talvez sobre o esconderijo em que Mr. Big ocultara Solitaire. Ela ouviria o barulho do avião e talvez sua intuição a fizesse olhar para cima e sentir, por um instante, que ele estava próximo.
Bond ficou pensando se jamais se encontrariam de novo para acabar o que haviam começado. Mas isso teria de vir mais tarde, quando seu trabalho estivesse terminado — o prêmio de um itinerário perigoso que começara três semanas antes, em meio ao nevoeiro de Londres.
Depois de um coquetel e um jantar cedo, chegaram a Nassau e passaram meia hora na ilha mais rica do mundo, aquela faixa arenosa onde milhões e milhões de libras esterlinas são enterradas com grande susto nas mesas de canastra, e onde bangalôs, cercados de uma parede fina de pinheiros e casuarinas, trocam de mãos por cinquenta mil libras.
Deixaram para trás a escala rápida na ilha de platina, e em breve sobrevoavam as madrepérolas cintilantes das luzes de Havana, tão diferentes, em seus modestos tons pastel, das berrantes cores primárias das cidades americanas à noite.
Voavam a cinco mil metros quando, logo depois de passar por Cuba, encontraram uma daquelas tempestades tropicais que de repente fazem com que as aeronaves se transformem, de confortáveis salas de estar, em armadilhas mortíferas sacolejantes. O grande avião cambaleou e deu um mergulho, com as hélices ora roncando no vácuo, ora mordendo com força os paredões compactos de ar. O cilindro esguio de metal estremecia e balançava. A louça se espatifava na copa, e a chuva forte martelava as vidraças.
Bond agarrou os braços da poltrona, provocando dor na mão esquerda, praguejando baixinho consigo mesmo.
Olhou para as prateleiras das revistas e pensou: não serão de muita utilidade quando o aço acusar fadiga, a cinco mil metros de altitude, nem a água de colônia no banheiro, as refeições personalizadas, o barbeador gratuito, a “orquídea para sua senhora” agora trêmula na geladeira. Muito menos os cintos de segurança e os coletes salva-vidas, com o apito que realmente apita, segundo a demonstração da aeromoça, nem a luz de resgate engraçadinha que emite um brilho vermelho.
Não. Quando as tensões se tornam excessivas no metal fatigado, quando o mecânico de manutenção que testa o equipamento de descongelamento está apaixonado e faz mal o serviço, lá em Londres, Idlewild, Gander, Montreal; quando essas ou muitas outras coisas acontecem, então a pequena sala aquecida, com hélices na frente, cai como uma pedra do céu, na terra ou no mar, mais pesada que o ar, falível, imprestável. E as quarenta pessoas mais pesadas que o ar, frágeis dentro da fragilidade do avião, desamparadas dentro do desamparo maior do avião, despencam com ele, abrindo pequenos buracos na terra, ou espirrando água no mar. De qualquer modo, é o destino, então por que se preocupar? As pessoas estão conectadas aos dedos descuidados do mecânico de manutenção em Nassau, do mesmo modo que estão conectadas ao homenzinho no sedã da família, que confunde o sinal verde com o vermelho e bate de frente, pela primeira e última vez, na pessoa que dirigia tranquilamente para casa depois de um programa clandestino. Não se pode fazer nada. Começamos a morrer desde o dia em que nascemos. A vida inteira é um jogo de cartas com a morte. Por isso tenha calma. Acenda um cigarro e seja grato por ainda estar vivo, enquanto traga a fumaça profundamente nos seus pulmões. Nosso destino já permitiu que percorrêssemos um longo caminho desde que abandonamos o útero da mãe e choramingamos ao contato com o ar frio do mundo. Talvez ele até permita que cheguemos à Jamaica esta noite. Não está escutando as vozes animadas da torre de controle que passaram o dia falando, tranquilas: “Pode pousar, BOAC. Pode pousar, Panam. Pode pousar, KLM”? Não as escuta também nos chamando: “Pode pousar, Transcarib. Pode pousar, Transcarib”? Não perca a fé no destino. Lembre aquele momento terrível em que enfrentou a morte diante da arma do Ladrão, na noite passada. Ainda está vivo, não está? Pronto, já não corremos mais perigo. Isso foi só para lembrar que ser rápido no gatilho não quer dizer que você seja realmente forte. Não se esqueça. Este pouso feliz no Aeroporto Palisadoes é cortesia de seu destino. Melhor agradecer a ele.
Bond desatou o cinto de segurança e limpou o suor do rosto.
Ao diabo com tudo isso, pensou, ao desembarcar da aeronave enorme e resistente.
Strangways, o chefe do serviço secreto do Caribe, veio encontrá-lo no aeroporto, e assim ele passou depressa pela alfândega, imigração e fiscalização financeira.
Eram quase onze horas de uma noite quente, tranquila. Ouvia-se o som agudo dos grilos nas fileiras de cactos de ambos os lados da estrada do aeroporto, e Bond absorvia com gratidão os ruídos e os cheiros tropicais, enquanto a caminhonete militar atravessava a periferia de Kingston, em direção aos contrafortes cintilantes e enluarados das Montanhas Azuis.
Conversaram em monossílabos até se instalarem na varanda aconchegante da bela casa branca de Strangways, em Junction Road, abaixo de Stony Hill.
Strangways serviu um uísque com soda reforçado para os dois e, em seguida, fez um relato conciso de todo o lado jamaicano do problema.
Era um sujeito esguio e bem-humorado de mais ou menos trinta e cinco anos, ex-tenente e comandante da Seção Especial da Reserva Voluntária da Marinha Real. Tinha uma venda negra sobre um olho e o tipo de beleza aquilina associada à ponte de comando dos destróieres. Mas debaixo do bronzeado havia um rosto marcado, e Bond percebeu, pelos gestos rápidos e frases entrecortadas, seu ânimo nervoso e tenso. Era certamente eficiente, tinha senso de humor e não demonstrava nenhum sinal de ciúme diante de alguém que viera da matriz para se meter em seu território. Bond sentiu que se dariam bem, antecipando com prazer essa parceria.
Eis a história que Strangways tinha para contar.
Sempre circularam boatos sobre a presença de um tesouro na ilha da Surpresa, e tudo que se sabia sobre Morgan, o Sanguinário, confirmava essa suspeita.
A pequena ilha ficava no centro exato da baía dos Tubarões, um pequeno porto no final da Junction Road, que corre pela cintura fina da Jamaica, de Kingston à costa norte.
O grande bucaneiro fizera da baía dos Tubarões seu quartel-general. Gostava de ter toda a largura da ilha de permeio entre ele e o governador em Port Royal, de modo que pudesse sair e entrar nas águas jamaicanas em total segredo. O governador também gostava desse arranjo. A Coroa queria que ele fechasse os olhos à pirataria de Morgan até que os espanhóis fossem expulsos do Caribe. Quando isso ocorreu, Morgan foi recompensado com um título de nobreza e o posto de governador da Jamaica. Até então, suas ações tinham de ser repudiadas para evitar uma guerra contra a Espanha, na Europa.
No entanto, durante o longo período antes que a raposa recebesse a chave do galinheiro, Morgan utilizou a baía dos Tubarões como porto de partida para suas investidas. Construiu três casas na propriedade vizinha, denominada Llanrumney, em homenagem ao seu local de nascimento no País de Gales. Essas casas se chamavam “Casa de Morgan”, “Casa do Médico” e “Casa da Dama”. Ainda hoje se descobrem moedas e fivelas em suas ruínas.
O ancoradouro de seus navios sempre foi a baía dos Tubarões, e os reparos nas embarcações eram feitos, a sotavento, na ilha da Surpresa, um pedaço de coral e calcário acidentado que surge do centro da baía, encimado por um platô cheio de mato de cerca de meio hectare.
Quando partiu para sempre da Jamaica, em 1683, foi como preso, para ser julgado por seus pares por menosprezo à Coroa. Seu tesouro foi abandonado em algum lugar na Jamaica e ele morreu na miséria, sem revelar seu paradeiro. Deve ter sido um vasto butim, fruto de incontáveis investidas contra Hispaniola, da captura de inúmeros navios que levavam tesouros para La Plata, do saque do Panamá e da pilhagem de Maracaibo. Mas sumiu sem deixar vestígios.
Sempre se pensou que o segredo jazia em algum lugar da ilha da Surpresa, mas duzentos anos de mergulhos e de escavações da parte dos caçadores de tesouros não revelaram nada. Então, disse Strangways, há apenas seis meses, duas coisas aconteceram em poucas semanas. Um jovem pescador desapareceu do povoado da baía dos Tubarões e nunca mais se soube dele, e um sindicato anônimo de Nova York adquiriu a ilha por mil libras do atual proprietário de Llanrumney, agora uma próspera propriedade de cultivo de banana e de criação de gado.
Poucas semanas depois da venda, o iate Secatur chegara à baía dos Tubarões e fundeara no antigo ponto de ancoragem de Morgan, a sotavento da ilha. Veio com uma tripulação exclusivamente negra. Puseram-se a trabalhar, cavando uma escada na face do rochedo, construindo no topo uma série de cabanas baixas de taipa, ao estilo jamaicano.
Pareciam estar perfeitamente aprovisionados e só compravam peixe fresco e água dos pescadores da baía.
Era um pessoal ordeiro e taciturno, que não dava trabalho. Explicaram à alfândega da vizinha Santa Maria, que os havia liberado, que estavam ali para pescar peixes tropicais, especialmente as variedades venenosas, e coletar conchas para a Ourobouros Inc, de St. Petersburg. Depois que se estabeleceram, compraram grandes quantidades deles dos pescadores da baía dos Tubarões, Port Maria e Oracabessa.
Durante uma semana realizaram explosões na ilha, dizendo que era para a escavação de um grande tanque de peixes.
O Secatur começou a fazer uma rota quinzenal para o Golfo do México, e observadores com binóculos confirmaram que, antes de zarpar, sempre embarcavam tanques portáteis de peixe. Meia dúzia de homens era deixada para trás. Quaisquer canoas que se aproximassem da ilha recebiam ameaças de um guarda, na base da escadaria no rochedo, que ficava o dia inteiro pescando em um molhe estreito onde o Secatur atracava, preso a duas âncoras no mar, bem abrigado dos ventos nordeste.
Jamais alguém conseguiu desembarcar na ilha de dia e, depois de duas tentativas trágicas, ninguém voltou a tentar um desembarque noturno.
A primeira tentativa foi a de um pescador local, instigado pelos boatos de um tesouro enterrado que nenhuma conversa sobre peixes tropicais podia abafar. Partiu a nado uma noite e seu corpo fora devolvido pelo mar, por cima do recife, no dia seguinte. Os tubarões e as barracudas só deixaram o torso e um pedaço da coxa.
Mais ou menos na hora em que ele deveria chegar à ilha, toda a aldeia da baía dos Tubarões foi acordada pelo batuque mais terrível. Parecia vir do interior da ilha. Reconheceram-no como um batuque do vodu. Começou tranquilo e foi em um crescendo trovejante. Depois baixou novamente e parou. Durou cerca de cinco minutos.
Desde aquele momento a ilha se tornou ju-ju, ou obeah, como se diz na Jamaica, e, mesmo à luz do dia, as canoas ficam a uma distância segura.
A essa altura, Strangways teve seu interesse despertado e fez um relatório completo a Londres. Desde 1950, a Jamaica se tornara um alvo estratégico importante, graças à exploração, pela Reynolds Metal e pela Kaiser Corporation, de enormes depósitos de bauxita encontrados na ilha. Na opinião de Strangways, as atividades na ilha da Surpresa bem poderiam estar ligadas à construção de uma base de submarinos de um só tripulante, prevendo uma situação de guerra, especialmente porque a baía dos Tubarões estava no âmbito da rota dos navios da Reynolds até o novo porto de embarque de bauxita de Ocho Ríos, alguns quilômetros costa abaixo.
Londres investigou, junto com Washington, com base no relatório, e veio à tona a informação de que o sindicato que comprara a ilha era inteiramente de propriedade de Mr. Big.
Isso há três meses. Strangways recebeu ordens de entrar na ilha de qualquer maneira e descobrir o que estava acontecendo. Montou uma operação e tanto. Alugou uma propriedade no braço ocidental da baía dos Tubarões, chamada Beau Desert, onde existem as ruínas de um dos famosos casarões jamaicanos do começo do século dezenove, e também uma casa de praia moderna bem em frente ao ancoradouro do Secatur na ilha da Surpresa.
Trouxe dois bons nadadores da base naval na Bermuda e organizou uma observação permanente da ilha através de binóculos diurnos e noturnos. Nada foi visto que parecesse suspeito e, em uma noite calma e escura, ele mandou os dois nadadores com ordens de fazer uma vistoria submarina das fundações da ilha.
Strangways contou o pavor que sentiu quando, uma hora depois de partirem a nado para atravessar os trezentos metros de mar, começou um terrível batuque em algum lugar dentro dos penhascos da ilha.
Naquela noite os dois não voltaram.
No dia seguinte, ambos apareceram na praia, em lugares diferentes da baía. Ou melhor, o que sobrou de seus corpos devorados pelos tubarões e barracudas.
Nesta altura da história de Strangways, Bond interrompeu-o.
“Um minuto só”, disse, “que história é essa de tubarões e barracudas? Geralmente eles não são agressivos nestas águas. Não existem muitos na Jamaica e raramente se alimentam de noite. Aliás, não creio que nenhum deles ataque seres humanos, a não ser que haja sangue na água. Podem dar uma mordida, uma vez ou outra, em algum pé branco, por curiosidade. Já houve notícias anteriores de comportamento assim na Jamaica?”
“Nunca houve outro caso, desde que uma garota teve o pé devorado em Kingston Harbour, em 1942”, disse Strangways. “Ela estava sendo rebocada por uma lancha, batendo os pés. Seus pés brancos devem ter parecido especialmente apetitosos. E, além disso, estavam viajando em uma velocidade que convidava ao ataque. Todo mundo concorda com sua teoria. E meus homens tinham arpões e facas. Achei que fizera de tudo para protegê-los. Foi algo medonho. Imagine só como me senti. Desde então não fizemos mais nada, exceto tentar legalizar o acesso à ilha através da Secretaria das Colônias e de Washington. Mas o proprietário é cidadão americano. Então o processo é penosamente lento, sobretudo porque não há nada contra essa gente. Parecem dispor de uma boa proteção em Washington e de alguns advogados muito bons em direito internacional. Estamos absolutamente emperrados. Londres me disse para esperar até que você viesse.” Strangways deu um gole no uísque e olhou para Bond com expectativa.
“Quais são os movimentos do Secatur?”, perguntou Bond.
“Ainda está em Cuba. Deve zarpar dentro de uma semana, de acordo com a CIA.”
“Quantas viagens fez?”
“Cerca de vinte.”
Bond multiplicou cento e cinquenta mil dólares por vinte. Se seus cálculos estivessem certos, Mr. Big já levara um milhão de libras em ouro da ilha.
“Fiz alguns arranjos provisórios para você”, disse Strangways. “Tem a casa em Beau Desert. Há um carro, Sunbeam Talbot, sedã. Pneus novos. Corre bem. Ideal para essas estradas. Arranjei um sujeito ótimo para ser seu faz-tudo. Um ilhéu das ilhas Cayman, chamado Quarrel. O melhor pescador e nadador do Caribe. Muito prestativo. Grande sujeito. E peguei emprestada a casa de repouso da West Indian Citrus Company na Baía Manatee. Fica na outra extremidade da ilha. Você podia descansar lá uma semana e se exercitar um pouco até a chegada do Secatur. Precisará estar em forma se quiser chegar à ilha da Surpresa, e acredito francamente que só isso nos dará a resposta. Tem mais alguma coisa que eu possa fazer? Estarei por aí, claro, mas preciso ficar em Kingston para manter a comunicação com Londres e Washington. Eles vão querer saber tudo que fizermos. Há mais alguma coisa que você gostaria que eu providenciasse?”
Bond estivera se decidindo.
“Sim”, respondeu. “Pode pedir a Londres que consiga junto ao Almirantado uma de suas roupas de mergulho, completa, com os cilindros de ar comprimido. E muitos sobressalentes. E um bom par de arpões. Os franceses, ‘Champion’, são os melhores. Uma boa lanterna subaquática. Uma faca de guerra dos comandos. Toda a informação que puderem arranjar no Museu de História Natural sobre tubarões e barracudas. E um pouco daquele repelente de tubarões que os americanos usaram no Pacífico. Peça à BOAC para trazer tudo pelo seu serviço direto.”
Bond fez uma pausa. “Ah, sim”, disse. “E uma daquelas coisas que nossos sabotadores costumavam usar contra os navios durante a guerra. Uma mina naval, com diversos detonadores.”
17.
O VENTO PAPA-DEFUNTO
Mamão com uma rodela de limão, um prato cheio de bananas avermelhadas, caimitos roxos, ovos mexidos com bacon, café Blue Mountain — o mais delicioso do mundo —, geleia de laranja jamaicana, quase preta, e geleia de goiaba.
Enquanto Bond, trajando shorts e sandálias, tomava café na varanda, contemplando o panorama ensolarado de Kingston e Port Royal, pensou que tinha sorte pela existência de momentos tão magníficos a compensar o perigo e o ambiente sombrio de sua profissão.
Bond conhecia bem a Jamaica. Estivera no país durante uma longa missão logo após a guerra, quando o quartel-general comunista em Cuba procurava infiltrar os sindicatos jamaicanos. Tinha sido um serviço malresolvido e inconcluso, mas ele aprendera a amar a grande ilha verde e seu povo alegre e leal. Agora estava contente por ter retornado e pela semana inteira de folga antes de recomeçar o trabalho duro.
Depois do café da manhã, Strangways surgiu na varanda com um sujeito alto de pele morena, trajando uma camisa azul desbotada e velhas calças de sarja marrons.
Era Quarrel, o ilhéu das ilhas Cayman, com quem Bond logo simpatizou. Tinha sangue dos soldados de Cromwell e de bucaneiros. Seu rosto era forte e anguloso, com uma boca quase severa e olhos cinzentos. Apenas o nariz achatado e as palmas das mãos descoradas eram negroides.
Bond apertou sua mão.
“Bom dia, capitão”, falou Quarrel. Vindo da raça de pescadores mais famosa do mundo, esse era o tratamento mais honroso que ele podia merecer. Mas não havia nenhum desejo de agradar, ou humildade, na sua voz. Falava como marujo, de maneira direta e franca.
Esse momento definiu o relacionamento deles. Parecia a relação entre um senhor de terras escocês e seu caçador-chefe; o reconhecimento subentendido da autoridade, sem espaço para qualquer servilismo.
Depois de discutirem seus planos, Bond pegou o volante do pequeno carro que Quarrel trouxera de Kingston e tomaram a Junction Road, deixando Strangways ocupado com os pedidos de Bond.
Partiram antes das nove e ainda estava fresco quando atravessaram as montanhas que se estendem pelo dorso da Jamaica como a parte dentada da couraça do crocodilo. A estrada descia serpenteando em direção às planícies do norte, através de um dos cenários mais bonitos do mundo, em que a vegetação tropical se modificava com a mudança de altitude. Os flancos verdes das serras, emplumados de bambus intercalados com o verde escuro e brilhoso da fruta-pão e a súbita explosão colorida do flamboyant, cediam lugar, mais para baixo, à floresta de ébano, mogno, hibiscos e pau-campeche. Quando chegaram às várzeas do vale de Agualta, o mar verde dos bananais e canaviais se espraiava até onde a orla afastada dos bosques de palmeiras brotava cintilante ao longo da costa norte.
Quarrel foi boa companhia no passeio e um guia maravilhoso. Falou sobre as aranhas que faziam suas casas na terra, encimadas por pequenos alçapões perfeitos, ao passarem pelos famosos jardins de palmeiras de Castleton. Contou que assistira a uma briga entre uma centopeia gigante e um escorpião e explicou a diferença entre o mamão-macho e o mamão-fêmea. Descreveu os venenos da mata e as propriedades medicinais das ervas tropicais, a pressão exercida pela noz para romper o coco, o comprimento da língua do beija-flor, a maneira como os crocodilos carregam os filhotes na boca, ao comprido, como sardinhas em lata.
Falava em termos precisos, mas sem conhecimento técnico, empregando o linguajar jamaicano em que as plantas são humanizadas, “se esforçam”, “desanimam”, “mariposas” são “morcegos” e “amar” é sempre usado no lugar de “gostar”. Enquanto falava, levantava a mão em um gesto de saudação para as pessoas na estrada, que também gesticulavam e gritavam seu nome.
“Você parece conhecer gente à beça”, comentou Bond, quando o motorista de um ônibus apinhado, com a palavra ROMANCE escrita em grandes letras em cima do para-brisa, saudou-o com dois toques de sua buzina de ar comprimido.
“Faz três meses que ando observando a ilha da Surpresa, capitão”, disse Quarrel, “e passando por esta estrada duas vezes por semana. Todo mundo fica logo conhecido na Jamaica. O pessoal tem vista boa.”
Às dez e meia já tinham passado Port Maria e enveredado por uma pequena estrada vicinal que levava à baía dos Tubarões. Ao fazer uma curva, se depararam com ela embaixo, e Bond parou o carro e saíram.
A baía tinha a forma de um crescente e talvez uns mil e duzentos metros de largura entre um pontal e outro. Sua superfície azul estava encrespada pela leve brisa que soprava do nordeste, vizinha dos ventos alísios que nasciam a oitocentos quilômetros, no Golfo do México, e de lá partiam para sua longa viagem em volta do mundo.
A um quilômetro e meio de onde estavam, uma longa arrebentação sinalizava o recife fora da baía e o estreito de águas calmas que era a única entrada para o ancoradouro. No meio do crescente, a ilha da Surpresa assomava com seus trinta e poucos metros acima do mar, orlada no seu lado leste pela espuma das pequenas ondas que quebravam, e por águas calmas a sotavento.
Era quase redonda, parecendo um bolo alto e cinzento encimado por uma camada verde de açúcar glacê, tudo sobre um prato de porcelana azul.
Haviam parado a cerca de trinta metros do pequeno amontoado de cabanas de pescadores, atrás da praia orlada de coqueiros, e estavam no mesmo nível que o topo plano e verde da ilha, a quatrocentos metros de distância. Quarrel mostrou os telhados de palha das cabanas de taipa no meio das árvores, no centro da ilha. Bond examinou-as através dos binóculos de Quarrel. Não havia nenhum sinal de vida, exceto por um magro fiapo de fumaça levado pela brisa.
Abaixo deles, a água da baía era verde-clara perto da areia branca. Em seguida, se aprofundava e ficava azul-escura antes do marrom intercalado da borda submersa de um recife interno, que formava um largo semicírculo a cem metros da ilha. Depois tornava-se novamente azul, com manchas de azul mais claro e verde-mar. Quarrel informou que a profundidade do ancoradouro do Secatur era de aproximadamente dez metros.
À esquerda, no meio do braço ocidental da baía, escondida entre as árvores e atrás de uma minúscula praia de areia branca, ficava sua base de operações, Beau Desert. Quarrel descreveu a disposição da casa e Bond permaneceu dez minutos examinando os trezentos metros de distância entre ela e o ancoradouro do Secatur, junto à ilha.
Ao todo, Bond passou uma hora fazendo o reconhecimento do local e depois, sem se aproximar da casa ou do povoado, viraram o carro e voltaram para a estrada principal ao longo da costa.
Seguiram de carro através do belo e pequeno porto de embarque de bananas de Oracabessa e de Ocho Ríos, com sua nova e enorme usina de extração de bauxita, seguindo a costa norte até a baía de Montego, a duas horas de distância. Era fevereiro, no auge da estação. A pequena aldeia e os grandes hotéis esparsos estavam mergulhados na corrida de ouro de quatro meses que os sustentava pelo resto do ano. Pararam em uma pousada do outro lado da ampla baía, onde almoçaram, para, em seguida, prosseguirem no calor da tarde até a ponta ocidental da ilha, depois de mais duas horas de viagem.
Ali, graças à presença dos enormes mangues costeiros, nada acontecera desde que Colombo usara a baía de Manatee como um ancoradouro ocasional. Os pescadores jamaicanos haviam tomado o local dos índios Arawak, mas, exceto isso, tinha-se a impressão de que o tempo havia parado.
Bond achou-a a praia mais bonita que já havia visto, oito quilômetros de areia branca descendo suavemente até as ondas e, atrás, a marcha desordenada, porém graciosa, das palmeiras rumo ao horizonte. Debaixo delas, as canoas cinza descansavam fora da água, ao lado de monturos rosados de conchas descartadas. Do meio do palmeiral subia a fumaça das palhoças dos pescadores, na sombra entre o mangue e o mar.
Em uma clareira entre as palhoças, construída sobre estacas em um gramado malcuidado de grama das Bahamas, ficava a casa de fim de semana dos trabalhadores da West Indian Citrus Company. Fora construída sobre estacas para evitar os cupins e era cuidadosamente telada contra mosquitos e borrachudos. Bond saiu da estrada irregular e estacionou sob a casa. Enquanto Quarrel escolhia e arrumava dois quartos, Bond enrolou uma toalha na cintura e caminhou entre as palmeiras até o mar, a vinte metros de distância.
Nadou e boiou preguiçosamente durante uma hora na água quente em que flutuava sem dificuldade, pensando na ilha da Surpresa e em seu segredo, fixando na mente aqueles trezentos metros, pensando nos tubarões e barracudas e demais perigos do mar, essa grande biblioteca cheia de livros que ainda não conseguimos ler.
Ao caminhar de volta para o pequeno chalé de madeira, Bond levou suas primeiras picadas de mosquito pólvora. Quarrel deu uma risada ao ver as mordidas empoladas nas suas costas, que em breve coçariam como o diabo.
“Não se pode fazer nada para nos livrar deles, capitão”, observou. “Mas posso parar essa coceira. Melhor tomar uma chuveirada, primeiro, para tirar o sal. Eles só mordem mesmo durante uma hora, ao entardecer, e gostam de sal no jantar.”
Quando Bond saiu do chuveiro, Quarrel apareceu com uma velha garrafa de remédio e passou um líquido marrom, que cheirava a creolina, nas mordidas.
“A gente tem mais mosquitos pólvora e borrachudos nas ilhas Cayman do que em qualquer outro lugar do mundo”, falou, “mas não nos incomodam desde que tenhamos este remédio”.
Os dez minutos de crepúsculo tropical trouxeram sua breve melancolia. Depois as estrelas e a lua em quarto crescente começaram a brilhar, e o mar se reduziu a um sussurro. Houve uma curta calmaria entre os dois grandes ventos da Jamaica e, em seguida, as palmeiras voltaram a murmurar.
Quarrel fez um gesto da cabeça em direção à janela.
“O vento Papa-Defunto”, comentou.
“Como assim?”, perguntou Bond, espantado.
“Vento terral, como dizem os marinheiros”, acrescentou Quarrel. “O Papa-Defunto sopra, expulsando o ar ruim da ilha durante a noite, das seis às seis da manhã. Em seguida, o ‘vento Médico’ chega, soprando o ar fresco do mar para a ilha. Pelo menos é assim que os chamamos na Jamaica.”
Quarrel olhou perplexo para Bond.
“Acho que Papa-Defunto e você têm praticamente a mesma tarefa, capitão”, comentou, meio brincando.
Bond deu uma breve risada. “Ainda bem que não preciso respeitar o mesmo horário”, respondeu.
Lá fora os grilos e as pererecas começaram a ciciar e coaxar, e as grandes mariposas forçavam as telas das janelas, onde se agarravam, olhando, em um êxtase agoniado, para as duas lamparinas a óleo penduradas em duas travessas dentro de casa.
Uma vez ou outra dois pescadores, ou um grupo de garotas aos risinhos, iam andando até a praia a caminho do único e pequeno bar na ponta da baía. Ninguém andava sozinho, com medo dos lobisomens sob as árvores, ou do garrote rolador, animal terrível que vinha de encontro às pessoas rolando pelo chão, com as pernas presas por correntes e botando fogo pelas ventas.
Enquanto Quarrel preparava uma refeição suculenta de peixe, ovos e legumes que haveria de se tornar a dieta regular de ambos, Bond sentou-se sob a luz e debruçou-se sobre os livros que Strangways pegara emprestado do Instituto Jamaicano. Livros sobre o mar tropical e seus habitantes, por Beebe e Allyn, e outros, sobre caça submarina, de Cousteau e Hass. Quando partisse para atravessar aqueles trezentos metros de mar, estava determinado a fazê-lo com todo o conhecimento possível, sem confiar no acaso. Conhecia a capacidade de Mr. Big e apostava que as defesas da ilha da Surpresa seriam tecnicamente brilhantes. Achou que não se resumiriam a explosivos e armas. Mr. Big precisava trabalhar sem ser incomodado pela polícia. Precisava permanecer fora do alcance da lei. Bond supunha que as forças do mar haviam sido, de certo modo, domesticadas para fazer o trabalho de Mr. Big, e era sobre essas que Bond se concentrava: o assassinato por meio de tubarões e barracudas, talvez polvos e jamantas.
Os fatos expostos pelos naturalistas eram medonhos e horripilantes, mas as experiências de Cousteau no Mediterrâneo e de Hass, no mar Vermelho, eram mais animadoras.
Naquela noite Bond teve muitos sonhos de encontros aterrorizantes com polvos gigantescos e raias-lixas, tubarões cabeça de martelo e barracudas de dentes serrilhados, de modo que gemeu e suou durante o sono.
No dia seguinte começou a se exercitar, sob o olhar crítico de Quarrel. Toda manhã nadava mil e seiscentos metros na praia antes do café da manhã e corria pela areia firme até o chalé. Lá pelas nove partiam em uma canoa, cuja única vela triangular os transportava rápido até a baía Sangrenta e Orange Bay, onde a areia termina em penhascos e pequenas cavernas, e o recife se aproxima da costa.
Ali deixavam a canoa na praia e Quarrel o levava, com fisgas, máscaras e um velho arpão submarino, em expedições de tirar o fôlego, no tipo de mar que ele encontraria na baía dos Tubarões.
Pescavam em silêncio, separados por poucos metros, com Quarrel se movendo com facilidade em um elemento no qual quase se sentia em casa.
Não demorou para que Bond aprendesse a não lutar contra o mar, e sim ceder e aproveitar as correntes e os rodamoinhos, usando táticas de judô dentro d’água.
No primeiro dia chegou em casa cortado e envenenado pelo coral e com uma dúzia de espinhos de ouriço espetados em seu flanco. Quarrel sorriu e tratou as feridas com mertiolato e Milton. Depois, como fazia toda noite, massageou Bond por meia hora com óleo de coco, enquanto ia falando em voz baixa sobre os peixes que haviam encontrado naquele dia, explicando os hábitos dos carnívoros e não carnívoros, a camuflagem dos peixes e seu modo de mudar de cor através da corrente sanguínea.
Ele também jamais ouvira falar de peixe algum que atacasse o homem, a não ser em desespero ou porque havia sangue na água. Explicou que os peixes raramente passam fome nas águas tropicais e que a maioria de suas armas é defensiva, e não ofensiva. A única exceção, admitia, era a barracuda. “Peixes maus”, conforme dizia, que não conheciam o medo, já que não possuíam outro inimigo que não a doença, capazes de atingir oitenta quilômetros por hora em distâncias curtas, e donos dos dentes mais perigosos do que os de qualquer outro peixe de mar.
Um dia alvejaram uma de dez quilos que nadava em volta deles, sumindo na distância cinzenta e depois reaparecendo, silenciosa, imóvel, quase em cima da água, com seus olhos zangados de tigre fitando-os de muito perto, de modo que podiam ver o lento funcionamento de suas guelras e os dentes brilhando, como as presas de um lobo, ao longo da queixada cruel e prognata.
Quarrel finalmente pegou o arpão de Bond e alvejou-a gravemente, atravessando sua barriga aerodinâmica. Ela veio diretamente em cima deles, com as mandíbulas escancaradas, como uma cascavel pronta para o bote. Bond deu uma fisgada desajeitada quando ela investia contra Quarrel. Errou, mas o arpão entrou pelas suas mandíbulas. Elas se fecharam imediatamente sobre o espeto de aço, e quando o peixe arrancou a fisga da mão de Bond, Quarrel apunhalou-a com a faca e ela enlouqueceu, correndo dentro d’água com as entranhas à mostra, a fisga presa entre os dentes e o arpão pendente do corpo. Quarrel mal podia segurar a linha enquanto o peixe procurava retirar a ponta que lhe atravessava a barriga. Mas seguiu-o nadando em direção a um recife submerso, no qual subiu, puxando lentamente o peixe.
Depois que Quarrel cortou as guelras e retirou a fisga de suas mandíbulas, encontraram as marcas profundas dos dentes no aço.
Levaram o peixe para a praia, Quarrel cortou sua cabeça e abriu a bocarra com um pedaço de pau. A mandíbula superior se erguia quase em ângulo reto em relação à inferior, revelando fantásticas fileiras de dentes, tão abundantes que se sobrepunham como telhas no telhado. Até mesmo a língua tinha várias fileiras de pequenos dentes afiados e curvos e, na frente, duas presas enormes, que se projetavam para a frente como as de uma serpente.
Embora só pesasse pouco mais que cinco quilos, passava de um metro e trinta centímetros, uma bala niquelada só de músculo e tecido firme.
“Não vamos matar mais barracudas”, comentou Quarrel. “Mas se não fosse por você eu teria que passar um mês no hospital e talvez perder meu rosto. Foi uma tolice minha. Se a gente tivesse nadado em sua direção, ela teria fugido. Sempre fazem isso. São covardes como todos os peixes. Não se preocupe com esses aqui”, apontou para os dentes, “jamais tornará a vê-los”.
“Espero que não”, desabafou Bond. “Não tenho rosto sobressalente.”
No fim de uma semana Bond estava bronzeado e rijo. Cortara os cigarros para dez por dia e não tomara sequer um drinque. Conseguia nadar três quilômetros sem cansar, a mão estava completamente sarada e ele havia eliminado todas as sequelas da vida urbana.
Quarrel se alegrou. “Você está pronto para a ilha da Surpresa, capitão”, disse, “e eu não gostaria de ser o peixe que tentasse devorá-lo”.
Ao entardecer do oitavo dia, voltaram para a casa de descanso e encontraram Strangways à espera deles.
“Tenho boas notícias para lhe dar”, disse. “Seu amigo Felix Leiter vai ficar bom. Apesar de tudo, não morrerá. Precisaram amputar o resto de um braço e de uma perna. Os cirurgiões plásticos começaram agora a reconstruir o rosto. Ligaram para mim ontem de St. Petersburg. Parece que ele insistiu em lhe mandar um recado. Foi a primeira coisa que lhe veio à cabeça quando voltou a si. Disse que sente muito não poder estar aqui e para você não molhar os pés — ou pelo menos não molhá-los tanto como ele.”
O coração de Bond ficou apertado. Olhou pela janela. “Diga a ele para se restabelecer logo”, disse abruptamente. “E também que sinto a sua falta.” Voltou os olhos para a sala. “E quanto ao equipamento? Tudo bem?”
“Está tudo aqui”, respondeu Strangways, “e o Secatur zarpa amanhã para a ilha da Surpresa. Depois de passar pela alfândega em Port Maria, devem lançar âncora antes do anoitecer. Mr. Big está a bordo — é só a segunda vez que veio aqui. Ah, e trouxe uma mulher. Uma garota chamada Solitaire, de acordo com a CIA. Sabe alguma coisa sobre ela?”
“Não muito”, respondeu Bond. “Mas gostaria de tirá-la dele. Ela não pertence ao seu time.”
“Uma espécie de donzela em apuros”, disse o romântico Strangways. “Pois é. De acordo com a CIA, ela é uma graça.”
Mas Bond fora para a varanda e olhava as estrelas. Jamais tivera de brigar por um cacife tão alto na vida. O segredo do tesouro, a derrota de um grande criminoso, o esmagamento de um círculo de espionagem comunista e a destruição de um tentáculo da SMERSH, a cruel engrenagem que constituía seu próprio alvo particular. E agora Solitaire, a maior das recompensas pessoais.
As estrelas piscavam no seu Morse cifrado e ele não possuía chave alguma para decifrar o seu código.
18.
BEAU DESERT
Strangways voltou sozinho depois do jantar e Bond decidiu que eles partiriam ao amanhecer. O inglês deixou uma nova pilha de livros e panfletos sobre tubarões e barracudas, que Bond estudou com grande atenção.
Pouco acrescentou ao conhecimento prático que aprendera com Quarrel. Os autores eram todos cientistas e grande parte dos dados era sobre ataques ocorridos nas praias do Pacífico, onde qualquer corpo que brilhasse na arrebentação pesada excitaria a curiosidade dos peixes.
Mas parecia haver uma concordância geral que o perigo para os mergulhadores submarinos com aqualungs era muito menor do que para os nadadores de superfície. Estes podiam ser atacados por qualquer representante da família dos tubarões, especialmente quando o tubarão era estimulado e excitado pela presença de sangue no mar, pelo cheiro da vítima ou pela vibração sensorial causada por alguém ferido na água. Mas às vezes podiam ser espantados, segundo a literatura, por barulhos altos dentro d’água — até mesmo por gritos sob a superfície, e muitas vezes fugiam quando perseguidos pelo nadador.
A fórmula mais bem-sucedida de repelente de tubarões era, segundo os testes dos laboratórios de pesquisa naval da marinha americana, uma combinação de acetato de cobre e um corante preto chamado nigrosina, que vinha sendo adicionada, sob a forma de pelotas, aos coletes salva-vidas de todas as forças armadas dos Estados Unidos.
Bond chamou Quarrel. O ilhéu de Cayman não acreditara, até que Bond lesse para ele o que o Departamento Naval tinha a dizer sobre suas pesquisas, no final da guerra, sobre os bandos de tubarões estimulados por uma situação descrita como “condições exacerbadas de comportamento grupal”: “... os tubarões eram atraídos para a popa do barco de pesca de camarões, com refugo de peixes”, leu Bond. “Os tubarões apareceram sob a forma de um cardume exasperado, espadanante. Preparamos uma tina com peixes frescos, e outra com peixes misturados ao pó repelente. Aproximamo-nos do cardume e o fotógrafo começou a rodar a câmera. Despejei os peixes frescos por trinta segundos, repetindo três vezes esse procedimento. Da primeira vez os tubarões demonstraram grande ferocidade ao se alimentar dos peixes frescos bem na popa do barco. Mas ficaram devorando-os só durante cinco segundos depois que o pó repelente foi jogado ao mar. Uns poucos voltaram depois que jogamos peixe fresco imediatamente após o repelente. Em uma segunda tentativa, trinta minutos depois, um cardume feroz se alimentou durante os trinta segundos em que lhe fornecemos peixe fresco, mas se afastou assim que o repelente foi jogado na água. Na terceira tentativa, só conseguimos atrair os tubarões até uma distância de vinte metros da popa do barco.”
“O que acha disso?”, perguntou Bond.
“É melhor arranjar um pouco desse negócio”, respondeu Quarrel a contragosto, mas impressionado.
Bond estava disposto a concordar. Washington havia mandado mensagem de que as pelotas do material estavam a caminho. Mas ainda não tinham chegado e não eram esperadas antes de quarenta e oito horas. Se o repelente não chegasse, não seria problema para Bond. Não imaginava encontrar condições tão perigosas no seu percurso submarino até a ilha.
Antes de ir para a cama, chegara à conclusão de que nada o atacaria se não houvesse sangue na água, ou se ele não parecesse amedrontado diante da ameaça de algum peixe. Quanto aos polvos, peixes-escorpião e moreias, simplesmente precisava tomar cuidado onde punha os pés. Para ele, os espinhos de sete centímetros do ouriço eram o maior perigo para as atividades submarinas nos trópicos, mas a dor que causavam não bastaria para interferir em seus planos.
Partiram antes das seis da manhã e chegaram a Beau Desert às dez e meia.
A propriedade era uma bela plantação antiga de cerca de quatrocentos hectares, com as ruínas da bela casa grande dominando a baía. Era dedicada ao cultivo de pimentões e cítricos, e cercada de madeiras de lei e palmeiras, e sua história remontava à época de Cromwell. O nome romântico estava em moda no século dezoito, quando as propriedades jamaicanas se chamavam Bellair, Bellevue, Boscobel, Harmony, Nymphenburg, ou eram batizadas de Panorama, Satisfação, Repouso.
Uma trilha entre as árvores, que não era visível da ilha na baía, levava à pequena casa de praia. Depois dos piqueniques semanais na baía de Manatee, os banheiros e a mobília confortável de bambu pareciam um luxo, e os tapetes de cores vivas pareciam de veludo sob os pés calejados de Bond.
Pelas rótulas das janelas Bond contemplou o pequeno jardim flamejante de hibiscos, buganvílias e roseiras, que acabava no minúsculo crescente de areia branca, meio tapado pelos troncos das palmeiras. Sentou-se no braço de uma poltrona e deixou que seu olhar passeasse, palmo a palmo, pelos diferentes azuis e marrons do mar e dos recifes, até morrer na base da ilha. A metade superior estava obscurecida pelos leques das plumas das palmeiras em primeiro plano, mas o pedaço de penhasco vertical dentro de seu campo de visão parecia cinzento e formidável na meia sombra projetada pelo sol forte.
Quarrel preparou o almoço em um fogareiro a álcool, de modo que nenhuma fumaça os denunciasse, e de tarde Bond fez uma sesta e depois examinou o equipamento enviado de Londres e trazido de Kingston por Strangways. Experimentou a roupa de mergulho de borracha fina que o cobria, desde a máscara apertada na cabeça com o óculo de vidro temperado, até as longas nadadeiras em seus pés. Tudo cabia como uma luva, e Bond louvou a eficiência do setor “Q” de M.
Testaram os cilindros duplos de mil litros de ar natural comprimido a duzentas atmosferas, e Bond achou fácil o funcionamento das válvulas de distribuição de ar e de reserva, à prova de acidentes. Na profundidade em que agiria, aquele volume dava para durar quase duas horas.
Havia uma nova espingarda submarina potente, marca Champion, e uma faca projetada pela Wilkinson para os comandos durante a guerra. Finalmente, em uma caixa coberta de avisos de perigo, estava a pesada mina naval, um cone de fundo achatado, repleto de explosivos, montado sobre uma base cheia de largas saliências de cobre, tão imantadas que a mina grudava como um marisco em qualquer casco metálico. Havia uma dúzia de detonadores de metal e de vidro, parecidos com lápis, com temporizadores que iam de dez minutos até oito horas, e um meticuloso livrinho de instruções, tão simples quanto o próprio equipamento. Havia até uma caixa de cápsulas de benzedrina para dar resistência e aguçar a percepção de Bond durante a tarefa, e várias lanternas submarinas, inclusive uma que projetava apenas um feixe da largura de um lápis.
Bond e Quarrel testaram tudo, acoplamentos, contatos, até se darem por satisfeitos e concluírem que não restava mais nada a ser feito. Em seguida, Bond desceu até o meio das árvores e observou as águas da baía, calculando as profundidades, traçando rotas para percorrer a passagem pelo recife e prevendo a trajetória da lua, que seria sua única referência no decorrer da tortuosa travessia.
Às cinco horas chegou Strangways com notícias do Secatur.
“Passaram por Port Maria”, informou. “Chegarão aqui dentro de dez minutos, no máximo. Mr. Big tem um passaporte com o nome de Gallia e a garota com o nome de Latrelle. Ela está na sua cabine, mareada, segundo o capitão negro do Secatur. É possível. Há uma porção de tanques de peixe a bordo. Mais de cem. Exceto isso, nada que levantasse suspeita, e foram liberados. Eu queria ir a bordo como parte da turma da alfândega, mas achei melhor deixar que o espetáculo se desenrolasse de modo absolutamente normal. Mr. Big permaneceu na sua cabine. Estava lendo quando foram verificar seus documentos. Como está o equipamento?”
“Perfeito”, respondeu Bond. “Acho que agiremos amanhã à noite. Espero que haja um pouco de vento. Se descobrirem as bolhas de ar, estaremos em apuros.”
Quarrel entrou, avisando: “O iate está passando pelo recife agora, capitão.”
Foram até a máxima distância que podiam arriscar ir, na praia, e assestaram os seus binóculos na direção do barco.
Era uma bela embarcação, negra, com uma superestrutura cinza, setenta pés de comprimento e construída em função da velocidade — de pelo menos vinte nós, imaginou Bond. Conhecia sua história. Havia sido construída para um milionário em 1947, era movida por dois motores a diesel da General Motors, tinha casco de aço e todas as geringonças de comunicação de último tipo, inclusive telefone do barco para a terra e um navegador Decca. Trazia hasteados um pavilhão vermelho nos vaus dos joanetes e a bandeira americana à popa, e progredia a três nós através da abertura de sete metros no recife.
Virou abruptamente, depois de romper a passagem, e rumou para a parte da ilha a bombordo. Ao mesmo tempo, três negros em calças brancas de brim desceram correndo a escada íngreme até o molhe estreito e se posicionaram para amarrar as guias. Foram necessárias poucas manobras para prendê-las, diante dos observadores em terra firme, e as duas âncoras foram arriadas ruidosamente, entre as pedras e o coral na areia do fundo, junto à base da ilha. O barco estava bem protegido, até mesmo do vento norte. Bond calculou uma profundidade de sete metros sob a sua quilha.
Enquanto observavam, a enorme figura de Mr. Big surgiu no convés. Desembarcou no molhe e começou a subir lentamente a escadaria a prumo. Parou várias vezes, e Bond pensou na dificuldade que seu coração avariado teria para bombear o sangue naquele corpanzil preto acinzentado.
Seguiam-no dois tripulantes negros carregando uma maca leve, levando um corpo humano amarrado. Pelos binóculos, Bond reconheceu os cabelos negros de Solitaire. Ficou perplexo e preocupado, sentiu um aperto no coração diante daquela proximidade. Rezou para que a maca fosse apenas uma precaução para evitar que Solitaire fosse reconhecida da costa.
Em seguida, formou-se uma fila de doze homens na escadaria e os tanques de peixe foram sendo passados de um para outro. Quarrel contou cento e vinte.
Depois, alguns gêneros foram levados para cima da mesma maneira.
“Não está trazendo muita coisa desta vez”, comentou Strangways, depois da operação terminada. “Somente uma dúzia de caixotes. Geralmente são cinquenta. Não deve ficar muito tempo.”
Mal acabara de falar quando um tanque de peixe, que seus binóculos mostravam estar meio cheio de água e areia, desceu cuidadosamente de volta ao barco, por meio daquela escada feita de mãos. Em seguida outro, e mais outro, a intervalos de cinco minutos.
“Meu Deus”, exclamou Strangways. “Já estão carregando o barco. O que significa que deverão zarpar pela manhã. Será que resolveram liquidar as operações na ilha e este será seu último carregamento?”
Bond observou com cuidado e depois subiram em silêncio através do arvoredo, deixando Quarrel atrás para se manter a par dos acontecimentos.
Sentaram-se na sala, e enquanto Strangways preparava um uísque com soda para ele mesmo, Bond olhava pela janela e organizava seus pensamentos.
Eram seis horas e os vagalumes começaram a aparecer na penumbra. A lua, de um amarelo pálido, já ia alta no lado do oriente, e o dia morria rápido às suas costas. Uma brisa ligeira encrespava a baía e pequenas ondas quebravam na praia branca no final do gramado. Pequeninas nuvens rosa e alaranjadas, ao poente, vagavam nas alturas, e as folhas das palmeiras se esbarravam de mansinho no vento fresco do Papa-Defunto.
“Vento Papa-Defunto”, pensou Bond, sorrindo de esguelha. Tal como teria de ser esta noite. Era a única chance, e as condições quase perfeitas. Só o repelente de tubarões é que não chegaria a tempo. Mas isso era apenas um requinte. Não poderia ser um pretexto. Era para isto que ele viajara três mil quilômetros e matara cinco. No entanto, sentiu um calafrio ao prever a aventura submarina angustiante, que ele já havia transferido em sua mente para o dia seguinte. De repente sentiu ódio e medo do mar e de tudo que lhe dizia respeito. Dos milhões de pequenas antenas que se mexeriam e o seguiriam quando ele passasse de noite, dos olhos que acordariam para espiá-lo, das batidas de coração que falhariam por um centésimo de segundo para continuar batendo silenciosamente, das gavinhas gelatinosas que se estenderiam em sua direção, tão cegas na luz quanto no escuro.
Iria passar no meio de milhares de segredos. No espaço de trezentos metros, sozinho e com frio, transporia às cegas uma floresta misteriosa em direção a uma cidadela mortífera, cujos guardas já haviam matado três homens. Ele, Bond, depois de uma semana ensolarada de canoagem com sua babá ao lado, ia esta noite, dentro de poucas horas, caminhar sozinho sob aquele lençol escuro de água. Era uma maluquice, algo impensável. Seu corpo se encolheu e ele cravou os dedos nas palmas da mão molhadas.
Houve uma batida na porta e Quarrel entrou. Bond se alegrou de poder levantar da cadeira, se afastar da janela e se aproximar do lugar onde Strangways apreciava seu drinque, debaixo de um abajur.
“Estão trabalhando à luz de lampiões agora, capitão. Um tanque ainda a cada cinco minutos. Calculo que terão dez horas de trabalho. Acabarão mais ou menos às cinco da manhã. Não zarparão antes das seis. É perigoso demais tentar passar pelo canal sem luz suficiente.”
Os olhos cinzentos e amistosos de Quarrel, naquele esplêndido rosto cor de mogno, fitavam Bond, aguardando ordens.
“Começarei às dez em ponto”, Bond se surpreendeu com as próprias palavras. “Das pedras à esquerda da praia. Pode nos fazer um jantar e depois levar o equipamento até o gramado? As condições estão perfeitas. Chegarei lá dentro de meia hora.” Contou nos dedos. “Dê-me os detonadores de cinco e de oito horas. E o de quinze minutos, como reserva, caso algo saia errado. Está certo?”
“Sim senhor, capitão”, respondeu Quarrel. “Pode deixar comigo.”
E saiu.
Bond olhou para a garrafa de uísque e, em seguida, se decidiu, servindo-se de meio copo em cima de três cubos de gelo. Tirou a caixa de benzedrina do bolso e botou um tablete entre os dentes.
“À sorte”, disse a Strangways, tomando um grande gole. Sentou-se apreciando o gosto áspero de seu primeiro drinque em mais de uma semana. “Agora”, perguntou, “diga exatamente o que eles fazem quando estão prontos para zarpar. Levam quanto tempo para se afastar da ilha e passar pelo recife? Se esta for a última vez, não se esqueça de que estarão levando seis homens adicionais e algumas provisões. Vamos tentar prever isso o mais exatamente possível.”
Um momento depois Bond já mergulhara em um mar de detalhes práticos, e a sombra do medo recuara até as zonas de escuridão debaixo das palmeiras.
Exatamente às dez horas, sem sentir nada além da excitação e da expectativa, a figura preta e luzidia como um morcego pulou das pedras dentro de três metros de água, sumindo debaixo do mar.
“Vá com segurança”, disse Quarrel, dirigindo-se ao ponto em que Bond desaparecera. Persignou-se. Em seguida, ele e Strangways voltaram para casa, por entre as sombras, para dormir em turnos, sobressaltados, aguardando, temerosos, o desenrolar dos acontecimentos.
19.
O VALE DAS SOMBRAS
Bond foi levado direto ao fundo pelo peso da mina naval que prendera a seu peito através de fitas, e pelo cinto de chumbo, usado para corrigir a flutuabilidade dos cilindros.
Sem hesitar um instante, cobriu imediatamente os primeiros cinquenta metros de areia do fundo em um rápido crawl, com o rosto pouco acima do leito. As longas nadadeiras quase teriam dobrado sua velocidade normal, não fosse o estorvo do peso que carregava e da leve espingarda de arpão na mão esquerda. Mas avançava depressa e em menos de um minuto parou para descansar na sombra de um grande maciço de coral.
Parou e estudou suas sensações.
Estava aquecido na roupa de mergulho, sentindo mais calor do que se estivesse nadando ao sol. Achou que seus movimentos lhe vinham com facilidade e a respiração era perfeitamente simples, desde que fosse regular e descontraída. Contemplou as bolhas denunciadoras subindo rente ao coral em um repuxo de pérolas prateadas e rezou para que as pequenas ondas as encobrissem.
No espaço desimpedido, sua visibilidade era perfeita. A luz era leitosa e macia, mas não suficientemente forte para dissolver as sombras encarneiradas das ondas na superfície, que enxadrezavam a areia do fundo. Agora, junto ao recife, não havia reflexos no leito do mar, e as sombras sob as pedras eram negras e impenetráveis.
Arriscou uma olhada rápida com a lanterna fina, e imediatamente a paisagem oculta da massa marrom dos arbustos de coral ganhou vida. Anêmonas de miolo carmesim acenavam para ele com seus tentáculos de veludo, uma colônia de ouriços eriçou seus espinhos de aço de Toledo, subitamente assustada, e uma centopeia do mar peluda estacou sua centena de passos, inquirindo-o com sua cabeça cega. Na areia da base da árvore de coral, um peixe-sapo recolheu delicadamente sua horrível cabeça verrugosa de volta à loca, e uma porção de vermes do mar, parecidos com flores, desapareceu em seus tubos gelatinosos. Um cardume de peixes-borboleta e peixes-anjo, coloridos como joias, flertava na luz. Bond distinguiu a forma chata e espiralada de uma estrela-do-mar de grandes pontas.
Bond enfiou a lanterna de volta no cinto.
Acima dele a superfície do mar era uma colcha de mercúrio. Ouvia-se um crepitar baixinho, como gordura fritando na frigideira. Adiante, o luar mergulhava no vale irregular e profundo, cujas encostas afundavam, se afastando da rota que ele devia seguir. Abandonou sua aconchegante árvore de coral e avançou lentamente. Agora não mais com a mesma facilidade. A luz era fraca e enganosa, e a floresta petrificada do recife de coral cheia de becos sem saída e caminhos tentadores, porém ilusórios.
Às vezes era obrigado a subir quase à superfície para transpor o emaranhado de algum arbusto de coral, e quando isso acontecia, aproveitava para verificar sua posição pela lua que brilhava como uma pálida descarga de foguete, no final do caminho que abrira na água. Às vezes a cintura de ampulheta de um rochedo de coral lhe fornecia abrigo, e ele podia descansar por alguns instantes, sabendo que as pequenas borbulhas do respirador ficariam escondidas pela saliência acima da superfície. Então concentrava seu olhar nos rabiscos fosforescentes da minúscula vida noturna submarina e distinguia colônias e populações inteiras às voltas com suas atividades microscópicas.
Não havia peixes grandes nas imediações, mas muitas lagostas fora de suas locas, parecendo bichos enormes e pré-históricos, graças ao efeito de ampliação da água. Seus olhos saltados e vermelhos o fitavam, e suas longas antenas de trinta centímetros pediam-lhe uma senha. Em alguns momentos recuavam nervosamente para seus abrigos, levantando areia com suas caudas potentes, agachadas nas pontas de seus oito pés peludos, à espera de o perigo passar. Certa vez os grandes filamentos de uma caravela passaram flutuando lentamente. Quase tocaram sua cabeça a partir da superfície, cinco metros acima, e ele lembrou a queimadura causada pelo contato com uma delas, que ardera por três dias durante a temporada em Manatee Bay. Se atingisse alguém na altura do coração, poderia ser mortal. Ele viu inúmeras moreias verdes e pintadas, estas últimas se movendo como grandes serpentes pretas e amarelas ao longo da areia do fundo, as verdes mostrando os dentes de dentro de algum buraco na pedra, e vários baiacus, como corujas castanhas, com seus enormes e plácidos olhos verdes. Espetou um deles com a extremidade de sua arma e ele inchou até ficar do tamanho de uma bola de futebol, tornando-se uma massa de perigosos espinhos brancos. Largas gorgônias balançavam, fazendo gestos convidativos nos rodamoinhos, refletindo o luar nos vales cinzentos, acenando fantasmagóricas, como restos das mortalhas de homens sepultados no mar. Muitas vezes Bond distinguia nas sombras movimentos pesados e misteriosos, águas revoltas e o súbito brilho de olhos grandes, que imediatamente se extinguiam. Então, virava-se, destravando o arpão, olhando fixamente o escuro. Mas não atirou em nada e nada o atacou enquanto subia e deslizava pelo recife.
Levou quinze minutos para percorrer cem metros do coral. Depois disso descansou em um pedaço redondo de coral esponjoso, abrigado por um último pedaço de recife. Alegrou-se por só ter de enfrentar uns cem metros de água cinza-claro. Ainda se sentia descansado, conservando a elação e a clareza de espírito provocadas pela benzedrina, mas o labirinto de perigos que enfrentara para atravessar o recife o tinha cansado e causado uma preocupação constante, além do temor de rasgar a roupa de borracha. Agora a floresta de corais afiados como navalhas já havia sido ultrapassada, para ceder lugar aos tubarões e às barracudas, ou talvez à súbita banana de dinamite jogada no meio da sua pequena flor de borbulhas na superfície.
Foi enquanto calculava os perigos ainda por enfrentar que o polvo agarrou-o. Em volta dos dois tornozelos.
Estava sentado com os pés na areia, quando de repente foram presos na base do cogumelo redondo de coral sobre o qual descansava. Quando compreendeu o que tinha acontecido, um tentáculo começou a serpentear pela sua perna acima, e outro, roxo na luz fraca, desceu pela nadadeira esquerda.
Teve um sobressalto de terror e repugnância, levantando-se de imediato, esfregando os pés, esforçando-se por se libertar. Mas não houve afrouxamento de um centímetro sequer, e os movimentos de Bond deram ao polvo a oportunidade de apertar e puxar os calcanhares mais ainda sob a saliência da pedra redonda. A força do bicho era prodigiosa, e Bond sentiu que perdia rapidamente o equilíbrio. Percebeu que num instante seria jogado no chão e aí, atrapalhado pela mina em seu peito e o cilindro nas costas, talvez fosse quase impossível atacar o polvo.
Bond tirou a faca do cinto e espetou entre suas pernas. Mas a saliência da rocha o atrapalhou, e ele ficou apavorado de cortar sua roupa de mergulho. De repente foi derrubado, caindo deitado na areia. De imediato seus pés começaram a ser puxados para dentro de uma larga fenda lateral debaixo da pedra. Esgaravatou a areia e tentou se dobrar para poder ter acesso à faca. Porém, a grande protuberância da mina em seu peito impediu-o de fazê-lo. À beira do pânico, lembrou-se do arpão. Antes não lhe dera importância, achando que era uma arma inútil naquela pequena distância, mas agora era a sua única chance. Permanecia na areia onde o deixara. Pegou-o e destravou-o. A mina impediu-o de fazer mira. Escorregou o cano ao longo das pernas e cutucou cada pé com a ponta do arpão para descobrir a distância entre eles. Um tentáculo agarrou imediatamente a ponta de aço e começou a puxar. A arma escorregou entre seus pés aprisionados e ele apertou o gatilho às cegas.
Uma grande nuvem de tinta viscosa e pegajosa saiu em rolos da fenda, em direção a seu rosto. Mas uma perna estava livre, em seguida a outra, e ele se aprumou e pegou o cabo do arpão de um metro, no local em que já ia desaparecendo sob a rocha. Puxou e forcejou até que, com um esgarçar de tecidos, conseguiu tirar a arma de dentro da névoa negra que envolvia o buraco. Ofegante, levantou-se e se afastou da rocha, com suor escorrendo pelo rosto, sob a máscara. Acima dele, a fieira prateada de bolhas subiu direto à superfície, e ele praguejou contra aquele animal barrigudo, ferido em seu abrigo.
Mas não podia perder tempo se preocupando com ele. Recarregou a arma e partiu com a lua sobre o seu ombro direito.
Agora avançava bem através da água cinzenta e enevoada, concentrando-se em manter o rosto apenas alguns centímetros acima da areia, com a cabeça bastante baixa para reduzir o atrito de seu corpo com a água. A certa altura, viu, de relance, uma raia-lixa do tamanho de uma mesa de pingue-pongue se desviar habilmente de seu caminho, batendo as asas pontudas e manchadas, como um pássaro, e arrastando atrás de si sua cauda farpada. Não lhe deu atenção, lembrando-se do que Quarrel dissera: que as raias jamais atacam a não ser em autodefesa. Calculou que ela provavelmente viera dos recifes externos para botar seus ovos — ou “bolsas de sereias”, como chamavam os pescadores, porque têm a forma de um travesseiro com dois fios pretos e rígidos em cada canto — no fundo abrigado de areia.
Muitos vultos de peixes grandes nadavam preguiçosamente sobre a areia enluarada, alguns do seu tamanho. Quando um deles seguiu Bond por pelo menos um minuto, ele levantou os olhos, distinguindo a barriga branca de um tubarão cinco metros acima dele, como um zepelim afunilado verde e azul. Seu nariz arredondado estava mergulhado com curiosidade na coluna de bolhas de ar. O grande rasgo em forma de foice de sua boca parecia uma cicatriz repuxada. Virou de lado e olhou para ele embaixo com um olhar duro e rosado e, em seguida, abanou sua cauda, também em forma de foice, e se afastou devagar dentro do muro de névoa cinzenta.
Bond amedrontou uma família de polvos, pesando de três quilos aos cento e cinquenta gramas de um filhote, frágil e luminoso à meia-luz, suspensa quase na vertical em um cordão declinante. Eles se endireitaram e fugiram rápido, a propulsão a jato.
Bond descansou por um instante na metade do caminho e então prosseguiu. Agora havia barracudas por ali, grandes, de até nove quilos. Pareciam tão mortíferas quanto as recordações que tinha delas. Planavam acima dele como submarinos prateados, olhando para baixo com seus olhos de tigre zangado. Sentiam curiosidade a seu respeito e a respeito das bolhas, e seguiram-no por cima e em torno dele, como uma alcateia de lobos silenciosos. Quando Bond encontrou o primeiro pedaço de coral, indício de que se aproximava da ilha, havia cerca de vinte delas se movendo em silêncio, vigilantes, saindo e entrando da parede opaca que o envolvia.
A pele de Bond se encolheu debaixo da roupa de borracha, mas ele não podia fazer nada a respeito delas e concentrou-se em sua meta.
De repente havia uma longa forma metálica suspensa acima dele na água. Atrás dela um monte de pedras quebradas que subiam de maneira íngreme.
Era a quilha do Secatur, e o coração de Bond deu um pulo no peito.
Consultou seu Rolex. Eram onze e três. Escolheu o detonador de sete horas do punhado que tirou de um bolso lateral com zíper, inserindo-o na cavidade apropriada da mina, apertando-o. Enterrou na areia o restante dos detonadores, de modo que, se fosse capturado, ninguém desconfiaria da existência da mina.
Ao nadar em direção à superfície, carregando a mina entre as mãos, com a base para cima, percebeu um rebuliço na água atrás dele. Uma barracuda passou depressa, com as mandíbulas meio abertas, quase colidindo com ele e com os olhos fixos em algo às suas costas. Mas Bond estava concentrado apenas no meio da quilha do barco, em um ponto pouco mais de um metro acima da superfície.
A mina quase o arrastou pelos últimos metros, pois seus enormes ímãs buscavam o beijo metálico com o casco. Bond precisou lutar contra eles para evitar o barulho do choque. Em seguida, tendo colocado a mina no lugar adequado e agora livre do seu peso, Bond precisou nadar com força para se contrapor à sua nova flutuabilidade e afundar de novo, afastando-se da superfície.
Foi quando se virou para nadar em direção às duas hélices, a caminho do abrigo das pedras, que conseguiu ver as coisas terríveis que ocorriam às suas costas.
O bando enorme de barracudas parecia ter enlouquecido. Giravam e mordiam como cães histéricos. Três tubarões que haviam se juntado a eles arremetiam pela água com um frenesi pouco menor. A água fervilhava com esses peixes terríveis, e Bond levou um encontrão no rosto, recebendo outros tantos por várias vezes em uma distância de poucos metros. Percebeu que a qualquer momento sua pele de borracha se rasgaria, junto com a carne debaixo dela, e então o bando viria atrás dele.
“Condições exacerbadas de comportamento grupal.” A frase do Departamento Naval pipocou na sua mente. Era exatamente nesta situação que o repelente de tubarões poderia salvá-lo. Na sua ausência, teria talvez alguns minutos a mais de vida.
Em desespero, nadou espalhafatosamente, ao longo da quilha do barco, com o arpão destravado, que agora não passava de um brinquedo diante daquele bando de peixes canibais ensandecidos.
Alcançou as duas grandes hélices de cobre, agarrando-se a uma delas, ofegante, com os lábios formando um esgar de medo e os olhos arregalados, ao se dar conta do frenesi no mar fervilhante a seu redor.
Viu de repente que as bocas dos peixes que arremetiam furiosos estavam meio abertas e que eles mergulhavam e saíam de uma nuvem marrom, que se espalhava desde a superfície. Perto dele, uma barracuda se deteve por um instante, com algo marrom e reluzente nas suas mandíbulas. Engoliu de uma bocada, depois virou e voltou para a confusão.
Ao mesmo tempo, Bond notou que escurecia. Olhou para cima e percebeu, com uma nova compreensão, que a superfície de mercúrio do mar tornara-se vermelha, um horrível carmesim brilhante.
Fiapos dessa substância chegaram flutuando até seu alcance. Puxou-os com a extremidade de sua arma. Segurou-os contra sua máscara.
Não havia mais dúvida.
Alguém lá em cima atirava sangue e vísceras na superfície do mar.
20.
A CAVERNA DE MORGAN, O SANGUINÁRIO
Bond compreendeu de imediato o motivo de todas aquelas barracudas e tubarões estarem rondando a ilha, de como eram mantidos naquele frenesi voraz por esse banquete noturno, por que os três homens, desafiando todas as explicações plausíveis, haviam sido devolvidos à praia, meio devorados pelos peixes.
Mr. Big tinha apenas posto as forças do mar para trabalhar em seu proveito, utilizando-as para sua proteção. Era um invento típico — imaginativo, criativo, tecnicamente à prova de erro e fácil de pôr em prática.
No exato momento em que Bond compreendera isso tudo, algo lhe deu um terrível golpe no ombro e uma barracuda de dez quilos recuou, com carne e borracha preta entre as mandíbulas. Bond não sentiu dor, ao largar a hélice de bronze e nadar desesperadamente até as pedras, só uma náusea terrível na boca do estômago, ao pensar que um pedaço seu se encontrava entre aquelas centenas de dentes afiados como uma navalha. A água começou a vazar entre a borracha aderente e a sua pele. Não demoraria até chegar a seu pescoço e penetrar na máscara.
Já ia desistir e subir disparado pelos sete metros até a tona, quando viu uma larga fissura nas pedras diante dele. Ao lado havia um grande pedregulho tombado de lado e, de algum modo, ele conseguiu se esconder atrás dele. Virou-se, naquele abrigo precário, no momento exato em que a mesma barracuda investia outra vez, com o maxilar superior em ângulo reto em relação ao inferior, a boca escancarada pronta para o bote terrível.
Bond atirou quase às cegas com o arpão. As tiras de borracha dispararam cano abaixo e o arpão dentado pegou o grande peixe no centro da mandíbula superior erguida, atravessando-a e penetrando até a metade do cabo, com a linha ainda livre.
A barracuda estacou a um metro da barriga de Bond. Tentou fechar as mandíbulas e, em seguida, deu uma enorme sacudida na longa cabeça de réptil. Depois se afastou em disparada, ziguezagueando loucamente, arrancando da mão de Bond o arpão e a linha, que arrastou atrás de si. Bond sabia que, antes de ela percorrer cem metros, os demais peixes a atacariam e a fariam em pedaços.
Deu graças a Deus por essa manobra diversiva. Seu ombro estava agora envolto por uma nuvem de sangue. Os outros peixes sentiriam o cheiro em questão de segundos. Contornou o pedregulho imaginando se arranjaria um meio de se abrigar debaixo do atracadouro, escondendo-se de algum modo acima da superfície da água, até pensar em outro plano.
Então viu a caverna que o pedregulho escondera.
Era de fato quase uma porta na base da ilha. Se Bond não estivesse nadando para salvar sua vida, poderia ter entrado nela andando. Mas, naquelas circunstâncias, mergulhou direto na abertura e só parou quando poucos metros o separavam de sua entrada bruxuleante.
Então ficou de pé na areia macia e acendeu a lanterna. Um tubarão talvez pudesse vir atrás dele, mas no espaço confinado seria quase impossível que o mordesse com sua boca situada muito embaixo. Com certeza não viria precipitadamente, porque até o tubarão tem medo de arriscar a pele entre as pedras, e Bond teria ampla oportunidade de procurar atingir seus olhos com a faca.
Bond iluminou o teto e os lados da caverna com a lanterna. Certamente fora modelada ou acabada pela mão do homem. Bond calculou que deveria ter sido escavada de dentro para fora, a partir de algum lugar no centro da ilha.
“Faltam pelo menos vinte metros para acabar, gente”, Morgan, o Sanguinário, deve ter dito aos feitores de escravos. E então as picaretas devem ter rompido de repente o resto da parede que ainda separava a caverna do mar, e uma confusão de pernas, braços e bocas gritando, sufocadas para sempre pela água, teriam sido arremessadas para trás contra a pedra, juntando-se aos cadáveres das demais testemunhas.
O grande pedregulho na entrada deve ter sido posicionado para vedar a saída para o mar. O pescador da baía dos Tubarões que desapareceu de repente, seis meses atrás, deve tê-la descoberto um dia. Fora afastada de sua posição original por alguma tempestade ou tsunami consecutivo a um tufão. Então descobrira o tesouro e percebera que precisava de ajuda para dispor dele. Um branco o enganaria. Melhor procurar o grande gângster negro no Harlem e fazer o melhor acordo que pudesse. O ouro pertencia aos negros que haviam morrido para escondê-lo. Deveria ser devolvido aos negros.
Ali de pé, balançando na correnteza do túnel, Bond imaginou mais um barril cimentado mergulhando no lodo do rio Harlem.
Foi então que ouviu os tambores.
Lá fora, entre os peixes grandes, ouvira uma leve trovoada na água, que aumentara quando entrou na caverna. Mas julgara que eram apenas as ondas batendo na base da ilha e, de qualquer modo, tinha outras coisas em mente.
Mas agora podia distinguir um ritmo definido, e o som ribombava e crescia à sua volta, com um rufo abafado, como se o próprio Bond estivesse preso dentro de um vasto atabaque. A água parecia tremular por causa desse barulho. Ele imaginou o duplo objetivo do batuque. Era um grande chamado aos peixes, usado quando havia invasores, para atrair e excitá-los ainda mais. Quarrel lhe contara como os pescadores noturnos costumam bater nos lados da canoa com o remo para acordar e atrair os peixes. Aquilo deveria ser algo parecido. Ao mesmo tempo seria um aviso macabro do vodu para o pessoal da costa, duplamente eficaz quando algum cadáver era devolvido pelo mar no dia seguinte.
Mais um dos requintes de Mr. Big, pensou Bond. O batuque significava que ele fora descoberto. O que pensariam Strangways e Quarrel ao ouvi-lo? Seriam simplesmente obrigados a aguentar firme, sentados. Bond já havia percebido que os tambores eram algum truque e fizera os dois prometer que não iriam interferir, a não ser que o Secatur escapasse incólume. Pois isso significaria que todos os planos de Bond haviam fracassado. Ele contara a Strangways onde o ouro estava escondido, e neste caso o barco teria de ser interceptado em alto-mar.
Agora o inimigo fora alertado, mas não sabia quem era o invasor, nem se ele ainda estava vivo. Ele precisava prosseguir, nem que fosse para impedir por todos os meios que Solitaire embarcasse no iate condenado.
Bond consultou o relógio. Era meia-noite e meia. Para ele, poderia ter se passado uma semana desde que iniciara sua incursão pelo mar dos perigos.
Apalpou a Beretta sob a roupa de borracha, pensando se já não estaria avariada pela água que entrara pelo rasgo feito pelos dentes da barracuda.
Então, com o troar dos atabaques se aproximando cada vez mais de um crescendo, avançou na caverna, projetando adiante um pequeno feixe de luz com a lanterna.
Avançara cerca de dez metros quando viu um leve brilho na água à sua frente. Apagou a lanterna e foi se aproximando com cautela. O piso arenoso da caverna começou a se inclinar para cima, e a cada metro a luz se tornava mais forte. Agora podia ver dezenas de pequenos peixes que brincavam à sua volta e, mais adiante, a água estava cheia deles, atraídos pela luz da caverna. Caranguejos olhavam atentos de pequenas frestas nas pedras e um polvo novinho se achatou contra o teto, tomando a forma de uma estrela fosforescente.
Em seguida, pôde divisar o final da caverna e uma larga piscina brilhante, além, cujo fundo arenoso era branco como o dia. O roncar dos atabaques aumentava. Parou na sombra da entrada e percebeu que a superfície ficava apenas poucos centímetros acima e que havia lâmpadas sobre a piscina.
Bond estava em um dilema. Mais um passo e ficaria em plena vista de qualquer um que estivesse olhando para a piscina. Ao hesitar, argumentando consigo mesmo, ficou horrorizado ao ver uma fina nuvem de sangue de seu ombro se espalhando pela entrada. Esquecera o ferimento no ombro, que agora começara a latejar, e quando moveu o braço sentiu a ferroada de uma dor intensa em toda sua extensão. Havia também o fino jato de bolhas dos cilindros, mas ele esperava que elas fossem flutuando lentamente para arrebentar na beirinha da entrada.
No exato momento em que recuou alguns centímetros, seu futuro já estava selado.
Sobre sua cabeça percebeu apenas uma enorme pancada na água, e depois dois negros, nus a não ser pelas máscaras de mergulho nos rostos, com longas facas seguras como lanças em suas mãos esquerdas, investiram contra ele.
Antes que sua mão pudesse pegar a faca no cinto, já haviam agarrado seus dois braços e o puxavam para a superfície.
Desesperado, Bond teve de deixar que o tirassem à força da piscina e o jogassem na areia lisa. Depois de ser obrigado a se levantar, abriram os zíperes de seu traje de mergulho. Seu capuz foi retirado da cabeça, o coldre de seu ombro, e de repente ele se achou de pé entre os frangalhos da roupa preta de mergulho, como uma serpente trocando a pele, nu, exceto pelo pequeno calção de banho. O sangue escorria do buraco irregular no ombro esquerdo.
Quando tiraram seu capuz, Bond quase ensurdeceu com a batida e o rufar dos atabaques. O barulho penetrava nele e mexia com tudo em volta. O ritmo rápido e sincopado galopava e latejava nas suas veias. Parecia capaz de acordar toda a Jamaica. Bond fez uma careta e seus sentidos procuraram resistir aos golpes daquela tempestade sonora. Em seguida, os guardas o fizeram se virar e se deparar com uma cena tão grotesca que o som dos atabaques recuou para o fundo e toda sua consciência se concentrou no que via.
No primeiro plano, em uma mesa de jogo com tampo de veludo verde, apinhada de papéis, e sentado em uma cadeira de dobrar, estava Mr. Big, com uma caneta na mão, olhando-o sem curiosidade. Um Mr. Big em um terno castanho-amarelado, bem cortado, de tropical, com camisa branca e gravata de tricô de seda preta. O queixo largo descansava na sua mão esquerda e ele levantou os olhos para Bond como se tivesse sido incomodado, em seu escritório, por alguém de sua equipe pedindo um aumento de salário. Parecia polido, porém levemente entediado.
A alguns passos dele, sinistro e absurdo, o espantalho da efígie do Baron Samedi, ereto sobre uma pedra, observava Bond debaixo de seu chapéu-coco.
Mr. Big tirou a mão do queixo e seus grandes olhos dourados estudaram Bond da cabeça aos pés.
“Bom dia, senhor James Bond”, disse finalmente, projetando a voz inexpressiva contra o barulho já decrescente dos tambores. “A mosca levou mesmo muito tempo para chegar à aranha, ou talvez devesse dizer ‘o lambari à baleia’. Você deixou um belo rastro de bolhas no recife.”
Recostou-se na cadeira e se calou. Os atabaques batiam e rufavam mais baixo.
Então fora a luta contra o polvo que o traíra. A mente de Bond registrou o fato automaticamente, enquanto olhava para além do homem na mesa.
Estava em um salão de pedra grande como uma igreja. Metade do piso era ocupada pela enorme piscina clara e branca pela qual chegara, e que se transformava em verde-mar e depois azul perto do buraco de entrada submarino. Em seguida, havia a faixa estreita de areia em que ele pisava, e o resto do piso era de pedra lisa e plana, marcado por algumas estalagmites cinzentas e brancas.
A alguma distância atrás de Mr. Big uma escadaria íngreme levava a um teto abobadado, do qual pendiam estalactites curtas de calcário. De seus brancos mamilos a água gotejava intermitentemente na piscina, ou sobre as jovens estalagmites que se erguiam do chão, a seu encontro.
Havia uma dúzia de luzes fosforescentes muito claras fixadas alto nas paredes, criando reflexos dourados nos torsos nus de um grupo de negros em pé, à sua esquerda, no piso de pedra, observando Bond de olhos arregalados, mostrando os dentes em sorrisos cruéis e satisfeitos.
Em volta de seus pés pretos e rosados, entre destroços de madeira quebrada e anéis de ferro enferrujados, tiras mofadas de couro e lona decomposta, havia um mar fulgurante de moedas de ouro — metros, cascatas de moedas redondas de ouro, do qual emergiam as pernas pretas, como se tivessem sido detidas no meio de um passeio entre as chamas.
Ao lado deles, empilhadas fileira após fileira, ficavam bandejas rasas de madeira. Algumas estavam no chão, parcialmente cheias de moedas de ouro, e embaixo da escada, um único negro parara na subida, segurando uma delas repleta de moedas de ouro em quatro fileiras cilíndricas, estendida como se estivesse sendo oferecida à venda.
Mais à esquerda, em um canto do salão, havia dois negros próximos a um caldeirão de ferro arredondado, suspenso acima de três maçaricos sibilantes, até que seu fundo ficasse vermelho incandescente. Seguravam escumadeiras de ferro, lambuzadas de ouro até metade de seus cabos. Ao lado deles havia uma miscelânea de peças de ouro, talheres, objetos de altar, copos, cruzes e uma pilha de lingotes de ouro de diversos tamanhos. Ao longo da parede viam-se, próximas a eles, fileiras de bandejas para esfriar o metal, cujas superfícies segmentadas irradiavam um brilho dourado, e uma bandeja vazia descansava no piso perto do caldeirão, junto com uma longa concha manchada de ouro e o cabo envolto em pano.
Acocorado no chão, não muito distante de Mr. Big, um único negro segurava uma faca em uma das mãos, e uma taça ornamentada de brilhantes na outra. A seu lado, em um prato de lata, uma pilha de joias cintilava, embaçadas, vermelhas, azuis e verdes, sob o brilho das lâmpadas fluorescentes.
Estava quente e abafado no grande salão de pedra e, no entanto, Bond tiritava ao abarcar toda essa esplêndida cena com os olhos. O brilho das lâmpadas violeta esbranquiçadas, o bronzeado tremeluzente dos corpos suados, o brilho forte do ouro, o arco-íris do recipiente com os brilhantes, a água marinha em tom leitoso da piscina. Ele tremia diante da beleza daquilo tudo, diante daquela dança petrificada da grande arca do tesouro de Morgan, o Sanguinário.
Seus olhos voltaram para o quadrado de veludo verde e para a grande face de zumbi, olhando aquele rosto e seus olhos amarelos com respeito, quase com reverência.
“Pare os tambores”, disse Mr. Big, para ninguém em particular. O batuque se reduzira a um quase sussurro, a um murmúrio cujo acento recaía sobre o ritmo do coração nas veias. Um dos negros deu dois passos, acompanhados de barulhos metálicos entre as moedas, abaixando-se. Um aparelho de som portátil estava no chão, com um potente amplificador ao lado, contra a parede de pedra. Depois de um clique os tambores pararam. O negro fechou a tampa do aparelho e voltou a seu lugar.
“Andem com o trabalho”, ordenou Mr. Big. E de repente todas as figuras começaram a se mover, como se alguém tivesse posto uma moeda em um caça-níquel. Mexeram o caldeirão, pegaram o ouro e o puseram nas caixas, o sujeito procurava retirar a pedraria da taça, e o negro com a bandeja de ouro prosseguiu subindo a escada.
Bond continuava de pé, pingando suor e sangue.
Big Man descansou a caneta e se levantou devagar. Afastou-se da mesa.
“Assuma meu lugar”, ordenou a um dos homens que guardavam Bond, e o sujeito nu rodeou a mesa, sentou na cadeira de Mr. Big e pegou a caneta.
“Traga-o aqui para cima.” Mr. Big foi até os degraus na rocha e começou a subi-los lentamente.
Bond sentiu uma picada do lado. Acabou de despir os restos de sua segunda pele preta e seguiu a figura que subia devagar.
Ninguém levantou os olhos do trabalho. Ninguém descuidava do serviço quando Mr. Big saía. Ninguém seria capaz de enfiar um brilhante ou uma moeda na boca.
O Baron Samedi assumira a chefia.
Apenas seu zumbi deixara a caverna.
21.
“BOA NOITE A AMBOS”
Subiram vagarosamente por cerca de treze metros, passando por uma porta aberta perto do teto, e pararam em um grande patamar na pedra. Ali um único negro, à luz de um lampião de acetileno, arrumava bandejas cheias de moedas de ouro no meio dos tanques de peixe, muitos já se encontrando empilhados contra a parede.
Enquanto esperavam, dois negros desceram a escada, vindos da superfície, pegaram um tanque pronto e voltaram para cima com ele.
Bond achava que eles enchiam os tanques com areia, plantas aquáticas e peixes em algum lugar no alto, e depois os desciam através da corrente humana ao longo da face do rochedo.
Notou que alguns dos tanques à espera tinham lingotes de ouro fixados no centro, e outros, pedrarias espalhadas como cascalho. Então refez os cálculos sobre o tesouro, quadruplicando seu valor até cerca de quatro milhões de libras esterlinas.
Mr. Big ficou um tempo com o olhar no chão de pedra. Respirava fundo, mas de maneira controlada. Em seguida, subiram.
Vinte degraus acima havia outro patamar, menor, com uma porta de saída. Nela havia corrente e cadeado novos. A própria porta era feita de grades de ferro marrons, achatadas, corroídas pela ferrugem.
Mr. Big parou de novo e ficaram lado a lado na pequena plataforma de pedra.
Por um momento Bond pensou em fugir, mas, como se tivesse lido a sua mente, o guarda negro cercou-o contra a parede, longe de Big Man. E Bond sabia que sua maior obrigação era se manter vivo e chegar a Solitaire, e arranjar um jeito de afastá-la do barco condenado pela mina, em que o ácido roía lentamente o cobre do detonador.
Do alto vinha uma forte correnteza pelo vão da escada, e Bond sentiu que seu suor secava. Pôs a mão direita no ferimento do ombro, sem se assustar com a picada no flanco feita pela faca do guarda. O sangue já secara em crostas e a maior parte do braço doía tremendamente.
Mr. Big falou:
“Este vento, sr. Bond”, apontou para o vão, “é conhecido na Jamaica como ‘vento Papa-Defunto’”.
Bond sacudiu o ombro direito, poupando o fôlego.
Mr. Big virou para a porta de ferro, tirou a chave do bolso e abriu-a. Passou e foi seguido por Bond e seu guarda.
Era um cômodo que consistia em uma estreita passagem, com grilhões enferrujados presos embaixo na parede, a menos de dez metros de intervalo.
Na outra extremidade, onde uma lamparina pendia do teto de pedra, uma figura imóvel estava deitada no chão, embrulhada em um cobertor. Havia mais uma lamparina na porta, em cima de suas cabeças, mas, exceto isso, apenas o cheiro de pedra úmida, torturas antigas e morte.
“Solitaire”, falou Bond, baixinho.
O coração de Bond deu um salto e ele quis se adiantar. Imediatamente uma mão enorme agarrou seu braço.
“Pare aí, seu branco”, vociferou o guarda, torcendo o punho dele entre as espáduas, levantando-o ainda mais, até que Bond deu um chute com o calcanhar esquerdo. Acertou na canela do homem, mas doeu mais em Bond do que no guarda.
Mr. Big se virou. Tinha uma pequena arma quase encoberta pela mão enorme.
“Solte-o”, ordenou em voz baixa. “Se quiser mais um umbigo, senhor Bond, é só dizer. Tenho seis aqui nesta arma.”
Bond passou esbarrando em Big Man. Solitaire se levantara, vindo em sua direção. Quando viu seu rosto, desandou a correr, estendendo as mãos.
“James”, soluçou. “James.”
Ela quase caiu a seus pés. Suas mãos se agarraram.
“Arranje corda”, ordenou Mr. Big no vão da porta.
“Está tudo bem, Solitaire”, disse Bond, sabendo que não estava. “Está tudo bem. Estou aqui agora.”
Ele pegou-a, mantendo-a a distância de seu braço estendido. O braço esquerdo doeu. Ela estava pálida e desarrumada, com um machucado na testa e olheiras. No seu rosto encardido as lágrimas escorriam deixando marcas na pele lívida. Estava sem maquiagem. Trajava um terninho branco sujo e sandálias. Parecia magra.
“O que esse desgraçado anda fazendo com você?”, perguntou Bond. Apertou-a de repente contra si. Ela se agarrou a ele, com o rosto enterrado em seu pescoço.
Em seguida, se afastou e olhou para a mão dele.
“Você está sangrando”, disse. “O que é?”
Virou-o pela metade e viu o sangue preto no seu ombro e pelo braço abaixo.
“Ah, meu querido, o que foi?”
Começou a chorar de novo, desamparada, desesperada, percebendo subitamente que ambos estavam perdidos.
“Amarre-os”, ordenou Big Man, da porta. “Aqui, debaixo da luz. Preciso dizer-lhes umas coisas.”
O negro estava vindo e Bond se virou. Valeria a pena arriscar? O negro só tinha a corda na mão. Mas Big Man deu um passo para o lado, vigiando-o, segurando a arma displicentemente, meio apontada para o chão.
“Não, senhor Bond”, avisou apenas.
Bond lançou um olhar para o negro enorme e pensou em Solitaire e no seu próprio ombro ferido.
O negro chegou e Bond deixou que amarrasse seus braços atrás das costas. Os nós foram bem dados. Não havia folga. Doíam.
Bond sorriu para Solitaire. Piscou um olho pela metade. Não passava de uma bravata, mas percebeu uma vivacidade esperançosa renascer em meio a suas lágrimas.
O negro levou-o de volta à porta.
“Ali”, disse Big Man, fazendo um gesto para um dos grilhões.
O negro derrubou Bond com uma rasteira repentina. Este caiu em cima do ombro ferido. O negro puxou-o pela corda até o grilhão, testou-o, passou a corda por ele e então amarrou Bond pelos tornozelos, muito bem amarrado. Enfiara sua faca em uma fresta na pedra. Tirou-a, cortou a corda e voltou para onde Solitaire estava.
Bond ficou sentado no chão de pedra, com as pernas esticadas para a frente, com os braços suspensos, amarrados por trás. O sangue pingava do ferimento reaberto. Apenas os resíduos da benzedrina no seu corpo o impediam de desmaiar.
Solitaire foi amarrada e colocada quase defronte a ele. Um metro separava os pés de ambos.
Com a tarefa concluída, Big Man consultou o relógio.
“Vá”, ordenou ao guarda. Fechou a porta de ferro depois que o sujeito se foi, ficando encostado nela.
Bond e a garota se entreolharam e Big Man contemplou os dois no chão.
Depois de um de seus longos silêncios, dirigiu-se a Bond. Este levantou os olhos para ele. A enorme bola de futebol cinzenta que era sua cabeça parecia, sob o lampião, a cabeça de um elemental, de algum espectro maligno do centro da terra, pairando no ar, com os olhos dourados ardendo firmes, e o grande corpo na sombra. Bond precisou lembrar-se de que já ouvira o coração dele batendo no peito, já o ouvira respirar, já vira suor na pele cinzenta. Não passava de um homem, da mesma espécie dele, um homem grande, com uma mente brilhante, mas ainda assim um homem que caminhava e defecava, um homem mortal, com uma doença no coração.
A boca larga e borrachuda se abriu, os lábios achatados, levemente virados, recuaram dos grandes dentes brancos.
“Você é o melhor de todos os que foram mandados para me combater”, disse Mr. Big. Sua voz baixa e insossa era pensativa, calculada. “E conseguiu matar quatro de meus ajudantes. Meus seguidores acham isso inacreditável. Já é mais do que tempo de liquidarmos nossas contas. O que aconteceu ao americano não bastou. A traição desta garota”, ele ainda olhava para Bond, “que tirei da sarjeta e estava pronto a colocar na minha mão direita, também questionou a minha infalibilidade. Eu estava imaginando como ela deveria morrer, quando a providência, ou o Baron Samedi, como meus seguidores gostam de acreditar, também trouxe você para o altar de cabeça baixa, pronto para o machado”.
A boca parou, com os lábios entreabertos. Bond viu os dentes se juntarem para formar a palavra seguinte.
“De modo que é conveniente que os dois morram juntos. Isso acontecerá de um modo adequado”, Big Man consultou seu relógio, “dentro de duas horas e meia. Às seis horas, alguns minutos a mais ou a menos”, acrescentou.
“Alguns minutos a mais”, comentou Bond. “Gosto da vida.”
“Na história de emancipação dos negros”, continuou Mr. Big em tom de conversa despreocupada, “já surgiram grandes atletas, grandes músicos, grandes escritores, grandes médicos e cientistas. No seu devido tempo, como aconteceu na história do desenvolvimento de outras raças, hão de surgir negros famosos em todos os demais setores da vida”. Fez uma pausa. “Infelizmente para você, senhor Bond, e para esta garota, vocês encontraram o primeiro dos grandes criminosos negros. Uso esta palavra vulgar, senhor Bond, porque seria a mesma que você, senhor Bond, como uma espécie de policial, usaria. Mas prefiro me considerar uma pessoa que possui a habilidade, as capacidades mentais e nervosas para criar as próprias leis e agir segundo elas, em vez de aceitar as leis que convêm ao mínimo denominador comum das pessoas. Sem dúvida você já leu Os instintos do rebanho na paz e na guerra, de Trotter. Pois bem, sou lobo por índole e opção, e vivo segundo as leis do lobo. É natural que os carneiros descrevam este indivíduo como ‘criminoso’.
“O fato, senhor Bond”, prosseguiu Big Man, depois de uma pausa, “de que sobrevivo e, na verdade, gozo de um sucesso ilimitado, embora seja eu sozinho contra milhões de carneiros, se deve às técnicas modernas que lhe descrevi por ocasião de nossa última conversa, e a uma infinita capacidade de me esforçar. Não os esforços tediosos, vulgares, e sim os artísticos e sutis. E eu noto, senhor Bond, que não é difícil enganar os carneiros, não importa quantos, com muita dedicação ao trabalho e, naturalmente, se formos um lobo extremamente bem dotado.
“Deixe-me ilustrar, por exemplo, como funciona a minha mente. Estudemos o método pelo qual decidi que ambos morrerão. É uma variação moderna do método usado na época do meu generoso patrono, sir Henry Morgan. Naquele tempo, era conhecido como ‘arrastamento pela quilha’.”
“Por favor, continue”, disse Bond, sem olhar para Solitaire.
“Temos uma paravana a bordo do iate”, prosseguiu Mr. Big, como se fosse um cirurgião descrevendo uma operação delicada para um grupo de estudantes, “que usamos para rebocar tubarões e outros peixes de grande porte. Esta paravana é, como sabem, um aparelho com a forma de um torpedo, que boia puxado por um cabo, distante do barco. Pode ser usada para sustentar a extremidade de uma rede, rebocando-a através da água, com o barco em movimento. Também pode ser equipada com um instrumento de corte, para cortar os cabos de amarração das minas em época de guerra.
“Pretendo”, continuou Mr. Big, em um tom de voz discursivo e natural, “amarrá-los juntos à extremidade de um cabo preso a essa paravana e rebocá-los pelo mar até que sejam devorados pelos tubarões”.
Fez uma pausa, enquanto seu olhar passava de um para outro. Solitaire mirava de olhos arregalados para Bond, que se esforçava em pensar, com o olhar ausente, perscrutando o futuro. Sentiu que deveria dizer alguma coisa.
“Você é um homem grande”, afirmou, “e um dia morrerá de uma morte igualmente grande e terrível. Se nos matar, essa morte virá em breve. Já a providenciei. Está enlouquecendo a olhos vistos, senão perceberia a repercussão que nosso assassinato terá sobre sua vida”.
Enquanto falava, a mente de Bond funcionava rápido, contando horas e minutos, sabendo que a própria morte de Big Man chegaria devagar, com o ácido corroendo o detonador seguindo o ponteiro dos minutos, rumo à hora do encontro final com seu destino. Mas estariam ele e Solitaire mortos, antes que soasse essa hora? Minutos, talvez segundos, fariam a diferença. O suor escorria do seu rosto para o peito. Sorriu para Solitaire. Ela lhe deu um olhar ausente, sem enxergá-lo.
De repente deu um grito agoniado que sacudiu os nervos de Bond.
“Não sei”, gritou. “Não consigo ver. Está tão perto, tão próximo. Há muitas mortes. Mas...”
“Solitaire”, gritou Bond, apavorado com a possibilidade de que as coisas estranhas que ela previsse, quaisquer que fossem, pudessem servir de aviso a Big Man. “Controle-se.”
Havia um toque de raiva em sua voz.
Os olhos dela clarearam, olhando mudos para ele, sem compreender.
Big Man falou de novo.
“Não estou ficando louco, senhor Bond”, avisou calmamente, “e nenhuma providência sua me afetará. Vocês morrerão além do recife e não restará nenhum indício. Rebocarei os restos de seus corpos até que não sobre nada. Isso faz parte da sagacidade dos meus planos. Vocês também devem saber que o tubarão e a barracuda desempenham um papel no voduísmo. Eles receberão seus sacrifícios e o Baron Samedi será apaziguado. Meus seguidores ficarão satisfeitos. Da mesma forma, desejo continuar minhas experiências com os peixes carnívoros. Acredito que só atacam quando há sangue na água. Por isso seus corpos serão rebocados desde a ilha. A paravana os rebocará sobre o recife. Acho que não serão atacados antes da barra. O sangue e as vísceras que são jogados todas as noites nessas águas já terão sido dispersos ou consumidos. Mas quando seus corpos forem rebocados por cima do recife, infelizmente sangrarão, ficarão em carne viva. Então veremos se minhas teorias estão corretas.”
Big Man estendeu a mão para trás e abriu a porta.
“Eu os deixarei agora”, falou, “para que reflitam sobre a excelência do método que criei para matá-los juntos. Não restará indício algum. A superstição ficará satisfeita. Meus seguidores também. Os corpos serão utilizados para a pesquisa científica.
“Isso é o que eu chamo, senhor James Bond, de uma capacidade infinita de refinamento artístico.”
Parou no vão da porta e olhou para os dois.
“Uma noite breve, porém boa. É o que desejo a ambos.”
22.
TERROR NO MAR
O dia ainda não clareara quando os guardas vieram buscá-los. As cordas que prendiam suas pernas foram cortadas e, com os braços ainda atados, foram levados pelos últimos degraus de pedra que faltavam para a superfície.
Ficaram entre algumas árvores esparsas e Bond aspirou o ar frio da manhã. Olhou através das árvores na direção do oriente e viu que as estrelas estavam mais pálidas e havia uma luminosidade no horizonte que anunciava o raiar da aurora. O cicio noturno dos grilos quase terminara e, em algum canto da ilha, um tordo ensaiava as primeiras notas do dia.
Bond calculou que deviam ser mais ou menos cinco e meia.
Ficaram ali vários minutos. Os negros passavam próximos a eles, carregando embrulhos e malas de fibra de palmeira, entre cochichos cautelosos. As portas do punhado de palhoças entre as árvores estavam escancaradas. Os homens andavam em fila até a beira do penhasco, à direita de Bond e Solitaire, desaparecendo por ali. Não voltavam. Era uma evacuação. Toda a guarnição da ilha levantava acampamento.
Bond esfregou o ombro desnudo contra Solitaire e ela se aninhou contra ele. Fazia frio depois da masmorra abafada, e Bond tiritava. Mas era melhor estar em movimento do que prolongar o suspense lá de baixo.
Ambos sabiam o que precisava ser feito, a natureza do risco.
Depois que Big Man os deixara, Bond não perdera tempo. Falando baixinho, contara à garota sobre a mina magnética presa ao costado do barco, prevista para explodir alguns minutos depois das seis horas, e explicara os fatores decisivos para saber quem morreria ou não naquela manhã.
Primeiro, apostara na mania de exatidão e de eficiência de Mr. Big. O Secatur precisava zarpar às seis horas em ponto. Portanto, não deveria haver nenhuma nuvem, se não a visibilidade na meia-luz do amanhecer não seria suficiente para assegurar a passagem do barco através do recife, e Mr. Big adiaria a partida. Se Bond e Solitaire estivessem no atracadouro ao lado do iate, morreriam junto com Mr. Big.
Supondo que o barco zarpasse na hora exata, a que distância e de que lado dele seriam rebocados? Teria de ser a bombordo para que a paravana ficasse desimpedida na hora de deixar a ilha. Bond supôs que o cabo de reboque da paravana teria cinquenta metros de comprimento, e que eles seriam rebocados vinte ou trinta metros atrás da paravana.
Se ele estivesse certo, seriam arrastados por cima do recife externo cerca de cinquenta metros depois de o Secatur ter rompido pelo canal. Provavelmente se aproximaria da passagem nos recifes a cerca de três nós e, em seguida, pegaria velocidade até chegar a dez, ou até mesmo a vinte. De início seus corpos seriam rebocados da ilha em um lento arco, virando e se retorcendo na ponta da linha de reboque. Logo depois a paravana se endireitaria e, mesmo após o barco ter transposto o recife, eles ainda não teriam chegado a ele. Portanto, a paravana passaria pelo recife quando o barco já o tivesse ultrapassado em quarenta metros, e depois eles a seguiriam a alguns metros a mais de distância.
Bond estremeceu ao pensar nos ferimentos que seus corpos sofreriam se fossem arrastados, a qualquer velocidade, sobre os dez metros de árvores e recifes de coral, afiados como uma navalha. Ficariam com as costas e as pernas esfoladas.
Depois de atravessarem o recife, não passariam de uma isca sanguinolenta, e seria apenas uma questão de minutos até que o primeiro tubarão ou barracuda avançasse neles.
E Mr. Big, sentado confortavelmente no deque da popa, assistiria à carnificina, talvez de binóculos, marcando os segundos e os minutos enquanto a isca viva ia diminuindo de tamanho, até que finalmente os peixes só abocanhassem o cabo ensanguentado.
Até que não restasse coisa alguma.
Então a paravana seria içada a bordo e o iate cortaria o mar graciosamente rumo à longínqua Florida Keys, a Cape Sable e ao atracadouro ensolarado no porto de St. Petersburg.
E se a mina explodisse quando eles ainda estivessem na água, a cinquenta metros do barco? Qual seria o efeito do deslocamento de ar em seus corpos? Talvez não fosse fatal. O casco do iate absorveria a maior parte. O recife talvez os protegesse.
Bond só podia adivinhar e manter a esperança.
Sobretudo, precisavam continuar vivos até o último segundo possível. Precisavam continuar respirando enquanto fossem arrastados, como um pacote vivo, pelo mar. Muita coisa dependia da maneira como eles os amarrariam um ao outro. Mr. Big haveria de querer que continuassem vivos. Não lhe interessaria uma isca morta.
Se ainda estivessem vivos quando a primeira barbatana de tubarão surgisse à tona atrás deles, Bond decidira afogar friamente Solitaire. Afogá-la torcendo seu corpo debaixo do seu e segurando-o ali. Em seguida, tentaria se afogar torcendo o corpo morto dela de volta para que o seu ficasse por baixo.
Cada volteio de seu pensamento esbarrava em um pesadelo, no horror nauseante de cada detalhe medonho da tortura monstruosa que aquele homem havia preparado para eles. Mas Bond sabia que precisava conservar o sangue-frio e a resolução absoluta de lutar pelas suas vidas até o fim. Havia ao menos uma sensação calorosa na ideia de que Mr. Big e a maioria de seus homens também morreriam. E um lampejo de esperança de que ele e Solitaire talvez sobrevivessem. A não ser que a mina falhasse, o inimigo não poderia contar com nenhuma esperança.
Tudo isso e uma centena de outros pormenores e planos passaram pela cabeça de Bond na última hora antes de serem levados pelo vão da escada até a superfície. Com Solitaire compartilhou todas as suas esperanças. Nenhum dos seus temores.
Ela ficara deitada à sua frente, com seus olhos azuis e cansados fixos nele, obedientes, confiantes, bebendo seu rosto e suas palavras, dóceis, amorosos.
“Não se preocupe comigo, querido”, dissera, quando os homens vieram buscá-los. “Sinto-me feliz de estar de novo com você. Meu coração está cheio de felicidade. De algum modo, não estou com medo, apesar de pressentir uma grande matança. Você me ama um pouquinho?”
“Sim”, respondeu Bond. “E vamos ainda aproveitar o nosso amor.”
“Vambora”, disse um dos homens.
E agora, no alto do morro, clareava. Bond ouviu os dois grandes motores a diesel tossirem e roncarem embaixo do penhasco. Uma leve brisa soprava a barlavento, mas a sota-vento, onde estava o barco, a baía era um espelho de bronze.
Mr. Big apareceu no alto da escadaria, com uma pasta de executivo na mão. Ficou por um momento olhando em volta, recuperando o fôlego. Não prestou nenhuma atenção a Bond ou Solitaire, nem aos dois guardas ao lado deles, de revólveres na mão.
Olhou para o céu e de repente clamou, em um tom de voz nítido, na direção da orla do sol.
“Obrigado, sir Henry Morgan. Seu tesouro será bem gasto. Dê-nos um vento de popa.”
Os guardas negros arregalaram os olhos.
“O vento Papa-Defunto”, disse Bond.
Big Man olhou-o.
“Já está tudo embaixo?”, perguntou aos guardas.
“Sim senhor, patrão”, respondeu um deles.
“Leve-os”, ordenou Big Man.
Foram até a beira do penhasco e desceram a escadaria íngreme, com um guarda na frente, outro atrás e Mr. Big a seguir.
Os motores do longo e elegante iate giravam sossegados, com o escape borbulhando gravemente, e um fio de vapor azul a se erguer da popa.
Três sujeitos no molhe cuidavam das guias. Só havia três homens no convés, além do capitão, e o piloto na ponte escura, bem projetada. Não havia mais espaço para ninguém. Todo o espaço disponível no convés, exceto por uma cadeira de pesca presa no lado direito da popa, era preenchido pelos tanques de peixe. Com o pavilhão vermelho arriado, só a bandeira americana pendia imóvel da popa.
Distante alguns metros do barco, a paravana vermelha em forma de torpedo, com cerca de dois metros de comprimento, flutuava tranquilamente na água, agora verde-mar ao primeiro amanhecer. Estava ligada a uma grossa pilha de cabos metálicos, enrolados no convés da popa. Parecia a Bond que eles deveriam ter uns bons cinquenta metros. A água estava cristalina e não havia peixes rondando por perto.
O vento Papa-Defunto morria aos poucos. Dentro em breve o vento Médico começaria a soprar vindo do mar. Dentro de quanto tempo?, perguntou-se Bond. Seria um presságio?
Ao longe, além do barco, ele conseguia avistar o teto de Beau Desert entre as árvores, mas o molhe, o barco e a trilha no penhasco ainda estavam mergulhados em profunda sombra. Bond pensou se os binóculos de visão noturna conseguiriam vê-los. Se pudessem, o que pensaria Strangways?
No molhe, Mr. Big supervisionava a tarefa de amarrá-los.
“Tire a roupa dela”, ordenou ao guarda.
Bond se encolheu. Deu uma olhada de relance para o relógio de pulso de Mr. Big. Nele, faltavam dez minutos para as seis. Bond manteve silêncio. Não deveria haver nem um minuto de atraso.
“Jogue as roupas a bordo”, disse Mr. Big. “Amarre uns panos no ombro dele. Não quero que haja sangue na água ainda.”
As roupas de Solitaire foram cortadas a faca. Ela permaneceu ali, nua e pálida. Abaixou a cabeça e seus cabelos pesados caíram para a frente, tapando seu rosto. O ombro de Bond foi atado grosseiramente com tiras do seu vestido de linho.
“Canalha”, desabafou Bond, de dentes cerrados.
Sob a direção de Mr. Big, primeiro soltaram as mãos dos dois. Seus corpos foram atados frente a frente, e seus braços passados pela cintura um do outro, e depois novamente atados com força.
Bond sentiu a pressão dos seios macios de Solitaire. Ela encostou o queixo no ombro direito dele.
“Eu não queria que fosse assim”, sussurrou, trêmula.
Bond não respondeu. Mal sentia o corpo dela. Contava os segundos.
No molhe havia uma corda enovelada que ia até a paravana. Mergulhava na água e Bond a distinguia seguindo no fundo de areia até surgir de encontro à barriga do torpedo vermelho.
Sua extremidade solta foi passada debaixo das axilas de Bond e Solitaire, e bem amarrada com um nó que ficava no espaço entre seus pescoços. Tudo feito com muito cuidado. Não havia possibilidade de fuga.
Bond contava os segundos. De acordo com ele, faltavam cinco para as seis.
Mr. Big deu uma última olhada nos dois.
“Deixem as pernas soltas”, comentou. “Dão uma isca apetitosa.” Deixou o molhe e embarcou no convés do iate.
Os dois guardas também embarcaram. Depois de soltarem as guias, os dois sujeitos no molhe os seguiram. As hélices revolveram a água mansa e, com os motores a meia velocidade, o Secatur se afastou rapidamente da ilha.
Mr. Big foi para a popa, sentando-se na cadeira de pesca. Podiam ver o seu olhar fixo neles. Não disse nada. Não fez gesto algum. Apenas contemplava.
O Secatur cortava a água em direção ao recife. Bond podia ver o cabo da paravana se desenrolando no costado. A paravana começou a se mover lentamente atrás do barco. De repente mergulhou o nariz, endireitou-se e disparou, com o leme se dobrando na direção contrária à esteira do barco.
O rolo de corda ao lado deles deu um súbito sinal de vida.
“Cuidado”, avisou Bond, com urgência, agarrando-se com mais força à garota.
Seus braços quase se desconjuntaram com o solavanco do puxão, quando caíram do molhe no mar.
Por um instante ambos submergiram, depois voltaram à tona, com seus corpos unidos rasgando a água.
Bond procurava respirar em meio às ondas e aos borrifos que passavam depressa por ele, inundando sua boca retorcida. Podia ouvir a respiração entrecortada de Solitaire ao lado do seu ouvido.
“Respire, respire”, gritou, através da avalanche de água. “Prenda suas pernas nas minhas.”
Ela ouviu-o e ele sentiu entre as coxas a pressão dos joelhos dela. Solitaire teve um acesso de tosse. Em seguida, a respiração dela tornou-se mais regular junto ao seu ouvido e as batidas do coração da mulher acalmaram-se contra o seu peito. Ao mesmo tempo, a velocidade em que eram rebocados sofreu uma redução.
“Prenda a respiração”, gritou Bond. “Preciso dar uma olhada. Pronta?”
Ela respondeu com uma pressão dos braços. Ele sentiu o peito dela inflar quando seus pulmões se encheram de ar.
Usando o peso do corpo, girou-a para baixo, de maneira que a cabeça dele agora estava totalmente fora d’água.
Cortavam o mar a cerca de três nós. Dobrou a cabeça acima da pequena marola que faziam.
O Secatur entraria na passagem entre os recifes dentro de aproximadamente oitenta metros, segundo calculou. A paravana deslizava lentamente, quase em ângulo reto em relação ao barco. Faltavam trinta metros para o torpedo vermelho atravessar as águas encrespadas sobre o recife. Trinta metros atrás da paravana, eles navegavam devagar na superfície da baía.
Sessenta metros até o recife.
Bond girou o corpo e Solitaire emergiu, ofegante.
Continuaram a avançar lentamente na água.
Cinco metros, dez, quinze, vinte...
Apenas quarenta metros para atingirem o banco de coral.
O Secatur deveria ter acabado de transpô-lo. Bond recuperou o fôlego. Já devia passar das seis. Que teria acontecido com a porcaria da mina? Bond fez uma rápida e fervorosa oração. Que Deus nos salve, disse dentro d’água.
De repente sentiu que a corda apertava sob seus braços.
“Respire, Solitaire, respire”, gritou quando retomaram a velocidade e a água começou a passar sibilante por eles.
Agora voavam pelo mar em direção ao recife submerso.
Houve uma ligeira diminuição de velocidade. Bond imaginou que a paravana tivesse batido em uma pedra ou algum coral na superfície. Em seguida, seus corpos voltaram a disparar no seu abraço mortal.
Faltavam trinta metros, vinte, dez...
Meu Deus, pensou Bond. Não escaparemos. Contraiu os músculos para enfrentar a dor lancinante do impacto, empurrando Solitaire mais para cima, para protegê-la do pior.
De repente o ar fugiu com um chiado de seus pulmões, e um punho gigantesco socou-o contra Solitaire, de modo que ela se ergueu totalmente fora do mar e voltou a cair. Uma fração de segundo depois, um clarão iluminou o céu e ouviu-se o ribombar de uma explosão.
Estacaram de repente, e Bond percebeu que o peso da corda solta os puxava para baixo.
Suas pernas afundaram sob seu corpo atordoado e a água inundou sua boca.
Foi o que o fez recuperar a consciência. As pernas dele se debateram no fundo, voltando a trazer suas bocas até a tona. A garota era um peso morto em seus braços. Ele revolvia a água em desespero e olhava à sua volta, segurando a cabeça desmaiada de Solitaire em seu ombro, acima da superfície.
A primeira coisa que viu foram as águas revoltas do recife, a não mais de cinco metros de distância. Sem a sua proteção, ambos teriam sido esmagados pelo impacto da explosão. Ele sentiu o repuxo e o rodamoinho da correnteza em volta das pedras. Avançou desesperado em direção a ele, aspirando golfadas de ar sempre que possível. Seu peito ardia com o esforço e ele via o céu através de uma película vermelha. A corda o puxava para baixo e o cabelo da garota enchia sua boca, quase o sufocando.
De repente sentiu um arranhão agudo do coral contra a parte de trás das pernas. Chutou-as procurando desesperadamente um apoio para os pés, esfolando a pele a cada movimento.
Mal sentia dor.
Agora eram seus braços e suas costas que estavam sendo arranhados. Tropeçou, desajeitado, com os pulmões ardendo no peito. Em seguida sentiu uma camada de agulhas sob os pés. Arriou o peso nela, inclinando-se para trás para resistir à forte correnteza que procurava desalojá-lo. Seus pés resistiram e havia rocha às suas costas. Inclinou-se para trás, ofegante, com o sangue escorrendo em volta dele na água, segurando contra si o corpo frio da garota, que mal respirava.
Descansou por um minuto, com gratidão, olhos fechados e o sangue pulsando nas veias, tossindo dolorosamente, à espera de que seus sentidos se reanimassem. Seu primeiro pensamento foi em relação ao sangue na água à sua volta. Mas desconfiou de que os grandes peixes não se aventuravam até o recife. Aliás, não havia nada que ele pudesse fazer quanto a isso.
Em seguida, olhou para o mar.
Não havia sinal algum do Secatur.
No alto do céu tranquilo via-se um cogumelo de fumaça, que o vento Médico começava a arrastar em direção à terra.
Havia destroços espalhados sobre toda a extensão do mar e cabeças que subiam e desciam. A água estava toda coalhada com as barrigas brancas dos peixes atordoados ou mortos pela explosão. Um cheiro forte de explosivo pairava no ar. Na orla dos destroços a paravana vermelha jazia tranquila com o casco para baixo, ancorada pelo cabo cuja outra ponta deveria se encontrar em algum lugar no fundo. Colunas de bolhas emergiam na superfície vítrea do mar.
Na beira do círculo de peixes mortos e cabeças balouçantes, algumas barbatanas triangulares cortavam rápido o mar. Mais delas surgiram enquanto Bond observava. Em uma ocasião viu um grande focinho surgir da água e abocanhar alguma coisa. As barbatanas espirravam água ao chapinhar entre os escolhos. Dois braços negros se ergueram de repente no ar, desaparecendo em seguida. Ouviram-se gritos. Algumas pessoas davam braçadas agitadas no mar em direção ao recife. Alguém parou para bater na água diante dele com a mão espalmada. Depois as mãos desapareceram sob a superfície. Ouviram-se os gritos de quando seu corpo foi sacudido para lá e para cá dentro d’água. Uma barracuda o devorando, disse Bond consigo mesmo, atordoado.
Mais uma cabeça se aproximava, procurando chegar ao ponto do recife onde estava Bond, pequenas ondas quebrando sob suas axilas, e o cabelo preto da garota caído nas suas costas.
Era uma cabeça grande. Uma cortina de sangue escorria pelo seu rosto, de um ferimento no crânio imenso e calvo.
Bond observava a sua aproximação.
Big Man executava um nado de peito desajeitado, fazendo tanto espalhafato na água que era capaz de atrair qualquer peixe que já não estivesse ocupado.
Bond perguntou a si mesmo se ele conseguiria chegar. Seus olhos se estreitaram e sua respiração se acalmou, contemplando e esperando a decisão que o mar cruel tomaria.
A cabeça se aproximava. Bond podia ver os dentes à mostra em uma contração de agonia e de esforço titânico. O sangue tapava os olhos que Bond sabia estarem esbugalhados. Podia quase ouvir o grande coração doente batendo debaixo da pele preta acinzentada. Pararia antes que a isca fosse abocanhada?
Big Man continuava a vir. Os ombros estavam nus, as roupas haviam sido arrancadas pela explosão, imaginou Bond, porém, a gravata de seda preta resistira e aparecia em volta do pescoço grosso, arrastada atrás da cabeça como um rabicho de chinês.
Um borrifo de água limpou um pouco do sangue de seus olhos. Estavam arregalados, olhando desvairados para Bond. Neles não havia nenhuma súplica, somente o olhar fixo da exaustão física.
No instante mesmo em que Bond os contemplava, agora a apenas dez metros, fecharam-se de repente e o grande rosto se contorceu em uma careta de dor.
“Aarrh”, gritou a boca retorcida.
Os dois braços pararam de bater na água e a cabeça afundou e voltou à tona de novo. Uma nuvem de sangue escureceu o mar. Duas sombras esguias e marrons de três metros se afastaram da nuvem e, em seguida, voltaram rápido para ela. O corpo na água foi sacudido de lado. Metade do braço de Big Man surgiu à tona. Sem mão, sem pulso, nem relógio.
Mas a grande cabeça de nabo, a boca arreganhada cheia de dentes brancos que quase a dividiam ao meio, ainda estava viva. E agora berrava. Um grande berro gorgolejante que só dava quando alguma barracuda abocanhava seu corpo.
Ouviu-se um grito distante na baía, atrás de Bond. Mas ele não prestou atenção. Todos os seus sentidos estavam concentrados na cena horripilante no mar diante dele.
Uma barbatana rasgou a superfície a alguns metros de distância e parou.
Bond pôde ver o tubarão apontando o focinho como um cachorro, com os olhos míopes, rosados e redondos, tentando penetrar a nuvem de sangue e avaliar a presa. Então arremeteu contra o torso, e a cabeça que gritava afundou tão rápido quanto um peso de chumbo.
Algumas bolhas estouraram na superfície.
Houve um rodamoinho causado pela cauda manchada de marrom de um grande tubarão-leopardo, que recuou para engolir e para atacar de novo.
A cabeça voltou a flutuar. A boca estava fechada. Os olhos amarelos pareciam ainda se fixar em Bond.
O focinho do tubarão saiu da água e avançou para a cabeça, com a mandíbula inferior aberta e a luz brilhando em seus dentes. Houve um rangido horrível de osso triturado e um rodamoinho. Depois, o silêncio.
Os olhos dilatados de Bond continuaram a mirar a mancha marrom que cada vez mais se espalhava no mar.
A garota deu um gemido e Bond recuperou a lucidez.
Ouviu-se outro grito atrás dele e Bond virou a cabeça para a baía.
Era Quarrel, seu peito moreno e luzidio avultando sobre o casco esguio da canoa, com os braços trabalhando o remo, seguido, a uma longa distância, por todas as outras canoas da baía dos Tubarões deslizando sobre as pequenas ondas que haviam começado a encrespar a superfície.
Os ventos elísios do nordeste haviam começado a soprar e o sol brilhava na água azul e nos doces flancos verdes da Jamaica.
As primeiras lágrimas que brotaram dos olhos azuis-acinzentados de James Bond desde a sua infância escorreram pelo seu rosto contraído, caindo no mar manchado de sangue.
23.
LICENÇA PAIXÃO
Como dois pingentes de esmeralda, dois beija-flores faziam a última ronda pelos hibiscos. Um tordo começara sua cantoria vespertina, mais doce que a do rouxinol, em cima de um arbusto perfumado de jasmim da noite.
A sombra irregular de uma fragata deslizou por cima do gramado verde, enquanto planava nas correntes de ar que subiam a costa até alguma distante colônia, e o martim-pescador azul-acinzentado chilreou, irritado, ao ver o homem sentado em uma cadeira no jardim. Mudou a direção do voo e guinou, atravessando o mar, até a ilha. Uma borboleta sulfurina flertava entre as sombras roxas das palmeiras.
O mar de variados tons de azul da baía estava bastante calmo. Os penhascos da ilha eram de um rosa profundo, à luz do sol que se punha atrás da casa.
Havia um cheiro de entardecer e de frescor depois do calor do dia, e um leve perfume de farinha de mandioca torrada vindo das cabanas de pescadores, no povoado à direita, a distância.
Solitaire saiu da casa de pés descalços e atravessou o gramado. Carregava uma bandeja com uma coqueteleira e dois copos. Colocou-a na mesa de bambu ao lado da cadeira de Bond.
“Espero ter feito direito”, comentou. “Seis partes para uma parece terrivelmente forte. Nunca tomei martíni de vodca.”
Bond olhou para ela. Vestia um de seus pijamas brancos de seda. Eram demasiado grandes. Parecia absurdamente infantil.
Ela riu. “O que acha de meu batom de Port Maria?”, perguntou. “E as sobrancelhas delineadas com lápis HB? Não consegui fazer mais nada para me ajeitar, além de tomar banho.”
“Está uma maravilha”, disse Bond. “Você é de longe a garota mais bonita da baía dos Tubarões. Se eu tivesse pernas e braços, me levantaria para lhe dar um beijo.”
Solitaire se inclinou e lhe deu um longo beijo na boca, com o braço apertado em volta de seu pescoço. Levantou-se e afastou a mecha curva de cabelos sobre a testa dele.
Olharam um para o outro. Em seguida, ela virou para a mesa e lhe serviu um coquetel. Despejou meio copo para si e sentou no gramado quente, com a cabeça contra o joelho de Bond. Ele brincou com a mão direita entre os cabelos dela e ficaram um instante sentados, olhando o mar entre as palmeiras e a luz que declinava na ilha.
O dia fora dedicado a lamber as feridas e ajeitar o que sobrara da confusão.
Quando Quarrel desembarcara com eles na pequena praia de Beau Desert, Bond carregara Solitaire pelo gramado até o banheiro. Enchera a banheira de água quente. Sem que ela soubesse o que estava acontecendo, ele ensaboara e lavara todo seu corpo e seus cabelos. Depois de tirar todo o sal e musgo do coral, ajudou-a a sair, secou-a e botou mertiolato nos cortes de coral que marcavam suas costas e suas coxas. Depois lhe deu um comprimido para dormir e colocou-a nua entre os lençóis de sua própria cama. Beijou-a. Antes de fechar as venezianas, ela já dormia.
Entrou no banheiro e Strangways o ensaboou. Depois quase o banhou em mertiolato. Sangrava e estava esfolado em centenas de lugares, com o braço esquerdo dormente por causa da mordida da barracuda. Perdera um bocado de músculo do ombro. A ardência do mertiolato fez com que trincasse os dentes. Vestiu um roupão e Quarrel o levou ao hospital em Port Maria.
Antes de partir, tomou um café da manhã reforçado e fumou um bendito cigarro. Dormiu no carro, dormiu na mesa de operações e na cama onde finalmente o puseram, como uma massa de ataduras e esparadrapo cirúrgico.
Quarrel trouxe-o de volta no começo da tarde. A essa altura Strangways já agira de acordo com as instruções que Bond lhe dera. Mandaram um destacamento de polícia para a ilha da Surpresa. Os destroços do Secatur, a trinta e seis metros de profundidade, receberam uma boia de sinalização, que passou a ser patrulhada pela lancha da alfândega de Port Maria. O rebocador de salvamento e os mergulhadores estavam a caminho a partir de Kingston. Os repórteres da imprensa local tinham recebido uma breve declaração, e havia policiais em guarda na entrada de Beau Desert, para conter a avalanche de repórteres que chegariam à Jamaica, depois que toda a história corresse o mundo. Enquanto isso, um relatório completo fora enviado a M e a Washington, de modo que o bando de Big Man no Harlem e em St. Petersburg pudesse ser preso provisoriamente sob a acusação preventiva de contrabando de ouro.
Não houve sobreviventes do Secatur, mas os pescadores locais trouxeram quase uma tonelada de peixes mortos naquela manhã.
A Jamaica estava fervilhando de boatos. Fileiras de carros paravam, lado a lado, nos penhascos acima da baía e ao longo da praia embaixo. Espalhara-se a notícia do tesouro de Morgan, o Sanguinário, porém, o bando de tubarões e barracudas também o protegia. Por causa deles não havia nadador que arriscasse ir até a cena do naufrágio na calada da noite.
Veio um médico visitar Solitaire. Ele encontrou-a preocupada principalmente em arranjar roupas e o batom no tom certo. Strangways encomendara uma amostra completa deles de Kingston, que chegaria no dia seguinte. Por enquanto, ela fazia experiências com o conteúdo da valise de Bond e uma tigela de hibiscos.
Strangways voltou de Kingston após a saída de Bond do hospital. Trouxe um telegrama cifrado de M para Bond, no qual se lia:
SUPONHO REIVINDICOU TESOURO EM SEU NOME REPRESENTANDO UNIVERSAL EXPORT PONTO PROSSIGA IMEDIATAMENTE SALVAMENTO PONTO CONTRATEI ADVOGADO DEFENDER DIREITOS JUNTO TESOURO E MINISTÉRIO COLÔNIAS PONTO ENQUANTO ISSO PARABÉNS PONTO CONCEDIDA LICENÇA PAIXÃO QUINZE DIAS PONTO FINAL
“Suponho que ele queira dizer ‘compaixão’”, comentou Bond.
Strangways tinha um aspecto solene. “Acho que sim”, respondeu. “Fiz um relatório completo dos danos que você sofreu. E a garota também”, acrescentou.
“Hmm”, disse Bond. “As expressões cifradas geralmente são precisas. Mesmo assim.”
Strangways olhou propositalmente pela janela, reprimindo um sorriso.
“Bem típico da velha raposa, pensar primeiro no ouro”, comentou Bond. “Suponho que ele ache que conseguirá obter o que quer, descobrindo um modo de contornar a redução da verba secreta quando houver nova reunião do Parlamento para avaliá-la. Creio que passa metade de sua vida brigando com o Tesouro. Mesmo assim, está muito errado se pensa que conseguirá.”
“Dei entrada na sua reivindicação na sede do governo, assim que recebi a mensagem”, relatou Strangways. “Mas será difícil. A Coroa virá atrás do tesouro e a América entrará nisso de alguma forma, porque Big Man era cidadão americano. Vai dar pano pra manga.”
Haviam conversado mais um pouco e depois Strangways partira. Bond caminhara cheio de dores até o jardim, para se sentar um pouco ao sol, sozinho com seus pensamentos.
Recapitulou a série de riscos que correra na sua longa busca por Big Man e pelo tesouro fabuloso, revivendo os episódios em que enfrentara a morte cara a cara.
Agora terminara e ele estava sentado ao sol, entre as flores, com a recompensa aos seus pés e sua mão entre os longos cabelos pretos dela. Agarrou bem aquele instante e pensou nos catorze dias seguintes que lhes pertenceriam.
Ouviram-se um barulho de louça quebrada na cozinha, nos fundos da casa, e o som da voz de Quarrel praguejando contra alguém.
“Pobre Quarrel”, disse Solitaire. “Arranjou a melhor cozinheira do povoado e varreu os mercados atrás de surpresas para nós. Chegou a encontrar caranguejos negros, os primeiros da época. Depois passou a assar o pobrezinho de um leitão ainda mamando e a fazer uma salada de abacate, para terminar com goiabas e manjar de coco. E o Comandante Strangways deixou uma caixa do melhor champanhe da Jamaica. Já estou com água na boca. Mas não se esqueça de que deve ser segredo. Cheguei de surpresa na cozinha e ele quase fez a cozinheira chorar.”
“Virá com a gente na nossa licença paixão”, disse Bond. Contou-lhe sobre o telegrama de M. “Vamos para uma casa sobre estacas, com palmeiras e oito quilômetros de areia dourada. E você terá de cuidar de mim muito bem, porque não poderei fazer amor com um braço só.”
Havia uma sensualidade óbvia no olhar de Solitaire, quando ela o ergueu para ele, sorrindo inocentemente.
“E eu com as minhas costas?”, disse ela.
16.
O LADO JAMAICANO
Eram duas horas da madrugada. Bond tirou o carro de junto da amurada e atravessou a cidade até pegar a 4th Street, a rodovia para Tampa.
Seguiu despreocupado pelas quatro pistas cimentadas da rodovia, atravessando o infindável corredor polonês de motéis, campings e lojas de beira de estrada, que vendiam mobília de praia e gnomos de concreto.
Parou no Gulf Winds Bar and Snacks e pediu um Old Grandad duplo com gelo. Enquanto o barman o servia, foi ao banheiro se limpar. As ataduras na mão esquerda estavam cobertas de sujeira e a mão latejava dolorosamente. A tala quebrara na barriga do Ladrão. Não havia nada que ele pudesse fazer. Os olhos estavam vermelhos de tensão e falta de sono. Foi até o bar, bebeu o Bourbon e pediu outro. O barman parecia um desses universitários que custeavam as próprias férias trabalhando duro. Estava a fim de conversar, mas em Bond não restara nenhuma vontade de falar. Ficou sentado, olhando o copo, pensando em Leiter e no Ladrão, e ouvindo o grunhido repugnante do tubarão devorando a presa.
Pagou, saiu e atravessou de novo a Gandy Bridge, com o ar fresco da baía lhe batendo no rosto. No final da ponte, virou à esquerda em direção ao aeroporto e parou no primeiro motel que parecia aberto.
O casal de proprietários de meia-idade ouvia um programa cubano de rumbas na madrugada, com uma garrafa de Rye entre eles. Bond contou uma história sobre um pneu furado entre Sarasota e Silver Springs. Não estavam interessados. Queriam apenas os seus dez dólares. Bond levou o carro até o quarto 5, o sujeito abriu a porta e acendeu as luzes. Havia uma cama de casal, um banheiro com chuveiro e duas cadeiras. O branco e o azul davam o tom nas paredes. Parecia limpo e Bond colocou a sacola no chão com um sentimento de gratidão, ao se despedir do dia. Despiu-se, jogou as roupas sem dobrar em uma cadeira. Em seguida tomou uma rápida chuveirada, escovou os dentes, gargarejou com um dentifrício forte e entrou na cama.
Mergulhou logo em um sono tranquilo. Era a primeira noite, desde que chegara à América, em que não se sentia ameaçado por uma nova batalha contra o destino na manhã seguinte.
Acordou ao meio-dia e caminhou pela estrada até uma cafeteria, onde o cozinheiro lhe preparou no balcão um delicioso sanduíche de três andares, que ele comeu enquanto tomava café. Em seguida, voltou ao quarto e escreveu um relatório minucioso ao FBI em Tampa. Omitiu todas as referências ao ouro nos tanques de peixes venenosos, com medo de que Big Man encerrasse os negócios na Jamaica. Eles ainda precisavam ser investigados. Bond sabia que os danos que ele provocara na máquina de Big Man na América não mudavam nada o objetivo principal de sua missão — a descoberta da fonte do ouro, sua captura e a destruição, se possível, do próprio Mr. Big.
Foi de carro até o aeroporto e pegou o quadrimotor prateado, faltando apenas poucos minutos para a partida. Deixou o carro de Leiter no estacionamento, conforme dissera no seu relatório ao FBI. Pensou que fora algo desnecessário, quando avistou um sujeito vestindo uma capa esdrúxula, à toa em uma loja de lembranças. As capas de chuva pareciam ser praticamente o uniforme do FBI. Bond estava certo de que queriam ter certeza de que ele pegaria o avião. Ficariam satisfeitos de vê-lo pelas costas. Por onde passara na América, deixara um rastro de cadáveres. Antes de embarcar no avião, ligou para o hospital em St. Petersburg. Arrependeu-se. Leiter ainda estava inconsciente e não tinham prognósticos. Sim, ligariam de volta quando tivessem alguma notícia definitiva.
Eram cinco da tarde quando o avião circulou sobre Tampa Bay, rumo ao leste. O sol estava baixo no horizonte. Um grande jato vindo de Pensacola passou ventando, bem a bombordo, deixando quatro rastros de vapor pairando quase imóveis no ar parado. Em breve o voo de reconhecimento terminaria e ele voltaria para pousar na costa do Golfo, cheia de idosos com camisetas estampadas. Bond se alegrava de estar a caminho das doces encostas verdes do litoral da Jamaica, deixando para trás o grande e rijo continente de Eldollarado.
O avião avançava, atravessando a cintura da Flórida, os hectares de floresta e de mangue sem nenhum sinal de habitantes humanos, com suas luzes da asa piscando, verdes e vermelhas, na escuridão que chegava. Em breve sobrevoavam Miami e as monstruosas arapucas para otários da costa oriental, cujas artérias brilhavam, entupidas de néon. Longe, a bombordo, a rodovia estadual nº 1 sumia subindo o litoral, uma fita dourada de motéis, postos de gasolina e barracas de suco de frutas, passando por Palm Beach, Daytona e Jacksonville, a quatrocentos e cinquenta quilômetros. Bond pensou no café da manhã que tomara em Jacksonville, por volta de três dias antes, e em tudo o que acontecera depois. Dentro em breve, após uma curta parada em Nassau, sobrevoaria Cuba, talvez sobre o esconderijo em que Mr. Big ocultara Solitaire. Ela ouviria o barulho do avião e talvez sua intuição a fizesse olhar para cima e sentir, por um instante, que ele estava próximo.
Bond ficou pensando se jamais se encontrariam de novo para acabar o que haviam começado. Mas isso teria de vir mais tarde, quando seu trabalho estivesse terminado — o prêmio de um itinerário perigoso que começara três semanas antes, em meio ao nevoeiro de Londres.
Depois de um coquetel e um jantar cedo, chegaram a Nassau e passaram meia hora na ilha mais rica do mundo, aquela faixa arenosa onde milhões e milhões de libras esterlinas são enterradas com grande susto nas mesas de canastra, e onde bangalôs, cercados de uma parede fina de pinheiros e casuarinas, trocam de mãos por cinquenta mil libras.
Deixaram para trás a escala rápida na ilha de platina, e em breve sobrevoavam as madrepérolas cintilantes das luzes de Havana, tão diferentes, em seus modestos tons pastel, das berrantes cores primárias das cidades americanas à noite.
Voavam a cinco mil metros quando, logo depois de passar por Cuba, encontraram uma daquelas tempestades tropicais que de repente fazem com que as aeronaves se transformem, de confortáveis salas de estar, em armadilhas mortíferas sacolejantes. O grande avião cambaleou e deu um mergulho, com as hélices ora roncando no vácuo, ora mordendo com força os paredões compactos de ar. O cilindro esguio de metal estremecia e balançava. A louça se espatifava na copa, e a chuva forte martelava as vidraças.
Bond agarrou os braços da poltrona, provocando dor na mão esquerda, praguejando baixinho consigo mesmo.
Olhou para as prateleiras das revistas e pensou: não serão de muita utilidade quando o aço acusar fadiga, a cinco mil metros de altitude, nem a água de colônia no banheiro, as refeições personalizadas, o barbeador gratuito, a “orquídea para sua senhora” agora trêmula na geladeira. Muito menos os cintos de segurança e os coletes salva-vidas, com o apito que realmente apita, segundo a demonstração da aeromoça, nem a luz de resgate engraçadinha que emite um brilho vermelho.
Não. Quando as tensões se tornam excessivas no metal fatigado, quando o mecânico de manutenção que testa o equipamento de descongelamento está apaixonado e faz mal o serviço, lá em Londres, Idlewild, Gander, Montreal; quando essas ou muitas outras coisas acontecem, então a pequena sala aquecida, com hélices na frente, cai como uma pedra do céu, na terra ou no mar, mais pesada que o ar, falível, imprestável. E as quarenta pessoas mais pesadas que o ar, frágeis dentro da fragilidade do avião, desamparadas dentro do desamparo maior do avião, despencam com ele, abrindo pequenos buracos na terra, ou espirrando água no mar. De qualquer modo, é o destino, então por que se preocupar? As pessoas estão conectadas aos dedos descuidados do mecânico de manutenção em Nassau, do mesmo modo que estão conectadas ao homenzinho no sedã da família, que confunde o sinal verde com o vermelho e bate de frente, pela primeira e última vez, na pessoa que dirigia tranquilamente para casa depois de um programa clandestino. Não se pode fazer nada. Começamos a morrer desde o dia em que nascemos. A vida inteira é um jogo de cartas com a morte. Por isso tenha calma. Acenda um cigarro e seja grato por ainda estar vivo, enquanto traga a fumaça profundamente nos seus pulmões. Nosso destino já permitiu que percorrêssemos um longo caminho desde que abandonamos o útero da mãe e choramingamos ao contato com o ar frio do mundo. Talvez ele até permita que cheguemos à Jamaica esta noite. Não está escutando as vozes animadas da torre de controle que passaram o dia falando, tranquilas: “Pode pousar, BOAC. Pode pousar, Panam. Pode pousar, KLM”? Não as escuta também nos chamando: “Pode pousar, Transcarib. Pode pousar, Transcarib”? Não perca a fé no destino. Lembre aquele momento terrível em que enfrentou a morte diante da arma do Ladrão, na noite passada. Ainda está vivo, não está? Pronto, já não corremos mais perigo. Isso foi só para lembrar que ser rápido no gatilho não quer dizer que você seja realmente forte. Não se esqueça. Este pouso feliz no Aeroporto Palisadoes é cortesia de seu destino. Melhor agradecer a ele.
Bond desatou o cinto de segurança e limpou o suor do rosto.
Ao diabo com tudo isso, pensou, ao desembarcar da aeronave enorme e resistente.
Strangways, o chefe do serviço secreto do Caribe, veio encontrá-lo no aeroporto, e assim ele passou depressa pela alfândega, imigração e fiscalização financeira.
Eram quase onze horas de uma noite quente, tranquila. Ouvia-se o som agudo dos grilos nas fileiras de cactos de ambos os lados da estrada do aeroporto, e Bond absorvia com gratidão os ruídos e os cheiros tropicais, enquanto a caminhonete militar atravessava a periferia de Kingston, em direção aos contrafortes cintilantes e enluarados das Montanhas Azuis.
Conversaram em monossílabos até se instalarem na varanda aconchegante da bela casa branca de Strangways, em Junction Road, abaixo de Stony Hill.
Strangways serviu um uísque com soda reforçado para os dois e, em seguida, fez um relato conciso de todo o lado jamaicano do problema.
Era um sujeito esguio e bem-humorado de mais ou menos trinta e cinco anos, ex-tenente e comandante da Seção Especial da Reserva Voluntária da Marinha Real. Tinha uma venda negra sobre um olho e o tipo de beleza aquilina associada à ponte de comando dos destróieres. Mas debaixo do bronzeado havia um rosto marcado, e Bond percebeu, pelos gestos rápidos e frases entrecortadas, seu ânimo nervoso e tenso. Era certamente eficiente, tinha senso de humor e não demonstrava nenhum sinal de ciúme diante de alguém que viera da matriz para se meter em seu território. Bond sentiu que se dariam bem, antecipando com prazer essa parceria.
Eis a história que Strangways tinha para contar.
Sempre circularam boatos sobre a presença de um tesouro na ilha da Surpresa, e tudo que se sabia sobre Morgan, o Sanguinário, confirmava essa suspeita.
A pequena ilha ficava no centro exato da baía dos Tubarões, um pequeno porto no final da Junction Road, que corre pela cintura fina da Jamaica, de Kingston à costa norte.
O grande bucaneiro fizera da baía dos Tubarões seu quartel-general. Gostava de ter toda a largura da ilha de permeio entre ele e o governador em Port Royal, de modo que pudesse sair e entrar nas águas jamaicanas em total segredo. O governador também gostava desse arranjo. A Coroa queria que ele fechasse os olhos à pirataria de Morgan até que os espanhóis fossem expulsos do Caribe. Quando isso ocorreu, Morgan foi recompensado com um título de nobreza e o posto de governador da Jamaica. Até então, suas ações tinham de ser repudiadas para evitar uma guerra contra a Espanha, na Europa.
No entanto, durante o longo período antes que a raposa recebesse a chave do galinheiro, Morgan utilizou a baía dos Tubarões como porto de partida para suas investidas. Construiu três casas na propriedade vizinha, denominada Llanrumney, em homenagem ao seu local de nascimento no País de Gales. Essas casas se chamavam “Casa de Morgan”, “Casa do Médico” e “Casa da Dama”. Ainda hoje se descobrem moedas e fivelas em suas ruínas.
O ancoradouro de seus navios sempre foi a baía dos Tubarões, e os reparos nas embarcações eram feitos, a sotavento, na ilha da Surpresa, um pedaço de coral e calcário acidentado que surge do centro da baía, encimado por um platô cheio de mato de cerca de meio hectare.
Quando partiu para sempre da Jamaica, em 1683, foi como preso, para ser julgado por seus pares por menosprezo à Coroa. Seu tesouro foi abandonado em algum lugar na Jamaica e ele morreu na miséria, sem revelar seu paradeiro. Deve ter sido um vasto butim, fruto de incontáveis investidas contra Hispaniola, da captura de inúmeros navios que levavam tesouros para La Plata, do saque do Panamá e da pilhagem de Maracaibo. Mas sumiu sem deixar vestígios.
Sempre se pensou que o segredo jazia em algum lugar da ilha da Surpresa, mas duzentos anos de mergulhos e de escavações da parte dos caçadores de tesouros não revelaram nada. Então, disse Strangways, há apenas seis meses, duas coisas aconteceram em poucas semanas. Um jovem pescador desapareceu do povoado da baía dos Tubarões e nunca mais se soube dele, e um sindicato anônimo de Nova York adquiriu a ilha por mil libras do atual proprietário de Llanrumney, agora uma próspera propriedade de cultivo de banana e de criação de gado.
Poucas semanas depois da venda, o iate Secatur chegara à baía dos Tubarões e fundeara no antigo ponto de ancoragem de Morgan, a sotavento da ilha. Veio com uma tripulação exclusivamente negra. Puseram-se a trabalhar, cavando uma escada na face do rochedo, construindo no topo uma série de cabanas baixas de taipa, ao estilo jamaicano.
Pareciam estar perfeitamente aprovisionados e só compravam peixe fresco e água dos pescadores da baía.
Era um pessoal ordeiro e taciturno, que não dava trabalho. Explicaram à alfândega da vizinha Santa Maria, que os havia liberado, que estavam ali para pescar peixes tropicais, especialmente as variedades venenosas, e coletar conchas para a Ourobouros Inc, de St. Petersburg. Depois que se estabeleceram, compraram grandes quantidades deles dos pescadores da baía dos Tubarões, Port Maria e Oracabessa.
Durante uma semana realizaram explosões na ilha, dizendo que era para a escavação de um grande tanque de peixes.
O Secatur começou a fazer uma rota quinzenal para o Golfo do México, e observadores com binóculos confirmaram que, antes de zarpar, sempre embarcavam tanques portáteis de peixe. Meia dúzia de homens era deixada para trás. Quaisquer canoas que se aproximassem da ilha recebiam ameaças de um guarda, na base da escadaria no rochedo, que ficava o dia inteiro pescando em um molhe estreito onde o Secatur atracava, preso a duas âncoras no mar, bem abrigado dos ventos nordeste.
Jamais alguém conseguiu desembarcar na ilha de dia e, depois de duas tentativas trágicas, ninguém voltou a tentar um desembarque noturno.
A primeira tentativa foi a de um pescador local, instigado pelos boatos de um tesouro enterrado que nenhuma conversa sobre peixes tropicais podia abafar. Partiu a nado uma noite e seu corpo fora devolvido pelo mar, por cima do recife, no dia seguinte. Os tubarões e as barracudas só deixaram o torso e um pedaço da coxa.
Mais ou menos na hora em que ele deveria chegar à ilha, toda a aldeia da baía dos Tubarões foi acordada pelo batuque mais terrível. Parecia vir do interior da ilha. Reconheceram-no como um batuque do vodu. Começou tranquilo e foi em um crescendo trovejante. Depois baixou novamente e parou. Durou cerca de cinco minutos.
Desde aquele momento a ilha se tornou ju-ju, ou obeah, como se diz na Jamaica, e, mesmo à luz do dia, as canoas ficam a uma distância segura.
A essa altura, Strangways teve seu interesse despertado e fez um relatório completo a Londres. Desde 1950, a Jamaica se tornara um alvo estratégico importante, graças à exploração, pela Reynolds Metal e pela Kaiser Corporation, de enormes depósitos de bauxita encontrados na ilha. Na opinião de Strangways, as atividades na ilha da Surpresa bem poderiam estar ligadas à construção de uma base de submarinos de um só tripulante, prevendo uma situação de guerra, especialmente porque a baía dos Tubarões estava no âmbito da rota dos navios da Reynolds até o novo porto de embarque de bauxita de Ocho Ríos, alguns quilômetros costa abaixo.
Londres investigou, junto com Washington, com base no relatório, e veio à tona a informação de que o sindicato que comprara a ilha era inteiramente de propriedade de Mr. Big.
Isso há três meses. Strangways recebeu ordens de entrar na ilha de qualquer maneira e descobrir o que estava acontecendo. Montou uma operação e tanto. Alugou uma propriedade no braço ocidental da baía dos Tubarões, chamada Beau Desert, onde existem as ruínas de um dos famosos casarões jamaicanos do começo do século dezenove, e também uma casa de praia moderna bem em frente ao ancoradouro do Secatur na ilha da Surpresa.
Trouxe dois bons nadadores da base naval na Bermuda e organizou uma observação permanente da ilha através de binóculos diurnos e noturnos. Nada foi visto que parecesse suspeito e, em uma noite calma e escura, ele mandou os dois nadadores com ordens de fazer uma vistoria submarina das fundações da ilha.
Strangways contou o pavor que sentiu quando, uma hora depois de partirem a nado para atravessar os trezentos metros de mar, começou um terrível batuque em algum lugar dentro dos penhascos da ilha.
Naquela noite os dois não voltaram.
No dia seguinte, ambos apareceram na praia, em lugares diferentes da baía. Ou melhor, o que sobrou de seus corpos devorados pelos tubarões e barracudas.
Nesta altura da história de Strangways, Bond interrompeu-o.
“Um minuto só”, disse, “que história é essa de tubarões e barracudas? Geralmente eles não são agressivos nestas águas. Não existem muitos na Jamaica e raramente se alimentam de noite. Aliás, não creio que nenhum deles ataque seres humanos, a não ser que haja sangue na água. Podem dar uma mordida, uma vez ou outra, em algum pé branco, por curiosidade. Já houve notícias anteriores de comportamento assim na Jamaica?”
“Nunca houve outro caso, desde que uma garota teve o pé devorado em Kingston Harbour, em 1942”, disse Strangways. “Ela estava sendo rebocada por uma lancha, batendo os pés. Seus pés brancos devem ter parecido especialmente apetitosos. E, além disso, estavam viajando em uma velocidade que convidava ao ataque. Todo mundo concorda com sua teoria. E meus homens tinham arpões e facas. Achei que fizera de tudo para protegê-los. Foi algo medonho. Imagine só como me senti. Desde então não fizemos mais nada, exceto tentar legalizar o acesso à ilha através da Secretaria das Colônias e de Washington. Mas o proprietário é cidadão americano. Então o processo é penosamente lento, sobretudo porque não há nada contra essa gente. Parecem dispor de uma boa proteção em Washington e de alguns advogados muito bons em direito internacional. Estamos absolutamente emperrados. Londres me disse para esperar até que você viesse.” Strangways deu um gole no uísque e olhou para Bond com expectativa.
“Quais são os movimentos do Secatur?”, perguntou Bond.
“Ainda está em Cuba. Deve zarpar dentro de uma semana, de acordo com a CIA.”
“Quantas viagens fez?”
“Cerca de vinte.”
Bond multiplicou cento e cinquenta mil dólares por vinte. Se seus cálculos estivessem certos, Mr. Big já levara um milhão de libras em ouro da ilha.
“Fiz alguns arranjos provisórios para você”, disse Strangways. “Tem a casa em Beau Desert. Há um carro, Sunbeam Talbot, sedã. Pneus novos. Corre bem. Ideal para essas estradas. Arranjei um sujeito ótimo para ser seu faz-tudo. Um ilhéu das ilhas Cayman, chamado Quarrel. O melhor pescador e nadador do Caribe. Muito prestativo. Grande sujeito. E peguei emprestada a casa de repouso da West Indian Citrus Company na Baía Manatee. Fica na outra extremidade da ilha. Você podia descansar lá uma semana e se exercitar um pouco até a chegada do Secatur. Precisará estar em forma se quiser chegar à ilha da Surpresa, e acredito francamente que só isso nos dará a resposta. Tem mais alguma coisa que eu possa fazer? Estarei por aí, claro, mas preciso ficar em Kingston para manter a comunicação com Londres e Washington. Eles vão querer saber tudo que fizermos. Há mais alguma coisa que você gostaria que eu providenciasse?”
Bond estivera se decidindo.
“Sim”, respondeu. “Pode pedir a Londres que consiga junto ao Almirantado uma de suas roupas de mergulho, completa, com os cilindros de ar comprimido. E muitos sobressalentes. E um bom par de arpões. Os franceses, ‘Champion’, são os melhores. Uma boa lanterna subaquática. Uma faca de guerra dos comandos. Toda a informação que puderem arranjar no Museu de História Natural sobre tubarões e barracudas. E um pouco daquele repelente de tubarões que os americanos usaram no Pacífico. Peça à BOAC para trazer tudo pelo seu serviço direto.”
Bond fez uma pausa. “Ah, sim”, disse. “E uma daquelas coisas que nossos sabotadores costumavam usar contra os navios durante a guerra. Uma mina naval, com diversos detonadores.”
17.
O VENTO PAPA-DEFUNTO
Mamão com uma rodela de limão, um prato cheio de bananas avermelhadas, caimitos roxos, ovos mexidos com bacon, café Blue Mountain — o mais delicioso do mundo —, geleia de laranja jamaicana, quase preta, e geleia de goiaba.
Enquanto Bond, trajando shorts e sandálias, tomava café na varanda, contemplando o panorama ensolarado de Kingston e Port Royal, pensou que tinha sorte pela existência de momentos tão magníficos a compensar o perigo e o ambiente sombrio de sua profissão.
Bond conhecia bem a Jamaica. Estivera no país durante uma longa missão logo após a guerra, quando o quartel-general comunista em Cuba procurava infiltrar os sindicatos jamaicanos. Tinha sido um serviço malresolvido e inconcluso, mas ele aprendera a amar a grande ilha verde e seu povo alegre e leal. Agora estava contente por ter retornado e pela semana inteira de folga antes de recomeçar o trabalho duro.
Depois do café da manhã, Strangways surgiu na varanda com um sujeito alto de pele morena, trajando uma camisa azul desbotada e velhas calças de sarja marrons.
Era Quarrel, o ilhéu das ilhas Cayman, com quem Bond logo simpatizou. Tinha sangue dos soldados de Cromwell e de bucaneiros. Seu rosto era forte e anguloso, com uma boca quase severa e olhos cinzentos. Apenas o nariz achatado e as palmas das mãos descoradas eram negroides.
Bond apertou sua mão.
“Bom dia, capitão”, falou Quarrel. Vindo da raça de pescadores mais famosa do mundo, esse era o tratamento mais honroso que ele podia merecer. Mas não havia nenhum desejo de agradar, ou humildade, na sua voz. Falava como marujo, de maneira direta e franca.
Esse momento definiu o relacionamento deles. Parecia a relação entre um senhor de terras escocês e seu caçador-chefe; o reconhecimento subentendido da autoridade, sem espaço para qualquer servilismo.
Depois de discutirem seus planos, Bond pegou o volante do pequeno carro que Quarrel trouxera de Kingston e tomaram a Junction Road, deixando Strangways ocupado com os pedidos de Bond.
Partiram antes das nove e ainda estava fresco quando atravessaram as montanhas que se estendem pelo dorso da Jamaica como a parte dentada da couraça do crocodilo. A estrada descia serpenteando em direção às planícies do norte, através de um dos cenários mais bonitos do mundo, em que a vegetação tropical se modificava com a mudança de altitude. Os flancos verdes das serras, emplumados de bambus intercalados com o verde escuro e brilhoso da fruta-pão e a súbita explosão colorida do flamboyant, cediam lugar, mais para baixo, à floresta de ébano, mogno, hibiscos e pau-campeche. Quando chegaram às várzeas do vale de Agualta, o mar verde dos bananais e canaviais se espraiava até onde a orla afastada dos bosques de palmeiras brotava cintilante ao longo da costa norte.
Quarrel foi boa companhia no passeio e um guia maravilhoso. Falou sobre as aranhas que faziam suas casas na terra, encimadas por pequenos alçapões perfeitos, ao passarem pelos famosos jardins de palmeiras de Castleton. Contou que assistira a uma briga entre uma centopeia gigante e um escorpião e explicou a diferença entre o mamão-macho e o mamão-fêmea. Descreveu os venenos da mata e as propriedades medicinais das ervas tropicais, a pressão exercida pela noz para romper o coco, o comprimento da língua do beija-flor, a maneira como os crocodilos carregam os filhotes na boca, ao comprido, como sardinhas em lata.
Falava em termos precisos, mas sem conhecimento técnico, empregando o linguajar jamaicano em que as plantas são humanizadas, “se esforçam”, “desanimam”, “mariposas” são “morcegos” e “amar” é sempre usado no lugar de “gostar”. Enquanto falava, levantava a mão em um gesto de saudação para as pessoas na estrada, que também gesticulavam e gritavam seu nome.
“Você parece conhecer gente à beça”, comentou Bond, quando o motorista de um ônibus apinhado, com a palavra ROMANCE escrita em grandes letras em cima do para-brisa, saudou-o com dois toques de sua buzina de ar comprimido.
“Faz três meses que ando observando a ilha da Surpresa, capitão”, disse Quarrel, “e passando por esta estrada duas vezes por semana. Todo mundo fica logo conhecido na Jamaica. O pessoal tem vista boa.”
Às dez e meia já tinham passado Port Maria e enveredado por uma pequena estrada vicinal que levava à baía dos Tubarões. Ao fazer uma curva, se depararam com ela embaixo, e Bond parou o carro e saíram.
A baía tinha a forma de um crescente e talvez uns mil e duzentos metros de largura entre um pontal e outro. Sua superfície azul estava encrespada pela leve brisa que soprava do nordeste, vizinha dos ventos alísios que nasciam a oitocentos quilômetros, no Golfo do México, e de lá partiam para sua longa viagem em volta do mundo.
A um quilômetro e meio de onde estavam, uma longa arrebentação sinalizava o recife fora da baía e o estreito de águas calmas que era a única entrada para o ancoradouro. No meio do crescente, a ilha da Surpresa assomava com seus trinta e poucos metros acima do mar, orlada no seu lado leste pela espuma das pequenas ondas que quebravam, e por águas calmas a sotavento.
Era quase redonda, parecendo um bolo alto e cinzento encimado por uma camada verde de açúcar glacê, tudo sobre um prato de porcelana azul.
Haviam parado a cerca de trinta metros do pequeno amontoado de cabanas de pescadores, atrás da praia orlada de coqueiros, e estavam no mesmo nível que o topo plano e verde da ilha, a quatrocentos metros de distância. Quarrel mostrou os telhados de palha das cabanas de taipa no meio das árvores, no centro da ilha. Bond examinou-as através dos binóculos de Quarrel. Não havia nenhum sinal de vida, exceto por um magro fiapo de fumaça levado pela brisa.
Abaixo deles, a água da baía era verde-clara perto da areia branca. Em seguida, se aprofundava e ficava azul-escura antes do marrom intercalado da borda submersa de um recife interno, que formava um largo semicírculo a cem metros da ilha. Depois tornava-se novamente azul, com manchas de azul mais claro e verde-mar. Quarrel informou que a profundidade do ancoradouro do Secatur era de aproximadamente dez metros.
À esquerda, no meio do braço ocidental da baía, escondida entre as árvores e atrás de uma minúscula praia de areia branca, ficava sua base de operações, Beau Desert. Quarrel descreveu a disposição da casa e Bond permaneceu dez minutos examinando os trezentos metros de distância entre ela e o ancoradouro do Secatur, junto à ilha.
Ao todo, Bond passou uma hora fazendo o reconhecimento do local e depois, sem se aproximar da casa ou do povoado, viraram o carro e voltaram para a estrada principal ao longo da costa.
Seguiram de carro através do belo e pequeno porto de embarque de bananas de Oracabessa e de Ocho Ríos, com sua nova e enorme usina de extração de bauxita, seguindo a costa norte até a baía de Montego, a duas horas de distância. Era fevereiro, no auge da estação. A pequena aldeia e os grandes hotéis esparsos estavam mergulhados na corrida de ouro de quatro meses que os sustentava pelo resto do ano. Pararam em uma pousada do outro lado da ampla baía, onde almoçaram, para, em seguida, prosseguirem no calor da tarde até a ponta ocidental da ilha, depois de mais duas horas de viagem.
Ali, graças à presença dos enormes mangues costeiros, nada acontecera desde que Colombo usara a baía de Manatee como um ancoradouro ocasional. Os pescadores jamaicanos haviam tomado o local dos índios Arawak, mas, exceto isso, tinha-se a impressão de que o tempo havia parado.
Bond achou-a a praia mais bonita que já havia visto, oito quilômetros de areia branca descendo suavemente até as ondas e, atrás, a marcha desordenada, porém graciosa, das palmeiras rumo ao horizonte. Debaixo delas, as canoas cinza descansavam fora da água, ao lado de monturos rosados de conchas descartadas. Do meio do palmeiral subia a fumaça das palhoças dos pescadores, na sombra entre o mangue e o mar.
Em uma clareira entre as palhoças, construída sobre estacas em um gramado malcuidado de grama das Bahamas, ficava a casa de fim de semana dos trabalhadores da West Indian Citrus Company. Fora construída sobre estacas para evitar os cupins e era cuidadosamente telada contra mosquitos e borrachudos. Bond saiu da estrada irregular e estacionou sob a casa. Enquanto Quarrel escolhia e arrumava dois quartos, Bond enrolou uma toalha na cintura e caminhou entre as palmeiras até o mar, a vinte metros de distância.
Nadou e boiou preguiçosamente durante uma hora na água quente em que flutuava sem dificuldade, pensando na ilha da Surpresa e em seu segredo, fixando na mente aqueles trezentos metros, pensando nos tubarões e barracudas e demais perigos do mar, essa grande biblioteca cheia de livros que ainda não conseguimos ler.
Ao caminhar de volta para o pequeno chalé de madeira, Bond levou suas primeiras picadas de mosquito pólvora. Quarrel deu uma risada ao ver as mordidas empoladas nas suas costas, que em breve coçariam como o diabo.
“Não se pode fazer nada para nos livrar deles, capitão”, observou. “Mas posso parar essa coceira. Melhor tomar uma chuveirada, primeiro, para tirar o sal. Eles só mordem mesmo durante uma hora, ao entardecer, e gostam de sal no jantar.”
Quando Bond saiu do chuveiro, Quarrel apareceu com uma velha garrafa de remédio e passou um líquido marrom, que cheirava a creolina, nas mordidas.
“A gente tem mais mosquitos pólvora e borrachudos nas ilhas Cayman do que em qualquer outro lugar do mundo”, falou, “mas não nos incomodam desde que tenhamos este remédio”.
Os dez minutos de crepúsculo tropical trouxeram sua breve melancolia. Depois as estrelas e a lua em quarto crescente começaram a brilhar, e o mar se reduziu a um sussurro. Houve uma curta calmaria entre os dois grandes ventos da Jamaica e, em seguida, as palmeiras voltaram a murmurar.
Quarrel fez um gesto da cabeça em direção à janela.
“O vento Papa-Defunto”, comentou.
“Como assim?”, perguntou Bond, espantado.
“Vento terral, como dizem os marinheiros”, acrescentou Quarrel. “O Papa-Defunto sopra, expulsando o ar ruim da ilha durante a noite, das seis às seis da manhã. Em seguida, o ‘vento Médico’ chega, soprando o ar fresco do mar para a ilha. Pelo menos é assim que os chamamos na Jamaica.”
Quarrel olhou perplexo para Bond.
“Acho que Papa-Defunto e você têm praticamente a mesma tarefa, capitão”, comentou, meio brincando.
Bond deu uma breve risada. “Ainda bem que não preciso respeitar o mesmo horário”, respondeu.
Lá fora os grilos e as pererecas começaram a ciciar e coaxar, e as grandes mariposas forçavam as telas das janelas, onde se agarravam, olhando, em um êxtase agoniado, para as duas lamparinas a óleo penduradas em duas travessas dentro de casa.
Uma vez ou outra dois pescadores, ou um grupo de garotas aos risinhos, iam andando até a praia a caminho do único e pequeno bar na ponta da baía. Ninguém andava sozinho, com medo dos lobisomens sob as árvores, ou do garrote rolador, animal terrível que vinha de encontro às pessoas rolando pelo chão, com as pernas presas por correntes e botando fogo pelas ventas.
Enquanto Quarrel preparava uma refeição suculenta de peixe, ovos e legumes que haveria de se tornar a dieta regular de ambos, Bond sentou-se sob a luz e debruçou-se sobre os livros que Strangways pegara emprestado do Instituto Jamaicano. Livros sobre o mar tropical e seus habitantes, por Beebe e Allyn, e outros, sobre caça submarina, de Cousteau e Hass. Quando partisse para atravessar aqueles trezentos metros de mar, estava determinado a fazê-lo com todo o conhecimento possível, sem confiar no acaso. Conhecia a capacidade de Mr. Big e apostava que as defesas da ilha da Surpresa seriam tecnicamente brilhantes. Achou que não se resumiriam a explosivos e armas. Mr. Big precisava trabalhar sem ser incomodado pela polícia. Precisava permanecer fora do alcance da lei. Bond supunha que as forças do mar haviam sido, de certo modo, domesticadas para fazer o trabalho de Mr. Big, e era sobre essas que Bond se concentrava: o assassinato por meio de tubarões e barracudas, talvez polvos e jamantas.
Os fatos expostos pelos naturalistas eram medonhos e horripilantes, mas as experiências de Cousteau no Mediterrâneo e de Hass, no mar Vermelho, eram mais animadoras.
Naquela noite Bond teve muitos sonhos de encontros aterrorizantes com polvos gigantescos e raias-lixas, tubarões cabeça de martelo e barracudas de dentes serrilhados, de modo que gemeu e suou durante o sono.
No dia seguinte começou a se exercitar, sob o olhar crítico de Quarrel. Toda manhã nadava mil e seiscentos metros na praia antes do café da manhã e corria pela areia firme até o chalé. Lá pelas nove partiam em uma canoa, cuja única vela triangular os transportava rápido até a baía Sangrenta e Orange Bay, onde a areia termina em penhascos e pequenas cavernas, e o recife se aproxima da costa.
Ali deixavam a canoa na praia e Quarrel o levava, com fisgas, máscaras e um velho arpão submarino, em expedições de tirar o fôlego, no tipo de mar que ele encontraria na baía dos Tubarões.
Pescavam em silêncio, separados por poucos metros, com Quarrel se movendo com facilidade em um elemento no qual quase se sentia em casa.
Não demorou para que Bond aprendesse a não lutar contra o mar, e sim ceder e aproveitar as correntes e os rodamoinhos, usando táticas de judô dentro d’água.
No primeiro dia chegou em casa cortado e envenenado pelo coral e com uma dúzia de espinhos de ouriço espetados em seu flanco. Quarrel sorriu e tratou as feridas com mertiolato e Milton. Depois, como fazia toda noite, massageou Bond por meia hora com óleo de coco, enquanto ia falando em voz baixa sobre os peixes que haviam encontrado naquele dia, explicando os hábitos dos carnívoros e não carnívoros, a camuflagem dos peixes e seu modo de mudar de cor através da corrente sanguínea.
Ele também jamais ouvira falar de peixe algum que atacasse o homem, a não ser em desespero ou porque havia sangue na água. Explicou que os peixes raramente passam fome nas águas tropicais e que a maioria de suas armas é defensiva, e não ofensiva. A única exceção, admitia, era a barracuda. “Peixes maus”, conforme dizia, que não conheciam o medo, já que não possuíam outro inimigo que não a doença, capazes de atingir oitenta quilômetros por hora em distâncias curtas, e donos dos dentes mais perigosos do que os de qualquer outro peixe de mar.
Um dia alvejaram uma de dez quilos que nadava em volta deles, sumindo na distância cinzenta e depois reaparecendo, silenciosa, imóvel, quase em cima da água, com seus olhos zangados de tigre fitando-os de muito perto, de modo que podiam ver o lento funcionamento de suas guelras e os dentes brilhando, como as presas de um lobo, ao longo da queixada cruel e prognata.
Quarrel finalmente pegou o arpão de Bond e alvejou-a gravemente, atravessando sua barriga aerodinâmica. Ela veio diretamente em cima deles, com as mandíbulas escancaradas, como uma cascavel pronta para o bote. Bond deu uma fisgada desajeitada quando ela investia contra Quarrel. Errou, mas o arpão entrou pelas suas mandíbulas. Elas se fecharam imediatamente sobre o espeto de aço, e quando o peixe arrancou a fisga da mão de Bond, Quarrel apunhalou-a com a faca e ela enlouqueceu, correndo dentro d’água com as entranhas à mostra, a fisga presa entre os dentes e o arpão pendente do corpo. Quarrel mal podia segurar a linha enquanto o peixe procurava retirar a ponta que lhe atravessava a barriga. Mas seguiu-o nadando em direção a um recife submerso, no qual subiu, puxando lentamente o peixe.
Depois que Quarrel cortou as guelras e retirou a fisga de suas mandíbulas, encontraram as marcas profundas dos dentes no aço.
Levaram o peixe para a praia, Quarrel cortou sua cabeça e abriu a bocarra com um pedaço de pau. A mandíbula superior se erguia quase em ângulo reto em relação à inferior, revelando fantásticas fileiras de dentes, tão abundantes que se sobrepunham como telhas no telhado. Até mesmo a língua tinha várias fileiras de pequenos dentes afiados e curvos e, na frente, duas presas enormes, que se projetavam para a frente como as de uma serpente.
Embora só pesasse pouco mais que cinco quilos, passava de um metro e trinta centímetros, uma bala niquelada só de músculo e tecido firme.
“Não vamos matar mais barracudas”, comentou Quarrel. “Mas se não fosse por você eu teria que passar um mês no hospital e talvez perder meu rosto. Foi uma tolice minha. Se a gente tivesse nadado em sua direção, ela teria fugido. Sempre fazem isso. São covardes como todos os peixes. Não se preocupe com esses aqui”, apontou para os dentes, “jamais tornará a vê-los”.
“Espero que não”, desabafou Bond. “Não tenho rosto sobressalente.”
No fim de uma semana Bond estava bronzeado e rijo. Cortara os cigarros para dez por dia e não tomara sequer um drinque. Conseguia nadar três quilômetros sem cansar, a mão estava completamente sarada e ele havia eliminado todas as sequelas da vida urbana.
Quarrel se alegrou. “Você está pronto para a ilha da Surpresa, capitão”, disse, “e eu não gostaria de ser o peixe que tentasse devorá-lo”.
Ao entardecer do oitavo dia, voltaram para a casa de descanso e encontraram Strangways à espera deles.
“Tenho boas notícias para lhe dar”, disse. “Seu amigo Felix Leiter vai ficar bom. Apesar de tudo, não morrerá. Precisaram amputar o resto de um braço e de uma perna. Os cirurgiões plásticos começaram agora a reconstruir o rosto. Ligaram para mim ontem de St. Petersburg. Parece que ele insistiu em lhe mandar um recado. Foi a primeira coisa que lhe veio à cabeça quando voltou a si. Disse que sente muito não poder estar aqui e para você não molhar os pés — ou pelo menos não molhá-los tanto como ele.”
O coração de Bond ficou apertado. Olhou pela janela. “Diga a ele para se restabelecer logo”, disse abruptamente. “E também que sinto a sua falta.” Voltou os olhos para a sala. “E quanto ao equipamento? Tudo bem?”
“Está tudo aqui”, respondeu Strangways, “e o Secatur zarpa amanhã para a ilha da Surpresa. Depois de passar pela alfândega em Port Maria, devem lançar âncora antes do anoitecer. Mr. Big está a bordo — é só a segunda vez que veio aqui. Ah, e trouxe uma mulher. Uma garota chamada Solitaire, de acordo com a CIA. Sabe alguma coisa sobre ela?”
“Não muito”, respondeu Bond. “Mas gostaria de tirá-la dele. Ela não pertence ao seu time.”
“Uma espécie de donzela em apuros”, disse o romântico Strangways. “Pois é. De acordo com a CIA, ela é uma graça.”
Mas Bond fora para a varanda e olhava as estrelas. Jamais tivera de brigar por um cacife tão alto na vida. O segredo do tesouro, a derrota de um grande criminoso, o esmagamento de um círculo de espionagem comunista e a destruição de um tentáculo da SMERSH, a cruel engrenagem que constituía seu próprio alvo particular. E agora Solitaire, a maior das recompensas pessoais.
As estrelas piscavam no seu Morse cifrado e ele não possuía chave alguma para decifrar o seu código.
18.
BEAU DESERT
Strangways voltou sozinho depois do jantar e Bond decidiu que eles partiriam ao amanhecer. O inglês deixou uma nova pilha de livros e panfletos sobre tubarões e barracudas, que Bond estudou com grande atenção.
Pouco acrescentou ao conhecimento prático que aprendera com Quarrel. Os autores eram todos cientistas e grande parte dos dados era sobre ataques ocorridos nas praias do Pacífico, onde qualquer corpo que brilhasse na arrebentação pesada excitaria a curiosidade dos peixes.
Mas parecia haver uma concordância geral que o perigo para os mergulhadores submarinos com aqualungs era muito menor do que para os nadadores de superfície. Estes podiam ser atacados por qualquer representante da família dos tubarões, especialmente quando o tubarão era estimulado e excitado pela presença de sangue no mar, pelo cheiro da vítima ou pela vibração sensorial causada por alguém ferido na água. Mas às vezes podiam ser espantados, segundo a literatura, por barulhos altos dentro d’água — até mesmo por gritos sob a superfície, e muitas vezes fugiam quando perseguidos pelo nadador.
A fórmula mais bem-sucedida de repelente de tubarões era, segundo os testes dos laboratórios de pesquisa naval da marinha americana, uma combinação de acetato de cobre e um corante preto chamado nigrosina, que vinha sendo adicionada, sob a forma de pelotas, aos coletes salva-vidas de todas as forças armadas dos Estados Unidos.
Bond chamou Quarrel. O ilhéu de Cayman não acreditara, até que Bond lesse para ele o que o Departamento Naval tinha a dizer sobre suas pesquisas, no final da guerra, sobre os bandos de tubarões estimulados por uma situação descrita como “condições exacerbadas de comportamento grupal”: “... os tubarões eram atraídos para a popa do barco de pesca de camarões, com refugo de peixes”, leu Bond. “Os tubarões apareceram sob a forma de um cardume exasperado, espadanante. Preparamos uma tina com peixes frescos, e outra com peixes misturados ao pó repelente. Aproximamo-nos do cardume e o fotógrafo começou a rodar a câmera. Despejei os peixes frescos por trinta segundos, repetindo três vezes esse procedimento. Da primeira vez os tubarões demonstraram grande ferocidade ao se alimentar dos peixes frescos bem na popa do barco. Mas ficaram devorando-os só durante cinco segundos depois que o pó repelente foi jogado ao mar. Uns poucos voltaram depois que jogamos peixe fresco imediatamente após o repelente. Em uma segunda tentativa, trinta minutos depois, um cardume feroz se alimentou durante os trinta segundos em que lhe fornecemos peixe fresco, mas se afastou assim que o repelente foi jogado na água. Na terceira tentativa, só conseguimos atrair os tubarões até uma distância de vinte metros da popa do barco.”
“O que acha disso?”, perguntou Bond.
“É melhor arranjar um pouco desse negócio”, respondeu Quarrel a contragosto, mas impressionado.
Bond estava disposto a concordar. Washington havia mandado mensagem de que as pelotas do material estavam a caminho. Mas ainda não tinham chegado e não eram esperadas antes de quarenta e oito horas. Se o repelente não chegasse, não seria problema para Bond. Não imaginava encontrar condições tão perigosas no seu percurso submarino até a ilha.
Antes de ir para a cama, chegara à conclusão de que nada o atacaria se não houvesse sangue na água, ou se ele não parecesse amedrontado diante da ameaça de algum peixe. Quanto aos polvos, peixes-escorpião e moreias, simplesmente precisava tomar cuidado onde punha os pés. Para ele, os espinhos de sete centímetros do ouriço eram o maior perigo para as atividades submarinas nos trópicos, mas a dor que causavam não bastaria para interferir em seus planos.
Partiram antes das seis da manhã e chegaram a Beau Desert às dez e meia.
A propriedade era uma bela plantação antiga de cerca de quatrocentos hectares, com as ruínas da bela casa grande dominando a baía. Era dedicada ao cultivo de pimentões e cítricos, e cercada de madeiras de lei e palmeiras, e sua história remontava à época de Cromwell. O nome romântico estava em moda no século dezoito, quando as propriedades jamaicanas se chamavam Bellair, Bellevue, Boscobel, Harmony, Nymphenburg, ou eram batizadas de Panorama, Satisfação, Repouso.
Uma trilha entre as árvores, que não era visível da ilha na baía, levava à pequena casa de praia. Depois dos piqueniques semanais na baía de Manatee, os banheiros e a mobília confortável de bambu pareciam um luxo, e os tapetes de cores vivas pareciam de veludo sob os pés calejados de Bond.
Pelas rótulas das janelas Bond contemplou o pequeno jardim flamejante de hibiscos, buganvílias e roseiras, que acabava no minúsculo crescente de areia branca, meio tapado pelos troncos das palmeiras. Sentou-se no braço de uma poltrona e deixou que seu olhar passeasse, palmo a palmo, pelos diferentes azuis e marrons do mar e dos recifes, até morrer na base da ilha. A metade superior estava obscurecida pelos leques das plumas das palmeiras em primeiro plano, mas o pedaço de penhasco vertical dentro de seu campo de visão parecia cinzento e formidável na meia sombra projetada pelo sol forte.
Quarrel preparou o almoço em um fogareiro a álcool, de modo que nenhuma fumaça os denunciasse, e de tarde Bond fez uma sesta e depois examinou o equipamento enviado de Londres e trazido de Kingston por Strangways. Experimentou a roupa de mergulho de borracha fina que o cobria, desde a máscara apertada na cabeça com o óculo de vidro temperado, até as longas nadadeiras em seus pés. Tudo cabia como uma luva, e Bond louvou a eficiência do setor “Q” de M.
Testaram os cilindros duplos de mil litros de ar natural comprimido a duzentas atmosferas, e Bond achou fácil o funcionamento das válvulas de distribuição de ar e de reserva, à prova de acidentes. Na profundidade em que agiria, aquele volume dava para durar quase duas horas.
Havia uma nova espingarda submarina potente, marca Champion, e uma faca projetada pela Wilkinson para os comandos durante a guerra. Finalmente, em uma caixa coberta de avisos de perigo, estava a pesada mina naval, um cone de fundo achatado, repleto de explosivos, montado sobre uma base cheia de largas saliências de cobre, tão imantadas que a mina grudava como um marisco em qualquer casco metálico. Havia uma dúzia de detonadores de metal e de vidro, parecidos com lápis, com temporizadores que iam de dez minutos até oito horas, e um meticuloso livrinho de instruções, tão simples quanto o próprio equipamento. Havia até uma caixa de cápsulas de benzedrina para dar resistência e aguçar a percepção de Bond durante a tarefa, e várias lanternas submarinas, inclusive uma que projetava apenas um feixe da largura de um lápis.
Bond e Quarrel testaram tudo, acoplamentos, contatos, até se darem por satisfeitos e concluírem que não restava mais nada a ser feito. Em seguida, Bond desceu até o meio das árvores e observou as águas da baía, calculando as profundidades, traçando rotas para percorrer a passagem pelo recife e prevendo a trajetória da lua, que seria sua única referência no decorrer da tortuosa travessia.
Às cinco horas chegou Strangways com notícias do Secatur.
“Passaram por Port Maria”, informou. “Chegarão aqui dentro de dez minutos, no máximo. Mr. Big tem um passaporte com o nome de Gallia e a garota com o nome de Latrelle. Ela está na sua cabine, mareada, segundo o capitão negro do Secatur. É possível. Há uma porção de tanques de peixe a bordo. Mais de cem. Exceto isso, nada que levantasse suspeita, e foram liberados. Eu queria ir a bordo como parte da turma da alfândega, mas achei melhor deixar que o espetáculo se desenrolasse de modo absolutamente normal. Mr. Big permaneceu na sua cabine. Estava lendo quando foram verificar seus documentos. Como está o equipamento?”
“Perfeito”, respondeu Bond. “Acho que agiremos amanhã à noite. Espero que haja um pouco de vento. Se descobrirem as bolhas de ar, estaremos em apuros.”
Quarrel entrou, avisando: “O iate está passando pelo recife agora, capitão.”
Foram até a máxima distância que podiam arriscar ir, na praia, e assestaram os seus binóculos na direção do barco.
Era uma bela embarcação, negra, com uma superestrutura cinza, setenta pés de comprimento e construída em função da velocidade — de pelo menos vinte nós, imaginou Bond. Conhecia sua história. Havia sido construída para um milionário em 1947, era movida por dois motores a diesel da General Motors, tinha casco de aço e todas as geringonças de comunicação de último tipo, inclusive telefone do barco para a terra e um navegador Decca. Trazia hasteados um pavilhão vermelho nos vaus dos joanetes e a bandeira americana à popa, e progredia a três nós através da abertura de sete metros no recife.
Virou abruptamente, depois de romper a passagem, e rumou para a parte da ilha a bombordo. Ao mesmo tempo, três negros em calças brancas de brim desceram correndo a escada íngreme até o molhe estreito e se posicionaram para amarrar as guias. Foram necessárias poucas manobras para prendê-las, diante dos observadores em terra firme, e as duas âncoras foram arriadas ruidosamente, entre as pedras e o coral na areia do fundo, junto à base da ilha. O barco estava bem protegido, até mesmo do vento norte. Bond calculou uma profundidade de sete metros sob a sua quilha.
Enquanto observavam, a enorme figura de Mr. Big surgiu no convés. Desembarcou no molhe e começou a subir lentamente a escadaria a prumo. Parou várias vezes, e Bond pensou na dificuldade que seu coração avariado teria para bombear o sangue naquele corpanzil preto acinzentado.
Seguiam-no dois tripulantes negros carregando uma maca leve, levando um corpo humano amarrado. Pelos binóculos, Bond reconheceu os cabelos negros de Solitaire. Ficou perplexo e preocupado, sentiu um aperto no coração diante daquela proximidade. Rezou para que a maca fosse apenas uma precaução para evitar que Solitaire fosse reconhecida da costa.
Em seguida, formou-se uma fila de doze homens na escadaria e os tanques de peixe foram sendo passados de um para outro. Quarrel contou cento e vinte.
Depois, alguns gêneros foram levados para cima da mesma maneira.
“Não está trazendo muita coisa desta vez”, comentou Strangways, depois da operação terminada. “Somente uma dúzia de caixotes. Geralmente são cinquenta. Não deve ficar muito tempo.”
Mal acabara de falar quando um tanque de peixe, que seus binóculos mostravam estar meio cheio de água e areia, desceu cuidadosamente de volta ao barco, por meio daquela escada feita de mãos. Em seguida outro, e mais outro, a intervalos de cinco minutos.
“Meu Deus”, exclamou Strangways. “Já estão carregando o barco. O que significa que deverão zarpar pela manhã. Será que resolveram liquidar as operações na ilha e este será seu último carregamento?”
Bond observou com cuidado e depois subiram em silêncio através do arvoredo, deixando Quarrel atrás para se manter a par dos acontecimentos.
Sentaram-se na sala, e enquanto Strangways preparava um uísque com soda para ele mesmo, Bond olhava pela janela e organizava seus pensamentos.
Eram seis horas e os vagalumes começaram a aparecer na penumbra. A lua, de um amarelo pálido, já ia alta no lado do oriente, e o dia morria rápido às suas costas. Uma brisa ligeira encrespava a baía e pequenas ondas quebravam na praia branca no final do gramado. Pequeninas nuvens rosa e alaranjadas, ao poente, vagavam nas alturas, e as folhas das palmeiras se esbarravam de mansinho no vento fresco do Papa-Defunto.
“Vento Papa-Defunto”, pensou Bond, sorrindo de esguelha. Tal como teria de ser esta noite. Era a única chance, e as condições quase perfeitas. Só o repelente de tubarões é que não chegaria a tempo. Mas isso era apenas um requinte. Não poderia ser um pretexto. Era para isto que ele viajara três mil quilômetros e matara cinco. No entanto, sentiu um calafrio ao prever a aventura submarina angustiante, que ele já havia transferido em sua mente para o dia seguinte. De repente sentiu ódio e medo do mar e de tudo que lhe dizia respeito. Dos milhões de pequenas antenas que se mexeriam e o seguiriam quando ele passasse de noite, dos olhos que acordariam para espiá-lo, das batidas de coração que falhariam por um centésimo de segundo para continuar batendo silenciosamente, das gavinhas gelatinosas que se estenderiam em sua direção, tão cegas na luz quanto no escuro.
Iria passar no meio de milhares de segredos. No espaço de trezentos metros, sozinho e com frio, transporia às cegas uma floresta misteriosa em direção a uma cidadela mortífera, cujos guardas já haviam matado três homens. Ele, Bond, depois de uma semana ensolarada de canoagem com sua babá ao lado, ia esta noite, dentro de poucas horas, caminhar sozinho sob aquele lençol escuro de água. Era uma maluquice, algo impensável. Seu corpo se encolheu e ele cravou os dedos nas palmas da mão molhadas.
Houve uma batida na porta e Quarrel entrou. Bond se alegrou de poder levantar da cadeira, se afastar da janela e se aproximar do lugar onde Strangways apreciava seu drinque, debaixo de um abajur.
“Estão trabalhando à luz de lampiões agora, capitão. Um tanque ainda a cada cinco minutos. Calculo que terão dez horas de trabalho. Acabarão mais ou menos às cinco da manhã. Não zarparão antes das seis. É perigoso demais tentar passar pelo canal sem luz suficiente.”
Os olhos cinzentos e amistosos de Quarrel, naquele esplêndido rosto cor de mogno, fitavam Bond, aguardando ordens.
“Começarei às dez em ponto”, Bond se surpreendeu com as próprias palavras. “Das pedras à esquerda da praia. Pode nos fazer um jantar e depois levar o equipamento até o gramado? As condições estão perfeitas. Chegarei lá dentro de meia hora.” Contou nos dedos. “Dê-me os detonadores de cinco e de oito horas. E o de quinze minutos, como reserva, caso algo saia errado. Está certo?”
“Sim senhor, capitão”, respondeu Quarrel. “Pode deixar comigo.”
E saiu.
Bond olhou para a garrafa de uísque e, em seguida, se decidiu, servindo-se de meio copo em cima de três cubos de gelo. Tirou a caixa de benzedrina do bolso e botou um tablete entre os dentes.
“À sorte”, disse a Strangways, tomando um grande gole. Sentou-se apreciando o gosto áspero de seu primeiro drinque em mais de uma semana. “Agora”, perguntou, “diga exatamente o que eles fazem quando estão prontos para zarpar. Levam quanto tempo para se afastar da ilha e passar pelo recife? Se esta for a última vez, não se esqueça de que estarão levando seis homens adicionais e algumas provisões. Vamos tentar prever isso o mais exatamente possível.”
Um momento depois Bond já mergulhara em um mar de detalhes práticos, e a sombra do medo recuara até as zonas de escuridão debaixo das palmeiras.
Exatamente às dez horas, sem sentir nada além da excitação e da expectativa, a figura preta e luzidia como um morcego pulou das pedras dentro de três metros de água, sumindo debaixo do mar.
“Vá com segurança”, disse Quarrel, dirigindo-se ao ponto em que Bond desaparecera. Persignou-se. Em seguida, ele e Strangways voltaram para casa, por entre as sombras, para dormir em turnos, sobressaltados, aguardando, temerosos, o desenrolar dos acontecimentos.
19.
O VALE DAS SOMBRAS
Bond foi levado direto ao fundo pelo peso da mina naval que prendera a seu peito através de fitas, e pelo cinto de chumbo, usado para corrigir a flutuabilidade dos cilindros.
Sem hesitar um instante, cobriu imediatamente os primeiros cinquenta metros de areia do fundo em um rápido crawl, com o rosto pouco acima do leito. As longas nadadeiras quase teriam dobrado sua velocidade normal, não fosse o estorvo do peso que carregava e da leve espingarda de arpão na mão esquerda. Mas avançava depressa e em menos de um minuto parou para descansar na sombra de um grande maciço de coral.
Parou e estudou suas sensações.
Estava aquecido na roupa de mergulho, sentindo mais calor do que se estivesse nadando ao sol. Achou que seus movimentos lhe vinham com facilidade e a respiração era perfeitamente simples, desde que fosse regular e descontraída. Contemplou as bolhas denunciadoras subindo rente ao coral em um repuxo de pérolas prateadas e rezou para que as pequenas ondas as encobrissem.
No espaço desimpedido, sua visibilidade era perfeita. A luz era leitosa e macia, mas não suficientemente forte para dissolver as sombras encarneiradas das ondas na superfície, que enxadrezavam a areia do fundo. Agora, junto ao recife, não havia reflexos no leito do mar, e as sombras sob as pedras eram negras e impenetráveis.
Arriscou uma olhada rápida com a lanterna fina, e imediatamente a paisagem oculta da massa marrom dos arbustos de coral ganhou vida. Anêmonas de miolo carmesim acenavam para ele com seus tentáculos de veludo, uma colônia de ouriços eriçou seus espinhos de aço de Toledo, subitamente assustada, e uma centopeia do mar peluda estacou sua centena de passos, inquirindo-o com sua cabeça cega. Na areia da base da árvore de coral, um peixe-sapo recolheu delicadamente sua horrível cabeça verrugosa de volta à loca, e uma porção de vermes do mar, parecidos com flores, desapareceu em seus tubos gelatinosos. Um cardume de peixes-borboleta e peixes-anjo, coloridos como joias, flertava na luz. Bond distinguiu a forma chata e espiralada de uma estrela-do-mar de grandes pontas.
Bond enfiou a lanterna de volta no cinto.
Acima dele a superfície do mar era uma colcha de mercúrio. Ouvia-se um crepitar baixinho, como gordura fritando na frigideira. Adiante, o luar mergulhava no vale irregular e profundo, cujas encostas afundavam, se afastando da rota que ele devia seguir. Abandonou sua aconchegante árvore de coral e avançou lentamente. Agora não mais com a mesma facilidade. A luz era fraca e enganosa, e a floresta petrificada do recife de coral cheia de becos sem saída e caminhos tentadores, porém ilusórios.
Às vezes era obrigado a subir quase à superfície para transpor o emaranhado de algum arbusto de coral, e quando isso acontecia, aproveitava para verificar sua posição pela lua que brilhava como uma pálida descarga de foguete, no final do caminho que abrira na água. Às vezes a cintura de ampulheta de um rochedo de coral lhe fornecia abrigo, e ele podia descansar por alguns instantes, sabendo que as pequenas borbulhas do respirador ficariam escondidas pela saliência acima da superfície. Então concentrava seu olhar nos rabiscos fosforescentes da minúscula vida noturna submarina e distinguia colônias e populações inteiras às voltas com suas atividades microscópicas.
Não havia peixes grandes nas imediações, mas muitas lagostas fora de suas locas, parecendo bichos enormes e pré-históricos, graças ao efeito de ampliação da água. Seus olhos saltados e vermelhos o fitavam, e suas longas antenas de trinta centímetros pediam-lhe uma senha. Em alguns momentos recuavam nervosamente para seus abrigos, levantando areia com suas caudas potentes, agachadas nas pontas de seus oito pés peludos, à espera de o perigo passar. Certa vez os grandes filamentos de uma caravela passaram flutuando lentamente. Quase tocaram sua cabeça a partir da superfície, cinco metros acima, e ele lembrou a queimadura causada pelo contato com uma delas, que ardera por três dias durante a temporada em Manatee Bay. Se atingisse alguém na altura do coração, poderia ser mortal. Ele viu inúmeras moreias verdes e pintadas, estas últimas se movendo como grandes serpentes pretas e amarelas ao longo da areia do fundo, as verdes mostrando os dentes de dentro de algum buraco na pedra, e vários baiacus, como corujas castanhas, com seus enormes e plácidos olhos verdes. Espetou um deles com a extremidade de sua arma e ele inchou até ficar do tamanho de uma bola de futebol, tornando-se uma massa de perigosos espinhos brancos. Largas gorgônias balançavam, fazendo gestos convidativos nos rodamoinhos, refletindo o luar nos vales cinzentos, acenando fantasmagóricas, como restos das mortalhas de homens sepultados no mar. Muitas vezes Bond distinguia nas sombras movimentos pesados e misteriosos, águas revoltas e o súbito brilho de olhos grandes, que imediatamente se extinguiam. Então, virava-se, destravando o arpão, olhando fixamente o escuro. Mas não atirou em nada e nada o atacou enquanto subia e deslizava pelo recife.
Levou quinze minutos para percorrer cem metros do coral. Depois disso descansou em um pedaço redondo de coral esponjoso, abrigado por um último pedaço de recife. Alegrou-se por só ter de enfrentar uns cem metros de água cinza-claro. Ainda se sentia descansado, conservando a elação e a clareza de espírito provocadas pela benzedrina, mas o labirinto de perigos que enfrentara para atravessar o recife o tinha cansado e causado uma preocupação constante, além do temor de rasgar a roupa de borracha. Agora a floresta de corais afiados como navalhas já havia sido ultrapassada, para ceder lugar aos tubarões e às barracudas, ou talvez à súbita banana de dinamite jogada no meio da sua pequena flor de borbulhas na superfície.
Foi enquanto calculava os perigos ainda por enfrentar que o polvo agarrou-o. Em volta dos dois tornozelos.
Estava sentado com os pés na areia, quando de repente foram presos na base do cogumelo redondo de coral sobre o qual descansava. Quando compreendeu o que tinha acontecido, um tentáculo começou a serpentear pela sua perna acima, e outro, roxo na luz fraca, desceu pela nadadeira esquerda.
Teve um sobressalto de terror e repugnância, levantando-se de imediato, esfregando os pés, esforçando-se por se libertar. Mas não houve afrouxamento de um centímetro sequer, e os movimentos de Bond deram ao polvo a oportunidade de apertar e puxar os calcanhares mais ainda sob a saliência da pedra redonda. A força do bicho era prodigiosa, e Bond sentiu que perdia rapidamente o equilíbrio. Percebeu que num instante seria jogado no chão e aí, atrapalhado pela mina em seu peito e o cilindro nas costas, talvez fosse quase impossível atacar o polvo.
Bond tirou a faca do cinto e espetou entre suas pernas. Mas a saliência da rocha o atrapalhou, e ele ficou apavorado de cortar sua roupa de mergulho. De repente foi derrubado, caindo deitado na areia. De imediato seus pés começaram a ser puxados para dentro de uma larga fenda lateral debaixo da pedra. Esgaravatou a areia e tentou se dobrar para poder ter acesso à faca. Porém, a grande protuberância da mina em seu peito impediu-o de fazê-lo. À beira do pânico, lembrou-se do arpão. Antes não lhe dera importância, achando que era uma arma inútil naquela pequena distância, mas agora era a sua única chance. Permanecia na areia onde o deixara. Pegou-o e destravou-o. A mina impediu-o de fazer mira. Escorregou o cano ao longo das pernas e cutucou cada pé com a ponta do arpão para descobrir a distância entre eles. Um tentáculo agarrou imediatamente a ponta de aço e começou a puxar. A arma escorregou entre seus pés aprisionados e ele apertou o gatilho às cegas.
Uma grande nuvem de tinta viscosa e pegajosa saiu em rolos da fenda, em direção a seu rosto. Mas uma perna estava livre, em seguida a outra, e ele se aprumou e pegou o cabo do arpão de um metro, no local em que já ia desaparecendo sob a rocha. Puxou e forcejou até que, com um esgarçar de tecidos, conseguiu tirar a arma de dentro da névoa negra que envolvia o buraco. Ofegante, levantou-se e se afastou da rocha, com suor escorrendo pelo rosto, sob a máscara. Acima dele, a fieira prateada de bolhas subiu direto à superfície, e ele praguejou contra aquele animal barrigudo, ferido em seu abrigo.
Mas não podia perder tempo se preocupando com ele. Recarregou a arma e partiu com a lua sobre o seu ombro direito.
Agora avançava bem através da água cinzenta e enevoada, concentrando-se em manter o rosto apenas alguns centímetros acima da areia, com a cabeça bastante baixa para reduzir o atrito de seu corpo com a água. A certa altura, viu, de relance, uma raia-lixa do tamanho de uma mesa de pingue-pongue se desviar habilmente de seu caminho, batendo as asas pontudas e manchadas, como um pássaro, e arrastando atrás de si sua cauda farpada. Não lhe deu atenção, lembrando-se do que Quarrel dissera: que as raias jamais atacam a não ser em autodefesa. Calculou que ela provavelmente viera dos recifes externos para botar seus ovos — ou “bolsas de sereias”, como chamavam os pescadores, porque têm a forma de um travesseiro com dois fios pretos e rígidos em cada canto — no fundo abrigado de areia.
Muitos vultos de peixes grandes nadavam preguiçosamente sobre a areia enluarada, alguns do seu tamanho. Quando um deles seguiu Bond por pelo menos um minuto, ele levantou os olhos, distinguindo a barriga branca de um tubarão cinco metros acima dele, como um zepelim afunilado verde e azul. Seu nariz arredondado estava mergulhado com curiosidade na coluna de bolhas de ar. O grande rasgo em forma de foice de sua boca parecia uma cicatriz repuxada. Virou de lado e olhou para ele embaixo com um olhar duro e rosado e, em seguida, abanou sua cauda, também em forma de foice, e se afastou devagar dentro do muro de névoa cinzenta.
Bond amedrontou uma família de polvos, pesando de três quilos aos cento e cinquenta gramas de um filhote, frágil e luminoso à meia-luz, suspensa quase na vertical em um cordão declinante. Eles se endireitaram e fugiram rápido, a propulsão a jato.
Bond descansou por um instante na metade do caminho e então prosseguiu. Agora havia barracudas por ali, grandes, de até nove quilos. Pareciam tão mortíferas quanto as recordações que tinha delas. Planavam acima dele como submarinos prateados, olhando para baixo com seus olhos de tigre zangado. Sentiam curiosidade a seu respeito e a respeito das bolhas, e seguiram-no por cima e em torno dele, como uma alcateia de lobos silenciosos. Quando Bond encontrou o primeiro pedaço de coral, indício de que se aproximava da ilha, havia cerca de vinte delas se movendo em silêncio, vigilantes, saindo e entrando da parede opaca que o envolvia.
A pele de Bond se encolheu debaixo da roupa de borracha, mas ele não podia fazer nada a respeito delas e concentrou-se em sua meta.
De repente havia uma longa forma metálica suspensa acima dele na água. Atrás dela um monte de pedras quebradas que subiam de maneira íngreme.
Era a quilha do Secatur, e o coração de Bond deu um pulo no peito.
Consultou seu Rolex. Eram onze e três. Escolheu o detonador de sete horas do punhado que tirou de um bolso lateral com zíper, inserindo-o na cavidade apropriada da mina, apertando-o. Enterrou na areia o restante dos detonadores, de modo que, se fosse capturado, ninguém desconfiaria da existência da mina.
Ao nadar em direção à superfície, carregando a mina entre as mãos, com a base para cima, percebeu um rebuliço na água atrás dele. Uma barracuda passou depressa, com as mandíbulas meio abertas, quase colidindo com ele e com os olhos fixos em algo às suas costas. Mas Bond estava concentrado apenas no meio da quilha do barco, em um ponto pouco mais de um metro acima da superfície.
A mina quase o arrastou pelos últimos metros, pois seus enormes ímãs buscavam o beijo metálico com o casco. Bond precisou lutar contra eles para evitar o barulho do choque. Em seguida, tendo colocado a mina no lugar adequado e agora livre do seu peso, Bond precisou nadar com força para se contrapor à sua nova flutuabilidade e afundar de novo, afastando-se da superfície.
Foi quando se virou para nadar em direção às duas hélices, a caminho do abrigo das pedras, que conseguiu ver as coisas terríveis que ocorriam às suas costas.
O bando enorme de barracudas parecia ter enlouquecido. Giravam e mordiam como cães histéricos. Três tubarões que haviam se juntado a eles arremetiam pela água com um frenesi pouco menor. A água fervilhava com esses peixes terríveis, e Bond levou um encontrão no rosto, recebendo outros tantos por várias vezes em uma distância de poucos metros. Percebeu que a qualquer momento sua pele de borracha se rasgaria, junto com a carne debaixo dela, e então o bando viria atrás dele.
“Condições exacerbadas de comportamento grupal.” A frase do Departamento Naval pipocou na sua mente. Era exatamente nesta situação que o repelente de tubarões poderia salvá-lo. Na sua ausência, teria talvez alguns minutos a mais de vida.
Em desespero, nadou espalhafatosamente, ao longo da quilha do barco, com o arpão destravado, que agora não passava de um brinquedo diante daquele bando de peixes canibais ensandecidos.
Alcançou as duas grandes hélices de cobre, agarrando-se a uma delas, ofegante, com os lábios formando um esgar de medo e os olhos arregalados, ao se dar conta do frenesi no mar fervilhante a seu redor.
Viu de repente que as bocas dos peixes que arremetiam furiosos estavam meio abertas e que eles mergulhavam e saíam de uma nuvem marrom, que se espalhava desde a superfície. Perto dele, uma barracuda se deteve por um instante, com algo marrom e reluzente nas suas mandíbulas. Engoliu de uma bocada, depois virou e voltou para a confusão.
Ao mesmo tempo, Bond notou que escurecia. Olhou para cima e percebeu, com uma nova compreensão, que a superfície de mercúrio do mar tornara-se vermelha, um horrível carmesim brilhante.
Fiapos dessa substância chegaram flutuando até seu alcance. Puxou-os com a extremidade de sua arma. Segurou-os contra sua máscara.
Não havia mais dúvida.
Alguém lá em cima atirava sangue e vísceras na superfície do mar.
20.
A CAVERNA DE MORGAN, O SANGUINÁRIO
Bond compreendeu de imediato o motivo de todas aquelas barracudas e tubarões estarem rondando a ilha, de como eram mantidos naquele frenesi voraz por esse banquete noturno, por que os três homens, desafiando todas as explicações plausíveis, haviam sido devolvidos à praia, meio devorados pelos peixes.
Mr. Big tinha apenas posto as forças do mar para trabalhar em seu proveito, utilizando-as para sua proteção. Era um invento típico — imaginativo, criativo, tecnicamente à prova de erro e fácil de pôr em prática.
No exato momento em que Bond compreendera isso tudo, algo lhe deu um terrível golpe no ombro e uma barracuda de dez quilos recuou, com carne e borracha preta entre as mandíbulas. Bond não sentiu dor, ao largar a hélice de bronze e nadar desesperadamente até as pedras, só uma náusea terrível na boca do estômago, ao pensar que um pedaço seu se encontrava entre aquelas centenas de dentes afiados como uma navalha. A água começou a vazar entre a borracha aderente e a sua pele. Não demoraria até chegar a seu pescoço e penetrar na máscara.
Já ia desistir e subir disparado pelos sete metros até a tona, quando viu uma larga fissura nas pedras diante dele. Ao lado havia um grande pedregulho tombado de lado e, de algum modo, ele conseguiu se esconder atrás dele. Virou-se, naquele abrigo precário, no momento exato em que a mesma barracuda investia outra vez, com o maxilar superior em ângulo reto em relação ao inferior, a boca escancarada pronta para o bote terrível.
Bond atirou quase às cegas com o arpão. As tiras de borracha dispararam cano abaixo e o arpão dentado pegou o grande peixe no centro da mandíbula superior erguida, atravessando-a e penetrando até a metade do cabo, com a linha ainda livre.
A barracuda estacou a um metro da barriga de Bond. Tentou fechar as mandíbulas e, em seguida, deu uma enorme sacudida na longa cabeça de réptil. Depois se afastou em disparada, ziguezagueando loucamente, arrancando da mão de Bond o arpão e a linha, que arrastou atrás de si. Bond sabia que, antes de ela percorrer cem metros, os demais peixes a atacariam e a fariam em pedaços.
Deu graças a Deus por essa manobra diversiva. Seu ombro estava agora envolto por uma nuvem de sangue. Os outros peixes sentiriam o cheiro em questão de segundos. Contornou o pedregulho imaginando se arranjaria um meio de se abrigar debaixo do atracadouro, escondendo-se de algum modo acima da superfície da água, até pensar em outro plano.
Então viu a caverna que o pedregulho escondera.
Era de fato quase uma porta na base da ilha. Se Bond não estivesse nadando para salvar sua vida, poderia ter entrado nela andando. Mas, naquelas circunstâncias, mergulhou direto na abertura e só parou quando poucos metros o separavam de sua entrada bruxuleante.
Então ficou de pé na areia macia e acendeu a lanterna. Um tubarão talvez pudesse vir atrás dele, mas no espaço confinado seria quase impossível que o mordesse com sua boca situada muito embaixo. Com certeza não viria precipitadamente, porque até o tubarão tem medo de arriscar a pele entre as pedras, e Bond teria ampla oportunidade de procurar atingir seus olhos com a faca.
Bond iluminou o teto e os lados da caverna com a lanterna. Certamente fora modelada ou acabada pela mão do homem. Bond calculou que deveria ter sido escavada de dentro para fora, a partir de algum lugar no centro da ilha.
“Faltam pelo menos vinte metros para acabar, gente”, Morgan, o Sanguinário, deve ter dito aos feitores de escravos. E então as picaretas devem ter rompido de repente o resto da parede que ainda separava a caverna do mar, e uma confusão de pernas, braços e bocas gritando, sufocadas para sempre pela água, teriam sido arremessadas para trás contra a pedra, juntando-se aos cadáveres das demais testemunhas.
O grande pedregulho na entrada deve ter sido posicionado para vedar a saída para o mar. O pescador da baía dos Tubarões que desapareceu de repente, seis meses atrás, deve tê-la descoberto um dia. Fora afastada de sua posição original por alguma tempestade ou tsunami consecutivo a um tufão. Então descobrira o tesouro e percebera que precisava de ajuda para dispor dele. Um branco o enganaria. Melhor procurar o grande gângster negro no Harlem e fazer o melhor acordo que pudesse. O ouro pertencia aos negros que haviam morrido para escondê-lo. Deveria ser devolvido aos negros.
Ali de pé, balançando na correnteza do túnel, Bond imaginou mais um barril cimentado mergulhando no lodo do rio Harlem.
Foi então que ouviu os tambores.
Lá fora, entre os peixes grandes, ouvira uma leve trovoada na água, que aumentara quando entrou na caverna. Mas julgara que eram apenas as ondas batendo na base da ilha e, de qualquer modo, tinha outras coisas em mente.
Mas agora podia distinguir um ritmo definido, e o som ribombava e crescia à sua volta, com um rufo abafado, como se o próprio Bond estivesse preso dentro de um vasto atabaque. A água parecia tremular por causa desse barulho. Ele imaginou o duplo objetivo do batuque. Era um grande chamado aos peixes, usado quando havia invasores, para atrair e excitá-los ainda mais. Quarrel lhe contara como os pescadores noturnos costumam bater nos lados da canoa com o remo para acordar e atrair os peixes. Aquilo deveria ser algo parecido. Ao mesmo tempo seria um aviso macabro do vodu para o pessoal da costa, duplamente eficaz quando algum cadáver era devolvido pelo mar no dia seguinte.
Mais um dos requintes de Mr. Big, pensou Bond. O batuque significava que ele fora descoberto. O que pensariam Strangways e Quarrel ao ouvi-lo? Seriam simplesmente obrigados a aguentar firme, sentados. Bond já havia percebido que os tambores eram algum truque e fizera os dois prometer que não iriam interferir, a não ser que o Secatur escapasse incólume. Pois isso significaria que todos os planos de Bond haviam fracassado. Ele contara a Strangways onde o ouro estava escondido, e neste caso o barco teria de ser interceptado em alto-mar.
Agora o inimigo fora alertado, mas não sabia quem era o invasor, nem se ele ainda estava vivo. Ele precisava prosseguir, nem que fosse para impedir por todos os meios que Solitaire embarcasse no iate condenado.
Bond consultou o relógio. Era meia-noite e meia. Para ele, poderia ter se passado uma semana desde que iniciara sua incursão pelo mar dos perigos.
Apalpou a Beretta sob a roupa de borracha, pensando se já não estaria avariada pela água que entrara pelo rasgo feito pelos dentes da barracuda.
Então, com o troar dos atabaques se aproximando cada vez mais de um crescendo, avançou na caverna, projetando adiante um pequeno feixe de luz com a lanterna.
Avançara cerca de dez metros quando viu um leve brilho na água à sua frente. Apagou a lanterna e foi se aproximando com cautela. O piso arenoso da caverna começou a se inclinar para cima, e a cada metro a luz se tornava mais forte. Agora podia ver dezenas de pequenos peixes que brincavam à sua volta e, mais adiante, a água estava cheia deles, atraídos pela luz da caverna. Caranguejos olhavam atentos de pequenas frestas nas pedras e um polvo novinho se achatou contra o teto, tomando a forma de uma estrela fosforescente.
Em seguida, pôde divisar o final da caverna e uma larga piscina brilhante, além, cujo fundo arenoso era branco como o dia. O roncar dos atabaques aumentava. Parou na sombra da entrada e percebeu que a superfície ficava apenas poucos centímetros acima e que havia lâmpadas sobre a piscina.
Bond estava em um dilema. Mais um passo e ficaria em plena vista de qualquer um que estivesse olhando para a piscina. Ao hesitar, argumentando consigo mesmo, ficou horrorizado ao ver uma fina nuvem de sangue de seu ombro se espalhando pela entrada. Esquecera o ferimento no ombro, que agora começara a latejar, e quando moveu o braço sentiu a ferroada de uma dor intensa em toda sua extensão. Havia também o fino jato de bolhas dos cilindros, mas ele esperava que elas fossem flutuando lentamente para arrebentar na beirinha da entrada.
No exato momento em que recuou alguns centímetros, seu futuro já estava selado.
Sobre sua cabeça percebeu apenas uma enorme pancada na água, e depois dois negros, nus a não ser pelas máscaras de mergulho nos rostos, com longas facas seguras como lanças em suas mãos esquerdas, investiram contra ele.
Antes que sua mão pudesse pegar a faca no cinto, já haviam agarrado seus dois braços e o puxavam para a superfície.
Desesperado, Bond teve de deixar que o tirassem à força da piscina e o jogassem na areia lisa. Depois de ser obrigado a se levantar, abriram os zíperes de seu traje de mergulho. Seu capuz foi retirado da cabeça, o coldre de seu ombro, e de repente ele se achou de pé entre os frangalhos da roupa preta de mergulho, como uma serpente trocando a pele, nu, exceto pelo pequeno calção de banho. O sangue escorria do buraco irregular no ombro esquerdo.
Quando tiraram seu capuz, Bond quase ensurdeceu com a batida e o rufar dos atabaques. O barulho penetrava nele e mexia com tudo em volta. O ritmo rápido e sincopado galopava e latejava nas suas veias. Parecia capaz de acordar toda a Jamaica. Bond fez uma careta e seus sentidos procuraram resistir aos golpes daquela tempestade sonora. Em seguida, os guardas o fizeram se virar e se deparar com uma cena tão grotesca que o som dos atabaques recuou para o fundo e toda sua consciência se concentrou no que via.
No primeiro plano, em uma mesa de jogo com tampo de veludo verde, apinhada de papéis, e sentado em uma cadeira de dobrar, estava Mr. Big, com uma caneta na mão, olhando-o sem curiosidade. Um Mr. Big em um terno castanho-amarelado, bem cortado, de tropical, com camisa branca e gravata de tricô de seda preta. O queixo largo descansava na sua mão esquerda e ele levantou os olhos para Bond como se tivesse sido incomodado, em seu escritório, por alguém de sua equipe pedindo um aumento de salário. Parecia polido, porém levemente entediado.
A alguns passos dele, sinistro e absurdo, o espantalho da efígie do Baron Samedi, ereto sobre uma pedra, observava Bond debaixo de seu chapéu-coco.
Mr. Big tirou a mão do queixo e seus grandes olhos dourados estudaram Bond da cabeça aos pés.
“Bom dia, senhor James Bond”, disse finalmente, projetando a voz inexpressiva contra o barulho já decrescente dos tambores. “A mosca levou mesmo muito tempo para chegar à aranha, ou talvez devesse dizer ‘o lambari à baleia’. Você deixou um belo rastro de bolhas no recife.”
Recostou-se na cadeira e se calou. Os atabaques batiam e rufavam mais baixo.
Então fora a luta contra o polvo que o traíra. A mente de Bond registrou o fato automaticamente, enquanto olhava para além do homem na mesa.
Estava em um salão de pedra grande como uma igreja. Metade do piso era ocupada pela enorme piscina clara e branca pela qual chegara, e que se transformava em verde-mar e depois azul perto do buraco de entrada submarino. Em seguida, havia a faixa estreita de areia em que ele pisava, e o resto do piso era de pedra lisa e plana, marcado por algumas estalagmites cinzentas e brancas.
A alguma distância atrás de Mr. Big uma escadaria íngreme levava a um teto abobadado, do qual pendiam estalactites curtas de calcário. De seus brancos mamilos a água gotejava intermitentemente na piscina, ou sobre as jovens estalagmites que se erguiam do chão, a seu encontro.
Havia uma dúzia de luzes fosforescentes muito claras fixadas alto nas paredes, criando reflexos dourados nos torsos nus de um grupo de negros em pé, à sua esquerda, no piso de pedra, observando Bond de olhos arregalados, mostrando os dentes em sorrisos cruéis e satisfeitos.
Em volta de seus pés pretos e rosados, entre destroços de madeira quebrada e anéis de ferro enferrujados, tiras mofadas de couro e lona decomposta, havia um mar fulgurante de moedas de ouro — metros, cascatas de moedas redondas de ouro, do qual emergiam as pernas pretas, como se tivessem sido detidas no meio de um passeio entre as chamas.
Ao lado deles, empilhadas fileira após fileira, ficavam bandejas rasas de madeira. Algumas estavam no chão, parcialmente cheias de moedas de ouro, e embaixo da escada, um único negro parara na subida, segurando uma delas repleta de moedas de ouro em quatro fileiras cilíndricas, estendida como se estivesse sendo oferecida à venda.
Mais à esquerda, em um canto do salão, havia dois negros próximos a um caldeirão de ferro arredondado, suspenso acima de três maçaricos sibilantes, até que seu fundo ficasse vermelho incandescente. Seguravam escumadeiras de ferro, lambuzadas de ouro até metade de seus cabos. Ao lado deles havia uma miscelânea de peças de ouro, talheres, objetos de altar, copos, cruzes e uma pilha de lingotes de ouro de diversos tamanhos. Ao longo da parede viam-se, próximas a eles, fileiras de bandejas para esfriar o metal, cujas superfícies segmentadas irradiavam um brilho dourado, e uma bandeja vazia descansava no piso perto do caldeirão, junto com uma longa concha manchada de ouro e o cabo envolto em pano.
Acocorado no chão, não muito distante de Mr. Big, um único negro segurava uma faca em uma das mãos, e uma taça ornamentada de brilhantes na outra. A seu lado, em um prato de lata, uma pilha de joias cintilava, embaçadas, vermelhas, azuis e verdes, sob o brilho das lâmpadas fluorescentes.
Estava quente e abafado no grande salão de pedra e, no entanto, Bond tiritava ao abarcar toda essa esplêndida cena com os olhos. O brilho das lâmpadas violeta esbranquiçadas, o bronzeado tremeluzente dos corpos suados, o brilho forte do ouro, o arco-íris do recipiente com os brilhantes, a água marinha em tom leitoso da piscina. Ele tremia diante da beleza daquilo tudo, diante daquela dança petrificada da grande arca do tesouro de Morgan, o Sanguinário.
Seus olhos voltaram para o quadrado de veludo verde e para a grande face de zumbi, olhando aquele rosto e seus olhos amarelos com respeito, quase com reverência.
“Pare os tambores”, disse Mr. Big, para ninguém em particular. O batuque se reduzira a um quase sussurro, a um murmúrio cujo acento recaía sobre o ritmo do coração nas veias. Um dos negros deu dois passos, acompanhados de barulhos metálicos entre as moedas, abaixando-se. Um aparelho de som portátil estava no chão, com um potente amplificador ao lado, contra a parede de pedra. Depois de um clique os tambores pararam. O negro fechou a tampa do aparelho e voltou a seu lugar.
“Andem com o trabalho”, ordenou Mr. Big. E de repente todas as figuras começaram a se mover, como se alguém tivesse posto uma moeda em um caça-níquel. Mexeram o caldeirão, pegaram o ouro e o puseram nas caixas, o sujeito procurava retirar a pedraria da taça, e o negro com a bandeja de ouro prosseguiu subindo a escada.
Bond continuava de pé, pingando suor e sangue.
Big Man descansou a caneta e se levantou devagar. Afastou-se da mesa.
“Assuma meu lugar”, ordenou a um dos homens que guardavam Bond, e o sujeito nu rodeou a mesa, sentou na cadeira de Mr. Big e pegou a caneta.
“Traga-o aqui para cima.” Mr. Big foi até os degraus na rocha e começou a subi-los lentamente.
Bond sentiu uma picada do lado. Acabou de despir os restos de sua segunda pele preta e seguiu a figura que subia devagar.
Ninguém levantou os olhos do trabalho. Ninguém descuidava do serviço quando Mr. Big saía. Ninguém seria capaz de enfiar um brilhante ou uma moeda na boca.
O Baron Samedi assumira a chefia.
Apenas seu zumbi deixara a caverna.
21.
“BOA NOITE A AMBOS”
Subiram vagarosamente por cerca de treze metros, passando por uma porta aberta perto do teto, e pararam em um grande patamar na pedra. Ali um único negro, à luz de um lampião de acetileno, arrumava bandejas cheias de moedas de ouro no meio dos tanques de peixe, muitos já se encontrando empilhados contra a parede.
Enquanto esperavam, dois negros desceram a escada, vindos da superfície, pegaram um tanque pronto e voltaram para cima com ele.
Bond achava que eles enchiam os tanques com areia, plantas aquáticas e peixes em algum lugar no alto, e depois os desciam através da corrente humana ao longo da face do rochedo.
Notou que alguns dos tanques à espera tinham lingotes de ouro fixados no centro, e outros, pedrarias espalhadas como cascalho. Então refez os cálculos sobre o tesouro, quadruplicando seu valor até cerca de quatro milhões de libras esterlinas.
Mr. Big ficou um tempo com o olhar no chão de pedra. Respirava fundo, mas de maneira controlada. Em seguida, subiram.
Vinte degraus acima havia outro patamar, menor, com uma porta de saída. Nela havia corrente e cadeado novos. A própria porta era feita de grades de ferro marrons, achatadas, corroídas pela ferrugem.
Mr. Big parou de novo e ficaram lado a lado na pequena plataforma de pedra.
Por um momento Bond pensou em fugir, mas, como se tivesse lido a sua mente, o guarda negro cercou-o contra a parede, longe de Big Man. E Bond sabia que sua maior obrigação era se manter vivo e chegar a Solitaire, e arranjar um jeito de afastá-la do barco condenado pela mina, em que o ácido roía lentamente o cobre do detonador.
Do alto vinha uma forte correnteza pelo vão da escada, e Bond sentiu que seu suor secava. Pôs a mão direita no ferimento do ombro, sem se assustar com a picada no flanco feita pela faca do guarda. O sangue já secara em crostas e a maior parte do braço doía tremendamente.
Mr. Big falou:
“Este vento, sr. Bond”, apontou para o vão, “é conhecido na Jamaica como ‘vento Papa-Defunto’”.
Bond sacudiu o ombro direito, poupando o fôlego.
Mr. Big virou para a porta de ferro, tirou a chave do bolso e abriu-a. Passou e foi seguido por Bond e seu guarda.
Era um cômodo que consistia em uma estreita passagem, com grilhões enferrujados presos embaixo na parede, a menos de dez metros de intervalo.
Na outra extremidade, onde uma lamparina pendia do teto de pedra, uma figura imóvel estava deitada no chão, embrulhada em um cobertor. Havia mais uma lamparina na porta, em cima de suas cabeças, mas, exceto isso, apenas o cheiro de pedra úmida, torturas antigas e morte.
“Solitaire”, falou Bond, baixinho.
O coração de Bond deu um salto e ele quis se adiantar. Imediatamente uma mão enorme agarrou seu braço.
“Pare aí, seu branco”, vociferou o guarda, torcendo o punho dele entre as espáduas, levantando-o ainda mais, até que Bond deu um chute com o calcanhar esquerdo. Acertou na canela do homem, mas doeu mais em Bond do que no guarda.
Mr. Big se virou. Tinha uma pequena arma quase encoberta pela mão enorme.
“Solte-o”, ordenou em voz baixa. “Se quiser mais um umbigo, senhor Bond, é só dizer. Tenho seis aqui nesta arma.”
Bond passou esbarrando em Big Man. Solitaire se levantara, vindo em sua direção. Quando viu seu rosto, desandou a correr, estendendo as mãos.
“James”, soluçou. “James.”
Ela quase caiu a seus pés. Suas mãos se agarraram.
“Arranje corda”, ordenou Mr. Big no vão da porta.
“Está tudo bem, Solitaire”, disse Bond, sabendo que não estava. “Está tudo bem. Estou aqui agora.”
Ele pegou-a, mantendo-a a distância de seu braço estendido. O braço esquerdo doeu. Ela estava pálida e desarrumada, com um machucado na testa e olheiras. No seu rosto encardido as lágrimas escorriam deixando marcas na pele lívida. Estava sem maquiagem. Trajava um terninho branco sujo e sandálias. Parecia magra.
“O que esse desgraçado anda fazendo com você?”, perguntou Bond. Apertou-a de repente contra si. Ela se agarrou a ele, com o rosto enterrado em seu pescoço.
Em seguida, se afastou e olhou para a mão dele.
“Você está sangrando”, disse. “O que é?”
Virou-o pela metade e viu o sangue preto no seu ombro e pelo braço abaixo.
“Ah, meu querido, o que foi?”
Começou a chorar de novo, desamparada, desesperada, percebendo subitamente que ambos estavam perdidos.
“Amarre-os”, ordenou Big Man, da porta. “Aqui, debaixo da luz. Preciso dizer-lhes umas coisas.”
O negro estava vindo e Bond se virou. Valeria a pena arriscar? O negro só tinha a corda na mão. Mas Big Man deu um passo para o lado, vigiando-o, segurando a arma displicentemente, meio apontada para o chão.
“Não, senhor Bond”, avisou apenas.
Bond lançou um olhar para o negro enorme e pensou em Solitaire e no seu próprio ombro ferido.
O negro chegou e Bond deixou que amarrasse seus braços atrás das costas. Os nós foram bem dados. Não havia folga. Doíam.
Bond sorriu para Solitaire. Piscou um olho pela metade. Não passava de uma bravata, mas percebeu uma vivacidade esperançosa renascer em meio a suas lágrimas.
O negro levou-o de volta à porta.
“Ali”, disse Big Man, fazendo um gesto para um dos grilhões.
O negro derrubou Bond com uma rasteira repentina. Este caiu em cima do ombro ferido. O negro puxou-o pela corda até o grilhão, testou-o, passou a corda por ele e então amarrou Bond pelos tornozelos, muito bem amarrado. Enfiara sua faca em uma fresta na pedra. Tirou-a, cortou a corda e voltou para onde Solitaire estava.
Bond ficou sentado no chão de pedra, com as pernas esticadas para a frente, com os braços suspensos, amarrados por trás. O sangue pingava do ferimento reaberto. Apenas os resíduos da benzedrina no seu corpo o impediam de desmaiar.
Solitaire foi amarrada e colocada quase defronte a ele. Um metro separava os pés de ambos.
Com a tarefa concluída, Big Man consultou o relógio.
“Vá”, ordenou ao guarda. Fechou a porta de ferro depois que o sujeito se foi, ficando encostado nela.
Bond e a garota se entreolharam e Big Man contemplou os dois no chão.
Depois de um de seus longos silêncios, dirigiu-se a Bond. Este levantou os olhos para ele. A enorme bola de futebol cinzenta que era sua cabeça parecia, sob o lampião, a cabeça de um elemental, de algum espectro maligno do centro da terra, pairando no ar, com os olhos dourados ardendo firmes, e o grande corpo na sombra. Bond precisou lembrar-se de que já ouvira o coração dele batendo no peito, já o ouvira respirar, já vira suor na pele cinzenta. Não passava de um homem, da mesma espécie dele, um homem grande, com uma mente brilhante, mas ainda assim um homem que caminhava e defecava, um homem mortal, com uma doença no coração.
A boca larga e borrachuda se abriu, os lábios achatados, levemente virados, recuaram dos grandes dentes brancos.
“Você é o melhor de todos os que foram mandados para me combater”, disse Mr. Big. Sua voz baixa e insossa era pensativa, calculada. “E conseguiu matar quatro de meus ajudantes. Meus seguidores acham isso inacreditável. Já é mais do que tempo de liquidarmos nossas contas. O que aconteceu ao americano não bastou. A traição desta garota”, ele ainda olhava para Bond, “que tirei da sarjeta e estava pronto a colocar na minha mão direita, também questionou a minha infalibilidade. Eu estava imaginando como ela deveria morrer, quando a providência, ou o Baron Samedi, como meus seguidores gostam de acreditar, também trouxe você para o altar de cabeça baixa, pronto para o machado”.
A boca parou, com os lábios entreabertos. Bond viu os dentes se juntarem para formar a palavra seguinte.
“De modo que é conveniente que os dois morram juntos. Isso acontecerá de um modo adequado”, Big Man consultou seu relógio, “dentro de duas horas e meia. Às seis horas, alguns minutos a mais ou a menos”, acrescentou.
“Alguns minutos a mais”, comentou Bond. “Gosto da vida.”
“Na história de emancipação dos negros”, continuou Mr. Big em tom de conversa despreocupada, “já surgiram grandes atletas, grandes músicos, grandes escritores, grandes médicos e cientistas. No seu devido tempo, como aconteceu na história do desenvolvimento de outras raças, hão de surgir negros famosos em todos os demais setores da vida”. Fez uma pausa. “Infelizmente para você, senhor Bond, e para esta garota, vocês encontraram o primeiro dos grandes criminosos negros. Uso esta palavra vulgar, senhor Bond, porque seria a mesma que você, senhor Bond, como uma espécie de policial, usaria. Mas prefiro me considerar uma pessoa que possui a habilidade, as capacidades mentais e nervosas para criar as próprias leis e agir segundo elas, em vez de aceitar as leis que convêm ao mínimo denominador comum das pessoas. Sem dúvida você já leu Os instintos do rebanho na paz e na guerra, de Trotter. Pois bem, sou lobo por índole e opção, e vivo segundo as leis do lobo. É natural que os carneiros descrevam este indivíduo como ‘criminoso’.
“O fato, senhor Bond”, prosseguiu Big Man, depois de uma pausa, “de que sobrevivo e, na verdade, gozo de um sucesso ilimitado, embora seja eu sozinho contra milhões de carneiros, se deve às técnicas modernas que lhe descrevi por ocasião de nossa última conversa, e a uma infinita capacidade de me esforçar. Não os esforços tediosos, vulgares, e sim os artísticos e sutis. E eu noto, senhor Bond, que não é difícil enganar os carneiros, não importa quantos, com muita dedicação ao trabalho e, naturalmente, se formos um lobo extremamente bem dotado.
“Deixe-me ilustrar, por exemplo, como funciona a minha mente. Estudemos o método pelo qual decidi que ambos morrerão. É uma variação moderna do método usado na época do meu generoso patrono, sir Henry Morgan. Naquele tempo, era conhecido como ‘arrastamento pela quilha’.”
“Por favor, continue”, disse Bond, sem olhar para Solitaire.
“Temos uma paravana a bordo do iate”, prosseguiu Mr. Big, como se fosse um cirurgião descrevendo uma operação delicada para um grupo de estudantes, “que usamos para rebocar tubarões e outros peixes de grande porte. Esta paravana é, como sabem, um aparelho com a forma de um torpedo, que boia puxado por um cabo, distante do barco. Pode ser usada para sustentar a extremidade de uma rede, rebocando-a através da água, com o barco em movimento. Também pode ser equipada com um instrumento de corte, para cortar os cabos de amarração das minas em época de guerra.
“Pretendo”, continuou Mr. Big, em um tom de voz discursivo e natural, “amarrá-los juntos à extremidade de um cabo preso a essa paravana e rebocá-los pelo mar até que sejam devorados pelos tubarões”.
Fez uma pausa, enquanto seu olhar passava de um para outro. Solitaire mirava de olhos arregalados para Bond, que se esforçava em pensar, com o olhar ausente, perscrutando o futuro. Sentiu que deveria dizer alguma coisa.
“Você é um homem grande”, afirmou, “e um dia morrerá de uma morte igualmente grande e terrível. Se nos matar, essa morte virá em breve. Já a providenciei. Está enlouquecendo a olhos vistos, senão perceberia a repercussão que nosso assassinato terá sobre sua vida”.
Enquanto falava, a mente de Bond funcionava rápido, contando horas e minutos, sabendo que a própria morte de Big Man chegaria devagar, com o ácido corroendo o detonador seguindo o ponteiro dos minutos, rumo à hora do encontro final com seu destino. Mas estariam ele e Solitaire mortos, antes que soasse essa hora? Minutos, talvez segundos, fariam a diferença. O suor escorria do seu rosto para o peito. Sorriu para Solitaire. Ela lhe deu um olhar ausente, sem enxergá-lo.
De repente deu um grito agoniado que sacudiu os nervos de Bond.
“Não sei”, gritou. “Não consigo ver. Está tão perto, tão próximo. Há muitas mortes. Mas...”
“Solitaire”, gritou Bond, apavorado com a possibilidade de que as coisas estranhas que ela previsse, quaisquer que fossem, pudessem servir de aviso a Big Man. “Controle-se.”
Havia um toque de raiva em sua voz.
Os olhos dela clarearam, olhando mudos para ele, sem compreender.
Big Man falou de novo.
“Não estou ficando louco, senhor Bond”, avisou calmamente, “e nenhuma providência sua me afetará. Vocês morrerão além do recife e não restará nenhum indício. Rebocarei os restos de seus corpos até que não sobre nada. Isso faz parte da sagacidade dos meus planos. Vocês também devem saber que o tubarão e a barracuda desempenham um papel no voduísmo. Eles receberão seus sacrifícios e o Baron Samedi será apaziguado. Meus seguidores ficarão satisfeitos. Da mesma forma, desejo continuar minhas experiências com os peixes carnívoros. Acredito que só atacam quando há sangue na água. Por isso seus corpos serão rebocados desde a ilha. A paravana os rebocará sobre o recife. Acho que não serão atacados antes da barra. O sangue e as vísceras que são jogados todas as noites nessas águas já terão sido dispersos ou consumidos. Mas quando seus corpos forem rebocados por cima do recife, infelizmente sangrarão, ficarão em carne viva. Então veremos se minhas teorias estão corretas.”
Big Man estendeu a mão para trás e abriu a porta.
“Eu os deixarei agora”, falou, “para que reflitam sobre a excelência do método que criei para matá-los juntos. Não restará indício algum. A superstição ficará satisfeita. Meus seguidores também. Os corpos serão utilizados para a pesquisa científica.
“Isso é o que eu chamo, senhor James Bond, de uma capacidade infinita de refinamento artístico.”
Parou no vão da porta e olhou para os dois.
“Uma noite breve, porém boa. É o que desejo a ambos.”
22.
TERROR NO MAR
O dia ainda não clareara quando os guardas vieram buscá-los. As cordas que prendiam suas pernas foram cortadas e, com os braços ainda atados, foram levados pelos últimos degraus de pedra que faltavam para a superfície.
Ficaram entre algumas árvores esparsas e Bond aspirou o ar frio da manhã. Olhou através das árvores na direção do oriente e viu que as estrelas estavam mais pálidas e havia uma luminosidade no horizonte que anunciava o raiar da aurora. O cicio noturno dos grilos quase terminara e, em algum canto da ilha, um tordo ensaiava as primeiras notas do dia.
Bond calculou que deviam ser mais ou menos cinco e meia.
Ficaram ali vários minutos. Os negros passavam próximos a eles, carregando embrulhos e malas de fibra de palmeira, entre cochichos cautelosos. As portas do punhado de palhoças entre as árvores estavam escancaradas. Os homens andavam em fila até a beira do penhasco, à direita de Bond e Solitaire, desaparecendo por ali. Não voltavam. Era uma evacuação. Toda a guarnição da ilha levantava acampamento.
Bond esfregou o ombro desnudo contra Solitaire e ela se aninhou contra ele. Fazia frio depois da masmorra abafada, e Bond tiritava. Mas era melhor estar em movimento do que prolongar o suspense lá de baixo.
Ambos sabiam o que precisava ser feito, a natureza do risco.
Depois que Big Man os deixara, Bond não perdera tempo. Falando baixinho, contara à garota sobre a mina magnética presa ao costado do barco, prevista para explodir alguns minutos depois das seis horas, e explicara os fatores decisivos para saber quem morreria ou não naquela manhã.
Primeiro, apostara na mania de exatidão e de eficiência de Mr. Big. O Secatur precisava zarpar às seis horas em ponto. Portanto, não deveria haver nenhuma nuvem, se não a visibilidade na meia-luz do amanhecer não seria suficiente para assegurar a passagem do barco através do recife, e Mr. Big adiaria a partida. Se Bond e Solitaire estivessem no atracadouro ao lado do iate, morreriam junto com Mr. Big.
Supondo que o barco zarpasse na hora exata, a que distância e de que lado dele seriam rebocados? Teria de ser a bombordo para que a paravana ficasse desimpedida na hora de deixar a ilha. Bond supôs que o cabo de reboque da paravana teria cinquenta metros de comprimento, e que eles seriam rebocados vinte ou trinta metros atrás da paravana.
Se ele estivesse certo, seriam arrastados por cima do recife externo cerca de cinquenta metros depois de o Secatur ter rompido pelo canal. Provavelmente se aproximaria da passagem nos recifes a cerca de três nós e, em seguida, pegaria velocidade até chegar a dez, ou até mesmo a vinte. De início seus corpos seriam rebocados da ilha em um lento arco, virando e se retorcendo na ponta da linha de reboque. Logo depois a paravana se endireitaria e, mesmo após o barco ter transposto o recife, eles ainda não teriam chegado a ele. Portanto, a paravana passaria pelo recife quando o barco já o tivesse ultrapassado em quarenta metros, e depois eles a seguiriam a alguns metros a mais de distância.
Bond estremeceu ao pensar nos ferimentos que seus corpos sofreriam se fossem arrastados, a qualquer velocidade, sobre os dez metros de árvores e recifes de coral, afiados como uma navalha. Ficariam com as costas e as pernas esfoladas.
Depois de atravessarem o recife, não passariam de uma isca sanguinolenta, e seria apenas uma questão de minutos até que o primeiro tubarão ou barracuda avançasse neles.
E Mr. Big, sentado confortavelmente no deque da popa, assistiria à carnificina, talvez de binóculos, marcando os segundos e os minutos enquanto a isca viva ia diminuindo de tamanho, até que finalmente os peixes só abocanhassem o cabo ensanguentado.
Até que não restasse coisa alguma.
Então a paravana seria içada a bordo e o iate cortaria o mar graciosamente rumo à longínqua Florida Keys, a Cape Sable e ao atracadouro ensolarado no porto de St. Petersburg.
E se a mina explodisse quando eles ainda estivessem na água, a cinquenta metros do barco? Qual seria o efeito do deslocamento de ar em seus corpos? Talvez não fosse fatal. O casco do iate absorveria a maior parte. O recife talvez os protegesse.
Bond só podia adivinhar e manter a esperança.
Sobretudo, precisavam continuar vivos até o último segundo possível. Precisavam continuar respirando enquanto fossem arrastados, como um pacote vivo, pelo mar. Muita coisa dependia da maneira como eles os amarrariam um ao outro. Mr. Big haveria de querer que continuassem vivos. Não lhe interessaria uma isca morta.
Se ainda estivessem vivos quando a primeira barbatana de tubarão surgisse à tona atrás deles, Bond decidira afogar friamente Solitaire. Afogá-la torcendo seu corpo debaixo do seu e segurando-o ali. Em seguida, tentaria se afogar torcendo o corpo morto dela de volta para que o seu ficasse por baixo.
Cada volteio de seu pensamento esbarrava em um pesadelo, no horror nauseante de cada detalhe medonho da tortura monstruosa que aquele homem havia preparado para eles. Mas Bond sabia que precisava conservar o sangue-frio e a resolução absoluta de lutar pelas suas vidas até o fim. Havia ao menos uma sensação calorosa na ideia de que Mr. Big e a maioria de seus homens também morreriam. E um lampejo de esperança de que ele e Solitaire talvez sobrevivessem. A não ser que a mina falhasse, o inimigo não poderia contar com nenhuma esperança.
Tudo isso e uma centena de outros pormenores e planos passaram pela cabeça de Bond na última hora antes de serem levados pelo vão da escada até a superfície. Com Solitaire compartilhou todas as suas esperanças. Nenhum dos seus temores.
Ela ficara deitada à sua frente, com seus olhos azuis e cansados fixos nele, obedientes, confiantes, bebendo seu rosto e suas palavras, dóceis, amorosos.
“Não se preocupe comigo, querido”, dissera, quando os homens vieram buscá-los. “Sinto-me feliz de estar de novo com você. Meu coração está cheio de felicidade. De algum modo, não estou com medo, apesar de pressentir uma grande matança. Você me ama um pouquinho?”
“Sim”, respondeu Bond. “E vamos ainda aproveitar o nosso amor.”
“Vambora”, disse um dos homens.
E agora, no alto do morro, clareava. Bond ouviu os dois grandes motores a diesel tossirem e roncarem embaixo do penhasco. Uma leve brisa soprava a barlavento, mas a sota-vento, onde estava o barco, a baía era um espelho de bronze.
Mr. Big apareceu no alto da escadaria, com uma pasta de executivo na mão. Ficou por um momento olhando em volta, recuperando o fôlego. Não prestou nenhuma atenção a Bond ou Solitaire, nem aos dois guardas ao lado deles, de revólveres na mão.
Olhou para o céu e de repente clamou, em um tom de voz nítido, na direção da orla do sol.
“Obrigado, sir Henry Morgan. Seu tesouro será bem gasto. Dê-nos um vento de popa.”
Os guardas negros arregalaram os olhos.
“O vento Papa-Defunto”, disse Bond.
Big Man olhou-o.
“Já está tudo embaixo?”, perguntou aos guardas.
“Sim senhor, patrão”, respondeu um deles.
“Leve-os”, ordenou Big Man.
Foram até a beira do penhasco e desceram a escadaria íngreme, com um guarda na frente, outro atrás e Mr. Big a seguir.
Os motores do longo e elegante iate giravam sossegados, com o escape borbulhando gravemente, e um fio de vapor azul a se erguer da popa.
Três sujeitos no molhe cuidavam das guias. Só havia três homens no convés, além do capitão, e o piloto na ponte escura, bem projetada. Não havia mais espaço para ninguém. Todo o espaço disponível no convés, exceto por uma cadeira de pesca presa no lado direito da popa, era preenchido pelos tanques de peixe. Com o pavilhão vermelho arriado, só a bandeira americana pendia imóvel da popa.
Distante alguns metros do barco, a paravana vermelha em forma de torpedo, com cerca de dois metros de comprimento, flutuava tranquilamente na água, agora verde-mar ao primeiro amanhecer. Estava ligada a uma grossa pilha de cabos metálicos, enrolados no convés da popa. Parecia a Bond que eles deveriam ter uns bons cinquenta metros. A água estava cristalina e não havia peixes rondando por perto.
O vento Papa-Defunto morria aos poucos. Dentro em breve o vento Médico começaria a soprar vindo do mar. Dentro de quanto tempo?, perguntou-se Bond. Seria um presságio?
Ao longe, além do barco, ele conseguia avistar o teto de Beau Desert entre as árvores, mas o molhe, o barco e a trilha no penhasco ainda estavam mergulhados em profunda sombra. Bond pensou se os binóculos de visão noturna conseguiriam vê-los. Se pudessem, o que pensaria Strangways?
No molhe, Mr. Big supervisionava a tarefa de amarrá-los.
“Tire a roupa dela”, ordenou ao guarda.
Bond se encolheu. Deu uma olhada de relance para o relógio de pulso de Mr. Big. Nele, faltavam dez minutos para as seis. Bond manteve silêncio. Não deveria haver nem um minuto de atraso.
“Jogue as roupas a bordo”, disse Mr. Big. “Amarre uns panos no ombro dele. Não quero que haja sangue na água ainda.”
As roupas de Solitaire foram cortadas a faca. Ela permaneceu ali, nua e pálida. Abaixou a cabeça e seus cabelos pesados caíram para a frente, tapando seu rosto. O ombro de Bond foi atado grosseiramente com tiras do seu vestido de linho.
“Canalha”, desabafou Bond, de dentes cerrados.
Sob a direção de Mr. Big, primeiro soltaram as mãos dos dois. Seus corpos foram atados frente a frente, e seus braços passados pela cintura um do outro, e depois novamente atados com força.
Bond sentiu a pressão dos seios macios de Solitaire. Ela encostou o queixo no ombro direito dele.
“Eu não queria que fosse assim”, sussurrou, trêmula.
Bond não respondeu. Mal sentia o corpo dela. Contava os segundos.
No molhe havia uma corda enovelada que ia até a paravana. Mergulhava na água e Bond a distinguia seguindo no fundo de areia até surgir de encontro à barriga do torpedo vermelho.
Sua extremidade solta foi passada debaixo das axilas de Bond e Solitaire, e bem amarrada com um nó que ficava no espaço entre seus pescoços. Tudo feito com muito cuidado. Não havia possibilidade de fuga.
Bond contava os segundos. De acordo com ele, faltavam cinco para as seis.
Mr. Big deu uma última olhada nos dois.
“Deixem as pernas soltas”, comentou. “Dão uma isca apetitosa.” Deixou o molhe e embarcou no convés do iate.
Os dois guardas também embarcaram. Depois de soltarem as guias, os dois sujeitos no molhe os seguiram. As hélices revolveram a água mansa e, com os motores a meia velocidade, o Secatur se afastou rapidamente da ilha.
Mr. Big foi para a popa, sentando-se na cadeira de pesca. Podiam ver o seu olhar fixo neles. Não disse nada. Não fez gesto algum. Apenas contemplava.
O Secatur cortava a água em direção ao recife. Bond podia ver o cabo da paravana se desenrolando no costado. A paravana começou a se mover lentamente atrás do barco. De repente mergulhou o nariz, endireitou-se e disparou, com o leme se dobrando na direção contrária à esteira do barco.
O rolo de corda ao lado deles deu um súbito sinal de vida.
“Cuidado”, avisou Bond, com urgência, agarrando-se com mais força à garota.
Seus braços quase se desconjuntaram com o solavanco do puxão, quando caíram do molhe no mar.
Por um instante ambos submergiram, depois voltaram à tona, com seus corpos unidos rasgando a água.
Bond procurava respirar em meio às ondas e aos borrifos que passavam depressa por ele, inundando sua boca retorcida. Podia ouvir a respiração entrecortada de Solitaire ao lado do seu ouvido.
“Respire, respire”, gritou, através da avalanche de água. “Prenda suas pernas nas minhas.”
Ela ouviu-o e ele sentiu entre as coxas a pressão dos joelhos dela. Solitaire teve um acesso de tosse. Em seguida, a respiração dela tornou-se mais regular junto ao seu ouvido e as batidas do coração da mulher acalmaram-se contra o seu peito. Ao mesmo tempo, a velocidade em que eram rebocados sofreu uma redução.
“Prenda a respiração”, gritou Bond. “Preciso dar uma olhada. Pronta?”
Ela respondeu com uma pressão dos braços. Ele sentiu o peito dela inflar quando seus pulmões se encheram de ar.
Usando o peso do corpo, girou-a para baixo, de maneira que a cabeça dele agora estava totalmente fora d’água.
Cortavam o mar a cerca de três nós. Dobrou a cabeça acima da pequena marola que faziam.
O Secatur entraria na passagem entre os recifes dentro de aproximadamente oitenta metros, segundo calculou. A paravana deslizava lentamente, quase em ângulo reto em relação ao barco. Faltavam trinta metros para o torpedo vermelho atravessar as águas encrespadas sobre o recife. Trinta metros atrás da paravana, eles navegavam devagar na superfície da baía.
Sessenta metros até o recife.
Bond girou o corpo e Solitaire emergiu, ofegante.
Continuaram a avançar lentamente na água.
Cinco metros, dez, quinze, vinte...
Apenas quarenta metros para atingirem o banco de coral.
O Secatur deveria ter acabado de transpô-lo. Bond recuperou o fôlego. Já devia passar das seis. Que teria acontecido com a porcaria da mina? Bond fez uma rápida e fervorosa oração. Que Deus nos salve, disse dentro d’água.
De repente sentiu que a corda apertava sob seus braços.
“Respire, Solitaire, respire”, gritou quando retomaram a velocidade e a água começou a passar sibilante por eles.
Agora voavam pelo mar em direção ao recife submerso.
Houve uma ligeira diminuição de velocidade. Bond imaginou que a paravana tivesse batido em uma pedra ou algum coral na superfície. Em seguida, seus corpos voltaram a disparar no seu abraço mortal.
Faltavam trinta metros, vinte, dez...
Meu Deus, pensou Bond. Não escaparemos. Contraiu os músculos para enfrentar a dor lancinante do impacto, empurrando Solitaire mais para cima, para protegê-la do pior.
De repente o ar fugiu com um chiado de seus pulmões, e um punho gigantesco socou-o contra Solitaire, de modo que ela se ergueu totalmente fora do mar e voltou a cair. Uma fração de segundo depois, um clarão iluminou o céu e ouviu-se o ribombar de uma explosão.
Estacaram de repente, e Bond percebeu que o peso da corda solta os puxava para baixo.
Suas pernas afundaram sob seu corpo atordoado e a água inundou sua boca.
Foi o que o fez recuperar a consciência. As pernas dele se debateram no fundo, voltando a trazer suas bocas até a tona. A garota era um peso morto em seus braços. Ele revolvia a água em desespero e olhava à sua volta, segurando a cabeça desmaiada de Solitaire em seu ombro, acima da superfície.
A primeira coisa que viu foram as águas revoltas do recife, a não mais de cinco metros de distância. Sem a sua proteção, ambos teriam sido esmagados pelo impacto da explosão. Ele sentiu o repuxo e o rodamoinho da correnteza em volta das pedras. Avançou desesperado em direção a ele, aspirando golfadas de ar sempre que possível. Seu peito ardia com o esforço e ele via o céu através de uma película vermelha. A corda o puxava para baixo e o cabelo da garota enchia sua boca, quase o sufocando.
De repente sentiu um arranhão agudo do coral contra a parte de trás das pernas. Chutou-as procurando desesperadamente um apoio para os pés, esfolando a pele a cada movimento.
Mal sentia dor.
Agora eram seus braços e suas costas que estavam sendo arranhados. Tropeçou, desajeitado, com os pulmões ardendo no peito. Em seguida sentiu uma camada de agulhas sob os pés. Arriou o peso nela, inclinando-se para trás para resistir à forte correnteza que procurava desalojá-lo. Seus pés resistiram e havia rocha às suas costas. Inclinou-se para trás, ofegante, com o sangue escorrendo em volta dele na água, segurando contra si o corpo frio da garota, que mal respirava.
Descansou por um minuto, com gratidão, olhos fechados e o sangue pulsando nas veias, tossindo dolorosamente, à espera de que seus sentidos se reanimassem. Seu primeiro pensamento foi em relação ao sangue na água à sua volta. Mas desconfiou de que os grandes peixes não se aventuravam até o recife. Aliás, não havia nada que ele pudesse fazer quanto a isso.
Em seguida, olhou para o mar.
Não havia sinal algum do Secatur.
No alto do céu tranquilo via-se um cogumelo de fumaça, que o vento Médico começava a arrastar em direção à terra.
Havia destroços espalhados sobre toda a extensão do mar e cabeças que subiam e desciam. A água estava toda coalhada com as barrigas brancas dos peixes atordoados ou mortos pela explosão. Um cheiro forte de explosivo pairava no ar. Na orla dos destroços a paravana vermelha jazia tranquila com o casco para baixo, ancorada pelo cabo cuja outra ponta deveria se encontrar em algum lugar no fundo. Colunas de bolhas emergiam na superfície vítrea do mar.
Na beira do círculo de peixes mortos e cabeças balouçantes, algumas barbatanas triangulares cortavam rápido o mar. Mais delas surgiram enquanto Bond observava. Em uma ocasião viu um grande focinho surgir da água e abocanhar alguma coisa. As barbatanas espirravam água ao chapinhar entre os escolhos. Dois braços negros se ergueram de repente no ar, desaparecendo em seguida. Ouviram-se gritos. Algumas pessoas davam braçadas agitadas no mar em direção ao recife. Alguém parou para bater na água diante dele com a mão espalmada. Depois as mãos desapareceram sob a superfície. Ouviram-se os gritos de quando seu corpo foi sacudido para lá e para cá dentro d’água. Uma barracuda o devorando, disse Bond consigo mesmo, atordoado.
Mais uma cabeça se aproximava, procurando chegar ao ponto do recife onde estava Bond, pequenas ondas quebrando sob suas axilas, e o cabelo preto da garota caído nas suas costas.
Era uma cabeça grande. Uma cortina de sangue escorria pelo seu rosto, de um ferimento no crânio imenso e calvo.
Bond observava a sua aproximação.
Big Man executava um nado de peito desajeitado, fazendo tanto espalhafato na água que era capaz de atrair qualquer peixe que já não estivesse ocupado.
Bond perguntou a si mesmo se ele conseguiria chegar. Seus olhos se estreitaram e sua respiração se acalmou, contemplando e esperando a decisão que o mar cruel tomaria.
A cabeça se aproximava. Bond podia ver os dentes à mostra em uma contração de agonia e de esforço titânico. O sangue tapava os olhos que Bond sabia estarem esbugalhados. Podia quase ouvir o grande coração doente batendo debaixo da pele preta acinzentada. Pararia antes que a isca fosse abocanhada?
Big Man continuava a vir. Os ombros estavam nus, as roupas haviam sido arrancadas pela explosão, imaginou Bond, porém, a gravata de seda preta resistira e aparecia em volta do pescoço grosso, arrastada atrás da cabeça como um rabicho de chinês.
Um borrifo de água limpou um pouco do sangue de seus olhos. Estavam arregalados, olhando desvairados para Bond. Neles não havia nenhuma súplica, somente o olhar fixo da exaustão física.
No instante mesmo em que Bond os contemplava, agora a apenas dez metros, fecharam-se de repente e o grande rosto se contorceu em uma careta de dor.
“Aarrh”, gritou a boca retorcida.
Os dois braços pararam de bater na água e a cabeça afundou e voltou à tona de novo. Uma nuvem de sangue escureceu o mar. Duas sombras esguias e marrons de três metros se afastaram da nuvem e, em seguida, voltaram rápido para ela. O corpo na água foi sacudido de lado. Metade do braço de Big Man surgiu à tona. Sem mão, sem pulso, nem relógio.
Mas a grande cabeça de nabo, a boca arreganhada cheia de dentes brancos que quase a dividiam ao meio, ainda estava viva. E agora berrava. Um grande berro gorgolejante que só dava quando alguma barracuda abocanhava seu corpo.
Ouviu-se um grito distante na baía, atrás de Bond. Mas ele não prestou atenção. Todos os seus sentidos estavam concentrados na cena horripilante no mar diante dele.
Uma barbatana rasgou a superfície a alguns metros de distância e parou.
Bond pôde ver o tubarão apontando o focinho como um cachorro, com os olhos míopes, rosados e redondos, tentando penetrar a nuvem de sangue e avaliar a presa. Então arremeteu contra o torso, e a cabeça que gritava afundou tão rápido quanto um peso de chumbo.
Algumas bolhas estouraram na superfície.
Houve um rodamoinho causado pela cauda manchada de marrom de um grande tubarão-leopardo, que recuou para engolir e para atacar de novo.
A cabeça voltou a flutuar. A boca estava fechada. Os olhos amarelos pareciam ainda se fixar em Bond.
O focinho do tubarão saiu da água e avançou para a cabeça, com a mandíbula inferior aberta e a luz brilhando em seus dentes. Houve um rangido horrível de osso triturado e um rodamoinho. Depois, o silêncio.
Os olhos dilatados de Bond continuaram a mirar a mancha marrom que cada vez mais se espalhava no mar.
A garota deu um gemido e Bond recuperou a lucidez.
Ouviu-se outro grito atrás dele e Bond virou a cabeça para a baía.
Era Quarrel, seu peito moreno e luzidio avultando sobre o casco esguio da canoa, com os braços trabalhando o remo, seguido, a uma longa distância, por todas as outras canoas da baía dos Tubarões deslizando sobre as pequenas ondas que haviam começado a encrespar a superfície.
Os ventos elísios do nordeste haviam começado a soprar e o sol brilhava na água azul e nos doces flancos verdes da Jamaica.
As primeiras lágrimas que brotaram dos olhos azuis-acinzentados de James Bond desde a sua infância escorreram pelo seu rosto contraído, caindo no mar manchado de sangue.
23.
LICENÇA PAIXÃO
Como dois pingentes de esmeralda, dois beija-flores faziam a última ronda pelos hibiscos. Um tordo começara sua cantoria vespertina, mais doce que a do rouxinol, em cima de um arbusto perfumado de jasmim da noite.
A sombra irregular de uma fragata deslizou por cima do gramado verde, enquanto planava nas correntes de ar que subiam a costa até alguma distante colônia, e o martim-pescador azul-acinzentado chilreou, irritado, ao ver o homem sentado em uma cadeira no jardim. Mudou a direção do voo e guinou, atravessando o mar, até a ilha. Uma borboleta sulfurina flertava entre as sombras roxas das palmeiras.
O mar de variados tons de azul da baía estava bastante calmo. Os penhascos da ilha eram de um rosa profundo, à luz do sol que se punha atrás da casa.
Havia um cheiro de entardecer e de frescor depois do calor do dia, e um leve perfume de farinha de mandioca torrada vindo das cabanas de pescadores, no povoado à direita, a distância.
Solitaire saiu da casa de pés descalços e atravessou o gramado. Carregava uma bandeja com uma coqueteleira e dois copos. Colocou-a na mesa de bambu ao lado da cadeira de Bond.
“Espero ter feito direito”, comentou. “Seis partes para uma parece terrivelmente forte. Nunca tomei martíni de vodca.”
Bond olhou para ela. Vestia um de seus pijamas brancos de seda. Eram demasiado grandes. Parecia absurdamente infantil.
Ela riu. “O que acha de meu batom de Port Maria?”, perguntou. “E as sobrancelhas delineadas com lápis HB? Não consegui fazer mais nada para me ajeitar, além de tomar banho.”
“Está uma maravilha”, disse Bond. “Você é de longe a garota mais bonita da baía dos Tubarões. Se eu tivesse pernas e braços, me levantaria para lhe dar um beijo.”
Solitaire se inclinou e lhe deu um longo beijo na boca, com o braço apertado em volta de seu pescoço. Levantou-se e afastou a mecha curva de cabelos sobre a testa dele.
Olharam um para o outro. Em seguida, ela virou para a mesa e lhe serviu um coquetel. Despejou meio copo para si e sentou no gramado quente, com a cabeça contra o joelho de Bond. Ele brincou com a mão direita entre os cabelos dela e ficaram um instante sentados, olhando o mar entre as palmeiras e a luz que declinava na ilha.
O dia fora dedicado a lamber as feridas e ajeitar o que sobrara da confusão.
Quando Quarrel desembarcara com eles na pequena praia de Beau Desert, Bond carregara Solitaire pelo gramado até o banheiro. Enchera a banheira de água quente. Sem que ela soubesse o que estava acontecendo, ele ensaboara e lavara todo seu corpo e seus cabelos. Depois de tirar todo o sal e musgo do coral, ajudou-a a sair, secou-a e botou mertiolato nos cortes de coral que marcavam suas costas e suas coxas. Depois lhe deu um comprimido para dormir e colocou-a nua entre os lençóis de sua própria cama. Beijou-a. Antes de fechar as venezianas, ela já dormia.
Entrou no banheiro e Strangways o ensaboou. Depois quase o banhou em mertiolato. Sangrava e estava esfolado em centenas de lugares, com o braço esquerdo dormente por causa da mordida da barracuda. Perdera um bocado de músculo do ombro. A ardência do mertiolato fez com que trincasse os dentes. Vestiu um roupão e Quarrel o levou ao hospital em Port Maria.
Antes de partir, tomou um café da manhã reforçado e fumou um bendito cigarro. Dormiu no carro, dormiu na mesa de operações e na cama onde finalmente o puseram, como uma massa de ataduras e esparadrapo cirúrgico.
Quarrel trouxe-o de volta no começo da tarde. A essa altura Strangways já agira de acordo com as instruções que Bond lhe dera. Mandaram um destacamento de polícia para a ilha da Surpresa. Os destroços do Secatur, a trinta e seis metros de profundidade, receberam uma boia de sinalização, que passou a ser patrulhada pela lancha da alfândega de Port Maria. O rebocador de salvamento e os mergulhadores estavam a caminho a partir de Kingston. Os repórteres da imprensa local tinham recebido uma breve declaração, e havia policiais em guarda na entrada de Beau Desert, para conter a avalanche de repórteres que chegariam à Jamaica, depois que toda a história corresse o mundo. Enquanto isso, um relatório completo fora enviado a M e a Washington, de modo que o bando de Big Man no Harlem e em St. Petersburg pudesse ser preso provisoriamente sob a acusação preventiva de contrabando de ouro.
Não houve sobreviventes do Secatur, mas os pescadores locais trouxeram quase uma tonelada de peixes mortos naquela manhã.
A Jamaica estava fervilhando de boatos. Fileiras de carros paravam, lado a lado, nos penhascos acima da baía e ao longo da praia embaixo. Espalhara-se a notícia do tesouro de Morgan, o Sanguinário, porém, o bando de tubarões e barracudas também o protegia. Por causa deles não havia nadador que arriscasse ir até a cena do naufrágio na calada da noite.
Veio um médico visitar Solitaire. Ele encontrou-a preocupada principalmente em arranjar roupas e o batom no tom certo. Strangways encomendara uma amostra completa deles de Kingston, que chegaria no dia seguinte. Por enquanto, ela fazia experiências com o conteúdo da valise de Bond e uma tigela de hibiscos.
Strangways voltou de Kingston após a saída de Bond do hospital. Trouxe um telegrama cifrado de M para Bond, no qual se lia:
SUPONHO REIVINDICOU TESOURO EM SEU NOME REPRESENTANDO UNIVERSAL EXPORT PONTO PROSSIGA IMEDIATAMENTE SALVAMENTO PONTO CONTRATEI ADVOGADO DEFENDER DIREITOS JUNTO TESOURO E MINISTÉRIO COLÔNIAS PONTO ENQUANTO ISSO PARABÉNS PONTO CONCEDIDA LICENÇA PAIXÃO QUINZE DIAS PONTO FINAL
“Suponho que ele queira dizer ‘compaixão’”, comentou Bond.
Strangways tinha um aspecto solene. “Acho que sim”, respondeu. “Fiz um relatório completo dos danos que você sofreu. E a garota também”, acrescentou.
“Hmm”, disse Bond. “As expressões cifradas geralmente são precisas. Mesmo assim.”
Strangways olhou propositalmente pela janela, reprimindo um sorriso.
“Bem típico da velha raposa, pensar primeiro no ouro”, comentou Bond. “Suponho que ele ache que conseguirá obter o que quer, descobrindo um modo de contornar a redução da verba secreta quando houver nova reunião do Parlamento para avaliá-la. Creio que passa metade de sua vida brigando com o Tesouro. Mesmo assim, está muito errado se pensa que conseguirá.”
“Dei entrada na sua reivindicação na sede do governo, assim que recebi a mensagem”, relatou Strangways. “Mas será difícil. A Coroa virá atrás do tesouro e a América entrará nisso de alguma forma, porque Big Man era cidadão americano. Vai dar pano pra manga.”
Haviam conversado mais um pouco e depois Strangways partira. Bond caminhara cheio de dores até o jardim, para se sentar um pouco ao sol, sozinho com seus pensamentos.
Recapitulou a série de riscos que correra na sua longa busca por Big Man e pelo tesouro fabuloso, revivendo os episódios em que enfrentara a morte cara a cara.
Agora terminara e ele estava sentado ao sol, entre as flores, com a recompensa aos seus pés e sua mão entre os longos cabelos pretos dela. Agarrou bem aquele instante e pensou nos catorze dias seguintes que lhes pertenceriam.
Ouviram-se um barulho de louça quebrada na cozinha, nos fundos da casa, e o som da voz de Quarrel praguejando contra alguém.
“Pobre Quarrel”, disse Solitaire. “Arranjou a melhor cozinheira do povoado e varreu os mercados atrás de surpresas para nós. Chegou a encontrar caranguejos negros, os primeiros da época. Depois passou a assar o pobrezinho de um leitão ainda mamando e a fazer uma salada de abacate, para terminar com goiabas e manjar de coco. E o Comandante Strangways deixou uma caixa do melhor champanhe da Jamaica. Já estou com água na boca. Mas não se esqueça de que deve ser segredo. Cheguei de surpresa na cozinha e ele quase fez a cozinheira chorar.”
“Virá com a gente na nossa licença paixão”, disse Bond. Contou-lhe sobre o telegrama de M. “Vamos para uma casa sobre estacas, com palmeiras e oito quilômetros de areia dourada. E você terá de cuidar de mim muito bem, porque não poderei fazer amor com um braço só.”
Havia uma sensualidade óbvia no olhar de Solitaire, quando ela o ergueu para ele, sorrindo inocentemente.
“E eu com as minhas costas?”, disse ela.
16.
O LADO JAMAICANO
Eram duas horas da madrugada. Bond tirou o carro de junto da amurada e atravessou a cidade até pegar a 4th Street, a rodovia para Tampa.
Seguiu despreocupado pelas quatro pistas cimentadas da rodovia, atravessando o infindável corredor polonês de motéis, campings e lojas de beira de estrada, que vendiam mobília de praia e gnomos de concreto.
Parou no Gulf Winds Bar and Snacks e pediu um Old Grandad duplo com gelo. Enquanto o barman o servia, foi ao banheiro se limpar. As ataduras na mão esquerda estavam cobertas de sujeira e a mão latejava dolorosamente. A tala quebrara na barriga do Ladrão. Não havia nada que ele pudesse fazer. Os olhos estavam vermelhos de tensão e falta de sono. Foi até o bar, bebeu o Bourbon e pediu outro. O barman parecia um desses universitários que custeavam as próprias férias trabalhando duro. Estava a fim de conversar, mas em Bond não restara nenhuma vontade de falar. Ficou sentado, olhando o copo, pensando em Leiter e no Ladrão, e ouvindo o grunhido repugnante do tubarão devorando a presa.
Pagou, saiu e atravessou de novo a Gandy Bridge, com o ar fresco da baía lhe batendo no rosto. No final da ponte, virou à esquerda em direção ao aeroporto e parou no primeiro motel que parecia aberto.
O casal de proprietários de meia-idade ouvia um programa cubano de rumbas na madrugada, com uma garrafa de Rye entre eles. Bond contou uma história sobre um pneu furado entre Sarasota e Silver Springs. Não estavam interessados. Queriam apenas os seus dez dólares. Bond levou o carro até o quarto 5, o sujeito abriu a porta e acendeu as luzes. Havia uma cama de casal, um banheiro com chuveiro e duas cadeiras. O branco e o azul davam o tom nas paredes. Parecia limpo e Bond colocou a sacola no chão com um sentimento de gratidão, ao se despedir do dia. Despiu-se, jogou as roupas sem dobrar em uma cadeira. Em seguida tomou uma rápida chuveirada, escovou os dentes, gargarejou com um dentifrício forte e entrou na cama.
Mergulhou logo em um sono tranquilo. Era a primeira noite, desde que chegara à América, em que não se sentia ameaçado por uma nova batalha contra o destino na manhã seguinte.
Acordou ao meio-dia e caminhou pela estrada até uma cafeteria, onde o cozinheiro lhe preparou no balcão um delicioso sanduíche de três andares, que ele comeu enquanto tomava café. Em seguida, voltou ao quarto e escreveu um relatório minucioso ao FBI em Tampa. Omitiu todas as referências ao ouro nos tanques de peixes venenosos, com medo de que Big Man encerrasse os negócios na Jamaica. Eles ainda precisavam ser investigados. Bond sabia que os danos que ele provocara na máquina de Big Man na América não mudavam nada o objetivo principal de sua missão — a descoberta da fonte do ouro, sua captura e a destruição, se possível, do próprio Mr. Big.
Foi de carro até o aeroporto e pegou o quadrimotor prateado, faltando apenas poucos minutos para a partida. Deixou o carro de Leiter no estacionamento, conforme dissera no seu relatório ao FBI. Pensou que fora algo desnecessário, quando avistou um sujeito vestindo uma capa esdrúxula, à toa em uma loja de lembranças. As capas de chuva pareciam ser praticamente o uniforme do FBI. Bond estava certo de que queriam ter certeza de que ele pegaria o avião. Ficariam satisfeitos de vê-lo pelas costas. Por onde passara na América, deixara um rastro de cadáveres. Antes de embarcar no avião, ligou para o hospital em St. Petersburg. Arrependeu-se. Leiter ainda estava inconsciente e não tinham prognósticos. Sim, ligariam de volta quando tivessem alguma notícia definitiva.
Eram cinco da tarde quando o avião circulou sobre Tampa Bay, rumo ao leste. O sol estava baixo no horizonte. Um grande jato vindo de Pensacola passou ventando, bem a bombordo, deixando quatro rastros de vapor pairando quase imóveis no ar parado. Em breve o voo de reconhecimento terminaria e ele voltaria para pousar na costa do Golfo, cheia de idosos com camisetas estampadas. Bond se alegrava de estar a caminho das doces encostas verdes do litoral da Jamaica, deixando para trás o grande e rijo continente de Eldollarado.
O avião avançava, atravessando a cintura da Flórida, os hectares de floresta e de mangue sem nenhum sinal de habitantes humanos, com suas luzes da asa piscando, verdes e vermelhas, na escuridão que chegava. Em breve sobrevoavam Miami e as monstruosas arapucas para otários da costa oriental, cujas artérias brilhavam, entupidas de néon. Longe, a bombordo, a rodovia estadual nº 1 sumia subindo o litoral, uma fita dourada de motéis, postos de gasolina e barracas de suco de frutas, passando por Palm Beach, Daytona e Jacksonville, a quatrocentos e cinquenta quilômetros. Bond pensou no café da manhã que tomara em Jacksonville, por volta de três dias antes, e em tudo o que acontecera depois. Dentro em breve, após uma curta parada em Nassau, sobrevoaria Cuba, talvez sobre o esconderijo em que Mr. Big ocultara Solitaire. Ela ouviria o barulho do avião e talvez sua intuição a fizesse olhar para cima e sentir, por um instante, que ele estava próximo.
Bond ficou pensando se jamais se encontrariam de novo para acabar o que haviam começado. Mas isso teria de vir mais tarde, quando seu trabalho estivesse terminado — o prêmio de um itinerário perigoso que começara três semanas antes, em meio ao nevoeiro de Londres.
Depois de um coquetel e um jantar cedo, chegaram a Nassau e passaram meia hora na ilha mais rica do mundo, aquela faixa arenosa onde milhões e milhões de libras esterlinas são enterradas com grande susto nas mesas de canastra, e onde bangalôs, cercados de uma parede fina de pinheiros e casuarinas, trocam de mãos por cinquenta mil libras.
Deixaram para trás a escala rápida na ilha de platina, e em breve sobrevoavam as madrepérolas cintilantes das luzes de Havana, tão diferentes, em seus modestos tons pastel, das berrantes cores primárias das cidades americanas à noite.
Voavam a cinco mil metros quando, logo depois de passar por Cuba, encontraram uma daquelas tempestades tropicais que de repente fazem com que as aeronaves se transformem, de confortáveis salas de estar, em armadilhas mortíferas sacolejantes. O grande avião cambaleou e deu um mergulho, com as hélices ora roncando no vácuo, ora mordendo com força os paredões compactos de ar. O cilindro esguio de metal estremecia e balançava. A louça se espatifava na copa, e a chuva forte martelava as vidraças.
Bond agarrou os braços da poltrona, provocando dor na mão esquerda, praguejando baixinho consigo mesmo.
Olhou para as prateleiras das revistas e pensou: não serão de muita utilidade quando o aço acusar fadiga, a cinco mil metros de altitude, nem a água de colônia no banheiro, as refeições personalizadas, o barbeador gratuito, a “orquídea para sua senhora” agora trêmula na geladeira. Muito menos os cintos de segurança e os coletes salva-vidas, com o apito que realmente apita, segundo a demonstração da aeromoça, nem a luz de resgate engraçadinha que emite um brilho vermelho.
Não. Quando as tensões se tornam excessivas no metal fatigado, quando o mecânico de manutenção que testa o equipamento de descongelamento está apaixonado e faz mal o serviço, lá em Londres, Idlewild, Gander, Montreal; quando essas ou muitas outras coisas acontecem, então a pequena sala aquecida, com hélices na frente, cai como uma pedra do céu, na terra ou no mar, mais pesada que o ar, falível, imprestável. E as quarenta pessoas mais pesadas que o ar, frágeis dentro da fragilidade do avião, desamparadas dentro do desamparo maior do avião, despencam com ele, abrindo pequenos buracos na terra, ou espirrando água no mar. De qualquer modo, é o destino, então por que se preocupar? As pessoas estão conectadas aos dedos descuidados do mecânico de manutenção em Nassau, do mesmo modo que estão conectadas ao homenzinho no sedã da família, que confunde o sinal verde com o vermelho e bate de frente, pela primeira e última vez, na pessoa que dirigia tranquilamente para casa depois de um programa clandestino. Não se pode fazer nada. Começamos a morrer desde o dia em que nascemos. A vida inteira é um jogo de cartas com a morte. Por isso tenha calma. Acenda um cigarro e seja grato por ainda estar vivo, enquanto traga a fumaça profundamente nos seus pulmões. Nosso destino já permitiu que percorrêssemos um longo caminho desde que abandonamos o útero da mãe e choramingamos ao contato com o ar frio do mundo. Talvez ele até permita que cheguemos à Jamaica esta noite. Não está escutando as vozes animadas da torre de controle que passaram o dia falando, tranquilas: “Pode pousar, BOAC. Pode pousar, Panam. Pode pousar, KLM”? Não as escuta também nos chamando: “Pode pousar, Transcarib. Pode pousar, Transcarib”? Não perca a fé no destino. Lembre aquele momento terrível em que enfrentou a morte diante da arma do Ladrão, na noite passada. Ainda está vivo, não está? Pronto, já não corremos mais perigo. Isso foi só para lembrar que ser rápido no gatilho não quer dizer que você seja realmente forte. Não se esqueça. Este pouso feliz no Aeroporto Palisadoes é cortesia de seu destino. Melhor agradecer a ele.
Bond desatou o cinto de segurança e limpou o suor do rosto.
Ao diabo com tudo isso, pensou, ao desembarcar da aeronave enorme e resistente.
Strangways, o chefe do serviço secreto do Caribe, veio encontrá-lo no aeroporto, e assim ele passou depressa pela alfândega, imigração e fiscalização financeira.
Eram quase onze horas de uma noite quente, tranquila. Ouvia-se o som agudo dos grilos nas fileiras de cactos de ambos os lados da estrada do aeroporto, e Bond absorvia com gratidão os ruídos e os cheiros tropicais, enquanto a caminhonete militar atravessava a periferia de Kingston, em direção aos contrafortes cintilantes e enluarados das Montanhas Azuis.
Conversaram em monossílabos até se instalarem na varanda aconchegante da bela casa branca de Strangways, em Junction Road, abaixo de Stony Hill.
Strangways serviu um uísque com soda reforçado para os dois e, em seguida, fez um relato conciso de todo o lado jamaicano do problema.
Era um sujeito esguio e bem-humorado de mais ou menos trinta e cinco anos, ex-tenente e comandante da Seção Especial da Reserva Voluntária da Marinha Real. Tinha uma venda negra sobre um olho e o tipo de beleza aquilina associada à ponte de comando dos destróieres. Mas debaixo do bronzeado havia um rosto marcado, e Bond percebeu, pelos gestos rápidos e frases entrecortadas, seu ânimo nervoso e tenso. Era certamente eficiente, tinha senso de humor e não demonstrava nenhum sinal de ciúme diante de alguém que viera da matriz para se meter em seu território. Bond sentiu que se dariam bem, antecipando com prazer essa parceria.
Eis a história que Strangways tinha para contar.
Sempre circularam boatos sobre a presença de um tesouro na ilha da Surpresa, e tudo que se sabia sobre Morgan, o Sanguinário, confirmava essa suspeita.
A pequena ilha ficava no centro exato da baía dos Tubarões, um pequeno porto no final da Junction Road, que corre pela cintura fina da Jamaica, de Kingston à costa norte.
O grande bucaneiro fizera da baía dos Tubarões seu quartel-general. Gostava de ter toda a largura da ilha de permeio entre ele e o governador em Port Royal, de modo que pudesse sair e entrar nas águas jamaicanas em total segredo. O governador também gostava desse arranjo. A Coroa queria que ele fechasse os olhos à pirataria de Morgan até que os espanhóis fossem expulsos do Caribe. Quando isso ocorreu, Morgan foi recompensado com um título de nobreza e o posto de governador da Jamaica. Até então, suas ações tinham de ser repudiadas para evitar uma guerra contra a Espanha, na Europa.
No entanto, durante o longo período antes que a raposa recebesse a chave do galinheiro, Morgan utilizou a baía dos Tubarões como porto de partida para suas investidas. Construiu três casas na propriedade vizinha, denominada Llanrumney, em homenagem ao seu local de nascimento no País de Gales. Essas casas se chamavam “Casa de Morgan”, “Casa do Médico” e “Casa da Dama”. Ainda hoje se descobrem moedas e fivelas em suas ruínas.
O ancoradouro de seus navios sempre foi a baía dos Tubarões, e os reparos nas embarcações eram feitos, a sotavento, na ilha da Surpresa, um pedaço de coral e calcário acidentado que surge do centro da baía, encimado por um platô cheio de mato de cerca de meio hectare.
Quando partiu para sempre da Jamaica, em 1683, foi como preso, para ser julgado por seus pares por menosprezo à Coroa. Seu tesouro foi abandonado em algum lugar na Jamaica e ele morreu na miséria, sem revelar seu paradeiro. Deve ter sido um vasto butim, fruto de incontáveis investidas contra Hispaniola, da captura de inúmeros navios que levavam tesouros para La Plata, do saque do Panamá e da pilhagem de Maracaibo. Mas sumiu sem deixar vestígios.
Sempre se pensou que o segredo jazia em algum lugar da ilha da Surpresa, mas duzentos anos de mergulhos e de escavações da parte dos caçadores de tesouros não revelaram nada. Então, disse Strangways, há apenas seis meses, duas coisas aconteceram em poucas semanas. Um jovem pescador desapareceu do povoado da baía dos Tubarões e nunca mais se soube dele, e um sindicato anônimo de Nova York adquiriu a ilha por mil libras do atual proprietário de Llanrumney, agora uma próspera propriedade de cultivo de banana e de criação de gado.
Poucas semanas depois da venda, o iate Secatur chegara à baía dos Tubarões e fundeara no antigo ponto de ancoragem de Morgan, a sotavento da ilha. Veio com uma tripulação exclusivamente negra. Puseram-se a trabalhar, cavando uma escada na face do rochedo, construindo no topo uma série de cabanas baixas de taipa, ao estilo jamaicano.
Pareciam estar perfeitamente aprovisionados e só compravam peixe fresco e água dos pescadores da baía.
Era um pessoal ordeiro e taciturno, que não dava trabalho. Explicaram à alfândega da vizinha Santa Maria, que os havia liberado, que estavam ali para pescar peixes tropicais, especialmente as variedades venenosas, e coletar conchas para a Ourobouros Inc, de St. Petersburg. Depois que se estabeleceram, compraram grandes quantidades deles dos pescadores da baía dos Tubarões, Port Maria e Oracabessa.
Durante uma semana realizaram explosões na ilha, dizendo que era para a escavação de um grande tanque de peixes.
O Secatur começou a fazer uma rota quinzenal para o Golfo do México, e observadores com binóculos confirmaram que, antes de zarpar, sempre embarcavam tanques portáteis de peixe. Meia dúzia de homens era deixada para trás. Quaisquer canoas que se aproximassem da ilha recebiam ameaças de um guarda, na base da escadaria no rochedo, que ficava o dia inteiro pescando em um molhe estreito onde o Secatur atracava, preso a duas âncoras no mar, bem abrigado dos ventos nordeste.
Jamais alguém conseguiu desembarcar na ilha de dia e, depois de duas tentativas trágicas, ninguém voltou a tentar um desembarque noturno.
A primeira tentativa foi a de um pescador local, instigado pelos boatos de um tesouro enterrado que nenhuma conversa sobre peixes tropicais podia abafar. Partiu a nado uma noite e seu corpo fora devolvido pelo mar, por cima do recife, no dia seguinte. Os tubarões e as barracudas só deixaram o torso e um pedaço da coxa.
Mais ou menos na hora em que ele deveria chegar à ilha, toda a aldeia da baía dos Tubarões foi acordada pelo batuque mais terrível. Parecia vir do interior da ilha. Reconheceram-no como um batuque do vodu. Começou tranquilo e foi em um crescendo trovejante. Depois baixou novamente e parou. Durou cerca de cinco minutos.
Desde aquele momento a ilha se tornou ju-ju, ou obeah, como se diz na Jamaica, e, mesmo à luz do dia, as canoas ficam a uma distância segura.
A essa altura, Strangways teve seu interesse despertado e fez um relatório completo a Londres. Desde 1950, a Jamaica se tornara um alvo estratégico importante, graças à exploração, pela Reynolds Metal e pela Kaiser Corporation, de enormes depósitos de bauxita encontrados na ilha. Na opinião de Strangways, as atividades na ilha da Surpresa bem poderiam estar ligadas à construção de uma base de submarinos de um só tripulante, prevendo uma situação de guerra, especialmente porque a baía dos Tubarões estava no âmbito da rota dos navios da Reynolds até o novo porto de embarque de bauxita de Ocho Ríos, alguns quilômetros costa abaixo.
Londres investigou, junto com Washington, com base no relatório, e veio à tona a informação de que o sindicato que comprara a ilha era inteiramente de propriedade de Mr. Big.
Isso há três meses. Strangways recebeu ordens de entrar na ilha de qualquer maneira e descobrir o que estava acontecendo. Montou uma operação e tanto. Alugou uma propriedade no braço ocidental da baía dos Tubarões, chamada Beau Desert, onde existem as ruínas de um dos famosos casarões jamaicanos do começo do século dezenove, e também uma casa de praia moderna bem em frente ao ancoradouro do Secatur na ilha da Surpresa.
Trouxe dois bons nadadores da base naval na Bermuda e organizou uma observação permanente da ilha através de binóculos diurnos e noturnos. Nada foi visto que parecesse suspeito e, em uma noite calma e escura, ele mandou os dois nadadores com ordens de fazer uma vistoria submarina das fundações da ilha.
Strangways contou o pavor que sentiu quando, uma hora depois de partirem a nado para atravessar os trezentos metros de mar, começou um terrível batuque em algum lugar dentro dos penhascos da ilha.
Naquela noite os dois não voltaram.
No dia seguinte, ambos apareceram na praia, em lugares diferentes da baía. Ou melhor, o que sobrou de seus corpos devorados pelos tubarões e barracudas.
Nesta altura da história de Strangways, Bond interrompeu-o.
“Um minuto só”, disse, “que história é essa de tubarões e barracudas? Geralmente eles não são agressivos nestas águas. Não existem muitos na Jamaica e raramente se alimentam de noite. Aliás, não creio que nenhum deles ataque seres humanos, a não ser que haja sangue na água. Podem dar uma mordida, uma vez ou outra, em algum pé branco, por curiosidade. Já houve notícias anteriores de comportamento assim na Jamaica?”
“Nunca houve outro caso, desde que uma garota teve o pé devorado em Kingston Harbour, em 1942”, disse Strangways. “Ela estava sendo rebocada por uma lancha, batendo os pés. Seus pés brancos devem ter parecido especialmente apetitosos. E, além disso, estavam viajando em uma velocidade que convidava ao ataque. Todo mundo concorda com sua teoria. E meus homens tinham arpões e facas. Achei que fizera de tudo para protegê-los. Foi algo medonho. Imagine só como me senti. Desde então não fizemos mais nada, exceto tentar legalizar o acesso à ilha através da Secretaria das Colônias e de Washington. Mas o proprietário é cidadão americano. Então o processo é penosamente lento, sobretudo porque não há nada contra essa gente. Parecem dispor de uma boa proteção em Washington e de alguns advogados muito bons em direito internacional. Estamos absolutamente emperrados. Londres me disse para esperar até que você viesse.” Strangways deu um gole no uísque e olhou para Bond com expectativa.
“Quais são os movimentos do Secatur?”, perguntou Bond.
“Ainda está em Cuba. Deve zarpar dentro de uma semana, de acordo com a CIA.”
“Quantas viagens fez?”
“Cerca de vinte.”
Bond multiplicou cento e cinquenta mil dólares por vinte. Se seus cálculos estivessem certos, Mr. Big já levara um milhão de libras em ouro da ilha.
“Fiz alguns arranjos provisórios para você”, disse Strangways. “Tem a casa em Beau Desert. Há um carro, Sunbeam Talbot, sedã. Pneus novos. Corre bem. Ideal para essas estradas. Arranjei um sujeito ótimo para ser seu faz-tudo. Um ilhéu das ilhas Cayman, chamado Quarrel. O melhor pescador e nadador do Caribe. Muito prestativo. Grande sujeito. E peguei emprestada a casa de repouso da West Indian Citrus Company na Baía Manatee. Fica na outra extremidade da ilha. Você podia descansar lá uma semana e se exercitar um pouco até a chegada do Secatur. Precisará estar em forma se quiser chegar à ilha da Surpresa, e acredito francamente que só isso nos dará a resposta. Tem mais alguma coisa que eu possa fazer? Estarei por aí, claro, mas preciso ficar em Kingston para manter a comunicação com Londres e Washington. Eles vão querer saber tudo que fizermos. Há mais alguma coisa que você gostaria que eu providenciasse?”
Bond estivera se decidindo.
“Sim”, respondeu. “Pode pedir a Londres que consiga junto ao Almirantado uma de suas roupas de mergulho, completa, com os cilindros de ar comprimido. E muitos sobressalentes. E um bom par de arpões. Os franceses, ‘Champion’, são os melhores. Uma boa lanterna subaquática. Uma faca de guerra dos comandos. Toda a informação que puderem arranjar no Museu de História Natural sobre tubarões e barracudas. E um pouco daquele repelente de tubarões que os americanos usaram no Pacífico. Peça à BOAC para trazer tudo pelo seu serviço direto.”
Bond fez uma pausa. “Ah, sim”, disse. “E uma daquelas coisas que nossos sabotadores costumavam usar contra os navios durante a guerra. Uma mina naval, com diversos detonadores.”
17.
O VENTO PAPA-DEFUNTO
Mamão com uma rodela de limão, um prato cheio de bananas avermelhadas, caimitos roxos, ovos mexidos com bacon, café Blue Mountain — o mais delicioso do mundo —, geleia de laranja jamaicana, quase preta, e geleia de goiaba.
Enquanto Bond, trajando shorts e sandálias, tomava café na varanda, contemplando o panorama ensolarado de Kingston e Port Royal, pensou que tinha sorte pela existência de momentos tão magníficos a compensar o perigo e o ambiente sombrio de sua profissão.
Bond conhecia bem a Jamaica. Estivera no país durante uma longa missão logo após a guerra, quando o quartel-general comunista em Cuba procurava infiltrar os sindicatos jamaicanos. Tinha sido um serviço malresolvido e inconcluso, mas ele aprendera a amar a grande ilha verde e seu povo alegre e leal. Agora estava contente por ter retornado e pela semana inteira de folga antes de recomeçar o trabalho duro.
Depois do café da manhã, Strangways surgiu na varanda com um sujeito alto de pele morena, trajando uma camisa azul desbotada e velhas calças de sarja marrons.
Era Quarrel, o ilhéu das ilhas Cayman, com quem Bond logo simpatizou. Tinha sangue dos soldados de Cromwell e de bucaneiros. Seu rosto era forte e anguloso, com uma boca quase severa e olhos cinzentos. Apenas o nariz achatado e as palmas das mãos descoradas eram negroides.
Bond apertou sua mão.
“Bom dia, capitão”, falou Quarrel. Vindo da raça de pescadores mais famosa do mundo, esse era o tratamento mais honroso que ele podia merecer. Mas não havia nenhum desejo de agradar, ou humildade, na sua voz. Falava como marujo, de maneira direta e franca.
Esse momento definiu o relacionamento deles. Parecia a relação entre um senhor de terras escocês e seu caçador-chefe; o reconhecimento subentendido da autoridade, sem espaço para qualquer servilismo.
Depois de discutirem seus planos, Bond pegou o volante do pequeno carro que Quarrel trouxera de Kingston e tomaram a Junction Road, deixando Strangways ocupado com os pedidos de Bond.
Partiram antes das nove e ainda estava fresco quando atravessaram as montanhas que se estendem pelo dorso da Jamaica como a parte dentada da couraça do crocodilo. A estrada descia serpenteando em direção às planícies do norte, através de um dos cenários mais bonitos do mundo, em que a vegetação tropical se modificava com a mudança de altitude. Os flancos verdes das serras, emplumados de bambus intercalados com o verde escuro e brilhoso da fruta-pão e a súbita explosão colorida do flamboyant, cediam lugar, mais para baixo, à floresta de ébano, mogno, hibiscos e pau-campeche. Quando chegaram às várzeas do vale de Agualta, o mar verde dos bananais e canaviais se espraiava até onde a orla afastada dos bosques de palmeiras brotava cintilante ao longo da costa norte.
Quarrel foi boa companhia no passeio e um guia maravilhoso. Falou sobre as aranhas que faziam suas casas na terra, encimadas por pequenos alçapões perfeitos, ao passarem pelos famosos jardins de palmeiras de Castleton. Contou que assistira a uma briga entre uma centopeia gigante e um escorpião e explicou a diferença entre o mamão-macho e o mamão-fêmea. Descreveu os venenos da mata e as propriedades medicinais das ervas tropicais, a pressão exercida pela noz para romper o coco, o comprimento da língua do beija-flor, a maneira como os crocodilos carregam os filhotes na boca, ao comprido, como sardinhas em lata.
Falava em termos precisos, mas sem conhecimento técnico, empregando o linguajar jamaicano em que as plantas são humanizadas, “se esforçam”, “desanimam”, “mariposas” são “morcegos” e “amar” é sempre usado no lugar de “gostar”. Enquanto falava, levantava a mão em um gesto de saudação para as pessoas na estrada, que também gesticulavam e gritavam seu nome.
“Você parece conhecer gente à beça”, comentou Bond, quando o motorista de um ônibus apinhado, com a palavra ROMANCE escrita em grandes letras em cima do para-brisa, saudou-o com dois toques de sua buzina de ar comprimido.
“Faz três meses que ando observando a ilha da Surpresa, capitão”, disse Quarrel, “e passando por esta estrada duas vezes por semana. Todo mundo fica logo conhecido na Jamaica. O pessoal tem vista boa.”
Às dez e meia já tinham passado Port Maria e enveredado por uma pequena estrada vicinal que levava à baía dos Tubarões. Ao fazer uma curva, se depararam com ela embaixo, e Bond parou o carro e saíram.
A baía tinha a forma de um crescente e talvez uns mil e duzentos metros de largura entre um pontal e outro. Sua superfície azul estava encrespada pela leve brisa que soprava do nordeste, vizinha dos ventos alísios que nasciam a oitocentos quilômetros, no Golfo do México, e de lá partiam para sua longa viagem em volta do mundo.
A um quilômetro e meio de onde estavam, uma longa arrebentação sinalizava o recife fora da baía e o estreito de águas calmas que era a única entrada para o ancoradouro. No meio do crescente, a ilha da Surpresa assomava com seus trinta e poucos metros acima do mar, orlada no seu lado leste pela espuma das pequenas ondas que quebravam, e por águas calmas a sotavento.
Era quase redonda, parecendo um bolo alto e cinzento encimado por uma camada verde de açúcar glacê, tudo sobre um prato de porcelana azul.
Haviam parado a cerca de trinta metros do pequeno amontoado de cabanas de pescadores, atrás da praia orlada de coqueiros, e estavam no mesmo nível que o topo plano e verde da ilha, a quatrocentos metros de distância. Quarrel mostrou os telhados de palha das cabanas de taipa no meio das árvores, no centro da ilha. Bond examinou-as através dos binóculos de Quarrel. Não havia nenhum sinal de vida, exceto por um magro fiapo de fumaça levado pela brisa.
Abaixo deles, a água da baía era verde-clara perto da areia branca. Em seguida, se aprofundava e ficava azul-escura antes do marrom intercalado da borda submersa de um recife interno, que formava um largo semicírculo a cem metros da ilha. Depois tornava-se novamente azul, com manchas de azul mais claro e verde-mar. Quarrel informou que a profundidade do ancoradouro do Secatur era de aproximadamente dez metros.
À esquerda, no meio do braço ocidental da baía, escondida entre as árvores e atrás de uma minúscula praia de areia branca, ficava sua base de operações, Beau Desert. Quarrel descreveu a disposição da casa e Bond permaneceu dez minutos examinando os trezentos metros de distância entre ela e o ancoradouro do Secatur, junto à ilha.
Ao todo, Bond passou uma hora fazendo o reconhecimento do local e depois, sem se aproximar da casa ou do povoado, viraram o carro e voltaram para a estrada principal ao longo da costa.
Seguiram de carro através do belo e pequeno porto de embarque de bananas de Oracabessa e de Ocho Ríos, com sua nova e enorme usina de extração de bauxita, seguindo a costa norte até a baía de Montego, a duas horas de distância. Era fevereiro, no auge da estação. A pequena aldeia e os grandes hotéis esparsos estavam mergulhados na corrida de ouro de quatro meses que os sustentava pelo resto do ano. Pararam em uma pousada do outro lado da ampla baía, onde almoçaram, para, em seguida, prosseguirem no calor da tarde até a ponta ocidental da ilha, depois de mais duas horas de viagem.
Ali, graças à presença dos enormes mangues costeiros, nada acontecera desde que Colombo usara a baía de Manatee como um ancoradouro ocasional. Os pescadores jamaicanos haviam tomado o local dos índios Arawak, mas, exceto isso, tinha-se a impressão de que o tempo havia parado.
Bond achou-a a praia mais bonita que já havia visto, oito quilômetros de areia branca descendo suavemente até as ondas e, atrás, a marcha desordenada, porém graciosa, das palmeiras rumo ao horizonte. Debaixo delas, as canoas cinza descansavam fora da água, ao lado de monturos rosados de conchas descartadas. Do meio do palmeiral subia a fumaça das palhoças dos pescadores, na sombra entre o mangue e o mar.
Em uma clareira entre as palhoças, construída sobre estacas em um gramado malcuidado de grama das Bahamas, ficava a casa de fim de semana dos trabalhadores da West Indian Citrus Company. Fora construída sobre estacas para evitar os cupins e era cuidadosamente telada contra mosquitos e borrachudos. Bond saiu da estrada irregular e estacionou sob a casa. Enquanto Quarrel escolhia e arrumava dois quartos, Bond enrolou uma toalha na cintura e caminhou entre as palmeiras até o mar, a vinte metros de distância.
Nadou e boiou preguiçosamente durante uma hora na água quente em que flutuava sem dificuldade, pensando na ilha da Surpresa e em seu segredo, fixando na mente aqueles trezentos metros, pensando nos tubarões e barracudas e demais perigos do mar, essa grande biblioteca cheia de livros que ainda não conseguimos ler.
Ao caminhar de volta para o pequeno chalé de madeira, Bond levou suas primeiras picadas de mosquito pólvora. Quarrel deu uma risada ao ver as mordidas empoladas nas suas costas, que em breve coçariam como o diabo.
“Não se pode fazer nada para nos livrar deles, capitão”, observou. “Mas posso parar essa coceira. Melhor tomar uma chuveirada, primeiro, para tirar o sal. Eles só mordem mesmo durante uma hora, ao entardecer, e gostam de sal no jantar.”
Quando Bond saiu do chuveiro, Quarrel apareceu com uma velha garrafa de remédio e passou um líquido marrom, que cheirava a creolina, nas mordidas.
“A gente tem mais mosquitos pólvora e borrachudos nas ilhas Cayman do que em qualquer outro lugar do mundo”, falou, “mas não nos incomodam desde que tenhamos este remédio”.
Os dez minutos de crepúsculo tropical trouxeram sua breve melancolia. Depois as estrelas e a lua em quarto crescente começaram a brilhar, e o mar se reduziu a um sussurro. Houve uma curta calmaria entre os dois grandes ventos da Jamaica e, em seguida, as palmeiras voltaram a murmurar.
Quarrel fez um gesto da cabeça em direção à janela.
“O vento Papa-Defunto”, comentou.
“Como assim?”, perguntou Bond, espantado.
“Vento terral, como dizem os marinheiros”, acrescentou Quarrel. “O Papa-Defunto sopra, expulsando o ar ruim da ilha durante a noite, das seis às seis da manhã. Em seguida, o ‘vento Médico’ chega, soprando o ar fresco do mar para a ilha. Pelo menos é assim que os chamamos na Jamaica.”
Quarrel olhou perplexo para Bond.
“Acho que Papa-Defunto e você têm praticamente a mesma tarefa, capitão”, comentou, meio brincando.
Bond deu uma breve risada. “Ainda bem que não preciso respeitar o mesmo horário”, respondeu.
Lá fora os grilos e as pererecas começaram a ciciar e coaxar, e as grandes mariposas forçavam as telas das janelas, onde se agarravam, olhando, em um êxtase agoniado, para as duas lamparinas a óleo penduradas em duas travessas dentro de casa.
Uma vez ou outra dois pescadores, ou um grupo de garotas aos risinhos, iam andando até a praia a caminho do único e pequeno bar na ponta da baía. Ninguém andava sozinho, com medo dos lobisomens sob as árvores, ou do garrote rolador, animal terrível que vinha de encontro às pessoas rolando pelo chão, com as pernas presas por correntes e botando fogo pelas ventas.
Enquanto Quarrel preparava uma refeição suculenta de peixe, ovos e legumes que haveria de se tornar a dieta regular de ambos, Bond sentou-se sob a luz e debruçou-se sobre os livros que Strangways pegara emprestado do Instituto Jamaicano. Livros sobre o mar tropical e seus habitantes, por Beebe e Allyn, e outros, sobre caça submarina, de Cousteau e Hass. Quando partisse para atravessar aqueles trezentos metros de mar, estava determinado a fazê-lo com todo o conhecimento possível, sem confiar no acaso. Conhecia a capacidade de Mr. Big e apostava que as defesas da ilha da Surpresa seriam tecnicamente brilhantes. Achou que não se resumiriam a explosivos e armas. Mr. Big precisava trabalhar sem ser incomodado pela polícia. Precisava permanecer fora do alcance da lei. Bond supunha que as forças do mar haviam sido, de certo modo, domesticadas para fazer o trabalho de Mr. Big, e era sobre essas que Bond se concentrava: o assassinato por meio de tubarões e barracudas, talvez polvos e jamantas.
Os fatos expostos pelos naturalistas eram medonhos e horripilantes, mas as experiências de Cousteau no Mediterrâneo e de Hass, no mar Vermelho, eram mais animadoras.
Naquela noite Bond teve muitos sonhos de encontros aterrorizantes com polvos gigantescos e raias-lixas, tubarões cabeça de martelo e barracudas de dentes serrilhados, de modo que gemeu e suou durante o sono.
No dia seguinte começou a se exercitar, sob o olhar crítico de Quarrel. Toda manhã nadava mil e seiscentos metros na praia antes do café da manhã e corria pela areia firme até o chalé. Lá pelas nove partiam em uma canoa, cuja única vela triangular os transportava rápido até a baía Sangrenta e Orange Bay, onde a areia termina em penhascos e pequenas cavernas, e o recife se aproxima da costa.
Ali deixavam a canoa na praia e Quarrel o levava, com fisgas, máscaras e um velho arpão submarino, em expedições de tirar o fôlego, no tipo de mar que ele encontraria na baía dos Tubarões.
Pescavam em silêncio, separados por poucos metros, com Quarrel se movendo com facilidade em um elemento no qual quase se sentia em casa.
Não demorou para que Bond aprendesse a não lutar contra o mar, e sim ceder e aproveitar as correntes e os rodamoinhos, usando táticas de judô dentro d’água.
No primeiro dia chegou em casa cortado e envenenado pelo coral e com uma dúzia de espinhos de ouriço espetados em seu flanco. Quarrel sorriu e tratou as feridas com mertiolato e Milton. Depois, como fazia toda noite, massageou Bond por meia hora com óleo de coco, enquanto ia falando em voz baixa sobre os peixes que haviam encontrado naquele dia, explicando os hábitos dos carnívoros e não carnívoros, a camuflagem dos peixes e seu modo de mudar de cor através da corrente sanguínea.
Ele também jamais ouvira falar de peixe algum que atacasse o homem, a não ser em desespero ou porque havia sangue na água. Explicou que os peixes raramente passam fome nas águas tropicais e que a maioria de suas armas é defensiva, e não ofensiva. A única exceção, admitia, era a barracuda. “Peixes maus”, conforme dizia, que não conheciam o medo, já que não possuíam outro inimigo que não a doença, capazes de atingir oitenta quilômetros por hora em distâncias curtas, e donos dos dentes mais perigosos do que os de qualquer outro peixe de mar.
Um dia alvejaram uma de dez quilos que nadava em volta deles, sumindo na distância cinzenta e depois reaparecendo, silenciosa, imóvel, quase em cima da água, com seus olhos zangados de tigre fitando-os de muito perto, de modo que podiam ver o lento funcionamento de suas guelras e os dentes brilhando, como as presas de um lobo, ao longo da queixada cruel e prognata.
Quarrel finalmente pegou o arpão de Bond e alvejou-a gravemente, atravessando sua barriga aerodinâmica. Ela veio diretamente em cima deles, com as mandíbulas escancaradas, como uma cascavel pronta para o bote. Bond deu uma fisgada desajeitada quando ela investia contra Quarrel. Errou, mas o arpão entrou pelas suas mandíbulas. Elas se fecharam imediatamente sobre o espeto de aço, e quando o peixe arrancou a fisga da mão de Bond, Quarrel apunhalou-a com a faca e ela enlouqueceu, correndo dentro d’água com as entranhas à mostra, a fisga presa entre os dentes e o arpão pendente do corpo. Quarrel mal podia segurar a linha enquanto o peixe procurava retirar a ponta que lhe atravessava a barriga. Mas seguiu-o nadando em direção a um recife submerso, no qual subiu, puxando lentamente o peixe.
Depois que Quarrel cortou as guelras e retirou a fisga de suas mandíbulas, encontraram as marcas profundas dos dentes no aço.
Levaram o peixe para a praia, Quarrel cortou sua cabeça e abriu a bocarra com um pedaço de pau. A mandíbula superior se erguia quase em ângulo reto em relação à inferior, revelando fantásticas fileiras de dentes, tão abundantes que se sobrepunham como telhas no telhado. Até mesmo a língua tinha várias fileiras de pequenos dentes afiados e curvos e, na frente, duas presas enormes, que se projetavam para a frente como as de uma serpente.
Embora só pesasse pouco mais que cinco quilos, passava de um metro e trinta centímetros, uma bala niquelada só de músculo e tecido firme.
“Não vamos matar mais barracudas”, comentou Quarrel. “Mas se não fosse por você eu teria que passar um mês no hospital e talvez perder meu rosto. Foi uma tolice minha. Se a gente tivesse nadado em sua direção, ela teria fugido. Sempre fazem isso. São covardes como todos os peixes. Não se preocupe com esses aqui”, apontou para os dentes, “jamais tornará a vê-los”.
“Espero que não”, desabafou Bond. “Não tenho rosto sobressalente.”
No fim de uma semana Bond estava bronzeado e rijo. Cortara os cigarros para dez por dia e não tomara sequer um drinque. Conseguia nadar três quilômetros sem cansar, a mão estava completamente sarada e ele havia eliminado todas as sequelas da vida urbana.
Quarrel se alegrou. “Você está pronto para a ilha da Surpresa, capitão”, disse, “e eu não gostaria de ser o peixe que tentasse devorá-lo”.
Ao entardecer do oitavo dia, voltaram para a casa de descanso e encontraram Strangways à espera deles.
“Tenho boas notícias para lhe dar”, disse. “Seu amigo Felix Leiter vai ficar bom. Apesar de tudo, não morrerá. Precisaram amputar o resto de um braço e de uma perna. Os cirurgiões plásticos começaram agora a reconstruir o rosto. Ligaram para mim ontem de St. Petersburg. Parece que ele insistiu em lhe mandar um recado. Foi a primeira coisa que lhe veio à cabeça quando voltou a si. Disse que sente muito não poder estar aqui e para você não molhar os pés — ou pelo menos não molhá-los tanto como ele.”
O coração de Bond ficou apertado. Olhou pela janela. “Diga a ele para se restabelecer logo”, disse abruptamente. “E também que sinto a sua falta.” Voltou os olhos para a sala. “E quanto ao equipamento? Tudo bem?”
“Está tudo aqui”, respondeu Strangways, “e o Secatur zarpa amanhã para a ilha da Surpresa. Depois de passar pela alfândega em Port Maria, devem lançar âncora antes do anoitecer. Mr. Big está a bordo — é só a segunda vez que veio aqui. Ah, e trouxe uma mulher. Uma garota chamada Solitaire, de acordo com a CIA. Sabe alguma coisa sobre ela?”
“Não muito”, respondeu Bond. “Mas gostaria de tirá-la dele. Ela não pertence ao seu time.”
“Uma espécie de donzela em apuros”, disse o romântico Strangways. “Pois é. De acordo com a CIA, ela é uma graça.”
Mas Bond fora para a varanda e olhava as estrelas. Jamais tivera de brigar por um cacife tão alto na vida. O segredo do tesouro, a derrota de um grande criminoso, o esmagamento de um círculo de espionagem comunista e a destruição de um tentáculo da SMERSH, a cruel engrenagem que constituía seu próprio alvo particular. E agora Solitaire, a maior das recompensas pessoais.
As estrelas piscavam no seu Morse cifrado e ele não possuía chave alguma para decifrar o seu código.
18.
BEAU DESERT
Strangways voltou sozinho depois do jantar e Bond decidiu que eles partiriam ao amanhecer. O inglês deixou uma nova pilha de livros e panfletos sobre tubarões e barracudas, que Bond estudou com grande atenção.
Pouco acrescentou ao conhecimento prático que aprendera com Quarrel. Os autores eram todos cientistas e grande parte dos dados era sobre ataques ocorridos nas praias do Pacífico, onde qualquer corpo que brilhasse na arrebentação pesada excitaria a curiosidade dos peixes.
Mas parecia haver uma concordância geral que o perigo para os mergulhadores submarinos com aqualungs era muito menor do que para os nadadores de superfície. Estes podiam ser atacados por qualquer representante da família dos tubarões, especialmente quando o tubarão era estimulado e excitado pela presença de sangue no mar, pelo cheiro da vítima ou pela vibração sensorial causada por alguém ferido na água. Mas às vezes podiam ser espantados, segundo a literatura, por barulhos altos dentro d’água — até mesmo por gritos sob a superfície, e muitas vezes fugiam quando perseguidos pelo nadador.
A fórmula mais bem-sucedida de repelente de tubarões era, segundo os testes dos laboratórios de pesquisa naval da marinha americana, uma combinação de acetato de cobre e um corante preto chamado nigrosina, que vinha sendo adicionada, sob a forma de pelotas, aos coletes salva-vidas de todas as forças armadas dos Estados Unidos.
Bond chamou Quarrel. O ilhéu de Cayman não acreditara, até que Bond lesse para ele o que o Departamento Naval tinha a dizer sobre suas pesquisas, no final da guerra, sobre os bandos de tubarões estimulados por uma situação descrita como “condições exacerbadas de comportamento grupal”: “... os tubarões eram atraídos para a popa do barco de pesca de camarões, com refugo de peixes”, leu Bond. “Os tubarões apareceram sob a forma de um cardume exasperado, espadanante. Preparamos uma tina com peixes frescos, e outra com peixes misturados ao pó repelente. Aproximamo-nos do cardume e o fotógrafo começou a rodar a câmera. Despejei os peixes frescos por trinta segundos, repetindo três vezes esse procedimento. Da primeira vez os tubarões demonstraram grande ferocidade ao se alimentar dos peixes frescos bem na popa do barco. Mas ficaram devorando-os só durante cinco segundos depois que o pó repelente foi jogado ao mar. Uns poucos voltaram depois que jogamos peixe fresco imediatamente após o repelente. Em uma segunda tentativa, trinta minutos depois, um cardume feroz se alimentou durante os trinta segundos em que lhe fornecemos peixe fresco, mas se afastou assim que o repelente foi jogado na água. Na terceira tentativa, só conseguimos atrair os tubarões até uma distância de vinte metros da popa do barco.”
“O que acha disso?”, perguntou Bond.
“É melhor arranjar um pouco desse negócio”, respondeu Quarrel a contragosto, mas impressionado.
Bond estava disposto a concordar. Washington havia mandado mensagem de que as pelotas do material estavam a caminho. Mas ainda não tinham chegado e não eram esperadas antes de quarenta e oito horas. Se o repelente não chegasse, não seria problema para Bond. Não imaginava encontrar condições tão perigosas no seu percurso submarino até a ilha.
Antes de ir para a cama, chegara à conclusão de que nada o atacaria se não houvesse sangue na água, ou se ele não parecesse amedrontado diante da ameaça de algum peixe. Quanto aos polvos, peixes-escorpião e moreias, simplesmente precisava tomar cuidado onde punha os pés. Para ele, os espinhos de sete centímetros do ouriço eram o maior perigo para as atividades submarinas nos trópicos, mas a dor que causavam não bastaria para interferir em seus planos.
Partiram antes das seis da manhã e chegaram a Beau Desert às dez e meia.
A propriedade era uma bela plantação antiga de cerca de quatrocentos hectares, com as ruínas da bela casa grande dominando a baía. Era dedicada ao cultivo de pimentões e cítricos, e cercada de madeiras de lei e palmeiras, e sua história remontava à época de Cromwell. O nome romântico estava em moda no século dezoito, quando as propriedades jamaicanas se chamavam Bellair, Bellevue, Boscobel, Harmony, Nymphenburg, ou eram batizadas de Panorama, Satisfação, Repouso.
Uma trilha entre as árvores, que não era visível da ilha na baía, levava à pequena casa de praia. Depois dos piqueniques semanais na baía de Manatee, os banheiros e a mobília confortável de bambu pareciam um luxo, e os tapetes de cores vivas pareciam de veludo sob os pés calejados de Bond.
Pelas rótulas das janelas Bond contemplou o pequeno jardim flamejante de hibiscos, buganvílias e roseiras, que acabava no minúsculo crescente de areia branca, meio tapado pelos troncos das palmeiras. Sentou-se no braço de uma poltrona e deixou que seu olhar passeasse, palmo a palmo, pelos diferentes azuis e marrons do mar e dos recifes, até morrer na base da ilha. A metade superior estava obscurecida pelos leques das plumas das palmeiras em primeiro plano, mas o pedaço de penhasco vertical dentro de seu campo de visão parecia cinzento e formidável na meia sombra projetada pelo sol forte.
Quarrel preparou o almoço em um fogareiro a álcool, de modo que nenhuma fumaça os denunciasse, e de tarde Bond fez uma sesta e depois examinou o equipamento enviado de Londres e trazido de Kingston por Strangways. Experimentou a roupa de mergulho de borracha fina que o cobria, desde a máscara apertada na cabeça com o óculo de vidro temperado, até as longas nadadeiras em seus pés. Tudo cabia como uma luva, e Bond louvou a eficiência do setor “Q” de M.
Testaram os cilindros duplos de mil litros de ar natural comprimido a duzentas atmosferas, e Bond achou fácil o funcionamento das válvulas de distribuição de ar e de reserva, à prova de acidentes. Na profundidade em que agiria, aquele volume dava para durar quase duas horas.
Havia uma nova espingarda submarina potente, marca Champion, e uma faca projetada pela Wilkinson para os comandos durante a guerra. Finalmente, em uma caixa coberta de avisos de perigo, estava a pesada mina naval, um cone de fundo achatado, repleto de explosivos, montado sobre uma base cheia de largas saliências de cobre, tão imantadas que a mina grudava como um marisco em qualquer casco metálico. Havia uma dúzia de detonadores de metal e de vidro, parecidos com lápis, com temporizadores que iam de dez minutos até oito horas, e um meticuloso livrinho de instruções, tão simples quanto o próprio equipamento. Havia até uma caixa de cápsulas de benzedrina para dar resistência e aguçar a percepção de Bond durante a tarefa, e várias lanternas submarinas, inclusive uma que projetava apenas um feixe da largura de um lápis.
Bond e Quarrel testaram tudo, acoplamentos, contatos, até se darem por satisfeitos e concluírem que não restava mais nada a ser feito. Em seguida, Bond desceu até o meio das árvores e observou as águas da baía, calculando as profundidades, traçando rotas para percorrer a passagem pelo recife e prevendo a trajetória da lua, que seria sua única referência no decorrer da tortuosa travessia.
Às cinco horas chegou Strangways com notícias do Secatur.
“Passaram por Port Maria”, informou. “Chegarão aqui dentro de dez minutos, no máximo. Mr. Big tem um passaporte com o nome de Gallia e a garota com o nome de Latrelle. Ela está na sua cabine, mareada, segundo o capitão negro do Secatur. É possível. Há uma porção de tanques de peixe a bordo. Mais de cem. Exceto isso, nada que levantasse suspeita, e foram liberados. Eu queria ir a bordo como parte da turma da alfândega, mas achei melhor deixar que o espetáculo se desenrolasse de modo absolutamente normal. Mr. Big permaneceu na sua cabine. Estava lendo quando foram verificar seus documentos. Como está o equipamento?”
“Perfeito”, respondeu Bond. “Acho que agiremos amanhã à noite. Espero que haja um pouco de vento. Se descobrirem as bolhas de ar, estaremos em apuros.”
Quarrel entrou, avisando: “O iate está passando pelo recife agora, capitão.”
Foram até a máxima distância que podiam arriscar ir, na praia, e assestaram os seus binóculos na direção do barco.
Era uma bela embarcação, negra, com uma superestrutura cinza, setenta pés de comprimento e construída em função da velocidade — de pelo menos vinte nós, imaginou Bond. Conhecia sua história. Havia sido construída para um milionário em 1947, era movida por dois motores a diesel da General Motors, tinha casco de aço e todas as geringonças de comunicação de último tipo, inclusive telefone do barco para a terra e um navegador Decca. Trazia hasteados um pavilhão vermelho nos vaus dos joanetes e a bandeira americana à popa, e progredia a três nós através da abertura de sete metros no recife.
Virou abruptamente, depois de romper a passagem, e rumou para a parte da ilha a bombordo. Ao mesmo tempo, três negros em calças brancas de brim desceram correndo a escada íngreme até o molhe estreito e se posicionaram para amarrar as guias. Foram necessárias poucas manobras para prendê-las, diante dos observadores em terra firme, e as duas âncoras foram arriadas ruidosamente, entre as pedras e o coral na areia do fundo, junto à base da ilha. O barco estava bem protegido, até mesmo do vento norte. Bond calculou uma profundidade de sete metros sob a sua quilha.
Enquanto observavam, a enorme figura de Mr. Big surgiu no convés. Desembarcou no molhe e começou a subir lentamente a escadaria a prumo. Parou várias vezes, e Bond pensou na dificuldade que seu coração avariado teria para bombear o sangue naquele corpanzil preto acinzentado.
Seguiam-no dois tripulantes negros carregando uma maca leve, levando um corpo humano amarrado. Pelos binóculos, Bond reconheceu os cabelos negros de Solitaire. Ficou perplexo e preocupado, sentiu um aperto no coração diante daquela proximidade. Rezou para que a maca fosse apenas uma precaução para evitar que Solitaire fosse reconhecida da costa.
Em seguida, formou-se uma fila de doze homens na escadaria e os tanques de peixe foram sendo passados de um para outro. Quarrel contou cento e vinte.
Depois, alguns gêneros foram levados para cima da mesma maneira.
“Não está trazendo muita coisa desta vez”, comentou Strangways, depois da operação terminada. “Somente uma dúzia de caixotes. Geralmente são cinquenta. Não deve ficar muito tempo.”
Mal acabara de falar quando um tanque de peixe, que seus binóculos mostravam estar meio cheio de água e areia, desceu cuidadosamente de volta ao barco, por meio daquela escada feita de mãos. Em seguida outro, e mais outro, a intervalos de cinco minutos.
“Meu Deus”, exclamou Strangways. “Já estão carregando o barco. O que significa que deverão zarpar pela manhã. Será que resolveram liquidar as operações na ilha e este será seu último carregamento?”
Bond observou com cuidado e depois subiram em silêncio através do arvoredo, deixando Quarrel atrás para se manter a par dos acontecimentos.
Sentaram-se na sala, e enquanto Strangways preparava um uísque com soda para ele mesmo, Bond olhava pela janela e organizava seus pensamentos.
Eram seis horas e os vagalumes começaram a aparecer na penumbra. A lua, de um amarelo pálido, já ia alta no lado do oriente, e o dia morria rápido às suas costas. Uma brisa ligeira encrespava a baía e pequenas ondas quebravam na praia branca no final do gramado. Pequeninas nuvens rosa e alaranjadas, ao poente, vagavam nas alturas, e as folhas das palmeiras se esbarravam de mansinho no vento fresco do Papa-Defunto.
“Vento Papa-Defunto”, pensou Bond, sorrindo de esguelha. Tal como teria de ser esta noite. Era a única chance, e as condições quase perfeitas. Só o repelente de tubarões é que não chegaria a tempo. Mas isso era apenas um requinte. Não poderia ser um pretexto. Era para isto que ele viajara três mil quilômetros e matara cinco. No entanto, sentiu um calafrio ao prever a aventura submarina angustiante, que ele já havia transferido em sua mente para o dia seguinte. De repente sentiu ódio e medo do mar e de tudo que lhe dizia respeito. Dos milhões de pequenas antenas que se mexeriam e o seguiriam quando ele passasse de noite, dos olhos que acordariam para espiá-lo, das batidas de coração que falhariam por um centésimo de segundo para continuar batendo silenciosamente, das gavinhas gelatinosas que se estenderiam em sua direção, tão cegas na luz quanto no escuro.
Iria passar no meio de milhares de segredos. No espaço de trezentos metros, sozinho e com frio, transporia às cegas uma floresta misteriosa em direção a uma cidadela mortífera, cujos guardas já haviam matado três homens. Ele, Bond, depois de uma semana ensolarada de canoagem com sua babá ao lado, ia esta noite, dentro de poucas horas, caminhar sozinho sob aquele lençol escuro de água. Era uma maluquice, algo impensável. Seu corpo se encolheu e ele cravou os dedos nas palmas da mão molhadas.
Houve uma batida na porta e Quarrel entrou. Bond se alegrou de poder levantar da cadeira, se afastar da janela e se aproximar do lugar onde Strangways apreciava seu drinque, debaixo de um abajur.
“Estão trabalhando à luz de lampiões agora, capitão. Um tanque ainda a cada cinco minutos. Calculo que terão dez horas de trabalho. Acabarão mais ou menos às cinco da manhã. Não zarparão antes das seis. É perigoso demais tentar passar pelo canal sem luz suficiente.”
Os olhos cinzentos e amistosos de Quarrel, naquele esplêndido rosto cor de mogno, fitavam Bond, aguardando ordens.
“Começarei às dez em ponto”, Bond se surpreendeu com as próprias palavras. “Das pedras à esquerda da praia. Pode nos fazer um jantar e depois levar o equipamento até o gramado? As condições estão perfeitas. Chegarei lá dentro de meia hora.” Contou nos dedos. “Dê-me os detonadores de cinco e de oito horas. E o de quinze minutos, como reserva, caso algo saia errado. Está certo?”
“Sim senhor, capitão”, respondeu Quarrel. “Pode deixar comigo.”
E saiu.
Bond olhou para a garrafa de uísque e, em seguida, se decidiu, servindo-se de meio copo em cima de três cubos de gelo. Tirou a caixa de benzedrina do bolso e botou um tablete entre os dentes.
“À sorte”, disse a Strangways, tomando um grande gole. Sentou-se apreciando o gosto áspero de seu primeiro drinque em mais de uma semana. “Agora”, perguntou, “diga exatamente o que eles fazem quando estão prontos para zarpar. Levam quanto tempo para se afastar da ilha e passar pelo recife? Se esta for a última vez, não se esqueça de que estarão levando seis homens adicionais e algumas provisões. Vamos tentar prever isso o mais exatamente possível.”
Um momento depois Bond já mergulhara em um mar de detalhes práticos, e a sombra do medo recuara até as zonas de escuridão debaixo das palmeiras.
Exatamente às dez horas, sem sentir nada além da excitação e da expectativa, a figura preta e luzidia como um morcego pulou das pedras dentro de três metros de água, sumindo debaixo do mar.
“Vá com segurança”, disse Quarrel, dirigindo-se ao ponto em que Bond desaparecera. Persignou-se. Em seguida, ele e Strangways voltaram para casa, por entre as sombras, para dormir em turnos, sobressaltados, aguardando, temerosos, o desenrolar dos acontecimentos.
19.
O VALE DAS SOMBRAS
Bond foi levado direto ao fundo pelo peso da mina naval que prendera a seu peito através de fitas, e pelo cinto de chumbo, usado para corrigir a flutuabilidade dos cilindros.
Sem hesitar um instante, cobriu imediatamente os primeiros cinquenta metros de areia do fundo em um rápido crawl, com o rosto pouco acima do leito. As longas nadadeiras quase teriam dobrado sua velocidade normal, não fosse o estorvo do peso que carregava e da leve espingarda de arpão na mão esquerda. Mas avançava depressa e em menos de um minuto parou para descansar na sombra de um grande maciço de coral.
Parou e estudou suas sensações.
Estava aquecido na roupa de mergulho, sentindo mais calor do que se estivesse nadando ao sol. Achou que seus movimentos lhe vinham com facilidade e a respiração era perfeitamente simples, desde que fosse regular e descontraída. Contemplou as bolhas denunciadoras subindo rente ao coral em um repuxo de pérolas prateadas e rezou para que as pequenas ondas as encobrissem.
No espaço desimpedido, sua visibilidade era perfeita. A luz era leitosa e macia, mas não suficientemente forte para dissolver as sombras encarneiradas das ondas na superfície, que enxadrezavam a areia do fundo. Agora, junto ao recife, não havia reflexos no leito do mar, e as sombras sob as pedras eram negras e impenetráveis.
Arriscou uma olhada rápida com a lanterna fina, e imediatamente a paisagem oculta da massa marrom dos arbustos de coral ganhou vida. Anêmonas de miolo carmesim acenavam para ele com seus tentáculos de veludo, uma colônia de ouriços eriçou seus espinhos de aço de Toledo, subitamente assustada, e uma centopeia do mar peluda estacou sua centena de passos, inquirindo-o com sua cabeça cega. Na areia da base da árvore de coral, um peixe-sapo recolheu delicadamente sua horrível cabeça verrugosa de volta à loca, e uma porção de vermes do mar, parecidos com flores, desapareceu em seus tubos gelatinosos. Um cardume de peixes-borboleta e peixes-anjo, coloridos como joias, flertava na luz. Bond distinguiu a forma chata e espiralada de uma estrela-do-mar de grandes pontas.
Bond enfiou a lanterna de volta no cinto.
Acima dele a superfície do mar era uma colcha de mercúrio. Ouvia-se um crepitar baixinho, como gordura fritando na frigideira. Adiante, o luar mergulhava no vale irregular e profundo, cujas encostas afundavam, se afastando da rota que ele devia seguir. Abandonou sua aconchegante árvore de coral e avançou lentamente. Agora não mais com a mesma facilidade. A luz era fraca e enganosa, e a floresta petrificada do recife de coral cheia de becos sem saída e caminhos tentadores, porém ilusórios.
Às vezes era obrigado a subir quase à superfície para transpor o emaranhado de algum arbusto de coral, e quando isso acontecia, aproveitava para verificar sua posição pela lua que brilhava como uma pálida descarga de foguete, no final do caminho que abrira na água. Às vezes a cintura de ampulheta de um rochedo de coral lhe fornecia abrigo, e ele podia descansar por alguns instantes, sabendo que as pequenas borbulhas do respirador ficariam escondidas pela saliência acima da superfície. Então concentrava seu olhar nos rabiscos fosforescentes da minúscula vida noturna submarina e distinguia colônias e populações inteiras às voltas com suas atividades microscópicas.
Não havia peixes grandes nas imediações, mas muitas lagostas fora de suas locas, parecendo bichos enormes e pré-históricos, graças ao efeito de ampliação da água. Seus olhos saltados e vermelhos o fitavam, e suas longas antenas de trinta centímetros pediam-lhe uma senha. Em alguns momentos recuavam nervosamente para seus abrigos, levantando areia com suas caudas potentes, agachadas nas pontas de seus oito pés peludos, à espera de o perigo passar. Certa vez os grandes filamentos de uma caravela passaram flutuando lentamente. Quase tocaram sua cabeça a partir da superfície, cinco metros acima, e ele lembrou a queimadura causada pelo contato com uma delas, que ardera por três dias durante a temporada em Manatee Bay. Se atingisse alguém na altura do coração, poderia ser mortal. Ele viu inúmeras moreias verdes e pintadas, estas últimas se movendo como grandes serpentes pretas e amarelas ao longo da areia do fundo, as verdes mostrando os dentes de dentro de algum buraco na pedra, e vários baiacus, como corujas castanhas, com seus enormes e plácidos olhos verdes. Espetou um deles com a extremidade de sua arma e ele inchou até ficar do tamanho de uma bola de futebol, tornando-se uma massa de perigosos espinhos brancos. Largas gorgônias balançavam, fazendo gestos convidativos nos rodamoinhos, refletindo o luar nos vales cinzentos, acenando fantasmagóricas, como restos das mortalhas de homens sepultados no mar. Muitas vezes Bond distinguia nas sombras movimentos pesados e misteriosos, águas revoltas e o súbito brilho de olhos grandes, que imediatamente se extinguiam. Então, virava-se, destravando o arpão, olhando fixamente o escuro. Mas não atirou em nada e nada o atacou enquanto subia e deslizava pelo recife.
Levou quinze minutos para percorrer cem metros do coral. Depois disso descansou em um pedaço redondo de coral esponjoso, abrigado por um último pedaço de recife. Alegrou-se por só ter de enfrentar uns cem metros de água cinza-claro. Ainda se sentia descansado, conservando a elação e a clareza de espírito provocadas pela benzedrina, mas o labirinto de perigos que enfrentara para atravessar o recife o tinha cansado e causado uma preocupação constante, além do temor de rasgar a roupa de borracha. Agora a floresta de corais afiados como navalhas já havia sido ultrapassada, para ceder lugar aos tubarões e às barracudas, ou talvez à súbita banana de dinamite jogada no meio da sua pequena flor de borbulhas na superfície.
Foi enquanto calculava os perigos ainda por enfrentar que o polvo agarrou-o. Em volta dos dois tornozelos.
Estava sentado com os pés na areia, quando de repente foram presos na base do cogumelo redondo de coral sobre o qual descansava. Quando compreendeu o que tinha acontecido, um tentáculo começou a serpentear pela sua perna acima, e outro, roxo na luz fraca, desceu pela nadadeira esquerda.
Teve um sobressalto de terror e repugnância, levantando-se de imediato, esfregando os pés, esforçando-se por se libertar. Mas não houve afrouxamento de um centímetro sequer, e os movimentos de Bond deram ao polvo a oportunidade de apertar e puxar os calcanhares mais ainda sob a saliência da pedra redonda. A força do bicho era prodigiosa, e Bond sentiu que perdia rapidamente o equilíbrio. Percebeu que num instante seria jogado no chão e aí, atrapalhado pela mina em seu peito e o cilindro nas costas, talvez fosse quase impossível atacar o polvo.
Bond tirou a faca do cinto e espetou entre suas pernas. Mas a saliência da rocha o atrapalhou, e ele ficou apavorado de cortar sua roupa de mergulho. De repente foi derrubado, caindo deitado na areia. De imediato seus pés começaram a ser puxados para dentro de uma larga fenda lateral debaixo da pedra. Esgaravatou a areia e tentou se dobrar para poder ter acesso à faca. Porém, a grande protuberância da mina em seu peito impediu-o de fazê-lo. À beira do pânico, lembrou-se do arpão. Antes não lhe dera importância, achando que era uma arma inútil naquela pequena distância, mas agora era a sua única chance. Permanecia na areia onde o deixara. Pegou-o e destravou-o. A mina impediu-o de fazer mira. Escorregou o cano ao longo das pernas e cutucou cada pé com a ponta do arpão para descobrir a distância entre eles. Um tentáculo agarrou imediatamente a ponta de aço e começou a puxar. A arma escorregou entre seus pés aprisionados e ele apertou o gatilho às cegas.
Uma grande nuvem de tinta viscosa e pegajosa saiu em rolos da fenda, em direção a seu rosto. Mas uma perna estava livre, em seguida a outra, e ele se aprumou e pegou o cabo do arpão de um metro, no local em que já ia desaparecendo sob a rocha. Puxou e forcejou até que, com um esgarçar de tecidos, conseguiu tirar a arma de dentro da névoa negra que envolvia o buraco. Ofegante, levantou-se e se afastou da rocha, com suor escorrendo pelo rosto, sob a máscara. Acima dele, a fieira prateada de bolhas subiu direto à superfície, e ele praguejou contra aquele animal barrigudo, ferido em seu abrigo.
Mas não podia perder tempo se preocupando com ele. Recarregou a arma e partiu com a lua sobre o seu ombro direito.
Agora avançava bem através da água cinzenta e enevoada, concentrando-se em manter o rosto apenas alguns centímetros acima da areia, com a cabeça bastante baixa para reduzir o atrito de seu corpo com a água. A certa altura, viu, de relance, uma raia-lixa do tamanho de uma mesa de pingue-pongue se desviar habilmente de seu caminho, batendo as asas pontudas e manchadas, como um pássaro, e arrastando atrás de si sua cauda farpada. Não lhe deu atenção, lembrando-se do que Quarrel dissera: que as raias jamais atacam a não ser em autodefesa. Calculou que ela provavelmente viera dos recifes externos para botar seus ovos — ou “bolsas de sereias”, como chamavam os pescadores, porque têm a forma de um travesseiro com dois fios pretos e rígidos em cada canto — no fundo abrigado de areia.
Muitos vultos de peixes grandes nadavam preguiçosamente sobre a areia enluarada, alguns do seu tamanho. Quando um deles seguiu Bond por pelo menos um minuto, ele levantou os olhos, distinguindo a barriga branca de um tubarão cinco metros acima dele, como um zepelim afunilado verde e azul. Seu nariz arredondado estava mergulhado com curiosidade na coluna de bolhas de ar. O grande rasgo em forma de foice de sua boca parecia uma cicatriz repuxada. Virou de lado e olhou para ele embaixo com um olhar duro e rosado e, em seguida, abanou sua cauda, também em forma de foice, e se afastou devagar dentro do muro de névoa cinzenta.
Bond amedrontou uma família de polvos, pesando de três quilos aos cento e cinquenta gramas de um filhote, frágil e luminoso à meia-luz, suspensa quase na vertical em um cordão declinante. Eles se endireitaram e fugiram rápido, a propulsão a jato.
Bond descansou por um instante na metade do caminho e então prosseguiu. Agora havia barracudas por ali, grandes, de até nove quilos. Pareciam tão mortíferas quanto as recordações que tinha delas. Planavam acima dele como submarinos prateados, olhando para baixo com seus olhos de tigre zangado. Sentiam curiosidade a seu respeito e a respeito das bolhas, e seguiram-no por cima e em torno dele, como uma alcateia de lobos silenciosos. Quando Bond encontrou o primeiro pedaço de coral, indício de que se aproximava da ilha, havia cerca de vinte delas se movendo em silêncio, vigilantes, saindo e entrando da parede opaca que o envolvia.
A pele de Bond se encolheu debaixo da roupa de borracha, mas ele não podia fazer nada a respeito delas e concentrou-se em sua meta.
De repente havia uma longa forma metálica suspensa acima dele na água. Atrás dela um monte de pedras quebradas que subiam de maneira íngreme.
Era a quilha do Secatur, e o coração de Bond deu um pulo no peito.
Consultou seu Rolex. Eram onze e três. Escolheu o detonador de sete horas do punhado que tirou de um bolso lateral com zíper, inserindo-o na cavidade apropriada da mina, apertando-o. Enterrou na areia o restante dos detonadores, de modo que, se fosse capturado, ninguém desconfiaria da existência da mina.
Ao nadar em direção à superfície, carregando a mina entre as mãos, com a base para cima, percebeu um rebuliço na água atrás dele. Uma barracuda passou depressa, com as mandíbulas meio abertas, quase colidindo com ele e com os olhos fixos em algo às suas costas. Mas Bond estava concentrado apenas no meio da quilha do barco, em um ponto pouco mais de um metro acima da superfície.
A mina quase o arrastou pelos últimos metros, pois seus enormes ímãs buscavam o beijo metálico com o casco. Bond precisou lutar contra eles para evitar o barulho do choque. Em seguida, tendo colocado a mina no lugar adequado e agora livre do seu peso, Bond precisou nadar com força para se contrapor à sua nova flutuabilidade e afundar de novo, afastando-se da superfície.
Foi quando se virou para nadar em direção às duas hélices, a caminho do abrigo das pedras, que conseguiu ver as coisas terríveis que ocorriam às suas costas.
O bando enorme de barracudas parecia ter enlouquecido. Giravam e mordiam como cães histéricos. Três tubarões que haviam se juntado a eles arremetiam pela água com um frenesi pouco menor. A água fervilhava com esses peixes terríveis, e Bond levou um encontrão no rosto, recebendo outros tantos por várias vezes em uma distância de poucos metros. Percebeu que a qualquer momento sua pele de borracha se rasgaria, junto com a carne debaixo dela, e então o bando viria atrás dele.
“Condições exacerbadas de comportamento grupal.” A frase do Departamento Naval pipocou na sua mente. Era exatamente nesta situação que o repelente de tubarões poderia salvá-lo. Na sua ausência, teria talvez alguns minutos a mais de vida.
Em desespero, nadou espalhafatosamente, ao longo da quilha do barco, com o arpão destravado, que agora não passava de um brinquedo diante daquele bando de peixes canibais ensandecidos.
Alcançou as duas grandes hélices de cobre, agarrando-se a uma delas, ofegante, com os lábios formando um esgar de medo e os olhos arregalados, ao se dar conta do frenesi no mar fervilhante a seu redor.
Viu de repente que as bocas dos peixes que arremetiam furiosos estavam meio abertas e que eles mergulhavam e saíam de uma nuvem marrom, que se espalhava desde a superfície. Perto dele, uma barracuda se deteve por um instante, com algo marrom e reluzente nas suas mandíbulas. Engoliu de uma bocada, depois virou e voltou para a confusão.
Ao mesmo tempo, Bond notou que escurecia. Olhou para cima e percebeu, com uma nova compreensão, que a superfície de mercúrio do mar tornara-se vermelha, um horrível carmesim brilhante.
Fiapos dessa substância chegaram flutuando até seu alcance. Puxou-os com a extremidade de sua arma. Segurou-os contra sua máscara.
Não havia mais dúvida.
Alguém lá em cima atirava sangue e vísceras na superfície do mar.
20.
A CAVERNA DE MORGAN, O SANGUINÁRIO
Bond compreendeu de imediato o motivo de todas aquelas barracudas e tubarões estarem rondando a ilha, de como eram mantidos naquele frenesi voraz por esse banquete noturno, por que os três homens, desafiando todas as explicações plausíveis, haviam sido devolvidos à praia, meio devorados pelos peixes.
Mr. Big tinha apenas posto as forças do mar para trabalhar em seu proveito, utilizando-as para sua proteção. Era um invento típico — imaginativo, criativo, tecnicamente à prova de erro e fácil de pôr em prática.
No exato momento em que Bond compreendera isso tudo, algo lhe deu um terrível golpe no ombro e uma barracuda de dez quilos recuou, com carne e borracha preta entre as mandíbulas. Bond não sentiu dor, ao largar a hélice de bronze e nadar desesperadamente até as pedras, só uma náusea terrível na boca do estômago, ao pensar que um pedaço seu se encontrava entre aquelas centenas de dentes afiados como uma navalha. A água começou a vazar entre a borracha aderente e a sua pele. Não demoraria até chegar a seu pescoço e penetrar na máscara.
Já ia desistir e subir disparado pelos sete metros até a tona, quando viu uma larga fissura nas pedras diante dele. Ao lado havia um grande pedregulho tombado de lado e, de algum modo, ele conseguiu se esconder atrás dele. Virou-se, naquele abrigo precário, no momento exato em que a mesma barracuda investia outra vez, com o maxilar superior em ângulo reto em relação ao inferior, a boca escancarada pronta para o bote terrível.
Bond atirou quase às cegas com o arpão. As tiras de borracha dispararam cano abaixo e o arpão dentado pegou o grande peixe no centro da mandíbula superior erguida, atravessando-a e penetrando até a metade do cabo, com a linha ainda livre.
A barracuda estacou a um metro da barriga de Bond. Tentou fechar as mandíbulas e, em seguida, deu uma enorme sacudida na longa cabeça de réptil. Depois se afastou em disparada, ziguezagueando loucamente, arrancando da mão de Bond o arpão e a linha, que arrastou atrás de si. Bond sabia que, antes de ela percorrer cem metros, os demais peixes a atacariam e a fariam em pedaços.
Deu graças a Deus por essa manobra diversiva. Seu ombro estava agora envolto por uma nuvem de sangue. Os outros peixes sentiriam o cheiro em questão de segundos. Contornou o pedregulho imaginando se arranjaria um meio de se abrigar debaixo do atracadouro, escondendo-se de algum modo acima da superfície da água, até pensar em outro plano.
Então viu a caverna que o pedregulho escondera.
Era de fato quase uma porta na base da ilha. Se Bond não estivesse nadando para salvar sua vida, poderia ter entrado nela andando. Mas, naquelas circunstâncias, mergulhou direto na abertura e só parou quando poucos metros o separavam de sua entrada bruxuleante.
Então ficou de pé na areia macia e acendeu a lanterna. Um tubarão talvez pudesse vir atrás dele, mas no espaço confinado seria quase impossível que o mordesse com sua boca situada muito embaixo. Com certeza não viria precipitadamente, porque até o tubarão tem medo de arriscar a pele entre as pedras, e Bond teria ampla oportunidade de procurar atingir seus olhos com a faca.
Bond iluminou o teto e os lados da caverna com a lanterna. Certamente fora modelada ou acabada pela mão do homem. Bond calculou que deveria ter sido escavada de dentro para fora, a partir de algum lugar no centro da ilha.
“Faltam pelo menos vinte metros para acabar, gente”, Morgan, o Sanguinário, deve ter dito aos feitores de escravos. E então as picaretas devem ter rompido de repente o resto da parede que ainda separava a caverna do mar, e uma confusão de pernas, braços e bocas gritando, sufocadas para sempre pela água, teriam sido arremessadas para trás contra a pedra, juntando-se aos cadáveres das demais testemunhas.
O grande pedregulho na entrada deve ter sido posicionado para vedar a saída para o mar. O pescador da baía dos Tubarões que desapareceu de repente, seis meses atrás, deve tê-la descoberto um dia. Fora afastada de sua posição original por alguma tempestade ou tsunami consecutivo a um tufão. Então descobrira o tesouro e percebera que precisava de ajuda para dispor dele. Um branco o enganaria. Melhor procurar o grande gângster negro no Harlem e fazer o melhor acordo que pudesse. O ouro pertencia aos negros que haviam morrido para escondê-lo. Deveria ser devolvido aos negros.
Ali de pé, balançando na correnteza do túnel, Bond imaginou mais um barril cimentado mergulhando no lodo do rio Harlem.
Foi então que ouviu os tambores.
Lá fora, entre os peixes grandes, ouvira uma leve trovoada na água, que aumentara quando entrou na caverna. Mas julgara que eram apenas as ondas batendo na base da ilha e, de qualquer modo, tinha outras coisas em mente.
Mas agora podia distinguir um ritmo definido, e o som ribombava e crescia à sua volta, com um rufo abafado, como se o próprio Bond estivesse preso dentro de um vasto atabaque. A água parecia tremular por causa desse barulho. Ele imaginou o duplo objetivo do batuque. Era um grande chamado aos peixes, usado quando havia invasores, para atrair e excitá-los ainda mais. Quarrel lhe contara como os pescadores noturnos costumam bater nos lados da canoa com o remo para acordar e atrair os peixes. Aquilo deveria ser algo parecido. Ao mesmo tempo seria um aviso macabro do vodu para o pessoal da costa, duplamente eficaz quando algum cadáver era devolvido pelo mar no dia seguinte.
Mais um dos requintes de Mr. Big, pensou Bond. O batuque significava que ele fora descoberto. O que pensariam Strangways e Quarrel ao ouvi-lo? Seriam simplesmente obrigados a aguentar firme, sentados. Bond já havia percebido que os tambores eram algum truque e fizera os dois prometer que não iriam interferir, a não ser que o Secatur escapasse incólume. Pois isso significaria que todos os planos de Bond haviam fracassado. Ele contara a Strangways onde o ouro estava escondido, e neste caso o barco teria de ser interceptado em alto-mar.
Agora o inimigo fora alertado, mas não sabia quem era o invasor, nem se ele ainda estava vivo. Ele precisava prosseguir, nem que fosse para impedir por todos os meios que Solitaire embarcasse no iate condenado.
Bond consultou o relógio. Era meia-noite e meia. Para ele, poderia ter se passado uma semana desde que iniciara sua incursão pelo mar dos perigos.
Apalpou a Beretta sob a roupa de borracha, pensando se já não estaria avariada pela água que entrara pelo rasgo feito pelos dentes da barracuda.
Então, com o troar dos atabaques se aproximando cada vez mais de um crescendo, avançou na caverna, projetando adiante um pequeno feixe de luz com a lanterna.
Avançara cerca de dez metros quando viu um leve brilho na água à sua frente. Apagou a lanterna e foi se aproximando com cautela. O piso arenoso da caverna começou a se inclinar para cima, e a cada metro a luz se tornava mais forte. Agora podia ver dezenas de pequenos peixes que brincavam à sua volta e, mais adiante, a água estava cheia deles, atraídos pela luz da caverna. Caranguejos olhavam atentos de pequenas frestas nas pedras e um polvo novinho se achatou contra o teto, tomando a forma de uma estrela fosforescente.
Em seguida, pôde divisar o final da caverna e uma larga piscina brilhante, além, cujo fundo arenoso era branco como o dia. O roncar dos atabaques aumentava. Parou na sombra da entrada e percebeu que a superfície ficava apenas poucos centímetros acima e que havia lâmpadas sobre a piscina.
Bond estava em um dilema. Mais um passo e ficaria em plena vista de qualquer um que estivesse olhando para a piscina. Ao hesitar, argumentando consigo mesmo, ficou horrorizado ao ver uma fina nuvem de sangue de seu ombro se espalhando pela entrada. Esquecera o ferimento no ombro, que agora começara a latejar, e quando moveu o braço sentiu a ferroada de uma dor intensa em toda sua extensão. Havia também o fino jato de bolhas dos cilindros, mas ele esperava que elas fossem flutuando lentamente para arrebentar na beirinha da entrada.
No exato momento em que recuou alguns centímetros, seu futuro já estava selado.
Sobre sua cabeça percebeu apenas uma enorme pancada na água, e depois dois negros, nus a não ser pelas máscaras de mergulho nos rostos, com longas facas seguras como lanças em suas mãos esquerdas, investiram contra ele.
Antes que sua mão pudesse pegar a faca no cinto, já haviam agarrado seus dois braços e o puxavam para a superfície.
Desesperado, Bond teve de deixar que o tirassem à força da piscina e o jogassem na areia lisa. Depois de ser obrigado a se levantar, abriram os zíperes de seu traje de mergulho. Seu capuz foi retirado da cabeça, o coldre de seu ombro, e de repente ele se achou de pé entre os frangalhos da roupa preta de mergulho, como uma serpente trocando a pele, nu, exceto pelo pequeno calção de banho. O sangue escorria do buraco irregular no ombro esquerdo.
Quando tiraram seu capuz, Bond quase ensurdeceu com a batida e o rufar dos atabaques. O barulho penetrava nele e mexia com tudo em volta. O ritmo rápido e sincopado galopava e latejava nas suas veias. Parecia capaz de acordar toda a Jamaica. Bond fez uma careta e seus sentidos procuraram resistir aos golpes daquela tempestade sonora. Em seguida, os guardas o fizeram se virar e se deparar com uma cena tão grotesca que o som dos atabaques recuou para o fundo e toda sua consciência se concentrou no que via.
No primeiro plano, em uma mesa de jogo com tampo de veludo verde, apinhada de papéis, e sentado em uma cadeira de dobrar, estava Mr. Big, com uma caneta na mão, olhando-o sem curiosidade. Um Mr. Big em um terno castanho-amarelado, bem cortado, de tropical, com camisa branca e gravata de tricô de seda preta. O queixo largo descansava na sua mão esquerda e ele levantou os olhos para Bond como se tivesse sido incomodado, em seu escritório, por alguém de sua equipe pedindo um aumento de salário. Parecia polido, porém levemente entediado.
A alguns passos dele, sinistro e absurdo, o espantalho da efígie do Baron Samedi, ereto sobre uma pedra, observava Bond debaixo de seu chapéu-coco.
Mr. Big tirou a mão do queixo e seus grandes olhos dourados estudaram Bond da cabeça aos pés.
“Bom dia, senhor James Bond”, disse finalmente, projetando a voz inexpressiva contra o barulho já decrescente dos tambores. “A mosca levou mesmo muito tempo para chegar à aranha, ou talvez devesse dizer ‘o lambari à baleia’. Você deixou um belo rastro de bolhas no recife.”
Recostou-se na cadeira e se calou. Os atabaques batiam e rufavam mais baixo.
Então fora a luta contra o polvo que o traíra. A mente de Bond registrou o fato automaticamente, enquanto olhava para além do homem na mesa.
Estava em um salão de pedra grande como uma igreja. Metade do piso era ocupada pela enorme piscina clara e branca pela qual chegara, e que se transformava em verde-mar e depois azul perto do buraco de entrada submarino. Em seguida, havia a faixa estreita de areia em que ele pisava, e o resto do piso era de pedra lisa e plana, marcado por algumas estalagmites cinzentas e brancas.
A alguma distância atrás de Mr. Big uma escadaria íngreme levava a um teto abobadado, do qual pendiam estalactites curtas de calcário. De seus brancos mamilos a água gotejava intermitentemente na piscina, ou sobre as jovens estalagmites que se erguiam do chão, a seu encontro.
Havia uma dúzia de luzes fosforescentes muito claras fixadas alto nas paredes, criando reflexos dourados nos torsos nus de um grupo de negros em pé, à sua esquerda, no piso de pedra, observando Bond de olhos arregalados, mostrando os dentes em sorrisos cruéis e satisfeitos.
Em volta de seus pés pretos e rosados, entre destroços de madeira quebrada e anéis de ferro enferrujados, tiras mofadas de couro e lona decomposta, havia um mar fulgurante de moedas de ouro — metros, cascatas de moedas redondas de ouro, do qual emergiam as pernas pretas, como se tivessem sido detidas no meio de um passeio entre as chamas.
Ao lado deles, empilhadas fileira após fileira, ficavam bandejas rasas de madeira. Algumas estavam no chão, parcialmente cheias de moedas de ouro, e embaixo da escada, um único negro parara na subida, segurando uma delas repleta de moedas de ouro em quatro fileiras cilíndricas, estendida como se estivesse sendo oferecida à venda.
Mais à esquerda, em um canto do salão, havia dois negros próximos a um caldeirão de ferro arredondado, suspenso acima de três maçaricos sibilantes, até que seu fundo ficasse vermelho incandescente. Seguravam escumadeiras de ferro, lambuzadas de ouro até metade de seus cabos. Ao lado deles havia uma miscelânea de peças de ouro, talheres, objetos de altar, copos, cruzes e uma pilha de lingotes de ouro de diversos tamanhos. Ao longo da parede viam-se, próximas a eles, fileiras de bandejas para esfriar o metal, cujas superfícies segmentadas irradiavam um brilho dourado, e uma bandeja vazia descansava no piso perto do caldeirão, junto com uma longa concha manchada de ouro e o cabo envolto em pano.
Acocorado no chão, não muito distante de Mr. Big, um único negro segurava uma faca em uma das mãos, e uma taça ornamentada de brilhantes na outra. A seu lado, em um prato de lata, uma pilha de joias cintilava, embaçadas, vermelhas, azuis e verdes, sob o brilho das lâmpadas fluorescentes.
Estava quente e abafado no grande salão de pedra e, no entanto, Bond tiritava ao abarcar toda essa esplêndida cena com os olhos. O brilho das lâmpadas violeta esbranquiçadas, o bronzeado tremeluzente dos corpos suados, o brilho forte do ouro, o arco-íris do recipiente com os brilhantes, a água marinha em tom leitoso da piscina. Ele tremia diante da beleza daquilo tudo, diante daquela dança petrificada da grande arca do tesouro de Morgan, o Sanguinário.
Seus olhos voltaram para o quadrado de veludo verde e para a grande face de zumbi, olhando aquele rosto e seus olhos amarelos com respeito, quase com reverência.
“Pare os tambores”, disse Mr. Big, para ninguém em particular. O batuque se reduzira a um quase sussurro, a um murmúrio cujo acento recaía sobre o ritmo do coração nas veias. Um dos negros deu dois passos, acompanhados de barulhos metálicos entre as moedas, abaixando-se. Um aparelho de som portátil estava no chão, com um potente amplificador ao lado, contra a parede de pedra. Depois de um clique os tambores pararam. O negro fechou a tampa do aparelho e voltou a seu lugar.
“Andem com o trabalho”, ordenou Mr. Big. E de repente todas as figuras começaram a se mover, como se alguém tivesse posto uma moeda em um caça-níquel. Mexeram o caldeirão, pegaram o ouro e o puseram nas caixas, o sujeito procurava retirar a pedraria da taça, e o negro com a bandeja de ouro prosseguiu subindo a escada.
Bond continuava de pé, pingando suor e sangue.
Big Man descansou a caneta e se levantou devagar. Afastou-se da mesa.
“Assuma meu lugar”, ordenou a um dos homens que guardavam Bond, e o sujeito nu rodeou a mesa, sentou na cadeira de Mr. Big e pegou a caneta.
“Traga-o aqui para cima.” Mr. Big foi até os degraus na rocha e começou a subi-los lentamente.
Bond sentiu uma picada do lado. Acabou de despir os restos de sua segunda pele preta e seguiu a figura que subia devagar.
Ninguém levantou os olhos do trabalho. Ninguém descuidava do serviço quando Mr. Big saía. Ninguém seria capaz de enfiar um brilhante ou uma moeda na boca.
O Baron Samedi assumira a chefia.
Apenas seu zumbi deixara a caverna.
21.
“BOA NOITE A AMBOS”
Subiram vagarosamente por cerca de treze metros, passando por uma porta aberta perto do teto, e pararam em um grande patamar na pedra. Ali um único negro, à luz de um lampião de acetileno, arrumava bandejas cheias de moedas de ouro no meio dos tanques de peixe, muitos já se encontrando empilhados contra a parede.
Enquanto esperavam, dois negros desceram a escada, vindos da superfície, pegaram um tanque pronto e voltaram para cima com ele.
Bond achava que eles enchiam os tanques com areia, plantas aquáticas e peixes em algum lugar no alto, e depois os desciam através da corrente humana ao longo da face do rochedo.
Notou que alguns dos tanques à espera tinham lingotes de ouro fixados no centro, e outros, pedrarias espalhadas como cascalho. Então refez os cálculos sobre o tesouro, quadruplicando seu valor até cerca de quatro milhões de libras esterlinas.
Mr. Big ficou um tempo com o olhar no chão de pedra. Respirava fundo, mas de maneira controlada. Em seguida, subiram.
Vinte degraus acima havia outro patamar, menor, com uma porta de saída. Nela havia corrente e cadeado novos. A própria porta era feita de grades de ferro marrons, achatadas, corroídas pela ferrugem.
Mr. Big parou de novo e ficaram lado a lado na pequena plataforma de pedra.
Por um momento Bond pensou em fugir, mas, como se tivesse lido a sua mente, o guarda negro cercou-o contra a parede, longe de Big Man. E Bond sabia que sua maior obrigação era se manter vivo e chegar a Solitaire, e arranjar um jeito de afastá-la do barco condenado pela mina, em que o ácido roía lentamente o cobre do detonador.
Do alto vinha uma forte correnteza pelo vão da escada, e Bond sentiu que seu suor secava. Pôs a mão direita no ferimento do ombro, sem se assustar com a picada no flanco feita pela faca do guarda. O sangue já secara em crostas e a maior parte do braço doía tremendamente.
Mr. Big falou:
“Este vento, sr. Bond”, apontou para o vão, “é conhecido na Jamaica como ‘vento Papa-Defunto’”.
Bond sacudiu o ombro direito, poupando o fôlego.
Mr. Big virou para a porta de ferro, tirou a chave do bolso e abriu-a. Passou e foi seguido por Bond e seu guarda.
Era um cômodo que consistia em uma estreita passagem, com grilhões enferrujados presos embaixo na parede, a menos de dez metros de intervalo.
Na outra extremidade, onde uma lamparina pendia do teto de pedra, uma figura imóvel estava deitada no chão, embrulhada em um cobertor. Havia mais uma lamparina na porta, em cima de suas cabeças, mas, exceto isso, apenas o cheiro de pedra úmida, torturas antigas e morte.
“Solitaire”, falou Bond, baixinho.
O coração de Bond deu um salto e ele quis se adiantar. Imediatamente uma mão enorme agarrou seu braço.
“Pare aí, seu branco”, vociferou o guarda, torcendo o punho dele entre as espáduas, levantando-o ainda mais, até que Bond deu um chute com o calcanhar esquerdo. Acertou na canela do homem, mas doeu mais em Bond do que no guarda.
Mr. Big se virou. Tinha uma pequena arma quase encoberta pela mão enorme.
“Solte-o”, ordenou em voz baixa. “Se quiser mais um umbigo, senhor Bond, é só dizer. Tenho seis aqui nesta arma.”
Bond passou esbarrando em Big Man. Solitaire se levantara, vindo em sua direção. Quando viu seu rosto, desandou a correr, estendendo as mãos.
“James”, soluçou. “James.”
Ela quase caiu a seus pés. Suas mãos se agarraram.
“Arranje corda”, ordenou Mr. Big no vão da porta.
“Está tudo bem, Solitaire”, disse Bond, sabendo que não estava. “Está tudo bem. Estou aqui agora.”
Ele pegou-a, mantendo-a a distância de seu braço estendido. O braço esquerdo doeu. Ela estava pálida e desarrumada, com um machucado na testa e olheiras. No seu rosto encardido as lágrimas escorriam deixando marcas na pele lívida. Estava sem maquiagem. Trajava um terninho branco sujo e sandálias. Parecia magra.
“O que esse desgraçado anda fazendo com você?”, perguntou Bond. Apertou-a de repente contra si. Ela se agarrou a ele, com o rosto enterrado em seu pescoço.
Em seguida, se afastou e olhou para a mão dele.
“Você está sangrando”, disse. “O que é?”
Virou-o pela metade e viu o sangue preto no seu ombro e pelo braço abaixo.
“Ah, meu querido, o que foi?”
Começou a chorar de novo, desamparada, desesperada, percebendo subitamente que ambos estavam perdidos.
“Amarre-os”, ordenou Big Man, da porta. “Aqui, debaixo da luz. Preciso dizer-lhes umas coisas.”
O negro estava vindo e Bond se virou. Valeria a pena arriscar? O negro só tinha a corda na mão. Mas Big Man deu um passo para o lado, vigiando-o, segurando a arma displicentemente, meio apontada para o chão.
“Não, senhor Bond”, avisou apenas.
Bond lançou um olhar para o negro enorme e pensou em Solitaire e no seu próprio ombro ferido.
O negro chegou e Bond deixou que amarrasse seus braços atrás das costas. Os nós foram bem dados. Não havia folga. Doíam.
Bond sorriu para Solitaire. Piscou um olho pela metade. Não passava de uma bravata, mas percebeu uma vivacidade esperançosa renascer em meio a suas lágrimas.
O negro levou-o de volta à porta.
“Ali”, disse Big Man, fazendo um gesto para um dos grilhões.
O negro derrubou Bond com uma rasteira repentina. Este caiu em cima do ombro ferido. O negro puxou-o pela corda até o grilhão, testou-o, passou a corda por ele e então amarrou Bond pelos tornozelos, muito bem amarrado. Enfiara sua faca em uma fresta na pedra. Tirou-a, cortou a corda e voltou para onde Solitaire estava.
Bond ficou sentado no chão de pedra, com as pernas esticadas para a frente, com os braços suspensos, amarrados por trás. O sangue pingava do ferimento reaberto. Apenas os resíduos da benzedrina no seu corpo o impediam de desmaiar.
Solitaire foi amarrada e colocada quase defronte a ele. Um metro separava os pés de ambos.
Com a tarefa concluída, Big Man consultou o relógio.
“Vá”, ordenou ao guarda. Fechou a porta de ferro depois que o sujeito se foi, ficando encostado nela.
Bond e a garota se entreolharam e Big Man contemplou os dois no chão.
Depois de um de seus longos silêncios, dirigiu-se a Bond. Este levantou os olhos para ele. A enorme bola de futebol cinzenta que era sua cabeça parecia, sob o lampião, a cabeça de um elemental, de algum espectro maligno do centro da terra, pairando no ar, com os olhos dourados ardendo firmes, e o grande corpo na sombra. Bond precisou lembrar-se de que já ouvira o coração dele batendo no peito, já o ouvira respirar, já vira suor na pele cinzenta. Não passava de um homem, da mesma espécie dele, um homem grande, com uma mente brilhante, mas ainda assim um homem que caminhava e defecava, um homem mortal, com uma doença no coração.
A boca larga e borrachuda se abriu, os lábios achatados, levemente virados, recuaram dos grandes dentes brancos.
“Você é o melhor de todos os que foram mandados para me combater”, disse Mr. Big. Sua voz baixa e insossa era pensativa, calculada. “E conseguiu matar quatro de meus ajudantes. Meus seguidores acham isso inacreditável. Já é mais do que tempo de liquidarmos nossas contas. O que aconteceu ao americano não bastou. A traição desta garota”, ele ainda olhava para Bond, “que tirei da sarjeta e estava pronto a colocar na minha mão direita, também questionou a minha infalibilidade. Eu estava imaginando como ela deveria morrer, quando a providência, ou o Baron Samedi, como meus seguidores gostam de acreditar, também trouxe você para o altar de cabeça baixa, pronto para o machado”.
A boca parou, com os lábios entreabertos. Bond viu os dentes se juntarem para formar a palavra seguinte.
“De modo que é conveniente que os dois morram juntos. Isso acontecerá de um modo adequado”, Big Man consultou seu relógio, “dentro de duas horas e meia. Às seis horas, alguns minutos a mais ou a menos”, acrescentou.
“Alguns minutos a mais”, comentou Bond. “Gosto da vida.”
“Na história de emancipação dos negros”, continuou Mr. Big em tom de conversa despreocupada, “já surgiram grandes atletas, grandes músicos, grandes escritores, grandes médicos e cientistas. No seu devido tempo, como aconteceu na história do desenvolvimento de outras raças, hão de surgir negros famosos em todos os demais setores da vida”. Fez uma pausa. “Infelizmente para você, senhor Bond, e para esta garota, vocês encontraram o primeiro dos grandes criminosos negros. Uso esta palavra vulgar, senhor Bond, porque seria a mesma que você, senhor Bond, como uma espécie de policial, usaria. Mas prefiro me considerar uma pessoa que possui a habilidade, as capacidades mentais e nervosas para criar as próprias leis e agir segundo elas, em vez de aceitar as leis que convêm ao mínimo denominador comum das pessoas. Sem dúvida você já leu Os instintos do rebanho na paz e na guerra, de Trotter. Pois bem, sou lobo por índole e opção, e vivo segundo as leis do lobo. É natural que os carneiros descrevam este indivíduo como ‘criminoso’.
“O fato, senhor Bond”, prosseguiu Big Man, depois de uma pausa, “de que sobrevivo e, na verdade, gozo de um sucesso ilimitado, embora seja eu sozinho contra milhões de carneiros, se deve às técnicas modernas que lhe descrevi por ocasião de nossa última conversa, e a uma infinita capacidade de me esforçar. Não os esforços tediosos, vulgares, e sim os artísticos e sutis. E eu noto, senhor Bond, que não é difícil enganar os carneiros, não importa quantos, com muita dedicação ao trabalho e, naturalmente, se formos um lobo extremamente bem dotado.
“Deixe-me ilustrar, por exemplo, como funciona a minha mente. Estudemos o método pelo qual decidi que ambos morrerão. É uma variação moderna do método usado na época do meu generoso patrono, sir Henry Morgan. Naquele tempo, era conhecido como ‘arrastamento pela quilha’.”
“Por favor, continue”, disse Bond, sem olhar para Solitaire.
“Temos uma paravana a bordo do iate”, prosseguiu Mr. Big, como se fosse um cirurgião descrevendo uma operação delicada para um grupo de estudantes, “que usamos para rebocar tubarões e outros peixes de grande porte. Esta paravana é, como sabem, um aparelho com a forma de um torpedo, que boia puxado por um cabo, distante do barco. Pode ser usada para sustentar a extremidade de uma rede, rebocando-a através da água, com o barco em movimento. Também pode ser equipada com um instrumento de corte, para cortar os cabos de amarração das minas em época de guerra.
“Pretendo”, continuou Mr. Big, em um tom de voz discursivo e natural, “amarrá-los juntos à extremidade de um cabo preso a essa paravana e rebocá-los pelo mar até que sejam devorados pelos tubarões”.
Fez uma pausa, enquanto seu olhar passava de um para outro. Solitaire mirava de olhos arregalados para Bond, que se esforçava em pensar, com o olhar ausente, perscrutando o futuro. Sentiu que deveria dizer alguma coisa.
“Você é um homem grande”, afirmou, “e um dia morrerá de uma morte igualmente grande e terrível. Se nos matar, essa morte virá em breve. Já a providenciei. Está enlouquecendo a olhos vistos, senão perceberia a repercussão que nosso assassinato terá sobre sua vida”.
Enquanto falava, a mente de Bond funcionava rápido, contando horas e minutos, sabendo que a própria morte de Big Man chegaria devagar, com o ácido corroendo o detonador seguindo o ponteiro dos minutos, rumo à hora do encontro final com seu destino. Mas estariam ele e Solitaire mortos, antes que soasse essa hora? Minutos, talvez segundos, fariam a diferença. O suor escorria do seu rosto para o peito. Sorriu para Solitaire. Ela lhe deu um olhar ausente, sem enxergá-lo.
De repente deu um grito agoniado que sacudiu os nervos de Bond.
“Não sei”, gritou. “Não consigo ver. Está tão perto, tão próximo. Há muitas mortes. Mas...”
“Solitaire”, gritou Bond, apavorado com a possibilidade de que as coisas estranhas que ela previsse, quaisquer que fossem, pudessem servir de aviso a Big Man. “Controle-se.”
Havia um toque de raiva em sua voz.
Os olhos dela clarearam, olhando mudos para ele, sem compreender.
Big Man falou de novo.
“Não estou ficando louco, senhor Bond”, avisou calmamente, “e nenhuma providência sua me afetará. Vocês morrerão além do recife e não restará nenhum indício. Rebocarei os restos de seus corpos até que não sobre nada. Isso faz parte da sagacidade dos meus planos. Vocês também devem saber que o tubarão e a barracuda desempenham um papel no voduísmo. Eles receberão seus sacrifícios e o Baron Samedi será apaziguado. Meus seguidores ficarão satisfeitos. Da mesma forma, desejo continuar minhas experiências com os peixes carnívoros. Acredito que só atacam quando há sangue na água. Por isso seus corpos serão rebocados desde a ilha. A paravana os rebocará sobre o recife. Acho que não serão atacados antes da barra. O sangue e as vísceras que são jogados todas as noites nessas águas já terão sido dispersos ou consumidos. Mas quando seus corpos forem rebocados por cima do recife, infelizmente sangrarão, ficarão em carne viva. Então veremos se minhas teorias estão corretas.”
Big Man estendeu a mão para trás e abriu a porta.
“Eu os deixarei agora”, falou, “para que reflitam sobre a excelência do método que criei para matá-los juntos. Não restará indício algum. A superstição ficará satisfeita. Meus seguidores também. Os corpos serão utilizados para a pesquisa científica.
“Isso é o que eu chamo, senhor James Bond, de uma capacidade infinita de refinamento artístico.”
Parou no vão da porta e olhou para os dois.
“Uma noite breve, porém boa. É o que desejo a ambos.”
22.
TERROR NO MAR
O dia ainda não clareara quando os guardas vieram buscá-los. As cordas que prendiam suas pernas foram cortadas e, com os braços ainda atados, foram levados pelos últimos degraus de pedra que faltavam para a superfície.
Ficaram entre algumas árvores esparsas e Bond aspirou o ar frio da manhã. Olhou através das árvores na direção do oriente e viu que as estrelas estavam mais pálidas e havia uma luminosidade no horizonte que anunciava o raiar da aurora. O cicio noturno dos grilos quase terminara e, em algum canto da ilha, um tordo ensaiava as primeiras notas do dia.
Bond calculou que deviam ser mais ou menos cinco e meia.
Ficaram ali vários minutos. Os negros passavam próximos a eles, carregando embrulhos e malas de fibra de palmeira, entre cochichos cautelosos. As portas do punhado de palhoças entre as árvores estavam escancaradas. Os homens andavam em fila até a beira do penhasco, à direita de Bond e Solitaire, desaparecendo por ali. Não voltavam. Era uma evacuação. Toda a guarnição da ilha levantava acampamento.
Bond esfregou o ombro desnudo contra Solitaire e ela se aninhou contra ele. Fazia frio depois da masmorra abafada, e Bond tiritava. Mas era melhor estar em movimento do que prolongar o suspense lá de baixo.
Ambos sabiam o que precisava ser feito, a natureza do risco.
Depois que Big Man os deixara, Bond não perdera tempo. Falando baixinho, contara à garota sobre a mina magnética presa ao costado do barco, prevista para explodir alguns minutos depois das seis horas, e explicara os fatores decisivos para saber quem morreria ou não naquela manhã.
Primeiro, apostara na mania de exatidão e de eficiência de Mr. Big. O Secatur precisava zarpar às seis horas em ponto. Portanto, não deveria haver nenhuma nuvem, se não a visibilidade na meia-luz do amanhecer não seria suficiente para assegurar a passagem do barco através do recife, e Mr. Big adiaria a partida. Se Bond e Solitaire estivessem no atracadouro ao lado do iate, morreriam junto com Mr. Big.
Supondo que o barco zarpasse na hora exata, a que distância e de que lado dele seriam rebocados? Teria de ser a bombordo para que a paravana ficasse desimpedida na hora de deixar a ilha. Bond supôs que o cabo de reboque da paravana teria cinquenta metros de comprimento, e que eles seriam rebocados vinte ou trinta metros atrás da paravana.
Se ele estivesse certo, seriam arrastados por cima do recife externo cerca de cinquenta metros depois de o Secatur ter rompido pelo canal. Provavelmente se aproximaria da passagem nos recifes a cerca de três nós e, em seguida, pegaria velocidade até chegar a dez, ou até mesmo a vinte. De início seus corpos seriam rebocados da ilha em um lento arco, virando e se retorcendo na ponta da linha de reboque. Logo depois a paravana se endireitaria e, mesmo após o barco ter transposto o recife, eles ainda não teriam chegado a ele. Portanto, a paravana passaria pelo recife quando o barco já o tivesse ultrapassado em quarenta metros, e depois eles a seguiriam a alguns metros a mais de distância.
Bond estremeceu ao pensar nos ferimentos que seus corpos sofreriam se fossem arrastados, a qualquer velocidade, sobre os dez metros de árvores e recifes de coral, afiados como uma navalha. Ficariam com as costas e as pernas esfoladas.
Depois de atravessarem o recife, não passariam de uma isca sanguinolenta, e seria apenas uma questão de minutos até que o primeiro tubarão ou barracuda avançasse neles.
E Mr. Big, sentado confortavelmente no deque da popa, assistiria à carnificina, talvez de binóculos, marcando os segundos e os minutos enquanto a isca viva ia diminuindo de tamanho, até que finalmente os peixes só abocanhassem o cabo ensanguentado.
Até que não restasse coisa alguma.
Então a paravana seria içada a bordo e o iate cortaria o mar graciosamente rumo à longínqua Florida Keys, a Cape Sable e ao atracadouro ensolarado no porto de St. Petersburg.
E se a mina explodisse quando eles ainda estivessem na água, a cinquenta metros do barco? Qual seria o efeito do deslocamento de ar em seus corpos? Talvez não fosse fatal. O casco do iate absorveria a maior parte. O recife talvez os protegesse.
Bond só podia adivinhar e manter a esperança.
Sobretudo, precisavam continuar vivos até o último segundo possível. Precisavam continuar respirando enquanto fossem arrastados, como um pacote vivo, pelo mar. Muita coisa dependia da maneira como eles os amarrariam um ao outro. Mr. Big haveria de querer que continuassem vivos. Não lhe interessaria uma isca morta.
Se ainda estivessem vivos quando a primeira barbatana de tubarão surgisse à tona atrás deles, Bond decidira afogar friamente Solitaire. Afogá-la torcendo seu corpo debaixo do seu e segurando-o ali. Em seguida, tentaria se afogar torcendo o corpo morto dela de volta para que o seu ficasse por baixo.
Cada volteio de seu pensamento esbarrava em um pesadelo, no horror nauseante de cada detalhe medonho da tortura monstruosa que aquele homem havia preparado para eles. Mas Bond sabia que precisava conservar o sangue-frio e a resolução absoluta de lutar pelas suas vidas até o fim. Havia ao menos uma sensação calorosa na ideia de que Mr. Big e a maioria de seus homens também morreriam. E um lampejo de esperança de que ele e Solitaire talvez sobrevivessem. A não ser que a mina falhasse, o inimigo não poderia contar com nenhuma esperança.
Tudo isso e uma centena de outros pormenores e planos passaram pela cabeça de Bond na última hora antes de serem levados pelo vão da escada até a superfície. Com Solitaire compartilhou todas as suas esperanças. Nenhum dos seus temores.
Ela ficara deitada à sua frente, com seus olhos azuis e cansados fixos nele, obedientes, confiantes, bebendo seu rosto e suas palavras, dóceis, amorosos.
“Não se preocupe comigo, querido”, dissera, quando os homens vieram buscá-los. “Sinto-me feliz de estar de novo com você. Meu coração está cheio de felicidade. De algum modo, não estou com medo, apesar de pressentir uma grande matança. Você me ama um pouquinho?”
“Sim”, respondeu Bond. “E vamos ainda aproveitar o nosso amor.”
“Vambora”, disse um dos homens.
E agora, no alto do morro, clareava. Bond ouviu os dois grandes motores a diesel tossirem e roncarem embaixo do penhasco. Uma leve brisa soprava a barlavento, mas a sota-vento, onde estava o barco, a baía era um espelho de bronze.
Mr. Big apareceu no alto da escadaria, com uma pasta de executivo na mão. Ficou por um momento olhando em volta, recuperando o fôlego. Não prestou nenhuma atenção a Bond ou Solitaire, nem aos dois guardas ao lado deles, de revólveres na mão.
Olhou para o céu e de repente clamou, em um tom de voz nítido, na direção da orla do sol.
“Obrigado, sir Henry Morgan. Seu tesouro será bem gasto. Dê-nos um vento de popa.”
Os guardas negros arregalaram os olhos.
“O vento Papa-Defunto”, disse Bond.
Big Man olhou-o.
“Já está tudo embaixo?”, perguntou aos guardas.
“Sim senhor, patrão”, respondeu um deles.
“Leve-os”, ordenou Big Man.
Foram até a beira do penhasco e desceram a escadaria íngreme, com um guarda na frente, outro atrás e Mr. Big a seguir.
Os motores do longo e elegante iate giravam sossegados, com o escape borbulhando gravemente, e um fio de vapor azul a se erguer da popa.
Três sujeitos no molhe cuidavam das guias. Só havia três homens no convés, além do capitão, e o piloto na ponte escura, bem projetada. Não havia mais espaço para ninguém. Todo o espaço disponível no convés, exceto por uma cadeira de pesca presa no lado direito da popa, era preenchido pelos tanques de peixe. Com o pavilhão vermelho arriado, só a bandeira americana pendia imóvel da popa.
Distante alguns metros do barco, a paravana vermelha em forma de torpedo, com cerca de dois metros de comprimento, flutuava tranquilamente na água, agora verde-mar ao primeiro amanhecer. Estava ligada a uma grossa pilha de cabos metálicos, enrolados no convés da popa. Parecia a Bond que eles deveriam ter uns bons cinquenta metros. A água estava cristalina e não havia peixes rondando por perto.
O vento Papa-Defunto morria aos poucos. Dentro em breve o vento Médico começaria a soprar vindo do mar. Dentro de quanto tempo?, perguntou-se Bond. Seria um presságio?
Ao longe, além do barco, ele conseguia avistar o teto de Beau Desert entre as árvores, mas o molhe, o barco e a trilha no penhasco ainda estavam mergulhados em profunda sombra. Bond pensou se os binóculos de visão noturna conseguiriam vê-los. Se pudessem, o que pensaria Strangways?
No molhe, Mr. Big supervisionava a tarefa de amarrá-los.
“Tire a roupa dela”, ordenou ao guarda.
Bond se encolheu. Deu uma olhada de relance para o relógio de pulso de Mr. Big. Nele, faltavam dez minutos para as seis. Bond manteve silêncio. Não deveria haver nem um minuto de atraso.
“Jogue as roupas a bordo”, disse Mr. Big. “Amarre uns panos no ombro dele. Não quero que haja sangue na água ainda.”
As roupas de Solitaire foram cortadas a faca. Ela permaneceu ali, nua e pálida. Abaixou a cabeça e seus cabelos pesados caíram para a frente, tapando seu rosto. O ombro de Bond foi atado grosseiramente com tiras do seu vestido de linho.
“Canalha”, desabafou Bond, de dentes cerrados.
Sob a direção de Mr. Big, primeiro soltaram as mãos dos dois. Seus corpos foram atados frente a frente, e seus braços passados pela cintura um do outro, e depois novamente atados com força.
Bond sentiu a pressão dos seios macios de Solitaire. Ela encostou o queixo no ombro direito dele.
“Eu não queria que fosse assim”, sussurrou, trêmula.
Bond não respondeu. Mal sentia o corpo dela. Contava os segundos.
No molhe havia uma corda enovelada que ia até a paravana. Mergulhava na água e Bond a distinguia seguindo no fundo de areia até surgir de encontro à barriga do torpedo vermelho.
Sua extremidade solta foi passada debaixo das axilas de Bond e Solitaire, e bem amarrada com um nó que ficava no espaço entre seus pescoços. Tudo feito com muito cuidado. Não havia possibilidade de fuga.
Bond contava os segundos. De acordo com ele, faltavam cinco para as seis.
Mr. Big deu uma última olhada nos dois.
“Deixem as pernas soltas”, comentou. “Dão uma isca apetitosa.” Deixou o molhe e embarcou no convés do iate.
Os dois guardas também embarcaram. Depois de soltarem as guias, os dois sujeitos no molhe os seguiram. As hélices revolveram a água mansa e, com os motores a meia velocidade, o Secatur se afastou rapidamente da ilha.
Mr. Big foi para a popa, sentando-se na cadeira de pesca. Podiam ver o seu olhar fixo neles. Não disse nada. Não fez gesto algum. Apenas contemplava.
O Secatur cortava a água em direção ao recife. Bond podia ver o cabo da paravana se desenrolando no costado. A paravana começou a se mover lentamente atrás do barco. De repente mergulhou o nariz, endireitou-se e disparou, com o leme se dobrando na direção contrária à esteira do barco.
O rolo de corda ao lado deles deu um súbito sinal de vida.
“Cuidado”, avisou Bond, com urgência, agarrando-se com mais força à garota.
Seus braços quase se desconjuntaram com o solavanco do puxão, quando caíram do molhe no mar.
Por um instante ambos submergiram, depois voltaram à tona, com seus corpos unidos rasgando a água.
Bond procurava respirar em meio às ondas e aos borrifos que passavam depressa por ele, inundando sua boca retorcida. Podia ouvir a respiração entrecortada de Solitaire ao lado do seu ouvido.
“Respire, respire”, gritou, através da avalanche de água. “Prenda suas pernas nas minhas.”
Ela ouviu-o e ele sentiu entre as coxas a pressão dos joelhos dela. Solitaire teve um acesso de tosse. Em seguida, a respiração dela tornou-se mais regular junto ao seu ouvido e as batidas do coração da mulher acalmaram-se contra o seu peito. Ao mesmo tempo, a velocidade em que eram rebocados sofreu uma redução.
“Prenda a respiração”, gritou Bond. “Preciso dar uma olhada. Pronta?”
Ela respondeu com uma pressão dos braços. Ele sentiu o peito dela inflar quando seus pulmões se encheram de ar.
Usando o peso do corpo, girou-a para baixo, de maneira que a cabeça dele agora estava totalmente fora d’água.
Cortavam o mar a cerca de três nós. Dobrou a cabeça acima da pequena marola que faziam.
O Secatur entraria na passagem entre os recifes dentro de aproximadamente oitenta metros, segundo calculou. A paravana deslizava lentamente, quase em ângulo reto em relação ao barco. Faltavam trinta metros para o torpedo vermelho atravessar as águas encrespadas sobre o recife. Trinta metros atrás da paravana, eles navegavam devagar na superfície da baía.
Sessenta metros até o recife.
Bond girou o corpo e Solitaire emergiu, ofegante.
Continuaram a avançar lentamente na água.
Cinco metros, dez, quinze, vinte...
Apenas quarenta metros para atingirem o banco de coral.
O Secatur deveria ter acabado de transpô-lo. Bond recuperou o fôlego. Já devia passar das seis. Que teria acontecido com a porcaria da mina? Bond fez uma rápida e fervorosa oração. Que Deus nos salve, disse dentro d’água.
De repente sentiu que a corda apertava sob seus braços.
“Respire, Solitaire, respire”, gritou quando retomaram a velocidade e a água começou a passar sibilante por eles.
Agora voavam pelo mar em direção ao recife submerso.
Houve uma ligeira diminuição de velocidade. Bond imaginou que a paravana tivesse batido em uma pedra ou algum coral na superfície. Em seguida, seus corpos voltaram a disparar no seu abraço mortal.
Faltavam trinta metros, vinte, dez...
Meu Deus, pensou Bond. Não escaparemos. Contraiu os músculos para enfrentar a dor lancinante do impacto, empurrando Solitaire mais para cima, para protegê-la do pior.
De repente o ar fugiu com um chiado de seus pulmões, e um punho gigantesco socou-o contra Solitaire, de modo que ela se ergueu totalmente fora do mar e voltou a cair. Uma fração de segundo depois, um clarão iluminou o céu e ouviu-se o ribombar de uma explosão.
Estacaram de repente, e Bond percebeu que o peso da corda solta os puxava para baixo.
Suas pernas afundaram sob seu corpo atordoado e a água inundou sua boca.
Foi o que o fez recuperar a consciência. As pernas dele se debateram no fundo, voltando a trazer suas bocas até a tona. A garota era um peso morto em seus braços. Ele revolvia a água em desespero e olhava à sua volta, segurando a cabeça desmaiada de Solitaire em seu ombro, acima da superfície.
A primeira coisa que viu foram as águas revoltas do recife, a não mais de cinco metros de distância. Sem a sua proteção, ambos teriam sido esmagados pelo impacto da explosão. Ele sentiu o repuxo e o rodamoinho da correnteza em volta das pedras. Avançou desesperado em direção a ele, aspirando golfadas de ar sempre que possível. Seu peito ardia com o esforço e ele via o céu através de uma película vermelha. A corda o puxava para baixo e o cabelo da garota enchia sua boca, quase o sufocando.
De repente sentiu um arranhão agudo do coral contra a parte de trás das pernas. Chutou-as procurando desesperadamente um apoio para os pés, esfolando a pele a cada movimento.
Mal sentia dor.
Agora eram seus braços e suas costas que estavam sendo arranhados. Tropeçou, desajeitado, com os pulmões ardendo no peito. Em seguida sentiu uma camada de agulhas sob os pés. Arriou o peso nela, inclinando-se para trás para resistir à forte correnteza que procurava desalojá-lo. Seus pés resistiram e havia rocha às suas costas. Inclinou-se para trás, ofegante, com o sangue escorrendo em volta dele na água, segurando contra si o corpo frio da garota, que mal respirava.
Descansou por um minuto, com gratidão, olhos fechados e o sangue pulsando nas veias, tossindo dolorosamente, à espera de que seus sentidos se reanimassem. Seu primeiro pensamento foi em relação ao sangue na água à sua volta. Mas desconfiou de que os grandes peixes não se aventuravam até o recife. Aliás, não havia nada que ele pudesse fazer quanto a isso.
Em seguida, olhou para o mar.
Não havia sinal algum do Secatur.
No alto do céu tranquilo via-se um cogumelo de fumaça, que o vento Médico começava a arrastar em direção à terra.
Havia destroços espalhados sobre toda a extensão do mar e cabeças que subiam e desciam. A água estava toda coalhada com as barrigas brancas dos peixes atordoados ou mortos pela explosão. Um cheiro forte de explosivo pairava no ar. Na orla dos destroços a paravana vermelha jazia tranquila com o casco para baixo, ancorada pelo cabo cuja outra ponta deveria se encontrar em algum lugar no fundo. Colunas de bolhas emergiam na superfície vítrea do mar.
Na beira do círculo de peixes mortos e cabeças balouçantes, algumas barbatanas triangulares cortavam rápido o mar. Mais delas surgiram enquanto Bond observava. Em uma ocasião viu um grande focinho surgir da água e abocanhar alguma coisa. As barbatanas espirravam água ao chapinhar entre os escolhos. Dois braços negros se ergueram de repente no ar, desaparecendo em seguida. Ouviram-se gritos. Algumas pessoas davam braçadas agitadas no mar em direção ao recife. Alguém parou para bater na água diante dele com a mão espalmada. Depois as mãos desapareceram sob a superfície. Ouviram-se os gritos de quando seu corpo foi sacudido para lá e para cá dentro d’água. Uma barracuda o devorando, disse Bond consigo mesmo, atordoado.
Mais uma cabeça se aproximava, procurando chegar ao ponto do recife onde estava Bond, pequenas ondas quebrando sob suas axilas, e o cabelo preto da garota caído nas suas costas.
Era uma cabeça grande. Uma cortina de sangue escorria pelo seu rosto, de um ferimento no crânio imenso e calvo.
Bond observava a sua aproximação.
Big Man executava um nado de peito desajeitado, fazendo tanto espalhafato na água que era capaz de atrair qualquer peixe que já não estivesse ocupado.
Bond perguntou a si mesmo se ele conseguiria chegar. Seus olhos se estreitaram e sua respiração se acalmou, contemplando e esperando a decisão que o mar cruel tomaria.
A cabeça se aproximava. Bond podia ver os dentes à mostra em uma contração de agonia e de esforço titânico. O sangue tapava os olhos que Bond sabia estarem esbugalhados. Podia quase ouvir o grande coração doente batendo debaixo da pele preta acinzentada. Pararia antes que a isca fosse abocanhada?
Big Man continuava a vir. Os ombros estavam nus, as roupas haviam sido arrancadas pela explosão, imaginou Bond, porém, a gravata de seda preta resistira e aparecia em volta do pescoço grosso, arrastada atrás da cabeça como um rabicho de chinês.
Um borrifo de água limpou um pouco do sangue de seus olhos. Estavam arregalados, olhando desvairados para Bond. Neles não havia nenhuma súplica, somente o olhar fixo da exaustão física.
No instante mesmo em que Bond os contemplava, agora a apenas dez metros, fecharam-se de repente e o grande rosto se contorceu em uma careta de dor.
“Aarrh”, gritou a boca retorcida.
Os dois braços pararam de bater na água e a cabeça afundou e voltou à tona de novo. Uma nuvem de sangue escureceu o mar. Duas sombras esguias e marrons de três metros se afastaram da nuvem e, em seguida, voltaram rápido para ela. O corpo na água foi sacudido de lado. Metade do braço de Big Man surgiu à tona. Sem mão, sem pulso, nem relógio.
Mas a grande cabeça de nabo, a boca arreganhada cheia de dentes brancos que quase a dividiam ao meio, ainda estava viva. E agora berrava. Um grande berro gorgolejante que só dava quando alguma barracuda abocanhava seu corpo.
Ouviu-se um grito distante na baía, atrás de Bond. Mas ele não prestou atenção. Todos os seus sentidos estavam concentrados na cena horripilante no mar diante dele.
Uma barbatana rasgou a superfície a alguns metros de distância e parou.
Bond pôde ver o tubarão apontando o focinho como um cachorro, com os olhos míopes, rosados e redondos, tentando penetrar a nuvem de sangue e avaliar a presa. Então arremeteu contra o torso, e a cabeça que gritava afundou tão rápido quanto um peso de chumbo.
Algumas bolhas estouraram na superfície.
Houve um rodamoinho causado pela cauda manchada de marrom de um grande tubarão-leopardo, que recuou para engolir e para atacar de novo.
A cabeça voltou a flutuar. A boca estava fechada. Os olhos amarelos pareciam ainda se fixar em Bond.
O focinho do tubarão saiu da água e avançou para a cabeça, com a mandíbula inferior aberta e a luz brilhando em seus dentes. Houve um rangido horrível de osso triturado e um rodamoinho. Depois, o silêncio.
Os olhos dilatados de Bond continuaram a mirar a mancha marrom que cada vez mais se espalhava no mar.
A garota deu um gemido e Bond recuperou a lucidez.
Ouviu-se outro grito atrás dele e Bond virou a cabeça para a baía.
Era Quarrel, seu peito moreno e luzidio avultando sobre o casco esguio da canoa, com os braços trabalhando o remo, seguido, a uma longa distância, por todas as outras canoas da baía dos Tubarões deslizando sobre as pequenas ondas que haviam começado a encrespar a superfície.
Os ventos elísios do nordeste haviam começado a soprar e o sol brilhava na água azul e nos doces flancos verdes da Jamaica.
As primeiras lágrimas que brotaram dos olhos azuis-acinzentados de James Bond desde a sua infância escorreram pelo seu rosto contraído, caindo no mar manchado de sangue.
23.
LICENÇA PAIXÃO
Como dois pingentes de esmeralda, dois beija-flores faziam a última ronda pelos hibiscos. Um tordo começara sua cantoria vespertina, mais doce que a do rouxinol, em cima de um arbusto perfumado de jasmim da noite.
A sombra irregular de uma fragata deslizou por cima do gramado verde, enquanto planava nas correntes de ar que subiam a costa até alguma distante colônia, e o martim-pescador azul-acinzentado chilreou, irritado, ao ver o homem sentado em uma cadeira no jardim. Mudou a direção do voo e guinou, atravessando o mar, até a ilha. Uma borboleta sulfurina flertava entre as sombras roxas das palmeiras.
O mar de variados tons de azul da baía estava bastante calmo. Os penhascos da ilha eram de um rosa profundo, à luz do sol que se punha atrás da casa.
Havia um cheiro de entardecer e de frescor depois do calor do dia, e um leve perfume de farinha de mandioca torrada vindo das cabanas de pescadores, no povoado à direita, a distância.
Solitaire saiu da casa de pés descalços e atravessou o gramado. Carregava uma bandeja com uma coqueteleira e dois copos. Colocou-a na mesa de bambu ao lado da cadeira de Bond.
“Espero ter feito direito”, comentou. “Seis partes para uma parece terrivelmente forte. Nunca tomei martíni de vodca.”
Bond olhou para ela. Vestia um de seus pijamas brancos de seda. Eram demasiado grandes. Parecia absurdamente infantil.
Ela riu. “O que acha de meu batom de Port Maria?”, perguntou. “E as sobrancelhas delineadas com lápis HB? Não consegui fazer mais nada para me ajeitar, além de tomar banho.”
“Está uma maravilha”, disse Bond. “Você é de longe a garota mais bonita da baía dos Tubarões. Se eu tivesse pernas e braços, me levantaria para lhe dar um beijo.”
Solitaire se inclinou e lhe deu um longo beijo na boca, com o braço apertado em volta de seu pescoço. Levantou-se e afastou a mecha curva de cabelos sobre a testa dele.
Olharam um para o outro. Em seguida, ela virou para a mesa e lhe serviu um coquetel. Despejou meio copo para si e sentou no gramado quente, com a cabeça contra o joelho de Bond. Ele brincou com a mão direita entre os cabelos dela e ficaram um instante sentados, olhando o mar entre as palmeiras e a luz que declinava na ilha.
O dia fora dedicado a lamber as feridas e ajeitar o que sobrara da confusão.
Quando Quarrel desembarcara com eles na pequena praia de Beau Desert, Bond carregara Solitaire pelo gramado até o banheiro. Enchera a banheira de água quente. Sem que ela soubesse o que estava acontecendo, ele ensaboara e lavara todo seu corpo e seus cabelos. Depois de tirar todo o sal e musgo do coral, ajudou-a a sair, secou-a e botou mertiolato nos cortes de coral que marcavam suas costas e suas coxas. Depois lhe deu um comprimido para dormir e colocou-a nua entre os lençóis de sua própria cama. Beijou-a. Antes de fechar as venezianas, ela já dormia.
Entrou no banheiro e Strangways o ensaboou. Depois quase o banhou em mertiolato. Sangrava e estava esfolado em centenas de lugares, com o braço esquerdo dormente por causa da mordida da barracuda. Perdera um bocado de músculo do ombro. A ardência do mertiolato fez com que trincasse os dentes. Vestiu um roupão e Quarrel o levou ao hospital em Port Maria.
Antes de partir, tomou um café da manhã reforçado e fumou um bendito cigarro. Dormiu no carro, dormiu na mesa de operações e na cama onde finalmente o puseram, como uma massa de ataduras e esparadrapo cirúrgico.
Quarrel trouxe-o de volta no começo da tarde. A essa altura Strangways já agira de acordo com as instruções que Bond lhe dera. Mandaram um destacamento de polícia para a ilha da Surpresa. Os destroços do Secatur, a trinta e seis metros de profundidade, receberam uma boia de sinalização, que passou a ser patrulhada pela lancha da alfândega de Port Maria. O rebocador de salvamento e os mergulhadores estavam a caminho a partir de Kingston. Os repórteres da imprensa local tinham recebido uma breve declaração, e havia policiais em guarda na entrada de Beau Desert, para conter a avalanche de repórteres que chegariam à Jamaica, depois que toda a história corresse o mundo. Enquanto isso, um relatório completo fora enviado a M e a Washington, de modo que o bando de Big Man no Harlem e em St. Petersburg pudesse ser preso provisoriamente sob a acusação preventiva de contrabando de ouro.
Não houve sobreviventes do Secatur, mas os pescadores locais trouxeram quase uma tonelada de peixes mortos naquela manhã.
A Jamaica estava fervilhando de boatos. Fileiras de carros paravam, lado a lado, nos penhascos acima da baía e ao longo da praia embaixo. Espalhara-se a notícia do tesouro de Morgan, o Sanguinário, porém, o bando de tubarões e barracudas também o protegia. Por causa deles não havia nadador que arriscasse ir até a cena do naufrágio na calada da noite.
Veio um médico visitar Solitaire. Ele encontrou-a preocupada principalmente em arranjar roupas e o batom no tom certo. Strangways encomendara uma amostra completa deles de Kingston, que chegaria no dia seguinte. Por enquanto, ela fazia experiências com o conteúdo da valise de Bond e uma tigela de hibiscos.
Strangways voltou de Kingston após a saída de Bond do hospital. Trouxe um telegrama cifrado de M para Bond, no qual se lia:
SUPONHO REIVINDICOU TESOURO EM SEU NOME REPRESENTANDO UNIVERSAL EXPORT PONTO PROSSIGA IMEDIATAMENTE SALVAMENTO PONTO CONTRATEI ADVOGADO DEFENDER DIREITOS JUNTO TESOURO E MINISTÉRIO COLÔNIAS PONTO ENQUANTO ISSO PARABÉNS PONTO CONCEDIDA LICENÇA PAIXÃO QUINZE DIAS PONTO FINAL
“Suponho que ele queira dizer ‘compaixão’”, comentou Bond.
Strangways tinha um aspecto solene. “Acho que sim”, respondeu. “Fiz um relatório completo dos danos que você sofreu. E a garota também”, acrescentou.
“Hmm”, disse Bond. “As expressões cifradas geralmente são precisas. Mesmo assim.”
Strangways olhou propositalmente pela janela, reprimindo um sorriso.
“Bem típico da velha raposa, pensar primeiro no ouro”, comentou Bond. “Suponho que ele ache que conseguirá obter o que quer, descobrindo um modo de contornar a redução da verba secreta quando houver nova reunião do Parlamento para avaliá-la. Creio que passa metade de sua vida brigando com o Tesouro. Mesmo assim, está muito errado se pensa que conseguirá.”
“Dei entrada na sua reivindicação na sede do governo, assim que recebi a mensagem”, relatou Strangways. “Mas será difícil. A Coroa virá atrás do tesouro e a América entrará nisso de alguma forma, porque Big Man era cidadão americano. Vai dar pano pra manga.”
Haviam conversado mais um pouco e depois Strangways partira. Bond caminhara cheio de dores até o jardim, para se sentar um pouco ao sol, sozinho com seus pensamentos.
Recapitulou a série de riscos que correra na sua longa busca por Big Man e pelo tesouro fabuloso, revivendo os episódios em que enfrentara a morte cara a cara.
Agora terminara e ele estava sentado ao sol, entre as flores, com a recompensa aos seus pés e sua mão entre os longos cabelos pretos dela. Agarrou bem aquele instante e pensou nos catorze dias seguintes que lhes pertenceriam.
Ouviram-se um barulho de louça quebrada na cozinha, nos fundos da casa, e o som da voz de Quarrel praguejando contra alguém.
“Pobre Quarrel”, disse Solitaire. “Arranjou a melhor cozinheira do povoado e varreu os mercados atrás de surpresas para nós. Chegou a encontrar caranguejos negros, os primeiros da época. Depois passou a assar o pobrezinho de um leitão ainda mamando e a fazer uma salada de abacate, para terminar com goiabas e manjar de coco. E o Comandante Strangways deixou uma caixa do melhor champanhe da Jamaica. Já estou com água na boca. Mas não se esqueça de que deve ser segredo. Cheguei de surpresa na cozinha e ele quase fez a cozinheira chorar.”
“Virá com a gente na nossa licença paixão”, disse Bond. Contou-lhe sobre o telegrama de M. “Vamos para uma casa sobre estacas, com palmeiras e oito quilômetros de areia dourada. E você terá de cuidar de mim muito bem, porque não poderei fazer amor com um braço só.”
Havia uma sensualidade óbvia no olhar de Solitaire, quando ela o ergueu para ele, sorrindo inocentemente.
“E eu com as minhas costas?”, disse ela.
16.
O LADO JAMAICANO
Eram duas horas da madrugada. Bond tirou o carro de junto da amurada e atravessou a cidade até pegar a 4th Street, a rodovia para Tampa.
Seguiu despreocupado pelas quatro pistas cimentadas da rodovia, atravessando o infindável corredor polonês de motéis, campings e lojas de beira de estrada, que vendiam mobília de praia e gnomos de concreto.
Parou no Gulf Winds Bar and Snacks e pediu um Old Grandad duplo com gelo. Enquanto o barman o servia, foi ao banheiro se limpar. As ataduras na mão esquerda estavam cobertas de sujeira e a mão latejava dolorosamente. A tala quebrara na barriga do Ladrão. Não havia nada que ele pudesse fazer. Os olhos estavam vermelhos de tensão e falta de sono. Foi até o bar, bebeu o Bourbon e pediu outro. O barman parecia um desses universitários que custeavam as próprias férias trabalhando duro. Estava a fim de conversar, mas em Bond não restara nenhuma vontade de falar. Ficou sentado, olhando o copo, pensando em Leiter e no Ladrão, e ouvindo o grunhido repugnante do tubarão devorando a presa.
Pagou, saiu e atravessou de novo a Gandy Bridge, com o ar fresco da baía lhe batendo no rosto. No final da ponte, virou à esquerda em direção ao aeroporto e parou no primeiro motel que parecia aberto.
O casal de proprietários de meia-idade ouvia um programa cubano de rumbas na madrugada, com uma garrafa de Rye entre eles. Bond contou uma história sobre um pneu furado entre Sarasota e Silver Springs. Não estavam interessados. Queriam apenas os seus dez dólares. Bond levou o carro até o quarto 5, o sujeito abriu a porta e acendeu as luzes. Havia uma cama de casal, um banheiro com chuveiro e duas cadeiras. O branco e o azul davam o tom nas paredes. Parecia limpo e Bond colocou a sacola no chão com um sentimento de gratidão, ao se despedir do dia. Despiu-se, jogou as roupas sem dobrar em uma cadeira. Em seguida tomou uma rápida chuveirada, escovou os dentes, gargarejou com um dentifrício forte e entrou na cama.
Mergulhou logo em um sono tranquilo. Era a primeira noite, desde que chegara à América, em que não se sentia ameaçado por uma nova batalha contra o destino na manhã seguinte.
Acordou ao meio-dia e caminhou pela estrada até uma cafeteria, onde o cozinheiro lhe preparou no balcão um delicioso sanduíche de três andares, que ele comeu enquanto tomava café. Em seguida, voltou ao quarto e escreveu um relatório minucioso ao FBI em Tampa. Omitiu todas as referências ao ouro nos tanques de peixes venenosos, com medo de que Big Man encerrasse os negócios na Jamaica. Eles ainda precisavam ser investigados. Bond sabia que os danos que ele provocara na máquina de Big Man na América não mudavam nada o objetivo principal de sua missão — a descoberta da fonte do ouro, sua captura e a destruição, se possível, do próprio Mr. Big.
Foi de carro até o aeroporto e pegou o quadrimotor prateado, faltando apenas poucos minutos para a partida. Deixou o carro de Leiter no estacionamento, conforme dissera no seu relatório ao FBI. Pensou que fora algo desnecessário, quando avistou um sujeito vestindo uma capa esdrúxula, à toa em uma loja de lembranças. As capas de chuva pareciam ser praticamente o uniforme do FBI. Bond estava certo de que queriam ter certeza de que ele pegaria o avião. Ficariam satisfeitos de vê-lo pelas costas. Por onde passara na América, deixara um rastro de cadáveres. Antes de embarcar no avião, ligou para o hospital em St. Petersburg. Arrependeu-se. Leiter ainda estava inconsciente e não tinham prognósticos. Sim, ligariam de volta quando tivessem alguma notícia definitiva.
Eram cinco da tarde quando o avião circulou sobre Tampa Bay, rumo ao leste. O sol estava baixo no horizonte. Um grande jato vindo de Pensacola passou ventando, bem a bombordo, deixando quatro rastros de vapor pairando quase imóveis no ar parado. Em breve o voo de reconhecimento terminaria e ele voltaria para pousar na costa do Golfo, cheia de idosos com camisetas estampadas. Bond se alegrava de estar a caminho das doces encostas verdes do litoral da Jamaica, deixando para trás o grande e rijo continente de Eldollarado.
O avião avançava, atravessando a cintura da Flórida, os hectares de floresta e de mangue sem nenhum sinal de habitantes humanos, com suas luzes da asa piscando, verdes e vermelhas, na escuridão que chegava. Em breve sobrevoavam Miami e as monstruosas arapucas para otários da costa oriental, cujas artérias brilhavam, entupidas de néon. Longe, a bombordo, a rodovia estadual nº 1 sumia subindo o litoral, uma fita dourada de motéis, postos de gasolina e barracas de suco de frutas, passando por Palm Beach, Daytona e Jacksonville, a quatrocentos e cinquenta quilômetros. Bond pensou no café da manhã que tomara em Jacksonville, por volta de três dias antes, e em tudo o que acontecera depois. Dentro em breve, após uma curta parada em Nassau, sobrevoaria Cuba, talvez sobre o esconderijo em que Mr. Big ocultara Solitaire. Ela ouviria o barulho do avião e talvez sua intuição a fizesse olhar para cima e sentir, por um instante, que ele estava próximo.
Bond ficou pensando se jamais se encontrariam de novo para acabar o que haviam começado. Mas isso teria de vir mais tarde, quando seu trabalho estivesse terminado — o prêmio de um itinerário perigoso que começara três semanas antes, em meio ao nevoeiro de Londres.
Depois de um coquetel e um jantar cedo, chegaram a Nassau e passaram meia hora na ilha mais rica do mundo, aquela faixa arenosa onde milhões e milhões de libras esterlinas são enterradas com grande susto nas mesas de canastra, e onde bangalôs, cercados de uma parede fina de pinheiros e casuarinas, trocam de mãos por cinquenta mil libras.
Deixaram para trás a escala rápida na ilha de platina, e em breve sobrevoavam as madrepérolas cintilantes das luzes de Havana, tão diferentes, em seus modestos tons pastel, das berrantes cores primárias das cidades americanas à noite.
Voavam a cinco mil metros quando, logo depois de passar por Cuba, encontraram uma daquelas tempestades tropicais que de repente fazem com que as aeronaves se transformem, de confortáveis salas de estar, em armadilhas mortíferas sacolejantes. O grande avião cambaleou e deu um mergulho, com as hélices ora roncando no vácuo, ora mordendo com força os paredões compactos de ar. O cilindro esguio de metal estremecia e balançava. A louça se espatifava na copa, e a chuva forte martelava as vidraças.
Bond agarrou os braços da poltrona, provocando dor na mão esquerda, praguejando baixinho consigo mesmo.
Olhou para as prateleiras das revistas e pensou: não serão de muita utilidade quando o aço acusar fadiga, a cinco mil metros de altitude, nem a água de colônia no banheiro, as refeições personalizadas, o barbeador gratuito, a “orquídea para sua senhora” agora trêmula na geladeira. Muito menos os cintos de segurança e os coletes salva-vidas, com o apito que realmente apita, segundo a demonstração da aeromoça, nem a luz de resgate engraçadinha que emite um brilho vermelho.
Não. Quando as tensões se tornam excessivas no metal fatigado, quando o mecânico de manutenção que testa o equipamento de descongelamento está apaixonado e faz mal o serviço, lá em Londres, Idlewild, Gander, Montreal; quando essas ou muitas outras coisas acontecem, então a pequena sala aquecida, com hélices na frente, cai como uma pedra do céu, na terra ou no mar, mais pesada que o ar, falível, imprestável. E as quarenta pessoas mais pesadas que o ar, frágeis dentro da fragilidade do avião, desamparadas dentro do desamparo maior do avião, despencam com ele, abrindo pequenos buracos na terra, ou espirrando água no mar. De qualquer modo, é o destino, então por que se preocupar? As pessoas estão conectadas aos dedos descuidados do mecânico de manutenção em Nassau, do mesmo modo que estão conectadas ao homenzinho no sedã da família, que confunde o sinal verde com o vermelho e bate de frente, pela primeira e última vez, na pessoa que dirigia tranquilamente para casa depois de um programa clandestino. Não se pode fazer nada. Começamos a morrer desde o dia em que nascemos. A vida inteira é um jogo de cartas com a morte. Por isso tenha calma. Acenda um cigarro e seja grato por ainda estar vivo, enquanto traga a fumaça profundamente nos seus pulmões. Nosso destino já permitiu que percorrêssemos um longo caminho desde que abandonamos o útero da mãe e choramingamos ao contato com o ar frio do mundo. Talvez ele até permita que cheguemos à Jamaica esta noite. Não está escutando as vozes animadas da torre de controle que passaram o dia falando, tranquilas: “Pode pousar, BOAC. Pode pousar, Panam. Pode pousar, KLM”? Não as escuta também nos chamando: “Pode pousar, Transcarib. Pode pousar, Transcarib”? Não perca a fé no destino. Lembre aquele momento terrível em que enfrentou a morte diante da arma do Ladrão, na noite passada. Ainda está vivo, não está? Pronto, já não corremos mais perigo. Isso foi só para lembrar que ser rápido no gatilho não quer dizer que você seja realmente forte. Não se esqueça. Este pouso feliz no Aeroporto Palisadoes é cortesia de seu destino. Melhor agradecer a ele.
Bond desatou o cinto de segurança e limpou o suor do rosto.
Ao diabo com tudo isso, pensou, ao desembarcar da aeronave enorme e resistente.
Strangways, o chefe do serviço secreto do Caribe, veio encontrá-lo no aeroporto, e assim ele passou depressa pela alfândega, imigração e fiscalização financeira.
Eram quase onze horas de uma noite quente, tranquila. Ouvia-se o som agudo dos grilos nas fileiras de cactos de ambos os lados da estrada do aeroporto, e Bond absorvia com gratidão os ruídos e os cheiros tropicais, enquanto a caminhonete militar atravessava a periferia de Kingston, em direção aos contrafortes cintilantes e enluarados das Montanhas Azuis.
Conversaram em monossílabos até se instalarem na varanda aconchegante da bela casa branca de Strangways, em Junction Road, abaixo de Stony Hill.
Strangways serviu um uísque com soda reforçado para os dois e, em seguida, fez um relato conciso de todo o lado jamaicano do problema.
Era um sujeito esguio e bem-humorado de mais ou menos trinta e cinco anos, ex-tenente e comandante da Seção Especial da Reserva Voluntária da Marinha Real. Tinha uma venda negra sobre um olho e o tipo de beleza aquilina associada à ponte de comando dos destróieres. Mas debaixo do bronzeado havia um rosto marcado, e Bond percebeu, pelos gestos rápidos e frases entrecortadas, seu ânimo nervoso e tenso. Era certamente eficiente, tinha senso de humor e não demonstrava nenhum sinal de ciúme diante de alguém que viera da matriz para se meter em seu território. Bond sentiu que se dariam bem, antecipando com prazer essa parceria.
Eis a história que Strangways tinha para contar.
Sempre circularam boatos sobre a presença de um tesouro na ilha da Surpresa, e tudo que se sabia sobre Morgan, o Sanguinário, confirmava essa suspeita.
A pequena ilha ficava no centro exato da baía dos Tubarões, um pequeno porto no final da Junction Road, que corre pela cintura fina da Jamaica, de Kingston à costa norte.
O grande bucaneiro fizera da baía dos Tubarões seu quartel-general. Gostava de ter toda a largura da ilha de permeio entre ele e o governador em Port Royal, de modo que pudesse sair e entrar nas águas jamaicanas em total segredo. O governador também gostava desse arranjo. A Coroa queria que ele fechasse os olhos à pirataria de Morgan até que os espanhóis fossem expulsos do Caribe. Quando isso ocorreu, Morgan foi recompensado com um título de nobreza e o posto de governador da Jamaica. Até então, suas ações tinham de ser repudiadas para evitar uma guerra contra a Espanha, na Europa.
No entanto, durante o longo período antes que a raposa recebesse a chave do galinheiro, Morgan utilizou a baía dos Tubarões como porto de partida para suas investidas. Construiu três casas na propriedade vizinha, denominada Llanrumney, em homenagem ao seu local de nascimento no País de Gales. Essas casas se chamavam “Casa de Morgan”, “Casa do Médico” e “Casa da Dama”. Ainda hoje se descobrem moedas e fivelas em suas ruínas.
O ancoradouro de seus navios sempre foi a baía dos Tubarões, e os reparos nas embarcações eram feitos, a sotavento, na ilha da Surpresa, um pedaço de coral e calcário acidentado que surge do centro da baía, encimado por um platô cheio de mato de cerca de meio hectare.
Quando partiu para sempre da Jamaica, em 1683, foi como preso, para ser julgado por seus pares por menosprezo à Coroa. Seu tesouro foi abandonado em algum lugar na Jamaica e ele morreu na miséria, sem revelar seu paradeiro. Deve ter sido um vasto butim, fruto de incontáveis investidas contra Hispaniola, da captura de inúmeros navios que levavam tesouros para La Plata, do saque do Panamá e da pilhagem de Maracaibo. Mas sumiu sem deixar vestígios.
Sempre se pensou que o segredo jazia em algum lugar da ilha da Surpresa, mas duzentos anos de mergulhos e de escavações da parte dos caçadores de tesouros não revelaram nada. Então, disse Strangways, há apenas seis meses, duas coisas aconteceram em poucas semanas. Um jovem pescador desapareceu do povoado da baía dos Tubarões e nunca mais se soube dele, e um sindicato anônimo de Nova York adquiriu a ilha por mil libras do atual proprietário de Llanrumney, agora uma próspera propriedade de cultivo de banana e de criação de gado.
Poucas semanas depois da venda, o iate Secatur chegara à baía dos Tubarões e fundeara no antigo ponto de ancoragem de Morgan, a sotavento da ilha. Veio com uma tripulação exclusivamente negra. Puseram-se a trabalhar, cavando uma escada na face do rochedo, construindo no topo uma série de cabanas baixas de taipa, ao estilo jamaicano.
Pareciam estar perfeitamente aprovisionados e só compravam peixe fresco e água dos pescadores da baía.
Era um pessoal ordeiro e taciturno, que não dava trabalho. Explicaram à alfândega da vizinha Santa Maria, que os havia liberado, que estavam ali para pescar peixes tropicais, especialmente as variedades venenosas, e coletar conchas para a Ourobouros Inc, de St. Petersburg. Depois que se estabeleceram, compraram grandes quantidades deles dos pescadores da baía dos Tubarões, Port Maria e Oracabessa.
Durante uma semana realizaram explosões na ilha, dizendo que era para a escavação de um grande tanque de peixes.
O Secatur começou a fazer uma rota quinzenal para o Golfo do México, e observadores com binóculos confirmaram que, antes de zarpar, sempre embarcavam tanques portáteis de peixe. Meia dúzia de homens era deixada para trás. Quaisquer canoas que se aproximassem da ilha recebiam ameaças de um guarda, na base da escadaria no rochedo, que ficava o dia inteiro pescando em um molhe estreito onde o Secatur atracava, preso a duas âncoras no mar, bem abrigado dos ventos nordeste.
Jamais alguém conseguiu desembarcar na ilha de dia e, depois de duas tentativas trágicas, ninguém voltou a tentar um desembarque noturno.
A primeira tentativa foi a de um pescador local, instigado pelos boatos de um tesouro enterrado que nenhuma conversa sobre peixes tropicais podia abafar. Partiu a nado uma noite e seu corpo fora devolvido pelo mar, por cima do recife, no dia seguinte. Os tubarões e as barracudas só deixaram o torso e um pedaço da coxa.
Mais ou menos na hora em que ele deveria chegar à ilha, toda a aldeia da baía dos Tubarões foi acordada pelo batuque mais terrível. Parecia vir do interior da ilha. Reconheceram-no como um batuque do vodu. Começou tranquilo e foi em um crescendo trovejante. Depois baixou novamente e parou. Durou cerca de cinco minutos.
Desde aquele momento a ilha se tornou ju-ju, ou obeah, como se diz na Jamaica, e, mesmo à luz do dia, as canoas ficam a uma distância segura.
A essa altura, Strangways teve seu interesse despertado e fez um relatório completo a Londres. Desde 1950, a Jamaica se tornara um alvo estratégico importante, graças à exploração, pela Reynolds Metal e pela Kaiser Corporation, de enormes depósitos de bauxita encontrados na ilha. Na opinião de Strangways, as atividades na ilha da Surpresa bem poderiam estar ligadas à construção de uma base de submarinos de um só tripulante, prevendo uma situação de guerra, especialmente porque a baía dos Tubarões estava no âmbito da rota dos navios da Reynolds até o novo porto de embarque de bauxita de Ocho Ríos, alguns quilômetros costa abaixo.
Londres investigou, junto com Washington, com base no relatório, e veio à tona a informação de que o sindicato que comprara a ilha era inteiramente de propriedade de Mr. Big.
Isso há três meses. Strangways recebeu ordens de entrar na ilha de qualquer maneira e descobrir o que estava acontecendo. Montou uma operação e tanto. Alugou uma propriedade no braço ocidental da baía dos Tubarões, chamada Beau Desert, onde existem as ruínas de um dos famosos casarões jamaicanos do começo do século dezenove, e também uma casa de praia moderna bem em frente ao ancoradouro do Secatur na ilha da Surpresa.
Trouxe dois bons nadadores da base naval na Bermuda e organizou uma observação permanente da ilha através de binóculos diurnos e noturnos. Nada foi visto que parecesse suspeito e, em uma noite calma e escura, ele mandou os dois nadadores com ordens de fazer uma vistoria submarina das fundações da ilha.
Strangways contou o pavor que sentiu quando, uma hora depois de partirem a nado para atravessar os trezentos metros de mar, começou um terrível batuque em algum lugar dentro dos penhascos da ilha.
Naquela noite os dois não voltaram.
No dia seguinte, ambos apareceram na praia, em lugares diferentes da baía. Ou melhor, o que sobrou de seus corpos devorados pelos tubarões e barracudas.
Nesta altura da história de Strangways, Bond interrompeu-o.
“Um minuto só”, disse, “que história é essa de tubarões e barracudas? Geralmente eles não são agressivos nestas águas. Não existem muitos na Jamaica e raramente se alimentam de noite. Aliás, não creio que nenhum deles ataque seres humanos, a não ser que haja sangue na água. Podem dar uma mordida, uma vez ou outra, em algum pé branco, por curiosidade. Já houve notícias anteriores de comportamento assim na Jamaica?”
“Nunca houve outro caso, desde que uma garota teve o pé devorado em Kingston Harbour, em 1942”, disse Strangways. “Ela estava sendo rebocada por uma lancha, batendo os pés. Seus pés brancos devem ter parecido especialmente apetitosos. E, além disso, estavam viajando em uma velocidade que convidava ao ataque. Todo mundo concorda com sua teoria. E meus homens tinham arpões e facas. Achei que fizera de tudo para protegê-los. Foi algo medonho. Imagine só como me senti. Desde então não fizemos mais nada, exceto tentar legalizar o acesso à ilha através da Secretaria das Colônias e de Washington. Mas o proprietário é cidadão americano. Então o processo é penosamente lento, sobretudo porque não há nada contra essa gente. Parecem dispor de uma boa proteção em Washington e de alguns advogados muito bons em direito internacional. Estamos absolutamente emperrados. Londres me disse para esperar até que você viesse.” Strangways deu um gole no uísque e olhou para Bond com expectativa.
“Quais são os movimentos do Secatur?”, perguntou Bond.
“Ainda está em Cuba. Deve zarpar dentro de uma semana, de acordo com a CIA.”
“Quantas viagens fez?”
“Cerca de vinte.”
Bond multiplicou cento e cinquenta mil dólares por vinte. Se seus cálculos estivessem certos, Mr. Big já levara um milhão de libras em ouro da ilha.
“Fiz alguns arranjos provisórios para você”, disse Strangways. “Tem a casa em Beau Desert. Há um carro, Sunbeam Talbot, sedã. Pneus novos. Corre bem. Ideal para essas estradas. Arranjei um sujeito ótimo para ser seu faz-tudo. Um ilhéu das ilhas Cayman, chamado Quarrel. O melhor pescador e nadador do Caribe. Muito prestativo. Grande sujeito. E peguei emprestada a casa de repouso da West Indian Citrus Company na Baía Manatee. Fica na outra extremidade da ilha. Você podia descansar lá uma semana e se exercitar um pouco até a chegada do Secatur. Precisará estar em forma se quiser chegar à ilha da Surpresa, e acredito francamente que só isso nos dará a resposta. Tem mais alguma coisa que eu possa fazer? Estarei por aí, claro, mas preciso ficar em Kingston para manter a comunicação com Londres e Washington. Eles vão querer saber tudo que fizermos. Há mais alguma coisa que você gostaria que eu providenciasse?”
Bond estivera se decidindo.
“Sim”, respondeu. “Pode pedir a Londres que consiga junto ao Almirantado uma de suas roupas de mergulho, completa, com os cilindros de ar comprimido. E muitos sobressalentes. E um bom par de arpões. Os franceses, ‘Champion’, são os melhores. Uma boa lanterna subaquática. Uma faca de guerra dos comandos. Toda a informação que puderem arranjar no Museu de História Natural sobre tubarões e barracudas. E um pouco daquele repelente de tubarões que os americanos usaram no Pacífico. Peça à BOAC para trazer tudo pelo seu serviço direto.”
Bond fez uma pausa. “Ah, sim”, disse. “E uma daquelas coisas que nossos sabotadores costumavam usar contra os navios durante a guerra. Uma mina naval, com diversos detonadores.”
17.
O VENTO PAPA-DEFUNTO
Mamão com uma rodela de limão, um prato cheio de bananas avermelhadas, caimitos roxos, ovos mexidos com bacon, café Blue Mountain — o mais delicioso do mundo —, geleia de laranja jamaicana, quase preta, e geleia de goiaba.
Enquanto Bond, trajando shorts e sandálias, tomava café na varanda, contemplando o panorama ensolarado de Kingston e Port Royal, pensou que tinha sorte pela existência de momentos tão magníficos a compensar o perigo e o ambiente sombrio de sua profissão.
Bond conhecia bem a Jamaica. Estivera no país durante uma longa missão logo após a guerra, quando o quartel-general comunista em Cuba procurava infiltrar os sindicatos jamaicanos. Tinha sido um serviço malresolvido e inconcluso, mas ele aprendera a amar a grande ilha verde e seu povo alegre e leal. Agora estava contente por ter retornado e pela semana inteira de folga antes de recomeçar o trabalho duro.
Depois do café da manhã, Strangways surgiu na varanda com um sujeito alto de pele morena, trajando uma camisa azul desbotada e velhas calças de sarja marrons.
Era Quarrel, o ilhéu das ilhas Cayman, com quem Bond logo simpatizou. Tinha sangue dos soldados de Cromwell e de bucaneiros. Seu rosto era forte e anguloso, com uma boca quase severa e olhos cinzentos. Apenas o nariz achatado e as palmas das mãos descoradas eram negroides.
Bond apertou sua mão.
“Bom dia, capitão”, falou Quarrel. Vindo da raça de pescadores mais famosa do mundo, esse era o tratamento mais honroso que ele podia merecer. Mas não havia nenhum desejo de agradar, ou humildade, na sua voz. Falava como marujo, de maneira direta e franca.
Esse momento definiu o relacionamento deles. Parecia a relação entre um senhor de terras escocês e seu caçador-chefe; o reconhecimento subentendido da autoridade, sem espaço para qualquer servilismo.
Depois de discutirem seus planos, Bond pegou o volante do pequeno carro que Quarrel trouxera de Kingston e tomaram a Junction Road, deixando Strangways ocupado com os pedidos de Bond.
Partiram antes das nove e ainda estava fresco quando atravessaram as montanhas que se estendem pelo dorso da Jamaica como a parte dentada da couraça do crocodilo. A estrada descia serpenteando em direção às planícies do norte, através de um dos cenários mais bonitos do mundo, em que a vegetação tropical se modificava com a mudança de altitude. Os flancos verdes das serras, emplumados de bambus intercalados com o verde escuro e brilhoso da fruta-pão e a súbita explosão colorida do flamboyant, cediam lugar, mais para baixo, à floresta de ébano, mogno, hibiscos e pau-campeche. Quando chegaram às várzeas do vale de Agualta, o mar verde dos bananais e canaviais se espraiava até onde a orla afastada dos bosques de palmeiras brotava cintilante ao longo da costa norte.
Quarrel foi boa companhia no passeio e um guia maravilhoso. Falou sobre as aranhas que faziam suas casas na terra, encimadas por pequenos alçapões perfeitos, ao passarem pelos famosos jardins de palmeiras de Castleton. Contou que assistira a uma briga entre uma centopeia gigante e um escorpião e explicou a diferença entre o mamão-macho e o mamão-fêmea. Descreveu os venenos da mata e as propriedades medicinais das ervas tropicais, a pressão exercida pela noz para romper o coco, o comprimento da língua do beija-flor, a maneira como os crocodilos carregam os filhotes na boca, ao comprido, como sardinhas em lata.
Falava em termos precisos, mas sem conhecimento técnico, empregando o linguajar jamaicano em que as plantas são humanizadas, “se esforçam”, “desanimam”, “mariposas” são “morcegos” e “amar” é sempre usado no lugar de “gostar”. Enquanto falava, levantava a mão em um gesto de saudação para as pessoas na estrada, que também gesticulavam e gritavam seu nome.
“Você parece conhecer gente à beça”, comentou Bond, quando o motorista de um ônibus apinhado, com a palavra ROMANCE escrita em grandes letras em cima do para-brisa, saudou-o com dois toques de sua buzina de ar comprimido.
“Faz três meses que ando observando a ilha da Surpresa, capitão”, disse Quarrel, “e passando por esta estrada duas vezes por semana. Todo mundo fica logo conhecido na Jamaica. O pessoal tem vista boa.”
Às dez e meia já tinham passado Port Maria e enveredado por uma pequena estrada vicinal que levava à baía dos Tubarões. Ao fazer uma curva, se depararam com ela embaixo, e Bond parou o carro e saíram.
A baía tinha a forma de um crescente e talvez uns mil e duzentos metros de largura entre um pontal e outro. Sua superfície azul estava encrespada pela leve brisa que soprava do nordeste, vizinha dos ventos alísios que nasciam a oitocentos quilômetros, no Golfo do México, e de lá partiam para sua longa viagem em volta do mundo.
A um quilômetro e meio de onde estavam, uma longa arrebentação sinalizava o recife fora da baía e o estreito de águas calmas que era a única entrada para o ancoradouro. No meio do crescente, a ilha da Surpresa assomava com seus trinta e poucos metros acima do mar, orlada no seu lado leste pela espuma das pequenas ondas que quebravam, e por águas calmas a sotavento.
Era quase redonda, parecendo um bolo alto e cinzento encimado por uma camada verde de açúcar glacê, tudo sobre um prato de porcelana azul.
Haviam parado a cerca de trinta metros do pequeno amontoado de cabanas de pescadores, atrás da praia orlada de coqueiros, e estavam no mesmo nível que o topo plano e verde da ilha, a quatrocentos metros de distância. Quarrel mostrou os telhados de palha das cabanas de taipa no meio das árvores, no centro da ilha. Bond examinou-as através dos binóculos de Quarrel. Não havia nenhum sinal de vida, exceto por um magro fiapo de fumaça levado pela brisa.
Abaixo deles, a água da baía era verde-clara perto da areia branca. Em seguida, se aprofundava e ficava azul-escura antes do marrom intercalado da borda submersa de um recife interno, que formava um largo semicírculo a cem metros da ilha. Depois tornava-se novamente azul, com manchas de azul mais claro e verde-mar. Quarrel informou que a profundidade do ancoradouro do Secatur era de aproximadamente dez metros.
À esquerda, no meio do braço ocidental da baía, escondida entre as árvores e atrás de uma minúscula praia de areia branca, ficava sua base de operações, Beau Desert. Quarrel descreveu a disposição da casa e Bond permaneceu dez minutos examinando os trezentos metros de distância entre ela e o ancoradouro do Secatur, junto à ilha.
Ao todo, Bond passou uma hora fazendo o reconhecimento do local e depois, sem se aproximar da casa ou do povoado, viraram o carro e voltaram para a estrada principal ao longo da costa.
Seguiram de carro através do belo e pequeno porto de embarque de bananas de Oracabessa e de Ocho Ríos, com sua nova e enorme usina de extração de bauxita, seguindo a costa norte até a baía de Montego, a duas horas de distância. Era fevereiro, no auge da estação. A pequena aldeia e os grandes hotéis esparsos estavam mergulhados na corrida de ouro de quatro meses que os sustentava pelo resto do ano. Pararam em uma pousada do outro lado da ampla baía, onde almoçaram, para, em seguida, prosseguirem no calor da tarde até a ponta ocidental da ilha, depois de mais duas horas de viagem.
Ali, graças à presença dos enormes mangues costeiros, nada acontecera desde que Colombo usara a baía de Manatee como um ancoradouro ocasional. Os pescadores jamaicanos haviam tomado o local dos índios Arawak, mas, exceto isso, tinha-se a impressão de que o tempo havia parado.
Bond achou-a a praia mais bonita que já havia visto, oito quilômetros de areia branca descendo suavemente até as ondas e, atrás, a marcha desordenada, porém graciosa, das palmeiras rumo ao horizonte. Debaixo delas, as canoas cinza descansavam fora da água, ao lado de monturos rosados de conchas descartadas. Do meio do palmeiral subia a fumaça das palhoças dos pescadores, na sombra entre o mangue e o mar.
Em uma clareira entre as palhoças, construída sobre estacas em um gramado malcuidado de grama das Bahamas, ficava a casa de fim de semana dos trabalhadores da West Indian Citrus Company. Fora construída sobre estacas para evitar os cupins e era cuidadosamente telada contra mosquitos e borrachudos. Bond saiu da estrada irregular e estacionou sob a casa. Enquanto Quarrel escolhia e arrumava dois quartos, Bond enrolou uma toalha na cintura e caminhou entre as palmeiras até o mar, a vinte metros de distância.
Nadou e boiou preguiçosamente durante uma hora na água quente em que flutuava sem dificuldade, pensando na ilha da Surpresa e em seu segredo, fixando na mente aqueles trezentos metros, pensando nos tubarões e barracudas e demais perigos do mar, essa grande biblioteca cheia de livros que ainda não conseguimos ler.
Ao caminhar de volta para o pequeno chalé de madeira, Bond levou suas primeiras picadas de mosquito pólvora. Quarrel deu uma risada ao ver as mordidas empoladas nas suas costas, que em breve coçariam como o diabo.
“Não se pode fazer nada para nos livrar deles, capitão”, observou. “Mas posso parar essa coceira. Melhor tomar uma chuveirada, primeiro, para tirar o sal. Eles só mordem mesmo durante uma hora, ao entardecer, e gostam de sal no jantar.”
Quando Bond saiu do chuveiro, Quarrel apareceu com uma velha garrafa de remédio e passou um líquido marrom, que cheirava a creolina, nas mordidas.
“A gente tem mais mosquitos pólvora e borrachudos nas ilhas Cayman do que em qualquer outro lugar do mundo”, falou, “mas não nos incomodam desde que tenhamos este remédio”.
Os dez minutos de crepúsculo tropical trouxeram sua breve melancolia. Depois as estrelas e a lua em quarto crescente começaram a brilhar, e o mar se reduziu a um sussurro. Houve uma curta calmaria entre os dois grandes ventos da Jamaica e, em seguida, as palmeiras voltaram a murmurar.
Quarrel fez um gesto da cabeça em direção à janela.
“O vento Papa-Defunto”, comentou.
“Como assim?”, perguntou Bond, espantado.
“Vento terral, como dizem os marinheiros”, acrescentou Quarrel. “O Papa-Defunto sopra, expulsando o ar ruim da ilha durante a noite, das seis às seis da manhã. Em seguida, o ‘vento Médico’ chega, soprando o ar fresco do mar para a ilha. Pelo menos é assim que os chamamos na Jamaica.”
Quarrel olhou perplexo para Bond.
“Acho que Papa-Defunto e você têm praticamente a mesma tarefa, capitão”, comentou, meio brincando.
Bond deu uma breve risada. “Ainda bem que não preciso respeitar o mesmo horário”, respondeu.
Lá fora os grilos e as pererecas começaram a ciciar e coaxar, e as grandes mariposas forçavam as telas das janelas, onde se agarravam, olhando, em um êxtase agoniado, para as duas lamparinas a óleo penduradas em duas travessas dentro de casa.
Uma vez ou outra dois pescadores, ou um grupo de garotas aos risinhos, iam andando até a praia a caminho do único e pequeno bar na ponta da baía. Ninguém andava sozinho, com medo dos lobisomens sob as árvores, ou do garrote rolador, animal terrível que vinha de encontro às pessoas rolando pelo chão, com as pernas presas por correntes e botando fogo pelas ventas.
Enquanto Quarrel preparava uma refeição suculenta de peixe, ovos e legumes que haveria de se tornar a dieta regular de ambos, Bond sentou-se sob a luz e debruçou-se sobre os livros que Strangways pegara emprestado do Instituto Jamaicano. Livros sobre o mar tropical e seus habitantes, por Beebe e Allyn, e outros, sobre caça submarina, de Cousteau e Hass. Quando partisse para atravessar aqueles trezentos metros de mar, estava determinado a fazê-lo com todo o conhecimento possível, sem confiar no acaso. Conhecia a capacidade de Mr. Big e apostava que as defesas da ilha da Surpresa seriam tecnicamente brilhantes. Achou que não se resumiriam a explosivos e armas. Mr. Big precisava trabalhar sem ser incomodado pela polícia. Precisava permanecer fora do alcance da lei. Bond supunha que as forças do mar haviam sido, de certo modo, domesticadas para fazer o trabalho de Mr. Big, e era sobre essas que Bond se concentrava: o assassinato por meio de tubarões e barracudas, talvez polvos e jamantas.
Os fatos expostos pelos naturalistas eram medonhos e horripilantes, mas as experiências de Cousteau no Mediterrâneo e de Hass, no mar Vermelho, eram mais animadoras.
Naquela noite Bond teve muitos sonhos de encontros aterrorizantes com polvos gigantescos e raias-lixas, tubarões cabeça de martelo e barracudas de dentes serrilhados, de modo que gemeu e suou durante o sono.
No dia seguinte começou a se exercitar, sob o olhar crítico de Quarrel. Toda manhã nadava mil e seiscentos metros na praia antes do café da manhã e corria pela areia firme até o chalé. Lá pelas nove partiam em uma canoa, cuja única vela triangular os transportava rápido até a baía Sangrenta e Orange Bay, onde a areia termina em penhascos e pequenas cavernas, e o recife se aproxima da costa.
Ali deixavam a canoa na praia e Quarrel o levava, com fisgas, máscaras e um velho arpão submarino, em expedições de tirar o fôlego, no tipo de mar que ele encontraria na baía dos Tubarões.
Pescavam em silêncio, separados por poucos metros, com Quarrel se movendo com facilidade em um elemento no qual quase se sentia em casa.
Não demorou para que Bond aprendesse a não lutar contra o mar, e sim ceder e aproveitar as correntes e os rodamoinhos, usando táticas de judô dentro d’água.
No primeiro dia chegou em casa cortado e envenenado pelo coral e com uma dúzia de espinhos de ouriço espetados em seu flanco. Quarrel sorriu e tratou as feridas com mertiolato e Milton. Depois, como fazia toda noite, massageou Bond por meia hora com óleo de coco, enquanto ia falando em voz baixa sobre os peixes que haviam encontrado naquele dia, explicando os hábitos dos carnívoros e não carnívoros, a camuflagem dos peixes e seu modo de mudar de cor através da corrente sanguínea.
Ele também jamais ouvira falar de peixe algum que atacasse o homem, a não ser em desespero ou porque havia sangue na água. Explicou que os peixes raramente passam fome nas águas tropicais e que a maioria de suas armas é defensiva, e não ofensiva. A única exceção, admitia, era a barracuda. “Peixes maus”, conforme dizia, que não conheciam o medo, já que não possuíam outro inimigo que não a doença, capazes de atingir oitenta quilômetros por hora em distâncias curtas, e donos dos dentes mais perigosos do que os de qualquer outro peixe de mar.
Um dia alvejaram uma de dez quilos que nadava em volta deles, sumindo na distância cinzenta e depois reaparecendo, silenciosa, imóvel, quase em cima da água, com seus olhos zangados de tigre fitando-os de muito perto, de modo que podiam ver o lento funcionamento de suas guelras e os dentes brilhando, como as presas de um lobo, ao longo da queixada cruel e prognata.
Quarrel finalmente pegou o arpão de Bond e alvejou-a gravemente, atravessando sua barriga aerodinâmica. Ela veio diretamente em cima deles, com as mandíbulas escancaradas, como uma cascavel pronta para o bote. Bond deu uma fisgada desajeitada quando ela investia contra Quarrel. Errou, mas o arpão entrou pelas suas mandíbulas. Elas se fecharam imediatamente sobre o espeto de aço, e quando o peixe arrancou a fisga da mão de Bond, Quarrel apunhalou-a com a faca e ela enlouqueceu, correndo dentro d’água com as entranhas à mostra, a fisga presa entre os dentes e o arpão pendente do corpo. Quarrel mal podia segurar a linha enquanto o peixe procurava retirar a ponta que lhe atravessava a barriga. Mas seguiu-o nadando em direção a um recife submerso, no qual subiu, puxando lentamente o peixe.
Depois que Quarrel cortou as guelras e retirou a fisga de suas mandíbulas, encontraram as marcas profundas dos dentes no aço.
Levaram o peixe para a praia, Quarrel cortou sua cabeça e abriu a bocarra com um pedaço de pau. A mandíbula superior se erguia quase em ângulo reto em relação à inferior, revelando fantásticas fileiras de dentes, tão abundantes que se sobrepunham como telhas no telhado. Até mesmo a língua tinha várias fileiras de pequenos dentes afiados e curvos e, na frente, duas presas enormes, que se projetavam para a frente como as de uma serpente.
Embora só pesasse pouco mais que cinco quilos, passava de um metro e trinta centímetros, uma bala niquelada só de músculo e tecido firme.
“Não vamos matar mais barracudas”, comentou Quarrel. “Mas se não fosse por você eu teria que passar um mês no hospital e talvez perder meu rosto. Foi uma tolice minha. Se a gente tivesse nadado em sua direção, ela teria fugido. Sempre fazem isso. São covardes como todos os peixes. Não se preocupe com esses aqui”, apontou para os dentes, “jamais tornará a vê-los”.
“Espero que não”, desabafou Bond. “Não tenho rosto sobressalente.”
No fim de uma semana Bond estava bronzeado e rijo. Cortara os cigarros para dez por dia e não tomara sequer um drinque. Conseguia nadar três quilômetros sem cansar, a mão estava completamente sarada e ele havia eliminado todas as sequelas da vida urbana.
Quarrel se alegrou. “Você está pronto para a ilha da Surpresa, capitão”, disse, “e eu não gostaria de ser o peixe que tentasse devorá-lo”.
Ao entardecer do oitavo dia, voltaram para a casa de descanso e encontraram Strangways à espera deles.
“Tenho boas notícias para lhe dar”, disse. “Seu amigo Felix Leiter vai ficar bom. Apesar de tudo, não morrerá. Precisaram amputar o resto de um braço e de uma perna. Os cirurgiões plásticos começaram agora a reconstruir o rosto. Ligaram para mim ontem de St. Petersburg. Parece que ele insistiu em lhe mandar um recado. Foi a primeira coisa que lhe veio à cabeça quando voltou a si. Disse que sente muito não poder estar aqui e para você não molhar os pés — ou pelo menos não molhá-los tanto como ele.”
O coração de Bond ficou apertado. Olhou pela janela. “Diga a ele para se restabelecer logo”, disse abruptamente. “E também que sinto a sua falta.” Voltou os olhos para a sala. “E quanto ao equipamento? Tudo bem?”
“Está tudo aqui”, respondeu Strangways, “e o Secatur zarpa amanhã para a ilha da Surpresa. Depois de passar pela alfândega em Port Maria, devem lançar âncora antes do anoitecer. Mr. Big está a bordo — é só a segunda vez que veio aqui. Ah, e trouxe uma mulher. Uma garota chamada Solitaire, de acordo com a CIA. Sabe alguma coisa sobre ela?”
“Não muito”, respondeu Bond. “Mas gostaria de tirá-la dele. Ela não pertence ao seu time.”
“Uma espécie de donzela em apuros”, disse o romântico Strangways. “Pois é. De acordo com a CIA, ela é uma graça.”
Mas Bond fora para a varanda e olhava as estrelas. Jamais tivera de brigar por um cacife tão alto na vida. O segredo do tesouro, a derrota de um grande criminoso, o esmagamento de um círculo de espionagem comunista e a destruição de um tentáculo da SMERSH, a cruel engrenagem que constituía seu próprio alvo particular. E agora Solitaire, a maior das recompensas pessoais.
As estrelas piscavam no seu Morse cifrado e ele não possuía chave alguma para decifrar o seu código.
18.
BEAU DESERT
Strangways voltou sozinho depois do jantar e Bond decidiu que eles partiriam ao amanhecer. O inglês deixou uma nova pilha de livros e panfletos sobre tubarões e barracudas, que Bond estudou com grande atenção.
Pouco acrescentou ao conhecimento prático que aprendera com Quarrel. Os autores eram todos cientistas e grande parte dos dados era sobre ataques ocorridos nas praias do Pacífico, onde qualquer corpo que brilhasse na arrebentação pesada excitaria a curiosidade dos peixes.
Mas parecia haver uma concordância geral que o perigo para os mergulhadores submarinos com aqualungs era muito menor do que para os nadadores de superfície. Estes podiam ser atacados por qualquer representante da família dos tubarões, especialmente quando o tubarão era estimulado e excitado pela presença de sangue no mar, pelo cheiro da vítima ou pela vibração sensorial causada por alguém ferido na água. Mas às vezes podiam ser espantados, segundo a literatura, por barulhos altos dentro d’água — até mesmo por gritos sob a superfície, e muitas vezes fugiam quando perseguidos pelo nadador.
A fórmula mais bem-sucedida de repelente de tubarões era, segundo os testes dos laboratórios de pesquisa naval da marinha americana, uma combinação de acetato de cobre e um corante preto chamado nigrosina, que vinha sendo adicionada, sob a forma de pelotas, aos coletes salva-vidas de todas as forças armadas dos Estados Unidos.
Bond chamou Quarrel. O ilhéu de Cayman não acreditara, até que Bond lesse para ele o que o Departamento Naval tinha a dizer sobre suas pesquisas, no final da guerra, sobre os bandos de tubarões estimulados por uma situação descrita como “condições exacerbadas de comportamento grupal”: “... os tubarões eram atraídos para a popa do barco de pesca de camarões, com refugo de peixes”, leu Bond. “Os tubarões apareceram sob a forma de um cardume exasperado, espadanante. Preparamos uma tina com peixes frescos, e outra com peixes misturados ao pó repelente. Aproximamo-nos do cardume e o fotógrafo começou a rodar a câmera. Despejei os peixes frescos por trinta segundos, repetindo três vezes esse procedimento. Da primeira vez os tubarões demonstraram grande ferocidade ao se alimentar dos peixes frescos bem na popa do barco. Mas ficaram devorando-os só durante cinco segundos depois que o pó repelente foi jogado ao mar. Uns poucos voltaram depois que jogamos peixe fresco imediatamente após o repelente. Em uma segunda tentativa, trinta minutos depois, um cardume feroz se alimentou durante os trinta segundos em que lhe fornecemos peixe fresco, mas se afastou assim que o repelente foi jogado na água. Na terceira tentativa, só conseguimos atrair os tubarões até uma distância de vinte metros da popa do barco.”
“O que acha disso?”, perguntou Bond.
“É melhor arranjar um pouco desse negócio”, respondeu Quarrel a contragosto, mas impressionado.
Bond estava disposto a concordar. Washington havia mandado mensagem de que as pelotas do material estavam a caminho. Mas ainda não tinham chegado e não eram esperadas antes de quarenta e oito horas. Se o repelente não chegasse, não seria problema para Bond. Não imaginava encontrar condições tão perigosas no seu percurso submarino até a ilha.
Antes de ir para a cama, chegara à conclusão de que nada o atacaria se não houvesse sangue na água, ou se ele não parecesse amedrontado diante da ameaça de algum peixe. Quanto aos polvos, peixes-escorpião e moreias, simplesmente precisava tomar cuidado onde punha os pés. Para ele, os espinhos de sete centímetros do ouriço eram o maior perigo para as atividades submarinas nos trópicos, mas a dor que causavam não bastaria para interferir em seus planos.
Partiram antes das seis da manhã e chegaram a Beau Desert às dez e meia.
A propriedade era uma bela plantação antiga de cerca de quatrocentos hectares, com as ruínas da bela casa grande dominando a baía. Era dedicada ao cultivo de pimentões e cítricos, e cercada de madeiras de lei e palmeiras, e sua história remontava à época de Cromwell. O nome romântico estava em moda no século dezoito, quando as propriedades jamaicanas se chamavam Bellair, Bellevue, Boscobel, Harmony, Nymphenburg, ou eram batizadas de Panorama, Satisfação, Repouso.
Uma trilha entre as árvores, que não era visível da ilha na baía, levava à pequena casa de praia. Depois dos piqueniques semanais na baía de Manatee, os banheiros e a mobília confortável de bambu pareciam um luxo, e os tapetes de cores vivas pareciam de veludo sob os pés calejados de Bond.
Pelas rótulas das janelas Bond contemplou o pequeno jardim flamejante de hibiscos, buganvílias e roseiras, que acabava no minúsculo crescente de areia branca, meio tapado pelos troncos das palmeiras. Sentou-se no braço de uma poltrona e deixou que seu olhar passeasse, palmo a palmo, pelos diferentes azuis e marrons do mar e dos recifes, até morrer na base da ilha. A metade superior estava obscurecida pelos leques das plumas das palmeiras em primeiro plano, mas o pedaço de penhasco vertical dentro de seu campo de visão parecia cinzento e formidável na meia sombra projetada pelo sol forte.
Quarrel preparou o almoço em um fogareiro a álcool, de modo que nenhuma fumaça os denunciasse, e de tarde Bond fez uma sesta e depois examinou o equipamento enviado de Londres e trazido de Kingston por Strangways. Experimentou a roupa de mergulho de borracha fina que o cobria, desde a máscara apertada na cabeça com o óculo de vidro temperado, até as longas nadadeiras em seus pés. Tudo cabia como uma luva, e Bond louvou a eficiência do setor “Q” de M.
Testaram os cilindros duplos de mil litros de ar natural comprimido a duzentas atmosferas, e Bond achou fácil o funcionamento das válvulas de distribuição de ar e de reserva, à prova de acidentes. Na profundidade em que agiria, aquele volume dava para durar quase duas horas.
Havia uma nova espingarda submarina potente, marca Champion, e uma faca projetada pela Wilkinson para os comandos durante a guerra. Finalmente, em uma caixa coberta de avisos de perigo, estava a pesada mina naval, um cone de fundo achatado, repleto de explosivos, montado sobre uma base cheia de largas saliências de cobre, tão imantadas que a mina grudava como um marisco em qualquer casco metálico. Havia uma dúzia de detonadores de metal e de vidro, parecidos com lápis, com temporizadores que iam de dez minutos até oito horas, e um meticuloso livrinho de instruções, tão simples quanto o próprio equipamento. Havia até uma caixa de cápsulas de benzedrina para dar resistência e aguçar a percepção de Bond durante a tarefa, e várias lanternas submarinas, inclusive uma que projetava apenas um feixe da largura de um lápis.
Bond e Quarrel testaram tudo, acoplamentos, contatos, até se darem por satisfeitos e concluírem que não restava mais nada a ser feito. Em seguida, Bond desceu até o meio das árvores e observou as águas da baía, calculando as profundidades, traçando rotas para percorrer a passagem pelo recife e prevendo a trajetória da lua, que seria sua única referência no decorrer da tortuosa travessia.
Às cinco horas chegou Strangways com notícias do Secatur.
“Passaram por Port Maria”, informou. “Chegarão aqui dentro de dez minutos, no máximo. Mr. Big tem um passaporte com o nome de Gallia e a garota com o nome de Latrelle. Ela está na sua cabine, mareada, segundo o capitão negro do Secatur. É possível. Há uma porção de tanques de peixe a bordo. Mais de cem. Exceto isso, nada que levantasse suspeita, e foram liberados. Eu queria ir a bordo como parte da turma da alfândega, mas achei melhor deixar que o espetáculo se desenrolasse de modo absolutamente normal. Mr. Big permaneceu na sua cabine. Estava lendo quando foram verificar seus documentos. Como está o equipamento?”
“Perfeito”, respondeu Bond. “Acho que agiremos amanhã à noite. Espero que haja um pouco de vento. Se descobrirem as bolhas de ar, estaremos em apuros.”
Quarrel entrou, avisando: “O iate está passando pelo recife agora, capitão.”
Foram até a máxima distância que podiam arriscar ir, na praia, e assestaram os seus binóculos na direção do barco.
Era uma bela embarcação, negra, com uma superestrutura cinza, setenta pés de comprimento e construída em função da velocidade — de pelo menos vinte nós, imaginou Bond. Conhecia sua história. Havia sido construída para um milionário em 1947, era movida por dois motores a diesel da General Motors, tinha casco de aço e todas as geringonças de comunicação de último tipo, inclusive telefone do barco para a terra e um navegador Decca. Trazia hasteados um pavilhão vermelho nos vaus dos joanetes e a bandeira americana à popa, e progredia a três nós através da abertura de sete metros no recife.
Virou abruptamente, depois de romper a passagem, e rumou para a parte da ilha a bombordo. Ao mesmo tempo, três negros em calças brancas de brim desceram correndo a escada íngreme até o molhe estreito e se posicionaram para amarrar as guias. Foram necessárias poucas manobras para prendê-las, diante dos observadores em terra firme, e as duas âncoras foram arriadas ruidosamente, entre as pedras e o coral na areia do fundo, junto à base da ilha. O barco estava bem protegido, até mesmo do vento norte. Bond calculou uma profundidade de sete metros sob a sua quilha.
Enquanto observavam, a enorme figura de Mr. Big surgiu no convés. Desembarcou no molhe e começou a subir lentamente a escadaria a prumo. Parou várias vezes, e Bond pensou na dificuldade que seu coração avariado teria para bombear o sangue naquele corpanzil preto acinzentado.
Seguiam-no dois tripulantes negros carregando uma maca leve, levando um corpo humano amarrado. Pelos binóculos, Bond reconheceu os cabelos negros de Solitaire. Ficou perplexo e preocupado, sentiu um aperto no coração diante daquela proximidade. Rezou para que a maca fosse apenas uma precaução para evitar que Solitaire fosse reconhecida da costa.
Em seguida, formou-se uma fila de doze homens na escadaria e os tanques de peixe foram sendo passados de um para outro. Quarrel contou cento e vinte.
Depois, alguns gêneros foram levados para cima da mesma maneira.
“Não está trazendo muita coisa desta vez”, comentou Strangways, depois da operação terminada. “Somente uma dúzia de caixotes. Geralmente são cinquenta. Não deve ficar muito tempo.”
Mal acabara de falar quando um tanque de peixe, que seus binóculos mostravam estar meio cheio de água e areia, desceu cuidadosamente de volta ao barco, por meio daquela escada feita de mãos. Em seguida outro, e mais outro, a intervalos de cinco minutos.
“Meu Deus”, exclamou Strangways. “Já estão carregando o barco. O que significa que deverão zarpar pela manhã. Será que resolveram liquidar as operações na ilha e este será seu último carregamento?”
Bond observou com cuidado e depois subiram em silêncio através do arvoredo, deixando Quarrel atrás para se manter a par dos acontecimentos.
Sentaram-se na sala, e enquanto Strangways preparava um uísque com soda para ele mesmo, Bond olhava pela janela e organizava seus pensamentos.
Eram seis horas e os vagalumes começaram a aparecer na penumbra. A lua, de um amarelo pálido, já ia alta no lado do oriente, e o dia morria rápido às suas costas. Uma brisa ligeira encrespava a baía e pequenas ondas quebravam na praia branca no final do gramado. Pequeninas nuvens rosa e alaranjadas, ao poente, vagavam nas alturas, e as folhas das palmeiras se esbarravam de mansinho no vento fresco do Papa-Defunto.
“Vento Papa-Defunto”, pensou Bond, sorrindo de esguelha. Tal como teria de ser esta noite. Era a única chance, e as condições quase perfeitas. Só o repelente de tubarões é que não chegaria a tempo. Mas isso era apenas um requinte. Não poderia ser um pretexto. Era para isto que ele viajara três mil quilômetros e matara cinco. No entanto, sentiu um calafrio ao prever a aventura submarina angustiante, que ele já havia transferido em sua mente para o dia seguinte. De repente sentiu ódio e medo do mar e de tudo que lhe dizia respeito. Dos milhões de pequenas antenas que se mexeriam e o seguiriam quando ele passasse de noite, dos olhos que acordariam para espiá-lo, das batidas de coração que falhariam por um centésimo de segundo para continuar batendo silenciosamente, das gavinhas gelatinosas que se estenderiam em sua direção, tão cegas na luz quanto no escuro.
Iria passar no meio de milhares de segredos. No espaço de trezentos metros, sozinho e com frio, transporia às cegas uma floresta misteriosa em direção a uma cidadela mortífera, cujos guardas já haviam matado três homens. Ele, Bond, depois de uma semana ensolarada de canoagem com sua babá ao lado, ia esta noite, dentro de poucas horas, caminhar sozinho sob aquele lençol escuro de água. Era uma maluquice, algo impensável. Seu corpo se encolheu e ele cravou os dedos nas palmas da mão molhadas.
Houve uma batida na porta e Quarrel entrou. Bond se alegrou de poder levantar da cadeira, se afastar da janela e se aproximar do lugar onde Strangways apreciava seu drinque, debaixo de um abajur.
“Estão trabalhando à luz de lampiões agora, capitão. Um tanque ainda a cada cinco minutos. Calculo que terão dez horas de trabalho. Acabarão mais ou menos às cinco da manhã. Não zarparão antes das seis. É perigoso demais tentar passar pelo canal sem luz suficiente.”
Os olhos cinzentos e amistosos de Quarrel, naquele esplêndido rosto cor de mogno, fitavam Bond, aguardando ordens.
“Começarei às dez em ponto”, Bond se surpreendeu com as próprias palavras. “Das pedras à esquerda da praia. Pode nos fazer um jantar e depois levar o equipamento até o gramado? As condições estão perfeitas. Chegarei lá dentro de meia hora.” Contou nos dedos. “Dê-me os detonadores de cinco e de oito horas. E o de quinze minutos, como reserva, caso algo saia errado. Está certo?”
“Sim senhor, capitão”, respondeu Quarrel. “Pode deixar comigo.”
E saiu.
Bond olhou para a garrafa de uísque e, em seguida, se decidiu, servindo-se de meio copo em cima de três cubos de gelo. Tirou a caixa de benzedrina do bolso e botou um tablete entre os dentes.
“À sorte”, disse a Strangways, tomando um grande gole. Sentou-se apreciando o gosto áspero de seu primeiro drinque em mais de uma semana. “Agora”, perguntou, “diga exatamente o que eles fazem quando estão prontos para zarpar. Levam quanto tempo para se afastar da ilha e passar pelo recife? Se esta for a última vez, não se esqueça de que estarão levando seis homens adicionais e algumas provisões. Vamos tentar prever isso o mais exatamente possível.”
Um momento depois Bond já mergulhara em um mar de detalhes práticos, e a sombra do medo recuara até as zonas de escuridão debaixo das palmeiras.
Exatamente às dez horas, sem sentir nada além da excitação e da expectativa, a figura preta e luzidia como um morcego pulou das pedras dentro de três metros de água, sumindo debaixo do mar.
“Vá com segurança”, disse Quarrel, dirigindo-se ao ponto em que Bond desaparecera. Persignou-se. Em seguida, ele e Strangways voltaram para casa, por entre as sombras, para dormir em turnos, sobressaltados, aguardando, temerosos, o desenrolar dos acontecimentos.
19.
O VALE DAS SOMBRAS
Bond foi levado direto ao fundo pelo peso da mina naval que prendera a seu peito através de fitas, e pelo cinto de chumbo, usado para corrigir a flutuabilidade dos cilindros.
Sem hesitar um instante, cobriu imediatamente os primeiros cinquenta metros de areia do fundo em um rápido crawl, com o rosto pouco acima do leito. As longas nadadeiras quase teriam dobrado sua velocidade normal, não fosse o estorvo do peso que carregava e da leve espingarda de arpão na mão esquerda. Mas avançava depressa e em menos de um minuto parou para descansar na sombra de um grande maciço de coral.
Parou e estudou suas sensações.
Estava aquecido na roupa de mergulho, sentindo mais calor do que se estivesse nadando ao sol. Achou que seus movimentos lhe vinham com facilidade e a respiração era perfeitamente simples, desde que fosse regular e descontraída. Contemplou as bolhas denunciadoras subindo rente ao coral em um repuxo de pérolas prateadas e rezou para que as pequenas ondas as encobrissem.
No espaço desimpedido, sua visibilidade era perfeita. A luz era leitosa e macia, mas não suficientemente forte para dissolver as sombras encarneiradas das ondas na superfície, que enxadrezavam a areia do fundo. Agora, junto ao recife, não havia reflexos no leito do mar, e as sombras sob as pedras eram negras e impenetráveis.
Arriscou uma olhada rápida com a lanterna fina, e imediatamente a paisagem oculta da massa marrom dos arbustos de coral ganhou vida. Anêmonas de miolo carmesim acenavam para ele com seus tentáculos de veludo, uma colônia de ouriços eriçou seus espinhos de aço de Toledo, subitamente assustada, e uma centopeia do mar peluda estacou sua centena de passos, inquirindo-o com sua cabeça cega. Na areia da base da árvore de coral, um peixe-sapo recolheu delicadamente sua horrível cabeça verrugosa de volta à loca, e uma porção de vermes do mar, parecidos com flores, desapareceu em seus tubos gelatinosos. Um cardume de peixes-borboleta e peixes-anjo, coloridos como joias, flertava na luz. Bond distinguiu a forma chata e espiralada de uma estrela-do-mar de grandes pontas.
Bond enfiou a lanterna de volta no cinto.
Acima dele a superfície do mar era uma colcha de mercúrio. Ouvia-se um crepitar baixinho, como gordura fritando na frigideira. Adiante, o luar mergulhava no vale irregular e profundo, cujas encostas afundavam, se afastando da rota que ele devia seguir. Abandonou sua aconchegante árvore de coral e avançou lentamente. Agora não mais com a mesma facilidade. A luz era fraca e enganosa, e a floresta petrificada do recife de coral cheia de becos sem saída e caminhos tentadores, porém ilusórios.
Às vezes era obrigado a subir quase à superfície para transpor o emaranhado de algum arbusto de coral, e quando isso acontecia, aproveitava para verificar sua posição pela lua que brilhava como uma pálida descarga de foguete, no final do caminho que abrira na água. Às vezes a cintura de ampulheta de um rochedo de coral lhe fornecia abrigo, e ele podia descansar por alguns instantes, sabendo que as pequenas borbulhas do respirador ficariam escondidas pela saliência acima da superfície. Então concentrava seu olhar nos rabiscos fosforescentes da minúscula vida noturna submarina e distinguia colônias e populações inteiras às voltas com suas atividades microscópicas.
Não havia peixes grandes nas imediações, mas muitas lagostas fora de suas locas, parecendo bichos enormes e pré-históricos, graças ao efeito de ampliação da água. Seus olhos saltados e vermelhos o fitavam, e suas longas antenas de trinta centímetros pediam-lhe uma senha. Em alguns momentos recuavam nervosamente para seus abrigos, levantando areia com suas caudas potentes, agachadas nas pontas de seus oito pés peludos, à espera de o perigo passar. Certa vez os grandes filamentos de uma caravela passaram flutuando lentamente. Quase tocaram sua cabeça a partir da superfície, cinco metros acima, e ele lembrou a queimadura causada pelo contato com uma delas, que ardera por três dias durante a temporada em Manatee Bay. Se atingisse alguém na altura do coração, poderia ser mortal. Ele viu inúmeras moreias verdes e pintadas, estas últimas se movendo como grandes serpentes pretas e amarelas ao longo da areia do fundo, as verdes mostrando os dentes de dentro de algum buraco na pedra, e vários baiacus, como corujas castanhas, com seus enormes e plácidos olhos verdes. Espetou um deles com a extremidade de sua arma e ele inchou até ficar do tamanho de uma bola de futebol, tornando-se uma massa de perigosos espinhos brancos. Largas gorgônias balançavam, fazendo gestos convidativos nos rodamoinhos, refletindo o luar nos vales cinzentos, acenando fantasmagóricas, como restos das mortalhas de homens sepultados no mar. Muitas vezes Bond distinguia nas sombras movimentos pesados e misteriosos, águas revoltas e o súbito brilho de olhos grandes, que imediatamente se extinguiam. Então, virava-se, destravando o arpão, olhando fixamente o escuro. Mas não atirou em nada e nada o atacou enquanto subia e deslizava pelo recife.
Levou quinze minutos para percorrer cem metros do coral. Depois disso descansou em um pedaço redondo de coral esponjoso, abrigado por um último pedaço de recife. Alegrou-se por só ter de enfrentar uns cem metros de água cinza-claro. Ainda se sentia descansado, conservando a elação e a clareza de espírito provocadas pela benzedrina, mas o labirinto de perigos que enfrentara para atravessar o recife o tinha cansado e causado uma preocupação constante, além do temor de rasgar a roupa de borracha. Agora a floresta de corais afiados como navalhas já havia sido ultrapassada, para ceder lugar aos tubarões e às barracudas, ou talvez à súbita banana de dinamite jogada no meio da sua pequena flor de borbulhas na superfície.
Foi enquanto calculava os perigos ainda por enfrentar que o polvo agarrou-o. Em volta dos dois tornozelos.
Estava sentado com os pés na areia, quando de repente foram presos na base do cogumelo redondo de coral sobre o qual descansava. Quando compreendeu o que tinha acontecido, um tentáculo começou a serpentear pela sua perna acima, e outro, roxo na luz fraca, desceu pela nadadeira esquerda.
Teve um sobressalto de terror e repugnância, levantando-se de imediato, esfregando os pés, esforçando-se por se libertar. Mas não houve afrouxamento de um centímetro sequer, e os movimentos de Bond deram ao polvo a oportunidade de apertar e puxar os calcanhares mais ainda sob a saliência da pedra redonda. A força do bicho era prodigiosa, e Bond sentiu que perdia rapidamente o equilíbrio. Percebeu que num instante seria jogado no chão e aí, atrapalhado pela mina em seu peito e o cilindro nas costas, talvez fosse quase impossível atacar o polvo.
Bond tirou a faca do cinto e espetou entre suas pernas. Mas a saliência da rocha o atrapalhou, e ele ficou apavorado de cortar sua roupa de mergulho. De repente foi derrubado, caindo deitado na areia. De imediato seus pés começaram a ser puxados para dentro de uma larga fenda lateral debaixo da pedra. Esgaravatou a areia e tentou se dobrar para poder ter acesso à faca. Porém, a grande protuberância da mina em seu peito impediu-o de fazê-lo. À beira do pânico, lembrou-se do arpão. Antes não lhe dera importância, achando que era uma arma inútil naquela pequena distância, mas agora era a sua única chance. Permanecia na areia onde o deixara. Pegou-o e destravou-o. A mina impediu-o de fazer mira. Escorregou o cano ao longo das pernas e cutucou cada pé com a ponta do arpão para descobrir a distância entre eles. Um tentáculo agarrou imediatamente a ponta de aço e começou a puxar. A arma escorregou entre seus pés aprisionados e ele apertou o gatilho às cegas.
Uma grande nuvem de tinta viscosa e pegajosa saiu em rolos da fenda, em direção a seu rosto. Mas uma perna estava livre, em seguida a outra, e ele se aprumou e pegou o cabo do arpão de um metro, no local em que já ia desaparecendo sob a rocha. Puxou e forcejou até que, com um esgarçar de tecidos, conseguiu tirar a arma de dentro da névoa negra que envolvia o buraco. Ofegante, levantou-se e se afastou da rocha, com suor escorrendo pelo rosto, sob a máscara. Acima dele, a fieira prateada de bolhas subiu direto à superfície, e ele praguejou contra aquele animal barrigudo, ferido em seu abrigo.
Mas não podia perder tempo se preocupando com ele. Recarregou a arma e partiu com a lua sobre o seu ombro direito.
Agora avançava bem através da água cinzenta e enevoada, concentrando-se em manter o rosto apenas alguns centímetros acima da areia, com a cabeça bastante baixa para reduzir o atrito de seu corpo com a água. A certa altura, viu, de relance, uma raia-lixa do tamanho de uma mesa de pingue-pongue se desviar habilmente de seu caminho, batendo as asas pontudas e manchadas, como um pássaro, e arrastando atrás de si sua cauda farpada. Não lhe deu atenção, lembrando-se do que Quarrel dissera: que as raias jamais atacam a não ser em autodefesa. Calculou que ela provavelmente viera dos recifes externos para botar seus ovos — ou “bolsas de sereias”, como chamavam os pescadores, porque têm a forma de um travesseiro com dois fios pretos e rígidos em cada canto — no fundo abrigado de areia.
Muitos vultos de peixes grandes nadavam preguiçosamente sobre a areia enluarada, alguns do seu tamanho. Quando um deles seguiu Bond por pelo menos um minuto, ele levantou os olhos, distinguindo a barriga branca de um tubarão cinco metros acima dele, como um zepelim afunilado verde e azul. Seu nariz arredondado estava mergulhado com curiosidade na coluna de bolhas de ar. O grande rasgo em forma de foice de sua boca parecia uma cicatriz repuxada. Virou de lado e olhou para ele embaixo com um olhar duro e rosado e, em seguida, abanou sua cauda, também em forma de foice, e se afastou devagar dentro do muro de névoa cinzenta.
Bond amedrontou uma família de polvos, pesando de três quilos aos cento e cinquenta gramas de um filhote, frágil e luminoso à meia-luz, suspensa quase na vertical em um cordão declinante. Eles se endireitaram e fugiram rápido, a propulsão a jato.
Bond descansou por um instante na metade do caminho e então prosseguiu. Agora havia barracudas por ali, grandes, de até nove quilos. Pareciam tão mortíferas quanto as recordações que tinha delas. Planavam acima dele como submarinos prateados, olhando para baixo com seus olhos de tigre zangado. Sentiam curiosidade a seu respeito e a respeito das bolhas, e seguiram-no por cima e em torno dele, como uma alcateia de lobos silenciosos. Quando Bond encontrou o primeiro pedaço de coral, indício de que se aproximava da ilha, havia cerca de vinte delas se movendo em silêncio, vigilantes, saindo e entrando da parede opaca que o envolvia.
A pele de Bond se encolheu debaixo da roupa de borracha, mas ele não podia fazer nada a respeito delas e concentrou-se em sua meta.
De repente havia uma longa forma metálica suspensa acima dele na água. Atrás dela um monte de pedras quebradas que subiam de maneira íngreme.
Era a quilha do Secatur, e o coração de Bond deu um pulo no peito.
Consultou seu Rolex. Eram onze e três. Escolheu o detonador de sete horas do punhado que tirou de um bolso lateral com zíper, inserindo-o na cavidade apropriada da mina, apertando-o. Enterrou na areia o restante dos detonadores, de modo que, se fosse capturado, ninguém desconfiaria da existência da mina.
Ao nadar em direção à superfície, carregando a mina entre as mãos, com a base para cima, percebeu um rebuliço na água atrás dele. Uma barracuda passou depressa, com as mandíbulas meio abertas, quase colidindo com ele e com os olhos fixos em algo às suas costas. Mas Bond estava concentrado apenas no meio da quilha do barco, em um ponto pouco mais de um metro acima da superfície.
A mina quase o arrastou pelos últimos metros, pois seus enormes ímãs buscavam o beijo metálico com o casco. Bond precisou lutar contra eles para evitar o barulho do choque. Em seguida, tendo colocado a mina no lugar adequado e agora livre do seu peso, Bond precisou nadar com força para se contrapor à sua nova flutuabilidade e afundar de novo, afastando-se da superfície.
Foi quando se virou para nadar em direção às duas hélices, a caminho do abrigo das pedras, que conseguiu ver as coisas terríveis que ocorriam às suas costas.
O bando enorme de barracudas parecia ter enlouquecido. Giravam e mordiam como cães histéricos. Três tubarões que haviam se juntado a eles arremetiam pela água com um frenesi pouco menor. A água fervilhava com esses peixes terríveis, e Bond levou um encontrão no rosto, recebendo outros tantos por várias vezes em uma distância de poucos metros. Percebeu que a qualquer momento sua pele de borracha se rasgaria, junto com a carne debaixo dela, e então o bando viria atrás dele.
“Condições exacerbadas de comportamento grupal.” A frase do Departamento Naval pipocou na sua mente. Era exatamente nesta situação que o repelente de tubarões poderia salvá-lo. Na sua ausência, teria talvez alguns minutos a mais de vida.
Em desespero, nadou espalhafatosamente, ao longo da quilha do barco, com o arpão destravado, que agora não passava de um brinquedo diante daquele bando de peixes canibais ensandecidos.
Alcançou as duas grandes hélices de cobre, agarrando-se a uma delas, ofegante, com os lábios formando um esgar de medo e os olhos arregalados, ao se dar conta do frenesi no mar fervilhante a seu redor.
Viu de repente que as bocas dos peixes que arremetiam furiosos estavam meio abertas e que eles mergulhavam e saíam de uma nuvem marrom, que se espalhava desde a superfície. Perto dele, uma barracuda se deteve por um instante, com algo marrom e reluzente nas suas mandíbulas. Engoliu de uma bocada, depois virou e voltou para a confusão.
Ao mesmo tempo, Bond notou que escurecia. Olhou para cima e percebeu, com uma nova compreensão, que a superfície de mercúrio do mar tornara-se vermelha, um horrível carmesim brilhante.
Fiapos dessa substância chegaram flutuando até seu alcance. Puxou-os com a extremidade de sua arma. Segurou-os contra sua máscara.
Não havia mais dúvida.
Alguém lá em cima atirava sangue e vísceras na superfície do mar.
20.
A CAVERNA DE MORGAN, O SANGUINÁRIO
Bond compreendeu de imediato o motivo de todas aquelas barracudas e tubarões estarem rondando a ilha, de como eram mantidos naquele frenesi voraz por esse banquete noturno, por que os três homens, desafiando todas as explicações plausíveis, haviam sido devolvidos à praia, meio devorados pelos peixes.
Mr. Big tinha apenas posto as forças do mar para trabalhar em seu proveito, utilizando-as para sua proteção. Era um invento típico — imaginativo, criativo, tecnicamente à prova de erro e fácil de pôr em prática.
No exato momento em que Bond compreendera isso tudo, algo lhe deu um terrível golpe no ombro e uma barracuda de dez quilos recuou, com carne e borracha preta entre as mandíbulas. Bond não sentiu dor, ao largar a hélice de bronze e nadar desesperadamente até as pedras, só uma náusea terrível na boca do estômago, ao pensar que um pedaço seu se encontrava entre aquelas centenas de dentes afiados como uma navalha. A água começou a vazar entre a borracha aderente e a sua pele. Não demoraria até chegar a seu pescoço e penetrar na máscara.
Já ia desistir e subir disparado pelos sete metros até a tona, quando viu uma larga fissura nas pedras diante dele. Ao lado havia um grande pedregulho tombado de lado e, de algum modo, ele conseguiu se esconder atrás dele. Virou-se, naquele abrigo precário, no momento exato em que a mesma barracuda investia outra vez, com o maxilar superior em ângulo reto em relação ao inferior, a boca escancarada pronta para o bote terrível.
Bond atirou quase às cegas com o arpão. As tiras de borracha dispararam cano abaixo e o arpão dentado pegou o grande peixe no centro da mandíbula superior erguida, atravessando-a e penetrando até a metade do cabo, com a linha ainda livre.
A barracuda estacou a um metro da barriga de Bond. Tentou fechar as mandíbulas e, em seguida, deu uma enorme sacudida na longa cabeça de réptil. Depois se afastou em disparada, ziguezagueando loucamente, arrancando da mão de Bond o arpão e a linha, que arrastou atrás de si. Bond sabia que, antes de ela percorrer cem metros, os demais peixes a atacariam e a fariam em pedaços.
Deu graças a Deus por essa manobra diversiva. Seu ombro estava agora envolto por uma nuvem de sangue. Os outros peixes sentiriam o cheiro em questão de segundos. Contornou o pedregulho imaginando se arranjaria um meio de se abrigar debaixo do atracadouro, escondendo-se de algum modo acima da superfície da água, até pensar em outro plano.
Então viu a caverna que o pedregulho escondera.
Era de fato quase uma porta na base da ilha. Se Bond não estivesse nadando para salvar sua vida, poderia ter entrado nela andando. Mas, naquelas circunstâncias, mergulhou direto na abertura e só parou quando poucos metros o separavam de sua entrada bruxuleante.
Então ficou de pé na areia macia e acendeu a lanterna. Um tubarão talvez pudesse vir atrás dele, mas no espaço confinado seria quase impossível que o mordesse com sua boca situada muito embaixo. Com certeza não viria precipitadamente, porque até o tubarão tem medo de arriscar a pele entre as pedras, e Bond teria ampla oportunidade de procurar atingir seus olhos com a faca.
Bond iluminou o teto e os lados da caverna com a lanterna. Certamente fora modelada ou acabada pela mão do homem. Bond calculou que deveria ter sido escavada de dentro para fora, a partir de algum lugar no centro da ilha.
“Faltam pelo menos vinte metros para acabar, gente”, Morgan, o Sanguinário, deve ter dito aos feitores de escravos. E então as picaretas devem ter rompido de repente o resto da parede que ainda separava a caverna do mar, e uma confusão de pernas, braços e bocas gritando, sufocadas para sempre pela água, teriam sido arremessadas para trás contra a pedra, juntando-se aos cadáveres das demais testemunhas.
O grande pedregulho na entrada deve ter sido posicionado para vedar a saída para o mar. O pescador da baía dos Tubarões que desapareceu de repente, seis meses atrás, deve tê-la descoberto um dia. Fora afastada de sua posição original por alguma tempestade ou tsunami consecutivo a um tufão. Então descobrira o tesouro e percebera que precisava de ajuda para dispor dele. Um branco o enganaria. Melhor procurar o grande gângster negro no Harlem e fazer o melhor acordo que pudesse. O ouro pertencia aos negros que haviam morrido para escondê-lo. Deveria ser devolvido aos negros.
Ali de pé, balançando na correnteza do túnel, Bond imaginou mais um barril cimentado mergulhando no lodo do rio Harlem.
Foi então que ouviu os tambores.
Lá fora, entre os peixes grandes, ouvira uma leve trovoada na água, que aumentara quando entrou na caverna. Mas julgara que eram apenas as ondas batendo na base da ilha e, de qualquer modo, tinha outras coisas em mente.
Mas agora podia distinguir um ritmo definido, e o som ribombava e crescia à sua volta, com um rufo abafado, como se o próprio Bond estivesse preso dentro de um vasto atabaque. A água parecia tremular por causa desse barulho. Ele imaginou o duplo objetivo do batuque. Era um grande chamado aos peixes, usado quando havia invasores, para atrair e excitá-los ainda mais. Quarrel lhe contara como os pescadores noturnos costumam bater nos lados da canoa com o remo para acordar e atrair os peixes. Aquilo deveria ser algo parecido. Ao mesmo tempo seria um aviso macabro do vodu para o pessoal da costa, duplamente eficaz quando algum cadáver era devolvido pelo mar no dia seguinte.
Mais um dos requintes de Mr. Big, pensou Bond. O batuque significava que ele fora descoberto. O que pensariam Strangways e Quarrel ao ouvi-lo? Seriam simplesmente obrigados a aguentar firme, sentados. Bond já havia percebido que os tambores eram algum truque e fizera os dois prometer que não iriam interferir, a não ser que o Secatur escapasse incólume. Pois isso significaria que todos os planos de Bond haviam fracassado. Ele contara a Strangways onde o ouro estava escondido, e neste caso o barco teria de ser interceptado em alto-mar.
Agora o inimigo fora alertado, mas não sabia quem era o invasor, nem se ele ainda estava vivo. Ele precisava prosseguir, nem que fosse para impedir por todos os meios que Solitaire embarcasse no iate condenado.
Bond consultou o relógio. Era meia-noite e meia. Para ele, poderia ter se passado uma semana desde que iniciara sua incursão pelo mar dos perigos.
Apalpou a Beretta sob a roupa de borracha, pensando se já não estaria avariada pela água que entrara pelo rasgo feito pelos dentes da barracuda.
Então, com o troar dos atabaques se aproximando cada vez mais de um crescendo, avançou na caverna, projetando adiante um pequeno feixe de luz com a lanterna.
Avançara cerca de dez metros quando viu um leve brilho na água à sua frente. Apagou a lanterna e foi se aproximando com cautela. O piso arenoso da caverna começou a se inclinar para cima, e a cada metro a luz se tornava mais forte. Agora podia ver dezenas de pequenos peixes que brincavam à sua volta e, mais adiante, a água estava cheia deles, atraídos pela luz da caverna. Caranguejos olhavam atentos de pequenas frestas nas pedras e um polvo novinho se achatou contra o teto, tomando a forma de uma estrela fosforescente.
Em seguida, pôde divisar o final da caverna e uma larga piscina brilhante, além, cujo fundo arenoso era branco como o dia. O roncar dos atabaques aumentava. Parou na sombra da entrada e percebeu que a superfície ficava apenas poucos centímetros acima e que havia lâmpadas sobre a piscina.
Bond estava em um dilema. Mais um passo e ficaria em plena vista de qualquer um que estivesse olhando para a piscina. Ao hesitar, argumentando consigo mesmo, ficou horrorizado ao ver uma fina nuvem de sangue de seu ombro se espalhando pela entrada. Esquecera o ferimento no ombro, que agora começara a latejar, e quando moveu o braço sentiu a ferroada de uma dor intensa em toda sua extensão. Havia também o fino jato de bolhas dos cilindros, mas ele esperava que elas fossem flutuando lentamente para arrebentar na beirinha da entrada.
No exato momento em que recuou alguns centímetros, seu futuro já estava selado.
Sobre sua cabeça percebeu apenas uma enorme pancada na água, e depois dois negros, nus a não ser pelas máscaras de mergulho nos rostos, com longas facas seguras como lanças em suas mãos esquerdas, investiram contra ele.
Antes que sua mão pudesse pegar a faca no cinto, já haviam agarrado seus dois braços e o puxavam para a superfície.
Desesperado, Bond teve de deixar que o tirassem à força da piscina e o jogassem na areia lisa. Depois de ser obrigado a se levantar, abriram os zíperes de seu traje de mergulho. Seu capuz foi retirado da cabeça, o coldre de seu ombro, e de repente ele se achou de pé entre os frangalhos da roupa preta de mergulho, como uma serpente trocando a pele, nu, exceto pelo pequeno calção de banho. O sangue escorria do buraco irregular no ombro esquerdo.
Quando tiraram seu capuz, Bond quase ensurdeceu com a batida e o rufar dos atabaques. O barulho penetrava nele e mexia com tudo em volta. O ritmo rápido e sincopado galopava e latejava nas suas veias. Parecia capaz de acordar toda a Jamaica. Bond fez uma careta e seus sentidos procuraram resistir aos golpes daquela tempestade sonora. Em seguida, os guardas o fizeram se virar e se deparar com uma cena tão grotesca que o som dos atabaques recuou para o fundo e toda sua consciência se concentrou no que via.
No primeiro plano, em uma mesa de jogo com tampo de veludo verde, apinhada de papéis, e sentado em uma cadeira de dobrar, estava Mr. Big, com uma caneta na mão, olhando-o sem curiosidade. Um Mr. Big em um terno castanho-amarelado, bem cortado, de tropical, com camisa branca e gravata de tricô de seda preta. O queixo largo descansava na sua mão esquerda e ele levantou os olhos para Bond como se tivesse sido incomodado, em seu escritório, por alguém de sua equipe pedindo um aumento de salário. Parecia polido, porém levemente entediado.
A alguns passos dele, sinistro e absurdo, o espantalho da efígie do Baron Samedi, ereto sobre uma pedra, observava Bond debaixo de seu chapéu-coco.
Mr. Big tirou a mão do queixo e seus grandes olhos dourados estudaram Bond da cabeça aos pés.
“Bom dia, senhor James Bond”, disse finalmente, projetando a voz inexpressiva contra o barulho já decrescente dos tambores. “A mosca levou mesmo muito tempo para chegar à aranha, ou talvez devesse dizer ‘o lambari à baleia’. Você deixou um belo rastro de bolhas no recife.”
Recostou-se na cadeira e se calou. Os atabaques batiam e rufavam mais baixo.
Então fora a luta contra o polvo que o traíra. A mente de Bond registrou o fato automaticamente, enquanto olhava para além do homem na mesa.
Estava em um salão de pedra grande como uma igreja. Metade do piso era ocupada pela enorme piscina clara e branca pela qual chegara, e que se transformava em verde-mar e depois azul perto do buraco de entrada submarino. Em seguida, havia a faixa estreita de areia em que ele pisava, e o resto do piso era de pedra lisa e plana, marcado por algumas estalagmites cinzentas e brancas.
A alguma distância atrás de Mr. Big uma escadaria íngreme levava a um teto abobadado, do qual pendiam estalactites curtas de calcário. De seus brancos mamilos a água gotejava intermitentemente na piscina, ou sobre as jovens estalagmites que se erguiam do chão, a seu encontro.
Havia uma dúzia de luzes fosforescentes muito claras fixadas alto nas paredes, criando reflexos dourados nos torsos nus de um grupo de negros em pé, à sua esquerda, no piso de pedra, observando Bond de olhos arregalados, mostrando os dentes em sorrisos cruéis e satisfeitos.
Em volta de seus pés pretos e rosados, entre destroços de madeira quebrada e anéis de ferro enferrujados, tiras mofadas de couro e lona decomposta, havia um mar fulgurante de moedas de ouro — metros, cascatas de moedas redondas de ouro, do qual emergiam as pernas pretas, como se tivessem sido detidas no meio de um passeio entre as chamas.
Ao lado deles, empilhadas fileira após fileira, ficavam bandejas rasas de madeira. Algumas estavam no chão, parcialmente cheias de moedas de ouro, e embaixo da escada, um único negro parara na subida, segurando uma delas repleta de moedas de ouro em quatro fileiras cilíndricas, estendida como se estivesse sendo oferecida à venda.
Mais à esquerda, em um canto do salão, havia dois negros próximos a um caldeirão de ferro arredondado, suspenso acima de três maçaricos sibilantes, até que seu fundo ficasse vermelho incandescente. Seguravam escumadeiras de ferro, lambuzadas de ouro até metade de seus cabos. Ao lado deles havia uma miscelânea de peças de ouro, talheres, objetos de altar, copos, cruzes e uma pilha de lingotes de ouro de diversos tamanhos. Ao longo da parede viam-se, próximas a eles, fileiras de bandejas para esfriar o metal, cujas superfícies segmentadas irradiavam um brilho dourado, e uma bandeja vazia descansava no piso perto do caldeirão, junto com uma longa concha manchada de ouro e o cabo envolto em pano.
Acocorado no chão, não muito distante de Mr. Big, um único negro segurava uma faca em uma das mãos, e uma taça ornamentada de brilhantes na outra. A seu lado, em um prato de lata, uma pilha de joias cintilava, embaçadas, vermelhas, azuis e verdes, sob o brilho das lâmpadas fluorescentes.
Estava quente e abafado no grande salão de pedra e, no entanto, Bond tiritava ao abarcar toda essa esplêndida cena com os olhos. O brilho das lâmpadas violeta esbranquiçadas, o bronzeado tremeluzente dos corpos suados, o brilho forte do ouro, o arco-íris do recipiente com os brilhantes, a água marinha em tom leitoso da piscina. Ele tremia diante da beleza daquilo tudo, diante daquela dança petrificada da grande arca do tesouro de Morgan, o Sanguinário.
Seus olhos voltaram para o quadrado de veludo verde e para a grande face de zumbi, olhando aquele rosto e seus olhos amarelos com respeito, quase com reverência.
“Pare os tambores”, disse Mr. Big, para ninguém em particular. O batuque se reduzira a um quase sussurro, a um murmúrio cujo acento recaía sobre o ritmo do coração nas veias. Um dos negros deu dois passos, acompanhados de barulhos metálicos entre as moedas, abaixando-se. Um aparelho de som portátil estava no chão, com um potente amplificador ao lado, contra a parede de pedra. Depois de um clique os tambores pararam. O negro fechou a tampa do aparelho e voltou a seu lugar.
“Andem com o trabalho”, ordenou Mr. Big. E de repente todas as figuras começaram a se mover, como se alguém tivesse posto uma moeda em um caça-níquel. Mexeram o caldeirão, pegaram o ouro e o puseram nas caixas, o sujeito procurava retirar a pedraria da taça, e o negro com a bandeja de ouro prosseguiu subindo a escada.
Bond continuava de pé, pingando suor e sangue.
Big Man descansou a caneta e se levantou devagar. Afastou-se da mesa.
“Assuma meu lugar”, ordenou a um dos homens que guardavam Bond, e o sujeito nu rodeou a mesa, sentou na cadeira de Mr. Big e pegou a caneta.
“Traga-o aqui para cima.” Mr. Big foi até os degraus na rocha e começou a subi-los lentamente.
Bond sentiu uma picada do lado. Acabou de despir os restos de sua segunda pele preta e seguiu a figura que subia devagar.
Ninguém levantou os olhos do trabalho. Ninguém descuidava do serviço quando Mr. Big saía. Ninguém seria capaz de enfiar um brilhante ou uma moeda na boca.
O Baron Samedi assumira a chefia.
Apenas seu zumbi deixara a caverna.
21.
“BOA NOITE A AMBOS”
Subiram vagarosamente por cerca de treze metros, passando por uma porta aberta perto do teto, e pararam em um grande patamar na pedra. Ali um único negro, à luz de um lampião de acetileno, arrumava bandejas cheias de moedas de ouro no meio dos tanques de peixe, muitos já se encontrando empilhados contra a parede.
Enquanto esperavam, dois negros desceram a escada, vindos da superfície, pegaram um tanque pronto e voltaram para cima com ele.
Bond achava que eles enchiam os tanques com areia, plantas aquáticas e peixes em algum lugar no alto, e depois os desciam através da corrente humana ao longo da face do rochedo.
Notou que alguns dos tanques à espera tinham lingotes de ouro fixados no centro, e outros, pedrarias espalhadas como cascalho. Então refez os cálculos sobre o tesouro, quadruplicando seu valor até cerca de quatro milhões de libras esterlinas.
Mr. Big ficou um tempo com o olhar no chão de pedra. Respirava fundo, mas de maneira controlada. Em seguida, subiram.
Vinte degraus acima havia outro patamar, menor, com uma porta de saída. Nela havia corrente e cadeado novos. A própria porta era feita de grades de ferro marrons, achatadas, corroídas pela ferrugem.
Mr. Big parou de novo e ficaram lado a lado na pequena plataforma de pedra.
Por um momento Bond pensou em fugir, mas, como se tivesse lido a sua mente, o guarda negro cercou-o contra a parede, longe de Big Man. E Bond sabia que sua maior obrigação era se manter vivo e chegar a Solitaire, e arranjar um jeito de afastá-la do barco condenado pela mina, em que o ácido roía lentamente o cobre do detonador.
Do alto vinha uma forte correnteza pelo vão da escada, e Bond sentiu que seu suor secava. Pôs a mão direita no ferimento do ombro, sem se assustar com a picada no flanco feita pela faca do guarda. O sangue já secara em crostas e a maior parte do braço doía tremendamente.
Mr. Big falou:
“Este vento, sr. Bond”, apontou para o vão, “é conhecido na Jamaica como ‘vento Papa-Defunto’”.
Bond sacudiu o ombro direito, poupando o fôlego.
Mr. Big virou para a porta de ferro, tirou a chave do bolso e abriu-a. Passou e foi seguido por Bond e seu guarda.
Era um cômodo que consistia em uma estreita passagem, com grilhões enferrujados presos embaixo na parede, a menos de dez metros de intervalo.
Na outra extremidade, onde uma lamparina pendia do teto de pedra, uma figura imóvel estava deitada no chão, embrulhada em um cobertor. Havia mais uma lamparina na porta, em cima de suas cabeças, mas, exceto isso, apenas o cheiro de pedra úmida, torturas antigas e morte.
“Solitaire”, falou Bond, baixinho.
O coração de Bond deu um salto e ele quis se adiantar. Imediatamente uma mão enorme agarrou seu braço.
“Pare aí, seu branco”, vociferou o guarda, torcendo o punho dele entre as espáduas, levantando-o ainda mais, até que Bond deu um chute com o calcanhar esquerdo. Acertou na canela do homem, mas doeu mais em Bond do que no guarda.
Mr. Big se virou. Tinha uma pequena arma quase encoberta pela mão enorme.
“Solte-o”, ordenou em voz baixa. “Se quiser mais um umbigo, senhor Bond, é só dizer. Tenho seis aqui nesta arma.”
Bond passou esbarrando em Big Man. Solitaire se levantara, vindo em sua direção. Quando viu seu rosto, desandou a correr, estendendo as mãos.
“James”, soluçou. “James.”
Ela quase caiu a seus pés. Suas mãos se agarraram.
“Arranje corda”, ordenou Mr. Big no vão da porta.
“Está tudo bem, Solitaire”, disse Bond, sabendo que não estava. “Está tudo bem. Estou aqui agora.”
Ele pegou-a, mantendo-a a distância de seu braço estendido. O braço esquerdo doeu. Ela estava pálida e desarrumada, com um machucado na testa e olheiras. No seu rosto encardido as lágrimas escorriam deixando marcas na pele lívida. Estava sem maquiagem. Trajava um terninho branco sujo e sandálias. Parecia magra.
“O que esse desgraçado anda fazendo com você?”, perguntou Bond. Apertou-a de repente contra si. Ela se agarrou a ele, com o rosto enterrado em seu pescoço.
Em seguida, se afastou e olhou para a mão dele.
“Você está sangrando”, disse. “O que é?”
Virou-o pela metade e viu o sangue preto no seu ombro e pelo braço abaixo.
“Ah, meu querido, o que foi?”
Começou a chorar de novo, desamparada, desesperada, percebendo subitamente que ambos estavam perdidos.
“Amarre-os”, ordenou Big Man, da porta. “Aqui, debaixo da luz. Preciso dizer-lhes umas coisas.”
O negro estava vindo e Bond se virou. Valeria a pena arriscar? O negro só tinha a corda na mão. Mas Big Man deu um passo para o lado, vigiando-o, segurando a arma displicentemente, meio apontada para o chão.
“Não, senhor Bond”, avisou apenas.
Bond lançou um olhar para o negro enorme e pensou em Solitaire e no seu próprio ombro ferido.
O negro chegou e Bond deixou que amarrasse seus braços atrás das costas. Os nós foram bem dados. Não havia folga. Doíam.
Bond sorriu para Solitaire. Piscou um olho pela metade. Não passava de uma bravata, mas percebeu uma vivacidade esperançosa renascer em meio a suas lágrimas.
O negro levou-o de volta à porta.
“Ali”, disse Big Man, fazendo um gesto para um dos grilhões.
O negro derrubou Bond com uma rasteira repentina. Este caiu em cima do ombro ferido. O negro puxou-o pela corda até o grilhão, testou-o, passou a corda por ele e então amarrou Bond pelos tornozelos, muito bem amarrado. Enfiara sua faca em uma fresta na pedra. Tirou-a, cortou a corda e voltou para onde Solitaire estava.
Bond ficou sentado no chão de pedra, com as pernas esticadas para a frente, com os braços suspensos, amarrados por trás. O sangue pingava do ferimento reaberto. Apenas os resíduos da benzedrina no seu corpo o impediam de desmaiar.
Solitaire foi amarrada e colocada quase defronte a ele. Um metro separava os pés de ambos.
Com a tarefa concluída, Big Man consultou o relógio.
“Vá”, ordenou ao guarda. Fechou a porta de ferro depois que o sujeito se foi, ficando encostado nela.
Bond e a garota se entreolharam e Big Man contemplou os dois no chão.
Depois de um de seus longos silêncios, dirigiu-se a Bond. Este levantou os olhos para ele. A enorme bola de futebol cinzenta que era sua cabeça parecia, sob o lampião, a cabeça de um elemental, de algum espectro maligno do centro da terra, pairando no ar, com os olhos dourados ardendo firmes, e o grande corpo na sombra. Bond precisou lembrar-se de que já ouvira o coração dele batendo no peito, já o ouvira respirar, já vira suor na pele cinzenta. Não passava de um homem, da mesma espécie dele, um homem grande, com uma mente brilhante, mas ainda assim um homem que caminhava e defecava, um homem mortal, com uma doença no coração.
A boca larga e borrachuda se abriu, os lábios achatados, levemente virados, recuaram dos grandes dentes brancos.
“Você é o melhor de todos os que foram mandados para me combater”, disse Mr. Big. Sua voz baixa e insossa era pensativa, calculada. “E conseguiu matar quatro de meus ajudantes. Meus seguidores acham isso inacreditável. Já é mais do que tempo de liquidarmos nossas contas. O que aconteceu ao americano não bastou. A traição desta garota”, ele ainda olhava para Bond, “que tirei da sarjeta e estava pronto a colocar na minha mão direita, também questionou a minha infalibilidade. Eu estava imaginando como ela deveria morrer, quando a providência, ou o Baron Samedi, como meus seguidores gostam de acreditar, também trouxe você para o altar de cabeça baixa, pronto para o machado”.
A boca parou, com os lábios entreabertos. Bond viu os dentes se juntarem para formar a palavra seguinte.
“De modo que é conveniente que os dois morram juntos. Isso acontecerá de um modo adequado”, Big Man consultou seu relógio, “dentro de duas horas e meia. Às seis horas, alguns minutos a mais ou a menos”, acrescentou.
“Alguns minutos a mais”, comentou Bond. “Gosto da vida.”
“Na história de emancipação dos negros”, continuou Mr. Big em tom de conversa despreocupada, “já surgiram grandes atletas, grandes músicos, grandes escritores, grandes médicos e cientistas. No seu devido tempo, como aconteceu na história do desenvolvimento de outras raças, hão de surgir negros famosos em todos os demais setores da vida”. Fez uma pausa. “Infelizmente para você, senhor Bond, e para esta garota, vocês encontraram o primeiro dos grandes criminosos negros. Uso esta palavra vulgar, senhor Bond, porque seria a mesma que você, senhor Bond, como uma espécie de policial, usaria. Mas prefiro me considerar uma pessoa que possui a habilidade, as capacidades mentais e nervosas para criar as próprias leis e agir segundo elas, em vez de aceitar as leis que convêm ao mínimo denominador comum das pessoas. Sem dúvida você já leu Os instintos do rebanho na paz e na guerra, de Trotter. Pois bem, sou lobo por índole e opção, e vivo segundo as leis do lobo. É natural que os carneiros descrevam este indivíduo como ‘criminoso’.
“O fato, senhor Bond”, prosseguiu Big Man, depois de uma pausa, “de que sobrevivo e, na verdade, gozo de um sucesso ilimitado, embora seja eu sozinho contra milhões de carneiros, se deve às técnicas modernas que lhe descrevi por ocasião de nossa última conversa, e a uma infinita capacidade de me esforçar. Não os esforços tediosos, vulgares, e sim os artísticos e sutis. E eu noto, senhor Bond, que não é difícil enganar os carneiros, não importa quantos, com muita dedicação ao trabalho e, naturalmente, se formos um lobo extremamente bem dotado.
“Deixe-me ilustrar, por exemplo, como funciona a minha mente. Estudemos o método pelo qual decidi que ambos morrerão. É uma variação moderna do método usado na época do meu generoso patrono, sir Henry Morgan. Naquele tempo, era conhecido como ‘arrastamento pela quilha’.”
“Por favor, continue”, disse Bond, sem olhar para Solitaire.
“Temos uma paravana a bordo do iate”, prosseguiu Mr. Big, como se fosse um cirurgião descrevendo uma operação delicada para um grupo de estudantes, “que usamos para rebocar tubarões e outros peixes de grande porte. Esta paravana é, como sabem, um aparelho com a forma de um torpedo, que boia puxado por um cabo, distante do barco. Pode ser usada para sustentar a extremidade de uma rede, rebocando-a através da água, com o barco em movimento. Também pode ser equipada com um instrumento de corte, para cortar os cabos de amarração das minas em época de guerra.
“Pretendo”, continuou Mr. Big, em um tom de voz discursivo e natural, “amarrá-los juntos à extremidade de um cabo preso a essa paravana e rebocá-los pelo mar até que sejam devorados pelos tubarões”.
Fez uma pausa, enquanto seu olhar passava de um para outro. Solitaire mirava de olhos arregalados para Bond, que se esforçava em pensar, com o olhar ausente, perscrutando o futuro. Sentiu que deveria dizer alguma coisa.
“Você é um homem grande”, afirmou, “e um dia morrerá de uma morte igualmente grande e terrível. Se nos matar, essa morte virá em breve. Já a providenciei. Está enlouquecendo a olhos vistos, senão perceberia a repercussão que nosso assassinato terá sobre sua vida”.
Enquanto falava, a mente de Bond funcionava rápido, contando horas e minutos, sabendo que a própria morte de Big Man chegaria devagar, com o ácido corroendo o detonador seguindo o ponteiro dos minutos, rumo à hora do encontro final com seu destino. Mas estariam ele e Solitaire mortos, antes que soasse essa hora? Minutos, talvez segundos, fariam a diferença. O suor escorria do seu rosto para o peito. Sorriu para Solitaire. Ela lhe deu um olhar ausente, sem enxergá-lo.
De repente deu um grito agoniado que sacudiu os nervos de Bond.
“Não sei”, gritou. “Não consigo ver. Está tão perto, tão próximo. Há muitas mortes. Mas...”
“Solitaire”, gritou Bond, apavorado com a possibilidade de que as coisas estranhas que ela previsse, quaisquer que fossem, pudessem servir de aviso a Big Man. “Controle-se.”
Havia um toque de raiva em sua voz.
Os olhos dela clarearam, olhando mudos para ele, sem compreender.
Big Man falou de novo.
“Não estou ficando louco, senhor Bond”, avisou calmamente, “e nenhuma providência sua me afetará. Vocês morrerão além do recife e não restará nenhum indício. Rebocarei os restos de seus corpos até que não sobre nada. Isso faz parte da sagacidade dos meus planos. Vocês também devem saber que o tubarão e a barracuda desempenham um papel no voduísmo. Eles receberão seus sacrifícios e o Baron Samedi será apaziguado. Meus seguidores ficarão satisfeitos. Da mesma forma, desejo continuar minhas experiências com os peixes carnívoros. Acredito que só atacam quando há sangue na água. Por isso seus corpos serão rebocados desde a ilha. A paravana os rebocará sobre o recife. Acho que não serão atacados antes da barra. O sangue e as vísceras que são jogados todas as noites nessas águas já terão sido dispersos ou consumidos. Mas quando seus corpos forem rebocados por cima do recife, infelizmente sangrarão, ficarão em carne viva. Então veremos se minhas teorias estão corretas.”
Big Man estendeu a mão para trás e abriu a porta.
“Eu os deixarei agora”, falou, “para que reflitam sobre a excelência do método que criei para matá-los juntos. Não restará indício algum. A superstição ficará satisfeita. Meus seguidores também. Os corpos serão utilizados para a pesquisa científica.
“Isso é o que eu chamo, senhor James Bond, de uma capacidade infinita de refinamento artístico.”
Parou no vão da porta e olhou para os dois.
“Uma noite breve, porém boa. É o que desejo a ambos.”
22.
TERROR NO MAR
O dia ainda não clareara quando os guardas vieram buscá-los. As cordas que prendiam suas pernas foram cortadas e, com os braços ainda atados, foram levados pelos últimos degraus de pedra que faltavam para a superfície.
Ficaram entre algumas árvores esparsas e Bond aspirou o ar frio da manhã. Olhou através das árvores na direção do oriente e viu que as estrelas estavam mais pálidas e havia uma luminosidade no horizonte que anunciava o raiar da aurora. O cicio noturno dos grilos quase terminara e, em algum canto da ilha, um tordo ensaiava as primeiras notas do dia.
Bond calculou que deviam ser mais ou menos cinco e meia.
Ficaram ali vários minutos. Os negros passavam próximos a eles, carregando embrulhos e malas de fibra de palmeira, entre cochichos cautelosos. As portas do punhado de palhoças entre as árvores estavam escancaradas. Os homens andavam em fila até a beira do penhasco, à direita de Bond e Solitaire, desaparecendo por ali. Não voltavam. Era uma evacuação. Toda a guarnição da ilha levantava acampamento.
Bond esfregou o ombro desnudo contra Solitaire e ela se aninhou contra ele. Fazia frio depois da masmorra abafada, e Bond tiritava. Mas era melhor estar em movimento do que prolongar o suspense lá de baixo.
Ambos sabiam o que precisava ser feito, a natureza do risco.
Depois que Big Man os deixara, Bond não perdera tempo. Falando baixinho, contara à garota sobre a mina magnética presa ao costado do barco, prevista para explodir alguns minutos depois das seis horas, e explicara os fatores decisivos para saber quem morreria ou não naquela manhã.
Primeiro, apostara na mania de exatidão e de eficiência de Mr. Big. O Secatur precisava zarpar às seis horas em ponto. Portanto, não deveria haver nenhuma nuvem, se não a visibilidade na meia-luz do amanhecer não seria suficiente para assegurar a passagem do barco através do recife, e Mr. Big adiaria a partida. Se Bond e Solitaire estivessem no atracadouro ao lado do iate, morreriam junto com Mr. Big.
Supondo que o barco zarpasse na hora exata, a que distância e de que lado dele seriam rebocados? Teria de ser a bombordo para que a paravana ficasse desimpedida na hora de deixar a ilha. Bond supôs que o cabo de reboque da paravana teria cinquenta metros de comprimento, e que eles seriam rebocados vinte ou trinta metros atrás da paravana.
Se ele estivesse certo, seriam arrastados por cima do recife externo cerca de cinquenta metros depois de o Secatur ter rompido pelo canal. Provavelmente se aproximaria da passagem nos recifes a cerca de três nós e, em seguida, pegaria velocidade até chegar a dez, ou até mesmo a vinte. De início seus corpos seriam rebocados da ilha em um lento arco, virando e se retorcendo na ponta da linha de reboque. Logo depois a paravana se endireitaria e, mesmo após o barco ter transposto o recife, eles ainda não teriam chegado a ele. Portanto, a paravana passaria pelo recife quando o barco já o tivesse ultrapassado em quarenta metros, e depois eles a seguiriam a alguns metros a mais de distância.
Bond estremeceu ao pensar nos ferimentos que seus corpos sofreriam se fossem arrastados, a qualquer velocidade, sobre os dez metros de árvores e recifes de coral, afiados como uma navalha. Ficariam com as costas e as pernas esfoladas.
Depois de atravessarem o recife, não passariam de uma isca sanguinolenta, e seria apenas uma questão de minutos até que o primeiro tubarão ou barracuda avançasse neles.
E Mr. Big, sentado confortavelmente no deque da popa, assistiria à carnificina, talvez de binóculos, marcando os segundos e os minutos enquanto a isca viva ia diminuindo de tamanho, até que finalmente os peixes só abocanhassem o cabo ensanguentado.
Até que não restasse coisa alguma.
Então a paravana seria içada a bordo e o iate cortaria o mar graciosamente rumo à longínqua Florida Keys, a Cape Sable e ao atracadouro ensolarado no porto de St. Petersburg.
E se a mina explodisse quando eles ainda estivessem na água, a cinquenta metros do barco? Qual seria o efeito do deslocamento de ar em seus corpos? Talvez não fosse fatal. O casco do iate absorveria a maior parte. O recife talvez os protegesse.
Bond só podia adivinhar e manter a esperança.
Sobretudo, precisavam continuar vivos até o último segundo possível. Precisavam continuar respirando enquanto fossem arrastados, como um pacote vivo, pelo mar. Muita coisa dependia da maneira como eles os amarrariam um ao outro. Mr. Big haveria de querer que continuassem vivos. Não lhe interessaria uma isca morta.
Se ainda estivessem vivos quando a primeira barbatana de tubarão surgisse à tona atrás deles, Bond decidira afogar friamente Solitaire. Afogá-la torcendo seu corpo debaixo do seu e segurando-o ali. Em seguida, tentaria se afogar torcendo o corpo morto dela de volta para que o seu ficasse por baixo.
Cada volteio de seu pensamento esbarrava em um pesadelo, no horror nauseante de cada detalhe medonho da tortura monstruosa que aquele homem havia preparado para eles. Mas Bond sabia que precisava conservar o sangue-frio e a resolução absoluta de lutar pelas suas vidas até o fim. Havia ao menos uma sensação calorosa na ideia de que Mr. Big e a maioria de seus homens também morreriam. E um lampejo de esperança de que ele e Solitaire talvez sobrevivessem. A não ser que a mina falhasse, o inimigo não poderia contar com nenhuma esperança.
Tudo isso e uma centena de outros pormenores e planos passaram pela cabeça de Bond na última hora antes de serem levados pelo vão da escada até a superfície. Com Solitaire compartilhou todas as suas esperanças. Nenhum dos seus temores.
Ela ficara deitada à sua frente, com seus olhos azuis e cansados fixos nele, obedientes, confiantes, bebendo seu rosto e suas palavras, dóceis, amorosos.
“Não se preocupe comigo, querido”, dissera, quando os homens vieram buscá-los. “Sinto-me feliz de estar de novo com você. Meu coração está cheio de felicidade. De algum modo, não estou com medo, apesar de pressentir uma grande matança. Você me ama um pouquinho?”
“Sim”, respondeu Bond. “E vamos ainda aproveitar o nosso amor.”
“Vambora”, disse um dos homens.
E agora, no alto do morro, clareava. Bond ouviu os dois grandes motores a diesel tossirem e roncarem embaixo do penhasco. Uma leve brisa soprava a barlavento, mas a sota-vento, onde estava o barco, a baía era um espelho de bronze.
Mr. Big apareceu no alto da escadaria, com uma pasta de executivo na mão. Ficou por um momento olhando em volta, recuperando o fôlego. Não prestou nenhuma atenção a Bond ou Solitaire, nem aos dois guardas ao lado deles, de revólveres na mão.
Olhou para o céu e de repente clamou, em um tom de voz nítido, na direção da orla do sol.
“Obrigado, sir Henry Morgan. Seu tesouro será bem gasto. Dê-nos um vento de popa.”
Os guardas negros arregalaram os olhos.
“O vento Papa-Defunto”, disse Bond.
Big Man olhou-o.
“Já está tudo embaixo?”, perguntou aos guardas.
“Sim senhor, patrão”, respondeu um deles.
“Leve-os”, ordenou Big Man.
Foram até a beira do penhasco e desceram a escadaria íngreme, com um guarda na frente, outro atrás e Mr. Big a seguir.
Os motores do longo e elegante iate giravam sossegados, com o escape borbulhando gravemente, e um fio de vapor azul a se erguer da popa.
Três sujeitos no molhe cuidavam das guias. Só havia três homens no convés, além do capitão, e o piloto na ponte escura, bem projetada. Não havia mais espaço para ninguém. Todo o espaço disponível no convés, exceto por uma cadeira de pesca presa no lado direito da popa, era preenchido pelos tanques de peixe. Com o pavilhão vermelho arriado, só a bandeira americana pendia imóvel da popa.
Distante alguns metros do barco, a paravana vermelha em forma de torpedo, com cerca de dois metros de comprimento, flutuava tranquilamente na água, agora verde-mar ao primeiro amanhecer. Estava ligada a uma grossa pilha de cabos metálicos, enrolados no convés da popa. Parecia a Bond que eles deveriam ter uns bons cinquenta metros. A água estava cristalina e não havia peixes rondando por perto.
O vento Papa-Defunto morria aos poucos. Dentro em breve o vento Médico começaria a soprar vindo do mar. Dentro de quanto tempo?, perguntou-se Bond. Seria um presságio?
Ao longe, além do barco, ele conseguia avistar o teto de Beau Desert entre as árvores, mas o molhe, o barco e a trilha no penhasco ainda estavam mergulhados em profunda sombra. Bond pensou se os binóculos de visão noturna conseguiriam vê-los. Se pudessem, o que pensaria Strangways?
No molhe, Mr. Big supervisionava a tarefa de amarrá-los.
“Tire a roupa dela”, ordenou ao guarda.
Bond se encolheu. Deu uma olhada de relance para o relógio de pulso de Mr. Big. Nele, faltavam dez minutos para as seis. Bond manteve silêncio. Não deveria haver nem um minuto de atraso.
“Jogue as roupas a bordo”, disse Mr. Big. “Amarre uns panos no ombro dele. Não quero que haja sangue na água ainda.”
As roupas de Solitaire foram cortadas a faca. Ela permaneceu ali, nua e pálida. Abaixou a cabeça e seus cabelos pesados caíram para a frente, tapando seu rosto. O ombro de Bond foi atado grosseiramente com tiras do seu vestido de linho.
“Canalha”, desabafou Bond, de dentes cerrados.
Sob a direção de Mr. Big, primeiro soltaram as mãos dos dois. Seus corpos foram atados frente a frente, e seus braços passados pela cintura um do outro, e depois novamente atados com força.
Bond sentiu a pressão dos seios macios de Solitaire. Ela encostou o queixo no ombro direito dele.
“Eu não queria que fosse assim”, sussurrou, trêmula.
Bond não respondeu. Mal sentia o corpo dela. Contava os segundos.
No molhe havia uma corda enovelada que ia até a paravana. Mergulhava na água e Bond a distinguia seguindo no fundo de areia até surgir de encontro à barriga do torpedo vermelho.
Sua extremidade solta foi passada debaixo das axilas de Bond e Solitaire, e bem amarrada com um nó que ficava no espaço entre seus pescoços. Tudo feito com muito cuidado. Não havia possibilidade de fuga.
Bond contava os segundos. De acordo com ele, faltavam cinco para as seis.
Mr. Big deu uma última olhada nos dois.
“Deixem as pernas soltas”, comentou. “Dão uma isca apetitosa.” Deixou o molhe e embarcou no convés do iate.
Os dois guardas também embarcaram. Depois de soltarem as guias, os dois sujeitos no molhe os seguiram. As hélices revolveram a água mansa e, com os motores a meia velocidade, o Secatur se afastou rapidamente da ilha.
Mr. Big foi para a popa, sentando-se na cadeira de pesca. Podiam ver o seu olhar fixo neles. Não disse nada. Não fez gesto algum. Apenas contemplava.
O Secatur cortava a água em direção ao recife. Bond podia ver o cabo da paravana se desenrolando no costado. A paravana começou a se mover lentamente atrás do barco. De repente mergulhou o nariz, endireitou-se e disparou, com o leme se dobrando na direção contrária à esteira do barco.
O rolo de corda ao lado deles deu um súbito sinal de vida.
“Cuidado”, avisou Bond, com urgência, agarrando-se com mais força à garota.
Seus braços quase se desconjuntaram com o solavanco do puxão, quando caíram do molhe no mar.
Por um instante ambos submergiram, depois voltaram à tona, com seus corpos unidos rasgando a água.
Bond procurava respirar em meio às ondas e aos borrifos que passavam depressa por ele, inundando sua boca retorcida. Podia ouvir a respiração entrecortada de Solitaire ao lado do seu ouvido.
“Respire, respire”, gritou, através da avalanche de água. “Prenda suas pernas nas minhas.”
Ela ouviu-o e ele sentiu entre as coxas a pressão dos joelhos dela. Solitaire teve um acesso de tosse. Em seguida, a respiração dela tornou-se mais regular junto ao seu ouvido e as batidas do coração da mulher acalmaram-se contra o seu peito. Ao mesmo tempo, a velocidade em que eram rebocados sofreu uma redução.
“Prenda a respiração”, gritou Bond. “Preciso dar uma olhada. Pronta?”
Ela respondeu com uma pressão dos braços. Ele sentiu o peito dela inflar quando seus pulmões se encheram de ar.
Usando o peso do corpo, girou-a para baixo, de maneira que a cabeça dele agora estava totalmente fora d’água.
Cortavam o mar a cerca de três nós. Dobrou a cabeça acima da pequena marola que faziam.
O Secatur entraria na passagem entre os recifes dentro de aproximadamente oitenta metros, segundo calculou. A paravana deslizava lentamente, quase em ângulo reto em relação ao barco. Faltavam trinta metros para o torpedo vermelho atravessar as águas encrespadas sobre o recife. Trinta metros atrás da paravana, eles navegavam devagar na superfície da baía.
Sessenta metros até o recife.
Bond girou o corpo e Solitaire emergiu, ofegante.
Continuaram a avançar lentamente na água.
Cinco metros, dez, quinze, vinte...
Apenas quarenta metros para atingirem o banco de coral.
O Secatur deveria ter acabado de transpô-lo. Bond recuperou o fôlego. Já devia passar das seis. Que teria acontecido com a porcaria da mina? Bond fez uma rápida e fervorosa oração. Que Deus nos salve, disse dentro d’água.
De repente sentiu que a corda apertava sob seus braços.
“Respire, Solitaire, respire”, gritou quando retomaram a velocidade e a água começou a passar sibilante por eles.
Agora voavam pelo mar em direção ao recife submerso.
Houve uma ligeira diminuição de velocidade. Bond imaginou que a paravana tivesse batido em uma pedra ou algum coral na superfície. Em seguida, seus corpos voltaram a disparar no seu abraço mortal.
Faltavam trinta metros, vinte, dez...
Meu Deus, pensou Bond. Não escaparemos. Contraiu os músculos para enfrentar a dor lancinante do impacto, empurrando Solitaire mais para cima, para protegê-la do pior.
De repente o ar fugiu com um chiado de seus pulmões, e um punho gigantesco socou-o contra Solitaire, de modo que ela se ergueu totalmente fora do mar e voltou a cair. Uma fração de segundo depois, um clarão iluminou o céu e ouviu-se o ribombar de uma explosão.
Estacaram de repente, e Bond percebeu que o peso da corda solta os puxava para baixo.
Suas pernas afundaram sob seu corpo atordoado e a água inundou sua boca.
Foi o que o fez recuperar a consciência. As pernas dele se debateram no fundo, voltando a trazer suas bocas até a tona. A garota era um peso morto em seus braços. Ele revolvia a água em desespero e olhava à sua volta, segurando a cabeça desmaiada de Solitaire em seu ombro, acima da superfície.
A primeira coisa que viu foram as águas revoltas do recife, a não mais de cinco metros de distância. Sem a sua proteção, ambos teriam sido esmagados pelo impacto da explosão. Ele sentiu o repuxo e o rodamoinho da correnteza em volta das pedras. Avançou desesperado em direção a ele, aspirando golfadas de ar sempre que possível. Seu peito ardia com o esforço e ele via o céu através de uma película vermelha. A corda o puxava para baixo e o cabelo da garota enchia sua boca, quase o sufocando.
De repente sentiu um arranhão agudo do coral contra a parte de trás das pernas. Chutou-as procurando desesperadamente um apoio para os pés, esfolando a pele a cada movimento.
Mal sentia dor.
Agora eram seus braços e suas costas que estavam sendo arranhados. Tropeçou, desajeitado, com os pulmões ardendo no peito. Em seguida sentiu uma camada de agulhas sob os pés. Arriou o peso nela, inclinando-se para trás para resistir à forte correnteza que procurava desalojá-lo. Seus pés resistiram e havia rocha às suas costas. Inclinou-se para trás, ofegante, com o sangue escorrendo em volta dele na água, segurando contra si o corpo frio da garota, que mal respirava.
Descansou por um minuto, com gratidão, olhos fechados e o sangue pulsando nas veias, tossindo dolorosamente, à espera de que seus sentidos se reanimassem. Seu primeiro pensamento foi em relação ao sangue na água à sua volta. Mas desconfiou de que os grandes peixes não se aventuravam até o recife. Aliás, não havia nada que ele pudesse fazer quanto a isso.
Em seguida, olhou para o mar.
Não havia sinal algum do Secatur.
No alto do céu tranquilo via-se um cogumelo de fumaça, que o vento Médico começava a arrastar em direção à terra.
Havia destroços espalhados sobre toda a extensão do mar e cabeças que subiam e desciam. A água estava toda coalhada com as barrigas brancas dos peixes atordoados ou mortos pela explosão. Um cheiro forte de explosivo pairava no ar. Na orla dos destroços a paravana vermelha jazia tranquila com o casco para baixo, ancorada pelo cabo cuja outra ponta deveria se encontrar em algum lugar no fundo. Colunas de bolhas emergiam na superfície vítrea do mar.
Na beira do círculo de peixes mortos e cabeças balouçantes, algumas barbatanas triangulares cortavam rápido o mar. Mais delas surgiram enquanto Bond observava. Em uma ocasião viu um grande focinho surgir da água e abocanhar alguma coisa. As barbatanas espirravam água ao chapinhar entre os escolhos. Dois braços negros se ergueram de repente no ar, desaparecendo em seguida. Ouviram-se gritos. Algumas pessoas davam braçadas agitadas no mar em direção ao recife. Alguém parou para bater na água diante dele com a mão espalmada. Depois as mãos desapareceram sob a superfície. Ouviram-se os gritos de quando seu corpo foi sacudido para lá e para cá dentro d’água. Uma barracuda o devorando, disse Bond consigo mesmo, atordoado.
Mais uma cabeça se aproximava, procurando chegar ao ponto do recife onde estava Bond, pequenas ondas quebrando sob suas axilas, e o cabelo preto da garota caído nas suas costas.
Era uma cabeça grande. Uma cortina de sangue escorria pelo seu rosto, de um ferimento no crânio imenso e calvo.
Bond observava a sua aproximação.
Big Man executava um nado de peito desajeitado, fazendo tanto espalhafato na água que era capaz de atrair qualquer peixe que já não estivesse ocupado.
Bond perguntou a si mesmo se ele conseguiria chegar. Seus olhos se estreitaram e sua respiração se acalmou, contemplando e esperando a decisão que o mar cruel tomaria.
A cabeça se aproximava. Bond podia ver os dentes à mostra em uma contração de agonia e de esforço titânico. O sangue tapava os olhos que Bond sabia estarem esbugalhados. Podia quase ouvir o grande coração doente batendo debaixo da pele preta acinzentada. Pararia antes que a isca fosse abocanhada?
Big Man continuava a vir. Os ombros estavam nus, as roupas haviam sido arrancadas pela explosão, imaginou Bond, porém, a gravata de seda preta resistira e aparecia em volta do pescoço grosso, arrastada atrás da cabeça como um rabicho de chinês.
Um borrifo de água limpou um pouco do sangue de seus olhos. Estavam arregalados, olhando desvairados para Bond. Neles não havia nenhuma súplica, somente o olhar fixo da exaustão física.
No instante mesmo em que Bond os contemplava, agora a apenas dez metros, fecharam-se de repente e o grande rosto se contorceu em uma careta de dor.
“Aarrh”, gritou a boca retorcida.
Os dois braços pararam de bater na água e a cabeça afundou e voltou à tona de novo. Uma nuvem de sangue escureceu o mar. Duas sombras esguias e marrons de três metros se afastaram da nuvem e, em seguida, voltaram rápido para ela. O corpo na água foi sacudido de lado. Metade do braço de Big Man surgiu à tona. Sem mão, sem pulso, nem relógio.
Mas a grande cabeça de nabo, a boca arreganhada cheia de dentes brancos que quase a dividiam ao meio, ainda estava viva. E agora berrava. Um grande berro gorgolejante que só dava quando alguma barracuda abocanhava seu corpo.
Ouviu-se um grito distante na baía, atrás de Bond. Mas ele não prestou atenção. Todos os seus sentidos estavam concentrados na cena horripilante no mar diante dele.
Uma barbatana rasgou a superfície a alguns metros de distância e parou.
Bond pôde ver o tubarão apontando o focinho como um cachorro, com os olhos míopes, rosados e redondos, tentando penetrar a nuvem de sangue e avaliar a presa. Então arremeteu contra o torso, e a cabeça que gritava afundou tão rápido quanto um peso de chumbo.
Algumas bolhas estouraram na superfície.
Houve um rodamoinho causado pela cauda manchada de marrom de um grande tubarão-leopardo, que recuou para engolir e para atacar de novo.
A cabeça voltou a flutuar. A boca estava fechada. Os olhos amarelos pareciam ainda se fixar em Bond.
O focinho do tubarão saiu da água e avançou para a cabeça, com a mandíbula inferior aberta e a luz brilhando em seus dentes. Houve um rangido horrível de osso triturado e um rodamoinho. Depois, o silêncio.
Os olhos dilatados de Bond continuaram a mirar a mancha marrom que cada vez mais se espalhava no mar.
A garota deu um gemido e Bond recuperou a lucidez.
Ouviu-se outro grito atrás dele e Bond virou a cabeça para a baía.
Era Quarrel, seu peito moreno e luzidio avultando sobre o casco esguio da canoa, com os braços trabalhando o remo, seguido, a uma longa distância, por todas as outras canoas da baía dos Tubarões deslizando sobre as pequenas ondas que haviam começado a encrespar a superfície.
Os ventos elísios do nordeste haviam começado a soprar e o sol brilhava na água azul e nos doces flancos verdes da Jamaica.
As primeiras lágrimas que brotaram dos olhos azuis-acinzentados de James Bond desde a sua infância escorreram pelo seu rosto contraído, caindo no mar manchado de sangue.
23.
LICENÇA PAIXÃO
Como dois pingentes de esmeralda, dois beija-flores faziam a última ronda pelos hibiscos. Um tordo começara sua cantoria vespertina, mais doce que a do rouxinol, em cima de um arbusto perfumado de jasmim da noite.
A sombra irregular de uma fragata deslizou por cima do gramado verde, enquanto planava nas correntes de ar que subiam a costa até alguma distante colônia, e o martim-pescador azul-acinzentado chilreou, irritado, ao ver o homem sentado em uma cadeira no jardim. Mudou a direção do voo e guinou, atravessando o mar, até a ilha. Uma borboleta sulfurina flertava entre as sombras roxas das palmeiras.
O mar de variados tons de azul da baía estava bastante calmo. Os penhascos da ilha eram de um rosa profundo, à luz do sol que se punha atrás da casa.
Havia um cheiro de entardecer e de frescor depois do calor do dia, e um leve perfume de farinha de mandioca torrada vindo das cabanas de pescadores, no povoado à direita, a distância.
Solitaire saiu da casa de pés descalços e atravessou o gramado. Carregava uma bandeja com uma coqueteleira e dois copos. Colocou-a na mesa de bambu ao lado da cadeira de Bond.
“Espero ter feito direito”, comentou. “Seis partes para uma parece terrivelmente forte. Nunca tomei martíni de vodca.”
Bond olhou para ela. Vestia um de seus pijamas brancos de seda. Eram demasiado grandes. Parecia absurdamente infantil.
Ela riu. “O que acha de meu batom de Port Maria?”, perguntou. “E as sobrancelhas delineadas com lápis HB? Não consegui fazer mais nada para me ajeitar, além de tomar banho.”
“Está uma maravilha”, disse Bond. “Você é de longe a garota mais bonita da baía dos Tubarões. Se eu tivesse pernas e braços, me levantaria para lhe dar um beijo.”
Solitaire se inclinou e lhe deu um longo beijo na boca, com o braço apertado em volta de seu pescoço. Levantou-se e afastou a mecha curva de cabelos sobre a testa dele.
Olharam um para o outro. Em seguida, ela virou para a mesa e lhe serviu um coquetel. Despejou meio copo para si e sentou no gramado quente, com a cabeça contra o joelho de Bond. Ele brincou com a mão direita entre os cabelos dela e ficaram um instante sentados, olhando o mar entre as palmeiras e a luz que declinava na ilha.
O dia fora dedicado a lamber as feridas e ajeitar o que sobrara da confusão.
Quando Quarrel desembarcara com eles na pequena praia de Beau Desert, Bond carregara Solitaire pelo gramado até o banheiro. Enchera a banheira de água quente. Sem que ela soubesse o que estava acontecendo, ele ensaboara e lavara todo seu corpo e seus cabelos. Depois de tirar todo o sal e musgo do coral, ajudou-a a sair, secou-a e botou mertiolato nos cortes de coral que marcavam suas costas e suas coxas. Depois lhe deu um comprimido para dormir e colocou-a nua entre os lençóis de sua própria cama. Beijou-a. Antes de fechar as venezianas, ela já dormia.
Entrou no banheiro e Strangways o ensaboou. Depois quase o banhou em mertiolato. Sangrava e estava esfolado em centenas de lugares, com o braço esquerdo dormente por causa da mordida da barracuda. Perdera um bocado de músculo do ombro. A ardência do mertiolato fez com que trincasse os dentes. Vestiu um roupão e Quarrel o levou ao hospital em Port Maria.
Antes de partir, tomou um café da manhã reforçado e fumou um bendito cigarro. Dormiu no carro, dormiu na mesa de operações e na cama onde finalmente o puseram, como uma massa de ataduras e esparadrapo cirúrgico.
Quarrel trouxe-o de volta no começo da tarde. A essa altura Strangways já agira de acordo com as instruções que Bond lhe dera. Mandaram um destacamento de polícia para a ilha da Surpresa. Os destroços do Secatur, a trinta e seis metros de profundidade, receberam uma boia de sinalização, que passou a ser patrulhada pela lancha da alfândega de Port Maria. O rebocador de salvamento e os mergulhadores estavam a caminho a partir de Kingston. Os repórteres da imprensa local tinham recebido uma breve declaração, e havia policiais em guarda na entrada de Beau Desert, para conter a avalanche de repórteres que chegariam à Jamaica, depois que toda a história corresse o mundo. Enquanto isso, um relatório completo fora enviado a M e a Washington, de modo que o bando de Big Man no Harlem e em St. Petersburg pudesse ser preso provisoriamente sob a acusação preventiva de contrabando de ouro.
Não houve sobreviventes do Secatur, mas os pescadores locais trouxeram quase uma tonelada de peixes mortos naquela manhã.
A Jamaica estava fervilhando de boatos. Fileiras de carros paravam, lado a lado, nos penhascos acima da baía e ao longo da praia embaixo. Espalhara-se a notícia do tesouro de Morgan, o Sanguinário, porém, o bando de tubarões e barracudas também o protegia. Por causa deles não havia nadador que arriscasse ir até a cena do naufrágio na calada da noite.
Veio um médico visitar Solitaire. Ele encontrou-a preocupada principalmente em arranjar roupas e o batom no tom certo. Strangways encomendara uma amostra completa deles de Kingston, que chegaria no dia seguinte. Por enquanto, ela fazia experiências com o conteúdo da valise de Bond e uma tigela de hibiscos.
Strangways voltou de Kingston após a saída de Bond do hospital. Trouxe um telegrama cifrado de M para Bond, no qual se lia:
SUPONHO REIVINDICOU TESOURO EM SEU NOME REPRESENTANDO UNIVERSAL EXPORT PONTO PROSSIGA IMEDIATAMENTE SALVAMENTO PONTO CONTRATEI ADVOGADO DEFENDER DIREITOS JUNTO TESOURO E MINISTÉRIO COLÔNIAS PONTO ENQUANTO ISSO PARABÉNS PONTO CONCEDIDA LICENÇA PAIXÃO QUINZE DIAS PONTO FINAL
“Suponho que ele queira dizer ‘compaixão’”, comentou Bond.
Strangways tinha um aspecto solene. “Acho que sim”, respondeu. “Fiz um relatório completo dos danos que você sofreu. E a garota também”, acrescentou.
“Hmm”, disse Bond. “As expressões cifradas geralmente são precisas. Mesmo assim.”
Strangways olhou propositalmente pela janela, reprimindo um sorriso.
“Bem típico da velha raposa, pensar primeiro no ouro”, comentou Bond. “Suponho que ele ache que conseguirá obter o que quer, descobrindo um modo de contornar a redução da verba secreta quando houver nova reunião do Parlamento para avaliá-la. Creio que passa metade de sua vida brigando com o Tesouro. Mesmo assim, está muito errado se pensa que conseguirá.”
“Dei entrada na sua reivindicação na sede do governo, assim que recebi a mensagem”, relatou Strangways. “Mas será difícil. A Coroa virá atrás do tesouro e a América entrará nisso de alguma forma, porque Big Man era cidadão americano. Vai dar pano pra manga.”
Haviam conversado mais um pouco e depois Strangways partira. Bond caminhara cheio de dores até o jardim, para se sentar um pouco ao sol, sozinho com seus pensamentos.
Recapitulou a série de riscos que correra na sua longa busca por Big Man e pelo tesouro fabuloso, revivendo os episódios em que enfrentara a morte cara a cara.
Agora terminara e ele estava sentado ao sol, entre as flores, com a recompensa aos seus pés e sua mão entre os longos cabelos pretos dela. Agarrou bem aquele instante e pensou nos catorze dias seguintes que lhes pertenceriam.
Ouviram-se um barulho de louça quebrada na cozinha, nos fundos da casa, e o som da voz de Quarrel praguejando contra alguém.
“Pobre Quarrel”, disse Solitaire. “Arranjou a melhor cozinheira do povoado e varreu os mercados atrás de surpresas para nós. Chegou a encontrar caranguejos negros, os primeiros da época. Depois passou a assar o pobrezinho de um leitão ainda mamando e a fazer uma salada de abacate, para terminar com goiabas e manjar de coco. E o Comandante Strangways deixou uma caixa do melhor champanhe da Jamaica. Já estou com água na boca. Mas não se esqueça de que deve ser segredo. Cheguei de surpresa na cozinha e ele quase fez a cozinheira chorar.”
“Virá com a gente na nossa licença paixão”, disse Bond. Contou-lhe sobre o telegrama de M. “Vamos para uma casa sobre estacas, com palmeiras e oito quilômetros de areia dourada. E você terá de cuidar de mim muito bem, porque não poderei fazer amor com um braço só.”
Havia uma sensualidade óbvia no olhar de Solitaire, quando ela o ergueu para ele, sorrindo inocentemente.
“E eu com as minhas costas?”, disse ela.
16.
O LADO JAMAICANO
Eram duas horas da madrugada. Bond tirou o carro de junto da amurada e atravessou a cidade até pegar a 4th Street, a rodovia para Tampa.
Seguiu despreocupado pelas quatro pistas cimentadas da rodovia, atravessando o infindável corredor polonês de motéis, campings e lojas de beira de estrada, que vendiam mobília de praia e gnomos de concreto.
Parou no Gulf Winds Bar and Snacks e pediu um Old Grandad duplo com gelo. Enquanto o barman o servia, foi ao banheiro se limpar. As ataduras na mão esquerda estavam cobertas de sujeira e a mão latejava dolorosamente. A tala quebrara na barriga do Ladrão. Não havia nada que ele pudesse fazer. Os olhos estavam vermelhos de tensão e falta de sono. Foi até o bar, bebeu o Bourbon e pediu outro. O barman parecia um desses universitários que custeavam as próprias férias trabalhando duro. Estava a fim de conversar, mas em Bond não restara nenhuma vontade de falar. Ficou sentado, olhando o copo, pensando em Leiter e no Ladrão, e ouvindo o grunhido repugnante do tubarão devorando a presa.
Pagou, saiu e atravessou de novo a Gandy Bridge, com o ar fresco da baía lhe batendo no rosto. No final da ponte, virou à esquerda em direção ao aeroporto e parou no primeiro motel que parecia aberto.
O casal de proprietários de meia-idade ouvia um programa cubano de rumbas na madrugada, com uma garrafa de Rye entre eles. Bond contou uma história sobre um pneu furado entre Sarasota e Silver Springs. Não estavam interessados. Queriam apenas os seus dez dólares. Bond levou o carro até o quarto 5, o sujeito abriu a porta e acendeu as luzes. Havia uma cama de casal, um banheiro com chuveiro e duas cadeiras. O branco e o azul davam o tom nas paredes. Parecia limpo e Bond colocou a sacola no chão com um sentimento de gratidão, ao se despedir do dia. Despiu-se, jogou as roupas sem dobrar em uma cadeira. Em seguida tomou uma rápida chuveirada, escovou os dentes, gargarejou com um dentifrício forte e entrou na cama.
Mergulhou logo em um sono tranquilo. Era a primeira noite, desde que chegara à América, em que não se sentia ameaçado por uma nova batalha contra o destino na manhã seguinte.
Acordou ao meio-dia e caminhou pela estrada até uma cafeteria, onde o cozinheiro lhe preparou no balcão um delicioso sanduíche de três andares, que ele comeu enquanto tomava café. Em seguida, voltou ao quarto e escreveu um relatório minucioso ao FBI em Tampa. Omitiu todas as referências ao ouro nos tanques de peixes venenosos, com medo de que Big Man encerrasse os negócios na Jamaica. Eles ainda precisavam ser investigados. Bond sabia que os danos que ele provocara na máquina de Big Man na América não mudavam nada o objetivo principal de sua missão — a descoberta da fonte do ouro, sua captura e a destruição, se possível, do próprio Mr. Big.
Foi de carro até o aeroporto e pegou o quadrimotor prateado, faltando apenas poucos minutos para a partida. Deixou o carro de Leiter no estacionamento, conforme dissera no seu relatório ao FBI. Pensou que fora algo desnecessário, quando avistou um sujeito vestindo uma capa esdrúxula, à toa em uma loja de lembranças. As capas de chuva pareciam ser praticamente o uniforme do FBI. Bond estava certo de que queriam ter certeza de que ele pegaria o avião. Ficariam satisfeitos de vê-lo pelas costas. Por onde passara na América, deixara um rastro de cadáveres. Antes de embarcar no avião, ligou para o hospital em St. Petersburg. Arrependeu-se. Leiter ainda estava inconsciente e não tinham prognósticos. Sim, ligariam de volta quando tivessem alguma notícia definitiva.
Eram cinco da tarde quando o avião circulou sobre Tampa Bay, rumo ao leste. O sol estava baixo no horizonte. Um grande jato vindo de Pensacola passou ventando, bem a bombordo, deixando quatro rastros de vapor pairando quase imóveis no ar parado. Em breve o voo de reconhecimento terminaria e ele voltaria para pousar na costa do Golfo, cheia de idosos com camisetas estampadas. Bond se alegrava de estar a caminho das doces encostas verdes do litoral da Jamaica, deixando para trás o grande e rijo continente de Eldollarado.
O avião avançava, atravessando a cintura da Flórida, os hectares de floresta e de mangue sem nenhum sinal de habitantes humanos, com suas luzes da asa piscando, verdes e vermelhas, na escuridão que chegava. Em breve sobrevoavam Miami e as monstruosas arapucas para otários da costa oriental, cujas artérias brilhavam, entupidas de néon. Longe, a bombordo, a rodovia estadual nº 1 sumia subindo o litoral, uma fita dourada de motéis, postos de gasolina e barracas de suco de frutas, passando por Palm Beach, Daytona e Jacksonville, a quatrocentos e cinquenta quilômetros. Bond pensou no café da manhã que tomara em Jacksonville, por volta de três dias antes, e em tudo o que acontecera depois. Dentro em breve, após uma curta parada em Nassau, sobrevoaria Cuba, talvez sobre o esconderijo em que Mr. Big ocultara Solitaire. Ela ouviria o barulho do avião e talvez sua intuição a fizesse olhar para cima e sentir, por um instante, que ele estava próximo.
Bond ficou pensando se jamais se encontrariam de novo para acabar o que haviam começado. Mas isso teria de vir mais tarde, quando seu trabalho estivesse terminado — o prêmio de um itinerário perigoso que começara três semanas antes, em meio ao nevoeiro de Londres.
Depois de um coquetel e um jantar cedo, chegaram a Nassau e passaram meia hora na ilha mais rica do mundo, aquela faixa arenosa onde milhões e milhões de libras esterlinas são enterradas com grande susto nas mesas de canastra, e onde bangalôs, cercados de uma parede fina de pinheiros e casuarinas, trocam de mãos por cinquenta mil libras.
Deixaram para trás a escala rápida na ilha de platina, e em breve sobrevoavam as madrepérolas cintilantes das luzes de Havana, tão diferentes, em seus modestos tons pastel, das berrantes cores primárias das cidades americanas à noite.
Voavam a cinco mil metros quando, logo depois de passar por Cuba, encontraram uma daquelas tempestades tropicais que de repente fazem com que as aeronaves se transformem, de confortáveis salas de estar, em armadilhas mortíferas sacolejantes. O grande avião cambaleou e deu um mergulho, com as hélices ora roncando no vácuo, ora mordendo com força os paredões compactos de ar. O cilindro esguio de metal estremecia e balançava. A louça se espatifava na copa, e a chuva forte martelava as vidraças.
Bond agarrou os braços da poltrona, provocando dor na mão esquerda, praguejando baixinho consigo mesmo.
Olhou para as prateleiras das revistas e pensou: não serão de muita utilidade quando o aço acusar fadiga, a cinco mil metros de altitude, nem a água de colônia no banheiro, as refeições personalizadas, o barbeador gratuito, a “orquídea para sua senhora” agora trêmula na geladeira. Muito menos os cintos de segurança e os coletes salva-vidas, com o apito que realmente apita, segundo a demonstração da aeromoça, nem a luz de resgate engraçadinha que emite um brilho vermelho.
Não. Quando as tensões se tornam excessivas no metal fatigado, quando o mecânico de manutenção que testa o equipamento de descongelamento está apaixonado e faz mal o serviço, lá em Londres, Idlewild, Gander, Montreal; quando essas ou muitas outras coisas acontecem, então a pequena sala aquecida, com hélices na frente, cai como uma pedra do céu, na terra ou no mar, mais pesada que o ar, falível, imprestável. E as quarenta pessoas mais pesadas que o ar, frágeis dentro da fragilidade do avião, desamparadas dentro do desamparo maior do avião, despencam com ele, abrindo pequenos buracos na terra, ou espirrando água no mar. De qualquer modo, é o destino, então por que se preocupar? As pessoas estão conectadas aos dedos descuidados do mecânico de manutenção em Nassau, do mesmo modo que estão conectadas ao homenzinho no sedã da família, que confunde o sinal verde com o vermelho e bate de frente, pela primeira e última vez, na pessoa que dirigia tranquilamente para casa depois de um programa clandestino. Não se pode fazer nada. Começamos a morrer desde o dia em que nascemos. A vida inteira é um jogo de cartas com a morte. Por isso tenha calma. Acenda um cigarro e seja grato por ainda estar vivo, enquanto traga a fumaça profundamente nos seus pulmões. Nosso destino já permitiu que percorrêssemos um longo caminho desde que abandonamos o útero da mãe e choramingamos ao contato com o ar frio do mundo. Talvez ele até permita que cheguemos à Jamaica esta noite. Não está escutando as vozes animadas da torre de controle que passaram o dia falando, tranquilas: “Pode pousar, BOAC. Pode pousar, Panam. Pode pousar, KLM”? Não as escuta também nos chamando: “Pode pousar, Transcarib. Pode pousar, Transcarib”? Não perca a fé no destino. Lembre aquele momento terrível em que enfrentou a morte diante da arma do Ladrão, na noite passada. Ainda está vivo, não está? Pronto, já não corremos mais perigo. Isso foi só para lembrar que ser rápido no gatilho não quer dizer que você seja realmente forte. Não se esqueça. Este pouso feliz no Aeroporto Palisadoes é cortesia de seu destino. Melhor agradecer a ele.
Bond desatou o cinto de segurança e limpou o suor do rosto.
Ao diabo com tudo isso, pensou, ao desembarcar da aeronave enorme e resistente.
Strangways, o chefe do serviço secreto do Caribe, veio encontrá-lo no aeroporto, e assim ele passou depressa pela alfândega, imigração e fiscalização financeira.
Eram quase onze horas de uma noite quente, tranquila. Ouvia-se o som agudo dos grilos nas fileiras de cactos de ambos os lados da estrada do aeroporto, e Bond absorvia com gratidão os ruídos e os cheiros tropicais, enquanto a caminhonete militar atravessava a periferia de Kingston, em direção aos contrafortes cintilantes e enluarados das Montanhas Azuis.
Conversaram em monossílabos até se instalarem na varanda aconchegante da bela casa branca de Strangways, em Junction Road, abaixo de Stony Hill.
Strangways serviu um uísque com soda reforçado para os dois e, em seguida, fez um relato conciso de todo o lado jamaicano do problema.
Era um sujeito esguio e bem-humorado de mais ou menos trinta e cinco anos, ex-tenente e comandante da Seção Especial da Reserva Voluntária da Marinha Real. Tinha uma venda negra sobre um olho e o tipo de beleza aquilina associada à ponte de comando dos destróieres. Mas debaixo do bronzeado havia um rosto marcado, e Bond percebeu, pelos gestos rápidos e frases entrecortadas, seu ânimo nervoso e tenso. Era certamente eficiente, tinha senso de humor e não demonstrava nenhum sinal de ciúme diante de alguém que viera da matriz para se meter em seu território. Bond sentiu que se dariam bem, antecipando com prazer essa parceria.
Eis a história que Strangways tinha para contar.
Sempre circularam boatos sobre a presença de um tesouro na ilha da Surpresa, e tudo que se sabia sobre Morgan, o Sanguinário, confirmava essa suspeita.
A pequena ilha ficava no centro exato da baía dos Tubarões, um pequeno porto no final da Junction Road, que corre pela cintura fina da Jamaica, de Kingston à costa norte.
O grande bucaneiro fizera da baía dos Tubarões seu quartel-general. Gostava de ter toda a largura da ilha de permeio entre ele e o governador em Port Royal, de modo que pudesse sair e entrar nas águas jamaicanas em total segredo. O governador também gostava desse arranjo. A Coroa queria que ele fechasse os olhos à pirataria de Morgan até que os espanhóis fossem expulsos do Caribe. Quando isso ocorreu, Morgan foi recompensado com um título de nobreza e o posto de governador da Jamaica. Até então, suas ações tinham de ser repudiadas para evitar uma guerra contra a Espanha, na Europa.
No entanto, durante o longo período antes que a raposa recebesse a chave do galinheiro, Morgan utilizou a baía dos Tubarões como porto de partida para suas investidas. Construiu três casas na propriedade vizinha, denominada Llanrumney, em homenagem ao seu local de nascimento no País de Gales. Essas casas se chamavam “Casa de Morgan”, “Casa do Médico” e “Casa da Dama”. Ainda hoje se descobrem moedas e fivelas em suas ruínas.
O ancoradouro de seus navios sempre foi a baía dos Tubarões, e os reparos nas embarcações eram feitos, a sotavento, na ilha da Surpresa, um pedaço de coral e calcário acidentado que surge do centro da baía, encimado por um platô cheio de mato de cerca de meio hectare.
Quando partiu para sempre da Jamaica, em 1683, foi como preso, para ser julgado por seus pares por menosprezo à Coroa. Seu tesouro foi abandonado em algum lugar na Jamaica e ele morreu na miséria, sem revelar seu paradeiro. Deve ter sido um vasto butim, fruto de incontáveis investidas contra Hispaniola, da captura de inúmeros navios que levavam tesouros para La Plata, do saque do Panamá e da pilhagem de Maracaibo. Mas sumiu sem deixar vestígios.
Sempre se pensou que o segredo jazia em algum lugar da ilha da Surpresa, mas duzentos anos de mergulhos e de escavações da parte dos caçadores de tesouros não revelaram nada. Então, disse Strangways, há apenas seis meses, duas coisas aconteceram em poucas semanas. Um jovem pescador desapareceu do povoado da baía dos Tubarões e nunca mais se soube dele, e um sindicato anônimo de Nova York adquiriu a ilha por mil libras do atual proprietário de Llanrumney, agora uma próspera propriedade de cultivo de banana e de criação de gado.
Poucas semanas depois da venda, o iate Secatur chegara à baía dos Tubarões e fundeara no antigo ponto de ancoragem de Morgan, a sotavento da ilha. Veio com uma tripulação exclusivamente negra. Puseram-se a trabalhar, cavando uma escada na face do rochedo, construindo no topo uma série de cabanas baixas de taipa, ao estilo jamaicano.
Pareciam estar perfeitamente aprovisionados e só compravam peixe fresco e água dos pescadores da baía.
Era um pessoal ordeiro e taciturno, que não dava trabalho. Explicaram à alfândega da vizinha Santa Maria, que os havia liberado, que estavam ali para pescar peixes tropicais, especialmente as variedades venenosas, e coletar conchas para a Ourobouros Inc, de St. Petersburg. Depois que se estabeleceram, compraram grandes quantidades deles dos pescadores da baía dos Tubarões, Port Maria e Oracabessa.
Durante uma semana realizaram explosões na ilha, dizendo que era para a escavação de um grande tanque de peixes.
O Secatur começou a fazer uma rota quinzenal para o Golfo do México, e observadores com binóculos confirmaram que, antes de zarpar, sempre embarcavam tanques portáteis de peixe. Meia dúzia de homens era deixada para trás. Quaisquer canoas que se aproximassem da ilha recebiam ameaças de um guarda, na base da escadaria no rochedo, que ficava o dia inteiro pescando em um molhe estreito onde o Secatur atracava, preso a duas âncoras no mar, bem abrigado dos ventos nordeste.
Jamais alguém conseguiu desembarcar na ilha de dia e, depois de duas tentativas trágicas, ninguém voltou a tentar um desembarque noturno.
A primeira tentativa foi a de um pescador local, instigado pelos boatos de um tesouro enterrado que nenhuma conversa sobre peixes tropicais podia abafar. Partiu a nado uma noite e seu corpo fora devolvido pelo mar, por cima do recife, no dia seguinte. Os tubarões e as barracudas só deixaram o torso e um pedaço da coxa.
Mais ou menos na hora em que ele deveria chegar à ilha, toda a aldeia da baía dos Tubarões foi acordada pelo batuque mais terrível. Parecia vir do interior da ilha. Reconheceram-no como um batuque do vodu. Começou tranquilo e foi em um crescendo trovejante. Depois baixou novamente e parou. Durou cerca de cinco minutos.
Desde aquele momento a ilha se tornou ju-ju, ou obeah, como se diz na Jamaica, e, mesmo à luz do dia, as canoas ficam a uma distância segura.
A essa altura, Strangways teve seu interesse despertado e fez um relatório completo a Londres. Desde 1950, a Jamaica se tornara um alvo estratégico importante, graças à exploração, pela Reynolds Metal e pela Kaiser Corporation, de enormes depósitos de bauxita encontrados na ilha. Na opinião de Strangways, as atividades na ilha da Surpresa bem poderiam estar ligadas à construção de uma base de submarinos de um só tripulante, prevendo uma situação de guerra, especialmente porque a baía dos Tubarões estava no âmbito da rota dos navios da Reynolds até o novo porto de embarque de bauxita de Ocho Ríos, alguns quilômetros costa abaixo.
Londres investigou, junto com Washington, com base no relatório, e veio à tona a informação de que o sindicato que comprara a ilha era inteiramente de propriedade de Mr. Big.
Isso há três meses. Strangways recebeu ordens de entrar na ilha de qualquer maneira e descobrir o que estava acontecendo. Montou uma operação e tanto. Alugou uma propriedade no braço ocidental da baía dos Tubarões, chamada Beau Desert, onde existem as ruínas de um dos famosos casarões jamaicanos do começo do século dezenove, e também uma casa de praia moderna bem em frente ao ancoradouro do Secatur na ilha da Surpresa.
Trouxe dois bons nadadores da base naval na Bermuda e organizou uma observação permanente da ilha através de binóculos diurnos e noturnos. Nada foi visto que parecesse suspeito e, em uma noite calma e escura, ele mandou os dois nadadores com ordens de fazer uma vistoria submarina das fundações da ilha.
Strangways contou o pavor que sentiu quando, uma hora depois de partirem a nado para atravessar os trezentos metros de mar, começou um terrível batuque em algum lugar dentro dos penhascos da ilha.
Naquela noite os dois não voltaram.
No dia seguinte, ambos apareceram na praia, em lugares diferentes da baía. Ou melhor, o que sobrou de seus corpos devorados pelos tubarões e barracudas.
Nesta altura da história de Strangways, Bond interrompeu-o.
“Um minuto só”, disse, “que história é essa de tubarões e barracudas? Geralmente eles não são agressivos nestas águas. Não existem muitos na Jamaica e raramente se alimentam de noite. Aliás, não creio que nenhum deles ataque seres humanos, a não ser que haja sangue na água. Podem dar uma mordida, uma vez ou outra, em algum pé branco, por curiosidade. Já houve notícias anteriores de comportamento assim na Jamaica?”
“Nunca houve outro caso, desde que uma garota teve o pé devorado em Kingston Harbour, em 1942”, disse Strangways. “Ela estava sendo rebocada por uma lancha, batendo os pés. Seus pés brancos devem ter parecido especialmente apetitosos. E, além disso, estavam viajando em uma velocidade que convidava ao ataque. Todo mundo concorda com sua teoria. E meus homens tinham arpões e facas. Achei que fizera de tudo para protegê-los. Foi algo medonho. Imagine só como me senti. Desde então não fizemos mais nada, exceto tentar legalizar o acesso à ilha através da Secretaria das Colônias e de Washington. Mas o proprietário é cidadão americano. Então o processo é penosamente lento, sobretudo porque não há nada contra essa gente. Parecem dispor de uma boa proteção em Washington e de alguns advogados muito bons em direito internacional. Estamos absolutamente emperrados. Londres me disse para esperar até que você viesse.” Strangways deu um gole no uísque e olhou para Bond com expectativa.
“Quais são os movimentos do Secatur?”, perguntou Bond.
“Ainda está em Cuba. Deve zarpar dentro de uma semana, de acordo com a CIA.”
“Quantas viagens fez?”
“Cerca de vinte.”
Bond multiplicou cento e cinquenta mil dólares por vinte. Se seus cálculos estivessem certos, Mr. Big já levara um milhão de libras em ouro da ilha.
“Fiz alguns arranjos provisórios para você”, disse Strangways. “Tem a casa em Beau Desert. Há um carro, Sunbeam Talbot, sedã. Pneus novos. Corre bem. Ideal para essas estradas. Arranjei um sujeito ótimo para ser seu faz-tudo. Um ilhéu das ilhas Cayman, chamado Quarrel. O melhor pescador e nadador do Caribe. Muito prestativo. Grande sujeito. E peguei emprestada a casa de repouso da West Indian Citrus Company na Baía Manatee. Fica na outra extremidade da ilha. Você podia descansar lá uma semana e se exercitar um pouco até a chegada do Secatur. Precisará estar em forma se quiser chegar à ilha da Surpresa, e acredito francamente que só isso nos dará a resposta. Tem mais alguma coisa que eu possa fazer? Estarei por aí, claro, mas preciso ficar em Kingston para manter a comunicação com Londres e Washington. Eles vão querer saber tudo que fizermos. Há mais alguma coisa que você gostaria que eu providenciasse?”
Bond estivera se decidindo.
“Sim”, respondeu. “Pode pedir a Londres que consiga junto ao Almirantado uma de suas roupas de mergulho, completa, com os cilindros de ar comprimido. E muitos sobressalentes. E um bom par de arpões. Os franceses, ‘Champion’, são os melhores. Uma boa lanterna subaquática. Uma faca de guerra dos comandos. Toda a informação que puderem arranjar no Museu de História Natural sobre tubarões e barracudas. E um pouco daquele repelente de tubarões que os americanos usaram no Pacífico. Peça à BOAC para trazer tudo pelo seu serviço direto.”
Bond fez uma pausa. “Ah, sim”, disse. “E uma daquelas coisas que nossos sabotadores costumavam usar contra os navios durante a guerra. Uma mina naval, com diversos detonadores.”
17.
O VENTO PAPA-DEFUNTO
Mamão com uma rodela de limão, um prato cheio de bananas avermelhadas, caimitos roxos, ovos mexidos com bacon, café Blue Mountain — o mais delicioso do mundo —, geleia de laranja jamaicana, quase preta, e geleia de goiaba.
Enquanto Bond, trajando shorts e sandálias, tomava café na varanda, contemplando o panorama ensolarado de Kingston e Port Royal, pensou que tinha sorte pela existência de momentos tão magníficos a compensar o perigo e o ambiente sombrio de sua profissão.
Bond conhecia bem a Jamaica. Estivera no país durante uma longa missão logo após a guerra, quando o quartel-general comunista em Cuba procurava infiltrar os sindicatos jamaicanos. Tinha sido um serviço malresolvido e inconcluso, mas ele aprendera a amar a grande ilha verde e seu povo alegre e leal. Agora estava contente por ter retornado e pela semana inteira de folga antes de recomeçar o trabalho duro.
Depois do café da manhã, Strangways surgiu na varanda com um sujeito alto de pele morena, trajando uma camisa azul desbotada e velhas calças de sarja marrons.
Era Quarrel, o ilhéu das ilhas Cayman, com quem Bond logo simpatizou. Tinha sangue dos soldados de Cromwell e de bucaneiros. Seu rosto era forte e anguloso, com uma boca quase severa e olhos cinzentos. Apenas o nariz achatado e as palmas das mãos descoradas eram negroides.
Bond apertou sua mão.
“Bom dia, capitão”, falou Quarrel. Vindo da raça de pescadores mais famosa do mundo, esse era o tratamento mais honroso que ele podia merecer. Mas não havia nenhum desejo de agradar, ou humildade, na sua voz. Falava como marujo, de maneira direta e franca.
Esse momento definiu o relacionamento deles. Parecia a relação entre um senhor de terras escocês e seu caçador-chefe; o reconhecimento subentendido da autoridade, sem espaço para qualquer servilismo.
Depois de discutirem seus planos, Bond pegou o volante do pequeno carro que Quarrel trouxera de Kingston e tomaram a Junction Road, deixando Strangways ocupado com os pedidos de Bond.
Partiram antes das nove e ainda estava fresco quando atravessaram as montanhas que se estendem pelo dorso da Jamaica como a parte dentada da couraça do crocodilo. A estrada descia serpenteando em direção às planícies do norte, através de um dos cenários mais bonitos do mundo, em que a vegetação tropical se modificava com a mudança de altitude. Os flancos verdes das serras, emplumados de bambus intercalados com o verde escuro e brilhoso da fruta-pão e a súbita explosão colorida do flamboyant, cediam lugar, mais para baixo, à floresta de ébano, mogno, hibiscos e pau-campeche. Quando chegaram às várzeas do vale de Agualta, o mar verde dos bananais e canaviais se espraiava até onde a orla afastada dos bosques de palmeiras brotava cintilante ao longo da costa norte.
Quarrel foi boa companhia no passeio e um guia maravilhoso. Falou sobre as aranhas que faziam suas casas na terra, encimadas por pequenos alçapões perfeitos, ao passarem pelos famosos jardins de palmeiras de Castleton. Contou que assistira a uma briga entre uma centopeia gigante e um escorpião e explicou a diferença entre o mamão-macho e o mamão-fêmea. Descreveu os venenos da mata e as propriedades medicinais das ervas tropicais, a pressão exercida pela noz para romper o coco, o comprimento da língua do beija-flor, a maneira como os crocodilos carregam os filhotes na boca, ao comprido, como sardinhas em lata.
Falava em termos precisos, mas sem conhecimento técnico, empregando o linguajar jamaicano em que as plantas são humanizadas, “se esforçam”, “desanimam”, “mariposas” são “morcegos” e “amar” é sempre usado no lugar de “gostar”. Enquanto falava, levantava a mão em um gesto de saudação para as pessoas na estrada, que também gesticulavam e gritavam seu nome.
“Você parece conhecer gente à beça”, comentou Bond, quando o motorista de um ônibus apinhado, com a palavra ROMANCE escrita em grandes letras em cima do para-brisa, saudou-o com dois toques de sua buzina de ar comprimido.
“Faz três meses que ando observando a ilha da Surpresa, capitão”, disse Quarrel, “e passando por esta estrada duas vezes por semana. Todo mundo fica logo conhecido na Jamaica. O pessoal tem vista boa.”
Às dez e meia já tinham passado Port Maria e enveredado por uma pequena estrada vicinal que levava à baía dos Tubarões. Ao fazer uma curva, se depararam com ela embaixo, e Bond parou o carro e saíram.
A baía tinha a forma de um crescente e talvez uns mil e duzentos metros de largura entre um pontal e outro. Sua superfície azul estava encrespada pela leve brisa que soprava do nordeste, vizinha dos ventos alísios que nasciam a oitocentos quilômetros, no Golfo do México, e de lá partiam para sua longa viagem em volta do mundo.
A um quilômetro e meio de onde estavam, uma longa arrebentação sinalizava o recife fora da baía e o estreito de águas calmas que era a única entrada para o ancoradouro. No meio do crescente, a ilha da Surpresa assomava com seus trinta e poucos metros acima do mar, orlada no seu lado leste pela espuma das pequenas ondas que quebravam, e por águas calmas a sotavento.
Era quase redonda, parecendo um bolo alto e cinzento encimado por uma camada verde de açúcar glacê, tudo sobre um prato de porcelana azul.
Haviam parado a cerca de trinta metros do pequeno amontoado de cabanas de pescadores, atrás da praia orlada de coqueiros, e estavam no mesmo nível que o topo plano e verde da ilha, a quatrocentos metros de distância. Quarrel mostrou os telhados de palha das cabanas de taipa no meio das árvores, no centro da ilha. Bond examinou-as através dos binóculos de Quarrel. Não havia nenhum sinal de vida, exceto por um magro fiapo de fumaça levado pela brisa.
Abaixo deles, a água da baía era verde-clara perto da areia branca. Em seguida, se aprofundava e ficava azul-escura antes do marrom intercalado da borda submersa de um recife interno, que formava um largo semicírculo a cem metros da ilha. Depois tornava-se novamente azul, com manchas de azul mais claro e verde-mar. Quarrel informou que a profundidade do ancoradouro do Secatur era de aproximadamente dez metros.
À esquerda, no meio do braço ocidental da baía, escondida entre as árvores e atrás de uma minúscula praia de areia branca, ficava sua base de operações, Beau Desert. Quarrel descreveu a disposição da casa e Bond permaneceu dez minutos examinando os trezentos metros de distância entre ela e o ancoradouro do Secatur, junto à ilha.
Ao todo, Bond passou uma hora fazendo o reconhecimento do local e depois, sem se aproximar da casa ou do povoado, viraram o carro e voltaram para a estrada principal ao longo da costa.
Seguiram de carro através do belo e pequeno porto de embarque de bananas de Oracabessa e de Ocho Ríos, com sua nova e enorme usina de extração de bauxita, seguindo a costa norte até a baía de Montego, a duas horas de distância. Era fevereiro, no auge da estação. A pequena aldeia e os grandes hotéis esparsos estavam mergulhados na corrida de ouro de quatro meses que os sustentava pelo resto do ano. Pararam em uma pousada do outro lado da ampla baía, onde almoçaram, para, em seguida, prosseguirem no calor da tarde até a ponta ocidental da ilha, depois de mais duas horas de viagem.
Ali, graças à presença dos enormes mangues costeiros, nada acontecera desde que Colombo usara a baía de Manatee como um ancoradouro ocasional. Os pescadores jamaicanos haviam tomado o local dos índios Arawak, mas, exceto isso, tinha-se a impressão de que o tempo havia parado.
Bond achou-a a praia mais bonita que já havia visto, oito quilômetros de areia branca descendo suavemente até as ondas e, atrás, a marcha desordenada, porém graciosa, das palmeiras rumo ao horizonte. Debaixo delas, as canoas cinza descansavam fora da água, ao lado de monturos rosados de conchas descartadas. Do meio do palmeiral subia a fumaça das palhoças dos pescadores, na sombra entre o mangue e o mar.
Em uma clareira entre as palhoças, construída sobre estacas em um gramado malcuidado de grama das Bahamas, ficava a casa de fim de semana dos trabalhadores da West Indian Citrus Company. Fora construída sobre estacas para evitar os cupins e era cuidadosamente telada contra mosquitos e borrachudos. Bond saiu da estrada irregular e estacionou sob a casa. Enquanto Quarrel escolhia e arrumava dois quartos, Bond enrolou uma toalha na cintura e caminhou entre as palmeiras até o mar, a vinte metros de distância.
Nadou e boiou preguiçosamente durante uma hora na água quente em que flutuava sem dificuldade, pensando na ilha da Surpresa e em seu segredo, fixando na mente aqueles trezentos metros, pensando nos tubarões e barracudas e demais perigos do mar, essa grande biblioteca cheia de livros que ainda não conseguimos ler.
Ao caminhar de volta para o pequeno chalé de madeira, Bond levou suas primeiras picadas de mosquito pólvora. Quarrel deu uma risada ao ver as mordidas empoladas nas suas costas, que em breve coçariam como o diabo.
“Não se pode fazer nada para nos livrar deles, capitão”, observou. “Mas posso parar essa coceira. Melhor tomar uma chuveirada, primeiro, para tirar o sal. Eles só mordem mesmo durante uma hora, ao entardecer, e gostam de sal no jantar.”
Quando Bond saiu do chuveiro, Quarrel apareceu com uma velha garrafa de remédio e passou um líquido marrom, que cheirava a creolina, nas mordidas.
“A gente tem mais mosquitos pólvora e borrachudos nas ilhas Cayman do que em qualquer outro lugar do mundo”, falou, “mas não nos incomodam desde que tenhamos este remédio”.
Os dez minutos de crepúsculo tropical trouxeram sua breve melancolia. Depois as estrelas e a lua em quarto crescente começaram a brilhar, e o mar se reduziu a um sussurro. Houve uma curta calmaria entre os dois grandes ventos da Jamaica e, em seguida, as palmeiras voltaram a murmurar.
Quarrel fez um gesto da cabeça em direção à janela.
“O vento Papa-Defunto”, comentou.
“Como assim?”, perguntou Bond, espantado.
“Vento terral, como dizem os marinheiros”, acrescentou Quarrel. “O Papa-Defunto sopra, expulsando o ar ruim da ilha durante a noite, das seis às seis da manhã. Em seguida, o ‘vento Médico’ chega, soprando o ar fresco do mar para a ilha. Pelo menos é assim que os chamamos na Jamaica.”
Quarrel olhou perplexo para Bond.
“Acho que Papa-Defunto e você têm praticamente a mesma tarefa, capitão”, comentou, meio brincando.
Bond deu uma breve risada. “Ainda bem que não preciso respeitar o mesmo horário”, respondeu.
Lá fora os grilos e as pererecas começaram a ciciar e coaxar, e as grandes mariposas forçavam as telas das janelas, onde se agarravam, olhando, em um êxtase agoniado, para as duas lamparinas a óleo penduradas em duas travessas dentro de casa.
Uma vez ou outra dois pescadores, ou um grupo de garotas aos risinhos, iam andando até a praia a caminho do único e pequeno bar na ponta da baía. Ninguém andava sozinho, com medo dos lobisomens sob as árvores, ou do garrote rolador, animal terrível que vinha de encontro às pessoas rolando pelo chão, com as pernas presas por correntes e botando fogo pelas ventas.
Enquanto Quarrel preparava uma refeição suculenta de peixe, ovos e legumes que haveria de se tornar a dieta regular de ambos, Bond sentou-se sob a luz e debruçou-se sobre os livros que Strangways pegara emprestado do Instituto Jamaicano. Livros sobre o mar tropical e seus habitantes, por Beebe e Allyn, e outros, sobre caça submarina, de Cousteau e Hass. Quando partisse para atravessar aqueles trezentos metros de mar, estava determinado a fazê-lo com todo o conhecimento possível, sem confiar no acaso. Conhecia a capacidade de Mr. Big e apostava que as defesas da ilha da Surpresa seriam tecnicamente brilhantes. Achou que não se resumiriam a explosivos e armas. Mr. Big precisava trabalhar sem ser incomodado pela polícia. Precisava permanecer fora do alcance da lei. Bond supunha que as forças do mar haviam sido, de certo modo, domesticadas para fazer o trabalho de Mr. Big, e era sobre essas que Bond se concentrava: o assassinato por meio de tubarões e barracudas, talvez polvos e jamantas.
Os fatos expostos pelos naturalistas eram medonhos e horripilantes, mas as experiências de Cousteau no Mediterrâneo e de Hass, no mar Vermelho, eram mais animadoras.
Naquela noite Bond teve muitos sonhos de encontros aterrorizantes com polvos gigantescos e raias-lixas, tubarões cabeça de martelo e barracudas de dentes serrilhados, de modo que gemeu e suou durante o sono.
No dia seguinte começou a se exercitar, sob o olhar crítico de Quarrel. Toda manhã nadava mil e seiscentos metros na praia antes do café da manhã e corria pela areia firme até o chalé. Lá pelas nove partiam em uma canoa, cuja única vela triangular os transportava rápido até a baía Sangrenta e Orange Bay, onde a areia termina em penhascos e pequenas cavernas, e o recife se aproxima da costa.
Ali deixavam a canoa na praia e Quarrel o levava, com fisgas, máscaras e um velho arpão submarino, em expedições de tirar o fôlego, no tipo de mar que ele encontraria na baía dos Tubarões.
Pescavam em silêncio, separados por poucos metros, com Quarrel se movendo com facilidade em um elemento no qual quase se sentia em casa.
Não demorou para que Bond aprendesse a não lutar contra o mar, e sim ceder e aproveitar as correntes e os rodamoinhos, usando táticas de judô dentro d’água.
No primeiro dia chegou em casa cortado e envenenado pelo coral e com uma dúzia de espinhos de ouriço espetados em seu flanco. Quarrel sorriu e tratou as feridas com mertiolato e Milton. Depois, como fazia toda noite, massageou Bond por meia hora com óleo de coco, enquanto ia falando em voz baixa sobre os peixes que haviam encontrado naquele dia, explicando os hábitos dos carnívoros e não carnívoros, a camuflagem dos peixes e seu modo de mudar de cor através da corrente sanguínea.
Ele também jamais ouvira falar de peixe algum que atacasse o homem, a não ser em desespero ou porque havia sangue na água. Explicou que os peixes raramente passam fome nas águas tropicais e que a maioria de suas armas é defensiva, e não ofensiva. A única exceção, admitia, era a barracuda. “Peixes maus”, conforme dizia, que não conheciam o medo, já que não possuíam outro inimigo que não a doença, capazes de atingir oitenta quilômetros por hora em distâncias curtas, e donos dos dentes mais perigosos do que os de qualquer outro peixe de mar.
Um dia alvejaram uma de dez quilos que nadava em volta deles, sumindo na distância cinzenta e depois reaparecendo, silenciosa, imóvel, quase em cima da água, com seus olhos zangados de tigre fitando-os de muito perto, de modo que podiam ver o lento funcionamento de suas guelras e os dentes brilhando, como as presas de um lobo, ao longo da queixada cruel e prognata.
Quarrel finalmente pegou o arpão de Bond e alvejou-a gravemente, atravessando sua barriga aerodinâmica. Ela veio diretamente em cima deles, com as mandíbulas escancaradas, como uma cascavel pronta para o bote. Bond deu uma fisgada desajeitada quando ela investia contra Quarrel. Errou, mas o arpão entrou pelas suas mandíbulas. Elas se fecharam imediatamente sobre o espeto de aço, e quando o peixe arrancou a fisga da mão de Bond, Quarrel apunhalou-a com a faca e ela enlouqueceu, correndo dentro d’água com as entranhas à mostra, a fisga presa entre os dentes e o arpão pendente do corpo. Quarrel mal podia segurar a linha enquanto o peixe procurava retirar a ponta que lhe atravessava a barriga. Mas seguiu-o nadando em direção a um recife submerso, no qual subiu, puxando lentamente o peixe.
Depois que Quarrel cortou as guelras e retirou a fisga de suas mandíbulas, encontraram as marcas profundas dos dentes no aço.
Levaram o peixe para a praia, Quarrel cortou sua cabeça e abriu a bocarra com um pedaço de pau. A mandíbula superior se erguia quase em ângulo reto em relação à inferior, revelando fantásticas fileiras de dentes, tão abundantes que se sobrepunham como telhas no telhado. Até mesmo a língua tinha várias fileiras de pequenos dentes afiados e curvos e, na frente, duas presas enormes, que se projetavam para a frente como as de uma serpente.
Embora só pesasse pouco mais que cinco quilos, passava de um metro e trinta centímetros, uma bala niquelada só de músculo e tecido firme.
“Não vamos matar mais barracudas”, comentou Quarrel. “Mas se não fosse por você eu teria que passar um mês no hospital e talvez perder meu rosto. Foi uma tolice minha. Se a gente tivesse nadado em sua direção, ela teria fugido. Sempre fazem isso. São covardes como todos os peixes. Não se preocupe com esses aqui”, apontou para os dentes, “jamais tornará a vê-los”.
“Espero que não”, desabafou Bond. “Não tenho rosto sobressalente.”
No fim de uma semana Bond estava bronzeado e rijo. Cortara os cigarros para dez por dia e não tomara sequer um drinque. Conseguia nadar três quilômetros sem cansar, a mão estava completamente sarada e ele havia eliminado todas as sequelas da vida urbana.
Quarrel se alegrou. “Você está pronto para a ilha da Surpresa, capitão”, disse, “e eu não gostaria de ser o peixe que tentasse devorá-lo”.
Ao entardecer do oitavo dia, voltaram para a casa de descanso e encontraram Strangways à espera deles.
“Tenho boas notícias para lhe dar”, disse. “Seu amigo Felix Leiter vai ficar bom. Apesar de tudo, não morrerá. Precisaram amputar o resto de um braço e de uma perna. Os cirurgiões plásticos começaram agora a reconstruir o rosto. Ligaram para mim ontem de St. Petersburg. Parece que ele insistiu em lhe mandar um recado. Foi a primeira coisa que lhe veio à cabeça quando voltou a si. Disse que sente muito não poder estar aqui e para você não molhar os pés — ou pelo menos não molhá-los tanto como ele.”
O coração de Bond ficou apertado. Olhou pela janela. “Diga a ele para se restabelecer logo”, disse abruptamente. “E também que sinto a sua falta.” Voltou os olhos para a sala. “E quanto ao equipamento? Tudo bem?”
“Está tudo aqui”, respondeu Strangways, “e o Secatur zarpa amanhã para a ilha da Surpresa. Depois de passar pela alfândega em Port Maria, devem lançar âncora antes do anoitecer. Mr. Big está a bordo — é só a segunda vez que veio aqui. Ah, e trouxe uma mulher. Uma garota chamada Solitaire, de acordo com a CIA. Sabe alguma coisa sobre ela?”
“Não muito”, respondeu Bond. “Mas gostaria de tirá-la dele. Ela não pertence ao seu time.”
“Uma espécie de donzela em apuros”, disse o romântico Strangways. “Pois é. De acordo com a CIA, ela é uma graça.”
Mas Bond fora para a varanda e olhava as estrelas. Jamais tivera de brigar por um cacife tão alto na vida. O segredo do tesouro, a derrota de um grande criminoso, o esmagamento de um círculo de espionagem comunista e a destruição de um tentáculo da SMERSH, a cruel engrenagem que constituía seu próprio alvo particular. E agora Solitaire, a maior das recompensas pessoais.
As estrelas piscavam no seu Morse cifrado e ele não possuía chave alguma para decifrar o seu código.
18.
BEAU DESERT
Strangways voltou sozinho depois do jantar e Bond decidiu que eles partiriam ao amanhecer. O inglês deixou uma nova pilha de livros e panfletos sobre tubarões e barracudas, que Bond estudou com grande atenção.
Pouco acrescentou ao conhecimento prático que aprendera com Quarrel. Os autores eram todos cientistas e grande parte dos dados era sobre ataques ocorridos nas praias do Pacífico, onde qualquer corpo que brilhasse na arrebentação pesada excitaria a curiosidade dos peixes.
Mas parecia haver uma concordância geral que o perigo para os mergulhadores submarinos com aqualungs era muito menor do que para os nadadores de superfície. Estes podiam ser atacados por qualquer representante da família dos tubarões, especialmente quando o tubarão era estimulado e excitado pela presença de sangue no mar, pelo cheiro da vítima ou pela vibração sensorial causada por alguém ferido na água. Mas às vezes podiam ser espantados, segundo a literatura, por barulhos altos dentro d’água — até mesmo por gritos sob a superfície, e muitas vezes fugiam quando perseguidos pelo nadador.
A fórmula mais bem-sucedida de repelente de tubarões era, segundo os testes dos laboratórios de pesquisa naval da marinha americana, uma combinação de acetato de cobre e um corante preto chamado nigrosina, que vinha sendo adicionada, sob a forma de pelotas, aos coletes salva-vidas de todas as forças armadas dos Estados Unidos.
Bond chamou Quarrel. O ilhéu de Cayman não acreditara, até que Bond lesse para ele o que o Departamento Naval tinha a dizer sobre suas pesquisas, no final da guerra, sobre os bandos de tubarões estimulados por uma situação descrita como “condições exacerbadas de comportamento grupal”: “... os tubarões eram atraídos para a popa do barco de pesca de camarões, com refugo de peixes”, leu Bond. “Os tubarões apareceram sob a forma de um cardume exasperado, espadanante. Preparamos uma tina com peixes frescos, e outra com peixes misturados ao pó repelente. Aproximamo-nos do cardume e o fotógrafo começou a rodar a câmera. Despejei os peixes frescos por trinta segundos, repetindo três vezes esse procedimento. Da primeira vez os tubarões demonstraram grande ferocidade ao se alimentar dos peixes frescos bem na popa do barco. Mas ficaram devorando-os só durante cinco segundos depois que o pó repelente foi jogado ao mar. Uns poucos voltaram depois que jogamos peixe fresco imediatamente após o repelente. Em uma segunda tentativa, trinta minutos depois, um cardume feroz se alimentou durante os trinta segundos em que lhe fornecemos peixe fresco, mas se afastou assim que o repelente foi jogado na água. Na terceira tentativa, só conseguimos atrair os tubarões até uma distância de vinte metros da popa do barco.”
“O que acha disso?”, perguntou Bond.
“É melhor arranjar um pouco desse negócio”, respondeu Quarrel a contragosto, mas impressionado.
Bond estava disposto a concordar. Washington havia mandado mensagem de que as pelotas do material estavam a caminho. Mas ainda não tinham chegado e não eram esperadas antes de quarenta e oito horas. Se o repelente não chegasse, não seria problema para Bond. Não imaginava encontrar condições tão perigosas no seu percurso submarino até a ilha.
Antes de ir para a cama, chegara à conclusão de que nada o atacaria se não houvesse sangue na água, ou se ele não parecesse amedrontado diante da ameaça de algum peixe. Quanto aos polvos, peixes-escorpião e moreias, simplesmente precisava tomar cuidado onde punha os pés. Para ele, os espinhos de sete centímetros do ouriço eram o maior perigo para as atividades submarinas nos trópicos, mas a dor que causavam não bastaria para interferir em seus planos.
Partiram antes das seis da manhã e chegaram a Beau Desert às dez e meia.
A propriedade era uma bela plantação antiga de cerca de quatrocentos hectares, com as ruínas da bela casa grande dominando a baía. Era dedicada ao cultivo de pimentões e cítricos, e cercada de madeiras de lei e palmeiras, e sua história remontava à época de Cromwell. O nome romântico estava em moda no século dezoito, quando as propriedades jamaicanas se chamavam Bellair, Bellevue, Boscobel, Harmony, Nymphenburg, ou eram batizadas de Panorama, Satisfação, Repouso.
Uma trilha entre as árvores, que não era visível da ilha na baía, levava à pequena casa de praia. Depois dos piqueniques semanais na baía de Manatee, os banheiros e a mobília confortável de bambu pareciam um luxo, e os tapetes de cores vivas pareciam de veludo sob os pés calejados de Bond.
Pelas rótulas das janelas Bond contemplou o pequeno jardim flamejante de hibiscos, buganvílias e roseiras, que acabava no minúsculo crescente de areia branca, meio tapado pelos troncos das palmeiras. Sentou-se no braço de uma poltrona e deixou que seu olhar passeasse, palmo a palmo, pelos diferentes azuis e marrons do mar e dos recifes, até morrer na base da ilha. A metade superior estava obscurecida pelos leques das plumas das palmeiras em primeiro plano, mas o pedaço de penhasco vertical dentro de seu campo de visão parecia cinzento e formidável na meia sombra projetada pelo sol forte.
Quarrel preparou o almoço em um fogareiro a álcool, de modo que nenhuma fumaça os denunciasse, e de tarde Bond fez uma sesta e depois examinou o equipamento enviado de Londres e trazido de Kingston por Strangways. Experimentou a roupa de mergulho de borracha fina que o cobria, desde a máscara apertada na cabeça com o óculo de vidro temperado, até as longas nadadeiras em seus pés. Tudo cabia como uma luva, e Bond louvou a eficiência do setor “Q” de M.
Testaram os cilindros duplos de mil litros de ar natural comprimido a duzentas atmosferas, e Bond achou fácil o funcionamento das válvulas de distribuição de ar e de reserva, à prova de acidentes. Na profundidade em que agiria, aquele volume dava para durar quase duas horas.
Havia uma nova espingarda submarina potente, marca Champion, e uma faca projetada pela Wilkinson para os comandos durante a guerra. Finalmente, em uma caixa coberta de avisos de perigo, estava a pesada mina naval, um cone de fundo achatado, repleto de explosivos, montado sobre uma base cheia de largas saliências de cobre, tão imantadas que a mina grudava como um marisco em qualquer casco metálico. Havia uma dúzia de detonadores de metal e de vidro, parecidos com lápis, com temporizadores que iam de dez minutos até oito horas, e um meticuloso livrinho de instruções, tão simples quanto o próprio equipamento. Havia até uma caixa de cápsulas de benzedrina para dar resistência e aguçar a percepção de Bond durante a tarefa, e várias lanternas submarinas, inclusive uma que projetava apenas um feixe da largura de um lápis.
Bond e Quarrel testaram tudo, acoplamentos, contatos, até se darem por satisfeitos e concluírem que não restava mais nada a ser feito. Em seguida, Bond desceu até o meio das árvores e observou as águas da baía, calculando as profundidades, traçando rotas para percorrer a passagem pelo recife e prevendo a trajetória da lua, que seria sua única referência no decorrer da tortuosa travessia.
Às cinco horas chegou Strangways com notícias do Secatur.
“Passaram por Port Maria”, informou. “Chegarão aqui dentro de dez minutos, no máximo. Mr. Big tem um passaporte com o nome de Gallia e a garota com o nome de Latrelle. Ela está na sua cabine, mareada, segundo o capitão negro do Secatur. É possível. Há uma porção de tanques de peixe a bordo. Mais de cem. Exceto isso, nada que levantasse suspeita, e foram liberados. Eu queria ir a bordo como parte da turma da alfândega, mas achei melhor deixar que o espetáculo se desenrolasse de modo absolutamente normal. Mr. Big permaneceu na sua cabine. Estava lendo quando foram verificar seus documentos. Como está o equipamento?”
“Perfeito”, respondeu Bond. “Acho que agiremos amanhã à noite. Espero que haja um pouco de vento. Se descobrirem as bolhas de ar, estaremos em apuros.”
Quarrel entrou, avisando: “O iate está passando pelo recife agora, capitão.”
Foram até a máxima distância que podiam arriscar ir, na praia, e assestaram os seus binóculos na direção do barco.
Era uma bela embarcação, negra, com uma superestrutura cinza, setenta pés de comprimento e construída em função da velocidade — de pelo menos vinte nós, imaginou Bond. Conhecia sua história. Havia sido construída para um milionário em 1947, era movida por dois motores a diesel da General Motors, tinha casco de aço e todas as geringonças de comunicação de último tipo, inclusive telefone do barco para a terra e um navegador Decca. Trazia hasteados um pavilhão vermelho nos vaus dos joanetes e a bandeira americana à popa, e progredia a três nós através da abertura de sete metros no recife.
Virou abruptamente, depois de romper a passagem, e rumou para a parte da ilha a bombordo. Ao mesmo tempo, três negros em calças brancas de brim desceram correndo a escada íngreme até o molhe estreito e se posicionaram para amarrar as guias. Foram necessárias poucas manobras para prendê-las, diante dos observadores em terra firme, e as duas âncoras foram arriadas ruidosamente, entre as pedras e o coral na areia do fundo, junto à base da ilha. O barco estava bem protegido, até mesmo do vento norte. Bond calculou uma profundidade de sete metros sob a sua quilha.
Enquanto observavam, a enorme figura de Mr. Big surgiu no convés. Desembarcou no molhe e começou a subir lentamente a escadaria a prumo. Parou várias vezes, e Bond pensou na dificuldade que seu coração avariado teria para bombear o sangue naquele corpanzil preto acinzentado.
Seguiam-no dois tripulantes negros carregando uma maca leve, levando um corpo humano amarrado. Pelos binóculos, Bond reconheceu os cabelos negros de Solitaire. Ficou perplexo e preocupado, sentiu um aperto no coração diante daquela proximidade. Rezou para que a maca fosse apenas uma precaução para evitar que Solitaire fosse reconhecida da costa.
Em seguida, formou-se uma fila de doze homens na escadaria e os tanques de peixe foram sendo passados de um para outro. Quarrel contou cento e vinte.
Depois, alguns gêneros foram levados para cima da mesma maneira.
“Não está trazendo muita coisa desta vez”, comentou Strangways, depois da operação terminada. “Somente uma dúzia de caixotes. Geralmente são cinquenta. Não deve ficar muito tempo.”
Mal acabara de falar quando um tanque de peixe, que seus binóculos mostravam estar meio cheio de água e areia, desceu cuidadosamente de volta ao barco, por meio daquela escada feita de mãos. Em seguida outro, e mais outro, a intervalos de cinco minutos.
“Meu Deus”, exclamou Strangways. “Já estão carregando o barco. O que significa que deverão zarpar pela manhã. Será que resolveram liquidar as operações na ilha e este será seu último carregamento?”
Bond observou com cuidado e depois subiram em silêncio através do arvoredo, deixando Quarrel atrás para se manter a par dos acontecimentos.
Sentaram-se na sala, e enquanto Strangways preparava um uísque com soda para ele mesmo, Bond olhava pela janela e organizava seus pensamentos.
Eram seis horas e os vagalumes começaram a aparecer na penumbra. A lua, de um amarelo pálido, já ia alta no lado do oriente, e o dia morria rápido às suas costas. Uma brisa ligeira encrespava a baía e pequenas ondas quebravam na praia branca no final do gramado. Pequeninas nuvens rosa e alaranjadas, ao poente, vagavam nas alturas, e as folhas das palmeiras se esbarravam de mansinho no vento fresco do Papa-Defunto.
“Vento Papa-Defunto”, pensou Bond, sorrindo de esguelha. Tal como teria de ser esta noite. Era a única chance, e as condições quase perfeitas. Só o repelente de tubarões é que não chegaria a tempo. Mas isso era apenas um requinte. Não poderia ser um pretexto. Era para isto que ele viajara três mil quilômetros e matara cinco. No entanto, sentiu um calafrio ao prever a aventura submarina angustiante, que ele já havia transferido em sua mente para o dia seguinte. De repente sentiu ódio e medo do mar e de tudo que lhe dizia respeito. Dos milhões de pequenas antenas que se mexeriam e o seguiriam quando ele passasse de noite, dos olhos que acordariam para espiá-lo, das batidas de coração que falhariam por um centésimo de segundo para continuar batendo silenciosamente, das gavinhas gelatinosas que se estenderiam em sua direção, tão cegas na luz quanto no escuro.
Iria passar no meio de milhares de segredos. No espaço de trezentos metros, sozinho e com frio, transporia às cegas uma floresta misteriosa em direção a uma cidadela mortífera, cujos guardas já haviam matado três homens. Ele, Bond, depois de uma semana ensolarada de canoagem com sua babá ao lado, ia esta noite, dentro de poucas horas, caminhar sozinho sob aquele lençol escuro de água. Era uma maluquice, algo impensável. Seu corpo se encolheu e ele cravou os dedos nas palmas da mão molhadas.
Houve uma batida na porta e Quarrel entrou. Bond se alegrou de poder levantar da cadeira, se afastar da janela e se aproximar do lugar onde Strangways apreciava seu drinque, debaixo de um abajur.
“Estão trabalhando à luz de lampiões agora, capitão. Um tanque ainda a cada cinco minutos. Calculo que terão dez horas de trabalho. Acabarão mais ou menos às cinco da manhã. Não zarparão antes das seis. É perigoso demais tentar passar pelo canal sem luz suficiente.”
Os olhos cinzentos e amistosos de Quarrel, naquele esplêndido rosto cor de mogno, fitavam Bond, aguardando ordens.
“Começarei às dez em ponto”, Bond se surpreendeu com as próprias palavras. “Das pedras à esquerda da praia. Pode nos fazer um jantar e depois levar o equipamento até o gramado? As condições estão perfeitas. Chegarei lá dentro de meia hora.” Contou nos dedos. “Dê-me os detonadores de cinco e de oito horas. E o de quinze minutos, como reserva, caso algo saia errado. Está certo?”
“Sim senhor, capitão”, respondeu Quarrel. “Pode deixar comigo.”
E saiu.
Bond olhou para a garrafa de uísque e, em seguida, se decidiu, servindo-se de meio copo em cima de três cubos de gelo. Tirou a caixa de benzedrina do bolso e botou um tablete entre os dentes.
“À sorte”, disse a Strangways, tomando um grande gole. Sentou-se apreciando o gosto áspero de seu primeiro drinque em mais de uma semana. “Agora”, perguntou, “diga exatamente o que eles fazem quando estão prontos para zarpar. Levam quanto tempo para se afastar da ilha e passar pelo recife? Se esta for a última vez, não se esqueça de que estarão levando seis homens adicionais e algumas provisões. Vamos tentar prever isso o mais exatamente possível.”
Um momento depois Bond já mergulhara em um mar de detalhes práticos, e a sombra do medo recuara até as zonas de escuridão debaixo das palmeiras.
Exatamente às dez horas, sem sentir nada além da excitação e da expectativa, a figura preta e luzidia como um morcego pulou das pedras dentro de três metros de água, sumindo debaixo do mar.
“Vá com segurança”, disse Quarrel, dirigindo-se ao ponto em que Bond desaparecera. Persignou-se. Em seguida, ele e Strangways voltaram para casa, por entre as sombras, para dormir em turnos, sobressaltados, aguardando, temerosos, o desenrolar dos acontecimentos.
19.
O VALE DAS SOMBRAS
Bond foi levado direto ao fundo pelo peso da mina naval que prendera a seu peito através de fitas, e pelo cinto de chumbo, usado para corrigir a flutuabilidade dos cilindros.
Sem hesitar um instante, cobriu imediatamente os primeiros cinquenta metros de areia do fundo em um rápido crawl, com o rosto pouco acima do leito. As longas nadadeiras quase teriam dobrado sua velocidade normal, não fosse o estorvo do peso que carregava e da leve espingarda de arpão na mão esquerda. Mas avançava depressa e em menos de um minuto parou para descansar na sombra de um grande maciço de coral.
Parou e estudou suas sensações.
Estava aquecido na roupa de mergulho, sentindo mais calor do que se estivesse nadando ao sol. Achou que seus movimentos lhe vinham com facilidade e a respiração era perfeitamente simples, desde que fosse regular e descontraída. Contemplou as bolhas denunciadoras subindo rente ao coral em um repuxo de pérolas prateadas e rezou para que as pequenas ondas as encobrissem.
No espaço desimpedido, sua visibilidade era perfeita. A luz era leitosa e macia, mas não suficientemente forte para dissolver as sombras encarneiradas das ondas na superfície, que enxadrezavam a areia do fundo. Agora, junto ao recife, não havia reflexos no leito do mar, e as sombras sob as pedras eram negras e impenetráveis.
Arriscou uma olhada rápida com a lanterna fina, e imediatamente a paisagem oculta da massa marrom dos arbustos de coral ganhou vida. Anêmonas de miolo carmesim acenavam para ele com seus tentáculos de veludo, uma colônia de ouriços eriçou seus espinhos de aço de Toledo, subitamente assustada, e uma centopeia do mar peluda estacou sua centena de passos, inquirindo-o com sua cabeça cega. Na areia da base da árvore de coral, um peixe-sapo recolheu delicadamente sua horrível cabeça verrugosa de volta à loca, e uma porção de vermes do mar, parecidos com flores, desapareceu em seus tubos gelatinosos. Um cardume de peixes-borboleta e peixes-anjo, coloridos como joias, flertava na luz. Bond distinguiu a forma chata e espiralada de uma estrela-do-mar de grandes pontas.
Bond enfiou a lanterna de volta no cinto.
Acima dele a superfície do mar era uma colcha de mercúrio. Ouvia-se um crepitar baixinho, como gordura fritando na frigideira. Adiante, o luar mergulhava no vale irregular e profundo, cujas encostas afundavam, se afastando da rota que ele devia seguir. Abandonou sua aconchegante árvore de coral e avançou lentamente. Agora não mais com a mesma facilidade. A luz era fraca e enganosa, e a floresta petrificada do recife de coral cheia de becos sem saída e caminhos tentadores, porém ilusórios.
Às vezes era obrigado a subir quase à superfície para transpor o emaranhado de algum arbusto de coral, e quando isso acontecia, aproveitava para verificar sua posição pela lua que brilhava como uma pálida descarga de foguete, no final do caminho que abrira na água. Às vezes a cintura de ampulheta de um rochedo de coral lhe fornecia abrigo, e ele podia descansar por alguns instantes, sabendo que as pequenas borbulhas do respirador ficariam escondidas pela saliência acima da superfície. Então concentrava seu olhar nos rabiscos fosforescentes da minúscula vida noturna submarina e distinguia colônias e populações inteiras às voltas com suas atividades microscópicas.
Não havia peixes grandes nas imediações, mas muitas lagostas fora de suas locas, parecendo bichos enormes e pré-históricos, graças ao efeito de ampliação da água. Seus olhos saltados e vermelhos o fitavam, e suas longas antenas de trinta centímetros pediam-lhe uma senha. Em alguns momentos recuavam nervosamente para seus abrigos, levantando areia com suas caudas potentes, agachadas nas pontas de seus oito pés peludos, à espera de o perigo passar. Certa vez os grandes filamentos de uma caravela passaram flutuando lentamente. Quase tocaram sua cabeça a partir da superfície, cinco metros acima, e ele lembrou a queimadura causada pelo contato com uma delas, que ardera por três dias durante a temporada em Manatee Bay. Se atingisse alguém na altura do coração, poderia ser mortal. Ele viu inúmeras moreias verdes e pintadas, estas últimas se movendo como grandes serpentes pretas e amarelas ao longo da areia do fundo, as verdes mostrando os dentes de dentro de algum buraco na pedra, e vários baiacus, como corujas castanhas, com seus enormes e plácidos olhos verdes. Espetou um deles com a extremidade de sua arma e ele inchou até ficar do tamanho de uma bola de futebol, tornando-se uma massa de perigosos espinhos brancos. Largas gorgônias balançavam, fazendo gestos convidativos nos rodamoinhos, refletindo o luar nos vales cinzentos, acenando fantasmagóricas, como restos das mortalhas de homens sepultados no mar. Muitas vezes Bond distinguia nas sombras movimentos pesados e misteriosos, águas revoltas e o súbito brilho de olhos grandes, que imediatamente se extinguiam. Então, virava-se, destravando o arpão, olhando fixamente o escuro. Mas não atirou em nada e nada o atacou enquanto subia e deslizava pelo recife.
Levou quinze minutos para percorrer cem metros do coral. Depois disso descansou em um pedaço redondo de coral esponjoso, abrigado por um último pedaço de recife. Alegrou-se por só ter de enfrentar uns cem metros de água cinza-claro. Ainda se sentia descansado, conservando a elação e a clareza de espírito provocadas pela benzedrina, mas o labirinto de perigos que enfrentara para atravessar o recife o tinha cansado e causado uma preocupação constante, além do temor de rasgar a roupa de borracha. Agora a floresta de corais afiados como navalhas já havia sido ultrapassada, para ceder lugar aos tubarões e às barracudas, ou talvez à súbita banana de dinamite jogada no meio da sua pequena flor de borbulhas na superfície.
Foi enquanto calculava os perigos ainda por enfrentar que o polvo agarrou-o. Em volta dos dois tornozelos.
Estava sentado com os pés na areia, quando de repente foram presos na base do cogumelo redondo de coral sobre o qual descansava. Quando compreendeu o que tinha acontecido, um tentáculo começou a serpentear pela sua perna acima, e outro, roxo na luz fraca, desceu pela nadadeira esquerda.
Teve um sobressalto de terror e repugnância, levantando-se de imediato, esfregando os pés, esforçando-se por se libertar. Mas não houve afrouxamento de um centímetro sequer, e os movimentos de Bond deram ao polvo a oportunidade de apertar e puxar os calcanhares mais ainda sob a saliência da pedra redonda. A força do bicho era prodigiosa, e Bond sentiu que perdia rapidamente o equilíbrio. Percebeu que num instante seria jogado no chão e aí, atrapalhado pela mina em seu peito e o cilindro nas costas, talvez fosse quase impossível atacar o polvo.
Bond tirou a faca do cinto e espetou entre suas pernas. Mas a saliência da rocha o atrapalhou, e ele ficou apavorado de cortar sua roupa de mergulho. De repente foi derrubado, caindo deitado na areia. De imediato seus pés começaram a ser puxados para dentro de uma larga fenda lateral debaixo da pedra. Esgaravatou a areia e tentou se dobrar para poder ter acesso à faca. Porém, a grande protuberância da mina em seu peito impediu-o de fazê-lo. À beira do pânico, lembrou-se do arpão. Antes não lhe dera importância, achando que era uma arma inútil naquela pequena distância, mas agora era a sua única chance. Permanecia na areia onde o deixara. Pegou-o e destravou-o. A mina impediu-o de fazer mira. Escorregou o cano ao longo das pernas e cutucou cada pé com a ponta do arpão para descobrir a distância entre eles. Um tentáculo agarrou imediatamente a ponta de aço e começou a puxar. A arma escorregou entre seus pés aprisionados e ele apertou o gatilho às cegas.
Uma grande nuvem de tinta viscosa e pegajosa saiu em rolos da fenda, em direção a seu rosto. Mas uma perna estava livre, em seguida a outra, e ele se aprumou e pegou o cabo do arpão de um metro, no local em que já ia desaparecendo sob a rocha. Puxou e forcejou até que, com um esgarçar de tecidos, conseguiu tirar a arma de dentro da névoa negra que envolvia o buraco. Ofegante, levantou-se e se afastou da rocha, com suor escorrendo pelo rosto, sob a máscara. Acima dele, a fieira prateada de bolhas subiu direto à superfície, e ele praguejou contra aquele animal barrigudo, ferido em seu abrigo.
Mas não podia perder tempo se preocupando com ele. Recarregou a arma e partiu com a lua sobre o seu ombro direito.
Agora avançava bem através da água cinzenta e enevoada, concentrando-se em manter o rosto apenas alguns centímetros acima da areia, com a cabeça bastante baixa para reduzir o atrito de seu corpo com a água. A certa altura, viu, de relance, uma raia-lixa do tamanho de uma mesa de pingue-pongue se desviar habilmente de seu caminho, batendo as asas pontudas e manchadas, como um pássaro, e arrastando atrás de si sua cauda farpada. Não lhe deu atenção, lembrando-se do que Quarrel dissera: que as raias jamais atacam a não ser em autodefesa. Calculou que ela provavelmente viera dos recifes externos para botar seus ovos — ou “bolsas de sereias”, como chamavam os pescadores, porque têm a forma de um travesseiro com dois fios pretos e rígidos em cada canto — no fundo abrigado de areia.
Muitos vultos de peixes grandes nadavam preguiçosamente sobre a areia enluarada, alguns do seu tamanho. Quando um deles seguiu Bond por pelo menos um minuto, ele levantou os olhos, distinguindo a barriga branca de um tubarão cinco metros acima dele, como um zepelim afunilado verde e azul. Seu nariz arredondado estava mergulhado com curiosidade na coluna de bolhas de ar. O grande rasgo em forma de foice de sua boca parecia uma cicatriz repuxada. Virou de lado e olhou para ele embaixo com um olhar duro e rosado e, em seguida, abanou sua cauda, também em forma de foice, e se afastou devagar dentro do muro de névoa cinzenta.
Bond amedrontou uma família de polvos, pesando de três quilos aos cento e cinquenta gramas de um filhote, frágil e luminoso à meia-luz, suspensa quase na vertical em um cordão declinante. Eles se endireitaram e fugiram rápido, a propulsão a jato.
Bond descansou por um instante na metade do caminho e então prosseguiu. Agora havia barracudas por ali, grandes, de até nove quilos. Pareciam tão mortíferas quanto as recordações que tinha delas. Planavam acima dele como submarinos prateados, olhando para baixo com seus olhos de tigre zangado. Sentiam curiosidade a seu respeito e a respeito das bolhas, e seguiram-no por cima e em torno dele, como uma alcateia de lobos silenciosos. Quando Bond encontrou o primeiro pedaço de coral, indício de que se aproximava da ilha, havia cerca de vinte delas se movendo em silêncio, vigilantes, saindo e entrando da parede opaca que o envolvia.
A pele de Bond se encolheu debaixo da roupa de borracha, mas ele não podia fazer nada a respeito delas e concentrou-se em sua meta.
De repente havia uma longa forma metálica suspensa acima dele na água. Atrás dela um monte de pedras quebradas que subiam de maneira íngreme.
Era a quilha do Secatur, e o coração de Bond deu um pulo no peito.
Consultou seu Rolex. Eram onze e três. Escolheu o detonador de sete horas do punhado que tirou de um bolso lateral com zíper, inserindo-o na cavidade apropriada da mina, apertando-o. Enterrou na areia o restante dos detonadores, de modo que, se fosse capturado, ninguém desconfiaria da existência da mina.
Ao nadar em direção à superfície, carregando a mina entre as mãos, com a base para cima, percebeu um rebuliço na água atrás dele. Uma barracuda passou depressa, com as mandíbulas meio abertas, quase colidindo com ele e com os olhos fixos em algo às suas costas. Mas Bond estava concentrado apenas no meio da quilha do barco, em um ponto pouco mais de um metro acima da superfície.
A mina quase o arrastou pelos últimos metros, pois seus enormes ímãs buscavam o beijo metálico com o casco. Bond precisou lutar contra eles para evitar o barulho do choque. Em seguida, tendo colocado a mina no lugar adequado e agora livre do seu peso, Bond precisou nadar com força para se contrapor à sua nova flutuabilidade e afundar de novo, afastando-se da superfície.
Foi quando se virou para nadar em direção às duas hélices, a caminho do abrigo das pedras, que conseguiu ver as coisas terríveis que ocorriam às suas costas.
O bando enorme de barracudas parecia ter enlouquecido. Giravam e mordiam como cães histéricos. Três tubarões que haviam se juntado a eles arremetiam pela água com um frenesi pouco menor. A água fervilhava com esses peixes terríveis, e Bond levou um encontrão no rosto, recebendo outros tantos por várias vezes em uma distância de poucos metros. Percebeu que a qualquer momento sua pele de borracha se rasgaria, junto com a carne debaixo dela, e então o bando viria atrás dele.
“Condições exacerbadas de comportamento grupal.” A frase do Departamento Naval pipocou na sua mente. Era exatamente nesta situação que o repelente de tubarões poderia salvá-lo. Na sua ausência, teria talvez alguns minutos a mais de vida.
Em desespero, nadou espalhafatosamente, ao longo da quilha do barco, com o arpão destravado, que agora não passava de um brinquedo diante daquele bando de peixes canibais ensandecidos.
Alcançou as duas grandes hélices de cobre, agarrando-se a uma delas, ofegante, com os lábios formando um esgar de medo e os olhos arregalados, ao se dar conta do frenesi no mar fervilhante a seu redor.
Viu de repente que as bocas dos peixes que arremetiam furiosos estavam meio abertas e que eles mergulhavam e saíam de uma nuvem marrom, que se espalhava desde a superfície. Perto dele, uma barracuda se deteve por um instante, com algo marrom e reluzente nas suas mandíbulas. Engoliu de uma bocada, depois virou e voltou para a confusão.
Ao mesmo tempo, Bond notou que escurecia. Olhou para cima e percebeu, com uma nova compreensão, que a superfície de mercúrio do mar tornara-se vermelha, um horrível carmesim brilhante.
Fiapos dessa substância chegaram flutuando até seu alcance. Puxou-os com a extremidade de sua arma. Segurou-os contra sua máscara.
Não havia mais dúvida.
Alguém lá em cima atirava sangue e vísceras na superfície do mar.
20.
A CAVERNA DE MORGAN, O SANGUINÁRIO
Bond compreendeu de imediato o motivo de todas aquelas barracudas e tubarões estarem rondando a ilha, de como eram mantidos naquele frenesi voraz por esse banquete noturno, por que os três homens, desafiando todas as explicações plausíveis, haviam sido devolvidos à praia, meio devorados pelos peixes.
Mr. Big tinha apenas posto as forças do mar para trabalhar em seu proveito, utilizando-as para sua proteção. Era um invento típico — imaginativo, criativo, tecnicamente à prova de erro e fácil de pôr em prática.
No exato momento em que Bond compreendera isso tudo, algo lhe deu um terrível golpe no ombro e uma barracuda de dez quilos recuou, com carne e borracha preta entre as mandíbulas. Bond não sentiu dor, ao largar a hélice de bronze e nadar desesperadamente até as pedras, só uma náusea terrível na boca do estômago, ao pensar que um pedaço seu se encontrava entre aquelas centenas de dentes afiados como uma navalha. A água começou a vazar entre a borracha aderente e a sua pele. Não demoraria até chegar a seu pescoço e penetrar na máscara.
Já ia desistir e subir disparado pelos sete metros até a tona, quando viu uma larga fissura nas pedras diante dele. Ao lado havia um grande pedregulho tombado de lado e, de algum modo, ele conseguiu se esconder atrás dele. Virou-se, naquele abrigo precário, no momento exato em que a mesma barracuda investia outra vez, com o maxilar superior em ângulo reto em relação ao inferior, a boca escancarada pronta para o bote terrível.
Bond atirou quase às cegas com o arpão. As tiras de borracha dispararam cano abaixo e o arpão dentado pegou o grande peixe no centro da mandíbula superior erguida, atravessando-a e penetrando até a metade do cabo, com a linha ainda livre.
A barracuda estacou a um metro da barriga de Bond. Tentou fechar as mandíbulas e, em seguida, deu uma enorme sacudida na longa cabeça de réptil. Depois se afastou em disparada, ziguezagueando loucamente, arrancando da mão de Bond o arpão e a linha, que arrastou atrás de si. Bond sabia que, antes de ela percorrer cem metros, os demais peixes a atacariam e a fariam em pedaços.
Deu graças a Deus por essa manobra diversiva. Seu ombro estava agora envolto por uma nuvem de sangue. Os outros peixes sentiriam o cheiro em questão de segundos. Contornou o pedregulho imaginando se arranjaria um meio de se abrigar debaixo do atracadouro, escondendo-se de algum modo acima da superfície da água, até pensar em outro plano.
Então viu a caverna que o pedregulho escondera.
Era de fato quase uma porta na base da ilha. Se Bond não estivesse nadando para salvar sua vida, poderia ter entrado nela andando. Mas, naquelas circunstâncias, mergulhou direto na abertura e só parou quando poucos metros o separavam de sua entrada bruxuleante.
Então ficou de pé na areia macia e acendeu a lanterna. Um tubarão talvez pudesse vir atrás dele, mas no espaço confinado seria quase impossível que o mordesse com sua boca situada muito embaixo. Com certeza não viria precipitadamente, porque até o tubarão tem medo de arriscar a pele entre as pedras, e Bond teria ampla oportunidade de procurar atingir seus olhos com a faca.
Bond iluminou o teto e os lados da caverna com a lanterna. Certamente fora modelada ou acabada pela mão do homem. Bond calculou que deveria ter sido escavada de dentro para fora, a partir de algum lugar no centro da ilha.
“Faltam pelo menos vinte metros para acabar, gente”, Morgan, o Sanguinário, deve ter dito aos feitores de escravos. E então as picaretas devem ter rompido de repente o resto da parede que ainda separava a caverna do mar, e uma confusão de pernas, braços e bocas gritando, sufocadas para sempre pela água, teriam sido arremessadas para trás contra a pedra, juntando-se aos cadáveres das demais testemunhas.
O grande pedregulho na entrada deve ter sido posicionado para vedar a saída para o mar. O pescador da baía dos Tubarões que desapareceu de repente, seis meses atrás, deve tê-la descoberto um dia. Fora afastada de sua posição original por alguma tempestade ou tsunami consecutivo a um tufão. Então descobrira o tesouro e percebera que precisava de ajuda para dispor dele. Um branco o enganaria. Melhor procurar o grande gângster negro no Harlem e fazer o melhor acordo que pudesse. O ouro pertencia aos negros que haviam morrido para escondê-lo. Deveria ser devolvido aos negros.
Ali de pé, balançando na correnteza do túnel, Bond imaginou mais um barril cimentado mergulhando no lodo do rio Harlem.
Foi então que ouviu os tambores.
Lá fora, entre os peixes grandes, ouvira uma leve trovoada na água, que aumentara quando entrou na caverna. Mas julgara que eram apenas as ondas batendo na base da ilha e, de qualquer modo, tinha outras coisas em mente.
Mas agora podia distinguir um ritmo definido, e o som ribombava e crescia à sua volta, com um rufo abafado, como se o próprio Bond estivesse preso dentro de um vasto atabaque. A água parecia tremular por causa desse barulho. Ele imaginou o duplo objetivo do batuque. Era um grande chamado aos peixes, usado quando havia invasores, para atrair e excitá-los ainda mais. Quarrel lhe contara como os pescadores noturnos costumam bater nos lados da canoa com o remo para acordar e atrair os peixes. Aquilo deveria ser algo parecido. Ao mesmo tempo seria um aviso macabro do vodu para o pessoal da costa, duplamente eficaz quando algum cadáver era devolvido pelo mar no dia seguinte.
Mais um dos requintes de Mr. Big, pensou Bond. O batuque significava que ele fora descoberto. O que pensariam Strangways e Quarrel ao ouvi-lo? Seriam simplesmente obrigados a aguentar firme, sentados. Bond já havia percebido que os tambores eram algum truque e fizera os dois prometer que não iriam interferir, a não ser que o Secatur escapasse incólume. Pois isso significaria que todos os planos de Bond haviam fracassado. Ele contara a Strangways onde o ouro estava escondido, e neste caso o barco teria de ser interceptado em alto-mar.
Agora o inimigo fora alertado, mas não sabia quem era o invasor, nem se ele ainda estava vivo. Ele precisava prosseguir, nem que fosse para impedir por todos os meios que Solitaire embarcasse no iate condenado.
Bond consultou o relógio. Era meia-noite e meia. Para ele, poderia ter se passado uma semana desde que iniciara sua incursão pelo mar dos perigos.
Apalpou a Beretta sob a roupa de borracha, pensando se já não estaria avariada pela água que entrara pelo rasgo feito pelos dentes da barracuda.
Então, com o troar dos atabaques se aproximando cada vez mais de um crescendo, avançou na caverna, projetando adiante um pequeno feixe de luz com a lanterna.
Avançara cerca de dez metros quando viu um leve brilho na água à sua frente. Apagou a lanterna e foi se aproximando com cautela. O piso arenoso da caverna começou a se inclinar para cima, e a cada metro a luz se tornava mais forte. Agora podia ver dezenas de pequenos peixes que brincavam à sua volta e, mais adiante, a água estava cheia deles, atraídos pela luz da caverna. Caranguejos olhavam atentos de pequenas frestas nas pedras e um polvo novinho se achatou contra o teto, tomando a forma de uma estrela fosforescente.
Em seguida, pôde divisar o final da caverna e uma larga piscina brilhante, além, cujo fundo arenoso era branco como o dia. O roncar dos atabaques aumentava. Parou na sombra da entrada e percebeu que a superfície ficava apenas poucos centímetros acima e que havia lâmpadas sobre a piscina.
Bond estava em um dilema. Mais um passo e ficaria em plena vista de qualquer um que estivesse olhando para a piscina. Ao hesitar, argumentando consigo mesmo, ficou horrorizado ao ver uma fina nuvem de sangue de seu ombro se espalhando pela entrada. Esquecera o ferimento no ombro, que agora começara a latejar, e quando moveu o braço sentiu a ferroada de uma dor intensa em toda sua extensão. Havia também o fino jato de bolhas dos cilindros, mas ele esperava que elas fossem flutuando lentamente para arrebentar na beirinha da entrada.
No exato momento em que recuou alguns centímetros, seu futuro já estava selado.
Sobre sua cabeça percebeu apenas uma enorme pancada na água, e depois dois negros, nus a não ser pelas máscaras de mergulho nos rostos, com longas facas seguras como lanças em suas mãos esquerdas, investiram contra ele.
Antes que sua mão pudesse pegar a faca no cinto, já haviam agarrado seus dois braços e o puxavam para a superfície.
Desesperado, Bond teve de deixar que o tirassem à força da piscina e o jogassem na areia lisa. Depois de ser obrigado a se levantar, abriram os zíperes de seu traje de mergulho. Seu capuz foi retirado da cabeça, o coldre de seu ombro, e de repente ele se achou de pé entre os frangalhos da roupa preta de mergulho, como uma serpente trocando a pele, nu, exceto pelo pequeno calção de banho. O sangue escorria do buraco irregular no ombro esquerdo.
Quando tiraram seu capuz, Bond quase ensurdeceu com a batida e o rufar dos atabaques. O barulho penetrava nele e mexia com tudo em volta. O ritmo rápido e sincopado galopava e latejava nas suas veias. Parecia capaz de acordar toda a Jamaica. Bond fez uma careta e seus sentidos procuraram resistir aos golpes daquela tempestade sonora. Em seguida, os guardas o fizeram se virar e se deparar com uma cena tão grotesca que o som dos atabaques recuou para o fundo e toda sua consciência se concentrou no que via.
No primeiro plano, em uma mesa de jogo com tampo de veludo verde, apinhada de papéis, e sentado em uma cadeira de dobrar, estava Mr. Big, com uma caneta na mão, olhando-o sem curiosidade. Um Mr. Big em um terno castanho-amarelado, bem cortado, de tropical, com camisa branca e gravata de tricô de seda preta. O queixo largo descansava na sua mão esquerda e ele levantou os olhos para Bond como se tivesse sido incomodado, em seu escritório, por alguém de sua equipe pedindo um aumento de salário. Parecia polido, porém levemente entediado.
A alguns passos dele, sinistro e absurdo, o espantalho da efígie do Baron Samedi, ereto sobre uma pedra, observava Bond debaixo de seu chapéu-coco.
Mr. Big tirou a mão do queixo e seus grandes olhos dourados estudaram Bond da cabeça aos pés.
“Bom dia, senhor James Bond”, disse finalmente, projetando a voz inexpressiva contra o barulho já decrescente dos tambores. “A mosca levou mesmo muito tempo para chegar à aranha, ou talvez devesse dizer ‘o lambari à baleia’. Você deixou um belo rastro de bolhas no recife.”
Recostou-se na cadeira e se calou. Os atabaques batiam e rufavam mais baixo.
Então fora a luta contra o polvo que o traíra. A mente de Bond registrou o fato automaticamente, enquanto olhava para além do homem na mesa.
Estava em um salão de pedra grande como uma igreja. Metade do piso era ocupada pela enorme piscina clara e branca pela qual chegara, e que se transformava em verde-mar e depois azul perto do buraco de entrada submarino. Em seguida, havia a faixa estreita de areia em que ele pisava, e o resto do piso era de pedra lisa e plana, marcado por algumas estalagmites cinzentas e brancas.
A alguma distância atrás de Mr. Big uma escadaria íngreme levava a um teto abobadado, do qual pendiam estalactites curtas de calcário. De seus brancos mamilos a água gotejava intermitentemente na piscina, ou sobre as jovens estalagmites que se erguiam do chão, a seu encontro.
Havia uma dúzia de luzes fosforescentes muito claras fixadas alto nas paredes, criando reflexos dourados nos torsos nus de um grupo de negros em pé, à sua esquerda, no piso de pedra, observando Bond de olhos arregalados, mostrando os dentes em sorrisos cruéis e satisfeitos.
Em volta de seus pés pretos e rosados, entre destroços de madeira quebrada e anéis de ferro enferrujados, tiras mofadas de couro e lona decomposta, havia um mar fulgurante de moedas de ouro — metros, cascatas de moedas redondas de ouro, do qual emergiam as pernas pretas, como se tivessem sido detidas no meio de um passeio entre as chamas.
Ao lado deles, empilhadas fileira após fileira, ficavam bandejas rasas de madeira. Algumas estavam no chão, parcialmente cheias de moedas de ouro, e embaixo da escada, um único negro parara na subida, segurando uma delas repleta de moedas de ouro em quatro fileiras cilíndricas, estendida como se estivesse sendo oferecida à venda.
Mais à esquerda, em um canto do salão, havia dois negros próximos a um caldeirão de ferro arredondado, suspenso acima de três maçaricos sibilantes, até que seu fundo ficasse vermelho incandescente. Seguravam escumadeiras de ferro, lambuzadas de ouro até metade de seus cabos. Ao lado deles havia uma miscelânea de peças de ouro, talheres, objetos de altar, copos, cruzes e uma pilha de lingotes de ouro de diversos tamanhos. Ao longo da parede viam-se, próximas a eles, fileiras de bandejas para esfriar o metal, cujas superfícies segmentadas irradiavam um brilho dourado, e uma bandeja vazia descansava no piso perto do caldeirão, junto com uma longa concha manchada de ouro e o cabo envolto em pano.
Acocorado no chão, não muito distante de Mr. Big, um único negro segurava uma faca em uma das mãos, e uma taça ornamentada de brilhantes na outra. A seu lado, em um prato de lata, uma pilha de joias cintilava, embaçadas, vermelhas, azuis e verdes, sob o brilho das lâmpadas fluorescentes.
Estava quente e abafado no grande salão de pedra e, no entanto, Bond tiritava ao abarcar toda essa esplêndida cena com os olhos. O brilho das lâmpadas violeta esbranquiçadas, o bronzeado tremeluzente dos corpos suados, o brilho forte do ouro, o arco-íris do recipiente com os brilhantes, a água marinha em tom leitoso da piscina. Ele tremia diante da beleza daquilo tudo, diante daquela dança petrificada da grande arca do tesouro de Morgan, o Sanguinário.
Seus olhos voltaram para o quadrado de veludo verde e para a grande face de zumbi, olhando aquele rosto e seus olhos amarelos com respeito, quase com reverência.
“Pare os tambores”, disse Mr. Big, para ninguém em particular. O batuque se reduzira a um quase sussurro, a um murmúrio cujo acento recaía sobre o ritmo do coração nas veias. Um dos negros deu dois passos, acompanhados de barulhos metálicos entre as moedas, abaixando-se. Um aparelho de som portátil estava no chão, com um potente amplificador ao lado, contra a parede de pedra. Depois de um clique os tambores pararam. O negro fechou a tampa do aparelho e voltou a seu lugar.
“Andem com o trabalho”, ordenou Mr. Big. E de repente todas as figuras começaram a se mover, como se alguém tivesse posto uma moeda em um caça-níquel. Mexeram o caldeirão, pegaram o ouro e o puseram nas caixas, o sujeito procurava retirar a pedraria da taça, e o negro com a bandeja de ouro prosseguiu subindo a escada.
Bond continuava de pé, pingando suor e sangue.
Big Man descansou a caneta e se levantou devagar. Afastou-se da mesa.
“Assuma meu lugar”, ordenou a um dos homens que guardavam Bond, e o sujeito nu rodeou a mesa, sentou na cadeira de Mr. Big e pegou a caneta.
“Traga-o aqui para cima.” Mr. Big foi até os degraus na rocha e começou a subi-los lentamente.
Bond sentiu uma picada do lado. Acabou de despir os restos de sua segunda pele preta e seguiu a figura que subia devagar.
Ninguém levantou os olhos do trabalho. Ninguém descuidava do serviço quando Mr. Big saía. Ninguém seria capaz de enfiar um brilhante ou uma moeda na boca.
O Baron Samedi assumira a chefia.
Apenas seu zumbi deixara a caverna.
21.
“BOA NOITE A AMBOS”
Subiram vagarosamente por cerca de treze metros, passando por uma porta aberta perto do teto, e pararam em um grande patamar na pedra. Ali um único negro, à luz de um lampião de acetileno, arrumava bandejas cheias de moedas de ouro no meio dos tanques de peixe, muitos já se encontrando empilhados contra a parede.
Enquanto esperavam, dois negros desceram a escada, vindos da superfície, pegaram um tanque pronto e voltaram para cima com ele.
Bond achava que eles enchiam os tanques com areia, plantas aquáticas e peixes em algum lugar no alto, e depois os desciam através da corrente humana ao longo da face do rochedo.
Notou que alguns dos tanques à espera tinham lingotes de ouro fixados no centro, e outros, pedrarias espalhadas como cascalho. Então refez os cálculos sobre o tesouro, quadruplicando seu valor até cerca de quatro milhões de libras esterlinas.
Mr. Big ficou um tempo com o olhar no chão de pedra. Respirava fundo, mas de maneira controlada. Em seguida, subiram.
Vinte degraus acima havia outro patamar, menor, com uma porta de saída. Nela havia corrente e cadeado novos. A própria porta era feita de grades de ferro marrons, achatadas, corroídas pela ferrugem.
Mr. Big parou de novo e ficaram lado a lado na pequena plataforma de pedra.
Por um momento Bond pensou em fugir, mas, como se tivesse lido a sua mente, o guarda negro cercou-o contra a parede, longe de Big Man. E Bond sabia que sua maior obrigação era se manter vivo e chegar a Solitaire, e arranjar um jeito de afastá-la do barco condenado pela mina, em que o ácido roía lentamente o cobre do detonador.
Do alto vinha uma forte correnteza pelo vão da escada, e Bond sentiu que seu suor secava. Pôs a mão direita no ferimento do ombro, sem se assustar com a picada no flanco feita pela faca do guarda. O sangue já secara em crostas e a maior parte do braço doía tremendamente.
Mr. Big falou:
“Este vento, sr. Bond”, apontou para o vão, “é conhecido na Jamaica como ‘vento Papa-Defunto’”.
Bond sacudiu o ombro direito, poupando o fôlego.
Mr. Big virou para a porta de ferro, tirou a chave do bolso e abriu-a. Passou e foi seguido por Bond e seu guarda.
Era um cômodo que consistia em uma estreita passagem, com grilhões enferrujados presos embaixo na parede, a menos de dez metros de intervalo.
Na outra extremidade, onde uma lamparina pendia do teto de pedra, uma figura imóvel estava deitada no chão, embrulhada em um cobertor. Havia mais uma lamparina na porta, em cima de suas cabeças, mas, exceto isso, apenas o cheiro de pedra úmida, torturas antigas e morte.
“Solitaire”, falou Bond, baixinho.
O coração de Bond deu um salto e ele quis se adiantar. Imediatamente uma mão enorme agarrou seu braço.
“Pare aí, seu branco”, vociferou o guarda, torcendo o punho dele entre as espáduas, levantando-o ainda mais, até que Bond deu um chute com o calcanhar esquerdo. Acertou na canela do homem, mas doeu mais em Bond do que no guarda.
Mr. Big se virou. Tinha uma pequena arma quase encoberta pela mão enorme.
“Solte-o”, ordenou em voz baixa. “Se quiser mais um umbigo, senhor Bond, é só dizer. Tenho seis aqui nesta arma.”
Bond passou esbarrando em Big Man. Solitaire se levantara, vindo em sua direção. Quando viu seu rosto, desandou a correr, estendendo as mãos.
“James”, soluçou. “James.”
Ela quase caiu a seus pés. Suas mãos se agarraram.
“Arranje corda”, ordenou Mr. Big no vão da porta.
“Está tudo bem, Solitaire”, disse Bond, sabendo que não estava. “Está tudo bem. Estou aqui agora.”
Ele pegou-a, mantendo-a a distância de seu braço estendido. O braço esquerdo doeu. Ela estava pálida e desarrumada, com um machucado na testa e olheiras. No seu rosto encardido as lágrimas escorriam deixando marcas na pele lívida. Estava sem maquiagem. Trajava um terninho branco sujo e sandálias. Parecia magra.
“O que esse desgraçado anda fazendo com você?”, perguntou Bond. Apertou-a de repente contra si. Ela se agarrou a ele, com o rosto enterrado em seu pescoço.
Em seguida, se afastou e olhou para a mão dele.
“Você está sangrando”, disse. “O que é?”
Virou-o pela metade e viu o sangue preto no seu ombro e pelo braço abaixo.
“Ah, meu querido, o que foi?”
Começou a chorar de novo, desamparada, desesperada, percebendo subitamente que ambos estavam perdidos.
“Amarre-os”, ordenou Big Man, da porta. “Aqui, debaixo da luz. Preciso dizer-lhes umas coisas.”
O negro estava vindo e Bond se virou. Valeria a pena arriscar? O negro só tinha a corda na mão. Mas Big Man deu um passo para o lado, vigiando-o, segurando a arma displicentemente, meio apontada para o chão.
“Não, senhor Bond”, avisou apenas.
Bond lançou um olhar para o negro enorme e pensou em Solitaire e no seu próprio ombro ferido.
O negro chegou e Bond deixou que amarrasse seus braços atrás das costas. Os nós foram bem dados. Não havia folga. Doíam.
Bond sorriu para Solitaire. Piscou um olho pela metade. Não passava de uma bravata, mas percebeu uma vivacidade esperançosa renascer em meio a suas lágrimas.
O negro levou-o de volta à porta.
“Ali”, disse Big Man, fazendo um gesto para um dos grilhões.
O negro derrubou Bond com uma rasteira repentina. Este caiu em cima do ombro ferido. O negro puxou-o pela corda até o grilhão, testou-o, passou a corda por ele e então amarrou Bond pelos tornozelos, muito bem amarrado. Enfiara sua faca em uma fresta na pedra. Tirou-a, cortou a corda e voltou para onde Solitaire estava.
Bond ficou sentado no chão de pedra, com as pernas esticadas para a frente, com os braços suspensos, amarrados por trás. O sangue pingava do ferimento reaberto. Apenas os resíduos da benzedrina no seu corpo o impediam de desmaiar.
Solitaire foi amarrada e colocada quase defronte a ele. Um metro separava os pés de ambos.
Com a tarefa concluída, Big Man consultou o relógio.
“Vá”, ordenou ao guarda. Fechou a porta de ferro depois que o sujeito se foi, ficando encostado nela.
Bond e a garota se entreolharam e Big Man contemplou os dois no chão.
Depois de um de seus longos silêncios, dirigiu-se a Bond. Este levantou os olhos para ele. A enorme bola de futebol cinzenta que era sua cabeça parecia, sob o lampião, a cabeça de um elemental, de algum espectro maligno do centro da terra, pairando no ar, com os olhos dourados ardendo firmes, e o grande corpo na sombra. Bond precisou lembrar-se de que já ouvira o coração dele batendo no peito, já o ouvira respirar, já vira suor na pele cinzenta. Não passava de um homem, da mesma espécie dele, um homem grande, com uma mente brilhante, mas ainda assim um homem que caminhava e defecava, um homem mortal, com uma doença no coração.
A boca larga e borrachuda se abriu, os lábios achatados, levemente virados, recuaram dos grandes dentes brancos.
“Você é o melhor de todos os que foram mandados para me combater”, disse Mr. Big. Sua voz baixa e insossa era pensativa, calculada. “E conseguiu matar quatro de meus ajudantes. Meus seguidores acham isso inacreditável. Já é mais do que tempo de liquidarmos nossas contas. O que aconteceu ao americano não bastou. A traição desta garota”, ele ainda olhava para Bond, “que tirei da sarjeta e estava pronto a colocar na minha mão direita, também questionou a minha infalibilidade. Eu estava imaginando como ela deveria morrer, quando a providência, ou o Baron Samedi, como meus seguidores gostam de acreditar, também trouxe você para o altar de cabeça baixa, pronto para o machado”.
A boca parou, com os lábios entreabertos. Bond viu os dentes se juntarem para formar a palavra seguinte.
“De modo que é conveniente que os dois morram juntos. Isso acontecerá de um modo adequado”, Big Man consultou seu relógio, “dentro de duas horas e meia. Às seis horas, alguns minutos a mais ou a menos”, acrescentou.
“Alguns minutos a mais”, comentou Bond. “Gosto da vida.”
“Na história de emancipação dos negros”, continuou Mr. Big em tom de conversa despreocupada, “já surgiram grandes atletas, grandes músicos, grandes escritores, grandes médicos e cientistas. No seu devido tempo, como aconteceu na história do desenvolvimento de outras raças, hão de surgir negros famosos em todos os demais setores da vida”. Fez uma pausa. “Infelizmente para você, senhor Bond, e para esta garota, vocês encontraram o primeiro dos grandes criminosos negros. Uso esta palavra vulgar, senhor Bond, porque seria a mesma que você, senhor Bond, como uma espécie de policial, usaria. Mas prefiro me considerar uma pessoa que possui a habilidade, as capacidades mentais e nervosas para criar as próprias leis e agir segundo elas, em vez de aceitar as leis que convêm ao mínimo denominador comum das pessoas. Sem dúvida você já leu Os instintos do rebanho na paz e na guerra, de Trotter. Pois bem, sou lobo por índole e opção, e vivo segundo as leis do lobo. É natural que os carneiros descrevam este indivíduo como ‘criminoso’.
“O fato, senhor Bond”, prosseguiu Big Man, depois de uma pausa, “de que sobrevivo e, na verdade, gozo de um sucesso ilimitado, embora seja eu sozinho contra milhões de carneiros, se deve às técnicas modernas que lhe descrevi por ocasião de nossa última conversa, e a uma infinita capacidade de me esforçar. Não os esforços tediosos, vulgares, e sim os artísticos e sutis. E eu noto, senhor Bond, que não é difícil enganar os carneiros, não importa quantos, com muita dedicação ao trabalho e, naturalmente, se formos um lobo extremamente bem dotado.
“Deixe-me ilustrar, por exemplo, como funciona a minha mente. Estudemos o método pelo qual decidi que ambos morrerão. É uma variação moderna do método usado na época do meu generoso patrono, sir Henry Morgan. Naquele tempo, era conhecido como ‘arrastamento pela quilha’.”
“Por favor, continue”, disse Bond, sem olhar para Solitaire.
“Temos uma paravana a bordo do iate”, prosseguiu Mr. Big, como se fosse um cirurgião descrevendo uma operação delicada para um grupo de estudantes, “que usamos para rebocar tubarões e outros peixes de grande porte. Esta paravana é, como sabem, um aparelho com a forma de um torpedo, que boia puxado por um cabo, distante do barco. Pode ser usada para sustentar a extremidade de uma rede, rebocando-a através da água, com o barco em movimento. Também pode ser equipada com um instrumento de corte, para cortar os cabos de amarração das minas em época de guerra.
“Pretendo”, continuou Mr. Big, em um tom de voz discursivo e natural, “amarrá-los juntos à extremidade de um cabo preso a essa paravana e rebocá-los pelo mar até que sejam devorados pelos tubarões”.
Fez uma pausa, enquanto seu olhar passava de um para outro. Solitaire mirava de olhos arregalados para Bond, que se esforçava em pensar, com o olhar ausente, perscrutando o futuro. Sentiu que deveria dizer alguma coisa.
“Você é um homem grande”, afirmou, “e um dia morrerá de uma morte igualmente grande e terrível. Se nos matar, essa morte virá em breve. Já a providenciei. Está enlouquecendo a olhos vistos, senão perceberia a repercussão que nosso assassinato terá sobre sua vida”.
Enquanto falava, a mente de Bond funcionava rápido, contando horas e minutos, sabendo que a própria morte de Big Man chegaria devagar, com o ácido corroendo o detonador seguindo o ponteiro dos minutos, rumo à hora do encontro final com seu destino. Mas estariam ele e Solitaire mortos, antes que soasse essa hora? Minutos, talvez segundos, fariam a diferença. O suor escorria do seu rosto para o peito. Sorriu para Solitaire. Ela lhe deu um olhar ausente, sem enxergá-lo.
De repente deu um grito agoniado que sacudiu os nervos de Bond.
“Não sei”, gritou. “Não consigo ver. Está tão perto, tão próximo. Há muitas mortes. Mas...”
“Solitaire”, gritou Bond, apavorado com a possibilidade de que as coisas estranhas que ela previsse, quaisquer que fossem, pudessem servir de aviso a Big Man. “Controle-se.”
Havia um toque de raiva em sua voz.
Os olhos dela clarearam, olhando mudos para ele, sem compreender.
Big Man falou de novo.
“Não estou ficando louco, senhor Bond”, avisou calmamente, “e nenhuma providência sua me afetará. Vocês morrerão além do recife e não restará nenhum indício. Rebocarei os restos de seus corpos até que não sobre nada. Isso faz parte da sagacidade dos meus planos. Vocês também devem saber que o tubarão e a barracuda desempenham um papel no voduísmo. Eles receberão seus sacrifícios e o Baron Samedi será apaziguado. Meus seguidores ficarão satisfeitos. Da mesma forma, desejo continuar minhas experiências com os peixes carnívoros. Acredito que só atacam quando há sangue na água. Por isso seus corpos serão rebocados desde a ilha. A paravana os rebocará sobre o recife. Acho que não serão atacados antes da barra. O sangue e as vísceras que são jogados todas as noites nessas águas já terão sido dispersos ou consumidos. Mas quando seus corpos forem rebocados por cima do recife, infelizmente sangrarão, ficarão em carne viva. Então veremos se minhas teorias estão corretas.”
Big Man estendeu a mão para trás e abriu a porta.
“Eu os deixarei agora”, falou, “para que reflitam sobre a excelência do método que criei para matá-los juntos. Não restará indício algum. A superstição ficará satisfeita. Meus seguidores também. Os corpos serão utilizados para a pesquisa científica.
“Isso é o que eu chamo, senhor James Bond, de uma capacidade infinita de refinamento artístico.”
Parou no vão da porta e olhou para os dois.
“Uma noite breve, porém boa. É o que desejo a ambos.”
22.
TERROR NO MAR
O dia ainda não clareara quando os guardas vieram buscá-los. As cordas que prendiam suas pernas foram cortadas e, com os braços ainda atados, foram levados pelos últimos degraus de pedra que faltavam para a superfície.
Ficaram entre algumas árvores esparsas e Bond aspirou o ar frio da manhã. Olhou através das árvores na direção do oriente e viu que as estrelas estavam mais pálidas e havia uma luminosidade no horizonte que anunciava o raiar da aurora. O cicio noturno dos grilos quase terminara e, em algum canto da ilha, um tordo ensaiava as primeiras notas do dia.
Bond calculou que deviam ser mais ou menos cinco e meia.
Ficaram ali vários minutos. Os negros passavam próximos a eles, carregando embrulhos e malas de fibra de palmeira, entre cochichos cautelosos. As portas do punhado de palhoças entre as árvores estavam escancaradas. Os homens andavam em fila até a beira do penhasco, à direita de Bond e Solitaire, desaparecendo por ali. Não voltavam. Era uma evacuação. Toda a guarnição da ilha levantava acampamento.
Bond esfregou o ombro desnudo contra Solitaire e ela se aninhou contra ele. Fazia frio depois da masmorra abafada, e Bond tiritava. Mas era melhor estar em movimento do que prolongar o suspense lá de baixo.
Ambos sabiam o que precisava ser feito, a natureza do risco.
Depois que Big Man os deixara, Bond não perdera tempo. Falando baixinho, contara à garota sobre a mina magnética presa ao costado do barco, prevista para explodir alguns minutos depois das seis horas, e explicara os fatores decisivos para saber quem morreria ou não naquela manhã.
Primeiro, apostara na mania de exatidão e de eficiência de Mr. Big. O Secatur precisava zarpar às seis horas em ponto. Portanto, não deveria haver nenhuma nuvem, se não a visibilidade na meia-luz do amanhecer não seria suficiente para assegurar a passagem do barco através do recife, e Mr. Big adiaria a partida. Se Bond e Solitaire estivessem no atracadouro ao lado do iate, morreriam junto com Mr. Big.
Supondo que o barco zarpasse na hora exata, a que distância e de que lado dele seriam rebocados? Teria de ser a bombordo para que a paravana ficasse desimpedida na hora de deixar a ilha. Bond supôs que o cabo de reboque da paravana teria cinquenta metros de comprimento, e que eles seriam rebocados vinte ou trinta metros atrás da paravana.
Se ele estivesse certo, seriam arrastados por cima do recife externo cerca de cinquenta metros depois de o Secatur ter rompido pelo canal. Provavelmente se aproximaria da passagem nos recifes a cerca de três nós e, em seguida, pegaria velocidade até chegar a dez, ou até mesmo a vinte. De início seus corpos seriam rebocados da ilha em um lento arco, virando e se retorcendo na ponta da linha de reboque. Logo depois a paravana se endireitaria e, mesmo após o barco ter transposto o recife, eles ainda não teriam chegado a ele. Portanto, a paravana passaria pelo recife quando o barco já o tivesse ultrapassado em quarenta metros, e depois eles a seguiriam a alguns metros a mais de distância.
Bond estremeceu ao pensar nos ferimentos que seus corpos sofreriam se fossem arrastados, a qualquer velocidade, sobre os dez metros de árvores e recifes de coral, afiados como uma navalha. Ficariam com as costas e as pernas esfoladas.
Depois de atravessarem o recife, não passariam de uma isca sanguinolenta, e seria apenas uma questão de minutos até que o primeiro tubarão ou barracuda avançasse neles.
E Mr. Big, sentado confortavelmente no deque da popa, assistiria à carnificina, talvez de binóculos, marcando os segundos e os minutos enquanto a isca viva ia diminuindo de tamanho, até que finalmente os peixes só abocanhassem o cabo ensanguentado.
Até que não restasse coisa alguma.
Então a paravana seria içada a bordo e o iate cortaria o mar graciosamente rumo à longínqua Florida Keys, a Cape Sable e ao atracadouro ensolarado no porto de St. Petersburg.
E se a mina explodisse quando eles ainda estivessem na água, a cinquenta metros do barco? Qual seria o efeito do deslocamento de ar em seus corpos? Talvez não fosse fatal. O casco do iate absorveria a maior parte. O recife talvez os protegesse.
Bond só podia adivinhar e manter a esperança.
Sobretudo, precisavam continuar vivos até o último segundo possível. Precisavam continuar respirando enquanto fossem arrastados, como um pacote vivo, pelo mar. Muita coisa dependia da maneira como eles os amarrariam um ao outro. Mr. Big haveria de querer que continuassem vivos. Não lhe interessaria uma isca morta.
Se ainda estivessem vivos quando a primeira barbatana de tubarão surgisse à tona atrás deles, Bond decidira afogar friamente Solitaire. Afogá-la torcendo seu corpo debaixo do seu e segurando-o ali. Em seguida, tentaria se afogar torcendo o corpo morto dela de volta para que o seu ficasse por baixo.
Cada volteio de seu pensamento esbarrava em um pesadelo, no horror nauseante de cada detalhe medonho da tortura monstruosa que aquele homem havia preparado para eles. Mas Bond sabia que precisava conservar o sangue-frio e a resolução absoluta de lutar pelas suas vidas até o fim. Havia ao menos uma sensação calorosa na ideia de que Mr. Big e a maioria de seus homens também morreriam. E um lampejo de esperança de que ele e Solitaire talvez sobrevivessem. A não ser que a mina falhasse, o inimigo não poderia contar com nenhuma esperança.
Tudo isso e uma centena de outros pormenores e planos passaram pela cabeça de Bond na última hora antes de serem levados pelo vão da escada até a superfície. Com Solitaire compartilhou todas as suas esperanças. Nenhum dos seus temores.
Ela ficara deitada à sua frente, com seus olhos azuis e cansados fixos nele, obedientes, confiantes, bebendo seu rosto e suas palavras, dóceis, amorosos.
“Não se preocupe comigo, querido”, dissera, quando os homens vieram buscá-los. “Sinto-me feliz de estar de novo com você. Meu coração está cheio de felicidade. De algum modo, não estou com medo, apesar de pressentir uma grande matança. Você me ama um pouquinho?”
“Sim”, respondeu Bond. “E vamos ainda aproveitar o nosso amor.”
“Vambora”, disse um dos homens.
E agora, no alto do morro, clareava. Bond ouviu os dois grandes motores a diesel tossirem e roncarem embaixo do penhasco. Uma leve brisa soprava a barlavento, mas a sota-vento, onde estava o barco, a baía era um espelho de bronze.
Mr. Big apareceu no alto da escadaria, com uma pasta de executivo na mão. Ficou por um momento olhando em volta, recuperando o fôlego. Não prestou nenhuma atenção a Bond ou Solitaire, nem aos dois guardas ao lado deles, de revólveres na mão.
Olhou para o céu e de repente clamou, em um tom de voz nítido, na direção da orla do sol.
“Obrigado, sir Henry Morgan. Seu tesouro será bem gasto. Dê-nos um vento de popa.”
Os guardas negros arregalaram os olhos.
“O vento Papa-Defunto”, disse Bond.
Big Man olhou-o.
“Já está tudo embaixo?”, perguntou aos guardas.
“Sim senhor, patrão”, respondeu um deles.
“Leve-os”, ordenou Big Man.
Foram até a beira do penhasco e desceram a escadaria íngreme, com um guarda na frente, outro atrás e Mr. Big a seguir.
Os motores do longo e elegante iate giravam sossegados, com o escape borbulhando gravemente, e um fio de vapor azul a se erguer da popa.
Três sujeitos no molhe cuidavam das guias. Só havia três homens no convés, além do capitão, e o piloto na ponte escura, bem projetada. Não havia mais espaço para ninguém. Todo o espaço disponível no convés, exceto por uma cadeira de pesca presa no lado direito da popa, era preenchido pelos tanques de peixe. Com o pavilhão vermelho arriado, só a bandeira americana pendia imóvel da popa.
Distante alguns metros do barco, a paravana vermelha em forma de torpedo, com cerca de dois metros de comprimento, flutuava tranquilamente na água, agora verde-mar ao primeiro amanhecer. Estava ligada a uma grossa pilha de cabos metálicos, enrolados no convés da popa. Parecia a Bond que eles deveriam ter uns bons cinquenta metros. A água estava cristalina e não havia peixes rondando por perto.
O vento Papa-Defunto morria aos poucos. Dentro em breve o vento Médico começaria a soprar vindo do mar. Dentro de quanto tempo?, perguntou-se Bond. Seria um presságio?
Ao longe, além do barco, ele conseguia avistar o teto de Beau Desert entre as árvores, mas o molhe, o barco e a trilha no penhasco ainda estavam mergulhados em profunda sombra. Bond pensou se os binóculos de visão noturna conseguiriam vê-los. Se pudessem, o que pensaria Strangways?
No molhe, Mr. Big supervisionava a tarefa de amarrá-los.
“Tire a roupa dela”, ordenou ao guarda.
Bond se encolheu. Deu uma olhada de relance para o relógio de pulso de Mr. Big. Nele, faltavam dez minutos para as seis. Bond manteve silêncio. Não deveria haver nem um minuto de atraso.
“Jogue as roupas a bordo”, disse Mr. Big. “Amarre uns panos no ombro dele. Não quero que haja sangue na água ainda.”
As roupas de Solitaire foram cortadas a faca. Ela permaneceu ali, nua e pálida. Abaixou a cabeça e seus cabelos pesados caíram para a frente, tapando seu rosto. O ombro de Bond foi atado grosseiramente com tiras do seu vestido de linho.
“Canalha”, desabafou Bond, de dentes cerrados.
Sob a direção de Mr. Big, primeiro soltaram as mãos dos dois. Seus corpos foram atados frente a frente, e seus braços passados pela cintura um do outro, e depois novamente atados com força.
Bond sentiu a pressão dos seios macios de Solitaire. Ela encostou o queixo no ombro direito dele.
“Eu não queria que fosse assim”, sussurrou, trêmula.
Bond não respondeu. Mal sentia o corpo dela. Contava os segundos.
No molhe havia uma corda enovelada que ia até a paravana. Mergulhava na água e Bond a distinguia seguindo no fundo de areia até surgir de encontro à barriga do torpedo vermelho.
Sua extremidade solta foi passada debaixo das axilas de Bond e Solitaire, e bem amarrada com um nó que ficava no espaço entre seus pescoços. Tudo feito com muito cuidado. Não havia possibilidade de fuga.
Bond contava os segundos. De acordo com ele, faltavam cinco para as seis.
Mr. Big deu uma última olhada nos dois.
“Deixem as pernas soltas”, comentou. “Dão uma isca apetitosa.” Deixou o molhe e embarcou no convés do iate.
Os dois guardas também embarcaram. Depois de soltarem as guias, os dois sujeitos no molhe os seguiram. As hélices revolveram a água mansa e, com os motores a meia velocidade, o Secatur se afastou rapidamente da ilha.
Mr. Big foi para a popa, sentando-se na cadeira de pesca. Podiam ver o seu olhar fixo neles. Não disse nada. Não fez gesto algum. Apenas contemplava.
O Secatur cortava a água em direção ao recife. Bond podia ver o cabo da paravana se desenrolando no costado. A paravana começou a se mover lentamente atrás do barco. De repente mergulhou o nariz, endireitou-se e disparou, com o leme se dobrando na direção contrária à esteira do barco.
O rolo de corda ao lado deles deu um súbito sinal de vida.
“Cuidado”, avisou Bond, com urgência, agarrando-se com mais força à garota.
Seus braços quase se desconjuntaram com o solavanco do puxão, quando caíram do molhe no mar.
Por um instante ambos submergiram, depois voltaram à tona, com seus corpos unidos rasgando a água.
Bond procurava respirar em meio às ondas e aos borrifos que passavam depressa por ele, inundando sua boca retorcida. Podia ouvir a respiração entrecortada de Solitaire ao lado do seu ouvido.
“Respire, respire”, gritou, através da avalanche de água. “Prenda suas pernas nas minhas.”
Ela ouviu-o e ele sentiu entre as coxas a pressão dos joelhos dela. Solitaire teve um acesso de tosse. Em seguida, a respiração dela tornou-se mais regular junto ao seu ouvido e as batidas do coração da mulher acalmaram-se contra o seu peito. Ao mesmo tempo, a velocidade em que eram rebocados sofreu uma redução.
“Prenda a respiração”, gritou Bond. “Preciso dar uma olhada. Pronta?”
Ela respondeu com uma pressão dos braços. Ele sentiu o peito dela inflar quando seus pulmões se encheram de ar.
Usando o peso do corpo, girou-a para baixo, de maneira que a cabeça dele agora estava totalmente fora d’água.
Cortavam o mar a cerca de três nós. Dobrou a cabeça acima da pequena marola que faziam.
O Secatur entraria na passagem entre os recifes dentro de aproximadamente oitenta metros, segundo calculou. A paravana deslizava lentamente, quase em ângulo reto em relação ao barco. Faltavam trinta metros para o torpedo vermelho atravessar as águas encrespadas sobre o recife. Trinta metros atrás da paravana, eles navegavam devagar na superfície da baía.
Sessenta metros até o recife.
Bond girou o corpo e Solitaire emergiu, ofegante.
Continuaram a avançar lentamente na água.
Cinco metros, dez, quinze, vinte...
Apenas quarenta metros para atingirem o banco de coral.
O Secatur deveria ter acabado de transpô-lo. Bond recuperou o fôlego. Já devia passar das seis. Que teria acontecido com a porcaria da mina? Bond fez uma rápida e fervorosa oração. Que Deus nos salve, disse dentro d’água.
De repente sentiu que a corda apertava sob seus braços.
“Respire, Solitaire, respire”, gritou quando retomaram a velocidade e a água começou a passar sibilante por eles.
Agora voavam pelo mar em direção ao recife submerso.
Houve uma ligeira diminuição de velocidade. Bond imaginou que a paravana tivesse batido em uma pedra ou algum coral na superfície. Em seguida, seus corpos voltaram a disparar no seu abraço mortal.
Faltavam trinta metros, vinte, dez...
Meu Deus, pensou Bond. Não escaparemos. Contraiu os músculos para enfrentar a dor lancinante do impacto, empurrando Solitaire mais para cima, para protegê-la do pior.
De repente o ar fugiu com um chiado de seus pulmões, e um punho gigantesco socou-o contra Solitaire, de modo que ela se ergueu totalmente fora do mar e voltou a cair. Uma fração de segundo depois, um clarão iluminou o céu e ouviu-se o ribombar de uma explosão.
Estacaram de repente, e Bond percebeu que o peso da corda solta os puxava para baixo.
Suas pernas afundaram sob seu corpo atordoado e a água inundou sua boca.
Foi o que o fez recuperar a consciência. As pernas dele se debateram no fundo, voltando a trazer suas bocas até a tona. A garota era um peso morto em seus braços. Ele revolvia a água em desespero e olhava à sua volta, segurando a cabeça desmaiada de Solitaire em seu ombro, acima da superfície.
A primeira coisa que viu foram as águas revoltas do recife, a não mais de cinco metros de distância. Sem a sua proteção, ambos teriam sido esmagados pelo impacto da explosão. Ele sentiu o repuxo e o rodamoinho da correnteza em volta das pedras. Avançou desesperado em direção a ele, aspirando golfadas de ar sempre que possível. Seu peito ardia com o esforço e ele via o céu através de uma película vermelha. A corda o puxava para baixo e o cabelo da garota enchia sua boca, quase o sufocando.
De repente sentiu um arranhão agudo do coral contra a parte de trás das pernas. Chutou-as procurando desesperadamente um apoio para os pés, esfolando a pele a cada movimento.
Mal sentia dor.
Agora eram seus braços e suas costas que estavam sendo arranhados. Tropeçou, desajeitado, com os pulmões ardendo no peito. Em seguida sentiu uma camada de agulhas sob os pés. Arriou o peso nela, inclinando-se para trás para resistir à forte correnteza que procurava desalojá-lo. Seus pés resistiram e havia rocha às suas costas. Inclinou-se para trás, ofegante, com o sangue escorrendo em volta dele na água, segurando contra si o corpo frio da garota, que mal respirava.
Descansou por um minuto, com gratidão, olhos fechados e o sangue pulsando nas veias, tossindo dolorosamente, à espera de que seus sentidos se reanimassem. Seu primeiro pensamento foi em relação ao sangue na água à sua volta. Mas desconfiou de que os grandes peixes não se aventuravam até o recife. Aliás, não havia nada que ele pudesse fazer quanto a isso.
Em seguida, olhou para o mar.
Não havia sinal algum do Secatur.
No alto do céu tranquilo via-se um cogumelo de fumaça, que o vento Médico começava a arrastar em direção à terra.
Havia destroços espalhados sobre toda a extensão do mar e cabeças que subiam e desciam. A água estava toda coalhada com as barrigas brancas dos peixes atordoados ou mortos pela explosão. Um cheiro forte de explosivo pairava no ar. Na orla dos destroços a paravana vermelha jazia tranquila com o casco para baixo, ancorada pelo cabo cuja outra ponta deveria se encontrar em algum lugar no fundo. Colunas de bolhas emergiam na superfície vítrea do mar.
Na beira do círculo de peixes mortos e cabeças balouçantes, algumas barbatanas triangulares cortavam rápido o mar. Mais delas surgiram enquanto Bond observava. Em uma ocasião viu um grande focinho surgir da água e abocanhar alguma coisa. As barbatanas espirravam água ao chapinhar entre os escolhos. Dois braços negros se ergueram de repente no ar, desaparecendo em seguida. Ouviram-se gritos. Algumas pessoas davam braçadas agitadas no mar em direção ao recife. Alguém parou para bater na água diante dele com a mão espalmada. Depois as mãos desapareceram sob a superfície. Ouviram-se os gritos de quando seu corpo foi sacudido para lá e para cá dentro d’água. Uma barracuda o devorando, disse Bond consigo mesmo, atordoado.
Mais uma cabeça se aproximava, procurando chegar ao ponto do recife onde estava Bond, pequenas ondas quebrando sob suas axilas, e o cabelo preto da garota caído nas suas costas.
Era uma cabeça grande. Uma cortina de sangue escorria pelo seu rosto, de um ferimento no crânio imenso e calvo.
Bond observava a sua aproximação.
Big Man executava um nado de peito desajeitado, fazendo tanto espalhafato na água que era capaz de atrair qualquer peixe que já não estivesse ocupado.
Bond perguntou a si mesmo se ele conseguiria chegar. Seus olhos se estreitaram e sua respiração se acalmou, contemplando e esperando a decisão que o mar cruel tomaria.
A cabeça se aproximava. Bond podia ver os dentes à mostra em uma contração de agonia e de esforço titânico. O sangue tapava os olhos que Bond sabia estarem esbugalhados. Podia quase ouvir o grande coração doente batendo debaixo da pele preta acinzentada. Pararia antes que a isca fosse abocanhada?
Big Man continuava a vir. Os ombros estavam nus, as roupas haviam sido arrancadas pela explosão, imaginou Bond, porém, a gravata de seda preta resistira e aparecia em volta do pescoço grosso, arrastada atrás da cabeça como um rabicho de chinês.
Um borrifo de água limpou um pouco do sangue de seus olhos. Estavam arregalados, olhando desvairados para Bond. Neles não havia nenhuma súplica, somente o olhar fixo da exaustão física.
No instante mesmo em que Bond os contemplava, agora a apenas dez metros, fecharam-se de repente e o grande rosto se contorceu em uma careta de dor.
“Aarrh”, gritou a boca retorcida.
Os dois braços pararam de bater na água e a cabeça afundou e voltou à tona de novo. Uma nuvem de sangue escureceu o mar. Duas sombras esguias e marrons de três metros se afastaram da nuvem e, em seguida, voltaram rápido para ela. O corpo na água foi sacudido de lado. Metade do braço de Big Man surgiu à tona. Sem mão, sem pulso, nem relógio.
Mas a grande cabeça de nabo, a boca arreganhada cheia de dentes brancos que quase a dividiam ao meio, ainda estava viva. E agora berrava. Um grande berro gorgolejante que só dava quando alguma barracuda abocanhava seu corpo.
Ouviu-se um grito distante na baía, atrás de Bond. Mas ele não prestou atenção. Todos os seus sentidos estavam concentrados na cena horripilante no mar diante dele.
Uma barbatana rasgou a superfície a alguns metros de distância e parou.
Bond pôde ver o tubarão apontando o focinho como um cachorro, com os olhos míopes, rosados e redondos, tentando penetrar a nuvem de sangue e avaliar a presa. Então arremeteu contra o torso, e a cabeça que gritava afundou tão rápido quanto um peso de chumbo.
Algumas bolhas estouraram na superfície.
Houve um rodamoinho causado pela cauda manchada de marrom de um grande tubarão-leopardo, que recuou para engolir e para atacar de novo.
A cabeça voltou a flutuar. A boca estava fechada. Os olhos amarelos pareciam ainda se fixar em Bond.
O focinho do tubarão saiu da água e avançou para a cabeça, com a mandíbula inferior aberta e a luz brilhando em seus dentes. Houve um rangido horrível de osso triturado e um rodamoinho. Depois, o silêncio.
Os olhos dilatados de Bond continuaram a mirar a mancha marrom que cada vez mais se espalhava no mar.
A garota deu um gemido e Bond recuperou a lucidez.
Ouviu-se outro grito atrás dele e Bond virou a cabeça para a baía.
Era Quarrel, seu peito moreno e luzidio avultando sobre o casco esguio da canoa, com os braços trabalhando o remo, seguido, a uma longa distância, por todas as outras canoas da baía dos Tubarões deslizando sobre as pequenas ondas que haviam começado a encrespar a superfície.
Os ventos elísios do nordeste haviam começado a soprar e o sol brilhava na água azul e nos doces flancos verdes da Jamaica.
As primeiras lágrimas que brotaram dos olhos azuis-acinzentados de James Bond desde a sua infância escorreram pelo seu rosto contraído, caindo no mar manchado de sangue.
23.
LICENÇA PAIXÃO
Como dois pingentes de esmeralda, dois beija-flores faziam a última ronda pelos hibiscos. Um tordo começara sua cantoria vespertina, mais doce que a do rouxinol, em cima de um arbusto perfumado de jasmim da noite.
A sombra irregular de uma fragata deslizou por cima do gramado verde, enquanto planava nas correntes de ar que subiam a costa até alguma distante colônia, e o martim-pescador azul-acinzentado chilreou, irritado, ao ver o homem sentado em uma cadeira no jardim. Mudou a direção do voo e guinou, atravessando o mar, até a ilha. Uma borboleta sulfurina flertava entre as sombras roxas das palmeiras.
O mar de variados tons de azul da baía estava bastante calmo. Os penhascos da ilha eram de um rosa profundo, à luz do sol que se punha atrás da casa.
Havia um cheiro de entardecer e de frescor depois do calor do dia, e um leve perfume de farinha de mandioca torrada vindo das cabanas de pescadores, no povoado à direita, a distância.
Solitaire saiu da casa de pés descalços e atravessou o gramado. Carregava uma bandeja com uma coqueteleira e dois copos. Colocou-a na mesa de bambu ao lado da cadeira de Bond.
“Espero ter feito direito”, comentou. “Seis partes para uma parece terrivelmente forte. Nunca tomei martíni de vodca.”
Bond olhou para ela. Vestia um de seus pijamas brancos de seda. Eram demasiado grandes. Parecia absurdamente infantil.
Ela riu. “O que acha de meu batom de Port Maria?”, perguntou. “E as sobrancelhas delineadas com lápis HB? Não consegui fazer mais nada para me ajeitar, além de tomar banho.”
“Está uma maravilha”, disse Bond. “Você é de longe a garota mais bonita da baía dos Tubarões. Se eu tivesse pernas e braços, me levantaria para lhe dar um beijo.”
Solitaire se inclinou e lhe deu um longo beijo na boca, com o braço apertado em volta de seu pescoço. Levantou-se e afastou a mecha curva de cabelos sobre a testa dele.
Olharam um para o outro. Em seguida, ela virou para a mesa e lhe serviu um coquetel. Despejou meio copo para si e sentou no gramado quente, com a cabeça contra o joelho de Bond. Ele brincou com a mão direita entre os cabelos dela e ficaram um instante sentados, olhando o mar entre as palmeiras e a luz que declinava na ilha.
O dia fora dedicado a lamber as feridas e ajeitar o que sobrara da confusão.
Quando Quarrel desembarcara com eles na pequena praia de Beau Desert, Bond carregara Solitaire pelo gramado até o banheiro. Enchera a banheira de água quente. Sem que ela soubesse o que estava acontecendo, ele ensaboara e lavara todo seu corpo e seus cabelos. Depois de tirar todo o sal e musgo do coral, ajudou-a a sair, secou-a e botou mertiolato nos cortes de coral que marcavam suas costas e suas coxas. Depois lhe deu um comprimido para dormir e colocou-a nua entre os lençóis de sua própria cama. Beijou-a. Antes de fechar as venezianas, ela já dormia.
Entrou no banheiro e Strangways o ensaboou. Depois quase o banhou em mertiolato. Sangrava e estava esfolado em centenas de lugares, com o braço esquerdo dormente por causa da mordida da barracuda. Perdera um bocado de músculo do ombro. A ardência do mertiolato fez com que trincasse os dentes. Vestiu um roupão e Quarrel o levou ao hospital em Port Maria.
Antes de partir, tomou um café da manhã reforçado e fumou um bendito cigarro. Dormiu no carro, dormiu na mesa de operações e na cama onde finalmente o puseram, como uma massa de ataduras e esparadrapo cirúrgico.
Quarrel trouxe-o de volta no começo da tarde. A essa altura Strangways já agira de acordo com as instruções que Bond lhe dera. Mandaram um destacamento de polícia para a ilha da Surpresa. Os destroços do Secatur, a trinta e seis metros de profundidade, receberam uma boia de sinalização, que passou a ser patrulhada pela lancha da alfândega de Port Maria. O rebocador de salvamento e os mergulhadores estavam a caminho a partir de Kingston. Os repórteres da imprensa local tinham recebido uma breve declaração, e havia policiais em guarda na entrada de Beau Desert, para conter a avalanche de repórteres que chegariam à Jamaica, depois que toda a história corresse o mundo. Enquanto isso, um relatório completo fora enviado a M e a Washington, de modo que o bando de Big Man no Harlem e em St. Petersburg pudesse ser preso provisoriamente sob a acusação preventiva de contrabando de ouro.
Não houve sobreviventes do Secatur, mas os pescadores locais trouxeram quase uma tonelada de peixes mortos naquela manhã.
A Jamaica estava fervilhando de boatos. Fileiras de carros paravam, lado a lado, nos penhascos acima da baía e ao longo da praia embaixo. Espalhara-se a notícia do tesouro de Morgan, o Sanguinário, porém, o bando de tubarões e barracudas também o protegia. Por causa deles não havia nadador que arriscasse ir até a cena do naufrágio na calada da noite.
Veio um médico visitar Solitaire. Ele encontrou-a preocupada principalmente em arranjar roupas e o batom no tom certo. Strangways encomendara uma amostra completa deles de Kingston, que chegaria no dia seguinte. Por enquanto, ela fazia experiências com o conteúdo da valise de Bond e uma tigela de hibiscos.
Strangways voltou de Kingston após a saída de Bond do hospital. Trouxe um telegrama cifrado de M para Bond, no qual se lia:
SUPONHO REIVINDICOU TESOURO EM SEU NOME REPRESENTANDO UNIVERSAL EXPORT PONTO PROSSIGA IMEDIATAMENTE SALVAMENTO PONTO CONTRATEI ADVOGADO DEFENDER DIREITOS JUNTO TESOURO E MINISTÉRIO COLÔNIAS PONTO ENQUANTO ISSO PARABÉNS PONTO CONCEDIDA LICENÇA PAIXÃO QUINZE DIAS PONTO FINAL
“Suponho que ele queira dizer ‘compaixão’”, comentou Bond.
Strangways tinha um aspecto solene. “Acho que sim”, respondeu. “Fiz um relatório completo dos danos que você sofreu. E a garota também”, acrescentou.
“Hmm”, disse Bond. “As expressões cifradas geralmente são precisas. Mesmo assim.”
Strangways olhou propositalmente pela janela, reprimindo um sorriso.
“Bem típico da velha raposa, pensar primeiro no ouro”, comentou Bond. “Suponho que ele ache que conseguirá obter o que quer, descobrindo um modo de contornar a redução da verba secreta quando houver nova reunião do Parlamento para avaliá-la. Creio que passa metade de sua vida brigando com o Tesouro. Mesmo assim, está muito errado se pensa que conseguirá.”
“Dei entrada na sua reivindicação na sede do governo, assim que recebi a mensagem”, relatou Strangways. “Mas será difícil. A Coroa virá atrás do tesouro e a América entrará nisso de alguma forma, porque Big Man era cidadão americano. Vai dar pano pra manga.”
Haviam conversado mais um pouco e depois Strangways partira. Bond caminhara cheio de dores até o jardim, para se sentar um pouco ao sol, sozinho com seus pensamentos.
Recapitulou a série de riscos que correra na sua longa busca por Big Man e pelo tesouro fabuloso, revivendo os episódios em que enfrentara a morte cara a cara.
Agora terminara e ele estava sentado ao sol, entre as flores, com a recompensa aos seus pés e sua mão entre os longos cabelos pretos dela. Agarrou bem aquele instante e pensou nos catorze dias seguintes que lhes pertenceriam.
Ouviram-se um barulho de louça quebrada na cozinha, nos fundos da casa, e o som da voz de Quarrel praguejando contra alguém.
“Pobre Quarrel”, disse Solitaire. “Arranjou a melhor cozinheira do povoado e varreu os mercados atrás de surpresas para nós. Chegou a encontrar caranguejos negros, os primeiros da época. Depois passou a assar o pobrezinho de um leitão ainda mamando e a fazer uma salada de abacate, para terminar com goiabas e manjar de coco. E o Comandante Strangways deixou uma caixa do melhor champanhe da Jamaica. Já estou com água na boca. Mas não se esqueça de que deve ser segredo. Cheguei de surpresa na cozinha e ele quase fez a cozinheira chorar.”
“Virá com a gente na nossa licença paixão”, disse Bond. Contou-lhe sobre o telegrama de M. “Vamos para uma casa sobre estacas, com palmeiras e oito quilômetros de areia dourada. E você terá de cuidar de mim muito bem, porque não poderei fazer amor com um braço só.”
Havia uma sensualidade óbvia no olhar de Solitaire, quando ela o ergueu para ele, sorrindo inocentemente.
“E eu com as minhas costas?”, disse ela.
Ian Fleming
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