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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


VIVER É PRECISO / Lou Carrigan
VIVER É PRECISO / Lou Carrigan

 

 

                                                                                                                                                

  

 

 

 

 

 

Hugo Melli deteve o carro em Via Roma, nas imediações do Museu Nacional de Palermo, Itália. O calor de julho estava insuportável. A Sicília parecia uma fogueira.

Nem a visão azul do Mediterrâneo trazia uma sensação de frescor. Depois de passar as férias em sua villa perto de Anzio, cercado pelos pinheiros que cobriam o jardim, enfrentar Palermo não era lá muito agradável.

O dia estava abafado e Hugo Melli, de péssimo humor, por ter sido obrigado a abandonar suas férias e vir para a ilha por causa daquele encontro. E logo no Museu Nacional!

Quando entrou, o silêncio era absoluto. Hugo teve a impressão de estar entrando numa igreja o não num museu.

Deixando o sol do lado do fora, avançou, decidido, sem um pingo de medo. Achava absurdo marcar encontro com um espião no interior de um museu, para crivá-lo de balas.

Principalmente levando em conta a personalidade do espião com quem devia encontrar-se. Não. Nada tinha a temer.

Perambulou pelo museu com ar admirado. Como se estivesse vendo tudo aquilo pela primeira vez. Já visitara o Museu Nacional de Palermo em outras ocasiões, é verdade.

Mas nunca reparara em seu acervo. É sempre assim.

Ninguém dá valor ao que possui. Em Roma, por exemplo, jamais parara junto à Fontana de Trevi para jogar uma moedinha. No entanto, milhares de turistas o faziam, com risinhos de satisfação. Não se lembrava também de ter parado boquiaberto na Piazza Espagna para contemplar a escalinata. Assim é a vida. Só notamos as maravilhas dos outros.

— Senhor Melli?

Embora estivesse ali para um encontro, Hugo quase estremeceu ao ouvir uma voz feminina dizer seu nome. Mas controlou-se imediatamente. Afinal era um dos melhores homens do SID* italiano. Um veterano que tivera o privilégio de ser escolhido entre inúmeros outros pera comparecer àquele encontro no Museu Nacional de Palermo, Sicília, Itália.

 

*SID — Servizio di Informazione e Difensa: serviço secreto italiano

 

Virou-se, esboçando um sorriso. De acordo com os dados obtidos, deveria estar diante da mulher mais formosa do mundo, O sorriso, porém, transformou-se numa careta de decepção, ao ver quem o chamara. Tratava-se de uma mulher alta, quadrada como um bloco de pedra, de cabelos sem brilho, mal pintada, sobrancelhas espessas, olhos escuros. Vestia-se pessimamente. E devia andar na casa dos cinquenta. Per la Madona! Que criatura horrenda!

— Senhor Melli? — repetiu ela.

— Sim — murmurou Hugo. — Sou eu. Você é Baby, da CIA?

— Sou. Trouxe a pasta?

Melli fez um sinal afirmativo. A mulher horrível que dizia ser Baby não se mexeu. Um homem surgido de repente recebeu a pasta de Hugo Melli e afastou-se.

 

 

 

 

Só então Hugo viu os outros três protetores de Baby para aquela entrevista. Depois de mais de trinta anos de espionagem, Melli sabia identificar um espião a mil quilômetros de distância. Não se espantou. Era natural que Baby tivesse comparecido ao encontro cercada por uma segurança pessoal, trazendo um grupo de seus queridos Johnnies.

 

— Veio sozinho, conforme ficou combinado? — perguntou ela.

 

— Claro.

 

— Não receia que algo lhe possa acontecer?

 

— Se tentar qualquer coisa contra mim, significa que não é Baby — respondeu Hugo, encarando a mulher. — Há muitos anos ouço falar a seu respeito em termos bastante consoladores.

 

— Consoladores? — surpreendeu-se ela.

 

— É consolador saber que existe alguém capaz de fazer bem, tudo a que se propõe. Inclusive um trabalho tão porco como o nosso.

 

— Também tenho boas referências de você — sorriu a espiã mais famosa e mais perigosa do mundo. — Disseram-lhe que fui eu quem o escolheu para esta entrevista?

 

— Não. Não sabia. Foi mesmo?

 

— Não costumo mentir, senhor Melli. Exceto quando me convém.

 

— Por que me escolheu? — sorriu Hugo, sentindo-se mais confiante.

 

— Porque só gosto de conversar com pessoas que sabem fazê-lo. Você tem idade suficiente para conhecer bem a vida. Deve ser agradável conversar com um homem assim. Que tal se me convidasse para tomar uma cerveja?

 

— Não servem cerveja aqui no museu — lamentou Hugo.

 

— Quem falou em permanecermos aqui dentro? Podemos ir para um terraço florido e nos sentarmos à sombra gostosa de uma árvore. Conhece algum lugar assim, em Palermo?

 

— Sim. Conheço um, muito bom. Mas pensei que preferisse...

 

— Olhe, senhor Melli. Sou uma peça muito cobiçada no mundo da espionagem — explicou Baby, dando o braço a Hugo e indicando a saída. — Logo, preciso ter muito cuidado. Pode imaginar a quantidade de armadilhas que me tem preparado durante todos esses anos?

 

— Faço uma ideia.

 

— Por muito fértil que seja sua imaginação, jamais se aproximará da verdade. Quando marcamos nosso encontro aqui, tomei minhas medidas de segurança, compreende! Não tomou as suas?

 

— Não. Sabia que a entrevista era com Baby.

 

— Eu sabia que ia encontrar-me com o bom Hugo Melli. Mesmo assim, precisava estar garantida. Agora estou. Tudo correrá bem. Como deve ter notado, meus Johnnies me cercam como se eu fosse uma relíquia.

 

— É natural.

 

— Isso não exclui a possibilidade de irmos conversar em outro lugar. Como está Arnold Buckee?

 

— Muito mal. Talvez não passe desta noite. Fazem o possível para salvá-lo. Mas os médicos são pessimistas. Lamento profundamente.

 

— É pena. Se Buckee morrer, não poderá fornecer informação alguma. Não podemos interrogá-lo. Qualquer esforço seria fatal para ele. Isso impediria o SID de obter alguma pista.

 

— Temos esperanças que você consiga algo.

 

Saíram do Museu. Chegaram à Via Roma. Melli estendeu a mão e seguiram rumo à Via del Porto. Seguidos por três homens que pareciam querer possuir vinte olhos em vez de dois, para poder olhar ao redor sem perder um só detalhe do que os cercava. Baby sorriu, ao percebera manobra. Voltando a cabeça para Melli, reiniciou a conversa: — Apesar de todas as investigações feitas por vocês, a Central contínua achando que o homem que agoniza em Roma não é Arnold Buckee.

 

— Ora, por favor! — resmungou Melli. — Não sejam teimosos. Vários agentes da CIA na Europa viram Buckee através do vidro de segurança, no hospital onde o instalamos. Enquanto conversamos aqui, um de seus companheiros examina o material existente em minha pasta: mais fotos de Arnold Buckee, impressões digitais, uma declaração do médico, uma descrição anatômica que deve combinar com a que se encontra nos arquivos da CIA. O homem que temos na clínica romana é Arnold Buckee, agente da CIA. Garanto.

 

— E fazia parte do grupo que tentou assassinar o senhor Rumor, no aeroporto Leonardo da Vinci?

 

— Sem a menor dúvida. Eram sete homens ao todo. Talvez houvesse mais um. Sabe como são as coisas em situações dessas. Ninguém se fixa com exatidão em certos detalhes. Todos ficam assustados. Menos de sete, não era. Podemos garantir. Cinco fugiram. Dois deles, gravemente feridos, Os outros dois eram Arnold Buckee, agente da CIA, bastante conhecido em Roma, e um grego chamado Nikos Telika. Um vagabundo que se dedicou ultimamente a trabalhar como mercenário. A respeito de Telika nada podíamos fazer. Mas podíamos protestar junto à CIA, exigindo explicações pelo fato de um de seus agentes se encontrar envolvido na tentativa de assassinato de nosso ministro, o senhor Mariano Rumor.

 

— A CIA não sabe de coisa alguma a esse respeito.

 

— Isso é que você diz, mas...

 

— Um momento — cortou ela, furiosa. — Quem diz ignorar os fatos é a CIA e não a agente Baby. Não posso garantir que a CIA diga a verdade, Pode estar fazendo urna de suas sujas jogadas internacionais.

 

— Está falando sério? — exclamou Melli.

 

— Naturalmente. Olhe, senhor Melli. Vim aqui para tentar convencer Arnold Buckee a me explicar o que pretendia realmente e por ordem de quem ele e os outros homens quiseram assassinar o senhor Rumor. Como a CIA concordou que eu viesse cuidar desse interrogatório, creio que a Central de Langley está fazendo uma jogada limpa. Mas não dou quitação plena e assinada.

 

— É espantoso! Está protegendo sua boa reputação profissional?

 

— Exatamente.

 

— E faz isso mostrando desconfiança em relação à CIA?

 

— E em relação ao SID. Isto é, em relação a vocês. Poderia ser uma jogada italiana, não acha?

 

— Claro que não! Que iríamos pretender, simulando um caso desses e envolvendo um agente da CIA?

 

— Vocês exigiram que a CIA enviasse alguém para negociar e para falar com Buckee. E que esse alguém fosse a agente Baby. Por quê?

 

— Estamos fartos dos agentes americanos. Em Roma todos confiam em você.

 

— Compreendo. Bem, vocês exigiram que eu viesse à Itália. Eu exigi que a primeira entrevista fosse com Hugo Melli, de quem há muito tempo tenho ótimas referências. Por enquanto tudo corre bem. Mas para mim, PESSOALMENTE, não creio que o SID e a CIA estejam fazendo jogo limpo.

 

— Asseguro-lhe que da minha parte...

 

— Não assegure nada. Vamos tomar nossa cervejinha, enquanto aguardamos o veredicto de meus companheiros especializados em identificações. Se tudo concordar, irei a Roma ver Arnold Buckec e perguntarei a ele por que, sendo agente da CIA, tomou parte num atentado contra o ministro italiano. Está bem assim?

 

— Lógico.

 

— E se Arnold Buckee morrer antes da minha visita, ou se negar a falar comigo sobre o assunto?

 

— Não sei. A situação se tornaria desagradável.

 

Encontraram um bar com terraço, na Via del Porto. Dali podiam ver o mar de um azul intenso, inacreditável. A mulher de cabelos secos pediu uma caneca de cerveja. Hugo Melli preferiu um campari com soda.

 

— Aqui está ótimo — disse Baby.

 

— Sim. Sente-se menos o calor.

 

— Adoro o calor — sorriu a espiã. — Um calor razoável, é claro. O frio, porém, me apavora. Desde que me resfriei e meu nariz ficou vermelho como um tomate. Graças a Deus isso só aconteceu uma vez.

 

— Sé se resfriou uma vez?

 

— Que eu me lembre, sim. Foi no Polo Sul*.

 

*Ver: ALARME NO POLO SUL

 

— Que fazia por lá? — riu Melli.

 

— Para dizer a verdade, não me lembro.

 

— Vamos! Hum, compreendo. É uma das vezes em que acha mais conveniente mentir.

 

— O ser humano vive insatisfeito — prosseguiu Baby, como se não tivesse ouvido a frase de Hugo. — Quando está no Polo Sul ou no Polo Norte, suspira, desejando estar no Equador. Quando está no Equador, sente saudades de lugares frios. Não é o meu caso, acredite. Prefiro Palermo ao Polo. Sinto-me bem apanhando sol. Que acha do sol, senhor Melli?

 

— Eu? Do sol?

 

— Sim. Deve ter uma opinião formada a respeito da fonte geradora de vida no planeta Terra.

 

— Bem...

 

— Como? — exclamou a divina, vendo-o gaguejar. — Se o sol se apagasse, também apagaríamos. Possivelmente numa questão de segundo. Não sabia? Hum! Estas azeitonas são fabulosas! Mas, voltando ao sol. Estamos aqui bem instalados, gozando a sombra dessas árvores. Imaginemos que o sol se apagasse. Que aconteceria?

 

— Diga.

 

— Ficaríamos congelados como frangos numa geladeira. Num piscar de olhos, zás! Virávamos carne congelada. E agora? Que acha do sol?

 

— É agradável — murmurou Melli. — Como você.

 

— Acha-me agradável?

 

— Muito.

 

— Inclusive meu aspecto físico?

 

— Quanto a isso, não — disse Hugo após uma leve hesitação. — Mas cheguei a um ponto que sei avaliar outras facetas das pessoas. Com você, por exemplo, não me importaria de jantar várias noites seguidas. Embora, para ser sincero, preferisse vê-la com outro aspecto. Uma vamp cinematográfica, eh? Não seria mal. Atraente, bonita, radiante, com um corpo espetacular.

 

— Lamento ser feia — riu Baby.

 

— Tenho esperanças de que, sob esse disfarce, você não seja tão feia como parece — acrescentou Melli, enrugando a testa.

 

— Como? — exclamou Baby surpresa. — Nota-se que estou disfarçada?

 

— Claro. Dizem que você é a mulher mais linda do mundo. Bem, talvez exagerem um pouco. Mas não acredito que seja tão feia como a estou vendo neste momento.

 

— Sim, às vezes exageram um pouco. Bem, parece que nos trazem notícias.

 

Um dos agentes da CIA, enviado a Palermo pelos Arquivos da Central de Langley para eliminar as provas que deveriam demonstrar definitivamente, se o homem que os italianos mantinham numa clínica era o agente desaparecido Arnold Buckee, aproximou-se dos dois.

 

— Alguma novidade, Johnny? — perguntou Baby, sorrindo para o companheiro.

 

— Sim. Em minha opinião, a menos que...

 

— Não, pelo amor de Deus! Se começarmos com novos condicionamentos, jamais chegaremos ao final. Há sempre uma margem de erro em tudo, bem sei. Mas não podemos passar a vida presos a esse ponto. O homem em poder dos italianos ê Arnold Buckee, ou não?

 

— É.

 

— Nesse caso, iremos a Roma.

 

— Quando quiser. — Concordou Johnny, devolvendo a pasta a Hugo Melli.

 

— Pouso cuidar da viagem, imediatamente — disse o italiano.

 

— Já preparamos tudo, colega — murmurou Baby, concedendo um sorriso de simpatia a Hugo. — Obrigada.

 

A vida por um fio

 

Realmente. A CIA tinha tudo pronto para a viagem de sua agente de luxo a Roma. Hugo Melli nada teve a opor.

 

Concordou em seguir de carro com os americanos até o porto, onde tomaram uma lancha que seguiu rumo ao norte.

 

Vinte milhas depois, apareceu o helicóptero. Em menos de duas horas, estariam em Roma. Almoçaram durante o voo: sanduíches e vinho italiano. Além de Baby e de Hugo, viajavam mais três agentes da CIA.

 

Pouco antes de pousarem, Melli apontou para baixo, mostrando uma povoação branca junto ao mar, e explicou: — Anzio. Tenho uma villa nessa localidade. Cercada de pinheiros. Pretendo ir para lá muito breve.

 

Baby não fez comentários. Fulminou Hugo, com um olhar irritado. O italiano ficou meio embaraçado, mas compreendeu a atitude da espiã mais perigosa do mundo.

 

Não queria conhecer dados pessoais de quem trabalhava com ela.

 

Sob as indicações de Melli o aparelho foi baixando em direção aos jardins de uma clínica em meio a um jardim coberto de pinheiros e de flores. Estavam um pouco além de Monte Mário o podiam ver praticamente toda Roma.

 

Quando as pás do helicóptero pararam de rodar, um silêncio repousante e agradável chegou aos ouvidos de todos. Eram duas da tarde e o sol estava bem forte.

 

Hugo Melli pulou do aparelho, depois dos três Johnnies.

 

Estendeu a mão para ajudar Baby a descer e ficou petrificado. Diante dele não se encontrava mais a mulher gorda e feia que conhecera em Palermo e com quem viajara.

 

Em vez dela, se via uma jovem de olhos azuis, rosto belíssimo e corpo escultural. Baby desvencilhara-se das roupas da gorda e estava apenas de calcinhas e soutien.

 

Vestiu um traje de verão, que realçou ainda mais seus dotes físicos. Hugo Melli continuava no mesmo lugar, de mão estendida assim. Pasmo à transformação da divina espiã.

 

— Santa Madonna! — balbuciou, quando Baby apoiou-se em sua mão e pulou para o chão. — Tu sei il più bella del mondo!*

 

— Tanta grazie, Hugo*. — sorriu Brigitte Montfort.

 

*Santa Mãe! Você é a mais linda do mundo!

**Obrigada, Hugo.

 

Os dois homens postados na porta da clínica permaneceram em silêncio quando Brigitte e seus Johnnies entraram no prédio. Mais dois se encontravam no saguão.

 

Um deles ficou no mesmo lugar. O outro precedeu o grupo de norte-americanos. Subiram ao primeiro andar. Dois homens liam no sofá da sala de espera. Eram mais ou menos da idade de Hugo Melli.

 

— São dois altos chefes do SID — informou ele.

 

— Não quero conhecer ninguém — cortou Baby, evitando apresentações. — Nem quero que me conheçam. Vamos ver Arnold Buckee e pronto.

 

Os dois homens captaram o sinal de Melli e continuaram sentados. Um terceiro estava diante da porta do quarto do doente. Melli deu um sinal e o companheiro abriu a porta.

 

Entraram para uma saleta com cadeiras brancas. No fundo havia um painel de vidro com um metro quadrado, aproximadamente. Brigitte aproximou-se e viu o quarto onde se encontrava Arnold Buckee. Estava na cama, imóvel, mas com o rosto bem visível. Brigitte e o técnico dos arquivos trocaram um olhar. Ele entrou pela porta que havia ao lado do painel de vidro. Surgiu no quarto, e aproximou-se do paciente. Examinou o rosto de Buckee.

 

Examinou as pontas dos dedos do doente e tomou suas impressões digitais num pedaço de papelão especial. Ali mesmo comparou-as com as que trouxera de Langley.

 

Voltou para a saleta e disse, sem hesitar.

 

— Não há a menor dúvida, Baby. Esse homem é Arnold Buckee.

 

— Obrigada, Johnny. Não quero que ninguém entre. Nem que minha conversa com o ferido seja gravada. Ouviu bem, Hugo? Há microfones aí dentro?

 

— Há — respondeu Melli, apos uma pequena hesitação.

 

— Mande retirá-los. TODOS!

 

Melli concordou e afastou-se em busca do encarregado da vigilância. Voltou meio minuto mais tarde, com ar enfezado. Mas mudou de expressão ao deparar com o sorriso de Baby. Em dois minutos retiraram os microfones. A espiã entrou no quarto e fechou a porta por dentro. Aproximou-se da cama de Arnold Buckee. Puxou uma cadeira e sentou-se, contemplando o ferido. Recebera nada menos de seis balaços ao tentar fugir, após o atentado contra o ministro italiano. O fato de ainda estar vivo já constituía um verdadeiro milagre.

 

— Pode me ouvir, Johnny? — perguntou com voz normal. — Tem algo a me dizer?

 

O ferido estava com a cabeça voltada para o lado onde Brigitte se sentara mas mantinha os olhos fechados. Parecia morto. Um leve agitar das pálpebras indicou à divina espiã que ele ainda continuava vivo. Os olhos de Buckee abriram-se vagarosamente e fixaram-se no peito de Baby.

 

— Pode me ver, Johnny? — murmurou ela, inclinando-se para o agente. — Sou eu. Baby. Se não pode falar, paciência. Só quero que saiba que estou aqui. Entendeu?

 

A cabeça de Buckee movimentou-se muito de leve.

 

Tornou a fechar os olhos e sua respiração tornou-se mais ofegante. Brigitte observou as instalações médicas que mantinham aquele homem com vida. Bastaria desligar um daqueles tubos e o agente da CIA estaria morto em poucos segundos.

 

Eram quase duas e meia da tarde. À meia-noite, Arnold Buckee tomou a abrir os olhos. Comtemplou o teto um instante e baixou as pálpebras novamente. Desta vez havia nas pupilas do moribundo uma expressão curiosa. Brigitte ficou atenta. Pouco depois o ouviu dizer num fiapo de voz: — Baby?

 

— Estou aqui. Johnny — respondeu ela, inclinando-se ainda mais para a cama. — Estou ao seu lado há quase dez horas. Esperando. Talvez você tenha alguma coisa para dizer, antes de dormir.

 

Buckee pestanejou. Três segundos mais tarde, sorria levemente. Um sorriso de despedida, de quem compreende que a morte se aproxima a passos acelerados.

 

— Fale, Johnny — insistiu Brigitte Montfort. — Por que se envolveu com o grupo que tentou assassinar o ministro italiano?

 

Buckee encarou-a fixamente. Como se quisesse guardar na memória o rosto incomparável da divina espiã, para levá-lo consigo em sua última viagem.

 

— ... dinheiro ... nojento — balbuciou.

 

— Foi por dinheiro? — perguntou Baby, baixando-se ainda mais.

 

— Um sujeito chamado Iago... Rade-Bar... dólares...

 

Baby... céu... aeroporto... Genebra... vida... eterna...

 

Bíblia... Ditador...

 

Calou-me de repente. Ficou imóvel, com os olhos muitos abertos e fixos no rosto da agente da CIA. Brigitte estendeu a mão e baixou es pálpebras do companheiro.

 

Ainda cativa inclinada para ele, contemplando-o, quando a porta se abriu.

 

Hugo Melli entrou em companhia dos chefes do SID.

 

— Morreu? — perguntou Melli.

 

— Sim.

 

Brigitte levantou-se e saiu do quarto. Johnny-Arquivos a esperava na saleta, com ar fatigado, mas sempre atento.

 

Ofereceu um cigarro. Brigitte aceitou de boa vontade. Ficou fumando e observando pelo vidro os três italiano que pareciam discutir junto à cama de Buckee.

 

— Eles acham que Arnold disse alguma coisa a você — comentou Johnny. — Não a perderam de vista um segundo sequer.

 

Brigitte concordou. Os italianos saíram dos quarto do morto. Hugo Melli aproximou-se de Baby e perguntou: — Podemos saber sobre o que falaram? Tivemos a impressão de que sustentaram uma conversa.

 

— Eu falei. Ele, não. Disse apenas palavras soltas.

 

— Nada concreto capaz de explicar por que um agente da CIA fazia parte do grupo que tentou assassinar o senhor Rumor?

 

— Infelizmente, nada me disse a esse respeito. Falou em dólares, no céu, no mundo, de um aeroporto, de algo relacionado com a vida eterna. Repetiu meu nome algumas vezes. Foi só.

 

— O que disse, fez sentido para você?

 

— Por enquanto, não, Hugo. Gostaria de encontrar uma explicação para tudo isso, acredite.

 

— Continuamos na mesma — resmungou um dos chefes do SID.

 

— Buckee meteu-se nessa enrascada para ganhar uns dólares a mais, sem dúvida. E não teve sorte — acrescentou Brigitte.

 

— Não nos parece comportamento adequado a um agente americano.

 

— Posso ir visitar uma dúzia de homens do SID.

 

Oferecerei vinte mil dólares pela realização de um servicinho particular que exige pessoal treinado e discreto.

 

Quantos deles recusariam minha resposta?

 

Os três italianos entreolharam-se, intrigado.

 

— Como vão as coisas entre o SID e a CIA? — perguntou Hugo Melli, retomando a palavra.

 

— Não sei, nem me interessa. Em minha opinião, o importante seria vocês se mostrarem mais compreensivos.

 

Por que perdemos tempo com discussões inúteis?

 

— Nós exigimos... — começou o segundo chefe italiano.

 

— Exigem?! — explodiu Brigitte, cortando o agente do SID. — Exigem de quem? da CIA? De mim? Jamais conheci pessoas tão bobas como vocês, ocupando cargos tão elevados numa organização de espionagem. Aconselho-os a acalmarem-se um pouco, antes de fazerem qualquer exigência à CIA. Um diálogo amistoso produz melhores efeitos, acreditem. Quanto a mim, não estou disposta a continuar conversando com pessoas que não se deram ao trabalho de agradecer o incômodo que tive, fazendo esta viagem. Vindo dos Estados Unidos até a Itália, para evitar atritos. Boa-noite cavalheiros. Adeus, Hugo.

 

— Vou acompanhá-la — gaguejou Melli.

 

— Você, sim, sabe ser gentil. Obrigada.

 

Saíram da saleta, deixando os italianos presos ao chão, atordoados com o vendaval. Chegando ao helicóptero. Melli encarou Baby, murmurando: — Peço desculpas em nome de todo...

 

— Não precisa desculpar-se — atalhou a divina. — Mostrou-se um cavalheiro. Quanto a seus amigos, espero que tenham o bom senso de me enviar um bilhetinho a Langley, pedindo desculpas pessoalmente. Posso contar com sua ajuda para facilitar o traslado do corpo de Arnold Buckee para os Estados Unidos?

 

— Naturalmente. Atenderia a um pedido meu?

 

— Sem dúvida. De que se trata?

 

— Apesar da pressão que fizemos sobre Arnold Buckee, ele nada revelou durante o tempo que permaneceu na clínica. Com você ele falou. Não disse coisa alguma capaz de esclarecer um pouco esse mistério?

 

— Sabe guardar segredo Hugo?

 

— Claro!

 

— Eu também — sorriu Brigitte Montfort, estendendo a mão para o italiano.

 

Segundos depois, Baby partia no helicóptero, rumo ao desconhecido. Hugo Melli, pelo menos, não fazia a menor ideia do lugar para onde a melhor espiã do mundo se dirigiria, ao deixar a capital da Itália.

 

Passeio pelo Iago

 

Por muito pouco que pensasse, Brigitte Montfort seria obrigada a chegar às seguintes conclusões, mais ou menos acertadas, depois do ter ouvido as últimas palavras de Arnold Buckee: Primeira, ir a Genebra e a um lugar chamado Rade-Bar. Segunda, entrar em contato com um sujeito chamado Iago, que chegaria com uma Bíblia como identificação. Ou seria a pessoa quem deveria levar a Bíblia, para ser identificada por Iago? O resultado de tudo isso seria o pagamento de certa quantia em dólares. Havia ainda alguém conhecido como ditador.

 

Sem fazer contatos diretos com o pessoal do SID, a senhorita Montfort certificou-se de que o cadáver de Arnold Buckee seguiria para os Estados Unidos. Sem lágrimas, pois ele mesmo procurara aquela morte trágica, envolvendo-se num atentado terrorista. Depois disso, a divina espiã desapareceu de cena com tal habilidade, que nem seus companheiros da CIA ficaram sabendo para onde ela havia ido.

 

Foi para Genebra, naturalmente. Não como Brigitte Montfort, e sim como a cidadã francesa Monique Lafrance.

 

Chegando à Suíça, Monique tratou de procurar o Rade-Bar.

 

Não foi difícil encontrá-lo. Ficava no Quai General Guisan, quase em frente ao Jardim Anglais. Muito perto dos embarcadouros, junto ao Pont du Mont Blanc.

 

Localizado o bar, Monique Lafrance para lá se encaminhou, carregando um vistoso e volumoso exemplar da Bíblia. E sua maletinha vermelha, também, é claro.

 

Ocupou uma das mesas do terraço envidraçado, com vista para o Iago e para o Jardim Anglais. Pediu uma garrafa de vinho do Reno, gelado, e dedicou-se a saboreá-lo.

 

Eram cinco e meia da tarde. O céu estava azul e o sol refletia-se nas águas do Iago sulcado por embarcações de velas brancas. Por volta das sete horas o céu mostrava uma tonalidade avermelhada. As nuvens brancas pareciam suspiro cobrindo uma torta de morango. O pôr-do-sol estava deslumbrante. Um espetáculo maravilhoso e inteiramente grátis. Como costumam ser as melhores coisas da vida, como, por exemplo, a própria vida, o amor, a beleza, e bondade, o ar, as flores, os frutos, a luz...

 

— É uma edição inglesa? — perguntou uma voz à direita de Monique.

 

A senhorita Lafrance virou a cabeça o olhou para o homem que fizera a pergunta. Devia ter trinta anos.

 

Atraente, alto, olhar inteligente. Vestia-se com simplicidade mas com certa elegância.

 

Parecia um rapaz alegre e despreocupado, como se acabasse de chegar de uma regata e o exercício houvesse estimulado seu otimismo e sua simpatia.

 

— Que disse? — murmurou a espia como se não tivesse entendido a pergunta.

 

— A Bíblia — apontou o homem. — Perguntei se é unia edição inglesa.

 

— Ah, não. É francesa. Por quê?

 

— Estou procurando uma edição em inglês.

 

— Não sei se conseguirá encontrar nas livrarias de Genebra.

 

— Vou tentar. Está esperando alguém?

 

— Sim — sorriu Monique Lafrance. — Espero alguém que se interesse por minha Bíblia.

 

— E por você, não?

 

— Oh, a isso já estou acostumada. Os homens sempre se interessam por mim, mal me veem, senhor...

 

O homem sorriu, observando com um olhar avaliador os encantos da desconhecida. Ficou satisfeito com o corpo espetacular, os olhos escuros e a boca vermelha e sensual.

 

— Iago — disse ele, finalmente.

 

— Bonito nome. Fora do comum. Não quer sentar-se?

 

— Com muito prazer. Que está bebendo?

 

— Vinho. Gosta?

 

— Gosto. É muito gentil, senhorita...?

 

— Monique Lafrance. Viajo bastante por esse mundo afora. Passei uma longa temporada em Roma, onde deixei um excelente círculo de amigos. Por exemplo: um grego chamado Nikos Telika.

 

— Compreendo. Foi ele quem lhe falou deste lugar e da contrassenha da Bíblia?

 

— Talvez — murmurou Monique, chamando o garçom com um gesto displicente.

 

— Sua cautela me agrada — sorriu Iago. — Procure compreender a minha. Sabe o que aconteceu com Nikos Telika?

 

— Foi crivado de balas no aeroporto de Roma. Isso tem algo a ver com o “interessante” emprego de que ele me falou?

 

— Talvez — riu Iago.

 

O garçom chegou à mesa. Monique pediu um copo para Iago. Contemplou o desportista com interesse e murmurou: — Você é atraente demais para chamar-se Iago. No seu lugar eu usaria outro nome. Ou nunca ouviu falar num personagem famoso chamado Iago?

 

— Quem foi ele?

 

— Um traidor. Um safado que estragou a vida dos outros. Nunca assistiu a uma representação de Otelo? Não leu a obra de Shakespeare?

 

— Dizem que Shakespeare era um plagiador. Copiava os autores que tinham menos talento.

 

— Não sei dizer se isso é verdade ou mentira. Gosto do Otelo que ele escreveu e pronto. Não o conhece mesmo?

 

— Não.

 

— Posso lhe fazer um resumo. Otelo casa-se com Desdêmona, um jovem linda, muito loura, de pele branca como o leite. Forma um tremendo contraste com Otelo, pois era mouro. Desdêmona ama o marido o lhe é fiel. Otelo, por sua vez, é ciumento. Impulsionado por determinados planos, Iago provoca os ciúmes de Otelo mostrando-lhe um lenço perfumado de Desdêmona e dizendo que um dos capitães do mouro, chamado Cássio, andava se gabando de ter recebido aquele lenço de presente das mãos da loura Desdêmona. E não só o lenço. Recebera outros favores, também... Que faz Otelo?

 

— Elimina Cássio, sem dúvida.

 

— Isso é secundário. O terrível da história é que Otelo estrangula Desdêmona, embora ela jure que sempre lhe fora fiel. Otelo, cego pelo ciúme, aperta o pescoço delicado de sua esposa e a mata. A história começa em Veneza. Conhece Veneza?

 

— Asseguro-lhe que não sou o Iago dessa história — riu o simpático desportista.

 

— Claro. Passou-se muito tempo. De qualquer modo, eu não usaria semelhante nome. Dá uma impressão de... Bem, quem conhecer a obra pode ficar meio desconfiado de você.

 

O garçom chegou com o copo. Passou-o diante de Iago e tomou a afastar-me. Iago serviu mais vinho a Monique, encheu meu copo e ficou imóvel, observando a bebida.

 

Finalmente, balbuciou: — Um nome nada significa. Quanto a mim, já fui muitas coisas. Traidor, nunca.

 

— Isso pode significar que tem amigos. Gosta deste vinho?

 

— É bom — murmurou Iago, depois do provar um gole.

 

— Ah, Isso eu não discuto. A mim não agrada muito. Tomo por tomar. Prefiro vinho, mais raivosos, entende? Então, posso ganhar muito dinheiro com você?

 

— Foi Nikos Telika quem lhe disse isso?

 

— Foi. É verdade ou não? Se não é o assunto, conquanto que Nikos não me pode mais ajudar, serei obrigada a procurar um meio de ganhar a vida. E com urgência.

 

— Que sabe fazer?

 

— Sei fazer de tudo.

 

— Tudo?

 

— Tudo que um ser humano puder fazer, eu também posso. Se não souber ainda, aprenderei. Mas faço tudo.

 

— Parece muito decidida, hem?

 

— E sou, sem sombra de dúvida. Como se costuma dizer, tanto posso passar um ovo como fritar uma gravata.

 

— Não seria ao contrário? — riu Iago.

 

— Fritar um ovo o passar uma gravata está ao alcance de qualquer um. Posso fazer ao contrário, se quiser.

 

— Sabe manejar armas?

 

— Algumas.

 

— Está fichada na policia de algum país?

 

— Não. Nem mesmo como prostituta.

 

— Não é?

 

— Bem, se fosse, seria uma prostituta de classe, que escolhe seus amiguinhos, o que lhe sairia muito caro. Mas valho a pena.

 

— É agradável conversar com você. Quanto ao aspecto físico, não discuto. Talvez nos braços deve ser uma experiência fantástica. Já matou alguma vez?

 

Monique Lafrance encarou Iago fixamente durante dois segundos. Sorriu de repente e tomou mais um gole de vinho. Inclinou a cabeça para o lado e continuou a olhar de um modo insinuante para o simpático atleta.

 

— Está bem — Iago levantou as mãos, desculpando-se.

 

— Não precisa cometer a imprudência de me dizer. Afinal, temos por norma não contratar mulheres.

 

— Então, não pretende contratar-me?

 

— Você é mulher. Talvez possamos abrir uma exceção desta vez, pois temos necessidade urgente de pessoal treinado. Há um serviço importante a fazer e não queremos perder tempo. Se você funcionar direitinho, ficará no grupo. Fala inglês?

 

— Tão bem como qualquer britânico, garanto — disse Monique, já em inglês.

 

— Ótimo. Faremos uma experiência.

 

Alguns minutos depois, saíram do Rade-Bar e seguiram pelo Qual General Guisan, em direção à ponte. Desviaram-se antes de a terem alcançado e foram para os embarcadouros. Dobraram à direita e avançaram pelo Promenade du Lac, encaminhando-se para Jetõe des Eaux Vives. Estava anoitecendo, A tonalidade avermelhada do céu cedia lugar a um azul desmaiado. As nuvens haviam desaparecido. As luzes de algumas embarcações se acenderam.

 

— Genebra é uma cidade bonita, calma e limpa — disse Iago, de repente. — Não concorda?

 

— Sim.

 

— Eu diria mesmo: elegante. Uma elegância espontânea, sem afetações, sem exageros.

 

— Você é franco?

 

— Italiano. De Vencia — respondeu ele, som conter o riso.

 

— É mesmo? Não me diga que está trabalhando para alguém chamado Otelo.

 

— Não — riu Iago ainda mais. — Trabalho para Ditador. Já ouviu este nome antes?

 

— Ditador? Não. Não me lembro, pelo menos.

 

— Vai conhecê-lo breve. Com você completamos o grupo necessário para o trabalho de que lhe falei. Começaremos a cuidar dele, assim que chegarmos ao jato.

 

— Não voltaria ao Rade-Bar à procura de mais alguém?

 

— Um ajudante se encarregará disso. Ele selecionará os homens que achar dignos do serem entrevistados por mim, na volta. Conhece Londres?

 

— Melhor que Genebra. Quase tanto quanto Paris.

 

— Excelente. Tem amigos lá?

 

— Que tipo de amigos?

 

— Gente capaz de ajudá-la num momento difícil. Que a esconda durante alguns dias, que lhe arranjo uma lancha para atravessar o canal. Ou mesmo uma avioneta. Gente de recursos que não fique arrepiada ao deparar com dois policiais.

 

— Compreendo. Sim, talvez tenha algum amigo com essas qualidades, em Londres. Devo chamá-lo pelo telefone?

 

— Não, não. Só quando estivermos lá e em caso de necessidade. Preferimos nos arranjar sozinhos.

 

— Quantos seremos e para que?

 

— Tenha um pouco de paciência.

 

Chegaram à passarela que conduzia a um dos iates atracados. Iago fez um gesto, indicando o caminho. Subiram a bordo em silêncio. Nada disserem, ao passar pelo vigia, que olhou para Monique Lafrance sem conseguir disfarçar seu espanto ao ver aquele espetáculo de fêmea a seu lado.

 

Quando chegaram à saleta, os homens que lá se encontravam também olharam para Monique com curiosidade.

 

— Cavalheiros — exclamou Iago, sorrindo. — Apresento-lhes Monique. Será o último membro do grupo expedicionário de Londres. Também fiquei espantado ao encontrar uma mulher no Rade-Bar. Conversamos e cheguei à conclusão de que ela talvez nos possa ser útil em determinadas circunstâncias. Alguém tem algo a opor?

 

Ninguém abriu a boca. Monique observou os presentes, sem demonstrar grande interesse, Iago chamou um deles e saíram para o convés. Os restantes continuaram a contemplar o corpo escultural de Monique, que foi sentar-se no sofá, perguntando: — Que se costuma jantar por aqui?

 

— Só quem pode responder é Ênio, o cozinheiro. E ele está na cozinha — informou um dos homens. — Eu me chamo Piotor. Os outros são: Lukas, Weil, Jordan e Vittorio. Falta Ênio. Já disse onde ele se encontra neste instante. Ali, e Markus é o vigia. Passou por ele ao vir para cá. Weil é o piloto do iate. Entende muito desse setor.

 

— E os outros? De que entendem? — sorriu Monique.

 

— Eu, por exemplo, sei fazer uma mulher feliz — disse Vittorio, com uma risadinha cínica.

 

— Comprando-lhe vestidos e outras quinquilharias? — replicou Monique Lafrance.

 

— Compreendeu perfeitamente minhas palavras — prosseguiu Vittorio, em meio ao coro de risadas dos companheiros. — Sem dúvida, basta ir para a cama comigo.

 

— Que perspectiva maravilhosa! — exclamou Monique, revirando os olhos. — Será possível que eu, uma pobre mortal, tenha sido escolhida pelos deuses da felicidade para gozar de tão maravilhoso prazer sexual? Obrigada, deuses!

 

A gargalhada foi geral. Ignorando a fúria de Vittorio, Monique avançou para o interior do iate. Chegou à cozinha, onde um sujeito calvo e, gordo, com a cabeça coberta de cicatrizes, ficou olhando para ela, boquiaberto.

 

— Olá, Ênio — disse ela, sorrindo. — Estou com um apetite de lobo. Que temos pata o jantar?

 

— Saberá quando for servido. Ei, quem é você?

 

— Monique. Sou a última aquisição de Iago para a viagem a Londres. Teremos bons ventos navegando para lá?

 

— Engraçadinha! — vociferou o cozinheiro, enfezado.

 

— Trate de dar o fora da minha cozinha! Não quero ninguém aqui!

 

Monique voltou para a sala, rindo. O iate não parecia ter nada de especial. Só havia um detalhe: estava no Lago Leman, praticamente no centro da Europa. Seria impossível navegar para a capital da Inglaterra. Estava acendendo um cigarro, quando Iago tornou a entrar na sala e fez um sinal a Weil, informando: — Zarpamos Imediatamente. Para o centro do lago, Weil.

 

— Onde ficou seu companheiro? — perguntou Monique. — Deixou-o lá em cima com Markus, vigiando?

 

— Não. Schultz desembarcou — explicou Iago. — Tem algo a fazer em terra. Não precisamos dele aqui, por enquanto. Amanhã ou depois iremos recolhê-lo. Passaremos uns dias navegando pelo lago, para estudar o trabalho que nos espera em Londres. A primeira coisa a fazer...

 

— É jantar — atalhou Monique.

 

Iago a encarou, enrugando a tosta. Logo, porém, sorriu, readquirindo seu ar simpático, e exclamou: — Monique tem razão. Jantaremos. Depois, já no centro do lago, bem instalados, falaremos sobre o assunto.

 

O ditador

 

— Antes de tudo, quero que conheçam Ditador. Vejam-no.

 

A sala do iate estava às escuras. A imagem projetada na tela portátil destacou-se com bastante nitidez. Houve um movimento quase imperceptível de espanto. Espanto superado pela incredulidade. Quem menos se alterou foi Monique Lafrance. Externamente. Não soltou um suspiro, não teve a menor exclamação de surpresa. Permaneceu imóvel, com os olhos na imagem surgida na tela.

 

Tudo aquilo lhe parecia inacreditável. O homem aparentava sessenta anos e tinha a cabeça branca. Alva como a neve. Os cabelos caíam até os ombros. Suas feições eram bonitas e corretas. Dava a impressão de não pertencer ao planeta Terra e sim a outro mundo, onde tudo fosse perfeição. Era muito pálido. Como se nunca tivesse apanhado sol. Tinha a testa larga e um olhar cândido, bondoso. A boca entreabria-se num sorriso suave e terno.

 

Parecia incapaz de qualquer gesto brusco, de qualquer violência, de qualquer agressão. Era um velho anjo de olhos juvenis e doces. Olhos azuis, transbordantes de bondade.

 

— Estou sentindo a surpresa de todos vocês — disse Iago, satisfeito. — Este é Ditador. Na certa esperavam uma pessoa diferente, não é assim?

 

— Não parece real — murmurou Jordan.

 

— Pois é. Ditador existe. É ele quem financia tudo. É quem pensa e quem dirige. Quem conhecer Ditador, saberá que nada de mau deverá esperar dele, — Que iremos fazer em Londres, exatamente, Iago? — perguntou Monique, após um segundo de silêncio. — Você me perguntou se eu sabia manejar armas. Depois de ver a imagem de Ditador, não concebo ação alguma ligada a armas.

 

Os outros componentes do grupo apoiaram o comentário de Monique. Iago pediu que se calassem e foi colocar-se ao lado da tela, recebendo o reflexo da luz do projetor. A beleza e a elegância de Iago ficou eclipsada pela fisionomia angelical de Ditador.

 

— Compreendo o espanto de vocês — disse Iago. — Vou dar algumas explicações, portanto. Ditador aceita a jogada em todas as suas facetas. Existem coisas que só são possíveis com o uso de armas. Pois bem, quando é preciso, ele lança mão de armas. De qualquer modo, acreditem: Ditador não é a Maldade. É a Bondade.

 

— Seja lá o que for que fizermos em Londres, será bom e não mau? — perguntou Piotor.

 

— Exatamente.

 

— Com armas?

 

— Com armas.

 

— E o plano foi traçado por Ditador?

 

— Isso mesmo.

 

— Alguém deverá morrer?

 

— O objetivo é um homem, apenas. Se para eliminá-lo, mais alguns tiverem que cair, cairão.

 

— A quem deveremos matar em Londres? — perguntou Monique.

 

— Anthony Crossland, o ministro do Exterior britânico.

 

— Por quê? — quis saber Jordan.

 

— Pergunta interessante — sorriu Iago. — Responderei, depois de explicar o plano a ser realizado em Londres. Antes, gostaria de saber se têm mais perguntas a fazer. Fale, Monique.

 

— Estarei cometendo alguma indiscrição, supondo que temos alguma ligação com o grupo que praticou um atentado no aeroporto de Roma, contra o senhor Rumor, ministro italiano? Tenho bons motivos para fazer tal suposição, não é?

 

— A que motivos se refere? — Iago arqueou as sobrancelhas.

 

— Nikos Telika era meu amigo. Foi ele quem me falou no Rade-Bar. Ele estava com os homens que atacaram o senhor Rumor no aeroporto Leonardo da Vinci. Você está formando outro grupo para atacar outro ministro. Um inglês, agora. Também organizou o grupo que agiu em Roma? Ou não?

 

Todos os olhares se fixaram em Iago, em expectativa.

 

Ele sorriu, encarando Monique, o disse, sem se alterar: — Gosto de pessoas que raciocinam com certa lógica.

 

Realmente, Monique. Ditador organizou o atentado contra Mariano Rumor.

 

— Mas o atentado fracassou.

 

As palavras de Monique caíram como uma ducha de água gelada sobre os presentes. Um silêncio depressivo reinou durante alguns segundos. Só se ouvia o ruído das águas do lago, batendo no casco do iate.

 

— Outra coisa — prosseguiu ela. — O grupo era formado por sete homens. Um deles morreu no próprio aeroporto: Nikos Telika. Um americano faleceu quando era levado numa ambulância. Cinco escaparam, portanto, embora os jornais tivessem noticiado que três estavam feridos. Minha pergunta é a seguinte: onde estão esses cinco homens, Iago?

 

— Com Ditador.

 

— Com Ditador? Não pretende inclui-los no próximo trabalho?

 

— Está querendo sugerir que eles foram eliminados, Monique? — balbuciou Iago, com uma ruga na testa.

 

— Não. De modo algum. Gostaria de saber para onde foram, já que iremos para o mesmo lugar, se sobrevivermos a esse serviço em Londres.

 

Um murmúrio de aprovação elevou-se na sala. Iago ergueu as mãos pedindo silêncio.

 

— O Ditador tem a intenção de organizar um grupo com os sobreviventes das missões de saneamento. Esses homens são afastados do serviço ativo após a primeira missão e passam a ser treinados no Retiro. É um modo de selecioná-los. Mas estão bem. Vivem com todo o conforto, recebendo um salário mensal que lhes permite depositar economias avultadas no banco que desejarem.

 

— Que é o Retiro? E que ação saneadora é essa?

 

— Senhorita Lafrance — cortou Iago secamente. — A senhorita e seus companheiros aqui presentes irão conhecendo os detalhes, pouco a pouco, de acordo com as normas estabelecidas pelo Ditador. Cada coisa no momento indicado. Quem não estiver de acordo, trate de se manifestar. Podemos desembarcá-lo imediatamente. Alguém deseja desembarcar?

 

— Posso fazer uma pergunta? — murmurou Vittorio.

 

— Faça — autorizou Iago.

 

— Por que fracassou o atentado de Roma?

 

— Boa pergunta — sorriu Iago, friamente. — Fracassou porque eu não soube escolher o pessoal adequado. Essa é a verdade. O plano de Ditador era perfeito. Como o próximo.

 

— Se aqueles homens falharam, por que os contratou?

 

— quis saber Monique.

 

— Porque não foram eles que falharam e sim seu amigo Nikos Telika e o americano. Precipitaram-se. Estavam nervosos demais. Isso pôs tudo a perder. Talvez aconteça o mesmo desta vez. Depende de vocês. De qualquer modo, eu estarei perto e verei quem interessa ser levado para o Retiro e quem não interessa. Os escolhidos irão juntar-se aos outros. Os demais receberão o pagamento e serão dispensados. Mais alguma dúvida? Alguém deseja abandonar o iate?

 

Silencio absoluto. Iago sorriu, satisfeito. Ligou o gravador que estava numa mesinha e uma voz lenta, suave, doce, de tom acariciante, chegou aos ouvidos do grupo ali reunido: — Apesar de ainda não nos conhecermos, agradeço terem concordado em trabalhar comigo para o bem de todos. Ficarão surpresos, sem dúvida, quando receberem ordens de usar armas. Ordens dadas por mim. Não se espantem. Só farei isso quando for necessário. Quando não houver outro remédio. Nosso objetivo final não é matar, acreditem. É precisamente o oposto: viver. E deixar viver.

 

Conformem-se com essas explicações, por enquanto, suplico. A meu lado, não serão considerados aventureiros ou assassinos. E sim, pessoas de bem, como me vanglorio de ser. Matar será para nós apenas um meio. Um meio desagradável, deprimente, tristíssimo. Mas inevitável. Até nos compreendermos, assim deverá ser, infelizmente. Todos conhecem meu fiel Iago. Obedeçam a ele, como obedeceriam a mim. Deem-lhe a máxima atenção. Espero vê-los a todos muito breve, no Retiro. Até lá. Adeus.

 

A mensagem falada terminou. Todos compreenderam que se tratava da voz do Ditador, cuja imagem continuava projetada na tela. E permaneceu, quando Iago começou a expor o plano pare assassinar o ministro inglês.

 

— Nosso ponto de ataque será precisamente a câmara número 10 de Downing Street. É lá que o Primeiro Ministro Britânico exerce suas atividades. É uma espécie de Casa Branca para os ingleses. Uma vez por semana, quando não está viajando. Anthony Croosland, o ministro do Exterior, vai a Downing Street 10 para conversar com o Primeiro Ministro. Bem, mudemos o slide para todos entenderem melhor.

 

A imagem do Ditador desapareceu, cedendo lugar a um trecho do plano urbanístico de Londres.

 

— Aqui está Downing Street — prosseguiu Iago, indicando um ponto com uma varinha. — Uma ruazinha insignificante, mas muito estratégica. E elegante, também.

 

Vejam como ocupa uma posição interessante. Fica entre o famoso St. James Park, a Tesouraria, o Foreign Office e Whitehall Street. Exatamente defronte de um distrito policial. Não podemos duvidar que a zona seja severamente vigiada.

 

Vinte minutos depois, o plano havia sido totalmente explicado. De ponta a ponta.

 

— Alguma pergunta? — murmurou Iago.

 

— Tenho duas — disse Monique.

 

— Isso confirma que as mulheres são mais curiosas que os homens. Quais são as perguntas?

 

— Trata-se da primeira que fiz, no início da reunião. Por que vamos matar Anthony Croosland?

 

— Porque ele merece a morte. Nosso tribunal assim decidiu. E nosso tribunal jamais se engana.

 

— A que tribunal se refere?

 

— Saberão no momento oportuno. Os que conseguirem chegar ao Retiro, é claro. Quem não for para lá, não precisa ficar sabendo de certos detalhes. Faça a última pergunta.

 

— A que se referiu, quando falou ação saneadora?

 

— Essa é a função de nosso tribunal. Saberá de que se trata, se chegar ao Retiro.

 

— Muito bem — suspirou Monique. — Calo a boca para não aborrecê-lo com minha curiosidade, Iago.

 

— Perfeito. Guarde suas perguntas para outra ocasião, Avisarei quando chegar a hora de fazê-las. Por enquanto, é só. Alguém quer beber qualquer coisa?

 

— champanhe, se for possível — pediu Monique, levantando sua mãozinha delicada.

 

Todos os olhares se voltaram para ela. Vittorio sorriu com ar libidinoso e murmurou: — Sim, senhor! Isso é o que eu chamo de prostituta de luxo.

 

— E você é o que eu chamo de um porco de gravata — retrucou a senhorita Lafrance, sem se alterar.

 

Vittorio tornou a empalidecer. Os companheiros soltaram uma gargalhada. Iago fez um gesto pedindo harmonia entre o grupo e foi até à cozinha perguntar a Ênio se havia uma garrafa de champanhe no iate. Havia, é lógico.

 

Pouco depois, Monique ergueu sua taça, dirigindo aos presentes um olhar insinuante e fez um brinde: — Brindo à vida, se Iago não se opuser.

 

— Ao contrário — exclamou o desportista. — Como disse antes, nosso objetivo é: viver e deixar viver.

 

— Menos ao senhor Anthony Croosland, ministro britânico — acrescentou Monique. — Saúde, cavalheiros, e feliz assassinato.

 

Visitante inoportuno

 

O iate estava no mais absoluto silêncio. Deitada no beliche do camarote que lhe haviam dado, Monique Lafrance consultou a esfera luminosa de seu reloginho de pulso. Meia-noite e meia. Todos se tinham recolhido por volta das dez. Logo, já deviam estar nos braços de Morfeu, sonhando com os anjinhos. Tirou o rádio de baixo do travesseiro, onde o colocara ao se deitar, e apertou o botão de chamada. Não obteve resposta. Insistiu segundos mais tarde e ouviu uma voz de homem atender com o habitual “alô”.

 

— Baby, em Genebra — balbuciou Monique. — Ouça com atenção, Johnny. Não posso repetir o que vou dizer. Daqui a seis dias, em Londres, o ministro britânico do Exterior, Anthony Croosland, sofrerá um atentado em frente ao número 10 da Downing Street. Não posso dar detalhes. Envie um dos nossos a Londres e mando-o procurar John Pearson*, no MI5

 

John Pearson, também conhecido como Fantasma, chefe do MI5 britânico e um dos grandes amigos de Baby

 

— John Pearson? O que diremos e ele?

 

— É um velho amigo meu. Avisem do atentado. Ele não hesitará em seguir as instruções de Baby

 

— Que instruções?

 

— Por enquanto, estas: não deixem transparecer que sabem do atentado. Chegarei a Londres em alguns dias. Entrarei em contato com o senhor Pearson, usando a onda de nossos companheiros do Setor Ilhas Britânicas. Um de meus Johnnies deve acompanhá-lo com um rádio, é evidente.

 

— Onde você está?

 

— Num iate chamado Vicking, ancorado no Lago Leman. Não sei dizer em que ponto. Quem manda aqui é um tal Iago. Rapaz atraente e simpático. É uma espécie de secretário de alguém que aparece com o nome de Ditador. Ele nos espera não sei onde, depois do atentado. No Retiro, onde dispõe de um tribunal que decide quem devo viver e quem deve morrer. Foi esta gente que tentou assassinar Mariano Rumor, há dias, em Roma. No aeroporto Leonardo da Vinci, quando nosso companheiro Arnold Buckee foi mortalmente ferido.

 

— Mais alguma coisa?

 

— Não. Já falei demais. Cumpram minhas determinações.

 

Desligou o rádio e sentou-se no beliche. Estendeu a mão para apanhar a maletinha vermelha.

 

Naquele momento ouviu batidas abafadas na porta do camarote. Guardou o rádio rapidamente e colocou a maletinha no beliche superior. Em seguida sem fazer ruído, aproximou-se da porta, perguntando: — Vittorio. Abra, Monique.

 

— Deixe-me em paz.

 

— É melhor obedecer. Ou prefere que eu vá falar com Iago?

 

Monique passou a língua pelos lábios. Só então se lembrou de que estava sem a maquilagem especial e sem os enchimentos do rosto e das fossas nasais. E sem as lentes de contato escuras. Se Vittorio a visse, veria Brigitte Montfort e não Monique Lafrance.

 

— Um minutinho.

 

— Se não abrir dentro de três segundos, começarei a bater com força e acordarei o iate todo. Um, dois...

 

Monique abriu a porta, sem acender a luz. Duas lâmpadas fracas iluminavam o corredor. Vittorio entrou apressado e murmurou: — Não acenda a luz.

 

— Está bem — concordou Monique, com um suspiro de alívio. — Que deseja? Você me acordou.

 

— Mentira. Não estava dormindo, Ou costuma falar durante o sono? Nada de querer me tapear, bem? Jordan e eu ocupamos o mesmo camarote. Esperei Piotor chamá-lo para fazer a vigia. Jordan subiu para o convés e Piotor já deve estar dormindo. Meu turno é às três da manhã. Até lá, estou livre, entendeu?

 

— Não.

 

— Eu explico. Ficarei deitado com você até chegar a hora de Jordan descer ao camarote para me chamar.

 

Voltarei para lá, pouco antes das três. Entendeu agora?

 

— Escute, Vittorio...

 

— Pense bem. Ou nos divertimos um pouco em sua cama, ou irei dizer a Iago que você sonha em voz alia.

 

— Faça o que quiser. Mas não vai por o dedo em cima de mim, porco! Saia daqui!

 

— Espertinha, hem? Se eu sair, você correrá até o convés e pulará na água, tentando escapar, enquanto eu vou falar com Iago. Não é assim?

 

— Não seja aborrecido, Vittorio — balbuciou Monique Lafrance, sentindo um calafrio.

 

— E você, deixe de ser teimosa — as mãos de Vittorio pousaram nos seios da espiã, cobertos apenas pela camisola de náilon. — Por que esse luxo? Qual é a diferença de ser possuída por um grego ou um italiano? Acha-me tão repugnante, assim?

 

— Não, mas o momento não é próprio para...

 

— Tolice — cortou Vittorio, beijando-a no pescoço. — Qualquer hora serve para se fazer amor.

 

Vittorio não enxergava mais nada. O desejo de possuir aquele corpo macio dominava-o inteiramente. Em outros tempos, talvez Brigitte Baby Montfort tivesse cedido à vontade do italiano, para evitar complicações. Em outros tempos, quando a imagem de Número Um não tomava conta de seu pensamento nas vinte e quatro horas do dia.

 

Foi o que aconteceu naquele instante. A imagem do homem a quem amava surgiu em sua cabeça no momento exato, quando Vittorio tentava despi-la da camisola.

 

Monique Lafrance sentiu-se empurrada para o beliche e não pensou duas vezes. Seu punho direito descreveu um círculo no ar, atingindo a base da orelha do adversário, num Wemi violento.

 

O efeito só podia ser um: a morte. Vittorio abriu a boca, sem fôlego. Monique amparou-o, evitando que o corpo fizesse barulho ao cair no chão.

 

A espiã mais perigosa do mundo ajoelhou-se ao lado do cadáver, sem saber o que fazer. A claridade da noite estrelada entrava pela vigia. Não. Impossível jogar Vittorio na água por aquela abertura tão pequena. Jordan estava de sentinela no convés. Não seria fácil jogar Vitorio pela amurada, sem ser vista.

 

A mente humana, porém, é prodigiosa. Sempre encontra solução para tudo. Basta a pessoa estar numa situação desesperada e querer agir. Foi o que aconteceu com Monique Lafrance. Ficara intrigada com o desaparecimento de Schultz, pouco depois de ela ter chegado em companhia de Iago. O que ele teria ido fazer? Lembrando-se do homem que se retirara, uma ideia surgiu.

 

— Posso estar enganada — pensou ela. — Mas não custa tentar. Vão ter uma baita surpresa.

 

Iago acordou assustado, batendo com e cabeça no beliche de cima. Acendeu a luz. Um grito ecoara por todo o iate. E continuava Acompanhado de um grito de mulher. Ouviu uma pancada forte, como uma porta batendo contra a parede.

 

Iago agarrou a pistola que deixara cm cima das roupas e correu para o corredor. Encontrou-se com Ênio, o cozinheiro, que também exigira um camarote só pera ele.

 

— Que aconteceu? — vociferou Ênio.

 

Iago não respondeu. Os gritos da mulher continuavam.

 

Só podiam ser de Monique. Outra porta escancarou-me.

 

Piotor e Lukas apareceram estremunhados. Weil e Markus também saíram de seu camarote. Os passos pesados de Jordan ecoaram na escada que ligava a sala ao convés, e logo sua voz se fez ouvir, perguntando o que estava acontecendo ali dentro.

 

Piotor foi o primeiro a chegar à porte da camarote de Monique, seguido de Lukas. Iago chegou logo depois.

 

Afastou-os, acendeu a luz e entrou com a pistola em punho.

 

Ficou arrepiado ao deparar com Monique quase nua junto ao beliche, também empunhando uma arma.

 

— Solte essa pistola! — ordenou Iago.

 

Monique estava olhando para Vittorio, caído no meio do camarote. Voltou a cabeça para Iago, pestanejou, engoliu em seco e soltou a arma. Iago fez um sinal a Piotor, que se ajoelhou ao lado de Vittorio e lhe tomou o pulso, apesar de ter visto o orifício na testa do italiano.

 

— Está morto — murmurou, voltando-se para Iago.

 

Iago avançou em direção a Monique. Os outros, da porta, contemplavam extasiados aquele carpo dourado coberto por uma camisola transparente.

 

— Que aconteceu? — perguntou Iago.

 

— Não sei — balbuciou ela. — Quis verificar se Vittorio era tão macho como dizia e resolvi ir ao camarote dele. Esperei Jordan subir para render Piotor. Quando Piotor se fechou para dormir, fui fazer uma surpresa a Vittorio.

 

Esgueirei-me pelo corredor. Empurrei a porta da cabina e entrei. Vittorio estava falando sozinho, num sussurro.

 

Imaginei que costumasse falar dormindo. Sabem o que aconteceu depois? Ao me ver ali, ele ficou furioso. Pulou em cima de mim, dizendo que ia matar-me. Lutei com ele e nem sei onde encontrei forças para livrar-me de suas garras.

 

Consegui escapar. Corri para meu camarote e fechei a porta.

 

Ele escancarou-a com um pontapé brutal e avançou para mim. Agarrou-me pelo pescoço e começou a apertar. Dei-lhe uma joelhada nas virilhas. Vittorio soltou-me. Não perdi tempo. Costumo colocar minha pistolinha em baixo do travesseiro, antes de dormir. Apanhei-a, decidida a tudo.

 

Ouvi a respiração ofegante do italiano, avançando para tornar a me agarrar.

 

Não hesitei. Ergui a arma e puxei o gatilho.

 

— No escuro? — exclamou Piotor. — Sua pontaria é formidável, Monique!

 

—Atirei às cegas. Sem saber para onde. Juro! Mal via o vulto de Vittorio. Parecia uma fera. Se eu não abrisse fogo, ele acabaria comigo.

 

— Tudo isso é absurdo — rosnou Iago.

 

— Vittorio não podia estar falando com alguém — murmurou Jordan, intrigado. — Eu estava no convés.

 

Piotor foi até o camarote do morto. Todos ficaram em expectativa. Um segundo depois, o russo gritou: — Ei! Venham ver uma coisa!

 

Iago apanhou a pistolinha de Monique e fez sinal à espiã para acompanhá-lo.

 

— Vou vestir-me — disse ela.

 

— Não é preciso. Já vimos muitas mulheres nuas.

 

— Nenhuma igual a ela — comentou Weil, sem se conter.

 

— Nada de tolices no grupo — atalhou Iago, friamente.

 

— Vamos ver o que Piotor encontrou.

 

Quando entraram no camarote de Vittorio, o russo apontou o beliche, Iago aproximou-se e viu o rádio portátil.

 

Apanhou-o, empalidecendo. Apertou o botão de chamada e aguardou. Uma voz de homem, falando inglês, ecoou pela cabina: — Victor? Por que cortou a comunicação bruscamente? Victor... Victor...

 

Iago desligou o rádio com um gesto brusco.

 

Suas veias estavam inchadas, como se fossem explodir a qualquer momento. Soltando um palavrão, voltou-se para Weil e ordenou: — Faça uma chamada pelo rádio de bordo. Peça os carros para nos apanharem. Como nas outras vezes, você o Ênio levarão o iate para o esconderijo. Modifiquem o aspecto da embarcação e mudem o nome. Peçam também para enviarem um recado a Schultz, no Albergue Califórnia, em Roma, aonde ele chegará amanhã cedo. Digam que ele deve voltar imediatamente e ir pera o iate ajudar vocês dois.

 

Weil correu para o convés. Os restantes se entreolharam atarantados, sem saber o que fazer, Iago voltou-se para o camarote de Monique e ordenou: — Jordan, Lukas e Piotor: lastrem o cadáver de Vittorio e atirem-no na água.

 

— Pelo jeito, não se chamava Vittorio e sim, Victor — comentou Piotor.

 

— Sim. Eu temo que algo nesse gênero acontecesse mas não desconfiei de Vittorio. Quando decidi aparecer no Rade-Bar foi para certificar-me se haviam ou não reparado uma armadilha. Os repórteres disseram que um dos terroristas que tomaram parte no atentado contra Mariano Rumor morrera no aeroporto e que o outro falecera na ambulância, a caminho do hospital. O da ambulância podia ser o americano. Talvez tivesse falado algo sobre os encontros no Rade-Bar ou mais coisas ainda, que nos comprometessem. O maior perigo é sermos obrigados a enfrentar a CIA — A CIA? — estremeceu Jordan. — Por quê?

 

— Quando contratei Buckee, no Rade-Bar, não sabia que ele era da CIA. Schultz descobriu depois do atentado contra Mariano Rumor. Só encontramos duas explicações para a atitude de Buckee. Primeira: aceitou trabalhar para Ditador a fim de ganhar um dinheirinho extra, sem se comprometer, pois a CIA jamais ficaria sabendo de sua participação no atentado. Segunda: talvez tivesse aparecido no Rade-Bar a serviço, a mando da própria CIA. Se isso fosse verdade, estaríamos correndo perigo . Que teria dito o americano a seus companheiros de organização? Ou à polícia italiana? Pelo jeito ele se comunicou com a CIA, pois o homem que chamou há pouco pelo radinho falou em inglês. Conclusão: Victor, seguindo a pista fornecida por Buckee, infiltrou-se entre nós para destruir nossa organização.

 

— Não creio que Buckee estivesse trabalhando para a CIA — disse Monique. — Se assim fosse, ela teria impedido o atentado contra o senhor Rumor. E Buckee não seria crivado de balas no aeroporto Leonardo da Vinci. A primeira suposição parece-me a mais acertada. Aceitou trabalhar com vocês para ganhar dinheiro e pronto. A CIA só deve ter tomado conhecimento de tudo, depois do atentado. Pelo jeito, nem Buckee nem Vittorio puderam fornecer boas informações.

 

— Ela tem razão — apoiou Piotor. — Isso, portanto, não afasta a realidade: catamos em perigo! Claro! Se a CIA estiver em nossos calcanhares, naturalmente!

 

— Não se preocupem — atalhou Iago. — Weil nos lavará para um ponto do lago, onde desembarcaremos a salvo. Em seguida ele esconderá o iate. Não daremos tempo a adversário algum de nos atacar.

 

— E não iremos mais a Londres. Vittorio deve ter falado sobro o plano contra o ministro britânico.

 

— Sem dúvida. Esperaremos. Não temos pressa.

 

— De qual de nós você desconfiava, Iago? — perguntou Monique. — Quem você imaginava que estivesse trabalhando para a CIA?

 

— Você, querida Monique.

 

— Eu? Que tolice!

 

— Talvez. Os outros já estavam a bordo. Fiquei tentado a não recrutar mais ninguém, mas voltei ao Rade-Bar. Vi-a com a Bíblia. E pensei que fosse você.

 

— Espero que esteja convencido de que se enganou — suspirou ela. — Posso ir vestir-me? Se devemos abandonar o iate, não posso fazê-lo nestes trajes tão sumários, não acha?

 

— Claro que não.

 

— Para onde iremos? — perguntou Markus.

 

— Para o Retiro — disse Iago.

 

O retiro

 

— Podem tirar a venda — disse Iago.

 

Monique desfez o nó duplo do lenço preto que lhe cobria os olhos. Aproveitou para rememorar tudo que acontecera até aquele momento. Haviam desembarcado num ponto qualquer do Iago. Calculara tratar-se de Morges, pois vira o reflexo das luzes de Lausane. Não pudera entrar em contato com Johnny porque perdera um de seus rádios na cena que preparara para se livrar do cadáver de Vittorio. Restava-lhe apenas o radinho camuflado no maço de cigarros, mas só o usada quando tivesse certeza absoluta de poder fazê-lo sem perigo.

 

Johnny agira muito bem, seguindo as instruções dada por ela, antes de começar a grande cena para acordar todos no iate. O companheiro da CIA dissera o que ela recomendara e com isso Iago engolira a pílula. Já não desconfiava dela. Podia, portanto, prosseguir a jogada com certa tranquilidade.

 

Ao desembarcarem do iate foram recolhidos por dois automóveis, cujas placas não pode ver. Neles viajaram sem parar, até pouco antes do amanhecer. Depois de tantas horas de viagem.

 

Monique Lafrance já não sabia dizer onde se encontrava.

 

Continuavam na Suíça, sem dúvida, pois não haviam atravessado fronteira alguma. Chegando ao helicóptero que os aguardava numa clareira do bosque, Iago ordenou ao grupo que vendasse os olhos com um lenço preto. O aparelho levantou voo. No fim de alguns minutos receberam ordens para tirar a venda.

 

Ao livrar-se do lenço, Monique olhou para baixo. Viu apenas montanhas e mais montanhas.

 

Não havia a menor possibilidade de saber onde estavam.

 

Não existia detalhe algum capaz de indicar a posição do voo. Só montanhas, o céu azul e o sol.

 

— Onde estamos? — perguntou Jordan.

 

— Falta pouco para chegarmos ao nosso destino — informou Iago.

 

— Daqui a cinco minutos estaremos lá — acrescentou o piloto do helicóptero.

 

Antes que Iago tornasse a falar, Monique soube que matavam chegando. A construção surgiu diante deles. Um enorme casario pintado de branco, com telhado vermelho e janelas marrons. Assemelhava-se a uma infinidade de alberguem existentes nas montanhas suíças.

 

— Estamos em casa! — exclamou Iago.

 

— Ditador está ali? — perguntou Piotor.

 

— Talvez — riu Iago.

 

— Estou pensando uma coisa interessante — disse Monique. — Gostariam de ouvir as ideias descabeladas de uma aventureira?

 

— O que eu gostaria era que você fosse para a minha cama esta noite — murmurou Markus. — Ou só gosta de brutos como Vittorio?

 

— Vittorio representava um papel, tentando convencer-nos de que era um aventureiro, quando na realidade não passava de agente da CIA — atalhou Monique. — Não pensou nisso, cabeça dura? Quanto a deitar-me com você, por que não? Se me pagar bem, é claro.

 

— Quanto? — riu Jordan.

 

— Por falar em pagamento, ainda não recebemos nossos dez mil dólares, senhor Iago — disse Piotor, com a fisionomia contraída.

 

— Não precisarão de dinheiro num lugar como este, onde tudo está pago.

 

— Tudo? — exclamou Jordan. — Inclusive uma noite com Monique?

 

— Para pagar uma noite comigo precisariam de muito dinheiro, idiotas. Nem juntando a parte de iodos vocês, alcançariam meu preço.

 

— Não diga! Por cem dólares consigo em Roma ou em qualquer grande cidade uma mulher que...

 

— Cale a boca — cortou o russo. — Melhor que Monique? Duvido! Vamos ouvir o que ela tinha a dizer.

 

Qual foi a ideia descabelada que passou por sua cabecinha?

 

— Foi o seguinte: em minha opinião, Ditador não existe.

 

O helicóptero pousou naquele instante. As palavras de Monique atordoaram todo o grupo. Voltaram-se para ela, espantados, com um olhar interrogativo. As hélices do helicóptero pararam pouco a pouco. Quando deixaram de girar, um silêncio pesado dominou o interior do aparelho.

 

— Monique tem uma imaginação fantástica — riu Iago, quebrando a tensão. — Bem, chegamos. Podem descer.

 

Mal puseram pé em terra, vários homens surgiram, vindos do albergue. Usavam roupas apropriadas às montanhas: calças grossas, camisas de malha, botas, gorro na cabeça. Parecia uma reunião de pessoas em férias. Mas não havia mulheres. Ao redor do albergue espalhavam-se trechos planos de terreno, coberto de flores azuis, muito delicadas. Monique vira do alto flores iguais aquelas, nas montanhas que cercavam o local, — É aqui que treinam o pessoal selecionado para o grupo? — perguntou ela, voltando-se para Iago.

 

— Exato.

 

— Na certa estamos bem equipados com rádio, telefone etc, eh? Existe por aqui outra construção camuflada de onde se pode observar tudo ao redor, usando binóculos?

 

— Por que haveria uma coisa dessas?

 

— Pensei que Ditador se encontrasse nela.

 

— Resolva logo — sorriu Iago. — Afinal, Ditador existe ou não?

 

— Saberei, quando o conhecer — replicou Monique, sem se alterar com o tom de ironia da pergunta.

 

Iago concordou com um movimento de cabeça e afastou-se do grupo, conversando com dois homens que tinham vindo do albergue. Um deles apressou o passo e entrou no prédio. O outro continuou acompanhando Iago.

 

Um terceiro homem, seguido de mais alguns, saiu do albergue, mal o outro entrou. Monique contou-os.

 

Dezenove. Todos carregando armas de cano curto: pistolas comuna, automáticas, fuzis especiais. O helicóptero parecia uma bola de fogo, recebendo os raios do sol nascente.

 

— Acorde — exclamou Markus, dando uma palmada nas nádegas de Monique. — Iago está chamando.

 

Aproximaram-se do líder do grupo, Iago indicou o homem que ficara conversando com ele e informou: — Este é Fritz. Ele instalará vocês no Retiro e lhes dará armas, roupa adequada e tudo que precisarem. Podem descansar durante o dia de hoje. Os treinamentos começarão amanhã.

 

Iago despediu-se com um aceno geral e voltou-se para o helicóptero, ordenando: — Ei, Van! Pode esconder o aparelho!

 

Entraram no albergue. Franz levou-os pelos corredores, dando instruções. Monique acompanhou-os maquinalmente, prestando atenção ao motor do helicóptero que voltara a ecoar naquele instante. Onde poderiam esconder o aparelho? Se fosse ali perto, o ruído do motor silenciaria dentro em breve e ela poderia fazer um cálculo aproximado.

 

— Ei, pequena — exclamou Franz. — Não está ouvindo?

 

— Desculpe. Sim, sim, estou — disse ela, voltando sua atenção para Franz, que tinha um aspecto viril e simpático.

 

— E está de acordo?

 

— Naturalmente.

 

Um coro de risadas acompanhou a piscadela de olho que Franz deu para o grupo recém-chegado. Monique encarou os companheiros, furiosa, e perguntou: — Qual foi a piada?

 

— Sabe onde estamos? — murmurou Piotor.

 

Monique olhou ao redor. Estavam num salão onde só havia beliches em fileiras de três.

 

— No dormitório do Retiro, é claro, idiota — disse ela, de cabeça erguida.

 

— Acertou. E Franz acaba de dizer que, com nossa chegada, o número de colaboradores excedeu o de beliches.

 

Sugeriu, portanto, que você não tivesse um fixo. Cada noite dormiria num diferente. Desse jeito o problema estaria resolvido e o pessoal ficaria contentíssimo com a possibilidade de passar uma noite em boa companhia.

 

— E você disse que estava de acordo — riu Lukas.

 

— Preciso pensar novamente. Todo dia é demais.

 

— Daremos um jeito de solucionar o problema dos beliches — exclamou Franz, dando uma palmadinha no ombro de Monique. — Não se preocupe. Esta maletinha é sua bagagem?

 

— Sim. Trago nela uns objetos pessoais, muito femininos. Quanto à roupa, só a do corpo. Fornecerão o que for necessário, não é?

 

— Claro — assegurou Franz. — Bem, fiquem à vontade.

 

Até logo.

 

— Não vamos ver o resto do quartel? — perguntou a espiã.

 

— Mais tarde. Se estiver muito curiosa, posso servir de guia turístico.

 

— Não se incomode. Deve ter coisas mais importantes a fazer lá fora, não? — sorriu Monique.

 

— Fica para depois.

 

Franz despediu-se e saiu do dormitório. Os recém-chegados entreolharam-se Jordan e Piotor escolheram duas camas e deitaram-se, decididos a dormir durante algumas horas. Lukas propôs darem uma volta pelo prédio: Monique e Markus aderiram à ideia. Jordan e Piotor responderam com um ronco exagerado, como se já estivessem ferrados no sono.

 

Meia hora depois, Monique acomodou-se numa das camas. Custou a dormir. De olhos fechados rememorou o que vira pouco antes. O dormitório tinha duas entradas.

 

Uma, dava diretamente para o exterior. A outra comunicava com a sala-biblioteca do albergue. A sala de jantar tinha lugar para trinta pessoas. Havia ainda quatro salas de aula, com carteiras, quadro-negro e mapas pendurados nas paredes. Vira também uma galeria de tiro, em cuja entrada ficavam o armeiro e um pequeno paiol. Tudo bem cuidado, bem planejado. Se alguém chegasse ali de surpresa, bastaria fechar a galeria de tiro e ninguém desconfiaria de sua existência. Para todos os efeitos, o albergue fora transformado numa espécie de centro particular de formação profissional de executivos para empresas europeias de grande importância.

 

Mergulhada em suas reflexões, acabou adormecendo.

 

Acordou, ao sentir o bafo de Lukas em seu rosto. Abriu os olhos e deparou com ele a seu lado. Com a mão pousada em seu seio.

 

— Ei! — exclamou ele, rindo. — Não quer comer alguma coisa? São duas horas da tarde.

 

Plaf! A bofetada estalou. Lukas soltou um grito, perdendo o equilíbrio, e caiu para trás. Conseguiu agarrar-se ao beliche de baixo, onde subira para acordar a francesa, que se deitara no de cima.

 

— Aprenda, ouviu? — disse ela, vendo o companheiro caído no chão. — Se tocar em mim outra vez, ficará sem dentes! Meus seios não são brinquedos de borracha para você apertar à vontade, idiota! Se esquecer meu aviso, pior para você.

 

Foram para a sala de refeições. Monique conheceu os outros colaboradores do Ditador e foi tirando conclusões.

 

Não se enganara em suas deduções anteriores. Todos eles eram aventureiros de categoria inferior. Gente decidida, capaz de degolar um canário em troca de alguns centavos.

 

Uns mais rudes, outros maia simpáticos. No fundo, porém, eram todas iguais: aventureiros para quem a vida humana tinha pouca importância. Como já lidara com gente daquela espécie, Monique tratou de mostrar-se simpática, deixando bem claro que não estava disposta a dormir cada noite no beliche de um deles.

 

Por volta das cinco da tarde, Monique estava sentada numa pedra, observando as evoluções de um grupo de homens treinando um ataque simulado. Franz aproximou-se e disse-lhe ao ouvido: — Venha comigo. Precisamos conversar.

 

Minutos depois entravam na biblioteca, que era também saia de descanso. Estava vazia. Franz indicou uma poltrona.

 

Monique sentou-se. Ele foi até a cafeteira e serviu dois cafés .

 

— Sobre que vamos conversar? — perguntou a espiã, quando ele se aproximou com as duas xícaras.

 

— Tome o café primeiro — respondeu ele. — Tipo italiano, com bastante pressão e com creme.

 

— Não estou com vontade, Franz. Podemos começar nossa conversa.

 

— Depois. É melhor beber.

 

Franz tomou o dele, demonstrando enorme satisfação.

 

Monique observou-o em silêncio. Finalmente tomou o seu, aos goles, saboreando a bebida.

 

Quando acordou não estava mais na biblioteca do Retiro.

 

O tribunal

 

A primeira coisa que fez ao abrir os olhos foi ver as horas em seu relógio de pulso. Eram seis e meia. Dormira, portanto, quase uma hora.

 

— Está passando bem, Monique?

 

A espiã virou a cabeça e viu-o. Ali estava Ditador. Era bonito, nobre, angelical e doce, como na fotografia que Iago projetara a bordo do iate. Os cabelos brancos pareciam de neve. Os olhos azuis tinham uma expressão sorridente, quase de amor.

 

— Estou — respondeu Monique. — Obrigada.

 

— Felizmente. Iago me falou muito a seu respeito.

 

Monique olhou para todos os lados. Estava recostada num sofá, numa salinha acolhedora, semelhante a das casas de campo inglesas. A decoração lembrava o período vitoriano. Móveis escuros, quadros de qualidade, uma vitrina de cristais, uma estante com vidros. A lareira de pedra estava apagada e o ruído de um condicionador de ar chegava até ela, suavemente.

 

— Que disse Iago de mim? — interessou-se Monique.

 

— Ele a acha muito inteligente e dotada de grande capacidade dedutiva e analítica. Foi a única pessoa de nosso grupo que impressionou Iago.

 

— Iago é muito gentil. Onde está ele?

 

— Ocupado — sorriu Ditador. — Talvez possa aparecer mais tarde.

 

Monique arqueou as sobrancelhas num gesto divertido e preocupado ao mesmo tempo. Concentrou sua atenção naquele surpreendente personagem, cuja carne era branca demais. Dava a impressão de jamais ter tido contato com o sol. Vestia-se bem. Era elegante, sóbrio, correto.

 

— Espero merecer sua aprovação — sorriu Ditador, notando que ela o analisava.

 

— Claro — sorriu Monique, por sua vez.

 

— Obrigado. E obrigado por ter resolvido aquela pequena dificuldade no iate. Procuramos agir com cuidado, mas as surpresas são inevitáveis quando recrutamos homens com certas características. Não podemos impedir que um agente secreto se infiltre em nossas fileiras. Arnold Buckee, por exemplo, pretendia apenas ganhar os dez mil dólares que oferecemos como primeiro pagamento aos homens a quem testamos, antes de trazer para cá.

 

— O teste é sempre o mesmo? Obrigam-nos a cometer um assassinato?

 

— Assassinato? — balbuciou Ditador, enrugando a testa. — Quis dizer: execução?

 

— Dá no mesmo.

 

— De modo algum. Assassinato é a eliminação criminosa de uma pessoa ou de várias. Execução é o cumprimento de uma sentença ditada contra pessoas culpadas de crimes merecedores de pena de morte. Não está de acordo?

 

— Se não me engano, refere-se ao Tribunal que Iago nos mencionou.

 

— Exato.

 

— Quem compõe esse tribunal? Quem são os jurados?

 

— Gostaria de conhecê-los?

 

— Naturalmente.

 

Ditador sorriu. Agitou a sineta que estava em cima da mesinha. Uma jovem desbotada, de uniforme preto, apareceu em seguida, com um sorriso nos lábios. Tinha o aspecto culto de criada britânica de uma casa rica.

 

— Por favor, Jenny — pediu Ditador. — Diga à senhora que tenha a bondade de vir com toda a família, sim?

 

— Agora mesmo, senhor. Posso servir o chá?

 

— Vamos esperar os outros. Importa-se de esperar, Monique?

 

— Não — murmurou ela.

 

Jenny retirou-se. Ditador pegou a caixa de cigarros da mesinha e ofereceu. A espiã aceitou em silêncio.

 

— Jenny é moça prestativa, não acha? — prosseguiu Ditador, acendendo o cigarro de Monique. — Iago tem bom olho para escolher o pessoal do Retiro. Renovamos os empregados anualmente. Eles não sabem onde estão.

 

Servem durante um ano num lugar desconhecido, para onde são levados de helicóptero. É um ano difícil, sem sol, sem ar livre. Economicamente, porém, é bastante compensador.

 

— Compreendo — disse Monique, soltando uma baforada. — Não vi os feridos no Retiro. Ditador.

 

— Feridos? — espantou-se delicadamente o estranho personagem.

 

— Dois homens morreram no atentado contra o senhor Rumor e dois ficaram feridos. Onde estão os que escaparam com o resto do grupo?

 

— Ah, sim. Tem razão. Iago cuida disso. Temos uma clínica onde nossos feridos se recuperam, antes de voltar ao trabalho. Se quiserem voltar.

 

— E se não quiserem?

 

— Pagamos e lhes dizemos adeus. Como rezam as escrituras muitos são chamados, mas poucos são eleitos. Quem não quiser estar ao meu lado na hora final, paciência. Sairá perdendo, é claro.

 

— A que hora final se refere?

 

— Esse momento pode se apresentar de dois modos. Primeiro: se eu alcançar meu objetivo e transformar o mundo num oásis de paz, governado adequadamente por mim. Segundo: apesar de nosso esforço pessoal, o mundo pode transformar-se numa hecatombe atômica. Em ambos os casos, quem estiver comigo será privilegiado. Na primeira hipótese, quem se conservar fiel a mim terá inúmeros benefícios. Na segunda, se chegar o momento de milhares de bombas atômicas explodirem, quem estiver no Retiro será trazido para cá e se salvará.

 

— Se salvará? Por quê?

 

— Talvez você ainda não tenha compreendido, Monique. Estamos num refúgio atômico. Os efeitos das explosões jamais chegarão aqui embaixo.

 

— Estamos a uma profundidade suficiente?

 

— Isso mesmo.

 

— Sob o Retiro?

 

— Não me parece oportuno facilitar-lhe esta informação, por enquanto — sorriu Ditador. —Se continuar a meu lado, nada terá a temer do mundo. Aconteça o que acontecer, estará a salvo aqui embaixo.

 

— Durante quanto tempo? — balbuciou Monique Lafrance. — Se houver uma guerra nuclear, as consequências serão catastróficas. Durante muitos anos, oitenta, cem, talvez, o planeta Terra ficará inabitável, devido às radiações atômicas das explosões. Eu teria mais de cem, quando o perigo passasse. Se ainda estivesse viva nessa época.

 

— Por que não haveria de estar?

 

— Não é possível viver cem anos embaixo da terra, metido num buraco sem ar. O que comeríamos, o que beberíamos, que aconteceria com nossos tecidos orgânicos, sem a luz e o calor do sol?

 

— Tudo isso foi previsto. O sol e o ar são menos necessários do que imagina. Não são imprescindíveis para o ser humano, digamos assim. Pelo menos, na forma habitual. Não precisamos de sol aqui embaixo e temos filtros para o ar. Comida não será problema. Temos um armazenamento de produtos condensados, suficiente para alimentar mil pessoas durante cem anos. Não acha o bastante?

 

— Não sei. De qualquer forma, algumas pessoas morreriam de velhice. O senhor deve ter uns sessenta a...

 

— Oitenta e cinco — sorriu Ditador.

 

— Não é possível!

 

— Palavra! Pareço mais jovem, bem sei. Mas tenho a idade que lhe disse.

 

— Parabéns! Mas por muito otimistas que sejamos, o senhor viverá mais vinte ou trinta anos. Se nessa ocasião o refúgio antiatômico estivesse fechado a fim de nos protegermos do exterior, que faríamos com seu cadáver? Não me diga que iríamos comê-lo.

 

— De modo algum — riu Ditador. — Seria incinerado, naturalmente. Há um incinerador adequado para isso, no refúgio. Tudo foi previsto, repito.

 

— O senhor tem muito dinheiro, é lógico. De outro modo não poderia ter feito este abrigo.

 

— Dinheiro? Tenho, sim, Iago se encarrega dessa parte. Quanto seria muito dinheiro para a senhorita?

 

— Depende. Isso é relativo. Para certas pessoas um milhão de dólares já é muito dinheiro, porque jamais poderão ter semelhante fortuna. Para outras, um milhão é urna ninharia.

 

— Digamos que um milhão de dólares para mim é menos que uma ninharia.

 

— Possui mil milhões, por exemplo?

 

— Por exemplo — riu Ditador.

 

— Onde os arranjou? Afinal de contas, quem é o senhor? De onde saiu? Por que não é conhecido nos mundos dos privilegiados, lá em cima, na superfície da terra? Deve ter um nome comum. Não se chama Ditador. Qual é seu nome?

 

— Faz muitas perguntas ao mesmo tempo, Monique. Responderei a uma só, por enquanto. Meu dinheiro resume-se em duas palavras: Texas e petróleo. Entendeu agora?

 

— Sim. Possui poços de petróleo no Texas. Iago encarrega-se da exploração?

 

— Oh, Iago é importante demais para isso. Ele supervisiona os que se encarregam dessa parte.

 

— Sabe de uma coisa, senhor? — sorriu Monique, mudando de expressão. — Pensei que o Ditador não existisse. Agora, duvido é da existência de Iago.

 

— Não a compreendo — surpreendeu-se Ditador.

 

— Não percebe a irrealidade de tudo isso, senhor? — perguntou a espiã, de repente.

 

— Irrealidade? A que se refere?

 

— O Retiro, lá em cima. Este refúgio aqui embaixo. Estas instalações. Seus propósitos de governar adequadamente o mundo. Tudo isso me parece irreal. É irreal o senhor se dedicar a executar pessoas e é irreal pretender governar o mundo. Como iria consegui-lo?

 

— O processo foi devidamente estudado e programado.

 

— Por Iago? — sorriu Monique.

 

— Ele também foi útil nesse setor de meus planos. Embora a senhorita tenha acabado de dizer que duvida da existência de Iago.

 

— Iago pode ser o senhor mesmo.

 

— Excelente conclusão — murmurou Ditador. — Iago estava certo. Você possui uma imaginação e uma fantasia prodigiosa. Sabe que há olhos incapazes de ver? E não me refiro aos cegos, naturalmente. Falo de pessoas em perfeito estado, que olham e nada veem.

 

— Compreendo.

 

— É mesmo? E como são esses olhos, em sua opinião?

 

— Normais, como os nossos. Apenas estão a serviço de cérebros inutilizados. Ou melhor: paralisados. Existem pessoas, por exemplo, incapazes de enxergar a beleza do ato sexual. Veem apenas sujeira, baixeza, pecado. Por quê? Porque foram condicionadas mentalmente pela sociedade, pela religião, pelos costumes, por leis arbitrárias. Para os olhos que sabem enxergar a verdade, o ato sexual é uma função imposta pela natureza para evitar a extinção das espécies. Veem nele um poema necessário e sublime.

 

— Iago realmente presta-me serviços inestimáveis — exclamou Ditador. — Trazê-la ao meu refúgio foi um deles. Quero que fique aqui, comigo, Monique.

 

— Aqui embaixo ou no Retiro, lá em cima?

 

— Aqui embaixo. Você e Iago serão meus auxiliares.

 

— Não acredito na existência de Iago. Já disse antes. Iago é o senhor.

 

Ditador moveu a cabeça negativamente. Ia dizer qualquer coisa, mas as batidas na porta o interromperam.

 

Pouco depois, quatro crianças encantadoras correram alegremente para ele. O mais velho devia ter quatro anos. O segundo três, o outro dois e o menor não passava de um ano e ainda tinha dificuldades para andar. Todos eles eram brancos, louros e de olhos claros. Monique teve a impressão de estar vendo quatro bonequinhos e não seres humanos.

 

Mas não eram bonecos, pois os mais velhos abraçaram Ditador, gritando: — Papai! Papai! Papai!

 

Monique ainda não havia saído do seu espanto, quando a mulher apareceu. Muito jovem. Vinte e dois ou vinte e três anos, no máximo. Vestia-se com simplicidade e elegância, sem provocação sensual e sem esconder sua beleza. Era alta, loura, branca e irreal como as crianças. Os olhos, muito azuis, pareciam duas contas de cristal.

 

Ao vê-la, Ditador levantou-se e foi ao seu encontro.

 

Tomou-a pela mão e a trouxe até Monique, dizendo com sua voz suave e doce:

 

— Querida, deixe-me apresentá-la a Monique Lafrance. Monique esta é Ulla, minha esposa. Já deve ter calculado que é escandinava.

 

Ulla contemplou Monique. A espiã limitou-se a sorrir sem se levantar.

 

— É a mulher que Iago diz ser tão inteligente, meu senhor? — perguntou Ulla, dirigindo-se a Ditador.

 

— Sim. E acrescento que Iago foi muito económico nos elogios a Monique. Espero não ter aborrecido você e as crianças, mandando chamá-los.

 

— De modo algum — sorriu Ulla.

 

— Decidi que Monique ficará aqui embaixo conosco. Antes de tomar esta decisão, comuniquei meu desejo ao Tribunal, Monique, e quero que você conheça. Aí o tem. É esse o Tribunal que decide vidas e mortes. Eu apenas o presido. Os jurados são Ulla, minha esposa, e meus filhos: Jan, Dieter, Karl e Kinoo.

 

O jardim

 

O pequeno Kinoo começou a choramingar, apesar dos carinhosos esforços de seu irmão Jan para acalmá-lo. Ulla tomou-o nos braços e beijou-o nas faces, rindo. O menino sossegou imediatamente e ficou brincando com o nariz da mãe.

 

— Eu também quero, mamãe — pediu Karl, que vinha em seguida a Kinoo. — Também quero!

 

Ulla fez a vontade do filho, sem parar de rir. Ditador tomou Dieter nos, braços, rindo ante a manifestação de Jan, que exclamou: — Não. Eu já sou grande!

 

Monique contemplava todos eles em silêncio. Devia estar sonhando, sem a menor dúvida. Tinha diante de seus olhos uma família que há anos não expunha a pele à luz e ao calor do sol.

 

Ficou apavorada, ao compreender que as crianças jamais haviam apanhado sol.

 

— Está surpresa, não ê mesmo? — disse Ditador, voltando-se para a espia. — Surpresa ao ver o Tribunal.

 

— Surpresa?! Um pouco! E não é só isso o que me espanta.

 

— Logo se acostumará. Iago se encarregará de prepará-la rapidamente para que possa muito breve ocupar um cargo elevado junto a mim no mundo.

 

— No mundo que governará como um grande ditador?

 

— Não, não, de modo algum.

 

— Mas se até o nome escolhido foi de Ditador!

 

— Bem, isso foi para mostrar que não pretendo admitir discussões a respeito de minhas ordens. Não por despotismo, egoísmo ou qualquer coisa parecida. Fiz isso porque o mundo não sabe para onde vai. Eu sei. Logo, devo governá-lo com firmeza absoluta, não permitindo que alguém se meta e me impeça de alcançar meu objetivo.

 

— Que objetivo?

 

— Viver.

 

— Iago falou nisso várias vezes — sorriu Monique.

 

— Iago é um bom discípulo. Atualmente eu nada poderia fazer sem ele. Cuida de tudo, soluciona todos os problemas. Há quatorze anos começou a trabalhar para mim. Era um simples empregado em uma de minhas empresas. Hoje, podemos dizer que dirige tudo. É uma espécie de filho mais velho.

 

— Acho que a brincadeira está durando demais, Iago.

 

— Por que o chama de Iago? — surpreendeu-se Ulla.

 

— Não é a mesma pessoa?

 

— Claro que não! Que absurdo!

 

— Está bem — suspirou Monique, desistindo de conseguir que Ditador fosse sincero com ela.

 

— Vocês têm uns filhos encantadores. Apesar de terem sido gerados por octogenário. Sim, eu sei que homem pode gerar em qualquer idade. Mas convenhamos que não é comum, aos oitenta anos, ter um filho por ano.

 

— Para dizer a verdade, não me limito a ter filhos — riu Ditador, com ar satisfeito. — Estes são o fruto do amor que existe entre minha esposa e eu. Não acha natural?

 

— O amor? Ou o fato do senhor e sua esposa se amarem?

 

— Ulla tem vinte e dois anos — disse ele, sempre sorrindo. — Isso, porém, não significa que seu amor por mim não seja sincero, Monique.

 

— Claro. Embora existam muitos tipos do amor e...

 

— Devíamos convidar Monique para jantar, meu senhor — murmurou Ulla, interrompendo a frase da espiã.

 

— De pleno acordo — aprovou Ditador. — Iago está aqui embaixo?

 

— Não sei. Creio que não. De qualquer modo estará na hora do jantar ou um pouco depois. Eu o convidei.

 

— Obrigado, querida. Mas continue, Monique. Em sua opinião, quantos tipos existem de amor?

 

— Não sei ao certo. Não se pode determinar o número exato. Mas existem várias maneiras de amar. Por exemplo: o senhor ama seus filhos. Mas não os ama do mesmo modo que a sua esposa. Ela, por sua ver, o ama de um modo diferente do que ama as crianças. Talvez o ame de um modo diferente do que o senhor a ama. Poderia, ainda, ser amada por Iago, de outro modo, e por aí adiante.

 

Ditador enrugou a testa, pensativo. Sua expressão mudou tanto, que Monique ficou levemente preocupada.

 

Finalmente o ancião voltou ao normal e murmurou: — Você é uma pessoa muito adequada a meus propósitos. Sabe pensar. Além disso, sabe fazer ou outros pensarem. Eu, por exemplo. Não estou inteiramente de acordo com suas ideias, mas sou obrigado a pensar. O amor, para mim, é um só. Pode manifestar-se de diversas maneiras. Isto, sim. Amo Ulla e os nossos filhos. Amo os cinco de maneiras diferentes. Como amo Iago de maneira diferente. E também amo a Humanidade.

 

— O senhor ama a Humanidade? — Monique arqueou as sobrancelhas.

 

— Claro.

 

— Pareceu-me que queria dominá-la. Isso não é um modo de amar.

 

— Calma. Vejo que não nos entendeu bem, a Iago e a mim. Não pretendemos dominar ninguém. Pelo menos no sentido habitual da palavra. Meu nome deixou-a um pouco zonza, eh? Pretendo exercer uma ditadura no mundo, é certo. Mas uma ditadura de bondade, As pessoas não sabem governar As poucas que sabem, só o fazem visando benefícios pessoais, explorando os mais fracos. Depois do que aconteceu a Kennedy, estive pensando...

 

— Kennedy? Está falando de John Fitzgerald Kennedy, o presidente dos Estados Unidos que foi assassinado?

 

— Esse mesmo. Fiz parte do grupo que decidiu o desaparecimento de Kennedy. Depois de tudo passado, comecei a refletir. Passei anos pensando no assunto e cheguei a uma conclusão: os que vieram antes de Kennedy não eram melhores do que ele. Lutavam apenas por um único objetivo: o poder pessoal. Foram ditadores. Cada qual a seu modo. Temos os czares russos, por exemplo. Depois, Lenin, Hitler, De Gaulle, Kennedy. Escolha o que desejar, no passado, ou no presente. Todos pretendiam publicamente o engrandecimento da pátria. Enquanto isso, enchiam os bolsos de ouro e o nome de honrarias. E para quê?

 

— Não sei — murmurou Monique.

 

— Para benefício próprio, sob diferentes aspectos. Os governantes antigos pensavam realmente no povo, na Humanidade? Os atuais pensam? Digo que não. Se pensassem na Humanidade, a primeira coisa que fariam seria transformar em escolas as fábricas de armamentos.

 

Sabe de algum governante que tenha tomado semelhante decisão?

 

— O senhor faria isso?

 

— Aí está a minha ideia — exclamou Ditador, com os olhos brilhando. — Eliminar todos os grandes homens do mundo que dominam o povo em seu egoísmo pessoal e transformar-me no grande Ditador Mundial que transformará as fábricas de armamentos em escolas, em hospitais, em centros de recreação. O dinheiro gasto atualmente para encher os depósitos de bombas atômicas será utilizado em coisas bonitas. O dinheiro esbanjado na fabricação de armas e no treinamento de soldados, numa só semana, daria para transformar a Índia num país milionário. Por que cultivar marijuana, podendo-se cultivar flores e trigo?

 

— O senhor acabará me convencendo — murmurou Monique, esboçando um sorriso.

 

— Naturalmente. Porque você é inteligente. Sebe perfeitamente que não deixará de ser pelo fato de outras pessoas melhorarem de vida. Compreende agora o que pretendo? Decidi transformar-me no Ditador do mundo e eliminar as feras que o sufocam atualmente. Acha que faço mal, eliminando pessoas importantes? Nada disso. Estou fazendo uma limpeza no mundo. Os que o governam neste momento não são melhores que Atila, Hitler ou Kennedy. É um governo de pessoas com sede de lucro. O meu será diferente. Só tenho um objetivo: viver. Mas não sozinho. Com toda a Humanidade vivendo ao meu redor. Acha isso ruim?

 

— Não.

 

— Vejo que remos a um entendimento. Perdoe-me, se mostro imediatamente como funciona o nosso Tribunal. Temos tempo. O importante neste momento é refletir sobre a variedade de amores que você revelou com tanta nitidez. Na hora do jantar voltaremos a nos ver.

 

— Como quiser.

 

Ditador, cujo rosto parecia iluminado, voltou-se para a esposa e sorriu docemente, pedindo: — Ulla, querida, poderia mostrar o jardim a Monique?

 

— Sim, meu senhor.

 

Monique observou ás crianças. Permaneceram imóveis, enquanto o pai falara. Pareciam serafins. Lindos serafins de olhos claros e olhar inteligente. Os meninos foram para o jardim com Ulla e com Monique.

 

A espiã não se espantou. O jardim mostrava um exterior de casa, construído no interior de uma gruta. Do alto, enormes refletores sugeriam luz natural. Havia plantas e flores por toda a parte e um repuxo jorrando num tanque com peixes. Dos galhos de uma árvore pendiam dois balanços. As crianças correram para eles, rindo, despreocupadas.

 

— Deve achar que somos loucos? — murmurou Ulla.

 

— Por quê?

 

— Por vivermos aqui, assim. Ele diz sempre que qualquer dia explodirá uma tormenta nuclear lá em cima e tudo acabará para os infelizes que não tiverem enxergado a verdade. Por isso não quer que eu e os meninos saiamos daqui. Tem medo do que nos possa acontecer. Aqui estamos a salvo.

 

Monique Lafrance encarou Ulla fixamente. Voltou sua atenção para as crianças. Olhou ao redor, mas nada viu.

 

Pelo jeito ali embaixo só havia a casa e o jardim. Mas não havia apenas a casa, não. Ao dar alguns passos, avistou outra construção, oculta pela primeira. Uma construção quadrada, sem janelas, com uma só porta.

 

— Que há ali? — perguntou a francesa.

 

— O Gabinete — informou Ulla. — Ele e Iago trabalham lá. Nós também, quando o Tribunal se reúne para um julgamento. Gosta de minhas rosas?

 

Monique Lafrance ia dizer que sim, para poder prosseguir com a conversa, mas reparou melhor nas flores e não conteve uma exclamação de espanto, acrescentando: — São de plástico!

 

— Sim — concordou Ulla. — Mas são bonitas, não acha?

 

— Sim — sorriu Monique, procurando controlar sua inquietação. — São bonitas. Não tanto quanto as naturais, é claro. A respeito do Tribunal, a quem julgam e como procedem?

 

— Baseamo-nos nas provas e nas informações sobre cada pessoa a ser julgada.

 

— E onde obtêm essas informações?

 

— Iago encarrega-se dessa parte. No Retiro, como viu, temos muitos homens. Eles cuidam das execuções. Esse grupo não tem grande importância. Iago mantém no mundo inteiro uma rede de informantes de excelente categoria, com quem organiza os fichários. Existem muitos nomes nos fichários. Sabe por quê? Por uma razão bem simples: existe muita gente má neste mundo.

 

— Gente que está na lista das execuções?

 

— Claro. Iago pretende aumentar cada vez mais a quantidade de homens treinados, para poder suprimir os seres nocivos. A começar pelos governantes e seus acólitos mais próximos.

 

— Foi por isso que atacaram Mariano Rumor?

 

— Sim. Nós, o Tribunal, baseando-nos nas provas fornecidas por nosso serviço de informação exterior, os condenamos à morte.

 

— Fizeram o mesmo com Anthony Crossland, o ministro britânico?

 

— Exato.

 

— E com quem mais?

 

— O próximo da lista é o presidente francês, Monsieur Giscard d’Estaing.

 

— Por quê? Que fez Monsieur d’Estaing?

 

Ulla ficou hesitante e murmurou: — Parece-me que não devo falar com você sobre isso, por enquanto. Quando for definitivamente admitida aqui embaixo, terá acesso a tudo. Poderá entrar e sair à vontade do Gabinete e ver os filmes.

 

— Que filmes?

 

— Os que compõem o fichário. Basta colocar o rolo de filme no projetor e as informações a respeito de cada pessoa desfilam diante de nossos olhos. É um sistema prático.

 

Assim, não precisamos trazer testemunhas nem fazer perguntas. Tudo aparece na tela.

 

— E vocês, o Tribunal, dão o veredicto.

 

— Isso mesmo. Oh, estou falando demais. Monique.

 

Mas não faz mal. Você está decidida a ficar conosco, é lógico, já que concorda em tudo com meu esposo.

 

— Sim, sim, concordo.

 

— Ah, magnífico!

 

— Diga-me uma coisa, Ulla: Iago e Ditador são a mesma pessoa, eh?

 

— Não, não. São duas pessoas diferentes. Vai convencer-se disso na hora do jantar.

 

— Está certo. Veremos.

 

O julgamento

 

E viu. Iago e Ditador eram dois homens, realmente. Iago apareceu na sala de jantar antes de Ditador, o que provocou um sorrisinho em Monique. Mal se haviam cumprimentado, chegou Ditador, sério, pensativo. Vendo a família, Iago e Monique, recuperou sua expressão angelical. Deixou de lado as reflexões sobre os diferentes tipos de amor e voltou sua atenção para os presentes. Agradeceu a Iago a interessantíssima aquisição que fizera, trazendo Monique para o Retiro.

 

A espiã observava disfarçadamente os dois personagens, tentando tirar algumas conclusões, definir cada um deles pelo que via e não pelo que lhe tinham dito. As crianças olhavam Iago com adoração. Ulla, porém, mal olhava para ele.

 

— Estive no banco — disse Iago, de repente, voltando-se para Ditador, quando se sentaram à mesa.

 

— Ah, sim? Alguma novidade?

 

— Não. Tudo normal. Ordenei as transferências habituais de cada mês. Ah, recebemos mais três denúncias.

 

Devo ir a Paris daqui a dois dias recolher as informações mundiais das mãos do coordenador.

 

— Infelizmente o número de assassinos legais aumenta dia a dia. Daqui a pouco nosso pessoal não caberá no Retiro.

 

— Arranjaremos outro lugar, senhor. Preciso encontrar um ajudante de confiança, pois não poderei cuidar de tudo sozinho.

 

— Insinua que tem muito trabalho? — perguntou Ditador, surpreso.

 

— Não, senhor! — exclamou Iago. — Falei, porque os gastos vão aumentando e...

 

— Dinheiro! Ora, francamente, Iago!

 

— Os gastos deste mês ultrapassaram duzentos mil dólares.

 

— Não temos dinheiro no banco?

 

— Oh, sim! Muito, mas...

 

— Não me aborreça com questões financeiras, Iago.

 

Quando assinei as autorizações de pagamentos para este mês, vi as quantias. E não reclamei não é? Duzentos mil dólares?

 

— No mês que vem talvez sejam duzentos e cinquenta, senhor.

 

— Assinarei a autorização necessária e pronto.

 

Mudemos de assunto. Quantos tipos de amor você conhece, meu bom Iago?

 

— Tipos de amor? Não entendi bem a pergunta. Fala de amor carnal, entre um homem e uma mulher?

 

— Esse é um dos tipos — riu Ditador. — E um dos mais agradáveis, sem dúvida. Mas existem outros. Quantos você conhece?

 

— Mamãe — disse o pequeno Dieter. — Quero jantar sentado no colo de Iago.

 

— Não pode ser, querido — repreendeu-o Ulla, carinhosa.

 

— Por que não? — perguntou Monique. Todos os olhares voltaram-se para ela, que sorria e manteve-se impassível. Um instante de embaraço dominou a sala. Até Ditador tomar a palavra e explicar: — Porque incomodaria Iago. Compreendi sua pergunta, Monique. Quis dizer-nos que esse é outro tipo de amor. O que Dieter demonstra por Iago, não é assim?

 

— Realmente — concordou ela, com um movimento de cabeça. Levando à boca um pedaço de carne, mastigou-o rapidamente e exclamou: — Hum, esta carne está deliciosa.

 

— Se não comermos boa carne na Suíça, onde poderemos comer? — sorriu Ditador.

 

— E a cozinheira é excelente — prosseguiu Monique, saboreando o assado.

 

— Transmitirei seu elogio a Claudine — sorriu Ulla.

 

— Que quer dizer “deliciosa”, mamãe? — perguntou Jan.

 

— Gostosa, saborosa.

 

— Feita com amor — completou Monique. — Um cozinheiro ou uma cozinheira podem pôr amor em seus guisados.

 

— Com isso temos mais um tipo de amor — riu Ditador.

 

— Então, Iago? Você ainda não disse quantas espécies conhece.

 

— Bem, senhor, na verdade...

 

Eram dez e meia quando Monique foi conduzida por Ulla ao quarto que lhe haviam preparado. Amplo, confortável, onde ouviria o ruído do condicionador de ar a noite toda.

 

“Seria absurdo abrir a janela em busca de ar”, pensou Monique, vendo a janela fechada. “E essa pobre moça está aqui embaixo, no mínimo, há quatro anos! Santo Deus! Eu não resistiria!”

 

Monique acordou por volta das duas da madrugada, conforme desejava. Ficou imóvel na cama, com o ouvido alerta. Nada ouviu, além do condicionador de ar. Saiu da casa sem fazer ruído e três minutos depois estava diante da porta do Gabinete. Todos dormiam.

 

Monique abriu a maletinha vermelha e apanhou o jogo de gazuas planas, escondidas no forro. Felizmente Iago atendera seu pedido e fora buscar a maletinha no Retiro.

 

Não opôs resistência. Naturalmente achou natural que uma mulher quisesse seus objetos de toalete.

 

Abrir a porta foi uma brincadeira de criança, para a espiã internacional. Entrou, fechou-a pelo lado de dentro e apurou o ouvido. Só ouvia os condicionadores de ar. Foi vantajoso o fato do prédio não ter janelas, pois isso lhe permitiu acender a luz, sem preocupações.

 

À primeira vista o local parecia um escritório como outro qualquer Em dez minutos percorreu tudo. Encontrou duas salas pequenas e duas maiores, com mapas nas paredes. E uma terceira, onde se encontravam o fichário e a tela, diante de um projetor sempre preparado. À direita do projetor havia um estrado de madeira semelhante à cátedra de um juiz. À esquerda, outro estrado com alguns bancos.

 

Monique encaminhou-se para o fichário. Abriu-o com toda a facilidade, usando outra gazua. Dezenas de caixas com filmes arrumavam-se nas gavetas. Cada uma delas com uma etiqueta e um nome. Muitos eram conhecidos: Mao Tse Tung, Gerald Ford, Saraiva de Carvalho, Idi Amin. El Sadat, Carlos Gustavo, Helmut Schmidt, Fidel Castro, Giscard d’Estaing, Reza Pahlevi.

 

Giscard d’Estaing! Monique tocou com seus dedinhos delicados a caixa com o filme sobre o presidente francês.

 

Retirou-a.

 

Três minutos mais tarde punha em funcionamento o projetor e sentava-se num dos bancas do estrado da esquerda. As imagens começaram a aparecer.

 

Imagens antigas, trechos de noticiários cinematográficos ou seleções de fotografias. Iago fazia a narração: — Este é o atual presidente da República Francesa, o senhor Giscard d’Estaing. Começou modestamente sua carreira política, onde não parecia destinado a conseguir grande coisa. Seu caminho inicialmente foi honesto, o que o deixou fora de nosso fichário. A partir de agosto de 1975, o senhor d’Estaing dedicou-se a promover guerras na África, utilizando-se dos serviços de agentes de espionagem franceses e de mercenários que realizaram grandes massacres (neste ponto, o filme mostrava soldados atirando em mulheres e crianças de raça negra, que tentavam fugir) e o saque do que encontravam pelo caminho o presidente francês pretendia com isso recuperar o território africano.

 

Há alguns anos a França perdeu sua colônia argelina.

 

Giscard d’Estaing quer agora obter para seu país um império ainda maior e ataca nações do sudoeste da África.

 

Suas intenções não são apenas engrandecer a França.

 

Deseja, também, enriquecer pessoalmente. Por esse motivo lançou mão inicialmente de mercenários que têm ordens de ocupar certas minas de diamantes que passariam a ser de propriedade exclusiva do presidente francês.

 

A narração continuava. As acusações contra Giscard d’Estaing avolumavam-se. Era ele o culpado de conflitos trabalhistas na França. Recebia quantias elevadas de Moscou para provocar situações nas quais o Partido Comunista tivesse possibilidades de agir. Quando Iago anunciou que Giscard d’Estaing ordenara o assassinato de personagens políticos que o incomodavam e que realmente foram assassinados em Paris, Marselha e Ventimiglia, Monique não se conteve, exclamando em voz alta: — Isso é mentira! Todas as informações sobre o senhor d’Estaing são falsas!

 

Foi até o fichário. Procurou o filme sobre Gerald Ford, sobre quem estava mais bem informada. A narração feita por Iago foi idêntica à do filme sobre o presidente francês.

 

Gerald Ford aparecia como um monstro apavorante e os Estados Unidos como a ralé de todos os países do globo terrestre.

 

— Tudo mentira! — murmurou Monique, apavorada. — Pelo amor de Deus! Este Gabinete está cheio de mentiras!

 

Recolocou tudo em seus lugares e saiu da sala de projeção, correndo para a porta do prédio. Estava com tanta pressa e tão desorientada, que se esqueceu de qualquer precaução. Ao sair do Gabinete, tentou reagir, repelindo uma agressão que pressentiu à direita. Tarde demais.

 

Recebeu uma violenta pancada na cabeça, que a deixou inteiramente fora de si. Milhares de estrelas ascenderam-se repentinamente diante de seus olhos, apagando-se numa fração de segundo. E a agente Baby mergulhou numa escuridão profunda, como se caísse num poço sem fim.

 

A luz obrigou-a a fechar os olhos. Quando tomou a abri-los, lentamente, levou alguns segundos até ver tudo com nitidez. Estava de pés e mãos amarrados, sentada num banco. Diante dela ficava o projetor cinematográfico.

 

Calculou, portanto, que se encontrava de costas para a tela.

 

A luz forte do projetor lhe incomodava a vista. Mesmo assim pode distinguir o que precisava. À direita, no estrado, estava Ditador. Sério. Como se seu rosto fosse feito de neve. No estrado do outro lado, Monique Lafrance viu Ulla, também sentada, com o pequeno Kinoo dormindo no colo.

 

Ao lado dela estavam Jan, Dieter e Karl. Pelo jeito, o Tribunal estava completo. Embora um de seus membros dormisse no regaço da mãe.

 

— Qual é seu verdadeiro nome? — perguntou.

 

— Meu nome? Ora! Você sabe.

 

— Não sabemos de coisa alguma. Um dos governos que estamos investigando deve ter descoberto algo a nosso respeito e a enviou para comandar nossa destruição. Você não se chama Monique Lafrance. Também não se chama Nora Teasdale. Nem Brigitte Montfort nem Galina Cherkova. Encontramos passaportes com esses nomes em sua maletinha vermelha. Encontramos ainda objetos espantosos. Quando caiu sem sentidos a meus pés, uma das lentes de contato se soltou. Retirei a outra. Ao fazê-lo, observei uma estranha deformação em suas feições. Havia um enchimento em sua boca e um aro metálico em seu nariz. Seus olhos agora são azuis, seu rosto mais fino, suas feições mais delicadas. Quem é você, para quem trabalha e quem a enviou para nos destruir?

 

— Ninguém me enviou para destruí-los. Ao contrário. Vou lhes fazer um grande favor, Iago, dizendo que seus informantes, que tanto dinheiro custam a Ditador, os estão enganando. Nada do que consta no fichário é verdade. O presidente francês pode ter feito coisas erradas, mas não o que existe em sua ficha. O presidente Ford também não é o monstro que aparece no filme sobre ele.

 

— É você quem está mentindo! Que pretende? Desorientar-nos para que não possamos cuidar de nossa missão no mundo? Eu a acuso como inimiga e traidora! Depois de sua incursão no Gabinete, vi todos os detalhes a seu respeito, desde o instante em que entrou para nossa organização. Acuso-me também por ter sido tão ingênuo e não ter descoberto quem você era! Peço que seja condenada à morte e executada o quanto antes!

 

Iago falou tão alto, com tal exaltação, que o pequeno Kinoo acordou e começou a chorar.

 

— Qual é a sentença do Tribunal? — perguntou, com a voz carregada de ódio.

 

Ulla e os filhos, exceto Kinoo, olharam para o estrado onde se encontrava Ditador. O juiz estendeu a mão aberta, com o polegar voltado para cima. De repente, fechou a mão, menos o polegar. E voltou-o para baixo. No outro estrado, Ulla fez o mesmo gesto. Seus três filhos mais velhos imitaram-na.

 

— Condenada a morrer! — disse Ditador. — A sentença se cumprirá ao amanhecer.

 

— Escute, Ditador... — tentou dizer Monique.

 

— O julgamento terminou. Os membros do Tribunal podem se retirar.

 

Ulla levantou-se, dirigindo-se para a saída, acompanhada por seus três filhos e levando o menor nos braços. Ditador saiu atrás deles, sem sequer se dignar olhar para Monique. Iago aproximou-se, revisou as cordas que amarravam os pulsos e os tornozelos da ré e também se encaminhou para a porta.

 

— Iago!

 

— É inútil — respondeu ele, voltando-se. — Foi condenada. Morrerá ao amanhecer. Isso é tudo.

 

— Serei incinerada?

 

— Não vale a pena. Levarei seu corpo no helicóptero e o jogarei num precipício nos Alpes.

 

— Estão enganando vocês, Iago. O mundo é mau, é sujo, concordo. Mas estão enganando vocês, exagerando as coisas, deformando terrivelmente a verdade.

 

Os olhos de Iago brilharam com mais intensidade, irônicos, sinistros.

 

— Você é inteligente demais — murmurou ele. — Por isso terei imenso prazer em matá-la com minhas próprias mãos e atirar seu corpo fascinante no precipício mais profundo das montanhas suíças.

 

O primeiro sol

 

Estava suando. Tentou em vão soltar-se das cordas que lhe prendiam os tornozelos e os pulsos. De repente a porta se entreabriu e Ulla apareceu. As duas mulheres se encararam fixamente durante alguns segundos. Uma delas, assustada como um coelho perseguido: Ulla. A outra, suada e dolorida, mas calma: Brigitte Baby Montfort.

 

— Entre, Ulla — disse a astuta Brigitte Montfort. — Tem algo a me dizer?

 

A esposa de Ditador aproximou-se, temerosa: Ficou olhando a prisioneira, com os olhos muito abertos.

 

Finalmente, perguntou: — Quem é você?

 

— Sou uma espiã americana, metida nisto por casualidade. Mas disposta a ir até o fim. Dedico-me a espionagem há muitos anos, Ulla. Posso resolver qualquer situação por mais complicada que seja. Sempre acontece qualquer coisa que me ajuda. Sempre. Agora, por exemplo, você veio à minha procura. Desamarre-me.

 

— Não.

 

— Vamos, não seja boba. Veio fazer-me um pedido, convencida de que posso ajudá-la. Quer sair daqui com seus filhos, não é assim? Está farta de viver sem sol e sem ar, enterrada viva aqui embaixo com essas pobres crianças que deveriam conhecer o sol, o mar, o ar, os pássaros, as flores de verdade, a vida, o amor. Está encerrada aqui com dois loucos e alguns criados, que quando vão embora não sabem onde estiveram. Mas devem comentar que trabalharam para uma família louca. Foi isso que veio dizer? Quis falar no assunto quando estávamos no jardim, mas não se atreveu porque me viu ligada a seu marido e a Iago. Teve receio que eu contasse tudo a Ditador. Que delatasse a ele seus pensamentos, seus sentimentos e seus desejos. Mas quer sair daqui e espera que eu a possa auxiliar. É isso. Ulla?

 

Quer voltar lá para cima, para o sol? Ver as estrelas, o céu, as aves e as flores? É isso o que você deseja, Ulla?

 

— Sim, sim, sim.

 

— Então, desamarre-me. Faça isso e dentro de pouco tempo estaremos livres. Vamos, desamarre-me.

 

Ulla avançou até Brigitte e desamarrou-a em poucos segundos. A espiã levantou-se, depois de esfregar vigorosamente os tornozelos para reativar a circulação. Fez o mesmo com os pulsos.

 

— Onde está seu marido? — perguntou, finalmente.

 

— Ficou muito decepcionado e retirou-se para refletir em sua saleta particular. Ele é bom. Juro! Quer apenas o bem de todos. Deseja, acima de tudo, manter a família a salvo. Juro que ele é bom, Monique!

 

— É possível. Mas o estão enganando. E Iago não me parece alheio a esse detalhe. Onde está Iago?

 

— Saiu. Subiu para preparar o helicóptero a fim de levá-la daqui. Não deve demorar, pois já está amanhecendo.

 

— Por que não disse antes, Ulla? Mas não importa. Preste atenção: Iago está enganando seu marido. Roubando-o vergonhosamente. Esconda-se e vamos esperar. Não se mexa, aconteça o que acontecer, entendeu?

 

Brigitte obrigou Ulla a passar para trás do tablado e a abaixar-se. Sentou-se onde estava antes e juntou as pernas e as mãos, como ainda estivesse amarrada. Mal acabou de se ajeitar, apareceu Iago.

 

Aproximou-se lentamente, encarando-a de fisionomia contraída, e disse: — Está na hora. Vou levá-la para...

 

— Um momento, por favor, Iago — suplicou Brigitte, sem olhar para Ulla, que estava protegida do ângulo visual de Iago, escondida atrás do tablado. — Estive pensando em tudo isso. Acha conveniente matar-me?

 

— Que está pretendendo dizer?

 

Chegará um momento em que você não poderá mais cuidar de tudo sozinho. Por que andar pelo mundo procurando um ajudante, se já me tem aqui? Conheço muitos lugares. Posso viajar, fazer contato com pessoas que aceitariam trabalhar para nós.

 

— Não seja idiota — exclamou Iago, rindo. — Acha realmente que gasto duzentos mil dólares por mês, pagando informantes pelo mundo afora?

 

— Não?

 

— Claro que não! Pago o pessoal do Retiro, porque não posso inventá-los, porque o louco deseja vê-los de vez em quando e assiste aos treinamentos pelo periscópio instalado entre as pedras no jardim. Sou obrigado a contratar esses homens, para que o Ditador engula o resto. Os informantes do exterior não existem. Nunca existiram. Percebi há anos, quando era secretário de Ditador, que ele estava doido varrido. Se eu não somasse sérias medidas, ele se arruinaria, sem benefício para pessoa alguma. Tratei, portanto, de ajeitar a situação. Procurei ganhar sua confiança pessoal.

 

Quando chegou o momento oportuno, comecei a dar sugestões. Aceitou-as. Falou-me que andava pensando em construir um refúgio antiatômico em determinado lugar e que se retiraria para lá depois de casar-se com uma mulher jovem e forte que pudesse ter muitos filhos sadios. É fácil imaginar o resto, hem?

 

— Sem dúvida. Você se ofereceu para cuidar de tudo e ele, agradecido, foi confiando cada vez mais. Todos os meses você pedia duzentos ou trezentos mil dólares para as despesas.

 

— Exato — riu Iago. — Não mereço uma pequena fortuna, por acaso? Ajudei-o. Arranjei a noiva. Uma moça jovem, sadia, bonita, Ulla aceitou minhas condições: viver alguns anos acatando as ordens de Ditador e dando-lhe filhos, em troca de uma grande herança quando ficasse viúva. O que não vai demorar. Ela fica aqui embaixo apodrecendo, enquanto lá em cima eu belisco a fortuna do marido, colocando um quarto de milhão mensalmente em minha conta de Zurique. Quando o dinheiro acabar, irei embora. Desaparecerei. Ulla terá perdido anos de sua vida, de sua beleza, de sua juventude.

 

— Mas terá quatro lindos filhos.

 

— Ela que se dane com o marido doido e os filhos!

 

Talvez eu o mate, como tenho feito com todos os feridos e com os empregados que passam por aqui. Mato-os, fico com o dinheiro que recebem em pagamento e jogo os corpos num imenso precipício nos Alpes, que ao está transformando num grande cemitério.

 

— Você é muito inteligente, Iago.

 

— Não tanto como você, mas darei um jeito de continuar vivendo. Objetivo: viver! — acrescentou, soltando uma gargalhada. — É exatamente o que estou fazendo.

 

— As ideias de Ditador são boas. Não pensou nisso?

 

Quem sabe se valeria a pena fazer um esforço para transformar em realidade o sonho desse velho? Ele quer ajudar o próximo. E tem tanto dinheiro, não é mesmo?

 

— Esse dinheiro passará todo para as minhas mãos — atalhou Iago. — Será só meu. As ideias desse imbecil não me interessam. Quero viver como um deus, num mundo que sempre me negou tudo.

 

— Por que não diz isso pessoalmente a Ditador, Iago?

 

Ele o está ouvindo, da porta.

 

Iago soltou uma exclamação e voltou a cabeça para a entrada do Tribunal. Realmente, lá estava Ditador. Mais branco que de costume, com os olhos fixos em seu auxiliar, no homem em quem confiava. Suas feições estavam alteradas. Uma expressão assustadora estampava-se em seu rosto. Iago também ficou alterado. O traidor tornou a voltar a cabeça para Brigitte, metendo e mão no bolso do paletó.

 

Ao sacar a pistola, viu o movimento rapidíssimo da mão de Brigitte Montfort. Não teve tempo sequer de se espantar com o fato da prisioneira estar desamarrada. O golpe aplicado pela espiã mais perigosa do mundo acertou Iago no meio do crânio. Os ossos estalaram como madeira seca, estraçalhados pela pancada brutal. O rosto de Iago contorceu-se numa careta horripilante. Os olhos se reviraram e seu corpo vibrou como uma varinha de arame.

 

Em seguida, desabou. Morto.

 

Brigitte foi até o estrado, segurou a mão de Ulla e obrigou-a a sair do esconderijo, dizendo: — Vamos. Já podemos ir embora.

 

A moça seguiu sua salvadora em direção à porta, olhando assustada para o marido, que continuava no umbral, com os olhos fixos no corpo de Iago.

 

— Afaste-se, por favor — pediu Brigitte. — Se tem algo a recolher, apresse-se. Está amanhecendo. O nascer do sol é um espetáculo digno de ser visto. De acordo, Ditador?

 

— Não — balbuciou ele, erguendo a vista para a espiã internacional. — Ninguém sairá daqui, Monique!

 

— Não seja idiota — rosnou Baby. — Não ouviu a confissão de Iago? Não compreendeu a verdade? Ele o esteve enganando.

 

— Em parte, apenas. O perigo atômico continua existindo. O perigo dos homens também. Com suas maldades e suas ambições. Tudo continua igual!

 

— Não seja teimoso! Vamos sair todos juntos. Não se preocupe com o dinheiro. Se Iago já o arruinou, darei um jeito de ajudá-lo.

 

— Dinheiro — riu Ditador. — Não é o que me preocupa. Transferi uma boa parte de minha fortuna para o nome de Ulla e dos meninos. Poderão recebê-lo a qualquer momento, se saírem daqui. Não é o dinheiro que me preocupa. O que me preocupa é viver. Só aqui me sinto a salvo dos horrores da ambição e da inveja dos seres humanos. Mais cedo ou mais tarde, não duvide, eles acabarão com qualquer vestígio de vida sobre a Terra. Quando essa hora chegar, eu e meus descendentes continuaremos aqui embaixo. Com vida!

 

— Não — gemeu Ulla. — Eu quero sair. Por favor, eu quero sair!

 

— Ninguém sairá daqui! — arquejou Ditador.

 

— Ninguém! Se for necessário, explodirei todas as cargas e destruirei tudo com minhas próprias mãos! Não quero que ninguém saia daqui!

 

— Não tem o direito de fazer isso, Ditador — murmurou Brigitte. — Não pode fazê-lo. Não está em condições de cuidar de sua família. Você perdeu o juízo, entendeu? Saia conosco. Posso levá-lo a um excelente médico. Chama-se Schwartz*, e tem uma clínica para doenças mentais aqui na Suíça. Saia conosco e esqueça-se dessas loucuras. Vamos, Ditador!

 

*Ver: FLORES DE SANGUE

 

— Ninguém sairá, já disse! — gritou o ancião, barrando a passagem.

 

Brigitte enrugou a testa. Hesitou um segundo. Olhou para Ulla e viu na fisionomia da moça um desejo incontido, quase histérico, de sair daquele buraco, de tirar os filhos dali, de ver a luz, a noite, o céu. Tornou a observar Ditador.

 

Sua hesitação desapareceu. Avançou um passo para ele.

 

Pousou a mão em seu ombro, perto da base do pescoço, e apertou. Ditador soltou um grito e caiu aos pés da espiã.

 

— Está só desmaiado — disse Brigitte, voltando-se para Ulla, que também gritara. — Vamos sair daqui, imediatamente. Conhece o caminho para o exterior?

 

— Sim. Mas não podemos abandonar meu marido.

 

— Não se preocupe. Ele irá atrás de nós quando recuperar os sentidos. Vendo que você e as crianças desapareceram, ele se apressará a sair. Vamos apanhar as crianças. Depressa!

 

Minutos depois, Brigitte Montfort, Ulla e seus filhos e os quatro empregados de Ditador subiam à superfície, usando o elevador. Apareceram no salão de descanso do Retiro, depois de Brigitte empurrar para o lado a parede metálica.

 

Pela janela aberta entrava um raio de sol. Forte, vermelho, que bateu em cheio no rostinho de Jan.

 

— Está doendo — choramingou o menino, erguendo os braços. — Está doendo!

 

— Protejam os olhos, Ulla — ordenou Brigitte. — Principalmente os das crianças. Elas nunca apanharam sol.

 

Enrole a cabeça deles com as roupas. Vou ver se podemos usar o helicóptero.

 

Saiu da sala. O aparelho estava parado diante da casa.

 

Baby respirou aliviada. Não precisaria perder tempo, descobrindo onde costumavam escondê-lo. Voltou-se e fez um sinal com a mão.

 

Os criados apareceram na porta, ajudando Ulla a caminhar e a trazer as crianças com a cabeça enrolada nas roupas. Os criados estavam há vários meses no refúgio antiatômico e também precisaram proteger a vista.

 

O vigia que se encontrava perto do prédio viu Brigitte aparecer e ficou observando aquela criatura alucinante. Mas mudou de expressão quando o grupo de fugitivos apareceu na varanda. Pegou a metralhadora e apontou-a para o helicóptero, gritando: — Ei! Monique! Aonde vão?

 

A pistola de Iago surgiu na mão de Baby. Ergueu-a e puxou o gatilho friamente. Plop! O homem soltou um gemido abafado, jogou a metralhadora para o alto e caiu de costas. O grupo chegou ao helicóptero. Brigitte ajudou todos a embarcar e, um segundo depois, ocupou o lugar do piloto.

 

— Ele já apareceu — perguntou Ulla, ainda com a cabeça enrolada, sem poder ver coisa alguma. — Ele já subiu, Monique?

 

— Não.

 

— Então não podemos partir.

 

— Vou só experimentar o motor para verificar se o helicóptero está funcionando. Quando Ditador chegar à superfície, nós o recolheremos. Não se preocupe.

 

Brigite Baby Montfort sabia perfeitamente que não poderia recolher Ditador. Sabia o que ele faria, ao recuperar os sentidos. Por isso tinha pressa de se afastar dali. Suas suposições estavam certas. Felizmente, quando as cargas explodiram e as montanhas começaram a desabar engolindo um louco e vinte e tantos assassinos, a divina espiã voava a uma altitude considerável, sentindo o calor do sol, que para as quatro crianças era o primeiro sol de suas vidas.

 

O primeiro sol verdadeiro que as esquentava. A partir daquele momento, poderiam viver. Se os homens deixassem.

 

Remédio para solidão

 

Hugo Melli voltou a si do espanto. Contemplou demoradamente a jovem loura de olhos verdes sentada à sua frente, no jardim coberto de pinheiros da villa Anzio, de onde se avistava o mar. Ela surgira de repente. Convidara-se para uma dose de vodca e dissera que ia contar uma história inacreditável. História graças à qual ele, Hugo Melli, talvez obtivesse o último grande triunfo de sua carreira de espião, levando ao Diretório do SID a explicação e a solução do atentado contra o ministro Rumor.

 

— Bem — disse Melli, recuperando a fala, após a narrativa. — Fantástico, realmente. Ei, mas espera aí! Sei que você não é loura. E morena. Vi fotografias suas quando foi visitar seu Johnny agonizante. Apareceu com seu verdadeiro aspecto. Isto é: apareceu como Brigitte Montfort, a jornalista americana.

 

— Que importa isso agora, Hugo?

 

— Falei por falar — resmungou o espião. — A história que acaba de contar é verdadeira, não é? Não esteve brincando comigo?

 

— De modo algum. Desejo apenas que você explique tudo ao SID.

 

— Fique descansada. Cuidarei disso.

 

Brigitte Montfort tomou mais um gole de vodca e encarou Hugo Melli com um olhar bastante significativo.

 

— Tem mais alguma coisa a me dizer? — sorriu o italiano.

 

— Sim. Gosta de crianças?

 

— Não sei. Nunca tive filhos. Nem sobrinhos. Nós, espiões, não nos podemos dar a esse luxo. Santa Madona!

 

Nunca tive filhos, nem os terei! Mas gosto de crianças, sim.

 

— Não se sente sozinho, Hugo?

 

O espião italiano mordeu os lábios e inclinou a cabeça.

 

Tinha sessenta anos e era proprietário de uma vila perto do mar, cercada de pinheiros e de flores. E possuía algum dinheiro no Banco de Roma. Sozinho? Claro. Sentia-se tão sozinho em certas ocasiões, que chegava a imaginar tolices.

 

Por exemplo: que o mundo havia parado e que só ele existia em meio ao silêncio daquela casa cercada de pinheiros. Tão sozinho, que ficava em dúvida, sem saber se valia a pena viver.

 

— Talvez — balbuciou, tomando a encarar a espiã americana.

 

Brigitte sorriu docemente. Tomou o restinho de vodca, levantou-se e foi embora. Hugo Melli não se mexeu. Seu contato com Baby chegara ao fim. Que mais podia esperar? Afinal conhecera a famosa espiã de luxo da CIA.

 

Sabia qual era sua verdadeira identidade. Isso significava que fora inscrito no rol de seus amigos.

 

Outras surpresas, porém, aguardavam Hugo Melli. E ele compreendeu isso, vendo a loura de olhos verdes reaparecer em sua vila. Chegou ao entardecer, quando o sol começava a desaparecer no horizonte, acompanhada por uma jovem também loura, que trazia nos braços uma criança pequena.

 

A seu lado vinham mais três, lourinhas, olhando para todos os lados como se estivessem entrando num mundo diferente e desconhecido para elas.

 

A estranha comitiva parou diante do italiano. Melli sorriu para Ulla e ela correspondeu timidamente. O espião voltou seu olhar para as crianças. Passou a língua pelos lábios e murmurou, emocionado: — Que crianças lindas! Você é Ulla?

 

— Sou — respondeu a recém-chegada.

 

— Ela não sabe para onde ir, por enquanto, apesar de ser uma viúva rica — disse Brigitte Montfort. — Poderia hospedá-la durante algum tempo? Até resolver o que vai fazer? Seria bom para as crianças dispor de um jardim como este, onde poderiam brincar à vontade, apanhando sol, respirando ar puro. Talvez nem precisem ir embora daqui...

 

Que tal minha ideia, Hugo?

 

Com seu velho coração batendo com mais intensidade, Hugo Melli tornou a olhar para Ulla, tentando adivinhar o que ela estaria pensando. Alcançou seu objetivo, vendo-a sorrir e suspirar.

 

Voltou-se para agradecer a Baby, mas a espiã mais bela e perigosa do mundo havia desaparecido como num passe de mágica.

 

 

                                                                                                    Lou Carrigan

 

 

 

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