Criar um Site Grátis Fantástico
Translate to English Translate to Spanish Translate to French Translate to German Translate to Italian Translate to Russian Translate to Chinese Translate to Japanese

  

 

Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


VOCÊ SÓ PODE DIZER O NOME DAQUELA SENSAÇÃO.../S.K.
VOCÊ SÓ PODE DIZER O NOME DAQUELA SENSAÇÃO.../S.K.

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

VOCÊ SÓ PODE DIZER O NOME DAQUELA SENSAÇÃO EM FRANCÊS

 

FLOYD, O QUE É aquilo lá? Ah, que merda.

A voz do homem pronunciando essas palavras era vagamente familiar, mas as palavras em si apenas um retalho desconexo de diálogo, o tipo de coisa que se ouve quando se navega pelos canais com o controle remoto. Não havia ninguém chamado Floyd na vida dela. Mesmo assim, aquilo foi o começo. Antes mesmo que ela visse a menina de avental vermelho, havia aquelas palavras desconexas.

Mas foi a menina quem trouxe aquilo à tona com força.

— Oh-Oh, estou tendo aquela sensação — disse Carol.

A menina de avental vermelho estava acocorada na frente de um mercado campestre chamado Carson’s — CERVEJA, VINHO, MANTIMENTOS, ISCA FRESCA, LOTERIA —, o traseiro entre os tornozelos e o vestido-avental vermelho-vivo enfiado entre as coxas, brincando com uma boneca de cabelos amarelos e sujos, arredondada, estofada, sem ossos no corpo.

— Que sensação? — perguntou Bill.

— Aquela que a gente só pode dizer o nome em francês. Me ajuda.

— Déjà vu — disse ele.

— Isso — disse Carol e virou-se para olhar a menina mais uma vez. Ela vai pegar a boneca por uma das pernas, pensou. Vai segurá-la de cabeça para baixo por uma perna, o cabelo amarelo pendurado.

A menina, porém, largara a boneca nos degraus cinzentos e irregulares da loja e passara a olhar para o cachorro preso na traseira de uma caminhonete. Então Bill e Carol Shelton fizeram uma curva na estrada e a loja sumiu de vista.

— Está muito longe? — perguntou Carol.

Bill olhou para ela com uma sobrancelha erguida e a boca fazendo a covinha num dos lados — sobrancelha esquerda, covinha direita, sempre o mesmo. O olhar dizia: Você pensa que estou achando divertido, mas estou é irritado. Pela nonagésima trilionésima vez no casamento, estou realmente irritado. Mas você não sabe disso, porque só vê uns dois centímetros dentro de mim.

Ela, contudo, tinha uma visão melhor do que ele percebia; era um dos segredos do casamento. Provavelmente ele teria alguns segredos só seus. E havia também, é claro, os que guardavam juntos.

— Não sei — disse ele. — Nunca estive aqui.

— Mas você tem certeza de que estamos na estrada certa.

— Depois que se passa o elevado e se entra na ilha Sanibel, só há uma — disse ele. — Que atravessa para Captiva e termina lá. Mas, antes disso, chegaremos a Palm House. Prometo.

O arco de sua sobrancelha começou a relaxar, a covinha foi se preenchendo. Ele estava voltando ao que ela chamava de Nível Ótimo. Carol passara a desgostar do Nível Ótimo também, mas não tanto quanto da sobrancelha e da covinha, ou do sarcasmo dele dizendo “Como?”, quando se dizia algo que ele considerava estúpido, ou do seu hábito de fazer uma bolsa com o lábio inferior para mostrar reflexão e deliberação.

— Bill, você conhece alguém chamado Floyd?

— Floyd Denning. Ele e eu administrávamos a lanchonete do térreo no Cristo Redentor em nosso último ano lá. Eu lhe contei sobre ele, não? Ele roubou o dinheiro da Coca-cola numa sexta-feira e passou o fim de semana em Nova York com a namorada. Eles o suspenderam e a expulsaram. Por que lembrou dele?

— Não sei — disse ela. Era mais fácil do que explicar que o Floyd com quem Bill freqüentara o ginásio não era o mesmo Floyd com quem a voz em sua cabeça falava. Pelo menos achava que não era.

Você chama isso de segunda lua-de-mel, pensou Carol, olhando para as palmeiras margeando a Rodovia 867, para um pássaro branco que espreitava pelo acostamento como um pregador zangado, e para uma tabuleta que dizia PARQUE SEMINOLE DE VIDA SELVAGEM, TRAGA UM CARRO COM O MÁXIMO QUE PUDER POR DEZ DÓLARES. Flórida, O Estado do Sol. Flórida, o Estado da Hospitalidade. Sem mencionar Flórida, o Estado da Segunda Lua-de-mel. Flórida, onde Bill e Carol Shelton, a ex-Carol O’Neill, de Lynn, Massachusetts, vieram na primeira lua-de-mel há 25 anos. Só que era do outro lado, o lado do Atlântico, numa pequena colônia de cabanas, e havia baratas nas gavetas da cômoda. Ele não conseguia parar de me tocar. Tudo bem, naqueles dias eu queria ser tocada. Que diabo, eu queria ser incendiada como Atlanta em E o vento levou, e ele me incendiou, reconstruiu e incendiou de novo. Agora é bodas de prata. Vinte e cinco anos é prata. E às vezes tenho aquela sensação.

Eles se aproximavam de uma curva e ela pensou: Três cruzes do lado direito da estrada. Duas pequenas flanqueando a maior. As pequenas são de madeira compensada. A do meio é de bétula branca e tem um retrato, a minúscula foto do rapaz de 17 anos que perdeu o controle do carro naquela curva numa noite de bebedeira, sua última noite, e foi aquele lugar ali que a namorada dele e suas amigas tinham assinalado...

Bill fez a curva. Um par de corvos negros, gorduchos e brilhantes, levantou vôo de algo colado no asfalto num fundo de sangue. Os pássaros haviam comido tão bem que Carol não tinha certeza se iam sair do caminho até que o fizeram. Não havia cruzes, nem à esquerda nem à direita. Apenas carniça na estrada, uma marmota ou coisa semelhante agora esmagada sob um carro de luxo que jamais estivera ao norte da Linha Mason-Dixon.

Floyd, o que é aquilo lá?

— O que é que você tem?

— Ahn? — Ela encarou-o perturbada, sentindo-se um pouco fora de si.

— Você está sentada reta como uma vara. Está com dor nas costas?

— Uma dorzinha leve. — Foi encostando aos poucos. — Tive aquela sensação de novo. O déjà vu.

Desapareceu?

— Sim — disse Carol, mentindo. A sensação recuara um pouco, mas era só. Tivera isso antes, embora nunca tão continuamente. Aparecia e desaparecia, mas não ia embora. Tinha consciência disso desde que a coisa sobre Floyd começara a martelar sua cabeça — e a seguir a menina de avental vermelho.

Contudo, não sentira algo antes das duas coisas? Na realidade, isso não começara a acontecer quando desciam a escada do Lear 35, no calor martelante do sol de Fort Myers? Ou mesmo antes? Saindo de Boston?

Estavam chegando a um cruzamento. Lá em cima via-se uma luz amarela acendendo e apagando, e ela pensou: À direita há um terreno com carros usados e um cartaz de aviso do Sanibel Community Theater.

Então ela pensou: Não, vai ser como as cruzes que não estavam lá. É uma impressão forte, mas falsa.

Ali estava o cruzamento. À direita, havia um terreno com carros usados — Palmdale Motors. Carol sentiu um verdadeiro sobressalto com aquilo, uma punhalada de algo mais agudo que inquietação. Disse a si mesma para deixar de ser estúpida. Devia haver terrenos com carros por toda a Flórida e se a pessoa previsse um em cada cruzamento, mais cedo ou mais tarde a lei das probabilidades faria dessa pessoa um profeta. Era um truque que os médiuns vinham usando por centenas de anos.

Além disso, não havia nenhum aviso de teatro.

Mas havia outro cartaz. Era Nossa Senhora, o fantasma de todos os seus dias de infância, estendendo as mãos como no medalhão que a avó de Carol lhe dera em seu décimo aniversário. A avó colocara-o na mão de Carol dizendo “Use sempre isso enquanto crescer, porque os dias difíceis estão chegando”. Ela o usara, sem dúvida. No primário de Nossa Senhora dos Anjos, no ginásio e no segundo grau no São Vicente de Paula. Usara a medalha até que seus seios crescessem como milagres comuns, e então em algum lugar, provavelmente na viagem da turma a Hampton Beach, ela a perdera. Butch Soucy fora o garoto, e ela conseguira sentir o gosto do algodão-doce que ele comera.

Maria, naquele medalhão há muito desaparecido, e Maria naquele cartaz tinham exatamente o mesmo olhar, o que fazia a pessoa se sentir culpada de pensamentos impuros mesmo quando só pensava num sanduíche de manteiga de amendoim. Abaixo de Maria o cartaz dizia AS OBRAS DE CARIDADE DE NOSSA SENHORA DA MISERICÓRDIA AJUDAM OS SEM-TETO DA FLÓRIDA — VOCÊ NÃO VAI AJUDAR?

Você aí, Maria, qual é a história...

Desta vez, mais de uma voz: muitas vozes de garotas cantando com vozes fantasmas. Eram milagres comuns, e também fantasmas comuns. A pessoa se depara com essas coisas quando fica mais velha.

— O que é que você tem? — Ela conhecia aquela voz, assim como o olhar sobrancelha-e-covinha. O tom de estou-só-fingindo-de-irritado de Bill, o que significava que ele realmente estava irritado, ao menos um pouco.

— Nada. — Ela deu a ele o melhor sorriso que pôde.

— Você não parece a mesma. Talvez não devesse ter dormido no avião.

— É, acho que não — disse ela, e não só para ser agradável. Afinal de contas, quantas mulheres ganham uma segunda lua-de-mel na ilha Captiva pelo aniversário de 25 anos do casal? Viagem de ida e volta num Learjet alugado? Dez dias em um daqueles lugares onde o seu dinheiro não servia (pelo menos até que o MasterCard cuspisse a conta no final do mês) e, se você quisesse uma massagem, surgiria uma grande e bonita sueca e amassaria você em sua casa de praia de seis cômodos?

As coisas haviam sido diferentes no começo. Conhecera Bill no baile do colégio no outro lado da cidade e o encontrara de novo na faculdade três anos depois (outro milagre comum). Ele começara trabalhando como zelador no início da vida de casado, pois não havia muitas oportunidades na indústria dos computadores. Era 1973, e os computadores não estavam tendo basicamente nenhum resultado. Os dois moravam num lugar desagradável em Revere, não na praia, mas perto dela, e a noite inteira pessoas subiam a escada para comprar drogas das duas encovadas criaturas que moravam no apartamento em cima deles, e que ouviam incessantemente os estúpidos discos dos anos 60. Carol costumava ficar acordada esperando a gritaria começar e pensando: Jamais sairemos daqui, vamos ficar velhos e morrer ouvindo Cream and Blue Cheer e os carrinhos do parque de diversão na praia.

Exausto no final do turno, Bill dormia com o barulho, deitado de lado, às vezes com uma das mãos no quadril de Carol. E, quando a mão não estava lá, Carol geralmente a punha lá, especialmente se as criaturas do andar de cima estivessem discutindo com seus clientes. Bill era tudo o que Carol tinha. Seus pais a haviam praticamente deserdado quando ela se casara com ele. Bill era católico, mas do tipo errado. Vovô perguntara por que ela queria ir embora com aquele rapaz quando qualquer um podia ver que ele era um pobretão, como é que ela podia se apaixonar pelo seu tolo modo de falar, por que queria partir o coração do seu pai. E o que podia ela dizer?

Foi uma longa distância do lugar em Revere até um jato particular voando a 41 mil pés de altitude; uma longa distância até esse carro alugado, que era um Crown Victoria — o que os bons sujeitos nos filmes de gângster invariavelmente chamavam de Crown Vic — rumando para dez dias num lugar onde a conta provavelmente seria... bem, nem queria pensar nisso.

Floyd?... Ah, que merda.

— Carol? O que foi agora?

— Nada — disse ela. Na estrada adiante havia um pequeno bangalô rosa, a varanda ladeada por palmeiras... ver aquelas árvores de cabeças franjadas erguidas contra o céu azul a fez pensar nos Zeros japoneses voando baixo, as metralhadoras sob as asas disparando, tal associação sendo nitidamente o resultado de uma juventude gasta na frente da TV. E enquanto eles passassem, uma mulher negra sairia do bangalô. Enxugaria as mãos num pedaço de toalha rosa e lhes lançaria um olhar sem expressão, gente rica num Crown Vic dirigindo-se a Captiva, sem ter a mínima idéia de que, no passado, Carol Shelton ficava acordada à noite num apartamente de 90 dólares por mês, ouvindo os discos e a venda de drogas do andar de cima, sentindo algo vivo nela, algo que a fazia pensar num cigarro caído por trás das cortinas numa festa, pequeno e invisível mas ardendo lentamente perto do tecido.

— Meu bem?

— Nada, já disse. — Passaram pela casa. Não havia mulher alguma. Um velho, branco, não negro, sentado numa cadeira de balanço, observava-os passar. Usava óculos sem aro e tinha no colo um esfiapado atoalhado cor-de-rosa, do mesmo tom da casa. — Estou bem. Só ansiosa para chegar lá e trocar essa roupa por um short.

A Mão dele tocou o quadril dela — onde a tocara com tanta freqüência durante aqueles primeiros dias — e então esgueiro-se mais para dentro. Ela pensou em detê-lo (mãos romanas e dedos russos, costumavam dize), mas não o fez. Afinal de contas, estavam em segunda lua-de-mel. Além disso, isso faria aquela expressão desaparecer.

— Talvez — disse ele — possamos fazer uma pausa. Sabe, depois que o vestido sair e antes de o short entrar.

— Acho uma ótima idéia — ela colocou a mão sobre a dele, apertando-a mais contra si. À frente, havia uma tabuleta que diria PALM HOUSE 5KM À ESQUERDA, quando chegassem bastante perto para lê-la.

A placa na verdade dizia PALM HOUSE 3KM À ESQUERDA. Além dela havia uma outra, a Virgem Maria de novo, com as mãos estendidas e aquela pequena coroa elétrica que não era exatamente um halo na cabeça. Essa versão dizia AS OBRAS DE CARIDADE DE NOSSA SENHORA DA MISERICÓRDIA AJUDAM OS DOENTES DA FLÓRIDA — VOCÊ NÃO VAI NOS AJUDAR?

— A próxima deve dizer “Burma Shave”* — falou Bill.

Ela não entendeu o que ele quis dizer, mas era nitidamente uma brincadeira. Então riu. A seguinte diria “As Caridades de Nossa Senhora da Misericórdia ajudam os Famintos da Flórida”, mas ela não podia contar isso a Bill. Querido Bill. Querido, apesar de suas expressões às vezes idiotas e as alusões às vezes pouco claras. Ele provavelmente vai deixar você, e sabe de uma coisa? Se você continuar com isso, é o melhor que pode esperar. Isso segundo o pai dela. Querido Bill, que provara que naquela única vez, a vez crucial, o julgamento dela fora muito melhor do que o do pai. Ainda estava casada com um homem que sua avó chamara de “o grande fanfarrão”. Pagando um preço, é verdade, mas qual era mesmo o velho axioma? Deus diz pegue o que quer... e pague por isso.

Coçou a cabeça distraidamente, vigiando o aparecimento do próximo cartaz de Nossa Senhora da Misericórdia.

Por mais horrível que possa ser, as coisas tinham começado a dar uma virada quando ela perdera o bebê, pouco antes de Bill conseguir um emprego nos Computadores Beach, na Rota 128. Foi nessa época que os primeiros ventos da mudança na indústria começaram a soprar.

Perdeu o bebê de aborto natural — todos acreditavam nisso, exceto talvez Bill. Certamente a família dela acreditara: papai, mamãe, vovó. “Aborto natural” foi a história que contaram, aborto natural era a história mais católica do mundo. Ei, Maria, qual é a história, elas haviam cantarolado às vezes quando pulavam corda, sentindo-se ousadas e pecaminosas, as saias de seus uniformes flutuando para cima e para baixo sobre os joelhos machucados. Isso foi no Nossa Senhora dos Anjos, onde a Irmã Annunciata batia nos dedos delas com a régua se as pegasse olhando pela janela durante o Período de Castigo, onde Irmã Dormatilla contava a elas que um milhão de anos era apenas um segundo no interminável relógio da eternidade (e se podia passar a eternidade no Inferno, a maioria das pessoas passava, era fácil acontecer isso). No Inferno, vivia-se para sempre com a pele em fogo e os ossos assando. Agora ela estava na Flórida, num Crown Vic, sentada ao lado do marido com a mão ainda no gancho de suas pernas; o vestido ficaria amarrotado, mas isso não tinha importância, se tirasse aquela expressão do rosto dele, e por que a sensação não parava?

Ela pensou numa caixa de correspondência com RAGLAN pintado na lateral e um decalque da bandeira americana na frente e, embora depois o nome se revelasse Reagan e a bandeira um adesivo do Grateful Dead, a caixa estava lá. Carol pensou num pequeno cachorro preto trotando vivamente ao longo do outro lado da estrada, a cabeça baixa, farejando, e o pequeno cachorro preto estava lá. Pensou novamente no outdoor e sim, lá estava ele: AS OBRAS DE CARIDADE DE NOSSA SENHORA DA MISERICÓRDIA AJUDAM OS FAMINTOS DA FLÓRIDA — VOCÊ NÃO VAI NOS AJUDAR?

Bill estava apontando.

— Ali... está vendo? Acho que é Palm House. Não, não onde está o cartaz, no outro lado. Por que deixam as pessoas colocarem essas coisas ali, afinal de contas?

— Não sei. — Ela cocou a cabeça e caspa negra começou a cair passando por seus olhos. Olhou para os dedos, horrorizada de ver manchas escuras em suas pontas; era como se alguém tivesse acabado de tirar suas impressões digitais.

— Bill? — Ela penteou com a mão o cabelo louro e dessa vez os flocos eram maiores. Viu que não eram flocos de pele e sim flocos de papel. Num deles havia um rosto, espiando do resíduo como um rosto espiando de um negativo estragado.

— Bill?

O quê? O q... — Então uma mudança total ocorreu na voz dele, e isso assustou Carol mais do que o modo como o carro oscilava na estrada. — Meu Deus, bem, o que é que você tem no cabelo?

O rosto parecia o de Madre Teresa. Ou seria só porque ela estava pensando no Nossa Senhora dos Anjos? Carol recolheu-o do vestido, querendo mostrá-lo a Bill, mas ele se desmantelou entre os dedos antes que ela pudesse fazê-lo. Carol virou-se para o marido e viu que os óculos de Bill haviam derretido, juntamente com seu rosto. Um dos olhos dele pulou da órbita e rachou-se como uma uva estourando cheia de sangue.

E eu sabia disso, pensou ela. Mesmo antes de eu me virar para ele, sabia disso. Porque tive aquela sensação.

Um pássaro gritava nas árvores. No outdoor, Maria estendia as mãos. Carol tentou gritar. Tentou gritar.

 

 

— Carol?

Era a voz de Bill, vinda de mil quilômetros de distância. A mão dele apertava agora não o espaço entre as suas pernas, mas o seu ombro.

— Você está bem, amor?

Ela abriu os olhos para o sol brilhante e os ouvidos para o contínuo zumbir dos motores do Learjet. E algo mais — a pressão em seus ouvidos. Ela olhou do rosto levemente preocupado de Bill para o dial abaixo do medidor de temperatura na cabine e viu que ele havia baixado para 28 mil.

— Aterrissagem? — disse ela numa voz indistinta. — Já?

— É rápido, hein? — Ele parecia contente, como se tivesse pilotado em vez de pagar alguém para fazê-lo. — O piloto diz que aterrissaremos em Fort Myers em 20 minutos. Você deu um pulo e tanto, garota.

— Tive um pesadelo.

Ele riu — o riso suave tipo como-você-é-tola que ela passara de fato a detestar.

— Não é permitido nenhum pesadelo em sua segunda lua-de-mel, meu bem. Como foi?

— Não lembro — disse ela, e era verdade. Havia apenas fragmentos: Bill com os óculos derretidos escorrendo pelo rosto, e um dos três ou quatro versinhos proibidos que elas cantarolavam na quinta e na sexta séries. Era Ei, Maria, qual é a história... e então alguma coisa, alguma coisa. Não conseguia lembrar do resto. Podia lembrar de Tra-tai-da-dai, eu vi o bilro do papai, mas não conseguia lembrar de nenhuma sobre Maria.

Maria ajuda os doentes da Flórida, pensou ela, sem nenhuma idéia do que significava o pensamento, e nesse momento houve um bipe quando o piloto ligou a luz de apertar o cinto. Tinham iniciado a descida final. A zoeira alucinada vai começar, pensou, apertando o cinto.

— Você não se lembra mesmo? — perguntou ele, apertando o próprio cinto. O pequeno jato atravessou uma nuvem com alguns sacolejos, um dos pilotos na cabine fez um ajuste menor e a viagem suavizou-se de novo — Porque geralmente, logo depois que acorda, você ainda lembra. Mesmo dos ruins.

— Lembro de Irmã Annunciata, do Nossa Senhora dos Anjos. Período de castigo.

— Bem, isso é um pesadelo.

Dez minutos depois, o trem de aterrissagem desceu com um gemido e um baque surdo. Cinco minutos depois, eles aterrissaram.

— Eles deviam tirar logo o carro do avião — disse Bill, já iniciando a chatice Tipo A. Ela não gostou, mas, pelo menos, não a detestava tanto quanto detestava o riso suave e o repertório de olhares paternalistas dele. — Espero que não tenha havido um problema.

Não tinha, pensou ela, e a sensação varreu-a com força. Vou vê-lo pela minha janela em apenas dois ou três segundos. É seu carro de férias totais na Flórida, a droga de um grande Cadillac branco, ou talvez seja um Lincoln...

E lá vinha ele sim, o que provava isso? Bem, pensou ela, provava que, às vezes, quando se tem um déjà vu, o que se pensa que vai acontecer acontece mesmo. Não era um Caddy nem um Lincoln afinal de contas, e sim um Crown Victoria — o que os gângsters nos filmes de Martin Scorsese sem dúvida chamariam de um Crown Vic.

— Ôoo — disse ela, quando Bill a ajudou a descer a escada do avião. O sol quente a fez sentir-se tonta.

— O que foi?

— Nada. Tive um déjà vu. Acho que é resto do meu sonho. Aquele tipo de coisa: já estivemos aqui antes,

— É o fato de estar num lugar estranho, só isso — disse ele, e beijou o seu rosto. — Vamos, a zoeira alucinada vai começar.

Foram para o carro. Bill mostrou a carteira de motorista à jovem que tirara o carro do avião. Carol viu-o examinar as pernas da moça e então assinar o documento na prancheta que lhe era estendida.

Ela vai deixar a prancheta cair, pensou Carol. De tão forte agora, a sensação era como estar num brinquedo do parque de diversões que vai rápido demais; você percebe imediatamente que está deixando a Terra da Diversão e entrando no Reino da Náusea. Vai deixá-la cair, Bill dirá “Opa” e vai pegá-la do chão para ela, dando uma olhada mais de perto em suas pernas.

Mas a mulher da Hertz não deixou cair a prancheta. Uma van branca, de cortesia, apareceu para levá-la de volta ao terminal da Butler Aviation. Ela deu a Bill um último sorriso — ignorara completamente Carol — e abriu a porta do carro do lado do passageiro. Então deu um passo para a frente e escorregou.

— Opa — disse Bill e segurou-a pelo cotovelo, firmando-a. Ela sorriu para ele, que deu às pernas bem torneadas dela um olhar de adeus. Carol ficou ali, junto à crescente pilha da bagagem deles, pensando Ei, Maria...

— Sra. Shelton? — era o co-piloto que trazia a última bolsa, contendo o estojo com o laptop de Bill, e parecia preocupado. — A senhora está bem? Está tão pálida.

Bill ouviu-o e desviou os olhos da van branca que partia, preocupado. Se os sentimentos mais fortes de Carol sobre Bill fossem seus únicos sentimentos sobre Bill, agora que já tinham 25 anos de casados, ela o teria deixado quando decobrira sobre a secretária, uma falsa loura jovem demais para lembrar o slogan da Clairol que começava dizendo “Se eu tivesse apenas uma vida para viver”. Mas havia outros sentimentos. Havia amor, por exemplo. Amor ainda. Do tipo que as garotas com o uniforme da escola católica não suspeitavam, uma espécie resistente e antipática demais para morrer.

Além disso, não era apenas o amor que mantinha duas pessoas juntas. Havia os segredos, e o preço que se pagava por mantê-los.

— Carol? — perguntou ele. — Benzinho? Tudo bem?

Ela pensou em lhe dizer que não, que não estava bem, estava se afogando. Mas conseguiu sorrir.

— É o calor, só isso. Estou meio tonta. Me leva para o carro e liga o ar-condicionado. Vou melhorar.

Bill a pegou pelo cotovelo (Aposto que você não está de olho nas minhas pernas, pensou Carol. Você sabe o que tem no final delas, não é?) e conduziu-a ao Crown Vic como se Carol fosse uma mulher muito velha. Quando a porta estava fechada e o ar frio sendo bombeado sobre seu rosto, ela de fato começou a se sentir um pouco melhor.

Se a sensação voltar, vou contar a ele, pensou Carol. Vou ter que contar, é forte demais. Não é normal.

Bem, o déjà vu nunca era normal, achava ela — e sim algo parte sonho, parte química (tinha certeza de que lera isso, talvez num consultório médico em algum lugar, enquanto esperava que o ginecologista sondasse sua racha de 52 anos) e parte o resultado de uma falha elétrica no cérebro, fazendo com que experiências novas fossem identificadas como dados antigos. Um buraco temporário na canalização, água quente e fria se misturando. Fechou os olhos e rezou para que a sensação fosse embora.

Ah, Maria concebida sem pecado, rogai por nós que recorremos a vós. Por favor, sem voltar às aulas de catecismo. Isso deviam ser umas férias, e não...

Floyd, o que é aquilo lá? Ah, que merda! Ah, QUE MERDA!

Quem era Floyd? O único Floyd que Bill conhecia era Floyd Dorning (ou talvez fosse Darling), o garoto com quem administrara a lanchonete, o que fugira para Nova York com a namorada. Carol não conseguia lembrar quando Bill lhe contara sobre o rapaz, mas sabia que ele contara.

Deixe disso, garota. Não há nada aqui para. você. Bata aporta no nariz de todos os pensamentos desse tipo.

E isso funcionou. Houve um sussurro final — qual é a história — e então ela era apenas Carol Shelton a caminho de Captiva Island, a caminho de Palm House com o marido, o famoso criador de softwares, a caminho das praias e dos drinques com rum, e do som de uma banda de metais tocando “Margaritaville”.

 

 

Passaram por um mercado Publix. Passaram por um velho negro tomando conta de um quiosque de frutas à beira da estrada — ele a fez pensar em atores dos anos 30 e fitas que se viam no canal de filmes clássicos, um negro cordato dos velhos tempos, de macacão e um chapéu de palha com uma copa redonda. Bill batia papo com ela, que respondia. Estava ligeiramente surpresa que a menina que usara o medalhão de Maria todos os dias dos dez aos 16 anos tivesse se tornado essa mulher com o vestido de Donna Karan — que o casal desesperado no apartamento de Revere fosse esse rico par de meia-idade, rodando por uma luxuriante alameda de palmeiras — mas era ela e eram eles sim. Certa vez, na época de Revere, Bill voltara para casa bêbado e ela batera nele, tirando sangue de seu rosto. No passado, Carol tivera medo do inferno e se deitara meio drogada numa mesa ginecológica pensando Estou danada, cheguei à danação. Um milhão de anos, e isso é apenas o primeiro segundo do relógio.

Pararam à cabine de pedágio da rodovia e Carol pensou: O homem do pedágio tem uma marca de nascença vermelha no lado esquerdo da testa, misturada com a sobrancelha.

Não havia nenhuma marca — o homem do pedágio era um sujeito comum de seus quarenta e tantos ou cinqüenta e poucos, cabelos grisalhos coitados à escovinha, óculos de aro de tartaruga, o tipo do sujeito que diz “Tenham umas boas férias, okaai?”. Mas a sensação começou a voltar, e Carol percebeu que agora as coisas que pensava conhecer ela realmente conhecia, no início nem todas, mas depois, no momento em que se aproximaram do mercadinho do lado direito da Rota 41, quase tudo.

O nome do mercado é Corson’s e há uma meninazinha na frente usando um avental vermelho, pensou Carol. Ela tem uma boneca, uma coisinha suja de cabelos amarelos que deixou nos degraus da loja para poder olhar um cachorro na parte de trás de uma caminhonete.

O mercado se chamava de fato Carson’s, não Corson’s, mas tudo o mais era o mesmo. Enquanto o Crown Vic branco passava, a meninazinha de avental vermelho virou o rosto solene na direção de Carol, um rosto de menina do campo, embora Carol não soubesse o que uma garota do interior, com sua suja boneca de cabelos amarelos, pudesse estar fazendo naquela área turística de gente rica.

E aqui que eu pergunto a Bill se é muito longe, só que não farei isso, porque tenho que romper esse ciclo, essa rotina. Preciso fazê-lo.

— É muito longe? — perguntou. Ele diz que só há uma estrada, não podemos nos perder. Promete que chegaremos a Palm House sem qualquer problema. E por falar nisso, quem é Floyd?

A sobrancelha de Bill se ergueu. A covinha ao lado da boca surgiu.

— Depois que se sai da rodovia e se entra na ilha Sanibel, só há uma estrada. — Carol mal o ouviu. Ele ainda falava sobre a estrada, o marido que passara um safado fim de semana na cama com a secretária dois anos atrás, arriscando tudo o que haviam feito e construído, Bill usando sua outra cara, sendo o Bill que a mãe de Carol avisara que partiria seu coração. E mais tarde Bill tentando dizer a ela que não pudera evitar, ela querendo gritar Eu já matei uma criança por você, o embrião de uma criança, de qualquer modo. Qual é o preço disso? E é isso que eu recebo em troca? Chegar à casa dos 50 e descobrir que meu marido transou com a garota Clairol?

Diga a ele!, ela gritou. Faça-o parar, obrigue-o a fazer algo que a liberte... mude alguma coisa, mude tudo! Você pode fazer isso... se pôde subir naquela cama ginecológica, pode fazer qualquer coisa.

Mas ela não podia fazer nada, e tudo começou a passar mais rápido. Os dois corvos superalimentados levantaram vôo do almoço atropelado na estrada. Bill perguntou por que Carol estava sentada daquele jeito, se era cãibra, e ela respondera que sim, uma cãibra nas costas, mas que estava melhorando. Sua boca tagarelava sobre o déjâ vu como se ela não estivesse se afogando nele, e o Crown Vic avançava como um daqueles sádicos carrinhos de parque de diversões em Revere Beach. Palmdale Motors vinha à direita. E à esquerda? Uma espécie de aviso sobre o teatro da comunidade local, uma produção de Ó Marieta.

É Maria, não Marieta. Maria, mãe de Jesus, mãe de Deus, ela estende as mãos...

Carol fez um grande esforço para dizer ao marido o que acontecia, porque o Bill certo estava ao volante, o Bill certo ainda podia ouvi-la. O amor de um casal tinha a ver com ser ouvido.

Nada saiu. Em sua mente, a avó dizia: “Todos os dias difíceis estão chegando.” Em sua mente, uma voz perguntava a Floyd o que era aquilo, depois dizia “Ah, que merda”, e depois gritava “Ah, que merda!”.

Olhou para o velocímetro e viu que estava calibrado não em quilômetros por hora e sim em milhares de pés: estavam a 28 mil pés e descendo. Bill lhe dizia que ela não devia ter dormido no avião, e ela concordava.

Uma casa rosa começava a aparecer, pouco mais que um bangalô, margeada de palmeiras que pareciam as que se vêem nos filmes da Segunda Guerra Mundial, copas emoldurando Learjets surgindo com suas metralhadoras flamejando...

Flamejando. Ardentes. Imediatamente, a revista que ele está segurando transforma-se numa tocha. Santa Maria, mãe de Deus, você aí, Maria, qual é a história...

Passaram pela casa. O velho sentado à varanda os viu passar, as lentes de seus óculos sem aro cintilaram ao sol. A mão de Bill estabelecera uma cabeça de ponte no quadril de Carol. Ele disse algo sobre como poderiam fazer uma pausa para se refrescarem entre a tirada do vestido dela e a colocação do short, e ela concordou, embora jamais fossem chegar a Palm House. Iam descer e descer por aquela estrada, como se fossem feitos para o Crown Vic branco e o Crown Vic para eles, eternamente e para sempre, amém.

O outdoor seguinte dizia PALM HOUSE 3KM. Além dele, havia o outro dizendo que as obras de caridade de Nossa Senhora da Misericórdia ajudavam os doentes da Flórida. Vocês as ajudariam?

Agora que era tarde demais, Carol começava a entender. Começava a ver a luz do mesmo modo que podia ver o sol subtropical tirando fagulhas da água à esquerda. Cogitando quantos erros cometera na vida, quantos pecados, se você gosta da palavra, Deus sabe que os pais dela e sua avó certamente gostavam, pecado isso e pecado aquilo, e use o medalhão entre essas coisas que crescem em você e que atraem os olhos dos rapazes. E anos depois, deitada com o novo marido nas noites quentes de verão, sabia que uma decisão tinha que ser tomada, sabia que o relógio estava correndo, a guimba do cigarro se consumindo, e lembrava de tomar a decisão, sem falar alto com Bill acerca disso, porque sobre certas coisas se podia silenciar.

Coçou a cabeça, e flocos pretos passaram por seu rosto girando. No painel de instrumentos do Crown Vic, o velocímetro congelou-se em 16 mil pés e depois estourou, mas Bill pareceu não notar.

Lá vinha uma caixa de correspondência com um adesivo do Grateful Dead grudado na frente; lá vinha um pequeno cachorro preto com a cabeça baixa, trotando atarefadamente, e nossa, como sua cabeça cocava, flocos pretos flutuando no ar como detritos radioativos, e o rosto de madre Teresa espiando de um deles.

AS CARIDADES DE NOSSA SENHORA AJUDAM OS FAMINTOS DA FLÓRIDA — VOCÊ NÃO VAI NOS AJUDAR?

Floyd. O que é aquilo lá? Ah, que merda.

Ela tem tempo de ver algo grande. E de ler a palavra DELTA.

— Bill? Bill?

A resposta dele, suficientemente clara, mas vindo do outro lado do universo:

— Meu Deus, meu bem, o que é que você tem no cabelo?

Ela recolheu o resíduo remanescente do rosto de Madre Teresa do colo e estendeu-o a Bill, a versão mais velha do homem com quem casara, o fodedor de secretárias com quem casara, o homem que, apesar disso, a resgatara da turma que pensava que se podia viver para sempre no paraíso desde que se acendessem muitas velas, se usasse blazer azul e se cantarolassem apenas os versinhos permitidos quando se pulasse corda. Deitada com aquele homem numa noite quente de verão enquanto drogas eram negociadas no andar de cima, e o Iron Butterfly cantava “In-A-Gadda-Da-Vida” pela nonagésima bilionésima vez, ela perguntara o que ele achava que acontecia depois da morte. Quando seu personagem na peça sai de cena. Ele a tomara nos braços e ficara assim com ela, enquanto Carol ouvia o som áspero, dissonante, da rua principal lá na praia, e o choque dos carrinhos no parque de diversões e Bill...

Os óculos de Bill estavam derretidos no seu rosto. Um olho pulara da órbita. Sua boca era um buraco sangrento. Nas árvores, um pássaro chorava, um pássaro gritava, e Carol começou a gritar com ele, estendendo o fragmento carbonizado do papel com o retrato de Madre Teresa, gritando, observando as faces dele ficarem negras, e sua testa enxamear, e seu pescoço abrir-se como um bócio envenenado, gritando, ela estava gritando, e em algum lugar o Iron Butterfly cantava “In-A-Gadda-Da-Vida” e ela gritava.

 

 

— Carol?

Era a voz de Bill, a mil quilômetros de distância. Sua mão estava sobre ela, mas em seu toque havia mais preocupação do que luxúria.

Ela abriu os olhos e olhou a cabine do Lear 35 ao sol brilhante, e por um momento entendeu tudo — como se entende o tremendo significado de um sonho ao primeiro momento de despertar. Lembrava de perguntar a Bill o que será que acontecia às pessoas... bem, no outro lado, e ele dissera que provavelmente se receberia o que sempre se pensara receber, que se Jerry Lee Lewis achava que ia para o Inferno tocando boogie-woogie, era exatamente isso que teria. Céu, Inferno ou Grand Rapids, a escolha era sua — ou daqueles que o tinham ensinado em que acreditar. Era o grande truque final da mente humana: a percepção de passar a eternidade onde sempre se esperou passá-la.

— Carol? Você está bem, meu amor? — Segurava numa das mãos a revista que estava lendo, uma Newsweek com Madre Teresa na capa. SANTIDADE AGORA? estava escrito em branco.

Olhando desnorteada pela cabine, ela pensava: Acontece a 16 mil pés. Tenho que contar a eles, tenho que avisá-los.

Mas tudo estava sumindo da maneira como tais sensações sempre sumiam. Desapareciam como sonhos, ou algodão-doce transformando-se num nevoeiro açucarado em sua língua.

— Aterrissando? Já? — Sentiu-se totalmente acordada, mas sua voz parecia espessa e confusa.

— É rápido, hein? — disse ele, parecendo contente, como se tivesse pilotado ele mesmo em vez de pagar alguém para fazê-lo. — Floyd diz que estaremos no chão em...

— Quem? — perguntou ela. A cabine do pequeno avião era morna, mas os dedos dela estavam gelados. — Quem?

— Floyd. O piloto. — Bill apontou com o polegar para o banco esquerdo da cabine. Estavam entrando numa fina tela de nuvens. O avião começou a sacudir. — Ele diz que aterrissaremos em Fort Myers em 20 minutos. Você deu um pulo e tanto, garota. E antes disso estava gemendo.

Carol abriu a boca para dizer que era a sensação, aquela que só se pode dizer em francês, algo com vu ou vous, mas a sensação estava sumindo e tudo o que disse foi “Tive um pesadelo”.

Houve um bipe quando Floyd, o piloto, apertou o botão que acendia a luz de “Apertem os cintos”. Carol virou a cabeça. Em algum ponto abaixo, esperando por eles agora e para sempre, estava um carro branco da Hertz, um carro de gângster, do tipo que personagens de um filme de Martin Scorsese provavelmente chamariam de Crown Vic. Ela olhou para o rosto de Madre Teresa na capa da revista e imediatamente lembrou de quando pulava corda seguindo os versinhos proibidos atrás do Nossa Senhora dos Anjos, pulando enquanto cantava um que dizia Maria, qual é a história, salve minha pele do Purgatório.

Os dias difíceis estão chegando, dissera sua avó. E apertara o medalhão na palma de Carol, enrolando a corrente em seus dedos. Os dias difíceis estão chegando.



 

* Antiga marca de espuma de barbear norte-americana que, nos anos 50, fez grande sucesso graças a seus slogans. Cada um dos outdoors espalhados pelas auto-estradas continha uma frase de um longo slogan. [N. do E.]

 

                                                                                            Stephen King

 

 

                      

O melhor da literatura para todos os gostos e idades