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Poesia & Contos Infantis

 

 

 


VOANDO PARA O PERIGO / Arthur Hailey & John Castle
VOANDO PARA O PERIGO / Arthur Hailey & John Castle

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

VOANDO PARA O PERIGO

 

     Embora as linhas aéreas em todo o mundo operem na Hora Média de Greenwich no que diz respeito às suas tripulações, a viagem de mais de 2400 quilômetros de Winnipeg a Vancouver abrange três zonas de horas locais: Hora Central, Hora das Montanhas e Hora do Pacífico. Este acerto do relógio cada vez para atrasar os ponteiros uma hora pode ser cronologicamente confuso na história que se segue. Imaginemos, portanto, uma hora padrão para toda ela...

 

  22,05-00,45 horas

     Sob a chuva constante que caía obliquamente através do clarão impiedoso dos seus faróis, o táxi entrou na via de acesso do Aeroporto de Winnipeg, guinchou ao fazer a curva no asfalto e freou abruptamente, estancando tremente como mola diante dos letreiros luminosos do edifício de recepção. Seu único passageiro quase se lançou para fora, atirou duas notas para o motorista, e agarrando sua maleta precipitou-se para as portas giratórias.

     Uma vez dentro, o calor e as luzes do grande salão paralisaram-no por um momento. Com uma das mãos baixou a gola molhada do sobretudo, deu uma olhada no relógio de parede acima dele, depois dirigiu-se meio andando, meio correndo para um canto onde ficava o balcão de partida semelhante a um bar da Linha Aérea Trans-Canadá, vazio agora exceto quanto ao agente que conferia uns papéis. Quando o homem alcançou-o, o agente, apanhando um pequeno microfone de mesa sobre o balcão, intimou-o ao silêncio com um erguer de sobrancelhas e, com precisão moderada, começou a falar.

     - Vôo 98. Vôo 98. Serviço aéreo regular e direto para Vancouver, com conexões para Victoria, Seattle e Honolulu, partindo imediatamente pelo portão quatro. Todos os passageiros para o vôo 98 para o portão quatro, por favor. Proibido fumar até que tenham decolado.

     Um grupo de pessoas ergueu-se dos sofás ou afastou-se de uma leitura maçante junto à banca de jornais, caminhando satisfeitas através do hall. O homem do sobretudo abriu a boca para falar mas foi praticamente afastado para o lado a cotoveladas por uma senhora idosa que gaguejava de ansiedade.

     - Jovem, - reclamou ela, - o vôo 63 de Montreal já chegou?

     - Não, minha senhora, - disse o agente com gentileza. - Está com um atraso, - consultou sua lista, - de cerca de trinta e sete minutos.

     - Oh, meu Deus! Combinei com minha sobrinha para estar em...

     - Olhe, - disse o homem do sobretudo com pressa, - o senhor tem um lugar no vôo 98 para Vancouver?

     O agente sacudiu a cabeça.

     - Desculpe, senhor. Nenhum. O senhor verificou com a Seção de Reservas?

     - Não tive tempo. Vim direto para o aeroporto na esperança de um cancelamento. - O homem deu uma palmada de frustração no balcão. - Isto às vezes acontece, eu sei.

     - Certamente, senhor. Mas com o grande jogo de amanhã em Vancouver estamos completamente lotados. Todos os vôos estão tomados, duvido que o senhor seja capaz de sair daqui antes de amanhã à tarde.

     O homem praguejou silenciosamente, deixando cair a maleta no chão e empurrou seu chapéu de feltro gotejante para trás da cabeça:

     - Que inferno. Preciso estar em Vancouver ao meio-dia de amanhã no máximo.

     - Não seja tão mal-educado, - interrompeu bruscamente a senhora. - Eu estava falando. Agora, meu jovem, ouça com cuidado. Minha sobrinha traz com ela...

     - Espere um momento, minha senhora, - interrompeu o agente. Inclinou-se sobre o balcão e bateu de leve na manga do homem com o lápis. - Olhe, não devia dizer-lhe isto...

     - Sim, o quê?

     - Bem, realmente! - Explodiu a senhora.

     - Está aqui em trânsito um vôo fretado de Toronto. Vão à costa para este jogo. Acho que havia alguns lugares vagos quando chegaram. Talvez o senhor possa conseguir um deles.

     - Isso é ótimo, - exclamou o homem do sobretudo, erguendo a maleta novamente. - O senhor acha que há alguma probabilidade?

     - Não custa nada tentar.

     - Onde posso me informar? Quem devo procurar?

     O agente sorriu mostrando os dentes e acenou através do salão.

     - Logo ali. O Fretador Aéreo Folha de Bordo. Mas veja, eu não disse nada.

     - Isto é um escândalo! - Esbravejou a senhora. - Quero que saiba que minha sobrinha...

     - Muito obrigado, - disse o homem. Caminhou rápido em direção a um balcão menor que mostrava um letreiro de papelão da companhia aérea fretadora, atrás do qual outro agente, desta vez num terno escuro de passeio ao invés do vistoso uniforme da Linha Aérea Trans-Canadá, estava sentado escrevendo ativamente. Levantou os olhos quando o homem chegou, o lápis suspenso, todo atencioso.

     - Sim?

     - Desejava saber, o senhor pode ajudar-me? Terá por acaso um lugar vazio num vôo para Vancouver?

     - Vancouver. Vou ver. - Conferiu rapidamente com o lápis uma lista de passageiros. Depois: - Bem-Bem, apenas um. O vôo deverá partir imediatamente, porém já está até atrasado.

     - Ótimo, ótimo. Pode me ceder esse lugar, por favor?

     O agente apanhou um talão de passagens.

     - Nome, senhor?

     - George Spencer. - O nome foi anotado rapidamente junto com os detalhes do vôo.

     - São sessenta e cinco dólares para a viagem de ida. Obrigado: prazer em poder atendê-lo. Alguma valise, cavalheiro?

     - Apenas uma. Irá comigo

     Num instante a maleta foi pesada e rotulada.

     - Aqui está então, cavalheiro. O bilhete e seu passe para embarcar. Vá ao portão três, pergunte pelo Vôo 714. Depressa por favor: o avião está quase saindo.

     Spencer inclinou a cabeça, voltando-se para mostrar um polegar para cima ao balcão da Trans-Canadá, onde o agente fez uma careta de compreensão por cima do ombro da senhora, e correu para o portão de partida. Fora, o ar frio da noite pulsava com o lamento dos motores dos aviões; como acontece com qualquer aeroporto movimentado, após ter escurecido, tudo dava a impressão de confusão mas na realidade era parte de uma rotina invariável e estritamente regulada. Um comissário encaminhou-o através do pátio de manobra inundado de luz, cintilando na chuva, para um avião que esperava e cuja fuselagem parecia uma flecha de prata brilhando à luz das altas lâmpadas de arco. Os homens já se preparavam para soltar a escada de passageiros. Pulando por cima das poças no chão, Spencer alcançou-os, entregou a metade destacável do seu bilhete, e subiu agilmente os degraus, um pé de vento errante dando um safanão em seu chapéu. Abaixou-se rapidamente para entrar no avião e depois parou para recuperar o fôlego. Uma aeromoça chegou logo até ele, vestida com uma capa de chuva, sorriu e trancou a porta. Quando terminou, ele sentiu os motores darem a partida.

     - Acho que estou fora de forma, - disse desculpando-se.

     - Boa noite, cavalheiro. Prazer em tê-lo a bordo.

     - Tive sorte em chegar a tempo.

     - Há uma poltrona na frente, - disse a moça.

     Spencer livrou-se da capa, tirou o chapéu, e caminhou ao longo do corredor até chegar ao lugar vago. Enfiou com alguma dificuldade a capa enrolada num buraco vazio da prateleira de bagagem, observando:

     - Parece que eles nunca fazem estas coisas suficientemente grandes, - para o passageiro vizinho, que sentado olhava de baixo para ele, ajeitou a maleta embaixo da poltrona, e depois afundou com alívio nas macias almofadas.

     - Boa noite, - ouviu-se a voz jovial da aeromoça pelo sistema de alto-falante. - A Companhia Aérea Fretadora Folha de Bordo dá as boas-vindas a bordo aos seus novos passageiros do vôo 714. Esperamos que apreciem a viagem. Por favor apertem seus cintos de segurança. Decolaremos em alguns instante?

     Enquanto Spencer atrapalhava-se com seu cinto, o homem a seu lado resmungou:

     - Essa é uma frase bastante sensata. Não se vê muitas vezes, - e fez sinal com a cabeça mostrando um pequeno aviso nas costas da poltrona da frente dizendo Seu cinto salva-vidas está sob a poltrona.

     Spencer riu.

     - Eu na certa teria naufragado se não tivesse pegado este ônibus, - disse ele.

     - Oh! Torcedor bem entusiasmado, hein?

     - Torcedor? - Spencer lembrou-se de que estava num vôo fretado para um jogo de futebol. - Bem, não, - disse ele apressadamente. - Nem pensei no jogo. Lamento admitir mas estou voando para Vancouver a negócios. Certamente gostaria de ver esse jogo, mas acho que é impossível.

     Seu companheiro baixou a voz para um volume tão conspiratório quanto possível devido ao timbre crescente dos motores.

     - Eu não diria isso tão alto, se fosse você. Este avião está apinhado de escandinavos que vão para Vancouver com um propósito apenas, que é torcer como o diabo pelos seus rapazes e afrontar e vociferar pela condenação eterna do inimigo. Eles são bem capazes de lhe fazer mal se você usar esse tom de indiferença sobre o jogo.

     Spencer reprimiu o riso outra vez e inclinou-se para fora da poltrona para olhar em volta da cabina cheia. Havia provas suficientes de uma festa típica, barulhenta, cheia de fanfarronadas mas de boa índole, de torcedores que viajavam com o único objetivo de derrotar o time adversário triunfando com o seu. Logo à direita de Spencer sentava-se um homem e sua mulher, os narizes mergulhados em revistas esportivas. Atrás deles, quatro torcedores enchiam copos de papel com uísque americano e se preparavam para passar a noite bebendo e discutindo os respectivos méritos de vários jogadores; um trecho da conversa chegou até ele como o bafo do próprio estádio.

     - Haggerty? Haggerty? Não me venha com essa. Ele não está na mesma Liga que o Thunderbolt. Agora aí está um homem para você, se você gosta...

     Atrás do quarteto ligeiramente alcoolizado estavam outros torcedores do time, usando distintivos com suas cores; na maior parte homens grandes, de rostos avermelhados, concentrados em disputar antes da hora a partida que seria realizada no dia seguinte em Vancouver.

     Spencer voltou-se para o homem a seu lado. Acostumado a observar detalhes, notou o terno discreto, originalmente de bom corte mas agora bem amarrotado, a gravata que não combinava, o rosto enrugado e os cabelos grisalhos, a impressão indefinível de confiança e autoridade. Um rosto de caráter, decidiu Spencer. Atrás dele as luzes azuis da pista haviam começado a deslizar à medida que o avião corria em frente.

     - Pareço um herege, - disse Spencer em tom de conversação, - mas devo confessar que vou à costa em viagem de vendas, que por falar nisso são bem importantes.

     Seu companheiro demonstrou um interesse cortês.

     - O que é que o senhor vende? - Perguntou ele.

     - Caminhões. Uma porção de caminhões.

     - Caminhões, hein? Pensei que fossem vendidos por distribuidores.

     - E são. Sou chamado apenas quando surge uma oportunidade de negócios que envolva talvez de trinta a cem caminhões. Os vendedores locais não gostam muito de mim porque dizem que sou o quebra-galho da matriz com os preços especiais. A venda tem seus pequenos problemas também. Apesar disso, é uma forma de vida razoável. - Spencer procurou pelos cigarros, depois parou. - Ora essa, eu não devo fumar. Não decolamos ainda, não é?

     - Se já, estamos voando bem baixo. E à velocidade baixa.

     - Muito bem, então. - Spencer esticou as pernas para a frente. - Homem, como estou cansado. Foi um desses dias idiotas que fazem com que você suba pelas paredes. Sabe o que quero dizer?

     - Acho que sim.

     - Em primeiro lugar este freguês decide preferir os caminhões de um competidor, melhores apesar de tudo. Depois, quando fiz a venda e pensava que pudesse fechar o pedido durante o jantar esta noite e estar de volta para minha mulher e filhos lá por amanhã à noite, recebi um telegrama dizendo para largar tudo e estar em Vancouver amanhã na hora do almoço. Um grande contrato está prestes a se perder lá. Portanto, o Colosso deve intervir e salvar o negócio. - Spencer suspirou, depois ficou ereto numa seriedade fingida. - Olha, se você quiser quarenta ou cinqüenta caminhões hoje posso dar-lhe um bom desconto. Acha que gostará de operar uma frota?

     O homem a seu lado riu.

     - Não, desculpe. Receio não poder usar tantos. Um pouco afastado do meu ramo usual de atividade.

     - Que ramo de atividade é esse? - Perguntou Spencer.

     - Medicina.

     - Um médico, hein?

     - Sim, um médico. E portanto receio que de nenhum uso para o senhor para livrar-se de caminhões. Não tenho meios para comprar um, quanto mais quarenta. O futebol é a única extravagância que me permito, e por causa dele viajarei para qualquer lugar, desde que tenha tempo. Daí minha viagem esta noite.

     Encostando a cabeça no descanso de sua poltrona, Spencer disse:

     - Prazer em tê-lo por perto. Doutor. Se não puder dormir o senhor pode me receitar um sedativo.

     Quando acabou de falar os motores trovejaram até plena potência, todo o avião vibrando pelo esforço feito contra os freios das rodas. O médico pôs a boca no ouvido de Spencer e berrou:

     - Um sedativo não adiantaria nada nesta barulhada. Nunca pude compreender porque eles precisam fazer todo este barulho antes da decolagem.

     Spencer concordou com a cabeça; quando após alguns segundos o rugido havia diminuído o suficiente para fazer-se ouvir sem muita dificuldade, disse:

     - É a aceleração usual dos motores. Acontece sempre momentos antes de o avião começar a decolagem. Cada motor tem dois magnetos, no caso de um enjambrar durante o vôo, e na aceleração cada motor por sua vez é aberto a todo afogador e cada um dos magnetos testado separadamente. Quando o piloto se convencer de que estão em bom estado de funcionamento ele decola, mas não antes. As linhas aéreas têm de ser exageradas nessas coisas, graças a Deus.

     - Parece que o senhor entende um bocado disso.

     - Na realidade não. Eu pilotei aviões de caça na guerra mas agora estou bastante enferrujado. Acho que me esqueci de quase tudo.

     - Lá vamos nós, - comentou o médico quando o rugido do motor atingiu um tom mais profundo. Um impulso poderoso no encosto de suas poltronas disse-lhes que o avião estava ganhando velocidade sobre a pista; quase imediatamente uma ligeira guinada indicou-lhes que haviam deixado o solo e os motores retornaram a um zumbido constante. Ainda ganhando altitude, o avião inclinou-se fortemente para o lado e Spencer pôde observar as luzes do aeroporto que se afastavam à medida que elas subiam regularmente por cima da ponta da asa.

     - Podem soltar seus cintos de segurança, - anunciou o alto-falante. - Fumem se desejarem.

     - Nunca fico sentido quando esse momento passa, - resmungou o médico, libertando sua fivela e aceitando um cigarro. - Obrigado. A propósito, chamo-me Baird, Bruno Baird.

     - Prazer em conhecê-lo, Doutor. Chamo-me Spencer, simplesmente George Spencer, da Companhia de Motores Fulbright.

     Por algum tempo os dois homens mantiveram-se em silêncio, olhando distraidamente a fumaça de seus cigarros ascender lentamente na cabina até ser apanhada pela corrente do ar condicionado e aspirada para fora. Os pensamentos de Spencer eram sombrios. Deveria haver algum tipo de explicação definitiva quando voltasse para a matriz, decidiu. Embora houvesse explicado pelo telefone a situação ao agente local de Winnipeg antes de chamar um táxi para o aeroporto, aquele pedido demandaria alguma demora por enquanto. Tinha que haver uma grande demonstração em Vancouver para justificar esta confusão. Seria uma boa idéia usar a coisa como pretexto para um aumento de salário quando voltasse. Ou melhor ainda, promoção. Como gerente na divisão de distribuidores de vendas, que o velho havia mencionado muitas vezes mas nunca efetivado, Mary e ele, Bobsie e o pequeno Kit, poderiam deixar a casa que ocupavam e mudar-se para Parkway Heights. Ou pagar as contas, a nova caixa d’água, despesas de colégio, prestações do Oldsmobile e do congelador, as despesas de hospital da última gravidez de Mary. Ambas não, refletiu Spencer taciturnamente: ambas não. mesmo com o salário de gerente.

     O Dr. Baird, tentando decidir se ia dormir ou aproveitar esta oportunidade excelente para se pôr em dia com a edição aérea do B. - M. - J.,1 não fez de fato nenhuma das duas coisas e viu-se ao invés disso pensando na cirurgia de cidade pequena que tinha abandonado por dois dias. Admirava-se de como Evans daria conta daquilo, pensou ele. Sujeito prometedor, mas absurdamente jovem. Espero em Deus que ele se lembre de que a Sra. Lowrie toma xarope e não o preparado sem valor pelo qual tanto se agita. Apesar disso Doris manteria o jovem Evans no caminho certo; as mulheres dos médicos faziam maravilhas a este ponto. Tinham que fazer, por Deus do Céu! Essa era uma coisa que Lewis teria que aprender no tempo devido: encontrar a mulher certa. O médico cochilou um pouco e seu cigarro queimou-lhe os dedos, acordando-o prontamente.

     O casal nas poltronas do outro lado do corredor ainda estava absorto em seus jornais esportivos. Descrever Joe Greer era o mesmo que descrever Hazel Greer: uma dupla que seria difícil imaginar. Ambos tinham a pele rosada e os olhos penetrantes e claros dos espaços abertos, ambos curvados sobre as folhas compactamente impressas como se os segredos do universo lá estivessem expostos.

     - Açúcar de cevada? - Perguntou Joe quando a bandeja do avião chegou até eles.

     - Ha-ham, - replicou Hazel. Depois, mastigando firmemente, baixaram de novo as duas cabeças de cabelos castanhos.

     Os quatro nas poltronas detrás estavam começando sua terceira rodada de uísque americano em copos de papel. Três eram do tipo comum: gordalhufos, discutidores, agressivos, prontos a se divertirem com todas as inibições costumeiras postas de lado por dois dias memoráveis. O quarto era um homem baixo, esguio, de feições descarnadas, expressão lúgubre e idade indeterminada que falava com um sotaque cheio e sonoro do Lancashire.

     - Este é para os Leões amanhã, - disse ele levantando seu copo de papel em mais um brinde aos seus heróis. Seus amigos acompanharam o brinde solenemente. Um deles, exibindo na lapela do paletó um emblema que parecia representar um gato sarnento vagabundo e empinado, mas que presumivelmente representava o próprio rei dos animais, ofereceu à volta sua cigarreira o observou, não pela primeira vez:

     - Nunca pensei que pudéssemos consegui-lo. Quando tivemos que esperar em Toronto com aquela cerração a toda volta, disse comigo mesmo, Andy, isto é um bocado de diversão que você terá que perder. Apesar de tudo, estamos apenas algumas horas atrasados e podemos dormir no avião.

     - Não antes de comermos, espero, - disse um dos outros. - Estou esfaimado. Quando é que vão trazer a bóia?

     - Deve vir logo, acho. Eles em geral servem o jantar lá pelas oito, mas tudo ficou atrasado com aquela interrupção.

     - Não importa. Aceite um gole enquanto espera, - sugeriu o homem de Lancastre, que se alegrava em ser chamado pelo apelido de Otpot, oferecendo a garrafa de uísque.

     - Devagar, rapaz. Não temos muito.

     - Ah, há muito mais. Vamos logo. Ele te ajudará a dormir.

     O resto dos cinqüenta e seis passageiros, que incluíam três ou quatro mulheres, estava lendo ou conversando, todos esperando o grande jogo e excitados por estarem na última etapa de sua viagem transcontinental. Pelas vigias de bombordo podiam ser vistas as luzes bruxuleantes azuis e amarelas dos últimos subúrbios de Winnipeg, antes que elas fossem engolidas pelas nuvens a medida que o avião subia.

     Na pequena mas bem arrumada cozinha a aeromoça Janet Benson preparava o jantar, uma refeição tardia que deveria ter servido duas horas antes. O espelho sobre o armário dos cristais refletia a satisfação que sempre sentia no começo de um vôo, uma exuberância que escondia na intimidade de seu alojamento. Retirando dos armários embutidos os guardanapos e talheres necessários, Janet cantarolava alegremente. Copeirar era a parte menos atrativa dos deveres de uma aeromoça, e Janet sabia que deveria fazê-lo durante uma hora inteira exaustiva, abastecendo os estômagos de uma lotação completa de pessoas famintas, mas apesar de tudo sentia-se confiante e feliz. Muitos de seus colegas de aviação, se pudessem observar o movimento de seus cabelos louros e do seu corpo elegante enquanto se ocupava eficientemente na cozinha, teriam prendido o fôlego de admiração e feito eco à sua confiança. Aos vinte e um anos, Janet estava começando a provar a vida e a achá-la boa.

     Adiante, na cabina dos pilotos, o único som era o zumbido e a vibração dos motores. Os dois pilotos estavam sentados perfeitamente imóveis, exceto quanto a um movimento ocasional da perna ou do braço, suas fisionomias fracamente iluminadas pelo fulgor da luz da miríade de mostradores no painel de instrumentos. Dos fones que recobriam em parte seus ouvidos veio o crepitar súbito de uma conversa entre outro avião e o solo. Em torno de seus pescoços pendiam pequenos microfones de amplificação.

     O Capitão Dunning esticou-se em sua cadeira, flexionou os músculos e soprou através dos pêlos luxuriantes do bigode num cacoete inconsciente que sua tripulação conhecia bem. Parecia mais velho que os trinta e três anos que realmente tinha.

     - Como estão as temperaturas nas cabeças dos cilindros do motor número 3, Pete? - Perguntou ele.

     Com os olhos momentaneamente trêmulos, ao primeiro oficial Peter moveu-se e olhou de relance para o painel.

     - Bem agora, chefe. Fi-los verificarem em Winnipeg mas nada puderam encontrar de errado. Parece que endireitaram sozinhas. Não estão se aquecendo agora.

     - Ótimo. - Dun examinou com atenção o céu escuro em frente. Uma lua delgada brilhava desoladamente embaixo nos bancos de nuvens. Pedaços esfarrapados de flocos de algodão aproximavam-se preguiçosamente, para desaparecerem de repente; ou em certas ocasiões o avião mergulhava numa desordenada nuvem branca acinzentada, para livrar-se num segundo ou dois como um cachorro saindo d'água e sacudindo as gotas que trazia. - Com um pouco de sorte será uma travessia serena, - comentou ele. - O boletim meteorológico foi razoável para variar. Não é muitas vezes que se mantém o plano de vôo original nesta viagem de recreio.

     - Bem dito, - concordou o primeiro oficial. - Dentro de um mês se tanto será uma história muito diferente.

     O avião começou a sacudir e oscilar um pouco quando atingiu uma sucessão de correntes térmicas e por alguns minutos o capitão se concentrou em corrigir o seu nivelamento. Depois observou:

     - Você está pensando em assistir a esse jogo de futebol em Vancouver, se houver tempo para descansar primeiro?

     O primeiro oficial hesitou antes de responder:

     - Não sei ainda, - disse. - Vamos ver como param as coisas.

     O capitão olhou rapidamente para ele.

     - Que quer dizer com isso? Ver como param que coisas? Se você estiver de olho na Janet, pode desistir. Ela ainda é muito moça para cair sob a influência corruptora de um jovem Casanova como você.

     Poucas pessoas pareciam menos merecedoras desta descrição do que o primeiro oficial de faces frescas e olhos sonhadores, ainda na casa dos vinte.

     - Devagar, comandante, - protestou ele, enrubescendo. - Nunca corrompi ninguém em minha vida.

     - Isto é bem provável. Bem, não pretenda começar com Janet. - O capitão sorriu mostrando os dentes. - Metade do pessoal das linhas aéreas do Canadá considera uma tarefa permanente tentar começar por ela. Não torne a vida difícil para você mesmo, seu miolo mole.

     A quatro metros deles, do outro lado da porta de correr, o assunto de sua conversa estava anotando os pedidos para a refeição noturna.

     - Gostaria de jantar agora, senhor? - Perguntou ela calmamente, inclinando-se para a frente com um sorriso.

     - Hein? Que é? Oh, sim por favor. - Baird retornou ao presente e deu uma cotovelada em Spencer que estava praticamente dormindo. - Acorde, aí. Quer jantar?

     Spencer bocejou e recompôs-se.

     - Jantar? Claro que quero. Você está atrasada, não está, senhorita? Pensei que tivesse passado da hora há muito tempo.

     - Ficamos retidos em Toronto, senhor, e ainda não servimos o jantar, - disse Janet Benson. - Que gostaria de comer? Temos bifes de carneiro ou salmão grelhado.

     - Oh, sim, por favor.

     O sorriso de Janet firmou-se um pouco.

     - Qual deles senhor? - Perguntou ela pacientemente.

     Spencer despertou completamente.

     - Oh, sim, desculpe-me senhorita. Prefiro carneiro.

     - Eu também, - disse Baird.

     De volta à cozinha, Janet ocupou-se totalmente na meia hora seguinte preparando e servindo as refeições. Finalmente todos que queriam comer haviam sido servidos com um prato principal e ela ficou livre para pegar o telefone da cozinha e apertar a cigarra do intercomunicador.

     - Cabina de vôo. - Veio a voz de Pete.

     - Estou finalmente servindo o jantar, - disse Janet. - Antes tarde do que nunca. Que querem, bife de carneiro ou salmão grelhado?

     - Espere um pouco. - Ela pôde ouvi-lo fazer a pergunta ao capitão. - Janet, o comandante diz que prefere o carneiro, não, um minuto, ele mudou de idéia. O peixe está bom?

     - Parece bom, - disse Janet alegremente. - Não houve reclamações.

     - O comandante quer salmão, então. Para dois, é melhor. Porções grandes, veja lá. Estamos em idade de crescimento.

     - Está bem, porções duplas como de hábito. Salta dois peixes.

     Ela arrumou rapidamente duas bandejas e levou-as para a frente, equilibrando-as com o desembaraço da prática contra os movimentos quase imperceptíveis do avião. Pete havia voltado para abrir a porta de correr para ela e pegar uma das bandejas. O capitão havia completado a ligação do piloto automático e estava agora em meio da rotina de verificação pelo rádio com o Controle em Winnipeg.

     - Altitude 5.300, - continuou ele, falando no pequeno microfone situado diante de sua boca preso a um delgado braço plástico. - Curso 285 verdadeiro. Velocidade do ar 210 nós. Velocidade em relação ao solo 174 nós. HPC2 Vancouver 05.05 Hora Padrão do Pacífico. Câmbio. - Girou o interruptor de transmitir para receber e ouviu-se um estalido em seu fone quando chegou a resposta. - Vôo 714. Aqui o Controle de Winnipeg. Entendido. Desligo.

     Dun apanhou sua folha de registros, fez uma anotação, depois deslizou sua cadeira para trás de forma a ficar desembaraçado dos controles mas ainda a fácil alcance deles se fosse necessário tomá-los outra vez. Pete estava começando a comer, com a bandeja pousada sobre um travesseiro em cima dos joelhos.

     - Não demoro, chefe, - disse ele.

     - Não há pressa, - replicou Dun, esticando os braços acima da cabeça tanto quanto permitia a pequena cabina. - Posso esperar. Aproveite. A propósito, como está o peixe?

     - Não está ruim, - resmungou o primeiro oficial com a boca cheia. - Se a quantidade fosse três ou quatro vezes maior poderia ser uma refeição perfeita.

     O capitão riu entre dentes.

     - É melhor tomar cuidado com essa plástica, Pete. - Voltou-se para a aeromoça que esperava na sombra atrás da cadeira. - Tudo em ordem lá atrás, Janet? Como vão os torcedores de futebol?

     Janet deu de ombros.

     - Tudo em paz agora. Aquela longa espera em Toronto deve tê-los cansado. Quatro ficaram bebendo muito uísque, mas não houve necessidade de chamar-lhes a atenção. Ajudará até a mantê-los quietos. Parece que vai ser uma noite fácil e pacífica, vamos torcer.

     Pete levantou uma sobrancelha intrigada.

     - Bem, bem, moça. Este é o tipo de noite para desconfiar, quando a confusão começa a se armar. Aposto que alguém está-se preparando para ficar doente bem agora.

     - Ainda não, - disse Janet despreocupadamente. - Mas avise-me quando você for pilotar o avião e aprontarei os sacos.

     - Bem feito, - disse o capitão. - Estou satisfeito por ter descoberto isto sobre ele.

     - Como está o tempo? - Perguntou Janet.

     - Oh, vejamos agora. Cerração geral a leste das montanhas, estendendo-se quase até Manitoba. Apesar disso nada há lá que nos preocupe. Devemos ter uma viagem tranqüila até a costa.

     - Ótimo. Bem, mantenha o jovem afastado dos controles enquanto sirvo o café, está bem?

     Ela escapuliu antes que Pete pudesse responder, caminhou ao longo da cabina de passageiros anotando pedidos de café, e pouco depois trouxe uma bandeja à cabina para os pilotos. Dun havia a este momento terminado de comer, e agora bebia o café com satisfação. Pete havia tomado os controles e agora concentrava-se nos mostradores dos instrumentos quando o capitão levantou-se.

     - Mantenha-o fumegando, Pete. Vou apenas pôr os passageiros para dormir.

     Pete assentiu com a cabeça sem se voltar.

     - Está bem, comandante.

     O capitão seguiu Janet para a cabina de passageiros brilhantemente iluminada, piscando, e deteve-se primeiro diante das poltronas ocupadas por Spencer e Baird, que entregaram suas bandejas à aeromoça.

     - Boa noite, - disse Dun. - Tudo em ordem?

     Baird olhou para cima.

     - Naturalmente, obrigado. Comida muito boa. Também estávamos prontos para ela.

     - É, lamento ter saído tão tarde.

     O médico com um gesto afastou as desculpas dele.

     - Não tem importância. A culpa não é sua se Toronto decidiu arranjar um pouco de cerração. Bem, - acrescentou ele, ajeitando-se na poltrona, - vou encostar a cabeça para um cochilo.

     - Eu também, - disse Spencer com um bocejo.

     - Espero que passem uma noite confortável, - disse Dun, desligando suas luzes de leitura. - A aeromoça lhes trará alguns cobertores. Ele continuou pelo corredor, trocando algumas palavras com cada um dos passageiros em tom baixo, explicando a alguns como podia baixar os encostos das poltronas, e descrevendo para outros como ia o vôo e as previsões de tempo.

     - Bem, agora vou cair no sono, - disse Spencer. - Uma coisa, Doutor, pelo menos esta noite o senhor não terá nenhum chamado.

     - Quanto tempo leva ainda? - murmurou Baird sonolento, os olhos fechados. - Umas boas sete horas de qualquer forma. É melhor aproveitar o máximo. Boa noite.

     - Boa noite, Doutor, - resmungou Spencer, ajeitando o encosto na nuca. - Bem que gostaria de uma venda para os olhos.

     Isolado por um espesso cobertor de nuvens num mundo frio e remoto que lhe era próprio, o avião roncava calmamente em seu curso. 5 .300 metros abaixo estavam as pradarias do Saskatchewan, silenciosas e adormecidas.

     Dun havia chegado ao quarteto que bebia uísque e polidamente proibiu qualquer consumo maior de bebidas durante a noite.

     - Os senhores sabem que isso não é permitido. - Disse-lhes com um sorriso de reprovação. - Não quero ver mais nenhuma garrafa ou os senhores terão de descer e ir a pé.

     - Alguma objeção a um jogo de cartas? - Perguntou um do grupo, segurando um frasco contra a luz mais próxima e baixando os cantos da boca ao ver a pequena quantidade que sobrara.

     - De maneira alguma, - disse Dun, - desde que não perturbem os outros passageiros.

     - Tenham pena do pobre capitão, - disse o homem do Lancastre. - Que tal é dirigir uma coisa grande como esta através da noite?

     - Rotina, - disse Dun. - Apenas rotina, comum, enfadonha.

     - A propósito, todo vôo é simples rotina, suponho?

     - É. Acho que é.

     - Até que algo aconteça, hein?

     Houve uma explosão de risos reprimidos a que Dunning aderiu antes de ir embora. Somente o lancastriano, através da névoa produzida pela bebida, pareceu por um momento pensativo com suas próprias palavras.

    

     00,45-01,45 horas

     O capitão havia completado seu giro e aproveitava alguns momentos distraindo-se calmamente com um dos passageiros, um homenzinho que parecia haver viajado com ele antes.

     - Sei que o bigode parece um pouco com a R.F. - A.C.3, - dizia Dun, justificando-se, - mas estou com ele há tanto tempo que não posso mais raspá-lo; é como se fosse um velho amigo.

     - Aposto que é uma sensação com as moças, - disse o homenzinho. - Como é que o chamam, Castor?

     - Bem, não, - respondeu Dun, a suspeita de um riso contido escondida pela bigodeira. - Somos uma turma bastante intelectual nesta companhia. Na maioria das vezes apenas Dunsinane.

     - Apenas o quê? - Perguntou o homenzinho.

     - Dunsinane, - disse o capitão com bastante deliberação. - O senhor com certeza se lembra? Não conhece o Macbeth?

     O homenzinho olhou para cima espantado.

     - Não conhece o Macbeth? - Repetiu estupidamente. - Eh! que negócio é esse?

     O capitão havia-se afastado. Enquanto estivera falando tinha os olhos presos na aeromoça, mais adiante no corredor, que se debruçava sobre uma mulher, a palma da mão em sua testa. Quando se aproximou, a mulher, que estava mais deitada do que sentada na poltrona, caiu repentinamente sobre o encosto com a fisionomia transtornada. Os olhos se contraíram como se sentisse dores. O capitão tocou levemente o braço da aeromoça.

     - Aconteceu alguma coisa, Senhorita Benson? - Perguntou ele.

     Janet endireitou-se.

     - A senhora está-se ressentindo um pouco do tempo, Capitão, - disse ela calmamente. - Vou trazer-lhe um pouco de aspirina. Voltarei num instante.

     Dun tomou o lugar dela e debruçou-se sobre a mulher e o homem a seu lado.

     - Lamento ouvir isso, - disse com simpatia. - Que acha que é?

     A mulher olhou espantada para ele.

     - Eu, eu não sei, - disse ela em voz baixa. - Parece que veio de repente. Há apenas alguns minutos. Senti-me mal e tonta; senti uma dor horrível... aqui- embaixo. - Ela apontou o estômago. - Desculpe o incômodo, eu...

     - Ora, ora querida, - murmurou o homem a seu lado. - Deite-se quieta. Você se sentirá melhor logo. - Olhou para o capitão. - Um pouco enjoada, será?

     - Espero que sim, senhor, - respondeu Dun. Olhou com solicitude para a mulher deitada, notando o suor que começava a porejar em sua testa pálida, o cabelo já se desarranjando, a brancura dos nós dos dedos quando com uma das mãos segurava-se ao braço da poltrona e com a outra ao marido. - Lamento que não se sinta bem, - disse ele pesaroso, - mas estou certo de que a aeromoça será capaz de ajudá-la. Tente descansar o mais que puder. Se isso a tranqüiliza posso afirmar que parece que teremos uma viagem calma.

     Afastou-se para dar lugar a Janet.

     - Bem, cá estamos, - disse a aeromoça, dando a ela os comprimidos. - Tente isso. - Ajudou a mulher a erguer a cabeça para tomar alguns goles de água do copo que trouxera. - Muito bem. Agora vamos ajeitá-la para ficar um pouco mais confortável. - Ela colocou um cobertor em volta da mulher. - Que tal? - A mulher fez um sinal de gratidão com a cabeça. - Voltarei daqui a pouco para ver como está passando. Não tenha receio de usar o saco de papel se precisar. E se quiser me chamar basta apertar o botão da campainha junto à janela.

     - Obrigado, senhorita, - disse o marido. - Estou certo de que estaremos logo bem. - Olhou para a mulher com um sorriso, como para se certificar. - Tente descansar, querida. Vai passar tudo.

     - Espero que sim, - disse Dun. - Sei como essas coisas são desagradáveis. Espero que melhore logo, minha senhora, e que ambos passem uma boa noite.

     Dirigiu-se ao fundo do corredor e ficou a espera de Janet na cozinha.

     - Quem são eles? - Perguntou quando a aeromoça voltou.

     - O Sr. e a Sra. Childer, John Childer. Ela estava bem há quinze minutos atrás.

     - Hum. Bem, é melhor me avisar se ela piorar e eu falarei pelo rádio para Vancouver.

     Janet olhou para ele rapidamente.

     - Por quê? O que pensa que seja?

     - Não sei. Não gosto do aspecto dela. Pode ser enjôo ou apenas um ataque de vesícula, acho eu, mas parece ter sido forte. - O capitão estava ligeiramente preocupado, os dedos tamborilando distraidamente na mesa de metal.

     - Temos algum médico na lista de passageiros?

     - Ninguém que se tenha registrado como médico, - respondeu Janet, - mas posso perguntar.

     Dun balançou a cabeça.

     - Não os incomode agora. A maior parte está-se preparando para dormir. Avise-me como está ela dentro de meia hora mais ou menos. O problema é - acrescentou ele com tranqüilidade quando se virava para sair - temos ainda mais quatro horas de vôo antes de chegar ao litoral.

     Ao dirigir-se para a cabina de vôo, parou um instante e sorriu para a mulher doente. Ela tentou corresponder, mas uma pontada súbita cerrou-lhe os olhos e fê-la arquear de encontro à poltrona. Por alguns segundos Dun permaneceu observando-a intensamente. Depois continuou em frente, fechou a porta da cabina de vôo atrás de si, e esgueirou-se em sua cadeira. Retirou o quepe e colocou no lugar os fones grandes, e depois o microfone de amplificação. Pete estava pilotando normalmente. Bancos de nuvens espalhados pareciam correr para as janelas da frente, envolvê-los por um momento, e depois desaparecer.

     - Cúmulo nimbus aumentando, - comentou o primeiro oficial.

     - A coisa está ficando turbulenta, hein? - Disse Dun.

     - Parece que sim.

     - Deixe comigo. É melhor subirmos para cima deles. Quer pedir para mim seis mil e seiscentos?

     - Está bem, - Pete apertou um botão na ligação do seu microfone para transmitir. - 714 para o rádio de Regina, - chamou.

     - Adiante, 714, - disse uma voz estalando nos fones.

     - Estamos encontrando tempo desagradável. Gostaríamos de permissão para seis mil e seiscentos.

     - 714. Aguarde. Pedirei ao C.T. - A.4

     - Obrigado, - disse Pete.

     O capitão examinou a turbulência nublada em frente.

     - É melhor ligar o aviso de cinto de segurança, Pete, - sugeriu, corrigindo com concentração automática a tendência do avião de sacudir e guinar.

     - Está bem. - Pete procurou o interruptor no painel do teto. Houve um ligeiro estremecimento quando o avião se livrou de uma parede de nuvens, para mergulhar imediatamente em outra.

     - Vôo 714, - veio a voz no rádio. - O C.T. - A. dá permissão para seis mil e seiscentos. Câmbio.

     - 714, - Pete deu o entendido. - Obrigado e desligo.

     - Vamos então, - disse o capitão. A nota dos motores mudou para uma intensidade mais profunda quando o chão começou a se inclinar e o ponteiro do altímetro no cintilante painel de instrumentos registrou com firmeza uma ascensão de 170 metros por minuto. O longo limpador de pára-brisa sibilava com ritmo numa ampla varredura de um lado.para o outro.

     - Não vou me queixar quando nos livrarmos desta porcaria, - observou o primeiro oficial.

     Dun não respondeu, os olhos colados aos mostradores diante dele. Nenhum dos pilotos ouviu a aeromoça entrar. Ela tocou no ombro do capitão.

     - Capitão, - disse com pressa mas mantendo a voz bem controlada. - Aquela mulher. Ela está pior. E tenho outro passageiro doente agora, um dos homens.

     Dun não se voltou para ela. Ergueu um braço e ligou as luzes de aterragem. Diante deles os agudos feixes de luz cortaram o ímpeto da chuva e da neve. Ele desligou as luzes e começou a regular os interruptores do motor do descongelador.

     - Não posso ir agora, Janet, - respondeu ele enquanto trabalhava. - É melhor você fazer como dissemos e ver se pode encontrar um médico. E certifique-se de que todos os cintos de segurança estão presos. Isto pode ficar bem pior. Irei assim que puder.

     - Sim, Capitão.

     Saindo da cabina de vôo, Janet falou numa voz suficientemente alta para alcançar as filas de passageiros:

     - Prendam seus cintos de segurança, por favor. O avião pode começar a sacudir um pouco. - Debruçou-se sobre os dois primeiros passageiros a sua direita, pestanejando para ela meio dormindo. - Perdoem-me, - disse de passagem, - mas um dos cavalheiros por acaso é médico?

     O homem mais perto dela sacudiu negativamente a cabeça.

     - Não, desculpe, - resmungou. - Há algo errado?

     - Não, nada de sério.

     Uma exclamação de dor fê-la prestar atenção repentinamente. Apressou o passo pelo corredor para onde a doente, Sra. Childer, estava meio deitada nos braços do marido, gemendo com os olhos fechados, e parcialmente dobrada. Janet ajoelhou-se rapidamente e enxugou o suor brilhante da testa da mulher. Childer olhou-a fixamente, sua fisionomia vincada pela ansiedade.

     - Que podemos fazer, senhorita? - Perguntou-lhe. - Que acha que possa ser?

     - Mantenha-a aquecida, - disse Janet. - Vou ver se há um médico a bordo.

     - Um médico? Só espero que haja. Que faremos se não houver?

     - Não se preocupe, meu senhor. Voltarei logo.

     Janet ergueu-se, olhou de cima rapidamente para a mulher que sofria, e dirigiu-se para as poltronas seguintes, repetindo sua pergunta em voz baixa.

     - Há alguém doente? - Perguntavam-lhe.

     - Apenas sentindo-se indisposta. Acontece às vezes em vôo. Desculpe-me por tê-lo incomodado.

     Uma mão agarrou seu braço. Era um do quarteto de uísque, com o rosto amarelo e brilhando.

     - Perdão senhorita, por incomodá-la outra vez. Estou me sentindo mal como o diabo. Acha que posso beber um copo d’água?

     - Acho, naturalmente. Vou trazer-lhe.

     - Nunca me senti assim antes. - O homem deitou-se de costas e expeliu o ar pela boca. Um de seus companheiros se agitou, abriu os olhos e sentou-se. - Que que há com você? - Murmurou.

     - É a minha barriga, - disse o homem que se sentia mal. - Sinto como se ela estivesse se rasgando. - Suas mãos apertaram o estômago quando outro espasmo o sacudiu.

     Janet apertou levemente o ombro de Spencer. Ele abriu um olho, depois o outro.

     - Lamento muito acordá-lo, senhor, - disse ela, - mas alguém aqui é médico?

     Spencer recompôs-se.

     - Médico? Não, acho que não, senhorita. - Ela agradeceu com a cabeça, e preparava-se para se afastar. - Um momento, por favor, - ele fê-la parar. - Parece que me lembro, sim, é claro, há um. Este cavalheiro a meu lado é médico.

     - Oh, graças a Deus, - murmurou a aeromoça. - Pode acordá-lo, por favor?

     - Claro. - Spencer olhou para ela enquanto cutucava a forma recostada a seu lado. - Alguém doente, hein?

     - Sentindo uma indisposição, - disse Janet.

     - Vamos, Doutor, acorde, - disse Spencer energicamente. O médico sacudiu a cabeça, resmungou, depois acordou de repente. - Parece que apesar de tudo o senhor conseguiu o seu chamado à noite.

     - O senhor é médico? - Perguntou Janet ansiosamente.

     - Sim, sim, sou o Dr. Baird. Por que, algo errado?

     - Temos dois passageiros que estão bem doentes. Poderia dar uma olhada neles, por favor?

     - Doentes? Sim, certamente.

     Spencer levantou-se para deixar o médico passar.

     - Onde estão? - Perguntou Baird, esfregando os olhos.

     - Acho melhor o senhor ver a mulher primeiro, Doutor, - disse Janet, tomando a frente e ao mesmo tempo falando calmamente, - apertem os cintos, por favor, - enquanto passava.

     A Sra. Childer estava agora tão prostrada quanto permitia a poltrona. Calafrios de dor sacudiam com violência seu corpo. Ela respirava fortemente, arquejando longamente com tremores. Seu cabelo estava molhado de suor.

     Baird deteve-se observando-a por um instante. Depois ajoelhou-se e tomou o seu pulso.

     - Este cavalheiro é médico, - disse Janet.

     - Alegro-me em vê-lo, Doutor, - disse Childer com ardor.

     A mulher abriu os olhos.

     - Doutor... - Ela fez um esforço para. falar, os lábios tremendo.

     - Acalme-se, - disse Baird, com os olhos no relógio. Largou seu pulso, apalpou o paletó e retirou uma lanterna de bolso. - Abra bem os olhos, - ordenou suavemente e examinou cada olho por sua vez à luz brilhante do facho. - Agora. Sente alguma dor? - A mulher fez que sim. - Onde? Aqui? Ou aqui? - Ao apalpar o ventre, ela retesou-se subitamente, reprimindo um grito de dor. Ele recolocou o cobertor, pôs a mão em sua testa, depois levantou-se. - Esta senhora é sua mulher? - Perguntou a Childer.

     - Sim, Doutor.

     - Ela se queixou de alguma coisa além da dor?

     - Ela estava bem mal, vomitando tudo.

     - Quando começou isso?

     - Há pouco, acho eu. - Childer olhou desoladamente para Janet. - Veio tudo tão de repente.

     Baird balançou a cabeça refletindo. Afastou-se levando Janet pelo braço e falando bem baixo para não ser ouvido pelos passageiros próximos que olhavam para eles.

     - Você deu alguma coisa a ela? - Perguntou.

     - Só água e aspirina, - respondeu Janet. - Isso me lembra. Prometi um copo d’água ao homem que está doente...

     - Espere, - disse Baird vivamente. Seu sono havia desaparecido agora. Estava alerta e cheio de autoridade. - Onde aprendeu enfermagem?

     Janet enrubesceu com o tom dele.

     - Na escola de treinamento da companhia, mas...

     - Não importa. Mas não adianta quase nada dar aspirina a alguém que já esteja vomitando. Apenas água.

     - Desculpe-me, Doutor, - gaguejou Janet.

     - Acho melhor procurar o capitão, - disse Baird. - Diga-lhe por favor que deverá aterrar imediatamente. Esta mulher tem que ser levada para um hospital. Peça para mandarem uma ambulância nos esperar.

     - O senhor sabe o que tem ela?

     - Não posso fazer um diagnóstico correto aqui. Mas é bastante sério para aterrar na cidade mais próxima que disponha de recursos médicos. Pode dizer isto ao capitão.

     - Muito bem, Doutor. Enquanto vou lá, quer dar uma olhada no outro passageiro doente? Ele se queixa do mesmo mal e de dores.

     Baird olhou para ela vivamente. - Das mesmas dores, diz você? Onde está ele?

     Janet levou-o para a frente onde se sentava o doente, dobrado, com engulhos, amparado pelo amigo na poltrona ao lado. Baird agachou-se a fim de olhar para o seu rosto.

     - Eu sou médico. Quer levantar a cabeça, por favor? - Ao fazer um exame rápido, perguntou: - O que é que o senhor comeu nas últimas vinte e quatro horas?

     - Apenas as coisas usuais, - murmurou o homem, parecendo que todas as forças o tinham abandonado. - Café da manhã, - disse fracamente, - bacon e ovos... salada no almoço... um sanduíche no aeroporto ... depois jantar aqui... - Um fio de saliva correu pelo seu queixo abaixo sem que ele se importasse. - É a dor, Doutor. E meus olhos.

     - Que têm os seus olhos? - Perguntou Baird rapidamente.

     - Parece que não focalizam. Vejo tudo em dobro.

     Seu companheiro pareceu ter achado isso divertido.

     - Aquele uísque é mesmo um tiro, sim senhor, - exclamou ele.

     - Fique quieto, - disse Baird. levantou-se e deparou com Janet e o capitão ao seu lado. - Mantenha-o aquecido, ponha mais cobertores em volta dele, - disse a Janet. O capitão fez-lhe sinal para segui-lo até a cozinha. Logo que ficaram sós, Baird insistiu: - Qual o tempo mínimo para pousarmos, Capitão?

     - Este é o problema, - disse Dun abruptamente. - Não podemos.

     Baird olhou fixamente para ele.

     - Por quê?

     - Por causa do tempo. Acabei de verificar pelo rádio. - Há cerração e nuvens baixas logo acima das pradarias deste lado das montanhas. Calgary está completamente fechado. Temos de ir até o litoral.

     Baird meditou por um momento.

     - Que tal voltarmos? - Perguntou ele.

     Dun sacudiu a cabeça, sua fisionomia tensa ao brilho suave das luzes.

     - Isto está fora de cogitação, também. Winnipeg fechou devido à cerração logo depois que saímos. De qualquer maneira, o mais rápido será seguir em frente.

     Baird fez uma careta, dando pancadinhas com a unha na pequena lanterna elétrica.

     - Em quanto tempo o senhor espera aterrar?

     - Cerca das cinco da manhã, Hora do Pacífico. - Dun viu o médico olhar sem querer para o seu relógio de pulso, e acrescentou: - Devemos aterrar dentro de três horas e meia contadas. Estes aviões fretados não são os mais rápidos do mundo.

     Baird tomou uma resolução.

     - Então tenho que fazer o que posso por essas pessoas até que cheguemos a Vancouver. Preciso da minha maleta. Acha que pode ser encontrada? Despachei-a em Toronto.

     - Podemos tentar, - disse o capitão. - Espero que esteja por cima. Dê-me suas etiquetas, Doutor.

     Os longos dedos de Baird sondaram o bolso de trás das calças e saíram com a carteira. Dela retirou duas etiquetas de bagagem e entregou-as a Dun.

     - Há duas maletas, Capitão, - disse ele. - É a menor que eu quero. Não há muita coisa nela, apenas algumas que levo sempre comigo. Mas elas ajudarão.

     Apenas acabara de falar quando o avião deu uma guinada violenta, que lançou os dois homens esparramados contra a parede mais afastada. Ouviu-se um zumbido alto e persistente. O capitão levantou-se primeiro e saltou para o telefone interno.

     - Aqui o comandante - disse abruptamente. - Qual é o problema, Pete?

     A voz do primeiro oficial saía com dificuldade e penosamente.

     - Estou... doente... venha já.

     - É melhor o senhor vir comigo, - disse Dun ao médico e deixaram a cozinha rapidamente. - Desculpe o sacolejão, - dizia Dun afavelmente para os rostos voltados para ele enquanto caminhavam pelo corredor. - Uma pequena turbulência, apenas.

     Quando eles irromperam na cabina de vôo, era por demais evidente que o primeiro oficial estava muito mal, sua fisionomia uma máscara de suor, havia afundado em sua cadeira, agarrado à coluna de controle com todas as forças que lhe restavam.

     - Tire-o daí, - disse o comandante com urgência. Baird e Janet, que havia entrado junto com os homens, apanharam o co-piloto e levantaram-no afastando-o dos controles, enquanto Dun se esgueirava em sua cadeira e segurava a coluna com as mãos.

     - Há uma cadeira atrás da cabina de vôo, para quando levamos um rádio-operador, - disse-lhes. - Ponham-no lá.

     Com um engulho agônico, Pete vomitou no chão enquanto o ajudavam em direção ao lugar vago e o apoiavam contra a parede. Baird afrouxou o colarinho e a gravata do primeiro oficial e tentou pô-lo o mais à vontade quanto as condições permitiam. Cada poucos segundos Pete se dobrava em outro engulho excruciante e agourento.

     - Doutor, - chamou o comandante, sua voz tensa. - Que é isso? O que está acontecendo?

     - Não tenho certeza, - disse Baird sombriamente. - Mas há um denominador comum para esses ataques. Tem que haver. A coisa mais provável é a comida. O que havia para o jantar?

     - Os pratos principais eram carne ou peixe, - disse Janet. - O senhor provavelmente se lembra. Doutor, o senhor comeu...

     - Carne! - Interrompeu Baird - Há quanto tempo? Duas ou três horas atrás. O que é que ele comeu? - Ele indicou o primeiro oficial.

     A fisionomia de Janet começou a mostrar alarme.

     - Peixe, - quase sussurrava.

     - Lembra-se do que os outros dois passageiros comeram?

     - Não, acho que não.

     - Volte lá já e pergunte, sim, por favor?

     A aeromoça saiu apressadamente, o rosto pálido. Baird ajoelhou-se ao lado do primeiro oficial que estava sentado balançando-se inerte com o movimento do avião, de olhos fechados.

     - Tente descansar, - disse ele calmamente. - Em alguns minutos vou-lhe dar algo que aliviará a dor. - Levantou-se e puxou um cobertor de uma prateleira. - Você se sentirá melhor se ficar aquecido.

     Pete abriu os olhos um pouco e passou a língua pelos lábios secos.

     - O senhor é médico? - Perguntou. Baird assentiu. Pete disse numa tentativa tímida de sorrir: - Lamento toda esta confusão. Pensei que ia morrer.

     - Não fale, - disse Baird.Tente descansar.

     - Diga ao comandante que ele está certo sobre a minha mão pesada...

     - Eu disse não fale. Descanse e se sentirá melhor.

     Janet voltou.

     - Doutor, - ela falou depressa com dificuldade em soltar as palavras com a rapidez desejada. - Verifiquei com os dois passageiros. Ambos comeram salmão. Há mais três se queixando de dores, agora. O senhor pode vir?

     - Naturalmente. Mas vou precisar daquela minha maleta.

     Dun chamou por sobre o ombro. - Olhe, não posso sair daqui agora, Doutor, mas farei com que a receba imediatamente. Janet, pegue essas etiquetas. Arranje um dos passageiros para ajudar e descubra a menor maleta das duas que ele trouxe, está bem? - Janet apanhou as etiquetas e voltou-se para o médico para falar outra vez, mas Dun continuou: - Vou ligar para Vancouver e contar o que está acontecendo. Há alguma coisa que o senhor quer que eu acrescente?

     - Sim, - disse Baird. - Diga que temos três casos sérios de possível envenenamento alimentar e que parece haver outros em início. Diga que não temos certeza mas suspeitamos de que o envenenamento pode ter sido causado pelo peixe servido a bordo. É melhor pedir-lhes para interditar toda comida originária da mesma fonte que a nossa, pelo menos até que tenhamos estabelecido com certeza a causa do envenenamento.

     - Lembro-me agora, - exclamou Dun.Essa comida não veio dos fornecedores que em geral abastecem as companhias de aviação. Nosso pessoal teve de consegui-la de outra organização porque demoramos demais a chegar a Winnipeg.

     - Diga-lhes isso. Comandante, - disse Baird.Isso é o que precisam saber.

     - Doutor, por favor, - implorou-lhe Janet. - Quero que o senhor venha e veja a Sra. Childer. Parece que ela desfaleceu completamente.

     Baird caminhou para a porta. As rugas em seu rosto haviam-se aprofundado, mas seus olhos enquanto sustentava os de Janet estavam firmes como uma rocha.

     - Cuidado para os passageiros não se alarmarem, - instruiu ele. - Vamos depender bastante de você. Agora se quiser ter a bondade de achar minha maleta e trazê-la para mim, atenderei a Sra. Childer. - Abriu a porta para ela, depois deteve-a quando algo lhe ocorreu. - A propósito, o que é que você comeu no jantar?

     - Comi carne, - respondeu-lhe a jovem aeromoça.

     - Graças a Deus por isso, pelo menos.- Janet sorriu e fez menção de sair outra vez, mas ele agarrou-a subitamente, com bastante força, pelo braço. - Espero que o comandante tenha comido carne, também? - Ele atirou a pergunta a ela.

     Ela olhou para ele, como se tentasse ao mesmo tempo não só se lembrar como também entender as implicações do que ele havia perguntado.

     Então, subitamente, o choque da compreensão inundou-a. Quase caiu de encontro a ele, os olhos esbugalhados por um medo imenso e irresistível.

    

     01,45-02,20 horas

     Bruno Baird olhou para a aeromoça pensativamente. Por trás da calma confiança renovada de seus olhos azul-cinza avaliou com rapidez a situação, pesando com o hábito de anos uma possibilidade em relação a outra. Ele soltou o braço da moça.

     - Bem, não vamos tirar conclusões apressadas, - disse ele, quase que para si mesmo. Depois mais incisivamente: - Ache a minha maleta, o mais depressa possível. Antes de ver a Sra. Childer darei mais uma palavra ao comandante.

     Voltou sobre seus próprios passos para a frente. Estavam agora em vôo nivelado, acima da turbulência . Por cima do ombro do piloto podia ver a branca e fria luminosidade da lua, transformando o sólido tapete de nuvens abaixo deles numa paisagem de neve aparentemente sem limites, tendo aqui e ali o que a todos parecia um pico de gelo elevado introduzindo seu penhasco visível através das vagas de nuvens ao redor. O efeito era irreal.

     - Comandante, - disse ele, debruçando-se sobre a cadeira vazia do co-piloto. Dun virou-se, seu rosto vincado e sem cor à claridade da lua. - Comandante, devo dizer isto depressa. Há pessoas muito mal lá e que necessitam de cuidados.

     Dun assentiu rapidamente.

     - Sim, Doutor. Que é?

     - Suponho que o senhor comeu a mesma coisa que o outro oficial.

     - Sim, é verdade.

     - Quanto tempo depois?

     Os olhos de Dun se estreitaram.

     - Cerca de meia hora, acho eu. Talvez um pouco mais, mas não muito. - O objetivo da pergunta do médico atingiu-o de súbito. Endireitou-se na cadeira com um repelão e deu uma palmada no alto da coluna de controle. - Caramba, tem razão. Eu também comi peixe.

     - Sente-se bem?

     O comandante fez que sim.

     - Sim. Sim, estou bem.

     - Ótimo. - A voz de Baird revelava alívio. - Logo que minha maleta chegar vou dar-lhe um purgante.

     - Isto só dá para se livrar do peixe? - Perguntou Dun.

     - Depende. O senhor pode não tê-lo digerido todo ainda. De qualquer forma, não se deve concluir que todos que comeram peixe sejam afetados, a lógica não entra nessas coisas. O senhor poderia ser o único a não ter nada.

     - É melhor que seja, - murmurou Dun, olhando fixamente agora para a luminosidade da lua em frente.

     - Agora ouça, - disse Baird. - Há alguma forma de trancar os controles deste avião?

     - Oh sim, - disse Dun. - Há o piloto automático. Mas isso não nos fará aterrar...

     - Sugiro que o senhor o ligue, ou o que quer que seja só para prevenir. Se por acaso se sentir mal, grite por mim imediatamente. Não sei se posso fazer muito, mas se notar quaisquer sintomas eles virão depressa.

     Os nós dos dedos de Dun tornaram-se brancos quando segurou a coluna de controle.

     - Está bem, - disse calmamente.E quanto a Senhorita Benson, a aeromoça?

     - Ela está bem. Comeu carne.

     - Bem, já é alguma coisa. Olhe, pelo amor de Deus ande depressa com esse purgante. Não posso deixar nada ao acaso, pilotando este avião.

     - Benson está andando depressa. A menos que esteja enganado há pelo menos duas pessoas lá em estado de choque profundo. Mais uma coisa, - disse Baird, olhando diretamente para o comandante: - o senhor está absolutamente certo de que não há outra saída senão seguir em frente?

     - Estou, - respondeu logo Dun. - Certifiquei-me e tornei a certificar-me. Nuvens espessas e cerração rasteira até o outro lado das montanhas. Calgary, Edmonton, Lethbridge, todos interditados ao tráfego. Isto é normal, quando a visibilidade no solo é zero. Em outras circunstâncias, isso não nos deveria preocupar.

     - Mas preocupa agora.

     O médico deu um passo atrás para se retirar, mas Dun disse abruptamente:

     - Só um minuto. - Enquanto o médico parava ele continuou: - Sou responsável por este vôo e devo estar a par dos fatos. Ponha-os na ordem. Quais são as probabilidades de que não serei afetado?

     Baird sacudiu a cabeça com raiva, seu autodomínio abandonando-o por instantes.

     - Não posso saber, - disse furioso. - Não se pode aplicar nenhuma regra numa coisa dessas.

     Foi detido outra vez antes de poder sair da cabina de vôo.

     - Oh, Doutor.

     - Sim?

     - Prazer em tê-lo a bordo.

     Baird saiu sem proferir outra palavra. Dun respirou fundo, recapitulando o que havia sido dito e procurando mentalmente uma linha de conduta possível. Não era a primeira vez, em sua carreira de piloto, que se sentia apossado por um senso agudo de apreensão, só que desta vez a consciência de sua responsabilidade pela segurança de um avião grande e complexo e de quase sessenta vidas estava temperada pelo pressentimento súbito e gelado de desastre. Era isso, então, o que se sentia? Os pilotos mais velhos, que combateram na guerra, diziam sempre que se alguém se mantivesse voando por muito tempo, acabaria por habituar-se. Como era possível que no espaço de meia hora, um vôo normal, de rotina, de todo dia, transportando um bando de felizes torcedores de futebol, podia transformar-se num pesadelo a quase seis quilômetros sobre a Terra, algo que berraria atravessado nas páginas de frente de uma centena de jornais?

     Afastou os pensamentos com um violento desgosto consigo mesmo. Havia coisas a fazer, coisas que exigiam sua concentração completa. Estendendo a mão direita deu um peteleco nos interruptores do painel do piloto-automático, esperando até que cada controle se tornasse completamente orientado e que a luz do indicador apropriado brilhasse para mostrar que o passo seguinte das ligações poderia ser iniciado. Primeiro os ailerons, precisando de uma ligeira regulagem do mostrador de compensação para submetê-los completamente ao controle elétrico: depois o leme e os profundores foram atendidos até que as quatro luzes fixadas no alto do painel tivessem cessado de piscar e ficassem com um brilho constante. Satisfeito, Dun deu uma olhadela no mostrador do seu IPD5 e largou o volante. Reclinando-se na cadeira, deixou o avião voar sozinho enquanto fazia uma verificação completa na cabina de pilotagem. A uma pessoa inexperiente, a cabina de vôo apresentava um aspecto extraordinário, da mesma forma como se dois homens invisíveis se sentassem nas cadeiras dos pilotos, as colunas gêmeas de controle moviam-se ligeiramente para a frente, para trás, depois para a frente de novo. Compensando as correntes de ar à medida que elas açoitavam o avião suavemente, a barra do leme movia-se também, como se por vontade própria. Ao longo da grande extensão do duplo painel de instrumentos as dúzias de ponteiros, cada um registrando sua própria história particular.

     Completada sua verificação, apanhou o microfone que estava pendurado num gancho ao lado de sua cabeça. Prendeu-o rapidamente ao pescoço e ajustou os fones acolchoados. O microfone de amplificação girou para a frente ao seu toque de forma que a fina curva se aço quase acariciava sua face Agressivamente, soprou a bigodeira, virando-a para cima até praticamente tocar o seu nariz. Bem, pensou consigo mesmo, lá vai.

     O interruptor estava em – transmite - e sua voz soou calma e sem pressa.

     - Alô, Controle de Vancouver. Aqui o vôo 714 da Fretadora Folha de Bordo. Tenho uma mensagem de emergência. Tenho uma mensagem de emergência.

     Seus fones crepitaram instantaneamente.

     - Vôo 714 da Fretadora Folha de Bordo. Pode falar.

     - Controle de Vancouver. Este é o vôo 714. Temos três casos sérios de suspeita de envenenamento alimentar a bordo, inclusive o primeiro oficial, e possivelmente outros. Quando aterrarmos precisaremos de ambulâncias e auxílio médico à espera. Por favor avise os hospitais próximos ao campo. Não temos certeza mas achamos que o envenenamento pode ter sido causado pelo peixe servido a bordo no jantar. É melhor interditarem toda a comida proveniente da mesma fonte até que a causa tenha sido localizada definitivamente. Sabemos que devido à nossa chegada tardia em Winnipeg a comida não foi entregue pelo fornecedor regular da companhia. Verifiquem por favor. Entendido?

     Ele ouviu o entendido, seus olhos contemplando desoladamente o mar congelado de nuvens embaixo e adiante. O Controle de Vancouver soou tão nítido e impessoal como nunca, mas ele pôde imaginar o efeito da bomba verbal que havia feito explodir lá embaixo no longínquo litoral ocidental e o irrompimento de atividade que suas palavras haviam produzido. Quase exausto, terminou a transmissão e recostou-se na cadeira. Sentia-se estranhamente pesado e cansado, como se tivesse começado a correr chumbo em suas pernas. Os mostradores dos instrumentos, quando seus olhos correram automaticamente por eles, pareciam afastar-se até que estivessem longe, bem longe. Sentia uma fria camada de suor na testa e tremeu num súbito espasmo incontrolável. Depois, numa raiva renovada à perfídia do seu corpo em tal momento de crise, lançou-se com toda força e concentração, verificando sua rota de vôo, sua hora provável de chegada, os ventos cruzados que se esperavam sobre as montanhas, o plano de pouso em Vancouver. Não sabia quanto tempo gastara nesses preparativos. Apanhou o diário de vôo, abriu-o e olhou para o relógio de pulso. Com uma lentidão dolorosa e apática seu cérebro começou a lutar renhidamente com a tarefa que parecia hercúlea, de tentar lembrar-se da hora das ocorrências da noite.

    

     Atrás, no corpo do avião, o Dr. Baird enfiava novos cobertores secos em torno da forma amolecida da Sra. Childer e jogava os outros no corredor. A mulher jazia de costas desamparadamente, olhos fechados, lábios secos abertos e trêmulos, gemendo baixinho. O alto do seu vestido estava manchado e molhado. Enquanto Baird a olhava ela foi assaltada por uma nova crise de vômitos. Seus olhos não se abriram.

     Baird disse ao seu marido:

     - Mantenha-a tão limpa e seca quanto puder. E aquecida. Ela precisa aquecer-se.

     Childer esticou o braço e segurou o médico pelo pulso.

     - Pelo amor de Deus, Doutor, que está acontecendo? - Sua voz estava estridente. - Ela está bem mal, não é?

     Baird olhou de novo para a mulher. Sua respiração era rápida e pouco profunda.

     - Sim, - disse ele, - está.

     - Bem, não há nada que possamos fazer por ela, dar-lhe algo?

     Baird sacudiu a cabeça.

     - Ela precisa de remédios que não temos, antibióticos. Não há nada que possamos fazer agora a não ser mantê-la aquecida.

     - Mas com certeza até mesmo um pouco d’água...

     - Não. Vai provocar náuseas. Sua mulher está quase inconsciente, Childer. Espere um pouco, - acrescentou Baird rapidamente enquanto o outro homem quase se levantou de susto. - Esse é o próprio anestésico da natureza. Não se preocupe. Ela ficará boa. O que tem que fazer é vigiá-la e mantê-la aquecida. Mesmo inconsciente ela provavelmente ainda tentará vomitar. Voltarei.

     Baird adiantou-se para a próxima fila de poltronas. Um homem de meia-idade, colarinho aberto e mãos segurando o ventre, sentava-se, afundado parcialmente fora de sua poltrona, cabeça jogada para trás e virando de um lado para o outro, o rosto brilhando de suor. Olhou para o médico, repuxando os lábios num ricto de dor.

     - Isto é horrível. - Resmungou o homem. - Nunca me senti assim antes.

     Baird retirou um lápis do bolsinho do paletó e segurou-o diante do homem.

     - Ouça-me, - disse ele. - Quero que segure este lápis.

     O homem ergueu o braço com esforço, seus dedos tentaram agarrar o lápis tateando mas este escorregava através deles. Os olhos de Baird se estreitaram. Pôs o homem numa posição mais confortável e enfiou um cobertor bem ajustado em volta dele.

     - Não posso me segurar, - disse o homem, - e minha cabeça parece que está num torno.

     - Doutor, - gritou alguém, - pode vir aqui, por favor?

     - Espere um instante, - respondeu Baird. - Verei o que quiserem, mas um de cada vez.

     A aeromoça correu para ele segurando uma maleta de couro.

     - Muito bem, menina, - disse Baird. - É esta. Não que vá adiantar muito... - Sua voz baixou de tom enquanto pensava com esforço. - Onde é o seu sistema de alto-falantes? - perguntou.

     - Eu lhe mostrarei, - disse Janet. Ela seguiu na frente para a cozinha e apontou para um pequeno microfone. - Como está a Sra. Childer, Doutor? - perguntou ela.

     Baird franziu os lábios.

     - Não nos enganemos, ela está seriamente doente. E se não estou muito enganado há outros que ficarão logo tão mal quanto ela.

     - O senhor ainda está certo de que é envenenamento alimentar? - As faces de Janet estavam muito pálidas.

     - Razoavelmente certo. Estafilocócieo acho eu, embora alguns dos sintomas pudessem indicar coisa pior. Por outro lado, o envenenamento poderia ter sido causado pelo bacilo salmonela, mas não se pode afirmar sem um diagnóstico apropriado.

     - O senhor vai dar purgante a todos?

     - Vou, exceto, é claro, àqueles que já estão doentes. É tudo que posso fazer. O que provavelmente precisamos é de antibióticos como clorofenicol, mas nem adianta pensar nisso. - Erguendo o microfone, Baird fez uma pausa. - Logo que puder, - disse ele, - sugiro que arranje alguém que a ajude a limpar um pouco aquilo. Se tiver algum desinfetante espalhe bastante por aí. E enquanto fala com os passageiros doentes é melhor dizer-lhes para se esquecerem da boa educação e não trancarem a porta do banheiro, pois não queremos ninguém desmaiando lá. - Pensou por um momento, depois apertou o botão do microfone, mantendo-o perto de si. - Senhoras e senhores, podem prestar atenção, por favor? Atenção, por favor. - Ouviu o murmúrio de vozes se desvanecer, deixando, apenas, o zumbido firme dos motores. - Primeiro que tudo, devo apresentar-me, - continuou. - Meu nome é Baird e sou médico. Alguns de vocês estão imaginando que doença é essa que atingiu nossos colegas passageiros e acho que é tempo de todos saberem o que está acontecendo e o que estou fazendo. Bem, tanto quanto posso afirmar com os limitados recursos à minha disposição temos vários casos de envenenamento alimentar a bordo e, por dedução, uma dedução que ainda resta confirmar, acredito que sua causa é o peixe servido a alguns de nós, na jantar. - Um rebuliço excitado irrompeu a estas palavras. - Agora ouçam-me, - disse ele. - Não há razão para alarme. Repito, não há razão para alarme. Os passageiros que sofreram estes ataques estão sendo cuidados pela comissária e por mim mesmo, e o comandante pediu pelo rádio maior auxílio médico para nos esperar quando aterrarmos. Se os senhores comeram peixe no jantar, dai não se segue necessariamente que serão afetados também. Raramente há qualquer regra rígida e inflexível nestas coisas e é perfeitamente possível que os senhores estejam completamente imunes. Entretanto, vamos tomar algumas precauções e a comissária e eu iremos vê-los a todos. Quero que nos digam se comeram peixe. Lembrem-se, apenas se comeram peixe. Em caso afirmativo, diremos como podem proteger-se a si mesmos. Agora, se todos se sentarem, começaremos já. Tudo que podemos fazer realmente agora é dar primeiro socorro imediato, - disse ele.

     Janet concordou.

     - O senhor refere-se às pílulas. Doutor?

     - Há duas coisas que podemos fazer. Não sabemos com certeza qual o agente do envenenamento mas podemos presumir que foi causado internamente; portanto, para começar, todos que comeram peixe devem beber vários copos d'água, isto é, aqueles que não estão muito mal, é claro. Isso ajudará a diluir o veneno e aliviar os efeitos tóxicos. Depois disso daremos um purgante. Se não houver pílulas em número suficiente para todos na minha maleta, teremos de usar sal. Você tem bastante?

     - Tenho apenas alguns pacotinhos pequenos que acompanham o almoço, mas podemos abri-los.

     - Ótimo. Veremos primeiro se as pílulas são suficientes. Começarei aqui por trás e você começará trazendo água para as pessoas já atacadas, está bem? Leve um pouco para o primeiro oficial também. Você precisará de ajuda.

     Ao sair da cozinha, Baird praticamente colidiu no inglês magro e lúgubre, chamado Otpot.

     - Há algo que possa fazer, Doutor? - Sua voz era interessada.

     Baird permitiu-se um sorriso.

     - Obrigado. Em primeiro lugar, o que que o senhor comeu no jantar?

     - Carne, graças a Deus, - suspirou Otpot ardentemente.

     - Está bem. Não vamos nos preocupar com o senhor então, por enquanto. Pode ajudar a comissária a distribuir água aos passageiros que estão doentes? Quero que bebam pelo menos três copos se puderem, mais, se possível.

     Otpot entrou na cozinha, retribuindo o tímido sorriso um pouco cansado de Janet. Em circunstâncias normais aquele sorriso era garantido para acelerar o pulso de qualquer membro da equipe da companhia, mas nesta ocasião o homem a seu lado pôde ver o sinal de medo que jazia por trás dele. Piscou para ela.

     - Não se preocupe, senhorita. Vai sair tudo bem.

     Janet olhou para ele com gratidão.

     - Estou certa que sim. obrigada. Olhe, aqui está a torneira e aqui estão os copos, Sr....

     - Os rapazes me chamam de Otpot.

     - Otpot? - Repetiu Janet com incredulidade.

     - É, Otpot de Lancastre, a senhorita sabe.

     - Oh! - Janet rompeu numa gargalhada.

     - Isso, assim é melhor. Agora, onde disse mesmo que estavam os copos? Vamos, moça, vamos embora. Boa companhia essa. Dá o jantar a você, depois o pede de volta.

    

     É necessária muita coisa para romper o equilíbrio de um aeroporto moderno. Pânico é coisa desconhecida em tais lugares e seria implacavelmente desmoralizador se ocorresse, porque pode ser uma atividade altamente mortífera.

     A sala de controle de Vancouver, quando começou a chegar a chamada de emergência de Dun, apresentava uma cena de excitação suprimida. Defronte ao painel do rádio, um operador com fones nos ouvidos transcrevia a mensagem que chegava de Dun diretamente numa máquina de escrever, parando, apenas, para esticar o braço e apertar uma campainha de alarme em sua mesa. Continuava imperturbável quando um segundo homem apareceu atrás dele, debruçando-se sobre seus ombros para ler as palavras à medida que eram batidas na folha de papel. O recém-chegado, chamado pela campainha, era o controlador do aeroporto, um homem alto e magro que passara a vida no ar e conhecia as condições de viagem sobre o hemisfério norte tão bem quanto seu próprio jardim dos fundos. Melhor, de fato, pois as cebolas não voltam sempre para a sementeira? Chegou até o meio da mensagem, depois deu vivamente um passo para trás, disparando uma ordem para o telefonista no outro lado da sala.

     - Ligue-me com o Controle de Tráfego Aéreo, rápido. Depois desimpeça o circuito de teletipo para Winnipeg. Mensagem prioritária. - O controlador apanhou um fone, esperou alguns segundos, depois disse: - Aqui o controlador de Vancouver. - Sua voz era decepcionantemente calma. - O vôo 714 da Fretadora Aérea Folha de Bordo de Winnipeg para Vancouver comunica emergência. Sério envenenamento alimentar entre os passageiros. O primeiro oficial também foi atacado. É melhor desimpedir todos os níveis abaixo deles para aproximação e aterragem prioritárias. Pode ser? Ótimo. H.P.C.6 é 05,55. - O controlador deu olhadela no relógio da parede: marcava 02,15. - Certo. Nós o manteremos informado. - Apertou a tecla do telefone com o polegar, mantendo-o nessa posição enquanto vociferava para o operador do teletipo: - Já conseguiu Winnipeg? Ótimo. Envie esta mensagem. Comece: “Controlador Winnipeg. Urgente. Vôo 714 Fretadora Folha de Bordo comunica sério envenenamento alimentar entre passageiros e tripulantes atribuído peixe servido jantar em vôo. Imperativo verificar fonte e suspender todos outros serviços alimentares originados mesmo lugar. Compreenda fonte não era, repito não era, fornecedor regular companhia”. - É tudo. Virou-se para a mesa telefônica outra vez. - Ligue-me para o gerente local dá Fretadora Folha de Bordo. Seu nome é Burdick. Depois disso quero falar com a polícia, o funcionário mais graduado de serviço. - Debruçou-se sobre o ombro do rádio-operador outra vez e terminou de ler a mensagem agora completa.

     - Acuse o recebimento disso, Greg. Diga-lhes que todas as altitudes abaixo deles estão sendo desimpedidas e que receberão instruções de aterragem mais tarde. Mais tarde queremos também saber outros detalhes sobre o estado desses passageiros.

    

     No andar de baixo, um operador do Controle de Tráfego Aéreo Ocidental do Governo do Canadá girou a cadeira para chamar através da sala:

     - O que há em Verde Um entre nós e Calgary?

     - Para oeste há um North Star da Força Aérea a 6.000. Acabou de comunicar posição sobre Penticton. Folha de Bordo 714...

     - O 714 está em dificuldade. Querem todas as alturas abaixo deles desimpedidas.

     - O North Star está bem diante e não há nada perto atrás deles. Há um Constellation para leste pronto para decolar.

     - Deixe-o sair, mas retenha qualquer outro tráfego para leste, por enquanto. Traga o North Star direto quando chegar.

    

     No andar de cima, o controlador apanhara o telefone outra vez, segurando-o com uma das mãos enquanto com a outra puxava a gravata, desfazendo o nó aos arrancões. Irritado atirou a fita de seda vermelha sobre a mesa.

     - Alô, Burdick? Aqui o Controlador. Olhe, recebemos um chamado de emergência de um dos seus vôos, o 714 de Toronto e Winnipeg. Hein? Não, o avião está bem. O primeiro oficial e vários passageiros foram atacados de envenenamento alimentar. Acabei de falar com Winnipeg. Disse-lhes que descobrissem a origem da comida. Aparentemente não é do fornecedor habitual. Não, é isso mesmo. Olhe aqui, é melhor vir para cá logo que puder. - Socou a tecla do telefone outra vez com o polegar e fez sinal com a cabeça para o operador da mesa. - A polícia, já conseguiu ligar para eles? Ótimo, ponha-os na linha. Alô, aqui é o controlador do Aeroporto de Vancouver. Com quem estou falando, por favor? Olhe, Inspetor, recebemos um chamado de emergência de um vôo que está para chegar. Vários passageiros e um tripulante caíram doentes de envenenamento alimentar e precisamos de ambulâncias e médicos aqui no aeroporto. Hein? Três sérios, possivelmente outros, prepare-se para muitos. O vôo é esperado logo após as cinco horas, hora local, dentro de duas horas e meia mais ou menos. Quer avisar os hospitais, conseguir as ambulâncias e estabelecer o controle de tráfego? Certo. Ligaremos outra vez logo que tivermos mais informações.

    

     Dentro de cinco minutos Harry Burdick chegava, ofegante, à sala. O gerente local da Folha de Bordo era um homenzinho corpulento com um abundante suprimento de óleos corporais; inexaurível, parecia, pois ninguém o havia visto jamais sem o rosto cortado de córregos de suor. Ficou de pé no centro da sala, o paletó sobre o braço, arquejando após sua pressa e, enxugando a paisagem lunar do rosto com um grande lenço salpicado de azul.

     - Onde está a mensagem? - grunhiu. Correu os olhos rapidamente pela folha de papel que o rádio-operador lhe entregou. - Como está o tempo em Calgary? - perguntou ao controlador. - Seria mais rápido ir para lá, não seria?

     - Não adianta, receio. Há cerração desde o capim em toda a parte leste das Rochosas, até Manitoba. Eles terão de vir para cá.

     Um empregado chamou de seu telefone através da sala:

     - O agente de passageiros quer saber quando abriremos o tráfego para leste. Pergunta se deve manter os passageiros na cidade ou trazê-los par cá?

     Burdick sacudiu a cabeça preocupado.

     - Onde era o último comunicado de posição? - Insistiu ele. Foi-lhe entregue uma tábua de avisos que esquadrinhou ansiosamente. O controlador chamou de volta o empregado: - Diga-lhe para mantê-los na cidade. Não queremos uma multidão aqui. Daremos a ele montes de avisos assim que pudermos.

     - O senhor disse que conseguiu a vinda de auxílio médico? - Perguntou Burdick.

     - Sim, - replicou o controlador. - A polícia está trabalhando nisso. Eles avisarão os hospitais e tomarão providências quando trouxermos o avião para cá.

     Burdick estalou um dedo gordo.

     - Hei! Olhe essa mensagem. Dizem que o primeiro oficial caiu doente, portanto, presume-se que o comandante passou a mensagem. Ele foi afetado? É melhor perguntar, Controlador. E enquanto o senhor cuida disso, devo verificar se há um médico a bordo. Nunca se sabe. Diga-lhes que vamos conseguir um médico para mandar conselhos daqui se precisarem.

     O controlador assentiu e apanhou o microfone de mesa do consolo do rádio. Antes que pudesse começar, Burdick chamou:

     - Diga, suponha que o comandante caia doente, Controlador? Quem é que vai...

     Deixou a frase inacabada quando o olhar do homem defronte a ele encontrou o seu.

     - Não estou supondo nada, - disse o controlador. - Estou rezando, é só. Esperemos que esses pobres-diabos lá em cima estejam rezando também.

     Expirando ruidosamente, Burdick catou os bolsos em busca de cigarros. - Joe, - disse ao operador da mesa telefônica, - ligue-me com o Dr. Davidson, está bem? Você achará o número na lista de emergência.

    

     02,20-02,45 horas

     O avião mantinha seu curso voando a quase seis quilômetros acima da terra. Em todas as direções, tão longe quanto a vista podia alcançar, estendia-se o tapete ondulado de nuvens, passando tão devagar por baixo da grande máquina que ela parecia estacionada. Era um mundo frio, vazio, completamente desolado, um mundo no qual as vibrações dos motores do avião tal como batidas do coração vinham retumbando de volta das solidões prateadas.

     Bem abaixo, aquela mesma pulsação poderosa dos motores, teria repercutido através dos vales desolados das Montanhas Rochosas. Esta noite, abafado pela cerração do solo, o som de sua passagem não era suficiente para perturbar as comunidades espalhadas que dormiam em suas granjas remotas. Se alguém lá embaixo ouvisse por acaso o ruído do avião, não teria feito caso dele por ser coisa bastante comum. Ou poderia ter desejado estar lá em cima, voando para algum lugar distante e gozando as solícitas atenções de uma tripulação cuja primeira preocupação eram a segurança e o conforto dos passageiros. Não poderiam ter pensado jamais que praticamente todos no avião teriam trocado de lugar com ele com o maior prazer.

     Como uma monstruosa erva daninha, o medo estava criando raízes na mente da maioria dos passageiros. Havia alguns que provavelmente ainda não tinham compreendido exatamente o que estava acontecendo. Mas a maior parte deles, especialmente os que podiam ouvir os gemidos e engulhos dos que estavam doentes, sentiam a presença de uma crise terrível. As palavras do médico pelo alto-falante, uma vez absorvidas, haviam proporcionado muito o que pensar. O rebuliço de consternação e ansiedade que se seguiu a elas havia logo terminado, para ser substituído por cochichos e irrequietos momentos de conversação.

     Baird havia dado a Janet dois comprimidos.

     - Leve-os para o Comandante, - disse-lhe em voz baixa. - Diga-lhe para beber muita água. Se ele tiver ingerido veneno a água ajudará a diluí-lo. Depois ele deve tomar as pílulas. Elas o farão sentir-se mal, mas foram feitas para isso.

     Quando Janet entrou na cabina de vôo Dun estava terminando uma transmissão pelo rádio. Cessou a transmissão, e dirigiu-lhe um sorriso tenso. Nenhum dos dois iludiu-se com ele.

     - Alô, Jan, - disse. Sua mão tremia ligeiramente. - Esta viagem está se tornando bem diferente. Vancouver acaba de perguntar maiores detalhes. Acho que o nosso caso os sacudirá um pouco. Como vão as coisas lá atrás?

     - Tanto quanto possível, bem, - disse Janet tão casualmente quanto pôde. Entregou-lhe as pílulas. - O médico disse para o senhor beber bastante água, e depois tomá-las. Elas o farão sentir-se um tanto mal.

     - Que triste esperança. - Enfiou o braço dentro do bolso fundo da cadeira ao seu lado e retirou uma garrafa d'água. - Bem, bebamos. - Após um longo gole, engoliu as pílulas, fazendo uma careta. - Nunca pude tomar essas coisas, e elas têm gosto horrível.

     Janet olhou de cima para ele ansiosamente, sentado diante do painel bruxuleante de instrumentos e mostradores, as duas colunas de controle se movendo espasmodicamente para a frente e para trás sob o lúgubre domínio do piloto-automático. Tocou em seu ombro.

     - Como se sente? - Perguntou. A palidez dele, as gotas de suor em sua testa não lhe passaram despercebidas. Rezou consigo mesma para que fosse, apenas, a ansiedade que ele sentia.

     - Eu? - Seu tom tinha uma animação pouco natural. - Estou bem. E você? Já tomou suas pílulas?

     - Não precisei. Comi bife no jantar.

     - Você foi sabida. De agora por diante acho que serei vegetariano, é mais seguro. - Virou-se na cadeira e olhou para o primeiro oficial, agora deitado de bruços no chão, a cabeça sobre um travesseiro. - Pobre Pete, - murmurou. - Espero que ele fique bom.

     - Isso agora é com o senhor, não é Comandante? - Disse Janet apressadamente. - Quanto mais rápido o senhor levar este avião para Vancouver, mais depressa o levaremos e aos outros para o hospital. - Deu um passo em direção a Pete e inclinou-se para ajeitar um cobertor a sua volta, escondendo o súbito tremor das lágrimas que ameaçavam romper sua reserva. Dun ficou preocupado a observá-la.

     - Jan, você gosta muito dele, não é? - Perguntou.

     Sua cabeleira dourada moveu-se um pouco.

     - Eu... eu acho que sim, - respondeu. - Comecei a gostar dele durante os últimos meses desde que entrou para a companhia e esta coisa horrível me fez... - Controlou-se e se pôs de pé. - Tenho muito o que fazer. Tenho que segurar alguns narizes enquanto o médico despeja água por suas goelas abaixo. Líquido pouco popular, imagino, para alguns daqueles tipos de bebedores renitentes.

     Sorriu rapidamente para ele e abriu a porta para a cabina de passageiros. Baird estava falando a um casal de meia-idade que o contemplava nervosamente.

     - Doutor, - dizia a mulher intensamente, - aquela mocinha, a comissária, tenho-a visto toda hora indo à cabina dos pilotos. Eles estão bem? Quero dizer, supondo que tenham adoecido também, que nos acontecerá? - Segurou-se ao marido. - Hector, estou assustada. Preferia que não tivéssemos vindo...

     - Ora, ora, querida, fique calma, - disse o marido com uma segurança que obviamente não sentia. - Não há perigo, estou certo, e por enquanto ainda não aconteceu nada.- Voltou para o médico os olhos empapuçados, guarnecidos de óculos de tartaruga. - Os pilotos comeram peixe?

     - Nem todo o peixe estava necessariamente infectado, - respondeu Baird evasivamente. - De qualquer maneira, não temos certeza se a causa é o peixe. O senhor não tem qualquer motivo para se preocupar. Tomaremos o maior cuidado com a tripulação. O senhor comeu carne ou peixe?

     Os olhos esbugalhados do homem pareciam querer saltar das órbitas.

     - Peixe, - exclamou. - Ambos comemos peixe. - A indignação brotou de dentro dele. - Acho uma vergonha que tal coisa possa acontecer. Devia haver um inquérito.

     - Posso afirmar-lhe que haverá, qualquer que seja a causa. - Baird deu uma pílula a cada um, que a recebeu com tanto cuidado como se fosse alto explosivo. - Agora lhes trarão um jarro d’água. Bebam três copos cada um, ou quatro, se puderem. Depois tomem a pílula. Ela fará com que se sintam mal, mas não se preocupem com isso. Há sacos de papel nos bolsos das poltronas.

     Deixou o casal contemplando as pílulas e em alguns minutos, avançando ao longo das filas, havia chegado à sua própria poltrona vazia com Spencer sentado ao lado dela.

     - Carne, - disse Spencer prontamente, antes que Baird pudesse fazer a pergunta.

     - Sorte a sua, - disse o médico. - Menos um para me preocupar.

     - Isso lhe está dando um trabalhão, não é Doutor? - Comentou Spencer. - Precisa de alguma ajuda?

     - Preciso de toda a ajuda de todo mundo, - resmungou Baird. - Mas não há muita coisa que o senhor possa fazer, a menos que quisesse dar á Senhorita Benson e ao outro sujeito uma mãozinha com a água.

     - Claro que quero.- Spencer baixou a voz. - Parece que há alguém mal lá atrás.

     - Estão mal. O diabo é que, - disse Baird amargamente, - não tenho nada de muito útil para dar-lhes. Viaja-se para assistir a um jogo de futebol, não se pensa em encher a maleta para o caso de uma dúzia de pessoas ficarem doentes de envenenamento alimentar no caminho. Tenho uma seringa e morfina, nunca viajo sem isso, mas neste caso podem fazer mais mal do que bem. Só Deus sabe porque trouxe um vidro de pílulas purgativas, mas foi uma boa coisa que fiz. Um pouco de dramamina seria de grande utilidade agora.

     - Qual é o efeito dela? -

     - Nestes casos o perigo é a perda dos fluidos do corpo. Um injeção de dramamina ajuda a retê-los.

     - Quer dizer que todo este mal-estar desidrata gradualmente uma pessoa?

     - Exatamente.

     Spencer esfregou o queixo enquanto digeria esta informação.

     - Bem, - disse, - graças a Deus pelos bifes de cordeiro. Não tenho vontade alguma de me desidratar agora.

     Baird franziu os sobrolhos para ele.

     - Talvez o senhor ache graça nesta situação, - disse com aspereza. - Eu não acho. Tudo que vejo é falta de recursos enquanto pessoas sofrem e pioram cada vez mais.

     - Não se aborreça, Doutor, - protestou Spencer. - Não fiz por mal. Apenas estou satisfeito de não ficarmos doentes por causa do peixe como os outros coitados.

     - Sim, sim, talvez tenha razão. - Baird passou a mão sobre os olhos. - Estou ficando muito velho para estas coisas, - murmurou, meio para consigo mesmo.

     - Que quer dizer?

     - Nada, nada.

     Spencer levantou-se.

     - Agora, espere lá, Doutor, - disse. - O senhor está fazendo um ótimo trabalho. A melhor coisa que já aconteceu a estas pessoas foi tê-lo a bordo.

     - Está bem, rapaz, - retorquiu Baird com sarcasmo, - pode me dispensar da conversa estimulante de vendedor. Não estou querendo obrigá-lo a nada.

     O homem mais moço corou ligeiramente.

     - Mereci ouvir isso. Diga-me o que fazer. Estava sentado enquanto o senhor trabalhava. O senhor está cansado.

     - Cansado nada. - Baird pôs a mão no braço do outro homem. - Não ligue para mim. Descarreguei um pouco de irritação à sua custa. Sinta-se melhor por causa disso. É saber o que deve ser feito e não ser capaz de fazê-lo. Torna-me um pouco ríspido.

     - Está bem, - disse Spencer com um meio sorriso. - De qualquer forma, tenho prazer em poder ajudá-lo.

     - Direi à Senhorita Benson que o senhor está disposto a ajudá-la se precisar. Uma vez que a água já foi distribuída, acho que talvez seja melhor o senhor ficar onde está. Já há bastante tráfego no corredor.

     - Como quiser. Bem, aqui estou se precisar de mim. - Spencer sentou-se de novo. - Mas diga-me uma coisa. Até que ponto vai a gravidade disto tudo?

     Baird olhou-o bem nos olhos.

     - Tão grave que o senhor provavelmente nunca o desejaria, - disse Baird laconicamente.

     Passou pelo grupo de torcedores de futebol que no começo da noite bebera uísque com tanta liberalidade. O quarteto tinha sua força reduzida agora para três, e um destes estava sentado em mangas de camisa, tremendo, com um cobertor puxado sobre o peito. Tinha a face cinzenta.

     - Mantenha este homem aquecido, - disse Baird. - Ele já bebeu alguma coisa?

     - Que piada, - replicou o homem atrás dele, embaralhando as cartas. - Acho que deve ter emborcado quase, meio litro de uísque.

     - Antes ou depois do jantar?

     - Antes e depois, acho eu.

     - Ele tem razão, - concordou outro do grupo. - E acho que Harry agüenta bem a bebida.

     - Neste caso não lhe fez mal, - disse Baird. - Na realidade ajudou-o a diluir o veneno, sem dúvida. Algum de vocês tem um pouco de conhaque?

     - Acabei com o meu, - disse o homem com o baralho.

     - Espere um minuto, - disse o outro, inclinando-se para a frente para alcançar o bolso de trás das calças. - Devo ter ainda um pouco no frasco. Bebemos grande parte, durante a espera em Toronto.

     - Faça-o provar um pouco, - instruiu Baird. - Dê-lhe com cuidado. Seu amigo está muito doente.

     - Diga, Doutor, - disse o homem com o baralho. - O que é que há? Estamos no horário?

     - Pelo que sei, sim.

     - Isto acaba com o jogo de futebol para Andy, hein?

     - Na certa. Ele irá para o hospital logo que aterrarmos.

     - Pobre Andy, - lamentou o homem do frasco, desatarrachando a tampa, - sempre foi um sujeito de azar. - Hei, - exclamou quando lhe ocorreu um pensamento, - o senhor diz que ele está bem mal. Ele ficará bom, não é?

     - Espero que sim. É melhor cuidar um pouco dele, como disse, e não deixá-lo jogar fora esses cobertores.

     - Curioso acontecer isso ao velho Andy. Que houve com Otpot, aquele inglês maluco? O senhor recrutou-o?

     - Sim, ele nos está ajudando. - Quando Baird se arrastou o homem com as cartas bateu-as na mão com irritação e disse ao seu companheiro: - Que tal isso tudo em dois dias de férias?

     Mais adiante, Baird encontrou Janet debruçando-se ansiosamente sobre a Sra. Childer. Levantou uma das pálpebras da mulher. Estava inconsciente.

     O marido aproveitou-se freneticamente da presença do médico.

     - Como vai ela? - Implorou.

     - Está melhor agora do que quando estava consciente e sentindo dores, - disse Baird, querendo parecer convincente. - Quando o corpo não agüenta mais, a natureza baixa a cortina.

     - Doutor, estou com medo. Nunca a vi tão doente. Que é exatamente este envenenamento por peixe? Qual a causa? Sei que foi o peixe, mas por quê?

     Baird hesitou.

     - Bem, - disse devagar. - Acho que tem o direito de saber. É uma doença muito séria, que requer tratamento o mais depressa possível. Já estamos fazendo tudo que podemos.

     - Sei que estão, Doutor, e estou grato. Ela vai ficar boa, não vai? Quer dizer...

     - Claro que vai, - disse Baird calmamente. - Tente não se preocupar. Haverá uma ambulância à espera para levá-la ao hospital assim que chegarmos. Depois é apenas uma questão de tratamento e tempo até que fique completamente boa outra vez.

     - Meu Deus, - disse Childer, respirando fundo, - como é bom ouvir isso. - Sim, pensou Baird, mas supondo que eu tivesse a coragem comum de dizer de outra forma? - Mas ouçam, - sugeriu Childer, - não podemos nos desviar, e aterrar num aeroporto mais próximo?

     - Já pensamos nisso, - respondeu Baird, - mas há uma cerração rasteira que tornaria a aterragem em outros campos extremamente perigosa. De qualquer forma, já passamos por eles e estamos sobre as Montanhas Rochosas. Não, a maneira mais rápida de proporcionar à sua mulher cuidados adequados é descer em Vancouver o mais depressa que pudermos, e isso é o que estamos fazendo.

     - Compreendo... O senhor ainda acha que foi o peixe, não acha. Doutor?

     - No momento, não tenho meios de dizer com certeza, mas acho que sim. O envenenamento alimentar pode ser causado tanto por comida estragada, o nome médico é envenenamento estafilocócico, quanto é possível que alguma substância tóxica tenha caído nela durante a preparação.

     - De que espécie acha que é, Doutor? - Perguntou um passageiro na fila seguinte que estava se esticando para ouvir as palavras de Baird.

     - Não posso dizer com certeza, mas pelo efeito que teve nas pessoas aqui, prefiro suspeitar da segunda causa do que da primeira, isto é, de uma substância tóxica.

     - E o senhor não sabe qual é?

     - Não tenho a menor idéia. Não saberemos até podermos fazer testes apropriados num laboratório. Com os métodos modernos de manusear alimentos, e em especial a maneira cuidadosa com que as companhias de aviação preparam a comida, as probabilidades disto acontecer são de uma contra um milhão. Acontece, apenas, que fomos infelizes. Posso dizer-lhe, no entanto, que nosso jantar de hoje não veio dos fornecedores usuais. Ocorreu algo errado devido à nossa chegada tardia a Winnipeg e outra firma abasteceu-nos. Isto pode ou não ter relação com o fato.

     Childer assentiu, examinando as palavras do médico. Curioso como as pessoas parecem encontrar conforto nas palavras de um médico, refletiu Baird numa auto-apreciação sardônica. Mesmo quando o que o médico tem a dizer sejam más notícias, o fato de ter dito parece-lhes reconfortador. Ele é o médico, ele não deixará que isso aconteça. Talvez não estejamos tão distantes da feitiçaria, pensou consigo mesmo, com uma ponta de raiva; há sempre um médico com sua caixa de mágicas, para tirar algo de dentro do chapéu. Passara a maior parte da vida em cuidar, adular, obrigar, lisonjear e reconfortar pessoas amedrontadas e confiantes de que ele saberia melhor resolver os problemas, e esperar sempre que sua velha habilidade e a burla algumas vezes muito necessária não o tivessem abandonado. Bem, esta podia ser a hora da verdade, o desafio final e inescapável que sempre soube que enfrentaria um dia.

     Sentiu Janet parada a seu lado. Interrogou-a com os olhos, sentindo-a à beira da histeria.

     - Mais dois passageiros adoeceram, Doutor. Lá atrás.

     - Tem certeza de que não é efeito das pílulas?

     - Sim, tenho certeza.

     - Certo. Vou vê-los já. Quer dar outra olhada no primeiro oficial, Senhorita Benson? Ele pode querer um pouco d'água.

     Apenas chegara aos dois novos casos e começado seu exame, quando Janet voltou outra vez.

     - Doutor, estou terrivelmente preocupada. Acho que o senhor deve...

     O zumbido do interfone da cozinha cortou a meio suas palavras como uma faca. Ficou petrificada enquanto o zumbido continuava sem cessar Baird foi o primeiro a se mexer.

     - Largue esse negócio, - disse abruptamente. - Rápido!

     Movendo-se com uma agilidade que lhe era bastante estranha, correu pelo corredor e irrompeu na cabina de vôo. Lá estacou por um momento, enquanto seu cérebro e olhos registravam o ocorrido e, nesse instante, algo dentro dele, algo em tom zombador mas também ameaçador, disse: Você tinha razão, ai está.

     O comandante estava rígido em sua cadeira, o suor cobrindo-lhe o rosto e atingindo o colarinho do uniforme. Uma das mãos comprimida contra o estômago. A outra caída sobre o botão do interfone na parede ao lado.

     Em dois saltos o médico alcançou-o e debruçou-se sobre o encosto da cadeira, erguendo-o pelas axilas. Dun praguejava por entre os dentes, em voz baixa e raivosamente.

     - Agora calma, - disse Baird. - É melhor que o afastemos daí.

     - Fiz... o que o senhor disse... - Disse Dun arquejando, cerrando os olhos e soltando as palavras em penosos espasmos. - Foi tarde demais... Dê-me alguma coisa, Doutor... Dê-me algo, rapidamente... Tenho que resistir... descer... O piloto automático está ligado mas... tenho que descer... Devo avisar o Controle... devo avisar... - A boca moveu-se em silêncio. Com um esforço desesperado tentou falar. Depois seus olhos se reviraram e desmaiou.

     - Rápido, Senhorita Benson, - chamou Baird. - Ajude-me a tirá-lo.

     Ofegando e esforçando-se, puxaram o pesado corpo de Dun para fora da cadeira do piloto e deitaram-no no chão, ao lado do primeiro oficial. Rapidamente, Baird apanhou o estetoscópio e fez um exame. Em coisa de segundos Janet havia arranjado mantas e um cobertor; logo que o médico terminou ela fez um travesseiro para o comandante e prendeu as cobertas embaixo dele a toda volta. Estava tremendo quando se levantou.

     - O senhor pode fazer o que ele pediu, Doutor? Pode fazê-lo voltar a si o tempo suficiente para aterrar?

     Baird enfiou os instrumentos no bolso outra vez. Olhou para a fileira de mostradores e interruptores, para as colunas de controle ainda se movendo por si só. À tênue luz da bateria de mostradores suas feições pareceram subitamente muito mais velhas e insuportavelmente extenuadas.

     - A senhorita faz parte da tripulação, de forma que serei rude. Sua voz foi tão vigorosa que ela recuou. - A senhorita pode enfrentar alguns fatos desagradáveis?

     - Eu,... acho que sim. - A despeito de si mesma vacilou.

     - Muito bem. A menos que consiga pôr toda essa gente num hospital depressa, muito depressa, não posso sequer ter certeza de salvar suas vidas.

     - Mas...

     - Eles precisam de estimulantes e injeções intra-venosas contra choque. O comandante também. Ele agüentou demais.

     - Está muito mal?

     - Chegará logo a um estado crítico, e isto vale para os outros também.

     Quase inaudivelmente, Janet sussurrou.

     - Doutor, que vamos fazer?

     - Deixe-me fazer-lhe uma pergunta. Quantos passageiros há a bordo?

     - Cinqüenta e seis.

     - Quantas pessoas comeram peixe?

     Janet fez força para se lembrar.

     - Cerca de quinze, acho. Comeram mais carne do que peixe, e alguns até nem comeram porque já era muito tarde.

     - Compreendo.

     Baird observou-a friamente. Quando falou de novo sua voz era áspera, quase beligerante.

     - Senhorita Benson, já ouviu falar alguma vez em grande vantagem?

     Janet tentou concentrar-se no que ele dizia.

     - Grande vantagem? Sim, acho que sim. Não sei o que significa.

     - Eu lhe direi, - disse Baird. - Significa o seguinte: De um grupo total de cinqüenta e seis pessoas nossa única probabilidade de sobrevivência depende de haver uma pessoa a bordo deste avião que seja qualificada não apenas para fazê-lo aterrar como também que não tenha comido peixe ao jantar, hoje. - Suas palavras flutuavam entre eles enquanto lá estavam, olhando um para o outro.

    

     02,45-03,00 horas

     A tranqüilidade, como um calmante aparando o choque, desceu sobre Janet enquanto as palavras do médico penetravam em sua mente. Enfrentou seus olhos firmemente, com perfeita consciência da recomendação velada de preparar-se para a morte.

     Até agora uma parte dela havia-se recusado a aceitar o que estava acontecendo. Enquanto se ocupava nos cuidados aos passageiros e tentava confortar os doentes, algo havia insistido em que isto era um pesadelo, a espécie de sonho no qual uma seqüência de acontecimentos de todos os dias é repentinamente desviada para outra de horror crescente, por algum incidente bastante lógico mas totalmente inesperado. A qualquer momento, dizia-lhe sua voz interior, acordaria para encontrar metade da roupa de cama no chão e o despertador em seu estojo retinindo para anunciar outra correria de madrugada para se aprontar antes da decolagem.

     Agora aquele senso de irrealidade fora afastado. Sabia que estava acontecendo, acontecendo realmente, a ela, Janet Benson, a linda loura de vinte e um anos que se acostumara a esperar os olhares do pessoal do aeroporto se voltarem quando caminhava vivamente ao longo dos corredores. O medo havia desertado dela, pelo menos por enquanto. Imaginou, no passageiro pensamento de um instante, o que sua família em casa estaria fazendo, como era possível que sua vida fosse extinta numa loucura de alguns segundos de metais rangentes sem que aqueles que a haviam posto no mundo sentissem qualquer tremor enquanto dormiam pacificamente a mil quilômetros dali.

     - Compreendo, Doutor, - disse sem entonação.

     - Sabe de alguém a bordo com qualquer experiência de vôo?

     Ela baixou os olhos sobre a lista de passageiros, fazendo a chamada mental dos nomes.

     - Não há ninguém da Companhia, - disse. - Não sei... de ninguém mais. Acho que é melhor começar a perguntar.

     - Sim, é melhor, - disse Baird, devagar. - O que quer que faça, evite alarmá-los. Senão poderemos causar pânico. Alguns sabem que o primeiro oficial está doente. Diga apenas que o comandante quer saber se há alguém com experiência de vôo que possa ajudar no rádio.

     - Muito bem, Doutor, - disse Janet calmamente. - Farei isso.

     Hesitou, quando notou que Baird tinha obviamente algo mais a dizer.

     - Senhorita Benson, qual é o seu primeiro nome? - Perguntou.

     - Janet.

     Ele assentiu com a cabeça.

     - Janet, acho que fiz há pouco um comentário sobre seu treinamento. Foi injusto e imperdoável o comentário de um velho estúpido que podia tirar proveito de mais treinamento ele próprio. Gostaria de retirar o que disse.

     Um pouco de cor voltou ao rosto dela quando sorriu.

     - Já havia esquecido disso, - disse. Dirigiu-se para a porta, ansiosa por começar a perguntar e para saber o pior o mais depressa possível. Mas a fisionomia de Baird estava contraída num esforço de concentração, como se algo no fundo de sua mente estivesse se esquivando dele. Franziu a testa à vista das instruções da saída de emergência pintadas no lado da cabina.

     - Espere, - disse a ela.

     - O que é? - Parou, a mão no trinco da porta.

     Ele estalou os dedos e virou-se para ela.

     - Achei. Lembrava-me de alguém que havia me falado sobre aviões. Aquele rapaz na poltrona ao lado da minha, o que embarcou no último minuto em Winnipeg...

     - O Sr. Spencer?

     - É ele. George Spencer. Esqueci exatamente por que, mas ele pareceu-me conhecer alguma coisa sobre como voar. Traga-o aqui, sim? Não lhe diga nada além do que já lhe disse. Não queremos que os outros passageiros saibam da verdade. Mas continue perguntando a eles também, no caso de haver alguém mais.

     - Ele acabou de se oferecer para ajudar-me, - disse Janet, - de forma que não deve ter sido afetado pela comida.

     - É verdade, você tem razão, - exclamou Baird. - Nós dois comemos carne. Traga-o Janet.

     Ele andou de um lado para outro na cabina, nervosamente, enquanto ela estava fora. Depois ajoelhou-se para tomar o pulso do comandante que jazia de bruços e inconsciente ao lado do primeiro oficial. Ao primeiro ruído da porta atrás de si, levantou-se de um salto, bloqueando a entrada. Spencer lá estava, olhando para ele perplexo.

     - Alô, Doutor, - saudou-o o jovem. - Que negócio é esse sobre o rádio?

     - O senhor é piloto? - Disparou Baird, sem se afastar.

     - Há muito tempo atrás. Na guerra. Não conheço as rotinas de rádio agora, mas se o comandante acha que posso...

     - Entre, - disse Baird.

     Deu um passo para o lado, fechando a porta rapidamente atrás do rapaz. A cabeça de Spencer ergueu-se à vista das cadeiras vazias dos pilotos e dos controles movendo-se sozinhos. Depois girou nos calcanhares e viu os dois homens estirados no chão debaixo dos cobertores.

     - Não! - Disse arquejante. - Os dois?

     - Sim, - disse Baird laconicamente, - os dois.

     Spencer parecia não acreditar no que via.

     - Mas, - gaguejou, - quando foi que aconteceu isso?

     - O comandante desmaiou há alguns minutos. Ambos comeram peixe.

     Spencer esticou o braço para se firmar, apoiando-se sobre a caixa de junção de cabos, na parede.

     - Ouça, - disse Baird com urgência. - Pode guiar este avião, e aterrá-lo?

     - Não! - O choque golpeava a voz de Spencer. - Não mesmo! Nem por milagre!

     - Mas você acabou de dizer que voou durante a guerra, - insistiu Baird.

     - Isso foi há treze anos atrás. Desde então nunca mais toquei num avião. E eu pilotava caças, pequenos Spitfires cerca de oito vezes menores que este avião e com um motor apenas. Este tem quatro. As características de vôo são completamente diferentes.

     Os dedos de Spencer, tremendo ligeiramente, procuraram cigarros no paletó, encontraram um maço e sacudiram um para fora. Baird observava-o enquanto acendia.

     - Você podia tentar, - insistiu.

     Spencer sacudiu a cabeça com raiva.

     - Vou lhe dizer uma coisa, a idéia é louca, - disse bruscamente. - O senhor não sabe o que está envolvido nisso. Eu não seria capaz de guiar um Spitfire agora, quanto mais isso. - Apontou o cigarro em direção às fileiras de instrumentos.

     - Não me parece que voar seja uma coisa que se esqueça, - disse Baird, observando-o com atenção.

     - De qualquer maneira é uma espécie de vôo diferente. É, é como guiar um caminhão com reboque e dezesseis rodas em tráfego denso, quando tudo que se guiou antes foi um veloz carro esporte em estradas abertas.

     - Mas ainda assim é guiar, - persistiu Baird. Spencer não respondeu, aspirando um longo trago do cigarro. Baird deu de ombros e começou a se virar para ir-se. - Bem, - disse, - esperemos então que haja alguém mais que possa guiar este troço; nenhum desses dois pode. - Olhou para os pilotos no chão.

     A porta abriu-se e Janet entrou na cabina de vôo. Olhou interrogativamente para Spencer, depois para o médico. Sua voz não tinha entonação.

     - Não há mais ninguém, - disse ela.

     - Então está resolvido, - disse o médico. Esperou Spencer falar, mas o moço estava contemplando em frente as filas após filas de mostradores luminosos e interruptores. - Sr. Spencer, - disse Baird, medindo suas palavras com deliberação, - Eu não entendo nada de aviação. Isto é tudo que sei. Há várias pessoas neste avião que morrerão dentro de algumas horas se não chegarem logo a um hospital. Entre as que restam e que sejam fisicamente capazes de guiar o avião, o senhor é o único com qualquer espécie de qualificação para fazê-lo. - Fez uma pausa. - Que sugere?

     Spencer olhou da moça para o médico. Perguntou tensamente.

     - O senhor tem certeza de que não há possibilidade de qualquer dos pilotos recuperar-se a tempo?

     - Nenhuma. A menos que possa levá-los já a um hospital, não posso garantir sequer salvar suas vidas.

     O jovem vendedor expirou uma grande baforada e pisou no resto do cigarro com o calcanhar.

     - Parece que não tenho escolha, não é? - Disse.

     - Tem razão. A menos que prefira que voemos até acabar a gasolina, provavelmente no meio do Pacífico.

     - Não tente se convencer de que este é um destino melhor. - Spencer deu um passo em direção aos controles e olhou em frente para o branco mar de nuvens abaixo deles, cintilando ao luar. - Bem, - disse, - acho que fui convocado. O senhor conseguiu um novo motorista, Doutor. - Esgueirou-se na cadeira do piloto da esquerda deu uma olhadela por cima do ombro para os dois atrás dele. - Se o senhor conhecer alguma reza boa é melhor começar a experimentá-la.

     Baird aproximou-se e deu uma palmadinha no braço dele.

     - Muito bem, - disse reconhecidamente.

     - O que é que o senhor vai dizer ao pessoal lá atrás? - Perguntou Spencer, correndo os olhos pela quantidade de instrumentos a sua frente e dando tratos à bola para se lembrar de algumas das lições que havia aprendido num passado que agora parecia muito distante.

     - Por enquanto, nada, - respondeu o médico.

     - Muito sábio de sua parte, - disse Spencer secamente. Estudou a confusa sucessão de mostradores e instrumentos. - Vamos dar uma olhada nessa confusão. Os instrumentos de vôo devem estar defronte de cada piloto. Isto significa que o painel central deve ser só de instrumentos dos motores. Ah, aqui temos: altitude 6.600. Vôo nivelado. Curso 290. O pilôto-automático está ligado, devemos agradecer por isso. Velocidade do ar 390 km. Acelerador, nivelador longitudinal, nivelador transversal, mistura, controles do trem de pouso. Flaps? Deve haver um indicador em algum lugar. Sim, cá está ele. Bem, isso de qualquer forma é o essencial, espero. Vamos precisar duma lista de verificações para aterragem, mas podemos consegui-la pelo rádio.

     - Pode fazê-lo?

     - Não sei, Doutor, como posso saber? Nunca vi um painel como este em minha vida. Onde estamos agora, e para onde estamos indo?

     - Pelo que o comandante disse, estamos sobre as Rochosas, - replicou Baird. - Ele não pôde desviar-se da rota antes por causa da cerração, portanto estamos indo direto para Vancouver.

     - Temos que descobrir. - Spencer olhou à sua volta na tênue luminosidade. - Onde é o rádio, afinal?

     Janet apontou para uma caixa de interruptores sobre a cabeça dele.

     - Sei que usam isso para falar com os aeroportos, - disse-lhe, - mas não sei que botões deve ligar.

     - Ah, sim, vejamos. - Olhou com atenção para a caixa. - Aqueles são os seletores de freqüências, é melhor deixá-los como estão. Que é isso? Transmite. - Apertou um botão, acendendo uma luz vermelha pequena. - Cá está. Agora estamos prontos para começar.

     Janet passou-lhe um fone para colocar na cabeça com o microfone de amplificação preso.

     - Só sei que se aperta o botão do microfone quando se fala, - disse ela.

     Ajeitando os fones, Spencer falou com o médico.

     - Sabe, o que quer que aconteça, vou precisar de outro par de mãos aqui na frente. O senhor tem os seus pacientes para cuidar, portanto acho que a melhor escolha é aqui a Miss Canadá. O que acha?

     Baird assentiu.

     - Concordo. Está bem assim, Janet?

     - Acho que sim, mas não entendo nada disso. - Janet acenou desamparada para o painel de controle.

     - Ótimo, - disse Spencer com vivacidade, - eu também. Sente-se e acomode-se confortavelmente, é melhor apertar o cinto. Você deve ter observado os pilotos muitas vezes. Inventaram um monte de truques novos desde o tempo em que eu voava.

     Janet entrou com dificuldade na cadeira do primeiro piloto, com cuidado para não tocar na coluna de controle que se inclinava para a frente e para trás. Bateram ansiosamente na porta de comunicação.

     - É comigo, - disse Baird. - Preciso voltar. Boa sorte. - Saiu rapidamente.

     Só com a comissária, Spencer começou a sorrir.

     - Está bem? - Perguntou.

     Ela assentiu em silêncio, preparando-se para colocar os fones.

     - O nome é Janet, não é? O meu é George. - O tom de Spencer tornou-se sério. - Não vou enganar você, Janet. Isto vai ser duro.

     - Eu sei.

     - Bem, vamos ver se posso enviar um pedido de socorro. Qual é o número do nosso vôo?

     - 714.

     - Está bem. Lá vai, então. - Apertou o botão do microfone. - Mayday, mayday, mayday, - começou numa voz sem entonação. Era uma palavra que nunca poderia esquecer. Tinha-a proferido numa tarde sombria de outubro sobre o litoral da França, com a cauda do seu Spitfire quase arrancada, e dois Hurricanes haviam aparecido para guiá-lo através do Canal como um par de tias velhas solícitas.

     - Mayday, mayday, mayday, - continuou. - Este é o vôo 714 da Fretadora Aérea Folha de Bordo, em perigo. Venha, seja quem for. Câmbio.

     Prendeu a respiração quando uma voz respondeu imediatamente pelo ar.

     - Alô, 714. Aqui é Vancouver. Estávamos esperando notícias suas. Vancouver para todos aviões: esta freqüência está fechada agora a qualquer outro tráfego. Adiante, 714.

     - Obrigado, Vancouver. 714. Estamos em perigo. Ambos os pilotos e vários passageiros... quantos passageiros, Janet?

     - Eram cinco há alguns minutos atrás. Mas pode ter aumentado o número.

     - Correção. Pelo menos cinco passageiros sofreram envenenamento alimentar. Ambos os pilotos estão inconscientes e em condições sérias. Temos um médico conosco que diz que nenhum dos dois pilotos pode ser reanimado para guiar o avião. Se eles e os passageiros não forem levados para um hospital rapidamente, pode ser fatal para eles. Ouviu isso, Vancouver?

     A voz crepitou de volta no mesmo instante.

     - Continue, 714. Estou ouvindo.

     Spencer tomou uma respiração profunda.

     - Agora chegamos à parte mais interessante. Meu nome é Spencer. George Spencer. Sou passageiro desse avião. Correção: era passageiro. Agora sou piloto. Para seu governo tenho cerca de mil horas de vôo ao todo, todas elas em caças monomotores. Além disso, não piloto um avião há quase treze anos. Portanto é melhor arranjar alguém aí no rádio que possa dar-me algumas instruções de como guiar este negócio. Nossa altitude é de 6.600 m, curso 290 magnético, velocidade do ar 390 km. Essa é a história. Agora é sua vez, Vancouver. Câmbio.

     - Vancouver para 714. Espere.

     Spencer enxugou o suor que se juntava em sua testa e sorriu para Janet.

     - Quer apostar como isso causou um bocado de agitação nos pombais lá embaixo? - Ela sacudiu a cabeça, ouvindo com atenção nos fones. Em alguns segundos o ar reviveu outra vez, a voz tão comedida e impessoal como antes.

     - Vancouver para Vôo 714. Por favor, confira com o médico a bordo quanto a qualquer possibilidade de qualquer dos pilotos voltar a si. Isso é importante. Repito, isto é importante. Peça-lhe para fazer todo o possível para reanimar um deles, mesmo que tenha de deixar os passageiros doentes. Câmbio.

     Spencer apertou o botão do transmissor.

     - Vancouver, este é o Vôo 714. Sua mensagem foi compreendida, mas receio que não adianta. O médico diz que não há qualquer possibilidade de os pilotos se reanimarem para a aterragem. Diz ainda que estão gravemente doentes e podem morrer a menos que recebam já tratamento em hospital. Câmbio.

     Houve uma ligeira pausa. Depois:

     - Controle de Vancouver para 714. Sua mensagem foi compreendida. Pode esperar, por favor?

     - Entendido, Vancouver, - acusou Spencer e desligou outra vez. Disse a Janet, - Tudo que podemos fazer agora é esperar enquanto eles pensam o que fazer.

     Suas mãos seguiam nervosamente a coluna de controle a sua frente, acompanhando seus movimentos, tentando, avaliar sua sensibilidade enquanto tentava se recordar do velho toque que possuíra, a habilidade de voar que certa vez lhe granjeara uma boa reputação no esquadrão: conseguira voltar três vezes numa asa e numa prece. Sorriu consigo mesmo quando se lembrou da frase durante a guerra. Mas, no momento seguinte, quando olhou infrutiferamente para o monstruoso ajuntamento de ponteiros oscilantes e para as estranhas fileiras de alavancas e interruptores, sentiu-se possuído de um desespero gélido. Que tinha a ver com isso a pilotagem que aprendera? Isto era como sentar-se num submarino, cercado pelos mostradores e instrumentos inexpressivos da ficção científica. Um movimento errado ou em falso poderia destruir num segundo a natureza constante do seu vôo; se isso ocorresse, quem podia garantir que ele poderia controlar o avião outra vez? Todas as probabilidades eram contrárias. Desta vez não haveria a presença dos Hurricanes para conduzi-lo à casa. Começou a amaldiçoar a Matriz que o havia mandado de Winnipeg, largando tudo para desfazer a confusão em Vancouver. As possibilidades de uma nomeação para gerente de vendas e o desejo de uma casa em Parkway Heights pareciam agora absurdamente triviais e sem importância. Seria odioso acabar assim, não ver Mary outra vez, não dizer a ela tudo que ainda não fora dito. Quanto a Bobsie e Kit, o seguro de vida não adiantaria muito. Ele devia ter feito mais por aquelas crianças, o melhor que pudesse.

     Um movimento a seu lado interrompeu seus pensamentos. Janet estava ajoelhada na cadeira, olhando para trás, onde as formas imóveis do comandante e do primeiro oficial jaziam no chão.

     - Algum deles é seu namorado? - perguntou.

     - Não, - disse Janet, hesitando, - oficialmente, não.

     - Esqueça isso, - disse Spencer, um tom desigual em sua voz. - Compreendo. Desculpe, Janet. - Pôs o cigarro na boca e remexeu-se à procura de fósforos. - Não creio que isso seja permitido, não é? Mas talvez a Companhia possa fazer vista grossa.

     À súbita chama do fósforo ela pôde ver, muito claramente, a raiva violenta que lhe queimava os olhos.

    

     03,00-03,25 horas

     Com um estrondo crescente dos motores o último avião a decolar de Vancouver nessa noite havia aumentado a velocidade ao longo da pista molhada, que brilhava, e subira para dentro da escuridão. Quando fez o circuito obrigatório do aeroporto, suas luzes de navegação haviam desaparecido numa névoa úmida e pegajosa. Vários outros aviões, ao serem rebocados de volta de seus pontos de dispersão para re-entrâncias ao lado dos edifícios de partida, estavam salpicados de orvalho. Era uma noite fria. O pessoal de terra, desempenhando suas tarefas à luz amarela dos arcos, dava palmadas em si mesmo com as mãos enluvadas, para se manter aquecido. Nenhum deles falava mais do que o necessário. Um avião taxiando vagarosamente parou, afinal, e desligou os motores a um aceno das luzes indicadoras de um homem no chão, de frente para ele. No súbito silêncio, o sibilar das hélices parecia uma intromissão. O Aeroporto de Vancouver, normalmente ativo, preparava-se com sossegada competência para a emergência.

     Dentro da sala de controle, brilhantemente iluminada, a atmosfera estava tensa de concentração. Repondo o telefone no lugar, o controlador acendeu um cigarro, envolvendo-se em nuvens de fumaça azul enquanto estudava um mapa na parede. Voltou-se para Burdick. Sentado na beira de uma mesa, o gordo gerente da Companhia Aérea Folha de Bordo acabara de consultar outra vez a tabuleta de informações que segurava na mão.

     - Certo, Harry, - disse o controlador. Seu tom era o de um homem revendo seus atos mais para certificar-se de que tudo havia sido feito do que para fornecer informações a outro. - A partir de agora, estou detendo todas as partidas para leste. Temos quase uma hora para desimpedir o tráfego atual de saída em outras direções, deixando bastante tempo disponível. Depois disso, tudo que estiver programado para sair deve esperar até... até depois, de qualquer maneira. - O telefone tocou. Ele agarrou-o. - Sim? Compreendo. Previna todas as estações e aviões de que poderemos receber apenas os vôos que chegarem nos próximos quarenta e cinco minutos. Desvie todos os outros com HPC posterior. Todo tráfego deve ser mantido bem afastado do corredor leste-oste, de Calgary até aqui. Entendeu bem? Ótimo. - Colocou o aparelho de volta no gancho e dirigiu-se a um assistente sentado que também segurava um telefone. - Você já acordou o comandante da equipe de incêndio?

     - Estou ligando para a casa dele, agora.

     - Diga-lhe que é melhor vir para cá, parece que vai ser um grande espetáculo. E peça ao funcionário de dia da equipe de incêndio para avisar ao Corpo de Bombeiros da cidade. Eles podem querer trazer equipamento para a área.

     - Já fiz isso. Aqui o Controle de Vancouver, - disse o assistente ao telefone. - Espere um pouco, por favor. - Fez uma concha com a mão sobre o fone. - Devo avisar a Força Aérea?

     - Deve. Peça a eles que mantenham seus aviões fora da zona.

     Burdick arrastou-se de cima da mesa.

     - Essa é uma boa idéia, - disse. Grandes manchas molhadas se espalhavam das axilas de sua camisa.

     - Você tem algum piloto aqui no aeroporto? - perguntou o controlador.

     Burdick sacudiu a cabeça.

     - Nenhum, - disse. - Precisamos conseguir auxílio.

     O controlador raciocinou rapidamente.

     - Tente a Trans-Canadá. Ela tem á maioria do seu pessoal baseado aqui. Explique a situação. Vamos precisar de um homem com experiência completa neste tipo de avião, que seja capaz de dar instruções pelo rádio.

     - Você acha que há esperança?

     - Não sei, mas temos que tentar. Pode sugerir outra coisa qualquer?

     - Não, - disse Burdick, - não posso. Mas estou certo de que não vou ter inveja da tarefa dele.

     O operador da mesa chamou.

     - A polícia outra vez. O senhor vai atender?

     - Ponha-os na linha, disse o controlador.

     - Vou ver o pessoal da Trans-Canadá, - disse Burdick. - E tenho de ligar para Montreal e dizer ao meu chefe o que está acontecendo.

     - Faça isso pela mesa central, está bem? - Pediu o controlador. - A daqui está ficando congestionada. - Levantou o telefone enquanto Burdick corria para fora da sala. - Controlador falando. Ah, Inspetor, que sorte ser o senhor. Sim... sim... isso é ótimo. Agora ouça, Inspetor. Estamos em maus lençóis, muito pior do que pensamos. Em primeiro lugar precisamos saber se pode dispor de um de seus carros para recolher um piloto na cidade e trazê-lo para cá o mais depressa possível. Sim avisarei. Em segundo lugar, além da urgência de levar os passageiros para o hospital, há agora uma possibilidade muito séria de que o avião se espatife no chão. Não posso explicar agora, mas quando o avião chegar não estará sob controle apropriado. - Ouviu por um instante o homem do outro lado da linha. - Sim, demos um alarme geral. O Corpo de Bombeiros porá tudo que tem de prontidão. A questão é a seguinte: acho que as casas próximas ao aeroporto podem correr algum perigo. - Ouviu outra vez. - Bem, estou grato por sugerir isso. Sei que é o diabo acordar pessoas no meio da noite, mas já corremos risco bastante do jeito que está. Não posso garantir de forma alguma que o avião descerá no campo. Há a mesma possibilidade de cair antes como depois, isto é, supondo que consiga chegar até aqui. Estamos com sorte de haver apenas aquelas casas na direção da Ponte da Ilha do Mar para nos preocupar, podemos pedir a eles que esperem, não podemos? Vamos encaminhá-lo bem para fora da cidade... Hein?... Não, não posso dizer ainda. Tentaremos provavelmente aproximá-lo pelo lado leste da pista principal. - Outra pausa, mais longa desta vez. - Obrigado, Inspetor. Compreendo isso naturalmente e não o pediria se não considerasse esta uma emergência importante. Manterei contato. - O controlador desligou o telefone, seu rosto marcado pela preocupação. Perguntou ao homem no consolo do rádio: - O 714 ainda está a nossa espera? - O operador assentiu. - Está, - observou o controlador para todo pessoal da sala, - vai ser uma noite inesquecível. - Puxou um lenço e enxugou o rosto.

     - O chefe dos bombeiros está a caminho, - disse o assistente. - Estou falando com a Força Aérea, agora. Perguntam se podem ajudar em alguma coisa.

     - Avisaremos, mas acho que não. Agradeça-lhes. - Voltou ao estudo do mapa da parede, enfiando o lenço dentro do bolso. Distraidamente, seus dedos apalparam um maço de cigarros vazio, depois atiraram-no ao chão com desgosto.

     - Alguém tem qualquer coisa de fumar?

     - Aqui está.

     Aceitou o cigarro e acendeu-o.

     - É melhor você pedir lá embaixo mais, e também café para todos. Vamos precisar dele.

     Burdick voltou à sala outra vez, respirando ruidosamente.

     - A Trans-Canadá diz que seu melhor homem é o Comandante Treleaven, estão ligando para ele agora. Está em casa e na cama, suponho.

     - Consegui uma escolta policial, se necessário.

     - Eles cuidarão disso. Disse que precisávamos dele desesperadamente. Conhece Treleaven?

     - Já fomos apresentados, - disse o controlador. - É um bom sujeito. Temos sorte de estar disponível.

     - Esperemos que esteja, - grunhiu Burdick. - Com certeza podemos utilizá-lo. E quanto ao chefão?

     - Fiz um chamado para o meu presidente. - Fez uma careta.

     O operador da mesa interrompeu.

     - Estou com Seattle e Calgary esperando, senhor. Querem saber se recebemos a mensagem do 714 claramente.

     - Diga-lhes que sim, - respondeu o controlador. - Diga que falaremos diretamente com o avião mas gostaríamos que eles mantivessem uma escuta no caso de encontrarmos qualquer dificuldade na recepção.

     - Certo, senhor.

     O controlador cruzou para o consolo de rádio e pegou o microfone da mesa. Fez sinal ao operador, que virou o interruptor para transmitir.

     - Controle de Vancouver para Vôo 714, - chamou.

     A voz de Spencer quando respondeu saiu de uma extensão amplificadora num canto do teto da sala. Desde seu pedido de socorro – mayday - toda a sua mensagem fora irradiada pelo alto-falante.

     - 714 para Vancouver. Pensei que estivessem perdidos.

     - Vancouver para 714. Aqui é o controlador falando. Estamos organizando o socorro. Podemos chamar você outra vez muito breve. No entanto, não faça nada que possa interferir com a disposição atual dos controles. Câmbio.

     Apesar da distorção, a aspereza na voz de Spencer chegou como uma faca.

     - 714 para Vancouver. Pensei que já lhe tivesse dito. Nunca toquei numa coisa destas antes. Na certa não pretendo começar a fazer truques com o piloto-automático. Câmbio.

     O controlador abriu a boca como se fosse dizer alguma coisa, depois mudou de idéia. Fez sinal para desligar e disse ao seu assistente:

     - Diga à Recepção para trazer Treleaven depressa como um raio para cá.

     - Certo, senhor. O chefe dos bombeiros de serviço acabou de verificar a informação, - disse o assistente. - Está retirando das pistas todos os veículos e carros-tanque para lugares bem abrigados antes da HPC do 714. O Corpo de Bombeiros da cidade está trazendo todo o equipamento que possui na jurisdição.

     - Ótimo. Quando o chefe dos bombeiros chegar, quero falar com ele. Se o 714 chegar até aqui, não quero os nossos caminhões dirigindo-se para ele ao longo do campo. Se conseguirmos pousá-lo, apesar de tudo, é provável que não fique inteiro.

     Burdick disse subitamente:

     - Hei! Com os serviços públicos da cidade metidos nisso, teremos a imprensa aqui a qualquer momento. - Bateu nos dentes com o indicador rechonchudo, abismado pelas possibilidades. - Isto será a pior coisa que já aconteceu à Folha de Bordo, - continuou rapidamente. - Imagine só, será assunto de primeira página em toda parte. Lotação completa de passageiros, muitos deles doentes . Nenhum piloto. Talvez a evacuação dos moradores daquelas casas lá em direção da ponte. Para não falar...

     O controlador interrompeu-o.

     - É melhor você deixar as Relações Públicas cuidarem disso. Chame Howard aqui. A mesa deve saber o número da casa dele. - Burdick fez sinal ao operador da mesa, que correu o dedo por uma lista de emergência e depois começou a discar. - Não podemos esconder da imprensa uma coisa destas, Harry. É grande demais. Cliff saberá como se conduzir. Diga-lhe para manter os jornais longe de nós. Temos trabalho a fazer.

     - Que noite, - gemeu Burdick, apanhando um telefone com impaciência. - O que é que houve com o Dr. Davidson? - Perguntou ao operador.

     - Foi atender a um chamado e não pôde ser encontrado. Esperam que volte logo. Deixei recado. Quem diria? Tudo tem de acontecer esta noite. Se ele não der notícias em dez minutos, ligue para o hospital. Talvez o médico do 714 precise de conselhos. Vamos. Vamos - , proferiu Burdick com irritação, no telefone. - Acorde, Cliff, pelo amor de Deus Não há nenhuma razão para ficar dormindo num momento destes.

    

     Nos arrabaldes da cidade, outro telefone estava tocando sem cessar, perturbando o sossego de uma casa pequena e simples com seu clamor estridente. Um braço liso e branco emergiu dos lençóis, pousou inerte atravessado num travesseiro, depois agitou-se outra vez e tateou devagar na escuridão em busca do interruptor da lâmpada de cabeceira. A luz acendeu-se . Com os olhos apertados pela claridade, uma bela ruiva, com camisola branca bordada, apanhou penosamente o telefone, encostou-o ao ouvido e se virou para o lado. Fixando os olhos nos ponteiros do pequeno relógio sobre a mesa de cabeceira, murmurou:

     - Alô!-

     - É a Sra. Treleaven? - Perguntou uma voz decidida.

     - Sou, - disse ela praticamente num cochicho. - Quem é?

     - Sra. Treleaven, posso falar com seu marido?

     - Ele não está em casa.

     - Não está? Onde posso encontrá-lo, por favor? Isto é urgente.

     Ela ergueu-se um pouco do travesseiro, tentando abrir os olhos para acordar. Pensou que talvez estivesse sonhando.

     - Alô, alô! - Exclamou a voz do outro lado. - Sra. Treleaven, estamos tentando ligar para aí há algum tempo.

     - Tomei um remédio para dormir, - disse ela. - Ouça, quem é que quer falar com ele a essa hora da noite?

     - Desculpe-me tê-la acordado, mas precisamos entrar em contato com o Comandante Treleaven sem demora. Aqui é a Trans-Canadá, do aeroporto.

     - Oh. - Ela se concentrou. - Ele está na casa da mãe. O pai está doente e meu marido está ajudando-a a fazer-lhe companhia.

     - A casa dela é na cidade?

     - É sim, aqui perto. - Ela deu o número do telefone.

     - Obrigado. Ligaremos para ele.

     - O que foi que houve? - perguntou.

     - Desculpe, mas não há tempo para explicar. Mais uma vez, obrigado.

     A ligação foi cortada. Ela recolocou o fone no gancho e pôs as pernas para fora da cama. Como mulher do piloto mais antigo da Companhia, estava acostumada a chamados inesperados para seu marido, mas embora os aceitasse como parte inevitável de sua vida, ainda se revoltava contra isso. Paul era o único piloto de que se lembravam quando estavam em apuros? Bem, se ele tivesse de pegar um avião a toda pressa, iria ligar para casa primeiro pedindo seu uniforme e equipamento. Haveria tempo para fazer uma garrafa de café e alguns sanduíches. Enrolou-se num roupão, saiu do quarto cambaleando de sono e desceu a escada em direção à cozinha.

    

     A três quilômetros dali, Paul Treleaven dormia profundamente, seu grande corpo estirado num sofá da sala de sua mãe. Essa, senhora de idade, determinada e vigorosa, havia insistido em ficar ao lado do marido doente, ordenando ao filho com firmeza que descansasse por duas horas enquanto podia. As notícias dadas pelo médico da família na noite anterior haviam sido encorajadoras: o doente conseguira ultrapassar a pior parte da febre pneumônica, e agora era questão de cuidado e atenção vigilantes. Treleaven encarara a possibilidade de dormir. Há trinta e seis horas havia completado um vôo de Tóquio, trazendo de volta uma missão parlamentar a caminho de Ottawa e, desde então, com a crise da doença de seu pai, tivera pouca oportunidade para mais do que um cochilo preocupado.

     Foi chamado com sacudidelas no braço. Acordando imediatamente, abriu os olhos e viu sua mãe debruçada sobre ele.

     - Está bem, mamãe, - disse pesadamente. - É minha vez agora.

     - Não, meu filho, não é isso. Papai está dormindo como uma criança. É do aeroporto no telefone. Disse a eles que você estava tentando descansar um pouco, mas insistiram. Acho isso uma vergonha, como se não pudessem esperar até uma hora respeitável de manhã.

     - Está bem. Vou atender.

     Pondo-se de pé, imaginou se iria jamais dormir direito outra vez. Já estava meio vestido, tendo tirado apenas o paletó e a gravata para se deitar com mais conforto no sofá. Caminhou de meias em silêncio para a porta, e saiu para atender o telefone no hall, sua mãe seguindo ansiosamente atrás dele.

     - Treleaven, - disse ele.

     - Paul, aqui é Jim Bryant. - As palavras eram entrecortadas, urgentes. - Estava começando a me preocupar de verdade. Precisamos de você, Paul, demais. Pode vir já para cá?

     - Por quê? O que é que há?

     - Estamos num aperto de verdade. Há um avião da Fretadora Folha de Bordo, é um Empress C6, desses recondicionados, a caminho daqui vindo de Winnipeg com alguns passageiros e ambos os pilotos atacados de envenenamento alimentar.

     - O quê! Ambos os pilotos?

     - É verdade. É uma emergência das maiores. Há um sujeito nos controles do avião que não voa há anos. Felizmente o piloto-automático está ligado. A Folha de Bordo não tem nenhum piloto baseado aqui e queremos que você venha e o faça descer. Acha que pode fazer isso?

     - Caramba, não sei. Você está pedindo demais. - Treleaven olhou para o relógio de pulso. - Qual é a HPC?

     - 05,05.

     - Mas isto é menos de duas horas. Temos que correr! Olhe, eu estou no lado sul da cidade...

     - Qual é o seu endereço? - Treleaven deu-o. - Mandaremos um carro da polícia apanhá-lo em alguns minutos. Quando chegar aqui, suba direto para a sala de controle.

     - Certo. Estou indo.

     - E boa sorte, Paul.

     - Você não está brincando, está?

     Deixou cair o telefone e caminhou de volta para a sala, calçando os sapatos sem parar para amarrá-los. Sua mãe ajudou-o a vestir o paletó.

     - O que é, meu filho? - Perguntou, apreensivamente.

     - Encrenca no aeroporto, mamãe. Séria, receio. Vem aí um carro da polícia me apanhar.

     - Polícia!

     - Ora, ora, - Pôs um braço sobre os ombros dela por um instante. - Não há razão alguma para se preocupar. É que eles precisam de minha ajuda. Tenho de deixá-la só pelo resto da noite. - Olhou em volta a procura do cachimbo e do fumo e os pôs no bolso. - Um minuto, - disse ele, parando no caminho. - Como souberam que eu estava aqui?

     - Não sei. Talvez tivessem ligado para Dulcie primeiro.

     - É, deve ser isso. Pode ligar para ela, mamãe, e dizer que está tudo em ordem?

     - Naturalmente. Mas qual é a encrenca, Paul?

     - O piloto de um avião que está para chegar adoeceu. Querem que eu faça o avião descer, dando instruções, se puder.

     Sua mãe parecia confusa.

     - Que quer dizer, fazê-lo descer dando inscrições? - Repetiu ela. - Se o piloto está doente, quem vai guiar o avião?

     - Eu, mamãe, do chão. Ou pelo menos vou tentar, de qualquer forma.

     - Não compreendo.

     Talvez eu também não, pensou Treleaven consigo mesmo, cinco minutos depois, sentado no banco de trás de um carro da polícia, enquanto este se afastava da calçada e engrenava raivosamente a marcha mais alta. As luzes da rua cintilavam ao longo deles numa sucessão cada vez mais rápida; o velocímetro rodou com firmeza até 120, enquanto que a sirena cortava a escuridão da noite.

     - Parece que vai haver uma grande noite lá no campo, - observou o sargento ao lado do motorista, falando por cima do ombro.

     - Acho que sim, - disse Treleaven. - Pode me informar exatamente o que está acontecendo?

     - E eu sei? - O sargento cuspiu pela janela. - Tudo que sei é que todos os carros disponíveis foram enviados para o aeroporto para trabalhar a partir de lá no caso de a ponte estadual ter de ser desimpedida . Estávamos a caminho também quando nos fizeram parar e nos mandaram de volta para buscá-lo. Acho que estão esperando uma encrenca infernal.

     - Sabe o que mais? - interrompeu o jovem motorista. - Acho que há um Stratojet estourado chegando com uma carga de bombas nucleares.

     - Faça-me um favor, - disse o sargento com bastante sarcasmo. - Seu mal é que você lê demais histórias em quadrinhos.

     Nunca, pensou Treleaven penosamente consigo mesmo, havia ele chegado ao aeroporto tão depressa. Num instante, ou pelo menos foi o que lhe pareceu, haviam chegado a Marpole e cruzado a Ponte dos Carvalhos para a Ilha Lulu. Depois, virando para a direita, cruzaram de novo o estuário do rio para a Ilha do Mar e passaram algumas vezes por carros da policia cujos ocupantes já estavam conversando nas portas das casas com os moradores intrigados, até que chegaram correndo ao último trecho da Avenida do Aeroporto, as luzes das suas construções baixas e alongadas guiando-os para lá. Frearam subitamente com um guincho de protesto dos pneus, para evitar um caminhão dos bombeiros que estava fazendo devagar uma curva em U diante deles. O sargento praguejou, rapidamente mas com veemência.

     No edifício principal de recepção, Treleaven saiu do carro, passou pelas portas e havia cruzado o hall antes que o zunido da sirena morresse. Afastando para o lado o mensageiro que correra para encontrá-lo, foi diretamente para a sala de controle na parte da administração. Ele podia andar bem depressa para um homem do seu tamanho. Era provavelmente aquela agilidade de pernas que, combinada a um físico solidamente constituído, cabelos claros e lisos e feições enérgicas e magras, tornavam-no objeto de interesse para muitas mulheres. Suas feições, angulosas e cruéis, pareciam ter sido esculpidas num pedaço de madeira. Treleaven desfrutava de uma considerável reputação como disciplinador e mais de um membro da tripulação tivera motivos para recear a luz fria daqueles olhos de um azul quase líquido.

     Entrou no Controle quando Burdick falava ansiosa e respeitosamente no telefone.

     - ... Não senhor, ele não está habilitado. Voou em caças monomotores durante a guerra; de lá para cá, nada... Perguntei isso a eles. Esse médico que está a bordo diz...

     O controlador adiantou-se rapidamente para saudar Treleaven.

     - Tenho o maior prazer em vê-lo, comandante, - disse ele.

     Treleaven apontou Burdick com a cabeça.

     - Ele está falando do sujeito do Empress? - Perguntou.

     - Está. Acabou de tirar o presidente da cama. Em Montreal. O velho parece longe de estar feliz com isso, e eu também. A ligação não devia ter sido feita para aqui. Acabe logo, Harry, está bem?

     - Que mais podemos fazer? - Implorou Burdick no telefone, suando em abundância. - Temos de fazê-los descer por instruções. Localizei o piloto-chefe da Trans-Canadá, o Comandante Treleaven, ele acaba de entrar agora. Leremos pelo rádio uma lista de verificações para trazê-lo... Faremos o melhor que pudermos, senhor... É claro que é um risco terrível, mas o senhor tem alguma idéia melhor?

     Treleaven apanhou com o despachante a tabuleta com as mensagens do 714 e leu-as com todo o cuidado. Com um calmo pedido de tempo, - consultou depois os últimos dados meteorológicos. Isto feito, deixou os papéis, ergueu os olhos sombriamente para o controlador, e puxou o cachimbo, que começou a encher. Burdick ainda estava falando.

     - ... Já pensei nisso, senhor. Howard cuidará da imprensa aqui, eles ainda não sabem de nada por enquanto... Sim, sim, já suspendemos o fornecimento de comida em todos os vôos saídos de Winnipeg. Isso é tudo que sabemos. Eu o chamarei logo...

     - O que acha? - Perguntou o controlador a Treleaven.

     O piloto encolheu os ombros sem responder e apanhou a tabuleta de mensagens outra vez. Sua fisionomia estava com rugas fundas enquanto lia as mensagens de novo, chupando com firmeza o cachimbo. Um jovem entrou de costas na sala, mantendo a porta aberta com a perna, enquanto manobrava uma bandeja com copos de papelão cheios de café. Entregou um ao controlador e pôs outro em frente a Treleaven. O piloto ignorou-o.

     - ... HPC é 05,05 Hora do Pacífico, - dizia Burdick com exasperação crescente. - Tenho uma porção de coisas a fazer, senhor... preciso começá-las... chamarei de novo... chamarei logo que souber de mais coisas... Sim, sim... Até logo. - Desligando o telefone, exalou o ar com alívio. Voltando-se para Treleaven, disse: - Obrigado por ter vindo, comandante. Já soube de tudo?

     Treleaven ergueu a tabuleta.

     - Aqui está a história toda?

     - Aí está tudo que sabemos. Agora gostaria que o senhor fosse para o microfone e ensinasse esse cara a descer. O senhor deve deixá-lo sentir o avião antes de chegar, deve dar a lista de verificações para aterragem, deve falar com ele sobre a tomada de campo, e, Deus me ajude, deve fazê-lo pousar no chão. Será que consegue?

     - Não posso fazer milagres, - disse Treleaven calmamente. - O senhor sabe que as probabilidades de um homem que tenha pilotado apenas aviões de caça, aterrar um avião de passageiros quadrimotor, são bem escassas, para dizer o mínimo?

     - É claro que sei! - explodiu Burdick. - O senhor ouviu o que eu disse a Barnard. Mas será que o senhor tem alguma idéia melhor?

     - Não, - disse Treleaven devagar. - Acho que não. Queria apenas ter certeza de que o senhor sabe no que estamos nos metendo.

     - Ouça, - gritou Burdick com raiva. - Há um avião cheio de gente lá em cima, alguns morrendo, inclusive os pilotos. O maior desastre aéreo de muitos anos, é nisso que estamos nos metendo!

     - Fique calmo, - disse Treleaven friamente. - Gritando não chegaremos depressa a lugar algum. - Relanceou os olhos pela tabuleta e depois para o mapa da parede. - Isto vai ser muito difícil e com poucas probabilidades, - disse. - Desejo que todos compreendam isso.

     - Está bem, senhores, - disse o controlador. - O senhor tem toda razão de acentuar os riscos, comandante. Nós aceitamos isso totalmente.

     - Que escolha há? - Insistiu Burdick.

     - Muito bem, então, - disse Treleaven, - vamos começar. - Caminhou para o rádio-operador. - Pode ligar direto para o 714?

     - Posso, comandante. A recepção está boa. Podemos chamá-los a qualquer momento.

     - Chame-os, então.

     O operador ligou para transmitir.

     - Vôo 714. Aqui Vancouver. Estão ouvindo? Câmbio.

     - Sim, Vancouver, - veio a voz de Spencer pelo alto-falante. - Ouvimos claramente. Adiante, por favor.

     O operador passou o microfone de mesa para Treleaven.

     - Pronto, comandante. É todo seu.

     - Estou no ar?

     - Fale agora.

     Segurando o microfone na mão, o fio descendo para o chão, Treleaven deu as costas para os outros na sala. Pernas afastadas, olhou sem ver para um ponto no mapa da parede, seus olhos frios e distantes, concentrados. Sua voz, quando falou, era firme e sem pressa, cheia de uma confiança que não sentia. Quando começou, os outros homens relaxaram visivelmente, como se sua autoridade natural os houvesse aliviado de uma responsabilidade esmagadora.

     - Alô, Vôo 714, - disse. - Aqui é Vancouver. Meu nome é Paul Treleaven e sou comandante da Companhia Trans-Canadá. Minha função é ajudá-lo a guiar esse avião. Não devemos ter muita dificuldade. Vejo que estou falando com George Spencer. Gostaria de saber um pouco mais sobre sua experiência de vôo, George.

     Atrás dele, as dobras flácidas do rosto honesto de Burdick haviam começado a tremer num espasmo incontrolável de reação nervosa.

    

     03,25-04,20 horas

     Spencer ficou tenso, lançando um olhar involuntário à moça na cadeira a seu lado. Os olhos dela, à luminosidade esverdeada do painel de instrumentos, estavam colados em seu rosto. Desviou os olhos de novo, ouvindo com atenção.

     Treleaven estava dizendo:

     - Por exemplo, quantas horas de vôo você teve? A mensagem aqui diz que você pilotou caças monomotores. Tem qualquer experiência em aviões multimotores? Diga lá, George.

     A boca de Spencer estava tão seca quando respondeu que a princípio mal pôde falar. Consertou a garganta.

     - Alô, Vancouver. Aqui 714. Prazer em tê-lo conosco, comandante. Mas não nos enganemos mutuamente, por favor. Acho que ambos compreendemos a situação. Minha experiência até agora tem sido inteiramente em aviões monomotores, Spitfires e Mustangs, diria cerca de mil horas ao todo. Mas isto foi há treze anos. Desde então nunca mais toquei num avião. Compreende isso? Câmbio.

     - Não se preocupe com isso, George. É como andar de bicicleta. Você nunca mais se esquece. Espere um pouco, sim?

     No Controle de Vancouver, Treleaven apertou o botão de desligar no braço do microfone em sua mão e olhou para uma tira de papel que o controlador segurava para ele ler.

     - Tente pô-lo neste curso, - disse o controlador. - A Força Aérea acaba de enviar uma verificação de radar. - Fez uma pausa. - Pela maneira de ele falar parece bastante abafado, não é?

     - É mesmo, quem não estaria em seu lugar? - Treleaven fez uma careta pensativamente. - Temos de infundir confiança nele, - disse. - Sem isso não há qualquer esperança. O que quer que haja, ele não se deve afobar. Mande ele falar baixo, sim? - Disse apontando o assistente do controlador que falava no telefone. - Se aquele sujeito não me ouvir direito arranjará logo uma encrenca e não haverá nada que possamos fazer, então. - Depois, para o despachante: - Muito bem. Faça o diabo mas não perca o contato. - Soltou o botão. - 714. Aqui Treleaven. O piloto-automático ainda está ligado, não é?

     - Sim, está, comandante, - veio a resposta.

     - Muito bem, George. Num minuto você pode desligar o piloto-automático e ter a sensação dos controles. Quando tiver um pouco de prática neles você vai mudar seu curso um pouco. Ouça com muito cuidado, portanto, antes de tocar neles. Quando você começar a guiar o avião os controles vão parecer muito pesados e vagarosos em comparação com um caça. Não permita que isso o preocupe. É bastante normal. Você tem um avião e tanto aí em cima, portanto trate-o bem e com firmeza. Vigie a velocidade do ar o tempo todo que estiver voando e não a deixe descer a menos de 220 quilômetros enquanto estiver com as rodas e flaps para cima, senão você estola. Vou repetir isso. Esteja absolutamente certo, o tempo todo, de que a velocidade do ar não caia abaixo de 220 quilômetros. Agora, outra coisa. Você tem alguém aí que possa falar no rádio e deixá-lo livre para voar?

     - Sim, Vancouver. Tenho a comissária aqui comigo e ela cuidará do rádio agora. É todo seu, Janet.

     - Alô, Vancouver. Aqui é a comissária, Janet Benson. Câmbio.

     - O que, é você, Janet? - Disse Treleaven. - Eu reconheceria essa voz em qualquer lugar. Você vai falar com George para mim, não vai? Ótimo. Agora, Janet, quero que você fique de olho no indicador de velocidade do ar. Lembre-se de que um avião se mantém no ar devido à sua velocidade para a frente. Se você deixar a velocidade baixar demais, ele estola, e cai do ar que o sustenta. Sempre que o IVA7 tiver o ponteiro perto de 220, avise George instantaneamente. Está claro, Janet?

     - Sim, comandante. Compreendo.

     - Agora, você, George. Ouça isto devagar e calmamente. Quero que desligue o piloto-automático, está marcado claramente na coluna de controle, e dirija o avião você mesmo, mantendo-o em linha reta e nivelado. George, vigie o horizonte artificial e mantenha a velocidade do ar constante. Os indicadores de subida e descida devem ficar no zero. Muito bem, comece agora.

     Spencer pôs o indicador direito sobre o botão de desligar do piloto automático na coluna de controle. Sua fisionomia estava rígida. Pés sobre a barra do leme e ambos os braços prontos, retesados, preparou-se para o que desse e viesse.

     - Diga-lhe que estou desligando, agora, - disse a Janet. Ela repetiu a mensagem. A mão dele hesitou por um instante no botão. Depois, apertou-o com força. O avião balançou um pouco para bombordo, mas ele corrigiu a tendência suavemente e o avião obedeceu bem aos seus pés na barra do leme. A vibração dos controles parecia fluir através do seu corpo como uma corrente elétrica.

     - Diga-lhe que foi tudo bem, - ofegou, os nervos tensos como cabos.

     - Aqui 714. Estamos voando em linha reta e nivelados. - Soou a voz de Janet miraculosamente doce e calma para ele.

     - Muito bem, George. Logo que você se tenha habituado à sensação dos comandos, experimente algumas curvas muito suaves, nada além de dois ou três graus. Já achou o indicador de curvas? Está quase diretamente em frente aos seus olhos, um pouquinho para a direita, bem ao lado do quebra-luz do painel. Câmbio. - Os olhos de Treleaven estavam fechados com o esforço de visualizar a disposição da cabina de comando. Abriu-os e disse ao despachante. - Ouça. Tenho uma porção de coisas a fazer com este homem lá em cima, mas precisamos começar a planejar a aproximação e aterragem enquanto há tempo. Chame aqui o operador-chefe do radar. E deixe que eu fale com ele.

     Spencer esticou a perna esquerda com um cuidado extremo e soltou um pouco a coluna de controle. Desta vez pareceu-lhe ter passado um tempão até que o avião obedecesse ao seu toque e visse o indicador de horizonte inclinar-se. Satisfeito, tentou para o outro lado; mas agora o movimento foi alarmante. Olhou para o IVA e ficou espantado ao ver que havia caído para 330 km. Teria de tratar os controles com o maior respeito até que compreendesse realmente a demora dos efeitos; isso era evidente. Tentou outra vez uma curva nivelada e fez pressão contra o peso do leme para mantê-lo firme. Aos poucos sentiu o avião obedecer. Depois endireitou, de forma a manter aproximadamente o curso anterior.

     Janet havia levantado os olhos por um momento do painel de instrumentos para perguntar em voz baixa:

     - Como vai indo?

     Spencer tentou sorrir, sem muito sucesso. Passou-lhe pela mente a idéia de que aquilo se parecia mais com o seu tempo de treinador Link outra vez, só que naquele tempo não havia quase sessenta vidas pendendo da balança, e o instrutor não estava a mais que alguns metros na mesma sala.

     - Diga-lhe que estou no manual e fazendo curvas ligeiras, voltando ao curso de cada vez, - disse.

     Janet deu a mensagem.

     - Devia ter perguntado isso a você antes, - veio a voz de Treleaven. - Que tipo de tempo está fazendo ai em cima?

     - Onde estamos agora está claro, - respondeu Janet. - Exceto abaixo de nós, é claro.

     - Bem, bem. É melhor me manterem informado. Agora, George, temos de continuar. Você pode entrar em alguma camada de nuvens a qualquer momento. Se isso acontecer, quero que esteja pronto para ela. Como se comporta o avião?

     Spencer olhou para Janet.

     - Diga-lhe, demorado como o diabo, como uma esponja molhada, - disse por entre os dentes cerrados.

     - Alô, Vancouver. Demorado como uma esponja molhada, - repetiu Janet.

     Por alguns breves segundos a tensão no Controle de Vancouver diminuiu e o grupo de pé em volta do painel do rádio trocou sorrisos.

     - Isso é uma sensação natural, George, - disse Treleaven, sério outra vez, - porque você estava habituado com aviões menores. Você vai achar pior ainda quando manobrar mais aí em cima, mas logo se acostumará.

     O despachante interrompeu:

     - Aqui está o chefe do radar.

     - Ele terá que esperar, - disse Treleaven. - Falarei com ele logo que puder...

     - Certo.

     - Alô, George, - chamou Treleaven. - Você deve evitar qualquer movimento violento dos controles, que estava acostumado a fazer em seus aviões de caça. Se você mover os controles com violência, corrigirá demais e arranjará encrenca. Compreendeu? Câmbio.

     - Sim, Vancouver, compreendemos. Câmbio.

     - Agora, George, quero que experimente o efeito do controle longitudinal na velocidade do ar. Para começar, ajuste o acelerador de forma a reduzir a velocidade para 295 e voe em linha reta e no nível. Mas vigie com cuidado a velocidade do ar. Mantenha-a acima de 220. A regulagem do elevador está bem a sua direita no pedestal de controle, e a regulagem do aileron está embaixo dos aceleradores, perto do chão. Percebeu? Câmbio.

     Spencer verificou com a mão, mantendo o avião firme com a outra e com as pernas retesadas.

     - Certo. Diga-lhe que estou reduzindo a velocidade.

     - Muito bem, Vancouver, estamos fazendo como disse.

     O tempo escoou enquanto a velocidade caía vagarosamente. A 295 George ajustou a lingüeta da regulagem e levantou o polegar para Janet.

     - Aqui 714, Vancouver. 295 km no indicador.

     Treleaven esperou até que se tivesse livrado do seu paletó antes de falar.

     - Certo, George. Experimente um pequeno movimento para cima e para baixo. Use a coluna de controle com tanto cuidado como se estivesse cheia de ovos e vigie a velocidade. Mantenha-a em 295. Sinta a coisa à medida que manobra. Câmbio. - Largou o microfone. - Onde está o chefe do radar?

     - Aqui.

     - A que distância o avião aparecerá em sua tela? - Perguntou Treleaven.

     - A 95 km mais ou menos, comandante.

     - Então não adianta, por enquanto. Bem, - disse Treleaven, em parte consigo mesmo, em parte para Burdick, - não se pode ter tudo de uma só vez. Devo supor que ele está ainda voando na direção geral oeste. Na próxima chamada, verificaremos o seu curso.

     - Sim, - disse Burdick. Ofereceu um cigarro que o piloto recusou.

     - Se ele tivesse ficado no mesmo rumo, - continuou Treleaven, olhando para o mapa da parede, - não pode estar tão fora do curso, e podemos orientá-lo quando chegar ao alcance do nosso radar. Essa verificação da Força Aérea vai ajudar.

     - Ele não pode entrar na faixa? - Perguntou Burdick.

     - No momento ele tem bastante com o que se preocupar. Se eu tentar pô-lo na faixa, ele terá de se ocupar à toda volta com o rádio, mudando freqüências e uma porção de outras coisas. Acho melhor arriscar, Harry, e deixá-lo sair alguns quilômetros do curso.

     - Parece lógico, - concordou Burdick.

     - Aqui está o que vamos fazer, - disse o piloto. Virou-se para o chefe do radar. - Continuarei a falar. Ele está-se acostumando comigo, agora.

     - Certo, senhor.

     - Logo que eles aparecerem em sua tela, você me pode ir dando as informações e eu as passarei adiante. Você pode ligar um circuito fechado entre mim e a sala de radar?

     - Podemos cuidar disso, - disse o comandante.

     - E quanto à tomada de campo final? - Perguntou o chefe do radar.

     - Faremos da mesma forma, - disse Treleaven. - Logo que o pegarmos na tela e ele estiver firme no curso, iremos para a torre. Avise quando ele aparecer e decidiremos quanto à pista e resolveremos sobre a tomada de campo.

     - Sim, senhor.

     Treleaven apanhou o microfone mas esperou, seu olhar cruzando-se com o do controlador que repunha o fone no gancho.

     - O Dr. Davidson está lá embaixo, - disse-lhe o controlador.

     - O que é que ele acha?

     - Pela informação que temos ele concorda com o diagnóstico do médico do avião. No começo pareceu intrigado se poderia ser um irrompimento de botulismo.

     - O que é isso, pelo amor de Deus?

     - Aparentemente uma espécie de envenenamento alimentar muito sério. Devemos chamá-lo aqui em cima e pô-lo no rádio?

     - Não, Sr. Grimsell. Agora é mais importante guiar o avião. Deixaremos a eles a iniciativa de pedirem conselho médico, se quiserem. Não quero que Spencer se distraia na direção se puder evitar. Deixaria Davidson de prontidão para o caso de ser necessário. - Treleaven falou no microfone: - Alô, George Spencer. Não se esqueça daquela demora dos controles. Basta segurá-los com firmeza, Compreendeu?

     Houve uma pausa. Depois.

     - Ele compreende, Vancouver. Câmbio.

     Pareceu a Spencer que o comandante devia ter lido seus pensamentos. Havia movido a coluna devagar para a frente e depois voltou atrás, mas não houvera resposta do avião. Agora tentou outra vez, deixando a coluna afastar-se dele. Imperceptivelmente a princípio, o nariz do avião começou a descer. Depois, tão subitamente que ficou por um momento paralisado pelo choque, o nariz mergulhou. Janet mordeu o lábio com força para não gritar. O ponteiro do IVA começou a girar... 330... 350... 370... 410. Pondo todo seu peso na coluna, Spencer lutou para nivelar o avião. À sua frente o painel de instrumentos parecia vivo. O indicador de subida e descida tremia de encontro ao fundo do vidro. A pequena reprodução de um avião no horizonte artificial havia baixado sua asa esquerda e ficado nessa posição, assustadoramente. No mostrador do altímetro, o ponteiro dos 30 metros chiava para trás, o ponteiro dos 330 metros com menos rapidez, mas mesmo assim aterradoramente depressa; ao passo que o ponteiro dos 3.330 metros já tinha parado, encostado no esbarro inferior.

     - Vamos, sua lesma, vamos! - Gritou ele enquanto o nariz por fim obedecia. Viu os três ponteiros do altímetro começarem com uma moleza agonizante a subir outra vez, registrando gradualmente alturas crescentes. - Conseguimos! - Disse com alívio para Janet, esquecendo-se de que estava corrigindo demais.

     - Cuidado, cuidado com a velocidade. - Exclamou ela.

     Seus olhos voltaram-se para o mostrador, caindo agora, rapidamente, outra vez. 300... 280... 260. Depois conseguiu. Com um suspiro o avião firmou-se outra vez numa posição horizontal e Spe-cer manteve-o em vôo reto e nivelado.

     - Jesus, essa foi feia, - murmurou.

     Janet estava ainda controlando o IVA.

     - 300. Agora está bem.

     A porta da cabina de vôo abriu-se atrás deles e a voz do Dr. Baird chamou:

     - Alguma coisa errada?

     Spencer respondeu alto, sem tirar os olhos do painel.

     - Desculpe, Doutor. Estou tentando habituar-me ao avião.

     - Bem, vá com calma, está bem? As coisas estão bem más lá atrás. Como vai indo?

     - Muito bem, muito bem, Doutor, - disse Spencer, umedecendo os lábios. A porta fechou-se outra vez e a voz de Treleaven ouviu-se de novo.

     - Alô, George Spencer. Tudo em ordem? Câmbio.

     - Tudo sob controle, Vancouver, - respondeu Janet.

     - Ótimo. Qual o seu rumo atual, George?

     Spencer olhou para baixo.

     - Diga-lhe que a bússola ainda registra cerca de 290 e estou me mantendo com bastante firmeza nele. - Ela assim fez.

     - Muito bem, George. Tente manter-se nesse rumo. Você pode afastar-se um pouco, mas direi quando corrigir. Agora quero que você veja como o avião se comporta a velocidades baixas quando os flaps e o trem de aterragem estão descidos. Mas não faça nada até que lhe dê instruções. Está claro? Câmbio.

     Janet viu Spencer fazer que sim com a cabeça e pediu a Treleaven para continuar.

     - Alô, 714. Primeiro que tudo, solte o acelerador ligeiramente, não muito, e baixe a velocidade do ar até se firmar em 300 km. Regule a inclinação para manter o vôo nivelado. Depois me diga quando estiver pronto. Câmbio.

     Spencer endireitou-se e disse:

     - Vigie a velocidade do ar, Janet. Você terá de dizê-la para mim quando aterrarmos, de forma que bem pode começar a praticar agora.

     - Está em 350, - recitou Janet. - 370... 350... Ele disse 300, Sr. Spencer.

     - Eu sei, eu sei. Vou soltar um pouco o acelerador.

     Estendeu o braço para o acelerador e soltou-o um pouco.

     - Que é isso, Janet. Qual é a velocidade? -

     - 350. 330, 325, 315, 305. 285, 275... Está baixa demais!

     - Eu sei. Olhe! Olhe!

     Sua mão cuidou das alavancas do acelerador quase acariciando-as até ficarem na posição exata para manter a velocidade desejada. Os olhos de Janet estavam pregados no ponteiro oscilante do mostrador.

     - 275, 275, 285, 300... está firme no 300.

     Spencer exalou o ar retido com alívio.

     - Puxa! Até que enfim. Diga a ele, Jan.

     - Alô, Vancouver. Nossa velocidade está firme em 300. Câmbio.

     Treleaven pareceu impaciente, como se esperasse que ficassem prontos antes.

     - Está bem, 714. Agora, George. Quero que baixe os flaps 15 graus, mas cuidado para não baixar demais. A alavanca do flap está na base do pedestal de controle e assinalada claramente; 15 graus quer dizer baixar a alavanca até o segundo entalhe. O mostrador da posição do flap está no centro do painel principal. Achou os dois? Pode vê-los? Câmbio.

     Spencer localizou a alavanca.

      - Confirme isso, - disse a Janet, - mas é melhor você baixá-la. Certo?

     Ela deu o entendido a Vancouver e ficou esperando com a mão na alavanca.

     - Alô, 714. Quando disser, empurre tudo para baixo e vigie o mostrador. Quando o ponteiro marcar 15 graus, puxe a alavanca para cima e deixe-a no segundo entalhe. Você terá que olhar e estar pronto para agir. Esses flaps descem muito depressa. Tudo claro?

     - Estamos prontos. Vancouver, - disse Janet. - Certo. Execute, então.

     Ela preparou-se para baixar a alavanca, depois levantou a cabeça de repente alarmada.

     - A velocidade do ar! Baixou para 235. - Os olhos de Spencer voltaram-se rapidamente para o indicador de velocidade do ar. Depois, empurrou com desespero a coluna de controle para a frente.

     - Diga!- Gritou. - Diga em quanto está!

     A guinada do avião fez subir seus estômagos para a boca. Janet quase agachada em frente ao painel, cantava as velocidades.

     - 250, 260, 280, 300, 315, 325.. . Não pode trazê-lo de volta para 300?

     - Estou tentando, estou tentando. - Nivelou outra vez e manejou os controles até que o IVA tivesse voltado à leitura desejada. Passou a manga apressadamente sobre a testa, com medo de tirar a mão por muito tempo da coluna. - Lá está 300, não é?

     - É, assim está melhor.

     - Quase, hein? - Encostou-se de novo na cadeira. - Olhe, vamos descansar por um instante, depois disso. - Conseguiu esboçar um sorriso. - Você pode ver o tipo de piloto que sou. Devia saber que isso aconteceria.

     - Não, minha função era vigiar a velocidade do ar. - Respirou fundo para aliviar o coração que batia forte. - Acho que se está portando maravilhosamente, - disse ela. Sua voz tremeu ligeiramente.

     Spencer não deixou de perceber. Disse rapidamente com sinceridade exagerada.

     - Você não pode dizer que não a avisei. Vamos, então, Janet. Vamos indo.

     - Alô, George, - a voz de Treleaven crepitou nos fones. - Seus flaps já estão baixados? -

     - Íamos baixá-los agora, comandante, - disse Janet

     - Esperem. Esqueci de dizer-lhe que quando os flaps são baixados perde-se velocidade. Traga-o de volta para 260. Câmbio.

     - Bem, seu... - Exclamou Spencer. - Isso foi bem amável da parte dele. Interrompeu bem a tempo.

     - Lá embaixo deve estar, com certeza, emocionante, - disse Janet, que tinha uma idéia muito precisa da cena que se passava no aeroporto. - Obrigado, comandante, - disse ela, transmitindo. - Vamos começar agora. Câmbio. - A um aceno de Spencer empurrou a alavanca para baixo até o fim, enquanto Spencer vigiava com cuidado o indicador.

     - Certo. Agora volte para o segundo entalhe.

     - Com um cuidado infinito levou o ponteiro do IVA até parar firmemente em 260.

     - Diga-lhe, Janet.

     - Alô, Vancouver. Nossos flaps estão baixados 15 graus e a velocidade do ar é de 260.

     - 714. Você ainda está em vôo nivelado?

     Spencer assentiu para ela.

     - Diga-lhe, sim, bem, mais ou menos, de qualquer forma.

     - Alô, Vancouver. Mais ou menos.

     - Está bem, 714. Agora o passo seguinte é descer as rodas: Então você vai sentir como se comportará o avião quando estiver aterrando. Tente manter firme sua altitude, e a velocidade a 260. Quando estiver pronto, e certifique-se de que está pronto, desça o trem de aterragem e deixe a velocidade cair para 220. Provavelmente você terá de avançar o acelerador para manter a velocidade do ar, e também regular o nível. Compreendeu isso? Diga-me se tiver dúvida sobre qualquer coisa. Câmbio.

     - Pergunte a ele, - disse Spencer, - se há algo quanto ao controle das hélices e da mistura?

     À pergunta de Janet, Treleaven disse para o lado a Burdick:

     - Bem, pelo menos esse sujeito está pensando. Por enquanto, - disse ao microfone, - deixe-os em paz. Concentre-se apenas em manter firme essa velocidade do ar com as rodas e os flaps baixados. Mais tarde darei uma verificação completa da cabina de comando para aterragem. Câmbio.

     - Dê o entendido, - disse Spencer. - Estamos baixando as rodas agora. - Olhou com apreensão para a alavanca seletora ao lado da sua perna. Pareceu-lhe uma idéia muito melhor manter ambas as mãos na coluna. - Olhe, Janet, acho melhor você baixar a alavanca do trem e cantar a velocidade do ar quando as rodas descerem.

     Janet concordou. A suspensão em seu vôo para diante foi tão pronunciada que era como se tivesse pisado no freio, sacudindo-os nas cadeiras.

     - 240, 235, 220, 215... Está baixo demais.

     - Continue a cantar!

     - 215, 220, 220... Parado em 220.

     - Eu ainda aprendo a mexer nesse negócio, - disse Spencer ofegante. - É como dirigir o Queen Mary.

     A voz de Treleaven veio com um toque de ansiedade.

     - Tudo em ordem, George? Suas rodas devem estar embaixo agora.

     - Rodas embaixo, Vancouver.

     - Procure três luzes verdes que mostram se elas estão trancadas na posição. Há também um manômetro na extrema esquerda do painel central, e o ponteiro deve estar no setor verde. Verifique.

     - Estão acesas? - Perguntou Spencer. Janet olhou e fez que sim. - É melhor dizer-lhe, então.

     - Sim, Vancouver. Tudo está correto.

     - E diga que ele ainda se comporta como uma esponja molhada, apenas mais molhada.

     - Alô, Vancouver. O piloto diz que ele ainda se comporta como uma esponja, apenas mais molhada.

     - Não se preocupe com isso. Agora baixaremos todo o flap, está bem? E depois você terá a mesma sensação do avião aterrando. Você logo sentirá isso. Agora me acompanhe com atenção. Ponha todo o flap para baixo, traga sua velocidade do ar de volta para 205 km e nivele para manter-se firme. Ajuste o acelerador para manter a altitude. Depois darei instruções para manter a altura e velocidade do ar, enquanto você levanta o trem de aterragem e os flaps. Câmbio.

     - O senhor disse 205, comandante? - Perguntou Janet nervosamente.

     - 205 está correto, Janet. Siga-me exatamente e você não terá nada com que se preocupar. Entendeu bem, George?

     - Diga que sim. Estamos abaixando todo o flap agora.

     Mais uma vez a mão dela empurrou com força a alavanca do flap e a velocidade do ar começou a cair.

     - 220, 215, 215, 205, 205...

     A voz de Spencer estava tensa com o esforço de vontade que impunha a si mesmo.

     - Muito bem, Janet. Diga-lhe. Meu Deus, ele pesa uma tonelada.

     - Alô, Vancouver. Os flaps estão todos descidos e a velocidade do ar é de 205. O Sr. Spencer diz que ele está mais pesado do que nunca.

     - Muito bem, George. Ainda faremos de você um comandante. Agora levaremos você de volta para onde estava e depois faremos tudo de novo, com certas variações quanto às hélices, mistura, reguladores de tensão e tudo o mais. Está bem? Câmbio.

     - Outra vez! - Gemeu Spencer. - Não sei se consigo. Está bem, Janet.

     - Está bem, Vancouver. Estamos prontos.

     - Certo, 714. Usando a rotina inversa, ajuste os seus flaps para 15 graus e velocidade para 220 km. Você terá de desacelerar ligeiramente para manter essa velocidade. Execute.

     Baixando-se, Janet empunhou a alavanca do flap e deu-lhe um puxão. Não se mexeu. Ela inclinou-se para mais perto e tentou de novo.

     - O que é que há? - Perguntou Spencer.

     - Meio duro. Acho que não posso puxá-la desta vez.

     - Não devia estar. Dê-lhe um bom puxão firme.

     - Deve ser por minha culpa. Não consigo fazê-la se mexer.

     - Espere. Deixe eu tentar. - Tirou a mão da coluna e puxou a alavanca para cima sem esforço.- Vê, aí está. É preciso ter jeito. Agora se você a puser exatamente no segundo...

     - Cuidado!- gritou ela. - A velocidade do ar!

     Estava em 165 descendo para 140.

     Agarrando-se para não cair devido ao súbito ângulo agudo da cabina de vôo, Spencer sabia que estavam numa perda séria de velocidade, um começo de parafuso. Cabeça fria, ordenou a si mesmo selvagemente, pense. Se ele entrar em parafuso, estamos liquidados. Para que lado estamos caindo? É para a esquerda. Tente se lembrar do que lhe ensinaram na escola de aviação. Alavanca de comando para a frente e leme todo para o outro lado. Alavanca para a frente. Mantenha-a na frente. Estamos ganhando velocidade. Leme para o outro lado. Agora! Olhe para os instrumentos. Não podem estar certos. Posso sentir que estamos rodando! Não, confie neles. Você deve confiar neles. Apronte-se para endireitar. Isso. Vamos. Vamos, moça, vamos.

     - As montanhas!- Exclamou Janet. - Estou vendo o chão!

     Devagar para trás. Devagar para trás. Não tão depressa. Mantenha firme a velocidade do ar. Estamos saindo... estamos saindo! Funcionou! Funcionou! Estamos saindo!

     - 195, 205, 215... - Cantava Janet num tom estrangulado. - Está tudo escuro agora. Devemos estar no meio da cerração ou coisa parecida.

     - Suspenda as rodas!

     - As montanhas! Devemos...

     - Suspenda as rodas, eu disse!

     A porta da cabina de vôo abriu-se de sopetão. Ouviram-se sons de choro e de vozes com raiva.

     - Que é que eles estão fazendo? - Ouviu-se gritar uma mulher.

     - Algo está errado! Vou descobrir o que é!

     - Volte para a sua poltrona. - Esta era a voz de Baird.

     - Deixe-me passar!

     A silhueta de um homem encheu o vão da porta, olhando para a escuridão da cabina de vôo. Cambaleou para a frente, agarrando-se em qualquer coisa para manter-se de pé, e olhou incredulamente petrificado para trás da cabeça de Spencer e depois para baixo, para as formas prostradas de dois homens no chão. Por um instante sua boca moveu-se sem emitir som. Depois lançou-se para a porta aberta atrás, agarrou os umbrais de ambos os lados e inclinou-se através dela.

     Sua voz era um grito estridente.

     - Ele não é piloto! Vamos todos morrer! Vamos cair!

    

     04,20-04,35 horas

     Envoltas na névoa, as luzes de néon da entrada do edifício de recepção do Aeroporto de Vancouver cintilavam refletidas no pavimento molhado. Em geral tranqüilo a esta hora da noite, exceto pela chegada ou partida periódica de um ônibus do aeroporto, a larga curva de asfalto apresentava agora uma cena muito diferente. No retorno da estrada principal de acesso ao aeroporto, no lado mais importante do rio, um carro de patrulha da polícia estava estacionado, parcialmente atravessado na estrada, com a luz do. teto piscando num aviso constante. Os carros que haviam obtido permissão de entrar na Avenida do Aeroporto eram prontamente encaminhados por acenos de um patrulheiro para locais de estacionamento bem afastados da entrada. Alguns dos ocupantes permaneciam fora dos carros, por um momento, na noite úmida, falando em voz baixa e batendo com os pés no chão para se manterem aquecidos, de maneira a observar a chegada de tempos a tempos de carros de incêndio e ambulâncias à medida que paravam por alguns segundos para receber instruções quanto aos seus pontos de reunião. Um reluzente caminhão vermelho de reboque afastou-se recuando e, e no pequeno silêncio que imediatamente se seguiu, ouviu-se claramente o som do rádio de um carro.

     - Senhoras e senhores, aqui está um boletim tardio do Aeroporto de Vancouver. As autoridades aqui presentes acentuam que embora o vôo da Companhia Folha de Bordo esteja sendo conduzido por um piloto inexperiente, não há motivo para alarme ou pânico na cidade. Todas as precauções estão sendo tomadas para prevenir os residentes na área do aeroporto e, neste momento, está sendo enviado socorro de emergência para a Ilha do Mar. Fique nesta estação para mais notícias.

     Um Chevrolet salpicado de lama freou com violência defronte do edifício de recepção, fez a curva para o estacionamento, os pneus guinchando raivosamente no asfalto, e parou abruptamente. No lado esquerdo dos pára-brisas estava colado um rótulo vermelho, IMPRENSA. Um homem grande, cheio de corpo, com cabelos grisalhos e usando um capote aberto de soldado, desembarcou e bateu a porta. Caminhou rapidamente para a Recepção, acenou com a cabeça para um patrulheiro e correu para dentro. Esquivando-se a dois homens com avental branco de médico, olhou em volta à procura do balcão da Companhia Folha de Bordo e caminhou para ele rapidamente. Dois homens estavam lá discutindo com um membro uniformizado da Companhia e, à chegada do homem grande, um deles voltou-se, saudando-o com um sorriso rápido.

     - Quais são as novas, Terry? - Perguntou o homem grande.

     - Comuniquei ao escritório o que consegui saber, Sr. Jessup, - disse o outro homem que era muito mais moço. - Este é Ralph Jessup da Canadian International News, - acrescentou para o agente de passageiros.

     - Quem está cuidando do caso aqui? - Perguntou Jessup.

     - Acho que o Sr. Howard vai fazer agora uma declaração na sala de imprensa, - disse o agente de passageiros.

     - Vamos, - disse Jessup. Tomou o homem mais moço pelo braço e levou-o embora. - O escritório vai enviar uma equipe de fotógrafos? - Perguntou.

     - Vai, mas haverá uma cobertura completa feita por todos. Até os jornais cinematográficos são capazes de chegar a tempo.

     - Hum! Lembre ao escritório para dar cobertura à possível evacuação das casas lá perto da ponte. O mesmo homem pode ficar no limite do campo. Se subir na cerca poderá bater uma ou duas fotografias boas do desastre, e dar o fora mais depressa que os outros. O que há sobre esse sujeito que está guiando o avião?

     - Um tal de George Spencer, de Toronto. É tudo o que sabemos.

     - Bem, o escritório se comunicará com o nosso pessoal de Toronto quanto a isso. Agora pegue uma cabina de telefone público aqui na Recepção e não saia dela, aconteça o que acontecer. Mantenha o telefone ligado para o escritório.

     - Sim, Sr. Jessup, mas...

     - Eu sei, eu sei, - disse Jessup, melancolicamente, - mas a coisa é assim. Se houver uma obstrução nos telefones da sala de imprensa, vamos precisar dessa linha extra.

     Com a aba do capote balançando atrás, caminhou a passos largos através do salão, de cabeça baixa como um touro enraivecido, saiu da Recepção e dirigiu-se para a sala de imprensa. Já vários repórteres lá estavam reunidos, três deles falando ao mesmo tempo, outro batucando numa das várias máquinas de escrever na grande mesa central, e dois mais afastados usando duas das cabinas telefônicas que se alinhavam nos dois lados da sala apainelada. No chão estavam espalhados estojos de couro de equipamento fotográfico.

     - Bem, - disse Jessup sardonicamente, - que é que os detém rapazes?

     - Oba, Jess, - saudou um dos homens. - Onde está Howard? Você o viu?

     - Está descendo, me disseram. - Jessup sacudiu um cigarro para fora do maço. Bem, quem sabe o quê?

     - Acabamos de chegar, - disse Stephens do Monitor. - Fiz uma chamada para o escritório do controlador e levei uma espinafração.

     - É melhor vocês terem calma neste caso, - observou Jessup, acendendo o cigarro e cuspindo um fiapo de fumo. - É tarde demais para as edições matutinas e cedo demais para as vespertinas, a menos que se façam tiragens especiais no meio da manhã. É fácil perceber quem está trabalhando.Indicou os dois homens nos cubículos, um da Canadian Press e outro da United Press Agency.

     - Deixe disso, Jess, - disse Stephens. - Quem ouve vocês, das agências telegráficas, pode pensar...

     - Vamos parar com as brincadeiras, - interrompeu Abrahams do Post-Telegram. - É melhor começarmos a tomar alguma providência. Logo todos os outros estarão aqui e não nos poderemos mexer.

     Voltaram-se todos quando um homem bastante moço entrou; tendo na mão alguns pedaços de papel. Era Cliff Howard, altamente animado e enérgico, que, com cabelo cortado rente, óculos sem aros e gravatas inglesas de padrões discretos, era uma figura popular e conhecida no aeroporto. Não sorriu para os repórteres, embora muitos deles fossem seus amigos pessoais.

     - Obrigado por terem ficado onde estão, - disse-lhes.

     - Quase não ficamos, - replicou Stephens. Os dois homens das agências haviam terminado apressadamente suas ligações e se juntado aos outros.

     - Vamos, conte-nos tudo, Cliff, - disseram eles.

     Howard olhou para Jessup.

     - Vejo que veio direto da cama como eu, Jess, - observou, apontando com a cabeça para o pijama, embaixo do casaco de Jessup.

     - É verdade, - disse Jessup depressa. - Vamos, Cliff. Solte logo.

     Howard baixou os olhos para os papéis em sua mão, depois voltou-os para os homens reunidos a sua volta. Havia uma película de suor em sua testa.

     - Muito bem, - disse ele. - Cá está. Um Empress da Folha de Bordo foi fretado em Toronto para trazer torcedores para o jogo de hoje. Na etapa de Winnipeg para cá, tanto o piloto como o co-piloto adoeçam. Um passageiro assumiu os controles. Ele não teve experiência anterior neste tipo de avião. Estamos fazendo-o descer por instruções, o Comandante Paul Treleaven, piloto-chefe da Trans-Canadá, está cuidando disso, mas as autoridades acharam aconselhável tomar como medidas de precaução a evacuação da área e o recurso a auxílio extraordinário no caso de acidente.

     Houve uma pausa.

     - Bem? - Rosnou um dos repórteres.

     - Acho que não há muito mais que possa dizer-lhes, - disse Howard desculpando-se. - Estamos fazendo tudo o que podemos e certamente gostaríamos muito se...

     - Pelo amor de Deus, Cliff, que notícias você está nos dando? - Protestou Stephens. - Como foi que ambos os pilotos ficaram doentes?

     Howard deu de ombros desconfortavelmente.

     - Não sabemos ainda com certeza. Pode ser alguma espécie de ataque do estômago. Temos médicos de prontidão...

     - Agora ouça, - interrompeu Jessup energicamente. - Isto não é hora de bancar o inocente, Cliff. Já houve furos demais nessa história para afundar um navio. Tudo que você acabou de dizer, nossos escritórios já sabiam antes de chegarmos aqui. Vamos começar de novo. Qual é a verdade sobre o boato de envenenamento alimentar?

     - Quem é o sujeito que está pilotando o avião? - Acrescentou Abrahams.

     Howard respirou profundamente. Sorriu e fez um gesto dramático de atirar as anotações no chão.

     - Olhem, rapazes, - disse expansivamente, - vou pôr os fatos em ordem para vocês, vocês sabem que nunca escondi nada. Mas se eu esticar o pescoço sei que vocês vão se aproveitar de mim. Isto é justo, não é? Não queremos a coisa vista fora de perspectiva. O que está acontecendo esta noite é uma grande emergência, porque fingir que não é? Mas tudo que é humanamente possível está sendo feito para reduzir os riscos. Toda a operação reflete o maior crédito para a organização do aeroporto. Francamente, nunca vi nada...

     - A história, Howard.

     - Claro, claro. Mas quero que compreendam que nada que digo pode ser tomado como uma declaração oficial, quer em benefício do aeroporto quer da Companhia Folha de Bordo. A Companhia está como é de seu dever dedicando toda sua atenção em fazer descer o avião com segurança, e eu estou fazendo a minha parte ajudando vocês, rapazes. - Um telefone retiniu, mas ninguém se mexeu em sua direção. - Muito bem, então, - disse Howard. - Tanto quanto sei, houve um irrompimento de doença no avião que pode muito possivelmente ser atribuído a envenenamento alimentar. É claro que estamos tomando...

     - Você quer dizer, - interferiu alguém, - que a comida a bordo do avião estava contaminada?

     - Ninguém pode responder a essa pergunta ainda. Tudo que posso dizer-lhes é isto, e quero que vocês compreendam bem. A cerração atrasou a partida do Empress de Toronto e ele chegou tarde a Winnipeg, tão tarde que os fornecedores habituais já tinham ido embora. Por isso, a comida foi obtida de outra firma. Uma parte dessa comida era peixe, e parte desse peixe, senhores, podia, repito podia, estar contaminada. A rotina usual está sendo levada a efeito pelas autoridades sanitárias de Winnipeg.

     - E sobre o sujeito que assumiu o comando? - Repetiu Abrahams.

     - Por favor, compreenda, - continuou Howard, - a Companhia Folha de Bordo tem os padrões mais rigorosos de higiene. Um acidente como este é um risco de um em um milhão que pode acontecer apesar das mais rígidas...

     - O sujeito no volante! Quem é ele?

     - Uma de cada vez, - disse Howard espertamente, como se protegendo de uma barragem de perguntas. - A tripulação do avião é uma das equipes mais experientes da Folha de Bordo, como sabem, e isto é dizer muito. O Comandante Lee Dunning, o Primeiro Oficial Peter Levinson e a Comissária Janet Benson, tenho todos os detalhes aqui comigo...

     - Deixe isso para lá, - disse Jessup. - Cuidaremos disso mais tarde. - Dois novos repórteres entraram apressadamente na sala e se imiscuíram no grupo. - Qual é a história do passageiro que está guiando o avião?

     - A informação que tenho é de que o primeiro oficial, depois o comandante adoeceram. Felizmente havia um passageiro a bordo que havia pilotado antes e ele assumiu o comando com o desembaraço mais notável. Chama-se George Spencer, de Winnipeg, e suponho que embarcou no avião lá.

     - Quando é que ele voou antes? - Insistiu Abrahams, - quer dizer que é um ex-piloto de linha aérea?

     - Bem, não, - admitiu Howard. - Acredito que tenha voado extensivamente na guerra em aviões menores...

     - Na guerra? Isso foi há anos atrás.

     - Que tipo de avião menor? - Insistiu Jessup.

     - Spitfires, Mustangs, uma porção de...

     - Espere. Esses eram caças. Este homem é piloto de caça do tempo da guerra?

     - Voar é voar, apesar de tudo, - insistiu Howard ansiosamente. - Ele está recebendo instruções pelo rádio do Comandante Paul Treleaven, piloto-chefe da Trans-Canadá, que o fará descer.

     - Mas que diabo, - disse Jessup quase sem acreditar, - o Empress é um troço de quatro motores. Qual é a sua potência?

     - Oh, cerca de 8.000, diria.

     - E você quer dizer que um ex-piloto do tempo da guerra que estava acostumado com caças monomotores pode guiar, depois de todos esses anos, um avião de passageiros multimotor? - Houve uma correria quando dois ou três dos repórteres irromperam para as cabinas telefônicas.

     - Naturalmente há algum risco, - concedeu Howard, - o que fez com que se tomassem as precauções de desimpedir a vizinhança. A situação é bem séria, admito honestamente, mas não há razão para...

     - Algum risco! - Ecoou Jessup. - Eu mesmo já voei um pouco, e posso imaginar o que esse sujeito está passando. Vamos, conte-nos mais sobre ele.

     Howard espalmou as mãos.

     - Não sei mais nada sobre ele, além disso!

     - O quê! - Exclamou Stephens. - Isso é tudo que você sabe sobre alguém que está tentando trazer uma lotação de... quantas pessoas há a bordo?

     - Cinqüenta e nove, creio, incluindo a tripulação. Consegui uma cópia da lista de passageiros para vocês, se apenas vocês...

     - Cliff, - disse Jessup severamente, - se você furar neste...

     - Já te disse, Jess, que isso é tudo que sei sobre ele. Nós todos gostaríamos de saber mais, mas não sabemos. Ele parece estar indo bem, pelo último contato que tivemos.

     - Quanto tempo temos antes do desastre? - Apertou com ele Abrahams.

     Howard voltou-se de sopetão para ele.

     - Não presuma isso, - retorquiu. - Ele é esperado em cerca de uma hora, talvez menos.

     - Vocês o estão trazendo no facho?

     - Não tenho certeza, mas acho que o Comandante Treleaven pretende fazê-lo descer por instruções. Tudo está sob completo controle. As rotas e o campo foram desimpedidos. O Corpo de Bombeiros da cidade está mandando socorro extra, no caso de ser necessário.

     - Suponha que o avião passe o campo e caia na água?

     - Isto não é provável, mas a polícia alertou todas as lanchas disponíveis para ficarem de sobreaviso. Nunca soube de precauções tão completas.

     - Puxa, que história! - Gritou Abrahams e mergulhou na cabina mais próxima, mantendo a porta aberta enquanto discava de modo a poder continuar a ouvir.

     - Cliff, - disse Jessup, com alguma simpatia pelo homem de relações públicas, - quanto tempo vai durar a gasolina neste avião?

     - Não posso dizer, mas deve haver uma margem de segurança, - respondeu Howard, afrouxando a gravata. Parecia longe de estar convencido.

     Jessup olhou para ele por um segundo ou dois com os olhos apertados. Então a coisa ocorreu-lhe.

     - Espere um minuto, - deixou escapar. - Se há envenenamento alimentar a bordo, não podem ser só os pilotos que foram atingidos?

     - Vou precisar de toda ajuda que possa mandar, - dizia Abrahams ao telefone. Irei mandando as notícias à medida que as for conseguindo. Quando você tiver o suficiente para encerrar a primeira tiragem, é melhor redigir a coisa para as duas hipóteses, para o desastre, e para a aterragem milagrosa, e espere. Está bem? Transfira a ligação para Bert. Bert, está pronto? Comece. Esta madrugada o Aeroporto de Vancouver testemunhou o pior...

     - Olhe, Jess, - disse Howard com urgência, - isto é dinamite. Você pode achar o que quiser, mas pelo amor de Deus seja justo com o pessoal lá em cima. Eles estão trabalhando como loucos. Não há nada que possa ajudar as pessoas naquele avião que não esteja sendo feito.

     - Você conhece nós todos aqui, Cliff. Nós não o trairemos. Quais são as condições daqueles passageiros?

     - Alguns deles estão doentes, mas há um médico a bordo que está fazendo o que pode. Temos ainda assistência médica disponível pelo rádio, se necessário. A comissária está bem e ajudando Spencer na transmissão das mensagens. Agora você sabe tudo.

     - Envenenamento alimentar é uma coisa bastante séria, - continuou Jessup implacavelmente. - Quero dizer, o fator tempo é tudo.

     - É verdade.

     - Se aquelas pessoas não descerem bem depressa, podem até morrer?

     - Ê isso mesmo, - concordou Howard de lábios cerrados.

     - Mas, mas isso é a maior história do mundo! Qual é a situação lá em cima agora?

     - Bem, há cerca de dez, quinze minutos atrás...

     - Isto não serve. - Berrou Jessup. - A situação pode mudar completamente em alguns minutos numa coisa destas. Veja a situação agora, Cliff. Qual é o controlador de serviço esta noite? Ligue para ele, ou eu ligarei, se você preferir.

     - Não, ainda não, Jess, por favor. Estou-lhe dizendo que ele... - Jessup agarrou o homem de relações públicas pelo ombro. - Você já foi jornalista, Cliff. Qualquer que seja o resultado esta será a maior história de aviação durante arros, e você sabe disso. Dentro de uma hora você terá um tigre em suas costas, este lugar ficará duro de tantos repórteres, cinegrafistas, TV, tudo. Você terá de nos ajudar agora, a menos que nos queira invadindo tudo no aeroporto. Veja para nós a situação atual, exatamente, e poderá tomar fôlego por alguns minutos enquanto passamos adiante nossa história.

     - Está bem, está bem. Fique descansado, está bem? - Howard apanhou um telefone interno de cima da mesa. - Aqui é Howard. Sala de Controle, por favor. - Esticou o lábio inferior para Jessup. - Vocês vão me crucificar. Alô, Controle? Burdick está aí? Chame-o, é urgente. Alô, Harry? Cliff. A imprensa está crescendo, Harry. Não posso segurá-los muito tempo mais. Querem a situação completa atual. Eles têm que se sujeitar a prazos fatais.

     - É claro! - Bufou Burdick sarcasticamente na sala de controle. - Certamente! Vamos ver se conseguiremos que o avião se esborrache antes dos prazos fatais deles. Tudo para os jornais!

     - Calma, Harry, - instou Howard. - Esses sujeitos estão cumprindo suas funções.

     Burdick baixou o telefone e disse ao controlador, que estava de pé com Treleaven diante do painel de rádio:

     - Sr. Grimsell. As coisas estão fervendo um pouco para Cliff Howard. Não quero sair daqui. Acha que Stan pode sair por alguns minutos para falar à imprensa?

     - Acho que sim, - respondeu o controlador. Olhou para o assistente. - O que é que há? É melhor mantermos aqueles rapazes sob controle. Você pode conseguir isso depressa.

     - Perfeitamente. Assim farei.

     - Não adianta querer esconder nada. - Aconselhou Burdick. - Diga-lhes tudo até agora, excluindo isto. - E apontou com a cabeça para o painel de rádio.

     - Compreendo. Deixe comigo. - O assistente deixou a sala.

     - O assistente do controlador está descendo, Cliff, - disse Burdick e desligou. Debruçou seu corpanzil sobre os dois homens no painel do rádio esfregando o rosto com um lenço amarrotado. - Estão conseguindo alguma coisa? - Perguntou em voz sem entonação.

     Treleaven sacudiu a cabeça. Não se voltou... Seu rosto estava acinzentado de cansaço.

     - Não, - disse insensivelmente. - Sumiram.

     O controlador fez sinal ao operador da mesa. Comunique-se pelo teletipo para Calgary e Seattle com prioridade.

     - Veja se eles ainda estão recebendo o 714.

     - 714, 714. Controle de Vancouver para 714. Fale, 714. - Dizia o rádio-operador firmemente no microfone.

     Treleaven encostou-se no consolo do rádio. O cachimbo que tinha na mão estava apagado.

     - Bem, - disse desanimado, - isto pode ser o fim da linha.

     - 714, 714. Está me ouvindo? Fale, por favor.

     - Não posso agüentar muito mais, - disse Burdick. - Venha cá, Johnnie, - disse a um dos empregados, - traga mais café, pelo amor que tem a Mike. Bem preto e forte.

     - Espere! - Exclamou o rádio-operador.

     - Ouviu alguma coisa? - Perguntou o controlador com ansiedade.

     - Não sei... pensei por um momento... - Inclinando-se para mais perto do painel, com os fones nos ouvidos, o operador fez uma regulagem minuciosa nos controles de sintonia de precisão. - Alô, 714, 714, aqui é Vancouver. - Disse por sobre o ombro. - Estou ouvindo alguma coisa... pode ser ele. Não tenho certeza. Se for, estão fora de freqüência.

     - Teremos de arriscar, - disse Treleaven. - Diga-lhes para mudarem a freqüência.

     - Vôo 714, - chamou o operador. - Aqui é Vancouver. Aqui é Vancouver. Mude sua freqüência para 128,3. Ouviu? Freqüência 128,3.

     Treleaven virou-se para o controlador.

     - É melhor pedir à Força Aérea outra verificação de radar, - sugeriu. - Eles devem aparecer logo em nossa tela.

     - 714. Mude a freqüência para 128,3 e fale, - repetia o operador.

     Burdick encostou-se pesadamente num canto da mesa central. Sua mão esquerda deixou uma marca molhada no tampo.

     - Isto não pode acontecer, não pode, - protestou em voz entrecortada para toda sala ouvir, contemplando o painel de rádio. - Se os perdermos agora, eles estão fritos, até o último deles.

    

     04,35-05,05 horas

     Como um homem num pesadelo, possuído pela fúria do desespero, os dentes cerrados e o rosto riscado pelo suor, Spencer lutou para recuperar o controle do avião, uma das mãos na alavanca do acelerador, a outra agarrada com força no volante. Dentro dele, variando estranhamente com o forte senso de irrealismo, sentiu raiva e desgosto causticarrtes consigo mesmo. Em algum ponto e rapidamente, havia perdido não apenas a altitude mas praticamente toda a velocidade do ar, também. Seu cérebro recusava-se a relembrar os acontecimentos dos últimos dois minutos. Algo acontecera que o distraíra, isso era tudo de que se podia lembrar. Ou isso era uma desculpa também? Não poderia ter perdido tanta altura em apenas alguns segundos; deviam estar descendo constantemente antes disso. No entanto, seguramente não fazia tanto tempo desde que havia verificado o indicador de subida e descida, ou essa não era a função dele? Poderia ser a gasolina... ?

     Sentiu um desejo violento de gritar, quase incontrolável. Gritar como uma criança. Largar os controles e correr para longe deles, dos ponteiros ironicamente tremulantes e da zombeteira bateria de instrumentos, e abandonar tudo. Correr de volta para a cabina de passageiros, quente e iluminada confortavelmente, gritando:

     - Não consigo. Eu disse que não conseguiria e você me ouviu. Não se devia pedir isso a ninguém.

     - Estamos ganhando altura, - veio a voz de Janet, incrivelmente calma agora, pareceu-lhe. Lembrou-se dela com um choque e neste momento a gritaria em sua mente transformou-se em gritos de uma mulher no compartimento de passageiros atrás dele, gritos selvagens, maníacos.

     Ouviu um homem gritando:

     - Ele não é o piloto, estou dizendo! Eles estão estirados lá, ambos. Estamos perdidos!

     - Cale a boca e sente-se! - Disse claramente Baird irritado.

     - Você não pode me dar ordens...

     - Eu disse volte! Sente-se!

     - Está bem, Doutor, - ouviu-se o tom fanhoso de Otpot, o homem do Lancastre, - deixe-o comigo. Agora, seu...

     Spencer fechou os olhos por um instante num esforço para se livrar da dança dos mostradores iluminados. Estava, compreendeu amargamente, desesperadamente fora de forma. Um homem pode passar a vida correndo deste lugar para aquele, sempre na corrida e dizendo a si mesmo que nunca poderia manter o ritmo se não estivesse absolutamente em forma. No entanto, na primeira vez que enfrenta uma crise real, na primeira vez que faz exigências reais ao seu corpo, cai de cara no chão. Esta era a coisa mais selvagem de todas: saber que não pode exigir mais de seu corpo, como um carro velho a ponto de descer de costas pela colina abaixo.

     - Desculpe, - disse Janet.

     Mantendo ainda a pressão na coluna, lançou um olhar de completa surpresa para ela.

     - O quê? - Disse estupidamente.

     A moça virou-se a meio na cadeira em sua direção . À luz esverdeada do painel de instrumentos, seu rosto pálido parecia quase translúcido.

     - Desculpe por ter falhado daquela maneira, - disse simplesmente. - Já está bastante difícil para você. Eu, eu não pude evitar.

     - Não sei do que está falando, - disse-lhe asperamente. Não sabia o que dizer. Podia ouvir os passageiros, soluçando alto agora. Sentiu-se bastante envergonhado.

     - Estou tentanto levantar o ônibus o mais depressa possível, - disse. - Não me atrevo a mais do que uma subida suave ou perderemos altura outra vez.

     A voz de Baird chamou da porta, mais alta que o estrondo crescente dos motores:

     - O que está acontecendo aí dentro? Estão bem?

     Spencer respondeu:

     - Desculpe, Doutor. Apenas não pude segurá-lo. Acho que está bem agora.

     - Tente manter-se nivelado pelo menos, - reclamou Baird. - Há pessoas muito, muito doentes mesmo aqui atrás.

     - Foi culpa minha, - disse Janet. Viu Baird inclinar-se exausto e segurar-se no umbral da porta para firmar-se.

     - Não, não, - protestou Spencer. - Se não fosse ela, teríamos nos espatifado. Só que não consigo guiar este troço, isto é tudo.

     - Bobagem, - disse Baird laconicamente. Ouviram um homem gritar: - Ligue o rádio! - E a voz do médico alteou-se para dirigir-se aos passageiros. - Agora ouçam-me, todos vocês. O pânico é a doença mais infecciosa de todas, e a mais mortal também. - Depois a porta bateu fechando-se, cortando o som de sua voz.

     - Essa é uma boa idéia, - disse Janet calmamente. - Devia estar contando isso ao Comandante Treleaven.

     - É verdade, - concordou Spencer. - Diga-lhe o que aconteceu e que estou ganhando altura.

     Janet apertou o botão do microfone para transmitir e chamou Vancouver. Pela primeira vez não se ouviu o entendido imediato em resposta. Chamou de novo. Não aconteceu nada.

     Spencer sentiu a punhalada familiar do medo. Fez força para controlá-lo.

     - Algo errado? - Perguntou.Tem certeza de que está no ar?

     - Tenho, acho que sim.

     - Sopre no microfone. Se estiver ligado você ouvirá o sopro.

     Ela assim fez.

     - Sim, estou ouvindo perfeitamente. Alô, Vancouver. Alô, Vancouver. Aqui é o 714. Estão-me ouvindo? Câmbio.

     Silêncio.

     - Alô, Vancouver. Aqui é o 714. Por favor respondam. Câmbio.

     Silêncio ainda.

     - Deixe eu experimentar, - disse Spencer. Tirou a mão direita do acelerador e apertou o botão do seu microfone. - Alô, Vancouver. Alô, Vancouver. Aqui é Spencer, 714. Emergência, emergência. Fale, por favor.

     O silêncio pareceu tão sólido e tangivel como uma parede. Era como se eles fossem as únicas pessoas no mundo.

     - Estou vendo uma marcação no mostrador da transmissão. - Disse Spencer. - Tenho certeza de que estamos transmitindo bem. - Tentou outra vez, sem resultado. - Chamando todas as estações. Mayday, mayday, mayday. Aqui é o vôo 714, em sérias dificuldades. Fale qualquer um. Câmbio. - O éter parecia completamente morto. - Isso liquida o assunto. Devemos estar fora da freqüência.

     - Como pode ter acontecido isso?

     - Não me pergunte. Tudo pode acontecer, da maneira que estamos agora. Você terá de experimentar todo o mostrador, Janet.

     - Isso não é arriscado, mudar a nossa freqüência?

     - Acho que já mudamos. Tudo que sei é que sem rádio é melhor eu mergulhar o nariz dele agora e acabar com tudo. Não sei onde estamos, e mesmo que soubesse com certeza não conseguiria aterrar inteiro.

     Janet esgueirou-se para fora da cadeira, segurando o fio dos fones atrás dela, e alcançou o painel do rádio, em cima. Virou vagarosamente o seletor de canais. Ouviu-se uma sucessão de crepitações e ruídos.

     - Já virei tudo, - disse ela.

     - Continue virando, - disse-lhe Spencer. - Você tem de pegar alguma coisa. Se for preciso, chamaremos em um canal de cada vez. - Ouviu-se uma voz súbita e distante. - Espere, o que é isso? - Janet voltou para trás apressadamente. - Aumente o volume.

     - ... para 128,3, - disse a voz com surpreendente proximidade. - Controle de Vancouver para o Vôo 714. Mude para a freqüência 128,3. Responda, por favor. Câmbio.

     - Fique aí, - disse Spencer à moça. - Esta é a sintonia? Agradeça à nossa boa estrela por isso. É melhor responder, depressa.

     Janet subiu de novo para sua cadeira e chamou rapidamente:

     - Alô, Vancouver, 714 respondendo. Recebendo alto e claro. Câmbio.

     Sem pausa perceptível Vancouver voltou, a voz do despachante carregada de ansiedade e alívio.

     - 714. Aqui é Vancouver. Perdemos vocês. Que aconteceu? Câmbio.

     - Vancouver, como estamos satisfeitos em ouvi-los! - Disse Janet, pondo a mão na testa.- Tivemos algumas dificuldades. O avião estolou e o rádio desligou-se. Mas está tudo em ordem agora, exceto para os passageiros, eles não estão suportando muito bem. Estamos subindo outra vez. Câmbio.

     Desta vez era Treleaven falando de novo, da mesma maneira comedida e confiante de antes, mas claramente com imenso alívio.

     - Alô, Janet. Estou satisfeito em saber que você teve o bom senso de compreender que estava fora da freqüência. George, eu lhe avisei do perigo de estolar. Você tem que controlar a velocidade do ar o tempo todo. Há uma coisa boa, é se você estolou e recuperou, obviamente não perdeu a sensibilidade como piloto.

     - Ouviu isso? - Perguntou Spencer a Janet sem acreditar. Trocaram nervosamente sorrisos tensos.

     Treleaven continuava:

     - Vocês provavelmente tiveram um pouco de medo, de forma que descansaremos por um ou dois minutos. Enquanto você está ganhando mais altura quero que faça para mim algumas leituras no painel de instrumentos. Começaremos pelos indicadores dos tanques de gasolina...

     Enquanto o comandante recitava as informações que desejava, abriu-se a porta da cabina de passageiros e Baird olhou para dentro outra vez, pronto para chamar as duas figuras na frente. Observou sua concentração no painel de instrumentos e conteve-se. Depois entrou, fechando a porta atrás de si, e caiu sobre um dos joelhos ao lado das formas do piloto e do primeiro oficial, usando seu oftalmoscópio como lanterna para examinar seus rostos. Dun havia rolado parcialmente para fora dos cobertores e jazia com os joelhos para cima, gemendo molemente. Pete parecia estar inconsciente.

     O médico arrumou de novo os cobertores, enfiando-os por baixo dos corpos, bem apertado. Enxugou os rostos dos homens com uma toalha de mão molhada enfiada no bolso e continuou agachado pensando por alguns segundos. Depois levantou-se, £ir-mando-se contra a inclinação do chão. Janet estava repetindo números no microfone. Sem uma palavra, o médico saiu, fechando cuidadosamente a porta.

     A cabina fora parecia mais uma vasta ambulância cheia de feridos do que a cabina de um avião de passageiros. A intervalos ao longo da cabina apinhada, as poltronas reclinadas completamente, os passageiros doentes jaziam envolvidos em mantas. Um ou dois estavam inertes, apenas respirando. Outros se contorciam em dores, enquanto amigos ou parentes cuidavam deles receosos ou substituíam compressas molhadas em suas testas.

     Inclinando-se para a frente, para recitar com mais eficiência seu sermão para o homem que havia recentemente empurrado de volta para a sua poltrona, Otpot dizia:

     - Eu não te culpo, viu. Acontece que é melhor soltar a pressão às vezes. Mas não adianta começar a gritar diante dos outros que estão mal, especialmente as senhoras. O nosso médico aqui é um verdadeiro campeão, bem como os dois lá na frente guiando. O que quer que haja, temos que confiar neles, viu, se quisermos realmente aterrar.

     Temporariamente subjugado, o passageiro, que tinha duas vezes o tamanho de Otpot, contemplou petrificado o seu próprio reflexo na janela da cabina, ao lado de sua poltrona. O empertigado inglesinho aproximou-se do médico, que bateu em seu braço em agradecimento.

     - O senhor é positivamente um mágico, não é? - Disse Baird.

     - Estou com mais medo do que ele, - assegurou Otpot com veemência, - e isto é um fato. Puxa, se o senhor não estivesse conosco, Doutor... - Deu de ombros expressivamente. - Como acha que vão as coisas agora? - Perguntou.

     - Não sei, - replicou Baird. Seu rosto estava sombrio. - Eles tiveram uma pequena dificuldade lá na frente. Não é de surpreender. Acho que Spencer está sob uma tensão terrível. Está assumindo mais responsabilidade que qualquer de nós.

     - Quanto falta ainda para chegarmos?

     - Não tenho idéia. Perdi toda a noção de tempo. Mas se estivermos no rumo não pode faltar muito agora. Parece-me que estou há dias aqui.

     Otpot perguntou a ele tão calmamente quanto pôde:

     - Que acha realmente, Doutor? Temos alguma probabilidade?

     Baird ignorou a pergunta com cansada irritação. Por que perguntar a mim? Há sempre uma probabilidade, suponho. Mas manter um avião no ar e fazê-lo descer sem espatifá-lo num milhão de pedaços, com todos os fatores que isso envolve, são duas coisas bastante diferentes. Acho que até aí é óbvio mesmo para mim. De outra forma, não vai fazer muita diferença para alguns sujeitos aqui, dentro em pouco.

     Agachou-se para olhar a Sra. Childer, tomando o pulso dela por baixo das cobertas e notando seu rosto murcho e imóvel, a pele seca e a respiração rápida e superficial. Seu marido insistiu:

     - Doutor, não há nada que possamos fazer por ela?

     Baird olhou para os olhos fundos e fechados da mulher. Disse devagar:

     - Sr. Childer, o senhor tem direito de saber a verdade. O senhor é um homem sensato, portanto falarei sem rodeios. Estamos voando a toda velocidade possível, mas na melhor hipótese o estado dela é altamente crítico. - A boca de Childer mexeu-se sem emitir uma palavra. - É melhor o senhor compreender isto, - continuou Baird deliberadamente. - Fiz o que pude por ela, e continuarei a fazer, mas isso é pateticamente pouco. Mais cedo, usando morfina, seria capaz de aliviar a dor de sua mulher. Agora, se isso o consola, a natureza cuidou disso para nós.

     Childer reencontrou a voz.

     - Não quero que o senhor diga isso, - protestou ele. - O que quer que aconteça, sou-lhe grato, Doutor.

     - É claro que é, - interrompeu Otpot calorosamente. - Nós todos somos. Ninguém poderia ter feito mais que o senhor, Doutor. Uma maravilha absoluta, isso é que é.

     Baird sorriu debilmente, a mão na testa da mulher.

     - Palavras amáveis não alteram o caso, - disse cruelmente. - O senhor é um homem de coragem, Sr. Childer, e eu o respeito. Mas não se iluda. - O momento da verdade, pensou amargamente; com que então, cá está ele. Sabia que chegaria esta noite, e sabia também, bem no fundo, qual seria a resposta. Este é o gosto salgado da verdade real. Nada de romantismos heróicos agora. Nada de projeções coloridas e clorofiladas do que você pensa que é, ou do que você gosta que os outros pensem de você. Esta é a verdade. Dentro de mais uma hora estaremos todos provavelmente mortos. Pelo menos irei exposto pelo que sou. Um fracasso podre e malcheiroso. Quando a hora chegou, ele não estava à altura. O obituário perfeito.

     - Estou-lhe dizendo, - dizia Childer com emoção, - se sairmos desta, quero que todos saibam o que lhe devemos.

     Baird ordenou os pensamentos.

     - Que é isso? - Grunhiu. - Daria muito para ter duas ou três soluções salinas a bordo. - Levantou-se. - Faça como até agora, Sr. Childer. Certifique-se de que ela esteja realmente aquecida. Mantenha seus lábios úmidos. Se conseguir fazê-la beber um pouco de água de vez em quando, tanto melhor. Lembre-se de que ela perdeu uma quantidade muito grande de líquidos do corpo.

    

     Nesse instante, na sala de controle em Vancouver, Harry Burdick estava processando a substituição de um pouco do fluido do seu corpo com outro copo de papelão com café. Além do microfone seguro em sua mão, Treleaven agora estava com um jogo de fones e microfones presos à cabeça e perguntava:

     - Radar. Está conseguindo alguma coisa?

     Em outra parte do edifício, o operador-chefe de radar, sentado com um assistente diante de um esquadrinhador de azimute de longo alcance, respondeu num tom calmamente coloquial:

     - Nada ainda.

     - Não posso compreender isso, - disse Treleaven ao controlador. - Eles deviam estar a nosso alcance agora.

     Burdick adiantou:

     - Não se esqueça de que ele perdeu velocidade naquela última manobra.

     - Sim, é verdade, - concordou Treleaven. No microfone à cabeça disse: - Radar, avise-me logo que conseguir alguma coisa. - Ao controlador: - Não me atrevo a fazê-lo descer através das nuvens sem saber onde está. Peça à Força Aérea outra verificação, sim, Sr. Grimsell? - Acenou com a cabeça para o rádio-operador. - Ponha-me no ar. Alô, 714. Agora, ouça com cuidado, George. Vamos fazer aquele exercício outra vez, mas antes de começarmos quero explicar algumas coisas que você pode ter esquecido ou que se aplicam apenas a aviões grandes. Está me ouvindo? Câmbio.

     Janet respondeu:

     - Adiante, Vancouver. Estamos ouvindo com atenção. Câmbio.

     - Certo, 714. Agora antes de você poder aterrar deve fazer certas verificações e regulagens. Elas completam o exercício de aterragem que você acabou de fazer. Direi como e quando fazê-las, mais tarde. Agora quero apenas enumerá-las para prepará-lo. Em primeiro lugar, a bomba do injetor hidráulico deve ser ligada. Depois a pressão dos freios deve marcar cerca de 25 a 28 quilos por centímetro quadrado. Você talvez se lembre de algo sobre isso do seu tempo de aviões de caça, mas um curso para avivar a memória não faz mal a ninguém. Em seguida, após as rodas estarem baixadas, você ligará as bombas dos injetores de gasolina e verifique se a alimentação de gasolina é suficiente. Por último, a mistura deve ser melhorada e enriquecida, e as hélices reguladas. Entendeu tudo? Faremos tudo passo a passo à medida que você venha chegando de forma que Janet possa mexer nos interruptores. Agora vou dizer-lhe onde cada um deles está. Lá vamos...

     Janet e Spencer identificaram cada controle à medida que recebiam as instruções.

     - Diga-lhe que já os localizamos, Janet.

     - Alô, Vancouver. Estamos em ordem quanto a isso.

     - Certo, 714. Você não tem dúvida quanto à posição de cada um desses controles, Janet? Tem certeza? Câmbio.

     - Tenho, Vancouver. Já os localizei. Câmbio.

     - 714. Verifique outra vez se estão em vôo nivelado. Câmbio.

     - Alô, Vancouver. Estamos voando nivelados agora e sobre as nuvens.

     - Certo, 714. Agora, George. Vamos pôr 15 graus de flap novamente, velocidade 260, e seguiremos a rotina do arriamento das rodas. Vigie a velocidade do ar como um falcão desta vez. Se estiver pronto, vamos...

     Inflexívelmente Spencer começou a rotina, seguindo cada instrução com concentração completa enquanto Janet cantava ansiosamente a velocidade do ar e operava as alavancas do flap e do trem de aterragem. Uma vez mais sentiram o forte sacolejão quando a velocidade caiu de repente. Os primeiros sinais da madrugada bruxuleavam para leste.

     Na sala de controle, Treleaven aproveitou a oportunidade para beber às pressas um pouco de café frio. Aceitou um cigarro de Burdick e expirou a fumaça com ruído. Parecia fatigado, com a barba apontando no queixo azulado.

     - Que acha da situação agora? - Perguntou o gerente da companhia.

     - Tão boa quanto se pode esperar, - disse o comandante, - mas o tempo que nos resta está encurtando perigosamente. Ele devia fazer pelo menos umas doze vezes só esse exercício de flap e rodas. Com sorte conseguiremos que faça cerca de três antes que chegue sobre nos, isto é, se estiver no curso.

     - Você vai fazer com ele exercícios de tomada de campo? - Perguntou o controlador.

     - Devia. Sem duas ou três pelo menos não daria um níquel furado por suas probabilidades, não com a experiência que tem. Verei como se sai. De outra forma... - Treleaven hesitou.

     Burdick jogou o cigarro no chão e pisou nele.

     - De outra forma o quê...? - Perguntou.

     Treleaven arrematou para eles.

     - Bem, é melhor encararmos os fatos, - disse. - Aquele homem lá em cima está amedrontado a ponto de perder a cabeça, e com bons motivos. Se não controlar os nervos, terão mais probabilidades de salvar-se caindo lá fora no oceano.

     - Mas e o impacto? - Exclamou Burdick. - E os doentes, e o avião? Será uma perda total.

     - Será um risco calculado, - disse Treleaven gelidamente, olhando o rotundo gerente diretamente nos olhos. - Se nosso amigo preferir jogar-se no campo seu avião será riscado do ativo de qualquer forma.

     - Harry não quis dizer isso, - interrompeu o controlador apressadamente.

     - Que diabo, não, acho que não, - disse Burdick com desconforto.

     - Com o perigo adicional, - continuou Treleaven, - de que se se espatifar aqui, o incêndio será quase certo e teremos sorte se salvarmos alguém. Ele pode até carregar consigo algumas instalações de terra. Enquanto que, se descer no oceano, quebrará o avião, é claro, mas teremos uma probabilidade de salvar alguns passageiros exceto os mais doentes. Com esta bruma ligeira e praticamente sem vento, o mar deve estar bem calmo, reduzindo o impacto. Nós o faremos descer de barriga pelo radar, tão perto quanto possível dos barcos de salvamento.

     - Chame a Marinha, - ordenou o controlador ao seu assistente. - A Força Aérea também. O salvamento no ar e no mar já estão de sobreaviso. Faça com que eles caiam ao mar e esperem instruções pelo rádio.

     - Não faça isso, - disse Treleaven, voltando-se para o mapa na parede. - Significaria abandonar os passageiros doentes. Teríamos sorte se conseguíssemos que saíssem antes que o avião afundasse. Mas pode ser necessário. - Falou no microfone preso aos fones. - Radar, está conseguindo alguma coisa?

     - Nada ainda, - veio a resposta incolor, impessoal. - Espere um pouco aí. Espere um momento. Isto pode ser alguma coisa que está aparecendo... Sim, comandante. Peguei-o agora. Está a dezesseis quilômetros ao sul da pista. Faça com que vire para a direita para um curso de 265.

     - Bom trabalho, - disse Treleaven. Fez sinal para que o pusessem no ar enquanto o operador da mesa dizia do outro lado: - A Força Aérea comunica contato visual, senhor, HPC 38 minutos.

     - Certo. - Ergueu o microfone diante dele. - Alô, 714. Você fez a rotina inversa de flap e trem de aterragem? Câmbio.

     - Fizemos, Vancouver. Câmbio.Veio a voz da moça.

     - Alguma dificuldade desta vez? Voando reto e nivelado?

     - Está tudo em ordem, Vancouver. O piloto diz, por enquanto. - Ouviram-na soltar uma pequena risada nervosa.

     - Isto é ótimo, 714. Pegamos vocês no radar agora. Vocês estão fora do rumo dezesseis quilômetros para o sul. Quero que se desviem com cuidado para a direita, usando os aceleradores para manter a velocidade atual, e ponham o avião num curso de 265. Vou repetir isso, 265. Está claro? Câmbio.

     - Compreendido, Vancouver.

     Treleaven olhou para fora da janela. A escuridão lá fora havia diminuído muito ligeiramente.

     - Pelo menos serão capazes de enxergar um pouco, - disse, - embora não até os últimos minutos.

     - Porei tudo de prontidão, - disse o controlador. Chamou o assistente: - Avise a torre, Stan. Diga-lhes para alertarem o pessoal do incêndio. - Depois, para o operador da mesa: - Ligue-me com a polícia.

     - E depois ligue-me com Howard na sala de imprensa, - acrescentou Burdick. Disse a Treleaven, - É melhor explicarmos àqueles sujeitos quanto à possibilidade de mergulhar antes que comecem a tirar suas próprias conclusões. Não, espere! - Lembrou-se subitamente, fitando intensamente o comandante. - Não podemos admitir que isso signifique condenar os passageiros doentes. Estaria cortando a minha garganta!

     Treleaven não estava ouvindo. Havia despencado numa cadeira, a cabeça inclinada com a mão sobre os olhos, não ouvindo o murmúrio confuso de vozes à sua volta. Mas à primeira crepitação quando o amplificador reviveu, pôs-se de pé, apanhando o microfone.

     - Alô, Vancouver, - chamou Janet. - Estamos agora num rumo de 265 como mandaram. Câmbio.

     - 714. Ótimo, - disse Treleaven com uma animação fingida. - Você se está portando esplendidamente. Vamos fazer tudo de novo, está bem? Esta será a última vez antes de você chegar ao aeroporto, George, portanto faça bem.

     O controlador falava com calma urgência no telefone:

     - Sim, estarão conosco em cerca de meia hora. Vamos pôr a procissão na rua.

    

     05,05-05,25 horas

     Spencer tentou descansar as pernas que doíam. Todo seu corpo parecia ter sido surrado e machucado. Em sua ansiedade e esforço de concentração havia gasto energia quase desnecessária deixando-o, no momento em que relaxou, completamente esgotado de forças. Tinha consciência de suas mãos tremendo e nem tentou firmá-las. Enquanto observava o movimento incessante dos instrumentos, uma mancha de luz elevava-se constantemente diante de seus olhos, caindo outra vez vagarosamente como um floco de algodão. Todo tempo aquela voz interior, agora tão real e tão independente como aquela em seus fones, mantinha seu monólogo insistente, dizendo-lhe: O que quer que haja, não desista. Se desistir, você está liquidado. Lembre-se, muitas vezes era assim durante a guerra. Você pensava que tinha chegado ao fim completamente esgotado, sem qualquer outro grama de energia restante. Mas cada vez havia algo que sobrara no saco, uma última reserva que você nunca pensou que tivesse.

     Olhou para Janet do outro lado, fazendo força para falar.

     - Como fomos desta vez? - Perguntou a ela. Sabia que estava muito perto de um colapso.

     Ela pareceu sentir o propósito da pergunta.

     - Muito bem, - disse alegremente. - De qualquer forma, pareceu-me que o Comandante Treleaven estava satisfeito, não achou?

     - Mal o ouvi, - disse, virando a cabeça de um lado para o outro para aliviar os músculos do pescoço. - Espero apenas que isso seja tudo. Quantas vezes até agora fizemos a rotina de flap e rodas, três? Se ele nos pedir para fazer mais, eu... - Acalme-se, advertiu a si mesmo. Não a deixe perceber o estado em que você está. Ela se inclinara para ele e enxugara seu rosto e testa com um lenço. Vamos agora, controle-se. Isto é apenas reação nervosa, um susto grande, se preferir. Pense em Treleaven: na encrenca em que está metido. Está a salvo no chão, é certo, mas suponha que se esqueça de alguma coisa-...

     - Já percebeu? O sol está nascendo, - disse Janet.

     - É verdade, - mentiu, levantando os olhos. Mesmo para oeste e em frente o tapete de nuvens estava tinto de rosa e ouro e lá também o vasto palio do céu havia clareado perceptivelmente. Para o sul, a bombordo, pôde ver dois picos, isolados como ilhas num oceano de lã de algodão. - Não demoraremos agora.

     Fez uma pausa.

     - Janet.

     - Que é?

     - Antes de descermos, olhe mais uma vez, quero dizer, dê outra olhada nos pilotos. Vamos provavelmente sacudir um pouco, e não os queremos jogados de um lado para o outro.

     Janet deu-lhe um sorriso agradecido.

     - Pode ficar seguro por um momento? - Perguntou ela.

     - Não se preocupe, gritarei se for preciso.

     Ela retirou os fones da cabeça e levantou-se da cadeira. Quando se virou para sair, a porta da cabina de passageiros se abriu e Baird olhou para dentro.

     - Oh, você largou o rádio, - observou.

     - Ia apenas dar uma olhada no comandante e co-piloto, para me certificar de que estão bem seguros.

     - Não há necessidade, - disse ele. - Já fiz isso há alguns minutos atrás, quando estavam ocupados.

     - Doutor, - chamou Spencer, - como vão as coisas com o senhor lá atrás?

     - Foi por isso que eu vim dar uma olhada, - disse Baird laconicamente. - O tempo de que dispomos está terminando depressa.

     - Há qualquer espécie de ajuda que possamos conseguir pelo rádio?

     - Gostaria de fazer uma verificação do diagnóstico com um médico lá embaixo, mas acho mais importante manter o rádio desimpedido para guiar a máquina. Quanto tempo acha que vai levar agora?

     - Bem menos de meia hora. Acho eu. Que lhe parece?

     - Não sei, - disse Baird em dúvida. Segurou-se nas costas da cadeira de Spencer, o cansaço aparecendo em cada centímetro, na posição em que ficara. Estava em mangas de camisa, sem gravata. - Há dois pacientes em estado de completa prostração, - continuou. - Quanto tempo mais podem agüentar sem tratamento, não posso dizer. Mas não muito, isto é certo. E há vários outros que logo estarão muito mal, a menos que esteja completamente enganado.

     Spencer fez uma careta.

     - Há alguém ajudando o senhor?

     - Claro, pois nada poderia fazer de outra forma. Especialmente um sujeito, aquele tipo inglês, que se tornou realmente um...

     Os fones reviveram:

     - Alô, 714. Aqui é Vancouver. Câmbio.

     Spencer fez sinal para Janet voltar para sua cadeira e ela colocou apressadamente os fones na cabeça.

     - Bem, vou voltar, - disse Baird. - De qualquer maneira, boa sorte.

     - Espere um minuto, - disse Spencer, acenando com a cabeça para a moça.

     - Aqui 714, - acusou Janet no microfone. - Falaremos com o senhor num instante.

     - Doutor, - disse Spencer, falando rapidamente, - não preciso enganá-lo. Isto pode ser violento. É capaz de acontecer quase tudo que está no livro. - O médico não disse nada. - O senhor sabe o que quero dizer. Eles podem sacolejar um pouco lá atrás. Faça com que fiquem em suas poltronas, está bem?

     Baird parecia estar examinando as palavras em sua mente. Depois respondeu num tom ríspido:

     - Faça o melhor que puder e deixe-me cuidar do resto.

     Bateu ligeiramente no ombro do jovem e saiu.

     - Pronto, - disse Spencer para a moça.

     - Adiante, Vancouver, - chamou.

     - Alô, 714, - respondeu a voz clara e confiante de Treleaven. - Agora que tiveram uma folga desde aquele último exercício, George, é melhor continuarmos outra vez. Você deve estar me recebendo bem agora. Quer verificar, por favor? Câmbio.

     - Diga-lhe que estive alguns minutos com os pés para cima, - disse Spencer. - E diga-lhe que o estou recebendo com uma força de cerca de nove.Força nove, pensou. Você realmente desencavou essa.

     - ... um pequeno descanso, - dizia Janet, - e o estamos recebendo com força nove.

     - Isso mesmo, George. Nosso exercício de vôo atrasou-o um pouco, embora isso fosse melhor porque estará claro quando você chegar. Você está agora mantendo posição e pronto para começar a perder altura. Primeiro quero falar com Janet. Você está ouvindo, Janet? -

     - Alô, Vancouver. Sim, estou ouvindo.

     - Janet, quando fizermos esta aterragem queremos que siga as rotinas para descida de emergência para proteção dos passageiros. Compreende? Câmbio.

     - Compreendo, comandante. Câmbio.

     - Mais uma coisa, Janet. Logo antes da aterragem pediremos ao piloto para tocar a campainha de emergência. E, George, o botão dessa campainha está bem em cima da poltrona do co-piloto e é pintada de vermelho.

     - Pode vê-lo? - Perguntou Spencer sem erguer os olhos.

     - Posso, - disse Janet, - aqui está.

     - Muito bem. Lembre-se disso.

     - Janet, - continuou Treleaven, - esse será seu aviso para as precauções finais, porque quero que volte depois para os passageiros.

     - Diga-lhe que não. - Interrompeu Spencer. - Preciso de você aqui.

     - Alô, Vancouver. - Disse Janet. - Compreendi suas instruções, mas o piloto precisa de mim para ajudá-lo. Câmbio.

     Houve uma longa pausa. Depois:

     - Está bem, 714, - respondeu Treleaven. - Compreendo a situação. Mas é seu dever, Janet, verificar se foram tomadas todas as precauções para descida de emergência antes de podermos pensar em aterragem. Há alguém a quem possa explicar e incumbir disto?

     - Que acha do médico? - Sugeriu Spencer.

     Janet sacudiu a cabeça.

     - Ele já tem bastante o que fazer, - disse ela.

     - Bem, terá um pouco mais, - retorquiu. - Preciso de você aqui se quisermos ter qualquer probabilidade de descer.

     Ela hesitou, depois apertou o botão de transmitir.

     - Alô, Vancouver. O Dr. Baird terá de qualquer maneira de cuidar dos passageiros doentes quando descermos. Acho que é a pessoa mais indicada para conduzir o exercício de emergência. Há outro homem que pode ajudá-lo. Câmbio.

     - Alô, Janet. Muito bem. Saia agora e explique a rotina com todo cuidado ao médico. Não deve haver qualquer possibilidade de erro. Avise-me quando terminar. - Janet pôs de lado seus fones e desceu da cadeira. - Agora, George, - continuou Treleaven, - cuidado para manter o curso atual; darei quaisquer correções que sejam necessárias. Neste momento, à medida que se aproxima do aeroporto, darei uma verificação da cabina, das coisas realmente essenciais. Quero que se familiarize com elas à medida que formos fazendo. De algumas delas você deve se lembrar do seu velho tempo de piloto. Esteja certo de saber onde estão. Se tiver qualquer dúvida agora é a hora de dizer. Faremos tantas aproximações quanto quiser, mas quando chegar, finalmente, a rotina deve ser feita com propriedade e completamente. Começaremos a primeira verificação logo que Janet volte a falar.

    

     Na sala de controle em Vancouver, Treleaven tirou um cigarro apagado da boca e jogou-o fora. Ergueu os olhos para o relógio elétrico da parede e depois para o controlador.

     - Quanta gasolina têm eles? - Perguntou.

     Grimsell apanhou a tabuleta de avisos de cima da mesa.

     - Em tempo de vôo, o suficiente para cerca de noventa minutos, - disse.

     - Qual é o problema, comandante? - Perguntou Burdick. - O senhor acha que há bastante tempo para circuitos e aproximações, não acha?

     - Tem que haver, - disse Treleaven. - Spencer está voando solo logo na primeira vez. Mas mantenha uma verificação rigorosa nele, Sr. Grimsell. Devemos dispor do suficiente para uma longa corrida sobre o oceano, se decidir mergulhar como último recurso.

     - Sr. Burdick, - chamou o operador da mesa, - seu presidente está na linha.

     Burdick praguejou.

     - Numa hora dessas é que ele tinha que ligar! Diga-lhe que não posso falar com ele agora. Transfira a ligação para o escritório da Folha de Bordo. Espere um minuto. Ligue-me com o escritório primeiro. - Apanhou um telefone e esperou com impaciência. - É você, Dave? Harry. Surpresa para você, o Velho está na linha. Segure-o o melhor que puder. Diga-lhe que o 714 está mantendo posição e que suas preces são tão boas quanto as nossas. Ligarei para ele diretamente quando tiver algo para dizer. Depois acho que ele dará um pulo de avião até aqui. Certo, rapaz.

     O assistente do controlador, a mão em concha sobre o telefone, dizia ao seu chefe:

     - É Howard. Diz que a imprensa está...

     - Falarei com ele. - O controlador pegou o telefone. - Ouça, Cliff. Não atenderemos mais chamadas não operacionais. As coisas estão críticas demais agora... Sim, eu sei. Se eles tiverem olhos verão por si mesmos. - Desligou com força.

     - Acho que esse rapaz está fazendo um trabalho bem bom, - grunhiu Burdick.

     - Eu também, - concordou o controlador. - E aqueles jornalistas não estariam fazendo o deles ficando quietos. Mas não podemos nos distrair agora.

     Treleaven estava ao lado do painel do rádio, os dedos tamborilando distraidamente, os olhos fixos no relógio. Fora do aeroporto, à primeira luz da madrugada, as medidas de emergência estavam em plena ação. Num hospital uma enfermeira desligou o telefone e falou com um médico que trabalhava numa mesa pegada. Entregou-lhe o casaco, apanhando também o seu. Correram para fora e alguns minutos mais tarde a porta superior para o pátio de veículos do hospital ergueu-se, saindo primeiro uma ambulância e depois outra.

     Num posto do Corpo de Bombeiros da cidade uma das poucas guarnições a serem mantidas em reserva até o último minuto, atirou fora as cartas com que jogava e correu para a porta ao som da campainha, agarrando no caminho suas peças de roupa e equipamento. O último homem a sair voltou de mansinho para a mesa e levantou as cartas de um dos adversários. Ergueu uma sobrancelha e depois disparou atrás dos seus colegas.

     No pequeno grupo de casas próximas à Ponte da Ilha do Mar, que ficava no prolongamento do aeroporto, o policia estava encaminhando as famílias para dentro de dois ônibus, a maioria das pessoas com roupas de rua atiradas apressadamente por cima das de dormir. Uma menininha, contemplando o céu intensamente, tropeçou no pijama. Foi erguida no mesmo instante por um polícia e colocada num dos ônibus. Ele fez sinal ao motorista que podia partir.

    

     - Alô, Vancouver, - chamou Janet um pouco ofegante. - Já dei as instruções necessárias. Câmbio.

     - Muito bem, moça, - disse Treleaven com alívio. - Agora, George, - continuou rapidamente, - o relógio está trabalhando um pouco contra nós. Em primeiro lugar, reajuste seu altímetro para 30,1. Depois desacelere ligeiramente, mas mantenha firme a velocidade do ar até que esteja perdendo altura à razão de 165 metros por minuto. Observe os instrumentos com cuidado. Você terá uma longa descida através das nuvens.

     Spencer colocou os dedos abertos em torno dos aceleradores e puxou-os suavemente para trás. O indicador de subida e descida caiu devagar e um tanto desigualmente para 200, depois subiu de novo até permanecer bem firme em 165.

     - Lá vem a nuvem, - disse ele, quando os lampejos da luz do dia, foram abruptamente eclipsados. - Pergunte-lhe a altura da base da nuvem.

     Janet repetiu a pergunta.

     - O teto está em torno de 670 metros, - disse Treleaven, - e você deve sair da nuvem a cerca de vinte e quatro quilômetros do aeroporto.

     - Diga-lhe que estamos nos mantendo firmes a 165 metros por minuto, - instruiu Spencer.

     Janet assim fez.

     - Certo, 714. Agora, George, isto é um pouco mais difícil. Não perca a concentração. Mantenha observação constante no indicador de descida. Mas ao mesmo tempo, se puder, quero que localize os controles numa primeira tentativa de rotina de aterragem. Acha que pode?

     Spencer não se preocupou em responder. Os olhos colados no painel de instrumentos, apenas apertou os lábios e acenou com a cabeça expressivamente.

     - Sim, Vancouver, - disse Janet. - Tentaremos.

     - Muito bem, então. Se alguma coisa fugir ao controle diga-me imediatamente. - Treleaven sacudiu a mão que alguém havia posto em seu braço para interrompê-lo. Seus olhos estavam estreitamente apertados quando olhou de novo para o ponto branco na parede, visualizando ali os comandos do avião. - George, isto é o que você vai fazer quando chegar. Primeiro, ligue a bomba do injetor hidráulico. Lembre-se, registre apenas essas coisas em sua mente, não faça nada agora. O aparelho está na extremidade esquerda do painel, embaixo e à esquerda do giro-controle. Percebeu? Câmbio.

     Ele ouviu a voz de Janet responder:

     - O piloto conhece esse aparelho, Vancouver, e localizou o interruptor!

     - Certo, 714. É surpreendente como isso volta à memória, não é, George? - Treleaven puxou um lenço e enxugou a nuca. - Depois você terá de desligar o controle do degelador. Ele deve estar ligado e o indicador está à direita do painel, bem em frente a Janet. O controle de fluxo está junto a ele. Esse é fácil, mas o controle deve estar desligado antes de você aterrar. Está observando o indicador de descida, George? O item seguinte é a pressão dos freios. Há dois indicadores, um para o freio de dentro e outro para o de fora. Estão imediatamente à direita do injetor hidráulico que você acabou de localizar. Câmbio.

     Após uma pausa, Janet confirmou:

     - Encontrou-os, Vancouver. Estão marcando 27, não 29 quilos cada um. Essa marcação é por centímetro quadrado?

     - Então estão em ordem, mas devem ser verificados outra vez antes de aterrar. Agora as guelras. Devem estar fechadas de um terço. O interruptor está à direita do joelho esquerdo de Janet e você pode ver que está marcado em terços. Entendido? Câmbio.

     - Sim, estou vendo, Vancouver. Câmbio.

     - Você pode operar esse, Janet. Junto a ele, na mesma fileira de interruptores, estão os dos radiadores intercalados de bombordo e estibordo. Estão assinalados claramente. Terão de ser completamente abertos. Certifique-se disso, Janet, está bem? Completamente abertos. Em seguida e a coisa mais importante é o trem de aterragem. Você já fez o exercício, mas refaça-o mentalmente, primeiro, por inteiro, começando pelo movimento de flap e terminando com as rodas completamente descidas e trancadas. O flap deve ser todo descido quando o avião está quase tocando o solo e você vai descer. Darei instruções quanto a isso. Vocês dois compreenderam isso? Câmbio.

     - Diga-lhe que sim, obrigado, - disse Spencer, sem tirar os olhos do painel. Havia começado uma coceira abominável em seu ombro, mas ele desviou o pensamento com irritação.

     - Está bem, 714. Quando você estiver se aproximando, e depois das rodas estarem descidas, as bombas do injetor de combustível devem ser ligadas. De outra forma a alimentação da gasolina pode ser cortada no pior momento. O interruptor delas está nas cinco horas contadas do piloto automático, logo atrás dos controles da mistura.

     Janet esquadrinhou o painel atordoada.

     - Onde? - Quase cochichou para Spencer. Ele fixou os olhos no painel e localizou o interruptor. - Lá. - Seu dedo apontou o pequeno interruptor, acima da fileira estriada onde estavam as alavancas dos aceleradores.

     - Está bem, Vancouver, - disse ela fracamente.

     - Agora a mistura deve ser mudada para outra mais rica. Sei que George está ansioso para fazer isso, de forma que não direi mais nada, ele cuidará bem disso. Depois você tem que regular as hélices até que se acendam as luzes verdes embaixo dos interruptores. Eles estão quase encostados no joelho direito de George, acho eu. Encontrou-os?

     - O piloto diz que sim, Vancouver.

     - Por último, os superalimentadores. Depois das rodas estarem descidas, eles devem ser ajustados para a posição de decolagem, isto é, para cima, no seu avião. São, é claro, as quatro alavancas à esquerda dos aceleradores. Muito bem, agora. Alguma dúvida sobre tudo isso? Câmbio.

     Spencer olhou para Janet com desespero.

     - Tudo se resume numa única pergunta enorme, - disse ele. - Nunca nos lembraremos disso tudo.

     - Alô, Vancouver, - disse Janet. - Achamos que não somos capazes de lembrar disso tudo.

     - Nem é preciso, 714. Eu me lembrarei por vocês. Há algumas outras coisas, também, das quais cuidaremos quando chegar a hora. Quero recapitular completamente essas operações com você, George, de forma que quando eu disser você as execute sem muita perda de concentração. Lembre-se, isto é apenas um exercício de virar interruptores. Você ainda tem que guiar o avião!

     - Pergunte-lhe sobre o tempo, - disse Spencer. - Quanto temos ainda?

     Janet fez a pergunta a Vancouver.

     - Como disse, George, você tem todo tempo que quiser, mas é que não queremos desperdiçá-lo de maneira alguma. Você estará sobre o aeroporto em cerca de doze minutos. Não deixe que isso o preocupe. Haverá tanto tempo quanto queira para outros exercícios. - Uma pausa. - O radar informa que é necessária uma correção no rumo, George. Mude de direção cinco graus para 260, por favor. Câmbio.

     Treleaven desligou seu único fone e disse ao controlador:

     - Eles estão bem no corredor de planeio agora. Logo que entrarmos em contato visual, farei com que nivelem e fiquem circulando para fazer exercícios. Veremos como se comportam após isso.

     - Tudo pronto aqui, - disse o controlador. Disse ao seu assistente: - Ponha todo o campo de sobreaviso.

     - Alô, Vancouver, - veio a voz de Janet pelo amplificador. - Mudamos o rumo agora para 260. Câmbio.

     - Está bem, 714. - Treleaven suspendeu as calças com uma das mãos.- Vamos fazer uma verificação na sua altura, por favor. Câmbio.

     - Vancouver, - respondeu Janet após alguns segundos, - nossa altura é de 833 metros.

     Pelos fones Treleaven ouviu o operador de radar informar:

     - Vinte e quatro quilômetros do campo.

     - Ótimo, George, - disse ele. - Você sairá das nuvens a qualquer momento. Logo que isso acontecer, procure o farol do aeroporto. Câmbio.

     - Más notícias, - disse-lhe Burdick. - O tempo está piorando. Está começando a chover outra vez.

     - Não podemos evitar isso, agora. - Chame a torre, - disse ao controlador. - Diga-lhes para acenderem, para ligarem tudo que acenda. Iremos para lá num minuto. Quero o rádio deles na mesma freqüência que este. Spencer não terá tempo para brincar de trocar canais.

     - Certo! - Disse o controlador, erguendo o telefone.

     - Alô, 714, - chamou Treleaven. - Você está agora a vinte e quatro quilômetros do aeroporto. Ainda está dentro da nuvem, George? Câmbio.

     Seguiu-se uma longa pausa. Subitamente o rádio voltou à vida estalando, apanhando Janet no meio de uma frase. Ela dizia excitadamente:

     - ...levantando muito ligeiramente. Pensei ter visto alguma coisa. Não tenho certeza... Sim, lá está! Estou vendo! O senhor o vê, Sr. Spencer? Está bem em frente. Podemos ver o farol, Vancouver!

     - Eles atravessaram! - Gritou Treleaven. - Está bem, George, - chamou no microfone, - nivele a 670 metros e aguarde instruções. Estou indo para a torre de controle agora, de forma que você perderá contato comigo por alguns minutos. Decidiremos quanto a pista a usar no último minuto, de forma que possa aterrar contra o vento. Antes disso você fará algumas descidas falsas, para praticar as aproximações. Câmbio.

     Ouviram a voz de Spencer dizer:

     - Cuidarei disso, Janet. - Houve um intervalo na conversação deles, depois Spencer veio pelo ar outra vez, soltando com raiva as palavras: - Nada feito, Vancouver. A situação aqui em cima não permite. Vamos descer direto.

     - O quê? - Gritou Burdick. - Ele não pode!

     - Não seja tolo, George, - disse Treleaven com ansiedade. - Você tem que fazer alguns exercícios de aproximação.

     - Estou mantendo minha linha de descida, - disse Spencer deliberadamente, a voz tremendo ligeiramente. - Há pessoas aqui em cima morrendo... Morrendo! Isso não entra em suas cabeças? Terei tantas probabilidades da primeira vez quanto na décima. Vou descer direto.

     - Deixe-me falar com ele, - apelou o controlador.

     - Não, - disse Treleaven, - não há tempo para discussões. - Seu rosto estava lívido. Uma veia latejava em suas têmporas. Temos que agir depressa. Estou dizendo que não temos escolha. De acordo com todas as regras ele é o comandante do avião. Vou aceitar sua decisão.

     - Você não pode fazer isso, - protestou Burdick. - Você não percebe que...

     - Está bem, George, - chamou Treleaven, - se isso é o que você quer. Espere e nivele. Vamos para a torre agora. Boa sorte para todos nós. - Fora da escuta. - Arrancou os fones da cabeça, arremessando-os ao chão, e gritou para os outros: - Vamos. - Os três homens pularam para fora da sala e correram pelo corredor, Burdick por último. Ignorando o elevador, subiram as escadas, quase abalroando um porteiro que saía, e irromperam na sala da torre de controle. Um operador estava diante das vastas janelas em volta, estudando o céu que clareava através de binóculos noturnos.

     - Lá está ele! - Anunciou.

     Treleaven agarrou um segundo binóculo, deu uma olhada rápida, depois largou-o.

     - Muito bem, - disse, arquejante. - Vamos tomar nossa decisão quanto à pista.

     - Zero-Oito, - disse o operador. - É a mais comprida e está bem na linha do vento.

     - Radar! - Pediu o comandante.

     - Pronto, senhor.

     Treleaven cruzou até uma mesa lateral sobre a qual havia uma planta do aeroporto embaixo do vidro. Usou um lápis grosso para vidro a fim de marcar o curso proposto do avião.

     - Aqui está o que faremos. Neste instante ele está aqui. Faremos com que vire, de forma a que comece a fazer uma curva larga para a esquerda e ao mesmo tempo o faremos descer para 330 metros. Começarei a verificação de antes da aterragem aqui, depois o levaremos para cima do mar e faremos uma curva vagarosa até o final. Compreendido?

     - Sim, Comandante, - disse o operador.

     Treleaven apanhou os fones de cabeça que lhe passaram e colocou-os.

     - Isto está ligado à sala do radar? - Perguntou.

     - Sim, senhor. Bem aqui.

     O controlador recitava num microfone tipo telefone:

     - Torre para todos os veículos de emergência. A pista é dois-quatro. Os guardas do aeroporto tomem as posições um e dois. O equipamento civil a número três. Todas as ambulâncias para as posições números quatro e cinco. Repito, nenhum veículo deixará suas posições até que o avião as tenha ultrapassado. Comecem agora.

     Debruçando-se no alto do consolo de controle, o comandante virou o interruptor de um microfone de mesa. Ao lado do seu cotovelo os carretéis de um gravador de som começaram a girar.

     - Alô, George Spencer, - chamou num tom firme e igual. - Aqui é Paul Treleaven na torre de Vancouver. Está me escutando? Câmbio.

     A voz de Janet encheu a sala de controle.

     - Sim, comandante. Sua voz está alta e clara. Câmbio.

     Pelo telefone, a voz calma do operador de radar informou:

     - Dezesseis quilômetros. Mude para a direção 253.

     - Muito bem, George. Você está agora a dezesseis quilômetros do aeroporto. Mude para a direção 253. Desacelere e comece a perder altura até 330 metros. Janet, ponha as rotinas preliminares de aterragem em funcionamento para os passageiros. Nenhum de vocês dois acusem qualquer outra transmissão a menos que queiram fazer uma pergunta.

    

     Removendo suas mãos uma de cada vez da coluna de controle, Spencer flexionou os dedos. Conseguiu dar um sorriso à moça a seu lado.

     - Muito bem, Janet. Faça a sua parte, - disse-lhe.

     Ela tirou do gancho da parede da cabina um microfone e apertou o botão, falando:

     - Atenção por favor. Atenção por favor. - Sua voz falhou. Agarrou o microfone com força e consertou a garganta. - Queiram por favor voltar às suas poltronas e apertarem os cintos de segurança. Aterraremos em poucos minutos. Obrigado.

     - Bem dito, - cumprimentou Spencer. - Como qualquer aterragem normal, hein?

     Ela tentou retribuir o sorriso, mordendo o lábio inferior.

     - Bem, nem tanto, - disse.

     - Você tem bastante do que é preciso, - disse Spencer sobriamente. - Gostaria que soubesse que eu não poderia agüentar até aqui sem... - Interrompeu, movendo o leme e os ailerons suavemente, esperando para sentir o efeito no avião. - Janet, - disse, os olhos nos instrumentos, - não temos muito tempo mais. Isto é o que sabíamos que devia acontecer mais cedo ou mais tarde. Mas quero estar certo de que você compreende porque devo tentar aterrar o avião, de qualquer maneira, na primeira tentativa.

     - Sim, - disse ela calmamente. - Compreendo. - Ela havia fechado o cinto de segurança em torno da cintura e agora suas mãos estavam estreitamente entrelaçadas no colo.

     - Bem, quero dizer obrigado, - continuou ele, atropeladamente. - Não fiz promessas, desde o começo, e não faço nenhuma agora. Você sabe melhor de que ninguém como sou errado nisso. Mas fazer voltas em torno do campo não adianta nada. E alguns dos sujeitos lá atrás estão piorando a cada minuto que passa. O melhor para eles é... arriscar logo de uma vez.

     - Já disse ao senhor, - disse ela. - O senhor não precisa se explicar.

     Ele deu um olhar de alarme para ela, receoso por um momento de que se tivesse exposto demais. Ela observava o indicador de velocidade do ar; não pôde ver seu rosto. Olhou para o outro lado, de volta para o largo pedaço de asa atrás deles. Sua ponta descrevia com infinita lentidão o pequeno segmento de arco balançando nela o nevoento esboço azul-cinza de uma encosta cintilando com as lâmpadas das ruas. Deslizando sob o corpo do avião, do outro lado, estavam as luzes intensas e distantes do aeroporto. Pareciam pateticamente pequenas e longínquas como um cordão de criança com contas vermelhas e amarelas descuidadamente atirado ao chão.

     Pôde sentir o coração batendo forte enquanto seu corpo fazia seus próprios preparativos para a emergência, como se estivesse consciente de que o que restava de sua vida podia agora ser medido em minutos e até mesmo segundos. Olhou com olhos críticos para si mesmo, um homem à parte, fazendo os movimentos para trazer o avião de volta a vôo nivelado.

     Ouviu-se a si mesmo dizer:

     - Lá vamos, então. Chegou a hora, Janet. Já estou começando a perder altura.

     

     05,25-05,35 horas

     Harry Burdick baixou o binóculo e passou-o de novo ao controlador da torre.

     Do balcão de observação que circundava a torre, os dois homens lançaram um último olhar pelo campo, para os caminhões-tanques postados bem para trás do pátio de manobras e, claramente visível agora à meia-luz, os grupos de pessoas observando das reentrâncias de embarque. O palpitar constante dos motores dos caminhões do lado mais afastado do campo parecia aumentar, o ar opressivo quase insuportável da expectativa que envolvia todo o aeroporto.

     Vasculhando em sua mente qualquer falta possível, Burdick reviu o plano de Treleaven. O avião passaria sobre eles a pouco menos de 660 metros e continuaria para o Estreito da Geórgia, descendo gradualmente nesta longa reta contra o vento, enquanto as últimas verificações na cabina eram executadas. Depois se seguiria uma larga meia volta na aproximação final, dando ao piloto o máximo de tempo para que regulasse sua descida e se preparasse para pousar.

     Um bom plano, que tiraria partido também da luz da madrugada que crescia devagar. Ocorreu a Burdick o que isso significaria para os passageiros que estavam bastante bem para se importarem. Eles observariam a Ilha do Mar e o aeroporto passarem por baixo deles, seguidos pela grande vastidão da baía, depois a ilha se aproximando tremulamente de novo, à medida que o piloto improvisado do avião fazia as últimas regulagens nos controles. Burdick sentiu, como se estivesse lá em cima com eles, a tensão sufocante, a certeza horrível e chocante de que eles bem podiam estar contemplando a morte face a face. Tremeu subitamente. Sentiu na camisa molhada de suor, o calafrio do ar da madrugada como uma faca.

     Houve a sensação, que passou rapidamente, de estar suspenso no tempo, como se o mundo estivesse prendendo a respiração.

     - Estamos num curso de 253, - disse a voz da moça claramente a eles pelo amplificador do rádio. - Estamos agora perdendo altura rapidamente.

     Com os olhos sombrios de ansiedade, Burdick encarou significativamente o rosto do jovem a seu lado. Sem uma palavra, deram meia volta e entraram de novo no grande cercado de vidro da torre de controle. Treleaven e Grimsell estavam agachados diante do microfone de mesa, suas fisionomias banhadas na luminosidade dos indicadores de luzes da pista colocados no consolo de controle diante deles.

     - O vento ainda está bem? - Perguntou o comandante.

     Grimsell assentiu:

     - Ligeiramente de través na pista zero-oito, mas esta é ainda nossa melhor escolha. - A pista zero-oito era a mais longa das três pistas do aeroporto, como Treleaven bem sabia.

     - Radar, - disse Treleaven no microfone, - mantenha-me informado todo tempo, quer eu esteja ou não no ar. Esta não será uma instrução normal para aterragem. Esqueça as rotinas no momento em que o 714 começar a ter encrencas. Interrompa e grite.

     Burdick bateu no ombro dele:

     - Comandante- , insistiu, - que acha de mais uma tentativa de fazê-lo esperar, pelo menos até que a claridade aumente e ele tenha...

     - A decisão já foi tomada, - disse Treleaven secamente. - O sujeito já está bastante nervoso. Se discutirmos com ele agora, estará liquidado. Burdick deu de ombros e virou-se. Treleaven continuou num tom mais calmo: - Compreendo os seus sentimentos, Harry. Mas entenda os dele também, cercado por uma massa de ferragens que nunca viu antes. Ele está sobre o fio de uma navalha.

     - E se ele se aproximar mal? - Disse Grimsell. - Qual é o seu plano?

     - Ele provavelmente o fará, temos que admitir isso, - retorquiu Treleaven implacavelmente. - Se não houver esperanças, tentarei fazê-lo dar mais uma volta. Evitaremos qualquer outra discussão pelo rádio a menos que seja óbvio que ele não tenha qualquer probabilidade. Depois tentarei insistir para que desça no oceano.

     Ouviu por um instante nos fones o calmo recitativo das leituras do radar, depois apertou o interruptor do microfone.

     - George, faça a velocidade do ar voltar a 295 quilômetros e mantenha-a firme aí.

     O amplificador reviveu quando o 714 entrou no ar. Houve uma pausa agonizante antes que a voz de Janet, dissesse:

     - Ainda estamos perdendo altura. Câmbio.

     Como uma ave grande e poderosa, o Empress passou vagarosamente pelo extremo oeste do Autódromo Landsdowne, escondido na bruma da manhã que nascia, e sobre o braço do Rio Fraser. À direita, a ponte do continente para a Ilha do Mar mal podia ser vista.

     - Ótimo, - disse Treleaven. - Agora ponha os controles da mistura na posição de decolagem, isto é, para cima na posição mais alta. - Fixou os olhos no relógio de pulso, contando o giro do ponteiro maior. - Não tenha pressa, George. Quando estiver pronto, gire os controles de temperatura dos carburadores para frio. Eles estão bem na frente dos aceleradores.

     - O que diz dos tanques de gasolina? - Insistiu Burdick roucamente.

     - Já verificamos antes, - respondeu Grimsell. - Ele está com os tanques principais das asas ligados agora.

    

     No avião, Spencer fixava os olhos apreensivamente de um controle para outro. Seu rosto era uma máscara rígida. Ouviu a voz de Treleaven continuar o seu monólogo inexorável: - A coisa seguinte, George, é pôr o filtro de ar e os superalimentadores para baixo. Devagar, agora. - Spencer olhou em volta com selvageria. - O controle do filtro de ar é a única alavanca embaixo dos controles da mistura. Ponha-a na posição superior.

     - Conseguiu achá-la, Janet? - Perguntou Spencer ansiosamente.

     - Sim. Sim, consegui. - Acrescentou rapidamente: - Olhe, o aeroporto está bem embaixo de nós! Pode-se ver a longa pista principal.

     - Longa bastante, espero, - grunhiu Spencer sem levantar a cabeça.

     - Os controles dos superalimentadores, - continuou Treleaven, - estão a quatro alavancas para a direita dos controles da mistura. Ponha-os na posição superior, também.

     - Achou-os? - Perguntou Spencer.

     - Sim.

     - Boa menina. - Ele estava consciente da linha do horizonte subindo e descendo diante dele, mas não se atreveu a tirar os olhos do painel. O roncar dos motores tomou um tom variável.

     - Agora vamos pôr aqueles 15 graus de flap, - instruiu Treleaven, - 15 graus para baixo no segundo entalhe. O mostrador está no centro do painel principal . Quando tiver posto os 15 graus, reduza a velocidade do ar devagar para 260 quilômetros e regule a inclinação para voar nivelado. Logo que tenha feito isso, ligue o injetor da bomba hidráulica, no extremo esquerdo, ao lado do controle do giroscópio.

     Pelos fones de Treleaven, o operador de radar interrompeu:

     - Vire para. 225. Estou fazendo uma leitura da altura, comandante. Ele está bem em cima de nós. Variando de 300 a 430 metros.

     - Mude o curso para 225, - disse Treleaven. - E cuidado com a altura, está muito irregular. Tente ficar firme em 300 metros.

     - Ele está caindo depressa demais, - disse o operador. - 370... 330... 300... 270.. . 230...

     - Cuidado com a altura!- Avisou Treleaven. - Use mais acelerador! Mantenha o nariz para cima!

     - 215... 200... 180...

     - Recupere sua altura! - Gritou Treleaven. - Recupere! Você precisa de 300 metros.

     - 180... 150... - Disse o operador, calmo mas suando. - Isto não está bem, comandante. 135... 135... 150, ele está subindo. 170...

     Por um momento, Treleaven perdeu a calma. Arrancou o fone dos ouvidos e virou-se para Burdick.

     - Ele não pode pilotá-lo! - Gritou. - É claro que não pode pilotá-lo!

     - Continue falando com ele! - Gritou Burdick, saltando para o comandante e agarrando o seu braço. - Continue falando, pelo amor de Deus. Diga-lhe o que fazer.

     Treleaven apanhou o microfone, levando-o para perto da boca.

     - Spencer, - disse com urgência, - você não pode descer direto! Ouça-me. Você tem que dar algumas voltas e praticar essa aproximação. Há combustível suficiente para mais duas horas de vôo. Fique voando, homem! Fique voando.

     Ouviram intensamente quando a voz de Spencer chegou a eles.

     - É melhor compreenderem isto, aí embaixo. Estou descendo. Estão me ouvindo? Estou descendo. Há pessoas aqui que morrerão em menos de uma hora, quanto mais duas. Pode ser que eu amasse um pouco o avião, este é um risco que temos de correr. Agora continue com a verificação de aterragem. Estou pondo o trem de aterragem para baixo agora. - Ouviram-no dizer. - Rodas para baixo, Janet.

     - Está bem, George, está bem, - disse Treleaven pesadamente. Colocou os fones nos ouvidos outra vez. Havia recuperado sua compostura, mas um músculo do queixo tremia convulsivamente. Cerrou os olhos por um segundo, depois abriu-os, falando com a rudeza anterior: - Se o seu trem está arriado verifique se as três luzes verdes estão acesas, lembra-se? Mantenha a direção firme em 225. Aumente ligeiramente a regulagem do acelerador para manter a velocidade do ar, agora que as rodas estão baixadas. Regule o nível e conserve a altura que puder. Certo. Verifique se a pressão do freio está em torno de 453 quilos, o instrumento está à direita do injetor hidráulico no painel. Se a pressão estiver boa, não responda. Está me ouvindo? Então abra as guelras para um terço. Lembra-se, Janet? O interruptor está ao lado do seu joelho esquerdo e é marcado em terços. Responda-me apenas se estiver indo muito depressa. Em seguida, os radiadores intercalados...

     À medida que Treleaven prosseguia, sua voz enchendo a silenciosa torre de controle, Burdick aproximou-se dos vidros da janela, perscrutando o céu perto do horizonte. A luz da madrugada estava sombria, atrasada pelos grossos bancos de nuvens. Ouviu Treleaven dar instruções para uma volta suave de 180 graus para a esquerda, para trazer o avião de volta para a aproximação final, insistindo com Spencer para fazê-la vagarosa e facilmente enquanto as últimas verificações eram feitas. O tom monótono e preciso do comandante formava um fundo sombrio para os pensamentos francamente preocupados do gerente da companhia.

     - Esta, - disse a um operador sentado perto, - é uma situação realmente grave. - O operador fez uma careta. - Uma coisa é certa, - disse Burdick, - o que quer que aconteça nos próximos dois ou três minutos, haverá uma confusão dos infernos por aqui. - Apalpou as calças a procura de cigarros, pensou melhor, e passou as costas da mão pela boca.

     - Agora empurre o regulador das hélices, - dizia Treleaven, - de forma que os tacômetros registrem uma leitura de 2.250 rotações por minuto em cada motor. Não acuse.

     - 2.250, - repetiu Spencer consigo mesmo, observando os mostradores com atenção enquanto fazia a regulagem. - Janet - disse - quero saber a velocidade do ar.

     - Está em 240... - Começou ela monotonamente, - 230... 220... 230... 240...

     Na torre de controle Treleaven ouvia pelos fones a voz firme da sala de radar.

     - A altura ainda está irregular. 300 metros.

     - George, - disse Treleaven, - deixe a velocidade do ar voltar a 220 quilômetros e regule a inclinação. Vou repetir isso. Velocidade do ar 220. - Olhou para o seu relógio. - Calma e cuidado, agora.

     - Ainda perdendo altura, - informou o operador de radar.270 metros... 250... 230...

     - Você está perdendo altura! - Soltou Treleaven.Você está perdendo altura. Acelere, acelere! Você deve manter-se em torno de 300.

    

     Janet continuava a leitura da velocidade do ar:

     - 205... 205... 195... 205... 205... 220... 220... 220... firme em 220.

     - Suba... suba! - Rangia Spencer entre dentes, puxando a coluna de controle. - Como é grande e pesadona esta carroça! Não obedece! Não obedece mesmo.

     - 230... 240... 240... firme em 240...

    

     - Altura subindo para 300 metros, - entoou o operador de radar.320... 330 agora. Mantenha 330.

     Treleaven gritou para o controlador da torre:

     - Ele está dando a volta para a descida. Desligue as luzes das pistas, exceto da zero-oito. - Falou no microfone: - Retifique para uma direção entre 074 e 080. Observe a velocidade do ar e a altura. Fique a 330 metros até que eu lhe avise.

     Uma série após outra, os colares de luzes meio enterradas na grama ao lado das pistas apagaram-se, deixando apenas uma linha de cada lado da pista principal de aterragem.

     - Saia dessa curva, George, quando estiver pronto, - disse Treleaven, - e alinhe-se com a pista que está vendo diretamente a sua frente. Está chovendo de maneira que você vai precisar dos limpadores de pára-brisas. O interruptor está embaixo à direita do lado do co-piloto e está marcado claramente.

     - Procure-o, Janet, - disse Spencer.

     - Mantenha sua altura em 330 metros, George. Nós o afastamos bastante de forma a ter bastante tempo. Peça a Janet para procurar o interruptor das luzes de aterragem. Está no painel superior, um pouco à esquerda do centro. Mantenha a altura firme.

     - Achou o interruptor? - Perguntou Spencer.

     - Espere um instante... sim, achei.

     Spencer deu uma olhada rápida em frente.

     - Meu Deus, - suspirou. A pista com as luzes brilhantes como pontas de alfinetes na cerração azul-cinza da madrugada parecia a esta distância ser incrivelmente estreita, como trilhos de trem. Livrou uma das mãos por um instante para passá-la nos olhos, cheios d’água devido à concentração.

     - Corrija o seu curso, - disse Treleaven. - Alinhe-se direito e corretamente. Mantenha essa altura, George. Agora ouça com cuidado. Tente tocar o solo a cerca de um terço do comprimento da pista. Há um pouco de vento de través da esquerda, portanto prepare-se para virar o leme para a direita suavemente. - Spencer fez o nariz girar devagar em volta. - Se você aterrar muito depressa, use os freios de emergência. Você pode fazê-los funcionar puxando a alavanca vermelha bem diante de você. E se isso não fizer parar, desligue os quatro interruptores de ignição que estão sobre a sua cabeça.

     - Está vendo os interruptores, Janet?

     - Estou.

     - Se precisar desligá-los terá de ser depressa, - disse Spencer. - Portanto, se eu gritar, não perca tempo. - Sua garganta estava ressecada, parecia cheia de areia grossa.

     - Está bem, - replicou Janet num sussurro. Juntou as mãos para evitar que tremessem.

     - Não falta muito agora, de qualquer modo. O que há com a campainha de emergência?

     - Eu não me esqueci. Farei com que soe logo antes de tocar o solo.

     - Observe a velocidade do ar. Diga-a para mim.

     - 220... 215... 220...

     - Comece a descer, - disse o operador de radar. - 135 metros por minuto. Verifique o trem de aterragem e os flaps. Mantenha a direção atual.

     - Muito bem, George, - disse Treleaven. - Abaixe todo o flap. Traga a velocidade do ar de volta para 215, regule a inclinação e comece a perder altura a 135 metros por minuto. Vou repetir. Todo o flap, velocidade do ar 215, desça a 135 metros por minuto. Mantenha a direção atual. - Voltou-se para Grimsell. - Está tudo pronto no campo?

     O controlador fez que sim.

     - Pronto como nunca.

     - Então é agora. Em sessenta segundos saberemos.

     Ouviram o ruído dos motores que se aproximavam. Treleaven esticou o braço e apanhou um binóculo que o controlador lhe passou.

     - Janet, dê-me todo flap! - Ordenou Spencer. Ela empurrou a alavanca toda para baixo. - Alturas e velocidades do ar, cante-as!

     - 330 metros... velocidade 240... 265 metros, velocidade 220... 235 metros, velocidade 195. Estamos descendo depressa demais!

     - Aumente a altura! - Gritou Treleaven. - Recupere! Você está perdendo altura depressa demais.

     - Eu sei, eu sei! - Respondeu Spencer aos gritos. Empurrou os aceleradores para a frente. - Continue observando! - Disse à moça.

     - 215 metros, velocidade 185... 135 metros, velocidade 185...

     Os olhos ardendo com o suor da concentração quase febril, ele fazia uma mágica para coordenar a velocidade com uma inclinação constante de descida, consciente com um terror doentio e profundo da inexorável aproximação da pista, cada vez mais perto a cada segundo. O avião balançava de um lado para o outro, os motores alternando-se em aumentos de rotação e falhando.

     Burdick gritou do balcão da torre:

     - Olhe só para ele! Está descontrolado!

     Mantendo o binóculo nivelado no avião que chegava, Treleaven gritava no microfone:

     - Acelere! Acelere! Você está perdendo altura depressa demais! Cuidado com a velocidade do ar, pelo amor de Deus. Seu nariz está muito alto, acelere depressa ou ele estolará! Acelere, estou-lhe dizendo, acelere!

     - Ele te ouviu, - disse Grimsell. - Está recuperando.

     - Eu também, espero. - Disse Burdick.

     O operador de radar anunciou:

     - Ainda 35 metros abaixo do corredor de planeio. 15 metros abaixo do corredor de planeio.

     - Suba, suba, - ordenou Treleaven. - Se você não tocou a campainha de alarme ainda, toque agora. Encostos das poltronas para cima, cabeça dos passageiros para baixo.

     Quando a estridente campainha tocou no avião, Baird berrou com toda força:

     - Abaixem-se todos! Segurem-se o melhor que puderem!

     Dobrados em dois em suas poltronas, Joe e Hazel Greer, os fãs de esportes, passaram os braços em torno um do outro, calmamente e com compostura. Movendo-se sem jeito na pressa em que estava, Childer tentou puxar sua mulher inerte para si, depois inclinou-se apressadamente atravessado sobre ela cobrindo-a o mais que pôde. De algum lugar no meio do avião veio o som de uma prece cortada pelos soluços e, mais atrás, uma exclamação de um dos bebedores de uísque do quarteto:

     - Deus nos ajude, é agora!

     - Cale-se! - Gritou Otpot. - Economize seu fôlego!

     Na torre, Grimsell falou num microfone:

     - Todo equipamento de incêndio e socorro fique onde está até que o avião tenha passado por ele. O avião pode balançar. - Sua voz ecoou metalicamente nos edifícios.

     - Ele voltou a 65 metros, - informou o radar. - Ainda abaixo do corredor de planeio. 50 metros. Ainda abaixo do corredor de planeio. Está baixo demais, comandante. 35 metros.

     Treleaven retirou os fones dos ouvidos. Ficou de pé de um salto segurando o microfone em uma das mãos e o binóculo na outra.

     - Mantenha essa altura, - insistiu, - até chegar mais perto da pista. Esteja preparado para soltar suavemente... deixe descer de novo... assim parece melhor...

     - Que raio de chuva, - xingou Spencer. - Mal posso ver.

     Pôde perceber que estavam sobre a grama . Adiante teve a impressão empanada de ver a cabeceira da pista.

     - Cuidado com a velocidade do ar, - continuou Treleaven, - seu nariz está rastejando. - Ouviu-se o som momentâneo de outras vozes ao fundo. - Nivele pouco antes de tocar o solo e cuidado com o vento de través pondo o leme à direita... Muito bem... Prepare-se para completar...

     A cabeceira da pista, de 170 metros de largura, deslizou sob eles.

     - Agora! - Exclamou Treleaven. - Você está vindo depressa demais. Levante o nariz! Levante-o! Puxe para trás os aceleradores, bem para trás! Segure-o no ar. Não muito, não muito! Prepare-se para aquele vento de través. Deixe-o descer, agora. Deixe-o descer!

     Com o trem de aterragem alguns decímetros acima da superfície da pista, Spencer moveu a coluna de controle suavemente para a frente e para trás, tentando sentir a descida até o solo, a garganta apertada pelo pânico porque agora compreendia que a cabina de comando era muito mais alta do que a de qualquer outro avião em que havia voado, tornando qualquer julgamento quase impossível para ele.

     Durante o que lhe pareceu um século, as rodas roçaram a pista, sem fazer contato. Depois com um sacolejão tocaram o solo. Houve um guincho de pneus e uma baforada de fumaça. O choque lançou o avião ao ar de novo. Depois os grandes pneus estavam mais uma vez lutando para encontrar apoio no concreto.

     Um terceiro choque seguiu-se, depois outro e mais outro.

     Praguejando através dos dentes cerrados, Spencer puxou a coluna de controle de volta até o estômago, todos os terrores de pesadelo das poucas horas anteriores agora uma realidade paralisadora. A faixa cinzenta abaixo dele saltava para cima, afastava-se, saltava de novo. Depois, milagrosamente, permaneceu parada. Haviam descido. Experimentou os freios de pé, depois empurrou-os com força, usando toda força de suas pernas. Ouviu-se um guincho agudo mas não houve qualquer queda súbita de velocidade. Com o canto do olho pôde ver que estavam já a mais de dois terços do comprimento da pista. Não poderia nunca segurar o avião a tempo.

     - Você está aterrando depressa demais, - berrou Treleaven. - Use os freios de emergência! Puxe a alavanca vermelha!

     Spencer deu um puxão na alavanca com desespero. Trouxe a coluna de controle de volta até o estômago, calcou com força os freios com os pés. Sentiu nos braços uma tensão dilacerante à medida que o avião tentava diminuir a velocidade. As rodas pararam, derraparam, depois correram livres de novo.

     - Corte os interruptores! - Gritou. Com um gesto rápido da mão Janet desligou-os. O troar dos motores morreu, deixando na cabina o zumbido dos giroscópios e do equipamento de rádio, e do lado de fora o guincho dos pneus.

     Spencer olhou para a frente fascinado pelo horror. Sem o ruído dos motores, o avião ainda corria depressa, o chão passando por eles como uma mancha. Podia ver agora um grande tabuleiro de xadrez marcando a curva na cabeceira da pista. Numa fração de segundo seus olhos registraram a forma de um caminhão de incêndio, cujo motorista caiu ao chão na pressa de dar o fora.

     A voz de Treleaven irrompeu em seus ouvidos com a força de um golpe.

     - Faça um cavalo de pau para a esquerda! Cavalo de pau para a esquerda! Leme todo à esquerda!

     Tomando uma decisão instantânea, Spencer pôs o pé esquerdo no pedal do leme e jogou todo seu peso contra ele, apertando-o para a frente selvagemente.

     Desviando-se subitamente da pista, o avião começou a descrever um arco. Lançado para o lado direito da sua cadeira, Spencer lutava para manter as asas afastadas do chão. Houve um aumento de volume do ruído, um clarão ofuscante quando o trem de aterragem se despedaçou e o avião se esborrachou de barriga no chão. O impacto levantou Spencer completamente de sua cadeira. Sentiu uma dor aguda quando o cinto de segurança cortou fundo em sua carne.

     - Abaixe a cabeça!- Gritou. - Vamos nos esborrachar!

     Agarrando nas cadeiras contra a violência maníaca dos safanões e sacolejões, tentaram se erguer. Ainda sob o impulso, o avião continuou a deslizar de lado como um caranguejo, fazendo sulcos raivosos na grama arrancada. Com um guincho de metais o avião cruzou outra pista, arrancando as luzes dela e lançando ao ar um jato de terra que caía como chuva.

     Spencer rezou para que o fim chegasse logo.

     Como um prisioneiro maluco e indefeso, o sangue de uma pancada ocasional que não sentira aparecendo no canto da boca, esperou pela inevitável capotagem, pelo estilhaçante esmagamento que iria, para ele, desintegrar-se em mil luzes ardentes como pontas de alfinetes antes que fossem engolidos pela escuridão.

     Depois, um tanto subitamente, não estavam mais se movendo. Spencer pareceu sentir os mesmos movimentos loucos como se estivessem ainda correndo através do campo; mas seus olhos disseram-lhe que haviam parado. Pelo espaço de segundos não houve qualquer som. Firmou-se contra a perigosa inclinação lateral do chão da cabina e olhou para Janet. A cabeça dela estava enterrada nas mãos. Chorava em silêncio.

     No compartimento de passageiros atrás dele houve murmúrios e sussurros de pessoas que acordavam sem acreditar que ainda estivessem vivas. Alguém deu um riso curto e histérico, e isto parece que animou meia dúzia de vozes a falarem ao mesmo tempo.

     Ele ouviu Baird dizer:

     - Alguém está ferido?

     Os ruídos se misturaram em confusão. Spencer fechou os olhos. Começou a tremer.

     - É melhor abrir as portas de emergência, - ouviu-se o tom fanhoso de Otpot, - e depois todos devem ficar onde estão.

     Da porta da cabina de vôo que empenara aberta na queda, ouviu o médico exclamar:

     - Maravilhoso trabalho! Spencer! Vocês dois estão bem?

     - Fiz um cavalo de pau! - Murmurou com desgosto consigo mesmo.Viramos em sentido contrário da direção em que viemos. - Que barbeiragem, fazer cavalo de pau!

     - Bobagem, você foi magnífico, - retorquiu Baird. - Pelo que sei, há apenas contusões e um pouco de susto aqui atrás. Vamos dar uma olhada no comandante e no primeiro oficial, eles devem ter sido jogados um pouco de um lado para o outro.

     Spencer voltou-se para ele. Doía quando movia o pescoço.

     - Doutor, - sua garganta estava rouca, - chegamos a tempo?

     - Sim, bem na hora, acho. Agora é com o hospital, de qualquer maneira. Você já fez a sua parte.

     Tentou levantar-se da cadeira. Neste momento tornou-se consciente do som de crepitação. Sentiu uma onda de alarme. Depois compreendeu que o barulho vinha dos fones que haviam escorregado para o chão. Esticou o braço e apanhou-os, segurando um dos fones junto ao ouvido.

     - George Spencer! - Chamava Treleaven. - George Spencer! Você está aí?

     Do lado de fora ouvia-se agora o ruído crescente das sirenas dos caminhões de socorro, de incêndio e das ambulâncias. Spencer ouviu vozes no compartimento de passageiros atrás dele.

     - Sim, - disse, - estou.

     Treleaven estava jubilante, apanhado pela reação geral. Atrás de sua voz ouviam-se sons de conversação animada e risos.

     - George. Esta foi provavelmente a aterragem mais porca na história deste aeroporto. De forma que nunca nos peça emprego como piloto. Mas há alguns de nós aqui que gostariam de apertar a sua mão, e mais tarde pagar-lhe uma bebida. Agora, pare tudo, George. Estamos indo para aí.

     Janet levantou a cabeça e sorriu tremulamente.

     - Você devia ver o seu rosto, - disse ela, - está preto.

     Ele não pôde lembrar-se de nada para dizer. Nenhuma piada; nenhuma palavra adequada de agradecimento. Sabia apenas que estava intoleravelmente cansado e doente do estômago. Pegou na mão dela e retribuiu o sorriso.

 

                                                                                 Arthur Hailey & John Castle

 

                      

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