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Cidade de Nova Iorque, 1906A senhora jaz em bocados nos terrenos do Capitólio...
William Sidney Porter está a sonhar. Actualmente, vive na Cidade de Nova Iorque, mas o sonho remonta há quase vinte anos, altura em que ainda vivia em Austin, no Texas, onde trabalhava como desenhador na Direcção-Geral do Território. Espreitando pela janela que havia sobre o seu estirador, podia observar os enormes guindastes e os trabalhadores que se atarefavam como formigas na construção da cúpula do novo edifício do Capitólio. Naquele dia de Fevereiro de 1888, ao final da manhã, ele e Dave saíram da Direcção-Geral para dar uma volta antes do almoço, dando de caras com a senhora desmembrada nos terrenos do Capitólio.
No sonho, a senhora jaz imóvel.
Jaz em quatro bocados. Destes, o mais facilmente reconhecível é formado pela cabeça, o braço esquerdo e a parte superior do torso. Este bocado da senhora está voltado para cima e, não fora o facto de estar separado do resto do corpo, podia ser apenas uma mulher deitada de costas contemplando atentamente o céu, com o braço esquerdo atirado por cima da cabeça, o cotovelo ligeiramente flectido. Na extremidade deste braço erguido, os dedos e o polegar curvam-se sobre si mesmos, como se agarrassem qualquer coisa que tivesse desaparecido entretanto, um objecto com um cabo cilíndrico que lhe tivesse sido arrancado do punho imobilizado.
Tem a boca fechada, mas os olhos estão muito abertos, contemplando atentamente o céu através de um dossel de Inverno formado por ramos nus.
Não muito afastado, o braço direito desmembrado está encostado a uma nogueira. Próximo dele, sobre a relva castanha, jaz outro bocado, que compreende as pernas e a parte inferior da anatomia da senhora. Junto a este bocado, encontra-se a parte maior do torso, o pedaço que vai desde a cintura até aos seios.
- E o meu estômago opõe-se firmemente a eles. Quem vai pagar o almoço, vamos lá a saber?
- Touchi, Shoemaker. Que tal o Iron Front?
- Gordura a mais.
- Então, e o Blue Front?
- Gordura a menos.
- A Slages Chop House?
- Muito cheia.
- O Simon’s?
- Às moscas.
- O RoaCW sNT, então?
Dave ergue uma sobrancelha.
- O nome nunca me inspirou confiança.
- David Shoemaker - diz Will com alguma exasperação -, acabei de recitar a lista completa das casas de pasto decentes da cidade de Austin, Estado do Texas, e tu vetaste-as todas.
David anímou-se.
- Creio que só nos resta uma alternativa: um almoço líquido em Guy Town. - Dando uma palmadinha no bolso do colete, acrescenta:
- até trago comigo um baralho de cartas novo! Que tal continuarmos a descer pela Avenida do Congresso e darmos uma espreitadela ao primeiro bar que encontrarmos?
Will cofia o bigode castanho-arruivado.
- O Sr Shoemaker esquece-se de que agora sou um homem casado! No que me diz respeito, Guy Town e os seus prazeres para solteiros retiraram-se para trás de um véu de mistério.
O carreiro pelo qual seguem, contorna um monte alto de cascalho. Quando chegam ao outro lado, Dave para abruptamente. Franze o sobrolho.
- Que diabo...?
Will segue o olhar de Dave, para ver o que chamou a atenção do amigo. Aproxima-se, depois recua, virando a cabeça para a esquerda e para a direita, como se ver a coisa do ângulo certo pudesse explicá-la.
- Não se pode dizer que seja uma visão agradável, pois não?
16Dave espreita os lábios apertados e o rosto inexpressivo e inerte da senhora. Abana a cabeça.
- De modo algum, se queres a minha opinião! Quando é que isto aconteceu?
- Não sei.
- Deviam tapá-la!
Will ergue uma sobrancelha.
- Não vejo porquê. Está decentemente vestida, não está? E não me parece que venha aí chuva.
Dave acena distraidamente. Desloca-se de um bocado para outro, observando cuidadosamente as várias partes da senhora.
- O Sr Gaines, Ia no Statesman, ha-de querer mandar ca um desenhador - murmura.
- Não percebo porquê - diz Will. - Ela é horrorosa. - Aproxima-se do torso desmembrado e dá-lhe um pontapé. A pancada reverbera com um tinido oco e metálico. - Presumo que seja da perspectiva: não estava previsto que alguém a visse assim tão de perto. Há qualquer coisa de grotesco num espécime tão avantajado de feminilidade. Quem é o homem que não se sente nervoso ao por a vista em cima de uma mulher que, mesmo esquartejada, é três vezes maior do que ele? Quero dizer, à distância certa, depois de convenientemente montada e soldada, e depois de colocada no topo da cúpula do Capitólio, suponho que toda a gente dirá que é uma verdadeira beleza. Mas assim ao perto, bem, se há rosto capaz de fazer parar um relógio...
- De facto, é uma senhora para quem faz impressão olhar - concorda Dave. - Também é verdade que nunca ninguém disse que a Liberdade tem de ser bela. Mas diz-me lá, por que razão terá o braço esquerdo levantado daquela maneira? Parece que se está a agarrar a um cilindro de ar.
- Francamente, Dave Shoemaker! Trata-se da Deusa da Liberdade, não trata? Calculo que deva ter na mão uma rocha qualquer. Ou talvez uma estrela.
- Ah, pois. Uma deusa. Isso explica as túnicas e panos drapejados com que a vestiram. E o facto de estar descalça!
juntos, examinam os vários bocados dispersos da estátua da Deusa da Liberdade, o monumento destinado ao topo do Capitólio.
- Quando chegaram os moldes daquele catálogo de peças de Chicago, ela recebeu uma certa cobertura no Statesman - recorda Dave. - Há uma oficina na cave do Capitólio, onde a moldaram em zinco. Os trabalhadores
17devem tê-la arrastado ca para fora hoje, às primeiras horas da manhã, prontinha para ser montada. Uma deusa encomendada por correio, mas veio de Chicago, não do Olimpo!
Will solta uma gargalhada, mas sente-se vagamente apreensivo enquanto prossegue o seu exame dos bocados da estátua. É a escala monstruosa da coisa, pensa ele, e o facto de estar espalhada por todo o lado, como se estivesse aqui nos terrenos do Capitólio entregue aos seus pensamentos, a fazer o que faz uma deusa da liberdade, e um indivíduo igualmente monstruoso tivesse aparecido e a tivesse esquartejado com um machado monstruoso...
A mesma imagem parece ocorrer a Dave nesse instante, porque o olhar que trocam entre si permite-lhes ver nos olhos do outro o reflexo de uma mesma sombra.
Estão a pensar nela.
Estão a pensar em todas as mulheres que foram brutalmente assassinadas em Austin numa longa e bizarra sequência de homicídios, ainda frescos na memória de todos. Recordam-se de uma mulher em particular. À luz desses crimes horrendos, a visão de uma mulher desmembrada nos terrenos do Capitólio não é caso para rir, mesmo que se trate apenas de uma estátua de zinco.
Nesse dia de 1888, nem Dave nem Will teceram qualquer comentário relativamente a imagem que lhes ocorreu. Voltaram costas a estátua desmembrada, retomaram a discussão sobre o sítio onde iriam almoçar e estugaram o passo para longe dali, não voltando a pensar na senhora que jazia em bocados nos terrenos do Capitólio. O que encerrou o assunto, naquele dia de Fevereiro de há quase vinte anos.
Mas no sonho de Will Porter, há uma sequela.
No Sonho, enquanto eles se afastam, Will olha de relance por cima do Ombro, como se compelido pela terrível premonição da imagem com que vai deparar. Gela-se-lhe o sangue nas veias.
Os bocados da senhora continuam a ser monstruosos - três vezes o tamanho natural -, mas ela deixou de ser feita de zinco e de estar envolta em panejamentos. Esta nua e é feita de carne branca e pálida. As zonas do corpo por onde tinha sido esquartejada deixaram de ser limpas, ocas e de metal brilhante; escorrem sangue e entranhas palpitantes.
A boca permanece fechada. Os olhos azuis permanecem abertos e fixos no céu. Nisto, pestaneja.
Num gesto lento e aterrorizador, ergue a cabeça. As proporções continuam a ser extraordinárias e arrepiantes, mas a mulher deixou de ser
18feia. É bela, e a mulher mais bela que Will alguma vez contemplou. Olha directamente para ele. Ele pronuncia o nome dela.
- Eula!
A palavra sai-lhe como um soluço. Eula, da palavra grega que significa ”bem”...
Will acorda sobressaltado.
Tem a camisa de dormir encharcada em suor. Sente a cabeça a latejar. Por momentos, não se lembra de nada. Só consegue pensar que deve ser um efeito do uísque. Se tivesse juizo, desistia do veneno de uma vez por todas.
Nisto, num lampejo, recorda-se.
já não é a primeira vez que tem este sonho. Ocorre-lhe de vez em quando, este sonho-memória de estar novamente em Austin, passeando pelos terrenos do Capitólio na companhia de Dave Shoemaker e dando de caras com a Deusa da Liberdade em bocados.
Ocorreu-lhe - afinal de contas, é um escritor profissional e tudo o que se atravessa na sua direcção é grão para o moinho - que este episódio podia dar uma história. Podia dar-lhe uma reviravolta peculiar: ludibriava o leitor, levando-o a pensar, no início, que a senhora em bocados é uma senhora verdadeira, de carne e osso, e mostrava os dois homens avançando na direcção dela, sem suspeitarem de nada. Levava-os a dar de caras com ela e fazia-os reagir de uma maneira que nunca se coadunaria com a reacção normal de dois homens que acabam de descobrír um corpo mutilado - por exemplo, envolvendo-se numa conversa ligeira sobre a fealdade da mulher. Por fim, fazia com que um deles lhe desse um pontapé expedito e, através do ruído metálico e oco, levava o leitor a perceber que a senhora é apenas uma estátua de metal...
Mas Will nunca tinha escrito esta história. Nenhum editor sensato a publicaria. Uma mulher esquartejada, independentemente do material de que é feita, muito dificilmente pode ser considerada matéria para uma história de ficção. Pelo menos nos Estados Unidos da América, pelo menos no ano de 1906; na verdade, em nenhum sítio ou ano que ele consiga imaginar.
Will sacode a cabeça, tentando por de parte estas imagens. já tinha tido este sonho mas, desta vez, havia uma diferença. Desta vez, a estátua passava a ser de carne e osso no final, transformando de imediato o que era apenas um sonho levemente perturbante num pesadelo medonho. Will estremece.
19De súbito, a camisa de noite encharcada torna-se-lhe intoleravelmente colante. Cola-se-lhe ao corpo quando tenta despi-la pela cabeça e conseguir livrar-se dela transforma-se numa verdadeira batalha.
Que horas serão? A luz que o candeeiro da rua derrama através das gelosias da janela chega à justa para iluminar o relógio que está em cima da cómoda. Três e meia! Will levanta-se e atravessa despido o quarto grande, passando pela lareira e pela escrivaninha e parando junto da sacada da janela. Sobe a gelosia do lado direito e levanta a janela de guilhotina. O ar fresco arrefece-lhe o suor do peito nu, mas Will compraz-se com a sensação. A rua está deserta. As janelas do outro lado da rua estão fechadas. Às três e meia da manhã, até a grande metrópole nova iorquina está em silêncio.
Baixa a gelosia, mas deixa a janela aberta para arejar o quarto. Acende o candeeiro eléctrico da escrivaninha. Uma caneca cheia de lápis afiados está pousada ao lado de uma resma de folhas, todas elas acusadoramente brancas. Desde que assinou contrato com a New York Sunday World Magazine, a sua agenda não lhe tem dado tréguas. Tem de lhes entregar uma história por semana - cinquenta e duas histórias por ano! O desafio acabou por se revelar menos assustador do que parecera à primeira vista, sobretudo a cem dólares por história. Na verdade, Will descobriu que era capaz de escrever ainda mais histórias, especialmente para uma revista que paga mais do que a World. Há dias em que acaba de escrever uma história na manhã em que tem de a entregar à World, decide que é suficientemente boa para a Munseys, envia-a por estafeta ao seu editor nesta revista, a história é aceite e ele acaba por entregar outra história totalmente diferente à World em cima do prazo dessa mesma tarde. Às vezes, tem a sensação de que é, não tanto um escritor, mas um polícia-sinaleiro; as histórias disparam em todas as direcções dentro da sua cabeça e o seu trabalho consiste apenas em evitar que elas colidam umas com as outras.
Ocasionalmente porém, e sem motivo aparente, há uma paragem no tráfego. As pessoas que habitam a sua mente cessam de murmurar e quedam-se em silêncio. Os fantasmas banhados de sol da sua juventude texana retiram-se para trás de uma cortina de sombras. O poço da sua inspiração seca.
Felizmente, a branca é sempre temporária. As histórias depressa voltam a circular, mais rapidamente do que ele as consegue registar no papel. Mas a seca que o assola presentemente não podia ter vindo em pior altura.
20Neste momento, tem quatro histórias prometidas a quatro editores diferentes, a data de entrega de duas delas já foi ultrapassada, e não ha sequer um argumento a ser chocado, nem uma palavrinha que seja posta no papel.
Quatro histórias, pensa ele. Quatro histórias não é nada! Só em Nova iorque, devem existir pelo menos quatro milhões de histórias, uma por cada rosto que passa na rua. É verdade que as histórias acabam sempre por vir. Mas a ideia é chegarem a intervalos regulares, para que haja sempre cheques a entrar. Os cheques de que precisa para pagar o quarto, o uísque e as consultas dos médicos que lhe passam receitas para a insónia e para as constantes dores nas costas. E cheques para pagar a educação da sua filha, que vive em Pitsburgh.
Abre uma gaveta da cómoda. Faz deslizar pelos ombros uma camisa de noite lavada e fecha a janela, pois o quarto parece-lhe subitamente gelado.
Senta-se à escrivaninha e olha fixamente para uma folha de papel. Talvez possa fazer qualquer coisa com o sonho, apesar de tudo, embora não seja o género de escritor que tenha por hábito recorrer aos sonhos como fonte de inspiração. As suas histórias são sobre o mundo em vigília e quaisquer sonhos que possam conter são sonhos acordados - o tipo de sonhos com que se deleitam as funcionárias de balcão entediadas e os empregados de escritório solitários. As fantasias sobrenaturais não lhe interessam. Nem as alegorias. Nas suas histórias, um pato é um pato, e se abre a boca é para grasnar. Bom, agora que pensa nisso, é verdade que, em tempos, escreveu uma conversa entre duas estátuas femininas
- a Diana do cimo da torre do Madison Square Garden e a Estátua da Liberdade do porto. Mas tratava-se de uma paródia, e não de um conto de fadas. Diana, a deusa da caça, com o arco dourado apertado entre os braços, e tendo por única vestimenta uma faixa de cobre que esvoaçava atrás dela, troçava da cena social dos cafés. Lá em baixo. A Liberdade, de tão habituada a dar as boas-vindas aos barcos cheios de imigrantes provenientes de Dublin, apanhava um sotaque irlandês.
Pega num lápis mas, em vez de escrever, esboça uns traços. Sempre teve inclinação para o desenho. Antes mesmo de se dar conta do que está a fazer, descobre que acaba de desenhar de memória o edifício do Capitólio do Estado do Texas, em Austin, rodeado por uns floreios que pretendem representar as árvores. No topo da cúpula, deixa inacabada
21a Deusa da Liberdade, pois não consegue lembrar-se do que ela segura na mão erguida - uma estrela, uma foice, uma rocha?
Acaba por decidir que um pesadelo não é sítio para ir beber inspiração. O sonho da senhora esquartejada não tem nada de que ele possa fazer uso, e não vale a pena continuar acordado. Talvez uma pequena dose de uiSque o ajude a retomar o sono.
22Will continua a dormitar até depois das dez.
O seu quarto fica no primeiro andar de um edifício de quatro andares de arenito avermelhado. Inicialmente projectado para albergar uma só família, serve actualmente de residÊncia a vários inquilinos, para além da senhoria. O quarto em que vive tinha sido pensado como sala de estar; daí as dimensões generosas, a enorme lareira e a janela de sacada com vista para a Praça Irving. Mesmo à saída da sala de estar, uma antiga despensa tinha sido convertida na sua casa de banho privativa. Estes espaçosos aposentos eram o suficiente para as suas necessidades de solteiro.
Às dez e meia, ouve o som de alguém a bater à porta de entrada do edifício. Momentos depois, a porta é aberta. Chega-lhe vagamente aos ouvidos uma conversa entre duas vozes femininas. Instantes mais tarde, alguém bate levemente à porta do seu quarto. A visita deve ser para ele.
Fica instantaneamente desperto, com o peito apertado de ansiedade. Poucas mulheres o visitariam sem terem avisado com antecedência e sem se fazerem acompanhar. Adivinha de imediato quem deverá ser: a última pessoa do mundo que ele deseja rever. Imagina que se afunda na cama, que é engolido por ela e que desaparece para sempre. Uma passagem secreta, pensa ele: todas as casas deviam ter uma passagem secreta, para fugas rápidas.
Sem esperar pela resposta, a empregada abre a porta, entra e puxa-a para si, deixando-a quase fechada. Chama-se Lena. Veio de um país algures na Europa de Leste. Fala bem inglês, mas com um sotaque bastante carregado.
- Posso entrrarr, Sr. Porrterr?
Ele espreita por cima dos cobertores, pestanejando ante a ofuscante luz matinal que entra pelos contornos das persianas.
- Parece-me que já está cá dentro! - dispara. - Logo, não pode ”entrar”, a não ser que volte a sair e faça tudo novamente.
23Lena franze ligeiramente a testa, dando a entender que lhe tinha escapado qualquer coisa.
- Esta lá forra uma senhorra a perrguntarr porr si.
- Uma senhora? Quem? - Will sente a boca seca.
- Não disse o noume, Sr. Porrterr. É a meisma da outrra vez. A meisma senhorra que esteve cá no mêis Passado.
Cai-lhe o coração aos pés. Era inevitável, obviamente. Tendo aparecido uma vez e obtido o que queria, era inevitável que voltasse à procura de mais. Will cora, numa violenta mistura de vergonha, impotência e raiva. Puxa os cobertores para cima por forma a esconder o rosto de Lena, que desata a rir, interpretando o gesto como sinónimo de pudor. À sua maneira, Lena é uma mulher do mundo. Tendo crescido numa casa pequena, rodeada de irmãos e de primos, não tem grandes noções de conveniência e demonstra pouco respeito pela ideia de privacidade.
- Digo a senhorra parra irr emborra, Sr. Porrterr?
- Não! Não, peça-lhe apenas para aguardar um momento.
Lena acena com a cabeça e sai do quarto, fechando a porta atrás de si. Ele levanta-se e enfia um roupão por cima da camisa de dormir. Arranja o cinto de pano desajeitadamente, com os dedos a tremer, e enfia os chinelos de quarto. Ao passar diante da lareira, olha de relance para o espelho que se encontra por cima da cornija e fica siderado com o que vê. Em vez do queixo trocista e do brilho de aço do olhar com que esperava dar de caras, vê dois olhos amedrontados acima de um trejeito idêntico àquele que faria um homem com uma dor de dentes. O medo que tem dela é assim tão transparente? Não admira que ela o pressione tanto!
Aproxima-se da porta. Estende o braço, mas apercebe-se de que tem de se dominar para completar a tarefa, como se o metal do puxador estivesse em brasa. E mesmo quando já esta a rodar a maçaneta, da ainda uma espreitadela por cima do ombro, tentando imaginar onde estará o alçapão da passagem secreta. Debaixo do tapete? Atrás do roupeiro? E aonde irá dar? À rua? Não lhe serviria para nada. A única passagem secreta que o poderia ajudar era uma passagem que desembocasse no passado. Não é para onde toda a gente deseja escapar? Isto sim, pensa ele, isto poderia ser material para uma história...
Mas tal passagem secreta não existe. Não ha nada a fazer, a não ser rodar a maçaneta e abrir a porta. A sua visitante, uma mulher de meia-idade mas ainda com boa figura, está sentada com uma pose afectada
24na cadeirinha da antecâmara. Levanta-se, olhando para ele com uns olhos tristes, apertando uma malinha de mão e alisando as pregas da saia comprida. A malinha de mão preta, debruada a renda vermelha e pérolas, condiz com as luvas pretas e com o chapéu preto. O vestido que enverga é preto, com as pregas estriadas a vermelho. Veste-se muitíssimo bem para uma mulher que afirma estar a precisar desesperadamente de dinheiro.
- É muito gentil da sua parte receber-me, Sr. Porter. - Apesar de ter sido transplantada para Nova Iorque há muitos anos, a mulher conserva o sotaque e os modos de uma beldade do Texas. Estas maneiras apelam irresistivelmente a educação de Will, pelo que ele recua automaticamente para a deixar entrar no quarto, fechando depois a porta.
- Vejo que vim demasiadamente cedo - diz. - Perturbei-lhe o sono. As minhas desculpas, Sr. Porter.
É totalmente absurdo ela desculpar-se por o tirar da cama, quando a sua última visita lhe perturba o sono desde então! A atitude untuosa da mulher é indecente; teria preferido ser espancado e assaltado por bandidos num beco escuso. Ele gostaria de gritar com ela, mas cerra os maxilares com força, obrigando a raiva a escorrer, como ferro incandescente, até aos punhos. Faz um esforço para que o seu rosto nada revele mas, quando volta a olhar de relance para o espelho, é confrontado com as feições funéreas de um homem apanhado numa armadilha. A coberto da fachada de melancolia que revela, a mulher deve estar a rir-se dele.
- Que quarto agradável o seu. Suponho que aquela empregada encantadora lho arrume - diz, reparando numa camisola interior atirada ao acaso para as costas da cadeira da escrivaninha. - A luz deve ser excelente quando as gelosias estão subidas. Ja era tarde da última vez que o visitei; estava demasiado escuro Para poder apreciar a luz que entra pelas janelas. Recorda-se?
- Sim. - Ele sente a boca seca.
- Foi muito gentil comigo aquando da minha última visita, Sr. Porter. Muito compreensivo. E generoso.
- Por que voltou? - A voz sai-lhe neutra. Ele desejaria poder dirigir-se-lhe com mais rispidez, mas limita-se a secundar a curialidade afectada e inexpressiva da mulher, adoptando os modos decorosos da juventude de ambos.
- Oh, Sr. Porter, receio que as circunstâncias em que me encontro não tenham melhorado significativamente, mau-grado a sua gentileza anterior.
25- Pelo amor de Deus, mulher, está casada com um corretor de Wall Street! - A raiva chegara finalmente à tona, embora ele não tenha levantado a voz. Lena ainda podia estar no vestíbulo.
Ela esboça um sorriso melancólico e até faz aparecer uma lágrima no canto do olho, como que demonstrando quão corajosamente tem suportado a adversidade.
- Tem razão, Sr. Porter, é verdade que me casei com um corretor. E o senhor diz essas palavras como quem acrescenta ”e viveram felizes para sempre” no fim da história, e talvez isso se possa escrever num dos seus contos. Infelizmente, nem todos os corretores são ricos. E, mesmo quando o são, nem todos os homens são necessariamente tolerantes com uma esposa que acumula dívidas insensatas e dá por si penhorada junto das pessoas erradas. - Solta um suspiro. - Eu achava que era duro viver em Austin, mas Nova Iorque e muito mais dura do que Austin alguma vez foi, com pessoas mais duras. Não concorda, Sr. Porter?
- Não necessariamente. Embora esta cidade possa trazer ao de cima a dureza de certas pessoas.
Ela esboça um sorriso ferido.
- Oh, Sr. Porter, assevero-lhe que sou exactamente a mesma pessoa que conheceu em Austin, quando éramos ambos jovens. Recorda-se de como o senhor e os seus amigos costumavam andar de um lado para outro, fazendo serenatas a jovens senhoras?
- Nunca lhe fiz nenhuma serenata - respondi.
- Não. Mas tenho a certeza de que o ouvi cantar algures, pois lembro-me da sua voz. Um baixo de timbre cheio, e como a recordo. Bastante profunda e ressonante. Oh, ser jovem e cantar como um pássaro, pelo simples prazer de estar vivo! Mas estava a esquecer-me de que, no final, Austin veio a ser ainda mais dura para si do que para mim. As coisas acabaram de uma maneira horrível para si. - Enruga a testa numa expressão de consternação. A hipocrisia desmesurada desta mulher gela-lhe o sangue.
- Não Posso dar-lhe tanto como da última vez - diz.
- Oh, Sr. Porter, o simples facto de poder valer-me constitui para mim um imenso alívio; nem consigo expressar-lhe quão grande! - Toca ao de leve com a mão na garganta, como se reprimisse um soluço de gratidão. A luva preta produz um efeito admirável sobre a sua pele branca. Para uma mulher de quarenta e tal anos, é ainda muito atraente, e ele
26não tem qualquer dificuldade em recordar-se do encanto que ela exalava quando eram jovens. Era estranho que tivessem vindo parar os dois a Nova Iorque, passados tantos anos! A julgar pelas aparências, tudo indicava que, após contrariedades assaz penosas, ambos tinham conseguido obter sucesso. Ele tornara-se um escritor famoso; ela casara-se com um corretor proeminente. Para qualquer um deles, porém, o sucesso não tinha sido suficiente. E agora, depois de todas as voltas e reviravoltas das suas vidas separadas, tinham os dois acabado na mesma cidade, no mesmo quarto, e em circunstâncias tão curiosas como as de um dos finais imprevisíveis que o tinham tornado célebre.
Das duas uma: ou os pensamentos dela tinham tomado o mesmo rumo, ou ela achou que era apropriado usar de um pouco de lisonja.
- Sabe, ainda me custa a crer que seja o Henry; que o escritor mais
famoso de Nova Iorque seja, na verdade, Will Porter. Ainda me recordo de uma vez em que me atendeu ao balcão de uma drogaria, em Austin!
- Bill.
- Como diz?
- Nos tempos que correm, o meu nome é Bill Porter e não Will. Os meus amigos tratam-me por BilI, embora não tenha a certeza de como deve tratar-me.
Ela pestaneja e faz um sorriso fugaz.
- De Will para Bill; essa mudança faz parte do corte que fez com o passado? Deixe-me ver, o que é que se seguiu ao trabalho na drogaria? Acabou por se casar com Athol, evidentemente. E arranjou emprego na Dírecção-Geral do Território; como desenhador, não foi? Era um bom rendimento, mesmo com uma mulher e um bebé para sustentar. Depois começou a publicar aquele jornalzito com desenhos e histórias que faziam rir toda a gente, à excepção daqueles que eram expostos ao ridículo nas suas peças. Como é que se chamava o jornal?
Ele mal consegue articular. Porque é que ela tem de falar disto tudo?
- The Rolling Stone - responde.
Ela faz um aceno de cabeça.
- Foi pura vaidade, não foi? Pôr o jornal ca fora custava-lhe mais dinheiro do que o que poderia vir a obter com as vendas. Tanto quanto me recordo, foi sensivelmente por essa altura que começou a trabalhar no banco, a manusear todos os dias aquele dinheiro todo. Tanto dinheiro a passar-lhe pelas mãos. Até que as coisas começaram a piorar: a tuberculose
27pulmonar de Athol, e a sua... como é que se diz? É um termo legal. Ah! Compelação. A sua compelação por fraude ao banco. Depois, fugiu para um sítio qualquer na América Central. Estava toda a gente convencida da sua inocência, embora ninguém percebesse como tinha sido capaz de abandonar Athol tão doente, e com bebé a precisar de quem olhasse por ele. Athol foi piorando cada vez mais até que, finalmente, o senhor lá regressou. Nessa altura, Athol morreu. Pobre Athol! A isto, seguiu-se o julgamento. Deve ter sido horrível para si! Por fraude.
- Ela parece retirar um prazer especial da articulação desta palavra, como se se tratasse do refrão de um poema. - Claro está que nenhum dos seus amigos acreditou, por um segundo que fosse, que houvesse um Júri capaz de o considerar culpado de uma coisa tão terrível. Mas o mundo é um sítio intrigante, não é? Eles consideraram-no de facto culpado. Culpado de fraude.
Ele consegue falar, mas as palavras que gagueja saem-lhe num tom mais agudo do que o pretendido:
- Como se atreve? Não tem vergonha? O seu... o seu passado não é... não é exactamente puro...
- Mas nós não estamos a discutir o meu passado - atalha ela com rispidez. Solta um suspiro e da uns passos pelo quarto. - Sempre o tratámos por Will. Presumo que os seus companheiros da prisão também o tratassem por este nome. Mas agora que cumpriu a sua pena, que as suas transgressões pertencem ao passado e que tem uma nova vida aqui em Nova Iorque, passou a ser Bill. Suponho que isso torna efectivamente menos provável que alguém possa vir a estabelecer uma ligação entre o seu passado e o seu presente. Will Porter, Bill Porter - são nomes tão comuns que poderiam facilmente corresponder a duas pessoas diferentes. Will Porter usava bigode; Bill Porter não. Embora nada possa disfarçar esses maravilhosos olhos azuis. E, claro, tem um pseudónimo atrás do qual se esconde. Mas o que pensariam todos esses milhares e milhares de leitores se soubessem que O. Henry tinha sido condenado por ter desviado fundos de um banco no Texas? Se descobrissem que ele foi um vulgar presidiário?
Pela expressão do rosto dele, ela apercebe-se de que está a esticar demasiadamente a corda. E, muito embora não aparente sinais de medo, opta por retroceder alguns passos.
- Mas tudo isto são águas passadas. A sorte sorriu-lhe, Will. Ou Bill. Nem todos podemos dizer o mesmo. É famoso. O. Henry é um nome
28feito, pelo menos em Nova Iorque, o que significa que depressa será famoso em toda a parte. No Natal passado, toda a gente leu o ”O Presente dos Reis Magos” no World uma história maravilhosa! E vi Cabbages and Kings em todas as livrarias. Os críticos devem perguntar a si próprios aonde é que O. Henry foi buscar tantos conhecimentos acerca dos trópicos. Como é que se chama aquele país mítico onde se passam as histórias... Anchúria? Não creio que esses críticos saibam dos seis meses que passou a monte nas Honduras. O que aconteceria se um dos seus editores viesse a saber do seu passado? Ou, e queira Deus que tal não aconteça, se essa história chegasse aos ouvidos de um jornalista sem escrúpulos de um jornal da concorrência? A mera consideração desta possibilidade deve ser um fardo terrível para si, terrível!
Ela abana a cabeça, representando na perfeição o papel de uma mulher deveras preocupada com um velho amigo.
Ele sente-se aturdido. Os cantos do quarto parecem deslizar para fora do seu lugar e ele vacila ligeiramente, tentando equilibrar-se. Ousou dirigir-lhe umas palavras frias, e o resultado é isto: ela responde ao gelo com fogo. Tenta engolir, mas sente a garganta apertada.
- já lhe disse que não posso dar-lhe tanto quanto lhe dei da última vez.
- Mas tem histórias publicadas em quatro revistas diferentes este mês! Eu vi-as...
- Não é assim que as coisas funcionam. O dinheiro entra em alturas incertas: as vezes antes de a história ser publicada, outras vezes depois... e tenho despesas fixas que não posso deixar de assumir.
- Ah, é verdade, como sustentar a sua filha. Confesso-lhe que estava curiosa quanto ao destino dela. Fiz umas perguntas aqui e ali. Sei que vive em Pitsburgh, e que está a ser educada por uns familiares de Athol. Que coisa tão triste, uma rapariga perder a mãe tão cedo. E ser separada do pai num momento tão delicado, em circunstâncias tão cruéis. Que idade tem ela agora, dezasseis? Está quase uma senhora, pronta a enfrentar o mundo. Imagino que ainda lhe causaria maior sofrimento do que a si, se alguma vez viesse a saber...
- Por amor de Deus, não pode deixar-me em paz?
Ela observa-o impassível, com um olhar desprovido, quer de malícia, quer de súplica.
- Não, não posso deixá-lo em paz, Sr. Porter. Preciso da sua ajuda e tenho de obtê-la. A minha situação é tal, que não tenho mais ninguém
29a quem recorrer. Preciso de dinheiro e não tenho outra forma de o arranjar, a não ser vindo ter consigo. Da última vez que aqui estive, pedi-lhe mil...
- E eu disse-lhe que isso era impossível!
- No entanto, se me tivesse dado a quantia que lhe pedi nessa altura, eu poderia não ter regressado, ou pelo menos não teria tido necessidade de regressar tão cedo. Deu-me apenas cento e cinquenta dólares. Preciso que me dê pelo menos o mesmo hoje.
- Isto é um crime. Sabe disso. O que está a fazer é um crime.
- É um crime uma senhora em apuros pedir a um cavalheiro, a um velho conhecido, que a ajude? Não creio que seja.
- É chantagem. Outra vez!
- Que palavra tão feia, Sr. Porter. Quase tão feia como outra: fraude. Ha, com efeito, um criminoso condenado neste quarto, mas não sou eu. Ele estremece.
- Presumo que lhe posso passar um cheque. Ela solta uma gargalhada.
- Oh, de modo algum! Não pode haver nenhum registo desta transacção a que o meu marido tenha hipótese de aceder. Não, preciso desta quantia em dinheiro. Da última vez que aqui estive, o senhor tinha dinheiro disponível. Creio que o tirou da cómoda. Observei-lhe que era um hábito avisado, esse de manter algumas centenas de dólares num sítio facilmente acessível. Talvez se recorde de que lhe sugeri veementemente que adoptasse o hábito de ter essa soma à mão... para futuras emergências.
Ele vai buscar as chaves a mesa-de-cabeceira. A mão que as segura treme, fazendo com que as chaves se agitem com um tinido metálico. Abre a gaveta de cima da cómoda, onde guarda, não só o dinheiro, como também alguns objectos pessoais que quer resguardar de olhos curiosos. Uma fotografia antiga de Athol, que data dos tempos em que eles namoravam, e outra de Margaret, sentada no pónei de um carrossel. A maioria dos homens teria estas fotografias orgulhosamente a vista mas, no caso dele, poderiam suscitar perguntas às quais ele prefere não ter de responder. Também lá tem cartas e postais, alguns enviados por amigos que tinha feito na penitenciária do Ohio. Lena limpa-lhe o quarto regularmente e a gaveta fechada à chave é o único sítio que lhe é inacessível. Neste momento, não pode deixar de pensar no ridículo da situação:
30a gaveta fechada que lhe permite manter os segredos a salvo da empregada que, apesar da sua condição humilde e do seu inglês defeituoso, é uma mulher decente e honesta, e totalmente impotente para protegê-lo da sua visitante, a respeitável esposa de um corretor, que frequenta os bailes da sociedade e que ninguém suspeitaria, por um momento sequer, que fosse capaz de uma atitude menos própria.
Tira da gaveta algumas notas dobradas.
- Aqui tem, confirme. É pouco mais de cem. É tudo o que tenho. Ela solta um suspiro.
- Bom, terá de chegar... por ora. Coloque-as sobre a mesa, por favor.
- Ela não aceita o dinheiro directamente das mãos dele. Talvez pretenda manter uma distância judiciosa; repara na maneira como os dedos lhe tremem e talvez os imagine em torno do seu pescoço. Ou achará que arrancar-lhe o dinheiro da mão é excessivamente ganancioso, demasiadamente baixo para ela?
Ele atira o maço de notas para cima da mesa.
- Por favor, conte-o - diz ela.
Ele obedece, pegando nas notas e dispondo-as sobre a mesa, uma a uma, contando em voz alta.
- Dez, vinte, trinta...
- Só depois de ter pousado a última nota é que se apercebe do jogo dela. Induziu-o a mimar a função que ele desempenhava como caixa no banco. Tratar-se-á de uma piada de mau gosto, de outra maneira de lhe recordar a profissão que o levou a desgraça? Que tipo de monstro é esta mulher, que continua a torturá-lo mesmo depois de ele já ter aquiescido?
Ela pega nas notas e deposita-as na malinha de mão.
- Obrigada, Sr. Porter. Estou-lhe sinceramente grata. O senhor sempre foi um cavalheiro.
A vontade dele e acrescentar: ”E voce nunca foi uma senhora.” Mas ela já deixou bastante claro que não tolera insultos jocosos e que o mais ligeiro desvio desta absurda farsa de decoro que ambos representam será punido com palavras muito mais duras do que aquelas que ele é capaz de pronunciar. Ela dirige-se para a porta e tem a desfaçatez de esperar que ele a abra. Por momentos, ele pensa resistir, amaldiçoando-a com uma praga silenciosa mas, incapaz de lhe fazer frente e desesperado para se ver livre dela, acaba por se dirigir à porta e abri-la.
- Obrigada, Sr. Porter. Não precisa de me acompanhar a saída. Tenha um bom dia. Escreva qualquer coisa interessante! Nova Iorque em peso
31anseia pelas suas histórias maravilhosamente interessantes. Temos imenso orgulho em si e no seu enorme sucesso!
Ela da uns passos pela antecâmara. De súbito, sem pensar, ele diz:
- Vi Eula ontem à noite!
Ela pára.
- Num sonho. Estava novamente em Austin. Vi Eula...
Os ombros dela estremecem ligeiramente e a cabeça agita-se-lhe com um movimento estranho, mas não se vira para tras. Continua a andar até a porta do prédio, abre-a, avança para o patamar e fecha a porta com estrondo atrás de si. Ele ouve-a descer o pequeno lanço de escadas até ao passeio.
Fecha a porta e vai até a janela. Por trás de uma das gelosias, espreita para a rua, frustrado por não conseguir ver-lhe o rosto. Ela leva uma mão a testa. Lágrimas? Uma tontura? Ou apenas uma pausa para deliberar? Passado um instante, volta-se para norte e dirige-se para a Praça Irving, em direcção a Gramercy Park, onde ficam as grandes mansões onde vivem as mulheres dos corretores e dos banqueiros.
32Às duas horas dessa mesma tarde, toma o primeiro uísque do dia, para ajudar a assentar um almoço tardio que comeu na Pete’S Tavern.
Após um começo desastroso, o dia prosseguiu no rumo certo. Depois da saída da visitante, tomou um banho, vestiu-se, robusteceu-se com o café forte de Lena e tentou escrever qualquer coisa. Durante cerca de duas horas, escrevinhou disparates, tentando em vão encontrar inspiração para um conto. Para conseguir dar início a uma história propriamente dita, já tem de ter o argumento na cabeça; depois disso, a escrita flui-lhe sem dificuldade. Hoje, contudo, a sua cabeça está vazia de histórias; a única coisa que lhe povoa a mente é um vago desconforto remanescente do pesadelo e a angústia cortante provocada pela visita que recebeu.
A Pete’S Tavern é a sua segunda casa. Fica apenas a uns passos do seu quarto, na esquina da Praça Irving com a 18.a Rua. Os empregados reservam-lhe o seu lugar preferido, o primeiro cubículo depois da entrada, defronte do balcão. Quando ele se sente com disposição para falar, o empregado do bar e os empregados de mesa têm todo o Prazer em fazer conversa que, regra geral, incide sobre o último conto que saiu no World. (”Aquilo aconteceu mesmo, Sr. Porter, ou foi o senhor que inventou tudo?”, ”Chegou mesmo a conhecer um indivíduo como aquele Ranger do Texas? Quando é que viveu na costa oeste?”, ”Aquela história de amor da semana passada, aposto que foi baseada naquele casal jovem que costuma almoçar no reservado ao lado do seu. Diga lá se não tenho razão?!”) Quando quer estar sozinho, eles deixam-no em paz.
Hoje, a sua companhia resume-se a um bloco de papel em branco e um lápis e, até ao momento, ainda não tocou em nenhum deles. O facto de estar em cima do prazo aflige-o...
Como se estivesse à espera desta deixa, a porta abre-se, deixando entrar um moço de recados com cerca de catorze anos. O rapaz dá uns passos cautelosos e espreita para dentro do reservado.
Porter devolve a espreitadela.
33- Deixa-me adivinhar - diz ele. - Trabalhas para a World, não é verdade?
- Sim, senhor. O senhor é o Sr. Porter?
- Isso depende, rapaz. Não creio que aquele editor avarento te tenha mandado vir trazer ao Sr. Porter um inesperado bónus financeiro, num gesto de reconhecimento pelo seu trabalho árduo?
O rapaz enruga a testa.
- Bem, não, Sr. Porter.
- Compreendo. Então está definitivamente decidido que não sou o Sr. Porter.
- Oh, mas tem de ser. Disseram que se não estivesse em casa, o mais provável era estar aqui, no primeiro reservado. E, meu dito, meu feito, aqui está o senhor.
- Devo depreender que já estiveste em minha... quero dizer, que já foste procurar o Sr. Porter à residência dele?
- Sim, senhor. Mas como o senhor não estava lá...
- Como o Sr. Porter não estava em casa, queres tu dizer. O rapaz encolhe-se.
- Pare de fazer troça de mim, por favor. O patrão diz para eu não regressar ao escritório sem ter conseguido alguma coisa de si.
- Nesse caso, já estou a ver a manchete de amanhã: ”Moço de Recados da World Desaparecido.”
Ouvindo isto, o empregado irlandês que se encontrava atrás do bar a secar copos com um pano ergue os olhos e solta uma gargalhada.
- Então, entregue-me só uma ou duas páginas - suplica o rapaz.
- Para os tipógrafos irem adiantando trabalho.
Porter arranca do bloco duas páginas em branco e entrega-as ao rapaz. Diz-lhes que é sobre espiões que usam tinta invisível.
Por favor, Sr. Porter! Diga-me ao menos qual é o título, para eles o colocarem na primeira página.
- Muito bem. O conto intitular-se-á: ”Nunca encarregues um rapaz de fazer o trabalho de um homem.” - O empregado de bar da uma sonora gargalhada. Porter ergue uma sobrancelha. - Na verdade, não está mal para título. Soa a conto de O. Henry, não soa? Chefe, outro uísque, por favor. Para celebrar. Temos título!
- A sério, Sr. Porter, o que digo ao patrão?
- Diz-lhe que fizeste o possível. Olha, mostra-lhe isto. - Porter agarra no lápis e escreve:
34Serve apresente para testemunhar que o portador deste documento desempenhou com aprumo a sua missão editorial, enfrentando corajosamente as ruas perigosas e os cruzamentos potencialmente fatais da cidade de Nova Iorque, e resistindo àsfarpas hostis de um espírito agastado, pelo que deve ser agraciado com a maior das honras que a New York Sunday World Magazine, na sua incomensurável sabedoria, seja capaz de conceder.
O. Renry
Porter lê o texto em voz alta, enrola a folha de papel, formando um canudo, e estende-a impetuosamente ao rapaz.
- E agora desanda, jovem, para que a minha musa e eu possamos tomar o nosso uiSque em paz!
Com ar de quem foi inapelavelmente derrotado, o rapaz solta um suspiro e vai-se embora.
- Se aquele rapaz tiver algum juízo... - começa o empregado de bar.
- Que não tem - diz Porter.
- Guarda aquele bocado de papel e emoldura-o. Pode vir a valer alguma coisa um dia.
- Neste momento, vale quase dois dólares e meio, se fizer as contas a quatro cêntimos a palavra.
O empregado de bar passa o uísque ao empregado de mesa.
- Este é por minha conta, Sr. Porter, por me ter feito rir. Folgo em ver que o rapazinho o deixou mais animado. Desde que chegou que está com ar de aranhiço deprimido.
- Estou? Não vejo porquê. - Uma sombra tolda o rosto de Porter. O empregado de bar apercebe-se da mudança de humor e recomeça a secar copos.
Porter aceita o uísque que o empregado de mesa lhe traz, bebe um golo e contempla fixamente as páginas em branco. Ergue os olhos por momentos e repara que, sentado ao balcão, há um cliente que o observa. Porter tem a impressão de que viu este mesmo indivíduo parado defronte do número 55 da Praça Irving quando ia a sair de casa ao início da tarde. Mera coincidência, pensa.
Pega no lápis e começa a desenhar o homem. A cara comprida, os lábios finos e as maçãs do rosto salientes do indivíduo prestam-se à caricatura.
35O homem enverga um casaco justo, preto e comprido, que o faz parecer deveras alto e esguio, mesmo sentado ao balcão. Deve ter pelo menos sessenta anos, mas a sua postura é impecável. Usa a massa espessa de cabelo branco puxada para tras, ao estilo de Paderewski, o famoso maestro. Tem um ar distinto, mas os sapatos estão gastos. Transporta consigo uma bolsa volumosa de cabedal castanho. Parece fora do seu elemento na Pete’S Tavern.
Porter termina o esboço e olha para o exterior pela enorme montra da frente da taberna. Repara que, do outro lado do passeio, no extremo da rua, um jovem de fato às riscas tenta atravessar para o lado de ca. O jovem desce do passeio para a rua mas volta a recuar de um salto, com ar assustado, para evitar um automóvel que se aproximou entretanto.
- Oh não - murmura Porter entredentes - outro. - O jovem em causa é o assistente editorial da Munsey’S, onde Porter tem um conto em atraso. Porter conclui que os seus hábitos são demasiadamente conhecidos e decide que terá de se tornar cliente de um estabelecimento que os seus editores desconheçam, presumindo que haja em Manhattan um estabelecimento em tais circunstâncias.
Esgueira-se para fora do reservado, deixando em cima da mesa o lápis, o bloco e o copo de uísque vazio. O empregado de bar lança-lhe um olhar intrigado.
- Diga a este que fui chamado de urgência. A um funeral. Noutro estado qualquer.
Dito isto, apressa-se a subir o comprido e íngreme lanço de escadas que se encontra ao fundo da sala. Encontra várias portas ao longo do corredor do segundo andar, a maior parte das quais fechada à chave. Experimenta várias delas até encontrar uma que se abre para o que parece ser uma sala de reuniões. Senta-se na cadeira mais próxima, perguntando a si próprio quanto tempo deverá esperar antes de voltar a descer.
De repente, num lampejo, começam a ocorrer-lhe elementos para um conto: um moço de recados que é enviado à procura de alguém... um industrial milionário que se esconde, incógnito, numa taberna... um empregado de bar irlandês... um desconhecido sentado ao balcão. Onde estão o lápis e o bloco? Porter amaldiçoa-se por os ter deixado ficar. Se os tivesse consigo, podia começar a trabalhar de imediato. Cruza os braços e as pernas e pontapeia o ar com o pé, olhando fixamente para o espaço, com a imaginação galopando a toda a brida.
36Nisto, ouve um ruído abafado, mas inequívoco, de passos a subir as escadas. Corre o olhar pela sala. Não há absolutamente nenhum sítio onde possa esconder-se; mesmo que houvesse, quereria realmente que um assistente editorial o descobrisse, assim escondido, como se fosse... Um criminoso.
Subitamente, a história que se está a formar na sua cabeça afigura-se-lhe burlesca, excessivamente medíocre e forçada, mesmo para os leitores da World. Tudo isto é burlesco - a sua carreira de escritor e a minúscula centelha de fama que daí lhe adveio; o véu de segredo que tenta desesperadamente manter corrido sobre o seu passado; a filha que cresce como uma virtual desconhecida para ele; a permanente luta para obter dinheiro. E agora, a chantagista proveniente do passado, determinada a colocá-lo sob ameaça constante...
Os passos atingem o topo da escada e avançam para o corredor. De vez em quando param e ele distingue o som de maçanetas a rodar; o homem está a tentar abrir as mesmas portas que ele tentou abrir e que encontrou fechadas à chave. Talvez se deixe desencorajar facilmente e volte para trás. No entanto, a acreditar na sua experiência no que toca a assistentes editoriais, isso é altamente improvável.
Cruza os braços e as pernas com mais firmeza e pontapeia o ar furiosamente, aguardando o inevitável.
Os passos acabam por se deter junto à porta aberta. Um rosto espreita para dentro da sala - não é o jovem da Munsey, mas o desconhecido que estivera sentado ao balcão momentos antes e que Will surpreendera a olhar para si.
Por momentos, os dois homens observam-se mutuamente. Por fim,
o desconhecido toma a palavra.
- O jovem que vinha à sua procura já foi embora. O empregado de bar disse-lhe que o senhor tinha saído e ele acreditou. - A dicção do desconhecido é assaz precisa, com um sotaque quase imperceptível, alemão, pensa Porter.
- Compreendo - diz Porter, sentindo-se ridículo. O absurdo da situação apenas contribui para reforçar o negrume da sua disposição. O desconhecido entra na sala. Numa das mãos, transporta a bolsa de cabedal castanha. Na outra, segura o esboço feito por Porter.
- Esqueceu-se disto.
Vendo o modelo e a caricatura lado a lado, Porter não consegue reprimir o riso.
37- Receio que o retrato não lhe faça justiça. E não é certamente muito lisonjeiro.
- Pelo contrário. Acho que está excelente. Posso ficar com ele? Tenho uma predilecção especial por este tipo de momentos.
- Com certeza.
O homem desata as correias da bolsa e fez deslizar o papel lá para dentro cuidadosamente.
- O senhor é, obviamente, o Sr. Porter. O Sr. William. Sydney Porter. Escreve histórias sob o Pseudónimo de O. Henry
- Não creio que valha a pena negá-lo.
- Nesse caso, tenho muito gosto em conhecê-lo, Sr. Porter. Chamo-me Kringel. Dr. Kringel.
- E para que revista trabalha o senhor?
O homem parece ficar surpreendido com a pergunta e faz um sorriso tão imperceptível quanto o seu sotaque.
- Acaba de fazer uma piada.
- Espero que sim.
- Curiosamente, trabalho defacto no domínio da edição, embora a publicação que edito não seja nem de perto nem de longe tão popular quanto as revistas onde os seus contos são publicados. já ouviu falar de The Monist?
- Não posso dizer que tenha ouvido. É uma revista de Wall Street? O homem ri-se.
- Feliz ou infelizmente, o monismo não tem nada a ver com moedas. O monismo é uma doutrina filosófica; deriva da palavra grega monos, que significa ”único”. Nós, os monistas, defendemos que toda a realidade é uma unidade orgânica sem partes independentes, que a matéria animada e a matéria inanimada derivam do mesmo princípio unificador e que não existe de facto diferença entre a mente e a matéria. A The Monist é a nossa revista. É bastante mais esotérica do que a World, como é evidente, mas asseguro-lhe que é uma revista bastante respeitada entre os académicos.
- Compreendo. Diga-me uma coisa, Herr Doutor: tê-lo-ei visto à frente do número 55 da Praça Irving, do outro lado da rua, há umas horas?
O homem mostra-se contrariado.
- É possível.
- E terá sido por mero acaso que nos encontramos aqui na Pete’s Tavern?
38- De acordo com os princípios do monismo, Sr. Porter, os acasos não existem.
Porter suspira.
- Dr. Kringel, sinto-me obviamente lisonjeado, mas não posso de modo algum comprometer-me a escrever para a sua revista. De momento, e como decerto já percebeu, estou a rebentar pelas costuras. Kringel solta uma gargalhada.
- Oh. Sr. Porter, não, não, não. Embora possa vir um dia a convidá-lo para escrever qualquer coisa, nunca seria para The Monist.
Porter ergue uma sobrancelha ante o tom condescendente do homem.
- Então por que razão me seguiu até aqui?
- Precisava de falar consigo.
- Por que razão não se apresentou quando me viu na rua, ou lá em baixo?
- Para lhe ser franco, Sr. Porter, a possibilidade de me encontrar consigo fazia-me sentir um tanto... intimidado.
Intimidado? É possível que O. Henry seja mais famoso do que o senhor imagina. Para um homem como eu, que labora em relativa obscuridade, impor a minha presença junto de um homem como o senhor, que é lido por milhares e milhares de pessoas todas as semanas, é uma ideia que encerra um certo desafio para o ego. E, obviamente, precisava de ter a certeza de que o senhor era, de facto, William Sydney Porter, oriundo do Texas, e também conhecido como O. Henry.
A referência ao Texas faz com que Porter se sinta pouco à-vontade.
- E por que motivo é essa conexão tão importante?
- Porque sou portador de uma mensagem da parte de alguém que o senhor conheceu há muito, muito tempo no Texas. Ele pensou, mas não tinha a certeza, que o senhor se tinha transformado no, quero dizer, que era a mesma pessoa que o - famoso escritor nova iorquino que dá pelo nome de O. Henry. Neste momento, estou certo, bem, tão certo quanto um filósofo pode estar, de que o senhor é o homem que procuro.
- Um velho conhecido... do Texas, foi o que disse? - Uma vez mais, procura mentalmente uma maneira de fugir. Por que será que o Texas o persegue hoje? O pesadelo da estátua, a chantagem antes do pequeno-almoço (ora aí está, pensa ele, um bom título para um conto: ”Chantagem antes do pequeno-almoço”) e agora isto. Porter não acredita em premonições nem em presságios, mas tem muito respeito por coincidências.
39- Quem é esse meu conhecido?
- Ele pediu-me para enfatizar a palavra ”conhecido” e não utilizar nenhuma outra, confidente, íntimo, colega, nem tão-pouco ”amigo”. Segundo me disse, só se encontraram uma vez. Mesmo assim, achou que era possível que o senhor se lembrasse dele.
- Como se chama?
- Dr. Edmund Montgomery.
O nome não lhe diz nada. Mas é claro que um nome tão comum como este podia ter facilmente caído no esquecimento...
O Dr. Kringel percebe o significado da expressão do rosto de Porter e avança mais pormenores.
- Embora viva no Texas há muitos anos, o Dr. Montgomery é um velho escocês. Um filósofo, tal como eu; correspondemo-nos e eu publico as suas monografias em The Monist. Trata-se de uma mente brilhante, extraordinariamente penetrante. O Dr. Montgomery compreende a relação entre a matéria animada e a matéria inanimada melhor do que qualquer outro homem que eu conheça.
Memórias vagas começam a agitar-se na mente de Porter.
- Continue.
- Não foi em Austin que travaram conhecimento, mas na propriedade do Dr. Montgomery em Hempstead. A plantação dele chama-se Liendo...
- Ah, sim! - Acorre-lhe uma imagem à memória. Porter recorda-se de uma enorme casa branca rodeada por hectares e hectares de bosques e campos. A casa é uma mansão com colunas majestosas e varandas largas, mas com aspecto decrépito e em avançado estado de degradação, como uma visão fantasmagórica do mundo da pré-guerra, um mundo já desaparecido aquando do nascimento de Porter. Mas quem habita esta casa? Porter tenta ver rostos, mas não consegue. Passou-se tudo há muito tempo, antes mesmo do dia em que atravessou os terrenos do Capitólio com Dave Shoemaker. - Continue.
- Talvez lhe seja mais fácil lembrar-se da esposa do Dr. Montgomery Em certo sentido, é uma mulher tão extraordinária como o marido. Alemã de nascimento, tal como eu. Uma artista, um tanto ou quanto excêntrica no que diz respeito aos seus hábitos e à maneira de vestir. Apesar do casamento, optou por manter o nome de solteira, pelo que ainda hoje é conhecida, não por Sra. Montgomery, mas por Elisabet Ney.
Mais imagens se agitam na mente de Porter, acorrendo à superfície da memória. Ele tinha descoberto que o faiscar vacilante de recordações
40antigas era um dos efeitos secundários peculiares do envelhecimento, uma sensação de evanescência com o seu quê de irritante, como as cócegas que as bolhinhas de champanhe provocam no nariz, ou o piscar intermitente dos pirilampos numa noite de Verão.
- Elisabet Ney - repete Porter baixinho. - Escultora, não era? O filósofo acena com a cabeça.
- Então sempre está lembrado?
- Vagamente, vagamente. Porter recordava-se de ter feito uma viagem de comboio para Hempstead, na companhia de... Dave Shoemaker, quem havia de ser! Iam para Liendo; tinham-se encontrado com o Dr. Montgomery e com a esposa, Elisabet Ney. Mas qual teria sido o motivo da visita? Qualquer coisa relacionada com o trabalho de Dave no jornal, provavelmente, mas Porter não conseguia lembrar-se de quê, nem sob pena de a sua vida depender dessa recordação. E também não conseguia imaginar por que motivo quereria o Dr. Montgomery entrar em contacto com ele passados tantos anos.
- Montgomery e Ney - murmura. - Ainda vivem em Liendo?
- Sim.
- Compreendo. E é do domínio público nessa parte do mundo que eu vivo actualmente em Nova Iorque e que escrevo sob o nome de O. Henry?
Kringel sorri e encolhe os ombros.
- Não faço ideia. Mas o Dr. Montgomery sabe imensas coisas que mais ninguém parece saber. - Kringel dá umas pancadinhas na testa com o indicador. - Tem um extraordinário poder de dedução.
- Um Shamrock Jones típico - graceja Porter.
- Peço desculpa, como disse? - Kringel devolve-lhe um olhar de incompreensão.
- Não, sou eu quem lhe deve um pedido de desculpas, por ter deixado escapar uma vaidade de autor. Estava a referir-me a uma das minhas criações, uma paródia a um certo detective da ficção literária. Presumo que não tenha tido oportunidade de ler o meu conto ”As Aventuras de Shamrock Jones,, na World?
- Não, não me parece.
- Não tem importância. Mas diga-me, por que motivo vem o senhor, logo o senhor, aqui a Pete’s Tavern entregar-me uma mensagem da parte de um homem do Texas de quem eu mal me recordo?
- Procurei-o apenas por consideração para com o meu colega, o Dr. Montgomery. Compreende, por circunstâncias que não vêm ao caso,
41ele tomou conhecimento do seu paradeiro e do facto de o senhor ser o homem que está por trás do famoso nom de plume. Estou em crer que sou o seu contacto de maior confiança aqui em Nova Iorque. Assim, o Dr. Montgomery escreveu-me e pediu-me que lhe fizesse chegar uma mensagem, entregue em mão. Eu não podia recusar-me a prestar um favor tão pequeno a um intelecto de tamanha craveira, pese embora a minha trepidação inicial.
- Trepidação?
- Agora pode parecer disparatado, na medida em que me encontro aqui sentado e a conversar com uma pessoa tão agradável como o senhor, mas estava um pouco hesitante quanto à perspectiva de lhe impor a minha presença. Os escritores são apenas pessoas de carne e osso, bem sei, e eu tenho conhecido muitos, mercê da minha actividade profissional como editor de The Monist, mas os escritores com quem privo são principalmente acadêmicos e cientistas e não... como dízê-lo?... bom, não são escritores com E maiúsculo, se é que me entende...
- O senhor tem uma habilidade especial para fazer um tipo sentir-se inchado - observa Porter, soltando uma gargalhada e gozando o momento. Depois dos safanões que tinha apanhado durante o dia, o seu ego estava de facto a precisar de uma massagem.
Kringel sorri.
- Nessa mesma carta, o Dr. Montgomery sugere uma visita a Liendo. No que me diz respeito, devo confessar que estou ansioso por ir finalmente conhecê-lo em pessoa; estamos ambos a ficar velhos, e posso não vir a ter outra oportunidade destas. além de que nunca estive no Texas, um estado em relação ao qual tenho uma certa curiosidade. ja fiz os preparativos para a viagem. O comboio parte amanhã de manhã.
- Assim sendo, bon voyage, Herr Doutor. Mas disse-me que o Dr. Montgomery lhe pediu para me entregar uma mensagem. De que se trata afinal?
- É uma mensagem curta e assaz misteriosa, pelo menos para mim. Aqui está, queira fazer o favor de a ler.
Kringel retira uma carta da bolsa e entrega-a a Porter. A carta está escrita em papel timbrado, com a inscrição Plantação de Liendo impressa em caracteres elegantes no topo da folha. Por baixo da inscrição, encontra-se uma data, e depois a saudação ”Estimado Herr Dr. Kringel”, numa caligrafia primorosa e estilizada, nitidamente aprendida numa antiga academia
42europeia e não numa escola pública americana, onde a recompensa de uma criança que escrevesse desta maneira seria uma série de equimoses nos nós dos dedos. Porter acha a caligrafia difícil de ler. Passa os olhos pelo parágrafo inicial, cujo conteúdo parece razoavelmente insípido, pois indaga pelo estado de saúde do Dr. Kringel e alude a conhecidos comuns, nenhum dos quais e conhecido de Porter. Segue-se a parte que lhe diz respeito. Tal como Kringel dissera, Montgomery refere a identidade de Porter enquanto O. Henry e pede ao seu colega que o procure.
Por favor, recorde-lhe que nos conhecemos, por superficial que tenha sido o nosso encontro e pese embora o facto de já ter ocorrido há muito tempo (nãofomos íntimos, confidentes, colegas, nem sequer amígos, mas apenas conhecidos). Tente refrescar-lhe a memória fornecendo-lhe pormenores da minha história e circunstâncias. Se, ainda assim, ele não conseguir lembrar-se, diga-lhe quejulgo ter descoberto a solução para um velho mistério. Diga-lhe que descobri a pessoa culpada por um crime assaz revoltante ou, melhor dizendo, uma série de crimes assaz revoltantes - refiro-me àqueles homicídios de jovens mulheres que ocorreram na cidade de Austin a partir dos últimos dias de 1884, culminando nos crimes brutais da véspera de Natal de 1885, cuja autoria nuncafoi satisfatoriamente apurada pelo menos até agora. (Os pormenores da minha descoberta são tais, que nãoposso explicá-los por carta, tendo de os revelar pessoalmente.) Se a memória do Sr. Porter no que concerne a estes acontecimentos de há vinte anos estiver obscurecida, ou mesmo completamente apagada, peço-lhe que mencione o nome...
A boca de Porter seca-se-lhe completamente. A carta parece transformar-se numa coisa viva e começar a tremer. Vê pontos brilhantes diante dos olhos mas, para além dos pontos brilhantes, consegue descortinar as palavras escritas no papel.
... peço-lhe que mencione o nome Eula Phillips. Creio que ele certamente se recordará dela.
O sonho que tivera de madrugada regressa-lhe com uma clareza perturbadora. A estátua desmembrada transforma-se em carne diante dos seus olhos e o seu rosto é o mais belo que ele alguma vez contemplou. Ele pronuncia o nome dela: Eula, da palavra grega que significa ”bem”...
43- Sr. Porter, sente-se indisposto?
Porter mal ouve a pergunta e ergue os olhos do papel com uma expressão desorientada.
- O senhor parece estar deveras perturbado, Sr. Porter.
- Não. Não, é só... é só que o dia de hoje está a ser muito estranho. Muito estranho, mesmo.
- Lamento que a carta contenha algo susceptível de o ter desassossegado.
- Esta carta é... extremamente interessante para mim. Mas é... uma grande surpresa. Totalmente inesperada. - Porter morde o lábio inferior.
- Presumo que visitara o Dr. Montgomery em breve, não é assim? Bem, eu devia fazer-lhe chegar uma resposta, através de si...
- Uma resposta, Sr. Porter? Não prefere entregá-la pessoalmente?
- Pessoalmente? O quê, regressar ao Texas?
- Não leu a carta até ao fim? Talvez eu o tenha induzido em erro quando mencionei o convite do Dr. Montgomery. O convite foi-me dirigido, é certo, mas inclui-o a si também. O Dr. Montgomery gostaria que o senhor viesse comigo e que se encontrassem ambos em Liendo. Enviou dinheiro suficiente para custear as despesas da sua viagem. Como já lhe disse, reservei lugar no comboio que sai amanhã de amanhã, dois lugares. Viajaremos juntos para o Texas, o senhor e eu!
Enquanto o dia cai e as sombras projectadas pelos arranha-céus de quinze andares se alongam, Porter avança para sul, na direcção da Broadway, mergulhado numa agonia de indecisão.
Não pode de maneira nenhuma sair assim da cidade, ao aceno de um capricho. Tem prazos para cumprir. Pode invocar uma emergência familiar - dizer que a filha adoeceu, que tem de ir imediatamente a Pitsburgh - mas este tipo de mentira acaba sempre por vir ao de cima. Por outro lado, desaparecer sem dar qualquer satisfação aos seus editores parece-lhe ainda pior.
E se a chantagista regressa e descobre que ele abandonou repentinamente a cidade? Numa situação destas, pensa para consigo, não faz qualquer sentido ela resolver levar por diante a sua ameaça e divulgar publicamente o passado de Porter. Mas quem sabe como reagirá semelhante criatura, um ser desesperado e cruel?
Para além destas considerações de natureza prática, há ainda a impossibilidade fundamental do seu regresso ao Texas, sobretudo a Austin.
44Quando pensa na sua doce juventude e no amargo desfecho que ela teve, parte-se-lhe o coração. Perdeu tudo no Texas: a mulher, a felicidade de assistir ao crescimento da filha, a dignidade, a reputação, a liberdade. Deixou o estado na pele de um criminoso condenado, em desgraça profunda - um pária para todos quantos o tinham conhecido. Em Nova Iorque, tinha refeito a sua pessoa. Tinha-se transformado, por virtude de O. Henry, noutro homem. jamais poderia regressar.
Tudo se opõe a viagem que o Dr. Kringel organizou. Partir para o Texas logo pela manhã, pois sim! Não há qualquer razão para ele considerar seriamente esta ideia louca, um momento que seja, e ha todas as razões para não o fazer. A não ser...
A não ser a referência a determinado nome na carta do Dr. Montgomery. Não fora aquele nome, e ele teria podido limitar-se a dobrar a carta, devolvê-la a Kringel com um sorriso amistoso e dizer: ”Não, obrigado.”
Mas o nome estava lá. Ele até passou a ponta dos dedos sobre a tinta, para se certificar de que não estava a imaginar coisas.
Porter não acredita em sonhos nem em presságios. Não aposta um cêntimo que seja em intuições ou premonições. Mesmo sem o concurso destas noções fantasistas, a vida já dispensa ironia e confusão de sobra. Mas que significado terá o facto de ter sonhado com Eula Phillips de madrugada (por muito difusa que a imagem lhe tenha aparecido), ser visitado pela chantagista - que conhecia Eula muito melhor do que ele alguma vez conhecera - exactamente no mesmo dia e, escassas horas depois, receber uma mensagem da parte de um homem de quem já se tinha praticamente esquecido, que afirma ter descoberto uma nova solução para o mistério da morte de Eula? Por que razão se terão congregado os eventos do dia para o acossar com memórias do Texas, e dela?
As pressões da vida quotidiana arrasaram-lhe os nervos, diz a si mesmo. Quando um homem se encontra sob pressão, assusta-se com sombras, vê caras em punhados de pó e ouve vozes onde só há vento. Ele devia tentar concentrar-se num novo argumento em vez de andar à procura de respostas no éter.
Nisto, chega ao extremo da ilha. Diante dele, ergue-se um sinal completamente inesperado. Ser-lhe-ia difícil não dar por ela, ali de pé, sozinha, rodeada de água, elevando-se majestosamente acima dos rebocadores e dos barcos a vapor, a sua sombra vespertina espraiada sobre as ondas. Ela é a grande encarnação da Liberdade, erguendo bem alto uma tocha, para todo o mundo a ver.
45O que sustenta a irmã dela, a estátua que se encontra no topo da cúpula do Capitólio do Texas, no braço erguido? Uma estrela, uma foice, uma rocha? Se a sua vida dependesse da resposta a esta pergunta, Porter morreria sem apelo, pois não consegue lembrar-se. A pergunta ecoa-lhe na cabeça - sim, ecoa de uma maneira quase intolerável.
Ele solta um suspiro, pestaneja e de repente sente-se em paz consigo mesmo. O seu curso de acção é evidente: tem de ir até lá ver com os seus próprios olhos. Na manhã seguinte, contra ventos e mares, seguirá no comboio que parte em direcção ao Texas.
46I Parte
Trabalho Sangrento!
Austin: Dezembro de 1884 a janeiro de 18851
William Pendleton Gaines, proprietário e chefe de redacção do Statesman de Austin, tomou um golo do café a escaldar e encaminhou-se para a varanda.
Os escritórios da redacção do Statesman ficavam a um quarteirão de distância da Avenida do Congresso, num majestoso edifício de três pisos que podia passar por um palácio veneziano. O escritório de Gaines, situado no último andar do edifício, tinha janelas altas em três das quatro paredes e uma porta que dava acesso a uma varanda comprida, virada a sul. Nos dias em que o tempo o permitia - e terça-feira, 30 de Dezembro de 1884, era um desses dias, frio mas sem vento, com um céu limpo e azul -, Gaines gostava de ir a varanda e espreitar sobre a balaustrada de pedra para o trânsito que passava lá em baixo, na Rua Pecan. No Verão, a poeira e o cheiro a estrume tornavam-se por vezes opressivos, apesar dos carros-regadores puxados a mulas que passavam a intervalos regulares. Mas num dia de Inverno sem vento como aquele, e desde que tivesse uma chávena de café fumegante para o manter aquecido, a varanda constituía o seu poiso favorito.
Saiu para a extremidade leste da varanda e perscrutou a linha do horizonte, recortada pelos contornos dos edifícios de dois e três andares dispostos ao longo da Avenida do Congresso. Para norte, a seis quarteirões dali, no começo da Avenida, erguia-se a colina na qual seria erigido o novo edifício do Capitólio - o início dos trabalhos de construção estava previsto para a Primavera. A outros seis quarteirões de distância, desta feita para sul, Gaines conseguia distinguir as vigas superiores da cobertura de aço da ponte sobre o Rio Colorado.
A meio caminho entre os terrenos do Capitólio e o rio, a Rua Pecan intersectava a Avenida do Congresso naquele que era o cruzamento mais movimentado do Texas. Ambas as ruas exibiam bancos, hotéis, alfaiatarias, estábulos, escritórios, restaurantes e lojas. Os trens de mulas corriam sobre carris de aço reluzentes, assentes sobre terra batida, fazendo repicar
49as campainhas nos cruzamentos. As carruagens e os trens de aluguer puxados a cavalo trotavam para trás e para diante numa parada constante. Os homens de casaco e chapéu, e as mulheres com vestidos de saia comprida, cintura apertada e ombros enchumaçados caminhavam ao longo dos passeios de cimento, elevados acima da sujidade da rua.
Do seu posto de observação privilegiado, Gaines contemplava toda esta panorâmica vibrante com o sentimento de posse de um homem da imprensa. Esta era a sua cidade. Ele era o seu cronista. Tomou outro golo do café escaldante e deixou-se invadir pelo tipo de satisfação extasiada que outros homens sentem quando olham para o filho preferido, uma amante muito bela ou um quadro recentemente adquirido. Este momento era uma espécie de apogeu, pensou ele. Ou seria ”apoteose”? Bem, fosse qual fosse a palavra correcta, a verdade é que a sua vida só muito dificilmente poderia vir a ser melhor do que agora.
Sempre tivera uma vida privilegiada. O pai, que ia agora nos setentas, fora um dos grandes produtores agrícolas do pré-guerra: produzia cana-de-açúcar e algodão, cultivados em extensas parcelas do melhor solo arável da região de Brazoria. Para além disto, Gaines Sénior era um herói militar, que se distinguira, tanto na Guerra da Independência do Texas, como na Guerra do México. Quando estalara a Guerra Civil, Gaines Sénior já era demasiadamente velho para combater e Gaines Júnior era ainda excessivamente novo para se alistar. Depois da guerra, o jovem Gaines fora mandado para o Norte, para uma universidade da Pensilvânia, onde tivera uma dispendiosa instrução clássica. Em Lafayette, onde se liam as Bellum Civilae, os alunos discutiam César e Pompeu quase tão apaixonadamente como os seus pais haviam discutido Grant e Lee e, por vezes, Gaines tinha a impressão de que Ácio lhe era tão próxima como Appomattox. ”Ao contrário do meu pai, eu nasci para lutar com a palavra e não com a espada”, costumava dizer. Deliciava-se com anagramas e, de quando em vez, ainda era capaz de se sair com um trocadilho sagaz em latim.
William Pendleton Gaines tinha nascido em berço de ouro e nunca tivera necessidade de trabalhar um dia que fosse. Tinha crescido à sombra da glória militar do pai sem nunca ter disparado um tiro. Tinha tido um vislumbre da agonia de morte de uma sociedade baseada na escravatura e fora formado nos valores de outra sociedade esclavagista, desaparecida há dois mil anos. A sua educação era, em todos os aspectos, a de um
50elitista. E dispunha igualmente dos meios de um elitista, na medida em que era o único herdeiro da fortuna da família (uma prerrogativa que tinha conquistado em virtude de ter sobrevivido a quatro irmãos).
Quando o pai se reformara, Gaines delegara nos seus vários capatazes a gestão corrente das fazendas de açúcar e algodão e, com os lucros obtidos, dera seguimento aos seus próprios interesses. Exercera advocacia durante algum tempo, mas o seu verdadeiro desejo era ter um jornal. Em 1882, com a idade de trinta anos, comprara o Statesman. Passados dois anos de actividade bem sucedida, sentia que já tinha deixado a sua marca na cidade, e que estava destinado a deixar nela uma marca ainda maior.
O ano de 1884 tinha sido um ano particularmente bom para William Pendleton Gaines. Tal como convinha ao seu estatuto social ascendente, mudara-se para uma das casas mais distintas de Austin, um ninho de alvenaria empoleirado numa colina íngreme, a curta distância do seu escritório - escassos minutos a pé, caminhando para oeste. A casa chamava-se Bellevue, mercê da soberba panorâmica que se espraiava para sul, em direcção ao rio. Nessa casa, Gaines e Augusta, a mulher que desposara recentemente, tinham recebido o Governador Ireland e Robertson, o Presidente da Câmara, industriais dos caminhos-de-ferro e proprietários de gado, damas da sociedade e professores da nova universidade. Na sua qualidade de director do jornal mais importante da cidade - e, possivelmente, o jornal mais importante do Estado -, Gaines era procurado por pessoas de todos os quadrantes sociais: desde actrizes sedutoras em tournée até aspirantes a políticos, desde donos de bares desejosos de lhe manter a despensa bem aprovisionada com o melhor uísque até presbíteros abstinentes desejosos de ver as suas eloquentes denúncias contra o álcool citadas nas colunas do seu jornal.
No meio de toda esta bem-aventurança, surgira um presente que eclipsara todos os demais. Quatro dias antes, na manhã de Natal, Augusta tinha-lhe dado a gloriosa notícia de que esperava um filho. Da varanda do seu escritório sobre a Rua Pecan, Gaines passou o olhar sobre a cidade de vinte mil almas cujas histórias lhe cabia a si contar, a cidade onde nasceria o seu primeiro filho, e foi tomado por uma satisfação que era decerto a mais perfeita que um homem poderia alguma vez sentir. Tudo isto aos trinta e três anos!
Gaines bebeu o café que ainda restava na chávena, pousou-a sobre a larga balaustrada e esfregou as mãos uma na outra, em parte para as
51manter quentes, mas sobretudo num gesto de antecipação. Puxou o relógio de ouro do bolso do colete, deteve-se por um instante na contemplação da cena de caça magnificamente gravada na tampa e pressionou a pequena mola, abrindo-o. Eram onze horas menos três minutos. Os seus novos parceiros de negócio estariam a chegar a qualquer momento.
Fechou a tampa do relógio com um estalido. O clique pareceu servir de deixa pois, nesse preciso instante, ouviu-se uma pancada seca na porta do escritório. Gaines entrou no compartimento de pé direito alto revestido a painéis de madeira pelo interior do qual se espalhava a luz de Inverno - uma sala elegantemente mobilada, com uma enorme secretária de mogno, cadeiras Chippendale e um sofá de cretone.
- Entre! - gritou.
A porta abriu-se, deslizando com alguma dificuldade sobre a espessa carpete oriental. Era um dos moço de recados - o nome que se dava aos aprendizes no meio editorial -, um rapaz de cabelo ruivo chamado Tommy, a quem Gaines tinha posto a alcunha de Mefistófeles.
- Sr. Gaines, estão aqui dois homens para falar consigo. Gaines conseguiu entrevê-los na antessala, para lá da porta.
- Dr. Terry! Dr. Fry! Entrem! Há aí um cabide ao pé da porta, se quiserem pendurar os chapéus e os casacos. Aceitam um café? Eu costumo tomá-lo bastante açucarado; o açúcar provém das canas de uma das minhas plantações que fica para os lados do Rio Brazos. Não? Nenhum dos dois deseja café? Sendo assim, podes regressar ao trabalho Mefistófeles! Ora muito bem, cavalheiros, que tal foi a vossa semana de Natal aqui em Austin? O clima é mais suave do que em New Jersey, aposto!
Os dois visitantes formavam um par curioso. O Dr. Terry, que devia andar pelos quarenta, era um homem de compleição anafada, de mãos grandes e sapudas, e possuía aquela que era possivelmente a maior cabeça que Gaines alguma vez vira em cima do pescoço de um homem. Usava óculos de pince-nez e um bigode largo e eriçado. O Dr. Terry era, em pessoa, igualzinho ao desenho que aparecia nos rótulos do ”Tónico para o Fígado e Purgante de Gengibre do Dr. Terry”.
O seu colega, o Dr. Fry; era um homem alto e esguio, de dedos ossudos e cara ovalada. Tinha o queixo barbeado, mas usava umas suíças largas, mais pintalgadas de cinzento do que os caracóis escorridos que penteava para trás, realçando a testa alta. O Dr. Fry lembrava-lhe o professor de latim que tivera em Lafayette mas também havia nele qualquer
52coisa que lhe dava um certo ar de coveiro. Na verdade, o Dr. Fry não era, nem um sepulteiro, nem um acadêmico, nem tão-pouco, pelo menos na opinião de Gaines, aquilo a que se pode chamar um praticante de medicina propriamente dito - imagine-se, ser tratado por um médico cego! Em atenção a esta incapacidade, o Dr. Fry ocultava os olhos por tras de uns óculos rectangulares de lentes azul-cobalto e fazia-se acompanhar de uma bengala fina e comprida com a qual tacteava o chão. Tal como o Dr. Terry, o Dr. Fry era, em pessoa, tal e qual o desenho que aparecia nos conhecidos anúncios de jornal referentes ao Dr. Fry, o Frenólogo Cego.
- Tanto o Dr. Fry como eu tivemos uma semana deliciosa - disse o Dr. Terry - Só nos resta esperar que o tempo se mantenha assim, excepcional, durante a próxima semana, até ao final da nossa estadia por cá. Fico arrepiado só de imaginar os nevões que devem estar a cair em Nova Jérsia.
- É bem verdade, cavalheiros. Como poderão ler em qualquer brochura, Austin é famosa pelo seu clima ameno. - Gaines fez um esforço para não sorrir ante o sotaque afrontosamente ianque de Terry. já não o avia vogais tão cruelmente truncadas desde os seus tempos de estudante no Norte. Gaines reparou que o Dr. Fry se abstinha praticamente de falar mas que, nas raras vezes em que o fazia, as suas palavras traíam um ligeiro sotaque estrangeiro.
- Meus Senhores, uma vez que não tomam café, talvez possa oferecer-lhes uma bebida mais forte? Ainda é um bocado cedo, mas a verdade é que temos algo para celebrar. - Gaines conduziu os seus visitantes até um aparador generosamente abastecido. Tinha especial orgulho no seu uísque, que era importado da Irlanda. Gaines estendeu a Terry um copo vazio e depois hesitou, sem saber muito bem como estender o copo a Fry. Terry fê-lo por ele, pegando no segundo copo e pressionando-o com delicadeza contra a mão do seu colega. Gaines verteu uma dose moderada de uísque em cada um dos três copos e propôs um brinde. - À continuidade do sucesso do tónico miraculoso do Dr. Terry.
- E à saúde das pessoas de Austin - secundou o Dr. Terry. - Que nunca venham a sofrer de catarro da bexiga, fígado descorado ou mau funcionamento renal. Que evitem os tormentos da inflamação feminina, da impotência masculina, da micção dolorosa, da flatulência espasmódica... - O Dr. Terry recitou uma litania interminável de doenças
53humanas até que, por fim, concluiu: - Que o bom povo de Austin seja poupado a todas estas pragas, e quero com isto dizer que tenham sempre o bom senso de se tratar, e de tratar dos seus entes queridos, aos primeiros sinais de debilidade, com o Tónico para o Fígado e Purgante de Gengibre do Dr. Terry.
- À nossa! - disse Gaines, e os três homens esvaziaram os seus copos em uníssono.
- E agora, meus senhores - prosseguiu Gaines -, vamos aos negócios. Presumo que tenham tido tempo para ler a versão final do contrato que ontem mandei entregar no vosso hotel?
- Sim, Sr. Gaines. O Dr. Fry e eu próprio revimos todas as cláusulas e não temos nada a objectar.
O acordo era bastante claro. O Statesman forneceria espaço publicitário gratuito para os anúncios ao tónico do Dr. Terry. As pessoas interessadas em comprar o medicamento eram informadas de que deveriam entregar as ordens de encomenda pré-pagas nos escritórios do Statesman, ou fazê-las chegar pelo correio. Gaines enviaria as remessas de encomenda (e uma parcela do pagamento, cativando na fonte a sua parte) para as instalações onde o tónico era produzido, em Nova Jérsia, que atenderia às encomendas enviando ao cuidado do Statesman caixotes do medicamento engarrafado, que seria posteriormente distribuído a cada um dos clientes. O Statesman publicaria ainda anúncios gratuitos sempre que o Dr. Terry ou o Dr. Fry se encontrassem em viagem pela região, disponíveis para consultas privadas. Salvo algumas questões relacionadas com o espaço publicitário e com as garantias de entrega, o ponto principal a ser negociado dizia respeito à percentagem da receita bruta que caberia a cada uma das partes.
Ao longo dos últimos três meses, Terry e o taciturno Fry tinham viajado de comboio de cidade em cidade e de jornal em jornal, estabelecendo acordos semelhantes para a distribuição do seu tónico nos estados do Sul. Tinham descoberto que os proprietários dos jornais nem sempre eram grandes homens de negócios. Gaines regateara ligeiramente, mas tinha acabado por aceitar de bom grado o que eles consideraram ser uma percentagem mínima das receitas.
- Bem - disse Gaines -, se não há nada que nos impeça de prosseguir, vou mandar chamar um notário.
- Na verdade, há ainda um pormenor - disse Terry, como que pedindo desculpa.
54- Sim?
- É um aspecto de somenos, mas o Dr. Fry faz muita questão nisto. um pedido idêntico àquele que foi feito a todos os parceiros com quem temos vindo a fechar negócio em todo o país.
Gaines ergueu uma sobrancelha.
- Se se esta a referir a um aperto de mão secreto, permita-me que lhe esclareça desde já que não sou nem Maçom, nem Cavaleiro de Honra nem Old Fellow.
- Oh, de modo algum, Sr. Gaines! Não se trata de nada desse género. O Dr. Fry gostaria apenas de lhe examinar a cabeça.
Gaines desviou o olhar de Terry para o frenólogo cego, que ainda não tinha pronunciado uma palavra. Por detrás dos óculos azuis-escuros, o rosto do homem não deixava transparecer qualquer expressão.
- De me examinar a cabeça? Ah, compreendo... Bem, suponho que... Por fim, Fry abriu a boca.
- Considera-se uma pessoa bem informada no que respeita à frenologia, Sr. Gaines?
Gaines sorriu.
- Lamento confessar que não tenho mais informação do que a obtida através da leitura dos seus próprios anúncios.
- A frenologia é a ciência da leitura do carácter de um indivíduo através do estudo do formato da sua cabeça - sentenciou Fry. Que réstia de sotaque era aquele? Alemão, pensou Gaines, considerando a hipótese de o nome Fry ter sido, originalmente, Frei-qualquer coisa.
- Como é que um homem avalia o carácter de outro quando se conhecem? - continuou Fry. - Como é que o senhor avalia se deve ou não confiar num dado indivíduo, Sr. Gaines? Olhando-o nos olhos! Os filósofos ensinam-nos que os olhos são as janelas da alma. Eu, porém, encontro-me em desvantagem. Não tenho maneira de o ver, Sr. Gaines; não posso olhá-lo nos olhos. Ainda assim, como homem de negócios, gostaria de, como dizê-lo?, o aquilatar. E o melhor expediente de que disponho para o fazer é recorrer aos meus conhecimentos frenológicos.
- À medida que ia falando, abria e fechava as mãos, estalando sucessivamente cada um dos dedos, para os agilizar.
- Bom, com certeza, postas as coisas dessa maneira - disse Gaines, embora não se sentisse totalmente à vontade com a ideia. O seu primeiro impulso fora declinar o estranho pedido, mas a referência de Terry
55a esta estipulação tinha sido feita em tom assaz enfático. Gaines pensou em todo o dinheiro que ganharia com as vendas do tónico do Dr. Terry e encolheu os ombros. - Em que consiste exactamente esse exame? Como devemos proceder?
- Basta sentar-se, onde se sentir mais confortável - disse o Dr. Fry. Gaines sentou-se na sua cadeira giratória, atrás da secretária. Guiado por Terry, Fry deu a volta por tras dele. Momentos depois, Gaines sentiu umas pontas de dedos frias na coroa calva da sua cabeça. Teve um ligeiro estremecimento.
- Vou tentar não me contorcer muito. É mais ou menos como se estivesse no barbeiro, prestes a ser barbeado. Ou enterrado na cadeira do dentista!
- Oh, asseguro-lhe de que não é tão mau como o dentista - retorquiu o Dr. Fry suavemente. O Dr. Terry permaneceu atrás da secretária, fora do campo de visão de Gaines. Gaines sentia-se um tanto ou quanto ridículo ali sentado, imóvel, olhando para as janelas altas do outro lado da sala, com um homem que ele mal conhecia a amassar, apertar e distender as cristas e depressões do seu crânio. Sentir os dedos ossudos e gelados de um frenólogo a passear sobre a cabeça é mais ou menos equivalente a tirar a roupa diante do olhar fixo de um médico, concluiu Gaines, faz com que um homem se sinta deveras nu, ainda que a coberto do decoro profissional. Gaines sentiu-se mesmo a corar, e deu por si a pensar se Fry sentiria o aumento de temperatura na pequena coroa calva da sua cabeça; dizia-se que os cegos tinham uma sensibilidade extraordinária nas pontas dos dedos.
”Todo este procedimento era um pouco insultuoso”, matutou Gaines. Como se os seus novos parceiros de negócio desconfiassem de que o seu carácter enfermava de um defeito horrível e estivessem determinados a descobri-lo. Gaines era um cavalheiro, um cavalheiro sulista e, acima de tudo, um texano; que direito tinham um médico ianque e um intérprete de cabeças estrangeiro de lhe pedir que se submetesse a um exame de carácter?
Quando os dedos perscrutadores de Fry rastejaram até à sua testa, delineando-lhe as arcadas superciliares com um ligeiro toque de borboleta, Gaines não conseguiu evitar um estremecimento. Tentou acalmar o nervosismo dizendo a si mesmo que, dadas as circunstâncias, a justificação do homem para solicitar este exame era perfeitamente razoável.
56Gaines não tinha grande fé na frenologia, mas também não era particularmente céptico em relação a ela. Se não passasse de um conjunto de balelas, como a quiromância, não vinha grande mal ao mundo em fazer a vontade ao indivíduo. Se fosse uma ciência genuína, o que poderia ela revelar sobre Gaines que ele não estivesse perfeitamente disposto a dar a conhecer aos seus parceiros? Não tinha nada a esconder. Em todo o caso, era desconcertante pensar que outro homem, um estranho, para todos os efeitos, fosse capaz de ler o seu carácter, o que era praticamente o mesmo que ler os seus pensamentos, através do simples gesto de lhe colocar as mãos sobre a cabeça.
O Dr. Fry afastou os dedos e Gaines pensou que a coisa estava terminada. Nisto, sentiu que o homem se aproximava mais dele, respirando-lhe para cima da coroa, e sentiu as mãos abertas do indivíduo cobrirem-lhe a cara, olhos incluídos, como se Fry fosse um escultor e Gaines fosse feito de barro.
Nesse momento, ouviu-se uma pancada seca na porta do escritório. Tommy, o moço de recados, não esperou pela resposta e entrou na sala.
- Sr. Gaines! O tipógrafo diz que... - Tommy parou abruptamente, apanhado de surpresa pela visão do seu patrão a ser manuseado de forma tão esquisita pelo estranho homem de óculos cor de cobalto.
- Mefistófeles? O quê? Raios te partam! - Gaines sacudiu a cabeça e saltou da cadeira libertando-se do Dr. Fry, que afastou prontamente as mãos. Gaines piscou os olhos e franziu o sobrolho.
Tommy tapou a boca, reprimindo uma enorme vontade de rir. Depois de remexido pelo Dr. Fry, o cabelo de Gaines, curto e untado de pomada, espetava-se em várias direcções.
- Põe-te a andar, rapazinho! Não sabes que não deves interromper-me quando estou em reunião?
- Mas Sr. Gaines - disse o Dr. Terry, encaminhando o Dr. Fry para o centro da sala -, certamente deseja que o rapaz nos vá chamar o notário, não?
- Como diz?
- Para podermos assinar o contrato.
- O contrato? Sim, bem, se o Dr. Fry está satisfeito...
O Dr. Fry, inescrutável por trás dos óculos escuros, limitou-se a fazer um aceno de cabeça.
- Sim, sendo assim... Não fiques aí especado, Mefistófeles! Vai buscar um notário!
57- Sim, senhor!
Gaines passou uma mão pela cabeça, compondo o cabelo em desalinho. A cabeça pareceu-lhe perfeitamente normal. Não detectou nenhum alto ou aresta suspeitos, nada que pudesse ser tomado por uma irregularidade. O que é que a mão de um frenólogo podia descobrir que a dele não encontrasse?
- O senhor está, então, satisfeito, Dr. Fry?
O Dr. Fry tornou a fazer um aceno de cabeça. Gaines olhou para ele fixamente, e depois lembrou-se de que tal atitude era completamente inútil.
- Descobriu alguma coisa... anormal? - acabou por perguntar Gaines.
- Não - respondeu Fry
- Alguma coisa de que não estivesse à espera?
- De todo.
A situação era exasperante. Uma vez que se tinha submetido ao exame do homem, o mínimo que podia esperar era que lhe dessem a conhecer os resultados. Porém, Fry não parecia disposto a ser mais específico.
- Bem - disse Gaines, tentando parecer jocoso -, posso então concluir que tenho uma boa cabeça em cima dos ombros, não é verdade? Uma vez mais, o Dr. Fry limitou a sua resposta a um aceno de cabeça. Por fim, chegou o notário. As cópias do contrato foram colocadas sobre a secretária de Gaines. Uma caneta e um boião de tinta foram puxados para junto dos papéis e, um a um, os documentos foram assinados com os nomes de William Pendleton Gaines, Ephraim Ebenezer Terry, Dr., e Frederick Augustus Fry, Prof Doutor.
58Alec Mack não tinha de estar em nenhum sítio especial naquele dia. Na verdade, não tinha de estar em nenhum sítio no dia seguinte, ou
no dia depois desse ou, na realidade, em qualquer dos dias que lhe restassem da sua indubitavelmente curta e miserável vida, a não ser que 1885 estivesse destinado a trazer-lhe um grande rasgo de sorte. Na noite anterior, o velho Sumpter tinha-lhe dito que levasse o coiro desprezível para longe do barracão das traseiras de sua casa e que nunca mais voltasse a por lá os pés. O seu emprego enquanto ajudante do Sr. Sumpter tinha acabado. E tudo porque Alec tinha convidado a nova amiga a fazer-lhe uma visita.
A maioria dos brancos tinha uma atitude relativamente razoável para com os criados; um homem, fosse qual fosse a sua cor, tinha certas necessidades. Tal como uma mulher. Se um indivíduo convidava uma amiga para um encontro a porta fechada, ao cair da noite, depois de ter feito todas as suas voltas, ninguém tinha nada a ver com isso. O velho Sumpter não era dono dele; as coisas já não eram como dantes, como antes de Alec ter nascido. Nessa altura, um branco tinha o direito de dizer a um negro quando, onde e quanto podia mijar quando tinha a pila mole, e onde podia metê-la quando ficava tesa. Alec abanou a cabeça e olhou distraidamente para as bolhinhas de espuma da sua cerveja, vendo-as rebentar uma a uma.
O empregado de balcão aproximou-se dele em passo descontraído. Chamava-se Lem Brooks, sendo Lem a abreviatura de William. Embora não fosse muito mais velho do que Alec, Lem não tinha um único cabelo na cabeça. Aquela careca brilhante e a fiada perfeita de dentes madrepérola faziam com que Lem parecesse um grande piano quando sorria, coisa que acontecia quase a toda a hora.
- Algum problema com essa cerveja, Alec?
- Nã.
- Tá a beber bem devagá.
59- Tem de faze rendê.
- Ha muita mais donde essa veio.
- Não posso dizê o mesmo do níquel que acabei de te dá.
- O que foi? O velho Sumpter começou a ferroar?
- Pode dizê assim.
Naquele momento, Lem e Alec eram as únicas pessoas que se encontravam no Black Elephant. A meio da manhã de uma terça-feira, na semana que medeia entre o Natal e o Ano Novo, os brancos de Austin tinham muito trabalho com que manter ocupados os criados negros: lavar as toalhas de mesa e a roupa branca que tinha estado a uso no dia de Natal, fazer limpezas, ir as compras e preparar refeições esmeradas para as visitas e as festividades que se avizinhavam. Se não tivessem corrido com ele, neste preciso momento o próprio Alec estaria provavelmente a cortar lenha, ou talvez a depenar outro peru para a dona Sumpter.
A dona Sumpter - era ela a raiz do problema. Sempre a citar a Bíblia, sempre a olhar de cima para ele. Detestava negros, e não era o tipo de mulher que tivesse grande compaixão pelas necessidades de um homem, nem mesmo pelas do seu próprio homem. Não admirava que o velho Sumpter andasse sempre a rosnar como um cão de má raça!
Tinha sido a dona quem os tinha apanhado naquilo, espreitando pela janelinha do barracão. Alec tinha fechado as cortinas, como era seu hábito, mas as tiras de algodão fino estavam tão esgarçadas que já não uniam como deve ser e qualquer pessoa que tivesse, de facto, intenção de espreitar, conseguia ver o que se passava lá dentro. Ainda assim, não teria havido nada para ver se Alec tivesse mantido o quarto às escuras, que era o que fazia normalmente. Mas a nova amiga tinha-lhe pedido para acender a lamparina de óleo que estava em cima da mesinha cambada, ao lado da cama. Disse que queria vê-lo enquanto estivessem a fazer. Imagine-se! E também tinha sido a amiga quem, apesar do frio, insistira para que se despissem completamente; disse que eles iam suar o suficiente para esquecer o frio, e de facto assim foi. Ela estivera sempre a olhar para ele e ele a olhar para ela. A recordação da cara dela e da maneira como a luz fizera cintilar as gotas de suor entre os seus seios provocou-lhe um arrepio e fê-lo sentir uma dor pungente no meio das pernas.
Contudo, enquanto eles se uniam e olhavam um para o outro, alguém tinha estado a olhar para eles - a velha Sumpter. Quanto tempo teria ela
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estado ali, de olhos semicerrados e mordendo a língua, antes de ter soltado um berro e de ter desatado aos gritos a chamar o marido? Alec e a amiga tinham-se desenlaçado antes de terem acabado, sem perceberem muito bem o que se estava a passar.
Ouviram o som da porta de rede do alpendre das traseiras a bater a porta de resguardo que o próprio Alec tinha montado no Verão anterior, e da qual a dona Sumpter tinha ficado extremamente orgulhosa, já que era a primeira do bairro a possuir um invento tão inteligente para impedir as moscas de entrar. Depois, ouviu-se o som de passos pesados nos degraus do alpendre, seguido do som de um punho a bater com força na frágil porta do barracão. A porta tinha uma tranca medíocre - um simples rectângulo de madeira preso a ombreira, não demasiadamente apertado, por forma a poder ser empurrado para baixo para bloquear a porta. Não era suficientemente robusta para deter um ladrão, mas era suficientemente forte para evitar que um estranho qualquer entrasse por ali adentro.
- Quem vem lá? - gritou Alec.
- Abre a porta, Alec Mack!
Enquanto a amiga vestia à pressa o vestido de cassa, Alec apressou-se a colocar umas calças e uma camisa por cima do corpo, e levantou o rectângulo de madeira, abrindo a porta. Era o velho Sumpter, com uma espingarda nas mãos. A velha Sumpter observava tudo dos degraus do alpendre, apertando a Bíblia entre as mãos como se se tratasse de um tijolo prestes a ser arremessado contra ele.
- Está se passando alguma coisa, Sr. Sumpter? O velho olhava para ele de sobrolho carregado.
- A patroa diz que tens aí uma mulher. - Não valia pena negá-lo. O barracão era pequeno de mais para poder albergar um esconderijo e a lamparina ainda estava acesa. Mesmo com a figura sólida de Alec a bloquear a entrada, Stumper podia ver a senhora de pé ao fundo do quartinho, no intervalo estreito entre a cama e a parede. - Sabes perfeitamente o que é que eu te disse quando concordámos que viesses morar aqui, Alec Mack. Sobre fornicação. O que é que eu te disse?
- Disse que... - Alec sentiu a boca seca.
- Disse-te que não admitia esse tipo de porcarias na minha propriedade. Porque é que vocês não se casam como as pessoas decentes, e não se controlam até lá, é que eu nunca hei-de compreender.
61Alec rangeu os dentes.
- Sr. Sumpter, não estava acontecendo nada disso...
- Não mintas, preto! A minha mulher viu-te! Agora, pega nas tuas coisas e desanda daqui. Não estou para ter um fornicador mentiroso a viver na minha propriedade.
- Mas Sr. Sumpter! Tem aqui tanto trabalho para se fazê. Estou a acabá de substituí àquela parte da vedação...
Dos degraus do alpendre, ouviu-se a voz da Sra. Sumpter.
- Estás sempre a acabar qualquer coisa, não é? - disse ela, em tom azedo e sarcástico.
Alec engoliu em seco.
- Sr. Sumpter, é Natal e festa e tudo. Não pode perdoá? O velho abanou a cabeça com gravidade.
- Natal, dizes tudo! Acabas de conspurcar os dias sagrados com o teu comportamento e agora imploras misericórdia. Não, não posso consentir numa actividade tão degenerada na minha propriedade, mesmo debaixo dos olhos da minha mulher. Vês o estado de perturbação em que a puseste? Estou a falar a sério, Alec. Vai-te embora e leva esse bocado de lixo contigo. Já!
Fez-se ouvir uma voz proveniente do alpendre das traseiras da casa vizinha.
- Está a ter algum problema com o seu trabalhador, Sr. Sumpter?
- Nada que eu não seja capaz de resolver, Sr. Smith.
- Tem a certeza de que não quer que eu vá aí?
- Tenho a certeza, Sr. Smith.
- Bem, se precisar de mim, basta gritar.
- Está bem, eu chamo. E agora boa-noite. - Sumpter baixou a voz.
- Ouviste isto, Alec Mack? Estás satisfeito? Humilhar-me diante dos meus vizinhos! Nem mais uma palavra! Pega nas tuas coisas, vai-te embora e não tornes a pôr aqui os pés.
Sumpter ficou especado a observar, de espingarda na mão, enquanto Alec reunia os seus parcos haveres num pequeno bornal de serapilheira onde costumava transportar as compras que trazia do mercado. Não era grande coisa - um segundo par de calças e algumas meias, a bolsa do tabaco de mascar e a navalha. Pelo canto do olho, Alec viu que a amiga tinha começado a chorar baixinho. Ter-se-ia aproximado dela para a consolar mas, por qualquer razão, não foi capaz de o fazer, com o velho
62Sumpter a observar todos os seus movimentos e a julgá-lo silenciosamente. Ela colocou o casaco esfarrapado sobre os ombros, ele vestiu o dele e abandonaram o barracão sem pronunciar palavra.
Quando já estavam um pouco afastados da casa, Alec começou a dizer qualquer coisa, mas ela interrompeu-o.
- Não dá para ficá em minha casa - disse, evitando olhar para ele.
- Tem lá a minha pequenina. Nunca levo homem para minha casa, nunca. As pessoa para quem trabalho não iam gostá, não mais do que... do que àquele ve...
Não lhe ocorria nenhuma palavra suficientemente ma, e a ele também não. Olharam um para o outro e desataram a rir.
- Não tem problema - disse-lhe ele - Eu trato de mim.
- Tem algum sítio para onde ir?
Ele olhou para cima, fitando a lua prateada e as estrelas geladas.
- A nha mãe vive no lado oeste da cidade. Me dá um beijo, mulhé. O ar em torno deles, e até o chão debaixo dos seus pés, estava gelado,
mas o corpo dela estava quente. Novamente envolvido naquele abraço, Alec sentiu que não queria deixá-la. Foi ela quem acabou por se separar dele. Largou a correr pela escuridão fora, sem acrescentar mais nada.
- Bem - disse Alec para consigo -, se continuá a andá pode ser que me mantenha quente.
Quando chegou a casa da mãe, que dava para um beco transversal à Rua Colorado, deteve-se um bom bocado a olhar para a pequena casa sem pintura. Era ainda mais pequena do que o barracão onde Alec tinha estado a viver. Não teve coragem para a acordar e contar a notícia vergonhosa. Continuou a calcorrear as ruas de Austin para cima e para baixo até se sentir demasiadamente exausto para continuar e excessivamente sonolento para que o frio o incomodasse. Adormeceu aninhado de encontro a uma árvore, num descampado à saída da cidade, com o bornal de serapilheira ajeitado em volta dos pés para os impedir de congelar.
Quando a madrugada de terça-feira surgiu, fria e brilhante, foi à Ribeira de Waller, na zona leste da cidade, lavar a cara e as mãos, e concedeu-se um pequeno-almoço barato numa casa de pasto para negros que havia na Rua Pecan, zona leste. Depois disto, como não tinha para onde ir, acabou por ir parar à esquina da Neches com a Pecan, pensando para consigo que uma ou duas cervejas no Black Elephant podiam ser uma ajuda preciosa na recuperação da sua paz de espírito.
63- Mas afinal, que diabo está fazendo aqui a meio da manhã? - perguntou Lem, trazendo-o de volta ao presente. - Esta é a hora do dia que eu costumo fazê uma soneca de pé.
- Pode fazê. Faz de conta que eu nem estou aqui. Lem abanou a cabeça.
- Foi expulso da casa do velho Sumpter, não foi?
- Está parecendo.
- Há uns meses, quando você pegou esse trabalho, eu bem te avisei que o velho Sumpter não era flor que se cheirasse, não. Estou vivendo em Austin faz pouco tempo, mas até eu sei que, mais tarde ou mais cedo, ele acaba por botá fora todos os negro que trabalham para ele e por lhe criar má reputação junto dos outros branco. O que e que ele está dizendo que voce roubou?
- Nunca! - Alec deu um murro no balcão, sentindo-se ofendido pela mera sugestão. Depois, o seu rosto suavizou-se, esboçando um sorriso. - Tinha uma amiga comigo.
Lem pôs as mãos na cintura e soltou um assobio.
-Não vai me dizer que o velho Sumpter foi entrando no quarto feito sonâmbulo e apanhou vocês naquilo!
- Não foi bem assim. A dona Sumpter tava espiando pela janela.
- Qué?
- Verdade! Juro por Deus.
- Tava espreitando pela sua janela? Que hora era isso?
- Não sei bem. Depois de escurecê.
- Ora essa, e o que é que ela andava fazendo, espiolhando no seu quarto?
- Como é que eu vou sabê! Talvez tenha ouvido barulho quando a minha amiga chegou. Deus sabe que a gente tava tão silencioso como ratos.
- Então qual foi o problema? Os Sumpters não são capazes de suportá a ideia dos negro fazendo melaço?
- Acho que é isso. Ele me disse desde início para eu não levá senhora lá a casa, a não ser que fosse para casá, e se fosse tinha de me despedi, porque ele não estava disposto a pagá a dois ajudante.
- Brancos! - bufou Lem. - Tratam a gente como animal de estábulo e depois querem que a gente se comporte como profeta da Bíblia. Quem era a sua dama, afinal? Eu conheço? Deve ser muito especial para valer a pena arriscá assim. Quanto foi que teve de pagá?
64- Nem um cêntimo! Nunca na vida paguei a uma mulher para tê prazê.
Lem ergueu uma sobrancelha. Ao lado de cá do balcão chegavam muitas histórias e Lem estava habituado a ouvir todo o tipo de mentiras; mas até era possível que Alec estivesse a dizer a verdade. Alec era um macho jovem e bem constituído, com vinte e poucos anos ou nem isso, cujos músculos dos membros e do peito pareciam estar sempre a mover-se e distender-se, prestes a saltar das roupas esfiapadas. Para além do mais, não era desagradável à vista, nariz largo e achatado, uns olhos enormes e cândidos, e a pele das bochechas e da testa macia como uma luva de seda preta de senhora. Tudo junto, e como a mãe de Lem costumava dizer, Alec era exactamente o tipo de caixinha de bombons que uma senhora selectiva tiraria da prateleira.
- Nem um cêntimo, hein? - disse Lem - Então só pode sê amô.
- Quanto a isso não sei. - Alec: fez um esgar, mas veio-lhe à memória a maneira como ela tinha dito que queria que eles fizessem com a lamparina a arder, e a expressão dos olhos dela, e deu por si a pensar se seria, de facto, amor.
- E então? Qual é o nome da dama? Alec abanou a cabeça.
- Nunca digo o nome das dama com quem me deito.
- Tá é querendo ficá com ela só pa você.
- Talvez.
- Bom, não se preocupe que eu tente roubá-la - disse Lem. - Ainda não toquei em mulhé nenhuma desde que vim para Austin. Vivê com a Menina Mollie Smith quando tava em Waco me curou desse desejo para sempre. - Lem cerrou os dentes perfeitos e estremeceu como um cão a sacudir o pêlo. - Me mudei para Austin para fugí daquela mulhé, e diabos me levem se ela não me aparece cá, ali para a zona oeste, a cozinhá e fazê limpeza para um tal Sr. Hall que tem uma senhora doente. Mas também sei que ela tem um novo companheiro, o que é um alívio abençoado. Deus me livre! Se eu sonhasse que aquela doida tinha vindo atrás dos meus osso, me mudava para Dallas agorinha!
A porta da frente, alta e de caixilhos envidraçados, abriu-se, deixando entrar uma rajada de ar frio. Alec, concentrado nas poucas bolhinhas que ainda serpenteavam pelo copo acima, não prestou atenção ao recém-chegado até ao momento em que, erguendo os olhos na direcção de Lem,
65se apercebeu de que a expressão deste se tinha turvado. Alec olhou por cima do ombro e viu em contraluz a silhueta de uma figura alta, obscurecida pela claridade ofuscante que vinha da rua, que não lhe deixava ver a cara com nitidez. No entanto, à medida que o homem ia avançando na direcção deles, e só pelo movimento arrogante do andar, cadenciado e pomposo, Alec teve a certeza de que se tratava de um branco. A porta fechou-se e, porquanto a luz se tornasse mais suportável, Alec viu que o homem usava o uniforme da polícia da cidade - um casaco de sarja azul e comprido, com um entrançado dourado nos punhos, duas fileiras de botões dourados à frente e um distintivo com uma estrela pregado ao peito. Na cabeça, tinha um boné redondo de copa achatada, com um entrançado dourado em torno da base da aba curta e, na parte da frente, um emblema bordado a ouro, composto por dois ramos de loureiro que emolduravam as palavras COMISSÁRIO DA POLÍCIA. Alec não sabia ler. Lem sabia, mas não precisava: já conhecia o homem.
Lem pigarreou.
Bom dia, Comissário Lee.
É de dia, Lem, lá nisso tens razão, mas se é bom ou não, já não tenho tanta certeza. Estou farto deste maldito frio. Serve-me uma bebida.
- Tá querendo uma cerveja, Comissário?
O homem deu uma gargalhada desdenhosa.
- Por esta altura, já devias saber que eu nunca bebo cerveja. Uísque.
- Pois ta claro que sei, Comissário. Um copo do melhor uísque da casa, senhor, é para ja.
O comissário da polícia encostou-se ao balcão, a poucos passos de Alec. Alec voltou os olhos na direcção dele e viu que o homem estava a olhar para si com uma expressão trocista. Voltou a olhar para as bolhinhas de cerveja do copo que tinha à sua frente.
- Está um bocado frio para cerveja, não? Alec remexeu-se no banco nervosamente.
É mais barato do que bebé uísque - disse em voz baixa.
Não faço ideia. Nunca pago. - Antes que Lem pudesse pousar o copo largo sobre o balcão, o Comissário Lee tirou-lho da mão e emborcou-o, bebendo o uísque todo de um só trago. Depois estalou os lábios e perguntou: - Então, Lem, as coisas têm estado calmas por estes lados?
- É como pode vê, Comissário Lee. Nesta altura do ano não há muito movimento no Black Elephant.
66- E o que estás tu aqui a fazer, rapaz? - O comissário da polícia dirigiu a sua atenção para Alec.
-Tomando uma cerveja.
O comissário da polícia assentiu com um movimento de cabeça.
- E que género de negro é que está sentado num bar a beber cerveja a meio da manhã?
- O homem é amigo meu, Comissário Lee - disse Lem -, e veio dar dois dedos de conversa comigo, nada mais. Problema com mulhé. Tá sabendo como é.
- E então como é que se chama o teu amigo?
Antes que Lem pudesse responder, Alec tomou a palavra.
- Me chamo Alec Mack.
O comissário da polícia fixou o seu olhar em Alec.
- Alec Mack. Não me vou esquecer do nome. Ouviste o que Lem me chamou. Sou o comissário da polícia. Parte do meu trabalho é assegurar que as pessoas decentes desta cidade não são incomodadas pelas coisas que se passam em sítios como o Black Elephant. Não costumas causar problemas aqui, ou costumas?
- Tal como estou lhe dizendo, Comissário Lee - atalhou Lem o Alec é amigo meu. Um dos bons.
- Ai é? - O comissário da polícia olhou para Alec com dureza e depois voltou os olhos na direcção de Lem. - Tu lá deves saber, Lem. Não haja dúvidas de que sabes servir um bom uísque.
- Para o senhô, Comissário Lee, sempre o melhor.
O comissário da polícia desencostou-se pesadamente do balcão e avançou para a porta do bar tão pomposamente como tinha entrado. Alec olhou de relance para Lem, que não lhe retribuiu o olhar.
Nessa altura, emergiu uma figura do armazém que ficava ao fundo do bar. Tratava-se de Hugh Hancock, o dono do Black Elephant, que vivia na casa anexa ao bar, nas traseiras.
- Que conversa toda era aquela?
- Bom dia, Sr. Hancock - cumprimentou Lem. - Foi só uma visitinha do Comissário Lee.
- Isso vi eu. - Hugh Hancock alcançou uma toalha e começou a esfregar o balcão, embora Lem já o tivesse limpado nessa manhã. Hancock era um homenzinho magro de suíças brancas, com umas pernas curtas de mais para o resto do corpo. Era incapaz de estar parado. Às vezes,
67Lem achava-o um tanto ou quanto cómico, sempre a correr de um lado para outro sobre as pernas arqueadas. No entanto, era muito provavelmente a esta energia nervosa que Hancock devia o seu sucesso; não havia muitos negros que fossem donos do seu próprio negócio. Hugh Hancock era o primeiro negro para quem Lem alguma vez trabalhara. O que lhe valera ter perdido a vontade de trabalhar para os brancos.
- E o que é que o Comissário Lee queria? Tava procurando alguém?
- Quanto a mim, veio só procurando um uísque de borla.
- Deste-lhe do melhor?
- Dei-lhe daquele que o senhor bebe, Sr.
- Isso mesmo. A última coisa que eu quero é ter aborrecimentos com um ex- Ranger com vontade de arranjar problemas. Aquele homem tem maus fígados!
Alec terminou a sua cerveja. Tinha deixado de se sentir confortável no Black Elephant. Levantou-se, ligeiramente tonto, e avançou para a saída.
- Toma cuidado com você - gritou-lhe Lem.
- Você também.
Alec pôs o pé na Rua Pecan, semicerrando os olhos ante a fria e brilhante luz do sol. Sentiu-se imediatamente desperto quando se apercebeu de que o Comissário Lee se encontrava a poucos passos de distância. O homem tinha-se encostado à esquina de um edifício com os braços cruzados e um esgar trocista.
- Queres saber o que é que eu acho? - disse ele. - O que eu acho é que um negro com demasiado tempo livre nas mãos é um indivíduo que anda a preparar alguma. Tenho-te debaixo de olho, Alec Mack. Não te esqueças disto.
Alec engoliu em seco e prosseguiu caminho.
Queria pensar noutra coisa qualquer, pelo que voltou a recordar-se da maneira como a amiga tinha olhado para ele na noite anterior, da forma como a luz da lamparina tinha cintilado sobre os seios dela e faiscado nos seus olhos, e do modo como ela tinha pronunciado o nome dele, dando-lhe forma, silenciosamente, com os lábios e com a língua. Em voz alta, mas apenas para os seus próprios ouvidos, como se fosse um segredo que não pudesse ser partilhado com mais ninguém, Alec sussurrou o nome dela:
- Rebecca. Menina Rebecca Ramey.
68- Tens planos para amanhã a noite, Will? - Dave Shoemaker pousou o copo de uísque e cortou a ponta do charuto com o canivete de bolso.
- Referes-te à noite de Fim de Ano? - Will Porter soprou a camada de espuma para fora do copo de cerveja, um gesto que fazia sempre, por forma a evitar sujar o bigode. Não havia muitos rapazes de vinte e dois anos que pudessem orgulhar-se de possuir um espécime tão distinto. Os espessos pêlos arruivados alinhavam-se-lhe em dois traços largos por cima do lábio superior, seguindo o contorno da boca para ambos os cantos e curvando para cima sobre as faces, terminando em duas pontas retorcidas e laboriosamente enceradas, em estilo de franco-atirador.
Ter-lhe-ia sido difícil reclamar o título de franco-atirador, mas Will não se importava de se parecer com eles. Era originário de Greensboro, na Carolina do Norte. Aos dezanove anos, com uma saúde frágil, a mãe falecida e o pai em paradeiro desconhecido, fora enviado pela família para o sul do Texas, para casa de uns amigos. Will estreara a década dos seus vinte anos num rancho que ficava numa região montanhosa, de terreno dominado por vegetação cerrada. Aprendera a montar a cavalo, a pastorear ovelhas, a caçar coelhos, a jogar póquer e a falar o espanhol dos cowboys. No rancho, os dias e as noites eram longos, pelo que ele também lera muito, pois a família que o tinha acolhido era letrada e possuía uma biblioteca considerável. Will gostava de Tennyson e leu de ponta a ponta um exemplar em mau estado do Dicionário Completo da Wèbster.
Aos vinte e um anos, na Primavera de 1884, decidiu abandonar o rancho e mudar-se para a cidade de Austin. Para autodidacta, Will considerava-se um indivíduo razoavelmente rodado. Sabia laçar uma rês, citar passagens do Idylls of the King, e cuidar de um bigode magnificamente elegante. Uma vez em Austin, e apesar deste currículum, tivera alguma dificuldade em encontrar um meio de subsistência.
Em Greensboro, durante a adolescência, tinha trabalhado na drogaria do tio, onde fazia um pouco de tudo, desde manipular o garrafão de
69gasosa até aviar receitas. A sua primeira tentativa no sentido de arranjar um trabalho pago em Austin fora um biscate na drogaria Irmãos Morley, na Rua Pecan, zona leste, mas os Morley haviam recusado as suas qualificações informais de farmacêutico, tendo-o contratado apenas como empregado de balcão. Fazer o troco de pastilhas para a tosse era um trabalho entediante para quem estava habituado a assumir o comando das operações e ele acabara por se despedir passados apenas dois meses.
Will tinha, pelo menos, um sítio onde dormir: uma casa de hóspedes de grandes dimensões situada na Rua Lavaca. A residência era gerida por Joe Harrell - outro conhecido da Carolina do Norte - que o alojara por pura benevolência. Quando Will se despediu do emprego nos Irmãos Morley, o Sr. Harrell disse-lhe que não se preocupasse com o pagamento da renda, acrescentando que Will podia ganhar uns cobres trabalhando umas horas na tabacaria do filho, na Avenida do Congresso. Trabalhar ”umas horas” servia na perfeição os propósitos de Will. Quando não estava a estudar o movimento dos raios solares ao longo do seu quarto, ou a perambular sem destino pelas ruas de Austin, ou ainda a tentar perceber quanto tempo conseguia fazer render uma cerveja num bar qualquer de Guy Town, dispunha de todo o tempo que quisesse dedicar ao cuidado e escovagem do seu magnífico bigode.
As suas aparições esporádicas atrás do balcão da Tabacaria Harrell permitiam-lhe auferir um rendimento diminuto, mas com uma vantagem adicional de grande valia: a sua amizade com Dave Shoemaker. A tabacaria ficava perto da esquina da Congresso com a Pecan, a curta distância a pé dos escritórios do Statesman, onde Dave trabalhava como jornalista. O próprio William. Pendleton Gaines aparecia por lá de tempos a tempos, embora fosse mais habitual mandar um dos seus moços de recados comprar-lhe os charutos. Dave Shoemaker tinha adquirido o gosto do patrão pelos refinados havanos e quis o acaso que, num dos dias em que foi a loja, Will estivesse a trabalhar. A afinidade que se estabeleceu entre eles foi imediata. Partilhavam o mesmo sentido de humor e ambos tinham interesse pela palavra escrita. Dave era poucos anos mais velho, mas parecia infinitamente mais experiente, pelo menos aos olhos de Will. Tinha a escrita como profissão e, a avaliar pela maneira como se queixava, detestava o que fazia. Will achava que ser escritor era decerto a melhor coisa do mundo embora, até à data, as suas próprias incursões literárias se tivessem limitado a umas quantas histórias escrevinhadas
70em cadernos de apontamentos e ilustradas com esboços que ele próprio fazia. Eram extremamente perspicazes - pelo menos era esta a apreciação que delas faziam todos os hóspedes de Joe Harrel.
O crepúsculo dessa terça-feira foi encontrar Dave e Will sentados lado a lado ao balcão do Cabinet, um bar situado defronte dos escritórios do Statesman e um dos refúgios favoritos do pessoal do jornal. Ainda excitado pelo bónus de Natal com que Gaines o tinha presenteado, Dave passara pela loja de charutos depois do trabalho com intenção de comprar uns havanos, tendo encontrado Will prestes a terminar o seu turno atrás do balcão. juntos seguiram em direcção ao Cabinet para começar a noite.
- Amanhã é noite de Fim do Ano - disse Will pensativamente. - Será possível que já tenhamos chegado a 1885? Bem, tinha pensado despender uma pequena parte dos meus avultados rendimentos num fato elegante e aparecer no baile da mansão do Governador. Todas as pessoas de nomeada estarão lá: professores universitários, barões do gado, capitães da indústria.
- Eles e as suas filhas solteiras - acrescentou Dave.
- Ah, sim, e as filhas. - Will bebeu um golo da sua cerveja. Apesar das precauções, um bocado de espuma desgarrada acabou por se lhe colar ao bigode.
- Deduzo, portanto, que não tens planos para amanhã à noite - afirmou Dave secamente.
- Bem, se o tal convite do Governador Ireland não chegar a aparecer, estou em crer que há-de proporcionar-se qualquer coisa entre os enjeitados da casa de hóspedes. Talvez o Joe Harrell resolva servir um ponche e uns bolinhos de gengibre. Desde que não tenha de pagar, a celebração afigura-se adequada ao meu orçamento. E tu?
- O Gaines mandou-me ficar de serviço até tarde, para fazer sair a edição de Ano Novo. Não há feriados para os escravos da tinta impressa! Deus sabe que há-de haver um tiroteio ou uma rixa qualquer na noite de fim de ano, sobre a qual eu tenho de estar disponível para escrever, para que as pessoas possam conversar sobre a notícia enquanto tomam o seu cafezinho na manhã do dia de Ano Novo. Não te contei? Agora sou o repórter criminal. É o meu reduto exclusivo. Aparentemente, as minhas histórias chocantes sobre artistas fraudulentos no terminal ferroviário suscitou uma agitação tal, que agora passo a cobrir todos os
71assassínios e descalabros da cidade. O Gaines diz que eu tenho um talento especial para o sensacionalismo.
- Mas que grande elogio!
- Um grande insulto, diz antes! Eu, que nasci para ser poeta! Em vez disso, sabes o que é que o Schopenhauer chamava aos jornalistas? ”Alarmistas e exageradores profissionais.” Tenho, pois, um talento para o exagero! E para alarmar as pobres almas ainda meio a dormir, a quem só apetece um pequeno-almocinho e um café Para começar o dia. Compete-me fazer com que os seus corações batam descompassadamente. Não é nada de que me possa orgulhar.
- Esse tal Schopenhauer... também escreve para o Statesman? Dave olhou de revés para o amigo. Às vezes era difícil perceber se Will estava a brincar ou a falar a sério. Claro que também não havia nenhuma razão especial para que Will soubesse que Schopenhauer era um filósofo alemão, embora ele parecesse ter lido bastantes livros. Dave deixou passar a pergunta.
- Para mim, não vai haver festividades de Ano Novo - acabou por dizer. - Por isso, resolvi celebrar o fim de 1884 vinte e quatro horas antes. Hoje à noite, Guy Town comigo! Fazes-me companhia, Will?
- Quem me dera poder, Dave, mas o meu único bónus de Natal foi uma autorização para ficar com o tabaco solto que tenha sido varrido do chão da tabacaria durante a semana. E não me parece que os nativos destas paragens aceitem tal mercadoria como moeda.
- Nesse caso, a noite é por minha conta - declarou Dave.
- É muito generoso da tua parte, Dave, mas não posso aceitar...
- Ouve, já te disse que recebi um bónus chorudo. Não sabes qual é a regra de boa-sorte para os solteiros que recebem um bónus de Natal? Não entrar no Ano Novo com um cêntimo que seja desse dinheiro nos bolsos! Far-me-ás um favor se me ajudares a ver-me livre dele.
Will sorriu. Por vezes, dava por si a pensar no que haveria nele que despoletava nos outros tamanha generosidade e se, a longo prazo, tais benesses não acabariam por lhe arruinar o carácter. Não parecia bem que um homem de vinte e dois anos vivesse da bondade dos amigos e sem qualquer tipo de planos concretos para o futuro. A vida de Will em Austin, tal como a vida de que tinha desfrutado no rancho, podia considerar-se uma existência dourada, preguiçando dia após dia, com umas interrupções esporádicas para umas horas de trabalho. Will gostava de
72viver assim; seria isto um sintoma de que havia nele qualquer coisa de anormal? Talvez um homem precise de ter uma mãe que lhe instile ambição, e mãe era algo que Will nunca tinha tido. Se calhar, as pessoas percebiam que ele era órfão e talvez fosse por essa razão que se davam ao trabalho de lhe facilitar a vida.
Dave interpretou o sorriso de Will como sinal de aquiescência.
- Então está combinado! Primeiro, tratamos de jantar. Estou com vontade de comer um bife. Depois, seguimos os nossos passos até Guy Town.
jantaram na Salge’s Chop House, na Avenida. O bife tinha dois dedos de altura, negro de tostado por fora e suculento de sangue por dentro, afogado em cebolinhas e com puré de batata a acompanhar. A abundância de carne fresca era uma das vantagens de viver numa região de gado.
Outra vantagem específica da vida em Austin era o incontável número de bares existentes na cidade, mais do que aqueles que um homem com uma constituição normal seria capaz de frequentar numa noite. Começando pelo lado oeste da Avenida, Dave e Will decidiram visitar apenas os seus favoritos. Assim, passaram uns minutos no Mechanics Exchange, na Brazos, onde Dave conhecia o irmão do dono, pelo que conseguia arranjar-lhes bebidas por metade do preço, a que se seguiu uma cartada de faro na sala dos fundos do Bull’S Head, na Pecan, zona leste, que tinha fama de atrair os ingénuos que visitavam a cidade. Não dispondo de dinheiro para apostar, Will ficou a assistir ao jogo, mas Dave ganhou o suficiente para financiar uma rodada aos clientes habituais do bar. Esta atitude ”mãos largas” era um investimento na sua carreira profissional; como ele tinha explicado a Will em tempos: ”Um jornalista nunca sabe quem pode vir um dia a saber responder a uma pergunta decisiva. É-me conveniente estimular o maior círculo de amizades possível nos piores lugares possíveis.” Não obstante, Dave nunca tinha conseguido convencer o Sr. Gaines a saldar-lhe as contas nos bares e as dívidas de jogo como despesas de serviço.
Por fim, apanharam um trem de mula vazio que seguia na direcção da Rua Pecan. O condutor sentiu o espírito animado dos dois homens e Soltou uma gargalhada bem humorada enquanto eles remexiam desajeitadamente nos bolsos, tentando encontrar umas moedas para pagar o
73bilhete. Espojaram-se à larga no trem, Dave ocupando um dos lados do transporte e Will ocupando o lado oposto.
O breu da noite já tinha caído sobre a cidade e uma descida da pressão atmosférica indiciava a chegada iminente da nortada. O bulício do dia tinha esmorecido por completo. As pessoas que - ao contrário de Dave e Will - tinham famílias para junto de quem regressar ao fim da jornada já tinham recolhido a casa em busca de conforto e calor. Os trens e os peões eram tão raros, que o condutor nem se dava a maçada de fazer tinir a campainha nos cruzamentos. Will sentia-se agradecido por isso. Àquela hora deserta, talvez o condutor fosse, também ele, sensível à estranha paz que advinha do som das rodas a girar sobre os carris de aço e da cadência regular dos cascos das mulas sobre a terra batida.
Will estava quase decidido a deixar-se simplesmente ficar no trem, a deixar-se conduzir até ao fim da linha e novamente de regresso, a apanhar depois outro trem que fizesse a carreira norte-sul, deixando-se ficar a noite inteira sentado, aconchegado no seu casaco de lã, a ver o mundo passar diante dele a passo de mula, a observar os homens e as mulheres que andavam pela rua, a espreitar os passageiros que se enroscavam nos fiacres, a imaginar as vidas secretas que se ocultavam por detrás das janelas iluminadas das casas por onde iam passando, a ver todas estas coisas em primeiro plano por breves instantes, vendo-as depois reduzir-se e por fim desaparecer à distância.
Will foi subitamente acometido por uma pontada de tristeza tão aguda, que lhe cortou a respiração. Sentiu-se aliviado e agradecido quando Dave lhe bateu no ombro e o puxou de volta ao presente. O trem tinha chegado ao topo da Avenida, à paragem onde eles deviam sair. Era altura de se dirigirem a Guy Town.
Havia uma enorme quantidade de bares por toda a Austin, sobretudo ao longo das ruas comerciais. Existiam ainda, espalhadas pela cidade, casas de jogo secretas, e outras não tão secretas, bem como casas de má fama para todos os gostos e bolsas. Mas em parte alguma da cidade se encontrava uma concentração tão densa deste tipo de estabelecimentos como no punhado de quarteirões conhecido por Guy Town. Esta área ficava situada na zona sudoeste de Austin e os seus limites começavam) mais coisa menos coisa, um quarteirão a sul da Pecan, um quarteirão a oeste da Avenida, imediatamente a norte do rio e a leste das serrações da
74Rua de Guadalupe Guy Town era atravessada pelos carris ferroviários e o seu centro geográfico coincidia com o terminal dos comboios onde se apeavam, dia após dia, homens de negócios, lavradores e rancheiros vindos de todos os cantos do Estado. Nas barracas dispostas ao longo das ferrovias, onde ninguém viveria se pudesse evitá-lo, devido ao barulho, à sujidade e aos cheiros, moravam as prostitutas pobres, muitas delas mulheres mexicanas ou de cor, solteiras, que tinham de fazer pela própria vida e pela dos filhos. À distância de um ou dois quarteirões das linhas do caminho-de-ferro, viam-se casas maiores e mais bem arranjadas, algumas de aspecto exterior bastante respeitável, nas quais se passava exactamente o mesmo que nas barracas, mas em condições mais confortáveis e a preços mais elevados.
Ao entrar num bar de Guy Town, uma pessoa era invadida por uma sensação de perigo e, ao mesmo tempo, de liberdade e de oportunidade. Cerca de metade dos bares de Guy Town tinham uma ligação a um bordel da vizinhança e, se um bar propiciava um fandango, as mulheres que se ofereciam como pares de dança esperavam ser pagas por isso. Embora se pudessem encontrar casas de jogo ilegais noutras zonas da cidade, os estabelecimentos de Guy Town eram aqueles que atraíam os jogadores mais experientes e entusiastas, e também os que ofereciam a gama mais diversificada de jogos - faro, keno, monte, chuck-a-luck e póquer. O uísque era vendido em qualquer parte da cidade, mas em GuyTown também se arranjava absinto e láudano, cujo gosto acre era adoçado com brandy. Havia sítios onde se podia comprar morfina em grandes quantidades ou experimentar a nova droga misteriosa chamada cocaína, e era do domínio público que havia casas de ópio por trás das lavandarias chinesas. Este género de ambiente atraía todo o tipo de homens, desde os de apetites mais grosseiros até aos de gostos mais refinados. Os miseráveis também tinham o seu lugar em Guy Town. Um vagabundo a quem seria dito que se pusesse a andar caso se sentasse na borda do passeio à frente de uma loja da Avenida não chamava a atenção de ninguém caso estivesse a fazer uma sesta num beco por tras de um bar de Guy Town.
Dave e Will começaram por um estabelecimento sem nome situado na Rua do Colorado e, desse momento em diante, a noite tornou-se uma mancha difusa na memória de Will. No que tocava a vícios, Will
75nunca conseguiria acompanhar o ritmo de Dave e tinha perfeita consciência de que nem sequer valia a pena tentar. Ficou-se pela cerveja enquanto via Dave beber uísque, puxar de um havano, seduzir as raparigas do fandango, perder ao póquer e ganhar ao montinho.
A dada altura, Will reparou numa cena que, mesmo para os padrões de Guy Town, lhe pareceu inusitada. Foi num dos bares em cujas traseiras existia uma passagem coberta que ligava o bar à casa do lado. Numa mesa de canto que se encontrava na parte mais recuada desse bar, iluminados por uma lamparina regulada para uma chama tão débil que o pavio crepitava, achavam-se sentados dois homens bem vestidos. Um deles era alto e esguio. O seu companheiro de ombros largos, que ostentava um grande bigode e usava um pince-nez, pareceu vagamente familiar a Will. Os dois homens pareciam estar entretidos em negociações amigáveis com uma bonita loura. Era uma situação perfeitamente normal, mas o homem esguio usava uns óculos azuis-escuros, quase pretos, o que era deveras estranho tendo em conta a fraca intensidade da luz. Às tantas, Will reparou que o homem tinha uma bengala numa das mãos. Até um cego precisa de companhia, pensou ele, mas faria alguma diferença a mulher ser bonita?
Dave passou um braço por cima dos ombros de Will.
- Acho que está na hora de me meter na cama. E não pretendo fazê-lo sozinho!
- O quê?
- Quero dizer que estou à procura de companhia.
- Tu e aquele fulano cego!
- O quê?
- Esquece.
- E tu, Will?
- Dave, sabes bem que tenho os bolsos vazios.
- E daí? Arranjamos uma companhia para ambos.
- Estás a falar a sério?
- já te disse que esta noite é por minha conta.
- Dave, pagaste-me o jantar, pagaste-me a cerveja, mas há certas coisas que eu nunca poderia permitir que me pagasses. É uma questão de princípio, não transijo nisto.
- Tu tens os princípios, mas eu tenho o capital.
76- Cada qual com o seu.
Dave lançou-lhe um olhar ébrio e enviesado e esgrimiu com o indicador em riste:
- Pois se assim é, se vou gastar sozinho o dinheiro todo que tinha para as pegas, não vou desperdiçá-lo num sítio destes. Vou gastá-lo todo de uma vez numa coisa verdadeiramente especial.
Will riu-se.
- E aonde é que vais a procura disso?
- Oh, sei aonde ir. E não penses que é em Guy Town! É do outro lado da Avenida, onde vão os finórios: os rancheiros ricos, esses palermas que trabalham para o Governo estadual e os tipos que vão sempre a igreja e se consideram bons de mais para serem sequer vistos em Guy Town. Querem o mesmo que toda a gente só que, para os meninos, tem de ser do melhor. Pois bem, esta noite vou oferecer-me do melhor. Eu, caro senhor, vou a casa da May Tobin.
- Onde é que isso fica?
- Nada com que tenhas de te preocupar. Tu não vens, lembras-te? Por uma questão de princípio - acrescentou Dave com uma gargalhada.
- já lá estiveste?
- Não. Mas nenhum jornalista desta cidade ignora a existência da viúva Tobin. May é uma senhora discretíssima, e só tem do melhor. Diz-se que as pombas dela ainda são branquinhas - bem, seja como for, algumas delas ainda conservam alguma brancura. E são tão sofisticadas que todas elas recitam Shakespeare. Tens a certeza de que não queres vir? Podias ensinar-lhes Tennyson!
Dave achou esta tirada hilariante e atirou a cabeça para tras rindo às gargalhadas. Quando parou finalmente de rir, Will tinha desaparecido. Will saiu para a rua e foi atingido em cheio na cara por uma rajada do agreste vento do norte. Tinha uma longa caminhada pela frente, a maior parte dela a subir, até chegar à casa de hóspedes; os trens de mula já tinham parado de circular e Will não tinha dinheiro para fretar um trem de aluguer. Se andasse depressa, o exercício mantê-lo-ia aquecido.
Por que razão tinha desaparecido assim, sem sequer agradecer a Dave a noite que ele lhe tinha proporcionado? Devia regressar e pedir desculpa, pensou, mas como iria explicar-se? A verdade é que não era um homem tão mundano como Dave parecia pensar que ele fosse. A razão pela qual
77Will recusara que Dave lhe pagasse uma mulher não tinha nada a ver, nem com dinheiro, nem com princípios; desde quando é que Will recusava a generosidade que outros lhe concediam? O motivo era outro. No seu íntimo, Will tinha uma determinada imagem do que uma mulher devia ser e o tipo de mulheres que ele via em Guy Town não se lhe assemelhava minimamente.
O vento picava-lhe a cara. Will estremeceu e desatou a correr. O uísque aquecia um homem; a cerveja fazia-o arrepiar-se. Dave fazia tudo como devia ser, e Will não passava de um tolo.
78Enquanto Dave Shoemaker se punha a caminho da casa de MayTobin e Will Porter corria para a casa de hóspedes, Mollie Smith arrastava-se finalmente até a cama após um longo dia de trabalho.
A residência de William Hall, onde Mollie vivia e trabalhava, era uma casa de dois pisos situada na Rua Pecan, nove quarteirões a oeste da Avenida do Congresso. Ficava bastante afastada da agitação da zona comercial da cidade, pouco depois da ponte de ferro que atravessava a Ribeira de Shoal.
A residência dos Hall não era uma casa alegre. Toda ela estava ensombrada pela doença da Sra. Hall.
Mollie, que era a criada de servir dos Hall e vivia no quarto dos fundos, contiguo à cozinha, não sabia ao certo de que é que a Sra. Hall padecia e não estava propriamente em ânsias por descobri-lo. Mollie era jovem, vinte e cinco anos apenas, e tinha um enorme pavor de doenças. Era para ela um grande alívio que os cuidados a prestar à Sra. Hall, dar-lhe banho, mudar-lhe os lençóis, despejar-lhe o bacio de noite, pegar-lhe na mão e fazer-lhe companhia quando ela tinha os seus ataques de gemidos e lamúrias, recaíssem sobre Nancy, a enfermeira negra que dormia no andar de cima. Nancy era uma mulher possante, corpulenta, com a energia de um touro e a paciência de um gato à coca numa toca de rato. Tinha o temperamento ideal para ser enfermeira. Ao contrário de Mollie, que era de temperamento instável e permanentemente insatisfeita.
O trabalho de Mollie consistia em manter a casa limpa e cozinhar três refeições por dia para os homens da família: o Sr. Hall e Tom Chalmers (Sr. Tom para os criados), o irmão da Sra. Hall, de dezassete anos de idade. Só tinha de contactar directamente com a inválida quando lhe levava uma tigela de caldo quente, o que acontecia duas vezes ao dia, quer a paciente estivesse em condições de o beber, quer não. Mollie temia esses breves momentos de contacto com a Sra. Hall. De dia para dia, a pobre mulher parecia cada vez mais estiolada e fantasmagórica, o que
79não era de espantar, dado que não conseguia ingerir alimentos sólidos e só raramente tomava mais do que uns golos do caldo que Mollie lhe levava.
Ao princípio da tarde desse dia, estava Mollie a levantar a mesa do almoço, o médico itinerante foi lá a casa, atender a uma chamada. Foi o Sr. Tom quem abriu a porta da frente e o recebeu. Momentos depois, o Sr. Hall desceu do piso superior para cumprimentar o visitante. Da sala de jantar, Mollie conseguia espreitar por um canto, atravessar a sala de estar com o olhar e observar o que se passava no vestíbulo; e, conquanto fosse capaz de impedir que os pratos entrechocassem uns nos outros, conseguia ouvir a maior parte da conversa. O visitante dava pelo nome de Dr. Terry e parecia-lhe vagamente familiar. Onde é que Mollie o tinha visto? Ah, pois, na gravura do frasco de tónico que tinha aparecido recentemente em cima do toucador da Sra. Hall.
O visitante vinha acompanhado de outro homem, um indivíduo alto, magro e com umas suíças enormes. Usava uma bengala comprida e uns óculos feitos de vidro azul-escuro. Chamava-se Dr. Fry e, no momento em que o Dr. Terry fazia as apresentações, o Dr. Fry voltou repentinamente a cabeça na direcção de Mollie. Mollie recuou com um estremecimento, envergonhada com o facto de ter sido apanhada a espreitar, mas o homem parecia olhar através dela. Não era uma coisa rara. Mollie estava habituada a ser invisível para a maioria das pessoas brancas até que estas precisassem de alguma coisa dela.
Prosseguiu lentamente com o seu trabalho na sala de jantar, de maneira a poder ouvir a conversa entre o Dr. Terry e o Sr. Hall. Ao que parecia, o Dr. Terry tinha, não só patenteado o seu próprio tónico, como tratado centenas de casos semelhantes ao da Sra. Hall. Depois, os quatro homens dirigiam-se em conjunto ao piso de cima. Por entre o arrastar e bater de tantos pés nos degraus da escada, distinguia-se o ruído de um penetrante tap-tap.
Mais tarde, enquanto lavava a louça na cozinha, Mollie ouviu-os regressar ao piso de baixo e distinguiu o som de vozes abafadas no vestíbulo, enquanto os visitantes se preparavam para ir embora. Mollie secou imediatamente as mãos e colocou um xaile por cima dos ombros, esgueirando-se para a rua pela porta das traseiras. Chegou à porta da frente da residência no exacto momento em que esta se fechava e abeirou-se dos dois médicos quando estes desciam os degraus do alpendre. Reparou
80que o Dr. Fry avançava devagar, acompanhando cada passo com o tactear da comprida bengala.
- Dr. Terry! - chamou, mantendo a voz baixa.
os dois homens voltaram-se na direcção dela. Um raio de sol que conseguira romper por entre o maciço de nuvens baixas reflectiu-se nas lentes azuis-escuras do Dr. Fry. As nogueiras do pátio de entrada, sem folhas, estremeceram a passagem de uma súbita rajada de vento.
O Dr. Terry sorriu.
- E quem vens a ser tu, rapariga?
- Me chamo Mollie Smith. Faço as limpezas e cozinho para os Hall. Pode ajudar ela, Dr. Terry?
O sorriso do homem empalideceu.
- O caso da Sra. Hall é complicado. Nem doses duplas do meu tónico parecem conseguir reabilitá-la. Dei indicações especiais a enfermeira. Agora, só o tempo o dirá. É muito gentil da tua parte preocupares-te dessa maneira com o bem estar da tua senhora.
Mollie assentiu com um movimento de cabeça.
- E, estava pensando...
O Dr. Terry inclinou a cabeça. Mollie pensou que o bigode encrespado e os óculos pequeninos, encavalitados no nariz, davam ao Dr. Terry um ar de homem inteligente e sabedor.
- Estás preocupada com o bem-estar de mais alguém. Tenho razão, Mollie? Ha mais alguém que esteja doente e a precisar de cura?
- Não é bem isso, não. Quero dizê, não é doente como a Sra. Hall, não. Mas me dá umas dores de cabeça horríveis de vez em quando. É um latejá tão forte que nem sequer consigo dormi de noite. E estou sentindo uma a começá desde o início da manhã. Me dá um pavô terrível.
- Ah! Uma paciente de enxaquecas crónicas, presumo - disse o Dr. Terry. - Que remédios experimentaste até agora?
- Só o que a minha mãe me ensinô. Enrolá um trapo comprido à volta da cabeça e apertá bem forte para espremê o latejá.
O sol fez uma pirueta nos óculos do Sr. Fry quando ele atirou a cabeça para trás e soltou uma gargalhada. Mollie percebeu que não simpatizava tanto com ele como com o Dr. Terry
O Dr. Terry emitiu um estalido com a língua.
- É verdadeiramente chocante pensar que há tantas pessoas que ainda recorrem a medidas tão primitivas e potencialmente perigosas nesta era da ciência. Estamos, defacto, nas berças!
81- Oh, Dotô, estou sentindo ela a ví agorinha mesmo, aqui entre os olhos. E tava pensando... quero dizê, sei que o sinhô é um médico viajante, especial e tudo isso, e eu não posso pagá quase nada...
- Minha pequena, a prática da medicina não é motivada apenas pelo lucro e a verdade é que eu tenho um coração de manteiga, não é assim Dr. Fry? Creio que posso ajudar-te. - Abriu a pasta preta que trazia consigo e, depois de vasculhar no seu interior por momentos, fez aparecer uma pequena embalagem que não tinha mais do que um centímetro quadrado de dimensão. - Tenho aqui um pó que, sendo essa a vontade de Deus, resolverá eficazmente essa enxaqueca avassaladora que te apoquenta. Antes de te deitares, toma a dose inteira que está nesta embalagem, dissolvida num copo de agua.
- Antes de me í deitá?
- Pode provocar-te sonolência.
- Não me tá dando ergotina, pois não? Sei de histórias de pessoas que tomam ergotina para as dores de cabeça, mas me dizem que é veneno se toma demasiado.
- Não, não é ergotina. É apenas um soporífero ligeiro com propriedades anestésicas. É perfeitamente inofensivo.
Mollie assentiu com a cabeça e, embora não estivesse inteiramente convencida, estendeu a mão para pegar na embalagem.
O Dr. Terry não a reteve.
- Ah, mas podes pagar os meus serviços? Mollie franziu o sobrolho.
O Dr. Terry deu uma curta gargalhada.
- Estou em crer que podes; a não ser que queiras privar um visitante dos climas do norte de um sorriso, do maior sorriso que conseguires fazer aparecer nesses teus lindos lábios; ora aí está, tal e qual! Não custou assim tanto, pois não? Toma, aqui tens o pó, Mollie. Dr. Fry, só queria que pudesse ver o sorriso de gratidão na cara da nossa paciente.
Os lábios de Mollie tremeram ligeiramente. Ela baixou a voz, embora não houvesse maneira de falar com o Dr. Terry sem que o outro homem ouvisse.
- Ele é.. quê dizê, ele não pode mesmo...
- Sim, Mollie, o Dr. Fry é cego. E posso acrescentar que é famoso por isso. Este é o Dr. Fry, o Frenólogo Cego.
- É o quê?
82- O Dr. Fry estuda as personalidades de homens e mulheres através de um exame táctil da sua morfologia occipital.
Mollie fez uma expressão completamente vazia.
- Ele apalpa a cabeça da pessoa e, por meios científicos, é capaz de determinar...
- Um leitor de cabeças? - Mollie olhou para o Dr. Fry com novos olhos, fascinada com esta oportunidade de ver, em carne e osso, uma criatura tão fantástica.
- Isso mesmo, é famoso pela sua proficiência. Devido a sua extraordinária capacidade preceptiva da relação entre personalidade e destino, o Dr. Fry pode prestar conselhos valiosos em matérias como saúde, carreira, investimentos, viagens... olha, até sobre casamentos e amor.
- Não estou acreditando!
- Não deves duvidar dele, Mollie. O Dr. Fry é um cientista, tal e qual como eu. Vem cá, inclina a cabeça.
- Como?
- Inclina a cabeça, Mollie. Deixa o Dr. Fry fazer-te um exame rápido.
- Aqui, nos degraus do alpendre?
- Temos de nos ir embora, Mollie. É agora ou nunca. Mollie segurou a pequena embalagem na mão.
- Tá bem, pode se - disse, inclinando a cabeça. O Dr. Terry pegou nas mãos do Dr. Fry e guiou-as até à cabeça de Mollie.
O sotaque do Dr. Fry era ainda mais estranho do que o sotaque ianque do Dr. Terry.
- O cabelo da rapariga é razoavelmente curto, mas bastante grosso. Naturalmente que, em condições ideais, a cabeça do paciente frenológico deve ser completamente rapada antes de se dar início ao exame, por forma a obter-se uma leitura clara. - Mollie ficou rígida. O Dr. Fry soltou uma pequena gargalhada. - É claro que a preparação prévia ideal é, quase invariavelmente, muito pouco prática, pelo que um frenólogo experiente como eu aprende a compensar o melhor que lhe é possível.
Os dedos compridos e ossudos do homem moviam-se sobre a cabeça dela com uma força surpreendente. Lentamente, mas com movimentos seguros, o Dr. Fry pressionou as pontas dos dedos contra a carne frágil do couro cabeludo de Mollie, fez deslizar os polegares sobre a testa dela, explorou todas as cavidades do crânio e avaliou todas as áreas planas e as protuberâncias existentes. Trauteava sabedoramente, marcando as notas
83escala acima e escala abaixo e, de vez em quando, soltava um pequeno grunhido de surpresa.
- O que foi? - disse Mollie. - Tá sentindo o quê?
- Sssh - disse o Dr. Terry com brandura. - Deixa-o trabalhar.
O Dr. Fry concluiu o exame fazendo escorregar as pontas dos dedos da parte de trás das orelhas de Mollie até a base do pescoço dela, mesmo acima da coluna. O toque fez com que Mollie ficasse com pele-de-galinha. Posto isto, o Dr. Fry ergueu as mãos e recuou um passo.
Mollie levantou a cabeça, ficando imediatamente ofuscada pelo reflexo da luz do sol de Inverno nos óculos azuis do homem.
- Pois bem, rapariga - disse o Dr. Fry -, não me espanta que tenhas essas dores de cabeça excruciantes. Está tudo escrito no teu crânio.
- Tá mesmo, sinhô?
- Lamento dizer-te que nasceste com uma predisposição congénita para enxaquecas. Qualquer frenólogo com pouca experiência poderia chegar a esta conclusão a partir das protuberâncias ossudas que tens atrás das orelhas.
Mollie apalpou a cabeça com as mãos.
- Diz-me, pequena, és casada?
Ela hesitou.
- Não sou bem, não. Não é como casamento pela igreja.
- Ah, mas estás a viver com um homem?
Mollie anuiu com um movimento de cabeça.
- Fala, rapariga. Se te limitas a acenar ou abanar a cabeça, eu não posso ver.
Mollie pigarreou.
- Walter, o meu homem, Walter mais eu tamos vivendo num quartinho lá atrás, logo depois da cozinha.
- Estou a ver. E estás satisfeita com a tua situação, com as coisas tal e qual como estão agora?
- Acho que sim. O Walter não é nada de especial, mas trabalha direitinho e faz sempre o que eu digo para ele fazê. - Mollie deixou escapar uma risadinha amargurada. - Nada do jeito do meu último homem, aquele doido do Lem!
- Ah, tens um certo mau génio, não tens Mollie? - O Dr. Fry apontou-lhe um dedo longo e ossudo, embora tivesse falhado a posição dela por alguns graus. - Bem me quis parecer, pela crista subtil ao longo da
84linha da raiz do cabelo. E o mau génio anda de mão dada com as enxaquecas.
- É? Bem, sinhô, é verdade que às vezes eu fervo em pouca agua. Especialmente quando um homem me faz chegá a mostarda ao nariz. Volta e meia me vejo metida em encrenca.
- Acredito que sim. Não tens nenhuma arma em casa, tens?
- Eu, sinhô? Nem Pensá!
- Muito bem. Seria muito insensato, talvez até mesmo fatal, ter uma arma à mão quando se tem uma crista como a tua ao longo da linha da raiz do cabelo.
- Não tinha ideia, não!
O Dr. Fry abanou a cabeça.
- Poucas pessoas o sabem. Estamos imersos em ignorância, mergulhados nela até às orelhas! O auto-conhecimento é a porta; a frenologia é a chave. As minhas competências mais não são do que um instrumento, capaz de revelar a verdadeira natureza de um indivíduo e, com base nesse conhecimento e sendo essa a vontade de Deus, toda a sorte, dores de cabeça e de tragédias podem ser evitadas.
Tal como acontecera quando o homem lhe tocara, a maneira como ele falava, com aquele estranho sotaque estrangeiro, deixava Mollie com pele-de-galinha. Mollie arrepiou-se e apertou o xaile com força.
O Dr. Terry olhou para o seu relógio de pulso e soltou uma exclamação.
- As horas, Dr. Fry, as horas! Temos de nos ir embora imediatamente. Tens o pó que eu te dei, rapariga? Não te esqueças: toma-o antes de te deitares, dissolvido num copo cheio de água.
Posto isto, os dois homens puseram-se em marcha: o Dr. Terry atravessava o pavimento cinzento com passadas energéticas e o Dr. Fry seguia-o, ouvindo-se o tap-tap da comprida bengala a bater no chão. Eram, sem margem para dúvida, os dois homens mais extraordinários que Mollie tinha conhecido até então. Voltou rapidamente à cozinha para acabar de lavar a louça do almoço.
Um pouco mais tarde, o Sr. Hall e o Sr. Tom tiveram uma discussão na sala de estar. Falavam tão alto que Mollie, na cozinha e de porta fechada, conseguia ouvir perfeitamente tudo o que eles diziam.
- Outro maldito charlatão! - dizia o Sr. Hall. - E um charlatão dos caros!
85- Mas vale a pena tentar - replicava o Sr. Tom. - Esperemos mais algum tempo. Pode ser que o tónico ainda venha a fazer-lhe bem.
- Tenho meio cérebro a dizer-me para despejar aquela porcaria na primeira sarjeta que encontrar.
- Tens meio cérebro, lá isso é bem verdade - observou o Sr. Tom. Mollie reprimiu a custo uma gargalhada. Quando a ocasião o pedia, o jovem Sr. Tom sabia ser mordaz, uma característica que Mollie apreciava. De resto, Mollie preferia-o, de longe, ao Sr. Hall, que tinha sempre um ar sorumbático e pomposo e que normalmente olhava através de Mollie como se ela não existisse. O Sr. Tom, pelo contrário, lançava de vez em quando uns olhares aprovadores a sua figura, desviando o olhar quando ela o surpreendia.
Mollie tinha orgulho no seu corpo. A maioria dos homens, e não apenas rapazinhos de dezassete anos como o Sr. Tom, dava a entender que o apreciava. Os homens gostavam de Mollie. E Mollie gostava de homens, embora pudessem dar mais trabalho do que valiam. Walter, o seu companheiro actual, tinha-se revelado uma pérola. Não era um charmoso de falinhas mansas como o careca do Lem Brooks. Tinha passado bons momentos com o Lem, é certo, mas Mollie precisava de um homem que fosse mais moldável e chegara a conclusão de que o Walter era exactamente o que ela pretendia: suficientemente forte e saudável para manter um emprego fixo, mas de índole naturalmente submissa. Bastava a Mollie levantar a voz para ele se encolher como um ratinho. Uns meses antes, o Sr. Hall tinha autorizado o Walter a ir viver para o quarto de Mollie e, até à data, não tinha havido nenhum problema.
Para o jantar, Mollie aqueceu parte do pernil de porco que tinha sobrado da ceia de Natal e preparou batatas-doces, biscoitos e uma tarte de pêssegos de conserva. O Sr. Hall e o Sr. Tom mal dirigiram palavra um ao outro durante todo o jantar. Mollie andava para trás e para diante entre a cozinha, onde Walter e Nancy comiam, e a sala de jantar. A dor de cabeça aumentava de intensidade, pesando-lhe entre os olhos. Pensou em tomar o pó, mas o Dr. Terry tinha-lhe dito que esperasse até à hora de se deitar.
Quando o jantar terminou, Mollie disse a Walter que se sentia muito mal disposta e que ele teria que a ajudar a lavar a louça. Ele ainda se queixou, dizendo que tinha tido um dia muito cansativo, a trabalhar para um dos vizinhos, mas fez o que Mollie lhe mandou. Era totalmente diferente de Lem, que preferia morrer a levantar um dedo que fosse na
86cozinha, sobretudo com uma mulher a mandar nele. Lem, que passava o dia inteiro a lavar copos de uísque atrás de um balcão, achava que lavar um prato ou um talher era uma tarefa exclusivamente feminina. Podia-se lá compreender isto.
Depois de a louça estar despachada, Mollie despejou o pó que o médico lhe tinha dado num copo com água, bebeu-o e saiu da cozinha em direcção ao seu quartinho das traseiras. Originalmente, antes de terem sido levantadas paredes para se fazer aqui um quarto, o espaço tinha sido um alpendre. Uma das portas dava para a cozinha e uma segunda porta, bem como a janela, davam para o pátio das traseiras. Dentro do quarto, havia uma cadeira, uma cama e uma cómoda a que faltavam duas gavetas. Em cima da cómoda, apoiado contra a parede nua de madeira, havia um espelho velho e oxidado.
Walter seguiu-a até à cama e tentou trepar para cima dela. Quando ela se furtou, ele fez beicinho e disse que estava à espera de um pouquinho de melaço antes de cair no sono, à laia de recompensa por ter sido tão prestável na cozinha, mas a dor de cabeça de Mollie era demasiadamente insuportável. Sempre que Lem a assediava daquela maneira, Mollie rosnava e debatia-se; com Walter, porém, não havia necessidade de o fazer. Em vez de lutar, Mollie fazia de coitadinha, enrugando a testa e miando como um gatinho. Lem detestava que ela se comportasse daquela maneira, mas Walter era o género de homem a quem a mãe de Mollie chamava um tipo sensível - fazia um ar consternado e compadecia-se dela. Walter pegou-lhe na mão, alcançou um trapo molhado para lhe colocar sobre a testa e parou de falar assim que Mollie se queixou de que a voz dele estava a fazer com que a dor de cabeça piorasse.
Walter era mesmo uma jóia. Mollie pensou se não seria boa ideia casarem-se a sério, em vez de viverem como marido e mulher em união de facto. Depois, apoderou-se dela uma sensação morna e agradável e Mollie deu por si demasiadamente sonolenta para pensar no assunto.
- Apaga a luz, Walter, e vai deitando sossegado - murmurou.
Walter estendeu-se quieto ao lado dela, exausto do dia de trabalho, desapontado, mas pronto para adormecer. A nortada guinava com força, fazendo vibrar as janelas. Vindo da sala de estar, situada na parte da frente da casa, passando através da porta da cozinha e da porta da sala de jantar, o som vago do batente do relógio de parede assinalou a hora; Walter contou dez badaladas e surpreendeu-se com o facto de já lá ir mais um dia.
87À noite, os últimos quarteirões da Avenida do Congresso, que iam dar à portagem da ponte que se estendia sobre o rio Colorado, ofereciam uma paisagem desoladora. Os edifícios eram mais baixos e mais espaçados entre si do que na zona comercial, mais a norte. Por entre as fachadas escuras das lojas e os terrenos baldios, vislumbrava-se uma única luz, a lamparina que ardia na janela dianteira de uma casa situada no lado leste da rua. Dave avançou na direcção dessa luz.
A casa da viúva May Tobin era uma das poucas moradias residenciais que restavam na Avenida do Congresso. Como vizinhos, a viúva tinha, a sul e mesmo à beira-rio, uma serração, e na diagonal, do outro lado da Avenida, a fábrica de gelo Zimpelman & Sons. Durante o dia, enquanto os vagões de madeira e as carroças de gelo passavam para trás e para diante defronte da casa dela, juntamente com o tráfego intenso que se encaminhava na direcção da ponte para atravessar o rio, as persianas da casa de May mantinham-se cerradas e não se via vivalma no pequeno alpendre da frente. Era perfeitamente possível passar por lá todos os dias e mal ter dado pela existência da casa.
À noite, depois de a fábrica de gelo e a serração fecharem, e de toda aquela zona ficar em sossego, as persianas mantinham-se corridas, com excepção das da janela que dava para o alpendre dianteiro, onde o brilho de uma lamparina cintilava através de cortinas de renda desde o crepúsculo até à alvorada. A lamparina era uma luz de sinalização. Não havia motivo que justificasse a ida de um homem até àquele quarteirão solitário durante a noite, a não ser que estivesse especificamente à procura da casa de May Tobin.
A casa tinha uma fachada despretensiosa de paredes apaineladas, ornamentada com arrebiques simples pintados de branco. Vista da rua, parecia mais pequena do que na verdade era, porque tinha sido acrescentada uma série de quartos na parte de trás da casa, bem resguardados da rua.
88Uma passagem estreita que acompanhava um dos lados da casa dava acesso a um pequeno pátio nas traseiras, onde os veículos e os cavalos podiam aguardar sem serem vistos. A residência era do tamanho de uma pequena casa de hóspedes, embora só lá morassem May Tobin e alguns criados. Os quartos extra da casa de May estavam muitas vezes ocupados, sobretudo depois do anoitecer, mas ninguém lá vivia de facto.
May Tobin não se considerava uma patroa e a verdade é que, em sentido estrito, não o era; não tinha prostitutas a viver em sua casa, embora algumas lá conduzissem as suas actividades. May geria uma casa de encontros. Disponibilizava os quartos de sua casa a homens e mulheres que precisavam de um local onde pudessem encontrar-se em privado. O que acontecia entre eles a porta fechada, e se havia dinheiro a passar de umas mãos para outras, não era assunto que dissesse respeito a May, conquanto alguém pagasse o aluguer do quarto.
Alguns dos seus visitantes eram amantes que não tinham outro sítio onde se encontrar; nestes casos, o mais frequente era ser o homem a pagar o quarto, embora nem sempre assim fosse. Algumas das mulheres que procuravam amiúde a casa de May e que se faziam acompanhar por homens diferentes eram, obviamente, prostitutas. Nesses casos, eram habitualmente as mulheres que pagavam o quarto embora, uma vez mais, nem sempre assim fosse. May era flexível no que dizia respeito a este tipo de pormenores e não tirava daí quaisquer conclusões; chamar amante a uma mulher e prostituta a outra podia ser uma forma elegante de estabelecer categorias, mas May tinha para si que a vida não era assim tão preto no branco. Havia níveis de prostituição, como havia níveis de amor e um espaço mais que suficiente entre ambos para que as coisas se mesclassem e sobrepusessem. O facto de May Tobin não emitir juízos era uma das coisas que lhe garantia a fidelidade dos seus clientes.
No seu pequeno círculo, a casa de May tinha adquirido uma reputação de civilidade e de delicada sofisticação. De tempos a tempos, a própria May facilitava uma apresentação. Se um homem que frequentava a sua casa com regularidade se cansasse da sua parceira habitual, e se May conhecesse outra mulher que estivesse disponível e lhe parecesse adequada, podia combinar um encontro entre ambos. May dispunha de uma bonita sala de estar forrada a papel de parede, com um piano alto e um lustre de cristal, que propiciava a atmosfera ideal para tais encontros. Se as duas partes não descobrissem nenhuma afinidade comum, nada se perdia; se, pelo contrário, os dois se entendessem, podiam, se o desejassem,
89passar a um compartimento mais privado. May via-se a si mesma como alguém que juntava pessoas afins, e qualquer gratificação que recebesse de uma ou outra das partes envolvidas nada tinha de distinto dos honorários recebidos por um qualquer casamenteiro.
Muitos dos homens que frequentavam a casa de May eram o que ela designava por homens de posses. Pelo modo como se vestiam, falavam e se movimentavam, May percebia que pertenciam a uma classe superior à das gentes comuns. Alguns trabalhavam para o Estado, eram funcionários administrativos ou engenheiros. Alguns eram mesmo funcionários eleitos, contando-se entre estes vários deputados e pelo menos um director de um departamento governamental. Outros eram professores universitários. May nunca lhes perguntava mais do que o primeiro nome mas, numa cidade tão pequena como Austin, alguns dos seus clientes eram demasiadamente conhecidos para lhes ser possível ocultar a sua identidade, caso o tivessem pretendido.
May tinha constatado que era comum homens de posses como estes procurarem numa parceira mais do que beleza, disponibilidade e juventude. Estas características eram tomadas como certas e podiam ser compradas noutro sítio qualquer. Os homens de posses procuravam qualidade: apreciavam os atributos de uma mulher cultivada - uma certa noção de estilo, um espírito instruído, uma aura de elegância ou de mistério. Tais mulheres eram raras em toda a parte e mais raras ainda as que, correspondendo a este perfil, se encontravam disponíveis no mercado, por assim dizer. Mas, se se encontrassem mulheres assim no Texas, o mais provável era encontrá-las em Austin e, em Austin, o mais provável era encontrá-las em casa de May Tobin.
Dave subiu para o alpendre, tropeçando no degrau cimeiro. Assim que deixou de estar ao alcance do vento, ouviu o som de música suave proveniente do interior da casa. Alguém tocava piano - não se tratava de uma melodia de amor sentimental, nem de música de dança, mas da Sonata ao Luar, de Beethoven. Ora aí estava uma escolha adequada, pensou Dave, uma vez que a noite era de lua cheia. Começou a trautear, acompanhando o piano de maneira penosamente desafinada.
Um batente de metal pregado à porta branca reflectia o brilho azul do luar. O batente era um objecto tão delicado, que Dave sorriu: tratava-se de uma mãozinha do tamanho de uma mão de boneca, envolta em várias camadas de renda. Dave levantou o batente e deixou-o cair por
90três vezes. Teve a sensação de que estava a cumprimentar uma boneca e riu-se.
A música parou abruptamente. Dave conseguiu distinguir o ruído abafado de um banco de piano a ser arrastado sobre um chão de madeira. Momentos depois, a porta entreabriu-se uns escassos centímetros. Dave reparou que estava aferrolhada por uma corrente do lado de dentro, o que era um hábito invulgar numa cidade em que muitas pessoas iam para a cama sem sequer trancar a porta.
Uma mulher espreitou pela fresta, ficando com o rosto iluminado Pela lamparina da janela. Pelo pouco que se conseguia distinguir - umas madeixas de cabelo acobreadas e outras grisalhas, presas ao alto por ganchos de tartaruga, um rosto com algumas rugas, apesar da rotundez, uma palidez de papel nos quatro dedos que se dobravam sobre o vértice da porta -, a mulher devia andar perto da meia-idade. Também usava óculos mas, como as pequenas lentes ovais não estavam circunscritas por nenhum aro, foi preciso que a luz se reflectisse nelas para que Dave se apercebesse do facto.
- Eu conheço-o? - perguntou a mulher.
- Não creio que tenhamos tido o prazer - respondeu Dave. A mulher examinou-o por momentos.
- Creio que o senhor esta embriagado.
- Estou em crer que tem razão.
- Talvez seja preferível voltar numa outra altura.
- Mas já cá estou.
- Pois está.
- Posso ao menos entrar? É a casa de May Tobin, não é?
- É.
- E a senhora e May Tobin?
- Sou.
- Bem... dá-me licença que entre, Sra. Tobin? - Dave fez menção de a cumprimentar com uma vénia profunda e elegante, mas acabou por estender demasiadamente os braços e perder o equilíbrio, batendo com o ombro no pilar do alpendre. - Au! Isto magoa.
May Tobin ergueu uma sobrancelha. Os homens mais não eram que uns rapazitos pequenos. E este era, de momento, ainda mais miúdo do que a maioria. Não era bom princípio encorajar prontamente este tipo de comportamento juvenil mas, contra a sua vontade, May não conseguiu
91deixar de esboçar um sorriso. Abanou a cabeça e levantou a corrente que trancava a porta.
- Entre. Posso, pelo menos, dispensar-lhe um café.
- Um ”café?” - Dave entrou. Inclinou a cabeça pensativamente, avaliando a hipótese de ”café” ser um termo de Jargão para designar uma prostituta de cor. Com esta possibilidade em mente, seguiu a mulher por um corredor fracamente iluminado até uma divisão onde, mal entrou, tropeçou num coxim almofadado, aterrando num espesso tapete de lã, no meio de uma sala de estar agradavelmente decorada. Acima da sua cabeça, um lustre com globos de cristal difundia uma luminosidade suave. A lareira estava acesa. Por cima da cornija, estava pendurada uma tela de grandes dimensões, emoldurada por um friso ornamentado. Encostado a uma das paredes, via-se um piano. Noutra, havia um relógio de parede e, ao seguir com o olhar o movimento do pêndulo, Dave sentiu-se subitamente enjoado. Dispostos pela sala, viam-se vários sofás excessivamente acolchoados sobre os quais tinham sido dispostas mantas drapejadas, bem como mesinhas de apoio com naperons e cinzeiros. Perigosa-mente empilhados em cima de uma destas mesinhas, encontravam-se alguns livros de páginas debruadas a ouro. Por força do hábito da sua profissão de jornalista, Dave fez um esforço para ler os títulos, semicerrando os olhos e inclinando a cabeça para um lado e para outro. Um dos livros intitulava-se O quepode uma mulher fazer título que, tendo em conta a natureza do estabelecimento em que se achava, o fez soltar uma gargalhada.
Em cima de um carrinho de servir de metal que estava ao seu alcance, Dave reparou num objecto que tinha todo o aspecto de ser uma caixa humidificadora e perguntou-se, distraidamente, que tipo de charutos haveria lá dentro. após duas tentativas vãs para se levantar, concluiu que, bem vistas as coisas, estava muito bem instalado naquela posição e deixou-se ficar sentado no tapete.
May Tobin dava mostras de ter desaparecido. Dave percorreu a sala com o olhar e deu por si fixando o quadro pendurado acima da lareira. Não deixava de ser uma escolha inusitada para um bordel, pensou ele. Um nu europeu reclinado seria o motivo típico... académico, mas sexualmente sugestivo. O quadro que se via por cima da cornija de May Tobin era um exemplar perfeito de arte nativa, em que se via um bando de índios comanches a atacar uma família de colonos texanos. Os pormenores da representação, em traços bem marcados, eram claramente perceptíveis mesmo do chão, onde Dave estava sentado. Uma pequena casa de quinta
92
ardia, envolta em chamas. O marido, sangrando de várias feridas, estava prestes a ser escalpelizado vivo por três índios de facas em riste - percebia-se que o pobre homem ainda estava vivo pela expressão de terror que se lhe via no rosto. À jovem esposa, tinham-lhe arrancado o vestido de chita, que jazia no chão em farrapos. Em roupa interior, ela tentava fugir; tinha os seios volumosos conspicuamente tapados, mas quando Dave semicerrou os olhos pareceu-lhe discernir os mamilos por baixo da fina camada de tinta branca que passava por ser a camisa interior. A cara dela, onde se lia uma expressão de terror abjecto, estava voltada na direcção dos dois índios que a perseguiam, mas os seus longos braços nus, brancos como porcelana, estavam esticados para a frente, como que rogando aos céus, que se escondiam por trás de um manto de negras nuvens carregadas. Noutra área do quadro, duas crianças louras de sexo indeterminado tinham sido atiradas de barriga para baixo, como alforges, para cima da garupa de um dos cavalos dos índios; era óbvio que os comanches pretendiam raptá-las - um procedimento pelo qual haviam ficado célebres na altura em que o Texas era uma fronteira selvagem. À excepção de uns pequenos pedaços de tecido que lhes cobriam os órgãos genitais, mas não as nádegas, os comanches estavam nus. Os seus membros e flancos lustrosos e musculados eram da cor de peles curtidas. Tinham traços amarelos pintados na cara e os olhos vermelhos esbugalhados e as bocas escancaradas faziam com que parecessem demónios directamente saídos de um pesadelo.
Que quadro horrível, pensou Dave; horrível no sentido mais literal da palavra, profunda e ao mesmo tempo grotescamente horrível. até um indivíduo nado e criado em Hempstead, no Texas, percebia que esta cena era de muito mau gosto. Ainda assim, não havia dúvida de que era susceptível de inspirar terror e piedade a qualquer pessoa que o contemplasse, sobretudo se já tivesse bebido uns valentes copos. Quanto mais Dave o observava, mais horrível e fascinante o quadro se tornava.
Nisto, houve um movimento junto de uma das portas de acesso a sala - Dave tinha quase a certeza de que não era a mesma por onde ele tinha entrado - e a sua anfitriã entrou na divisão. Trazia uma chávena fumegante sobre um pires.
May Tobin não pareceu surpreendida por encontrar Dave ainda sentado no meio do chão. Avançou até ao carrinho de servir onde, para além do humidificador, se via um serviço de chá que incluía um jarro para natas e uma pequena urna de prata com cubos de açúcar.
93- Prefere preto?
- O que é isso? - perguntou Dave, olhando de revés para a chávena.
- O seu café.
- Mas eu não quero café; não vim cá tomar café!
- Nesse caso, o que veio cá fazer?
Dave encolheu os ombros.
- Para que é que uma pessoa vem a casa de May Tobin?
- Combinou algum encontro? Eu não estava à sua espera.
- Vim à procura de uma mulher.
- De alguma mulher em particular?
- Não sou esquisito. Ouça, eu tenho dinheiro. Muito. E vim até cá gastá-lo.
Ela dirigiu-lhe um olhar imperturbável.
- Não chegou a dizer se preferia preto.
- Com certeza, pode ser preta como carvão, se e isso que tem! May estendeu-lhe o pires e a chávena. Dave ficou parado a olhar para chávena e, passado um momento, acabou por lhe pegar. O aroma da infusão tornara-se subitamente irresistível.
Da perspectiva que Dave tinha, assim sentado no chão, May Tobin parecia assaz intimidante, observando-o de cima como uma professora severa. Só faltava puxar de uma régua de madeira e bater-lhe nos nós dos dedos. Dave achou a ideia curiosamente intrigante. Não era exactamente o tipo de coisa a que ele tinha vindo, mas já estava por quase tudo.
- Ouça, Sra. Tobin. Dizem que a senhora tem as melhores raparigas da cidade...
- ”Dizem”? Quem? O que quer dizer com isso?
- Então, deixe-se de coisas, arranja-me ou não uma rapariga?
- Você usa uma linguagem deveras ordinária, jovem. Não, não lhe ”arranjo” ninguém. E lamento mas, esta noite, não tenho nenhum quarto disponível para um cavalheiro solteiro.
Dave fez um sorriso complacente.
- Sinto-me perfeitamente confortável onde estou. Se as raparigas estão todas ocupadas, ficarei aqui à espera até que uma delas esteja disponível.
- Tenho a impressão de que o senhor não compreende como é que este estabelecimento funciona. Quem é que o enviou cá?
- Enviar-me? - Dave fez um esgar trocista. - A minha mamã mandou-me à loja comprar ovos mas, em vez disso... eu vim até cá. Sou um rapazinho muito indecente, Sra.
94- É, sem dúvida alguma, bastante impertinente. Mas volto a perguntar-lhe: quem lhe recomendou a minha casa?
- Ninguém. Dá-se apenas o caso de eu saber da existência dela. Eu sei coisas. Muitas coisas. É essa a minha profissão.
Ela dirigiu-lhe um olhar interrogador.
- Vai dizer-me que trabalha para o comissário? Pensava que já conhecia todos os rapazes que trabalham na Polícia.
- Para o comissário?! Deus me livre! Não, trabalho para William Pendle... William. Pendle... - Dave pigarreou. -Trabalho para William, Pendle... - Por qualquer razão inexplicável, não estava a ser capaz de completar o nome, nem sequer recomeçando a frase.
- William Pendleton Gaines?
- Esse mesmo! Também o conhece, há? Pois claro que conhece. Aposto que o próprio Gaines costuma parar aqui. Ou costumava. Agora é um homem casado, decentemente instalado. Ele e a suserana Augusta vivem num castelo chamado Bellevue.
- Depreendo, pelas suas palavras, que trabalha para o Statesman?
- Acertou em cheio! Sou o repórter criminal, nem mais!
De um corredor oculto por uma cortina, chegou o som de uma porta a abrir-se, a que se seguiu o som de duas vozes, uma masculina e outra feminina,
May Tobin ergueu uma sobrancelha e dirigiu-se as cortinas, afastando-as um centímetro para poder falar com quem se encontrava do outro lado.
- Delia, não tragas já o teu convidado para a salínha. Estou a acompanhar uma pessoa à porta.
Dave sorriu.
- Delia... Gosto do som do nome. Faz lembrar Delilah. Bem, se a Delia já despachou o último que tinha, vamos lá então dar uma vista de olhos.
May deu uns passos na direcção de uma corda de veludo amarelo que estava pendurada ao lado do piano e deu-lhe um puxão forte, posto o que se aproximou de Dave com um sorriso nos lábios, tirando-lhe a chávena e o pires das mãos.
Instantes depois, Dave sentiu que os braços se lhe imobilizavam contra o tronco e que era erguido do chão num só movimento. Não conseguiu ver como nem por quem; a única coisa que conseguiu ver foram duas enormes mãos negras a agarrar-lhe a lapela do casaco. De um momento
95para o outro, tudo o que o rodeava - a sala de estar, o corredor mal iluminado, a porta da rua - começou a andar à roda. Nisto, o alpendre da frente empinou-se violentamente, como um barco a capotar. Dave aterrou de costas no chão duro com um baque ruidoso.
Estava sentado no chão, aturdido e desorientado, e, se o vento não estivesse tão frio, ali teria ficado indefinidamente. Ao fim de algum tempo, pôs-se de pé, ainda a tremer um bocado, e voltou-se, olhando novamente para a casinha inconspícua com a lamparina na janela.
- Com que então, não estou à altura da May Tobin! - disse para consigo em voz baixa e, apercebendo-se do absurdo de tudo aquilo, desatou a rir. - Despachado com um Pontapé no rabo! Ainda para mais durante a quadra natalícia! Que é feito da caridade cristã dela, pergunto eu? Expulso da casa de May Tobin a pontapé e sem que uma das pombinhas impuras me tivesse recitado Shakespeare. Se isto não é o cúmulo!
Arrastou-se pela Avenida do Congresso acima, coxeando um pouco e começando a sentir-se ligeiramente nauseado. Passado um bocado, ouviu o matraquear de cascos atrás de si e, voltando-se, viu entrar na avenida uma carruagem proveniente do pátio de May Tobin. Se o cliente de Delia estava a sair, por que o tinham mandado a ele, Dave, embora? Ao afastar-se para deixar passar a carruagem, Dave fez tenções de espreitar para ver se reconhecia o homem, mas um súbito ataque de náusea empurrou-o aos tropeções para a sarjeta.
Quando voltou a ter controlo sobre si mesmo, a carruagem já estava fora do seu alcance. Dave ficou ali especado, limpando a boca a manga do casaco. Sentia-se bastante mais sóbrio, e também bastante mais moído da queda no chão duro. Ficou a ver a carruagem afastar-se em passo lento mas regular, contra o vento norte, até ao fim da Avenida do Congresso. Quando ia a chegar aos terrenos do Capitólio, virou à esquerda e parou defronte do grande edifício que albergava temporariamente os escritórios dos representantes do governo estadual. A nortada tinha deixado o ar completamente transparente e, ao brilho do luar, mesmo à distância de quase doze quarteirões, Dave conseguiu distinguir a silhueta do homem que saiu da carruagem, parou por momentos - certamente para atrelar os cavalos -, desaparecendo em seguida no interior do edifício estadual. Havia duas coisas das quais os políticos nunca se fartavam, pensou Dave: mulheres e trabalho. Imagine-se um indivíduo a passar pelo escritório a uma hora destas, depois de ter saído de um bordel e antes de se dirigir a casa, ao encontro da mulher!
96Dave subiu a avenida deserta dobrado contra o vento. Continuava a olhar para a carruagem que se encontrava ao longe. Quando estava a chegar à Rua Pecan, que cortava a Avenida sensivelmente a metade, o homem emergiu do edifício estadual, parou para desatrelar os cavalos e voltou a subir para a carruagem. O vento levou até Dave o som dos cascos dos cavalos, enquanto a carruagem prosseguia até ao fim da Avenida, virando para oeste e desaparecendo de vista.
Na casa situada no extremo oposto da Avenida, May Tobin tinha retomado a Sonata ao Luar interrompida algum tempo antes. Quando chegou ao fim da peça, carregou no pedal, fazendo com que a última nota reverberasse pela sala. O som foi gradualmente diminuindo, até se ouvirem apenas o suave crepitar proveniente da lareira e o tiquetaque do relógio de parede. May permaneceu sentada no banco do piano durante um bocado; depois, pôs a pauta de lado e levantou-se.
Ao atravessar a sala, reparou que havia qualquer coisa sobre o tapete e inclinou-se para a apanhar. Devia ter caído do bolso do casaco do visitante inoportuno quando estava a ser levado para a rua. May levou-o ao nariz, inalou o aroma e observou-lhe o rótulo. Era, efectivamente, um havano. May Tobin tinha um excelente faro para a qualidade - do tabaco e de outras coisas.
Abriu a tampa do humidificador com a intenção de acrescentar este charuto à sua reserva, mas reconsiderou. Tirou uma tesourinha de uma pequena gaveta do humidificador e cortou uma das pontas do charuto. Estendeu um galho de carqueja para a lareira para que pegasse fogo e encostou a labareda à outra ponta do charuto. Puxou até o charuto pegar, atirou o galho para a lareira e reclinou-se nos fofos almofadões do sofá, ficando com a cabeça envolta numa espiral de fumo.
Chegou-lhe aos ouvidos um riso abafado, vindo de uma cadeira exageradamente estofada, ao pé da lareira. May deu uma pancadinha suave com o charuto na borda de um cinzeiro de cristal.
- De que te ris, Delia?
Uma mulher jovem voltou-se e olhou para May por cima do espaldar da cadeira, revelando dois olhos verdes encimados por uma massa de cabelo preto-azeviche.
- Como consegue fumar essas coisas?
- Não prives os mais velhos dos seus prazeres, jovem. Tu és nova e ainda não esgotaste todos os vícios possíveis; no meu caso, este é praticamente
97o único que me resta. Além disso, um charuto é bastante mais fidedigno do que um homem. Pode ser que te sintas tentada a experimentar um dia.
Delia riu-se.
- May Tobin, May Tobin, que influência tão perniciosa me saiu!
- Voltando-se novamente para a lareira, perguntou: - Que mal tinha aquele sujeito, que a fez pô-lo na rua? Não me diga que conheceu finalmente um homem feio de mais para frequentar a sua sala de estar.
- Oh, não. Lá bem-parecido era ele. Bastante bonito até, por sinal.
- Bêbedo?
- Sim, mas não do tipo desordeiro; o problema não era esse. O indivíduo é jornalista do Statesman.
-Ah. E acha que queria causar problemas?
- Não, creio que veio apenas para se divertir um bocado. Mas tenho a impressão de que alguns dos meus convidados - entre eles, o teu novo amigo - preferem não dar de caras com um jornalista quando vêm a minha casa.
Delia ríu-se baixinho e concentrou o olhar sobre as chamas. Um dos toros rachou-se com um estalido, provocando uma pequena explosão de faúlhas.
May pousou o charuto Por momentos para desatar os sapatos de salto.
- Como correram as coisas com o teu novo amigo? Delia encolheu os ombros.
- Razoavelmente. Encontrar-me-ei com ele outra vez, se ele quiser.
- Oh, estou certa de que quererá encontrar-se de novo contigo, Delia. Percebi isso pela cara com que saiu daqui. Devias interessar-te pelo jovem Sr. Shelley. Não sei se sabes, mas ele é uma estrela em ascensão.
- Oh, tenho a certeza de que sim. Mas, ao fim e ao cabo, são apenas homens, todos eles, não é verdade? Quero dizer, quando os vemos nus... May soltou um suspiro.
- Sim, Delia. No fundo, no fundo, um homem não passa de um homem. May colocou os pés sobre o sofá e puxou uma fumaça do seu charuto, deixando-se envolver por nuvens de um fumo espesso e aromático.
98Na noite em que Mollie Smith se deitou com uma terrível enxaqueca e em que Dave Schoemaker fez uma visita a May Tobin, Lem Brooks foi a um baile no lado oposto da cidade.
Habitualmente, numa terça-feira a noite como aquela, Lem estaria ao balcão do Black Elephant. Contudo, o Sr. Hancock devia-lhe uma noite de folga e Lem, que era tido pela comunidade negra de Austin como o melhor mestre-sala da cidade, tinha sido convidado para dirigir um baile.
Tratava-se de um dos eventos mais importantes do ano para os jovens negros de Austin. Muitos deles trabalhavam na noite de fim de ano, servindo nas festas dos brancos, pelo que organizavam a sua própria celebração de Ano Novo um dia mais cedo. A festa tinha lugar na zona oriental da cidade, na sala de recepções de uma enorme casa de hóspedes de Sand HilI, perto da Escola Normal e Colegiata de Tillotson, uma escola para estudantes negros. Na sua maioria, os residentes, convidados e membros da banda eram estudantes de Tillotson. A banda era formada por um pianista, um trompetista, um baterista e dois instrumentistas de cordas, que tocavam alternadamente rabeca e banjo. Entre a multidão que se tinha juntado no baile encontravam-se muitas raparigas bonitas e rapazes bem-parecidos, todos eles envergando as suas melhores roupas domingueiras.
Nessa noite, Lem bebeu umas quantas cervejas, embora não demasiadas, uma vez que tinha de estar em condições de dar as deixas. De pé, num dos cantos do palco onde a banda tocava, Lem anunciava as alterações de movimento nas várias danças com palmas e batendo com o pé no chão, dirigindo os homens e as mulheres através das vénias e dos balancés, dispondo-os em quadrados e círculos e filas, dizendo-lhes quando deviam aproximar-se e como deviam tocar uns nos outros: ”Rodá a menina sem timidez,
Olhá a dama bem nos olhos! Colocá os braços na cintura dela,
Com toda a calma - não há que tê pressa!”
99Lem deu por si a pensar que dar as deixas numa quadrilha era assim a modos como que dizer as pessoas como fazer amor, marcando-lhes o ritmo para o fazerem.
Lem fez olhinhos a várias das raparigas que passaram por ele, mas todas elas pareciam satisfeitas com os respectivos parceiros e não lhe retribuíram o olhar, chegando a desviar os olhos timidamente quando ele as presenteava com o seu grandioso sorriso de piano. As raparigas de Tillotson eram botõezinhos de flor mais tenros do que as damas desabrochadas a que ele estava habituado. Talvez fosse melhor assim; afinal, Lem tinha jurado manter-se longe das mulheres.
O baile durou até depois da meia-noite. Lem não parou de beber cerveja e de dar as deixas e a noite acabou por se transformar num imenso rodopiar de caras sorridentes e corpos volteantes.
Finalmente, a dona da casa de hóspedes, que era também a anfitriã da festa, subiu para o palco para anunciar que a dança seguinte seria a última. Tratava-se de uma quadrilha à moda antiga e Lem não deixou os seus créditos por mãos alheias no seu papel de mestre-sala.
Mais tarde, já depois de a maior parte das pessoas ter dispersado, a anfitriã pagou aos músicos da banda e a Lem. Não era muito, mas dar as deixas era o trabalho mais fácil que Lem conhecia e as moedas produziam um tinido agradável no seu bolso.
já na rua, Lem juntou-se a uns amigos que seguiam na mesma direcção que ele. Da casa de hóspedes em Sand Hill até a Avenida do Congresso ainda eram uns bons dezoito quarteirões em linha recta, andando sempre para oeste, e da Avenida até a casa de Rosie Brown, na Rua Lavaca, onde Lem. estava hospedado, ainda tinha de se ziguezaguear pelo meio de mais uns quantos quarteirões. Um homem sóbrio levaria cerca de vinte minutos a fazer este trajecto, se estugasse o passo. Lem e os amigos não estavam propriamente sóbrios, a noite estava fria e a nortada cortante chicoteava o ar.
Os quatro homens caminharam pela Rua Pecan em passo rápido para afugentar o frio, rindo e cantando e trocando comentários sobre uma ou outra das mulheres que tinham estado no baile. Quando se aproximaram do Black Elephant, Lem fez-lhes sinal para baixarem as vozes. O bar estava fechado mas havia uma luz acesa lá dentro, o que significava que o velho Hugh Hancock ainda devia estar a pé, provavelmente a acabar de fazer as limpezas. Se visse Lem a passar por ali, podia sentir-se
100tentado a caçá-lo para lhe dar uma ajuda. Assim, passaram os quatro diante do bar pé ante pé, como ladrões, soltando risos abafados e murmurando ”chius!” uns os outros. Depois de terem deixado o bar para trás, aceleraram o passo e acabaram por largar numa corrida até à Avenida do Congresso. De cada vez que passavam por um cruzamento, eram esbofeteados pelo vento que soprava de norte e que guinava com uma força tal, que os desequilibrava. Lem foi o primeiro a chegar à Avenida e, tendo atingido a meta, ficou parado à espera dos outros, rindo e tentando recuperar o fôlego.
Na esquina da Pecan com a Avenida do Congresso, separaram-se: Lem seguiu para norte enquanto os amigos continuaram para sul. Lem fez-lhes um aceno de despedida e recomeçou a andar contra o vento, semicerrando os olhos. A nortada, soprando dos terrenos do Capitólio, começava a levantar folhas e poeira e um sem-número de outros destroços pela larga avenida abaixo.
A corrida tinha sido uma boa ideia. Lem deixara de sentir o frio e os efeitos do álcool. O vento que lhe picava a cara estimulava-o. Trauteou uma melodia de dança. Não se sentia cansado. Sentia-se viril. O facto de ter estado a olhar para aquelas raparigas no baile tivera consequências mais fortes do que as previstas. Ou talvez fosse da lua cheia; dizia-se que deixava as partes baixas de um homem em desatino. Fosse lá por que fosse, o facto é que, de um momento para outro e sem pré-aviso, Lem deu por si transportando um toro no meio das pernas. Esticava-se contra as calças e embatia com um calorzinho morno na sua coxa.
Pareceu-lhe um desperdício arrastar a coisa para o seu quarto da casa de hóspedes da Sra. Brown, onde não havia ninguém que lhe pudesse dar uma ajuda. Por breves instantes, imaginou o que aconteceria se acordasse a velha Rosie Brown e lhe pedisse para lhe dar uma mãozinha. Atirou a cabeça para trás e desatou as gargalhadas. Gritou para dentro de um trem de aluguer que ia a passar: ”Deus santo, devo está mais bêbedo do que pensava!” O condutor não o ouviu, por causa do vento e do abafo de lã que trazia puxado sobre os ouvidos.
Lem tocou nas moedas que trazia no bolso, sentindo-as escorregar, frias e lisas, em contacto com os dedos. Com o dinheiro que tinha conseguido poupar e que guardava num pote no seu quarto, devia ter o suficiente para pagar companhia para esta noite. E encontrava-se a poucos quarteirões de Guy Town. No entanto, numa noite tão fria como
101esta, não lhe parecia provável que as raparigas andassem a bater as ruas; o mais certo era estarem confortáveis e quentinhas nas suas camas, à espera que os clientes aparecessem. Em Guy Town havia estabelecimentos que aceitavam clientes de cor e outros que os recusavam. Lem não era suficientemente mundano para saber distinguir os primeiros dos segundos, e não estava com disposição para que uma patroa branca petulante lhe desse com a porta na cara.
A ter de apostar num sítio onde fosse bem recebido, as probabilidades favoreciam a casa de Fannie Whipp le. Fannie era negra e alojava raparigas negras, mas a casa dela ficava justamente na zona de onde Lem tinha vindo, para os lados de Red River. O mais provável era que, quando tivesse conseguido ir a casa buscar o dinheiro e palmilhado a custo metade do caminho de regresso a Sand HilI, o fogo do seu toro já se tivesse extinguido. Para além do mais, era ridículo um indivíduo encantador e bem-parecido como ele ter de pagar por algo que lhe devia ser dado de graça.
Nisto, Lem pensou em Mollie.
Ele e Mollie Smith tinham sido praticamente marido e mulher durante algum tempo, quando viviam em Waco. E Mollie era a melhor especialista de todo o Estado do Texas, e não apenas na cozinha, como Lem costumava gabar-se junto dos amigos.
Claro está que, como Lem sabia sobejamente, um homem também se podia queimar ao tentar encostar-se a Mollie. Não era pessoa com quem se conseguisse viver, sempre apostada em levar a sua avante e dada a terríveis ataques de mau génio. Lem e Mollie tinham trabalhado para um viúvo numa pequena quinta que ficava nos arredores de Waco. Até tinham uma casinha só para eles. Mas, quando Mollie se enfurecia, o som da sua fúria ouvia-se na cidade. Certa noite, Mollie tinha partido uma garrafa e ameaçado retalhar a cara de Lem com ela. Para o lavrador, foi a gota de água que fez transbordar o copo: disse-lhes que um dos dois tinha de sair da quinta, e que não era a partida de Mollie que ele tinha em mente. O lavrador não queria abdicar dos pratos dela, pensara Lem; mas também perguntara a si próprio se o lavrador não quereria experimentar as especialidades de Mollie noutros domínios. Enquanto Lem juntava as suas coisas para se ir embora, Mollie dissera-lhe que nunca mais lhe queria pôr a vista em cima, ao que Lem respondera que, no que lhe dizia respeito, não podia estar mais de acordo, pois tinha esperanças
102de nunca mais vir a conhecer nenhuma mulher tão dominadora e mandona como a Menina Mollie Smith.
Lem mudara-se para Austin, o que veio a ser a melhor decisão que tomara na vida. Adorava estar ao balcão do Black Elephant, trabalhar para um homem negro e servir clientes negros. Passavam-se dias seguidos em que Lem mal via uma cara branca! E quanto a mulheres, até à data tinha conseguido evitar todo e qualquer rabo-de-saia.
Fora então que, alguns meses antes, Mollie tinha vindo viver para Austin. Aparentemente, o lavrador tinha voltado a casar e a noiva preferia encarregar-se pessoalmente da comida, dispensando o auxílio de uma jovem e bela mulata. A primeira vez que dera de caras com Mollie na Avenida, Lem tivera um sobressalto e não conseguira reprimir, nem o seu largo sorriso de piano, nem o gesto de levar os dedos ao chapéu. Mollie, que estava mais bela do que nunca, limitou-se a corresponder ao cumprimento de Lem com um sorriso afectado, afastando-se apressadamente sem lhe dirigir palavra. Das últimas vezes que os caminhos de ambos se tinham cruzado, Lem fizera ponto de honra em dizer qualquer coisa e chegara a segui-la uns minutos, cortejando-a de maneira bem-humorada. Mollie parecera gostar da atenção, muito embora a sua atitude continuasse a ser de reserva. Dissera-lhe que cozinhava para uma família chamada Hall e que estava a viver num quarto contíguo à cozinha, nas traseiras da casa desta família, na Rua Pecan, zona oeste, logo a seguir à pequena ponte de ferro que atravessa a Ribeira de Shoal. A casa dos Hall não ficava no caminho de nenhuma das voltas habituais de Lem mas, desde então, ele fizera questão em passar por lá uma ou duas vezes, só para ficar a saber onde era.
O que é que o impedia de ir até lá agora, fazer uma visita a Mollie? Ela ficaria surpreendida ao vê-lo, talvez até ficasse um bocado alarmada ao ouvir bater no vidro da sua janela a meio da noite, mas sossegaria assim que percebesse que era ele. Era precisamente a meio da noite que ela gostava mais, conquanto não estivesse com uma das suas terríveis enxaquecas. ”Aposto que, neste momento, está mesmo cheia de vontade”, disse Lem para consigo. ”Está uma noite tão fria e ventosa, era uma pena uma mulher tão bonita como Mollie passá-la sozinha.”
Lem voltou as costas à nortada e meteu-se novamente a caminho pela Avenida abaixo até chegar à Rua Pecan, onde voltou a direita. Subitamente, recordou-se de ter ouvido dizer que Mollie arranjara
outro homem. Não era nada surpreendente, tendo em conta que era
103mesmo bonita. E se Mollie e o seu novo homem estivessem a viver juntos? E se Lem fosse até à casa dos Hall e desse de caras com o tipo a dormir na cama de Mollie? A noite podia vir a ter um desfecho desagradável.
Por outro lado, seria possível que existisse um homem capaz de aturar o mau génio de Mollie dia após dia? ”Os cães não se vão embora quando a gente os chicoteia, mas a maior parte dos homens não é assim tão estúpido”, pensou Lem para consigo. Se Mollie tinha arranjado um novo namorado em Austin, o mais provável era que, por esta altura, o tipo já se tivesse posto a milhas e, se assim fosse, o mais certo era Mollie ter vontade de o ver a ele, Lem.
O percurso de Lem levou-o a contornar a linha limítrofe de Guy Town, a norte. A Rua Pecan, zona oeste, estava silenciosa como um cemitério, e não se avistava mais do que um ou outro transeunte que, tal como Lem, caminhavam de cabeça baixa e as mãos enfiadas nos bolsos, entregues aos seus pensamentos.
Lem alcançou a pequena ponte de ferro. Em baixo, a Ribeira de Shoal chapinhava suavemente. Avançou para o tabuleiro. Os seus passos provocaram um eco metálico abafado. Deu por si a perguntar-se se o barulho teria acordado alguém que pudesse estar a dormir debaixo da ponte. No passado, ele próprio já se tinha visto obrigado a dormir ao relento uma ou duas vezes. E, numa noite fria como esta, o melhor era procurar abrigo debaixo de qualquer tipo de cobertura, para que a geada da manhã não viesse assentar directamente sobre o corpo. Uma ponte oferecia alguma protecção; com um cobertor e mantendo as mãos e os pés embrulhados, a noite passava-se com razoável conforto.
Lem pensou no seu amigo Alec Mack. Onde passaria ele esta noite?, pensou. O mais certo era passá-la ao relento num canto qualquer, talvez até debaixo desta mesma ponte. E tudo porque os sujeitos que o tinham contratado não gostavam da ideia de duas pessoas de cor fazerem aquilo que toda a gente faz de vez em quando. Às vezes, o mundo era incrivelmente injusto. Um pequeno erro e um homem dava por si sem trabalho, sem dinheiro, sem um tecto e com o seu bom nome arrastado na lama...
Bem vistas as coisas, talvez não fosse grande ideia aparecer à porta de Mollie a meio da noite, pensou Lem. E se ela não ficasse assim tão contente por vê-lo, desatasse a gritar e fizesse um enorme alarido? Lem não sabia nada acerca dos Hall. E havia gente que não se ensaiava nada a
104puxar da arma se ouvisse barulho a meio da noite. O toro que tinha no meio das pernas podia vir a trazer-lhe problemas.
Quando ia a meio da ponte, Lem hesitou por momentos. Acabou, porém, por continuar. A casa dos Hall estava quase a aparecer.
Nisto, viu o cão.
A criatura estava sentada sobre os quadris, no meio da rua, no extremo oposto da ponte, a menos de dez metros de distância. Pelo tamanho do bicho, Lem deduziu que devia tratar-se de um cão de fila. Mas havia qualquer coisa de estranho neste cão.
Lem piscou os olhos. O cão deve ter feito o mesmo porque, de repente, Lem viu dois pontos faiscantes, semelhantes a duas pequenas bolas de fogo, no lugar dos olhos da criatura, como se houvesse uma fornalha dentro da cabeça do animal e Lem conseguisse ver as brasas de carvão que ardiam lá dentro.
O cão começou a rosnar, um som que Lem ouviu distintamente e que se sobrepôs ao assobio do vento nos seus ouvidos e ao gorgolejar da corrente. Depois, levantou-se de um pulo, arreganhando os dentes e fitando-o intensamente com os olhos flamejantes, o corpo inclinado de tal maneira tenso que abanava como uma panela de água a ferver.
Lem percebeu de imediato que o animal parado ao fundo da ponte não era um cão normal. Aliás, não era cão nenhum.
Era um cão fantasma.
Até àquele momento, Lem nunca tinha visto nenhum cão fantasma, mas tinha ouvido falar deles durante toda a sua vida, a começar pelas histórias que a Avó Sooty lhe contava quando era miúdo. Quando, já crescido, certo dia a acusou de ter inventado todas aquelas histórias, ela jurou que eram verdadeiras, palavra por palavra, e proibiu-o de comer biscoitos com compota, à laia de castigo por ter duvidado dela. Uma parte de Lem acreditava, mas outra parte não - exactamente como, neste preciso momento, uma parte dele acreditava no que via e outra parte não.
Na verdade, um homem que estivesse de consciência tranquila não tinha nada a temer de um cão fantasma. Um cão fantasma não era, em bom rigor, um cão. Era o fantasma de alguém com quem se tinha privado em tempos; só que surgia sob a forma de cão. E, a não ser que se tivesse feito algo de verdadeiramente terrível - ter matado um homem, por exemplo -, o cão fantasma aparecia, regra geral, por uma boa razão: dar um aviso, desviar a pessoa de uma situação de perigo, ou ajudá-la a
105encontrar uma coisa perdida. Lem engoliu em seco e disse para consigo que não havia razão nenhuma para ter medo.
Ainda assim, é difícil uma pessoa não se sentir amedrontada à vista de um cão que rosna e exibe as presas, e que nos fita com olhos que são tal e qual duas bolas de fogo. Talvez aquele brilho nos olhos do cão não fosse mais do que um reflexo enganoso do luar. Ou talvez fosse apenas a lua cheia a fazer com que Lem imaginasse coisas. O mais provável era a criatura não passar, efectivamente, de um vulgar cão de caça.
- Ei! Embora! Põe-te a andá! - gritou Lem, agitando os braços. Bateu com o pé no chão com força, o que fez com que a ponte estremecesse e que o ruído metálico se propagasse por todo o tabuleiro. Este gesto teria sido suficiente para que qualquer cão normal desaparecesse a correr com a cauda enfiada entre as pernas.
Porém, em vez disso, a criatura começou a andar lenta mas deliberadamente na direcção dele, com o corpo sacudido pela tensão. O cão tornou a piscar os olhos: o fogo do olhar apagou-se por instantes mas reapareceu, chamejante, assim que ele os reabriu. A luz prateada do luar cintilou-lhe nas presas.
Lem engoliu em seco. Aquela coisa tinha de ser um cão fantasma. Mas se assim era, de quem seria o fantasma? E a que vinha ele?
As pernas de Lem deram um esticão involuntário. Ele abriu a boca. Tinha a garganta seca.
- Avó? - perguntou num sussurro.
O cão fantasma estacou no sítio onde estava, a menos de cinco metros de distância.
- Avó Sooty? - A voz falhava-lhe.
De repente, a criatura deu um salto enorme e aterrou mesmo a frente dele. Lem girou nos calcanhares e largou a correr.
Os latidos que o perseguiam tinham uma entoação sepulcral. As presas afiadas do cão arrepanhavam-lhe os calcanhares, rasgando-lhe as meias de lã e arranhando-lhe a carne. Lem correu mais depressa do que nunca.
106Tom Chalmers acordou a meio da noite com um barulho proveniente da janela do seu quarto.
Estava a ter um sono irrequieto: assolava-o uma imensa agitação que se prendia com o declínio do estado de saúde da irmã e a crescente antipatia que sentia pelo cunhado. Tinha sonhos estranhos e inquietantes. Via um frasco de remédio castanho-escuro do tamanho de um homem mover-se pela casa; o gargalo era um rótulo gigantesco com a cara do Dr. Terry, o médico que tinha vindo observar a irmã naquela tarde. No encalço do gigantesco frasco de tónico, seguia o Dr. Fry. O gigantesco frasco avançava como se fosse uma marioneta impulsionada por uma mão gigantesca, com o fundo liso a raspar pelas tábuas do soalho, enquanto o homem cego ia atrás, tacteando o chão com a bengala. Raspando e tacteando, raspando e tacteando...
O barulho acabou por despertá-lo. Por momentos, Tom sentiu-se confuso, sem saber bem onde se encontrava ou se ainda estaria a sonhar. A nortada atacava em força. As rajadas faziam abanar a casa. Ainda meio a dormir, Tom achou que o som das raspadelas que lhe chegavam aos ouvidos devia ser proveniente de um ramo de árvore que estivesse a açoitar o caixilho da janela. Aconchegou-se melhor por baixo dos cobertores. Aos dezassete anos, já não era nenhum rapazinho, e era absurdo estar com medo de ruídos nocturnos.
Ouviu o relógio da cornija da sala de estar badalar a meia-hora. Recordava-se vagamente de ter ouvido o relógio badalar três vezes não havia muito tempo. Três e meia da manhã e ali estava ele, deitado na cama, a imaginar coisas!
O som de qualquer coisa a raspar -na janela recomeçou, parecendo-lhe - podia jurá-lo - nós de dedos a bater deliberadamente na madeira. Tom deixou-se estar deitado, totalmente imóvel e completamente acordado. Para além do raspar, Tom ouvia outro som. Talvez fosse só o vento
107mas pareceu-lhe ter ouvido um gemido. Talvez fosse um animal, mas que tipo de animal emitiria um som tão doloroso e pungente como aquele?
Saltou para fora da cama e ficou de pé, metido na camisa de noite de flanela, olhando fixamente para os cortinados compridos, pesados e corridos. Dirigiu-se à janela, estendeu as mãos e agarrou-os. As pontas dos dedos entraram em contacto com o ar gelado que ficara retido entre os vidros da janela e o tecido grosso. Antecipou mentalmente o acto, digno de pesadelo, de descerrar os cortinados e confrontar-se com o que pudesse estar do lado de lá da janela. Decerto não era nada, garantiu a si mesmo - o vento, um ramo, um animal - e, no entanto, não conseguia decidir-se a apartar os cortinados.
Nisto, ouviu uma voz baixa e rouca vinda do lado de fora, abafada pelo vidro e praticamente levada pelas rajadas do vento. A voz chamava por ele.
- Sr. Tom! Sr. Tom! Oh meu Deus, acorde, Sr. Tom!
Muito lentamente, Tom afastou os cortinados até deixar aparecer uma frincha vertical, e encostou um dos olhos ao intervalo entre os dois pedaços de tecido. Lá fora, o mundo era uma massa de sombras indistintas e de silhuetas jogadas ao sabor do vento. Abruptamente, a massa de sombras mais chegada a janela assumiu a forma de um homem que se encontrava de pé por baixo da janela, com os ombros encolhidos e a cabeça pendida, firmemente abraçado a si mesmo. O homem ergueu um braço para bater na janela. Tom deu um pulo. Através da vidraça, ouviu um soluço abafado.
- Sr. Tom... oh meu Deus.. acorde, senhor! Tom inspirou fundo e afastou os cortinados.
- Walter! Por Deus, quase me mataste de susto!
- Oh, misericórdia, Sr. Tom, ajude-me por favor...
- Espera um minuto enquanto eu risco um fósforo. - Tom foi até à mesinha-de-cabeceira e acendeu um candeeiro a óleo que levou depois até à janela. Soltou o ferrolho superior e puxou a trave da janela para cima, deixando entrar uma rajada de vento frio. - Por amor de Deus, Walter, está um frio de rachar aí fora!
- Acho... alguém...
- Mas afinal o que se passa?
108- Acho que alguém quase me matô, Sr. Tom. - O discurso de Walter chegava-lhe entaramelado. Tom tinha de fazer um enorme esforço para conseguir compreendê-lo.
- O que é que tu tens, Walter? Estás bêbedo? - Tom inclinou-se um pouco e levantou o candeeiro, por forma a obter uma visão mais nítida de Walter. À luz do candeeiro, certas zonas do seu cabelo cortado à escovinha reflectiam um brilho pouco natural, o mesmo acontecendo com uma substância húmida e pegajosa que lhe cobria a cara. Tom soltou uma exclamação de repugnância e recuou ligeiramente. Walter estava coberto de sangue! A cara dele tinha um aspecto grumoso e inchado, com uma grande massa de sangue coagulado num dos lados da cabeça e um golpe profundo por baixo de um olho. Tom tapou a boca com um punho fechado e engoliu em seco.
- Meu Deus, Walter! Onde estiveste? Quem fez isto?
- Eu não saí daqui, não... do quartinho das traseiras.
- Onde está Mollie?
Walter parecia confuso.
- Acho... acho que ta desaparecida.
- Não está deitada?
Walter abanou a cabeça.
- Não. Oh, Sr. Tom, tô doendo! Tenho frio. Posso entrá em casa, por favô?
- Não! Sabes perfeitamente que os únicos sítios da casa onde estás autorizado a entrar são o quarto de Mollie e a cozinha.
- Mas Sr. Tom, eu tê de sê ajudado! Acho que to morrendo!
Tom tentou clarificar as ideias. À primeira vista, parecia que o mau génio de Mollie tinha, de uma vez por todas, levado a melhor sobre ela. Mollie devia ter usado uma faca e uma frigideira quando se lançou a Walter, para o ter deixado neste estado lastimável. Se já não se encontrava no quarto, o mais provável era ter fugido, com medo das autoridades. Como é que eles se iam arranjar agora, sem cozinheira?
Walter tinha tido, pelo menos, o bom senso de dar a volta a casa por fora e de ter vindo bater à janela dele, em vez de ter entrado pela sala de jantar e pelo vestíbulo adentro, deixando a mobília e as carpetes sujas de sangue. O Sr. Hall dormia no piso de cima, tal como Nancy, a enfermeira, em quartos contíguos ao da Sra. Hall. Tom era o único que
109dormia no piso de baixo, pelo que tinha sido a ele que Walter recorrera para pedir ajuda.
Mas o que havia de fazer? Tentou pensar numa solução, mas o ar frio que entrava pela janela penetrava-lhe através da camisa de dormir e estava a deixar-lhe os pés completamente gelados. Uma hipótese era ir lá acima acordar o cunhado mas, se o fizesse, Tom tinha a certeza de que haveria gritos e discussões, o que iria certamente acordar a irmã. O que quer que tivesse acontecido entre Walter e Mollie não era coisa que justificasse pôr a casa toda em alvoroço às três e meia da manhã. Além do mais, Tom tinha idade suficiente para dar conta deste problema sozinho.
Mas o que devia fazer? Por direito, ninguém naquela casa devia fosse o que fosse a Walter. Walter trabalhava por sua conta e não era, nem um inquilino, nem um criado. O facto de lhe ser permitido viver no quarto de Mollie sem pagar renda era um favor que a família prestava a Mollie, e sob condição de Walter não arranjar problemas.
Ora bem, o que se estava a passar neste momento era um problema. Walter estremeceu e soltou um gemido.
- Sr. Tom, por favor, pode levá-me a vê um médico? Podia levá-me na carruagem.
- Nem sequer estou vestido, Walter. Walter agarrou a cabeça entre as mãos.
- Pode acordá o Sr. Hall, então?
- Nem pensar! O Sr. Hall é tão responsável por ti como eu. Valha-nos Deus, Walter, olha para o parapeito... sujaste tudo de sangue!
- Ajude-me por favor, Sr. Tom! Eu tô precisando de um médico. Tom voltou a observar com atenção os ferimentos da cara de Walter e engoliu em seco.
- Muito bem, presta atenção. Vai ter com o Dr. Steiner. Diz-lhe que foi o Sr. Hall que te mandou lá. Sabes onde mora o Dr. Steiner, não sabes?
Walter acenou que sim.
- Não me parece que estejas em condições de montar a cavalo. E, de qualquer maneira, o Sr. Hall não ia permitir que levasses um animal sem Mollie cá estar para assumir a responsabilidade. Vais ter de ir a pé. Não é assim tão longe. Vá, põe-te a caminho, estou a congelar!
Walter, incapaz de articular uma frase coerente, deixou-se ficar ali parado, acenando com a cabeça e balbuciando. Tom desistiu de ficar à
110espera de que ele se fosse embora e acabou por fechar a janela. Walter permaneceu onde estava, cabisbaixo, abraçado a si próprio, qual quadro a que o caixilho da janela emprestava a moldura. Tom apagou o candeeiro a óleo com um sopro. Por fim, Walter voltou as costas e afastou-se lentamente. Tom abanou a cabeça e correu os cortinados. Os seus pés eram dois blocos de gelo autênticos. Regressou à cama quentinha com um grunhido de contentamento, bastante satisfeito com o facto de ter sabido lidar resolutamente com a situação de crise.
Walter retrocedeu pelo mesmo caminho que o levara até ali, contornando a casa em direcção ao pátio das traseiras. Passou pela horta em pousio, pela cabana onde se guardavam as ferramentas e pelo anexo, aproximando-se da vedação das traseiras. O portão que dava para o carreiro estava aberto.
Walter tinha a certeza de ter sido a última pessoa a entrar pelo portão naquela tarde. Recordava-se distintamente de o ter fechado e trancado, como sempre fazia - o Sr. Hall insistia para que o portão ficasse sempre trancado, de maneira a que nenhum cão pudesse entrar. Não obstante, o portão estava aberto. Walter deduziu apaticamente que Mollie devia ter ido ao carreiro e deixado o portão assim. O melhor era deixá-lo como estava, pensou; se Mollie voltasse e desse com o portão fechado, o que a obrigaria a tentar destrancá-lo às escuras, isso era justamente o tipo de coisa capaz de lhe provocar um acesso de mau génio.
A caminhada até casa do Dr. Steiner parecia-lhe nunca mais ter fim. O vento gelado cortava através do seu casaco fino e dos seus sapatos gastos, mas Walter continuava a andar, arrastando um pé a seguir ao outro. O luar brilhava tanto, que Walter chegava a sentir-se desorientado, perguntando a si mesmo por que razão estaria o dia tão escuro. Embora a dor na cabeça já não fosse tão aguda, sobrevinha de vez em quando sob a forma de uma onda latejante, que lhe dava a impressão de a sua cara estar prestes a fender-se como um melão rachado a meio. Como é que aquilo tinha acontecido? Walter não conseguia lembrar-se. Lembrava-se de ter ido para a cama. Lembrava-se de ter acordado com dores excruciantes, de ter tropeçado às cegas pelo quarto completamente escuro, de ter chamado por Mollie e, por fim, de ter vestido qualquer coisa e de ter ido pedir ajuda ao Sr. Tom.
111As casas escuras vislumbravam-se em seu redor, desaparecendo depois como navios-fantasma. Havia qualquer coisa na sua cabeça que não estava a funcionar como devia. Subitamente, deu por si perdido, embora as casas que o rodeassem lhe fossem familiares. Conseguia reconhecer as casas, mas não conseguia lembrar-se de onde é que elas ficavam, nem para onde se dirigia, nem o que estava a fazer ali no meio da rua.
Precisava de descansar. Sentou-se no coto de uma árvore ao lado de um maciço de arbustos que o mantinha abrigado da nortada. Walter estremeceu. Sentia os pés e as mãos dormentes. Pareceu-lhe que tinha adormecido por instantes, embora nunca tivesse chegado a fechar os olhos. Por fim, levantou-se e prosseguiu caminho. Precisava de ir ter com o Dr. Steiner; era isso, estava a caminho da casa do Dr. Steiner.
Walter não tinha a certeza da direcção a tomar. Reconheceu a casa de um homem de cor seu conhecido e bateu à porta. Ao ver o estado em que Walter se encontrava, o homem fez um imenso alarido e mandou-o entrar, mas Walter disse-lhe que a única coisa de que precisava era que lhe dessem indicações para ir dar à casa do Dr. Steiner. O homem insistiu em emprestar-lhe um sobretudo de lã antes de o deixar seguir caminho. Com o casaco vestido, Walter começou a sentir-se um pouco mais quente. Se ao menos conseguisse que o frio não o atacasse, talvez lhe fosse possível raciocinar adequadamente.
Quando finalmente chegou a casa do Dr. Steiner, ainda teve de bater à porta durante muito tempo. O homem de cor que por fim veio abrir-lha tinha um ar estremunhado e contrariado mas, ao ver Walter, reteve involuntariamente a respiração. Walter tombou no chão a seus pés.
Cabia a Mollie a responsabilidade de ser a primeira a levantar-se na casa dos Hall para acender o fogão e as lareiras e cozinhar o pequeno-almoço. Mas nessa manhã, quando o Sr. Hall e o Sr. Tom se levantaram, o lume estava apagado e a casa permanecia por aquecer. Quando se cruzaram no andar de baixo, a mesa da sala de jantar ainda não tinha sido posta.
- Onde raio se meteu aquela rapariga? - perguntou o Sr. Hall.
- A esta hora, já deve estar em Waco, ou a meio caminho de Hempstead - retorquiu Tom.
- O que queres dizer com isso?
112Tom pôs o cunhado a par da visita nocturna que Walter lhe tinha feito.
- E ele estava muito ferido? - perguntou o Sr. Hall.
- Completamente coberto de sangue, é o que lhe digo. Mollie deve tê-lo deixado praticamente morto.
- Não dei por barulho nenhum.
- Nem eu, até Walter me acordar. Mas da maneira como o vento uivava...
- Achas então que Mollie fugiu?
- Walter disse que ela tinha desaparecido. O mais certo é estar com medo das autoridades. Quando vir o estado em que ela deixou Walter, perceberá porquê.
- Bem, se ela é assim tão violenta, tivemos sorte em nos vermos livres dela, e é melhor que não volte. - O Sr. Hall pegou num atiçador e nuns quantos fósforos e preparou-se para atear o fogo da lareira da sala de jantar. - Que praga! Tornou-se impossível arranjar criados decentes nos dias que correm! A tua irmã tinha um talento especial para isso, antes de ter ficado demasiadamente debilitada para conseguir ocupar-se do governo da casa. Isto é de mais para um homem; só faltava agora ter de me ocupar também da gestão dos criados! No tempo do meu pai, quando um homem podia comprar e vender os criados e discipliná-los da maneira que lhe parecesse mais apropriada, deixa-me que te diga que a coisa piava mais fininho. Tu e eu crescemos em mundos diferentes! E pensar que ainda hoje ha quem defenda que transformar os negros em mão-de-obra livre representa um avanço na causa da civilização! - O Sr. Hall espevitou as brasas e franziu a testa. - Estou aqui a pensar se a nossa enfermeira Nancy será capaz de fazer pelo menos um café decente. E onde é que ela está?
- Aqui tá eu! - Nancy entrou de roldão no vestíbulo. - Tou sabendo tou sabendo, me deixei dormí, mas a Sra. Hall me fez tá a pé quase toda a noite, a remexê e a se voltá. Mas o que esta todo o mundo fazendo aqui sem pequeno-almoço à frente? Porquê não há lume no vestíbulo? A manhã está fria!
- A minha mulher não te deixou dormir a noite passada? - inquiriu O Sr. Hall.
- Oh, tava numa agitação que até me dava arrepio! Era daquela nortada a assobiá. Os doentes são extri sensíveis às mudanças de tempo.
113- E ouviste algum barulho cá em baixo?
- Que tipo de barulho?
- Uma discussão entre Mollie e Walter. Nancy enrugou a testa.
- Não, não ouvi nada assim, não. só a casa abanando com o vento.
- Bom, a verdade é que eles devem ter tido uma discussão das grandes. Walter apareceu à janela de Tom a meio da noite com a cara coberta de sangue e Mollie parece ter fugido. É por isso que não há nem lareiras acesas, nem pequeno-almoço.
- Nosso Senhor nos valha! Oh, eu tava sabendo que aquela menina tinha mau génio. E o Walter Spencer é tão querido e meigo que lhe faz mal.
- Podias por-nos uma cafeteira de café ao lume e talvez mexer uma meia dúzia de ovos?
Nancy soltou um grande suspiro, o que fez com que o seu peito generoso balouçasse para cima e para baixo.
- E isso é antes ou depoís de despejá o bacio da noite da Sra. Hall, senhor?
O Sr. Hall fez uma careta.
- Nancy, sei muito bem que a tua função nesta casa é prestar assistência à minha mulher, e não limpar e cozinhar, e pago-te de acordo com isso. Mas por uma vez sem exemplo, dadas as circunstâncias...
- Tou a ouví! Não tá ouvindo o meu estômago a dá hora também? Se sentem aí que eu já vou arranjando qualquer coisa.
- Ficamos muito agradecidos - disse o Sr. Hall, em voz fatigada. Nancy dirigiu-se à cozinha e acendeu o fogão. Partiu uns ovos para uma tigela, mediu uns quantos grãos e pôs ao lume uma panela de agua. Não tardou que a cozinha aquecesse, cobrindo os vidros da janela de condensação.
Nancy olhou para a porta do quarto de Mollie; estava bem fechada. Abanou a cabeça num gesto de reprovação. Adeus Mollie e adeus Walter. Teria sido uma pena se Mollie tivesse desfigurado a cara de Walter - ele até nem era um homem mal-parecido, embora fosse um tanto ou quanto apoucado. Nancy só esperava que o Sr. Hall não demorasse muito tempo a contratar uma nova cozinheira. Tratar da Sra. Hall já lhe dava trabalho que chegasse.
Os grãos levantaram fervura e Nancy começou a mexer a infusão. Olhou novamente para a porta do quarto de Mollie. E se a megerazinha
114estivesse lá dentro, dormindo como um bebé, enquanto toda a gente tentava imaginar o seu paradeiro?, pensou Nancy. O mais certo era nem o Sr. Hall nem o Sr. Tom se terem dado ao trabalho de espreitar para dentro do quarto. Nancy era perfeitamente capaz de imaginar Mollie aconchegada debaixo do cobertor, profundamente adormecida e com um sorriso nos lábios. E também se via a despejar uma malga de água fria por cima da cabeça daquela desmiolada e a arrastá-la para a cozinha para acabar de fazer o pequeno-almoço.
Nancy tirou os grãos do lume para que a mistura parasse de ferver. Feito isto, dirigiu-se à porta do quarto e abriu-a.
Instantes depois, apareceu na sala de jantar. O Sr. Hall voltou os olhos na direcção dela com um sorriso, antecipando a chegada do café. A expressão com que deparou no rosto de Nancy fê-lo endireitar-se na cadeira.
- Nancy; o que é que...
- Estás com cara de quem acabou de ver um fantasma - disse Tom. A voz de Nancy saiu-lhe com um timbre esquisito.
- Sr. Hall, acho que é melhor o senhô vi vê. Há aqui qualquer coisa que não tá batendo certo. Mollie pode ter feito uns golpes na cara de Walter, mas isto não tá batendo certo, não.
Eles atravessaram a cozinha atrás dela, até ao quartinho das traseiras. Nancy recuou para que os homens pudessem olhar lá para dentro.
A primeira coisa que viram foi a sua própria imagem reflectida no velho espelho oxidado que havia por cima da cómoda. O espelho tinha tombado e estava caído de lado, entalado entre a cómoda e a parede. Tom e o Sr. Hall viram-se projectados num ângulo que os desorientou, com as suas próprias imagens obscurecidas por linhas de sangue seco espalhadas por toda a superfície do espelho.
A cadeira estava caída no chão, de pernas para o ar. A cama estava completamente devastada, com o colchão parcialmente puxado para fora do estrado, as almofadas espalhadas e os lençóis torcidos. Havia sangue por todo o lado.
Em algumas zonas do colchão e dos lençóis, o sangue acumulava-se em poças espessas de cor ainda avermelhada que mal tinham começado a coagular; noutras, espalhava-se em finas camadas e já tinha secado, formando crostas castanhas. Jactos de sangue tinham sido violenta-mente disparados contra as paredes. Viam-se poças de sangue pelo chão todo.
115Havia marcas feitas por dedos ensanguentados no caixilho da porta das traseiras.
Ninguém se mexeu ou pronunciou palavra durante longos momentos. Nisto, Tom tapou a boca com a mão e destrancou a porta das traseiras. Desceu os degraus aos tropeções, segurando-se com uma das mãos ao corrimão e agarrando o estômago com a outra, e dobrou-se em dois. O Sr. Hall estava em estado de choque.
- Mas será possível... será possível que todo este sangue seja de Walter? Valha-nos Deus, ela deve ter-lhe praticamente cortado a cabeça. A não ser...
A não ser que o sangue fosse de Mollie, pensou. Mas isso era impossível. Quem podia imaginar Walter a fazer semelhante coisa? O dócil, obediente e apoucado Walter...
Tom limpou a boca à manga da camisa e gritou do pátio.
- Ha aqui mais sangue! Os degraus estão cobertos de sangue!
O Sr. Hall ia a atravessar o quarto quando o seu pé embateu num objecto duro que se encontrava aos pés da cama. Com a ponta do sapato, desviou para o lado um bocado de lençol amarrotado. Nancy aproximou-se por trás dele. Ficaram ambos especados a olhar para um machado ensanguentado que se encontrava no chão.
- Oh, meu Deus! - murmurou Nancy arrepiando-se com o frio e começando a soluçar. - O que terá acontecido a Mollie?
O Sr. Hall agachou-se, engoliu em seco e espreitou para debaixo da cama.
- Aqui não está - disse. - Neste quarto não está. E tenho a certeza de que também, não está dentro de casa... - Dirigiu-se a porta das traseiras. Tal como Tom dissera, havia mais sangue nos degraus que davam para o pátio.
O Sr. Hall deteve-se no primeiro degrau, de onde sondou com o olhar o pátio, circunscrito a toda a volta por uma vedação. Viam-se uma corda de secar roupa esticada entre dois postes de madeira, sem roupa pendurada, um enorme bidão de ferro que era utilizado para queimar lixo, os regos lamacentos da horta e um monte de adubo. O cadeado da cabana onde as ferramentas eram guardadas estava no seu lugar e não tinha sido forçado. Por trás da cabana das ferramentas ficava o anexo. Não conseguiu evitar um espasmo de irritação ao ver que o portão que
116dava para o caminho das traseiras estava aberto. Walter devia tê-lo deixado assim quando saíra para ir ter com o médico. Tinha-lhe dito vezes sem conta que aquele portão tinha de estar sempre trancado, sob pena de os cães vadios entrarem por ali dentro e darem cabo das pilhas de adubo e de lixo.
O Sr. Hall desceu a pequena escada abanando a cabeça e resmungando em voz baixa, e atravessou o pátio, fazendo tenções de o fechar. Mas quando chegou ao portão e pousou a mão nele para o puxar, avistou pelo canto do olho qualquer coisa deitada no chão, entalada na nesga de terra e ervas daninhas que ficava entre o anexo e a vedação.
Antes mesmo de voltar a cabeça, soube o que os seus olhos iriam encontrar. A presença da morte era palpável.
117
8
- Que maneira horrorosa de acabar o ano, essa é que é essa - disse o Comissário Lee. - Alguma vez tinhas visto um cadáver, Schoemaker? Dave engoliu em seco.
Claro que sim. Sou o repórter criminal do Statesman ou não sou? É que fiquei com a impressão de que estavas um bocado verde. Está a referir-se a minha tenra idade ou a minha tez?
O comissário riu-se.
- Verde é verde, Schoemaker. A tua cara está duas vezes mais pálida do que uma fava-de-lima bebé.
- O Comissário também estaria verde se estivesse com uma ressaca igual à minha.
O comissário bufou. Horatio Grooms Lee não era, nem de perto nem de longe, verde. Tinha trinta e cinco anos, mais dez que Dave, e não tinham sido poucos os cadáveres que tinha visto durante a época em que fora Ranger do Texas.
Servir nos Rangers trazia ao de cima o melhor de alguns homens. Enviado para as fronteiras além-civilização e exposto à luta pela sobrevivência na sua forma mais crua e dura, um homem tinha oportunidade para tomar o gosto ao medo e aprender a engoli-lo, saber reconhecer todo o valor de um camarada leal, ver a luz desvanecer-se nos olhos de um índio moribundo ou de um fora-da-lei miserável, e aperceber-se de que toda e qualquer criatura humana, por mais desprezível que seja, possui uma alma. Para alguns homens, porém, estas mesmas experiências tinham o efeito contrário: a nua e crua fealdade da morte e a malevolência intrínseca da luta pela vida funcionavam como um crivo pelo qual se escoava toda a candura e nobreza do seu carácter, retendo apenas o que de empedernido e de amargo lhe ficava na alma. Grooms Lee era um indivíduo empedernido quando se juntara aos Rangers e regressara ainda mais empedernido.
O Comissário era um homem com futuro e de quem se esperavam grandes feitos. Era o único filho do primeiro casamento de seu pai;
118a mãe tinha morrido ao dar a luz. O pai, Joseph Lee, durante décadas um potentado na arena política do Texas, fora recentemente nomeado director da comissão responsável pela construção do novo Capitólio estadual. A prestação do jovem Lee na função de Comissário da Polícia de Austin era vista por muitos como um mero degrau no percurso que o levaria a postos mais elevados. Com os conhecimentos do pai e a sua própria reputação enquanto agente da autoridade, Grooms Lee poderia vir um dia a ser eleito para a magistratura estadual, ir para Washington ou mesmo vir a subir as escadas da Mansão do Governador.
O concelho municipal de Austin tinha nomeado Grooms Lee Comissário da Polícia em grande parte devido à influência do pai, mas também por confiar plenamente na experiência e no carácter do nomeado. Lee dava a impressão de possuir os traços de personalidade que a população espera de um representante da lei, como por exemplo tenacidade e discernimento. Mas havia um lado de Grooms Lee que os políticos, metidos nos seus gabinetes do município, desconheciam. Lee mostrava uma cara aos que estavam acima dele e outra diferente aos que estavam abaixo. Os seus pares viam nele um indivíduo afável e de temperamento calmo - o filho do Joseph Lee -, que concluíra com honra o seu tempo de serviço nos Rangers, e que jurara agora zelar pela manutenção da lei e da ordem entre as boas gentes de Austin. Outros, sobretudo os que o irritavam, viam nele um homem com um mau génio tão devastador como o Colorado na época das inundações.
A sua maldade tinha requintes de tacanhez. No entender de Grooms Lee, um homem sensível era um homem fraco e ele comprazia-se em pôr o dedo na ferida de homens que se lhe afiguravam mais fracos do que ele, como acabara de fazer com Schoemaker ao encontrarem-se ambos diante do corpo mutilado e sem vida de Mollie Smith.
O Comissário, com a ajuda de um outro agente, tinha arrastado o corpo morto da mulher do pequeno espaço que ficava entre a vedação e o anexo para o pátio. Mollie estava praticamente nua. Pedaços de uma camisa de noite esfiapada agarravam-se-lhe aqui e ali e o tecido ensopado de sangue colava-se-lhe à carne. O corpo tinha enrijecido numa posição sugestiva: os braços levantados por cima da cabeça e as pernas tão afastadas quanto o permitia o espaço entre a vedação e o anexo. A sua cara tinha sido tão brutalmente desfigurada, que era impossível tentar ler nela qualquer expressão. Já não era a primeira vez que Dave levava o punho à boca, fazendo um esforço tremendo para reprimir a náusea.
119Era um facto que Dave já tinha visto muitos cadáveres; a pergunta do comissário não lhe tinha, pois, acertado como um insulto. Dave crescera em Hempstead, uma cidade conhecida em todo o Estado como Entroncamento dos Seis Tiros, mercê das permanentes disputas entre famílias e dos constantes tiroteios. Aos cinco anos, vira pela primeira vez o cadáver coberto de sangue de um homem baleado. Desde então, pelo facto de ter crescido em Hempstead e, mais tarde, pelo facto de ser jornalista do Statesman, tinha-lhe sido dado testemunhar os resultados de morte por apunhalamento, por queda, por inalação de fumo, por atropelamento, por envenenamento e por todo o tipo de doenças; por duas vezes, tinha mesmo assistido ao linchamento popular de homens negros acusados de violação. Nenhuma destas imagens fora bonita de se ver, mas nenhuma delas lhe tinha custado tanto a encarar como o corpo de Mollie Smith.
Parte da sensação de náusea, dizia para consigo, devia-se ao álcool ingerido na noite anterior. Esta manhã, ter-se-ia sentido sempre nauseado, independentemente do que quer que tivesse acontecido. Aliás, era verdadeiramente miraculoso não ter vomitado assim que o Comissário e o agente resgataram o corpo detrás do anexo e o depositaram no pátio, à vista de todos.
Agarrou no lápis e no bloco de notas e escrevinhou alguns pormenores e impressões ao acaso. Manter o cérebro ocupado ajudava a reprimir a náusea.
Com excepção da Sra. Hall, que estava acamada, Dave já tinha falado com todos os residentes do nº 901 da Rua Pecan, zona oeste, incluindo o quase completamente enfaixado e muito pouco coerente Walter Spencer, para quem os Hall tinham montado - não sem alguma relutância
- uma cama de campanha na cozinha. Dave tinha olhado para o quarto esparramado de sangue de Mollie e feito um esboço do mesmo. Tinha ainda medido o pátio em passos, por forma a ter uma ideia da distância a que o corpo tinha sido arrastado, e desenhado uma planta detalhada da propriedade.
O Dr. Burt, o médico da cidade, vinha a caminho para examinar o corpo antes que este fosse transportado para a morgue do hospital municipal. O Dr. Burt faria também um exame oficial a Walter Spencer. Dave tomou a seguinte nota: ”Pedir a Burt a sua descrição de perito de todos os ferimentos, causa de morte. Terá havido estupro?” Violação não era um termo que Gaines autorizasse no Statesman.
120Dave ergueu os olhos do bloco de notas. Pigarreou.
- Então, Comissário, já tem algum suspeito em vista?
- Conto fazer uma detenção dentro de uma hora.
A resposta expedita de Lee apanhara-o de surpresa.
- Quem?
- E achas que é a ti que vou dizer? Antes de ter o preso atrás das grades?
- Walter Spencer?
O comissário emitiu uma gargalhadinha desdenhosa.
- Não me parece. Talvez não tenhas entrevistado as pessoas da casa tão meticulosamente como eu. Walter Spencer e o proverbial touro de argola no nariz, para onde quer que Mollie fosse, ele ia atrás. Para além do mais, Spencer ficou praticamente morto.
- Não haja dúvida de que causa dó olhar para ele, com todas aquelas ligaduras ensanguentadas à volta da cabeça. Quer dizer que não acredita que tenha havido discussão entre ele e Mollie?
O comissário levantou uma sobrancelha.
- E depois? Achas que resolveram ferir-se à vez com aquele machado?
- Ainda não sabemos ao certo se os ferimentos de Walter foram provocados pelo machado - precisou Dave.
- Pois não! Como também não sabemos ainda ao certo se a cabeça de Mollie foi estraçalhada pelo machado. O melhor é deixar que o Dr. Burt nos faça chegar a sua opinião de perito. Mas deixa-me que te diga uma coisa: quando vejo duas pessoas com as cabeças rachadas e há um machado cheio de sangue no quarto delas, acho que não preciso de mais nada para deduzir o que se passou. A questão aqui é saber de onde veio o machado.
Dave concordou com um aceno de cabeça.
- O Sr. Hall diz que não tem nenhum machado na propriedade. Compra a lenha já cortada.
- Então pensa lá um bocadinho, Schoemaker. Achas mesmo que o nosso touro amestrado era capaz de premeditar este crime? Comprar ou roubar um machado, trazê-lo às escondidas para dentro de casa, esperar que escurecesse, e depois desferir uns golpes sobre a cabeça da namoradinha mandona, arrastá-la cá Para fora para o pátio e fazer-lhe o que poderia ter feito lá dentro debaixo dos cobertores? Não faz sentido. O Comissário Lee bateu com o indicador na testa. - Tenta raciocinar como detective, Schoemaker, para variar, em vez de pensares como jornalista.
121Dave rangeu os dentes.
- Então como é que vê a coisa, Comissário?
- É a história mais velha que existe. Basta responder a uma pergunta: quem é o terceiro homem deste triângulo? Esse indivíduo trouxe o machado consigo, encontrou os dois amantes na cama e tentou matá-los a ambos. Provavelmente pensou que tinha arrumado Spencer; deve andar por aí esta manhã, convencido de que tanto Spencer como Mollie se encontram mortos. Odiava Mollie a ponto de lhe ter rachado a cabeça, e amava-a a ponto de ainda se querer satisfazer com ela depois de a ter matado. Imagina um indivíduo ser capaz de se pôr em cima daquilo. Lee olhou para o cadáver com repugnância.
- Ainda não sabemos se ela foi violada. O comissário riu com desdém.
- O Dr. Burt há-de confirmá-lo. A não ser que prefiras ver por ti próprio. Vá lá, dá uma espreitadela. Eu não digo a ninguém. Vai lá ver se elas são iguais as brancas, em baixo. E vê se os negros esguicham a mesma mixórdia que nós. - O agente que acompanhava o comissário Lee soltou uma ruidosa gargalhada. Dave não conseguiu deixar de corar.
- Trata-se então de um crime passional? Parece-me de uma violência tremenda.
É preciso não esquecer que estamos a lidar com gente de cor. Tem a certeza de que foi um homem de cor?
O comissário abanou a cabeça ante a ingenuidade de Dave.
- Achas que um branco era capaz de fazer uma coisa destas? O tipo que fez isto tem mais de besta que de homem.
- Mas tem a certeza de que não foi Walter Spencer?
- O Spencer é dos mansos. Olha, Schoemaker, talvez a tua família não dispusesse de meios suficientes para possuir escravos. E, de qualquer maneira, presumo que sejas demasiadamente novo para te lembrares desses tempos. Não compreendes os negros tão bem como eu. Eles não são como nós; estão mais próximos do reino animal e, tal como acontece com os animais, pertencem a uma de duas categorias: a daqueles que trazem problemas e a daqueles que não dão problemas nenhuns. Nem sempre se consegue perceber a que categoria pertencem só de olhar para eles, mas com o tempo aprende-se. Alguns são completamente selvagens e nunca será possível domesticá-los. São demasiadamente perigosos para permitirmos que se aproximem das pessoas decentes e a única
122coisa a fazer é vermo-nos livres deles. A maior parte é bastante dócil e, desde que façam aquilo que lhes mandamos fazer, já agora também se lhes dá comida e abrigo. No entanto, até os mais dóceis podem vir a tornar-se ferozes. É preciso nunca baixar a guarda. E essa é uma das minhas obrigações: manter os negros debaixo de olho e saber distinguir os que podem vir a causar problemas daqueles que não oferecem perigo nenhum.
- Nesse caso, devia estar a olhar para o lado errado quando isto aconteceu.
Lee devolveu a Dave um olhar trocista.
- Vigiar-lhes os hábitos de acasalamento e impedir cenas de ciúmes entre eles não faz parte das minhas obrigações. Aliás, não faz parte das obrigações de ninguém, desde que o Sr. Lincoln levou a dele avante. Eles estão fora de controlo. E tens aqui uma prova das consequências que isso pode ter. Ainda assim, alguém tem de limpar a porcaria que eles deixam atrás e fazer com que a justiça prevaleça, de modo a proteger a paz das pessoas decentes, como aqui os Hall. - Lee olhou para o corpo nu de Mollie Smith. - Dizem que era bonita, para negra. Agora, já não há maneira de saber. Mas ainda se consegue perceber porque é que eles gostavam dela do pescoço para baixo.
Dave olhou noutra direcção e engoliu em seco.
- Pois bem, Comissário, quem é então o suspeito? Grooms Lee sorriu.
- Proponho-te o seguinte, Schoemaker, vem atrás de mim, como um bom cão de caça de notícias, e verás.
Durante aquele dia, a notícia da morte de Mollie Smith espalhou-se por toda a Austin.
A princípio, apenas um pequeno círculo de pessoas - o agregado familiar dos Hall e os seus vizinhos mais próximos - souberam do que se tinha passado. Assim que Tom Chalmers telefonou ao comissário da polícia de uma mercearia que ficava ali perto, o dono, que escutara a conversa, telefonou aos amigos. Enquanto isso, alguém de entre o pessoal da polícia telefonou a William Pendleton Gaines, do Statesman, e Dave Schoemaker foi, acto contínuo, enviado para o local, para fazer a cobertura da história. Após ter observado o cadáver e Walter Spencer, o Dr. Burt entrou em contacto com o Dr. Steiner para saber que tipo de tratamento tinha sido administrado aos ferimentos de que Spencer
123tinha sido vítima, pelo que o círculo de conhecidos de ambos os médicos, coincidente em vários dos seus membros, não tardou a saber do crime. O corpo de Mollie foi transportado para o hospital municipal, onde os boatos sobre o que se tinha passado depressa se espalharam pelo pessoal e não só. Quando, nessa tarde, o comissário fez uma detenção, a notícia do sucedido foi ventilada pelos trabalhadores da cadeia municipal.
Os boatos não tardaram a proliferar. Uma pessoa que tivesse sabido do assassínio ao fim do dia podia ter ouvido um pormenor a partir de uma fonte, outro pormenor de uma segunda fonte, e depois um terceiro pormenor, contraditório com os dois primeiros. Eram poucas as casas particulares que dispunham de uma ligação telefónica, mas a maioria das casas de hóspedes e dos estabelecimentos comerciais possuía telefone e as linhas ajudaram a espalhar as várias versões da história. Ao início da noite, milhares de pessoas sabiam alguma coisa sobre o homicídio, embora cerca de metade delas só possuísse informações exasperantemente incompletas, parcialmente verdadeiras ou, em alguns casos, a rondar o absolutamente fantástico. Houve pessoas que ouviram dizer que uma criada de cor tinha sido morta, o que era verdade; outras ouviram dizer que tanto a rapariga como o amante dela tinham sido assassinados; e outras ainda, ouviram dizer que os dois juntos tinham matado um membro da família Hall. Mais tarde ou mais cedo, toda a gente ficou a saber que o Comissário Lee tinha prendido um homem de cor no bar Black Elephant. Uma descrição fidedigna do caso teria de esperar pela manhã seguinte e pela edição de Ano Novo do Statesman.
Nessa noite, à mesa dos jantares em família e nas festas de Ano Novo que ocorriam um pouco por toda a cidade, havia quem falasse abertamente sobre o homicídio, mas a maior parte das pessoas evitou deliberadamente discutir um assunto tão desagradável, especialmente na presença de senhoras. Quando soaram as badaladas da meia-noite, o ano de 1884 estava tão morto como Mollie Smith.
124Will Porter passou a noite de Fim de Ano na mais completa ignorância em relação ao assassínio ocorrido na Rua Pecan, zona oeste.
Se tivesse estado a trabalhar na tabacaria de Harrell não poderia ter deixado de saber do caso, pois os clientes que entravam e saíam da loja não falavam de outra coisa. Mas, nessa noite, os seus serviços não tinham sido requeridos. Tivera passado o dia a mandriar pela sala de estar da casa de hóspedes e teria ouvido um chorrilho de boatos comunicados pelos outros residentes, que apareciam e desapareciam numa roda viva, carregando as novidades. Mas estava um dia belíssimo, com o ar crispado e um céu azul-pálido escovado de fresco pela nortada da noite anterior e, num dia de Inverno como este, Will não conseguia ficar dentro de casa. Se ele tivesse passado por um dos cafés da Avenida do Congresso, teria sido inevitável que se visse envolvido numa discussão sobre os estranhos acontecimentos da Rua Pecan, zona oeste; contudo, as finanças de Will estavam tão em baixo, que o simples acto de tomar um café na rua lhe parecia uma extravagância.
Enquanto Dave Schoemaker investigava o assassínio e a cidade de Austin em peso fervilhava de rumores, Will passou o último dia de 1884 a ”vagabundear”, como ele gostava de dizer - ou seja, procurando a companhia de vagabundos que, para quem sabia onde procurá-los, eram em grande número nos arredores de Austin.
À saída da casa de hóspedes, Will meteu pela Rua Mesquite, em direcção a oeste. Depois de ter andado cerca de cinco quarteirões, logo a seguir ao edifício de três pisos de elegante telhado em mansarda onde funcionava a escola secundária, encaminhou-se para o vale arborizado e pouco profundo que circundava a Ribeira de Shoal, onde se entrecruzava uma rede de trilhos que corriam ao longo da linha da água.
Em alguns troços, o caminho era tão estreito e engolfado pela vegetação, que uma pessoa quase podia imaginar que se encontrava no meio de uma floresta, a milhas de distância da civilização. Os carvalhos nodosos
125estavam pejados de visco parasita e de tufos de musgo. Tabaibeiras, inhames rugosos, arbustos odoríferos carregados de bagas e ervas silvestres de coloração pálida irrompiam pelas falhas onde o solo de calcário branco-creme estalara. Até então, o Inverno tinha sido ameno e, naquela altura, a abrilhantar a paleta composta pelo acastanhado das granzas, pelo verde-acinzentado das ramagens e pelo branco do terreno, viam-se pequenas extensões de ásteres cor de púrpura, de caule alto, com as suas folhas delicadas e espinhosas, e maciços de varas-de-ouro silvestres, desleixados e cheios de ervas daninhas, resplandecentes de florinhas amarelo-vivo.
Na orla da corrente cresciam fetos rendilhados. Aqui e ali, as saliências calcárias que marginavam o riacho tinham desabado ou erodido, formando degraus naturais que desciam até a agua, e entre as pedras dos quais se entrelaçavam raízes de árvores. O leito do riacho era adornado por fragas calcárias que se assemelhavam a peças de mobiliário de casas habitadas por gigantes. Num dos nichos assim formados, Will surpreendeu um grupo de vagabundos que se aqueciam como lagartos sobre as pedras batidas pelo sol. Descobriu um sítio onde podia acomodar-se e juntou-se a eles. E assim, com o som da água a gotejar por ruído de fundo, passou o resto do dia a ouvir as histórias e divagações de um grupo de maltrapilhos e de tontos.
Era possível que o lugar mais indicado para alguns destes vagabundos fosse o Manicómio do Estado, mas não tinham famílias que os internassem e, até ao momento, tinham conseguido evitar chamar sobre si a atenção do comissário da polícia. Outros davam simplesmente a impressão de terem sido abandonados pela sorte a dado momento das suas vidas. Will já conhecia a maior parte deles, pelo menos de nome. Havia um recém-chegado a este grupo: um indivíduo negro bem-parecido, que dizia chamar-se Alec Mack. Brancos e negros misturavam-se mais livremente entre os estratos errantes da sociedade.
Um dos elementos mais antigos do grupo era um homem grisalho, veterano da Guerra Civil, que respondia pelo título de Coronel. Vestia um uniforme cinzento manchado e remendado, decorado com medalhas que pendiam de tiras esfiapadas. O Coronel possuía uma provisão inexaurível de histórias sobre a Causa Perdida e, apesar de alguns dos seus relatos parecerem um tanto ou quanto inverosímeis, era raro serem aborrecidos e, por vezes, chegavam mesmo a deixar os cabelos em pé. Will não duvidava de que o velho tivesse estado envolvido em vários confrontos,
126embora já tivesse mais dificuldade em acreditar que tivesse vencido uma ou duas batalhas virtualmente sozinho. Era capaz de ficar a ouvir as histórias do coronel durante horas a fio, sobretudo se estivesse deitado sobre uma pedra aquecida, com tufos de musgo empilhados por almofada, contemplando o céu através de uma trama de ramos de carvalho e folhas pintalgadas pelo sol.
O dia começava a esvaecer. A luz do sol desaparecia sobre as copas das árvores e até o Coronel emudecera. Will começou a ficar com fome. Andarilhou para sul, ao longo do riacho, até chegar à ponte da Rua Pecan e depois amarinhou em passo rápido pela íngreme ladeira oriental, deixando para trás o leito do riacho. Atravessou a Rua Pecan no exacto lugar em que, na noite anterior, o cão fantasma tinha mordiscado os calcanhares de Lem Brooks.
Dirigiu-se a uma casinha que ficava na Rua Nueces, junto à linha de caminho-de-ferro e defronte de uma serração, onde uma mulher chamada Rodriguez vendia tamales a um cêntimo cada. Sentado num banco corrido no alpendre das traseiras da casa dessa mulher, Will comeu um prato de tamales e uma tigela de feijão catarino, que acompanhou com um copo de cerveja Lone Star. Jantavam também no alpendre outros comensais, todos eles mexicanos. O espanhol deles era demasiado rápido para que Will conseguisse seguir a conversa, mas percebeu várias referências a ”una mulata muerta” e perguntou a si próprio quem seria a mulher morta sobre quem eles falavam com tanta animação.
Chegou à casa de hóspedes pela hora do crepúsculo. A sala de estar e a cozinha estavam desertas. Não se ouvia um som no piso de cima. Os Harrell tinham planeado fazer a sua entrada no ano novo noutras paragens e já tinham saído. Os diversos residentes, ou tinham ido jantar fora, ou faziam uma sesta nos respectivos quartos, preparando-se para a grande noitada que se seguiria. Will retirou-se para o quarto e instalou-se na cama, sentindo no corpo o cansaço agradável de quem passou o dia inteiro ao ar livre. Sentia-se inspirado para fazer, de memória, uns esboços do Coronel e redigir algumas das histórias do velho. O trabalho prolongou-se noite dentro. Momentos antes de o relógio bater a meia-noite, adormeceu sobre a cama com o bloco de notas no colo.
E foi assim que, ao acordar no primeiro dia do novo ano de 1885, Will Porter se achava entre a pequena minoria de austinianos que desconhecia por completo o assassínio de Mollie Smith.
127Com excepção da cozinheira, foi o primeiro a acordar na casa de hóspedes. Ela já tinha começado a fazer café, mas informou-o de que o pequeno-almoço não seria servido senão dentro de pelo menos uma hora.
- Todos os outros tão ficando na cama até tarde - disse ela. - Não faz sentido eu fazê uma série de pequenos-almoços que vão ficá mais frios que pedras antes de serem comidos. - Will serviu-se de uma chávena de café, apanhou o jornal do chão do alpendre da frente e regressou ao seu quarto.
O Statesman compreendia oito páginas de caracteres pequenos arrumados em colunas estreitas, com as manchetes impressas em caracteres apenas ligeiramente maiores do que os do texto. O formato do jornal era sempre igual. A primeira página dava conta das notícias da nação e do Estado, que eram compiladas a partir de telegramas enviados pela Associated Press. A última página continha as notícias relativas aos mercados e incluía uma coluna intitulada ”Gado Garrido”. Entre estas duas páginas, havia secções dedicadas aos anúncios de carácter social, às reuniões da assembleia municipal, às actas das sessões legislativas sempre que se estava em período de exercício da legislatura, aos processos que corriam em tribunal, aos horários dos comboios, as ”Notícias do Texas” (informações publicadas noutros jornais do Estado do Texas), uma coluna de diversos encabeçada pela designação ”Breves Instantâneos Locais - Torrões de Informação e Casos Pungentes de última Hora”, pequenas notícias internacionais e uma extensa coluna na qual William Pendleton Gaines proclamava a sua visão editorial a respeito de tudo, desde o problema da mão-de-obra chinesa na Califórnia até às mais recentes tendências da moda feminina.
O Statesman continha ainda anúncios publicitários a vários restaurantes e estabelecimentos comerciais da cidade. Destes, alguns apresentavam-se com ilustrações e um tipo de caracter elegante, mas a maioria era publicada sob a forma de texto - ora tão pequeno que cabia numa única frase, ora ocupando um parágrafo inteiro - e intercalada entre as notícias propriamente ditas, tornando-se quase indistinta destas. Como não tinha dinheiro, Will não tinha interesse nenhum na publicidade; apesar disso, e contra a sua vontade, acabava às vezes por ler um ou outro anúncio, atraído por um título que lhe captava a atenção, e só se apercebendo de que se tratava de um anúncio ao chegar ao fim. Um dia, tinha-se queixado a Dave Schoemaker deste truque baixo. Dave rira-se,
128dizendo-lhe que a intenção dos anunciantes era justamente essa. Por vezes, chegavam a pedir que fosse um dos redactores do jornal a escrever o anúncio. O próprio Dave já tinha perdido a conta às colunas de publicidade que escrevera. Se as pessoas que escreviam as notícias eram as mesmas que escreviam os anúncios, não era de admirar que os leitores tivessem dificuldade em distinguir umas dos outros.
Will tanto lia a primeira página como não. Se a notícia fosse uma declaração do Presidente Cleveland sobre a política face aos índios, ou um debate travado em sede de Congresso sobre o traçado dos caminhos-de-ferro, Will passava a frente. Uma reportagem dando conta de um confronto sangrento entre a polícia e os anarquistas de esquerda do Norte já era coisa mais susceptível de lhe chamar a atenção, e lia de fio a pavio todas as histórias - e não eram poucas - que se relacionassem com linchamentos, assassínios, bandos de fora-da-lei e suicídios passionais.
A avaliar pelas páginas do Statesman, os linchamentos eram tão frequentes quanto os julgamentos em tribunal, pelo menos nos Estados do Sul. A situação mais comum era a vítima ser um negro acusado de violação ou de assassínio, mas havia excepções. Havia casos em que uma disputa de partilhas entre vizinhos culminava em fogo cruzado e homicídio, e em que a populaça da zona apanhava os assassinos e os enforcava sumariamente. Os homicídios de todo o tipo eram prática corrente, havia relatos de tiroteios, apunhalamentos, envenenamentos e espancamentos até à morte provenientes de todos os Estados, o que levava Will a imaginar que um homem que percorresse a pé a distância entre o Texas e o Maine estaria constantemente a tropeçar em cadáveres. Muitas das histórias relacionadas com quadrilhas de fora-da-lei passavam-se em diversos pontos do Texas. Ainda existiam cidades inteiras governadas por bandos de criminosos e, em algumas zonas do sul e do oeste do Texas, travava-se há anos uma autêntica guerra entre os clãs de foragidos e as companhias de Rangers do Texas.
Mas de todas as histórias mórbidas que apareciam nas primeiras páginas, eram as de suicídio as que mais fascinavam Will. Dava a impressão de serem imensos, tanto de homens como de mulheres. E, com excepção dos que se enforcavam e dos que se atiravam de uma ponte abaixo, todos os demais recorriam invariavelmente à morfina. Nos tempos em que vivera em Greensboro, onde lhe tinha sido permitido aviar
129receitas na loja do tio, Will tinha vendido uma quantidade bastante razoável de morfina aos clientes. Cedo começou a detectar os que eram viciados no produto, pois apareciam na loja muito amiúde. No entanto, olhando para trás, Will dava por si a pensar naqueles que só tinham ido a loja algumas vezes - as suficientes para perfazer a aquisição da dose adequada para uma morte calma e imperturbável. Teria alguma vez vendido morfina para um suicídio? Naquela altura, era tão novo que nunca dera importância ao assunto. Agora, sempre que lia uma notícia de suicídio com morfina, dava por si a pensar nisso.
Na primeira página da edição de hoje não havia menção a nenhum suicídio, nem nada que lhe parecesse suficientemente interessante. Folheou as páginas seguintes passando os olhos ao acaso pelas diversas colunas, para os deter num pequeno artigo.
SEJA BRANDO COM AS CRIANÇAS
”Ou páras de chorar imediatamente, rapaz, ou garanto-te que te dou razões para estares nesse berreiro.” Quando tais palavras são ditas a um rapazinho que está a choramingar, ele fica sem saber se deve parar de chorar ou se deve continuar. Do que ele não tem a mínima dúvida é de que a velha tia irritada que as profere é uma criatura odiosa. E o que é que a faz ser odiosa? Talvez a dispepsia. Ou um mau funcionamento do fígado. Em qualquer destes casos, ofereça à tia irritada um frasco do Tónico, para o Fígado e Purgante de Gengibre do Dr. Terry e contribua para que ela seja uma pessoa saudável e feliz.
Will desatou a rir. Tinha caído mais uma vez na esparrela! Pensou se não teria sido Dave a escrever a peça.
Estava a apetecer-lhe uma segunda chávena de café - e aquele cheirinho que lhe chegava às narinas seria bacon? Já estava a dobrar o jornal quando uma manchete o deteve.
TRABALHO SANGRENTO! Assassínio tenebroso à meia-noite na Pecan, zona oeste - crime e mistério
Uma mulher de cor assassinada e o amante deixado quase morto
Às primeiras horas da manhã de ontem, ocorreu na cidade um dos homicídios mais horríveis que um jornalista foi alguma vez chamado a reportar, um feito quase sem paralelo no que toca à atrocidade com que foi executado.
130A notícia estava cheia de pormenores escabrosos - a descoberta do cadáver de Mollie Smith (”praticamente nu”, lia-se), a descoberta de um machado coberto de sangue, uma descrição do quarto da mulher, ”atolado em sangue” e uma descrição mórbida dos ferimentos infligidos a Walter Spencer. Will continuou a ler.
O Comissário Lee prendeu William Brooks, conhecido por Lem Brooks, um jovem de cor que trabalhava como empregado de balcão no bar Black Elephant, situado na Rua Pecan, zona leste. Quando inquirido por este repórter, na cadeia, Brooks prestou o seguinte depoimento:
”Conheci a mulher, Mollie Smith, em Waco mas separamo-nos ainda antes de eu ter vindo para Austin e nunca tive nada a ver com ela desde que aqui vivo. Sabia que ela tinha outro homem e limitava-me a falar com ela quando por acaso nos cruzávamos na rua. Estou completamente inocente do assassínio dela. Posso provar, com um número imenso de testemunhas, que estive num baile em Sand Hill até as quatro da manhã, e que fui o mestre-sala desse baile. Apanharam o homem errado.”
Na casa de hóspedes onde Brooks vive, e para onde disse ter-se dirigido depois de ter saído do baile, o repórter perguntou a Rosie Brown, a mulher de cor que gere o estabelecimento, a que horas tinha Brooks entrado em casa. ”Entre as duas e as três da manhã”, respondeu ela. ”Tem a certeza disso?”, foi-lhe perguntado. ”Sim senhor, tenho a certeza, porque quando ele entrou lá em baixo no vestíbulo derrubou o cesto dos guarda-chuvas e eu acordei com o barulho, presumindo que ele estava bêbedo, até porque estava a falar sozinho num tom muito agitado. Tive dificuldade em voltar a adormecer e quando olhei para o meu relógio vi que eram duas horas e meia.”
Cumpre recordar que Brooks alegou ter saído do baile às quatro da manhã. Caso Brooks tivesse ido directamente para casa, teriam de ter passado pelo menos 20 minutos antes de ter tido tempo de chegar ao quarto. Vários negros confirmam que Brooks esteve no baile do princípio ao fim e o mais natural é a senhoria ter-se enganado ao ver as horas.
Will pousou o jornal com um estremecimento.
Não havia dúvida de que existia no ar um cheiro de bacon a rechinar. Dobrou cuidadosamente o jornal do Sr. Harrell, pegou na chávena de café vazia e seguiu o seu nariz até ao andar de baixo.
13110
Lem pôs-se nas pontas dos pés para espreitar pela janela da sua cela. Era uma janela pequena com barras de ferro cuja disposição cruzada formava pequenas quadrículas. A cela ficava no andar superior de um estabelecimento prisional de dois pisos e a janela tinha sido colocada tão alto, que o máximo que ele conseguia ver era um pequeno quadrado de céu e um dos vértices da Direcção-Geral do Território. Se se agarrasse as barras da janela e içasse o corpo, conseguia ver, do lado oposto da rua, um pedaço dos terrenos do Capitólio.
Lem estremeceu e envolveu-se num abraço. Estava um dia de sol e, a avaliar pela maneira como as pessoas que conseguira vislumbrar lá em baixo a passear estavam vestidas - sem casacos compridos nem luvas -, parecia que o dia de Ano Novo tinha aquecido agradavelmente. Dentro da cela, a temperatura era tão fria como dentro de um armazém de conservação de carne. A luz do sol franjeava a fachada norte do edifício sem chegar a penetrar no interior, logo sem chegar a aquecer as pedras, as barras de ferro e o cimento armado. Devido a sua cabeça careca, Lem era mais sensível ao frio do que a maior parte dos rapazes da sua idade.
Quando entrara na cela, havia um cobertor de lã sobre a enxerga, mas estava sujíssimo e cheirava a mijo. Lem ainda tentara cobrir-se com ele durante a noite, mas acabara por desistir, incapaz de suportar o cheiro. A meio da noite, num acesso de fúria, tinha enfiado o cobertor por entre as grades da cela, arremessando-o depois para o chão do corredor, posto que gritou pelo guarda prisional que fazia o turno da noite. Quando homem chegou finalmente ao cimo da escada e lhe perguntou o que é que ele queria, Lem disse-lhe que aquele cobertor tresandava e pediu outro. O homem pôs uma cara de gozo e abanou a cabeça.
- Devias ter-te contentado com o que te deram - respondeu-lhe, voltando a descer as escadas.
132o cobertor fedorento estava no meio do chão do corredor, no sítio para onde Lem o tinha atirado, feito numa rodilha. Parecia-lhe estar fora do seu alcance, embora Lem não estivesse absolutamente certo disso; até ao momento, o seu orgulho impedira-o de tentar alcanÇá-lo.
Passara um longa noite insone na enxerga dura. As horas soturnas passavam tão devagar como melaço frio a escorrer da cuba e Lem teve tempo de sobra para reflectir no que o tinha levado a encontrar-se naquela situação. Por fim, a cela clareou, dando início ao Primeiro dia completo do seu cativeiro. Que maneira de inaugurar o ano novo!
Alguém tinha matado Mollie Smith.
E, pelos vistos, também tinham tentado matar o novo amante dela. À machadada! Sentia-se nauseado só de imaginar uma cena tão chocante - a bela Mollie, de cabeça rachada a meio. O guarda tinha dito que, depois de lhe terem dado com o machado, a tinham arrastado para o pátio das traseiras e a tinham violado. Que género de homem seria capaz de fazer tal coisa a uma mulher moribunda, ou já morta? Lem não!, disso podiam ter a certeza. Tremia só de imaginá-lo. As coisas mortas aterrorizavam-no, e a ideia de ter relações sexuais com um cadáver era a coisa mais tenebrosa que alguma vez lhe passara pela imaginação. Qualquer pessoa que o conhecesse sabia que Lem Brooks era o último homem do mundo capaz de fazer tal coisa.
Para além do mais, o comissário dissera que Mollie tinha sido morta antes das quatro da manhã porque, entre as três e as quatro, Walter Spencer acordara Tom Chalmers para lhe mostrar os ferimentos que tinha. E onde estivera Lem até às quatro da manhã? Havia dúzias de testemunhas prontas a jurar que ele não tinha arredado pé do baile até quase as quatro e, depois disso, tinha passado pelo menos vinte minutos a andar até chegar a casa. Tinha descido a Pecan, zona leste, passado diante do Black Elephant e percorrido toda a Avenida na companhia de Caesar Barrow, John Tom Jackson e Henry Soloman.
A tonta da senhoria é que tinha provocado toda esta confusão. Ao que parece, Lem tinha acordado Rosie Brown ao entrar em casa e ao subir para o seu quarto, ela tinha olhado para o relógio da mesinha-de-cabeceira e, por qualquer motivo, convencera-se de que eram entre as duas e as três. Isto fora o que ela dissera ao Comissário Lee e, apenas com base na palavra dela, Lem tinha sido preso. Uma velhota estremunhada que acorda a meio da noite ao ouvir qualquer coisa - e dá-se crédito
133as palavras dela? O mais provável era Rosie Brown nem ser capaz de ver o relógio da mesa-de-cabeceira sem os óculos postos. Ela não mentiria deliberadamente, pensou Lem, mas podia ter-se enganado. Se uma pessoa confundisse o ponteiro pequeno com o ponteiro grande, cinco horas e dez minutos - que foi, provavelmente, a hora a que Lem chegou efectivamente a casa - podiam perfeitamente ser tomadas por duas horas e vinte e cinco minutos!
Lem tinha pensado em dar a conhecer esta explicação ao Comissário Lee, mas havia um problema. Se os amigos o tinham deixado na Avenida pouco depois das quatro e se Lem não tinha chegado a casa - a escassos dois ou três quarteirões dali - senão depois das cinco, que justificação poderia apresentar para a hora que faltava? A última coisa que Lem podia fazer era contar a verdade.
Isso é que tinha sido um erro crasso - em vez de ter ido directamente para o seu quarto na Rua Lavaca, Lem pusera-se a pensar em Mollie e encaminhara-se para a casa dos Hall. Qual era a probabilidade de, justamente na noite em que ele decidira fazer uma visita a Mollie Smith, alguém ter decidido matá-la e violá-la? Não era o género de coincidência capaz de impressionar o comissário da polícia, nem um juiz, nem um júri.
E se alguém o tivesse visto descer a Rua Pecan, zona oeste, em direcção à casa dos Hall? alguém que, à clara luz do luar dessa noite, tivesse conseguido identificar o seu rosto? Lem não se lembrava de ter passado por ninguém a tão curta distância, mas não garantia que tal não tivesse acontecido. Na história que contara ao comissário, dissera que tinha seguido directamente para a casa de hóspedes depois de se ter separado dos amigos na Avenida. Não era exactamente uma mentira, mas também não era exactamente verdade. E se houvesse uma testemunha em posição de desmascarar a mentira? De que lhe serviriam os seus álibis?
Encurralado na sua cela, incapaz de pregar olho, passando continuamente em revista todos os momentos dos últimos dois dias, Lem acabava sempre por ir dar à mesma fantasia terrível. Era como estar constantemente a tocar num dente que dói; não conseguia evitá-lo. O seu raciocínio forçava-o a entrar num círculo, que o conduzia sempre ao pior desfecho passível de ter acontecido naquela noite.
E se ele não tivesse voltado para tras na ponte da Ribeira de Shoal? E se tivesse atravessado a ponte até ao fim e feito exactamente o que
134
tinha em mente, que era entrar clandestinamente em casa dos Hall para tentar despertar Mollie?
Pensou e repensou este cenário tantas vezes, que quase o podia descrever como se tivesse acontecido assim, como se fosse uma memória e tivesse deixado de ser apenas uma fantasia mórbida. Lem via-se a si mesmo a bater ao de leve na janela das traseiras e a espreitar para o interior do quartinho envolto em escuridão, a experimentar a fechadura, descobrindo que a porta não estava trancada, a entrar pé ante pé pelo quarto de Mollie adentro, avançando no escuro às apalpadelas e sentindo qualquer coisa húmida, pegajosa e morna a agarrar-se-lhe às mãos
- isto porque, segundo se dizia, tudo o que havia no quarto se encontrava ensopado de sangue, o sangue cobria o chão e as paredes. Lem via uma porta aberta a balouçar, uma lâmpada que o cegava e uma voz que gritava ”Assassínio! Assassínio!” e ele ali especado, com as mãos cheias de sangue e um machado ensanguentado aos pés.
Numa situação destas, de que lhe valeria o seu álibi? Teria alguma importância que uma centena de pessoas jurasse a pés juntos que ele estivera em dado lugar a determinada hora? Se ele tivesse persistido nos seus planos e continuado a andar até ao quarto de Mollie, e tivesse sido apanhado... Lem imaginou a cena com tanta nitidez, que o seu corpo se contorceu num espasmo violento, faltou-lhe a respiração e gotas de suor inundaram-lhe a fronte.
Mas algo o impedira de atravessar a ponte da Ribeira de Shoal. O cão fantasma.
já no seu quarto, na casa de Rosie Brown, Lem tinha-se rido da sua figura, e em particular da ideia de o fantasma da sua querida Avó Sooty se ter transformado num cão que o perseguira por meia Austin mordendo-lhe os calcanhares. Horas mais tarde, quando acordou, ainda se ria da sua parvoíce e foi ainda a sorrir que penetrou na cozinha de Rosie Brown. com o intuito de respigar um pequeno-almoço tardio.
Nisto, apareceu o comissário à sua procura e Lem viu os portões do inferno escancarados diante de si.
Neste momento, Lem já não tinha a mínima dúvida sobre o que se Passara na ponte da Ribeira de Shoal. Tinha visto um cão fantasma. Lem dirigia-se a um sítio perigoso e o cão fantasma perseguira-o até ele se encontrar fora de perigo. Estava praticamente convencido de que aquele
135cão fantasma era, na realidade, a Avó Sooty, que tinha vindo do além-mundo e feito tudo o que estava ao seu alcance para o proteger. Mas teria sido suficiente?
Lem teve um arrepio e voltou a envolver-se nos seus próprios braços. Não sabia que um homem podia sentir-se tão miserável. Olhou para o cobertor que continuava no chão. Aproximou-se das grades sem desviar os olhos do cobertor. Pôs-se de gatas no chão sujo e frio. Uma corrente de ar fez-lhe chegar ao nariz o pivete a mijo. Quanto mais rente ao chão estivesse, mais forte era o cheiro. Pôs-se de lado e tentou forçar o ombro por entre as barras. Estendeu o braço. A ponta do dedo médio mal conseguia tocar na lã grosseira. Se lhe chegasse com dois dedos, talvez conseguisse agarrá-la o suficiente para conseguir puxar o cobertor até si. Franziu o nariz e pressionou o corpo contra as grades com mais força. Agitou os dedos, mas apenas conseguiu que o dedo médio empurrasse o cobertor um nadinha mais para longe.
Não valia a pena. O cobertor estava fora do seu alcance.
Lem levantou-se do chão, sacudindo o lixo e as pedrinhas que se lhe tinham agarrado à roupa. Tinha ficado nojento e o facto de ter estado deitado nas lajes geladas fizera com que sentisse ainda mais frio. O cheiro fétido da urina tinha-se-lhe instalado de vez nas narinas. Olhou com raiva para o cobertor, furioso consigo por tê-lo arremessado para tão longe e envergonhado por ter tentado recuperá-lo.
Voltou-se na direcção da janela e ficou a observar o retalho de céu azul sem nuvens sobre o qual figurava o xadrez das barras de ferro. Se a sua cara não estivesse tão fria, teria chorado.
- Por que é que ainda te esforças, Avó Sooty? - sussurrou. - Por que é que ainda te esforças?
- Raios partam o Juiz Von Rosenberg por ter proibido a entrada do raio dos repórteres no raio da sala de audiências! - Dave Schoemaker bateu com o fundo da caneca vazia no tampo da mesa. A verdade é que, neste momento, era ele quem dirigia a sessão no ScholZ’S Beer Garden, a nordeste dos terrenos do Capitólio, na Rua de San Jacinto.
O Scholis era um estabelecimento amplo, com salas de jantar, salas de reunião, um bar e uma cozinha, e cuja característica mais apreciada era o terraço ao ar livre que ficava nas traseiras - um espaço festivo, decorado com chafarizes borbulhantes e catatuas exóticas, expostas em gaiolas
136douradas. Enquanto uma banda de metais tocava uma melodia cadenciada, os empregados de avental comprido serviam enormes quantidades de cerveja, circulando por entre as mesas cheias e, de tempos a tempos, espantando os pavões que cirandavam livremente pelo chão de cascalho do terraço. Mais de uma dúzia de homens, Will Porter entre eles, tinha puxado as cadeiras desdobráveis de madeira para formar um semicírculo em redor da mesa de Dave, cientes de que, se alguém tivesse informações novas quanto ao andamento do inquérito sobre o assassínio, esse alguém seria Schoemaker.
A tarde já ia avançada nesta segunda-feira, o quinto dia do novo ano, que era também o quinto dia do cativeiro de Lem Brooks.
- Raios o partam! - disse Will, juntando o seu ultraje ao de Dave, batendo com a caneca na mesa.
Um dos outros chamou a atenção de Will.
- Tento nessa lingua, rapaz!
A pequena multidão riu-se deste comentário, embora a advertência fosse, pelo menos, meio a sério. O ScholZ’S orgulhava-se de ser, não um bar, mas um jardim da cerveja, que fazia jus à melhor tradição alemã do género: era um estabelecimento respeitável que mulheres e crianças se podiam arriscar a frequentar sem receio de se exporem a linguagem ordinária ou a comportamentos impróprios. A gestão do Scholz’s estava sob os auspícios da Sociedade Germânica local, que se reunia periodicamente na sala de reuniões do próprio ScholZ’S. Nos meses de maior calor, a Sociedade patrocinava, para além dos concertos que tinham lugar no terraço, largadas diurnas de balões e espectáculos nocturnos de fogo-de-artifício. Tal como se lia no anúncio publicado no Statesman: ”Não será admitida a presença de indivíduos que exibam comportamentos impróprios e a gerência reserva-se o direito de pedir referências aos visitantes a qualquer momento.” O Scholz’s ficava bem longe de Guy Town, tanto geograficamente como noutros aspectos, mas, quando tocava a apreciar uma boa caneca de cerveja alemã, não havia outro sítio em Austin que se lhe pudesse comparar, conquanto um homem moderasse a sua linguagem e refreasse o seu temperamento.
- É certo que, de momento, não vejo nenhuma senhora por estes lados - disse o homem que tinha chamado a atenção de Will -, pelo que dois ou três ”raios” não farão com que sejamos postos na rua. Mas, quanto a mim, o Schoemaker devia ter mais cuidado com as palavras
137com que conspurca o nome do Juiz da Paz Von Rosenberg. Não sei se te dás conta mas, adentro destes portões, estamos em solo alemão!
- Como se Schoemaker não fosse tão alemão como Van Rosenberg!
- insurgiu-se Dave. - Os meus pais é que não sabiam escrever.
- E legaram-te essa pecha, a avaliar pelas atrocidades ortográficas que leio no Statesman! - disse o homem. Embora este comentário tenha provocado uma gargalhada geral, a verdade é que a maioria dos presentes olhava para os dotes literários de Dave com uma pontinha de veneração. Todos os homens daquele círculo tinham menos de trinta anos e eram, na sua maioria, escriturários, quer de bancos, quer de firmas comerciais ou do Estado. Passavam o dia inteiro encafuados em escritórios, a adicionar e dispor números em colunas, a redigir encomendas e a dar resposta a correspondência. Por comparação, a vida de Dave parecia-lhes arrojada e aventureira.
De entre todos, o de personalidade mais vincada era William. Shelley
- o homem que tinha dirigido o comentário a Will e que se entretinha agora a espicaçar Dave. A família de Shelley tinha conhecimentos no governo estadual, o que explicava o facto de, aos vinte e sete anos, ele ocupar o cargo de assessor de Swain, o Fiscal de Contas, auferindo um salário anual de 1300 dólares. Shelley era solteiro e vivia em casa do pai, na encosta ocidental da Ribeira de Shoal, conhecida por Colina do Castelo devido ao edifício da academia militar, de torreão ameado, que a encimava. Shelley tinha frequentado a academia nos seus tempos de rapaz e, entre ter um advogado por pai e ter recebido uma formação militar em tenra idade, adquirira uma conduta ríspida e autoritária que lhe servia às mil maravilhas no gabinete do Fiscal de Contas. Will Porter achava Shelley intimidante. Ja Dave parecia retirar prazer de uma certa picardia verbal com ele.
Will desapertou o lenço que trazia ao pescoço. A temperatura era a ideal para se estar sentado ao ar livre, acompanhado, gozando o calorzinho do sol e uma boa caneca de cerveja tépida. Will observou dois dos pavões da casa, que se bamboleavam em passo altivo até ao chafariz mais Próximo para saciar a sede. O macho sacudiu-se e abriu a plumagem. A fêmea soltou um guincho e afastou-se com ar empertigado. O macho seguiu-a pomposamente.
- Audiência à Porta fechada! - disse Dave. - Van Rosenberg não perdeu tempo. Convocou o painel do júri logo no dia de Ano Novo,
138prosseguiu os trabalhos na sexta-feira e no sábado, fez uma interrupção no dia do Senhor e voltou a por mãos à obra hoje. E, até agora, nem uma declaração oficial sobre o andamento do inquérito. Proibida a entrada de jornalistas na sala de audiências, aliás, proibida a entrada seja de quem for, à excepção dos funcionários, das testemunhas e do júri do inquérito!
- É um júri de doze? - perguntou Shelley.
- De seis.
- Algum homem de cor?
- Não saiu nenhum no sorteio. Mas ha uma peculiaridade neste júri, metade dos convocados é condutor de trens de aluguer!
- Provavelmente dão bons jurados; tem obrigação de ser bons juizes de carácter - declarou Shelley. - E quem mais foi apanhado pelo Von Rosenberg para o júri?
- Um guarda dos caminhos-de-ferro, um carpinteiro e um dos ajudantes do xerife, Bill Pace, que é o porta-voz.
- E não podes entrevistar nenhum deles fora do tribunal, para tentar perceber o que se está a passar? - perguntou Shelley.
- Pareces o Gaines! É evidente que fiquei ca fora à coca, como gato à frente da toca do rato, e encurralei cada um dos jurados à medida que iam saindo.
- E ...?
- Não consegui arrancar-lhes nem um sopro! Von Rosenberg obrigou-os a jurar segredo de justiça, testemunhas, júri, toda a gente! Deve ter-lhes calado a boca. Eu devia era estar lá dentro, raios, sentado na primeira fila, a espreitar por cima do ombro do estenógrafo e a tirar notas. O Statesman é os olhos e os ouvidos do povo. Isto é um ultraje!
- Raios! - disse Will, batendo novamente com a caneca na mesa. William Shelley dirigiu-lhe um olhar frio.
Um dos empregados acercou-se da mesa com ar altivo. Abanou a cabeça, fazendo balouçar o bigode de pontas caídas.
- Meinen Herren! Tem de ter cuidado com a vossa língua, por favor!
- A nossa língua? - Will subiu o tom de voz uma oitava. - Chama-se... in-glês - disse, silabando as palavras como um professor. Dave deu-lhe um pontapé por baixo da mesa.
O empregado ofendeu-se e agitou o dedo na direcção de Will, num gesto de reprovação.
139- Para si, menjugend. a-ca-bou-se... a... cer-ve-ja! E quanto a vós, cavalheiros, posso trazer-vos mais alguma coisa?
- Mais uma rodada! - disse Dave. Ergueu a caneca, gesto em que foi secundado pelos outros.
- Oh, é para já. - O empregado afastou-se em passo rápido, conseguindo desviar-se habilmente de um pavão espampanante que se atravessou no seu caminho sem pré-aviso, e quase colidindo com um rapaz ruivo de calças curtas que passou por ele disparado e só parou de correr quando chegou a mesa de Dave. Era Tommy, o moço de recados, com um bocado de papel firmemente apertado entre os dedos.
- Sr. Schoemaker! - gritou o rapaz.
- Olha se não é o diabo em pessoa! O que há de novo, Mefistófeles?
- Sr. Schoemaker, o inquérito foi concluído. O juiz Von R. acaba de emitir o veredicto! Trago aqui uma cópia para si!
- Não é um veredicto, seu palerma! Dá ca isso! - Dave arrancou o papel das mãos de Tommy. Os outros convivas aproximaram-se, mas Dave afastou-os com os cotovelos. Espreitou a mensagem manuscrita no papel pautado e abanou a cabeça. - Nem uma palavrinha a que possa chamar-se novidade. Não conseguiram descobrir mais do que eu!
- O que é que diz? - perguntou Will. Dave leu em voz alta.
- ”Nós, o júri do inquérito que se debruçou sobre o caso de Mollie Smith, apurámos que ela faleceu entre as 10 horas da noite de 30 de Dezembro e as 3 horas da manhã de 31, em resultado de ferimentos na cabeça provocados por um machado, e somos de opinião que os mencionados ferimentos foram infligidos por um tal Lem, de seu nome William Brooks.” - Dave voltou o papel do avesso, como se estivesse à procura de mais informação. - E é tudo! E estive eu todo este tempo a recear que eles puxassem da cartola uma revelação surpreendente e que me obrigassem a fazer ma figura junto de Gaines por não ter sido eu a descobrir o assassino.
- Então foi mesmo esse tipo negro, o tal Lem Brooks - disse Shelley.
- Disparate! - retorquiu Dave. - Ele tem testemunhas e um álibi que o põem a milhas de distância do local do crime até bastante depois das três da manhã.
Shelley cruzou os braços e encostou-se para trás, fazendo estalar o cascalho sob as pernas da cadeira.
- Talvez os jurados saibam de coisas que tu desconheces.
140- Tenho sérias dúvidas quanto a isso. Eles limitaram-se a seguir o exemplo do Comissário e foram atrás do primeiro negro cujo nome foi pronunciado. Limitaram-se a ser tão preguiçosos quanto ele.
Will suspendeu a respiração e fez sinal a Dave que olhou por cima do ombro, dando de caras com o Comissário Lee.
O Comissário levou a ponta dos dedos a pala do chapéu.
- Boa tarde, Schoemaker. Acabo de ver o teu colega Júnior a entrar por aqui a correr. - Olhou de frente para Tommy, que desviou o olhar.
- Creio que ele já te transmitiu a boa nova. Agora, podes ir tu a correr ter com Gaines e escrever as novidades, para toda a gente as ler na edição de amanhã.
Dave examinou atentamente o Comissário durante um longo momento.
- ”Novidades” implica que haja algo de novo para relatar, Comissário. E parece-me a mim que os resultados do inquérito cheiram a ranço.
- Achas que sim? Bem, por estas paragens as decisões são tomadas por juízes e por jurados; não por jornalistas.
O empregado regressou, equilibrando uma bandeja numa das mãos e uma cadeira desdobrável na outra. Em cima da bandeja, viam-se um jarro de cerveja coberto por uma espessa camada de espuma e uma caneca cheia que Grooms Lee aceitou sem sequer esboçar um aceno de agradecimento. O empregado desdobrou expeditamente a cadeira com um meneio de pulso e assentou-a no cascalho, mesmo ao lado do Comissário Lee, que continuou de pé.
- Parece-me bastante óbvio que tem um inocente na cadeia - disse Dave. - E o facto de ter convencido três condutores a soldo, um guarda, um carpinteiro e um dos agentes do xerife a concordar consigo não me parece especialmente persuasivo. O resultado do inquérito não é um veredicto; é a opinião de seis homens e nada mais. E é exactamente isto que vai ser publicado no Statesman de amanhã.
- Como queiras. - O Comissário Lee encolheu os ombros e tomou um golo de cerveja. - Mas estás a deixar escapar o óbvio.
- Como assim?
- Em primeiro lugar, presta atenção à proveniência do álibi apresentado por Lem: um grupo de negros bêbedos que estiveram a dançar em Sand Hili. Eles protegem os seus.
- E Mollie Smith, não era uma dos deles? O Comissário apertou os lábios.
141- até tu devias ser capaz de perceber que estou a fazer um enorme favor a Lem Brooks ao mantê-lo preso; na cadeia, ele está em segurança. Há muito tempo que Austin não assiste a um linchamento e eu tenciono fazer com que as coisas continuem assim. As pessoas estão bastante agitadas; uma criada negra morta à machadada na propriedade do patrão, dentro da própria casa. Podia ter sido a Sra. Hall. Seis cidadãos respeitáveis ponderaram sobre as provas e declararam que eu procedi correctamente ao prender Lem Brooks. Se não o tivesse feito, Lem estaria agora, ou a milhas de distância, ou pendurado na árvore mais próxima. Alguém tem de agir responsavelmente nesta cidade, Schoemaker, quer a imprensa diária escolha fazê-lo, quer não.
Dave pousou a caneca vazia sobre a mesa e levantou-se.
- Por falar em responsabilidades, Comissário, tenho prazos a cumprir. Se os senhores me dão licença...
- Um momento, Schoemaker - disse William Shelley -, se bem me recordo, foste tu que pediste a última rodada! Quem a vai pagar?
- Façam de conta que estão na igreja, cavalheiros, e façam uma colecta!
Dave e Tommy saíram no meio de uma gargalhada colectiva. Enquanto as canecas dos que ficavam eram novamente enchidas, o comissário, ignorando a cadeira que o empregado lhe tinha trazido, apossou-se do que fora o lugar de Dave, no centro do grupo.
Vários dos presentes precipitaram-se de imediato com perguntas.
- Para quando é que acha que eles vão marcar o julgamento, Comissário?
- Quanto tempo vão demorar a enforcar o preto?
- Os meus parabéns pelo seu trabalho, Comissário.
- Na melhor tradição de um verdadeiro Ranger do Texas!
Quando o jarro passou por ele, Will declinou, tapando a caneca com a mão. Aproveitou a agitação para se despedir e encaminhou-se para a porta. Sem Dave por perto, não se sentia muito à vontade no meio daquele grupo. O Comissário Lee intimidava-o ainda mais do que William Shelley. Para além disso, era Dave quem lhe estava a pagar as cervejas e Will não tinha a mínima vontade de ser humilhado quando chegasse o momento de contribuir para o pagamento da rodada.
14211
Lem dormia um sono intermitente quando o barulho do bastão do guarda a bater nas grades o acordou com um sobressalto. Lem sentou-se na enxerga de um pulo. Era a manhã de terça-feira e passara uma semana desde o último dia de vida de Mollie Smith.
Por esta altura, o rosto carrancudo do guarda já se tinha tornado uma visão familiar para Lem; hoje, porém, vinha acompanhado de outra pessoa, um homem negro e corpulento, de fronte alta e calva e barba grisalha. Este homem vestia um fato formal de domingo e usava gravata. Os sapatos estavam impecavelmente engraxados e brilhavam como espelhos negros.
- Bom, aqui o tem - disse o guarda. - Dê um grito se ele lhe cuspir. Eu estou lá em baixo. - Dirigiu um esgar a Lem e voltou costas.
Lem esfregou o sono dos olhos.
- Eu conheço-o, senhor?
O homem abanou a cabeça.
- Não creio que já nos tenhamos cruzado. Chamo-me William Holland. - O homem estendeu a mão por entre as grades. Tinha uma voz grave e falava como quem tem instrução.
Lem aproximou-se das grades.
- Eu sou o Lem Brooks.
- Sim, eu sei. - O homem cumprimentou-o com um aperto de mão firme e depois desviou o olhar, por forma a observar o interior da cela. Baixou ligeiramente a voz. - Como é que eles te tem tratado, filho?
- Decente, acho eu. Ninguém me bateu, se é isso que tá querendo perguntar.
- E dão-te comida suficiente? E agasalhos? Não vejo nenhum cobertor naquela enxerga.
- O que me deram fedia. Atirei-o para o corredor e eles se recusam a me dá outro.
- Bem, pode ser que se consiga remediar isso.
143Lem observou-o, intrigado.
- Quem é o senhor, afinal? É padre? Holland soltou uma pequena gargalhada.
- Não, sou apenas professor. Não creio que tenhas sido meu aluno... foste?
- Eu não andei em nenhuma escola de Austin, não.
- Oh, já ensinei em escolas para negros um pouco por todo o Texas. Mas não creio que tenha sido teu professor; se tivesse sido, lembrar-me-ia. Mas decerto tiveste alguma instrução. Fazes as contas dos clientes do Black Elephant, o que significa que sabes aritmética.
- Sim, sei soma e tirá. E também sei lê e escrevê um bocadinho. Mas não tou lembrando de ter visto o senhô no Elephant. Foi o Sr. Hancock que o mandou cá?
- Não. Mas eu fui lá abaixo ao Elephant falar com ele. Hugh Hancock diz que tu és um homem honesto e um trabalhador de confiança. Lem franziu o sobrolho.
- Para que foi falá com o Sr. Hancock?
O homem não respondeu, dirigindo a Lem um olhar perscrutador.
- Tens família aqui em Austin, Lem?
- Não, senhor. Venho de Waco. E também não deixei lá família, não. já morreram todos.
- E presumo que não tenhas recebido muitas visitas aqui na cadeia.
- Quase nenhumas. Veio um homem do Statesman no primeiro dia. O Sr. Hancock passou por cá uma ou duas vezes, trazendo comida decente. A minha senhoria, Rosie Brown, me enviou uma muda de roupa. E o meu amigo Alec me fez uma visita. Mas ficou tão abalado só de ter tado aqui dentro que me parece que não torna a ví mais, não.
William Holland moveu a cabeça num aceno.
- O que aconteceu foi uma coisa atroz, Lem, a maneira como aquela rapariga foi morta. Segundo sei, vocês conheciam-se bastante bem.
Lem encolheu os ombros, sentindo uma desconfiança súbita.
- Viveste com ela em Waco, não viveste? - perguntou Holland.
- E se tiver vivido?
- O Comissário está convencido de que foste tu que a mataste. E o júri do inquérito é da mesma opinião.
Lem baixou a cabeça.
- Não matei!
144- olha-me nos olhos, Lem, e repete o que acabaste de dizer.
Lem ergueu a cabeça. Ainda não tinha percebido o que é que este homem fazia ali, mas ao encarar os olhos de Holland não conseguiu deixar de confiar nele.
- juro que não matei Mollie Smith. Nunca teria, nunca era capaz. De jeito nenhum. Não fui eu que a matei, Sr. Holland.
Holland sustentou o olhar de Lem por longos momentos, posto o que meteu o braço por entre as grades e agarrou-lhe a mão.
- Mantém-te firme, filho. Pode parecer-te que todos te abandonaram à tua sorte, mas isso não é verdade. Pensa que dias melhores virão. Enquanto isso, vou fazer os possíveis para que o guarda te traga um cobertor lavado.
Holland sorriu, apertou a mão de Lem uma última vez e foi-se embora.
William Holland era um homem com um percurso de vida deveras singular.
A mãe tinha sido escrava. William e os dois irmãos tinham nascido em cativeiro, no Texas. Mais ou menos por altura do início da adolescência, a mãe falecera. Um homem branco, de seu nome Bird Holland, um herói da Guerra do México, comprara os três rapazes. De acordo com o costume vigente, os rapazes adoptaram o apelido do seu novo senhor.
Pouco depois, Bird Holland libertou os irmãos. Levou-os para sua casa, comprou-lhes boas roupas e sentou-os a sua mesa. Bird Holland nunca reconheceu legalmente a paternidade dos rapazes. Mas nunca a negou.
O Texas da década de 1850 não oferecia aos jovens negros emancipados quaisquer perspectivas de futuro. Holland acabou por enviar os filhos para Norte, para o Ohio, onde fariam a sua educação escolar numa academia para negros. Enquanto os filhos estudavam em Ohio, Bird Holland mudou-se para Austin e iniciou uma carreira política. Em 1861, o ano em que rebentou a Guerra Civil, Holland pediu a sua demissão do cargo de secretário de estado do Texas e alistou-se no exército da Confederação. Entretanto, dois dos seus filhos, incluindo William, alistavam-se no exército da União.
Em 1864, altura em que a guerra se aproximava do fim, William Holland tinha vinte e três anos. Combatera no Décimo Sexto Batalhão
145das Tropas de Cor dos Estados Unidos e participara nas batalhas de Nashville e de Overton Hill. O seu irmão mais novo, Milton, tivera uma carreira militar ainda mais distinta e fora condecorado com a Medalha de Honra por bravura.
Bird Holland morreu em combate nesse mesmo ano, lutando pela Confederação na batalha de Mansfield, Louisiana.
Finda a guerra, William Holland regressou a Ohio e fez os seus estudos superiores no Oberlin College. O motto dos seus professores - ”Vive com grandeza de alma e altruiSmo” - tocou-o profundamente. Decidiu regressar ao Texas e tentar encontrar aí o seu lugar no mundo.
A sua filiação inusitada e a singularidade da época em que Williani Holland vivia proporcionavam-lhe um contacto amplo, mas frequentemente complicado, com as realidades do mundo. Era filho de um branco mas, a luz de todos os cânones sociais e legais, William era um negro. O pai tinha desafiado os costumes da sociedade vigente ao assumir a educação de William. e dos seus irmãos, mas também se mostrara disposto a dar a vida pela causa da Confederação. William tinha conhecido a escravatura e a liberdade. Tinha vivido no Norte e no Sul. Era, por vocação e por formação, um acadêmico, mas tinha sido também um soldado.
Iniciou a sua carreira profissional no Texas, ensinando em escolas para negros um pouco por todo o Estado. A organização da primeira convenção estadual de negros conduziu-o à arena política e, em 1876, foi eleito pelos Republicanos para a legislatura do Texas, mandato durante o qual campeou um projecto de lei que visava estabelecer, perto de Hempstead, o primeiro instituto superior público para estudantes negros. Muitos dos membros do governo estadual ainda se lembravam do seu pai; o segredo - público - de que William. era filho de Bird Holland, conquanto deixasse alguns dos seus colegas pouco à-vontade, conferia-lhe, por outro lado, um certo prestígio velado.
A dada altura, ocupou um cargo no posto dos correios de Austin, uma nomeação do governo federal feita durante um período de administração republicana. Passado algum tempo, porém, acabou por voltar ao ensino. Presentemente, era o director da Escola Pública nº 5 de Austin.
Concluída a sua visita a Lem Brooks, Holland regressou apressadamente à zona leste da cidade, dirigindo-se ao edifício escolar de duas
146salas que ficava na Rua Mesquite. Chegou justamente no momento em que O seu assistente, o Sr. McKinley, tocava a sineta para os alunos entrarem e ocuparem os seus lugares na sala de aula. Holland suspirou aliviado. O seu encontro com Lem Brooks tinha sido importante, mas nunca se recomporia se tivesse chegado atrasado às aulas. William Holland passava a vida a insistir com os alunos na questão da pontualidade e chamara a si a incumbência de lhes dar o exemplo acabado dessa conduta. Colocou-se diante da turma, ligeiramente ofegante.
- Bom-dia, meus meninos!
os meninos e as meninas entoaram em uníssono:
- Bom-dia, Sr. Holland!
E assim começou o dia.
Enquanto o Sr. McKinley ensinava as letras aos alunos do primeiro ano numa das salas, Holland, na outra sala, ensinava aritmética aos alunos mais avançados. Não havia nada de que Holland gostasse mais do que ensinar, e a manhã passou num ápice. Depois do intervalo para o almoço, Holland arrumou o giz e a ardósia. Durante a tarde, ensinaria gramática e leitura.
Quando o Sr. McKinley tocou a sineta, indicando que as aulas desse dia tinham terminado, os alunos saíram em tropel, incluindo alguns rapazes desordeiros que, habitualmente, Holland mantinha na escola por forma a inculcar-lhes alguma disciplina, mas a quem, neste dia em particular, tinha concedido clemência. Holland disse ao Sr. McKinley que podia sair mais cedo.
Escassos minutos depois de McKinley ter saído, uma carruagem parou diante do poste de atrelagem que se encontrava à frente da escola. Apearam-se dois homens brancos. Eram ambos de constituição espadaúda, ambos tinham barba estavam ambos bem vestidos e ambos aparentavam andar pelos trinta e poucos anos. Eram suficientemente parecidos um com outro para poderem ser irmãos e, com efeito, eram-no. Tratava-se de John e James Robertson, o Presidente da Câmara de Austin e o Procurador-Público do distrito de Travis, respectivamente.
Os irmãos aproximaram-se da porta da escola. Holland abriu-a antes de algum deles ter tempo de bater.
A questão de decidir quando e onde poderiam os irmãos Robertson encontrar-se com Holland para discutir o caso de Lem Brooks tinha sido delicada. Holland tinha solicitado esta reunião por meio de uma carta
147que enviara ao Presidente da Câmara às primeiras horas da manhã de segunda-feira, ainda antes de o júri do inquérito ter anunciado publicamente os resultados a que tinha chegado. O Presidente da Câmara fora ter com o irmão ao tribunal para discutir a carta de Holland e, enquanto falavam um com o outro, chegara um mensageiro com a declaração do júri. Os Robertson tinham decidido conferenciar com Holland tão depressa quanto possível; mas onde? Encontrarem-se com um líder reconhecido da comunidade negra no gabinete do Presidente da Câmara ou no do Procurador-Público daria azo a especulações e a ouvidos indiscretos colados as portas. Um encontro de natureza social, como um almoço ou uma bebida em conjunto, estava, pura e simplesmente, fora de questão. Os irmãos decidiram fazer uma visita a escola de Holland no dia seguinte e fizeram-lhe chegar a sua decisão por escrito. Que tipo de boato poderia advir de uma visita informal do Presidente Robertson a uma escola pública de Austin? O facto de o Presidente da Câmara se fazer acompanhar do irmão, que por acaso era o Procurador-Público, não surpreenderia ninguém, pois os dois eram frequentemente vistos juntos nas suas deslocações públicas.
- Agradeço-lhes por terem vindo, Sr. Presidente da Câmara, Sr. Procurador-Público - cumprimentou Holland.
- Nós é que lhe agradecemos o convite, Sr. Holland - retorquiu John Robertson friamente. Observou a sala de aula escassamente mobilada.
- Na minha qualidade de Presidente da Câmara e de membro ex officio do Conselho de Educação, parece que nunca disponho de tempo para visitar as escolas públicas da cidade, e em particular as escolas dos alunos de cor. Estas instalações parecem-me impecavelmente cuidadas.
- Obrigado, Sr. Presidente.
James Robertson aclarou a garganta.
- Podemos falar a vontade? Holland sorriu.
- Quando o toque da tarde se faz ouvir, nenhum dos meus alunos aqui permanece por escolha própria. Disse ao meu assistente para se ir embora mais cedo. Estamos completamente a sós, cavalheiros.
A atitude dos irmãos Robertson para com William Holland era equívoca, até mesmo para eles próprios. Qualquer branco que fosse filho de um ex-secretário de estado inspirar-lhes-ia um imediato sentimento de reverência, mas Holand não era branco. Tal como Holland, embora uns
148anos mais tarde, ambos os Robertson tinham cumprido um mandato na legislatura do Texas, mas nenhum dos irmãos consideraria seriamente a hipótese de tratar um negro como um colega ou como um par.
Mas acima de tudo, e mais importante do que tudo, Holland e os Robertson tinham estado em lados opostos durante a guerra. Os dois irmãos tinham crescido no Tenessee. James guardava recordações amargas da luta que a sua mãe viúva travara para conseguir sobreviver, incluindo um episódio humilhante em que a mãe tivera de implorar aos soldados unionistas que não lhes levassem o único cavalo da família. Nos últimos anos da guerra, John tinha já idade suficiente para se alistar no exército da Confederação; era concebível que ele e Holland tivessem trocado tiros na batalha de Nashville.
Não obstante, William Holland era um homem de inegável inteligência, maneiras impecáveis e de uma integridade inquestionável - e não havia em toda a Austin quem estivesse em melhor posição para falar em nome dos cidadãos negros.
O Presidente da Câmara passeava calmamente pela sala de aula.
- A carta que nos enviou indicava o seu desejo de discutir as consequências do terrível crime que ocorreu entre nós na semana passada. Este incidente pôs toda a gente com os nervos em franja. O povo de Austin está compreensivelmente perturbado.
- As pessoas de cor estão tão preocupadas como as brancas, se não mais - replicou Holland.
- Evidentemente - secundou o Presidente da Câmara.
- Posso garantir-lhe - acrescentou o irmão - que os cidadãos de Austin estão profundamente empenhados em condenar a pessoa que cometeu este crime. Tanto os cidadãos de cor, como os brancos.
- Quem quer que tenha matado Mollie Smith tem de ser encontrado, julgado e enforcado por isso. Um crime tão hediondo como este clama por justiça - disse Holland.
- Estamos todos de acordo quanto a isso - disse o Presidente da Câmara.
Fez-se um longo silêncio, durante o qual os dois irmãos examinaram um conjunto de retratos emoldurados, pendurados na parede mais próxima.
- Rutherford B. Hayes, James Garfield e Grover Cleveland - constatou o Presidente da Câmara. - Creio que a prática habitual na maior
149parte das escolas é expor apenas o chefe do executivo vigente, o Sr- Cleveland, um democrata verdadeiramente excepcional, se me permite o meu partidarismo.
Holland sorriu.
- Os retratos do Presidente Hayes e do Presidente Garfield são propriedade minha. Na verdade, seria mais correcto dizer que são recordações. Fui delegado as convenções nacionais do partido republicano em que foram nomeados. Quando falo de cidadania às crianças, parece-me instrutivo partilhar estas experiências com elas. Posso apontar para os retratos e dizer: ”Com o meu pequeno contributo, ajudei a fazer destes homens Presidentes.”
- Ah, pois - disse o Presidente da Câmara, ligeiramente contrafeito. Fez-se um silêncio desconfortável. Holland entrelaçou os dedos atrás das costas, como era seu hábito quando se dirigia aos alunos, aos legisladores e aos colegas delegados. - Penso que nos podemos poupar a rodeios se eu for direito ao assunto. Pretende levar William Brooks a julgamento pelo assassínio de Mollie Smith, Sr. Procurador-Público?
- Igualmente sem rodeios, dir-lhe-ei que ainda não tomei uma decisão.
- Entretanto, o rapaz vai definhando na cadeia municipal.
- Se ele é, de facto, o assassino, seria uma irresponsabilidade libertá-lo.
- No entanto, não parece existir uma única prova que o incrimine.
- O Comissário Lee não é dessa opinião. Nem o júri do inquérito.
Seis cidadãos honestos decidiram que há matéria suficiente para considerar Brooks suspeito do crime.
- Sr. Procurador, desconheço o que levou o júri a chegar a essa conclusão, mas fiz algumas investigações por minha conta, e falei com várias pessoas de cor que conhecem Lem Brooks, incluindo a senhoria dele, o patrão e os amigos e conhecidos lá em baixo no Black Elephant. Ora bem, pelo que me foi dado saber, a única prova, se é que lhe podemos chamar assim, que pesa em desfavor de Brooks é o facto puramente circunstancial de ele ter em tempos coabitado com a Menina Smith, quando ambos viviam para os lados de Waco. O relacionamento anterior entre eles poderia, e sublinho poderia, fornecer um motivo para o crime, não fora o facto de nenhuma das pessoas com quem falei ter jamais ouvido Lem Brooks expressar qualquer tipo de raiva, animosidade ou má vontade contra a Menina Smith ou contra o novo companheiro dela, Walter Spencer. De todas as vezes que se referia ao assunto, o que acontecia geralmente quando estava encostado ao balcão, num ambiente
150em que os homens se sentem à vontade para falar abertamente, Lem Brooks expressava apenas um sentimento de alívio por ter terminado a ligação que tinha com a rapariga.
- Não seria o primeiro a lamber as feridas em segredo - apontou James Robertson.
Holland abanou a cabeça.
-Tenho sérias dúvidas de que Lem Brooks seja do tipo de guardar segredos. Vá falar com ele. Tão certo como não haver um único cabelo na cabeça de Lem, é ele não ter dentro de si nenhuma mentira. Mas os factos atestam ainda melhor a sua inocência. Considerem o seguinte: quem quer que tenha cometido o crime teria de ter ficado sujo de sangue. No entanto, a senhoria de Brooks mostrou-me o quarto dele e não havia o mínimo sinal de sangue em parte alguma. Mais ainda, a senhoria responde por todas as linhas e costuras da roupa de Lem. É ela que lha lava e diz que não havia nelas uma única gota de sangue. Não desapareceu nenhum machado, nem da casa de hóspedes, nem do Black Elephant. E, se o crime foi perpetrado antes das três da manhã, como o próprio inquérito determinou, então Lem Brooks tem uma centena de pessoas que jura a pés juntos que ele estava noutro sítio. Esteve toda a noite a dar as deixas no baile de Sand Hill.
- O álibi de Brooks vem complicar as coisas, concedo-lhe isso - disse o Procurador.
- Se decidir levar Brooks a julgamento, estará a incorrer numa injustiça, Sr. Procurador, e não só contra William Brooks - disse Holland.
- O que quer dizer com isso?
Holland inspirou fundo e firmou o rosto pensativamente.
- Não vejo outra maneira de o dizer, a não ser usando da máxima franqueza. As pessoas negras de Austin estão muito perturbadas com este assunto, mais do que os senhores se apercebem, creio eu. Uma jovem foi brutalmente assassinada. Um jovem foi acusado do crime, mas nenhuma das pessoas com quem falei admite que ele possa tê-lo cometido.
O Procurador-Público abanou a cabeça.
- Tudo isso foi tido em consideração pelo júri do inquérito. O Presidente da Câmara parecia ofendido.
- Sr. Holland, acha que somos menos sensíveis à gravidade do que se passou do que o senhor?
Holland respirou fundo, tolhido pela impossibilidade de se explicar. Homens como os Robertson eram simplesmente incapazes de imaginar
151quão impotente ele se sentia, quão impotentes se sentiam todas as pessoas de cor de Austin em face do que tinha acontecido. Como ele invejava James e John Robertson; não pelas suas fortunas, pelas suas belas mansões ou pela deferência que os outros homens demonstravam para com eles. Invejava-os pelo poder de que estavam investidos e que eles aceitavam como um dado adquirido. Eles podiam fazer justiça. Fazer justiça! Era um acto divino! Podiam fazer com que os erros fossem corrigidos, com que os culpados fossem punidos e com que os inocentes fossem libertados. Nenhum negro podia fazer tais coisas. Um negro podia votar e participar num júri, entre brancos bem entendido, mas não havia, e não haveria nunca durante todo o tempo de vida de William Holland, um Presidente da Câmara ou um Procurador-Público negros em Austin.
Todas as migalhas de poder efectivo estavam nas mãos dos Robertson e dos seus semelhantes. À mesa deles, Holland não passava de um mero pedinte; esta era a dura verdade dos factos e toda a instrução que recebera não lhe servia para nada, a não ser permitir-lhe mendigar com mais eloquência. Os Robertson estavam perfeitamente cientes disto; nem sequer se haviam mostrado dispostos a recebê-lo publicamente, nos respectivos gabinetes. Não obstante, ali estavam os três, firmes no seu desempenho de farsantes, fingindo que Holland era um eleitor como outro qualquer, e que as pessoas destituídas de poder que ele representava tinham um peso efectivo no esquema das coisas.
Subitamente, abateu-se sobre Holland o carácter absurdo de toda aquela situação e, por um momento fugaz, a capa de fingimento escorregou e Holland descontrolou-se. A realidade nua e crua era tão arrasadora como um violento golpe no plexo solar. Os Robertson não davam a mínima importância ao que tinha sucedido a Mollie Smith, salvo pelo facto de o assassínio ter ocorrido no pátio das traseiras da casa de um branco e de isso ter ultrajado a comunidade branca de Austin. Como não davam a mínima importância a Lem Brooks, salvo pelo facto de a sua execução ordeira às mãos de um júri ser susceptível de encerrar satisfatoriamente um episódio lamentável. A circunstância de se terem dignado a visitar Holland mais não era do que um gesto de indulgência, um suborno, cujo objectivo era apaziguá-lo, levá-lo a aceitar a opinião esclarecida dos dois, a manter a boca fechada e a dizer aos demais que fizessem o mesmo. A intenção de Holland ao solicitar esta reunião era outra, mas compreendia agora que as suas esperanças tinham sido em vão.
152o tronco de Holland abateu-se, literalmente, como se ele tivesse recebido um soco. Sentiu o rosto afogueado, as mãos suadas, e viu pontos luminosos em torvelinho diante dos olhos. A súbita baixa de pressão arterial era um mal que corria na sua família, mas há muito que Holland não tinha uma quebra de tensão destas. Durante o período em que servira na legislatura, eram quase diárias, causadas pela lide com a animosidade de homens que lhe chamavam marioneta republicana e que o tratavam como se ele fosse uma aberração da natureza, tão semelhante a eles como um macaco que soubesse fumar charuto. Estas quebras de tensão tinham passado a ser menos frequentes, embora igualmente agudas, quando desempenhava funções no posto dos Correios, e quando se movimentava como presumível igual entre os delegados brancos às convenções republicanas.
Inspirou uma golfada de ar. O truque era este: controlar a respiração, regular a pulsação descompassada e lembrar-se de que a sua pele, embora mais clara do que a da maioria dos negros, era suficientemente negra para não revelar um rubor que o trairia. Era crucial que os Robertson não se apercebessem de quão abalado ele estava. Era forçoso que mantivesse a sua dignidade; que conseguisse aguentar este momento, exercer a sua inteligência e conquistar o respeito deles. Por outro lado, não seria isto, ao fim e ao cabo, um mero gesto de reconhecimento do poder que eles tinham, mais um exemplo da sua mendicância, uma aceitação tácita de que o respeito lhes pertencia por direito e de que sobre ele caía o ónus de o merecer?
Em tempos, a política infectara-o de sonhos grandiosos e cruelmente impossíveis. De há alguns anos a esta parte, Holland subtraíra-se a esse mundo e, mesmo na qualidade de director da escola, tinha optado por lidar o menos possível com os homens que geriam a cidade. Era muito mais simples e compensador deixar-se estar entre os seus, investir o seu tempo e concentrar as suas energias a ensinar rapazes e raparigas de cor, a melhorar a vida das pessoas uma de cada vez. Mas, interrogava-se Holland, se não fosse ele a levantar-se e a fazer ouvir a sua voz em representação da comunidade negra de Austin, aproveitando todas as vantagens do seu nascimento e da educação tão arduamente adquirida, quem o faria?
O momento crítico estava ultrapassado. Fora apenas isso: um momento. Holland ergueu os olhos para os Robertson e percebeu pelas caras
153deles que nenhum dos irmãos se tinha dado conta da crise que ele acabava de debelar Se tivessem chegado a aperceber-se de alguma coisa, fora apenas de uma sombra que lhe atravessara o rosto, de um breve instante de desconforto. Sentiu que a sua respiração tinha voltado ao normal e que o bater do coração estabilizara. O seu optimismo (uma dádiva de Deus, com toda a certeza, pois não havia mais nada que pudesse explicar a sua existência!) reassumiu o controlo da situação. É verdade que os homens que tinha diante de si nunca poderiam ser seus amigos, mas que vantagem haveria em presumir que eram seus inimigos? Eram simples homens, como ele era um homem, e, como tal, igualmente susceptíveis de serem movidos pela razão e pelo amor natural que cada homem vota a justiça. Quando Holland falava, eles escutavam-no. Se ele conseguisse expressar-se através de palavras simples, podia ser que o compreendessem.
- Sr. Presidente da Câmara - disse Holland com toda a calma -, Sr. Procurador-Público. O baile que se realizou naquela noite em Sand Hill teve lugar numa casa de hóspedes que fica a pouca distância da minha própria casa. Pude ouvir o som da música e das gargalhadas até altas horas da noite. Eu não fui ao baile, mas conheço pessoalmente alguns dos convidados que a ele compareceram. Alguns foram meus alunos em tempos. Outros são meus colegas: professores no Instituto Tillotson. São pessoas respeitáveis e cidadãos responsáveis. Todos eles afirmam que William Brooks cumpriu a sua função de mestre-sala até ao fim do baile. Se insistirem em levá-lo a julgamento, apesar da objecção unânime destas pessoas, os senhores estarão, fundamentalmente, a chamar mentirosos ou tolos a todos os homens e mulheres que estavam no baile de Sand Hili. O Procurador-Público sobressaltou-se.
- Vejamos, Sr. Holland, não há necessidade de inferir insultos de carácter pessoal do normal procedimento dos trabalhos do tribunal! Holland ergueu a mão.
- Mas, mais importante ainda, meus senhores, é o facto de o maníaco que matou Mollie Smith ainda se encontrar à solta. Estão genuinamente satisfeitos com as diligências levadas a cabo pelo Comissário Lee? Parece-me a mim que ele decidiu prender o primeiro negro que oferecesse o mais leve indício de suspeita e deu o caso por arrumado. Se a vítima tivesse sido a Sra. Hall em vez da cozinheira da Sra. Hall, ele teria deixado as coisas por aí? Se decidirem julgar William Brooks e insistirem em acusá-lo, mais não fazem do que atormentar um homem inocente.
154Mais vale dizerem directamente à comunidade negra de Austin que uma jovem de cor pode ser assassinada a sangue-frio e seguidamente violada enquanto morre exangue, que ninguém com poder está para se ralar com o assunto!
Durante o silêncio que se seguiu, James Robertson pigarreou. Voltou-se e avançou até ao extremo oposto da sala de aula com passadas lentas, posto o que deu meia volta e retrocedeu, à mesma cadência. Voltou os olhos para o irmão, o Presidente da Câmara, e trocou com ele um olhar significativo, que indicava que o assunto seria discutido por ambos mais tarde, em privado.
Foi o Presidente da Câmara quem acabou por quebrar o silêncio.
- Sr. Holland, deu-nos a conhecer as suas preocupações no estilo claro e directo a que sempre nos habituou.
O Procurador-Público fez um aceno de cabeça, evitando encarar de frente o olhar de Holland.
- A comunidade negra de Austin tem a sorte de ter um indivíduo capaz de falar em nome dela de maneira tão... contundente.
- Agradeço-lhes, cavalheiros, o tempo precioso que disponibilizaram na vossa agenda sobrecarregada para se encontrarem comigo.
O Presidente da Câmara parecia visivelmente aliviado com o facto de a reunião estar prestes a chegar ao fim.
- Foi um prazer, Sr. Holland. É sempre agradável visitar pessoalmente as nossas escolas públicas. A disposição imaculada da sua sala de aula denota um elevado nível de organização e disciplina.
- Sim, foi um prazer - corroborou o Procurador-Público, desviando o olhar.
Holland sorriu.
- Há ainda uma pequena questão que eu gostaria de discutir com os senhores, antes de partirem...
Nessa noite, na cadeia, Lem Brooks dormiu aconchegado debaixo de um cobertor de lã lavado.
15512
O bebé recomeçou a chorar.
Estavam todos juntos na gare, a espera do comboio - Eula e o bebé, e Jimmy, o marido, e, para se despedirem deles, os pais de Jimmy e a irmã de Jimmy, Delia, que era a melhor amiga de Eula. Aguardavam a chegada do comboio da tarde, onde Eula, Jimmy e o bebé partiriam para norte, para recomeçarem uma nova vida na quinta McCutcheon, no distrito de Williamson. Deixavam Austin para trás; mudavam-se para uma quinta. Jimmy ia tornar-se agricultor - um agricultor! Eula tinha vontade de rir, mas sentia-se demasiadamente cansada e, para além disso, o bebé estava a chorar e era preciso fazer alguma coisa.
O comboio já devia ter chegado, mas o homem que estava no guíchet da International and Great Northern tinha-os informado de que havia um atraso, qualquer coisa relacionada com umas reparações que os mecânicos estavam a fazer na junta do motor. Bom, pelo menos estava um dia de sol.
Por momentos, o bebé calou-se. Durante este intervalo de silêncio, Eula conseguiu ouvir o burburinho das conversas que percorria a gare de ponta a ponta. Tanta gente a espera do comboio! Para onde iriam todas aquelas pessoas? O comboio fazia a linha do Norte, entre Austin e Texarkana, com vinte paragens a separar os dois terminais, e prosseguia até St. Louis, a mil e quatrocentos quilómetros dali. Eula sabia que assim era porque tinha estado a olhar para o horário afixado do lado de fora do guíchet onde se compravam os bilhetes. Se ao menos eles fossem para St. Louis, ou para Chicago, ou para qualquer outra grande cidade, a centenas de quilómetros de distância, onde a vida fosse excitante e houvesse imensas pessoas interessantes para conhecer! Mas ela e Jimmy apear-se-iam na terceira paragem, Hutto, a uns meros quarenta e cinco quilómetros de Austin. George McCutcheon estaria à espera deles com uma carruagem e levá-los-ia para a sua quinta. Eula sentia-se como se a tivessem condenado a uma pena de prisão.
156O bebé recomeçou a chorar. A mãe de jimmy aproximou-se de um dos lados de Eula enquanto Delia fazia o mesmo do outro, aninhando-se como galinhas chocas. Todas as mulheres que se encontravam na plataforma arrebitaram as orelhas ao ouvirem aquele som. Algumas até se aproximaram ligeiramente de Eula e do bebé, continuando embora a conversar umas com as outras, sem terem consciência de que os seus pés se moviam na direcção do som, como limalhas atraídas por um íman.
A reacção delas era, como é óbvio, perfeitamente normal. Todas as mulheres que ali se encontravam estavam simplesmente a reagir como qualquer mulher deve reagir ao som de um bebé a chorar; todas, a excepção de Eula.
O corpo dela reagia, disso não havia qualquer dúvida; Eula sentia-se dorida da necessidade de amamentar o bebé. O seu espírito é que se encontrava estranhamente inerte. Sentia apenas um imenso torpor dentro de si, e uma enorme fadiga.
Eula tinha pensado que o bebé a faria feliz e, de facto, tinha sido feliz durante algum tempo, conquanto os deixassem a sós um com o outro. Tinha-se sentido perfeitamente satisfeita no seu quartinho em casa dos seus sogros, na Rua Hickory. O bebé era parte da felicidade dela. Tal como Delia - a querida e amorosa Delia, mais íntima do que uma irmã. Tinha sido absolutamente perfeito: Eula com o seu bebé, e Delia ajudando-a, fazendo-a rir e aconchegando o bebé. até os pais de jimmy lhe pareciam toleráveis, desde que a Sra. Phillips não se intrometesse demasiado. Até Jimmy lhe tinha parecido tolerável durante um breve período apósa chegada do bebé, afirmando que agora tinha uma razão para deixar de beber e que nunca mais voltaria a tocar numa gota de álcool. Esta promessa durara cerca de uma semana, finda a qual as coisas tinham voltado ao mesmo de sempre, mas com o fardo acrescido do bebé. E, agora, estavam de partida para uma quinta no meio de nenhures e a sua vida estava completamente virada do avesso; Eula sentia-se simplesmente exausta e excessivamente miserável para conseguir lidar com o que quer que fosse.
Independentemente de tudo isto, o bebé precisava de ser amamentado. Os seios de Eula insistiam quanto a esse facto. No peitilho do seu vestido começavam a despontar pequenas manchas de humidade, que Eula tinha esperanças de que não fossem muito visíveis sobre o tecido escuro.
157- Vem comigo, Delia - sussurrou. Afastaram-se do Sr. e da Sra. Phillips e de Jimmy sem dizer palavra e entraram na estação. Os funcionários do guichet ergueram os olhos ao ouvir o choro do bebé. As mulheres que se encontravam na fila para comprar bilhetes voltaram a cabeça em sincronia, com uma expressão de alerta e preocupação. Delia encontrou a porta em que se lia SENHORAS e abriu-a, para Eula passar. Entraram, numa antessala pequena, mobilada com um espelho alto e um banco comprido e estofado a veludo púrpura desmaiado.
Eula sentou-se. Tentou desapertar os botões de cima do vestido, mas o bebé esperneava e os dedos dela moviam-se desajeitadamente no interior das luvas de camurça.
- Delia, querida, dá-me uma ajuda, dás? - Delia desapertou os botões e meteu a mão por dentro do vestido de Eula para a ajudar a libertar um seio. O bebé agarrou-o e começou a sugar avidamente.
Delia recostou-se no estremo oposto do banco estofado e desatou a rir. Eula semicerrou os olhos e dirigiu à cunhada um olhar melancólico.
- Onde está a graça, Viúva Campbell?
- Na tua cara de alívio! Deve ser uma sensação extraordinária. E não me chames isso. Sabes que detesto que me tratem assim.
- Chamo-te assim porque te invejo. A viúva sem filhos... tens tanta sorte!
- Eulalia...
- E tu não me chames isso... ou eu passo a chamar-te Adele.
- Sempre é melhor do que Viúva Campbell. O único problema é que o meu nome nunca foi Adele. Sempre fui Delia, desde o berço. E são dois nomes diferentes, sabias? Adele, Adelaide and Della significam ”nobre”, e qualquer pessoa te pode afiançar que eu não o sou. Delia deriva do grego, quer dizer ”de Delos”. Refere-se à deusa da lua, Artémis, a Diana dos romanos.
Portanto, não és nobre, és apenas divina - disse Eula ironicamente. É mais ou menos isso.
E o que significa Eulalia?
Também vem do grego. Deve querer dizer ”discurso belo”. Em grego, ”eu” significa bem.
- Nesse caso, não podia ter menos a ver comigo, pois não?
- Oh, Eula... não chores.
- Não consigo.
158- Primeiro o bebé, agora tu. Que par de bebés chorões! Assim é melhor, já estás a rir. Ainda estás a chorar, mas também estás a rir.
Oh, Delia, és tu que me fazes rir! É para isso que eu sirvo.
Como é que eu me vou arranjar sem ti?
Olharam as duas para a sua figura conjunta no espelho: a delicada e quase pueril mãe loura, irradiando beleza apesar dos olhos brilhantes e do semblante triste, vestida de azul e amamentando o bebé, ladeada pelo sorriso sedutor e os cabelos cor de corvo da companheira vestida de preto - já não como sinal da sua condição de viúva, mas porque tinha descoberto durante o luto que o preto lhe ficava lindamente. Eula era, nitidamente, a mais pequena das duas, baixa e magra, embora de peito generoso. Delia era alta, tal como o irmão.
- Oh, não te preocupes, queridinha - disse Delia -, sabes muito bem que te irei visitar à quinta sempre que me for possível. Fica apenas a cinquenta quilómetros.
- É como se ficasse no fim do mundo.
- São só três paragens de comboio. De Austin a Duval, de Duval a Rourid Rock e de Rourid Rock a Hutto. Com mais uma viagenzinha de carruagem até à quinta. O comboio vai chegar atrasado, mas tenho a certeza de que o funcionário da estação de Hutto dirá ao Sr. McCutcheon para esperar.
- Espero bem que não diga nada. Seríamos obrigados a apanhar o próximo comboio de regresso a Austin e abandonar esta ideia maluca de Jimmy de sair daqui para se transformar em agricultor! Por que é que ele não pode ser carpinteiro, como o pai dele? Por que é que ele não pode arranjar trabalho na cidade?
- Sabes perfeitamente qual é a resposta a essa pergunta, Eula. O problema de Jimmy não é arranjar trabalho, mas sim mantê-lo. O meu querido irmão é um escravo da bebida. - O rosto de Delia no espelho tinha parado de sorrir.
- Mas o que o impede de continuar a ser bêbedo na quinta do McCutcheon, tal como é aqui na cidade?
- Presumo que a ideia seja o Sr. McCutcheon fazer com que ele pare de beber. Tu deves conhecer o homem melhor do que qualquer de nós, Eula; ele e amigo do teu pai. Que tipo de homem é? Um moralista intransigente? Um daqueles baptistas que passa a vida a citar a Bíblia? Votou nos proibicionistas nas últimas eleições presidenciais?
159Eula riu-se.
- Céus, sei lá eu! só sei que é um grande amigo do pai. O pai passa alguns períodos na quinta do Sr. McCutcheon e quando ele vem a Austin fica alojado no hotel do pai sem pagar. - O pai de Eula, o Sr. Thomas Burdett, era o proprietário do Hotel Capitol, na Avenida do Congresso.
- E então, a pedido do teu pai, o Sr. McCutcheon aceitou encarregar-se do Jimmy e dar-lhe trabalho na quinta. É uma pena que o teu pai não possa empregar Jimmy no hotel. - Delia abanou a cabeça. - Mas isso seria estar a pedi-las, contratar um genro que bebe. Há um bar logo a seguir à sala de recepção do hotel, não há? Não, a ideia de Jimmy trabalhar para o teu pai no hotel seria muito mal pensada.
- Portanto, somos varridos para debaixo do tapete! - disse Eula. Vamos para a quinta, onde Jimmy pode continuar a embebedar-se até cair todas as noites, mas onde ninguém tem de assistir ao triste espectáculo. Excepto eu.
Delia inclinou-se sobre ela, adoptando subitamente uma expressão de seriedade. Rodeou Eula com o braço e colocou as mãos em cima das da amiga, que pegavam no bebé.
- Talvez não, querida. Talvez a mudança faça bem a Jimmy. Ar puro, trabalho honesto e duro, tu e o bebé junto dele, dando-lhe motivos para se manter sóbrio.
- Sem bares ao virar da esquina...
- Exactamente, sem bares! Talvez esta mudança para a quinta seja justamente aquilo de que Jimmy precisa para se endireitar e começar a olhar como deve ser por ti e pelo bebé, Eula.
- Talvez. - Eula soltou um suspiro profundo. O movimento ondulante dos seios, acompanhados pelo sugar do bebé, provocava-lhe uma agradável sensação de apaziguamento que se espalhava pelo corpo todo. Eula fechou os olhos. - Oh! - comentou com ar sonhador - sei mais uma coisa em relação ao Sr. McCutcheon...
- Que é...?
- O pobre homem ficou viúvo. Perdeu a mulher no mês passado. É triste. O mais provável é o meu pai achar que ele apreciará a companhia de Jimmy. E eu passo a ter de cozinhar e limpar para dois homens, para além de ter de tomar conta do bebé...
- Viúvo, dizes tu? - Enquanto Eula permanecia de olhos fechados, Delia debruçou-se atentamente sobre a cara da amiga. Pensou para consigo
160que talvez não fosse assim tão boa ideia enviar uma mulher jovem, bonita e infeliz como Eula para uma casa em que viveria sob o mesmo tecto com um homem que enviuvara havia pouco tempo. Independentemente do tipo de homem que George McCutcheon fosse, o facto é que era um homem... e Delia conhecia os homens. E sabia de que é que os homens gostavam. Eula, com os seus brilhantes olhos azuis, o seu cabelo dourado e a sua pele de pétala de rosa, haveria algum homem que não a achasse linda? Jimmy era mesmo parvo, preferindo entregar-se ao álcool quando tinha Eula em casa a espera dele!
Ao sentir a respiração de Delia na bochecha, Eula pestanejou e abriu os olhos. Delia recuou ligeiramente. Eula franziu o nariz e depois sorriu maliciosamente.
- Delia, que cheiro!
- Qual cheiro? É a minha água-de-colónia.
- Ai não, não é! Cheiras a charuto!
- Oh, que aborrecimento...
Desataram as duas a rir. O bebé perdeu por momentos o mamilo de Eula e recomeçou a chorar, sossegando apenas quando Eula o recolocou em posição. Ela abanou a cabeça num gesto de reprovação trocista e baixou a voz.
- Delia, Delia, que hábitos indecentes esses que tens adquirido com aquela Tobin! O importante não é saber como é que eu me vou arranjar sem ti, a questão é como é que tu te vais arranjar sem mim!
- O que queres dizer com isso?
- Para encobrir as tuas mentiras. Delia, a semana passada, a tua mãe quase te desmascarou. Disseste-lhe que ias passar a noite a casa da Matilda, no outro extremo da cidade, porque ela estava doente, quando na verdade passaste a noite em casa da May Tobin. Era quase meia-noite quando a tua mãe pôs na cabeça a ideia de ir ter contigo a casa da Matilda. Eu disse-lhe que era absurdo, que a única coisa que ela ia conseguir com isso era acordar a pobre enferma, mas foi o máximo que consegui fazer para a impedir de ir ter contigo. Mas imagina tu, Delia, que ela tinha de facto aparecído na casa da Matilda, perguntando onde é que tu estavas?
- Estou certa de que a Matilda teria pensado numa boa desculpa para lhe dar; eu faria o mesmo por ela. A Matilda também frequenta regularmente a casa de May, como já te confidenciei. Mas a minha mãe
161nunca levaria o caso tão longe. Suspeita de que eu ando a tramar alguma, mas não faz a mínima ideia do que seja. Nem quer fazer, verdade seja dita. Tenho a certeza de que não fazia tenções de ir à minha procura nessa noite; estava apenas a testar-te, Eula, para ver se conseguia que tu deixasses escapar alguma coisa. E tenho igualmente a certeza de que ficou muitíssimo aliviada por tu não te teres descaído. A minha mãe fica em cuidados, não consegue evitar, mas preferia ficar surda a ter de ouvir a verdade. Tal e qual como no que diz respeito a Jimmy: passa a vida a perguntar-me porque é que ele não consegue aguentar-se em nenhum dos empregos que arranja, mas quando lhe digo que ele bebe demasiado, muda de assunto. Não tem a mais pálida ideia do que é que eu ando a fazer na casa de May Tobin mas, como eu sou viúva, preocupa-se comigo; segundo a mãe, todas as viúvas com menos de trinta anos são necessariamente dadas à perversão.
- E assim é, no que te toca! - disse Eula, soltando uma gargalhada.
- E assim é, no que me toca - secundou Delia calmamente.
Eula ficou séria de repente.
- Mas tu não és perversa, Delia. Nunca ninguém poderá dizer isso de ti. És boa, e querida. E cheia de sorte! Invejo-te. Não tens marido, nem filhos, e tens todos os amantes que quiseres.
- Eula, fala mais baixo!
- Mas é verdade - disse Eula em surdina. - És livre. Entras e sais quando te apetece. E ganhas o teu próprio dinheiro. E não tens de lavar a roupa dos outros nem de cozinhar para as famílias dos outros para o ganhar. Tens uma vida secreta. E fumas charutos como um homem!
- Um vício que a May me pegou. Mas, pelos vistos, tenho de por mais água-de-colónia depois de fumar!
- E conheces homens tão interessantes! Enquanto eu estou condenada a passar o resto dos meus dias enfiada na quinta com Jimmy e com agricultor McCutcheon, tu namoriscas com os milionários que gerem estado.
Delia riu-se.
- Não creio que existam milionários no Texas, minha querida. Os milionários estão todos na costa leste, na indústria do aço e noutros negócios do género.
- Mas se algum milionário vier a Austin, é certo e sabido que fará uma visita a May Tobin - disse Eula.
162- É muito provável que sim! Mas sabes, é verdade que conheci recentemente um indivíduo deveras interessante em casa de May. - Os olhos verdes de Delia cintilaram.
- E...?
- May diz que ele se chama Shelley, que é um dos filhos do velho Shelley, aquele que vive na mansão grande no cimo da Colina do Castelo. William Shelley; não é Bill, é William... ele é extremamente formal. E nada tímido; disse-me que trabalha para o Swain, o Fiscal de Contas, e que, na prática, é ele que gere o departamento. Diz que tem o caminho livre para vir a fazer nome no governo estadual. Até mencionou que, quando saísse da casa de May, ia passar pelo escritório para ”acabar umas coisas”! Disse-lhe que me sentia insultada, que estava certa de o ter deixado exausto. É um homem bastante novo, claro está, ainda não pode ter trinta anos. Sem barba, apenas bigode. Mas deve ser uma pessoa de alguma importância, porque um indivíduo qualquer do Statesman irrompeu pela sala de estar de May adentro nessa noite, bêbado que nem um cacho, e May preferiu mandá-lo embora a pontapé a permitir que ele pusesse a vista em cima do Sr. Shelley.
- Bonito?
- O Sr. Shelley? Bastante! É solteiro.
- Não tinha aliança?
- Não, mas isso não quer dizer nada, porque muitos tiram-na antes de atravessarem a porta de May. Mas percebi que não é casado. Não tinha aliança e quis conversar depois. Os que são casados já tem uma esposa com quem falar. É só no resto que estão interessados.
- Oh, Delia, odeio-te! Jimmy ainda não me tocou desde que o bebé nasceu.
- Mas queres que ele te toque?
- Não tenho a certeza. Mas não me parece normal. Estarei assim tão feia desde que tive o bebé?
- Não sejas ridícula, Eula! Estás mais bela do que nunca! Estou a ser sincera. Oh, é defacto cruel para ti estares amarrada a Jimmy. A doce e encantadora Eula e o meu querido e medonho irmão. Jimmy acabou por estragar tudo. Não é justo.
É por isso que eu tenho inveja de ti.
Não tenhas, Eula. A minha vida é mais dura do que pensas. Eu brinco com o assunto porque gosto de te ver rir. E espicaço-te com as
163minhas conquistas porque... oh, sei lá eu porquê! Vou ter tantas saudades tuas, Eula!
- Agora és tu que estás a chorar, Delia!
- E porque não? Temos ambas razões para chorar.
Deixaram-se ficar em silêncio, enxugando as lágrimas e olhando uma para a outra no espelho.
A porta abriu-se e a Sra. Phillips entrou com passo enérgico. Deteve-se um momento a contemplá-las e sorriu.
- Olhem para a vossa figura, parecem mesmo duas irmãs! Apesar de a minha Delía ser morena e de tu, querida Eula, seres tão lourinha. Creio que o bebé vai sair a ti. já acabou de mamar?
- Julgo que sim - respondeu Eula. Deu uma pequena fungadela e passou um dedo enluvado pela ponta do nariz.
- Oh, e eu não assisti! Fiquei com os homens na gare de propósito, para que as meninas tivessem oportunidade de se despedirem.
- Foi muito atencioso da sua parte, mãe - disse Delia.
A Sra. PhilliPs acenou com a cabeça e depois bateu palmas.
- Mas agora o comboio vai finalmente partir. Venham, está na hora de Eula embarcar!
Minutos depois, o comboio começava a sair da gare. O imenso motor negro expelia grandes nuvens de fumo e de vapor para o ar frio. Eula meteu a cabeça fora da janela e ficou a ver Delia e a Sra. e o Sr. Phillips a acenarem e a recuarem rapidamente para um plano distante. Por fim, acabou por se sentar novamente no seu lugar, com o bebé ao colo. Jimmy, sentado a seu lado, encostou-se mais a ela. Pegou-lhe na mão e apertou-a na sua. O cabelo preto ondulado e os olhos verdes de Jimmy tornavam-no realmente parecido com Delia.
Eula recomeçou a chorar.
Sentados defronte de Eula e de Jimmy, iam dois cavalheiros bem vestidos. Um deles era um homem grande e de constituição pesada, que aparentava ter cerca de quarenta anos; tinha uma cabeça enorme e óculos de pince-nez. A cara dele não lhe era estranha. Quando Eula começou a soluçar, ele desviou educadamente o olhar para a edição do Statesman que tinha pousada sobre o colo.
O outro passageiro usava os óculos azul-cobalto próprios dos cegos. Manteve a cabeça ligeiramente inclinada na direcção de Eula, o que lhe estava a causar um certo desconforto.
164- Peço desculpa - disse ele, passado um momento -, está alguma janela aberta? Talvez alguém possa fazer a gentileza de a fechar. Isto é, se eu não for o único a ter frio.
Jimmy fez menção de se levantar, mas o Dr. Terry instou-o a permanecer onde estava.
- Eu trato deste assunto, jovem. - Dirigiu-lhe um olhar de comiseração, como quem reconhece que consolar uma esposa chorosa tinha prioridade sobre o resto. O Dr. Terry fechou a janela, regressou ao seu lugar ao lado do Dr. Fry e voltou a olhar distraidamente para o jornal.
Jimmy abraçou Eula e encostou-se mais a ela, sussurrando-lhe ao ouvido:
- Não chores, amorzinho. Vai ser tudo diferente na quinta. Vais ver. Tudo mudará para melhor. Prometo!
Eula tinha a certeza de que o hálito de Jimmy cheirava a uísque.
Nesse mesmo dia, Dave Schoemaker trabalhou até tarde, ajudando a dar os retoques finais na edição da manhã seguinte do Statesman. Gaines queria mais uma história sobre o assassínio de Mollie Smith. Dave informou-o de que o caso não tinha tido desenvolvimentos.
- E depois? - ladrou-lhe Gaines. - Se não ha nada de novo a dizer, diz isso mesmo!
Depois de tudo o mais estar concluído, Dave pegou no telefone da redacção e pediu à telefonista que ligasse à Polícia. Felizmente, não foi o Comissário Lee a atender o telefone. Pouco depois, Dave fez chegar ao tipógrafo uma última nota, para ser colocada na página das notícias locais.
Esta noite, à hora do fecho de edição do Statesman, um contacto telefónico com a esquadra da polícia informa que está tudo tranquilo na cidade de Austin.
165V
A Viagem de Regresso:
da Cidade de Nova Iorque ao Texas, 1906
- Importa-se que fechemos a janela? - O Dr. Kringel pousa o livro que está a ler. - Sinto um bocado de corrente de ar.
- De modo algum. Deixe-se estar, eu fecho. - William Sydney Porter levanta-se do seu lugar. Estão a viajar em primeira classe e dispõem da carruagem toda para eles.
Porter agarra no rebordo da janela de ambos os lados e empurra-a para cima. Este esforço faz disparar uma dor aguda no fundo das suas costas. Range os dentes. O que significam estas constantes dores de costas, por vezes de uma violência tal, que o impedem de dormir? Há relativamente pouco tempo, Porter procurou uma descrição dos sintomas de que padecia num manual de medicina - tinha aprendido a fazê-lo nos seus tempos de ajudante de farmácia em Greensboro; anos mais tarde, trabalhando no dispensário da prisão de Ohio, tornara-se bastante competente a diagnosticar as mazelas dos seus parceiros de cárcere. Acabou por concluir que sofria da doença de Bright, uma inflamação renal. Era irónico, pensou, que uma condição tão desagradável tivesse um nome tão Simpático.
Contudo, os médicos rejeitam o seu autodiagnóstico. Dizem-lhe para não se preocupar, que a única coisa de que sofre é de excesso de trabalho e de agitação nervosa. Mandam-no parar de beber e receitam-lhe drogas para conseguir dormir. Segundo eles, as dores crónicas no abdómen e nas costas não são mais do que uma consequência da sua idade avançada. Mas Porter tem apenas quarenta e três anos! Certamente não devia começar a desintegrar-se tão cedo...
A dor diminui de intensidade. Volta para o seu lugar à frente do Dr. Kringel e arranja forças para esboçar um sorriso.
- Está melhor assim, Herr Doutor?
166- Muito melhor. Obrigado, Sr. Henry.
- Sssh! Sr. Porter, por favor. Como sabe, estou a viajar incógnito. Kringel sorri.
- Um lapsus linguae. É engraçado que, para viajar incógnito, use o seu nome verdadeiro. Talvez eu devesse adoptar um nome falso, para que viajássemos ambos incógnitos - observa com uma gargalhada.
- Oh, eu acho que ”Herr Doutor Kringel” já é suficientemente sonante.
- Crê que sim?
- Tal como qualquer outro nome digno de ser usado.
Kringel sorri e retoma a leitura interrompida. O nome da editora, impresso na lombada do livro, capta a atenção de Porter: S. McClure. É apanhado de surpresa e inclina-se para a frente.
- Deus meu!
Kringel baixa o livro e dirige a Porter um olhar intrigado.
- Está a ler Cabbages and Kings!
Kringel desata a rir.
- Estava a ver quanto tempo levaria a reconhecer o seu próprio livro, Herr Porter.
- A minha surpresa é apenas suplantada pelo meu contentamento, Herr Doutor. O ponto alto do dia de qualquer escritor é ver um cavalheiro a ler um livro seu no comboio. Ora então, deixe-me autografá-lo!
- Porter tira expeditamente o livro das mãos de Kringel. - Mas que e isto? Falta-lhe a página de rosto!
- Ah sim?
- Repare, consegue-se ver aqui, ao longo da costura, o sítio onde a página foi arrancada. O meu livro, mutilado!
- Posso assegurar-lhe de que não fui eu! - diz Kringel desculpando-se, passando os dedos ossudos pelas melenas de cabelo branco.
- Onde adquiriu o livro? Kringel parece hesitar.
- Numa bancada de livros em Manhattan. Pensei que, uma vez que íamos viajar juntos, era minha obrigação lê-lo. As histórias são verdadeiramente deliciosas.
- Compreendo. - Porter pergunta a si próprio se o doutor teria andado às voltas à procura de um exemplar em segunda mão; se assim não fosse, que explicação poderia haver para a página arrancada? A percentagem
167que recebia pela venda dos seus livros ja era suficientemente reduzida, mesmo sem que as pessoas comprassem livros usados! - Bom, não tem importância, autografo-o na mesma. - Porter abre o livro na página de anterrosto e escreve: ”Ao Herr Doutor Kringel, meu companheiro de viagem. Enquanto o comboio nos leva em direcção ao Texas, possam estes contos levá-lo à tropical Anchuria e trazê-lo de volta são e salvo - O. Henry”.
Devolve o livro a Kringel. Este lê a dedicatória com um sorriso e guarda o livro na bolsa de cabedal castanha que conserva permanentemente a seu lado.
- Qual a origem do nome ”O. Henry”, diga-me.
- Nem eu próprio sei, embora, ao que parece, toda a gente tenha uma teoria sobre o assunto.
- E o ”O”, significa o quê?
- Nada. Literalmente nada, como um zero. É uma cifra, não é uma letra.
- Certamente que não.
- Não, certamente uma cifra!
O rosto de Kringel mantém-se impassível por momentos mas acaba por se desfazer numa gargalhada.
- Fez um trocadilho!
- Na verdade, creio que foi o senhor quem fez o trocadilho, Herr Doutor. Eu limitei-me a elucidá-lo. Mas fique descansado que não o julgarei com demasiada severidade; a capacidade para fazer trocadilhos é um defeito congénito mas não congenial, mais digno de compaixão do que de troça. Mas, para responder seriamente a questão que me colocou, o nome foi, desde sempre, simplesmente ”O. Henry”, embora aqui há uns anos tenha tido um editor que insistia em pedir-me um nome próprio para a menção de autor. Na altura, disse-lhe que o ”O” era de Olivier.
- E e?
- Não. Presumo que seja de Ornar, como em Ornar Khayyam.
- Ah: ”Um naco de pão, um jarro de vinho, um livro de versos e tu a meu lado em terras selvagens”.
- Parece formidável, não parece? Ornar tinha tudo isso; eu tenho bolachas de água e sal, uma garrafa de bolso, um horário dos comboios e o senhor no banco da frente.
168- Mas seguimos em direcção a terras selvagens, não é verdade, Sr. Porter? Devo confessar-lhe que a ideia de ir a caminho do Texas faz com que me sinta um explorador intrépido.
- Não será Manhattan, mas também não é exactamente o Bornéu.
- As imagens que associo ao Texas são de tiroteios e cascavéis.
- É bem possível que chegue a ver ambas as coisas, da mesma maneira que pode ver uma manifestação laboral ou carteiristas em Nova Iorque. Mas certamente concorda comigo que Nova Iorque não se esgota nessa imagem e, pela mesma ordem de ideias, o Texas é mais do que isso. Quando penso nos tempos que lá passei, são o céu imenso e corações magnânimos que recordo. - Porter olha para fora da janela. A ideia que a maior parte das pessoas tem do Texas é a de um deserto plano ou de terras de pastagens quando, na realidade, os arredores de Austin são montanhosos, com prados verdejantes, flores silvestres e florestas de carvalhos. Austin não é uma cidade grande, mas leva-se muito a sério, pois alberga o capitólio, a universidade e tudo o resto. É o género de cidade em que a maior parte dos que a habitam nasceu noutro sítio qualquer e escolheu ir para ali viver de livre vontade. Aliás, é assim na grande maioria das regiões do Texas; o Texas é a fronteira, ou pelo menos era, nos tempos em que eu lá morei. E as pessoas tendem a ser mais livres numa zona em que as raízes não vão muito fundo. Ha espaço para se movimentarem. E movimentam-se com calma, sobretudo nos meses de Verão, quando está um calor infernal e o único expediente eficaz para nos refrescarmos é dar um bom mergulho na agua fria de uma nascente. Ao chegar o mês de Agosto, os homens adultos vão até ao pego das Nascentes de Barton e atiram agua uns para cima dos outros como se fossem miúdos pequenos.
- Parece-me detectar uma certa nostalgia nas suas palavras. Porter sorri.
- Era um sítio fantástico para um jovem de vinte e poucos anos viver. Bem, o mais provável é que todos os sítios sejam fantásticos quando se tem vinte e poucos anos.
- Por que razão deixou o Texas?
Porter olha novamente para fora da janela.
- Circunstâncias.
- E alguma vez lá voltou?
169- Não. - Porter muda de posição, sentindo-se desconfortável. As costas começaram novamente a doer-lhe. É dos bancos, diz para consigo. São mais duros do que aqueles a que está habituado. A viagem, já de si longa, parecer-lhe-á ainda mais longa se passar o tempo todo com dores.
- E o senhor, Herr Doutor? Qual é a sua origem?
- Oh, uma aldeiazinha na Baviera de que nunca ninguém ouviu falar. Mas já estou na América há muitos, muitos anos.
- Assim me pareceu, dado o sotaque quase imperceptível. E nunca tem saudades de casa?
- Da Alemanha? Claro que sim.
- Alguma vez lá voltou?
- Não. - O Dr. Kringel parece tão disposto a falar sobre as suas origens como Porter, que considera vagamente a hipótese de o seu companheiro de viagem ter, também ele, no seu passado, coisas em relação as quais prefere manter silêncio.
Porter espreita pela janela. Estão a atravessar terrenos cultivados, algures em Nova Jérsia. Fazer esta viagem é uma loucura, pensa Porter. Uma loucura! Este pensamento ocorre-lhe mais ou menos de meia em meia hora, mas ainda não foi suficientemente forte para o levar a puxar o travão de emergência. O sentimento de inevitabilidade que parece ter-se apoderado dele e mais intenso do que a ideia de que é completamente absurdo ter decidido viajar até ao Texas só porque sim.
Porter boceja. Na noite anterior, no seu quarto da Praça Irving, surpreendeu-se a si mesmo conseguindo escrever, não duas, mas três histórias completas, o que lhe permitiu sair da cidade sem deixar compromissos pendentes. Ainda lhe doem os pulsos de ter escrito tanto. Sente a cabeça pesada por falta de sono. Deixou os manuscritos ao cuidado da senhoria, juntamente com pequenas cartas dirigidas aos seus editores, nas quais informava, sem fornecer pormenores específicos, que estaria ausente da cidade por uns dias.
Está a caminho do desconhecido e livre como um passarinho. Se tivesse vinte anos, a situação afigurar-se-lhe-ia como uma aventura excitante. Mas Porter sabe que não é disso que se trata, embora não tenha qualquer certeza quanto ao que de facto é.
As personagens das suas histórias passam a vida a fazer coisas inesperadas, ou a ser vítimas de coisas inesperadas. É por esta razão que os leitores as adoram; a maior parte do que acontece na vida é tão monotonamente
170previsível, que toda a gente clama por acasos fortuitos, desenvolvimentos imprevisíveis e finais surpreendentes. Agora, é ele que se vê a braços com uma viagem que nunca poderia ter previsto, nem sequer vinte e quatro horas antes. Devia sentir excitação, como de facto sente, mas este entusiasmo surge misturado com um certo desconforto. Porter tem a sensação de estar a ser arrastado para o centro de algo muitíssimo lúgubre, de ter sido convocado por fantasmas. O Dr. Kringel chamou-lhe nostálgico, o que é verdade, mas a nostalgia é susceptível de ter um lado negro, tão gelado e vazio como a própria morte.
O doutor parece estar a seguir o fio dos seus pensamentos.
- Peço-lhe que me desculpe a pergunta, se acaso estiver a intrometer-me no que não me diz respeito, mas não consigo deixar de sentir-me curioso quanto aos eventos a que o Dr. Montgomery alude na carta
- os ”crimes revoltantes”, creio que foi assim que os referiu.
- A obra dos Aniquiladores das Criadas - murmura Porter, com um toque de ironia na voz.
- Como diz?
Porter aclara a garganta e levanta a voz.
- ”Os Aniquiladores das Criadas”: uma designação que inventei na altura, quando as coisas aconteceram, a laia de piada. - Baixando os olhos, acrescenta: - Hoje, parece-me estranho que tenha sido capaz de dizer uma piada sobre um assunto de tal natureza.
- Depreendo que houve uma série de assassínios em Austin, em 1884 e 1885?
- Sim. Mas, repare, a maneira como põe as coisas ao dizer ”uma série de assassínios” só pode ser avaliada retrospectivamente. Dito dessa forma, os acontecimentos aparecem alinhados; dando a entender que as coisas começaram em determinado ponto, acabaram noutro ponto e que, entre um e outro, ocorreu a tal série de eventos. Ora, na altura, quando está tudo a acontecer, e sobretudo no início, não vemos as coisas dessa maneira. Não é possível ver o princípio, o meio e o fim. Não é possível descortinar tais relações entre os factos. - Porter abana a cabeça. - Não pensava neste assunto ha anos. É como... como por de parte um manuscrito com o qual nunca conseguimos sentir-nos inteiramente satisfeitos, mau grado o facto de nos termos dedicado a ele de alma e coração; a certa altura, torna-se um tormento. Vários anos depois, encontramos esse mesmo manuscrito num caixote e damos uma vista de olhos pelas
171páginas: partes do texto são-nos familiares e parecem-nos reais, mas há outras partes das quais não nos conseguimos lembrar de todo, como se tivessem sido escritas por outra pessoa...
O Dr. Kringel meneia a cabeça pensativamente.
- Creio que compreendo o que quer dizer. Se o passado lhe for demasiadamente doloroso e preferir não falar dele...
- Não, não é disso que se trata. O que sinto é excessivamente indistinto para se lhe chamar dor. É apenas o facto de se terem passado muitas coisas, de tudo se ter passado no meio de uma grande confusão, há já muito tempo, e de nunca se ter encontrado uma resolução para o que aconteceu. Claro está que, em bom rigor, as coisas nunca se resolvem. Nunca se resolvem por completo, quero eu dizer. Uma coisa leva a outra, que por seu turno levará a outra... - Porter esta a pensar na chantagista e dá graças a Deus pelo facto de a distância que o separa daquela mulher aumentar um pouco mais de cada vez que as rodas do comboio perfazem uma rotação! É deveras curioso que o Dr. Montgomery tenha invocado o nome de Eula Phillips na carta que o levou a empreender esta viagem ao Texas, pois a ligação original entre Porter e a chantagista fora, precisamente, Eula Phillips..
- Peço-lhe que me desculpe - diz Kringel. - Vejo que o assunto o transtorna.
- Não, não; se estou a fazer caretas, e apenas porque as minhas dores de costas me estão a afligir. É perfeitamente natural que se fique curioso quando alguém fala de ”crimes revoltantes”. A contemplação do horror e da destruição a uma distância segura é o passatempo universal da nossa era. Basta pegar num jornal qualquer, para se obter a dose diária de naufrágios, bombardeamentos, execuções, assassínios...
- Pelo seu tom de voz, deduzo que não aprova a conduta dos jornais. No entanto, escreve para esses mesmos jornais, não é verdade Sr. Porter?
- Sim, é verdade, mas as minhas histórias são uma espécie de antídoto contra o veneno dos horrores e da destruição. Eu represento a página a que os leitores recorrem quando precisam de brometo. - Porter sorriu pesarosamente. - Ora bem, o que quer saber sobre os ”crimes revoltantes” que ocorreram em Austin?
- Quando tiveram início? Quem foi a primeira vítima?
- Bom, se a memória não me falha, a primeira morte ocorreu numa data muito próxima da noite de fim de ano de 1884. A vítima era uma
172
rapariga de cor que tinha um nome vulgar, Mollie ou Maggie ou Mary, Smith ou Jones ou Johnson. Interrogo-me se ainda haverá, mesmo em Austin, quem se recorde do nome da pobre rapariga. - Porter parece meditar por momentos e acaba por soltar uma gargalhada. - Lembro-me de Dave Schoemaker me dizer que estava constantemente a enganar-se no nome dela e que tinha de confiar no tipógrafo para lhe topar a gralha.
- Dave Schoemaker?
- Um amigo meu que escrevia no jornal. A mesma pessoa que, por coincidência, me apresentou ao Dr. Montgomery e à mulher dele na Primavera desse mesmo ano. Naquela altura, o mundo era muito pequeno.
- E ainda é - diz o Dr. Kringel -, pois aqui estamos nós, duas pessoas nascidas a um mundo de distância uma da outra, e partilhando, não obstante, uma série de ligações, talvez até mais do que nos damos conta.
- Bem, teremos certamente tempo para descobri-las todas antes de chegarmos ao Texas.
- Sim, dar-nos-á pretexto para conversa durante a viagem. - Kringel pigarreia. - Creio que há bocado o ouvi mencionar uma garrafa de bolso.
- Boa ideia! Sobretudo tendo em consideração que vou relembrar
assassínios, horrores e destruição. - Porter saca a garrafa de bolso do colete. Descobre um pequeno armário por baixo da janela com copos para uso dos passageiros. Serve a ambos um dedo de uísque.
- Um brinde - propõe o Dr. Kringel. - Ao passado.
- Porter hesita.
- Seja: ao passado.
O uísque aquece-lhe a garganta.
- Deixe-me ver do que consigo lembrar-me. Parece-me que havia um machado - sim, o machado foi a arma utilizada em todos os assassínios, e esse era o aspecto mais chocante daquilo tudo. Depois da morte da primeira, da pobre Mollie Smith, ou Mary Jones, ou lá o que era, prenderam um jovem negro com o argumento de que tinha sido um crime passional. Está a ver, eles não faziam ideia do que ainda estava por vir...
- Abana a cabeça. - Depois disso, se bem me recordo, houve uma trégua.
- Uma trégua?
173- Não houve mais nenhum assassínio durante algum tempo, pelo menos como aquele. A vida prosseguiu normalmente, durante a Primavera. Não aconteceu nada de extraordinário... - Porter encolhe os Ombros, mas ha nos seus olhos um tremeluzir inusitado, e na testa uma ruga funda. Solta um suspiro e sente o fantasma de uma agulhada de dor infligida há muito tempo, uma ferida no coração que lhe chega de uma Primavera já quase esquecida.
Minuto após minuto, o som metálico das rodas do comboio sobre os carris afasta-os cada vez mais de Nova Iorque e aproxima-os cada vez mais do Texas. Porter rememora e o Dr. Kringel inclina-se para diante, ouvindo com muita atenção, interrompendo de vez em quando para colocar uma pergunta. Parece-lhe estranho que um filósofo possa ficar tão fascinado com uma matéria tão sórdida como aqueles assassínios que ocorreram no Texas, há tanto tempo. Por outro lado, pensa Porter, porque não? Mesmo incógnito, O. Henry é um contador de histórias de invulgar talento e o que é um filósofo senão uma criatura de carne e osso, tão ávida de sensacionalismo como outro homem qualquer?
174II Parte
Entre os Boxímanes
Austin e Liendo: janeiro a Maio de 188513
- Soube-te bem o pequeno-almoço? - perguntou o guarda, recolhendo o tabuleiro pela ranhura.
Deitado na enxerga, virado para a parede, Lem rosnou. - Papas de argamassa. Um fiapo de bacon rançoso. E aquilo era café ou agua de lavá pratos?
- Insulta a minha comida, insulta! Olha, é pena que não te tenha sabido bem. Foi a última refeição que comeste aqui.
Lem. voltou-se, de maneira a ficar de frente para as grades. A carranca do guarda transformou-se num sorriso trocista.
- Quer dizer que... - Lem sentiu a boca seca.
O guarda lançou a cabeça para trás e cacarejou. Por momentos, Lem convenceu-se de que o homem tinha estado a fazer troça dele. Mas depois o guarda deu um suspiro, afastou do olho uma lágrima de riso e começou a procurar por entre as chaves que pendiam da argola grande que transportava consigo, até encontrar a que queria. O cadeado soltou-se com um estalido. A porta estava aberta.
Lem inclinou ligeiramente a cabeça.
- Onde é que tá a graça?
- Na cara que tu fizeste! Vá, despacha-te. O que se passa, estás surdo? Puseram-te em liberdade. Devem ter chegado a conclusão de que, afinal de contas, não foste tu que deste cabo daquela pobre rapariga.
Lem ergueu-se cautelosamente e atravessou a cela. Três passos depois, já se encontrava do outro lado. O guarda voltou a fechar a porta da cela com estrondo. O som do metal a tinir reverberou por todo o corredor.
O guarda desceu as escadas à frente dele. Voltou a remexer na argola das chaves e abriu o cadeado de uma caixa de metal que estava em cima do balcão da entrada. Dentro desta caixa, estavam as coisas que lhe tinham tirado dos bolsos no dia em que o Comissário Lee o prendera: algumas moedas (o pagamento que recebera por ter dado as deixas para as danças no baile de Sand Hill - parecia que tinha sido há séculos), um
177canivete, a chave da porta da rua da casa de Rosie Brown, uma bolsinha de pano com algum tabaco dentro.
O guarda apresentou-lhe um formulário e uma caneta de tinta permanente.
- Diz aí que as tuas coisas te foram todas devolvidas. Por baixo está a data: segunda-feira, 12 de Janeiro. Faz a tua marca que eu sirvo de testemunha.
- Eu tou sabendo assiná o meu nome - disse Lem em voz calma, mas a mão tremia-lhe de tal maneira que o ”W” saiu um gatafunho ilegível e, ao fazer o ”i”, carregou na caneta com tanta força, que rasurou ambas as letras com um borrão de tinta. Lem parou, respirou fundo e começou novamente, concentrando-se em cada uma das letras de Wílliam Brooks.
- Estás livre, podes-te ir embora. E não te metas em mais sarilhos! O guarda agarrou no papel, bateu com a tampa ao fechar a caixa e puxou a caneta da mão de Lem. Voltou a lançar a cabeça para tras e tornou a cacarejar. - Oh, a cara que tu fizeste ha bocado!
Lem atravessou o pequeno vestíbulo da entrada e transpôs a porta da rua. Deteve-se por momentos nos degraus. Sentia-se mais ou menos como no seu primeiro dia em Austin, quando pusera o pé na plataforma, ao sair do comboio: um estranho sem ninguém à sua espera nem lugar para onde ir. Tinha à sua frente os terrenos do Capitólio. A Direcção-Geral do Território avultava-se na colina do outro lado da rua, como um bolo gigantesco decorado como um castelo. O dia estava nublado, com um manto de nuvens cinzento-pérola por entre as quais se via, aqui e ali, um reflexo branco-amarelado indicando o sítio por onde o sol quase tinha conseguido fender. A luz pálida e enevoada emprestava às coisas um toque de irrealidade. Lem rezou para que isto não fosse um sonho. Chegou mesmo a fechar os olhos por momentos e, quando voltou a abri-los, nada tinha mudado. Estava livre.
O seu primeiro impulso foi ir direito ao Black Elephant. Hugh Hancock prometera conservar-lhe o emprego, e uma cerveja era justamente o que vinha agora a calhar, não, uma dose de uísque! E não era da mistela barata, mas do melhor uísque da casa, da marca que o próprio Sr. Hancock bebia e que Lem costumava servir ao Comissário Lee...
O ar estava gelado. Lem enfiou as mãos nos bolsos e tocou com os dedos na chave de casa. Talvez devesse ir primeiro à casa de hóspedes, para se assegurar de que estava tudo em ordem. Um banho quente e
178prolongado na selha seria o paraíso! Mas a ideia de ver Rosie Brown não se lhe afigurava nada tentadora.
Talvez caminhar um pouco pela Avenida do Congresso o ajudasse a pôr as ideias em ordem, mas Lem não estava certo de querer confrontar-se com tantas caras de uma só vez. Quem sabe o que teriam as pessoas andado a dizer sobre ele, ou que reacção teriam ao vê-lo novamente nas ruas?
Desviou-se da Avenida, vagamente decidido a dirigir-se ao Black Elephant; se andasse uns quarteirões para leste, virando depois para sul na Rua Neches, passaria ao largo da zona mais movimentada da cidade. No entanto, quando chegou à Neches, seguiu em frente e atravessou a rua. Era estranho, mas Lem tinha a impressão de que os seus pés sabiam exactamente para onde o levavam, mesmo que ele não soubesse. Chegou à Rua Red River; o estabelecimento de Fannie Whipple ficava em Red River. Saber-lhe-ia mesmo bem um pouco de conforto feminino! Mas os seus pés continuaram a avançar. Atravessou a pequena ponte sobre a Ribeira de Waller e depois toda a extensão da Avenida Leste. Prosseguiu em direcção à zona de Sand Hill e do Instituto Tillotson. Nesta zona, o caminho tornava-se mais íngreme. A subida fê-lo ofegar ligeiramente, mas soube-lhe bem; era realmente bom sentir os músculos das compridas pernas a puxar e distender depois de tantos dias metido dentro de uma cela. Inspirou várias golfadas de ar frio e seco, até o peito lhe doer e sentir a cabeça tão leve como um balão.
Quando viu o local, percebeu imediatamente que era ali, embora não se lembrasse de ter jamais reparado nele. Atravessou o pátio cinzento, abeirou-se de uma das janelas e pôs-se em bicos de pés para espreitar lá para dentro. Não conseguia ver bem os rapazes e as raparigas sentados nas carteiras, mas via perfeitamente o professor, andando lentamente para a frente e para trás diante da turma com um livro aberto nas mãos, e lendo em voz alta, na sua voz grave e distinta:
”Quem és tu, mulher de rosto escuro, tão antiga e quase humana, De turbante na cabeça crespa e branca, e os pés descalços de ossos salientes?
Por que te ergues aqui à beira da estrada e saúdas a bandeira?”
William Holland fez uma pausa e ergueu os olhos do livro para poder observar as caras dos alunos, que seguiam cada palavra com atenção arrebatada.
179Ao fazer este movimento, reparou no homem que espreitava já para dentro por uma das janelas. Holland tirou os óculos de ler, pestanejou várias vezes e depois sorriu:
- Dêem-me licença por uns minutos, meninos. Tenho ali uma visita, Eudócia, queres continuar a ler o poema do Sr. Whitman na minha ausência?
Uma rapariga que estava sentada na primeira fila levantou-se respeitosamente e aceitou o livro das mãos dele. Pigarreou e começou a ler em voz aguda e cantada:
”Eu, senhor, há cem anos que fui separada de meus pais,
Era uma criança, e apanharam-me como se apanha um animal selvagem,
Depois o cruel negreiro obrigou-me a atravessar o mar.”
Lem Brooks aguardava-o nos degraus da entrada. Os ombros tremiam-lhe e a voz saiu-lhe sufocada de lágrimas.
- Obrigado, Sr. Professor! Holland apertou-lhe os ombros.
- O que é que isto quer dizer? Deixaram-te sair? Estás livre?
Lem tentou responder, mas não foi capaz e acenou com a cabeça afirmativamente.
- Obra sua - acabou por conseguir dizer. - Não foi?
- Fiz o que pude - respondeu Holland.
- Bendito seja Deus, por si e pela Avó Sooty! Holland esboçou um sorriso intrigado.
- Fiquei com a impressão de que já não tinhas família, Lem.
Lem abanou a cabeça e soluçou. Holland deu um passo em frente e envolveu-o nos seus braços.
As crianças deviam tê-los ouvido, pois do interior da sala vinha apenas o silêncio. Por fim, Eudócia continuou a ler:
”O que foi, mulher fatídica, tão chorosa e quase humana?
Porque abanas a cabeça em turbante envolta, amarelo, vermelho e verde?
O que viste ou tens visto é assim tão estranho e maravilhoso?”
Na manhã desse dia, o Comissário Grooms Lee estivera ocupado noutras paragens. Normalmente, teria chamado a si a responsabilidade
180de libertar o prisioneiro mas, no caso de Brooks, não teve estômago para o fazer. Assinou os papéis necessários e deixou o resto ao cuidado do guarda. O Procurador-Público estava a ser um tolo ao ordenar que Brooks fosse solto. Lee dissera-lho cara-a-cara, praticamente com estas palavras, mas Robertson insistira. Paciência: Lee sabia onde Brooks vivia e trabalhava. E fazia tenções de o manter debaixo de olho.
Naquele momento, porém, o Comissário estava a tratar de assuntos noutra zona da cidade, numa rua de casinhas e barracas a nordeste dos terrenos do capitólio. Um pouco depois da Avenida Norte, parou o cavalo e desmontou. A casa não tinha um pátio dianteiro propriamente dito, apenas um rectângulo de terra batida cuja demarcação em relação à rua era virtualmente imperceptível; tinha, não obstante, um poste de atrelagem de madeira de cedro. O Comissário Lee prendeu o cavalo e, com passos estrepitosos provocados pelo bater das pesadas botas nos degraus, subiu ao alpendre. A casa estava mesmo a precisar de uma pintura. O ponto do rebordo da porta onde o Comissário bateu com os nós dos dedos tinha a tinta gasta até a madeira.
Foi uma mulher negra de meia-idade quem veio atender. Assim que viu o boné com o entrançado dourado e o uniforme azul, limpou as mãos ao avental e tirou-o.
- É aqui o número 1511 da Rua Brazos? - perguntou o Comissário.
- Sim, senhor.
- Não tem o número à vista.
- Teve aí um número pintado por cima da porta; gasto, eu acho.
- Você é Cynthia Spencer?
- Tou sendo, sim.
- O seu filho está em casa?
- Tenho três filho. E todos tão vivendo comigo agora. Os dois mais novo não tão aqui, não: tão trabalhando.
É do Walter que eu venho a procura.
O Walter tá em casa, mas tá se sentindo muito mal. Tá descansando na cama.
- Não tou não, mamã. - Atrás dela, materializou-se uma figura corpulenta, mergulhada na sombra. - Quem tá batendo à porta?
- Já me conheces, Walter - disse o Comissário. - Vem até ca fora ao alpendre.
181Cynthia afastou-se para lhe dar passagem, mas Walter recuou.
- A luz tá doendo nos meus olhos.
- Vem cá para fora na mesma. Continue o que estava a fazer, Sra. Spencer. Ou será Menina Spencer?
A mulher dirigiu-lhe um olhar azedo e retirou-se. Walter avançou até ao alpendre. Tinha a cabeça envolta em ligaduras. Parte da gaze estava descaída, de maneira a proteger um dos olhos.
- Com que então voltaste para casa da tua mãe - disse o Comissário.
- Sim, senhô. Não cheguei nunca a ser hóspede da família Hall. Não tava pagando renda. Quando Mollie se foi, eu tive de ir embora.
O Comissário inclinou a cabeça.
- Apesar de tudo, ainda conseguiste ter uma situação bastante confortável por uns tempos. Sem encargos de renda, uma cama quentinha. Deves sentir terrivelmente a falta da Menina Mollie.
- Sinto, senhor!
- E ainda não voltaste ao trabalho?
- Ainda não, senhor. Tentei fazer coisa pequena para um indivíduo, ontem mesmo, mas a minha cabeça não tava aguentando. Me dá umas dores de cabeça horríveis! Tal como Mollie costumava ter, acho. Tinha dores de cabeça tão forte que nem conseguia ver direito. Se deitava na cama sem mexê e me batia se eu fizesse estalá uma tabuinha do chão que fosse. Eu fazia caretas quando ela não tava olhando, porque não tava acreditando que as dores pudessem ser tão ruins, não. Mas Deus meu! Agora tou acreditando. Se calhar me passou as dores de cabeça quando se foi, como uma maldição.
O Comissário olhou para ele com uma expressão malévola.
- Mollie tinha algum motivo para te lançar uma maldição?
- Não! Não tinha nem um tiquinho de razão para ter má vontade, mas isso não impedia Mollie, não. - Walter riu baixinho e depois rangeu os dentes com força.
- Fui obrigado a deixar o Lem Brooks sair da prisão hoje, Walter. O Procurador-Público não vai acusá-lo do assassínio da Mollie.
- Não vai? - Walter assumiu uma expressão desconcertada.
- Percebeste? Lem foi solto e pode andar por aí à vontade. Achei que devia vir dizer-te, Walter. Se foi o Lem Brooks que assassinou a Mollie e te pôs a cabeça nesse estado, quem pode garantir que ele não tentará acabar o que começou?
182- Quer dizer, vir atrás de mim com um machado?
- Talvez. Achei que devias saber.
Walter abanou a cabeça.
- Nunca fiz nada de mal a esse homem.
- Talvez ele não seja da mesma opinião. - O Comissário Lee encolheu os ombros. - Ou talvez eu esteja enganado sobre Lem Brooks e o Procurador-Público tenha razão. Mas se não foi o Lem quem se atirou com um machado à Mollie, quem foi? - Lee dirigiu a Walter um olhar duro e demorado. Era raro o homem que não se encolhia um pouco quando Grooms Lee fixava nele aquele olhar, mas as contorções de dor de Walter dificultavam-lhe a avaliação da reacção dele. O Comissário aproximou-se. - Disseste que a Mollie te passou as dores de cabeça dela. Essa pode ser outra maneira de dizer que foi ela quem te deu com o machado na cabeça. Havia dias em que ela sabia ser uma grande cabra, não era? Tu nunca lhe fizeste nada mas, ainda assim, ela tratava-te mal, dia após dia. Obrigar um latagão como tu a andar em bicos de pés, com medo de fazer estalar as tábuas do soalho! Se uma mulher dessas se levantasse contra mim e me atingisse com um machado, acho que era capaz de lho arrancar das mãos e devolver-lhe a pancada, sem sequer pensar. Foi isso que se passou, Walter?
O queixo de Walter começou a tremer. Apertou a cabeça entre as mãos.
- Tenho de me í deitá - sussurrou. O Comissário Lee abanou a cabeça.
- A Mollie tinha-te preso pelos tomates, não tinha? E gostava de lhes dar um puxão de vez em quando.
- Pare já de dizer mal da Mollie!
- E estava convencida de que tu não eras homem para se voltar contra ela. Mas enganou-se, não foi?
Walter tirou as mãos da cabeça e baixou os braços, deixando-os pender, hirtos, ao longo do corpo, com os dedos bem afastados uns dos outros, completamente esticados e a tremer. Ergueu os ombros e surgiu-lhe nos olhos um brilho selvagem. Grooms Lee teve uma sensação inusitada, um estremecimento nervoso semelhante ao medo. Sentiu que o sangue lhe abandonava as faces, mas conseguiu evitar pestanejar.
- Não me agrada nada que não esteja ninguém na cadeia pela morte de Mollie Smith - disse o Comissário devagar. - Fico mal visto. E cá
183para mim, tu não és tão atrasado como pretendes dar a entender. Esta história não fica por aqui. E tu estás metido nela até às orelhas. Tenta sair de Austin sem que eu tenha conhecimento disso, e garanto-te que vou atrás de ti com os cães de fila. Compreendeste bem, Walter?
- Compreendeu perfeitamente. - A mãe de Walter saiu para o alpendre e, agarrando o filho pelos ombros, puxou-o na direcção da porta. Enfiou a palma da mão por baixo das ligaduras, encostando-a à testa de Walter para ver se ele estava com febre. - Ele não tá indo pa lugar nenhum, Comissário. Pa onde e que queria que ele fosse? Deixe a gente em paz!
Levou Walter para dentro de casa e fechou a porta na cara de Lee. Ela não devia ter feito isto, pensou o Comissário, sobretudo quando o submisso e gentil Walter começava a mostrar a massa de que era realmente feito. Não obstante, estava satisfeito: tinha marcado a sua posição.
Desceu do alpendre, desatrelou o cavalo e içou-se para cima da sela. Subiu e desceu a Rua Brazos a passo, espreitando aqui e ali, e decidiu seguir para norte, para os lados da nova universidade, só para ver como é que paravam as modas naquela zona de Austin. Depois disso, meteria a trote pelos terrenos do capitólio e desceria a Avenida a meio galope. Pelo meio-dia, mais coisa, menos coisa, já teria feito o suficiente para abrir o apetite. Pensou para consigo que o Iron Front estava mesmo na calha para lhe servir um bife de graça.
18414
o moço de recados entrou a correr no escritório. Pelo canto do olho, Dave deu apenas por uma massa de cabelo ruivo.
- Gaines vem aí! - gritou Tommy.
Como duas capas de um livro que se fecha, Dave Shoemaker e o colega, Hiram Glass, levantaram os pés de cima da mesa e pousaram-nos no chão com um movimento das cadeiras giratórias. Gaines permitia conversas descontraídas, o hábito de garatujar compulsivamente e até o simples acto de se estar sentado a olhar para o ar; reconhecia que o trabalho de um jornalista consistia, em parte, em ruminar e discutir. A única coisa que ele não tolerava de maneira nenhuma era um par de sapatos em cima do tampo de uma secretária.
William Pendleton Gaines subiu com ar empertigado a coxia entre as secretárias dos dois jornalistas. Trazia o cabelo esticado com pomada e penteado para tras, deixando à vista a testa calva, e o bigode bem encerado e com as extremidades enroladas em caracol. Trazia vestido o seu melhor fato cinzento, que Augusta, a mulher, tinha mandado fazer num alfaiate de Nova Orleães, tendo sido ela própria a tirar as medidas e a escolher o tecido de entre várias amostras de fazenda. Trazia na mão um documento dobrado.
- David Schoernaker! - disse, praticamente a gritar. Bateu com o documento em cima da secretária, exactamente no sítio onde, momentos antes, os pés de Dave tinham estado pousados. - O que há de novo sobre o caso de Mollie Smith?
- Da última vez que ouvi falar no assunto, ainda estava morta. Gaines olhou-o com altivez.
- Muito engraçadinho. O melhor é destacar essa frase como manchete principal! Que diabo anda o Comissário a fazer para apanhar o assassino?
- Macacos me mordam se sei! Sempre que lho pergunto, ele limita-se a fazer um sorriso arrogante e a acenar com a cabeça, como se estivesse na posse de algum segredo indecente.
185- E esta?
- Duvido muito. Se quiser saber a minha opinião, Grooms Lee não passa de um mero...
- Grooms Lee é o filho de Joseph Lee, não te esqueças disso! - atalhou Gaines. - Assim que tiver início a construção do novo capitólio, na próxima Primavera, Joseph Lee será a abelha mestra desta cidade. É ele que dirige a comissão responsável pela supervisão da obra, da qual brotará um enorme rio de abundância, como o Nilo transbordando e aluviando as margens.
- O que em nada diminui o facto de Grooms Lee ser um estupor e um tiranete.
Gaines ergueu uma sobrancelha.
- David Schoemaker, o senhor diz praticamente tudo o que lhe apetece à minha frente, não é? - Fincou os punhos na cintura e ergueu o queixo. - E é precisamente por isso que eu continuo a pagar-lhe um ordenado, raios! Preste atenção a este jovem, Hiram Glass. Faria bem em seguir-lhe o exemplo.
Hiram acenou com a cabeça. Tratava-se de um indivíduo esguio, com um vago ar de monge, têmporas grisalhas, uma testa que começava a alongar-se à custa de escassez capilar e quinze anos mais do que Dave. Estava no Statesman ha mais tempo do que qualquer outro dos que lá trabalhavam, incluindo Gaines. Para além de editar as notícias estaduais e nacionais que chegavam por telégrafo, era o especialista em questões políticas.
- Ora bem, as coisas são mesmo assim, Mollie Smith era a notícia de ontem - resmungou Gaines. Agitou o documento que trazia na mão.
- E aqui estão as notícias de amanhã. Um assunto da sua área, Glass.
- De que se trata, Sr. Gaines? - Os olhos de Hiram. pareciam estar apenas entreabertos, mas tratava-se apenas do semblante normal dele.
- Cavalheiros, acabo de vir de um almoço na Mansão do Governador. Tenho em meu poder uma cópia do discurso que o Governador Ireland vai proferir amanhã, na abertura da Décima Nona Sessão Legislativa do Estado.
- Valha-nos Deus, os políticos estão prestes a reunir-se novamente!
- disse Dave.
- E não haverá escassez de notícias quando isso acontecer - disse Hiram, apaticamente. Para Dave, o influxo de legisladores e respectivos
186funcionários era sinónimo de, à noite, ser virtualmente impossível encontrar um banco livre aos balcões de GuyTown. Em termos de crime, havia sempre a possibilidade de um ou dois políticos serem apanhados num escândalo relacionado com o jogo, ou numa rixa num bar, ou até mesmo num tiroteio. Os membros da assembleia legislativa eram conhecidos pela sua índole vivaz. Para Hiram Glass, porém, a abertura da nova sessão significava passar longas horas a ouvir discursos enfadonhos e outras tantas horas a estudar minuciosamente resmas de projectos-lei. Poucos homens eram tão versados como ele nas lides da assembleia legislativa e poucos possuíam a sua percepção das personalidades nela envolvidas. Contudo, os vastos conhecimentos de Híram resultavam da sua diligência e não de uma paixão; na verdade, a política entediava-o profundamente, o que era uma das razões pelas quais era tão bom repórter político. Não tinha preferências de fundo, nem pontos de vista arreigados, pelo que não tinha a mínima dificuldade em se submeter às opiniões de William Pendleton Gaines fosse sobre que assunto fosse, e em enviesar os seus artigos de acordo com elas.
- Ora então, Hiram - disse Gaines -, qual e a matéria susceptível de acusar maior furor na sessão que se avizinha?
Hiram reclinou-se na cadeira e juntou as pontas dos dedos.
- Presumo que será o assunto que o Statesman resolver noticiar mais fervorosamente.
Gaines soltou uma gargalhada.
- Muito bem dito, homem! É esse o espírito! O Statesman separa o trigo do joio, a prata do refugo! Cabe-nos a nós dizer o que interessa e o que não tem interesse nenhum! Ora pois então, vou dar-vos conta de um assunto que merece ser seguido. Há uns dias, a Sra. Gaines e eu convidamos os Moore para jantar em Bellevue. Sabem quem é Taylor Moore, o deputado estadual do distrito de Travis; advogado brilhante e um indivíduo impecável em todos os sentidos! A mulher dele é um encanto, unha com carne com a minha Augusta. Indo ao que interessa: Moore falou-me de uma proposta de lei que vai fazer saltar o tecto do edifício estadual. E quando mencionou o assunto as senhoras, deviam ter visto os olhos de Augusta a faiscar.
Híram entrelaçou os dedos.
- Estara a referir-se ao projecto de lei que obriga os departamentos de estado a contratar mulheres amanuenses?
187- Exactamente! A ideia geral é a seguinte: as mulheres não conseguem obter nenhum posto de trabalho administrativo nos departamentos do governo estadual, e Moore e alguns dos colegas dele de ambas as Câmaras pretendem mudar a situação. Ora bem, não há nenhuma lei que impeça um departamento de contratar mulheres como amanuenses. Aliás há UM par de anos, a assembleia legislativa aprovou uma lei que estabelecia especificamente que a contratação de mulheres era perfeitamente legal. Desde então, imensas mulheres se candidataram a empregos no Estado, e quantas calculam voces que foram admitidas? Nem uma! As senhoras têm ficado sistematicamente de fora. O deputado Moore tem uma expressão para este fenómeno, chama-lhe, como era? Ah, já sei! O ”escudo invisível” que impede as mulheres de entrar. Ora bem, se ele e os aliados dele levarem a melhor, o Estado do Texas remediará a situação de um dia para o outro. O projecto de lei que ele apoia obriga os responsáveis pelos departamentos a contratar um número idêntico de mulheres e de homens, e não num futuro longínquo, mas imediatamente, bang, vejam-se livres de metade dos funcionários do sexo masculino e contratem mulheres para os lugares deles. Paridade dos sexos da noite para o dia! Alguma vez ouviram algo tão arrojado? Augusta estava em êxtase. ”A causa das mulheres avançara cinquenta anos de uma penada só”, dizia ela.
Dave inclinou a cabeça.
- O que acaba de descrever é porventura a noção mais descabida que eu já ouvi! Devo depreender que o Statesman tenciona apoiar este exótico projecto de lei?
- Exótico?! Absolutamente histórico! - retorquiu Gaines.
- Não fazia ideia de que o sufrágio das mulheres fosse uma das suas causas - disse Dave.
- Sufrágio? Que disparate! Mulher alguma jamais votará durante o meu tempo de vida, e dou graças a Deus por isso. Mas sempre defendi o direito de qualquer mulher entrar para o mercado de trabalho, se as circunstâncias lho exigirem.
Dave passou os olhos em redor da sala.
- Não vejo nenhuma mulher neste escritório. - Erguendo as sobrancelhas numa expressão de terror fingido, acrescentou: - Não tenciona substituir-nos, a Hiram e a mim, por senhoras jornalistas, pois não?
188Gaines deitou-lhe um olhar implacável.
- Só se continuares a vexar-me desta maneira, Schoemaker. Glass, retiro o que disse quanto a seguir o exemplo deste rapaz. Ora bem, já perdi tempo suficiente à conversa convosco. Há que regressar ao trabalho! - Gaines avançou para o seu gabinete e depois, num movimento abrupto, voltou-se para trás: - E nada de pés em cima das secretárias!
- Ergueu uma sobrancelha astuciosamente. - Duvido muito de que tivesse de lidar com este problema entre mulheres jornalistas.
Assim que Gaines se foi embora, Dave deu um impulso as pernas, colocando-as em cima da secretária. Reclinou-se na cadeira giratória e cruzou as mãos atrás da nuca.
- Despedir metade dos homens e contratar mulheres! Taylor Moore deve ser tão doido como Gaines.
- Corre por aí que é bem possível que a proposta seja aprovada disse Hiram.
- Tu dás cabo de mim, Hiram Glass.
- Estou a falar muito a sério.
- Nem daqui a um milhão de anos.
Hiram não respondeu. Abriu a enorme gaveta debaixo da secretária e tirou de lá um frasco de vidro castanho e uma colher medidora.
- Qual é a novidade do dia? - Hiram era famoso pelo seu consumo de medicamentos patenteados. Outros guardariam na gaveta da secretária uma garrafa de bolso com uísque ou um charuto meio fumado; Hiram guardava uma provisão de tónicos. Dave esticou o pescoço de maneira a conseguir espreitar para dentro da enorme gaveta. - Meu Deus, Hiram, tens aí uma farmácia inteira acumulada! Deves ter pelo menos uns vinte frascos dentro dessa gaveta.
- Cada um para um objectivo específico. E só os tomo dentro da medida do necessário. - Hiram encheu uma colher com o líquido do frasco castanho e levou-a a boca. No rótulo do frasco, Dave reconheceu o semblante grave do Dr. Terry.
- O novo parceiro de negócios do nosso patrão! Espero ao menos que tenhas arranjado o veneno de borla!
- E arranjei mesmo. - Hiram lambeu os lábios e fez uma careta. - Foi-me dado pelo próprio doutor, enquanto esteve na cidade a promover os seus artigos.
- Sabe bem?
189- O gosto é irrelevante. É extremamente eficaz a acalmar-me os nervos.
- Mas que raio de conversa é essa agora, Hiram? Tu não tens um único nervo no corpo.
- Para dizer a verdade, caro colega, toda a vida tenho sofrido de achaques nervosos. O facto de nunca teres observado sinais exteriores de perturbação vem apenas comprovar a eficácia dos meus tónicos.
- Olha-me para todos esses frascos, homem! Francamente, Hiram, cá para mim o que tu fazes é experimentar todos os remédios patenteados que aparecem no mercado.
- Uma das poucas vantagens de trabalhar neste jornal é poder ler em primeira mão os anúncios de todos os medicamentos novos. Existem tónicos específicos para virtualmente todas as maleitas de que uma pessoa se pode queixar. Incluindo, se me das licença, gases mal-cheirosos
- Hiram debruçou-se sobre a gaveta e tirou de lá um frasco verde e esguio -, cujo tratamento poderá interessar-te particularmente.
Dave tentou disfarçar, pigarreando alto.
- Nada de remédios para mim, muito obrigado. Basta-me deixar de comer feijões ao pequeno-almoço.
Hiram esboçou um sorriso seráfico.
- Ah, começo a sentir os meus nervos a acalmar. Tenho um pressentimento de que vem aí uma sessão legislativa extenuante.
19015
Com a azáfama do início do ano, o assassínio de Mollie Smith foi praticamente esquecido. As primeiras semanas de janeiro passaram a correr.
Para Eula Phillips, o novo ano significou adaptar-se a vida na quinta de McCutcheon. Tal como previra, sentia a falta de Delia. Sentia falta do burburinho de Austin. Contudo, a deslocação para a quinta parecia ter operado uma mudança para melhor em Jimmy. Longe dos bares, dos seus habituais parceiros de copos e dos pais, que o estragavam com mimos, a cabeça de Jímmy parecia começar a assentar.
George McCutcheon prometera-lhe um ordenado fixo e, dependendo do que viesse a obter-se com as colheitas e com a venda do gado, uma pequena percentagem dos lucros, a pagar no final do ano. Até aquele momento, todos os empregos de Jimmy lhe tinham sido arranjados por amigos do pai na indústria de construção de Austin. Conhecendo a reputação de Jimmy, esses homens empregavam-no apenas por deferência para com o Sr. Phillips. Não esperavam grande coisa dele e Jimmy não os surpreendia, aparecendo no trabalho, ora atrasado, ora bêbedo, e, por vezes, não chegando a aparecer de todo, e acabando invariavelmente por ser despedido algum tempo depois. Na quinta, porém, o trabalho não se compadecia com atrasos: era necessário alimentar os animais, empilhar os toros de lenha, consertar vedações, paredes e telhados - hoje, e não amanhã. Jimmy tivera desde sempre uma constituição forte e saudável, mesmo quando bebia, e trabalhar ao ar livre, exposto às agruras do clima invernoso, parecia revigorá-lo. Trabalhava afincadamente, comia com apetite e dormia como uma pedra. Uma semana depois de terem chegado à quinta, aproximou-se de Eula na escuridão da noite e fez amor com ela pela primeira vez desde o nascimento do bebé.
Quanto a Eula, tinha a seu cargo mais trabalho do que se julgara caPaz de levar a cabo. A falecida esposa de McCutcheon tinha contratado uma criada negra e, embora a mulher fosse competente, não podia dar conta de todo o trabalho sozinha. Eula cozinhava, limpava a casa, encomendava provisões na mercearia mais próxima e lavava e remendava a
191roupa de Jimmy. Tratava igualmente da roupa de George McCutcheon uma incumbência que a deixava estranhamente desassossegada. Não lhe parecia decente ter de enfiar as mãos por dentro das ceroulas de McCutcheon, para as virar do avesso. E quando punha as camisolas interiores para lavar, sentia o odor intenso do corpo dele, que era diferente do de Jimmy. Um dia, estava a passajar as costuras interiores esfiapadas das calças de ganga de McCutcheon, quando um pêlo curto e encrespado
- que só podia ter vindo do meio das pernas dele - se lhe enrolou no indicador. Esta intimidade súbita fê-la corar. Em vez de tocar no pelo, ergueu a mão e soprou-o para longe; mais tarde porém, parecia-lhe que ainda o sentia, muito ao de leve, no sítio onde ficara enrolado, como um anel.
McCutcheon, que Eula mal conhecia antes de vir para a quinta, era mais novo do que ela pensara - mais velho do que Jimmy, sem dúvida, já com uns fios de cabelo branco, mas mais novo do que o seu pai. A morte recente da esposa trouxera-lhe uma enorme tristeza. Como ele nunca sorria, Eula estava na dúvida se o achava bonito ou não. Tinha contudo a certeza de que ele era forte e estava em forma, pois um dia, quando passava pela entrada, tinha-o visto de relance em tronco nu. Tinha os ombros mais largos do que Jimmy e mais pêlos no peito - pêlos escuros e encaracolados como o que Eula tinha encontrado nas calças.
Para além de todo o trabalho que tinha a seu cargo, havia o bebé, cujas exigências pareciam nunca ter fim. Eula continuava a sentir-se desapontada e intrigada com as reacções que tinha face ao seu filho. Estava convencida de que, nela, o instinto maternal - que era perfeitamente natural noutras mulheres - era uma coisa amorfa. É verdade que, em certos dias, o bebé lhe parecia uma benção, pois fazia-lhe companhia e sem ele, Eula teria passado tempos infindos a chorar de solidão. Em dias como esses, em que McCutcheon e Jimmy saíam para trabalhar nos campos com os ajudantes, a casa ficava em completo sossego e ela já tinha despachado tudo o que tinha para fazer, acontecia-lhe ficar uma hora inteira sentada sem fazer nada para além de brincar com o bebé, dando-lhe um dedo para ele agarrar, arrulhando-lhe ao ouvido e cobrindo-o de beijos, e dizendo-lhe que ele era o anjinho dela. Em alturas como estas, parecia-lhe que o amava exactamente como devia e que era tão boa e tão normal como qualquer outra mulher.
Mas noutros dias - e hoje era um deles - parecia que o trabalho nunca mais ficava despachado, que o bebé não parava de chorar e que a criada
192só lhe atazanava a paciência. À hora do almoço, McCutcheon e Jimmy tinham vindo pela porta das traseiras e entrado na cozinha sem se darem ao trabalho de sacudir as botas, sujando de lama o chão que Eula tinha acabado de lavar. Vinham os dois de mau humor por causa de qualquer coisa e mal tinham pronunciado palavra durante a refeição. Depois de terem acabado de comer, tinham voltado a sair, regressando ao trabalho, e ela passara a tarde inteira lavada em lágrimas. O seu casamento com Jimmy tinha sido um erro desde o primeiro dia, dizia para consigo. O bebé era um duende que alguém tinha deixado por engano à sua porta. A criada odiava-a secretamente, e McCutcheon também. Estava encalhada, e condenada a envelhecer numa parcela de terra solitária, a milhas de distância de tudo o que era importante para ela.
Abriu a gavetinha de segredo da cómoda do seu quarto, onde guardava cartas e recordações. Tirou lá de dentro uma folha dobrada e ja manuseada de papel timbrado. Era uma lista que tinha começado a fazer no dia seguinte ao da chegada à quinta, e a que dera o título Todas as coisas que me farão ter saudades de viver em Austin:
Delia ir à igreja aos domingos
vestir-me para ir à igreja aos domingos
todos os chapéus elegantes com penas da chapelaria da Sra. Boddy chá das cinco e bolinhos na casa de chá Oriental
a padaria dos Lundberg (os cheirosO passear a pé pela Avenida do Congresso
dar uma vista de olhos pelos livros em segunda mão no RydelIs tamales na casa da Mamd Rodriguez
ostras no Simon!
Peças na ópera de Millett
concertos de Verão no Scholz’s Beer Garden (o dia em que andámos de balão!)
piqueniques com Delia ejimmy nas Ruínas de Stevenson
o moinho das Nascentes de Barton (mergulhar os pés na água FRIA da nascente num dia de Verão QUENTE!)
passear ao longo da Ribeira de Shoal com Jimmy os jardins dos terrenos do manicómio
a cascata no Rio Colorado
o nosso quarto em casa dos Phillips
193ter a Sra. Phillips para fazer as compras e cozinhar e Sally Mack para fazer as limpezas!
vista do telhado do hotel do pai vista de Monte Bonnell
Deitou-se na cama com a lista numa das mãos e o lenço na outra, O bebé estava deitado no berço, tranquilo. Eula fechou os olhos e deixou que os seus pensamentos vagueassem livremente. Começou por imaginar os sítios que figuravam na lista e deu por si a recordar a viagem de comboio que os havia trazido de Austin. Recordou as duas curiosas personagens que iam sentadas à frente deles, o homem cego e o médico seu amigo, cujo rosto lhe era estranhamente familiar.
Esta familiaridade devia-se, afinal, ao facto de o ter visto em anúncios no jornal. Ele tinha patenteado um remédio. Era um sujeito bastante simpático. Até tinha dado a Jimmy uma amostra gratuita do seu tónico, logo depois de se ter apresentado. O que seria feito daquela amostra? Eula lembrava-se de ver Jimmy desenrolhar o frasquinho, cheirar o tónico e metê-lo no bolso do casaco. O que é que Jimmy lhe teria feito? A resposta era-lhe agora dolorosamente óbvia: o tónico devia conter álcool. O mais provável era Jimmy tê-lo bebido todo às escondidas. Sim, recordava-se agora de ele ter desembarcado uns minutos na estação de Rourid Rock. ”Preciso de desentorpecer as pernas”, dissera então.
O homem cego também era médico ou, pelo menos, tinha-se apresentado como tal, embora na altura Eula tivesse perguntado a si própria como conseguiria um cego exercer medicina. Ocorria-lhe agora que talvez ele tivesse estudado e obtido o diploma e só então tivesse perdido a visão. Talvez fosse por isso que se tornara frenólogo - tinha ficado cego, não podia continuar a exercer a sua actividade, mas podia fazer uso das mãos. Também ele tinha sido bastante simpático. Oferecera-se para lhes fazer, a ambos, uma leitura...
Estendida na cama, Eula flutuava algures entre a memória e o sonho. Encontrava-se no comboio que partia de Austin, com o bebé no colo, Jimmy a seu lado e os dois homens sentados a frente deles.
- Um exame frenológico? - repetiu Jimmy, com a diferença de que as palavras lhe saíram. todas pegadas, examfirenlógico! - Parece-me uma excelente ideia. Não é, Eula? Mas receio que não tenhamos maneira de lhe pagar.
194- jimmy - disse Eula, embaraçada. Fungou, limpou o nariz e pensou para consigo se teria os olhos excessivamente vermelhos do choro.
- Pagar? Que isso não o preocupe - disse o homem cego com o seu leve sotaque alemão. - Qualquer coisa que ajude a passar o tempo é bem-vinda, pois o Dr. Terry e eu temos uma longa viagem à nossa frente.
- Para onde vão? - perguntou Eula.
- Para St. Louis. E daí para Chicago, penso eu. O Dr. Terry e eu viajamos bastante.
- St. Louis e Chicago - murmurou Eula, tentando imaginar tais cidades. - Nós vamos ficar muito pouco tempo no comboio. Talvez nem seja suficiente para um... - Hesitou, temendo não conseguir fazer melhor figura do que Jimmy ao pronunciar a palavra frenológico.
- Para onde vão? - perguntou o Dr. Terry
- Para um sítio chamado Hutto. É a terceira paragem.
- Hutto! - O Dr. Fry soltou uma gargalhada. - Que nome tão curioso. Não é essa a palavra que os beduinos usam para instigar os camelos? ”Hutto! Hutto!”
Eula riu-se, contra vontade.
- Julgo que deriva do nome de uma tribo índia.
- Bom, sendo assim... começo por si, jovem? - disse o Dr. Fry, a Jímmy.
- Como sabe que ele c... - começou Eula, deixando a frase por concluir.
- Como disse? - perguntou o Dr. Fry.
- Nada.
- Não, não. Faça a sua pergunta, por favor.
- Estava só a pensar como é que o senhor podia saber que Jimmy era jovem.
O Dr. Fry desatou a rir.
- Um destes dias, Frau Phillips, quando estiver numa sala cheia de desconhecidos, experimente fechar os olhos e ver o que consegue descobrir das pessoas que lá se encontram apenas através das vozes. É capaz de ficar surpreendida com a quantidade de coisas que se podem ”ver” sem usar os olhos, especialmente quando se tem prática. O seu marido tem uma voz jovem. Tal como a senhora. E não é verdade que tenho estado a ouvir um bebé? Deduzo que sejam ambos bastante jovens, para terem um bebé tão pequenino. Ora bem, se consigo saber tudo isto
195recorrendo apenas aos ouvidos, imagine o que serei capaz de ver com estas! - Ergueu as mãos e agitou os dedos no ar, como um pianista a exercitar as articulações.
- Pois bem - disse Jimmy -, desde que não custe nada. Como é que quer que eu me sente?
O Dr. Fry deu início ao que designou por exame limitado, pedindo a Jimmy que se inclinasse para a frente e baixasse a cabeça. O exame pareceu demorar um tempo imenso, durante o qual o Dr. Fry trauteava, dava estalidos com a língua e soltava pequenas exclamações. Quando finalmente terminou, reclinou-se para trás no assento e acenou com a cabeça, pensativamente.
- Parece-me... - começou ele. Jimmy estava suspenso das suas palavras. - Parece-me que é um homem de talentos ocultos. É um homem ambicioso, verdade? Tal característica é revelada pela proeminência do seu órgão de aprovatividade... aqui. - Ao dizer isto, tocou num ponto no alto da sua própria cabeça. - Contudo, queixa-se de que não tem dinheiro suficiente e, com efeito, o órgão de apropriatividade não tem uma proeminência correspondente... aqui. - Exemplificou, tocando num ponto na zona das suas têmporas. - Suspeito de que este desequilíbrio tenha frustrado as suas tentativas de encontrar os meios mais adequados para satisfazer as suas ambições. Verdade?
Jimmy acenou com gravidade.
- O órgão de cálculo, situado acima do olho, indica uma boa cabeça para números, e é igualmente muito capaz com as mãos, como indica a dimensão do seu órgão de construtividade, na região das têmporas.
- Tem razão! Eula, este homem conhece-me!
- Eu diria que um sujeito desembaraçado como o senhor podia prosperar na cidade; contudo, dirige-se para o campo.
- Vou trabalhar para uma quinta - disse Jimmy, em tom bastante menos entusiasmado.
O Dr. Fry acenou pensativamente com a cabeça.
- Não vejo razão para um indivíduo com as suas óbvias capacidades não prosperar numa quinta. Deve ter uma constituição física suficientemente saudável para trabalhar ao ar livre. A curvatura pronunciada ao longo do occipício, na zona mais recuada do seu crânio, indica que os seus órgãos internos são bastante robustos. O senhor tem um coração rijo e um fígado sólido.
196- Nesse caso, como parece que não há nada a que o meu tónico lhe aproveite, talvez deva pedir-lhe que me devolva a amostra! - exclamou o Dr. Terry com uma gargalhada. Chegou até a inclinar-se para Jimmy e a meter-lhe a mão dentro do casaco, na brincadeira.
Jimmy desviou-se para trás, rindo.
- já chega, no que me diz respeito. Agora tu, Eula.
- Não, Jimmy. Tenho o bebé ao colo.
- Eu pego nele. Deixa o homem ler-te o crânio. Estás com medo do que ele possa descobrir?
- Simplesmente não quero, Jimmy.
- Se Frau Phillips prefere declinar... - O cego encolheu os ombros. Quando o comboio parou em Rourid Rock, Jimmy declarou que ia lá fora desentorpecer as pernas. Assim que ele saiu, o Dr. Fry pigarreou.
- jovem?
Eula ergueu os olhos do bebé adormecido.
- Sim?
- Há pouco, não revelei tudo o que descobri no meu exame ao seu marido.
- Oh?
- Creio que ele tem um problema com a bebida. Terei razão? Eula baixou os olhos na direcção do bebé.
- Se se apercebeu de um certo cheiro a uísque no hálito dele...
- Eu utilizo as mãos, jovem, não o nariz! Detectei no seu marido indícios graves de fraqueza.
- Fraqueza?
- Uma falha de carácter. Uma ausência de força de vontade. Percebi imediatamente devido a certas... anomalias... presentes nos órgãos de continuidade e de firmeza. Qualquer frenólogo com experiência lhe poderia dizer que se trata de um jovem com proclividade para a escravidão alcoólica.
Eula continuou a olhar para o bebé. Manteve-se calada durante muito tempo.
- Acho que o senhor é deveras presunçoso, doutor.
- Interpretou-me mal, Frau Phillips! Eu teria ficado calado, não fora o ter descoberto uma outra falha de carácter. O órgão de destrutividade, situado logo acima da orelha, é tão proeminente, que tenho a certeza
197de que poderá vê-lo se olhar para lá. Estou em crer que o seu marido pode ser um homem extremamente violento, verdade? junto com uma propensão para se deixar vencer pelo álcool...
- Jimmy, violento? O senhor não sabe o que está a dizer!
- Ele perde as estribeiras, verdade? Grita, tem ataques de mau génio?
- Jimmy pode ser fraco, mas nunca fez mal a ninguém. É apenas um bocadinho mimado, porque tem vivido sempre com os pais.
- jovem, se lhe digo estas coisas é apenas como aviso para si e para o pequeno Saugling.
- Como?
- O Saugling... o bebé de peito, o pequenino. Penso que... - Fry ia a dizer mais qualquer coisa mas, nesse instante, Jimmy juntou-se a eles. Chegaram a Hutto. Eula e Jimmy despediram-se dos médicos.
McCutcheon estava a espera deles na plataforma. Ele e Jimmy foram buscar as malas, que estavam a ser descarregadas do comboio, quando se deu uma situação problemática. No momento em que Jimmy levou a mão ao bolso do casaco para apresentar os talões de bagagem, deu por falta da sua carteira.
Mesmo assim, o funcionário da estação permitiu-lhes levar as malas. Tinham descido poucas pessoas em Hutto e não se punha o problema de saber a quem pertencia aquela bagagem. Mas o desaparecimento da carteira foi um duro golpe. À despedida, o Sr. Phillips tinha dado vinte dólares a Jimmy.
McCutcheon sugeriu que talvez tivesse sido obra de um carteirista.
- É uma coisa que está sempre a acontecer nos comboios e nas estações de comboios. Onde quer que haja ferrovias, e certo e sabido que há carteiristas. E são homens de nervo, capazes de comer o almoço de uma pessoa mesmo nas barbas dela!
- Talvez tenha caído do bolso - sugeriu Eula. - Lembras-te, Jimmy, quando o Dr. Terry fez aquela brincadeira e tentou meter-te a mão dentro do casaco...?
- Não, não me parece. De qualquer maneira, ele estava a procura do frasco de tónico.
- Ainda o tens contigo? Jimmy não respondeu.
E nunca tinha chegado a encontrar a carteira...
198Eula abriu os olhos. Não tinha certeza de ter ou não chegado a adormecer. Em que tinha estado a pensar? O devaneio esfumara-se irrecuperavelmente. Estava agora completamente desperta e alerta, deitada na cama deles, na quinta, e, no berço, o bebé chorava por ela.
Uns dias mais tarde, houve um acontecimento que a deixou animada. McCutcheon anunciou que, dentro em breve, iria passar uns dias a Austin. Queria que Jimmy ficasse na quinta e se encarregasse das coisas durante a ausência dele, mas disse que não havia razão para que Eula e o bebé não fossem com ele, caso Eula assim o desejasse. A criada podia perfeitamente tratar de Jimmy.
Regressar a Austin, nem que fosse só uns dias! Eula escreveu imediatamente a Delia a contar-lhe a novidade.
19916
Um mês após a morte de Mollie Smith, o interesse do público pelo assunto tinha-se desvanecido. Não se encontrava uma única palavra no Statesman, nem sobre o crime, nem sobre as suas consequências. Se houvesse um julgamento em perspectiva, é natural que as coisas se passassem de outra maneira. Assim, depois de terem tido um arrepio colectivo, as gentes de Austin prosseguiram com as suas vidas. As conversas da cidade giravam agora à volta dos actos da assembleia legislativa.
Tal como William Pendleton Gaines tinha previsto, o debate mais estridente foi o provocado pelo projecto-lei nº 79 do Senado, que trazia o verboso título de: ”projecto-lei pelo qual se exige ao Fiscal das Contas Públicas, ao Comissário da Direcção-Geral do Território e ao Tesoureiro do estado que contratem mulheres, quando as houver disponíveis, para preencherem metade dos lugares de amanuenses dos diversos departamentos controlados por estes funcionários”. Numa cidade que se alimentava da política, a ”Lei das Amanuenses” (como se tornou conhecido o P-L nº 79 do Senado) foi a polémica da temporada.
O Senador Evans de Bonham, o proponente do P-L nº 79 do Senado, salientou o precedente para a contratação de mulheres estabelecido em Washington, D. C., e o facto de, em certos locais, as mulheres terem sido nomeadas chefes dos correios.
- Em todos os casos em que isso aconteceu - enaltecia o senador
as mulheres foram, não apenas iguais, mas superiores aos homens. O seu trabalho é mais asseado e mais preciso. A sua presença difunde em seu redor uma influência moral que faz dos colegas homens melhores. Estão dispostas a trabalhar em troco de um vencimento inferior ao dos homens porque, em vez de dissiparem o que ganham, gastam o seu rendimento de forma sensata, pelo que precisam de menos dinheiro para o seu sustento. Estamos convencidos de que seria económico empregar mulheres, mesmo que se lhes pagasse o mesmo que aos homens, porque elas são tão mais diligentes e eficazes, que trabalham mais, exigindo por isso menos funcionários.
200o Senado votou discutir o projecto-lei. O Statesman urgiu as mulheres de Austin a participarem nos debates. ”Senhoras, acorram a câmara do senado e, com a vossa presença e os vossos sorrisos, encorajem os galantes legisladores que se vão bater por vós!”
Na manhã de 27 de janeiro, reuniu-se uma grande multidão no edifÍcio estadual, na extremidade da Avenida do Congresso. Tratava-se de uma estrutura indistinta com três andares, sem ornamentos no exterior, apertada no interior, e tristemente inadequada a função. até a construção do novo edifício do capitólio, para além de albergar os gabinetes do governo, o edifício estadual temporário teria ainda de alojar o pessoal do Parlamento e do Senado enquanto decorresse a sessão legislativa. Para arranjar espaço, os gabinetes tinham sido divididos e os corredores transformados em gabinetes. Os armários de arquivo e os caixotes de material de escritório, geralmente armazenados nas bolorentas salas de reunião, tinham sido transportados para o sótão. Na manhã desse dia, até o estreito passeio exterior era pequeno, dada a multidão que afluíra à Avenida do Congresso.
Ao acercar-se da periferia da multidão, Dave Shoemaker inspirou profundamente e avançou. Murmurando: ”Com licença, com licença!”, foi abrindo caminho a força de cotovelo até à estreita porta de entrada, onde teve de erguer os braços acima da cabeça para conseguir entrar de lado. Só quando já se encontrava bem a meio do átrio é que fez uma pausa para olhar por cima do ombro.
- Continuas aí, Will?
- Com dificuldade! Se for pecado mortal pisar as pessoas, como diz a Sra. Harrel], eu vou direitinho para o inferno.
- Ssh! Cuidadinho com essa língua. Há por aqui senhoras.
- Se há! - Will olhou em redor e sorriu com ar maroto.
Era raro ver-se uma mulher no átrio do edifício estadual, excePto neste dia. O aperto de candidatos a espectadores parecia-se menos com a habitual manada masculina de jornalistas e membros de grupos de pressão, do que com a multidão que se reunia no átrio da ópera de Millett; os chapéus decorados com plumas e flores alternavam com calvas brilhantes e chapéus de coco. As vozes e os risos femininos ecoavam acima do burburinho das vozes masculinas. Alguns homens mostravam-se nitidamente enervados com a quantidade de mulheres que tinha invadido a sua reserva. Outros, como Will, achavam o espectáculo estimulante.
201Abriram caminho até à entrada da galeria, Dave à frente e Will Seguindo-lhe no encalço. A porta estava fechada.
- Completamente cheio! - lançou um sargento fardado e exausto, que depois tartamudeou: - Ah, é você, Shoemaker. Mas está mesmo cheio. Estão ca jornalistas de todos os jornais do Texas, e alguns de outros estados.
- Mas não pode impedir o Statesman de entrar. - Dave estendeu a mão na direcção da porta.
O sargento bloqueou-lhe a passagem.
- O Statesman já esta lá dentro. Hiram Glass chegou há uma hora.
- Eu sei. Está a guardar-nos lugar.
O homem deu uma sonora gargalhada.
- Não percebo como.
- Não sabe como é o Hiram!
- E você não sabe como estão as coisas ali dentro.
- Deixe-nos entrar, para vermos pessoalmente.
- Você e mais quem?
Dave apontou para tras com o polegar.
- Este é o WílI, também é escritor. - Não era propriamente mentira. O homem olhou para eles. A expressão adoçou-se-lhe quando Dave meteu a mão no bolso do casaco à procura de qualquer coisa, e abriu-se-lhe num sorriso quando Dave lhe meteu qualquer coisa discretamente na mão. Abriu a porta, não mais do que o suficiente para lhes permitir escapulirem-se lá para dentro, e voltou a fechá-la, berrando a multidão que recuasse.
- O que foi que lhe deste? - sussurrou Will.
- O meu último havano.
- Dave!
- Bem, foi o meu último rótulo de havano. O charuto é dos mais baratos que se vendem no Harrell’s, mas o grandalhão nunca se apercebera da diferença.
A galeria dos espectadores ficava a um dos lados da câmara do senado, separada deste por um comprido corrimão de madeira. Longas filas de cadeiras formavam uma sucessão de bancadas baixas, em anfiteatro. Dave e Will percorreram os assentos com os olhos, a procura de lugares vagos. Bastou-lhes um momento para se aperceberem de que todos os lugares, todos sem excepção, estavam preenchidos por mulheres.
202os homens que se encontravam na galeria estavam de pé, quer encostados à parede do fundo, atrás da última fila de cadeiras, quer amontoados nos degraus que havia ao longo das duas paredes laterais.
- Olha, lá está o Hiram, de pé ali ao fundo, na outra ponta, ao pé do corrimão - disse Dave. - O melhor lugar da casa! Parece que até conseguiu guardar-nos algum espaço.
Will avistou o homem que Dave lhe tinha indicado, mas foi em vão que procurou algum espaço em seu redor, a não ser que conseguissem esgueirar-se para o centímetro e meio que havia de cada lado de Hiram Glass. Apesar disso, seguiu obedientemente atrás de Dave, quando este começou a abrir caminho por entre o comprido corrimão de madeira e a primeira fila de lugares. Dave não parava de soerguer o chapéu. ”Com licença, minha senhora”, ”Perdão, menina”, ”Cuidado com os pés”, ”Não, por favor, não se levante”, ”Já passei”!
Will sentia-se entontecido pelo rugir das vozes, a combinação de odores, a tinta, ao couro dos sapatos e a perfumes de mulher, e a deslumbrante gama de cores e padrões exibidos pela massa de mulheres e respectivos adornos; os homens, de pé e de fato preto, formavam em seu redor uma espécie de moldura com três lados, E os chapéus! Enfeitados com plumagens espetadas, debruados com bouquets de seda, cobertos de tules semeados de lantejoulas, ornamentados com ninhos de aves
- alguns até tinham passarinhos! As mulheres que tinham vindo assistir ao debate não pareciam candidatas a amanuenses, pareciam manequins de moda. jovens e velhas, morenas e louras, bonitas e feias - todas traziam vestido o melhor que tinham. Para Will, era excitante e intimidante ao mesmo tempo ver tantas mulheres reunidas no mesmo sítio, todas tão animadas e com expressões tão decididas.
Finalmente, atingiram o canto onde Hiram Glass se encontrava de pé. Dave lá arranjou maneira de se juntar a ele. Hiram continuou encostado ao corrimão, e Will meteu-se entre ele e Dave, todos de costas voltadas para a parede.
- Hiram Glass, este é o Will Porter.
Will e Hiram fizeram um breve aceno de cabeça um ao outro.
- Tento ler as suas ”Notas sobre Legislação” no jornal... sempre que posso - disse Will.
Hiram lançou-lhe um olhar sardônico.
- Também bebes óleo de castor sempre que tens oportunidade?
203- Onde são os nossos lugares, seu cachorro? - perguntou Dave. Prometeste que nos guardavas dois lugares!
Hiram pigarreou.
- E guardei... até começarem a chegar as mulheres e os homens começarem a ceder-lhes os lugares.
- Ora bolas, Hiram, não eras obrigado a imitá-los. És um profissional, estás a trabalhar.
- E estes tipos todos também. Se eu não tivesse dado o meu lugar, amanhã aparecia nas colunas de todos eles. ”O jornalista do Statesman de Austin foi o único membro da imprensa que não teve a delicadeza de dar o seu lugar as senhoras.” O Gaines nunca mais me largava!
- Tens razão. Bem, ficámos com o melhor lugar da galeria, perto do pódio, para conseguirmos ouvir os discursos, e com boa vista para todos os senadores, para podermos ver-lhes bem as caras brilhantes. Oh, vai ser um belo espectáculo! Se vieste ver uma data de políticos a fazer figura de parvos, Will, não vais ficar desiludido!
- Políticos? Eu vim olhar para as damas. - Will demonstrou essa finalidade esticando o pescoço e espreitando as longas fileiras que preenchiam a galeria.
- Este também é o melhor lugar para isso! - grasnou Dave. A atmosfera da sala tinha-os excitado a ambos, em contraste com Hiram Glass que, de braços cruzados, com um lápis e um bloco de notas na mão, parecia desesperadamente entediado.
Will deu uma cotovelada a Dave.
- Olha quem ali está... o teu amigo do gabinete do fiscal.
- Onde?
- Ali atrás, encostado à parede do fundo. Estás a ver aquele grupo de sujeitos a falar uns com os outros? Está no meio deles: William Shelley.
- Pois está - concordou Dave. - Um bando de amanuenses do governo, todos a grasnar ao mesmo tempo, e ele é o que grasna mais. Vi-o ontem no Scholís, a falar ao povo.
- Pensava que quem falava ao povo no Scholz’S eras tu.
- Ultimamente não, Will. Não há homicídios que cheguem nesta cidade desde que mataram aquela pobre negra. Neste momento, as pessoas só se interessam pela Lei das Amanuenses, e toda a gente quer saber o que tem Shelley a dizer acerca dela, dado que ele afirma ser o menino-bonito do fiscal.
204- E o que diz o jovem Shelley? - perguntou Hiram, inclinando a orelha na direcção de Dave. O lápis rebolou-lhe entre os dedos.
- Afirma que o Fiscal Swain é totalmente contra; não tenciona permitir que a assembleia legislativa lhe dê ordens sobre as pessoas que pode, ou não, contratar para o seu departamento, em especial no que diz respeito ao sexo dos seus amanuenses. O próprio Shelley esbraceja bastante, dado que corre um certo risco. Não tem grande antiguidade. Nem sequer é casado, não pode argumentar que tem de alimentar a família. Se esta maluquice desta lei for aprovada, metade dos amanuenses levam um pontapé no traseiro, para dar lugar às amanuenses. É bem provável que William Shelley fique desempregado.
- Ele não devia estar lá em cima no gabinete dele - perguntou Will a fiscalizar qualquer coisa?
Hiram ladrou uma gargalhada amarga.
- Nenhum dos amanuenses deste edifício vai escrever uma vírgula toda a semana, nem durante o resto da sessão. Andam todos muito ocupados a congeminar a maneira de dar cabo desta lei, para salvarem os empregos, embora nunca se tivessem empenhado grandemente em mantê-los.
Os senadores foram entrando na câmara, isolados ou em pequenos grupos. Alguns ignoraram ostensivamente a galeria, mas a maioria olhou de relance para as fileiras de mulheres. Finalmente, soou o martelo, fez-se a chamada e verificou-se que estava presente um quorum de trinta e um membros. O capelão dirigiu uma oração à divindade e iniciaram-se os trabalhos do dia.
Foram apresentados relatórios de diversas comissões, houve moções, discutiram-se questões processuais. Will achou tudo aquilo bastante bizantino, para não dizer entediante, embora tivesse reparado que Hiram Glass escrevinhava constantemente, passando as páginas do bloco de notas, no que era imitado por uma série de homens presentes na galeria. Finalmente, foi anunciado que a assembleia passaria à discussão do projecto de lei nº 79 do Senado.
Ouviu-se uma onda de sussurros na galeria, quando os espectadores se mexeram nos seus lugares, como se se preparassem para os solavancos de uma viagem.
O Senador Evans fez um discurso a favor da lei. Era um orador monótono, mas as senhoras aplaudiram-no entusiasticamente.
205Em comparação com ele, o Senador Randolph foi um tição. O lugar da mulher, insistia, era no lar; e citou passagens de uma Bíblia que trouxera consigo, para sustentar a sua posição. Argumentou que as máquinas, ao pouparem mão-de-obra, já estavam a lançar milhares de homens no desemprego, de tal forma que não havia empregos que chegassem para os homens, quanto mais para as mulheres. Para resolver o problema das mulheres sem meios de subsistência, defendia que se aprovassem leis rigorosas, que obrigassem os homens a sustentar as mulheres da sua família.
O estilo do Senador Terrell foi menos moralista e mais sarcástico,
- Se as mulheres podem ser amanuenses, por que não elegê-las para a assembleia legislativa? Não se riam, cavalheiros! Talvez o Senador Evans consiga induzi-las a trabalhar por 1,50 dólares por dia, poupando assim ao Estado uma quantia considerável! - Ouviram-se gargalhadas sonoras, provenientes dos homens que se encontravam na câmara, e apupos por parte das mulheres.
Temple Houston, o filho de Sam Houston, que era o mais jovem e mais bem-parecido de todos os membros do Senado, declarou-se favorável a lei. Fez um discurso eloquente acerca das superiores virtudes do sexo feminino, exibindo-se desavergonhadamente às mulheres presentes na galeria, que o aplaudiram e lhe lançaram beijos ao longo de todo o discurso.
Rutabaga Johnson, do Distrito de Collin, o mais conhecido excêntrico do Senado, não seria tão encantador, mas apoiou a lei com idêntico fervor.
- Ouço os meus colegas oporem-se a esta lei e digo-vos que, se eles tivessem crescido entregues aos cuidados de uma pobre viUVa, como eu fui, privados de uma instrução condigna, pensariam melhor! Dêem às mulheres a possibilidade de ganharem honradamente o seu pão! Alguns destes senhores têm em casa a mulher ou a irmã, praticamente acorrentadas ao tanque de lavar, e deviam saber que isso não é bom! Quanto a esses amanuensezinhos com cérebro de esquilo, todos alinhados diante da gamela do almoço, vão mas é todos a vida! Algumas destas senhoras são duas vezes mais inteligentes do que esses sujeitos de cabeças de verruga. Olhem-me só para aqueles peralvilhos daqueles amanuenses, ali sentados na galeria e lá fora no átrio, em vez de estarem a fazer alguma coisa, todos excitados com a possibilidade de algumas mulheres, que bebem menos e trabalham mais, lhes tirarem o lugar!
206Houve ameaços de riso durante todo o discurso de Rutabaga Johnson, que terminou com um aplauso estrondoso por parte das mulheres e assobios dos amanuenses. Depois de acalmado o tumulto, houve uma moção para se concluir o debate. Iniciou-se a votação do projecto de lei.
Dezanove senadores votaram sim. Dez senadores votaram não. Houve um pé-de-vento de comemorações entre as mulheres. O martelo bateu por várias vezes e a sessão foi interrompida até ao dia seguinte. A galeria começou a esvaziar-se, no meio de um grande rebuliço.
- Por uma margem de dois para um! - observou Dave, espantado. Hiram Glass fechou o bloco de notas.
- O Sr. Gaines vai ficar satisfeito.
- já é lei? - perguntou Will.
- Oh, nem pensar - respondeu Hiram com uma gargalhada retorcida. - Ainda vai levar muitas voltas. Acrescentos, emendas, novos debates. Por fim, será enviado para o Parlamento, onde dará as mesmas voltas, e em seguida voltará ao Senado, para ser finalmente aprovado; depois disso, é possível que o governador o assine, transformando-o em lei, ou que o vete. O P-1 - nº 79 ainda vai ter de saltar muitos obstáculos antes de se transformar em lei. Mas a votação de hoje foi uma impressionante demonstração de apoio, especialmente tendo em conta a feroz oposição dos Comissários de departamento, como o Fiscal Swain.
Will fez um aceno de cabeça e percorreu a galeria com os olhos. Estavam ali algumas mulheres muito bonitas. Algumas delas surpreenderam o seu olhar; ele sorriu-lhes de esguelha e desviou os olhos, sentindo-se um pouco tolo, como costumava acontecer-lhe quando se confrontava com o sexo oposto.
Depois viu uma cara que o deixou de respiração suspensa.
Como era possível que não tivesse reparado nela? A pulsação acelerou-se-lhe. Sentiu um aperto no peito. Corou. Foi uma experiência imediata, devastadora, extraordinária. Um homem sentir as pernas fraquejar ao ver uma mulher bonita era o tema dos contos de tostão e das peças de pior qualidade que corriam no teatro - e, no entanto, estava a acontecer-lhe a ele, ali mesmo!
Ela usava o cabelo loiro puxado para trás e preso ao alto, metido dentro de um chapelinho verde com uma coroa alta de pelúcia e uma tira de veludo amarelo. O verde combinava com o vestido, que tinha folhos de renda no pescoço e nos punhos. Enquanto Will a observava,
207calçou um par de luvas de camurça castanhas. Tinha as mãos pequenas e rosadas, à semelhança da pele macia do pescoço, na parte que se via acima da gola alta do vestido verde.
Voltou-se e dírigíu-se à mulher que tinha a seu lado, que era mais alta do que ela e usava um vestido azul-escuro e um chapéu a condizer, com a coroa alta decorada com penas pretas de avestruz. Eram indubitavelmente as duas mulheres mais bonitas da galeria, mas não se pareciam nada uma com a outra. A mulher de cabelo preto tinha umas feições mais pronunciadas e uma compleição mais escura; nos seus olhos, brilhava um reflexo predatório, aquele génio que alguns homens achavam atraente. A amiga loura era mais do tipo pomba, delicada e modesta. Doía-lhe olhar para ela.
A mulher mais morena reparou em alguém que estava ao fundo da galeria e inclinou a cabeça, depois sussurrou qualquer coisa à mulher loira, que reagiu olhando de esguelha para a pessoa a quem a primeira tinha acenado. Will seguiu-lhe a direcção do olhar, e quem havia de ver, senão William Shelley, que devolveu o cumprimento com um aceno de cabeça quase imperceptível!
As duas mulheres começaram a dirigir-se para a saída, e o mesmo fez Shelley. Por momentos, pareceu que se encontrariam à porta, mas Shelley deixou-se ficar para trás, parecendo evitar expressamente olhar para as duas mulheres quando elas saíram para o átrio. Era óbvio que a mulher de cabelo escuro e Shelley se conheciam, mas não fizeram qualquer esforço para se falarem. O que significaria aquilo?, perguntou Will a si próprio.
Fez menção de as seguir. Dave perguntou-lhe:
- Aonde é que vais?
- Vi uma pessoa... no átrio - resmoneou Will.
O átrio estava apinhado. Ele avistou o chapéu de pelúcia verde entre o mar de chapéus e dirigiu-se a ele, voltando a empurrar ombros e seios, e a pisar calos. Perdeu-a de vista, depois voltou a vê-la junto à entrada principal, com a amiga de cabelo escuro e chapéu a condizer com o vestido. Atravessaram a porta lado a lado.
Ele seguiu-as. O estreito passeio estava tão cheio como o átrio, e diante dele havia um engarrafamento de carruagens e trens de aluguer. Aparentemente, elas tinham desaparecido... mas depois voltou a avistá-las na rua, abrindo caminho por entre os veículos estacionados. Tinha-se-lhes
208juntado um homem que usava o chapéu mole próprio dos trabalhadores do campo e um fato-de-macaco. Will aproximou-se deles, o suficiente para ouvir a mulher morena dirigir-se a loira. Eula. Tinha-lhe chamado Eula.
O homem fez sinal a um trem. Ajudou a morena a subir, depois ajudou a loira e finalmente subiu ele próprio. O condutor do trem fez estalar as rédeas, e partiram pela Avenida fora.
Quem seria o homem? Parecia mais velho do que as mulheres. Um tio, um irmão, o pai? Will não quis pensar na hipótese de se tratar do marido, do marido dela, embora se tivesse apercebido, no momento em que ela subia para o trem, de um brilho de ouro no seu dedo, que era quase de certeza uma aliança.
Ficou a ver o trem afastar-se, e depois regressou ao átrio. A multidão tinha-se dispersado. Os que ainda ali estavam encontravam-se reunidos em pequenos grupos, a conversar e a rir. Encontrou Dave e Hiram reunidos ao fundo das escadas, com mais meia dúzia de homens, em redor de William Shelley, que fazia uma imitação insolente de determinado senador.
- Bem, se tivessem crescido como eu cresci, entregue aos cuidados de uma pobre viúva e sem uma instrução condigna...
Dave ria-se de tal maneira, que tinha os olhos cheios de lágrimas. até Hiram Glass olhava para ele com um sorriso destorcido.
- Shelley! - Will agarrou-lhe na manga. William Shelley pestanejou e olhou para ele.
- O que foi? Oh, és tu, Porter? O que queres tu, cachorrinho?
- Aquela mulher que estava na galeria, vestida de azul, de cabelo escuro. Quem é?
- Não faço ideia a quem te referes.
- Mas ela fez-te um aceno, e tu respondeste. Estava outra mulher com ela, uma loira, de chapéu verde e vestido verde.
- Lamento, mas não posso ajudar-te. E agora, se já concluíste a tua interrupção...
- Mas eu tenho a certeza de que tu as viste. Acho que o nome da loira é...
- Estás enganado - cortou Shelley. Depois soltou um cacarejo e ergueu uma sobrancelha. - Francamente, como querias que eu tivesse reparado numas simples mulheres, arrebatado como estava pelo discurso
209do Senador Rutabaga? - Imitou uma expressão facial que fez com que Dave tivesse novo ataque de riso. - Seja como for - rematou, dirigindo-se aos seus colegas amanuenses -, há quem tenha de voltar ao trabalho, Temos de deixar a estes senhores da imprensa o encargo de nos fazerem compreender o espectáculo de hoje. - Começou a subir a escada.
Will avançou atrás dele e agarrou-lhe o braço. Shelley deu-lhe um safanão tal que Will perdeu o equilíbrio e caiu de costas. Os amanuenses desataram a assobiar e a rir. até Dave se riu. Hiram Glass abanou a cabeça.
Shelley lançou-lhe um olhar de uma animosidade tal, que Wíll se deixou ficar sentado no chão, imóvel, reduzido ao silêncio pelo espanto. Shelley voltou-se e subiu as escadas, seguido pela comitiva de amanuenses as gargalhadas.
Os amanuenses continuavam a rir-se e a conversar uns com os outros, assemelhando-se muito aos esquilos com que Rutabaga Johnson os tinha comparado, quando entraram pela porta do terceiro andar onde estava afixado um letreiro que dizia: FISCAL DAS CONTAS PúBLICAS. Dispersaram para as diversas secretárias e cubículos, onde tinham a sua espera pilhas de documentos para ver. Desde o começo da sessão legislativa que, devido ao rebuliço causado pela Lei das Amanuenses, a normal rotina do gabinete tinha sido completamente alterada.
- Consegues imaginar tal coisa? - perguntou um dos homens a William Shelley. - Uma mulher neste departamento? A trabalhar ao teu lado? Ou, pior ainda, uma de cada lado! A interminável coscuvilhice, qual delas tem os filhos mais espertos, ou usa os vestidos mais bonitos, ou tem a casa mais desarrumada. Enlouquecem um homem! Nunca se fazia nada. - Sentou-se na secretária que ficava em frente da de Shelley, encostou-se para tras e espreitou pela janela para os terrenos do capitólio, que ficavam do outro lado da Rua Mesquite.
Shelley acenou com a cabeça. Não se deteve na sua secretária; seguiu adiante, passou por uma comprida fileira de armários de arquivo e bateu à porta do gabinete privado do Fiscal Swain.
Do outro lado da madeira espessa, ouviu-se uma voz:
- Entre!
Shelley entrou e fechou a porta atrás de si.
210William Jesse Swain era um homem de proporções generosas, que exigia um gabinete de proporções generosas. Tinha como secretária uma coisa enorme em carvalho maciço. A cadeira onde se sentava era maior do que o habitual, dado que tinha de acomodar as suas dimensões. As estantes tinham prateleiras amplas, onde ele arrumava os enormes livros de registos e os volumes de referência de que se rodeava. Era um homem de grandes ambições, que pensava grandes pensamentos.
- Como é que correu? - perguntou a Shelley. Nem quando baixava a voz para um tom de confidência ela perdia a sua qualidade ressonante.
- Dezanove contra dez, senhor.
Swain emitiu um ruído de desagrado. Perguntou quem tinha votado de cada lado. Shelley recitou os nomes de cor.
- Então é assim que eles querem brincar! - bufou Swain. - Metade dos indivíduos que hoje votaram sim não tem a menor intenção de fazer com que a coisa passe a lei. São tão contra ela como eu, mas querem dar a impressão de que são a favor. Eu também já fiz parte da assembleia legislativa, sei bem como funciona o jogo! Mulheres como amanuenses, só por cima do meu cadáver!
Swain acendeu um charuto e expeliu uma baforada de fumo.
- Vou a meio do meu segundo mandato como fiscal. Imprimi a minha marca neste departamento, e tenciono deixá-lo num estado que reflicta favoravelmente as minhas realizações. Podes ter a certeza de que não tenciono permitir que aqueles idiotas da assembleia legislativa me encham metade da repartição de mulheres antes de me ir embora. Demito-me! Ou então deixo-me ca ficar e torno a vida da primeira leva de mulheres tão miserável, que não haverá segunda leva. Dezanove contra dez, hein?
- Abanou a cabeça. - Como é que correu o debate? Pormenores, rapaz, pormenores!
Shelley deixou-se ficar de pé, com os braços atrás das costas, mais ou menos como quando era miúdo e tinha de recitar as lições na academia militar da Colina do Castelo, e descreveu os vários discursos. Terminou com a sua imitação de Rutabaga Johnson; o espectáculo que dera ao grupo no andar de baixo mais não fora que um ensaio geral para o relatório que havia de fazer a Swain. Não tardou a conseguir que o Comissário se risse a gargalhada, assustando os amanuenses que trabalhavam no exterior do seu gabinete.
Shelley concluiu. Swain deixou-se ficar em silêncio durante longos momentos, a fumar o charuto.
211-Vou ter de marcar reuniões privadas com determinados membros do Senado... discretamente. Posso contar contigo para tratares dos pormenores, Shelley?
- Claro, senhor.
- Tu és bom tipo, Shelley. É uma qualidade de família; o teu pai é um excelente advogado. Fez muito bem em te mandar para a academia. Não me parece que um jovem com a tua idade venha jamais a participar numa guerra, mas a disciplina militar confere carácter a um homem. Has-de ir longe, graças a isso; talvez chegues até à Mansão do Governador, se não te afastares de mim.
- O meu pai ficaria muito orgulhoso, senhor.
- Podes crer que sim! Sabes quantos votos tive nas últimas eleições, rapaz?
- Mais de duzentos mil, senhor. - Shelley já ouvira aquela pergunta, e conhecia o número exacto, mas também sabia que o Comissário preferia ser ele a recitá-lo.
- Foram mais de duzentos e quarenta mil, rapaz! Um quarto de milhão de votos, o maior número jamais recebido por qualquer candidato a qualquer cargo neste estado! Pode-se argumentar que sou o funcionário eleito mais popular da história do Texas. John Ireland não pode gabar-se do mesmo.
- Há quem diga que o Governador Ireland tenciona candidatar-se ao Senado dos Estados Unidos, senhor.
- Ele que se candidate! Isso quer dizer que, em 1886, a Mansão do Governador estará vazia. Não te afastes de mim, rapaz! Não te afastes de mim!
- Farei sempre o que puder por si, senhor.
Swain exalou outra baforada de fumo de charuto e olhou para ele pensativo. Shelley tinha aprendido a ler as alterações no estado de espírito do seu chefe. Neste momento, verificou-se uma alteração, foi como se todo o carácter do compartimento se alterasse, mas Shelley não percebeu bem do que se tratava.
- Então, rapaz, como estava hoje a galeria?
- A abarrotar, senhor.
- Mnim, sim, Presumo que houvesse um número considerável de mulheres entre o público.
212- Um número suficiente para ocuparem todos os lugares sentados! os amanuenses e os jornalistas tiveram de ficar de pé.
- Um homem não devia ser obrigado a ouvir um discurso de Rutabaga Johnson depé! - observou Swain com uma careta. - Interessantes?
- Como, senhor? Se os discursos foram interessantes?
- Claro que não! já chega de discursos! Estava a perguntar se havia senhoras interessantes na galeria?
- Ah! Bem, sim, havia, senhor, acho que sim. - Shelley baixou os olhos, pensando em Delia, a mulher que conhecia da casa de May Tobin. Nunca esperara vê-la na galeria, mas ali estava ela, rindo-se e aplaudindo em coro com as senhoras respeitáveis, na companhia de uma loira igualmente notável; seria outra das raparigas de May Tobin, havia ele perguntado a si próprio, ou uma simples amiga? Gostaria de ter conversado com Delia e de ter conhecido a amiga loira, mas nunca num sítio público, e muito menos no edifício onde trabalhava. Diga-se em abono dela que Delia tinha sido discreta, mas, apesar disso, aquele cachorrinho do Will Porter tinha reparado nos acenos de cabeça que ambos tinham trocado! Shelley franziu o sobrolho ao recordar como Porter o imPortunara no átrio.
Swain recostou-se na cadeira.
- Não sejas modesto comigo, rapaz. Aposto que tens olho para as damas.
Shelley encolheu os ombros, hesitante. Onde quereria Swain chegar?
- Não mais do que qualquer outro.
- Um rapaz novo e fogoso como tu, ainda solteiro, aposto que sabes onde é que um tipo se pode divertir nesta cidade. Digamos, se um homem quisesse passar algum tempo com uma dama bonita, sem compromissos. Shelley franziu ainda mais o sobrolho.
- A sério, senhor, não percebo onde quer chegar. Garanto-lhe que a minha conduta nos meus tempos livres nunca será motivo de vergonha...
- Por amor de Deus, rapaz, não te estou a julgar! Estou a pedir-te ajuda.
Shelley desfranziu lentamente a testa, começando a compreender. Swain exalou nova baforada de fumo do charuto.
- Tu és um rapaz discreto. Deus sabe que um homem com a minha posição tem de ser discreto, E és leal. Deus sabe que estou a contar com isso. E calculo, pela tua atitude culpada, que saibas exactamente onde
213quero chegar! - Swain soltou uma gargalhada e deu uma palmada na secretária. - Então, ajudas aqui o velhote a encontrar algum alívio nesta cidade, sem andar toda a gente a falar do assunto nas minhas costas, ou não?
Shelley devolveu-lhe o sorriso.
- Na verdade, senhor, é possível que eu conheça um sítio...
Shelley saiu do gabinete do Comissário com um sorriso estampado no rosto. De entre todos os homens que Swain dominava no departamento, de entre todos os empertigados com quem Swain almoçava e jantava, tinha sido a ele que o velhote fora pedir conselho, de homem para homem, tinha sido nele que o velhote decidira confiar. A partir daquele momento, Swain seria o seu mentor e Shelley seria o protegido do velhote. Seriam mais íntimos do que pai e filho, porque partilhariam segredos que poucos pais e filhos haviam jamais partilhado.
O homem cuja secretária ficava diante da sua continuava recostado na cadeira, a olhar ociosamente pela janela.
- Que raio estiveste tu a conversar com o Comissário este tempo todo? Shelley pegou numa pilha de papéis e endireitou as extremidades contra o tampo da secretária, com um estalido que assustou o colega.
- Tens aí um grande molho amontoado na secretária - observou em tom cortante. - Não seria melhor pores-te a trabalhar?
O homem franziu o sobrolho na sua direcção, depois aproximou a cadeira da secretária e estendeu as mãos para os livros de contas. Shelley tentou manter uma expressão séria, mas não conseguia deixar que um sorriso lhe aflorasse ao rosto. William. Jesse Swain era uma bala de canhão apontada a Mansão do Governador e ele, William Shelley, estava preso a essa bala de canhão, preparado para o acompanhar até lá!
21417
No mês que passara desde que a velha e o velho Sumpter o tinham mandado embora, Alec Mack não tinha arranjado um trabalho regular nem um sítio que fosse seu. Os Sumpter tinham espalhado o boato de que ele era imoral e pouco digno de confiança.
Depois de ter passado uma semana a dormir no duro e ao relento, Alec foi finalmente bater a porta da casinha da mãe. Ela sabia, por meio de amigos, que Alec tinha arranjado um sarilho qualquer, e estava à espera de que ele aparecesse. Tinha arranjado as coisas de modo a que ele pudesse dormir no chão, a um canto, perto da lareira. Mal lhe dirigiu palavra, mas a maneira como olhou para ele feriu-o até ao mais fundo de si.
Havia pequenas coisas pelas quais se sentia agradecido. O tempo estava ameno para Janeiro, com muito sol e sem granizo nem neve. Depois de passar uns dias agitados na cadeia, o seu amigo Lem Brooks estava outra vez atrás do balcão do Black Elephant. E a vida parecia estar a correr bem à mãe de Alec.
Sallie Mack era uma mulher industriosa, que fora abençoada com uma constituição robusta. Era capaz de lavar e torcer roupa, limpar uma casa e esfregar o chão. Trabalhava principalmente para o Sr. e a Sra. Phillips, que em troca a autorizavam a viver na propriedade deles.
Os Phillips eram proprietários de um bom quarto de quarteirão, na esquina noroeste da Hickory com a Lavaca. O Sr. Phillips era construtor de profissão e considerava-se um arquitecto. Fizera sucessivos acrescentos à sua casa original, até obter um complexo familiar. A casa principal, voltada para sul, para a Hickory, estava ligada aos anexos por meio de varandas cobertas. Num dos anexos, havia uma oficina, noutro um apartamento para alugar. A filha viUVa dos Phillips, Delia, morava no seu próprio anexo e, até há pouco tempo, o filho Jimmy e a mulher, Eula, tinham morado noutro anexo.
A casinha onde Sallie morava ficava nas traseiras do lote; não estava ligada à casa principal, nem era tão bem cuidada. Era voltada para norte,
215para o beco. Às vezes, Sallie pensava que a casinha era uma enteada, em comparação com os outros edifícios, uma casa de estrutura irregular, empurrada para as traseiras e voltada para outro lado. Mas não era uma situação ma, porque a janela da frente de Sallie dava para o beco, a seguir ao qual ficava o pátio das traseiras da propriedade dos Hirshfeld, onde um dos mais prósperos comerciantes da cidade estava a construir uma imponente mansão. Sallie Mack vivia modestamente, mas rodeada de opulência. Esse facto tornava-a humilde, mas também fazia com que se sentisse bastante orgulhosa de si própria. Muita gente sabia que ela já tinha vivido pior. Todos os dias dava graças a Deus por lhe ter dado um corpo robusto.
Mas sentia-se menos grata pelas tribulações que Ele lhe enviava com Alec. O Senhor concedera ao seu filho uma bela cabeça, mas não se tinha incomodado em a preencher com um pouco de bom senso. Sempre que Alec se estabelecia, acabava por voltar para ela com uma história de desgraças. Um dia, metia-se num sarilho a sério, do género que não se pode resolver voltando para debaixo das saias da Mamã, era o maior receio de Sallie, que às vezes passava noites em claro, preocupada. Mas, até isso acontecer, como é que ela podia deixar de o acolher?
O Sr. e a Sra. Phillips não se importavam, esperava ela. Podiam ter ouvido dizer que Alec se tinha metido em sarilhos, mas com certeza não a obrigariam a expulsá-lo. O próprio filho já dava aos Phillips bastantes motivos de preocupação. Toda a gente sabia que Jimmy Phillips bebia e não conseguia aguentar um emprego. Era natural que os Phillips se sentissem solidários com ela, por causa dos problemas que Alec lhe dava. até era possível que ela conseguisse convencer o Sr. Phillips a arranjar-lhe trabalho na propriedade, agora que Jimmy tinha partido para a quinta com a jovem e bonita esposa.
Ali estava um casal que Sallie não lamentara ter visto partir! Jimmy era um rapaz encantador, Eula era linda como um anjo e o bebé era uma coisinha doce. Mas, quando bebia, Jimmy tendia a partir coisas, e era Sallie quem tinha de limpar a porcaria. Quanto à mulher de Jimmy, Sallie tinha a impressão de que o paizinho dela devia tê-la estragado com mimos. O Sr. Burdett era dono de um hotel que ficava na Avenida. Nenhum branco com o dinheiro que ele tinha e uma filha bonita como Eula deixaria de andar à volta dela. Não é que Eula fosse má, nem rabugenta; mas era muito sensível e melindrosa, como um gatinho que não gostasse
216que lhe fizessem festas. Zangava-se por causa de minudências, e estava sempre a chorar. Certa vez, quando Eula estava à espera do bebé, tinha Sallie acabado de esfregar o chão do anexo do casal quando Eula deitou ao chão um grande jarro de louça que estava poisado na mesa-de-cabeceira. O leite escorreu pelo soalho fora, e até para debaixo da cama. Eula tinha chorado uma hora inteira. Sallie tinha achado que ela é que devia chorar, dado que tinha sido ela a ter de limpar aquilo tudo!
Jimmy e Eula! Parecia que qualquer trabalho que se fizesse para eles era sempre duplamente custoso. Parecia que, depois de eles se terem ido embora, havia muito menos que fazer naquela casa.
A irmã de Jimmy, Delia, era outra personagem. Sallie nunca tinha conhecido uma mulher que gostasse tanto de ser viúva como ela. Delia entrava e saía quando queria, a todas as horas do dia e da noite. Morto o marido, era de supor que tivesse de prestar contas ao pai, mas os pais tratavam-na com a mesma falta de disciplina com que tratavam o irmão.
Ao pensar nos filhos dos Phillips, Sallie não se sentia tão incomodada com Alec. Podia ser que ele viesse a endireitar-se, pensava. Mas não conseguia deixar de se afligir.
Agora que tinha um tecto a cobri-lo, Alec tinha outra preocupação imediata. Tinha passado um mês desde a noite em que os Sumpter o haviam apanhado na cama com Rebecca Ramey, e desde essa altura nunca mais tinha estado a sós com ela.
Rebecca... era um nome bíblico, e Alec gostava de a imaginar vestindo um fato antigo, com as jóias a cintilar. Fechava os olhos e via o suor a fazer-lhe brilhar os seios, e na sua imaginação as gotas de suor transformavam-se em pérolas que lhe decoravam a nudez. Pensava constantemente nela.
Ela não lhe permitia que ele a visitasse, nem em pleno dia. Era empregada do Sr. Valentine Weed, o proprietário da maior cocheira de aluguer da cidade. Os Weed tinham uma casa enorme na esquina da Cedar com a San Jacinto, onde Rebecca, que estava encarregada da cozinha e das limpezas, vivia com a filha de dez anos. Antes disso, tinha trabalhado na enorme lavandaria a vapor da Pecan, zona leste. Tinha detestado e não queria voltar para lá. Também tinha visto a forma como os Sumpter tinham posto Alec na rua, e não tinha qualquer intenção de dar aos Weed uma desculpa para lhe fazerem o mesmo, a ela e à filha.
217Se fosse Verão, talvez Alec tivesse conseguido convencê-la a encontrar-se com ele ao ar livre, num sítio escondido junto a Ribeira de Shoal
- a ideia de a ver nua com manchas de sol a desenharem-se-lhe nos seios era um dos seus sonhos. Mas era Inverno. Tinham de arranjar um sítio para se encontrarem.
De maneira que, certo dia, em vez de ir procurar trabalho - com os velhotes brancos a olharem para ele com atenção, falando sobre ele em voz baixa, para finalmente o mandarem embora sem nada -, Alec dirigiu-se ao Black Elephant. Planeou as coisas por forma a chegar lá à hora mais calma do dia. Hugh Hancock estava a fazer uma sesta. Lem Brooks estava sozinho atrás do balcão, e o único cliente era um velho embriagado, que dormitava a um canto.
Conversaram durante algum tempo, acerca do frio, da mãe de Alec, da simpatia das pessoas para com Lem desde que ele tinha saído da prisão. Alec não teve de arranjar maneira de trazer a amiga a baila; foi Lem quem o fez.
- E aquela mulher que lhe arranjou este sarilho todo? Continua a encontrar-se com ela?
- Pois, Lem, o meu problema é mesmo esse... - Alec explicou-lhe a situação. Lem acenava com a cabeça, compreensivo, enquanto dava brilho aos copos, mas lançou-lhe um olhar de espanto quando Alec lhe falou da filha de Rebecca.
- Ela tem uma miúda com dez anos?
- Onze no mês que vem.
- Onze? Eh pa, essa mulher tem idade para ser sua mãe!
- Não tem, não!
- Tem uma miúda com metade da sua idade! Velha de mais para um girino vivo feito você.
- Não sei que idade ela tem, não - replicou Alec. - Nunca pensei nisso. Nem você teria pensado, se a tivesse visto como eu a vi! O que se passa, é que ela ta morando a um par de quarteirões daqui, e eu nem sequé posso í lá batê a porta de trás para lhe dar um beijo. Quer que eu me sente do outro lado da rua, à espera que ela saia de casa para ir às compras, ou qualquer coisa, para podê falá com ela, sequé.
- E não era bem falá que você tava querendo! - Lem deu uma gargalhada, mostrando os dentes brilhantes. - Tá-me parecendo, Alec, que o que você tá precisando é dum sítio para um ran-dê-vu.
218- Era isso mesmo que eu tava pensando! - Alec deu uma palmada no bar. - E tava pensando, como sei que voce as vêz faz o turno da noite, e que o Sr. Hancock lhe deixa fechar o bar, se uma noite, assim, depois de toda a gente saí, se não podia... se não podia me deixá a porta de tras no trinco...
- Deixar-lhe vi para aqui? - Lem olhou-o fixamente
- Eu sei que é pedí muito, com o Sr. Hancock a vivê mesmo aqui e tudo...
- Bolas! Claro, com todo o gosto.
- Quê?
- Com todo o gosto. Porque não? Lá porque eu lavei as mãos de mulhé, não quer dizê que voce faça o mesmo.
- Eu marcava antes, claro, e pode sempre voltar atrás se acontecer alguma coisa...
- Bolas, me diz quando! Quarta? Quinta? Há um sofá velho no armazém, onde se fazem umas sestas, era o ideal para vocês. Leva uma lanterna, fecha a porta... até tem um fecho por dentro. É mesmo bom para o que você ta querendo.
Alec nem acreditava. La bem no fundo, nunca esperara que Lem estivesse de acordo, e certamente nunca sem ele suplicar bastante. Se ao menos conseguisse convencer Rebecca com a mesma facilidade...
- Só há uma coisa - disse Lem, com uma expressão subitamente grave.
- O que?
- Quando você e a sua amiga tiverem vindo para cá, e tiverem andando no escuro, se virem alguma coisa, alguma coisa que lhes assuste...
- Tipo quê?
Lem deixou de olhar para ele, fixando um ponto perdido no espaço.
- Uma coisa tipo... não sei. Tipo um cão, talvez. Um cão rosnando e mostrando os dentes, com os olhos brilhantes...
Alec sorriu.
- Bolas, se tiver vendo um cão na minha frente, pego num pau e corro com ele. Atiro-lhe uma pedra...
- Não! - Lem debruçou-se por cima do balcão, com os olhos muito abertos. - Nunca faça isso, porque nunca se sabe. Pode ser um cão fantasma.
Alec deu uma gargalhada.
- Ta a mangá comigo.
219Lem apertou-lhe o ombro e olhou-o com uma tal intensidade, que se tornava assustadora.
- A sua Mãe nunca lhe falou de cão fantasma?
- Falou pois. Mas eu é que nunca vi nenhum, não.
- Pois eu vi! E se uma pessoa recebe um aviso desses, presta-lhe atenção. Percebeu?
- Calma, Lem, calma. - Alec soltou-se delicadamente da mão de Lem. Nunca o tinha visto comportar-se daquela maneira. Tinha acontecido qualquer coisa na cadeia que tinha mudado a maneira de ser de Lem. Mas ele acabaria por voltar ao que era, mais cedo ou mais tarde. Tinha visto um cão fantasma, está bem! Estava-se mesmo a ver que essas coisas existiam!
O importante era Lem ter concordado com a ideia dele. Estava feito. Alec ia voltar a vê-la nua, e a tocar-lhe em cada milímetro do corpo. A ideia dava-lhe a volta a cabeça. Ele adorava dizer o nome dela em silêncio, dentro do pensamento, onde mais ninguém podia ouvi-lo: Rebecca! Rebecca Ramey!
22018
Na manhã do dia 11 de Fevereiro, o Sr. Taylor Moore, anterior procurador-público e actual deputado do Distrito de Travis na Décima Nona Sessão Legislativa, levantou-se cedo, como era seu hábito.
Deixou a Sra. Moore a dormir e passou ao quarto ao lado, onde tinham os guarda-fatos. Despiu as ceroulas. A banheira tinha sido enchida na véspera e a agua para o banho estava gelada, como ele gostava. Esfregou-se com um trapo embebido em sabão, enxaguou-se, e depois limpou-se activamente.
Feitas as abluções, o Sr. Taylor Moore imobilizou-se por momentos. À luz fria da manhã, olhou-se demoradamente no espelho de corpo inteiro colocado entre os guarda-fatos de carvalho maciço. Convinha a um homem, considerava Moore, observar-se nu de vez em quando. Certa vez, tendo entrado meia adormecida no compartimento onde ele procedia a este ritual, a Sra. Moore chamara-lhe vaidoso, para o arreliar. Era verdade que a aparência do seu físico nu não desagradava a Taylor Moore. Mas não era a simples vaidade que o levava a fazer este escrutínio. ”Conhece-te a ti próprio!”, diziam os filósofos. Certamente, pensou ele, que o conhecimento tinha necessariamente de incluir uma resoluta familiaridade com a porção de barro mortal que um homem recebeu do Criador para albergar o seu espírito.
Esse barro, que começa por ser firme e resistente, era uma matéria maleável. Moore achava aterrador o ponto a que carne de um homem podia decair e alargar com a passagem do tempo. Ainda era relativamente novo, tinha apenas trinta e oito anos - para político, ainda não atingira o auge. Tinha amigos que consideravam aceitável, e mesmo elegante, um homem tornar-se corpulento após os trinta a-nos, como se a queixada fosse um sinal de sagacidade e a barriga proeminente uma expressão de êxito material. Mas Taylor Moore não concordava. Por vezes, perguntava a si próprio se alguns dos seus colegas se observariam seriamente ao espelho. Com certeza que não, decidiu, pois de outra maneira seriam incapazes
221de se mostrar às multidões de eleitores, sabendo muito bem que aparência teriam aos olhos dos outros homens.
Viu ao espelho um físico não muito diferente, nos seus contornos gerais, daquele que exibira aos vinte anos. Taylor Moore era alto e tinha os membros compridos, mas era provido de peito amplo e ombros a condizer, e de uma barriga lisa como o ferro. As curvas em forma de arco dos seus músculos abdominais eram tão precisas como as de um nadador de um quadro de Thomas Eakins. Apesar da barba com fios cinzentos, parecia mais novo do que era. Tinha o rosto comprido e rectangular. O nariz talvez fosse para o grande, a boca era pequena. As sobrancelhas formavam uma curva para cima, na direcção uma da outra, num ângulo que lhe conferia uma expressão pensativa, levemente melancólica, mesmo quando sorria. Embora nunca se tivesse considerado bonito, a maioria das mulheres parecia ter outra opinião.
Tinha o seu melhor fato preparado para vestir, os sapatos de couro preto engraxados e polidos, o colarinho rigidamente engomado. Depois de se vestir, o seu rosto adquiriu outra proeminência. Tinha aparado a barba na noite anterior, porque se tratava de uma tarefa excessivamente trabalhosa para ser feita de manhã.
Observou-se da cabeça aos pés. Viu um homem que vivia do intelecto, mas exibia o físico de um atleta. Aqui estava um sujeito que sabia tomar conta de si, que combinava graciosamente a maturidade com um vigor juvenil - era justamente o tipo de homem capaz de se erguer na presença de um corpo de legisladores e pronunciar um discurso cheio de perspicácia e autoridade, obrigando-os a respeitarem-no, forçando-os a concordarem com ele. Era precisamente isso que Taylor Moore tencionava fazer neste dia.
A câmara que o Parlamento ocupava no edifício temporário do capitólio era maior do que a câmara do Senado, dado que tinha de acomodar um corpo muito mais numeroso, composto por 106 membros. A galeria também era maior, mas não o suficiente para acomodar a enorme multidão que nesse dia se reuniu para assistir ao debate da Lei das Amanuenses.
WilI, Dave e Hiram chegaram tão cedo, que ainda encontraram lugares sentados, que acabaram por ceder, à medida que as mulheres iam chegando. No entanto, uma fileira de jovens amanuenses sentados na
222última fila recusou-se firmemente a mover-se. Um deles observou, bastante alto:
- Elas só querem metade dos lugares de amanuenses, a que propósito é que havemos de lhes dar todos os lugares na assistência? - A observação levou diversas mulheres a levantarem-se para devolverem os lugares, mas isto apenas fez congestionar as coxias, dado que nenhum dos homens se dispôs a ocupar os lugares vazios. As mulheres acabaram por voltar a sentar-se, por insistência do bombeiro de serviço.
- Vive-se um curioso estado de espírito na galeria - observou Hiram, Glass aos companheiros. Tinham ido parar aos lugares correspondentes aqueles que haviam ocupado na galeria do Senado, numa das extremidades da primeira fila.
Dave fez um aceno de cabeça. Will não respondeu. Perscrutava a galeria, a procura de uma cara específica.
- já te apaixonaste? - perguntou Dave.
- O que? - Will corou, surpreendido.
- Olhem para ele! - disse Dave. - Acho que está mesmo apaixonado. Quem é a senhora? Eu diria que a mais impressionante é aquela matrona da primeira fila, de chapéu roxo, Augusta Gaines, a rainha de Bellevue, esposa do meu patrão. Por acaso está à espera de bebé, embora ainda não se note. A não ser que o prémio va para a beleza sorridente que está sentada ao lado dela, a Sra. Taylor Moore, que veio assistir ao discurso do marido. Mas ambas são velhas de mais para ti, rapaz.
- Não sejas tolo - replicou Will. - Estava só... - Interrompeu-se porque, de repente, avistou a outra mulher, a morena que acompanhava a loira naquele dia, na galeria do Senado. Mas estava sozinha; a mulher a quem tinha chamado Eula não vinha com ela.
A câmara enchia-se lentamente. O número de deputados, só por si, conferia a sessão uma escala mais grandiosa e uma atmosfera mais animada do que a que presidira ao debate no Senado. Depois da abertura formal da sessão do dia, o orador ordenou a um amanuense que lesse o texto do projecto de lei. Foi proposta uma inundação de emendas. Uma delas, que ecoava a emenda à Constituição dos Estados Unidos que conferia o direito de voto aos antigos escravos, pretendia que se especificasse na lei que as mulheres podiam ter acesso a estes empregos ”mesmo que tivessem vivido anteriormente na condição de servidão”. Os amanuenses presentes na galeria riram-se com gosto da piada.
223Todas as emendas propostas foram rejeitadas; iniciou-se o debate sobre o projecto de lei. Houve vários argumentos contra a sua aprovação que prejudicaria a eficácia dos departamentos; que era inconstitucional a assembleia legislativa determinar a política de contratações dos Comissários de departamento; que acabaria por beneficiar audaciosas ”mulheres ianques” e ”Susan Anthonys”, que acorriam a grande velocidade do norte, arrancando os lugares de amanuenses às senhoras do Texas, que eram muito mais recatadas. (Isto suscitou um sonoro ”Mas que disparate!”, pronunciado por Augusta Gaines.)
Um dos deputados propôs que metade dos batalhões de fronteira dos Rangers do Texas fossem constituídos por mulheres; porque não, se as mulheres eram efectivamente iguais aos homens e a atribuição dos empregos do estado devia ser feita com base na simples igualdade? Outro sugeriu que a votação do decreto de lei fosse suspensa enquanto a galeria estivesse cheia de mulheres, dado que a presença de tantas ”meninas bonitas de faces rosadas” poderia lançar uma influência hipnótica sobre os legisladores. Outro sugeriu que a discussão fosse transferida para a ópera de Millett, e se cobrassem vinte e cinco cêntimos pelas entradas.
Se a Lei das Amanuenses fosse aprovada, perguntou o Sr. McKinney, do Distrito de Walker, o que se seguiria? Preparar-se-iam os apoiantes da lei para propor, na próxima sessão legislativa, que as mulheres fossem autorizadas a votar? Esta lógica acabaria por permitir que as mulheres fizessem parte dos júris, e que tivessem cargos reais, quaisquer cargos, incluindo os de juízes, deputados do estado, ou mesmo governadores do Texas!
- Semelhante lógica arrasta a mulher para muito longe da sua esfera natural. Não posso sancioná-la - concluiu. - A sua esfera é o lar. Compete-lhe manter vivo o seu calor. Foi Deus quem o disse!
O Sr. Begstrom, do Distrito de Bexar, objectou que o projecto de lei era um exemplo egrégio de legislação inconstitucional de classe.
- Este projecto de lei contém uma verdadeira caixa de Pandora de problemas. Alguns dos deputados, por cavalheirismo mal entendido, gostariam de abrir essa caixa. Mas começamos pelas mulheres, e a seguir são as pessoas de cor que ganham o direito a reivindicar uma parte dos empregos do estado. Imaginem uma quota para pessoas de cor, a ser imposta pela força da lei! Aonde é que isto vai parar?
O Sr. Cochran censurou os opositores ao projecto de lei por levantarem o espectro do sufrágio feminino.
224- O objectivo deste projecto de lei está tão longe do sufrágio feminino como o céu está da terra. O espírito de cavalheirismo que levou à introdução deste projecto de lei abafaria com desprezo a menor insinuação de que as nossas mulheres devam ser conduzidas à cabina de voto. A ideia de que as mulheres devem ser investidas de poder político é filha da insanidade política, é um aborto de uma mente doente, que gostaria de tentar assexuar as nossas mulheres, arrastando-as para o esterco da arena política. Os opositores a este projecto de lei estão a tentar refutar uma medida confundindo-a com outra!
O Sr. Taylor Moore, do Distrito de Travis, era o próximo a falar. Ouviu-se um aplauso na galeria, iniciado por Augusta Caines. A seu lado, a Sra. Moore aplaudiu discretamente, mantendo o queixo erguido. Taylor Moore lançou-lhe um rápido sorriso, pigarreou e começou.
- Sr. Presidente! No coração deste projecto de lei reside a suposição de que, no âmbito dos empregos concedidos pelo estado, existiu e continua a existir uma notória discriminação contra um grupo de cidadãos, nomeadamente todo o sexo feminino do estado do Texas, e isto, apesar da doutrina do partido da maioria, o meu partido, o Partido Democrático, que defende ”justiça igual para todos, e privilégios exclusivos para ninguém”. Este projecto de lei visa remediar a discriminação passada contra as mulheres, e pôr fim a essa discriminação no futuro.
Os opositores a esta lei observam cinicamente que nenhuma lei proíbe o emprego de mulheres pelos departamentos. Se tal lei existisse, proibindo metade da população de ganhar a sua subsistência, que vergonhosa mancha na nossa civilização ela não seria! Ainda mais cinicamente, os opositores recordam-nos que na anterior sessão legislativa foi aprovada uma lei permitindo especificamente o emprego de mulheres pelo estado. Parabéns aos nossos predecessores, digo eu! Mas eles não foram suficientemente longe, e compete-nos a nós dar o passo seguinte.
Temos de avançar, Sr. Presidente, porque a injustiça perpetrada contra as mulheres não se encontra nos estatutos, mas nos costumes e na prática de todos os dias. Os costumes impedem a admissão de amanuenses do sexo feminino nos departamentos com a eficácia de uma porta de ferro, e essa porta não será derrubada enquanto a lei não mandar! Os costumes, perpetuados ano após ano, são o escudo invisível que protege os habitantes do Texas de uma justa competição nos departamentos.
Depois de terem orgulhosamente salientado que a lei permite a contratação de mulheres, os opositores torcem as mãos e queixam-se de que
225contratar uma mulher, mesmo que seja para a respeitável profissão de amanuense, privá-la-á inevitavelmente da sua graça e refinamento femininos. Sr. Presidente, estou completamente farto deste sentimentalismo inconsistente, que entra em êxtase quando considera as delicadas virtudes da feminilidade, embora negue àquelas que possuem essas mesmas virtudes os meios para se alimentarem e se vestirem! Estes opositores estão dispostos a colocar a mulher num pedestal, e depois deixam-na morrer à fome em cima dele!
Apesar da visão sentimental que os opositores têm do calor do lar, o facto é que há muitas mulheres, demasiadas, que não só desejam trabalhar, como têm de trabalhar para poderem viver uma vida decente. Qualquer homem gostaria de ver em cada mulher do Texas uma rainha do lar, dedicando-se a tratar daqueles que ama, sem qualquer preocupação monetária! Mas isso, Sr. Presidente, é uma imagem de um livro de histórias infantis, não é a realidade!
Há muitas mulheres que precisam de trabalhar. Podemos fazer um levantamento das razões para que assim seja, se quisermos. Consideremos todos os homens que foram mortos ou ficaram inutilizados na Guerra entre os estados. Passou quase uma geração desde essa grande tragédia, mas as suas consequências continuam a fazer-se sentir em muitas famílias, e foram muitas as mulheres que ficaram órfãs, ou viúvas, ou foram privadas do filho ou do irmão que devia ter sido o seu arrimo e o seu apoio no futuro. Em vez de serem sustentadas, muitas mulheres foram obrigadas a sustentar um homem cujo corpo foi destruído pelos sacrifícios feitos no campo de batalha.
Acrescente-se a isto a maldição da bebida e a degradação moral generalizada dos nossos dias, e pense-se naquelas mulheres que são piores do que viúvas, que se encontram casadas com alcoólicos e vagabundos e têm de recorrer sabe-se lá a que rendimentos para se alimentarem, a si próprias e aos seus filhos.
Considere-se igualmente a tendência da sociedade moderna para a concentração do poder e da riqueza num número cada vez mais reduzido de mãos. A sociedade está virtualmente dividida em duas classes, os empregadores e os empregados, aqueles que vivem do que já adquiriram e aqueles que têm de adquirir todos os dias aquilo de que vivem. Quer homens, quer mulheres, estão entregues a si próprios, e alguns, os mais pobres, travam uma verdadeira batalha pela sobrevivência. É esta a dura realidade que tanto perturbou a esfera sagrada do lar e obrigou
226muitas mulheres dos nossos dias, não menos femininas nem menos virtuosas do que as suas mães e as suas avós, a procurarem meios de subsistência. Os cavalheiros que afirmam que Deus ordenou as mulheres que cuidassem da casa e nada mais, esquecem que as nossas salas de aula, as nossas lojas e, sim, os nossos escritórios, estão cada vez mais ocupados por mulheres honestas e heróicas, que não são conduzidas a esses lugares por uma ambição perversa, mas por uma terrível necessidade. Esses piedosos cavalheiros esquecem que há mulheres que não têm família, que são excessivamente orgulhosas para permitirem que tenham piedade delas, e demasiadamente nobres para submeterem a sua independência. Não concordarão que nenhuma mulher devia sentir-se compelida a contrair matrimónio com o simples objectivo de adquirir meios para o seu sustento material?
O que querem os opositores que façam essas mulheres? Deverão limitar-se ao duro trabalho manual de lavar roupa? Devem ir pedir esmola? Ou deverão descer ainda mais baixo? Sr. Presidente, temos infelizmente perfeita consciência dos canais de comércio ilegítimo que uma mulher tem à sua disposição. Conhecemos as tentações que podem assediar uma mulher necessitada, e as profundezas de degradação em que ela pode cair. Uma vez caída no abismo, estará o cavalheiro que se opõe a este projecto de lei disposto a acorrer em seu auxílio, estendendo-lhe uma mão amiga com que a tire do fundo? Parece-me que é melhor mantê-la fora dele! É melhor aprovarmos legislação, como o projecto de lei que foi apresentado a esta casa, que lhe garanta que terá a possibilidade de lutar para se sustentar com trabalho honesto. Isso é certamente o mínimo que deve ser concedido a todos os homens e a todas as mulheres deste grande estado!
Taylor Moore deu um murro no pódio. As mulheres que se encontravam na galeria levantaram-se espontaneamente, aplaudindo e aclamando. A Sra. Moore, corada de orgulho, limpou uma lágrima. O marido fez uma vénia. Era destinada à esposa, mas algumas mulheres da galeria convenceram-se de que se destinava a todas elas, e devolveram entusiasticamente o gesto; beijos imaginários choveram na sala. Will Porter esticOu o pescoço, espreitando por entre os chapéus e as rendas. A mulher morena continuava sozinha; Eula não se tinha juntado a ela. Curiosamente, permaneceu sentada enquanto todas as outras mulheres se levantavam e aplaudiam. Parecia perdida nos seus pensamentos, ponderando as palavras do Sr. Taylor Moore.
22719
Se o chamado projecto de lei das Amanuenses fosse uma criança, é possível que se tivessem inscrito as seguintes palavras na sua pedra tumular: Aquijaz oprojecto lei nº 79 do Senado, nascido a 19 de Janeiro, morto a 19 de Fevereiro de 1885; embora tenha vivido apenas um mês, abalou o estado do Texas.
Após vários dias de debates, a Assembleia de Deputados aprovou o projecto de lei por uma margem esmagadora. Significativamente, tinham-lhe sido acrescentadas duas pequenas emendas. O projecto emendado foi reenviado ao Senado.
Dado que tinham sido introduzidas emendas, o Senado tinha de debater essas emendas. O Senador Terrell, o arqui-inimigo do projecto de lei, propôs que esse debate fosse indefinidamente adiado. A moção foi aprovada por uma votação de quinze para onze. Alguns daqueles que tinham votado a favor do projecto de lei votaram nesta altura a favor do adiamento da sua reconsideração.
O debate sobre o projecto de lei emendado nunca foi agendado. O projecto de lei nº 79 do Senado caiu no limbo legislativo. Apesar de ter recebido uma maioria de votos em ambas as câmaras, o projecto estava efectivamente morto.
May Tobin não tinha assistido a nenhum dos debates, mas ouvira atentamente os relatos em primeira mão de Delia Campbell.
- Os homens são tão tortuosos! - observou May a Delia, quando soube que o projecto de lei tinha sido abandonado. - Aqueles hipócritas nunca fizeram tenções de permitir que o projecto se transformasse em lei. É uma pena para todas as mulheres, mas também é verdade que, se tivesse sido aprovado, poderia levar-me a falência.
- Por quê?
- Ora, porque as jovens inteligentes e atraentes como tu arranjariam empregos legítimos como amanuenses. Não teriam de recorrer à subsistência que ganham nesta casa. Eu teria de fechar.
228- Não posso falar pelas outras - replicou Delia, tirando o charuto da boca num gesto lânguido. - Mas eu nunca serei amanuense.
A assembleia legislativa voltou a sua atenção para outros assuntos terrenos para a universidade, subsídios aos veteranos da guerra, uma moção que visava dissolver os Rangers do Texas (”um dispendioso corpo de lapas oficiais”, na opinião daqueles que estavam convencidos de que a força de fronteira perdera a sua utilidade). A 2 de Março, no meio de festividades de gala, foi colocada a primeira pedra do novo edifício do capitólio. O mês de Março abateu-se sobre o centro do Texas, como costumava abater-se, com chuvas, ventos e tempestades.
Por esta altura, o assassínio de Mollie Smith tinha sido praticamente esquecido, excepto pelos mais directamente afectados por ele.
Na quinta do Distrito de Williamson, a Primavera trazia consigo as sementeiras e o nascimento do gado. Jimmy Phillips e George McCutcheon trabalhavam do nascer ao pôr do Sol. Eula sentia-se mais só do que nunca. Correspondendo à infelicidade manifesta nas suas cartas, Delia foi fazer-lhe uma visita prolongada.
A presença de Delía transformou a quinta para Eula. Pareceu-lhe que a Primavera tinha realmente chegado; a depressão que a tinha esmagado durante todo o Inverno aligeirou-se. Tomar conta do bebé tornou-se uma fonte de consolo, em vez de ser um fardo. O próprio ar que respirava parecia-lhe mais doce e mais salutar.
As duas mulheres cozinhavam, costuravam e cuidavam da horta juntas. Eula tinha receado que Delia se entediasse rapidamente, mas a cunhada parecia satisfeita com a folga da vida na cidade.
- Não tens saudades de Austin? - perguntou Eula certo dia. Estavam na horta, a colocar estacas e a atar-lhes os fios onde os feijões se apoiariam. O bebé dormia, no berço colocado à sombra perto delas. - Não detestas isto tanto como eu?
- Detestar? Isto é um encanto.
- Dizes isso porque não és obrigada a viver aqui. Podes ir-te embora quando te apetecer.
- Bem, não tenciono ir-me embora tão cedo, Eula. Tenciono ficar contigo bastante tempo. E, quando eu regressar, bem sabes que podes ir visitar-me sempre que quiseres.
229- E ficar alojada em casa dos teus pais? Da última vez, eles andavam constantemente à minha volta. Convenceram-se de que, pelo facto de eu ter ido a Austin sem o Jimmy, havia problemas entre nós.
- E há?
Eula fixou os olhos nos compridos sulcos de terra.
- Não. As coisas vão bem. Melhor do que eu pensava. O Jimmy está quase sempre sóbrio. Maldito rum! Por que havemos de ter de o suportar? Às vezes, penso que os proibicionistas têm razão.
Delia abanou a cabeça.
- Não me parece que proibir o álcool impedisse os homens de beber. Aquilo que eles fazem em casa de May Tobin é ilegal, e não é por isso que deixam de o fazer. Os homens hão-de fazer sempre aquilo que quiserem. Uma mulher que pense que vai conseguir impedi-los pode preparar-se para um grande desgosto.
- Delia, aquela mulher, a Tobin, tornou-te muito cínica. Delia sorriu.
- Nem sequer a conheces.
- Mas gostava de conhecer, um dia.
- Nem penses! Uma jovem e respeitável esposa e mãe tem de ter cuidado com as suas companhias.
- Às vezes preocupo-me contigo, Delia. - Subitamente, Eula mostrou-se tão melancólica, que Delia não pôde deixar de se rir e de lhe dar um beijo.
- Quer dizer que tencionas fazer-me um sermão, tentando envergonhar-me e fazer-me abandonar o meu comportamento dissoluto?
- Não. Mas talvez devesse.
- Não me pareces muito convincente. Vais ter de cuspir mais fogo e enxofre para conseguires assustar-me.
Eula sorriu.
- Seria mais convincente se fosse capaz de discursar como aqueles sujeitos que ouvimos no Senado?
Delia riu-se.
- Eram mesmo horríveis, não eram? Crocitavam como sapos inchados. Achas que semelhante bando de sapos velhos seria alguma vez eleito se as mulheres pudessem votar?
- Nem pensar! Corríamos com eles de pau na mão.
- Mas não tenho a certeza de que encontrássemos outros melhores
230para por no lugar deles.
- Outros? - replicou Eula. - Mas achas que, se as mulheres tivessem voto na matéria, os homens voltariam a ser eleitos?
- Eula, tens razão! É disso que eles têm medo, não é? Se eles nos autorizarem a votar, são as mães e as mulheres deles que fazem as leis, e eles têm de lhes obedecer.
- E as amantes - observou Eula.
- Bem, não me parece...
- Se os homens que frequentam a casa de May Tobin podem ser governantes, porque não hão-de sê-lo as mulheres que também a frequentam?
- Eula! Não fazia ideia de que eras uma sufragista radical.
- Acho que é do tempo que passo aqui sozinha, dia após dia, a pensar. Há uma série de coisas que não fazem sentido para mim.
Delia riu-se.
- Bem, não será no nosso tempo que veremos as mulheres a governar; já agora, podemos pintar a fantasia com as cores que mais nos agradarem. O estado do Texas governado por mulheres perdidas; acho que nem Rutabaga Johnson acharia bem!
- Ele frequenta a casa de May? Delia guinchou de riso.
- Valha-me Deus, não! Digo-te que pensar nisso é um bom incentivo para me deixar estar aqui na quinta!
Eula olhou-a intensamente.
- E aquele sujeito que me apontaste na galeria do Senado?
- William Shelley? Isso é outra história.
- Continua a ir lá?
- Regularmente. Embora eu lhe tenha pregado um susto naquele dia, na galeria. Políticos... tem todos um medo enorme de ver manchada a sua reputação! Mas continua a ir lá. E não só...
- Então, Delia?
- Não podes contar a ninguém o que te vou dizer. A ninguém.
- Claro que não conto, Delia.
- Há umas semanas, levou o chefe dele a casa da May.
- O chefe dele?
- O fiscal. O Sr. Swain!
- É coisa para eu ficar impressionada?
231- Só se pensares que ele vai ser o próximo Governador do Texas.
- A sério?
- É quase certo. É o Sr. Shelley quem o diz, e a May também - e a May sabe tudo. Nunca a tinha visto tão excitada com um visitante. Continuaram a tratar da horta durante mais algum tempo, até Delia ver Eula abanar a cabeça.
- O que se passa, queridinha?
- Nada, não é nada. Só que, quando somos miúdas, ensinam-nos que o mundo é assim e assado, e quando crescemos percebemos que não e nada assim, é completamente diferente.
- E isso é assim tão mau?
- Entristece-me.
Delia estendeu a mão na direcção das de Eula.
- Se calhar entristece-te porque continuas a querer que o mundo seja uma coisa que não é. Se visses as coisas como elas realmente são, talvez isso te... libertasse de certa maneira.
- Mas, se vires as coisas como elas são, é tudo tão pequeno e tão feio, que não nos resta nada com que sonhar.
- Oh, podemos sonhar com um milhão de coisas. Não temos de parar de sonhar.
Eula olhou para a casa da quinta e para o celeiro, para o anexo e o alpendre das ferramentas, para as ovelhas no pasto e para o campo onde os homens trabalhavam.
- Não tenho a certeza de qual é o meu sonho - disse baixinho - mas isto não é de certeza.
23220
- Chuva em Abril, em Maio flores mil - declarou o Dr. Terry com um sorriso de esguelha. Ele e o Dr. Fry, e várias dezenas de pessoas, estavam encostados ao parapeito da ponte da Avenida do Congresso, voltados para oeste, para montante. Poucos dos que ali se encontravam tencionavam atravessar a ponte para o outro lado, mas não se tinham importado de pagar a portagem para verem melhor a devastação.
Directamente por baixo deles, havia pilhas de entulho acumulado de encontro aos pilares da ponte. E mais pilhas de entulho espalhadas ao longo de ambas as margens lamacentas e devastadas do Colorado. As tempestades de Março e Abril tinham culminado numa inundação que tinha varrido o rio como uma enorme parede de água.
- A inundação provocou no nosso colega e amigo Sr. Gaines uma cólera muito poética - observou o Dr. Terry. - Quer que lhe leia o artigo do Statesman, Dr. Fry?
O Dr. Fry estava de costas para o parapeito, voltado para leste, a fim de apanhar o sol da manhã no rosto. Acenou com a cabeça, fazendo reflectir o sol nos seus óculos azul-cobalto.
- Por favor.
O Dr. Terry pigarreou. Começou a ler, em voz suficientemente sonora para ser audível num raio de 100 metros.
- ”O Colorado conheceu a sua maior enchente desde a famosa inundação de 1839. As aguas, crueis e devastadoras, varreram o rio, num terrível holocausto de turbação inchada, agitando-se e precipitando-se numa fúria louca, jamais igualada na história humana.”
- Pelo menos desde 1839 - fez notar o Dr. Fry.
- Uma barragem! - proclamou abruptamente o Dr. Terry, não tanto para o Dr. Fry, mas para aqueles cuja atenção tinha captado com a sua leitura. - Do que esta cidade precisa é de uma barragem, não apenas para benefício da indústria e da agricultura, mas para pôr fim a esta devastação.
233Ouviram-se exclamações: ”Muito bem! Muito bem!” E: ”Bem observado!” E: ”Tem razão!”
O Dr. Terry baixou a voz.
- Parece-me, Dr. Fry, que regressamos à cidade de Austin num momento muito oportuno. A Fortuna sorri-nos. Esta inundação foi positivamente um presente de Deus! Toda a gente vai falar das vantagens de uma barragem. E cá estamos nós, com o objectivo específico de investir um capital arduamente ganho nesse mesmo projecto. - Ergueu a voz. - Oh, Dr. Fry! Gostava que visse com os seus próprios olhos os vórtices castanhos, as pessoas arruinadas, pobres almas alinhadas nas margens traiçoeiras e esboroadas!
Dr. Fry assumiu uma expressão grave. Dr. Terry elevou ainda mais a voz.
- Cavalheiros! Vêem aqueles desgraçados de olhar desvairado, perdidos ao longo das margens? São dezenas deles, homens que tudo perderam com a inundação: casas, magras possessões, meios de sustento! Viviam em barracas a beira-rio, ou dormiam em balsas improvisadas. Pescavam para comer e para vender. As barracas desapareceram! As balsas desapareceram! As canas e as redes de pesca desapareceram! Estes homens têm muita sorte em estar vivos.
- Cavalheiros de Austin! Sou novo na cidade, mas o feroz orgulho cívico desta grande capital já captou a minha lealdade. Sinto-me compelido a fazer qualquer coisa por aqueles infelizes. Tenho de passar à acção! E fá-lo-ei! Proponho-me fazer uma colecta a favor daquelas vítimas sitiadas, aqui e agora. - Tirou o chapéu e estendeu-o na sua frente.
- Dr. Fry, vou começar por si! Vamos, vamos, meta a mão no bolso. só isso, homem? Não aceito menos de um dólar! Eu próprio vou meter a mão no bolso e dar dois dólares. O senhor? O que vai dar? Pense naqueles homens, famintos e nus, vítimas da terrível devastação da natureza, que nada poupa! E o senhor! Quanto? Pronto, seja uma moeda, se não pode dar mais a estes homens seus irmãos, dê ao menos isso! E o senhor? E o senhor?
O Dr. Terry levava tudo a sua frente, como a inundação do rio Colorado. Quando terminou a operação, tinha o chapéu deformado pelo peso das moedas, com algumas notas por cima, semelhantes à espuma verde do rio. Agradeceu sonoramente aos generosos cidadãos de Austin, e depois desceu da ponte em direcção à margem do rio, avançando lentamente
234para ajudar o Dr. Fry a descer. Distribuiu uma parte da colecta aos espantados vagabundos que olhavam o rio com ar apatetado. A parte que guardou para si (fazendo desaparecer algumas moedas e notas por um pequeno rasgão no forro de seda do chapéu) pareceu-lhe uma comissão razoável destinada a compensar o esforço empreendido a favor dos necessitados.
Nessa noite, ele e o Dr. Fry jantaram os bifes mais altos que havia no Iron Front, e discutiram as interessantes perspectivas de um negócio em Austin.
- Hiram Glass! Mas... que... raio...
Hiram, que tinha chegado à secretária a assobiar, imobilizou-se e vacilou.
- Shoemaker! A tua mãe não te ensinou que não é delicado olhar fixamente para as outras pessoas? Ah, já me esquecia de que foste educado pelas vacas. Bem, é melhor tirares os cascos de cima da secretária. O Gaines não tarda aí.
- Hiram! Meu Deus...
- Estás com algum problema, Shoemaker? Dave soltou uma gargalhada.
- Bem, pelo menos eu distingo a parte de cima da parte de baixo do meu corpo.
- O que queres dizer com isso?
Dave continuava a olhar para ele com uma expressão de espanto. Abanou a cabeça.
- A única explicação que consigo encontrar é que esta manhã paraste no velho Sam, lá em baixo no átrio, para engraxar os sapatos. Mas, Hiram, são os pés que se põem no bloco, não é a cabeça! A graxa é para os sapatos!
A cara de Hiram parecia estalar como uma noz.
- Ou foi isso - prosseguiu Dave - ou então meteste a cabeça numa das máquinas enquanto eles estavam a carregar a tinta. - Dave deu uma palmada no tampo da secretária e desatou a rir, com tanta vontade que perdeu o equilíbrio e quase caiu da cadeira giratória.
Hiram começou a tentar recuperar a compostura. Estalou os dentes, esticou o queixo, apertou os lábios e semicerrou os olhos.
- Presumo que estejas a referir-te ao meu cabelo.
235- Tens a certeza de que é o teu cabelo? Pensei que fosse...
- já chega, Shoemaker! É um facto que aderi às fileiras dos milhares de pessoas, homens e mulheres, que decidiram recorrer ao Renovador Capilar de Hale para revivificarem o couro cabeludo.
- Bolas, Hiram, toda a gente sabe que aquilo não passa de graxa preta metida num frasco, diluída com tinta de impressão e amoníaco, e disfarçada com umas gotas de perfume francês.
- Claro que não! O Renovador Capilar de Hale é uma combinação cientifica de ingredientes dispendiosos, especialmente destinados a devolver aos cabelos secos e descoloridos a sua cor e textura originais.
- Hiram, tu não és propriamente um velho grisalho. - Subitamente, Dave animou-se. - já sei o que foi! Arranjaste uma nova amiga, não arranjaste?
Hiram não respondeu. Começou a folhear uma pilha de papéis que tinha em cima da secretária.
- A inundação foi uma coisa horrível - comentou, em tom decidido. Momentos depois, William Pendleton Gaines entrava de rompante no escritório. Parou diante da secretária de Dave e pôs-lhe um recorte de jornal debaixo do nariz.
Dave espreitou o texto com um olhar estrábico, depois fingiu cheirá-lo.
- Cheira-me a... Bratwurst? Sauerkraut?
- Quer dizer que és capaz de reconhecer alemão escrito? - perguntou Gaines.
- Eu cresci a falar alemão.
- Está bem, mas sabes ler?
- Claro que sei! Quando me contratou, disse-lhe que sabia ler alemão.
- Pois disseste. - Gaines ergueu uma sobrancelha. - Mas nunca tinha tido ocasião de te pôr à prova, tenho agora.
- O que é isto? - Dave pegou no recorte.
- Foi publicado num jornal alemão. Uma amiga de Augusta foi à Alemanha visitar a família. A senhora deparou com esta história, viu que tinha uma ligação com o Texas, e pensou que eu talvez estivesse interessado. Chegou no correio de ontem. Sei alemão suficiente para perceber o principal, mas esse tipo gótico dá-me cabo dos olhos, por isso quero que mo traduzas. Além disso, tu és de Hempstead, não és?
236- Lamento desiludi-lo, chefe, mas Hempstead não fica na Alemanha. Não fica tão longe. É depois de Manor, mas fica do lado de cá do Houston...
- Sei perfeitamente onde fica Hempstead, bolas! Lê mas é isso. Valha-me Deus, Hiram, que raio fez voce ao cabelo? Caiu dentro de uma bacia de alcatrão, homem?
Dave analisou o texto que tinha na frente. Sorriu amplamente sem motivo aparente, depois começou a ler em voz alta, devagar, traduzindo à medida que ia lendo.
- Do Tagblatt de Dresden. ”O Mistério de Elisabet Ney. O que é feito da conhecida escultora? Diz-se que a mulher que amoleceu o duro coração do Rei foi morar para junto dos selvagens da América”. - Atirou a cabeça para trás e deu uma grande gargalhada.
- Ris-te depois de teres lido a história - disse-lhe Gaines. - Anda lá para a frente!
Dave franziu os olhos. Era fácil decifrar os títulos, mas o corpo principal, cheio de compridas palavras compostas naquele tipo minúsculo, dava realmente cabo dos olhos. Fazia uma pausa entre cada frase, para reordenar a sintaxe num inglês aceitável, gesticulando frequentemente com as mãos, para indicar o seu grau de satisfação com determinada palavra.
- ”Passaram quase quinze anos desde a partida de Elisabet Ney para o Novo Mundo, e nunca mais tivemos notícias do seu paradeiro... A artista, outrora famosa, voltou a ser tema de conversa, devido à crescente turbulência que rodeia a corte do Rei Ludwig 11... Numa altura em que o monarca sitiado e os agentes da unificação começam a chegar a acordo, a imprensa diária ferve de especulações acerca do famoso carácter errático do rei... É convicção geral que o rei odeia, e sempre odiou, as mulheres, que é completamente adverso ao sexo feminino.”
- Deve ser por isso que lhe chamam Ludwig, o Louco - observou Gaines.
- ”Recordar-se-á, contudo, que, em 1869, Elisabet Ney, que apenas com trinta e cinco anos de idade já era uma artista famosa, conseguiu induzir o rei a posar para uma estátua de mármore em tamanho natural, que se encontra actualmente em Munique.”
- Convenceu-o ou seduziu-o? - perguntou Gaines. Hiram Glass revirou os olhos.
237- Senhor Gaines, ou confia na minha tradução, ou não confia! disse Dave. - Muito bem: ”O jovem monarca só consentiu em Posar depois de um longo trabalho de persuasão, e só se a Menina Ney concordasse em não conversar com ele, nem lhe tirar as medidas da cabeça,,, ou tocar-lhe, fosse de que maneira fosse. No primeiro dia, apresentou-se com uma disposição irascível... Impossibilitada de o usar em semelhante estado, a Menina Ney pediu licença para lhe ler em voz alta... Escolheu uma obra de Goethe...”
- Dave fez uma careta - ”Ifagene”?
- Ifigénia. - A correcção proveio de Gaines, que tinha lido os clássicos.
- Exactamente. Bem, seja o que for, foi isso que ela lhe leu. Continuando: ”Envergando o fato que usa no estúdio, um vestido comprido de lã branca, com as mangas largas dobradas, Ney devia parecer uma verdadeira princesa grega... À medida que ouvia ler os versos, as feições carregadas do rei foram-se elevando e enobrecendo... Ao concluir a leitura, a Menina Ney sentou-se em silêncio... Tor que não começa a trabalhar? perguntou Ludwig asperamente... Estou a estudar Vossa Majestade, respondeu a artista... Espantado, Ludwig olhou para ela, e a partir desse momento tornou-se-lhe submisso, enviando-lhe enormes ramos de flores antes de cada sessão... Foram, ao todo, quatro as sessões, e em todas elas a Menina Ney começava por ler Goethe, a fim de acalmar o real peito; o sublime resultado pode ser visto na obra-prima que se encontra em Munique”.
- ”Concluídas as sessões, o jovem rei mandou perguntar a Miss Ney se ela aceitaria como presente uma jóia, ou se desejava outro presente qualquer... Só aceito flores, porque não tenho tempo para andar a vigiar coisas valiosas, respondeu ela... Ludwig, que nunca tinha deparado com tais sentimentos entre o seu círculo de sicofantas, passou a tê-la na mais alta estima.”
- ”Mais tarde, a Menina Ney e o marido, o médico britânico Edinund Montgomery, abandonaram, em circunstâncias misteriosas, a elegante villa que habitavam em Munique... Pensa-se que emigraram para os Estados Unidos da América... Pouco depois da partida, a Menina Ney, que esculpiu homens como Bismarck e Garibaldi, terá observado: Depois de tantos homens do mundo civilizado terem posado para mim, gostaria de modelar os maiores de entre os selvagens.”
- ”Pouco depois da sua partida, surgiu em diversos jornais alemães a notícia de que uma tribo de índios norte-americanos teria raptado e
238aprisionado uma escultora alemã que se tinha atrevido a penetrar no seu território... Esta história foi liminarmente desmentida, e considerada um boato disparatado. A verdade é que nunca mais se ouviu falar da Menina Ney... terá corrido voluntariamente um véu de obscuridade sobre a sua vida nos últimos quinze anos, ou terá sido atingida por alguma infelicidade?... Seja qual for a verdade, enquanto o combate que o rei sem descendência trava com os seus ministros republicanos se torna cada vez mais radical, Elisabet Ney é recordada como a única mulher que conseguiu amaciar, mesmo que só um pouco, o frígido coração real.”
- Uma história dos diabos! - observou Hiram Glass sem expressão. Mas qual é a relação com o Texas?
- Bem - disse Gaines, sorrindo -, acontece que a amiga de Augusta que está na Alemanha sabe que esta Elisabet Ney vive aqui no Texas... nas proximidades de Hempstead! Ela e o marido vivem praticamente como eremitas, mas relacionam-se com os altos círculos. Disseram-me que são amigos íntimos de Oran Milo Roberts, o nosso antigo governador e actual director da faculdade de direito da Universidade. Bem, Dave, tu és de Hempstead, não és? No mínimo, deves ter ouvido falar da dama.
Dave mordiscou o polegar e fingiu estar pensativo.
- Talvez. Pergunto a mim próprio se seria a bizarra velhota que vivia ao pé da estação dos caminhos-de-ferro e tinha uma série de gatos.
- Não sejas ridículo, homem! Ela e o marido vivem numa plantação, fora da cidade.
- Ah! Começo a lembrar-me de qualquer coisa...
- óptimo! Porque a minha ideia é a seguinte: como falas alemão e és natural de Hempstead, quero que vás até lá e me tragas uma história sobre esta mulher.
- Estou a ver. Quer que eu va lá perguntar-lhe que tal foi ter sido capturada pelos índios, é isso.
- David Shoemaker, estás prestes a pisar o risco. Arranjas-me uma história sobre ela ou não arranjas? Não pode deixar de ter interesse, artista famosa, amiga e confidente dos maiores estadistas e cabeças coroadas da Europa e, sabe-se lá como, vem parar ao Entroncamento dos Seis Tiros! É uma história que nem precisa de grande investigação! Além disso, Augusta nunca mais me largou desde a Lei das Amanuenses. Afirma que não publicamos suficientes histórias com interesse para as leitoras femininas, para além de uma ou outra peça sobre a melhor maneira de
239pendurar lençóis, ou de fazer caixas para chapéus com embalagens de ovos. Que dizes, Shoemaker? Achas que consegues fazer disto uma história?
- Não sei, chefe. Terei de me ausentar, pelo menos, um dia ou dois, ou talvez mais, se essa tal Ney for de facto uma eremita. Bem sabe que eu levo muito a sério a minha responsabilidade de me manter a par da situação criminal de Austin...
-Tenho a impressão de que os bandidos e as prostitutas de Guy Town conseguem passar uns dias sem ti, Shoemaker.
- E se houver algum crime a sério? Gaines resfolegou.
- Sem falar da corrupção na assembleia legislativa, não há um crime a sério nesta cidade, um crime sobre que valha a pena escrever, desde que aquela rapariga de cor foi morta, por volta do Ano Novo. Raios, se voltar a acontecer outra coisa do género, mando-te um telegrama a dizer-te que te ponhas rapidamente a mexer para Austin.
Dave acenou com a cabeça, num gesto pensativo.
- Bem, chefe, nesse caso, se tem a certeza de que pode passar sem mim, claro. Vou passar uns dias a Hempstead. até passo lá uma semana, se for preciso.
Hiram Glass revirou os olhos.
- óptimo - disse Gaines. - Então está combinado. Partes amanhã, Dave. E você, Hiram, agarra o que houver por aí enquanto ele estiver fora. Mas valha-me Deus, homem, o que é que você fez ao cabelo?
24021
- Explica-me lá outra vez por que motivo nos metemos a caminho de Hempstead, assim de repente - disse Will Porter, contemplando a paisagem que corria do lado de fora da janela da carruagem.
- É muito simples - respondeu Dave Shoemaker. - Eu vou por ordem de Sua Majestade William Pendleton Gaines, ou ”Bill Demente”, como nós lhe chamamos, na qualidade de emissário a grande artista europeia no exílio, Menina Elisabet Ney. Ostensivamente, vou em busca da história da sua vida com o fim de a explorar jornalisticamente - mas, para falar com franqueza, aqui só entre nós... - Baixou a voz. - Desconfio de que a Rainha Augusta tem um desejo premente de ver o marido imortalizado em mármore. Acha que seria um acabamento Perfeito para os jardins de Belevue, um nu em tamanho natural de Gaines, em pose heroica.
Will franziu o sobrolho.
- Não me parece que Austin esteja preparada para estátuas de nus. Gaines não poderá usar uma tanga?
-Tenho a certeza de que a Menina Ney há-de arranjar uma solução artística.
Will olhou pela janela. O Houston and Texas Central RaiIway conduzia-os para leste, do território acidentado de Hill Coutitry para a planície. Densas matas de coníferas alternavam com prados cheios de flores silvestres, castileias, tremoço azul e rodas de fogo amarelas.
- Já percebi por que é que tu vais a Hempstead. E eu?
- O Sr. Porter vai porque lhe fazem bem umas feriazinhas.
- Férias de quê? Das três ou quatro horas semanais que trabalho na loja do Harrell?
- Não, da rotina enfadonha da sua existência apática.
- Ultimamente, tenho andado bastante ocupado - disse Will, na defensiva.
- A fazer o quê?
241- Para já, a cantar. Um hóspede lá da pensão ouviu-me cantar a minha versão para banheira de ”Jeannie do Cabelo Louro”; nem imaginas, tenho andado a cantá-la em todos os espectáculos de caridade que se organizam na cidade. Ha sempre falta de tipos com voz de baixo.
Dave sorriu de través.
- Ouvi dizer que andaste a exibir os teus talentos na igreja. Converteste-te, foi?
- Sou rigorosamente isento; canto em qualquer igreja que me contrate. Ficarias surpreendido, Dave Shoemaker, com a quantidade de raparigas bonitas que um tipo conhece no coro de uma igreja.
- Também ouvi dizer que fazes serenatas.
- É verdade, alguns camaradas e eu formámos um grupo de serenatas. À noite, metemos um pequeno órgão numa carrinha alugada e andamos de um lado para o outro, a cantar docemente à janela das senhoras. Mais cedo ou mais tarde, uma delas convida-nos a tomar um copo de limonada no alpendre, ou então ameaça chamar a polícia, e a gente volta para casa.
- Presumo que estejas a retirar dividendos, em termos românticos, de todo esse esforço que impões às cordas vocais?
- Conheci uma ou duas senhoras simpáticas e conquistei a boa vontade de muitas mães carinhosas. Raciocino a longo prazo, Dave. Não tenciono ficar solteiro até morrer, como alguns sujeitos que eu cá sei.
Em termos de casamento, pensou Dave, o que impressionava as mães era um emprego estável; mas guardou a observação para si.
- Quer dizer que ainda não empenhaste as tuas esperanças em nenhuma dama?
- Nem pensar - replicou Will. Houve uma ligeira alteração na sua voz. Estava a pensar nela, na mulher que se chamava Eula. Todos os domingos, enquanto cantava, tinha a fantasia secreta de a avistar por entre a congregação. Nas noites em que fazia serenatas, era sua esperança silenciosa que, ao erguer os olhos, ela estivesse a espreitar de uma janela, iluminada pelo halo de uma lamparina. Nunca tinha falado dela a ninguém, nem sequer a Dave.
Mas Dave apercebeu-se de qualquer coisa.
- Isso! - Debruçou-se para diante e apontou para Will, sobressaltando-o. - Isso mesmo! Essa expressão que fizeste agora mesmo. É por isso que precisas de sair da cidade uns dias.
242Will riu-se, hesitante.
-Não percebo onde queres chegar. Dave olhou-o de través.
- Talvez percebas, talvez não. Não consigo dizer o que é, não é uma careta nem um franzir do sobrolho. É qualquer coisa nos teus olhos, como se uma nuvem se atravessasse diante do sol. Quando um tipo começa a fazer essa expressão, quer dizer que precisa de mudar de cenário.
Will olhou pela janela, para a luz do sol que se atravessava por entre os pinheiros, e mudou de assunto.
- Ainda não percebi como é que o Gaines te está a pagar para ires a casa visitar uns amigos.
- isso é a melhor parte! Gaines não sabe que eu já conhecia o Doutor e a Menina Ney! Está convencido de que me mandou suplicar uma audiência a uma artista europeia em clausura. Disse-lhe que talvez precisasse de uns dias para conseguir que ela me desse a entrevista, e ele acreditou! Dois minutos depois de ele me entregar o trabalho, fui à sala do telégrafo mandar um telegrama para Hempstead, a perguntar ao Doutor e à Menina Ney se podia passar uma noite ou duas em Liendo, apesar de ser tão em cima da hora. Eles responderam-me que seria bem-vindo, e que convidasse um amigo. E cá vou eu passar uns dias com uns amigos, às custas de Gaines!
- Como é que conheceste gente tão alta?
Dave contemplou a paisagem com uma expressão melancólica. O comboio estava a passar por um prado coberto de tremoço azul, que se estendia em todas as direcções como um lago pouco profundo.
- Era miúdo quando o Doutor e a Menina Ney vieram morar para Hempstead. Deve ter sido no ano dos meus treze anos; foi pouco depois de a minha mãe morrer. A casa grande da Plantação de Liendo precisava de reparações e de uma limpeza profunda. O capataz contratou uns rapazes da cidade, para ajudarem em pequenas tarefas. Eu nunca tinha visto uma casa tão imponente, umas colunas enormes na fachada, um grande alpendre e uma varanda por cima. Embora estivesse degradada, parecia-me a mansão mais grandiosa do Texas.
Não podíamos entrar na casa, mas eu esgueirei-me para dentro da cozinha e fui dar uma vista de olhos. Os novos proprietários ainda não tinham acabado de desencaixotar as suas coisas, havia caixotes e malas por tudo quanto era lado. Não parecia haver ninguém por ali, pelo que
243eu continuei a avançar, e subi ao primeiro andar, ao escritório do Dr. Montgomery. Havia livros por toda a parte, amontoados em prateleiras e empilhados no chão - livros grandes, com capas de couro e arestas douradas, cheios de fórmulas matemáticas, diagramas e desenhos de plantas e animais, uns em inglês, outros em alemão e outros noutras línguas que eu não consegui reconhecer. Em cima de uma mesa comprida, encostada a uma parede, uma série de instrumentos de laboratório, retortas, taças, tubos de ensaio, e até um microscópio. Imaginas o efeito que uma sala daquelas teve num rapazito de treze anos que nunca tinha saído do Entroncamento dos Seis Tiros? Era uma espécie de país das maravilhas.
Estava eu sentado no chão, a passar as folhas de um dos livros, quando ouvi alguém entrar. Ergui os olhos e vi um cavalheiro, com grandes suíças e óculos. Tinha imaginado que o proprietário daquelas coisas devia ser um velhote de cabelo branco e bigodes, mas este sujeito era esguio, elegante, de aspecto ágil. Deixei-me estar sentado, à espera que ele berrasse comigo, mas ele limitou-se a circular por ali, a falar sozinho. Baixou os olhos para o livro de biologia que eu tinha no colo. Começou a fazer-me perguntas. Eu sabia o que era o protoplasma, o que era um protozoário? já tinha visto uma célula ao microscópio? já tinha visto alguma coisa ao microscópio?
Levou-me para a mesa de trabalho dele. Não me deixou tocar no microscópio, claro, mas deixou-me pôr lá o olho. Era apenas uma gota de agua do pântano em cima de uma plaqueta de vidro, mas para mim foi um mundo novo.
O Dr. Montgomery disse-me que eu podia lá voltar, e que podia ler os livros dele. Eu voltei logo no dia seguinte, e ele emprestou-me um dos livros. Ele e a Menina Ney tinham livros de todo o género, não era apenas sobre ciência. Tinham romances e poesia, e biografias. Até tinham conhecido alguns dos autores. Na Europa, ela era escultora e ele era filósofo. Mostraram-me um desenho da casa onde tinham vivido, e ainda era maior que Liendo.
Foi assim que eu fui educado, não foi com a instrução que recebi na escola de Hempstead, mas com as idas a casa deles, com os livros que eles me emprestavam, a ouvi-los falar sobre os sítios onde tinham estado e as pessoas que conheciam. Nunca te perguntaste, Will, como é que um miúdo pobre de Hempstead, sem formação superior, sabe distinguir Plutarco de Petrarca?
244- Parece que eles te adoptaram, por assim dizer - comentou Will. Dave abanou a cabeça.
- Só ia lá a casa de vez em quando. Levava um livro, demorava uma semana ou duas a lê-lo, e ia devolvê-lo e pedir o seguinte. Não éramos íntimos, como se eu fosse da família. Era melhor do que se eu fosse da família, de certa maneira; nunca havia gritos. - Dave inclinou a cabeça.
- Quando agora olho para trás, dá-me a impressão de que o facto de haver na cidade alguém capaz de lhes dar valor devia agradar-lhes, mesmo que fosse apenas um miúdo que gostava de ler. A maioria dos habitantes de Hempstead achava que os novos proprietários de Liendo eram um tanto ou quanto bizarros. Toda a gente presumia que eles viviam em pecado, porque a Menina Ney nunca tratava o Doutor por marido; dizia que era o seu ”melhor amigo”. E apresentava-se como Menina Ney, e não como Sra. Montgomery Sentia-se orgulhosa do seu nome e não estava disposta a prescindir dele; tinha havido um Marechal Ney que tinha estado ao serviço de Napoleão.
Passaram um mau bocado, sobretudo durante o primeiro ano. Não me parece que fizessem a menor ideia de como se gere uma plantação, mas a verdade é que, depois da guerra, ninguém fazia. Nesse primeiro Verão, um dos filhos deles morreu, de difteria. Ela fez uma máscara de morte e cremaram o corpo. O Dr. Montgomery afirmou que era a atitude mais científica, por causa dos micróbios. As pessoas acharam estranho, acharam mesmo suspeito, e aquilo despoletou uma série de boatos horríveis. Mas o Doutor e a Menina Ney acabaram por se adaptar. Presumo que tenham conseguido fazer alguma coisa com a plantação, porque lá continua. O outro filho deve ter agora uns treze anos, a mesma idade que eu tinha quando eles chegaram a Hempstead.
- Há quanto tempo não os vês? - perguntou Will baixinho.
- Deve ir para quatro ou cinco anos. Desde que o meu pai morreu que não tenho vindo muito a Hempstead. Não tem grande coisa que ver. Deves conhecer a piada.
- Qual piada? Dave sorriu.
- Um bêbedo mete-se num comboio em Houston, a caminho de Austin, e adormece. A primeira paragem depois de Houston é Hempstead. Pouco depois, passa o revisor para picar os bilhetes. Acorda o bêbedo. O bêbedo confessa que não tem bilhete. O revisor diz-lhe: ”E aonde é
245que o senhor julga que vai?” O bêbedo responde: ”Calculo que vou para o inferno”. O revisor responde: ”Muito bem, saia na próxima paragem!” Will riu-se.
- Inventaste-a agora mesmo!
- Juro que não. A piada é tão antiga como eu.
- Quer dizer que este comboio nos leva para o inferno, é?
- Imagino que leve alguns de nós, sim - replicou Dave.
Depois de ter passado por uma placa de milhas que marcava 119, o comboio parou na estação de Hempstead.
Na plataforma, ouviram uma voz atrás deles:
- Sr. Shoemaker! - Era um homem alto e corpulento, com o cabelo preto e espesso cortado ao acaso, como se tivesse metido uma tigela na cabeça, aparando-o depois com uma tesoura de poda. Tinha a pele avermelhada de tal maneira estragada, que era impossível calcular a sua idade.
- Sr. Shoemaker, não me conhece?
Dave estudou-o por momentos, e depois sorriu.
- Se me trata por ”Sr. Shoemaker”, não o conheço, Horace. Presumo que estivesse a referir-se ao meu pai.
- Bem, já não posso tratá-lo por Davey como quando era miúdo, pois não? Agora é um senhor adulto, que escreve nos jornais.
- Trate-me por Dave. Este é Will Porter, também é do tipo escritor, embora não seja tão famoso como aqui o seu amigo. Will, este é o Horace, da Plantação de Liendo.
Os dedos cheios de calos do homem estavam tão estragados como a cara. Will presumiu que fosse meio-índio.
- A Menina Ney mandou-me vir buscá-lo. Tenho ali o carro.
- Ia sempre a pé da cidade até lá.
- A pé? - Horace resfolegou. - São quatro milhas, daqui até ao portão principal. Ninguém faz isso a pé, à excepção dos miúdos e da Menina Ney. Bolas, uma noite voltou de viagem, o comboio atrasou-se de tal maneira que ninguém lá em casa soube que ela vinha. Não quis esperar no hotel, foi a pé para casa e estava escuro como breu. Levava o ”seis tiros” com ela, pode crer. Disparou-o um par de vezes, mas foi só para afastar os touros. - Horace fez uma careta. - Deem-me os sacos.
Partiram de Hempstead na carroça, entrando imediatamente na zona rural. A estrada tinha dois sulcos profundos, e poucas casas se viam pelo caminho. Dave ia calado. Will conversava com Horace.
246- Por que é que isto se chama Entroncamento dos Seis Tiros? Horace não tirava os olhos da estrada.
- Oh, mata-se muita gente por estas paragens. Disputas familiares, principalmente. Ficam alojados em Liendo, não têm problemas.
- Há muitos trabalhadores na plantação?
- Devem ser umas vinte famílias, todas de cor. Algumas delas andam por cá desde que havia escravos na plantação. Trabalham em troca de uma parte da colheita. A Menina Ney dá-lhes de comer e de vestir. - Horace soltou um grunhido que passava por uma gargalhada. - Não os tem em muita conta. Chama-lhes borlistas. Diz que são piores qu’os irlandeses. Está sempre a dizer que vai mandar vir uns alemães para tratarem da plantação como dev’ser.
- O que é que cultivam?
- Tenta cultivar algodão. Tenta cultivar milho. Teve mais sorte c’o gado - já tem cem cabeças, dá muito leite e muita manteiga. De vez em quando, vende carne. Aquela senhora tentou de tudo para sobreviver. Se não fosse aquela fornada de dinheiro que chega todos os anos da Europa, já tínhamos morrido todos de fome. Acho que vendiam a quinta se pudessem, pode crer, mas não conseguiram nem metade do que pagaram por ela.
É a Menina Ney que faz tudo? E o Dr. Montgomery?
Oh, ele também tem que fazer. Traz garrafas de água do lago para ver ao scópio, faz desenhos de tudo quant’é miudeza. Lembra-se d’ele fazer isso, não se lembra, Dave? Aquel’homem é capaz de se sentar uma hora inteira a ver um escaravelho levar uma bola de porcaria dum lado ó outro da estrada. Sabe tudo sobre teias d’aranha e ninhos de pássaros e formigueiros e girinos. Sabe o nome de todas as partes dos mosquitos, até daqueles tão pequenos que nem se vêem. Tem alma d’índio. Péssimo agricultor, pode crer. É melhor a Menina Ney tratar da quinta enquanto ele lê os livros dele e escreve as cartas dele. Mas consegue fazer uma coisa, quando decide fazê-la. Ajudou a montar o colégio para gente de cor ao fundo da estrada, em Prairie View. Ficou muito orgulhoso dele. De repente, Dave interveio:
- E Lome? A qual dos dois sai ele? Horace soltou um resmungo.
- Boa pergunta! Não presta para agricultura, com’o pai. É teimoso, com 1a mãe. Mas não gosta muito de livros. Prefere andar a brincar co’os
247miúdos de Hempstead. Oh, a Menina Ney não gosta nada disso! Lembra-se d’ela o vestir com’um principezinho? Vestia-lhe túnicas, e sandálias, e fatos compridos de flanela. Um dia, vestia-lhe um fatinho azul, no dia seguinte um kilt escocês. Agora, ele rasga e suja as roupas todas, a brincar co’os miúdos da cidade - ”vadios”, é como ela lhes chama. Não tarda a mandá-lo para uma escola elegante do Leste, ond’obriguem o miúdo a andar d’uniforme. Pode crer.
A estrada estava a tornar-se mais irregular, com ervas altas de ambos os lados. Para além da erva, cresciam matas de cedros e cornisos. Passaram por um bosque de azevinhos e, quando emergiram do outro lado, à luz do sol, tiveram a primeira visão de Liendo, a cem metros de distância.
Will não precisou de fazer um grande esforço de imaginação para conseguir perceber como teria sido nos seus dias de glória, antes da guerra, com o grandioso relvado imaculadamente cuidado e a casa a brilhar de pintada, com as janelas muito bem lavadas. Com mais um pouco de imaginação, percebeu o que teriam o Doutor e a Menina Ney visto quando haviam decidido comprar a propriedade, uma casa grandiosa no meio da vastidão do Texas, dilapidada mas cheia de potencial.
Uma série de degraus ia dar a um alpendre generoso, rodeado por quatro colunas. Por cima do alpendre, encerrada dentro das mesmas colunas e contornada por um parapeito baixo de madeira, via-se uma varanda. Tanto o alpendre como a varanda davam acesso à casa, por meio de portas altas e largas, flanqueadas por janelas com portadas. As alas da casa prolongavam-se para cada lado do pedimento central, terminando em duas chaminés altas. À medida que se iam aproximando, Will apercebeu-se da existência de um nicho decorativo semicircular recortado no centro do pedimento, rodeando uma estrela de madeira e o número 1853.
Era uma casa de plantação num estilo clássico de revivalismo grego, robustamente construída em madeira sobre uma fundação de tijolos vermelhos, para ser capaz de resistir à ferocidade das tempestades costeiras. Teria pouco mais de trinta anos, mas parecia ter existido desde sempre. Mas Liendo tinha um ar puído. Os terrenos estavam mal cuidados; as ervas alternavam com zonas de terra seca, e os gigantescos carvalhos, com musgo a subir-lhes pelos troncos, tinham uma aparência gasta e descuidada. No meio do terreno, havia uma pequena fonte, aparentemente partida, porque a bacia estava seca e cheia de folhas. Quanto à
248casa propriamente dita, viam-se varetas partidas no corrimão da varanda, faltavam lascas em algumas das portadas, e havia janelas com rachas; e toda ela estava liberalmente coberta de pó. A tinta branca estava gretada e a pelar.
Horace deteve-se num ponto onde um carreiro bissectava o terreno, indo dar aos degraus do alpendre.
- Podem sair aqui - disse ele. - Eu vou dar a volta até o estábulo, fica nas traseiras, e levo-lhes as malas.
Will e Dave desceram do carro. Enquanto se dirigiam à casa, a porta da frente abriu-se e apareceu uma mulher. Usava o cabelo, castanho-dourado, com fios prateados, curto como o de homem, com risco ao meio e afastado da cara. Em vez da blusa, usava uma bata comprida, que lhe estava larga nos ombros, deixando-lhe o pescoço à mostra. A bata chegava-lhe quase aos joelhos. Por baixo, parecia trazer uma espécie de calções, de um tecido suficientemente grosso para se usar por fora. Will nunca tinha visto semelhante coisa mas, depois de tudo o que tinha ouvido dizer acerca de Elisabet Ney, não podia ficar surpreendido ao ver uma mulher de calças.
24922
O Comissário Lee observava a destruição.
Estava sozinho no andar de cima do edifício de tijolo situado na esquina da Rua Hickory com a Avenida do Congresso. O segundo andar era inteiramente ocupado pelo Dr. O. B. Stoddard, que transformara diversos compartimentos no seu consultório de dentista, usando os restantes como habitação particular. O Dr. Stoddard era solteiro e morava sozinho, a excepção de uma mimo, uma ave canora que vivia numa gaiola.
Fora aqui, na sala de espera, espaçosa e elegantemente mobilada, que o fogo fizera os maiores danos. O espelho alto que ocupava a maior parte da parede estava queimado e estalado. O espelho tinha arestas em vidro veneziano, talhadas à mão e elaboradamente decoradas, e devia ter sido importado de Itália. Lee recordou-se de que o pai tinha um espelho parecido no gabinete da comissão de construção do capitólio, que lhe tinha custado uma soma considerável. Este estava irrecuperável, embora continuasse a reflectir a sua imagem chamuscada, bisbilhotando o compartimento.
O tapete também tinha ficado destruído, tanto pela água, como pelo fogo. Devia ter sido lindo, com arabescos desenfreados, a vermelho, roxo e amarelo. Estava chamuscado em diversos pontos, e enegrecido pela fuligem e pelo lixo. Algumas das manchas pretas eram marcas das botas do próprio Lee, feitas enquanto atravessava a sala de um lado ao outro, a procura de qualquer coisa que pudesse indicar quem teria ali estado na véspera à noite, a atear o incêndio.
Encostada a uma parede, via-se uma estante alta, cheia de volumes grossos com as lombadas queimadas. Meia dúzia de cadeiras de madeira elegantemente estofadas tinham sido parcial ou totalmente destruídas. O enorme piano que havia a um canto estava intacto, embora muito chamuscado; o verniz tinha formado enormes bolhas, que haviam rebentado como bolhas de melaço. Lee ergueu a tampa e carregou em várias
250teclas, mas não foi capaz de perceber se o piano continuava afinado. Era famoso pela sua falta de ouvido para a música, como os seus colegas Rangers nunca deixavam de lhe recordar quando ele tentava cantar em redor da fogueira, nos acampamentos.
- Valha-me Deus, que grande balbúrdia - disse uma voz taciturna atrás dele. Lee voltou-se e viu um homem elegantemente vestido à porta do compartimento. Era um rosto familiar. O homem tocou no chapéu de coco. - Hiram Glass, do Statesman.
Lee fechou a tampa do piano com força, dando origem a uma reverberação de notas discordantes que ecoou pela sala.
- Que raio está você a fazer aqui?
- Presumo que estivesse à espera do meu colega, o Sr. Shoemaker. Glass olhou em redor da sala. - Ausentou-se uns dias, foi tratar de uns assuntos do jornal.
- Quero que o Shoemaker vá para o inferno, e quero que você vá para o inferno! Não quero pateta nenhum do Statesman a bisbilhotar por aqui enquanto eu não tiver acabado as minhas investigações.
- Há mais alguma coisa que ver? A mim parece-me tudo bastante óbvio - declarou Hiram, sacando do bloco de notas e começando a escrever. - Alguém ateou um incêndio, embora dê ideia de que ele foi rapidamente controlado.
O Comissário Lee observou atentamente o repórter durante um longo momento, considerou a possibilidade de o lançar escada abaixo com um pontapé no traseiro ossudo e depois decidiu não o fazer. Na realidade, sentia-se um bocado espectral, ali a analisar a sala sozinho.
- Ainda bem que apagaram o incêndio depressa - observou, passando os dedos sobre uma ponta queimada de papel de parede. - O edifício é de tijolo, razoavelmente à prova de fogo, mas o andar de baixo é uma oficina de costura. Se as chamas tivessem lá chegado, imagine os algodões e as musselinas a pegarem fogo! Podia ter-se espalhado por toda a Avenida. Ainda bem que a equipa do Gancho e Escada chegou rapidamente.
Hiram ergueu uma sobrancelha.
- Pensei que fosse a Companhia Motorizada nº 1 do Colorado que estivesse encarregada dos incêndios nesta zona.
Lee resfolegou.
- A malta da Colorado enganou-se no local. A Gancho e Escada chegou cá meia hora antes deles. Mas afinal, como raio é que voce veio
251aqui parar? Deixei um homem ao fundo das escadas, para impedir fosse quem fosse de entrar.
- E ele está a desempenhar-se muito bem do cargo - replicou Hiram,
- Está bastante gente ali à porta. Muitos são curiosos, mas alguns estavam com dores de dentes e vinham consultar o Dr. Stoddard.
- Stoddard não atende pacientes hoje. Está inconsciente, deitado no quarto ao fundo do corredor. E como raio é que voce conseguiu passar pelo meu homem e subir as escadas? Devia dar uma tareia àquele idiota.
- Não seja excessivamente rigoroso com o seu polícia, Comissário. Ele conseguiu impedir a entrada a uma multidão de patetas, e só permitiu que um jornalista experiente passasse por ele. Apesar disso, eu teria ficado atrapalhado se a porta do alto das escadas estivesse trancada, mas parece que alguém abriu um buraco na madeira perto da maçaneta, inutilizando a tranca. Dá ideia que abriram quatro orifícios em quadrado e cortaram os espaços entre os orifícios com uma faca; depois, meteram a mão pelo buraco e destrancaram a porta, acedendo aos compartimentos ocupados pelo Dr. Stoddard aqui no segundo andar. Calculo que tenha sido obra das pessoas que atearam o fogo. Concorda com esta avaliação, Comissário?
- Hiram Glass, você e o Dave Shoemaker saíram-me duas belas doninhas.
- Só estou a fazer o meu trabalho; ou antes, o trabalho de Dave em vez dele. O meu excítável empregador está convencido de que este incidente justificava a convocação do nosso chamado especialista criminal, que se encontra em HemPstead, mas eu garanti-lhe que era capaz de lidar com o caso. Apesar de tudo, o Sr. Gaines está convencido de que isto pode dar uma grande história: Dr. Stoddard, cidadão proeminente, dentista respeitado, assaltado e deixado inconsciente por desconhecido ou desconhecidos, que lhe pegaram fogo ao consultório. O Sr. Gaines está convencido de que pode ser a mais importante notícia criminal em Austin desde... bem, desde o assassínio à machadada da Rua Pecan, zona oeste, no Inverno passado. Aquele que não chegou a ser resolvido. - Ignorando o olhar hostil que Lee lhe lançou, Hiram dirigiu-se ao piano, abriu a tampa e carregou no dó central. - Neste caso, o facto de o Governador Ireland tencionar oferecer uma recompensa de duzentos dólares pela apreensão do culpado pode ajudar a resolvê-lo.
- O quê?
252- Oh, ainda não foi oficialmente anunciado, mas esta manhã o Sr. Gaines falou com o governador ao telefone. Ireland não quer que Austin ganhe a fama de ser uma cidade sem lei, pelo menos enquanto ele ocupar a Mansão de Governador.
- Sem lei, um raio! Se esta cidade tem algum problema, são os políticos que andam a falar com a imprensa nas minhas costas.
- Posso citá-lo? - perguntou Hiram suavemente. Estava a gostar daquela interrupção na cobertura das notícias políticas. Tendo conhecido todos os governadores desde a Reconstrução, e não se tendo deixado impressionar por nenhum deles, não era certamente um fanfarrão como o Comissário Lee que ia intimidá-lo. Hiram tocou ociosamente uma melodia no piano: Mas terminou - depressa para não mais voltar quando o - velho - morreu... - Este piano está acabado. O calor deve ter deformado os arames. - Fechou a tampa. - Cheira a querosene que tresanda.
- Espalharam trapos a arder na sala de operações, por aquela porta
- disse Lee - mas os danos maiores foram aqui, na sala de espera. Não eram especialistas, isso lhe garanto. Operaram sem grande método. Apesar disso, se a Gancho e Escada tivesse demorado muito mais tempo, é bem possível que o segundo andar, incluindo os aposentos privados do Dr. Stoddard, tivesse ardido todo, juntamente com o próprio Dr. Stoddard.
- Incinerando a única testemunha! Embora, como testemunha, o Dr. Stoddard pareça um tanto confuso - observou Hiram.
- Confuso? O homem está inconsciente.
- Na verdade... - Hiram fez uma pausa judiciosa. - já não está.
- O que quer dizer com isso?
Hiram pigarreou.
- Depois de ter subido as escadas, antes de chegar aqui, atravessei discretamente o corredor e espreitei para o quarto do Dr. Stoddard. A enfermeira que estava a acompanhá-lo disse-me que ele tinha vindo a si pouco antes. Não pareceu incomodar-se com o facto de eu falar um bocadinho com ele.
- Hiram Glass, você é muito mais doninha do que o Shoemaker! Hiram sentiu-se lisonjeado.
- Stoddard pareceu-me inicialmente confuso; estava convencido de que tinha caído de um trem de mula e batido com a cabeça. Depois começou a recordar-se de pormenores. Afirma que a ave canora o acordou
253a meio da noite, depois ouviu alguém mexer na porta do topo das escadas, deviam ser os assaltantes a cortar a madeira. Afirma que se levantou e atravessou o corredor, que estava às escuras; chegou a sala de espera e ouviu ruídos na sala seguinte, que é a sala de operações. Viu sombras a moverem-se e fez menção de voltar para o quarto, mas eles devem tê-lo seguido. Ouvi dizer que tinha sido encontrado inconsciente no chão do quarto. O estranho é que a enfermeira afirma que ele não tinha nenhum galo na cabeça. O que lhe parece, Comissário?
- O que me parece, Hiram, é que voce começa a fazer-me perder a paciência. Está a intrometer-se no funcionamento da lei. Desapareça daqui. - Verificou-se uma alteração na voz do Comissário, que passou de sarcasmo irónico a outra coisa mais áspera, mas Hiram não pareceu aperceber-se do facto.
- Vou contar-lhe uma ideia que me ocorreu, Comissário. Um dentista como Stoddard deve ter uma grande quantidade de clorofórmio em casa, não acha? E o clorofórmio devia estar na sala de operações, não era? Talvez os assaltantes tivessem tido a inteligência de usar algum desse clorofórmio para deixar o Dr. Stoddard inconsciente. Imagino que uma dose suficientemente forte, deitada num trapo e colocada sobre a face dele, o deixaria inconsciente durante várias horas. O que lhe parece a minha teoria, Comissário Lee?
Hiram Glass foi totalmente surpreendido pela violência do ataque do Comissário. Subitamente, viu-se encostado à parede, o bloco de notas e o lápis atirados no chão, e sentiu o colarinho apertado com tanta força pela mão do Comissário, que tinha dificuldade em respirar.
- O que foi que eu acabei de lhe dizer, Hiram Glass? Hiram gemeu e arquejou.
- Pediu-me...
- Ordenei-lhe que desaparecesse daqui, não foi? Hiram acenou com a cabeça, incapaz de falar.
- Então desapareça! - Lee arrastou-se pela sala e empurrou-o dali para fora, seguiu atrás dele ao longo do corredor e impeliu-o pelas escadas abaixo.
- As minhas notas! - protestou Hiram.
O Comissário Lee fez aquilo que tivera vontade de fazer desde que vira o homem. Deu-lhe um grande pontapé no traseiro. Hiram. soltou um grito abafado e desceu atabalhoadamente as escadas íngremes. Ao fundo, colidiu com o espantado polícia, que tinha entrado no edifício para ver
254o que se passava. Após um breve recontro, Hiram saiu a correr para a rua, passando pela multidão reunida no passeio.
O polícia, espantado com o facto de alguém ter conseguido passar por ele e entrar no edifício, titubeou sob o olhar do Comissário e recuou para o seu lugar, à porta da rua.
Os danos causados às instalações e ao mobiliário do Dr. Stoddard, que estavam no seguro, foi avaliado em quase oito mil dólares; só o piano foi avaliado em seiscentos. Havia indicações de roubo, mas não eram, nem de longe, suficientes para justificar a escala da destruição. Os assaltantes tinham levado consigo cinquenta dólares que o Dr. Stoddard guardava numa gaveta, como dinheiro de bolso, mas o cofre não foi assaltado. só havia mais um objecto de algum valor que o Dr. Stoddard não encontrava: um grande frasco de clorofórmio - o suficiente, como observou o Dr. Stoddard, para deixar inconsciente uma parte considerável da população da cidade.
25523
O Dr. Montgomery e a Menina Ney não eram anfitriões desagradáveis, mas eram tão diferentes das pessoas que Will conhecia, tão estrangeiros, que ele não conseguia propriamente relacionar-se com eles. Em Liendo, sentia-se sempre como se estivesse de fora a olhar para dentro, cometendo sucessivas gaffes embaraçosas.
A primeira teve lugar na primeira meia hora da visita, quando a Menina Ney conduziu Dave e Will do alpendre de entrada para o grandioso átrio, subindo com eles as escadas até à varanda. A governanta europeia trouxe-lhes chá e bolos secos, enquanto eles absorviam a vista dos bosques tremeluzentes e dos campos cobertos de flores que ficavam para além dos terrenos mal cuidados. Estava-se naquela breve estação que era a Primavera texana, que antecedia o calor sufocante do Verão, e de vez em quando uma brisa suave atravessava a varanda.
Will ficou com a impressão de que a Menina Ney era, simultaneamente, excêntrica e formal, descontraída e afectada. O aparente paradoxo resultava da sua peculiar relação com a língua inglesa, cuja introdução na estrutura frásica alemã ela forçava. A sua pronúncia nativa combinava-se com uma sugestão de pronúncia escocesa apanhada com o marido, juntamente com ditongos decididamente texanos.
Parecia genuinamente impressionada com o facto de Dave ter tido sucesso como jornalista.
- Quando o teu telegrama recebi, e com o fim de entrevistar a mim, quando a minha carreira é inexistente e a minha história como artista desapareceu, bem, é absurdo, eu penso, é uma história que não interessa a ninguém. Mas orgulhosa de ti fiquei! Pensar que o pequeno Davey do Entroncamento dos Seis Tiros é jornalista na capital! Tudo sobre as tuas actividades tens de contar! A sessão legislativa frequentas?
Dave abanou a cabeça.
- Receio que a política não seja a minha especialidade.
- Óptimo! A política é uma latrina! Mesmo neste país é. Foi a política que da Europa nos mandou embora, as rodas dentro das rodas, e as
256
pequenas cliques uma contra a outra todas conspirando. Bismarck!
- Disse a palavra de tal maneira, que Will ficou convencido de que se tratava de um epíteto alemão. - Wagnerianos e antiwagnerianos! Nacionalistas e monárquicos! Inimigos todos do espírito livre. Se não te moves entre os políticos, fazes muito bem. Então sobre que escreves, para além de europeus expatriados na vastidão do Texas?
- Na verdade, sou jornalista de crimes.
A Menina Ney olhou para ele sem expressão.
- Essa coisa existe?
- Garanto-lhe que existe. Os nossos leitores tem um apetite insaciável por todos os pormenores de todos os crimes, e o que eu faço é saciar-lhes esse apetite. Tornei-me um verdadeiro jornalista, um ”alarmista profissional”!
Will recordou-se de que Dave já citara aquela frase.
- Foi um sujeito chamado Schopenhauer que disse - esclareceu ele
- que os jornalistas são alarmistas profissionais. - Will sorriu à sua anfitriã, sentindo-se muito esperto.
- Oh, sim, eu sei. - Ney correspondeu ao sorriso. - Exagero na escrita dos jornais essencial é, para tirar o melhor partido de todas as ocorrênceas, como se a pessoa uma peça estivesse a escrever. Assim, todos os escritores em jornais profissionais alarmistas se tornam. - Tocou na mão de Dave como quem pede desculpa. - Não é muito lisonjeiro, lamento, mas nunca um homem para lisonjear alguém ele foi, o sensato é sempre tão inteligente herr Schopenhauer. Muito bom para mim ele foi, mas muito fatigante e difícil podia também ser!
Will franziu o sobrolho.
- A senhora... conhece esse tal Schopenhauer?
- Claro. Um busto dele executei.
- A senhora... esculpiu-o?
- Como mentor e protegida éramos nós. Embora por causa do meu sexo, claro, ele tinha muito que deixar passar. Ainda assim, grande pensador, como concorda? O Mundo como Vontade e Representação é um livro que nos sobreviverá a todos, sim?
Will olhou para ela sem expressão.
- Pensei que ele fosse... jornalista. - Olhou para Dave com ar desamparado.
Dave pigarreou.
257- Sou eu o responsável pelo equívoco. Foi à Menina Ney que eu ouvi falar de Schopenhauer.
A Menina Ney deu uma gargalhada.
- Ah, de outra coisa que Hérr Schopenhauer dizia estou a recordar-me, olhando para os dois, com esses bigodes tão salientes. Quando um dia estava a modelá-lo, olhando para mim com grande intensidade estava ele, e eu perguntei: ”Por que está a olhar para mim dessa maneira, Hérr Doutor?” E a mim sem um sorriso ele respondeu: ”Estou só a ver se, talvez, posso descobrir no seu lábio o menor bigode, porque se torna para mim cada dia mais impossível acreditar que é uma mulher.”
Riu-se e abanou a cabeça, e nesse momento pareceu muito feminina, pensou Will, não obstante o seu trajo estranhamente masculino.
- Claro, com estranha noção sobre pêlos faciais ele estava positivamente obcecado, e ele próprio recusava-se a usar barba. O que dizia ele? Ah, sim! ”A barba é meia máscara, e pela polícia devia ser proibida. Como símbolo sexual no meio da face, obscena é. É por isso que tanto agrada às mulheres.”
Will corou intensamente e voltou os olhos para a paisagem. Nunca tinha ouvido uma mulher falar com tanta franqueza, e não sabia bem como reagir. Nunca nenhuma mulher o fizera sentir-se envergonhado por causa do bigode! De repente, apercebeu-se de que estava a puxá-lo, e afastou a mão.
Ele não sabia o que pensar da Menina Ney. Nem o que pensar da sua casa. As salas, com os seus tectos majestosos e os elegantes soalhos de madeira eram decoradas com móveis que pareciam bizarramente deslocados. Tudo, as mesas, as cadeiras, os bancos, parecia feito em casa e imperfeitamente acabado; alguns dos móveis deviam ter sido feitos com pranchas de madeira velha. Com aparente orgulho, a Menina Ney classificava o seu mobiliário como ”rusticado”. Na sala de entrada da pensão Harrell havia objectos de melhor qualidade, feitos à máquina.
O Dr. Montgomery parecia bastante normal e, quando decidia falar, o seu inglês era tão elegante como o da Menina Ney era peculiar. Mas parecia ser um homem de poucas palavras, pelo menos quando Will estava presente. O Doutor fazia frequentes passeios com Dave, durante os quais deviam conversar, e pronunciava ocasionalmente uma ou outra frase às refeições, mas durante toda a visita não dirigiu a Will mais do que meia dúzia de palavras.
258o filho de ambos, Lome, era decididamente carrancudo, o que talvez não fosse invulgar num rapaz de treze anos. A mãe mimava-o intensamente sempre que ele se encontrava na sua presença, atitude que parecia não lhe agradar. Não manifestou qualquer interesse pelas duas visitas.
Durante períodos consideráveis, enquanto o Doutor e Dave passeavam, Ney tratava dos assuntos da plantação e Lome ia à sua vida, Will ficava encarregado de se entreter sozinho. Havia muitos recantos a explorar em Liendo, mas ele achava a atmosfera opressiva. Num telheiro situado por trás da casa, descobriu uma colecção espantosa do que presumiu serem as ferramentas de escultura da Menina Ney, martelos e formões, calços e armaduras de metal, na sua maioria enferrujadas e todas cobertas de pó. Empilhados de encontro à parede, via-se uma série de objectos estranhamente amorfos de diversos tamanhos; Will apercebeu-se de que deviam ser moldes de barro, dado que todos eles tinham uma racha a meio. Abriu um dos moldes mais pequenos e viu no seu interior a impressão claramente definida de uma mão. Não inspeccionou nenhum dos outros, com receio de partir alguma coisa, embora não estivesse certo de que isso tivesse grande importância. Parecia que ha anos que ninguém tocava em nada do que havia naquele telheiro.
Noutra ocasião, explorou o gabinete do Dr. Montgomery. Era mais pequeno do que ele estava à espera pelo relato de Dave, e a mobília era indubitavelmente menos elaborada: prateleiras de pinheiro, uma cadeira e uma cama de tábuas, tão rudimentar como as camas de campanha dos soldados. Viam-se muitos livros e jornais em diversas línguas; os que estavam escritos em inglês pouco mais acessíveis eram do que os outros. Não havia livros de histórias nem de aventuras, nem romances do Oeste ou romances policiais - não havia um único livro que Will tivesse gostado de levar consigo durante uma longa viagem.
A mesa de trabalho do Doutor estava coberta de instrumentos, incluindo um microscópio de fabrico alemão. Montgomery tinha deixado uma gota de água do lago na lamela, com o espelho inferior ajustado por forma a captar a luz proveniente das janelas. Por curiosidade ociosa, Will levou os olhos ao tubo e ajustou-o até ver alguma coisa focada. A criatura transparente que avistou tinha a forma de um sombrero enrugado, com uma franja de pequenas antenas vibrantes. ”O monstro do lago!” murmurou Will. Outra criatura flutuou até ao seu campo visual, depois outra. Deviam ser tão vulgares como as vacas, pensou ele; graças
259a Deus, não eram visíveis a olho nu! A visão de um campo cheio de deformidades daquelas mataria um homem de susto, ou então enlouquecia-o. Perguntou a si próprio se a matéria microscópica que havia no interior dos seres humanos seria tão repulsiva como aqueles seres.
Uma parte da comprida mesa fazia de escrivaninha. Via-se uma caneta, um tinteiro e um mata-borrão, e diversas pilhas de manuscritos, que pareciam ser artigos que o Doutor estava a escrever. Will pegou numa página. A letra do Dr. Montgomery era precisa e elegante, com traços ousados e cortes esguios. Era fácil ler as palavras, embora fosse difícil perceber-lhes o sentido.
O QUE É ESTAR VIVO? Por Edmund Montgomery
Em que consiste esse algo estimulante da matéria a que chamamos vida?
A simples menção do seu nome conjura uma visão de tudo quanto há de maravilhoso no universo revelado pelos sentidos. A vida é considerada um mistério, um influxo na natureza, que ilude a interpretação científica. Eminentes cientistas, verificando que a geração espontânea não ocorre em parte alguma, conjecturaram que o germe da vida teria descido meteoricamente sobre o nosso planeta, proveniente do espaço.
O espírito científico revolta-se contra o subterfúgio fácil de atribuir qualquer ocorrência da natureza a uma intervenção miraculosa. Instiga persistentemente a unificação, a uma interpretação monista, e à firme convicção de que a natureza é universalmente abarcante e de que todos os seus fenómenos, sem excepção, estão interdependentemente relacionados, fazendo parte de um cosmos omniabrangente...
Will passou desinteressadamente mais algumas páginas. Aquelas palavras faziam algum sentido para ele, mas não deixaram uma impressão clara na sua mente; cada frase desaparecia da sua memória logo que lia a seguinte, como uma melodia que não ficasse no ouvido. Inserido entre as páginas, encontrou um desenho de algo visto ao microscópio, com a etiqueta: ”Figura 1 - Uma Amiba com Processos Amplos e Prolongados”. Era uma coisa ainda mais feia do que aquelas que ele tinha visto ao microscópio!
Noutra ocasião, a curiosidade levou-o a ir espreitar ao quarto de Ney, coisa que acabou por lamentar. O quarto estava mobilado de forma tão
260tosca e quase tão reduzida como o gabinete do Doutor, à excepção de um toucador de nogueira incongruentemente elegante, encimado por um espelho de arestas gravadas e uma ainda mais incongruente cama de rede estendida entre dois cantos. Aparentemente, a outra cama era um local onde se empilhavam livros, roupas dobradas e diversos objectos do género. A cama de rede estava coberta por um lençol e um cobertor fino, e era evidentemente aí que Ney dormia. Na cornija da chaminé, Will avistou uma pequena urna de metal e um objecto feito de gesso branco. Sorriu ao aproximar-se, verificando que Ney era, afinal, uma mulher como outra qualquer, com os instintos sentimentais de qualquer mulher. O objecto, feito de gesso a partir de um molde, era o rosto de uma criança adormecida, talvez com uns dois anos. Era uma imagem de sossego de tal maneira inocente, que o fez suspirar só de olhar para ela. Devia ter sido esculpida a partir de um modelo vivo, Lome, o filho de Ney, pensou Will; que diferença entre o bebé e o rapaz!
Recordou-se então, com um arrepio, de que Dave lhe tinha dito que eles tinham tido outro filho, um bebé que tinha morrido de difteria pouco depois de o Doutor e a Menina Ney terem chegado a Liendo. Tinham cremado rapaz, para evitar que os micróbios se espalhassem.
O molde de gesso não era uma escultura, era uma máscara de morte.
A urna que se encontrava ao lado continha certamente as cinzas do bebé.
Will inspirou audivelmente e saiu do quarto, fechando a porta silenciosamente atrás de si.
Na manhã do quarto dia que passaram em Liendo, e que acabou por ser o último, Will foi dar um passeio pelos bosques que ficavam junto ao riacho. O dia já estava bastante quente. Encontrou a Menina Ney sentada numa rocha, com os calções arregaçados quase até aos joelhos e os pés metidos dentro de agua. Fez menção de voltar para trás para não perturbar a sua privacidade, mas ela ergueu os olhos e o seu olhar firme convidou-o a aproximar-se. Ela não fez qualquer esforço para esconder os tornozelos e a barriga das pernas. Ele sentou-se numa rocha perto dela.
- Pensei que era o seu marido que gostava de vir até aqui estudar a vida do lago.
- E é, jovem Will. Arrefecer os pés prefiro eu, e simplesmente olhar para a água corrente. A espumar e a mergulhar, sempre a mudar. A forma dela, nenhum escultor conseguiu jamais dominar. Penso que é por
261isso que nós, humildes artistas, as nossas estátuas rodeamos de fontes. À água a nossa vontade não conseguimos dar forma, por isso interminavelmente ela nos fascina. É mais fácil captar a vivacidade de um sorriso do que captar a água. Estás a ver? Vida e movimento, acalmia e pedra... opostos são, mas juntos tentamos combiná-los. Ser um artista muito difícil é! Concordas?
Will acenou com a cabeça, hesitante.
- Esta maneira de falar, acerca da arte e da vida, não é a maneira como também vês o mundo? Compreendes o que eu digo?
Ele encolheu os ombros, embaraçado.
- Acho que tenho de pensar um pouco nisso. Não sou tão rápido como o Dave.
- Ah, mas eu acho que és. Ele disse-me que és escritor também, sim?
- Não como o Dave. Talvez venha a ser.
- Não! Um escritor ou és ou não és. Não há no meio! Não importa que em dado momento escrevas ou não escrevas. O escritor és tu, não é a escrita. Como eu sou escultora, mesmo quando não esculpo; mesmo que não por muitos anos. É a maneira como vemos e tocamos. Esta agua eu esculpo, quando para ela olho.
-Bem, eu...
- Não! Não pode haver discussão nisso! - Abriu muito os olhos, depois deu uma gargalhada. - Estou a pensar que tu não me percebes muito bem, jovem Will.
Ele corou ligeiramente, esperando que não se notasse, devido ao jogo de luzes e sombras.
- Acho que tem razão. A maioria das pessoas que eu conheço é bastante simples, se pensar bem. Percebe-se claramente no que estão a pensar, e porque fazem aquilo que fazem. Mas a senhora e o Doutor, não consigo perceber como é que vieram parar aqui ao Texas. Parece que tudo aquilo que realmente vos interessa deve estar na Europa. - Quando viu a gravidade da expressão da Menina Ney, corou ainda mais. - Peço desculpa. Não tenho nada a ver com isso.
Ela olhou-o com uma expressão perspicaz.
- Não podes compreender. Fazes parte do Novo Mundo, és o Novo Mundo, nas tuas próprias células. Ao microscópio, o meu melhor amigo poderia olhar para ti e ver isso! - Abanou a cabeça. - Só intrigas e artifícios era o mundo que deixamos. Nada real, nada verdadeiro. Aí, para
262fios todos os sonhos estavam mortos. Aqui está o sonho, embora não seja sempre fácil.
- Mas qual é o sonho?
- Não é o mesmo para toda a gente? Passar pela vida com felicidade, num canto sempre mais altaneiro, um altaneiro sempre mais canto como a cotovia! - Ela deu uma gargalhada e bateu com os pés na água. o sonho é este sítio.
- Liendo? Ou este sítio, aqui no riacho.
- Liendo, sim, e este sítio onde estamos sentados. Mas o sítio que eu quero dizer é o Texas! Digo-te verdadeiramente, mais vazia de patriotismo mulher não há do que eu. Uma cidadã do mundo sou eu e toda a minha vida tenho sido. Mas este sítio, o Texas, tem um encanto para mim, um encanto de um género peculiar, como parecido com ele não há em outra parte em toda a terra. Viver num sítio como este sonho é mais importante do que víllas e palácios.
Deixaram-se estar em silêncio durante algum tempo, contemplando a luz do sol poisada na água. Um gaio cantou na árvore por cima deles. Uma brisa agitou a superfície do riacho, transportando o odor a madressilva.
- Ainda um dia de novo esculpirei - disse ela baixinho. - Verdadeiramente esculpirei... oh sim! O meu amigo, o Governador Oran Milo Roberts, diz-me que o novo capitólio de Austin decorações precisará... esculturas e monumentos para honra dos mortos. O meu nome ele prometeu propor. Pergunto-te, em todas as vidas do Texas houve algum outro escultor com as minhas qualificações, que tenha esculpido homens de grandeza? Certamente não! Para Austin irei, e esculturas apropriadas ao Texas farei! Vai acontecer, isto.
- Acredito que sim - replicou Will.
- Só às vezes... - Dobrou uma perna e apoiou o queixo sobre o joelho. Olhou fixamente a agua que salpicou as pedras. - Às vezes, todos os encantos desaparecem a voar, como a cotovia, e tudo me parece selvajaria. De pousio são todas as sementes que eu tentei semear, e este Texas é um deserto vasto e cruel que não dá nada por uma coisa como eu. Tão sozinha e estrangeira me sinto que às vezes parece que naufraguei e sou levada pela corrente por entre os boxímanes. Mas até os boxímanes me apreciariam para alguma coisa, quanto mais não fosse como petisco para encher o estômago de um boxímane!
263A forma como ela ergueu as sobrancelhas autorizou-o a rir-se. Atreveu-se mesmo a ripostar:
- Certamente, Menina Ney, que até os ”vadios” de Hempstead são preferíveis aos canibais.
- Não tenhas tanta certeza!
O apelo de um gaio próximo foi respondido por outro. A brisa abanou os topos das árvores, fazendo com que as manchas de luz e sombra que os rodeavam se agitassem loucamente, quer sobre as rochas musgosas, quer sobre a superfície da água. O movimento ocioso dos pés da Menina Ney parecia conferir uma vivacidade prateada à luz e à água.
- 1uuu! - Ouviu-se um chamamento proveniente da direcção da casa e, momentos depois, Dave descia até junto deles a passos largos. Bom dia, Menina Ney. - Levou a mão ao chapéu, depois acenou com um pedaço de papel. - Receio que tenha chegado o momento de nos despedirmos.
- O que foi? - perguntou Will.
- O Horace voltou agora da cidade. Chegou um telegrama à estação esta manhã. Parece que eu tenho de voltar a correr para Austin, para retomar a minha função de alarmista profissional.
- O que diz ele?
- Lê. - Dave estendeu-lhe o telegrama. Will teve de franzir os olhos para conseguir distinguir as letras sob as manchas de sombra e luz forte e mutável.
D. SHOEMAKER A /C LIENDO PLANTATION
REGRESSA AUSTIN PRóXIMO COMBOIO - STOP DEVASTAÇÃO - STOP
ASSASSíNIO - STOP
OUTRA CRIADA ABATIDA - STOP GAINES
264A Viagem de regresso:
da Cidade de Nova Iorque ao Texas, 1906
Depois de ter percorrido os títulos com os olhos, sem encontrar nada com especial interesse, William Sydney Porter espreita por cima do jornal para o Dr. Kringel, sentado diante dele. O médico tem o nariz enterrado num livro. O homem não é mau companheiro de viagem, pensa Porter. Nem fala de mais nem de menos. Não mastiga tabaco, nem fuma, seja cigarros, seja charutos. Não ressona. Nunca recusa um golo do frasco de bolso de Porter, e cancela a dívida pagando o pequeno-almoço ou o jantar. Tem a peculiaridade de ser vegetariano, mas não impõe aos outros os seus pontos de vista alimentares. É nitidamente esperto como um esquilo, mas não se exibe, e tem sentido de humor. Se se mostra um tanto vago no que à sua história pessoal diz respeito, esse carácter evasivo é compensado pelo respeito que manifesta pelas reticências de Porter relativamente ao seu próprio passado.
Porter acena com a cabeça na direcção do livro que Kringel esta a ler.
- Vejo que já substituiu Gabbages and Kings.
- Ah, sim, terminei o seu livro de contos ontem à noite. Achei-o delicioso!
- Houve um crítico que o comparou com O Bezerro de Ouro. Não tive a certeza se devia sentir-me lisonjeado ou insultado.
Kringel sorriu.
- Fiquei muito impressionado com a atmosfera de Anchúria. Deve ter vivido algum tempo nos trópicos.
- Algum. - Porter não tem qualquer interesse em discutir os poucos meses que passou nas Honduras, em fuga das acusações de fraude. Muda de assunto. - A nova colectânea vai chamar-se Histórias de Nova Iorque, e o cenário é, como calcula, bastante mais exótico: a Cidade de Nova Iorque. Mas o que é isso que está a ler?
Kringel sorri.
- Outro tesouro que trazia na minha bolsa, o novo livro do Dr. Montgomery, Problemas Filosóficos à Luz da Organízação Vital.
265- O Dr. Montgomery publicou muitos livros?
- Não. Publicou muitos artigos, mas este é o seu primeiro livro.
- Posso ver?
- Com certeza. - O Dr. Kringel estende-lhe o volume, que tem capas castanhas com uma elegante letragem dourada.
- Publicado pela G. P. Putriarn’s Sons - murmura Porter, impressionado. Folheia as páginas do livro, lendo os títulos dos capítulos. ”Substancialidade”... ”Causalidade”... ”O Dilema Epistemológico”... ”O Agente Sensório-motor”... ”Sensibilidade e Movimentos Intencionais”... ”Teleologia na Natureza”...
- Estou desiludido - observa Porter em tom sarcástico.
- Porquê?
- Não tem ilustrações! Kringel solta uma gargalhada.
- Não se trata de um romance, Herr Porter.
- Mas onde estão os desenhos de protozoários, com as Pequenas legendas? Parece-me recordar... - Subitamente, apercebe-se de que na véspera sonhou com Liendo; tinha-se esquecido do sonho até àquele momento, mas ele regressa-lhe num relâmpago. No sonho, encontrava-se no gabinete do Dr. Montgomery, aquele gabinete parcamente mobilado. Tirava das prateleiras livro após livro, todos cheios de letras bizarras diferentes de quaisquer outras que ele tivesse jamais visto. Pegava num manuscrito poisado em cima da mesa, e via que estava escrito com os mesmos caracteres indecifráveis, intercalados com desenhos dos organismos grotescos ampliados pelo microscópio do Doutor. Ele, que era um amante de palavras e de histórias, dera por si apanhado dentro de um compartimento cheio de livros, dos quais era incapaz de ler uma única palavra! Ficara vagamente ressentido e intimidado com o sonho. Era realmente estranho que um mero sonho, com origem numa experiência que tivera lugar anos antes, pudesse suscitar tais emoções! Parece estar a fazer duas viagens simultaneamente, uma das quais é uma viagem de comboio em direcção a um local chamado Texas, sendo a outra uma excursão mental ao seu próprio passado.
Volta a sua atenção para o livro do Dr. Montgomery. É um volume grande, 450 páginas! Regressa ao capítulo de abertura e lê a primeira frase.
Ponderando questões filosóficas do ponto de vista da ciência natural, o presente autor convenceu-se, ao longo de uma vida de investigação,
266de que alguns dos principais problemas que têm preocupado pensadores antigos e modernos poderão conhecer uma solução mais ou menos completa se forem interpretados por meio do recurso a factos da organização vital.
Porter pestaneja. Francamente, quantas pessoas se incomodariam a prosseguir a leitura depois de uma introdução como esta? Onde está a vivacidade, o sentido de mistério, de alarme, o ”isco” atormentador? E contudo...
Os seus olhos regressam as palavras, e ele sente-se atraído pela referência ao conhecimento de ”uma solução mais ou menos completa”, embora não perceba exactamente para quê, é certo que é a procura de uma ”solução completa” que mantém qualquer leitor agarrado a um livro até ao fim. Na realidade, não é isso que mantém qualquer homem a caminhar pela vida, essa promessa de encontrar uma solução para os mistérios da vida? será possível que, com o seu microscópio e os seus espécimes de água do lago do Texas, o Dr. Montgomery saiba efectivamente mais acerca dos segredos da vida do que William Sydney POrter, o cronista de Nova Iorque? Terá a invulgar perspicácia do Doutor conseguido atravessar o véu que oculta a realidade aos outros mortais? O que poderá esse homem saber, o que poderá dizer-lhe acerca de Eula Phillips?
- Posso emprestar-lho, se quiser - disse o Dr. Kringel. - já o li, evidentemente. E tenho muito mais que ler, de maneira que não ficarei desocupado. - Deu uma palmadinha na bolsa de cabedal castanho que tinha a seu lado.
- Sim, bem, obrigado. Como vou estar em breve com o Dr. Montgomery, talvez fosse boa ideia familiarizar-me com o livro dele. - Porter sorri de esguelha e folheia o livro. Depara com uma frase que lhe chama a atenção.
A elaboração relativa ao desenvolvimento qualitativo de seres extraconscientes, interdependentes e dotados de poderes capazes de interagir é o facto essencial a reconhecer na natureza perceptível, não interpretável como simples concatenação necessária e causalmente equivalente a massas inertes mecanicamente movidas.
E a frase ainda tinha uma nota de rodapé! Ele nunca leria semelhante livro do princípio ao fim. Mas alguém leria? Poisou o livro.
- Há uma coisa que me intriga, Dr. Kringel. O senhor, que é filósofo, talvez possa esclarecer-me.
267- Com certeza, se for capaz.
- Pensei que a filosofia tinha a ver com ”faz isto” e ”não faças aquilo”, com um pouco mais de molho, claro, e uns pozinhos elegantes de lógica, mas que no fundo era basicamente, sobre, bem, sobre o bem e o mal.
- Ah... - O Dr. Kringel acena pensativamente com a cabeça. - Penso, Sr. Porter, que talvez esteja a confundir a filosofia com a religião. A concepção popular que se tem dos filósofos é um tanto mal informada; as pessoas imaginam que nós somos eremitas de barbas compridas cujos sábios conselhos resultariam, caso os outros mortais ou ouvissem, num mundo de felicidade perfeita.
- E não é assim?
O Dr. Kringel abanou a cabeça.
- Embora o resultado final possa ser uma consideração da melhor maneira de viver, o essencial da filosofia, se quiser, relaciona-se com considerações mais abstractas. Por exemplo, como é que determinamos o quê e, e o que não é, real no mundo percepcionado? Qual é a natureza da consciência subjectiva? Na especulação monísta do Dr. Montgomery, há uma questão central: o que diferencia a matéria viva da matéria não viva, aquilo que é ”vitalmente organizado” e aquilo que é inanimado?
- Aquilo que separa os vivos dos mortos, quer o senhor dizer?
- Exactamente.
Porter acena com a cabeça.
- O Dr. Montgomery está, portanto, a perguntar o que significa estar vivo ou não estar vivo? Toda a gente quer saber o que isso quer dizer.
- Sim, mas muitos homens ponderam essa questão em relação directa consigo mesmos. A consideração do Dr. Montgomery é bastante mais esotérica, mas não menos fascinante, garanto-lhe.
Porter murmura pensativamente.
- O que o senhor esta a dizer é que, se um homem estivesse a tentar decidir, por exemplo, se devia matar-se ou não, um filósofo não seria necessariamente a melhor pessoa para o aconselhar.
O Dr. Kringel sorri.
- Talvez não, embora um filósofo pudesse alargar o ponto de vista do homem, relativamente ao que significa exactamente reduzir-se a matéria inanimada por um acto de vontade.
268- Estou a ver. Não espanta que as pessoas continuem a ir pedir conselho aos padres e aos empregados dos bares!
O Dr. Kringel encolheu os ombros.
- Os homens procuram esclarecimentos onde podem encontrá-los. Nas suas histórias, por exemplo.
- As pessoas lêem O. Henry para se entreterem.
- Sim, mas se as histórias e as personagens fossem patentemente falsas, não as entretinham, pois não? Seriam um mero desperdício de tempo. Tem de partir de um cerne de verdade, penso eu.
Porter sorri.
- Claro, as histórias têm de parecer verdadeiras, de outra forma não passa de simples palavreado. E não é necessário ser filósofo para julgar... qualquer funcionário bancário e qualquer empregada de balcão é capaz de perceber se eu contei uma boa história ou se foi uma tolice.
-já chega de filosofia - declara Kringel. - Talvez o senhor possa esclarecer- me acerca de uma coisa.
- Com certeza, se for capaz.
- Quem são os autores mais populares do nosso tempo? Aqueles cujas obras continuarão a ser lidas, digamos, daqui a um século, no ano 2006?
- Para além das minhas próprias obras, naturalmente?
- Naturalmente!
- Oh, tenho a impressão de que o autor vivo mais popular dos nossos dias deve ser Francis Marion Crawford. Vê-se em toda a parte, em todos os cafés, em todos os eléctricos; as pessoas preferem sair de casa sem as chaves do que sair sem um romance de Crawford. Tenho quase a certeza de que os livros dele ainda hão-de estar em circulação dentro de cem anos. As pessoas hão-de continuar a querer ler histórias de sofisticadas senhoras da sociedade e graciosos condes europeus, especialmente as mulheres. Aposto que, se percorresse este comboio de um lado ao outro, confiscaria doze exemplares de Katherine Lauderdale.
- Sim, até eu ouvi falar de Crawford. Ele é ubíquo. E quem mais?
- Bem, é provável que ninguém se compare com Crawford na aprovação, quer dos críticos, quer das massas leitoras, mas também podemos referir Mary Tappan Wright... Richard Harding Davis... Aaron Warren Travis... David Graham Phillips, todos famosos como o presidente, e todos imortais genuínos, a fiarmo-nos nos críticos.
- É curioso que todos estes autores populares usem três nomes, enquanto O. Henry tem menos do que dois.
269- Nunca tinha pensado nisso dessa maneira. Acha que os directores de pasquins de classe como o Scribner pagam pelo número de nomes do cabeçalho? Isso explicaria por que motivo David Graham Phillips embolsa mil dólares por conto, e o World mal me paga o almoço!
- Ah, bem, foi só curiosidade. Como director de The Monist, sei alguma coisa acerca do negócio editorial, embora saiba muito pouco acerca da imprensa popular.
Porter acena com a cabeça. Tenta imaginar o que será publicar uma pilha de artigos de autores com o estilo de Edmund Montgomery. As atrapalhações mentais!
O Dr. Kringel inclina-se para diante.
- Outra concepção errada acerca dos filósofos, se me permite regressar ao assunto, e que eles tem, ou devem ter, meios para explicar todos os comportamentos humanos. Longe disso! Há muitas coisas que nenhum sistema filosófico é capaz de explicar adequadamente. Estes assassínios no Texas, por exemplo, esta obra dos Aniquiladores de Criadas...
Porter suspira. É quase divertido, o grau a que o Dr. Kringel parece estar obcecado com os actos dos Aniquiladores de Criadas. Quase não ha uma conversa em que o homem não traga o assunto à baila. Porter ja lamenta ter-lhe revelado a expressão jocosa que inventou para os culpados desconhecidos. Incomoda-o ouvir outra pessoa utilizá-la; obriga-o a apreciar melhor a inocência perdida da sua juventude, que idealiza retrospectivamente. A inocência tem duas faces, medita, e uma delas não é assim muito bonita: aquela que é capaz de produzir uma expressão como ”Aniquiladores de Criadas”, que ignora por completo a dor e a degradação que rodearam os referidos crimes. Só um jovem insensível poderia ser tão volúvel! Sempre que o Dr. Kringel lhe repete a frase, ele sente-se amargurado.
- Parece espantoso - prossegue o Dr. Kringel - que se tenha derramado tanto sangue daquela maneira, e que os crimes não sejam mais famosos. É igualmente espantoso que as autoridades não tenham encontrado uma solução.
- Ah, sim, bem... - Porter já lhe descreveu os crimes, tanto quanto consegue recordar-se deles ou, pelo menos, a maior parte dos crimes, excluindo determinados pormenores excessivamente pessoais. O que restará dizer? - Tem de compreender que este género de crime, repetido uma vez e outra, ao longo de um período tão prolongado, com tantas
270vítimas, era um fenómeno novo. Lembre-se de que isto aconteceu uns bons três anos antes de Jack, o Estripador! Não tínhamos precedentes para semelhantes atrocidades. Crimes passionais, um marido que mata a mulher, até uma mãe que mata o filho bebé, esse género de coisas estava constantemente a aparecer nos jornais, e eram realmente horríveis. Mas a obra deste maníaco, ou maníacos, espantou toda a gente. Ninguém conseguia perceber o que o motivava.
- E, claro, o facto de as primeiras vítimas terem sido criadas de cor...
- O Dr. Kringel não completa a frase.
- As autoridades fizeram o que podiam, julgo eu. Mas não estavam à altura da tarefa. - Porter olha pela janela. Prepara-se um estonteante pôr do Sol; por todo o horizonte, raios dourados de luz perfuram massas de nuvens vermelho-vivo. Em breve serão horas de jantar, depois de dormir, a que se seguirá outra manhã, e outro estado terá sido atravessado enquanto dormiam. Minuto após minuto, o som metálico das rodas do comboio sobre os carris afasta-os cada vez mais de Nova Iorque e aproxima-os cada vez mais do Texas. Subitamente, a realidade do regresso enerva-o. Tantos fantasmas...
Uma dor súbita percorre-lhe a espinha. As costas não o incomodaram todo o dia, mas agora começa a senti-las rígidas, começam a doer-lhe.
- E não se pode esquecer - Prossegue, rangendo os dentes - de que
isto também teve lugar uns bons dois ou três anos antes da invenção de Sherlock Holmes! Os Rangers do Texas reformados, e os coscuvilheiros da Pinkerton, eram os únicos modelos de investigação existentes. Os Rangers perseguiam os proscritos na fronteira; os Pinkerton infiltravam-se nos sindicatos, espiando a mando dos patrões. Não havia a expectativa nas capacidades sobre-humanas dos detectives que a ficção criou em toda a gente. O mais parecido que tínhamos com Sherlock Holmes eram os cães de caça!
- E, ao que parece, havia muito sangue para eles cheirarem - observa o Dr. Kringel em tom retorcido.
- Oh, sim, baldes de sangue. E marcas de mãos ensanguentadas na cena de todos os crimes, mas ainda não havia essas ideias de agora acerca das impressões digitais! Ainda não se tinha inventado essa teoria de que as impressões digitais são exclusivas, de maneira que ninguém se lembrou de examinar as marcas de mãos. Claro que, ainda hoje, ha júris que recusam as impressões digitais como meio de prova.
271- Ah, pois, a ciência anda sempre à frente da aceitação popular.
- E, há vinte anos, a ciência criminal forense era ainda muito primitiva! As provas reduziam-se praticamente a quem tinha visto o quê, e quando.
- Lamentável para as vítimas dos Aniquiladores de Criadas - observa Kringel.
- Pois foi, Hérr Doutor - profundamente lamentável. - Encolhe-se ao sentir a dor que lhe percorre as costas. - E não apenas para as vítimas. Não foram apenas as vítimas que sofreram...
Observa o Sol a afundar-se no horizonte. Os raios dourados dispersam-se. As nuvens vermelho-vivo vão-se tornando mais escuras, vão perdendo o brilho, até se assemelharem a uma gigantesca mancha de sangue besuntando o céu.
272III Parte
Os Cães de Caça a Solta
Austin: Maio a Dezembro de 188524
- Que horror! - declarou William Holland para uma sala de aula vazia.
Era a tarde de quarta-feira, 13 de Maio. As aulas tinham acabado, mas os dias de Primavera tornavam-se cada vez mais compridos, e o sol da tarde ainda brilhava, inundando a sala com os extensos raios da luz do poente. Tanto os miúdos, todos menos um, como o assistente de Holland, o Sr. McKinley, tinham ido para casa. Holland estava sentado à secretária, sozinho.
Vislumbrando um movimento pelo canto do olho, Holland espreitou pela janela. O único aluno que não se fora embora, Moses, um rapazinho de oito anos, estava a trepar ao carvalho alto do recreio, em cujos ramos haviam sido penduradas cordas e baloiços. Holland voltou a concentrar-se nos jornais que tinha sobre a secretária, satisfeito por verificar que Moses continuava no pátio do recreio, como lhe tinha recomendado. A pilha de jornais consistia nos exemplares do Statesman da semana anterior. Holland tinha decidido ler, uma a uma e pela respectiva ordem, todas as notícias relativas ao homicídio de Eliza Shelley, que tivera lugar na noite de quarta-feira, dia 6 de Maio.
Eliza: a mulher de Holland chamava-se Eliza. A jovem heroína do romance da Sra. Stowe também. Mas a sorte reservada a Eliza Shelley fora ainda mais terrível do que a que ameaçara a pobre Eliza, correndo sobre o gelo para escapar a Simon Legree e aos seus cães de caça. Holland não conhecia nenhum romance, nem mesmo A Cabana do Pai Tomás, que descrevesse horrores semelhantes aos que se haviam abatido sobre Eliza Shelley.
Uma mulher de trinta anos com três filhos pequenos... Holland sentia-se doente só de pensar. Que género de monstro privaria aquelas crianças da mãe? E por quê? Por uns breves e fugazes momentos de prazer, um prazer de um género tão vil e doentio, que descrevê-lo como animalesco era um insulto aos animais. Não tinha conhecimento de
275nenhum animal que matasse uma fêmea da própria espécie para depois copular com ela!
Holland tinha comprado os jornais à medida que iam saindo, dando-lhes uma vista de olhos apressada quando tinha algum tempo disponível, antes de os fechar a chave na gaveta da secretária. Não queria levar os jornais para casa com receio de que as mulheres da família lessem aqueles relatos medonhos, nem podia deixá-los em cima da secretária, não fossem os próprios alunos ter acesso a eles. Tinha andado tão atarefado na última semana, que só agora tivera oportunidade para tirar os jornais da gaveta, de forma a poder lê-los com atenção. Os pormenores que eles relatavam eram horripilantes.
Holland ouviu um som agudo, um grito, vindo do recreio. Ergueu-se da secretária e olhou pela janela. Era o pequeno Moses a gritar de excitação enquanto se deixava escorregar por uma das cordas. Um miúdo como outro qualquer, ainda que tão pequeno para a idade! Se Moses não tivesse cuidado, ainda ficava com as palmas das mãos a arder por causa da corda. Mas era assim que as crianças aprendiam: mediante experiências de dor e de prazer. Holland voltou a concentrar-se nos jornais, e leu a primeira notícia relativa ao crime:
OS REVOLTANTES CRIMINOSOS
PROSSEGUEM OS SEUS ACTOS HEDIONDOS:
OUTRA MULHER CRUELMENTE ASSASSINADA
no silêncio da noite por um homicida não identificado. Mais um feito diabólico a juntar ao Catálogo Sangrento do Crime!
Quando o Dr. L. B. Johnson se dirigia ao mercado por volta das seis horas da manhã de quinta-feira, não fazia a menor ideia da terrível tragédia que havia sido perpetrada no interior da sua propriedade durante a noite.
O Dr. Johnson habita com a esposa e a pequena sobrinha desta numa elegante vivenda situada na intersecção da San Jacinto com a Cypress, em frente a Central dos Caminhos-de-ferro. A cerca de quarenta ou cinquenta passos da vivenda, nas traseiras, por trás de uma vedação com um portão, fica uma pequena cabana de uma divisão, com um carreiro por trás. Esta cabana era habitada por uma mulher de cor chamada Eliza
276Shelley e pelos seus três filhos, ainda crianças. A mulher estava ao serviço da família Johnson há cerca de seis semanas, como cozinheira.
Ao regressar do mercado, o Dr. Johnson encontrou a esposa e a sobrinha em ESTADO DE CHOQUE,
e ouviu a esposa exclamar
- Acho que a Eliza foi assassinada! - Na ausência do médico, os gritos estridentes das crianças provenientes da casa de Eliza tinham chamado a atenção da senhora. julgando que se tratasse apenas de uma zaragata entre os filhos de Eliza, a senhora mandou a sobrinha investigar o que se passava.
A rapariguinha voltou pálida e ofegante. Apenas olhara de relance para o interior do compartimento, mas o que vira revelara-lhe um espectáculo de tal maneira terrível, que não se atrevera a entrar, regressando a correr para junto da tia. A Sra. Johnson foi averiguar o que se passava, e o espectáculo que viu também a fez voltar a correr para casa, onde nessa altura, sem fôlego e num profundo estado de agitação, manifestou o referido receio e horror ao marido.
O Dr. Johnson preparou-se para o espectáculo sinistro que o aguardava e foi ver do que se tratava. A pobre cozinheira estava estendida no chão da cabana, indubitavelmente sem vida. Tinha a cabeça desfigurada por várias feridas, entre as quais se incluíam dois orifícios profundos, um por cima de um ouvido e outro entre os olhos, provavelmente infligidos por uma lima afiada ou por um picador de gelo. Ainda mais horrível era a profunda fenda que tinha sobre o olho direito, com aproximadamente quatro dedos de largura e de comprimento. Uma extensa e afiada lâmina, provavelmente de uma machadinha ou de um machado, abrira-lhe o crânio até deixar o cérebro a descoberto.
As almofadas e os lençóis estavam ensopados em sangue e o compartimento em grande desordem. O assassino havia arrastado a vítima para fora da cama, colocando-a sobre uma pilha de cobertas e cobertores. A vítima estava deitada com as pernas afastadas, o corpo arqueado, e a camisa de dormir disposta de tal maneira, que indiciava ter sido violentada depois da morte.
277Não foram descobertas no quarto armas que pudessem ter infligido os golpes. A única eventual pista, descoberta pelo próprio Dr. Johnson, foi um trilho de um homem descalço que percorria o carreiro até a Porta de Eliza, em ambas as direcções. Devido ao facto de o solo ser arenoso, as pegadas tinham ficado claramente demarcadas, revelando o decalque de um pé curto e largo.
A MULHER ASSASSINADA tinha cerca de trinta anos de idade, era de estatura média e de puro sangue africano. O marido, a quem, segundo foi apurado, era muito dedicada, cumpre uma pena de prisão. Quer o médico quer a esposa testemunharam a favor do excelente carácter de Eliza. Tanto quanto sabiam, nunca recebera nenhum homem em casa.
Eliza tinha três filhos pequenos, que partilhavam a cama com ela. O mais velho tem cerca de oito anos mas, na opinião do jornalista do Statesman que o entrevistou, tem a estatura de um rapazinho de cinco ou seis anos. O pobre miúdo estava desorientado, o que era mais do que natural tendo em conta as circunstâncias. A multidão de pessoas (principalmente de cor) que chegava num fluxo ininterrupto desde manhã cedo para visitar o local da atrocidade também o atordoava. só muito a custo, e passado algum tempo, foi possível fazê-lo falar, mas quando finalmente disse alguma coisa, a sua narrativa dos acontecimentos revelou-se bastante confusa. Em resumo, o pequeno Moses disse o seguinte:
”A meio da noite apareceu um homem no quarto. Os meus irmãos e a minha mãe continuaram a dormir, mas eu acordei e levantei-me. O homem agarrou-me. Disse-me que se não ficasse calado me matava. Empurrou-me para o canto e mandou-me deitar no chão. Disse-me para não fazer barulho e tapou-me com um cobertor.”
Por vezes, o rapazinho parecia ficar confuso e dizia coisas desconexas. Por exemplo, não se lembrava se o homem era ou não de cor. É possível que o quarto estivesse muito escuro. Também pareceu indicar que o atacante trazia um pano branco sobre a cara, embora não tenha ficado claro se era isto que queria dizer.
A dado momento, o rapaz deve ter adormecido outra vez, não se dando conta do que acontecera à mãe até ter acordado na manhã seguinte. Seria de esperar que o medo mantivesse o rapaz acordado e alerta, mas parece ter agido sobre ele como uma espécie de soporífero.
278os outros dois rapazes eram pequenos de mais para dizerem o que quer que fosse acerca do acontecimento.
Imaginem estes três pequenos infelizes, a dormir calmamente com a própria mãe estendida no chão a seu lado, horrivelmente assassinada sobre um monte de cobertores. A luz do dia trouxe-lhes uma revelação terrível.
Ao fim da tarde, o Comissário Lee PRENDEU UM SUSPEITO,
mais precisamente um tal Andrew Williams, um rapaz de cor segundo se diz meio tolo, com cerca de dezanove anos. Estava descalço na altura, o que provavelmente constitui um indício insuficiente, mas serão tiradas medidas e feitas comparações com o trilho de pegadas acima referido.
Ao longo do dia de ontem, o homicídio foi tema de considerável discussão em toda a cidade, devido ao facto de ter ocorrido na sequência do assalto ao Dr. Stoddard e do incêndio ateado no seu consultório de medicina dentária na Avenida, e de fazer lembrar o brutal ataque nocturno cometido sobre outra criada, Mollie Smith, em Dezembro passado. Até ao momento, nenhum destes crimes foi solucionado, nem parece provável que tal venha a acontecer, na prudente opinião da maior parte das pessoas de Austin. Algumas sentem-se inclinadas a atribuir as culpas deste estado de coisas à polícia, e é comum ouvir expressões como ”ineFicaz” e ”incompetente”.
Outros são da opinião de que a polícia não deve arcar com as culpas todas, dado que por cada noite apenas estão de serviço quatro homens, e dificilmente se pode esperar que um contingente tão limitado possa estar de guarda em todos os quarteirões, ou prever a localização exacta de um eventual crime. Este grupo de pessoas responsabiliza o Conselho Municipal por não contratar mais homens de patrulha, e ha quem argumente que os próprios cidadãos deviam organizar imediatamente uma comissão de vigilância.
Independentemente de quem deva ser responsabilizado ou do que deva ser feito, a insatisfação é geral. As pessoas de cor mostram-se particularmente alarmadas. O repórter ouviu um dos homens que viera observar o local do crime afirmar que, a partir de hoje, nunca mais sairia de casa depois do anoitecer, com receio de que a sua mulher pudesse ser assassinada.
279O Governador Ireland devia oferecer uma recompensa pela resolução deste caso, como fez no recente caso de fogo-posto. É irrelevante que a vítima seja uma obscura mulher de cor. A vida dela era-lhe tão cara e tão sagrada como a da senhora mais proeminente da região.
Holland poisou o jornal, abanando a cabeça, depois olhou pela janela para se certificar do paradeiro do rapazinho que tinha a sua responsabilidade. O miúdo continuava a brincar no carvalho. Enquanto Holland o observava, Moses subiu como um esquilo até aos ramos superiores, para lá da corda mais alta. Holland resmungou ao de leve, um pouco receoso pela segurança do rapaz, mas decidiu deixá-lo estar. Ele próprio havia trepado a árvores altas quando era criança, e arranjara maneira de não partir o pescoço. além disso, pensou, era melhor deixar o rapaz brincar enquanto houvesse luz; deixá-lo cansar-se, para ver se naquela noite tinha um sono prolongado e profundo, talvez sem pesadelos.
Holland voltou a concentrar-se nos jornais. O pormenor da prisão de Andrew Williams, que Holland conhecia há anos, não era o menos chocante. Andrew Williams nascera com uma deficiência mental e era completamente inofensivo. Fora entretanto libertado por falta de provas, mas ter sido preso devia tê-lo aterrorizado!
Na semana anterior, haviam detido outro homem de cor, que ainda estava preso. Ike Plummer tinha cerca de trinta anos, e aparentava ser quase tão apoucado como Williams. É certo que havia uma ligação entre ele e a mulher assassinada: o Statesman afirmava que tinham vivido juntos algumas semanas antes de Eliza começar a trabalhar para o Dr. Johnson
- aparentemente, Eliza não era tão dedicada ao marido encarcerado como a primeira notícia dera a entender -, e uma testemunha presenciara uma recente discussão entre eles, afirmando que Plummer exigira dinheiro a Eliza. Na noite do homicídio, Plummer estivera a beber e não tinha álibi.
Mas Holland não se sentia convencido. Se Plummer apenas quisesse o dinheiro de Eliza, por que haveria de assassiná-la de forma tão diabólica? E certamente que o rapaz, que falara com o assassino, teria reconhecido um homem que até há pouco tempo habitara com ele e com a mãe.
Nenhuma destas objecções parecia ter ocorrido ao Comissário Lee, que aparentemente se dava por satisfeito por prender qualquer homem de cor, com base na menor réstia de suspeita. Holland conhecera demasiados
280homens colocados em posições de autoridade que, tal como o Comissário da polícia, presumiam que todos os homens de cor eram capazes de roubar e matar, por serem totalmente desprovidos de honestidade ou de qualquer tipo de virtude. Numa altura destas, era de facto uma infelicidade para as pessoas de cor de Austin ser um homem como Lee a ocupar o lugar de Comissário. As vítimas dos horripilantes homicídios haviam sido mulheres de cor. E quem andava a ser apanhado nas malhas da rede do Comissário Lee eram igualmente homens de cor inocentes.
Holland teria de fazer diligências, como fizera para ajudar Lem Brooks. Não havia mais ninguém que pudesse fazer uma ponte entre as pessoas de cor de Austin e os responsáveis pela cidade. E, no entanto, era tão pouco o que ele podia fazer; aquela impotência destroçava-o. Se Holland fosse branco, e tivesse o nome do pai, com a sua educação e obra feita, poderia solicitar a demissão de Lee. Mas, se ele fosse branco, poderia pertencer ao Conselho Municipal, ou ser o Presidente da Câmara! Ora, no actual estado de coisas, os altos funcionários da cidade não fariam caso de críticas a um dos seus, feitas por um homem de cor. Grooms Lee continuaria a ocupar o cargo que ocupava enquanto a população branca estivesse satisfeita com ele.
De repente, ocorreu-lhe uma ideia, ainda que difusa. Havia qualquer coisa que não batia certo, qualquer coisa de errado...
Holland olhou pela janela, julgando que a causa da sua ansiedade pudesse ter a ver com o rapaz; mas Moses estava bem. Tinha encontrado um sítio onde se sentar, formado por dois ramos entrançados bem no topo do carvalho, e ali estava, confortavelmente instalado como se de uma cadeira de descanso se tratasse, com os braços espraiados nos ramos e as pernitas a balouçar, admirando a vista para poente. Certamente que os edifícios altos que ladeavam a Avenida e o sol a afundar-se por tras do Monte Bonnell constituíam uma bela paisagem.
Voltou a concentrar-se nos jornais e folheou-os, à procura do primeiro relato do homicídio. No final, havia uma referência qualquer ao assalto ao consultório do dentista...
Holland encontrou a passagem: ”O homicídio... devido ao facto de ter ocorrido na sequência do assalto ao Dr. Stoddard e do incêndio ateado no seu consultório de medicina dentária na Avenida...”
Parecia que havia ali uma conexão qualquer que estava a escapar-lhe.
281Recordou-se de uma passagem anterior e esquadrinhou as colunas de texto até encontrar a palavra ”pano”: ”Por vezes, o rapazinho parecia sentir-se confuso... pareceu indicar que o homem trazia um pano branco sobre a cara, embora não tenha ficado claro se era isto que- ele queria dizer... o rapaz deve ter adormecido outra vez... o medo parece ter agido sobre ele como uma espécie de soporífero.”
Um soporífero...
A ideia, ainda sem contornos definidos, escapava-lhe irritantemente de um lado para o outro do cérebro, de modo que Holland se levantou e começou, também ele, a andar de um lado para o outro, batendo com um dos punhos contra a palma da outra mão.
- Um pano! - dizia. - Um pano...
Avançou a passos largos para a janela aberta e pôs a cabeça de fora.
- Moses! Moses Shelley! Desce da árvore e vem para dentro. Mas com cuidado!
O rapaz desceu com tal velocidade e agilidade, que Holland não pôde impedir-se de sorrir: o rapaz era um esquilo sem tirar nem pôr. Só lhe faltava uma cauda farfalhuda! Momentos depois, o pequeno Moses entrou a correr na sala de aula.
- Parece que estavas a gostar de estar ali.
- Sim, senhô, tava.
- O que é que vias lá de cima?
- O pô do Sol. - O rapaz estava um pouco ofegante, mas de resto parecia perfeitamente normal. Ninguém diria que semelhante tragédia se abatera sobre ele há tão poucos dias. Eliza Shelley não tinha familiares em Austin, o marido estava preso, e ninguém aparecera a reclamar as crianças. Enquanto não se encontrava uma solução definitiva, os dois rapazinhos mais novos haviam sido acolhidos pelo Reverendo da congregação e a respectiva família. Holland tinha concordado em tomar conta de Moses, que já conhecia, por ter sido aluno da escola ao longo dos últimos meses. O rapaz lia com dificuldade, mas era bom nas contas.
- Moses, preciso de te perguntar uma coisa.
- Sim senhô?
- É acerca do homem mau que entrou na tua casa e te ameaçou. Podemos falar sobre isso?
O rapaz encolheu nervosamente os ombros e assentiu com a cabeça.
- Acho que sim.
282- Disseste que ele trazia um pano branco, não foi? por momentos Moses pareceu perplexo.
- Um pano branco. Sim, tou me lembrando.
- E o homem trazia o tal pano sobre a cara?
- Não. Pôs o pano. Assim. - Moses pôs a palma da mão aberta sobre a parte inferior do rosto.
- Então, parecia um bandido com um pano sobre a cara - de maneira que só conseguias ver-lhe os olhos?
Moses abanou a cabeça vacilante. - Não, não o trazia na cara. Pôs o pano.
- Queres dizer que o pôs sobre a cara dele?
- Não. Fez assim. - O rapaz repetiu o gesto de colocar a mão aberta sobre o seu próprio nariz e a sua boca.
- Oh, Moses! - Abruptamente, com uma exclamação, Holland percebeu a conexão. - Ele pôs o pano branco sobre a tua cara.
- Acho que sim. - De repente Moses pareceu hesitar.
- E depois caíste num sono profundo.
- Acho que sim. Não tou me lembrando bem. Quando acordei... O rosto do miúdo contorceu-se e passou-lhe pelos olhos uma expressão que arrepiou Holland. Holland estendeu os braços para o miúdo e apertou o pequeno corpo contra o seu.
A cadeia de pensamentos na cabeça de Holland parecia-lhe persuasiva. O consultório de um dentista tinha sido assaltado. O que poderia haver no consultório de um dentista? Clorofórmio. Para que servia o clorofórmio? Para anestesiar pacientes. Um pano ensopado em clorofórmio e colocado sobre o rosto de uma criança podia fazê-la ficar inconsciente, de facto, podia até ter morto um rapaz da estatura de Moses. O mesmo poderia ter acontecido aos seus dois irmãos mais novos enquanto dormiam e, já agora, à mãe. Eliza Shelley fora repetida-mente apunhalada e acutilada com um pequeno machado e, no entanto, ninguém a ouvira gritar por socorro.
Do ponto de vista de William Holland, era cada vez mais evidente que Eliza Shelley não fora assassinada por um homem descalço e meio tolo que fora à cabana dela pedir-lhe dinheiro.
Naquela mesma tarde, na casa de hóspedes de Harrell, Will Porter escrevia uma carta.
283A carta era dirigida a David Hall, membro da família que recebera Will no seu rancho quando viera viver para o Texas. Hall tinha ido para o Colorado, um estado setentrional. Will nunca lá estivera, mas achava que devia ser um lugar bem mais animado e interessante do que o Texas. ”A cidade é horrivelmente monótona”, escreveu, ”excepção feita aos ataques frequentes dos Aniquiladores de Criadas, que animam as coisas durante as horas mortas da noite: se não fossem eles, haveria muito pouco que contar, como podes ver pelo Statesman.”
28425
Naquela sexta-feira, os irmãos Robertson almoçaram, como era seu costume, numa mesa reservada para o efeito no Iron Front, situada ao fundo do amplo restaurante e bem afastada do balcão.
- Mas o Gaines terá perdido a cabeça? - O Presidente da Câmara dobrou energicamente um exemplar do Statesman. - Ouve-me isto: ”Desgoverno! Degrada a capital. Dá azo a homicídios, fogos postos, roubos nocturnos e assaltos. Custa aos contribuintes de Austin uma pesada factura, mas deixa os habitantes indefesos à mercê dos fora-da-lei. Uma sociedade organizada tem por objectivo a protecção mútua, mas nesta terra o governo da cidade apodera-se de tudo o que pode e não oferece qualquer contrapartida.” Bem, isto é completamente absurdo! Quem é que o Gaines julga que trata das estradas, dos passeios...
- Continua a ler, irmão - disse o Procurador-Público, bebericando o café forte sem leite.
John Robertson abafou um impropério e continuou.
- ”Numa fria noite de Dezembro, o corpo da criada Mollie Smith foi deixado inanimado no chão, rígido e hirto, para nos saudar a luz do dia com um esgar fantasmagórico e pavoroso.” Bem, francamente, uma descrição destas roça o obsceno! ”Desde então, verificou-se uma centena de diabólicas intrusões em casas privadas das nossas redondezas, e um sem-número de ataques a homens e mulheres de bem que poderiam ter conduzido a mortes igualmente macabras. E, no entanto, ninguém está a salvo dos criminosos, nem estes sofrem qualquer punição.” - John Robertson fustigou a mesa com o jornal. - Deixa-me que te diga, isto é sensacionalismo jornalístico da pior espécie!
De faca e garfo em punho, James Robertson atacou o bife que tinha no prato.
- Infelizmente, ele tem razão. Houve de facto um aumento perceptível do crime nos meses mais recentes. Casas assaltadas...
- Sem dúvida por vadios de passagem pela cidade.
285- Um maior número de tiroteios em Guy Town...
- Rixas entre prostitutas e viciados no jogo!
- Seja como for, desde o ano novo registou-se um súbito aumento de crimes, e o meu gabinete tem muito pouco que mostrar em termos de acusações. As pessoas começam a sentir-se inseguras no interior das suas próprias casas. Este fogo posto na Avenida e o homicídio de mais uma criada provocaram uma agitação tremenda.
- Eu digo-te quem é que tem andado a provocar a agitação! Escuta: ”É extremamente humilhante para os cidadãos de Austin que a vida nos dias que correm seja tão insegura como quando os índios selvagens apareciam em redor de uma cidade acabada de construir, atirando as suas setas mortíferas ao coração de quaisquer habitantes intrépidos que se aventurassem a sair de casa. Na verdade, o actual estado de coisas é mais inseguro, pois são justamente aqueles que deviam estar mais a salvo, as mulheres e as crianças de tenra idade, que, em pleno coração da cidade, tremem de medo do assassino da meia-noite.”
- Continua a ler, irmão. já toda a gente leu, por isso não vale a pena ignorá-lo.
- E consegue piorar: ”A mulher que enfiasse uma bala no coração de um destes predadores nocturnos devia receber honras especiais, e uma recompensa do povo desta cidade.” Não me digas que o Gaines agora defende que entreguemos armas de fogo às criadas? - Abanou a cabeça.
- E o que me dizes da última detenção, a desse tal Ike Plummer? Que hipóteses tem de vir a ser condenado?
- Julgo que podia fazer uma acusação com base em provas circunstanciais. Mas é óbvio que o indivíduo está inocente.
O Presidente da Câmara resmungou, exasperado.
- Por amor de Deus, porque não pára Grooms Lee de prender homens inocentes e de fazer perder tempo a toda a gente?
- O Comissário da polícia quer que o vejam fazer alguma coisa.
- James Robertson ergueu os olhos para a agitação que se verificava à entrada do estabelecimento. - Olha quem acaba de entrar, meia hora atrasado: o nosso convidado. Devo dizer que o meu predecessor no cargo de Procurador-Público está cada vez mais elegante.
Taylor Moore, envergando um fato de Verão de linho branco, parou por momentos junto ao balcão para apertar a mão a alguns eleitores, e depois prosseguiu caminho até chegar à mesa dos Robertson.
286- Cavalheiros, isto é um velório privado, ou qualquer pessoa pode participar? Nunca vi um par de semblantes mais carregados.
- Chegou atrasado, Deputado Moore.
- As minhas desculpas, Sr. Presidente. - Moore não perdeu tempo a olhar para a ementa e pediu o seu habitual bife em sangue, puré-de-batata, e uma caneca grande de Budweiser.
Os três homens trocaram algumas palavras cordiais, mas rapidamente voltaram ao tópico do crime. Taylor Moore cumprira quatro mandatos na qualidade de Procurador-Público, e James Robertson não era o género de pessoa de não pedir ajuda quando precisava.
- Parece-me - disse Moore - que talvez a abordagem do Comissário a descoberta deste assassino se baseie numa falsa premissa.
-Ah, sim? Por quê? - O Procurador mergulhou o garfo no seu último pedaço de bife.
- Voltemos ao homicídio de Mollie Smith. Foi dado como óbvio que quem tinha assassinado a pobre mulher, fosse quem fosse, o tinha feito num momento de loucura passional. SusPeitou-se de que se tratasse de um amante rejeitado, ou de um homem com outro ressentimento qualquer.
- A mulher foi violada e atingida na cabeça com um machado disse James Robertson. - Luxúria e ódio... que outros motivos poderia haver? A meu ver, ambos os motivos indícíam um amante rejeitado. O homem teria de ter uma natureza particularmente bestial, mas é sabido que há homens assim. Quando foste Procurador, deves ter posto os olhos na pior escória da humanidade.
- Nada que se compare com os espécimes que encontrei no Senado!
- observou Moore. - O que eu quero dizer é que a investigação que o Comissário fez do caso precedente só conduziu a uma detenção, para não falar do facto de se tratar de um homem que se verificou ter um álibi inabalável. Agora deu-se outro homicídio, em circunstâncias curiosamente semelhantes. Mais uma vez, o Comissário adere a perspectiva do ”senso comum”, segundo a qual o crime só pode ter sido cometido por alguém que já conhecia a mulher, e que a conhecia intimamente. Prevejo resultados tão estéreis como no caso anterior.
- O que é que o Comissário de polícia devia fazer, em tua opinião?
- Em primeiro lugar, colocar a hipótese de ter sido o mesmo homem a matar Mollie Smith e Eliza Shelley.
287-Talvez. Mas parece que as mulheres não se conheciam. Se tinham, um amante em comum...
Moore abanou a cabeça.
- Continuam a supor que o homicida é alguém que as vítimas conheciam.
O Presidente franziu o sobrolho.
- Estás a sugerir que um indivíduo qualquer teve o súbito impulso, em duas ocasiões separadas por meses de distância, de assassinar e violentar mulheres que nem sequer conhecia? Achas que temos em Austin um maníaco a vaguear por aí com um machado na mão, que entra sem mais nem menos nos quartos das criadas à procura de vítimas?
- Não. Suspeito de que haja um certo grau, talvez um elevado grau, de premeditação. Ainda assim, o assassino pode não conhecer as vítimas a não ser de modo superficial. Pode apenas tê-las visto à distância. O ponto fulcral é a semelhança entre os crimes. Uma e outra vez, a vítima é uma criada de cor. Uma e outra vez, a mulher é agredida com um objecto pontiagudo, provavelmente com um machado. E uma e outra vez, aparenta ter sido violada, e de um modo bastante peculiar, dado que em ambas as ocasiões a mulher está a morrer ou já tinha morrido.
Serviram o almoço a Moore. Moore deu um gole na cerveja e cortou o bife que estava muito mal passado, como ele gostava, e sangrou abundantemente até à borda do puré.
- Meus senhores, sugiro que foi o mesmo homem a cometer ambos os crimes. Sugiro também que estamos a lidar com uma espécie de maníaco, um homem com um ódio doentio, não apenas a estas mulheres particulares, mas as mulheres em geral. O seu motivo não é o ciúme nem a vingança. Por muito repugnante que nos possa parecer, ele cometeu estes crimes para obter um determinado tipo de satisfação. Se assim foi, meus senhores, receio que seja provável que volte a fazê-lo.
Nessa tarde, William Pendleton Gaines obsequiou o pessoal do Statesman com um café, tendo mandado os moços de recados comprar pastéis à confeitaria Lundberg, situada na Avenida. Gaines estava de pé entre as secretárias de Hiram Glass e de Dave Shoemaker, com uma chávena de café numa mão e um Sally Lunn parcialmente deglutido na outra.
- Cavalheiros, todos podemos sentir-nos orgulhosos do trabalho que fizemos nas duas últimas semanas. Os leitores consomem o Statesman
288mais rapidamente do que nós conseguimos imprimi-lo! Remamos todos em harmonia, e não tem sido um percurso isento de dificuldades. Sofremos aquele imprevisto de termos sido informados do homicídio de Eliza Shelley quando o nosso repórter da área criminal estava fora. Mas Hiram Glass avançou, como tinha feito no caso do fogo posto, e fez um trabalho exemplar. Poucos repórteres conseguiriam obter uma entrevista inteligível de um rapazinho de oito anos em estado de choque. Tantos anos à conversa com os saloios linguarudos do Senado devem tê-lo preparado para esta tarefa.
-O rapaz parecia consideravelmente mais ”iducado” do que o Rutabaga Johnson - disse Hiram Glass com um sorriso forçado. De facto, conversar com o pequeno Moses Shelley fora a parte mais fácil da reportagem. Observar o cadáver fora consideravelmente mais difícil. Mas o pior de tudo fora ter de encarar novamente o Comissário Lee. Desde o incidente no consultório queimado do dentista, que Hiram lhe tinha ficado com um medo de morte.
- Bem, meus senhores, voltemos ao trabalho! - Seguiu-se um coro de lamentações. Gaines ergueu uma sobrancelha. - Cavalheiros, a imprensa tem para com os leitores o dever de se manter alerta, e esta cidade está a passar por uma crise. Temos de nos encher de vigor e de continuar na linha da frente! - Dirigiu-se ao seu gabinete particular, levando consigo o último Sally Lunn.
- Capataz de escravos! - murmurou Dave. Tentou concentrar-se nos papéis que tinha em cima da secretária. Dave tinha começado a organizar as suas notas acerca de Elisabet Ney. Na sequência do último homicídio, Gaines esquecera-se da história de Ney, mas o interesse dele podia ressurgir a qualquer momento. Dave estava a tentar lembrar-se se Bismarck se escrevia ou não com um c quando ouviu Tommy e o novo moço de recados rirem-se a socapa ali perto. Os dois rapazes estavam em frente da portentosa mesa onde as folhas dos anúncios aguardavam a revisão de provas. Dave levantou-se e foi ter com eles.
O novo moço de recados era ruivo, tal como Tommy, de modo que parecia que Gaines os tinha contratado para constituírem um par de suportes para livros. Chamava-se Caleb, mas ninguém o tratava pelo nome.
- Qual é a piada, Belzebu? - perguntou Dave.
O rapaz pôs a mão diante da boca e tentou abafar as gargalhadas.
- Mefistófeles, talvez possas esclarecer-me.
289O rosto de Tommy ruborizou-se ainda mais do que era habitual. Apontou para um pedaço de papel que estava em cima da mesa. Dave pegou nele e examinou-o com atenção. Era um bloco de texto acompanhado por uma ilustração. Dave olhou para o desenho, recuou a cabeça, franziu o sobrolho, e depois semicerrou os olhos, incrédulo.
- Que diabo...?
- Leu o texto e desatou as gargalhadas. - Não me digam que o Gaines vai publicar isto!
- O que estão para aí a coscuvilhar? - perguntou Hiram.
- Hiram, isto é perfeito para ti! Aposto que já tens uma coisa destas, escondida naquela caixa de medicamentos que tens dentro da secretária.
Os moços de recados continuavam a rir-se descontroladamente, mas dispersaram quando Hiram se levantou da secretária e se aproximou da mesa.
- Que disparates estão vocês para aí a dizer? Dave estendeu-lhe o papel.
- Vê com os teus próprios olhos. Há indivíduos dispostos a desbaratar dinheiro com o que quer que lhes apareça pela frente.
A ilustração representava um cinto estreito, desenhado na posição em que deveria ser colocado na cintura, embora não figurasse na gravura qualquer modelo humano. Na parte de trás do cinto, havia uma cilha da qual emanavam pequenos relámpagos. Suspensa da parte da frente do cinto, via-se uma pequena presilha com um ilhó na ponta. Por baixo da ilustração, lia-se o seguinte bloco de frases impressas:
HOMENS! LEIAM ISTO!
Sente-se debilitado devido a indiscrições ou excessos? GARANTIMOS-LHE A CURA por meio deste novo e aperfeiçoado CINTO E SUSPENSóRIO ELECTRO-VOLTAICO, caso contrário devolvemos-lhe o dinheiro. Concebido para a cura específica da fraqueza procriativa. Estimula directamente todas as partes fracas por meio de uma corrente eléctrica contínua, moderada e suave, restituindo-lhes a saúde e a FORÇA VIGOROSA. Caso não sinta a corrente eléctrica instantaneamente, ser-lhe-ão devolvidos 5000 dólares em dinheiro. Benefícios muito superiores aos de todos os outros cintos. Casos graves CURADOS DE FORMA PERMANENTE em três meses. Panfleto selado. Envie selo de 3 cêntimos para Sanden Electric Co., 219 N. Broadway, St. Louis, Mo.
290- Não é o mesmo endereço do fabricante da tua tinta para o cabelo? perguntou Dave.
- Certamente que não! E o produto que eu uso não é tinta. É um tónico capilar.
- Chama-lhe o que quiseres, Hiram. Mas olha-me para esse desenho! É obsceno. Custa a acreditar que o Gaines faça tenções de imprimi-lo.
- A obscenidade está na tua imaginação, Shoemaker. Eu só vejo um cinto.
- E o que achas desta parte suspensa aqui à frente? A ideia será um tipo meter o zezinho dentro daquilo?
- Presumo que sim.
- Usavas uma coisa destas debaixo da roupa o dia todo? Ou só quando estivesses na companhia de uma senhora? - riu-se Dave. já imaginaste a expressão da mulher se baixasses as calças e...
- O tipo de mulheres com quem tu andas ja deve ter visto coisas mais estranhas.
- Mas isto não pode ser seguro. Olha-me só para estes relâmpagos!
- Presumo que o dispositivo colocado na parte de tras da cilha tenha uma pilha voltaica qualquer.
- Deus do Céu, e a ideia é a corrente passar pelo cinto até aquela parte suspensa?
- Por que não? Só agora começam a compreender-se os efeitos terapêuticos da electricidade. É óbvio que quem fabrica este produto descobriu que uma corrente eléctrica uniforme e suave pode ter propriedades medicinais no caso de determinadas... disfunções masculinas.
- Tu és de morte, Hiram! Aposto que tu tens mesmo uma destas engenhocas.
- Certamente que não! Mas o princípio faz sentido.
- Bem, não era a mim que conseguias convencer-me a atar uma coisa dessas a cintura e a meter o zezinho dentro do ilhó.
- Devias sentir-te grato por existirem dispositivos destes. A debilitação das funções masculinas pode dar cabo de um homem. ”Debilitado devido a indiscrições ou excessos”, isto não te diz nada, Shoemaker?
- Quando sou indiscreto, nunca sou excessivo. E quando sou excessivo, sou sempre discreto. As minhas funções masculinas estão óptimas, Hiram. Não preciso de choques eléctricos para acordar o zezinho.
- Gostava que parasses de usar essa expressão.
291- Por mim, usava a expressão latina mas ainda soa pior. - Dave arrebanhou o pedaço de papel. - Ei, pessoal, olhem-me para isto!
Hiram voltou para a secretária de nariz empinado. Olhou Por cima do ombro, e depois pegou discretamente num cartão, onde escreveu: Porfavor envie panfleto para:
Híram Glass Central de Correios
Austin, Texas
Em seguida, meteu o cartão num sobrescrito, juntamente com um selo de três cêntimos.
29226
Depois de jantarem bastante cedo, os pais da Menina Emmeline Wilkins retiraram-se para o andar de cima, deixando a filha e as duas amigas a conversa na sala de estar. Era a noite de sexta-feira 22 de Maio, duas semanas e dois dias após o homicídio de Eliza Shelley.
O calor da tarde dera lugar a uma noite cálida e estrelada. As jovens abriram as janelas que davam para o grande alpendre da frente, mas o ar estava tão parado que não se sentia a mais pequena aragem passar pelas cortinas rendadas. Não é que fizesse falta. Era uma daquelas raras e preciosas horas de Austin em que a temperatura dentro e fora de casa se encontrava em absoluto equilíbrio, e o mundo parecia banhado por um suave e sonolento resplendor crepuscular de um incomparável dia de Primavera.
Embora não tivesse voz para o canto, Emmeline tinha um talento considerável para tocar piano e adorava as canções de amor de Stephen Foster. Enquanto passeava os dedos pelo teclado, murmurando a letra, as amigas escutavam num silêncio atento. A prima de Emmeline, Delia, estava sentada numa das extremidades do comprido sofá vermelho. A seu lado estava a cunhada, Eula, que vive no Distrito de Williamson e estava a passar uns dias em Austin. Eula tinha os pés assentes no chão, mas inclinou o corpo, pousando a cabeça no colo de Delia. Delia adejava languidamente um leque de madeira chinesa lacada, enquanto passava ociosamente os dedos da outra mão por uma madeixa do cabelo louro de Eula.
Pouco a pouco, a noite adensava-se. Começou a ouvir-se o estridular dos grilos. Uma mariposa borboleteava contra os vidros das janelas. Passara o período de sonolência que acompanha o entardecer. Emmeline tocou uma melodia mais animada. Eula espreguiçou-se e endireitou-se no sofá. Delia abanou o leque com mais vivacidade. A agitação suscitou risos, bem como provocações amigáveis.
Eula era casada e Delia era viúva, mas Emmeline não estava comprometida.
293- Emmeline, não me parece nada justo - observou Delia - que nós, duas matronas sérias, estejamos a monopolizar uma jovem e encantadora belle numa noite de sexta-feira. Deve estar a haver algum baile ou outro evento social qualquer, onde devesses estar a exibir-te aos jovens desta cidade.
- Não - disse Emmeline com timidez afectada.
- Não, não há baile? Ou não, não devias estar a exibir-te?
- oh, deve haver um baile algures na cidade esta noite - disse Emmeline com desenvoltura. Os dedos passearam-lhe pelo teclado, tocando uma pequena passagem cómica de Mozart. - E certamente que todas as jovens que andam à procura de beau lá estarão, a exibir-se e a competir entre si.
- Nesse caso, o que estás tu aqui a fazer?
- Talvez eu já tenha um beau.
- Emmeline! E não nos tinhas contado nada!
- Olha para o sorriso dela - disse Eula com um suspiro. - Nós conhecemos o rapaz?
- Não creio.
- Porque não está ele aqui connosco? - perguntou Delia. - Eula e eu teríamos todo o gosto em fazer de damas-de-companhia.
- Trabalha até tarde à sexta-feira. Talvez, daqui a pouco... - Olhou de relance na direcção da janela, com uma expressão expectante.
- Estou a ver - disse Delia. - Nesse caso, ainda bem que aqui estamos, para servirmos de damas-de-companhia.
- E para te distrair até ele chegar - acrescentou Eula.
Revelado o segredo, Emmeline ficou levemente excitada. Ficava particularmente atraente e interessante quando a sua energia nervosa era estimulada e a sua vivacidade natural se sobrepunha aos outros atributos; Emmneline não era uma rapariga especialmente bonita. Em comparação com a beleza morena de Delia ou a radiância loura de Eula, Emmeline possuía um rosto vulgar, emoldurado por um cabelo de um tom neutro de castanho. A sua constituição estava lamentavelmente fora de moda para os parâmetros da época. Quem não possuisse uma cintura fina podia tentar obtê-la por meio de recursos artificiais, como os corpetes, mas os contornos naturais de Emmeline resistiam à reconfiguração por meio das mais exigentes roupas interiores. Sentira um certo consolo ao ler um artigo recente de uma revista que o pai assinava - a Popular Science Monthly -, que comparava os ideais modernos em termos das formas
294femininas com os dos antigos gregos, representados em estátuas como a Vénus de Milo. O artigo apresentava medidas que afirmava corresponderem ao ideal clássico de mulher: altura, um metro e sessenta e cinco; busto, oitenta e um centímetros; cintura, sessenta e dois centímetros; ancas, oitenta e seis centímetros. Emmeline examinara o seu próprio corpo, recorrendo a uma fita métrica, e descobrira que não estava muito longe do modelo clássico. Esta informação dava-lhe algum consolo nas ocasiões em que a mãe não conseguia apertar-lhe suficientemente o corpete, ou quando Emmeline se encontrava na companhia de outras jovens, como Delia ou Eula, cujas cinturas de vespa modeladas a corpete teriam sem dúvida parecido a Aristófanes mais próprias de vespas do que de seres humanos.
Ainda assim, Emmeline queria agradar ao jovem que andava a cortejá-la, e o ideal da beleza física tornou-se o tópico de conversa enquanto as três aguardavam a chegada do pretendente de Emmeline.
- Lembram-se de como os meus braços eram magros? - perguntou Emmeline.
- Não sei bem o que queres dizer com isso - disse Delia com tacto.
- Oh, mas é verdade. Se eu fosse uma rapariga alta e elegante, não faria diferença, mas com a minha estatura os braços sobressaíam como alfinetes de uma almofada.
Eula riu-se da comparação.
- Mas agora olha para mim. Atrevo-me a dizer que os meus braços estão tão roliços e bem contornados como os de qualquer rapariga de Austin. - Ao contrário das amigas, cujos vestidos sublinhavam os respectivos contornos, ao mesmo tempo que escondiam o pescoço e os braços, Emmeline usava um vestido fora de moda com um corte quadrado no pescoço e mangas curtas em balão, que lhe deixavam os braços à vista.
- Concordo - disse Delia. - Os teus braços estão com uns contornos muito agradáveis. A natureza apenas demorou um pouco mais tempo a conferir-te as proporções adequadas.
- Não foi a natureza, prima Delia, mas sim exercício deliberado.
- Exercitaste os braços a tocar piano?
- Não. Durante os últimos seis meses, tenho feito passeios regulares, além de exercícios com halteres - disse Emmeline com orgulho. Acabava de revelar outro segredo, de modo que se sentia cada vez mais alvoroçada.
- Halteres? Onde os arranjaste? - perguntou Delia.
295- O papá comprou-mos na loja das ferragens da Ribeira de Waller. Comecei com dois quilos. Agora pratico com quatro.
- Extraordinário! - disse Delia. - Mas como é que te ocorreu semelhante ideia?
- Vinha no livro que me ofereceste no ano passado nos meus anos.
- Oh, sim, O Que Pode Uma Mulher Fazer? - Delia tinha visto dois exemplares numa livraria na Avenida, e comprara-os. Oferecera um a May Tobin, que afirmava lê-lo todas as noites, como outras pessoas lêem a Bíblia. Oferecera o outro a Emmeline, pois Delia começara a recear que Emmeline não chegasse a casar, pelo que talvez beneficiasse dos conselhos práticos do livro, onde se relatavam várias histórias verdadeiras de mulheres que tinham entrado no mundo do trabalho optando por todo o género de profissões, jornalistas e funcionárias públicas, fotógrafas e gravadoras, compositoras de tipografia e telegrafistas, ou mesmo médicas e advogadas. Davam-se exemplos de mulheres que ganhavam a vida sem sair de casa: alugando quartos ou criando abelhas; costurando ou criando aves. (May tinha ripostado secamente que não havia nada no livro que tivesse a ver com o seu estilo de vida; Delia sugerira-lhe com ironia que escrevesse um capítulo e o enviasse para o editor, que ficava em Detroit.)
- Mas não me recordo nada de no livro se aconselhar as mulheres a usarem halteres, como homens musculados de feira - disse Delia.
- Não sejas tonta - replicou Emmeline. - O livro não diz nada disso. No entanto, a ideia surgiu-me ao ler o último capítulo.
- Não me recordo qual era...
- Oh, é o meu capítulo favorito. ”Soluções cosméticas”, retirado de um livro intitulado Artes da Beleza de Lola Montez. A propósito, quem é Lola Montez?
- Nada mais, nada menos, do que a mulher mais famosa na Europa desde Josefina Bonaparte - disse Delia. - Bela e escandalosa, amante de duques e condes.
- Não me admira que a mãe tenha corado quando lhe perguntei quem era.
- E a Lola Montez também fazia halterofilía?
- Não, mas em determinada ocasião conheceu uma rapariga que tinha os braços muito magros, como eu, e foi assim que a rapariga resolveu o problema, pelo que eu decidi tentar. E funcionou! A Menina Montez
296parece estar a par de todos os truques de cosmética. Tem receitas de pós para os dentes, cremes para a pele, e maneiras de uma senhora se ver livre do buço ou de impedir que o cabelo fique grisalho; diz também que dormir com luvas de cabrito macias e brancas torna as mãos brancas e macias. Oh, e Eula... da uma receita de uma fórmula infalível para disfarçar o bronzeado.
Eula pestanejou, ligeiramente surpreendida.
- Uso sempre um chapéu e luvas no jardim - disse ela com calma.
- Oh, mas quando se vive numa quinta, estando fora de casa a toda a hora, receio que seja inevitável adquirir um certo bronzeado. Espera um momento, vou buscar o livro.
- Oh, não precisas de...
Mas Emmeline saiu antes de Eula poder dizer o que quer que fosse, voltando com o pequeno e espesso volume com uma capa ornamentada em relevo.
- O que pode uma mulher fazer? - folheou as páginas. - Ah, aqui está. ”Um excelente leite de limpeza para remover o bronzeado, denominado Crême de lênclo, - leu ela, pronunciando ”cream-day-la-enclose” - ”e tem a seguinte composição: leite fresco, 200 ml; sumo de limão, 7,50 ml; brandy branco, 15 ml. Leve a ferver e retire a espuma. Use de manhã e à noite.” Oh, Delia, olha... na mesma página vem uma fórmula para disfarçar as sardas!
Delia fechou o leque bruscamente e franziu o sobrolho. Eula deixou escapar uma gargalhada, levando a mão à boca.
Nesse momento, chegou-lhes através das janelas abertas para o alpendre o som de uma canção, que ecoava na atmosfera calma da noite. As três mulheres calaram-se, a escuta, ouvindo o som aproximar-se.
Quatro vozes masculinas cantavam em harmonia perfeita. Eula não percebia bem a letra, mas a música alvoroçou-a interiormente. Fechou os olhos e escutou.
Emmeline dirigiu-se à janela mais próxima. Afastou a cortina, semicerrando os olhos e encostando o delicado bordado à face. Delia levantou-se e foi ter com ela, seguida por Eula. As três mulheres estavam de tal maneira encostadas umas às outras, que as amigas sentiam o calor que ruborizara o rosto e os braços nus de Emmiline. Para lá do alpendre,
297por baixo do carvalho do pátio, distinguiam-se quatro silhuetas, iluminadas por tras pelo quarto crescente.
A Sra. Wilkins entrou na sala de estar.
- Emmeline, e...?
- Sim, Mãe.
- Que maravilha! Tenho de os convidar para subirem ao alpendre.
- Espere, Mãe! - disse Emmeline com uma gargalhada. As amigas nunca a tinham visto tão radiante. - Deixe-os acabarem a canção primeiro.
As vozes do pátio soavam com clareza e doçura, cantando uma antiga toada de marinheiros:
”O navio está pronto para partir e eu tenho de embarcar; Não sei quando estarei de volta, amor.
Atravessarei oceanos, guiado pela luz das estrelas.
Mas a luz da tua janela é a estrela mais brilhante de todas.”
No final da canção, Emmeline exalou um suspiro. A Sra. Wilkins avançou para o vestíbulo, com uma lamparina na mão. Abriu a porta da frente e saiu para o alpendre.
- Jack Yeager, és tu? Traz os teus amigos aqui para o alpendre. - Pendurou a lamparina num gancho, inundando o alpendre com uma luz acolhedora. - Os senhores apreciam limonada e biscoitos de gengibre? Esta noite Emmeline tem visitas, mas pode certamente dispensar uns momentos para os cumprimentar, especialmente depois de lhe terem dedicado uma canção tão bonita.
A Sra. Wilkins voltou para dentro e correu para a sala de estar.
- Emmeline, anda! Delia, Eula, façam-lhe companhia, sim? Vou servir a limonada e depois venho-me embora. Emmeline não precisa que eu ande a pairar em cima dela. - Dito isto, dirigiu-se a cozinha.
Emmeline encaminhou-se para o vestíbulo. Eula deixou-se ficar para trás. Delia deu-lhe a mão.
- Anda, querida. Vamos dar uma vista de olhos aos autores da serenata. É incrivelmente romântico, não é?
Eula baixou os olhos.
- Acho que fico aqui.
- Que disparate! Ouviste a Sra. Wilkins. Nós, as matronas sérias, temos de fazer de damas-de-companhia. Anda, Emmeline está a porta, e não pode sair sozinha, pois não?
298- Mas eu...
- Eula, qual é o problema? Vai ser divertido! Enquanto Emmeline e o pretendente gaguejam e coram, nós podemos namoriscar com os outros.
- Delia, não me parece que isso seja muito adequado.
- Porque não? Posso ser viúva, mas há muito que não estou de luto.
- Mas então e eu? Sou uma mulher casada... e mãe!
- Isso não será problema, se tirarmos isto. - Pegou na mão de Eula e tirou-lhe a aliança com suavidade.
- Delia, o que é que estás a fazer?
- Chiu! Se não a Emmeline vai ouvir.
- A Emmeline vai reparar que me tiraste a aliança!
- Tolices. Uma vez fora daquela porta, Emmeline não terá olhos para mais nada a não ser para o Jack. Olha, vês como foi fácil? - Delia atirou a aliança ao ar e apanhou-a; depois voltou-se para Eula sorrindo de orelha a orelha. - Não te preocupes. Eu não a perco. Agora, anda!
- Mas Delia...
- Gostaste da canção, não gostaste? Então anda dizer-lhes isso. juntaram-se a Emmeline, que esperava com impaciência à porta. As três mulheres alisaram as saias, viram-se ao espelho e saíram para o alpendre. Depois de fazerem uns movimentos nervosos, os homens tiraram os chapéus e apresentaram-se à vez. Delia apresentou-se como Delia Campbell, prima de Emmeline, a quem tinha vindo fazer uma visita na companhia de uma amiga de Emmeline, Eula Phillips, omitindo os vocábulos Senhora ou Menina.
Jack tomou suavemente o braço de Emmeline e encaminhou-a até ao baloiço, na extremidade do alpendre. Os outros homens, de chapéus na mão, encostaram-se ao corrimão. A Sra. Wilkins trouxe um tabuleiro com um jarro de limonada, uma taça de biscoitos e copos. Depois de servir toda a gente, voltou para dentro.
Delia encostou-se a Eula e segredou-lhe ao ouvido, quase sem mexer os lábios.
- O do bigode ruivo está definitivamente fascinado contigo!
Eula manteve os olhos baixos por momentos. Sentia a presença do homem diante de si. Observou-lhe as mãos, que pareciam apertar o chaPéu com tanta força, que os nós dos dedos estavam brancos. Por fim, ergueu os olhos, deparando com um par de olhos azuis como os seus. Olharam-se mutuamente sem dizer palavra durante o que pareceu uma eternidade, até que o homem acabou por falar.
299Ela abanou a cabeça.
- Desculpe, não ouvi o que disse.
- Eula... é um nome muito bonito - disse ele, continuando a falar tão baixinho, que ela teve de se inclinar para conseguir ouvi-lo. Eula olhou em volta, estranhamente desorientada. De um lado, Jack e Emmeline estavam sentados no baloiço do alpendre a conversar sossegadamente, completamente distraídos de tudo o resto. Do outro, Delia concentrava as atenções dos dois outros membros do quarteto, e os três riam-se alto e bom som de qualquer coisa. Eula voltou a encarar o jovem, que se tinha apresentado como Will Porter.
-Tem um nome muito bonito - disse ele outra vez, sem ter a certeza de que ela o ouvira.
- Obrigada - disse Eula.
- Vem da palavra grega que significa ”bem” - disse ele. Ela sorriu ao de leve.
- Sei porque andei a pesquisar num livro - disse ele, e depois pareceu vagamente alarmado, como se tivesse acabado de contar um segredo. Era difícil ter a certeza sob a luz avermelhada da lamparina, mas aparentemente corara.
Ele parecia-lhe tão jovem, tão sincero e vulnerável, que lhe fazia lembrar Jimmy nos tempos em que a cortejara. Havia nos seus olhos uma inocência que a cativava. Teria pelo menos a sua idade, se não fosse um pouco mais velho, e, no entanto, ela sentiu-se imediatamente inclinada a protegê-lo.
Eula estudou-lhe o rosto abertamente, e ele fez o mesmo. Tendo obtido permissão para a observar pelo facto de ela lhe retribuir o olhar, ele não conseguia disfarçar o prazer que lhe dava poder olhá-la em silêncio. Eula achou-o bastante atraente, com os seus maxilares largos e o cabelo ruivo ondulado, e apesar do bigode elaboradamente aparado; semelhante gesto de vaidade, precisamente no meio do rosto, tornava-o ainda mais vulnerável.
- Ah, quer dizer que é um estudioso, Sr. Porter?
- Perdão?
- Para andar a estudar a etimologia das palavras nos livros...
- Suponho que sou um pouco dado à leitura. E a Eula?
- Eu adoro livros - disse Eula. - Desde criança; dos tempos em que o meu pai me lia o Ivanhoe.
300- Ah, Sir Walter Scott. - Ele pareceu ficar atrapalhado por momentos, depois recuperou a vivacidade. - Na minha terra, a Carolina do Norte, quando eu era miúdo as pessoas das classes altas, as pessoas abastadas, costumavam organizar torneios de cavaleiros inspirados no Ivanhoe e em livros do género.
- A sério?
- Não chegavam a lutar a sério nem a derrubar-se uns aos outros dos cavalos, mas faziam competições de perícia a montar a cavalo: apanhar argolas com as lanças e cortar melões ao meio com as espadas. Os jovens cavaleiros ornamentavam-se com papel crepe e cartão, e envolviam os punhos das armas com os lenços das senhoras.
- Devia ser muito romântico.
- Para lhe dizer a verdade, eu achava que aquilo não passava de folclore. Mas suponho que era novo de mais para saber apreciar.
- Sim, as coisas mudam à medida que a idade passa, não é? - disse Eula com um suspiro. - Claro que não são as coisas que mudam: somos nós. Nunca podemos ver o mundo como ele realmente é, porque o vemos sempre a mudar. Um lugar que se conhece em criança parece tão diferente quando é revisitado em adulto... mais pequeno, menos mágico. Passa-se o mesmo com as pessoas, mesmo com as mais próximas; julgamos que as conhecemos, e no entanto tudo não passa de uma ilusão...
Acabaram por ficar a olhar-se fixamente outra vez. Era manifesto que ele não queria, ou não era capaz de quebrar o encanto, pelo que ela se encarregou finalmente de o fazer. Foi-lhe necessário um acto de vontade para baixar os olhos, respirar fundo e tentar pensar em qualquer coisa mais inofensiva para prosseguir a conversa.
Os amigos de Will aproximaram-se deles, ainda a rir-se de uma piada qualquer de Delia. Serviram-se de mais limonada. O tópico da conversa desviou-se para os bailes de Verão e as festas associadas as regatas. Por fim, a Sra. Wilkins decidiu que já concedera a filha tempo suficiente de corte. Veio buscar o tabuleiro e deu simpaticamente as boas-noites aos autores da serenata, pedindo-lhes que cantassem uma última toada antes de se irem embora.
Os homens voltaram a pôr os chapéus nas cabeças e recuaram para o pátio. As senhoras sentaram-se no alpendre: Emmeline e a mãe nas cadeiras de balanço, Delia e Eula no baloiço, de mãos dadas. Enquanto os homens cantavam ”Vem até onde as rosas florescem”, Delia colocou discretamente a aliança no dedo de Eula.
301A voz de Will Porter parecera-lhe profunda, mas só então Eula se apercebeu de que era ele que fazia a voz de baixo, proporcionando a base de som sobre a qual os outros construíam a melodia, emitindo notas tão cheias e aveludadas como o ressoar de um violoncelo.
O grupo foi-se embora; para além de Jack, havia mais dois que tinham pretendentes a cortejar naquela noite. Will era o único que tinha vindo apenas cantar e dar apoio moral.
Passou o resto da noite envolto num estranho estado de espirito, entre a excitação reprimida e o desespero inquieto. Agora sabia o apelido dela. Se fizesse umas perguntas discretas a Jack Yeager, que poderia obter as respostas por meio de Emmeline, poderia vir a saber mais acerca de Eula Phillips, onde morava, quem era a família dela, de quanto em quanto tempo vinha visitá-la.
Tinha agora a certeza de uma coisa da qual já suspeitara. Não vira qualquer aliança no dedo de Eula. Inicialmente, isso dera-lhe ânimo; até reparar, com bastante clareza sob a luz ténue da lamparina, no marcado contraste entre a pele bronzeada das mãos e a lista de carne pálida que tinha no dedo anelar. Pela marca do sol, não havia dúvidas de que ela usava habitualmente uma aliança.
Eula Phillips era uma mulher casada... e, no entanto, os seus olhos, perscrutando os dele, haviam-lhe dado esperança.
30227
Sendo o dia seguinte, o dia 23 de Maio, um sábado, William Jesse Swain deixou-se dormir até tarde. O gabinete do Fiscal das Contas Públicas estaria aberto até ao meio-dia, mas não havia assuntos pendentes que exigissem a sua presença na qualidade de chefe do departamento. Matar-se a trabalhar não era a sua política. Afinal de contas, não era nenhum burro de carga! Via-se a si próprio como um puro-sangue em treino para uma longa e árdua corrida. O fim em vista era a mansão do governador. jamais um campeão ganhara corridas a puxar a charrua todos os dias! Aprender a poupar-se - era esse o segredo. Saber descansar e descontrair era tão importante como trabalhar no duro, pelo que aos sábados, enquanto a Sra. Swain fazia as suas compras e visitas, William Swain dava-se ao luxo de dormir até tarde.
Na realidade, dormiu até tão tarde, que acabou por não tomar o habitualmente abundante pequeno-almoço. Tinha combinado almoçar com o seu jovem assistente, William Shelley, pelo que se contentou com o bule de café e o pãozinho que a criada lhe serviu no quarto.
Enquanto se arranjava e vestia, o exemplar do Statesman permanecia por ler sobre a mesa do pequeno-almoço, no andar de baixo, e foi assim que Swain saiu de casa sem ter lido o grande destaque da primeira página: ”NOVA CARNIFICINA!”
A casa de Swain, uma das maiores e melhores da cidade, ficava apenas a um quarteirão dos terrenos do Capitólio, para norte. Tinha ficado de se encontrar com o jovem Shelley na Scholís Beer Garden, cerca de quatro quarteirões para noroeste. A curta caminhada serviria para lhe abrir o apetite para o excelente rolo de carne que serviam no Scholís.
O quarteirão 1500 da Avenida do Congresso, onde Swain morava, ocupava uma apreciável extensão de propriedades, começando com a sua casa, numa das esquinas, e acabando na outra, com o esplêndido edifício da Igreja Luterana Evangélica Sueca. Mas, à medida que Swain caminhava para leste, o aspecto do bairro alterava-se drasticamente. Tendo
303virado para norte na Rua Brazos, apenas a um quarteirão de sua casa, deu por si a deambular por entre casas humildes pouco melhores que barracas.
No exterior de uma destas casas humildes, Swain reparou em vários cavalos com as rédeas presas a um poste, e detectou a presença de três homens envergando capas de sarja azul com guarnições douradas e chapéus achatados - polícias municipais - no alpendre semidesmoronado. Um homem que Swain reconheceu como sendo o Comissário Grooms Lee batia vigorosamente à porta. Embora Swain não tivesse qualquer motivo para saber ou para se importar com o facto, a referida casa era a residência de Cynthia Spencer e, desde a morte de Mollie Smith, do seu filho Walter.
Uma mulher idosa de cor veio à porta. O Comissário perguntou-lhe qualquer coisa em tom agastado. Swain abrandou o passo, mas não parou. Depois de passar a casa, prosseguiu caminho, assobiando uma melodia jovial.
Ao chegar diante do Scholis, deteve-se do outro lado da rua para deixar passar um trem de mula que atravessava o cruzamento. A casa que ficava mesmo em frente ao Scholz’s, no canto oposto ao cruzamento onde Swain se encontrava, atraiu a sua atenção. Viam-se diversos cavalos e carruagens espalhados pela propriedade. No pátio, estava reunida uma multidão, incluindo um grande número de pessoas de cor. A julgar pelos respectivos semblantes, não se tratava de uma ocasião festiva; talvez tivesse morrido alguém.
Recomeçando a assobiar, Swain atravessou a rua, contornando cuidadosamente os excrementos da mula que acabara de passar. Estava desesperado pelo seu rolo de carne!
William Shelley aguardava-o numa mesa situada perto da fonte. Num piscar de olhos, Swain deu por si bem instalado, soprando a espuma da sua caneca de cerveja. A seu lado passou um pavão empertigado, exibindo todas as penas da respectiva cauda.
- Presumo que tenha reparado na agitação do outro lado da estrada, senhor? - disse Shelley.
- O quê? Oh, sim. A que se deve?
- A isto. - Shelley colocou uma página dobrada do Statesman à sua frente.
- Ainda não li o jornal de hoje - murmurou Swain. - O que e isto? ”Nova Carnificina! Outra mulher de cor brutalmente assassinada.
304Criminoso não identificado a monte. Quando é que isto acabará?” Foi naquela casa do outro lado da rua?
- Nas traseiras, na casa da criada - disse Shelley. - ”Outro homicídio, quase idêntico ao último. A meio da noite, alguém entrou furtivamente na cabana, atingiu a criada com um machado, e aproveitou-se dela.”
- É terrível! - disse Swain, lendo o jornal de esguelha. - Chamava-se Irene Cross. ó céus! Diz aqui que o braço direito da pobre mulher foi praticamente cortado ao meio, e que o corte na cabeça lhe trespassou metade do crânio. ”Foi virtualmente escalpelizada.” Ugh! E mostras-me isto precisamente antes do almoço.
- Não se fala de outra coisa aqui no Scholz’S. As pessoas não param de se levantar das mesas para se irem pôr à janela a olhar para a casa com ar escandalizado.
- Mas eu não o farei, podes ter a certeza! As autoridades que tratem do caso. - Swain franziu os olhos pensativamente. - Pergunto-me se aqueles polícias que vi no exterior da casa da Rua Brazos terão alguma coisa a ver com isto.
- Como, senhor?
- Passei por eles ao vir para aqui. Bom homem, o Comissário Lee. Foi um excelente Ranger. E o pai está a fazer um trabalho esplêndido na direcção das obras do Capitólio. Também é a obrigação dele, a ganhar três mil e seiscentos por ano, quase tanto como o governador! Mas se Joseph Lee conseguir cumprir o calendário previsto, merece os tostões todos. Os empreiteiros querem a mão-de-obra reclusa para extrair granito em Burnet, e mandar vir pedreiros escoceses para cortar os blocos de pedra - os sindicatos estão a ferro e fogo! Mas não vim discutir política. Hoje é o meu dia de folga. - Pigarreou. - Presumo que tenham sido tomadas providências para a minha reunião das duas da tarde?
- Foram, senhor. Como de costume, apanhamos um trem de aluguer e eu deixo-o numa esquina perto da casa da Sra. Tobin. Ela estará à sua espera à porta das traseiras. Eu passo por lá com outro trem às quatro, para o apanhar na mesma esquina.
- Excelente! Shelley, és um milagre de eficiência. Por que não passas também esta tarde na May? Tens trabalhado no duro. Mereces uma recompensa, rapaz.
-Talvez, senhor, mas eu tendo a fazer as minhas visitas noutras ocasiões. - Shelley comprimiu os lábios num sorriso tenso. Acompanhara
305Swain na sua primeira visita a casa de May Tobin, para fazer as apresentações (Swain fora apresentado como ”Sr. Compton”, um nome fácil de memorizar dada a semelhança com a designação do seu cargo, mas daí em diante marcava as suas próprias visitas de modo a não coincidirem com as do chefe. Não via razão para dar origem a situações embaraçosas: não lhe apetecia nada que Swain o visse meio despido ou no pós-apogeu da paixão; nem lhe apetecia ver Swain em semelhante estado. Além do mais, os dois homens tinham o mesmo género de preferência
- de momento, ambos escolhiam a companhia da mesma mulher, Delia Campbell. Shelley não se importava de a partilhar com Swain, desde que houvesse um intervalo decente entre as respectivas visitas.
Serviram-lhes o almoço. Swain observou deliciado o seu rolo de carne com sauerkraut. O dia estava a correr de forma esplêndida.
Do outro lado da cidade, na mansão Bellevue, William Pendleton Gaines recebia os seus convidados para o almoço.
Normalmente, era a mulher que desempenhava o papel de anfitriã mas, dado o seu visível e avançado estado de gravidez, Augusta não estava em condições de ser apresentada a visitas do sexo masculino. Gaines apoiava-se muito no talento da mulher para este género de funções e, durante a indisposição dela, havia-se abstido de receber formalmente. Contudo, no caso do Dr. Terry e do Dr. Fry, abrira uma excepção. Depois de uma estada de algumas semanas em Austin, e de terem sido apresentados aos homens de negócios mais proeminentes da cidade, os médicos haviam anunciado a sua intenção de partir novamente dali a uns dias. Antes que o fizessem, Gaines decidira convidá-los para almoçar em Bellevue.
Habitualmente, depois de uma curta conversa na sala de estar, Augusta oferecer-se-ia para mostrar a casa às visitas. Mas o que faria Augusta no caso do frenólogo cego? Gaines achou que seria de mau tom não convidar o Dr. Terry para dar uma vista de olhos, pois todas as visitas de Bellevue eram convidadas a subir à varanda para verem o motivo pelo qual a casa merecia a respectiva designação. Mas também deveria convidar o Dr. Fry, ou seria melhor oferecer ao cego um entretenimento
Nota: Compton, Comptroller of Públic Accounts, a designação que traduzimos por ”Fiscal das Contas Públicas”. (N. da T).
306alternativo... mas qual? Não podia dar-lhe para a mão um estereoscópio, ou um livro de epigramas, ou mesmo um baralho de cartas!
A solução tornou-se óbvia quando o pai desceu mais cedo do que o previsto para o almoço. O Gaines Sénior tinha setenta e sete anos. Renunciara à moda das barbas, escanhoando-se com aprumo. A sua aparência não enganava ninguém, com o seu fato claro de Verão com uma flor na lapela, a correia de ouro do relógio suspensa do bolso do colete, e a penugem de fino cabelo branco acabada de pentear e retocada com brilhantina: tratava-se um proprietário do Sul na reforma. Era um facto que estava um pouco surdo, e já não era tão lúcido como fora noutros tempos, mas certamente que ele e o Dr. Fry arranjariam algo sobre que conversar durante uns minutos, enquanto Gaines conduzisse o Dr. Terry à varanda do andar superior.
Os convidados chegaram, fizeram-se as apresentações e deram-se apertos de mão. Infelizmente, o Gaines Sénior não pareceu compreender o motivo pelo qual o Dr. Fry usava óculos escuros, olhando-os fixamente com ar consternado. Excluída a possibilidade de gritar ”Papá, o indivíduo é cego!” para a corneta acústica do velhote, Gaines ficou sem saber o que fazer. Talvez por não poder ver a corneta acústica, o Dr. Fry também não pareceu dar-se conta da deficiência do pai do seu anfitrião; ignorou o exemplo de Gaines, que lhe falava alto e bom som, e dirigiu-se ao velhote em tom discreto e monocórdico.
- Ele não ouve bem - explicou Gaines. - Terá de falar mais alto.
- Ah, sim! - assentiu o Dr. Fry, continuando a falar exactamente da mesma maneira. O Pai Gaines inclinava-se na sua direcção, completamente embasbacado e perplexo com aquele estranho convidado de óculos escuros.
Um pouco apreensivo, Gaines deixou-os aos dois na sala de estar. A excursão ao andar de cima demorou mais do que ele previra. O Dr. Terry manifestava interesse em praticamente todas as pinturas e peças de mobiliário por que passava, e vários destes objectos tinham histórias interessantes, que Gaines se deleitava em poder voltar a contar. O médico também ficou fascinado com a própria Bellevue, que tinha sido construída pelo proprietário anterior ao estilo de um château francês, com os gigantescos blocos de calcário extraídos da própria colina em que se situava a casa. A estrutura da casa era uma curiosidade arquitectónica, dado que assentava sobre níveis diferentes, num declive orientado
307para poente; as varandas de madeira tinham sido construidas de modo a tirar partido da esplêndida vista. Gaines habitava a casa há apenas um ano e deliciava-se em exibi-la. No exterior da varanda superior, passearam calmamente até ao canto sudoeste e debruçaram-se sobre a balaustrada, apreciando a vista do Colorado que reluzia à distância, sob o sol do meio-dia. À conversa acerca de Bellevue seguiu-se uma discussão acerca da construção de uma barragem e sobre o futuro da cidade. Por fim, o som da campainha que os chamava para o almoço fê-los regressar para dentro de casa.
Quando se aproximaram da sala de estar, Gaines ouviu o que lhe pareceram gritos. Adiantou-se ao Dr. Terry e apressou-se a entrar no compartimento.
À primeira vista, por incrível que parecesse, os dois homens pareciam estar a lutar no tapete corpo-a-corpo, como um par de miúdos no pátio da escola. Afastando imediatamente essa hipótese, mas sem conseguir compreender o estranho quadro que tinha pela frente, ocorreu a Gaines a terrível possibilidade de que o pai se tivesse sentido mal e caído ao chão, estando o Dr. Fry a tentar ajudá-lo, desajeitadamente e às cegas. Mas aquela explicação também não parecia ser a correcta. Gaines ficou a observá-los boquiaberto e sem palavras.
Gaines Sénior não estava sentado na cadeira mas, literalmente, de gatas no tapete, com uma das mãos a segurar na corneta junto ao ouvido. Diante dele e de cócoras, numa posição bastante bizarra, estava o Dr. Fry com as mãos sobre a cabeça do velhote e a boca encostada a corneta. - Carácter determinado! - declarava o médico, falando em altos berros na direcção da corneta.
- O quê? - gritava o Gaines Senior.
- Carácter determinado... é a característica predominante da sua personalidade. Tem uma cabeça de leão! A sua cabeça assemelha-se bastante à de Daniel Webster, cuja máscara de morte tive em tempos o privilégio de examinar. Uma testa com o centro tão proeminente sugere que possui uma natureza que gosta de retaliar; em repouso e indolente, mas torna-se feroz quando desperto. O melhor que os seus inimigos têm a fazer é deixarem-no em paz, Sr. Gaines!
Gaines Sénior tentou erguer-se o suficiente para libertar a mão sobre a qual se equilibrava, de modo a apalpar a própria testa, mas as explorações entusiásticas dos dedos do frenólogo frustraram-lhe os esforços.
308- Esta reentrância no lábio inferior, Sr. Gaines, e o modo como os cantos da sua boca se voltam para baixo são sinais de uma natureza algo sarcástica. Sem dúvida que o seu filho herdou essa característica, que aplica em benefício próprio no negócio da imprensa.
O Pai Gaines pareceu expressar a sua concordância, na medida do possível, dado que as mãos do médico lhe tacteavam os lábios e se moviam sobre todo o seu rosto.
- E os seus olhos, igualmente inclinados para baixo nos cantos...
- Com licença!, Gaines não conseguiu observar a cena em silêncio durante mais tempo.
- Ah, Sr. Gaines!, não o ouvi entrar. O Dr. Terry está consigo? Que tal é a vista?
- Dr. Fry, por favor, levante-se! E o Papá, que diabo está a fazer no chão? Deixe-me ajudá-lo. - Gaines abanou a cabeça. Semelhante coisa nunca teria ocorrido se Augusta estivesse presente.
Encaminhou-os de imediato para a sala de jantar, onde Gaines Sénior poisou a corneta acústica e resistiu a todas as tentativas de o incluir na conversa; Gaines suspeitava de que o velhote estava amuado Por lhe terem interrompido o exame. Indagou os convidados quanto ao itinerário da viagem que fariam em breve e os seus planos para o futuro.
- Espero que o recente surto de crimes não tenha contribuído para a decisão de saírem da cidade.
- Oh, não - assegurou-lhe o Dr. Terry. - Para ser completamente franco, foi o calor que nos assustou! Ouvimos tantas histórias terríveis sobre o calor do Verão texano, que decidimos passar a estação a trabalhar noutro local.
- Talvez não seja ma ideia - concedeu Gaines. - Quando tencionam regressar?
- Por volta do final de Agosto. O Dr. Fry e eu reservámos um consultório na Avenida e já tratámos de arrendar uma casinha simpática ali perto. Fazemos tenções de transferir o grosso das nossas economias para Austin nos próximos seis meses, e de dedicar as nossas energias à construção de uma barragem. Uma vez concluída, estaremos em posição de abrir aqui na cidade uma importante fábrica de um medicamento patenteado. O futuro de Austin será o nosso futuro.
- À nossa! - disse Gaines. Até o amuado Gaines Sénior se juntou ao brinde, erguendo orgulhosamente a cabeça como um velho leão irascível.
309Os irmãos Robertson também estavam a almoçar na sua mesa habitual, ao fundo do Iron Front.
- Isto e uma catástrofe! - declarou o Presidente da Câmara com ar deprimido. - Dois homicídios em duas semanas! - Abanou a cabeça. Vou recandidatar-me nas eleições de Dezembro! James, por amor de Deus, temos de conseguir pôr fim a isto.
O Procurador-Público mastigou pensativamente e engoliu.
- Se Grooms Lee não consegue prender ninguém, talvez devêssemos contratar detectives de fora.
- Pinkertons?
- Ou de outra agência semelhante, de fora; de Nova Orleães ou talvez de Houston. É uma hipótese a ter em conta, John. Como acabaste de dizer, vai haver eleições. Não tarda, Dezembro está à porta.
Nesse preciso momento, o estado de espírito no interior do Black Elephant era de consternação.
Lem Brooks acabara de ler em voz alta a meia dúzia de fregueses do bar que não sabiam ler, entre os quais se incluía Alec Mack, o relato publicado no jornal do ataque a Irene Cross.
- Se isto estivesse a acontecer a mulheres brancas, já imaginaram o rebuliço que eles não faziam? - disse Alec.
Hugh Hancock deu os passos miudinhos e apressados que as suas pernas arqueadas lhe permitiam.
- Alec Mack, se isto tivesse acontecendo a mulheres brancas, por esta altura alguns pobres-coitado de cor já tinham sido linchado!
- O Comissário Lee não vai ficá em casa a polí os seus botão dourado
- observou Lem soturnamente.
- O que é que quer dizê com isso? - perguntou Alec.
- O que Lem quer dizê é que o Comissário teve aqui logo de manhãzinha - disse Hancock - a perguntar onde o Lem teve na noite passada, e obrigô-o a prová. Depois o Comissário foi a casa de Walter Spencer... o maldito quase o prendeu, só porque a casa da Mãe dele fica perto do local onde a Irene Cross foi assassinada. Palavra de honra, o Comissário Lee ta parecendo um cão agarrado ao osso: julga que quanto mais o mordê mais carne come.
310Alec sorriu de orelha a orelha.
- Topam-me um velho cão de caça com aquele chapéu de Comissário dourado todo janota na cabeça!
Hugh Hancock não se riu.
- Você pode achá muita piada, Alec Mack, mas não me tá parecendo que lhe va dar vontade de rí se o Comissário Lee vié atrás de voce a perguntá onde e que teve na noite passada. O que é que você lhe dizia?
O sorriso desvaneceu-se do rosto de Alec. A verdade era que, na noite anterior, ele estivera ali mesmo no Black Elephant... com a amiga. Hancock fora para a cama cedo e Lem deixara Alec esgueirar-se pela porta das traseiras. Ele e Rebecca Ramey tinham-se fechado por dentro no armazém e passado a maior parte da noite no velho sofá onde Hancock fazia a sesta durante o dia.
Vacilando um pouco, Alec arranjou maneira de encarar Hancock. Não havia qualquer expressão de acusação nos seus olhos, apenas a inquietação que todos eles sentiam. O velhote não suspeitava de nada.
- Uma coisa vos digo - disse Hancock. - Daqui em diante, convém a cada um de nós que aqui tamos, e a todos os negros de Austin, podê prová onde tiveram a cada hora do dia e da noite, onde vai, com quem vai, onde dormiu. Não há um único homem de cor em Austin que teja a salvo do Comissário Lee. Nós somos os ossos que aquele homem qué para roê e enterra no quintal.
Nessa manhã, Will Porter levantou-se cedo e decidiu passar aquele dia a fazer a melhor coisa que um homem pode fazer num radioso dia de Primavera, estando fora de causa a hipótese de poder passá-lo com a jovem dos seus sonhos. Foi fazer uma caminhada pelos montes escarpados e os vales abrigados do sol a oeste da cidade.
Partiu da Ribeira de Shoal, onde deu uns dedos de conversa ao Coronel louco e aos companheiros, prosseguindo depois vigorosamente para oeste, por entre campos abertos e floresta cerrada. Chegado aos carris de ferro, parou para ver um comboio locomover-se lenta e laboriosamente em direcção ao norte, ao Distrito de Williamson e para além dele. Do outro lado dos carris, via-se a Ribeira de Johnson, onde estava acampado outro grupo de vagabundos. Como não reconheceu nenhum deles, e não se sentia com disposição para fazer novas amizades, prosseguiu pela sombra dos pequenos bosques de carvalhos e os campos repletos
311de flores silvestres até um declive com vista para o Colorado, no ponto onde o rio chegava do norte e fazia uma curva para leste, envolvendo a cidade como o braço de uma mãe que abraça o filho.
Continuando a sentir-se desassossegado, deu meia volta e prosseguiu para norte, rio acima, subindo a passo firme até dar por si a escalar o Monte Bonnell. Não tinha pensado em ir até tão longe. Com apenas duzentos e cinquenta metros de altitude, o Bonnell não era exactamente uma montanha, mas ainda assim a subida exigia algum esfórço, especialmente tendo de trepar por entre grandes pedregulhos de calcário ou de contornar pequenas matas de cactos. Por fim, chegou a um carreiro inclinado e a caminhada tornou-se mais fácil.
Quando se aproximou do cume, viu diversas carruagens estacionadas aqui e ali, bem como vozes provenientes de clareiras no meio das árvores. Numa tarde de sábado tão solarenga, as pessoas tinham afluído ao Monte Bonnell com cestos de piquenique. Will vislumbrou dois jovens namorados de costas para ele, sentados lado a lado sobre uma coberta estendida na saliência de uma rocha. Encostaram as cabeças um ao outro. Os rostos aproximaram-se. Beijaram-se. Will desviou o olhar e prosseguiu caminho.
Chegou a um ponto privilegiado perto do cume e voltou-se para ver a vista. À distância, a cidade era um aglomerado de edifícios baixos junto ao rio, com poucos pontos de destaque na linha do horizonte. Tudo isso iria mudar quando o novo capitólio fosse construído. A grande abóbada elevar-se-ia acima de tudo o resto, uma montanha erguida pelos homens em granito rosa-escuro.
Voltou costas. Mais uns passos levaram-no ao lado mais íngreme e ocidental da elevação. Imediatamente abaixo, seguia o rio verde, qual serpente brilhante e sinuosa. Do outro lado do rio, os montes escarpados atingiam cumes ainda mais altos do que o Monte Bonnell. O lugar onde ele estava tinha o nome de ”Salto dos Namorados”.
Aproximou-se mais da borda da rocha, curioso por ver o ângulo e a altura do declive daquele lado da montanha. Descobriu outra saliência mais abaixo, a que parecia suceder-se outra, como se houvesse uma escadaria natural na face escarpada da rocha. Desceu pé ante pé.
Foi descuidado. Estava cansado da subida. Tinha as pernas menos firmes do que julgara. Um pedaço de calcário quebradiço cedeu sob um dos seus pés.
312Tudo se passou num piscar de olhos. Will escorregou e a montanha pareceu oscilar. Sentiu a cabeça andar à roda e caiu pesadamente sobre o estômago. O movimento dos calcanhares provocou uma pequena avalancha de pedras. Agitou os braços e agarrou-se a um fino ramo de algarobo.
Os pés reencontraram um apoio sólido. Will recuperou o equilíbrio. A pequena mas ruidosa avalancha prosseguiu por momentos; depois parou. Wíli respirou fundo e agarrou-se ao ramo com força, até ficar com os nós dos dedos brancos. Muito abaixo de si, ouvia o som das pedras a atingirem a superfície da água; mas ouvia-as com dificuldade, dado que o seu coração ainda batia mais alto. Lenta e cautelosamente, içou-se para um apoio mais seguro.
Acima dele, espreitando por entre os ramos cheios de folhas, viu os dois namorados, o homem amparando a mulher, ambos com expressões preocupadas. Will corou furiosamente e apressou-se a sair dali.
Tinha os joelhos a tremer. Estava cansado e com sede. Começou a sacudir o pó das roupas, e depois reparou que tinha as mãos arranhadas e a sangrar. Também estava a sangrar de um dos cotovelos. E tinha rasgado a manga.
Podia ter pedido uma boleia para regressar à cidade, mas não estava com disposição para falar com ninguém. Quando chegasse a casa ja seria de noite, mas pelo menos esta caminhada era sempre a descer.
Fitou uma última vez a cidade distante, e depois deu início ao regresso, tomado por um desassossego ainda mais intenso do que aquele que sentira antes de ter partido. Passara o dia inteiro, incluindo os momentos em que quase se despenhara da ravina, a pensar em Eula Phillips.
Só a hora de se deitar, enquanto se despia, é que William Gaines Sénior deu pela falta de um objecto. O velhote não conseguia encontrar o relógio, que sempre guardara no bolso do seu colete, preso por uma correia de ouro a um botão das calças. Tanto o relógio como a correia haviam desaparecido, embora o botão estivesse no lugar. após alertar o filho para a circunstância, começaram ambos, juntamente com os criados, a revistar a casa.
O relógio em causa era um belo exemplar de relojoaria, intrinsecamente valioso, embora o seu valor sentimental ultrapassasse em muito o
313seu valor material. Fora oferecido a Gaines Júnior por Mirabeau Buoriaparte Lamar, o segundo presidente da República do Texas. No interior da tampa que cobria o mostrador, tinha gravada a seguinte rima, da autoria do próprio presidente e poeta:
Rodopiam estes ponteiros num contínuo voo conciso Para cada hora marcar e indicar de modo preciso.
Depois de uma boa hora a passar tudo a pente fino, o relógio continuava desaparecido.
A última vez que Gaines Sénior se recordava de ter olhado para o relógio fora poucos minutos antes de descer para o almoço. Não tinha saído de casa durante todo o dia, excepto para ir até ao jardim a seguir a saída dos convidados, onde se sentara numa cadeira sob as árvores a fazer uma pequena sesta. A não ser que um dos criados o tivesse roubado, hipótese que Augusta Gaines pôs terminantemente de lado, o relógio tinha de estar algures na propriedade.
Reconstituindo mentalmente os passos do pai, William Pendleton Gaines, recordou-se, bem de mais para o seu gosto, de ter encontrado o pai de gatas no chão, com o Dr. Fry debruçado sobre ele, examinando às cegas a cabeça do velhote. Gaines afastou a imagem da mente quase de imediato, pois não era um momento que lhe apetecesse particularmente recordar. Mas, por instantes, tão breves que a hipótese mal teve tempo para tomar forma, ocorreu-lhe uma suspeita completamente infundada, e certamente absurda.
31428
junho sucedeu a Maio. Julho a junho.
Não se registou qualquer detenção, nem pelo homicídio de Eliza Shelley, nem pelo de Irene Cross.
Por uns tempos, pairou sobre a cidade de Austin um medo intenso, na antecipação de mais derramamento de sangue; mas os dias deram lugar a semanas, as semanas a meses, e não ocorreram mais homicídios. Tal como tinha acontecido com a morte de Mollie Smith, a onda de revolta pública elevou-se, fez uma crista, e depois dispersou, deixando para trás um resíduo de incerteza e desconfiança.
Talvez fosse o calor sacrílego daquele Verão que levava os homens a cometer actos de violência, ou talvez os homicídios por punir tivessem desencadeado uma selvajaria primitiva, ou talvez fosse, muito simplesmente, a circunstância de as pessoas andarem com os nervos em franja que as fazia prestar mais atenção a semelhantes eventos, mas a opinião predominante em Austin era de que a cidade se havia tornado subitamente um lugar mais perigoso e desordeiro.
Quase todas as semanas havia relatos de roubos e assaltos no jornal. Houve o caso do caixeiro-viajante alvejado da janela do quarto da casa de hóspedes da Rua de San Jacinto; seguiu-se uma caça ao homem, mas o autor do crime desapareceu sem deixar rasto. Houve o perturbador incidente de uma mãe, uma mulher branca, que participou o desaparecimento do filho de tenra idade; o corpo do rapazinho foi descoberto sepultado a pouca profundidade, com indícios incontestáveis de que a própria mãe o matara. Um funcionário da câmara foi acusado de molestar uma jovem vendedora de flores que certa noite se havia perdido em Guy Town; mais tarde, veio a descobrir-se que a jovem não era tão jovem nem tão inocente como se havia presumido, e que o verdadeiro crime consistira numa tentativa de extorsão por parte da mãe da rapariga. Estes incidentes não tinham qualquer conexão com os homicídios mas, como o Presidente da Câmara observou nervosamente em conversa com o irmão, também não punham água na fervura.
315Em resposta as críticas cada vez mais numerosas, o Comissário Lee queixava-se de que uma força policial composta por apenas doze agentes era pequena de mais para uma cidade do tamanho de Austin, e exigia que a cidade requisitasse mais homens.
Will Porter passou o Verão como passara o Inverno e a Primavera: a viver sem pagar renda na casa de hóspedes do Sr. Harrell, trabalhando de vez em quando na tabacaria, cantando nos coros das igrejas para manter a sua boa reputação entre as mães de Austin, fazendo serenatas com os amigos, tomando uns copos em Guy Town e recusando os convites de Dave Shoemaker para ir as prostitutas. O tempo quente encorajava a realização de expedições de barco pelo Colorado e mergulhos nas águas profundas das Nascentes de Barton.
Havia dias em que Will só saía do quarto para descer ao alpendre, onde se sentava na cadeira de balouço durante horas a fio, à conversa com quem passava e a ler romances de cordel, cujos heróis eram cowboys ou detectives. Noutros dias, quando o calor apertava, quase não chegava a sair do quarto, ficando sentado na cama apenas com a roupa interior vestida, a tocar guitarra, a escrever poemas, a fumar e a passar pelas brasas.
Por vezes, acordava com o sexo erecto, e passava o dia inteiro num estado de excitação permanente. Fechava as finas cortinas da janela, bem como a porta do quarto, e deitava-se na cama nu, com a pele a reluzir da transpiração, recorrendo as mãos para se satisfazer, duas, três, ou mesmo quatro vezes consecutivas sem conseguir sentir-se saciado. Preocupava-o a possibilidade de semelhante excesso indicar que se passava algo de errado com ele; mas Dave Shoemaker, a única pessoa a quem podia confiar essa preocupação, garantiu-lhe por entre gargalhadas que o priapismo era normal no caso de um jovem da idade dele - especialmente no caso de um rapaz solteiro excessivamente pobre ou excessivamente casto para se aliviar por meio dos préstimos concedidos em Guy Town. Will não confessava, nem mesmo a Dave, o nome da pessoa que lhe fazia companhia nas fantasias que acompanhavam estes prolongados e lânguidos surtos de prazer pecaminoso.
Após ter feito umas perguntas discretas aqui e ali e de ter coligido a informação contida nas respostas, Will ficara razoavelmente informado acerca de Eula Phillips. Sabia que era casada há dois anos com um homem
316chamado Jimmy Phillips, filho de um empreiteiro e proprietário bastante próspero na cidade. Sabia que Jimmy tinha fama de beber, e que jimmy e Eula haviam saído de Austin. no início do ano para irem viver para uma quinta no Distrito de Williamson. Sabia que o proprietário da quinta se chamava George McCutcheon, e calculava que se tratasse do homem com o chapéu de agricultor que fora buscar Eula e Delia no final do debate na assembleia. Sabia que Delia Campbell era viúva, que era irmã de Jimmy e cunhada de Eula, e que as duas eram ”unha com carne”, segundo o que Emmeline Wilkins dissera a Jack Yeager. E sabia que Eula tinha um bebé.
Tendo em conta tudo aquilo que ficara a saber acerca de Eula Phillips, Will tinha todas as razões para a afastar dos seus pensamentos, e votá-la ao esquecimento.
Já para os fins de Julho, Will arranjou um biscate numa farmácia da Avenida. O empregado do farmacêutico adoecera, e a pessoa que normalmente o substituía estava fora. O farmacêutico perguntou aos outros comerciantes se sabiam de alguém com experiência que pudesse ocupar o lugar apenas temporariamente. Na drogaria dos Irmãos Morley, alguém lhe recomendou Will. Will tinha prometido a si mesmo nunca mais ser empregado de balcão, mas neste caso o balcão seria o de uma farmácia, e ele precisava do dinheiro.
No segundo e último dia de trabalho no estabelecimento, Will teve uma experiência curiosa.
Nessa manhã, por volta das dez horas, o farmacêutico, um velho de cabelos brancos, estava sentado a secretária, nas traseiras do estabelecimento, concentrado nuns papéis. O empregado que manipulava o garrafão de gasosa estava a puxar o lustro às colheres. Will estava ocupado a comparar a relação de artigos com os medicamentos disponíveis, percorrendo as filas de frascos, garrafas e caixas dispostas nas prateleiras por trás do balcão da farmácia. A pequena campainha colocada por cima da porta retiniu, anunciando a entrada de um cliente. Will dirigiu-se ao balcão. O seu sorriso vacilou ao ver que se tratava de Delia Campbell. Pigarreou.
- Sra. Campbell, não é verdade? Ela estudou-lhe o rosto.
- Sim. Conheço-o de...?
- Do alpendre de Emmeline Wilkins, minha senhora, há uns dois meses. Chamo-me Will Porter. Participei na serenata a Menina Emmeline.
317Delia anuiu.
- Ah, sim. O cantor com voz de baixo.
- Confesso-me culpado. No entanto, aqui estou eu atrás do balcão em vez de estar por trás das grades. - Ela riu-se de uma forma tão simpática, que Will se atreveu a perguntar. - Veio com a sua amiga? - Sentiu o coração pular-lhe no peito.
- A minha amiga?
- A outra jovem que estava em casa da Menina Wilkins nessa noite, creio que se chamava Eula Phillips.
Delia sorriu.
- Não, a Sra. Phillips não veio comigo.
- Espero que ela esteja bem. - Sentiu-se compelido a dizer qualquer coisa, fosse o que fosse, que lhe permitisse continuar a falar dela.
- Oh, sim, Eula está óptima. Ouviu alguma coisa que indiciasse o contrário? - Ela observou-o com ar divertido.
- Não, de modo algum. Estava apenas... - Ele reparou no pedaço de papel que ela trazia na mão. - Posso aviar-lhe essa lista, Sra. Campbell?
- Esta lista? Ah, sim. - Ela fixou os olhos no papel. - Sim, creio que sim... caso tenham extracto de flores secas de camomila...
- Estou certo de que temos. Mais alguma coisa?
- Só mais uma coisa... Extracto de raiz da planta de algodão? - Ela parecia não ter a certeza de que semelhante coisa existisse.
- Creio que sim. - Will conseguiu sorrir. - Devem estar mesmo lado a lado, dado que ambos começam por ”e”. Mais alguma coisa com outra letra do alfabeto?
Ela olhou para a lista e pareceu hesitar.
- Não, é tudo.
- A camomila é inofensiva - disse ele, enquanto aviava a receita mas presumo que saiba que o extracto de raiz da planta de algodão pode ser venenoso? Com certeza que o toma com um objectivo específico.
- Na realidade, vim aviar a receita para outra pessoa.
Ele assentiu com a cabeça.
- Como é tóxico, preciso que assine o registo da compra. Ela ergueu os olhos e pestanejou.
- Com certeza.
Will colocou diante dela o registo da compra e uma caneta. Embrulhou os medicamentos. Ela pagou a conta com dinheiro do seu porta-moedas, e voltou-se para sair.
318Will mordeu o lábio e depois não se conteve:
- por favor, dê os meus cumprimentos a Menina Wilkins, se a vir antes de mim.
- Com certeza, Sr. Porter. - Delia aproximou-se da porta de saída.
- E também... à Sra. Phillips.
Ela fez uma pausa, voltou-se e sorriu.
- Serão entregues, Sr. Porter.
Uma vez mais, ele foi incapaz de se conter:
- A Sra. Phillips.. está em Austin de momento? Ela observou-o atentamente.
- Não. A Sra. Phillips está junto do marido, na quinta McCutcheon, no Distrito de Williamson. Mas esteja descansado que não me esquecerei de lhe dizer que perguntou por ela.
O seu encontro com Delia Campbell teve um curioso seguimento naquele mesmo dia.
O farmacêutico estava ao balcão. Will continuava a verificar o inventário. Estava de cócoras, a contar uns artigos numa prateleira baixa, quando a campainha retiniu e um homem se aproximou do balcão.
- Precisava de ergotina - disse o homem em tom baixo e um pouco áspero.
- Ergotina. Muito bem - disse o farmacêutico. - Deixa-te estar, Will. Eu vou buscar.
Will assentiu com a cabeça. Observou o cliente pelo canto do olho, mas não ergueu os olhos. Segundo se lembrava, a ergotina era um fungo que medrava no centeio. Era uma substância forte, potencialmente tóxica. Quando ingerida, fazia contrair os vasos sanguíneos. Era usada para as enxaquecas, mas também podia provocar contracções musculares e cãibras abdominais. Consumida em grandes quantidades, podia causar gangrena.
O farmacêutico regressou com um frasco contendo um fino pó cor de púrpura, tão escuro que quase parecia negro.
- Sabe que a ergotina pode ser perigosa?
- Sim, sei - respondeu o homem.
- Importa-se que lhe pergunte para que fim a vai usar? Seguiu-se uma pausa.
- Dores de cabeça. Aquilo a que costumam chamar enxaquecas.
319- É para si, nesse caso?
O homem acenou com a cabeça.
- Já alguma vez tomou esta substância? Seguiu-se outra pausa.
- Já.
- Nesse caso, sabe qual é a dose correcta, e que deve metê-la debaixo da língua. É a forma mais rápida e mais segura de fazer com que entre na circulação sanguínea.
- Pois. Tenho um almanaque médico em casa que explica isso tudo.
- E sabe que nunca deve administrá-la a uma mulher que estiver de esperanças.
- Com certeza. Isso também vem explicado no almanaque.
- Muito bem, nesse caso não ha problema. Preciso que assine o registo de compra.
- Por quê?
- É apenas uma formalidade. Quando vendemos qualquer coisa que possa ser tóxica, o cliente tem de assinar o registo. De quanto vai necessitar hoje?
O homem olhou para a lista que tinha na mão e citou uma quantidade. O farmacêutico mediu o pó, embrulhou-o em papel encerado, e registou a despesa. Só quando o cliente ia a sair é que Will se deu conta de algo familiar nele. Era o chapéu que o homem usava, um chapéu mole de agricultor. Will ergueu os olhos no preciso momento em que ele voltou costas, e vislumbrou-lhe rapidamente o rosto.
Endireitou-se e, em silêncio, viu o homem sair do estabelecimento, fazendo a campainha tocar novamente. Will hesitou, e depois saiu de tras do balcão.
O farmacêutico chamou-o.
- Aonde é que vais, Will?
- Tenho de sair... é só um instante. Volto já.
Will seguiu o agricultor durante meio quarteirão, até o ver entrar numa carruagem onde Delia Campbell aguardava sentada. Will tinha a certeza quase absoluta de que se tratava do mesmo homem que vira no exterior da assembleia, indo ao encontro de Delia e Eula no final dos debates.
Delia e o homem conversaram por momentos, ambos com um ar muito sério. O homem parecia preocupado com qualquer coisa. Delia
320pÔs a mão sobre a dele e deu-lhe um beijo rápido na face, que pareceu tranquilizá-lo. O homem fez estalar as rédeas e subiram a Avenida.
Will regressou ao estabelecimento. Quando o farmacêutico se voltou de costas por momentos, Will abriu o registo de vendas e leu a última entrada. Estava lá escrita a palavra ergotína, juntamente com a quantidade e o preço. A assinatura era de George McCutcheon.
farmacêutico voltou-se de frente novamente. Will fechou o livro. farmacêutico apontou para o frasco de ergotina, que ainda estava em cima do balcão.
- Arruma-me isso, está bem, Will?
- Com certeza. - Will estendeu a mão para o frasco. - Vende muita ergotina?
- Nem por isso, mas é bastante regular. Alivia as dores de cabeça a algumas pessoas, a outras não. A maior parte delas tem receio de a usar por terem ouvido dizer que é venenoso, o que pode acontecer.
- Ouvi-o dizer qualquer coisa acerca... de não a administrar a uma mulher?
- No caso de estar grávida. A ergotina pode provocar contracções prematuramente. Por vezes, os médicos usam-na para induzir o parto, no caso de estar atrasado. É por isso que sou muito cuidadoso quando vendo esta substância. Não há farmacêutico que não tenha ouvido contar histórias terríveis sobre mulheres grávidas que fizeram um chá para aliviar uma enxaqueca, provocando inadvertidamente um aborto. Imagine ficar com esse peso na consciência! Claro que algumas mulheres usam a substância para provocar um aborto intencional.
- A sério? Ergotina em estado puro?
- Oh, misturam-na com outras coisas. Ha fórmulas que nunca mais acabam. A substância tem um sabor muito desagradável e é difícil de dissolver, pelo que, regra geral, a misturam num cha digestivo qualquer.
- Como o chá de camomila... por exemplo?
- Camomila, sem dúvida. E por vezes misturam-na com outras toxinas para terem a certeza de que matam o feto - dedaleira, helCboro, azevinho, raiz da planta de algodão... - Reparou na expressão do rosto de Will e anuiu com ar grave. - Tem toda a razão para empalidecer, jovem. O aborto é um perigo para todos os envolvidos. A mulher pode morrer juntamente com o bebé. E no Texas, a não ser que se seja médico e a vida da mãe corra perigo, ajudar uma mulher a provocar um aborto pode custar cinco anos de vida numa prisão.
321Will olhou fixamente para o frasco que tinha nas mãos.
- Bem, vai guardar isso como lhe pedi, ou vai ficar aí especado a olhar? - disse o farmacêutico.
- É para já. - Will percebia agora por que motivo McCutcheon tinha um ar tão agitado quando subira para a carruagem, e porque motivo Delia o beijara na face. juntos, tinham comprado uma fórmula para provocar um aborto.
Perguntou a si mesmo se Eula estaria a par.
32229
- Charutos para todos! - gritou William. Pendleton Gaines.
- É uma menina!
Mandaram Belzebu ir buscar uma garrafa de uísque irlandês ao escritório de Gaines. O pessoal do Statesman formou um círculo com os copos na mão e a garrafa esvaziou-se numa questão de segundos. A atmosfera ficou rapidamente densa de fumo.
- Um bebé perfeitamente saudável! - vangloriava-se Gaines. - Mãe e filha ficaram a descansar na paz dos anjos. E deixem-me que lhes diga, cavalheiros, que Augusta passou pela provação como um soldado. Como um general! Não haja dúvida de que as mulheres são mais corajosas do que os homens. Sabem o que é que ela me disse, no meio daquilo tudo? Eu estava cá fora na varanda, a limpar o suor da testa, a tentar respirar um pouco de ar fresco, e ela chamou-me da cama e disse-me: ”Pára de andar para tras e para a frente dessa maneira que me estás a pôr nervosa!”
Do outro lado do compartimento, Hiram passou o charuto por acender diante do nariz, sentindo-lhe o aroma.
- Shoemaker, por que razão achas que temos este costume de os pais orgulhosos distribuírem charutos para celebrar a prova da sua virilidade?
- Nunca pensei nisso. - Dave expeliu uma baforada de fumo do charuto que estava a fumar, envolvendo-se nela.
- Shoemaker, tira-me essa coisa da boca. Agora olha-me bem para ela! Não te salta à vista que a forma do charuto é curiosamente semelhante a determinada parte da anatomia masculina? - Hiram segurou o seu charuto entre o polegar e o indicador num ângulo de quarenta e cinco graus e agitou-o na direcção de Dave.
Dave olhou com ar duvidoso para o charuto de Hiram, e depois para o seu próprio.
- Diabos te levem! Vai-te lixar, Hiram, Glass! Com semelhante imagem na cabeça como é que agora consigo voltar a meter esta coisa na boca? - Olhou em volta no compartimento, onde os outros funcionários,
323reunidos em círculo em redor de Gaines, lançavam baforadas de fumo dos respectivos charutos. Momentos depois, todos se voltaram na direcção de Dave, perguntando-se qual seria o motivo de tamanha hilaridade.
Jimmy recomeçara a beber.
A meio da tarde, anunciara que ia a Taylor, que ficava a doze quilómetros, para norte, buscar provisões. Quando Jimmy não apareceu para jantar, os piores receios de Eula pareceram confirmar-se. Havia um bar em Taylor.
Delia estava a passar uns dias na quinta. Jimmy chegou no preciso momento em que ela, Eula e McCutcheon haviam acabado de jantar, e a criada de cor trazia um tabuleiro com café, natas e açúcar. Todos perceberam que Jimmy vinha embriagado pela sua entrada ruidosa. Ouviram abrir a porta da frente, e em seguida o som dos tropeções de Jimmy, que se debatia para passar da soleira. A porta fechou-se com um clique discreto e sorrateiro. Depois, ouviu-se um estrondo e uma imprecação abafada: Jimmy tropeçara na pequena mesa do vestíbulo.
Ouviram-no avançar pesadamente para a sala de estar. Ouviram-no arrulhar para o bebé, que estava a dormir num berço colocado junto ao piano. Momentos depois, Jimmy apareceu no umbral da porta da sala de jantar. Tinha estampada no rosto a característica expressão de coruja de quando estava embriagado - os lábios contraídos num círculo e os olhos desmesuradamente abertos. Trazia a camisa manchada de suor nos sovacos e o suor tresandava a uísque. Ao vê-lo naquele estado, Eula mal se conseguia lembrar do atraente rapaz que em tempos a cortejara. Baixou os olhos e torceu o guardanapo entre os punhos fechados.
Delia endireitou-se na cadeira e olhou para o irmão com dureza. McCutcheon recostou-se e cruzou os braços.
- Que raio andaste tu a fazer? - perguntou. Jimmy fez um sorriso patético.
- Que raio? Então, George, não devias usar essa expressão diante de duas senhoras. - Falava de forma apenas ligeiramente arrastada, mas esse facto não constituía um critério para avaliar o seu estado de embriaguez; Jimmy conseguia continuar a falar de modo bastante inconspícuo muito depois de ser incapaz de andar em linha recta.
- Não respondeste a minha pergunta, Jimmy.
- Não me parece que o que eu ando a fazer te diga respeito, George McCutcheon, desde que faça o meu trabalho.
324- Esta tarde deixaste bastante trabalho por fazer.
- E depois? Acabo-o amanhã. Há sempre um amanhã neste fim de mundo. Amanhãs não faltam.
- Por amor de Deus - disse Delia -, toma um café a ver se te passa a bebedeira.
- Por que estás sempre a repreender-me, mana? Porque estás sempre contra mim? - Jimmy fixou o olhar turvo no serviço de café que estava em cima da mesa. - Cheguei atrasado para o jantar? Da-me ideia que sim. Mas não há chávenas! Que é feito dessa rapariga? Está escondida na cozinha? Está bem, eu vou buscar a porcelana. - Dirigiu-se aos tropeções até ao guarda-louça. Retirou as chávenas e os pires, e dispô-los ao acaso em cima da mesa, causando calafrios a todos os presentes. O tilintar da louça foi assustador, mas não se partiu nada.
Jimmy pegou na sua cadeira habitual, afastou-a da mesa, deixou-se cair pesadamente nela e estendeu a mão para uma chávena. Encheu-a de natas até meio, depois acrescentou várias colheres de açúcar, e por fim retirou um frasco do bolso e despejou por cima das natas uma generosa quantidade de uiSque. Engoliu a mistela de um trago.
Delia fez uma careta. McCutcheon franziu o sobrolho. Jimmy olhou-os com a sua expressão de coruja.
- Jimmy, estás a fazer figura de parvo - disse Eula. Amarrotou o guardanapo e atirou-o para o chão. - Os teus olhos estão deste tamanho!
- Fez dois círculos com os indicadores e os polegares.
- Repete lá isso. - Dada a sua cara de espanto, o súbito tom de ameaça detectável na voz de Jimmy parecia deslocado.
- Os teus olhos estão deste tamanho! - Eula inclinou-se sobre a mesa, estendendo os braços até as suas mãos ficarem a escassos centímetros do rosto de Jimmy.
Ele agarrou-lhe o pulso, mas Eula conseguiu libertar-se. Jimmy pegou na chávena vazia e ergueu a mão com ar de desafio. Eula baixou-se. Jimmy atirou a chávena pelo ar num gesto embriagado; o objecto fez um voo descontrolado pelo compartimento fora, não atingiu Delia por um triz, acabando por se estilhaçar contra a parede.
Eula soltou um grito abafado. Delia levantou-se da mesa e saiu a correr da sala.
- Eu mato-te! - gritou Jimmy. Agarrou numa faca de cozinha e tentou erguer-se, mas na sua inépcia caiu da cadeira.
325McCutcheon bateu com a mão na mesa.
- Pára com isso!
Na sala de estar, o bebé acordou e começou a chorar.
Jimmy conseguiu pôr-se de pé. Eula deixou-se estar onde estava, com as mãos erguidas num gesto de defesa, olhando Jimmy fixamente com ar de desafio.
- Eu mato-te! - gritou ele outra vez, brandindo a faca da cozinha.
- Pára com isso! - gritou McCutcheon.
Delia voltou à sala a correr e agarrou Eula pelos ombros. Eula recusou-se a desviar o olhar de Jimmy. Delia teve de a arrastar para fora do compartimento. Ao passar pela sala de estar, Eula pegou apressadamente no bebé que chorava, e depois Delia conduziu-a pelo vestíbulo fora, até ao pátio.
Mal perdeu Eula de vista, jimmy pareceu perder o alento. Olhou para a faca que empunhava, e depois para McCutcheon.
- Isto não te diz respeito, George. Não te metas. É um assunto entre mim e a minha mulher.
- Enquanto estiveres sob o meu tecto, não é bem assim - respondeu McCutcheon. Deixou-se estar sentado na sua cadeira, com os maxilares visivelmente apertados e o corpo hirto. - Por amor de Deus, larga essa faca, Jimmy. Ainda te magoas.
Os lábios de Jimmy tremeram.
- Talvez devesse largá-la. Talvez seja isso que eu devo fazer.
- Não sejas palerma, jimmy. Diabos te levem, se tens mau vinho, não devias beber, ponto final! Estás a ser completamente tolo. Vá, larga a faca.
Jimmy voltou a faca numa e noutra direcção, observando o reflexo na lâmina.
- Talvez seja tolo. - Fungou e começou a chorar. - Sou um tolo por causa dela, George. Eula fez de mim um tolo. Ela tem outro homem.
- O quê? Não sejas ridículo.
- Todas estas idas a Austin... passa lá tanto tempo como o que passa aqui. Aquelas duas estão sempre a sussurrar nas minhas costas...
- Quem?
- Ela e Delia. A minha própria irmã ajuda-a a fazer-me passar por tolo! Julgam que eu não sei o que se passa, mas sei. Ela arranjou um amante.
- Jimmy, o que estás a dizer? - McCutcheon não tirava os olhos da faca.
326- Estou a dizer que Eula tem outro homem.
- Tens a mais pequena prova de semelhante coisa?
- Não preciso de provas! Sou o marido dela. Consigo perceber muito bem.
- Por amor de Deus, não sabes o que estás a dizer.
- Ela já não me ama, George. Acho que nem sequer ama o bebé. Ela é perversa! Mas eu amo-a. Não consigo evitar.
-Estás a dizer disparates, Jimmy. É certo que Eula não é feliz aqui na quinta. Nunca foi. Preferia viver em Austin. É por isso que vai lá tantas vezes. Mas isso não significa... - McCutcheon abanou a cabeça.
- Ela está sempre com Delia quando está em Austin, ou então vai visitar o pai ao hotel. Dorme em casa dos teus pais. Como podes imaginar que tenha tempo para andar a escapulir-se para estar com um amante? É a tua imaginação que é perversa, e não Eula. Estás bêbedo e estás a deixar que a imaginação tome conta de ti.
Jimmy olhou-o com uma expressão patética, com o rosto ruborizado e cheio de lágrimas.
- Estou?
- Bebeste até não poder mais, e depois vens com estas ideias sem sentido. Claro que Eula te ama, e ao bebé. Como podes achar que não? É o teu vício que ela odeia. Quem pode censurá-la?
Jimmy pousou a faca na mesa.
- Tens razão, George. Tens razão, tens razão, tens razão! Sou um bêbedo idiota: quem pode censurá-la por ter deixado de me amar?
- Jimmy, por amor de Deus...
- Mas uma coisa te digo! - Jimmy recuperou o anterior estado beligerante. - Se alguma vez descobrisse que ela anda com outro homem, se tivesse a certeza, sabes o que é que eu fazia?
- Jimmy, pára...
- Matava-a, era o que eu fazia. Matava-a. E depois matava-me a mim.
- Por amor de deus, Jimmy - sussurrou McCutcheon com voz rouca -, como podes sequer conceber uma coisa dessas? Tens um coraÇão bom de mais para isso. O que ias fazer? Tornar o teu filho órfão? Ou também tencionas matar o bebé? - Jimmy teve um sobressalto e deu um passo atrás, horrorizado. - Vês? Vês a loucura em que estás a pensar? Por favor, pára com essa conversa, ouviste? Pára, antes que Eula volte a entrar em casa e te ouça.
327jimmy começou a chorar em silêncio. Cambaleou e encostou-se à parede.
McCutcheon olhou para os pedaços da chávena espalhados pelo chão. A sua defunta esposa herdara aquele serviço de porcelana da mãe.
- Vai lavar a cara, Jimmy. Depois vai para a cama.
La fora, no pátio, Delia e Eula estavam de pé lado a lado na escuridão, olhando a porta da frente com ar preocupado. Eula tinha o bebé ao colo. Ele deixara de chorar, mas estava inquieto e não parava de agitar os braços e as pernas. O estridular dos grilos aumentava e diminuía na atmosfera parada e quente.
- Não devias tê-lo enfrentado daquela maneira - disse Delia. Quando me viste correr, devias ter feito o mesmo. Custa-me a acreditar que tenha tido de voltar atrás para te ir buscar!
- Não quero que ele julgue que tenho medo dele quando está bêbedo. Não tenho.
- Então por que razão estás a tremer?
- Porque estou fora de mim! Quando o vejo daquela maneira só consigo sentir desprezo.
- Mas que sentido faz provocá-lo?
- Eu não o provoquei!
- Disseste-lhe que estava a fazer figura de parvo.
- Disse-lhe a verdade. Não suporto aquela estúpida expressão que ele tem quando está bêbedo.
Delia riu-se amargamente.
- Querida, querida Eulalia, tens tanto que aprender acerca dos homens!
- já sei algumas coisas.
- Não duvido. - Delia olhou-a de soslaio. - Eula, nunca te vi neste estado.
- Nunca me senti assim. Juro, Delia. Não’aguento mais.
- Tencionas deixá-lo?
O ar de desafio de Eula evaporou-se como que por magia.
- Como é que eu posso? O que pensaria o meu pai? Não tenho nenhum dinheiro meu. - Olhou para a criança que tinha nos braços. - E o bebé...
É um facto que o Jimmy te ama. A ti a ao bebé.
Achas que sim? - Eula vigiou a porta. - O que achas que se está a passar ali dentro?
328- George McCutcheon esta a fazer todos os possíveis para o acalmar, como só os homens sabem fazer entre si. Será mais bem sucedido do que qualquer uma de nós seria.
- Ou isso, ou Jimmy apunhalou-o até o matar, para em seguida vir atrás de mim.
- Que disparate! Sabes tão bem como eu que o Jimmy só tem conversa.
- Foi por isso que fugiste da sala a correr? Delia suspirou.
- Tenho brigas com o Jimmy ha muito mais tempo do que tu, desde que éramos crianças. Ele costumava atirar-me pedras.
Eula riu-se.
- Ainda bem que tem tão má pontaria!
- Quando Jimmy faz uma birra, o melhor e sair-lhe do caminho. Quando lhe passa, fica cheio de vergonha e de remorsos.
Eula engoliu com dificuldade.
- Delia, ele pegou numa faca e disse que me ia matar. Delia pôs-lhe o braço em volta dos ombros.
- Oh, Eula, tu estás mesmo a tremer! Não penses mais nisso, Eula! Ele matava-se a si próprio primeiro. Tu sabes que essa é que é a verdade.
- Será?
- Eula, sei bem o que digo acerca do meu irmão. Conheço-o por dentro e por fora.
- Mas alguma vez o tinhas visto tão descontrolado? Delia, tu fugiste da mesa a correr, como se fosse uma questão de vida ou morte.
Viram uma sombra passar por trás da janela da sala de estar e em seguida apareceu uma silhueta à porta. Eula e Delia ficaram imóveis, depois descontraíram-se, quando viram George McCutcheon avançar para o alpendre.
- Já podem entrar - disse ele. - Enfiei-o na cama. É de espantar que mesmo aí fora não o ouçam ressonar.
As duas mulheres aproximaram-se dele, Eula com o bebé nos braços, e Delia com os seus em volta de Eula. Do ponto de vista de Eula, o mundo parecia estar voltado do avesso. A quinta era uma prisão. O casamento dela tinha sido um fracasso. O bebé que tinha nos braços era tão pesado como um bloco de pedra. A única coisa boa eram os braços de Delia em redor dos seus ombros, apertando-a com firmeza para que parasse de tremer.
32930
Retrospectivamente, parecia adequado que se tivessem encontrado nos jardins do manicómio.
Era domingo. À saída da igreja, Will tinha combinado ir andar de barco no rio com os seus companheiros de serenata, mas à última da hora o plano caíra por terra. Will deu por si sem nada que fazer, a andar de um lado para o outro no alpendre da casa de hóspedes.
Era outro interminável dia de Agosto. Durante duas semanas, não tinha havido sequer uma trovoada para quebrar a monotonia. Todos os dias o mesmo céu igual: uma expansão interminável de azul com nuvens brancas enfunadas deslocando-se rumo ao infinito em todas as direcções. Sob o céu, ficava a pequena cidade, e no seu interior e à sua volta a terra fértil, de vegetação luxuriante, a transbordar de árvores, vinhas e ervas daninhas, todas elas exalando vapor de água. O mundo inteiro parecia destituído de energia, inerte devido à humidade. As pessoas dos estados do leste imaginavam que Austin ficava situada no árido oeste, mas Will, que vivera numa região verdadeiramente destinada à criação de gado, sabia que não era assim. Austin ficava no Sul, e era uma cidade típica do Sul; do Sul quente e húmido, abrasador e opressivo, onde o mês de Agosto tendia para o infinito como as enfunadas nuvens no alto dos céus, e um indivíduo podia abrir um buraco no chão do alpendre, de tanto andar de um lado para o outro numa monótona tarde de domingo.
Foi Dave que o salvou. Will ergueu os olhos ao ouvir o som de uma carruagem de aluguer que passava, e viu Dave Shoemaker no interior. Dave mandou parar a carruagem, chamou-o com um aceno de mão e perguntou-lhe se queria acompanhá-lo numa excursão aos terrenos do manicómio.
O Manicómio Estadual ficava situado na Estrada de Waco, cinco quilómetros a norte da cidade. O isolado complexo de edifícios dominava a paisagem plana e vazia, e tinha um aspecto curiosamente excêntrico aos olhos do visitante recém-chegado. Os telhados dos edifícios de calcário eram ladrilhados e coroados por dúzias de cúpulas octogonais ornamentadas,
330cada qual ascendendo numa espiral encimada por uma esfera. o efeito de todas aquelas abóbadas pontiagudas recortando o horizonte fazia lembrar um gigantesco castelo turco, ou uma cidadela russa contendo o palácio imperial, caída do céu em pleno Texas. Os contornos da linha do horizonte esbatiam-se contra a onda de calor húmido daquela tarde de Agosto, anulando qualquer noção de distância, o que conferia ao manicómio um aspecto ainda mais fantástico. Dava a impressão de que os topos reluzentes das abóbadas pairavam sobre a terra.
Os directores do manicómio tinham uma perspectiva progressista e ambientalista da loucura. Tinham a convicção de que o ambiente físico imediato tinha uma tremenda influência nas perturbações mentais. A paisagem, os sons, as cores e os odores tinham o poder de fazer aumentar ou diminuir o desequilíbrio da mente afectada. A fealdade agravava a insanidade; a beleza aliviava-a. Deste modo, era boa terapia resgatar as pessoas com perturbações do ruidoso zunzum da cidade. Um ambiente agradável e ordenado era a chave para a recuperação. Consequentemente, os directores tinham mandado arranjar os extensos terrenos adjacentes ao manicómio, criando jardins, planícies relvadas, trilhos entre as árvores, no meio dos quais se viam estátuas, fontes, uma estufa com plantas tropicais raras, um ginásio, pátios para exercícios ao ar livre, baloiços e campos de ténis. Aos domingos, a propriedade estava aberta ao público e a entrada era gratuita.
Dave e Will desceram da carruagem. Atravessaram o portão e desceram um trilho solarengo ladeado e perfumado por enormes tufos de madressilvas. O trilho prosseguia através de uma área relvada, salpicada por cobertores coloridos onde quer que uma nogueira ou um carvalho proporcionassem sombra. Por entre os cestos de verga dos piqueniques, viam-se homens deitados sobre os cotovelos com as mangas das camisas arregaçadas e os colarinhos desapertados por causa do calor; e senhoras de chapéus e vestidos brancos, agitando leques de bambu. Via-se uma fonte reluzente com um cupido alado, rodeada por canteiros de flores. Por detrás da fonte, estendia-se um campo relvado onde se viam rapazes a jogar futebol. A pouca distância, atrás de uma sebe, ouviam-se raquetes batendo bolas de ténis.
- Vieste em serviço? - disse Will.
- Vim. O Superintendente Denton dignou-se conceder uma hora do seu tempo ao Statesman.
- A um domingo?
331- É o dia mais conveniente para exibir os seus melhores internados, comportando-se como deve ser no meio dos visitantes.
- Não é o género de história da área de competência de Hiram Glass? É ele que cobre a secção da sociedade.
- Sim, em princípio seria Hiram a fazê-la, mas ele acordou demasiado em baixo e não se conseguiu levantar da cama.
- O que é que ele tem?
- Suspeito que padeça de um caso grave de gripe de Guy Town.
- Uma ressaca?
- Hiram acordou subitamente para o vinho, as mulheres e a musica. Naquela idade! Seja o que for que ele andou a fazer a noite passada, hoje não está capaz de fazer uma entrevista ao Superintendente Denton, pelo que aqui estou eu. Mas não me importo de o substituir. Ultimamente tem sido bastante monótono ser o repórter criminal. Há meses que não ha homicídios de criadas.
- Provavelmente ainda não nos livrámos deles - disse Will.
Do anfiteatro que ficava no extremo oposto da propriedade, onde tocava uma orquestra, chegou-lhes a melodia de uma valsa de Strauss.
- É a minha deixa - disse Dave, olhando para o relógio de bolso. -
O meu encontro com o Superintendente está marcado para daqui a dez minutos, no anfiteatro. Presumo que te consigas entreter durante uma hora e picos?
Will avançou para o trilho de cascalho. Viu uma mulher encaminhar-se na sua direcção, empurrando um carrinho de bebé.
- Sr. Porter, não é verdade?
- Sra. Campbell! - Will levou a mão ao chapéu e olhou de relance para a criança que dormia no carrinho. Franziu o sobrolho, momentaneamente desorientado. Segundo Emmmeline Wilkins, Delia era viúva e não tinha filhos - e, se as suspeitas dele estavam correctas, estava decidida a manter esse estado de coisas. De quem seria então aquele bebé?
A resposta surgiu de forma tão fulminante como a questão em si. A pulsação acelerou-se-lhe. Will viu-a pelo canto do olho, ao lado de Delia. Sentiu-se tomado por um pânico repentino.
- Sr. Porter.
Ele ergueu a cabeça. Mal os seus olhos se cruzaram com os dela, toda a sua ansiedade se desvaneceu. Sentiu-se como deve sentir-se um cavalo assustado, uma vez tranquilizado pelo cavaleiro. Voltou a experimentar de imediato a mesma sensação da noite passada no alpendre de Emmeline:
332atraído pelo olhar dela, como que resguardado por ele; um olhar cálido que o fazia sentir-se a salvo. Olhá-la nos olhos era um bálsamo para a sua alma.
Delia observou-os ambos de esguelha e depois, sem uma palavra, empurrou o carrinho de bebé Pelo carreiro abaixo, deixando-os a sós. Will olhou em redor. Não havia ninguém a olhar. Ninguém a ouvir.
- Eula! Penso em ti a toda a hora!
- Eu também penso em ti, Will. - Uma mulher diferente podia ter baixado os olhos com recato afectado, mas o olhar dela manteve-se firme. Will deu um passo atrás, de modo a poder apreciá-la de alto a baixo.
Eula trazia um vestido branco, coberto por um tecido muito leve e extremamente fino; nos pontos em que o sol incidia, depois de atravessar o dossel de folhas que os cobria, o material brilhava com manchas de luz ofuscante. As mangas eram recatadamente compridas, mas o tecido leve, fino e entufado de que eram feitas permitia a Will ver na perfeição a pele macia dos ombros e braços de Eula. Ela trazia o cabelo apanhado sob um chapéu branco feito da mesma gaze translúcida, com uma aba larga e redonda para a proteger do sol. Do chapéu escapavam-se-lhe mechas de cabelo louro que lhe emolduravam o rosto. A gola do vestido deixava-lhe o pescoço à vista; usava uma fita azul com um medalhão de porcelana a servir de colar. Ele baixou os olhos.
- Hoje trazes a aliança.
O rosto dela mostrou-se tenso.
- O meu marido chama-se Jimmy. É irmão de Delia. E tenho um filho, como viste. Devia ter-te contado em casa de Emmeline.
- Eu percebi que eras casada quando te conheci. Não importa.
Ela baixou os olhos. Will não queria que ela fosse embora. Mal conseguia evitar tocar-lhe.
- Este sítio, esta gente toda. Não podemos...
- Estou acompanhada pela minha cunhada. Não me parece que seja inconveniente estarmos aqui a conversar, Will.
- Mas eu não quero ficar apenas aqui a conversar. Ela observou-o atentamente.
- Compreendo. - Mordeu o lábio inferior. - Vou estar na cidade amanhã. Durante o dia, podia... mas provavelmente tens de trabalhar.
- Não. - Ele abanou a cabeça e riu-se. - Sou um vadio, um inútil. Os meus dias pertencem-me. Sou livre como um milionário.
- Conheces um sítio chamado Ruínas de Swenson?
333-já lá estive. - Ele franziu o sobrolho. - Mas é um sítio parecido com este, não é? As pessoas vão lá fazer piqueniques...
- A uma segunda-feira às três da tarde? Não me parece. Não vai haver vivalma por lá, excepto nós. - Eula estendeu a mão e tocou-lhe ousadamente no braço; depois voltou costas e foi-se embora.
O trem de mula levava-o para leste, ao longo da Rua Pecan, passando por lojas e bares e entrando numa parte da cidade que Will raramente visitava. Passou por uma franja de terreno com aspecto de estaleiro militar, onde ficava a antiga Legação Francesa, virou para norte, subiu alguns quarteirões da Rua Navasota, e depois voltou novamente para leste, contornando o Cemitério Estadual. Ele apeou-se à entrada da Escola Normal e Colegiata de Tillotson. Atravessou a propriedade do Instituto, sentindo-se deslocado por entre tantos rostos de cor. O edifício principal era uma estrutura de quatro andares com um telhado de mansarda, como se estivesse situado numa avenida parisiense. De uma janela aberta, ouviu um professor expor um problema de geometria.
Para lá da propriedade do Instituto, onde o terreno descia a pique em direcção à Ribeira de Boggy, a paisagem tornava-se mais agreste. Tinham construído uma grelha de ruas, mas as casas eram poucas e muito espaçadas entre si. A estrada de terra batida terminou abruptamente no meio de um matagal de vegetação rasteira, que incluía um conjunto assustador de figos-do- inferno. Will começou a achar que se perdera, até dar conta de um cavalo e uma carruagem escondidos sob uma pequena mata de carvalhos jovens. Will tinha chegado cedo, mas ela chegara primeiro. Eula estava tão ansiosa como ele pelo encontro.
Depois de passar uns momentos a procurar em volta, Will descobriu um trilho e entrou no bosque cerrado. A atmosfera era abafada e o silêncio era total, de tal maneira que Will teve um sobressalto ao ouvir subitamente o estalar das patas de uma cigarra. O monótono zumbido do insecto intensificou-se e depois esmoreceu, à medida que ele penetrava no interior do bosque.
O estreito trilho de cascalho ia mudando de direcção, para finalmente desembocar numa clareira ampla e escura, sombreada por árvores cobertas de heras. O local assemelhava-se ao interior de uma catedral, proporcionando uma sensação de recolhimento dentro de um espaço majestoso, iluminado por uma luz cinzenta e uniforme, à excepção de alguns raios de sol suavemente coados pela verdura da folhagem. Will estava numa
334falésia acima da Ribeira de Boggy, onde a terra fora em tempos aplainada e novamente invadida pela natureza.
No centro da clareira, viam-se ruínas de paredes de pedra, evidenciando o plano cruciforme de uma mansão com quatro alas. As paredes desgastadas pela erosão tinham a altura de dois andares e estavam envoltas por trepadeiras. Não havia telhado.
Distribuídos pela clareira, entre ervas daninhas e figos do inferno, erguiam-se grandes blocos de pedra cobertos de líquenes verdes e amarelos. Alguns estavam cuidadosamente empilhados; outros estavam desmoronados. No topo do fragmento de uma cornija ornamental, estava um sapo. Ao ver Will aproximar-se, a criatura encheu-se de ar, olhou-o com ar de desafio e depois correu a refugiar-se sob a vegetação rasteira.
Tratava-se das ruínas de um edifício que havia sido construído por um emigrante sueco chamado Swenson, que fizera fortuna a criar gado. Mas Swenson era um unionista inabalável, e quando o Texas entrara em secessão, vendera as suas propriedades ao desbarato e fugira para Nova Iorque para nunca mais voltar. A grandiosa villa que começara a construir nos arredores da cidade ficou por terminar, acabando por se degradar.
- Aqui teria ficado o salão principal.
Will ergueu os olhos. Ela estava no interior das ruínas, sob o vão de uma das janelas. Um raio de sol atravessou a abóbada de folhas, transfigurando-lhe o cabelo solto numa auréola dourada.
- Venho aqui desde criança. Adoro entrar neste compartimento e imaginá-lo adornado por tapetes persas e um delicado papel de parede, com pinturas envoltas em molduras douradas e candeeiros de cristal. E repleto de gente, cavalheiros vestidos a rigor e senhoras envergando vestidos luxuosos. Julgo que teria sido a casa mais grandiosa do Texas. Will ficou debaixo da janela com o chapéu nas mãos.
- Somos parecidos - disse ele calmamente. - Também gostas de imaginar coisas.
O sorriso dela era melancólico.
- Por vezes, não é preciso grande imaginação para ter uma ideia do modo como as coisas poderiam ter sido. Anda ver. Tem cuidado com os sítios onde o chão cedeu.
Will contornou as ruínas até encontrar o alpendre, que estava inclinado e partido. Passou pelo portal aberto e dirigiu-se ao local onde ela o aguardava.
33531
Ela disse que aparecia naquela noite. Mas não chegou a aparecer. Apesar disso, Alec aguardava. Estava a poupar-se para ela.
Estava à espera no pequeno armazém das traseiras do Black Elephant
- o quarto deles, como se acostumara a pensar -, reclinado no velho sofá, com uma almofada debaixo da cabeça e as pernas ligeiramente flectidas. O sofá era grande, mas não tanto que um homem da sua altura pudesse estender-se ao comprido sem ter de se encolher um pouco. Despira a camisa e colocara-a debaixo da cabeça para amaciar a velha almofada desgastada. Usava as calças presas à cintura por um cinto de corda, folgado e fino, mas tinha a braguilha aberta. As abas soltas formavam uma cilha agradável para os órgãos genitais, expostos ao ar quente e húmido da noite. De momento, sentia-se apenas parcialmente excitado. Não tocava em si próprio ha vários minutos e tentava deliberadamente pensar noutra coisa, fosse no que fosse, excepto em Rebecca.
Era a madrugada de domingo, as primeiras horas antes do amanhecer do penúltimo dia de Agosto. Alec Mack sentia-se mais do que desejoso de que o mês acabasse. O calor era insuportável; não havia memória de um Verão igual...
Tinha o corpo alagado em suor. A lamparina que ardia a um canto, no chão, iluminava as pequenas gotas de transpiração que cobriam as delicadas espirais dos seus pêlos do peito e da barriga. Rebecca gostava de passar as palmas das mãos sobre a penugem felpuda que cobria as duras saliências dos músculos do seu ventre e dos largos músculos do seu peito, especialmente quando estava escorregadio, alagado num suor recente. A memória do toque dela fê-lo baixar as mãos e agarrar no sexo, como Rebecca por vezes fazia, para o excitar e o conduzir para dentro dela. Sentiu-se imediatamente bem teso, pronto para ela. Onde é que ela estaria?
Rebecca passara em casa da mãe dele no sábado, enquanto andava a fazer as compras da família Weed. Sallie Mack não gostava que o filho
336recebesse visitas femininas, conquanto fosse durante o dia. O Sr. Phillips tinha sido muito generoso em permitir que Alec dormisse na casinha de Sallie, e chegara mesmo a arranjar-lhe trabalhos ocasionais: Sallie não queria abusar da sua paciência. Mas não era a primeira vez que Rebecca aparecia por lá e, como ela nunca se demorava mais do que um ou dois minutos, era sempre bem-educada e respeitadora para com Sallie, e parecia ser a única mulher na vida de Alec, a mãe de Alec recebía-a, ainda que um pouco contra a sua vontade. Rebecca parecia velha de mais para Alec - a mulher tinha uma filha com onze anos! - mas não havia dúvida de que era bonita. Sallie concedera-lhes um minuto a sós à entrada da cabana enquanto ia regar uns tomateiros num canto ali perto.
Rebecca disse a Alec que podia escapulir-se por uma ou duas horas nessa noite, desde que a filha estivesse a dormir profundamente. Como já era hábito, Alec pediu licença a Lem Brooks para usar o armazém, mas ao longo do Verão o pedido tornara-se quase uma simples formalidade; com o início do tempo quente, Hugh Hancock deitava-se cedo e confiava a caixa e o encerramento do Elephant a Lem. O armazém estava disponível para Alec em praticamente qualquer noite em que precisasse dele.
E ali estava Alec deitado no sofá, a espera de Rebecca já muito depois da hora em que ela devia ter aparecido, a poupar-se para ela, lembrando-se da última noite que tinham estado juntos...
Retirou a mão, mesmo a tempo.
Deixou-se estar imóvel, a excepção do peito que arfava, saboreando a doce dor da frustração. Voltou a cabeça e encostou o nariz a almofada, sentindo o cheiro dela - não era um cheiro a perfume, pois Rebecca nunca usava semelhante coisa, mas o cheiro do seu corpo nos locais em que tocara a almofada, colocada por baixo das ancas, ou dos ombros, ou sob a densa selva negra dos seus cabelos.
Alec atirou a almofada para o lado. Era incapaz de ficar naquele quartinho abafado mais um momento que fosse. Pôs-se de pé, meteu os genitais para dentro das calças, fechando a braguilha. Pegou na lamparina e entrou na sala do bar. As persianas das janelas altas que davam para a Rua Pecan eram corridas depois da hora de fecho, e o compartimento, grande e comprido, estava completamente envolto na escuridão. Alec foi em pontas dos pés até à porta das traseiras e confirmou o que já sabia; Lem tinha-a deixado destrancada. Rebecca poderia ter entrado sem dificuldade.
337Apagou a lamparina, pousou-a, e saiu para o beco. Estava a espera de ver o brilho suave da lua quase cheia, mas a lua já se tinha Posto. Era aquela hora incerta e vaga antes do amanhecer, o mundo tenuemente iluminado por uma incandescência de origem indeterminada que não deixava sombras.
Subiu o beco, passando pela casinha onde morava Hugh Hancock, e deu a volta até à porta principal do Elephant. Não se via vivalma. Toda a Rua Pecan estava silenciosa como um cemitério.
Decidiu passar pela casa onde Rebecca morava. Não ficava muito longe dali: um par de quarteirões para sul e outro par de quarteirões para oeste. Ele sabia muito bem que Rebecca lhe dissera para nunca, em caso algum, passar por lá. O patrão de Rebecca, o Sr. Valentine Weed, proprietário da Estrebaria Globe, Trens de Aluguer, considerava-a um modelo da feminilidade de cor e tinha orgulho pessoal na sua aparente castidade; nunca se tinha visto homem algum visitar Rebecca e a sua pequena Mary. Mas Alec não fazia tenções de a visitar. A sua ideia era passar em frente da casa, só para dar uma vista de olhos.
Pelo menos essa era a sua intenção.
A caminhada conduziu-o por terreno aberto, dado que, atrás dos edifícios do lado sul da Rua Pecan, as traseiras de um dos quarteirões eram ocupadas, em toda a sua extensão, por um parque de estacionamento, que estava vazio durante a noite. O quarteirão seguinte, para sul, tinha sido deixado vazio pelos responsáveis da cidade, que tencionavam reconvertê-lo um dia num parque. Foi ao atravessar este baldio cheio de ervas que Alec ouviu pela primeira vez o uivo fantasmagórico.
Naquele espaço amplo, sob o céu pálido que antecede a madrugada, o uivo pareceu-lhe fazer eco em vários lugares ao mesmo tempo. Era impossível determinar quantos cães o haviam produzido. Quando Alec se deteve, imóvel, a escutar, o uivo desapareceu sem deixar rasto, e ele apenas ouviu a sua própria respiração e o coração aos pulos.
Pensou imediatamente nas criaturas acerca das quais Lem Brooks o andara a avisar desde que saíra da prisão. Mas o que é que uma matilha de cães a uivar tinha a ver com os cães fantasmas de Lem? Absolutamente nada, disse Alec a si próprio. Que mal havia no facto de uns quantos rafeiros inofensivos e esfomeados andarem à caça nos becos a sul da cidade, à procura de restos de comida? Não havia razão para ter medo das pobres criaturas. Quando muito, inspiravam misericórdia.
338
Ainda assim, quando os cães recomeçaram a ladrar e a uivar, Alec sobressaltou-se e caminhou mais depressa, sentindo-se subitamente exposto e vulnerável no meio do baldio. Alcançou a extremidade mais distante e virou para a Rua Cedar. A casa dos Weed ficava apenas a um quarteirão dali.
ocorreu-lhe que este percurso também o faria passar muito perto de outra casa. Fora apenas a um quarteirão dos Weed, para sul, que ocorrera o homicídio de Eliza Shelley.
Alec arrepiou-se, apesar de o ar estar quente. Primeiro, Por volta do ano novo, Mollie Smith fora horrivelmente assassinada e molestada. Em Maio, Eliza Shelley fora assassinada e desonrada no chão do seu próprio quarto, na presença dos seus três filhos - um crime quase impossível de conceber. Poucas semanas mais tarde, acontecera o mesmo a Irene Cross na casa em frente à Scholís Beer Garden. Desde então, haviam-se passado três meses, e não tinha ocorrido mais nenhum homicídio. Talvez o Verão tivesse sido excessivamente quente até para o homicida se pôr em acção!
Recomeçou a ouvir latidos de cães. Definitivamente, pareciam estar a aproximar-se, e agora conseguiam distinguir-se três uivos diferentes. Tinham sido assassinadas três mulheres - e agora três cães corriam pelas ruas de Austin, a uivar e a latir, cada vez mais perto...
Alec ouvia as palavras que Lem lhe diria: Não tá a ouvír os cãesfantasma a avisar-lhe para fugir? Corre, palerma!
A residência Weed ficava mesmo ali à frente. Viam-se luzes acesas no interior da casa. Por que razão estariam a pé, a uma hora daquelas, quando toda a gente em Austin dormia? A não ser que se tivesse passado alguma coisa...
Alec sentiu o coração na garganta. Tentou engoli-lo. Por que estava ele a deixar-se amedrontar? só porque ouvia uns cães a uivar, e as luzes da casa estavam acesas, e Rebecca prometera aparecer mas não aparecera...
A residência dos Will ficava situada numa pequena elevação, acima do cruzamento da San jacinto com a Cedar. Não havia maneira de subir em bicos dos pés, espreitar por uma janela e ir-se embora em bicos de pés; o muro que escorava a elevação restringia o acesso a uma escadaria que ia dar directamente ao alpendre de entrada, ou então à estrada que dava acesso às traseiras, através de uma passagem no muro. Alec não podia de maneira nenhuma ir bater à porta de entrada. Escapuliu-se para as traseiras.
339Por tras da casa, havia uma pequena cabana mas, pelo que Rebecca lhe contara, Alec sabia que só era usada para lavar a roupa. Rebecca e a filha, Mary, dormiam na casa principal, num quartinho ao lado da cozinha. No entanto, a porta da casinha onde se lavava a roupa estava aberta, emitindo uma luz tremeluzente, provavelmente de uma lamparina que alguém segurava enquanto andava de um lado para o outro no seu interior. Também se ouviam duas vozes masculinas no interior da pequena casa. Alec: deixou-se estar escondido no matagal e pôs-se à escuta.
- Que horror! Como é que alguém...
- Não passa de uma criança! Isto é indescritível. Onde está a mãe dela?
- Lá dentro. Estava inconsciente quando a encontrámos. Ainda não voltou completamente a si, não faz ideia do que aconteceu. Julgo que lhe devem ter batido na cabeça, talvez com um saco de areia... que eu visse, não havia sangue no interior da casa. O criminoso também deve ter batido na criança até a deixar inconsciente, antes de a arrastar para aqui para tras para lhe fazer isto.
- A mãe ainda não está a par?
- Não. Oh, meu Deus, ela não pode ver isto! Morria de desgosto.
- Já chamaste...
- O Comissário Lee está dentro de casa neste momento, e chamaram o médico. O Comissário mandou pedir um cão de caça imediatamente
- deve estar a chegar a qualquer momento. Vamos dar caça ao monstro, a esse animal. Santa Maria! Viste aquilo?
- O quê? O que?
- juro, a miúda mexeu-se! Talvez ainda esteja viva! Oh, Jesus, estou a sentir-me mal...
A luz no interior da cabana oscilou e deslocou-se rapidamente; depois emergiu da porta um homem. Tinha a lamparina numa mão e uma pistola na outra. Correu desajeitadamente para o pátio, com o corpo inclinado. Pousou a lamparina e agarrou-se ao estômago. O homem começou a vomitar a menos de dez metros do local onde Alec estava.
Rapidamente, enquanto o homem ainda estava dobrado sobre si próprio, Alec fugiu como um relâmpago pela passagem da estrada para a rua. Correu as cegas, sem escolher a direcção. Dobrou uma esquina e subitamente viu-os emergir do extremo oposto do quarteirão - os cães fantasma!
340Eram três, como ele julgara, três dos cães mais corpulentos e com os olhos mais ferozes que ele jamais vira, a ladrar e a rosnar, pulando selvaticamente em pleno ar, com os olhos a dardejarem um fogo verde. A visão era tão aterradora, que Alec quase desmaiou.
Voltou costas para fugir a correr. Os primeiros raios da madrugada atingiram-lhe os olhos, ofuscando-o. O terrível brilho dos olhos dos cães não fora do fogo do inferno, mas reflexos da luz do sol. Quando olhou de relance por cima do ombro, viu por que motivo pareciam saltar em pleno ar - estavam presos por trelas, seguras pelo homem que dobrou a esquina atrás deles. O homem gritou:
- Pára, preto! Não dês nem mais um passo!
Mas Alec não parou. Correu o mais depressa de que foi capaz.
34132
- Agredidas com sacos de areia, segundo dizem. Mãe e filha, ambas atingidas na cabeça - até ficarem inconscientes -, depois a menina foi arrastada para fora de casa para uma cabana...
John Robertson olhou para William Pendleton Gaines que, do outro lado da mesa brandia o garfo e falava com a boca cheia de tarte de carne picada. O Presidente da Câmara receara aquele almoço no Iron Front desde o momento em que ele fora marcado, na semana anterior. Dadas as incessantes investidas do jornal contra o governo da cidade, o relacionamento entre ele e Gaines estava, na mais optimista das apreciações, perto do ponto de ruptura. Mas Gaines solicitara-lhe esta reunião na qualidade de membro do Conselho do Comércio, e Robertson dificilmente poderia ter recusado. Havia sempre uma réstia de esperança de que ainda pudesse vir a obter o apoio do jornal para as próximas eleições para a Câmara.
O propósito de Gaines para o almoço de segunda-feira era apresentar o presidente a dois recém-chegados de vulto à cidade de Austin, o Dr. Fry e o Dr. Terry. A agenda prevista consistia numa discussão do ambiente empresarial, em particular dos prós e contras da construção de uma barragem, mas os horripilantes acontecimentos de domingo tinham obnuubilado tudo o resto.
- De acordo com o Statesman, o monstro desonrou a criança de forma brutal - disse o Dr. Terry - e atingiu-a nos ouvidos com algo comprido e afiado, como um perno de ferro. Seria de supor que semelhante coisa a tivesse matado instantaneamente...
- No entanto, ainda estava viva quando o Sr. Weed a encontrou - fez notar Dr. Fry -, embora não por muito tempo. Não foi possível estancar a copiosa hemorragia que golfava dos ouvidos.
- Dizem que pelo menos a mãe deve sobreviver - contribuiu Gaines.
- Mas não tem qualquer memória do atacante. Ou nunca chegou a ver o homem, ou a pancada afectou-lhe a memória. Foi feita uma detenção, mas esta manhã a polícia libertou o indivíduo!
342- Não havia provas contra ele, exceptuando o facto de ter calhado estar nas redondezas - fez notar o Presidente da Câmara sorumbaticamente. - Não tinha vestígios de sangue, nem estava armado.
- Não havia provas? - disse Gaines. - O homem fugiu dos cães de caça, não fugiu?
- Como acontece com a maior parte das pessoas. - O Presidente da Câmara pigarreou. - De qualquer das formas, o procurador não tem em grande conta a fiabilidade dos cães. Em sua opinião, a única coisa ainda menos fiável é uma testemunha ocular.
O frenólogo cego riu-se.
- Sou obrigado a concordar consigo nesse ponto, Presidente Robertson. Mas dizem que os cães andaram Por toda a cidade no encalço do negro durante horas a fio. O indivíduo deve ter umas boas pernas, mas a cabeça deixa um bocado a desejar! Conseguiu arranjar pó de assa-fétida, talvez tenha assaltado uma drogaria, que espalhou sobre os pés. Quando os polícias finalmente o encurralaram, tiveram de apertar o nariz com a mão tal era o cheiro da substância. Ele disse-lhes que pensava que o cheiro despistasse os cães. Imagine-se! O desagradável odor da assa-fétida é tão forte, que até um homem de cabeça fria teria conseguido ir-lhe no encalço. Tenho cá para mim que um homem tão estúpido deve ser culpado de alguma coisa. Como é que ele se chama?
- Alec Mack - respondeu o Dr. Terry.
- Oh, como eu gostava de examinar a cabeça desse Mack! - declarou Fry. - O testemunho especializado de um frenólogo relativamente às características criminais do acusado deveria ser aceite em tribunal! Se assim fosse, ofereceria os meus serviços de imediato, e de graça. O indivíduo que desonrou a pequena Mary Ramey exibirá quase de certeza uma extravagante protuberância
amatórica na parte de trás da cabeça, um sinal inequívoco de depravação. A testa provavelmente recua bastante logo acima dos olhos, traindo uma ausência de carácter moral. E não ficaria surpreendido se o crânio se lhe alargar por trás das orelhas, no ponto onde se situam os traços dos impulsos de destruição e secretismo. Forneçam-me barro e creio que conseguirei moldar a cabeça do criminoso que desonrou a pequena Mary Ramey, mesmo sem a ver, apenas com base na ciência da frenologia!
- Fascinante! - disse Gaines. - Poderia revolucionar a ciência da investigação criminal!
343O Presidente Robertson acenou com impaciência ao empregado de mesa e pediu a conta.
As ruínas de Swenson estavam bem presentes na memória de Will. Na concha do inacabado salão de festas, ele e Eula haviam-se aproximado, abraçado e beijado. Havíam-se explorado mutuamente com as mãos, a princípio de forma hesitante; depois febrilmente, arrancando as roupas um do outro numa espécie de delírio, desnudando-se apenas o suficiente para unirem os respectivos corpos. Permaneceram de pé, com as costas de Eula contra a parede, e os raios de sol entrecortando o remoinho de partículas de pó.
Depois, ouviram vozes na clareira.
Fizeram uma pausa, ainda unidos, olhando-se nos olhos, a tremer de prazer e à escuta. Ouviam-se duas vozes diferentes, de um casal de cor. Will e Eula não pararam; continuaram mais devagar e com mais determinação, saboreando a obrigação de se manterem em silêncio como um elemento que conferia ao acto uma rara e excruciante delicadeza. Olharam-se nos olhos durante todo o tempo.
Ela agarrou-o com força, convulsivamente. De forma incongruente, veio à cabeça de Will a imagem de uma pessoa que se agarra desesperadamente a um cavalo a galope. Havia naquela experiência a mesma sensação de ter de se debater para conter algo selvagem e poderoso, a luta da carne contra a carne.
Ele sentiu a sua própria crise emergir. Tentou afastar-se dela. Ela agarrou-o com tanta firmeza, que ele não conseguiu fugir-lhe. Pensou que a sua própria essência devia estar a misturar-se nela e a inundá-la, deixando-o como uma concha vazia, tal como as ruínas que os rodeavam.
No fim de contas, as ruínas de Swenson tinham-se revelado um local excessivamente público. Mas onde poderiam encontrar-se?
- Eu conheço um sítio - disse-lhe Eula. Implicava os seus custos, acrescentou. Will respondeu-lhe que não tinha dinheiro. Eula replicou que não tinha importância; ela pagava. Ela trataria de tudo. Ele apenas teria de se encontrar com ela no local, da próxima vez que ela viesse à cidade.
Tratava-se de uma casa na Avenida do Congresso, perto do rio, cuja proprietária era uma viúva de nome May Tobin.
344
passaram-se dias, depois semanas, e Will não recebeu notícias. Ela não lhe dera qualquer forma de a contactar. Ele limitava-se a recordar as ruínas de Swenson e aguardar - nada mais podia fazer.
O mês de Setembro estava praticamente a chegar ao fim, quando finalmente ela lhe enviou uma mensagem. Will viu a marca dos correios quando retirou a carta da caixa de correio do alpendre da frente do Sr. Harrell, e rasgou imediatamente o sobrescrito.
Sr. Jones,
A nossa anfitriã aguarda-nos quarta-feira às 3 da tarde. O número da casa é o 103.
- Mas quarta-feira é hoje! - disse ele em voz alta. Olhou para o relógio de bolso: eram apenas 10 horas da manhã. Mas, e se ele tivesse ido vadiar antes de o correio chegar e só tivesse encontrado a carta dela a noite, ao regressar? A simples ideia fez-lhe nós no estômago. Ao mesmo tempo, a perspectiva de voltar a vê-la passado tanto tempo, e quase sem aviso prévio, deixou-o delirante.
Da janela que tinha em frente da secretária, o funcionário que estava de serviço ao balcão de atendimento da fábrica de gelo Zimpelman & Filho tinha uma excelente perspectiva da discreta casa situada na esquina, do outro lado da Avenida do Congresso, nº 103.
- Olha-me só para aquele - disse o funcionário a um estafeta, pouco antes das três dessa mesma tarde. - Se o dicionário do Sr. Wèbster tivesse uma entrada para Ned, o Nervoso, podiam usar um retrato daquele tipo como ilustração! Alguma vez viste alguém tão esverdeado?
”Ned, o Nervoso” era a designação do funcionário para determinado género de visitantes do nº 103. A maior parte dos visitantes caminhava sem hesitar até a porta, fazia soar o batente e entrava sem olhar para tras, evitando o mais possível ser observado. Depois havia os Neds Nervosos.
Funcionário e estafeta observaram o elegante jovem um pouco mais baixo do que a média, de cabelo ruivo ondulado e um bigode bem modelado com cera, que andava para trás e para a frente diante da casa do outro lado da rua.
345A princípio vi-o descer ’Avenida, nesta direcção - disse o funcionário. Passou pela casa da viúva Tobin e mal abrandou o passo; olhou de relance para ela e continuou’andar. Dav’ á ideia de que talvez se dirigisse para o depósito de madeiras, mas não parou por lá. Foi até à ponte da portagem, depois deu meia volta. Atravessou para este lado, mas não vinha à procura de gelo. Voltou a subir ’Avenida, e parou diante da casa da Tobin e deixou-se ficar aqui, a olhar fixamente. Tive d’atender um cliente, o que me levou uns bons cinco minutos, e quando voltei para aqui e olhei pela janela - lá estava o Ned o Nervoso a olhar para a casa como um gato atrás d’um pássaro! Por fim, atravessou a rua outra vez, e pôs-se ’andar em ziguezague para trás e para a frente. Agora está diante da casa a passear d’um lado para o outro. Provavelmente vai demorar mais cinco minutos até arranjar coragem para bater à porta.
- Aposto que vai desistir - disse o estafeta com uma gargalhada.
- Apostava contigo, mas não seria honesto da minha parte. Já vi muitos tipos ali em frente da casa da Tobin, dos Bobs Bazófios aos Neds Nervosos, e não há nenhum que não bata à porta. Nenhum. Só que alguns levam mais tempo a arranjar coragem. Olha! Vê-me só!
De facto, olhando nervosamente para o relógio de bolso, o jovem subiu ao alpendre e bateu à porta.
Como eu invejo o rapaz - disse o funcionário lugubremente. Era um homem casado, com quatro filhos, e parecia-lhe que o jovem visitante da casa de May Tobin devia ter uma vida com prazeres infinitamente maiores e complicações infinitamente mais pequenas do que as suas. Voltou a concentrar-se nos documentos do escritório.
Do outro lado da rua, a porta no nº 103 da Avenida do Congresso abriu-se. O jovem que estava no umbral da porta conseguiu dizer:
- Creio que está à minha espera. Chamo-me... Sr. Jones.
A mulher que atendera à porta contemplou-o de alto a baixo, a avaliá-lo. Sorriu, e teve de conter uma gargalhada. Pela sua experiência, a procura de companhia feminina trazia ao de cima o lado cómico de muitos homens, mas poucos lhe tinham dado a impressão de estarem tão mal preparados para o referido encalço como este. Era raro ter visitantes tão jovens. Estaria ele a corar por causa da situação, ou porque acabara de dizer uma mentira?
Ah, sim, Sr. Jones! De facto aguardava-o! Sou a Sra. Tobin, mas insisto em que me trate por May. É um prazer conhecê-lo.
i
346May Tobin apertou-lhe a mão com a firmeza de um homem. Não correspondia exactamente às expectativas de Will: tinha ar de avó. Ele entrou no vestíbulo e ela fechou a porta.
- Normalmente, quando um homem vem a minha casa pela primeira vez, gosto de o receber com alguma hospitalidade, de o conhecer um pouco melhor, talvez tomando um sherry na sala de estar. Mas já ouvi tantos comentários calorosos a respeito do seu carácter, Sr. Jones, que é como se já o conhecesse. E a Menina Harmon chegou primeiro.
Sei que está bastante ansiosa por vê-lo. Vou conduzi-lo directamente ao quarto dela. Talvez mais tarde, se quiser descontrair um pouco na sala de estar, eu possa tocar um pouco de piano para si.
Will reparou em pormenores aqui e ali, enquanto atravessavam a casa
- o piano na elegante sala de estar, o papel de parede de bom gosto do corredor, a carpete de pelúcia sob os pés. Tinha toda a aparência de se tratar de uma casa respeitável de uma viúva abastada. Respirou fundo e começou a descontrair-se. May bateu a uma das portas, depois sorriu-lhe e voltou para a sala de estar.
Eula abríu-a. Sem uma palavra, pegou-lhe na mão e puxou-o com gentileza para dentro do quarto. O simples facto de se tocarem e se olharem nos olhos foi suficiente para restabelecer instantaneamente a atracção.
O quarto era frio e estava mergulhado numa semiobscuridade. A cama era macia e perfumada com água-de-rosas. As roupas dela restolharam ao deslizarem para o chão. Pela primeira vez estavam nus um com o outro. Tinha havido algo de caprichoso, quase excessivo, quando tinham feito amor entre as ruínas; aqui, eram como crianças a brincar. Will recordou-se do júbilo que sentia ao cantar, ao produzir algo de belo com o seu corpo, fundindo-se harmonicamente com outra pessoa. Onde acabava o corpo dele e começava o dela?
Em seguida, concederam-se o luxo de ficarem deitados na cama juntos durante aproximadamente uma hora. Uma criada bateu a porta e, a pedido de Eula, trouxe-lhes um jarro de chá gelado e taças de sorvete de limão. Will sentiu-se como um imperador romano, com os sentidos saciados de prazer.
- Portanto, a partir de agora sou o Sr. Jones - disse ele.
- Nesta casa, sim - disse Eula. - Encara isso como um hábito, como UM escritor que adopta um pseudónimo.
347- Se eu adoptasse um pseudónimo, espero que me ocorresse algo mais imaginativo do que ”Sr. Jones”. Não deves ter dedicado mais do que dois segundos ao assunto.
- Foi mais ou menos o tempo que tive disponível, caso contrário não iria a tempo de te enviar a carta.
-Aposto que metade dos homens que frequentam esta casa se chamam. Sr. Jones.
- Talvez, mas poucos corresponderiam à descrição que dei a May do meu Sr. Jones.
- E qual foi a descrição?
- Disse-lhe que eras um jovem másculo, com o bigode mais atraente e os olhos mais azuis de Austin.
- Os teus são mais azuis - disse ele, inclinando-se para ela. Ela retraiu-se.
- Não podemos.
- Porque não?
- Não temos tempo. só temos o quarto durante mais dez minutos. Ele olhou-a com ar aflito.
- Desculpa. Devia ter-te avisado mais cedo.
- Mas só mais dez minutos...
- O quarto está prometido a outras pessoas. É assim que as coisas funcionam aqui.
Ele passou os olhos pelo quartinho, acolhedor e mobilado com simplicidade, fresco e resguardado do calor da tarde. No fim de contas, não era menos precário do que as ruínas de Swenson.
Will pegou-lhe na mão e pressionou-a contra o sexo dele, como que a provar a forte necessidade de fazerem amor outra vez. Com um suspiro e uma gargalhada, ela aceitou.
Quando terminaram, lavaram em silêncio o suor do corpo um do outro, usando toalhas e uma bacia de agua fresca. Eula cobriu-se com o lençol e ficou a vê-lo vestir-se.
- Quando te volto a ver? - perguntou ele.
- Não tenho a certeza. Acho que talvez regressemos a Austin em breve. As coisas na quinta não estão a correr bem... entre o meu marido e o Sr. McCutcheon.
- Posso escrever-te? Ela mordeu o lábio.
348- Talvez a Delia nos leve as cartas. Eula riu-se.
- Não tenho a menor dúvida de que adoraria! Mas têm de ser leves. Ele sorriu com ar triste.
- Fizeste um trocadilho com ”leves”.
- És um homem invulgar, Will Porter.
- Sr. Jones! - recordou-lhe ele, depois tapou-lhe a boca com um beijo.
- Vai-te embora - sussurrou ela.
No corredor, enquanto se dirigia à sala de estar, ouviu vozes vindas de outro quarto. Reconheceu imediatamente a voz do homem, era o colega de Dave, Híram Glass!
- Não, não vou tirá-lo! - dizia Hiram em tom mal-humorado; depois falou mais baixo, de modo que Will só conseguiu ouvir fragmentos.
- Porque preciso disto!, não tem nada que temer, electricidade, perfeitamente natural, força vital, não é invulgar...
A mulher não parava de rir, como se não conseguisse evitá-lo. Subitamente, Will teve a impressão extravagante de que se tratava de Delia, mas pô-la imediatamente de lado. Um caso entre Hiram Glass e Delia Campbell era bizarro de mais para ser possível!
Entrou na sala de estar, e teve outra surpresa. Sentado no sofá, com um charuto e um copo de uísque na mão, estava William Shelley. Não se falavam desde o dia em que Shelley o atirara ao chão no átrio, depois dos debates do Senado, a primeira vez que Will vira Eula.
Shelley riu-se.
- Olhem só, se não é o pivete! Não me digas que a May te deixa vir brincar com os crescidos. Não devias estar no ensaio do coro? Will ficou a olhar para ele sem proferir palavra, até May Tobin lhe
pegar no braço de modo gentil mas firme. Sorriu-lhe com doçura enquanto o encaminhava para o vestíbulo.
- Esteve tão ocupado que mal tivemos ocasião de falar. Tem de cá vOltar, Sr. Jones.
- Jones! - disse Shelley com ironia. Deu uma baforada no charuto, Produzindo uma nuvem de fumo, e atirou a cabeça para tras, desatando às gargalhadas.
34933
A febre de dengue, cuja epidemia alastrara pelo Texas durante todo o Verão, chegou a Austin em Setembro.
William Pendleton Gaines foi uma das primeiras vítimas. Entre os sintomas que o afligiam, incluíam-se dores de cabeça, febres altas, eczemas em grande parte do corpo e dores agudas nas articulações e nas costas. Da sua cama de enfermo em Bellevue, Gaines dedicou um editorial à doença:
O termo ”dengue” - em que se pronunciam as duas sílabas - tem origem na língua espanhola e deriva do calão suali. Surge por vezes sob a forma da corruptela dandy, mas podem ter a certeza de que não o é, e também recebe a alcunha de ”febre quebra-ossos”. Propomos aqui que se deixe cair a segunda sílaba do termo, que é inútil, de modo a podermos pronunciá-lo de acordo com a fonética inglesa, conferindo à doença o apropriado nome de ”febre dang” Nota da Tradução. Prepare um leque variado de palavrões, pois vai ver que lhe vão fazer falta quando a apanhar!
Lucinda Boddy cozinhava e fazia limpezas em casa do Sr. J. B. Taylor, situada na Rua Guadalupe, na esquina oposta a dos terrenos da nova universidade. Quando contraiu o dengue, não só se sentiu incapaz de servir o Sr. Taylor e a restante família, como se sentiu incapaz de tomar conta de si própria. Com os seus trinta e poucos anos, Lucinda nunca tinha tido uma experiência semelhante. Ora estava a arder em febre, ora tremia dos pés à cabeça. Todas as articulações do seu corpo rangiam como dobradiças ferrugentas. As costas doíam-lhe tanto, que mal se conseguia sentar ou levantar. Lucinda sentia-se como se lhe tivessem quebrado os ossos numa roda de tortura, atirado para uma frigideira ao lume e em seguida mergulhado em água gelada.
Oh, ”febre maldita”.
350’Na manhã de domingo, 27 de Setembro, depois de um dia e uma noite de cama praticamente entregue a si própria e sentindo-se terrivelmente mal no seu quartinho em casa do Sr. Taylor, Lucinda fez um esforço sobre-humano para se arrastar pelo quarteirão acima até casa do Major Dunham. O Major Dunham era advogado e era o director do Texas Court Reporter. Gracie Vence, uma amiga de Lucinda, trabalhava para o Major Dunham e morava com o homem dela, Orange Washington, numa cabana nas traseiras da casa de Dunham. Gracie era uma alma caridosa; Gracie tomaria conta dela.
Lucinda encaminhou-se para as traseiras da casa Dunham. Bateu à porta da cabana, mas não ouviu resposta, pelo que bateu à porta da cozinha. Gracie saiu, envergando um avental polvilhado de farinha, da tarte de maçã que estava a fazer.
- ó Senhor, Lucinda, tu tá de mete medo! Tu tá pele e osso. Parece um gatinho molhado. Pobrezinha, é a dandy, não é?
- Acho que sim - respondeu Lucinda debilmente. - Oh, Gracie, alguém tem de tomá conta de mim uns tempo. Quase não consigo tar de pé. É como se me tivessem enfiado num saco cheio de pedra e atirado por um monte abaixo. - Lucinda tremia, abraçada a si própria.
Gracie pôs a palma da mão enfarinhada na testa de Lucinda.
- Tás quente como as brasa do inferno, pequena! Vamos para a cabana. Eu faço-lhe uma cama no chão. O Orange vai tá fora durante o dia, por isso ninguém lhe vai incomodá. Vou tomá conta de você o melhó que soubé, pequena querida, mas dizem que não há nada a fazê a não ser deixá que a febre maldita se va embora por si.
Gracie meteu Lucinda na cama e trouxe-lhe um jarro de água gelada e uns panos frios para lhe cobrir a testa, depois voltou para a cozinha. Os domingos eram dias muito atarefados para Gracie. Normalmente, depois de irem a igreja, de manhã, o Major e a esposa recebiam visitas para o almoço. Gracie tinha de passar a manhã nas limpezas e na cozinha, pôr a mesa na sala de jantar, depois tinha de servir o almoço, e depois tinha de limpar tudo.
Naquele dia, os convidados do Major eram dois médicos - um par esquisito, achou Gracie, enquanto levava e trazia os pratos da mesa. Um deles era cego e usava uns pequenos óculos escuros. A conversa começou com comentários acerca da parca assistência na congregação daquela manhã, sem dúvida devido ao dengue - Gracie presumiu que os dois
351médicos tinham estado presentes na qualidade de convidados dos Dunhams -, depois versou a advocacia e actividade médica, e por fim centrou-se no assunto da construção de uma barragem. Aparentemente, os médicos estavam a tentar convencer o Major a investir no projecto. Com certeza não estavam a par da avareza do Major!
Gracie ficou com um fraquinho pelo indivíduo cego depois de ele ter feito um grande alarido a elogiar a sua tarte de maçã. Gracie estava habituada a ser lisonjeada pelo seu aspecto, pois era uma mulher muito atraente, mas a melhor forma de lhe tocar no coração era elogiar-lhe os cozinhados. Uma coisa era o Senhor tê-la feito bonita, e nisso não tivera ela qualquer intervenção; já a sua tarte de maçã era da sua responsabilidade, e era algo acerca do qual podia justificadamente sentir-se orgulhosa.
Depois do almoço, o Major e os seus convidados retiraram-se da sala de jantar, para fumar e continuar a conversa na sala de estar. A Sra. Dunham retirou-se para a sala de costura. Gracie levantou a mesa e lavou a loiça, trabalhando o mais depressa que podia. Assim que se despachasse, teria folga o resto do dia e podia começar a arranjar-se para ir à igreja. Tal como acontecia na maior parte das congregações de negros na cidade, o Reverendo Massey, da Primeira Igreja Baptista, não fazia nenhuma cerimónia de culto da parte da manhã. A primeira cerimónia de domingo era às três da tarde. A maior parte da população branca ia à igreja de manhã e depois vinha para casa almoçar; as pessoas de cor, como Gracie, trabalhavam durante a primeira parte do dia, cozinhando e servindo o almoço à população branca, e assistiam as celebrações depois. Por vezes, Gracie tinha de trabalhar até tarde e perdia a celebração das três, mas nunca faltava à do fim do dia, que se realizava as oito. Sempre que podia, preferia assistir às duas celebrações. Servidos os patrões e arrumada a cozinha, o resto do domingo era destinado a cantar e a dar testemunho, com um bocadinho de convívio pelo meio.
Nesse domingo, tendo Lucinda a seu cuidado, Gracie faltou a celebração das três da tarde. Achou que socorrer os doentes era um acto cristão, e que o Senhor lhe perdoaria por perder o sermão da tarde do Reverendo Massey. Lucinda era a imagem estampada do sofrimento, a tremer e a gemer no fino colchão. Gracie já sabia qual seria o objecto das suas orações na celebração da noite - ser poupada à prostração provocada pela febre dandy!
Com o passar das horas, Gracie deu-se conta de que Lucinda ia precisar de roupa lavada e de alguns dos seus pertences pessoais, para passar
352a noite com ela. Foi quando Gracie desceu a rua para ir buscar as coisas de Lucinda a casa do Sr. Taylor, que o companheiro dela, Orange Washington, chegou a casa.
Orange gostava de passar grande parte do domingo no Black Elephant, à conversa com os amigos e sentado ao sol da manhã no banco exterior colocado junto à parede; à tarde, entrava no bar para comer uma sanduíche e beber uma cerveja, e talvez jogar às cartas no andar de cima. Depois de uma semana de trabalho duro na fábrica de tijolos, Orange achava que dificilmente se poderia considerar um pecado um homem descontrair com uma cerveja e umas cartadas na tarde do dia do Senhor. Nunca ficava excessivamente embriagado nem perdia dinheiro de mais, e chegava sempre a casa a tempo de vestir a roupa de domingo e acompanhar Gracie à cerimónia das oito.
Gracie não gostava que Orange passasse o dia no Elephant, mas essa concessão era um pequeno preço a pagar por ter um homem que ia regularmente à igreja, mesmo que por vezes entrasse no santuário com hálito a cerveja. O seu anterior companheiro, Dock Woods, não fora à igreja com ela uma única vez, facto que ela devia ter considerado um aviso. Dock fora uma desilusão; roubava-a e provavelmente teria roubado o Major Dunham. se Gracie não andasse sempre em cima dele. Dock bebia muito e quando se embriagava tornava-se violento. Quando ele começou a andar com Oliver Townsend, que cumprira uma pena de prisão por roubar galinhas, Gracie achou que era a gota de água e pô-lo na rua. Isso acontecera há muitos meses, mas ocasionalmente Dock ainda aparecia a pedir favores. Por vezes, se estava bêbedo, fazia ameaças. Orange avisara-o para se manter ao largo, e o Major Dunham também, mas Dock continuava a aparecer de vez em quando.
O céu começava a escurecer, e Gracie ainda estava ao fundo do quarteirão, a arrumar as coisas de Lucinda, quando Orange regressou a casa nesse fim de tarde, depois de uma sessão de cartas muito satisfatória no Elephant. Estava escuro no interior da casa. Orange acendeu uma lamparina com um fósforo, e depois viu uma figura deitada num colchão estendido no chão. Ergueu a lamparina ao alto e aproximou-se.
- Lucinda Bobby, és tu?
A febre de Lucinda começara a subir. Ela ergueu os olhos para o homem que estava ali de pé e encolheu-se.
- Não me bata, Dock.
- Lucinda estava com Gracie numa das vezes que Dock Woods aparecera a fazer ameaças. Tinha-lhe um medo de morte.
353Orange riu-se.
- Lucinda, sou eu, o Orange. Ora bolas, se eu não sou muito menos feio do que o Dock Woods... e você ta sabendo muito bem!
Aquela figura que pairava sobre ela, acesa como um demónio pela luz forte da lamparina, aproximou-se. Lucinda estava fraca de mais para se soerguer.
- Estou a avisar-lhe Dock Woods... - foi tudo o que ela conseguiu dizer.
- Maldição, Lucinda, não sou o Dock! - Orange abanou a cabeça.
- Apanhou a febre do dengue, não foi?
Nesse momento, Gracie entrou na cabana. Pousou as coisas de Lucinda e aproximou-se dela.
- A Lucinda ta a alucinar - disse Orange. - Não para de me chamar Dock.
Passado algum tempo, a febre de Lucinda pareceu começar a baixar, Quando Gracie lhe disse que tinha chamado Dock ao Orange, Lucinda não se recordava de nada e achou que Gracie estava a inventar aquilo para a arreliar. Conseguiu sentar-se e engolir um pouco de caldo de galinha.
Gracie estava atrasada para a igreja e ansiosa por se ir embora, mas hesitava em sair. Lucínda apercebeu-se da preocupação dela:
-Tu e o Orange ponham-se a andá para a igreja - disse ela. - Eu fico bem, provavelmente vou dormí o tempo todo. Vão! Não vão perdê o dia inteiro na igreja por minha causa, não.
Gracie e Orange acabaram por sair para a igreja, deixando Lucinda sozinha. Tal como previra, Lucinda adormeceu quase de imediato, e dormiu tão profundamente, que não acordou quando Gracie e Orange voltaram. Nem sequer acordou quando os dois começaram a discutir e levantaram a voz - Orange adormecera durante o sermão; Gracie atribuíra a responsabilidade à cerveja - e o Major Dunham lhes gritou da janela do quarto que não fizessem barulho. Lucinda continuava a dormir enquanto Orange e Gracie fizeram as pazes um com o outro na cama, a poucos passos de distância dela; Gracie insistiu para que o fizessem muito calados, e Orange conteve os seus gemidos de êxtase o melhor que foi capaz.
Por volta da meia-noite, estavam todos a dormir na choupana. Durante uma hora e picos não houve qualquer percalço.
Lucinda dormia tão profundamente, que só franziu um pouco o nariz quando o grito de Gracie foi abafado por um lenço embebido em
354clorofórmio. Orange, pondo-se de pé num ápice, foi atirado ao chão pela pancada de um machado na cabeça, mas Lucinda apenas fez uma careta e aconchegou-se melhor nos cobertores.
Mal se começou a mexer, devido à perturbação causada por toda aquela agitação no quarto, sentiu a coronha de um machado atingir-lhe a testa.
O golpe não foi tão forte como o que atingira Orange; comparativamente, foi uma pancada leve. Contudo, foi suficiente para lhe fracturar o crânio, fazendo com que uma lasca do osso lhe pressionasse o cérebro. A mente de Lucinda nunca mais voltaria a ser o que era.
Lucinda nunca chegou a tomar consciência do que lhe acontecera. A pancada ficou-lhe registada na mente como um cataclismo fulminante, de escala cósmica, como se a terra se tivesse dividido em duas e o céu tivesse explodido em chamas. Começou a ter um pesadelo em que se partiam címbalos e um apito muito agudo lhe estilhaçava a cabeça. Depois abriram-lhe o corpo de par a par, como quem parte um osso de galinha por superstição, afastando-lhe violentamente as pernas em direcções opostas.
- Eu fico com esta - disse uma voz. Seria Deus a levá-la para o céu, ou o diabo para o inferno?
Lucinda sentiu algo penetrá-la entre as pernas e mover-se dentro dela. À semelhança de um porco colocado num espeto, o seu corpo foi dilacerado em ambas as extremidades. Lucinda sentia-se envolvida por labaredas geladas.
Pareceu-lhe ouvir Gracie gritar ao longe.
Lucinda acordou com uma dor de cabeça do tamanho da criação. Tremia de febre. Contrariamente ao que seria de esperar, dado o seu estado de fraqueza e a gravidade dos seus ferimentos, conseguiu por-se de pé. Pôs-se a andar em ziguezague, como uma árvore vergastada pelo vento. O chão parecia estar muito inclinado. A intensa luz do luar entrava pela janela aberta. Lucinda deu um passo e tropeçou em qualquer coisa.
Sobre uma mesa perto da porta estava pousada uma lamparina, emanando apenas uma luz muito ténue. Lucinda estendeu a mão para a lamparina e alargou o pavio. Num piscar de olhos uma chama alta lambeu de negro o interior do vidro. A coisa em que tropeçara era Orange,
355estendido no chão. O sangue da cabeça dele reluziu sob a luz da lamparina. Lucinda ouviu-o gemer.
Subitamente, qualquer coisa encobriu o luar que entrava pela janela. Estava um homem lá fora, a olhar pela janela.
- Não olhes para mim! Apaga essa luz, diabos te levem! - disse o homem. O tremeluzir da luz dançava-lhe sombriamente sobre o rosto. Parecia um demónio vindo dos infernos.
- Dock? - disse ela. - Oh, Deus! Não me mate, Dock!
- Apaga, essa luz, tou-te a avisar!
Lucinda apagou a chama com um sopro, e depois atirou a lamparina na direcção dele. A lamparina embateu na janela de guilhotina e o vidro partiu-se. O ruído parecia o estilhaçar da abóbada celeste. O quarto ficou cheio do forte cheiro a querosene.
Lucinda saiu do quarto a correr e a gritar, e subiu o pátio lateral. O chão de terra inclinava-se e oscilava sob os seus olhos. Cambaleou em direcção aos degraus da frente. O Major Dunham. apareceu no alpendre com uma arma na mão.
- Por Deus, o que se passa, mulher? Estás cheia de sangue!
- Oh, Major, tamos todos mortos!
- Não saias daqui - disse o Major. - Não entres em casa, ensanguentada como estás! Deita-te nos degraus.
Para Lucinda, o mundo ficou reduzido a uns pontos brilhantes e mergulhou na escuridão.
O Major entrou na choupana e viu Orange estendido ao comprido no chão. Ao lado dele, viu um machado. Não viu Gracie em lado nenhum. Os vapores do querosene puseram-lhe os olhos a arder. Deu um passo atrás e olhou em redor, à claridade do luar.
Precisamente a norte da propriedade dele havia uma area baldia, a norte da qual ficava situada uma casa de dois andares com alguns casebres exteriores. Da janela do andar de cima, o Major viu uma mulher inclinar-se em camisa de dormir.
- Major Dunham, é o senhor? Acho que está alguém atrás do meu estábulo. Ouvi uns barulhos.
De pistola na mão, e com o coração aos pulos, o Major atravessou o terreno em direcção ao estábulo. Havia qualquer coisa no chão por trás do edifício, metade iluminado pela luz do luar, metade escondido na sombra escura.
356A mulher chamou-o.
- Vê alguma coisa? O que é, Major?
O Major Dunham olhou para o corpo que tinha a seus pés e sentiu uma náusea. Se não estivesse à procura de Gracie, nunca conseguiria perceber que era dela que se tratava, pois a cabeça tinha sido esmagada até não restar mais do que uma polpa ensanguentada. Na relva, mesmo ao lado, via-se reluzir um tijolo coberto de sangue.
O reflexo de um objecto dourado chamou-lhe a atenção: Gracie apertava numa mão uma fina correia de ouro. O Major ajoelhou-se e viu que a correia estava presa a um relógio de bolso. Gracie não possuía semelhante coisa, disso tinha ele a certeza. De onde teria vindo aquele relógio? O Major decidiu deixar tudo como estava. Talvez o Comissário conseguisse descobrir.
35734
- Por que razão te das ao trabalho de escrever uma notícia original?
- disse Hiram Glass. - Estes homicídios são todos iguais! Podias perfeitamente publicar o último texto. Bastava mudares os nomes.
- Podia dizer o mesmo acerca da página da política - replicou Dave. Não estava com disposição para brincadeiras. O Juiz Von Rosenberg não o deixara assistir ao inquérito. O Comissário Lee recusava-se a prestar declarações. Gaines exigira uma notícia de duas colunas para a tiragem seguinte, e tudo o que Dave tinha para mostrar era uma secretária cheia de rascunhos amarfanhados.
Hiram tamborilou os dedos no queixo.
- Deixa-me adivinhar: uma criada de cor que habitava nas traseiras da casa do respectivo empregador foi horrivelmente desonrada e assassinada. O Comissário Lee, após uma investigação que durou pelo menos dez minutos, prendeu o último homem de cor que foi visto a passar a menos de cem metros da propriedade. Na tiragem seguinte, informar-se-á que o negro foi libertado por falta de provas, e que a polícia não tem mais suspeitos. Fim do caso, até à próxima ocorrência. Aí a tens, escrevi-te a notícia.
- Hiram, juro por Deus que te esgano.
- Homem Branco Assassinado, isso sim, seria uma notícia! Dave sorriu, apesar de si próprio.
- E aposto que ainda assim Grooms Lee não conseguiria resolver o caso.
A porta do escritório abriu-se de par a par. Hiram esticou o pescoço.
- Aí vem a Némesis. Aparentemente refeita da febre do dengue. William Pendleton Gaines empunhava uma folha de papel.
- Senhores, apresento-vos a minha obra-prima: ”Às tendas, ó Israel!”. O que acham do título? Não é excessivamente melodramático, pois não? -Talvez seja melhor ouvirmos o texto. - Hiram recostou-se na cadeira, cruzando as mãos por trás da cabeça. Dave brincava nervosa-mente
358com o lápis, ao mesmo tempo que não parava de agitar o pé. Gaines pigarreou e começou a ler:
- ”Mais uma tragédia sangrenta a manchar a reputação de Austin! Mais um crime em grande escala cometido numa noite de luar, numa das principais avenidas da cidade, a menos de cem metros dos terrenos da universidade. E desta vez não se tratou de um, mas de dois homicídios!
Este último acto de carnificina segue o mesmo padrão macabro perpetrado nesta cidade nestes últimos meses. Em todos os casos, a vítima foi uma criada que habitava nas imediações dos seus patrões. Em todos os casos, os criminosos conseguiram fugir em completa liberdade.
isto já foi longe de mais! Temos de lhe pôr um fim, custe o que custar! Até agora, os ataques foram feitos a criadas pretas e, tanto quanto se sabe, foram perpetrados por homens pretos. Estas pessoas têm tanto direito a viver em segurança como qualquer de nós. E, se estes homicídios não forem punidos, os seus perpetradores tornar-se-ão mais destemidos. Qualquer dia, seremos surpreendidos pela notícia de que a família de algum cavalheiro foi assassinada no próprio leito!
Os responsáveis pela ordem na cidade têm-se revelado incapazes de nos oferecer protecção. Há assassinos de machadas na mão escondidos nos recantos escuros das ruas da nossa cidade. E a única coisa que se interpõe entre as nossas mulheres e filhas de pele clara e macia e estes cruéis assassinos são umas frágeis janelas de vidro!
Proponho que organizemos imediatamente uma comissão de vigilância para patrulhar a cidade de dia e de noite! Trata-se de um dever público tão premente como se tivéssemos um bando de índios comanches a ameaçar a cidade. Obriguemos cada indivíduo suspeito a explicar a sua presença. Expulsemos imediata e irrevogavelmente da cidade todos os suspeitos. Não estamos a instigar a população a tomar acções precipitadas, ou a violar a lei; apenas exigimos uma temporária tomada de poder pelos cidadãos, que podem agir de forma mais ágil e confiante do que a permitida pelo lento processo da procura de provas e toda a parafernália legal que o acompanha. Austin tem de se tornar abrasiva para todos os que não forem cidadãos honestos que nada tem a temer das investigações. Vamos incutir temor nos corações dos criminosos!
Os homens de Austin são homens corajosos, orgulhosos veteranos de guerra e filhos de veteranos, capazes de proteger as respectivas famílias! quem se esquivar às suas responsabilidades não passa de um cobarde! As tendas, ó Israel!”
359Gaines segurou na folha e ergueu o punho fechado, agradecendo os aplausos dos funcionários do jornal.
- Bem, cavalheiros, o que acham? Dave franziu o sobrolho.
- Tem a certeza de que quer publicar um apelo a formação de uma comissão de vigilância?
- Não retiro uma palavra do que disse. Chegou a hora de os cidadãos porem mãos a obra! Se tivesses mulher e filha como eu, compreenderias a gravidade da situação. Este manifesto vai sair no jornal de amanhã, juntamente com a descrição pormenorizada dos homicídios, o que me faz pensar em ti, Dave Shoemaker. O tipógrafo diz que ainda não lhe deste uma única linha! Estás à espera de quê?
Antes que Dave pudesse responder, houve uma agitação no átrio e a porta da redacção abriu-se de par a par. O Comissário Grooms Lee entrou a passos largos no compartimento, envergando o chapéu de orla dourada e a farda azul debruada a dourado, seguido de dois homens corpulentos de chapéus pretos e compridos casacos pretos. Um dos homens tinha uma barba ruiva; a do outro era preta. Seguia-os um negro esgalgado, vestindo um casaco pequeno de mais para a sua estatura, e uma adolescente de seios generosos e o cabelo de um louro quase branco.
O Comissário estava com um ar particularmente vaidoso. Os dois homens vestidos de preto exibiam expressões empedernidas. O preto e a rapariga loura pareciam ambos nervosos.
- Ora aí temos aquilo a que eu chamo um grupo heterogéneo - murmurou Hiram.
O Comissário Lee gritou do outro lado do compartimento.
- Sr. Gaines! Gostaria de lhe falar em privado.
- De que é que se trata, Comissário?
- já vai ver. Oh, e talvez queira levar o Shoemaker consigo. Espero que ainda não tenha escrito a notícia acerca do homicídio de Gracie Vance.
Gaines sentou-se à sua imponente secretária, com Dave por perto. O Comissário e os seus acompanhantes sentaram-se do lado oposto. Grooms Lee estava tão cheio de si como um gato com um canário entre os dentes.
- Bem, Comissário - disse Gaines -, quem são estas pessoas e o que se passa?
360Lee indicou os homens de preto, que tinha sentados a sua esquerda e à sua direita.
- Sr. Gaines, apresento-lhe os Detectives Hennessey e Hanna, da Agência de Detectives Nobre, de Houston. Hennessey era o da barba ruiva, Hanna o da barba preta.
-Até que enfim que a cidade contratou detectives de fora! - observou Dave.
- Não diga até que enfim, Shoemaker. - Lee sorriu-lhe com ar de escárnio. - Os detectives Hennessey e Hanna estão na cidade há mais de duas semanas.
- Ninguém me informou de nada - disse Gaines.
-Achámos melhor que chegassem sem alarido - disse Lee. - Não fazia sentido pôr um anúncio no Statesman, para afugentar todos os carteiristas e autores de pequenos delitos.
Gaines ergueu uma sobrancelha.
- E quem são as outras pessoas presentes, Comissário?
- Testemunhas materiais dos homicídios de Gracie Vânce e Orange Washington. Esta jovem é a Menina Inga Olafson, e está ao serviço do Professor Tallichet, que ensina línguas na universidade. Este indivíduo de cor chama-se Johnson Trigg. Dificilmente encontrarão alguém mais indolente, mas bons ouvidos não lhe faltam. Não é verdade, Johnson?
- Oh, sem dúvida, sim senhô! - Trigg sorriu, mostrando os dentes todos, e fez que sim com a cabeça.
Lee lançou um olhar penetrante a Dave.
- Preste atenção: por enquanto nenhum destes nomes deve vir a público. Bem, devo dizer-lhes, em primeiro lugar, que Hennessey e Hanna já estavam a fazer progressos substanciais na resolução de um dos homicídios anteriores, não posso divulgar os pormenores, quando ocorreu esta última atrocidade. Tê-los no terreno fez toda a diferença. Neste preciso instante, os homens que assassinaram Gracie Vance e Orange Washington estão atrás das grades.
Dave observou atentamente Hennessey e Hanna. ”Nobre”) Pensou, que nome para uma agência de detectives! Afinal de contas, todos os detectives eram indivíduos violentos sem escrúpulos, e delatores a soldo? Os homens abastados das cidades industriais mais a norte contratavam-nos para fazer espionagem nos sindicatos; os banqueiros e os comerciantes contratavam-nos para se infiltrarem em redes criminosas,
361de modo a seguirem o rasto a bens roubados; os políticos contratavam-nos como guarda-costas quando queriam angariar votos em zonas hostis. Numa profissão tão perigosa, ninguém esperava que eles levassem a lei à letra, O que vinha a mente quando se pensava em detectives privados era uma soqueira de ferro e não uma lupa. Os rostos de Hennessey e Hanna eram tão inexpressivos como um par de esculturas de índios em madeira. De tempos a tempos, um deles movia o maxilar para a frente e para trás, olhando em volta com ar desconfiado.
- Os responsáveis pelos homicídios foram dois indivíduos de cor
- disse o Comissário. - Dock Woods foi imediatamente incriminado por Lucinda Boddy. O cúmplice foi o seu velho amigo Oliver Townsend. Dave perguntou com desdém:
- O famoso ladrão de galinhas?
- Ladrão de galinhas? - disse Gaines.
- A fama de Oliver Townsend deve-se ao facto de nunca roubar nada com valor superior a vinte dólares - explicou Dave. - Assim, nunca é culpado de um crime de vulto, e o pior que lhe pode acontecer é ir parar a prisão municipal por delitos de pouca monta. ”Nunca te esqueças de contar as galinhas” é o lema dele. Caso lhe pareça que o valor do saque excede os vinte dólares, deixa uma para trás. Uma vez, foi apanhado com galinhas no valor de 19 dólares e 75 cêntimos no saco!
- Dave abanou a cabeça com ar incrédulo. - É um grande passo: de ladrão de galinhas a homicida à machadada. - Teria acrescentado violador, não fosse a rapariga estar presente.
- Shoemaker, senta-te e ouve com atenção - disse o Comissário.
- Lucinda viu Dock Woods do lado de fora da janela da cabana durante ou pouco depois dos homicídios. O Major Dunham informou-nos de que Dock aparecia de vez em quando a ameaçar Gracie. O Major avisou Dock para se manter ao largo, mas o preto continuava a aparecer. Esta madrugada, fomos até ao local onde Dock mora e trabalha, uma quinta a cerca de sete quilómetros da cidade. Trouxe-o para cá algemado. Entre os pertences dele, encontramos uma camisa manchada por uma quantidade razoável de sangue.
- O que diz Dock Woods acerca disso? - perguntou Dave.
- Que é inocente, claro! Qual é o negro que o não é, mesmo quando apanhado em flagrante? Mas a prova decisiva contra Dock obtivemo-la deste indivíduo aqui. Põe-te de pé, Johnson Trigg! Mal chegaram à
362cidade, os detectives Hennessey e Hanna infiltraram-se entre a população de cor, de modo a estabelecer uma rede de informadores. Aqui o Johnson revelou ser uma mina de ouro. O menino bonito do professor, por assim dizer. Isso porque és curioso que nem um rato, não és, Johnson?
- Sim, senhô. julgo que é!
O Comissário Lee sorriu de orelha a orelha e anuiu, imitando-lhe o trejeito:
- Va, agora conta a parte relevante da tua história a estes cavalheiros, Johnson. Conta-a tal como a contaste aos detectives Hennessey e Hanna. Johnson Trigg passou nervosamente os dedos pelos botões do casaco,
mas encarou Gaines nos olhos. Parecia desejoso de contar a sua história.
- Bem, senhô, foi assim. No domingo à noite, aí por volta das nove horas, vi o Oliver Townsend à porta deste edifício, sentado nos degrau. Tava a falá com outro indivíduo de cor que eu não conhecia, e disse-lhe: ”Vou matá a Gracie Vance!” Foi o que ele disse. E o outro indivíduo respondeu-lhe: ”Se fizer isso, eles apanham-lhe, tão certo como eu estar aqui.” E o Oliver Townsend disse-lhe: ”Tenho vindo a matá-las a meu bel-prazer, e ainda não me apanharam.” juro, foram estas as palavra dele.
- Mas isso é fantástico! - disse Gaines. - Acha que todos estes crimes...
- Deixe o homem acabar, Sr. Gaines. - O Comissário cruzou os braços e fez sinal a Trigg, que continuou em grande excitação.
- Bem, senhô, o outro indivíduo abanou a cabeça e foi-se embora, e passado um bocado o Oliver Townsend também. Começou a andá pela Colorado, e eu decidi segui-lo. Tava uma noite de lua cheia e ele tava andando devagá, pelo que não foi difícil segui-lo. Nunca o perdi de vista, não, até que ele finalmente chegou perto da casa de Gracie Vance, onde se encontrou com outro indivíduo. Não consegui vê bem o homem: não lhe vi a cara...
- Dock Woods - disse o Comissário. - Lucinda Boddy disse-nos que o Dock esteve lá, e sabemos que ele e Townsend são compinchas. Continua, Johnson.
- Bem, não posso dizê que era o Dock Woods, não, porque não lhe vi a cara, mas o outro indivíduo, ele disse a Townsend: ”É melhor não irmos lá esta noite, não. Está cá mais alguém a dormi”, mas Townsend disse: ”Tem de sê esta noite! Temos de matá a Gracie Vânce! Vá, toca a andá!” E esgueiraram-se junto à casa em direcção à cabana das traseira. Eu fiquei
363escondido na sombra, perguntando-me o que iria sucedê. Fiquei ouvindo uma série de barulhos esquisito, mas não percebi o que tava passando. Acho que foi mais ou menos dez minuto mais tarde que ouvi o som de vidros a partí e alguém a gritá, e decidi sair dali antes que me metesse em sarilho. Na manhã seguinte, disseram-me que Gracie Vance tinha sido assassinada, tal como Oliver Townsend tava dizendo que ia fazê, juntamente com o homem dela, o Orange. Como já conhecia os detectives Hen’sy e Hanna, achei melhor contá-lhes o que vi.
Terminada a narrativa, Johnson Trigg sentou-se.
- Dave, espero que tenhas tirado notas - disse Gaines.
- Não se preocupe - disse o Comissário. - Está tudo registado no depoimento.
Dave assentiu vagarosamente com a cabeça.
- Note-se que não há um único pormenor do crime que Sr. Trigg tenha referido que não pudesse ter ouvido da boca de outra pessoa qualquer.
- Está a contestar a testemunha, Shoemaker?
- Não, senhor, eu nunca inventava uma história destas, não! - Trigg levantou-se novamente. - E eu não tava aqui contando isto, não fosse as outras coisa que sei acerca de Oliver Townsend.
- E que coisas são essas? - disse Dave.
- Senta-te, Johnson - disse o Comissário.
- Mas, senhô, como acabou de dizer, ele ta me testando! Coisa que o cavalheiro seguramente não faria se soubesse que ouvi Oliver Townsend dizer no Black Elephant que ia matá Rebecca Ramey, e diabos me levem se nessa mesma noite ela não foi assassinada.
Dave riu-se zombeteiramente.
- Estás enganado. Quem foi assassinada não foi Rebecca Ramey, mas sim a filha dela, Mary.
Trigg abanou a cabeça.
- Bem, talvez eu teja baralhando. Mas não tou a mentí! Oliver Townsend atacou Rebecca Ramey e a filha, e eu ouvi-o falá disso antes.
- Se sabias que Townsend tinha matado Mary Ramey, e ouviste dizer
que estava a planear matar Gracie Vânce, por que não foste avisá-la, a ela ou a polícia? - perguntou Dave.
- Bem... - Trigg encolheu os ombros. - Eu não tinha a certeza que ele matara a pequena Ramey, pois não; só tava suspeitando. Foi por isso que o segui no domingo à noite, depois de o ouví dizê que tencionava
364matá Gracie, para ver se ele ia mesmo fazê isso. Não havia maneira de prová se ele ficasse a saber que eu tava seguindo a ele.
Dave olhou para Hennessey e Hanna, que mantinham as mesmas expressões empedernidas.
- Conta lá, Trigg: algum destes detectives te pressionou para contares esta história? Ou ameaçaram-te?
- Não, senhô, nem pensá!
- Ofereceram-te alguma coisa? Uísque? Dinheiro?
- Bem...
- Isto é ridículo! E consideram este indivíduo uma testemunha?
- Dave abanou a cabeça. - Talvez não fosse ma ideia por uma trela mais curta aos seus dois cães de caça, Comissário. Em primeiro lugar, Dock Woods tem um álibi. Falei com o fazendeiro para quem ele trabalha. Ele viu Dock ir para a cama as dez da noite, e acordou-o às quatro da madrugada para ir lavrar a terra.
- O homicídio ocorreu à uma da manhã - disse o Comissário. Tempo de sobra para Dock vir de cavalo até à cidade e voltar.
- Sem acordar o fazendeiro?
- E o sangue na camisa dele?
- Trata-se de sangue do próprio Dock. O fazendeiro disse-me que ele se cortou na semana passada e manchou a camisa.
Gaines ergueu-se da secretária.
- Ora, Dave, pára com isso! Acho a história do Sr. Trigg óptima. Vamos publicar este depoimento, verbatim.
- Mas, Sr. Gaines...
- Acho que devíamos colocar o nome da agência de detectives no cabeçalho. - ”Os Detectives da Nobre cumprem a sua missão!” O que acham?
Dave afundou-se outra vez na cadeira, com a cabeça a abanar.
- Podes ir-te embora, johnson - disse o Comissário, olhando-o fixamente. Trigg saiu obedientemente do compartimento.
Gaines voltou a sua atenção para a rapariga, que mexia nervosamente no cabelo. Ele sorriu-lhe.
- E o que tem a outra testemunha a dizer, Comissário?
O Comissário recostou-se novamente na cadeira com ar de alguém que acabou de se recompor depois de ter perdido momentaneamente o equilíbrio.
365- A Menina Olafson pode explicar de quem era a corrente de ouro e o relógio de bolso que Gracie tinha na mão. O relógio é dela.
A Menina Olafson tinha um sotaque sueco.
- Trata-se do relógio do meu pai - disse ela. - Fiquei com ele depois da sua morte.
- E como foi parar às mãos de Gracie? - Perguntou Gaines. O Comissário respondeu.
- Achamos que Gracie o deve ter arrancado ao homem que a assassinou, ao tentar defender-se.
- E como é que o relógio foi parar às mãos desse homem? - disse Dave.
- A única explicação que me ocorre é que tenha sido roubado do meu quarto - disse a rapariga com a mão no peito. - Uso quase sempre o fio ao pescoço. Num dos dias da semana passada, devo tê-lo deixado no Meu quarto, porque andei à procura dele e não o encontrei. Normalmente a janela fica aberta. Se o tivesse deixado em cima da cómoda, qualquer pessoa poderia ter entrado e tê-lo roubado. Quando li no jornal que tinham encontrado um relógio de ouro com uma corrente, fui imediatamente à polícia e pedi para mo mostrarem. Era o meu relógio!
- Aqui está ele. - O Comissário exibiu um relógio de ouro trabalhado preso a uma elegante corrente. - Parece-nos que a Menina Olafson deve ter razão, o assassino de Gracie Vance deve ter roubado o relógio da casa dos Tallichet alguns dias antes e tinha-o consigo quando atacou Gracie. Gracie arrancou-lho. Quando o Major a encontrou, tinha-o bem preso numa das mãos. Com certeza que nenhum dos presentes quer imaginar o que poderia ter acontecido se Menina Olafson estivesse no quarto quando o criminoso lá entrou para lhe roubar o relógio...
- O ladrão levou mais alguma coisa? - perguntou Dave.
- Só me desapareceu o relógio - disse a rapariga. - Mas também não tenho mais nada de valor semelhante. O relógio é uma recordação muito importante para mim. Quase nunca o tiro, mesmo ao deitar. - Abanou a cabeça. - Mas devo ter-me descuidado e deixei-o no quarto. Como poderia alguém roubá-lo do meu pescoço?
- Sem dúvida que teria sido difícil - disse Gaines, aproveitando a oportunidade para lhe observar descaradamente o peito. A conversa estava a fazer-lhe recordar outra coisa qualquer, embora não soubesse exactamente o quê. - Posso ver o relógio, Comissário?
- Com certeza.
366Era sem dúvida um objecto bonito, mas não era uma peça de relojoaria de qualidade superior. O relógio que desaparecera ao seu pai era consideravelmente mais valioso. Gaines pestanejou. Era isso que aquela conversa estava a fazer-lhe lembrar: o relógio desaparecido do Pai Gaines! Também este desaparecera sem que ninguém tivesse percebido exactamente como ou quando. Seguramente não poderia ter sido roubado ao pai, da mesma forma que não teria sido possível retirá-lo do pescoço da Menina Olafson sem que ela tivesse dado conta. Era uma coincidência curiosa, esta dos relógios desaparecidos. Veio-lhe à cabeça a pega, o pássaro que rouba objectos brilhantes para enfeitar o ninho. Sabia que havia pessoas que eram uma espécie de pegas humanas, com uma atracção por objectos reluzentes...
De súbito, voltou a ocorrer-lhe uma antiga suspeita, tão rapidamente que apenas ficou registada na sua mente como uma ideia fugaz e absurda: não, não era possível uma pega cega sentir-se atraída por jóias douradas!
Gaines poderia ter feito uma pergunta muito simples a rapariga sueca, e a resposta poderia ter despoletado uma complicada sequência de ideias; mas a pergunta não chegou a tomar forma na sua cabeça, evaporando-se antes de conseguir chegar-lhe à boca.
Gaines poderia ter perguntado a Inga Olafson se ela conhecia o Dr. Fry, o Frenólogo Cego.
E ela teria respondido que sim, pois essa mesma pessoa jantara com o seu patrão na semana anterior, tendo-se oferecido para a examinar gratuitamente em seguida. Conseguira dizer várias coisas muito curiosas e interessantes acerca dela apenas com base no que descortinara ao perscrutar-lhe a cabeça com as mãos.
36735
Eula Phillips mudou-se novamente para Austin na sexta-feira, 2 de Outubro.
Will soube a data da sua chegada porque, sempre que passava diante dela, examinava a residência dos Phillips de forma atenta, conquanto discreta. Ocasionalmente, entrevira Delia através das janelas e, devido ao facto de eles gostarem de se sentar no alpendre durante a tarde, também já conhecia de vista o Sr. e a Sra. Phillips, os sogros de Eula.
Certo dia, travou conversa com uma mulher de cor que vivia com o filho na pequena casa nas traseiras da propriedade. Estava a pendurar a roupa no estendal, e pareceu a Will um gesto perfeitamente inocente fazer uma pausa e trocar umas palavras com ela. Chamava-se Sallie Mack, ficou ele a saber, e o filho chamava-se Alec.
- Suponho que esteja encarregada de lavar a roupa da família Phillips?
- observou Will.
- Sim, senhô. Faço isso.
- Então calculo que va ter mais trabalho em breve. Ao que sei, Jimmy Phillips e a esposa vão regressar a Austin. - Era uma observação inofensiva, mas o coração bateu-lhe com força no peito.
- É verdade, sim senhô. É amigo do jovem Sr. Phillips?
- Conhecido. Sabe quando é que eles voltam?
- Acho que tão esperando por eles para sexta, senhô. Vêm de Hutto no comboio da tarde.
Will levou a mão ao chapéu e prosseguiu caminho. Mal voltou costas a Sallie Mack, não conseguiu reprimir um sorriso.
Nessa sexta-feira, passou pela residência Phillips várias vezes. Não deu conta de nada a não ser já ao fim da tarde, quando avistou um grande baú na varanda entre a casa principal e os anexos. A porta de rede do anexo estava aberta, com um tijolo a servir de calço. A Sra. Phillips saiu com ar atarefado da casa principal, atravessou a varanda com uma pilha de roupa de cama lavada nos braços, e desapareceu no interior do anexo.
368Momentos mais tarde, saiu um jovem da mesma porta e dirigiu-se à varanda. Tinha as mangas da camisa arregaçadas. O seu cabelo negro e ondulado estava despenteado. Encostou-se a uma coluna, a fumar um cigarro. Era parecido com Delia. Will tinha que admitir que Jimmy Phillips era atraente, embora fossem notórios no seu rosto jovem, até do outro lado da rua, sinais de alguém que leva uma vida desregrada.
Will ouviu um bebé chorar. Momentos depois, Eula saiu para a varanda com o filho nos braços. Tinha o cabelo em desalinho e o rosto cansado. Ainda assim, o simples facto de a ver alvoroçou o coração de Will. Eula atravessou a varanda e disse qualquer coisa a Jimmy, que pareceu ignorá-la.
Subitamente, o olhar de Jimmy recaiu sobre Will. O facto de ter sido detectado pô-lo em movimento. Em vez de voltar costas e caminhar noutra direcção qualquer, Will começou a atravessar a rua em ângulo oblíquo, mantendo o rosto voltado para a residência dos Phillips. De cada vez que olhava de relance para a varanda, via Jimmy com os olhos postos nele. Will procurou manter o rosto inexpressivo e olhou directamente para Eula. Os olhos de ambos cruzaram-se. Will viu nos olhos dela um brilho de reconhecimento e de surpresa, mas nenhuma outra reacção. Cumprimentou o casal, levando a mão ao chapéu, e prosseguiu caminho. Afiançou a si próprio que era um gesto perfeitamente inocente: um gesto de boa vizinhança.
Quando dobrou a esquina, ouviu Jimmy perguntar acusadoramente à mulher, em voz alta:
- Quem diabo é aquele indivíduo? De onde é que o conheces? Will sentiu o rosto a escaldar. Afastou-se apressadamente.
- Malditos pedreiros! Malditos sindicatos! Malditos políticos! Malditos empreiteiros! -Joseph Lee levantou-se abruptamente da mesa da sala de jantar com um ar carrancudo.
- Não devia deixar-se incomodar dessa maneira, Pai - disse Grooms Lee. Tinha despido o uniforme de Comissário e posto uma gravata. O pai gostava de uma certa formalidade ao jantar.
- Incomodar-me? - disse o velhote. - Ah! Nenhum deles me incomoda, desprezo-os, é tudo. Tenho setenta e cinco anos, filho, e já tenho idade suficiente para não perder horas de sono com as idiotices dos Outros. Que arranjem as questiúnculas que quiserem entre si! Quem iria pensar que erguer um edifício provocasse tanto alarido?
369Joseph Lee era da mesma geração que o William Gaines Sénior. Vivera em Austin durante cinquenta anos. A sua nomeação para a Comissão de Construção do Capitólio era a cereja a coroar o bolo no final de uma longa carreira ao serviço da comunidade e do seu partido. O generoso salário que recebia em troca era um dos mais elevados do governo estadual, mas o cargo implicava andar de espingarda em punho dentro de um comboio interminável, cheio de trapaceiros peritos em embustes e em estratagemas desonestos.
- Queres saber da última? - uivou.
O filho já tinha muito em que pensar, mas anuiu respeitosamente.
- Consta por aí que um dos principais empreiteiros sofreu um desfalque de mais de cinco mil dólares de fundos do estado por um dos seus próprios empregados. E sabes como é que o indivíduo descobriu? Esse é que é o verdadeiro escândalo! Sem que um tivesse conhecimento da presença do outro, empreiteiro e empregado fizeram uma visita a casa da viúva May Tobin no mesmo dia. Depois de usufruir dos serviços da casa, o autor do desfalque desatou a vangloriar-se à respectiva acompanhante dos cinco mil dólares que subtraíra ao seu patrão, por coincidência, o empreiteiro ia a passar no corredor e ouviu tudo. Depois de grande rebuliço, o empreiteiro perseguiu o trapaceiro pela Avenida do Congresso acima, ambos em roupa interior! Em consequência, o vigarista devolveu o dinheiro e saiu da cidade, e o empreiteiro está de bico calado. - Joseph Lee fez um riso escarninho. - Agora diz-me: o que estavam aqueles dois indivíduos a fazer numa casa daquelas? O vício nesta cidade atingiu proporções nunca vistas. Tem de se fazer alguma coisa. Filho, tu és o Comissário.
- Pai, de momento, não tenho mãos a medir.
- Por causa destes homicídios, presumo. Mas não vês que está tudo ligado? Quando os pequenos vícios são permitidos, surgem outros piores. É uma autêntica caixa de Pandora. Faz uma limpeza em Guy Town! A única maneira de impedir a propagação do vício é mandar fechar os locais que lhe são propícios.
- Teria todo o prazer em dar ordem de fecho ao Black Elephant.
- O Elephant ficava a menos de dois quarteirões a sul da elegante casa da Rua Hickory onde os Lee moravam. Para Grooms Lee, era exasperante deitar-se na cama à noite a pensar na quantidade de crimes que, depois de uns goles de uísque, deviam estar a ser arquitectados naquele antro de pretos, a poucos passos de sua casa.
370- Acabar com o negócio de Hugh Hancok seria um começo - concordou o pai.
- Mas mandar fechar a casa de May Tobin seria um caso muito diferente. O mais provável era encontrar por lá um ou outro peixe graúdo. Joseph Lee abanou a cabeça.
- Tem de se fazer qualquer coisa quanto a estes homicídios. já há seis cadáveres, a começar pelo daquela jovem na passagem de ano, e ainda não temos uma única condenação, nem uma única medida para limpar a cidade do vício. As pessoas já comentam, e não apenas as de cá. Chamam-lhe ”a vergonha de Austin”. Se queres ter uma carreira bem sucedida na política, em particular ao nível estadual...
- Pai, os detectives de Houston estão no terreno. Após o homicídio de Gracie Vance, fiz duas detenções no espaço de vinte e quatro horas.
- - Mas tu próprio me disseste que não é provável que a acusação tenha pés para andar. Leste o editorial do Gaines do outro dia? ”Às tendas, ó Israel!” O indivíduo quer vigilantes nas ruas! Afirma abertamente que não se pode confiar na polícia para proteger as senhoras durante a noite.
- Veremos o que ele diz daqui a uns dias, quando eu prender o homicida de Mary Ramey.
- Ah, a miúda de cor que foi arrancada aos braços da mãe e desonrada na lavandaria do Sr. Weed. Bem, será um começo! As pessoas vão ficar aliviadas por ver esse monstro conduzido à justiça. Presumo que se trate de um indivíduo de cor?
- Claro. Um que trago debaixo de olho há já algum tempo.
Joseph Lee sorriu ao olhar para o filho, que naquele momento lhe parecia um rapazinho. Desde pequeno que Grooms tinha mau perder: quanto menos certezas tinha, mais fazia aquele ar de desafio. Tinha o feitio da mãe. Sarah falecera ao dar a luz; Grooms sempre fora especial para o Pai Lee, por ser tudo o que lhe restava da esposa. O seu desempenho nos Rangers fora motivo de grande orgulho para Joseph Lee.
Agora estava a ser duramente posto a prova. O Presidente da Câmara, o Procurador Público, o Statesman, todos os cidadãos de Austin, estavam de olhos postos no seu filho, na expectativa de que fosse capaz de repor a ordem e a justiça. A incumbência parecia estar a ser superior às suas capacidades; por vezes, o Pai Lee tinha dúvidas de que Grooms estivesse à altura das suas responsabilidades. Nunca exprimira abertamente semelhante dúvida mas, apesar de tudo, o filho apercebia-se dela. Fosse
371Grooms Lee um homem de natureza diferente, e o desejo de agradar ao pai poderia ter constituído um estímulo para encontrar uma resolução satisfatória; mas Grooms Lee assemelhava-se aquele tipo de cavalos que escoiceiam quando espicaçados, pelo que era muito provável que alguém fosse espezinhado pelo caminho.
Grooms Lee não fora completamente sincero quando dissera ao pai que estava iminente uma prisão pelo homicídio de Mary Ramey. Ainda não dispunha de provas para incriminar Alec Mack, mas podia voltar a interrogá-lo. Os detectives de Houston andavam a investigar Alec desde o dia em que tinham chegado. Não tinham descoberto qualquer indício novo, nem ninguém que testemunhasse contra ele, mas sugeriram ao Comissário que o colocasse sob prisão preventiva em qualquer dos casos, com base em acusações falsas, se necessário. Uma vez atrás das grades, Hennessey e Hanna seriam capazes de lhe extrair uma confissão. Os dois detectives garantiram ao Comissário que já o tinham feito muitas vezes, em circunstâncias semelhantes. Eles sabiam obrigar um homem a confessar os seus crimes.
Sabia-se que Alec Mack morava com a mãe. Lee podia tê-lo detido aí, mas os detectives desaconselharam a ideia. A pequena casa de Sallie Mack ficava situada imediatamente atrás da residência da família do Sr. James Phillips, e à distância de uma viela da propriedade dos Hirshfield; não havia razão para perturbar a paz desses respeitáveis membros da comunidade. Hennessey e Hanna aconselharam o Comissário a procurar Mack a saída do Black Elephant, local onde seguramente poderia ser encontrado numa noite de sábado, usando um pretexto qualquer para o apanhar desprevenido. Também aconselharam o Comissário a esperar até depois da meia-noite, de modo a apanhar Mack o mais embriagado possível. Era difícil dominar um homem forte pouco alcoolizado; mas era fácil dominar um homem forte caído de bêbedo. O Comissário também iria necessitar de um pretexto jurídico para prender Mack: ora, uma acusação de embriaguez e conduta desordeira serviriam perfeitamente para esse propósito.
O avançado da hora também seria conveniente para poupar os detectives a olhares curiosos enquanto escoltassem o acusado pelos vários quarteirões da cidade, em direcção à prisão. Hennessey e Hanna tencionavam tornar aquela pequena caminhada inesquecível para Alec Mack.
372O Comissário pôs de lado todos os escrúpulos que pudesse sentir quanto aos métodos propostos pelos detectives. Tal como Gaines proclamara no seu editorial, era chegada a hora de pôr de lado a ”parafernália” jurídica. A crise exigia medidas mais eficazes.
Eram quase duas da manhã quando o Comissário entrou no Black Elephant, sozinho. Deixou-se estar de braços cruzados encostado à ombreira da porta, perscrutando a animada clientela, até avistar Alec Mack, que estava sentado ao balcão. Alec olhou para tras com os olhos vidrados, e depois desviou a cara. O Comissário Lee chamou-o. Alec não respondeu, nem mesmo quando Lem Brooks lhe deu com o cotovelo do outro lado do balcão.
Hugh Hancock entrou no bar com os seus passos miudinhos, vindo do compartimento das traseiras.
- Algum problema, Comissário?
- Não, Tenho apenas um pequeno assunto a tratar com um dos teus clientes. Só que esta noite ele parece estar um pouco surdo. Alec Mack! Vem cá, cão! Vês? Nem sequer vira a cabeça.
Hancock foi até junto do balcão. Depois de algumas palavras de encorajamento segredadas por Lem Brooks e de algumas cotoveladas de Hancock, Alec deixou-se escorregar do banco e encaminhou-se devagar até a porta. O Comissário achou muito cómica a forma como o negro baixinho empurrava aquele negro corpulento à sua frente. O alegre ruído do bar dera lugar a um murmúrio soturno.
- O que é que se passa contigo, Alec Mack? Tens algodão nos ouvidos?
- O que qué de mim? - Alec articulou as palavras com dificuldade. Desde o homicídio de Mary Ramey que começara a beber. O terror de ser perseguido pelos cães continuava a atormentá-lo nos seus pesadelos. Rebecca estava num tal estado, que se recusava a recebê-lo. - O que é que qué? - repetiu ele com voz trémula.
O Comissário Lee achava divertido ver um homem daquela estatura tão amedrontado. A experiência ensinara-lhe que os homens de cor eram todos cobardes. Nunca conhecera nenhum que não tivesse medo dele.
- Nada que deva preocupar-te, Alec. Tivemos uns problemas com uns pretos ali ao fundo da rua, e preciso de ti para mos identificares. Podes fazer-me isso, não podes? É sempre útil dar uma pequena ajuda à polícia. Um dia destes pode vir a contar a teu favor.
- Por amô de Deus, vai lá - disse Hugh Hancock, dando outro abanão a Alec.
373Alec fez um ar carregado e saiu do bar atrás do Comissário. Lee agarrou-lhe no braço e os dois desceram a rua em direcção a leste.
A prisão ficava para norte, subindo a Rua Neches, mas Lee tinha as suas razões para fazer um desvio de um quarteirão. Caminhar numa direcção diferente da da prisão faria com que Alec fosse apanhado desprevenido. Havia menos casas no percurso que o Comissário tinha em mente, e logo menos pessoas que pudessem ser perturbadas pelo ruído no silêncio da noite. Pelo contrário, se se dirigissem directamente a Neches, no espaço de um ou dois quarteirões teriam de passar diante da casa do próprio Comissário, onde o seu pai dormia profundamente.
- Para onde me leva, Comissário? - Alec olhava com ar turvo para cima e para baixo da Rua Pecan. Ainda havia alguns bares abertos, mas não se via praticamente ninguém na rua.
- só falta mais um quarteirão, em direcção à Rua Red River - disse o Comissário. - Vês? Falta pouco, cuidado, não tropeces. E agora víramos à esquerda. Depois sempre em frente. Vês aquela rua deste lado da calçada? Ali estão os homens a que quero que dês uma vista de olhos.
Entraram na viela. Ainda sob o efeito do álcool, Alec perscrutou com dificuldade a estreita rua imersa na escuridão.
- Não tou vendo ninguém - disse ele. Nesse preciso momento, sentiu qualquer coisa cair-lhe sobre a cabeça, apertando-lhe violentamente o pescoço.
Viu vários homens precipitarem-se na sua direcção. Alec não sabia quantos. A corda que lhe tinham posto em volta do pescoço apertou-se ainda mais. Vergaram-no e começaram a dar-lhe pontapés.
- Ha uns tempos, disse que te ia manter debaixo de olho. Lembras-te de to dizer, Alec Mack? - grunhiu o Comissário. - Fugiste daqueles cães depois de teres assassinado Mary Ramey, julgaste que escapavas pondo pó de assa-fétida nos pés. Fugiste de mim, preto estúpido, e eu vou dar-te um tiro!
Continuaram a espancá-lo até Alec ficar imóvel. Depois obrigaram-no a pôr-se de pé puxando-o pela corda que tinha enrolada ao pescoço. Alguém o golpeou no rosto com o cabo de uma pistola. Depois sentiu outra pancada funda nas costas. Em seguida, quem falou não foi o Comissário, mas dois homens, ambos com sotaque irlandês.
- Põe-te a andar, preto!
- Para onde é que me tão levando? - suplicou Alec.
374- O que te parece? Até à árvore mais próxima. Vamos enforcar-te por teres violado aquela miúda.
Arrastaram-no pela Rua Red River acima. Não se via nenhuma luz acesa nas raras casas espaçadas. Na Rua Ash viraram à esquerda e prosseguiram até chegarem a um pequeno jardim com muitas árvores robustas, que ficava diante da Capela de Wesley.
- Aqui há árvores.
- Isso mesmo; há por aqui ramos resistentes de sobra para o enforcar. O que dizem de o deixarmos aqui mesmo diante da igreja dos pretos?
- Excelente ideia! Deixamos o cadáver aqui pendurado para os amigos pretos poderem cuspir em cima dele antes de irem rezar as suas orações de domingo!
Alec tentou agarrar a corda que o asfixiava. Conseguiu enfiar as pontas dos dedos entre a corda e a laringe.
- Oh, Senhô! Por favô, não me enforquem! Um dos homens agrediu-o no rosto.
- Preto, se queres falar, fala dos teus pecados. Conta-nos como é que violaste aquela miúda. Como foi enfiares o teu coiso num buraquinho daquele tamanho? Dizem que a rasgaste toda.
Obrigaram Alec a colocar-se de joelhos e voltaram a apertar a corda.
- Estás preparado para confessar? Diz que sim com a cabeça e nós deixamos-te falar. Senão, atiramos esta corda ao ramo mais próximo e puxamos-te até não conseguires tocar com as pontas dos pés no chão.
Alec debateu-se para alargar o nó. Ouviu alguém a advertir para fazerem menos barulho. Ergueu os olhos para o alto e viu a outra ponta da corda voar pelo ar e passar por cima de um ramo sobre a sua cabeça. Tomado pelo pânico, deu um pulo e começou a correr. A corda desprendeu-se. Correu pelo meio da erva alta e dos arbustos; tropeçou na raiz de uma árvore, caiu e ergueu-se num ápice. Os homens corriam atrás dele, gritando ”eias” de entusiasmo. Era como ser perseguido pelos cães, só que muito pior. Os cães tinham mandíbulas, podiam mordê-lo e fazê-lo sangrar, mas aqueles homens queriam enforcá-lo!
À distância, sobrepondo-se ao bater do seu coração, ao ruído dos ramos a partir-se, e aos gritos dos seus perseguidores, Alec ouviu um ladrar fantasmagórico. Eram os cães fantasma! As mulheres assassinadas! Agora a pequena Mary Rainey e Gracie Vance encontravam-se entre elas, e provavelmente também Orange Washington. Não se assemelhava ao
375ladrar dos cães de caça em matilha: as vozes vinham de todos os lados, de todas as direcções. Alec imaginou cada uma das mulheres à porta da casa onde morrera, entoando em uníssono uma canção fúnebre e uivando à lua. Mas porque motivo ouvira aquele ruído fantasmagórico naquele momento? Por que não o teriam avisado mais cedo? Parecia que estavam a troçar dele...
Depois apercebeu-se da verdade: os cães-fantasma não estavam a ladrar para o advertirem; era um lamento - era O seu modo de lhe darem as boas-vindas. Em breve, Alec estaria entre eles. Seria apanhado, era impossível correr mais depressa que todos aqueles homens, tal como fora impossível escapar aos cães e, quando o apanhassem, iam enforcá-lo por um crime que ele não cometera. Morreria inocente, como a pequena Mary Ramey. Deixaria o mundo dos vivos para se juntar ao dos mortos...
Quando chegaram à outra extremidade do parque, um dos homens conseguiu agarrar a ponta da corda que deslizava atrás de Alec e deu-lhe um esticão. A corda puxou Alec violentamente para trás. Ter-lhe-ia partido o pescoço não fosse ele ter as pontas dos dedos desesperadamente colocadas de permeio. Assim, foi projectado no ar e caiu de costas. Ficou sem ar nos pulmões. Enquanto estava paralisado contra o chão duro e frio, Alec ouviu o clamor dos cães-fantasma, ecoando por entre as estrelas, lá no alto.
Os homens precipitaram-se para ele, rodeando-o, aos gritos e aos pontapés.
É agora que vais morrer, preto! Vamos enforcar-te, ó se vamos!
Alec rolou pelo chão de modo a ficar de barriga para baixo, tentando proteger-se dos pontapés. Um dos homens pisou-lhe o pescoço, afundando-lhe o rosto na lama. Outros dois torceram-lhe os braços por tras das costas.
- Onde é que estão as tenazes? - disse o Comissário. Momentos depois, Alec sentiu o frio do metal passar-lhe pelos punhos e ouviu as algemas fecharem-se num dique.
Tiraram-lhe o pé de cima do pescoço. Alec debateu-se para libertar os pulsos. Agora estava completamente indefeso. Não havia nada que pudesse fazer para os deter. Cuspiu o sangue e a lama que tinha na boca e tentou gritar. Apenas conseguiu emitir um som rouco e áspero, que fez o Comissário dar uma gargalhada.
376Do outro lado da rua, acendeu-se uma luz. Apareceu um homem no alpendre com uma lamparina numa mão e uma pistola na outra.
- Que diabo se passa aí? - gritou.
Grooms Lee perscrutou o homem por momentos e depois ripostou. Assuntos da polícia!
É o senhor, Comissário?
Sim. Agora volte para dentro!
O que é que se passa? Acordou a minha mulher com esta algazarra. Pregou-lhe um susto de morte.
-Temos aqui um homem que resistiu à ordem de prisão por embriaguez e comportamento desordeiro, e que vai para o calabouço. já está sob controlo.
Puseram Alec de pé. Ele começou a soluçar descontroladamente. os homens taparam o nariz com as mãos. Alec defecara nas calças.
A prisão da cidade ficava a poucos quarteirões de distância. O Comissário Lee, Hennessey e Hanna, e dois polícias sem uniforme, arrastaram Alec pelas ruas, em progressão lenta. Por momentos, Alec deixava-se ir obedientemente, depois começava a escoicear como um cavalo bravo. Apesar da corda que trazia ao pescoço e das algemas, deu-lhes bastante luta. Estavam todos exaustos quando chegaram a cadeia e o arrastaram para o primeiro andar.
Não lhe tiraram as algemas. Tiraram-lhe a corda do pescoço, que substituíram por uma coleira de ferro, e saíram. A coleira estava presa por uma corrente a um anel de ferro fixo no chão. Era tão curta, que Alec não conseguia pôr-se de pé. Tinha de se deitar nas pedras geladas ou ficar de cócoras. Estava embriagado, exausto e cheio de cortes e feridas. Fedia, do cheiro da sua própria urina e das suas fezes. Tinha medo de se deixar dormir. E se tentassem enforcá-lo durante o sono?
Mas Alec Mack não precisava de ter receio de adormecer durante as horas que se seguiram. Alguns minutos mais tarde, os corpulentos irlandeses reapareceram, dentro dos seus compridos casacos pretos. Hennessey e Hanna olharam Alec como se ele não passasse de uma barata prestes a ser espezinhada, e ambos colocaram as soqueiras de ferro.
37736
Por muito difícil que fosse de definir, Will Porter dispunha finalmente daquele atributo que toda a gente considerava que um jovem devia ter: um emprego. Não se tratava de um trabalho a meio tempo, esporádico e transitório, como o que tinha na tabacaria de Harrell: não, este era um emprego genuíno, daqueles empregos respeitáveis que exigiam sapatos engraxados e gravata.
Como a maior parte dos acontecimentos da sua vida, também este lhe caíra praticamente do céu. Fosse na farmácia ou na tabacaria de Harrell, Will sempre fizera um pouco de contabilidade nos locais onde trabalhara; aparentemente, esse facto qualificava-o para ser contratado como aprendiz de guarda-livros pela reputada firma de agentes imobiliários Maddox Bros. & Anderson. Anderson era Charles Anderson, pai de um companheiro de serenatas e o mais recente patrono de Will.
O trabalho não era difícil nem particularmente exigente; o ambiente no escritório era agradável; e o salário - cem dólares mensais - era indiscutivelmente chorudo. O escritório tinha a vantagem acrescida de ficar situado no edifício do Statesman. Will podia convidar Dave Shoemaker para almoçar quando bem lhe apetecesse, e até podia pagar a conta.
Ainda assim, Will ressentia-se com a mudança no seu estilo de vida. Estava habituado a ter o tempo todo para si, mesmo que fosse para desperdiçar a maior parte. Subscrevia, juntamente com outros amantes do ócio, uma concepção do tempo como um plácido oceano que se estendia infinitamente em todas as direcções - talvez entediante, mas espaçoso. Um homem com um emprego via-se subitamente encalhado em terra firme e seca, desolado com a pequena profundidade do tempo livre onde mergulhava os pés.
Havia uma irrevogabilidade perturbadora no facto de aceitar um emprego a sério. Depois de se ir parar ao interior da barriga da baleia, não havia saída, a não ser o suicídio ou o alcoolismo inveterado. Will estava destinado a tornar-se uma pessoa respeitável. Em seguida, viriam
378os aumentos de salário e a ascensão na carreira, depois o casamento, uma pequena casa confortável, uma família... e tudo isso apenas porque, a dada altura, um indivíduo se fartara de estar sempre sem dinheiro quando toda a gente à sua volta contribuía para pagar um jarro de cerveja.
O emprego ajudava-o a distrair-se um pouco de Eula Phillips. Mas também implicava não estar livre para ir ter com ela a qualquer momento, caso ela marcasse um encontro. Porém, a dura realidade era que, desde aquela ditosa tarde em casa de May Tobin, Eula não voltara a contactá-lo.
Will verificava todos os dias se tinha correio; ela não lhe enviara mensagem alguma. Claro que, agora que morava novamente em Austin, e apenas a três quarteirões de distância, Eula podia entregar um recado em mão, ou pedir esse favor a Delia, ou dar uma moeda a um miúdo qualquer para o fazer. Mas Will não recebera qualquer mensagem.
A que se deveria aquele silêncio? Will dizia a si próprio que Eula devia estar muito ocupada a por a casa em ordem depois da mudança. Mas quantos dias seriam necessários para desempacotar um baú? Talvez o marido andasse mais desconfiado do que era habitual, e vigiasse todos os seus movimentos; talvez o bebé tivesse adoecido e carecesse de cuidados constantes; talvez a própria Eula tivesse apanhado a febre do dengue. Ainda assim, não seria possível enviar-lhe um bilhete a dizer que não podia vê-lo durante uns tempos? Não precisava de dizer mais nada, nem de conter destinatário nem assinatura; seria suficiente para Will perceber o que se passava. Um simples pedaço de papel enfiado por baixo da sua porta com as palavras Não posso ver-te durante uns tempos, e a mente de Will teria descanso. Mas Eula não dissera uma palavra. Will pensou em todas as justificações imagináveis, excepto na possibilidade de ela ter, pura e simplesmente, perdido o interesse por ele.
Repetidamente Will procurava lembrar-se da expressão exacta do rosto de Eula no dia do seu regresso a Austin, quando a avistara na varanda e cruzara o olhar com ela. Eula reconhecera-o; parecera surpreendida. Teria expresso outro sentimento qualquer: remorso, saudade, antipatia, aversão, esperança? Não: apenas reconhecimento e surpresa. Não houvera tempo para muito mais; o momento desaparecera num ápice. Aquele olhar fora tão indecifrável como um fugaz vislumbre da esfinge.
já a expressão de Jimmy Phillips fora bem menos ambígua. Tendo esse facto em consideração, Will hesitava em passar a pé diante da residência
379Phillips de forma muito notória ou repetida. Contudo, tratava-se de uma rua pública e, agora que tinha um emprego, era razoável - e mesmo necessário - ele passar em frente da referida casa pelo menos duas vezes por dia, na ida para o escritório e também no regresso. De vez em quando, via de relance o Sr. e a Sra. Phillips, Salie Mack - a lavadeira -, Delia, e mesmo Jimmy, mas nunca Eula. Chegado o mês de Outubro com os seus dias mais frescos, a porta que dava do seu quarto para a varanda estava sempre fechada; ele não podia sequer ter a esperança de lhe ouvir a voz. Will imaginava-a lá dentro, provavelmente sentada numa cadeira de balouço, a entoar canções de embalar com o bebé ao colo, e sentía-se absurdamente ciumento da criança.
À noite, sozinho no quarto, escrevia-lhe. Redigiu cartas interessantes e divertidas, do género das que escrevia aos amigos, mas ao relê-las as piadas pareciam-lhe patéticas e os jogos de palavras pueris, e rasgava-as. Escreveu cartas compridas e românticas que punham o seu coração a nu, mas quando as relia corava de embaraço: teria algum amante na história do mundo declamado semelhantes disparates? Os seus melhores esforços faziam-lhe lembrar os romances que as mulheres liam no comboio e deitavam fora antes de se encontrarem com o marido na estação. E pensar que ambicionara um dia ser escritor!
Will poderia ter escrito um romance com todo o papel que gastou na tentativa de escrever uma carta a Eula Phillips.
Por fim, certa tarde em que teve um momento livre no meio do trabalho e não conseguia desviar o pensamento dela, escrevinhou a mais simples das mensagens num pedaço de papel timbrado:
Quando posso voltar a ver-te?
Colocou o bilhete num sobrescrito e fechou-o. Escreveu Delia no exterior. Ao regressar a casa nessa tarde, atreveu-se a entrar no pátio dos Phillips e a subir até à janela do quarto que sabia ser o de Delia, e fez deslizar o sobrescrito para o interior. Com o coração aos pulos, recuou de novo para a estrada. Ao passar pelo atalho que ficava nas traseiras da propriedade, viu Sallie Mack recolher a roupa do estendal. Subitamente exaltado, cumprimentou-a com o chapéu e disse-lhe ”olá”, mas Sallie manteve a cabeça baixa e não respondeu.
380No dia seguinte, ao passar pela residência Phillips a caminho do trabalho, Will viu Delia pelo canto do olho: emergiu no alpendre da frente e desceu apressadamente os degraus. Delia parecia não ter reparado na sua presença mas, depois de Will atravessar a rua, alcançou-o e começou a caminhar a seu lado, como que por acaso.
Delia olhou-o de soslaio.
- Foi muito indiscreto, Sr. Porter.
- Quer dizer que recebeu o meu bilhete?
- Sim, encontrei-o no chão, debaixo da janela do meu quarto.
- Entregou-o a Eula?
- Mostrei-lho.
- E o que disse ela? Delia franziu os lábios.
- Tem de compreender uma coisa. Eula está a passar uma fase difícil. Não era feliz na quinta. jimmy também não. Ambos queriam regressar a Austin, e finalmente estão de volta. Têm um filho ainda bebé, como sabe. Estão a fazer um grande esforço para salvar o casamento.
Will anuiu.
- Nesse caso, ela não quer voltar a ver-me - disse ele com amargura. Delia suspirou.
- Não sei o que Eula quer. Julgo que ela própria também não sabe. Will abanou a cabeça.
- Não acredito que ela não sinta nada por mim. Naquele dia na casa da viúva...
- É bem possível que Eula tenha uma grande estima por si, Will.
- Mas não posso vê-la?
- De momento, não.
- Mas poderei um dia destes?
- Não sei. Eula não é uma mulher livre. O senhor sempre soube disso.
Subitamente, a recordação de um momento específico em casa de May Tobin apoderou-se de Will: ouviu Eula suspirar, sentiu de novo o contacto do seu corpo nu, e o perfume do seu cabelo. A recordação foi tão forte, que parecia mais viva do que a realidade. Will apertou o braço de Delia.
- Tenho de voltar a vê-la!
- Não pode. De momento, não pode.
381- Posso pelo menos escrever-lhe? Delia abanou a cabeça.
- Se a situação se alterar, Eula escreve-lhe a si.
- Mas que mal pode haver, se eu lhe entregar as cartas a si? Depois de Eula as ler, pode queimá-las, caso seja necessário, ou dá-las a guardar a si. Já que não posso vê-la, Eula tem pelo menos de me deixar escrever-lhe.
Delia observou-o. Will fazia-lhe lembrar o irmão a suplicar por mais uma oportunidade. Segundo a experiência de Delia, todos os homens eram assim: se não conseguiam obter o que desejavam em determinado momento, entravam em desespero. Eram bebés sem tirar nem pôr, sempre a exigirem atenção. No entanto, se as suas súplicas não fossem atendidas, podiam recorrer ao uso da força. ”Fingem-se profundamente desamparados”, dissera-lhe May certa vez, ”e julgam que estão, mas nunca te esqueças de que são fisicamente mais fortes.” Em todos os homens havia um certo grau de ameaça. Em Jimmy havia um alto grau, e mesmo o pobre Will Porter devia ter a sua quota-parte, por muito inofensivo que parecesse. Delia decidiu aplacá-lo.
- Se insiste em escrever-lhe...
- Sim?
- Não posso impedi-lo. Faça como fez ontem: escreva o meu nome no sobrescrito e meta-o por baixo da minha janela. Tratarei de arranjar maneira de Eula o receber. Mas não deve ficar à espera que ela lhe responda.
- Compreendo.
Afastaram-se. Enquanto caminhava na direcção do escritório, Will ia já redigindo mentalmente uma carta. Disse a si próprio que aquela seria a carta, a carta que lhe faria derreter o coração.
Nesse dia, sentindo-se abonado e optimista quanto ao futuro, Will pagou o almoço a Dave Shoemaker no Iron Front. De vez em quando, Will tirava um pedaço de papel do bolso do casaco e anotava uma expressão. Dave presumiu que estivesse a escrever um conto ou um poema, e não se intrometeu.
Os irmãos Robertson também estavam a almoçar, na sua mesa habitual ao fundo do estabelecimento. Das duas uma: ou os bifes estavam invulgarmente rijos, ou as facas não estavam suficientemente afiadas, pois a refeição resumiu-se praticamente a um encontro de trabalho.
382- As eleições locais estão a porta - disse o Presidente da Câmara com ar melancólico. - Se fôssemos hoje a votos...
- Mas não vamos - replicou o Procurador Público. - Ainda faltam dois meses até ao dia 7 de Dezembro. Entretanto, muita coisa pode acontecer. Ser eleito é como cometer impunemente um homicídio: depende do sentido de oportunidade.
- Se mais algum homicida escapar impune até às eleições, será o meu fim na Presidência da Câmara!
James Robertson recostou-se, respirou fundo e sorriu.
- Estava a tentar guardar as boas novas para a sobremesa, irmão, mas estás tão desanimado que vou contar-te tudo agora mesmo.
- Que boas novas?
- Parece que a contratação daqueles detectives de Houston está finalmente a dar resultados. O Comissário Grooms Lee garantiu-me que dentro de algumas horas terá uma confissão integral da violação e homicídio da pequena Mary Ramey.
- Aleluia - disse o Presidente discretamente. - Quem foi o monstro?
- O suspeito inicial do Comissário, o indivíduo de quem os cães andaram no encalce: Alec Mack.
- Ele confessou?
- Ainda não. Mas o Comissário garantiu-me que desta vez vai confessar. Mack está detido neste preciso momento.
- Detido? Sob que acusação?
- Essa é a parte melhor! Mack não foi detido sob a acusação de homicídio. Lee prendeu-o por embriaguez e conduta desordeira, com a agravante de ter oferecido resistência às autoridades. Mas, agora que está no calabouço, Lee está convencido de que Mack vai ceder não tarda muito.
O Presidente secou os lábios com o guardanapo.
- Estou a ver. Isso explica por que motivo William Holland solicitou outra reunião.
- Também recebi uma carta dele esta manhã. Bem, se Holland tenciona protestar quanto à detenção de Alec, hoje não vai longe. Ser de cor não constitui desculpa para causar distúrbios às duas da madrugada de um domingo. Mack terá de sofrer as consequências dos seus actos. E se Holland tenciona voltar a queixar-se quanto à falta de progressos na resolução das investigações, vou perguntar-lhe o que é que ele tem feito para
383dissuadir os seus irmãos de cor de massacrarem mulheres da sua própria raça.
- James! Nem Parece teu. William Holland é um homem decente, e além do mais é meio branco.
- Bem, também eu estou a perder a paciência. só espero que, quando obtiver a condenação de Alec Mack pelo homicídio de Mary Ramey, o nosso amigo Holland seja tão lesto em agradecer-me como tem sido a protestar. - O Procurador sorriu. - Mas há mais boas novas. Graças aos homens da Agência de Detectives Nobre, também é possível que não falte muito para que detenham precisamente o culpado do primeiro desta série de homicídios, o de Mollie Smith. Talvez te recordes de que na altura as suspeitas recaíram sobre aquele indivíduo apoucado que morava com ela e que também foi agredido na cabeça nessa ocasião, um tal Walter Spencer. Hennessey e Hanna dizem-me que submeteram Spencer a nova investigação e não têm dúvidas de que em breve conseguirão obter provas suficientes para o prender. Talvez consigam mesmo obter mais uma confissão. - O Procurador inclinou-se sobre a mesa para segredar ao irmão. - Quando forem apresentadas as acusações contra estes indivíduos, vou ver se consigo dar um jeitinho no registo de julgamentos de modo a poder marcá-los para uma data imediatamente anterior as eleições. O que te parece, irmão? Com certeza não haverá nada que seja mais decisivo para a tua reeleição do que um par de condenações bem atempadas para mostrar que se está a fazer qualquer coisa relativamente a esta série de crimes hediondos.
- Ámen, é o que eu te digo - disse o Presidente.
- Como vês, John, estou a fazer todos os possíveis para te agradar, tanto a ti como ao Sr. Holland. Estes crimes receberão o castigo que merecem. Vamos deixar bem claro que ninguém consegue ludibriar a justiça!
38437
Alec Mack não confessou ter assassinado Mary Ramey. Após nove dias e nove noites, foi libertado e autorizado a regressar a casa. Quando a mãe viu o que lhe tinham feito, desatou a chorar.
O primeiro jornal a relatar o que tinha acontecido a Alec Mack não foi o Statesman, mas o Dispatch, um pequeno vespertino republicano com manifestas simpatias pela população de cor. O artigo publicado no Dispatch baseou-se em entrevistas a Hugh Hancock, que tinha assistido à prisão; a Sallie Mack, que descreveu chorosamente as cicatrizes do filho; e ao próprio Alec Mack, que afirmava ter sido acorrentado como um animal e repetidamente espancado e torturado enquanto se encontrava na prisão. As nódoas negras e as escoriações que tinha em redor do pescoço conferiam crédito as declarações de Mack: tinha sido repetidamente estrangulado por uma corda, até perder os sentidos, que recuperava em seguida por via dos baldes de água que lhe eram lançados a cara.
O artigo do Dispatch incluía igualmente os comentários do Sr. Press Hopkins, um respeitável carpinteiro branco que morava no nº 908 da Rua Trinity Na noite da prisão, a agitação que se vivia no pequeno jardim situado diante da Capela de Wesley tinha acordado a sua mulher, que subsequentemente acordara Hopkins, dizendo-lhe: ”Estão a fazer um linchamento!” Hopkíns atrevera-se a sair para o alpendre de sua casa, com uma lamparina numa mão e uma espingarda na outra, e afirmava ter visto o Comissário Grooms Lee, acompanhado por dois polícias uniformizados e mais dois homens, aos pontapés a um prisioneiro que jazia no solo, aparentemente com convulsões. Com base nas frases que ele e a mulher tinham ouvido, Hopkins estava convencido de que os homens haviam tencionado linchar o prisioneiro, só não o tendo feito porque ele se apresentara e os interpelara.
Nessa tarde, William Pendleton Gaines entrou nos escritórios do Statesman amarrotando entre as mãos um exemplar do Dispatch.
- Isto é um escândalo!
385- O facto de terem torturado Alec Mack? - perguntou Hiram Glass.
- Claro que não! O que é escandaloso é termos sido ultrapassados por este farrapo republicano! Inferno, onde está o nosso artigo?
- Devíamos proporcionar ao Comissário Lee uma oportunidade para se defender - sugeriu Dave. Mostrou os dentes a Hiram, sentado na secretária diante da sua, e este respondeu-lhe com um sorriso esbatido. A ideia de convocarem o Comissário para lhe pedirem contas do seu comportamento, como um rapazinho mal comportado, parecia a ambos fortemente atractiva.
E foi assim que se iniciou o caso Alec Mack. Noutras circunstâncias, é possível que o facto de um prisioneiro de cor ter sido maltratado nos calabouços não tivesse suscitado grande interesse, quanto mais indignação. Mas um crescente número de cidadãos responsáveis começara a perder a paciência com o Comissário Grooms Lee. Atribuíam a sua capacidade de proceder a uma prisão relevante à preguiça ou à incompetência, questionavam a sensatez de contratar detectives privados de outra cidade, concedendo-lhes poderes extraordinários; suspeitavam de que tinha desrespeitado claramente a lei na forma como interrogara Alec Mack. Até um homem de cor era inocente até se provar que era culpado.
Alguns nunca tinham gostado de Grooms Lee. As relações políticas do pai contavam a seu favor em certos círculos, contra ele noutros CírCulos. Havia quem quisesse ver Lee afastado por cobiçar o cargo de Comissário para si próprio ou para algum compincha. Os vários inimigos do Comissário Lee não eram aliados naturais uns dos outros. Foi o caso Alec Mack, e o facto de ele ter tido lugar após nove meses de assassínios por resolver e dois meses antes das eleições locais, que serviu de catalisador. Dentro do corpo político, e no seio do conselho municipal - que, após as eleições de Dezembro, teria o encargo de renomear o Comissário ou contratar outro -, criou-se uma facção decidida a por fim à carreira de Grooms Lee.
O Comissário Lee recusou uma entrevista informal ao Statesman. Preferiu entregar no jornal uma declaração escrita, que este publicou verbatim, e que começava com um ataque à teoria do Dispatch, dando em seguida a sua versão da prisão:
Por volta das duas horas da manhã de domingo, 4 de Outubro, tendo convocado os agentes Johnson e Connors e os detectives Hennessy e
386Hanna para me ajudarem, dirigi-me ao bar Black Elephant, onde esperava encontrar Alec Mack. Ao chegar ao bar, parei à porta, enquanto os que me acompanhavam ficavam um pouco para trás. Avistando Alec no interior, pedi-lhe que se aproximasse da porta e que viesse comigo. Vi que estava muito embriagado e percebi que iria dar-me problemas, conhecendo como conheço o seu carácter depravado quando se encontra sob a influência do álcool.
Ao chegar ao local onde se encontravam os meus colaboradores, informei-o de que pretendia interrogá-lo quanto ao assassínio de Mary Ramey, e que me propunha detê-lo na prisão da cidade com essa finalidade até ao momento em que ele se encontrasse suficientemente sóbrio.
Desejoso de proceder com a maior discrição possível, ordenei que nos dirigíssemos ao nosso destino utilizando um máximo de ruas não frequentadas. A caminho da prisão, em particular quando passámos em frente a residência de Press Hopkins, Mack mostrou-se especialmente ruidoso, por vezes violento, lutando com todas as suas forças para se libertar de nós. Os seus gritos e berros assustariam qualquer senhora. Não tenho conhecimento de que, seja quem for tenha tido convulsões. Tivemos diversas rixas valentes com ele. Conseguimos pôr-lhe um par de grilhões, mas ele não foi maltratado, fosse de que maneira fosse. A força utilizada foi a força estritamente necessária para o dominar.
Ao chegarmos ao calabouço, Mack enfureceu-se e começou a debater-se, vigorosamente, viciosamente, embora sem êxito. Nunca tinha visto um prisioneiro resistir daquela maneira. Conseguimos finalmente empurrá-lo pelo corredor fora e, ao ver uma cela aberta, ele recomeçou a espernear. A fim de o dominarmos, agrilhoamo-lo e acorrentámo-lo a um anel fixo ao chão, pois de outra maneira teria escapado antes de conseguirmos fechá-lo a chave.
Se Mack tem nódoas negras ou cicatrizes no corpo, elas resultam dos seus próprios esforços desesperados de resistir à prisão e ao encarceramento. Trata-se de um dos homens mais desesperados e perversos com quem já lidei no meu cargo de Comissário. Será mantido sob observação atenta.
A declaração foi óleo lançado a agua. Até os mais vigorosos opositores ao Comissário concederam que ele merecia uma audição imparcial dos factos.
387A princípio, as cartas de Will para Eula eram simples notas, curtas, discretas e contidas. Muitas consistiam numa simples pergunta: Quando posso voltar a ver-te? Estás bem? Lembras-te?
Ela não respondia.
As cartas foram-se tornando mais longas e menos contidas. Em vez de fazer figura de parvo com declarações cósmicas de amor, o sentido de humor de Will tomou a dianteira. Assim, escrevia-lhe a meados de Outubro:
Querida E.,
Dado que a minha sugestão anterior, de me apresentares como teuprimo Louis, de St. Louis, não te agradou (embora eu continue a achar que era um excelente estratagema), que tal esta ideia: eu compro um nariz de massa e umas sobrancelhas falsas para me disfarçar, e vou bater à porta de tua casa afirmando que sou um caixeiro-viajante. Quais são as necessidades dafamília? Tónico para o físico, papel de música, uma tesoura depoda? Posso vender os melhores produtos com prejuízo, garantindo assim que a família volte a convidar-me, e fique satisfeita por me ver chegar. Tudo isto para conseguir entrever regularmente o teu sorriso, uma vezpor semana, digamos. Escreve-me depressa e dá-me a tua opinião sobre este plano. Se não me disseres nada, presumirei que o aprovas, e amanhã mesmo ponho-me àprocura de um nariz
Teu, W
O que pensaria ela quando recebesse esta carta? Rir-se-ia? Soltaria um suspiro? Acharia que ele era um querido, que era louco, ou que era desesperadamente infantil? Não seria capaz de ler nas entrelinhas e de se aperceber do que ele sofria? Não sentiria nada por ele, nem sequer a empatia que qualquer pessoa sente por um desconhecido que encontra ferido pelo caminho?
Viveria receosa do marido? Não havia dúvida de que o sujeito tinha um aspecto ruim. Seria dominada e vigiada pela sogra? Teria decidido pôr fim a toda e qualquer esperança de felicidade para bem do filho? Talvez desejasse Will com a mesma ternura com que ele a desejava a ela, e só conseguisse resistir a tentação de voar para o seu lado por meio de um enorme acto de coragem e sacrifício, talvez fosse nobre e não cruel,
388e fosse uma maldade da parte dele estar a tentá-la. Talvez as cartas dele a fizessem sofrer delicadamente, e em silêncio. Não era possível saber. A própria Delia afirmava não saber o que queria Eula.
Talvez o problema fosse o dinheiro. Seria tão simples quanto isso? Tinha sido Eula a pagar o quarto em casa de May Tobin, porque ele não tinha dinheiro para isso. Talvez o dinheiro se lhe tivesse acabado. As circunstâncias de Will tinham mudado; ele agora tinha um emprego e podia pagar o quarto. Escreveu-lhe a comunicar-lho:
Vogal Encantada,
Contei-te que tenho um emprego honesto, e que estou cheio de ganhos legalmente obtidos? O problema é monetário? Eu pago. Em que dia queres que diga à viúva que esteja à nossa espera? Queres que leve o nariz de massa, para ser discreto, ou leva-lo tu?
Teu, W
Não recebeu resposta.
Talvez as cartas não estivessem a chegar as mãos de Eula. Seria possível que Delia fosse uma intermediária infiel, que se tivesse passado para o lado do irmão, que andasse a ler as cartas de Will e a rir-se delas, deitando-as fora em seguida? Certo dia, um sábado, avistou Delia diante da montra de uma loja de vestidos, na Rua Pecan, e aproximou-se dela.
- Recebeu as minhas cartas? - perguntou-lhe.
- Recebi, Sr. Porter.
- E passou-as?
- Passei.
- Mas ela não me responde.
- Não sei o que hei-de dizer-lhe, Sr. Porter. A minha cunhada anda... ocupada. De momento, convém-lhe controlar os seus sentimentos, O senhor tem de ser estóico.
- Preferia que fosse Eula a dizer-me isso.
- Eu comunico-lho. - Delia entrou na loja de vestidos. Fez uma pausa a porta e sorriu por cima do ombro. - Oh, Will, faça o que fizer, não apareça lá em casa com um nariz postiço. Com todos os crimes que andam por aí, o Jimmy ainda lhe dava um tiro antes de conseguir dizer fosse o que fosse!
389Outubro deu lugar a Novembro. O Outono transformou-se em Inverno. Os dias tornaram-se mais pequenos. A febre do dengue começou a ceder. Houve uns dias de Verão tardio, em que o sol dourado brilhou por entre os ramos despidos das árvores, mas noutros dias os ventos frios que sopravam do norte cobriram o céu de um manto de nuvens cor de ferro.
Com a mudança da estação, Delia fechou e trancou a janela do quarto. Sem se deixar vencer, Will descobriu uma frestinha entre a portada de cima e a portada de baixo, com dimensão suficiente para conseguir meter por ela a sua última carta a Eula Phillips:
Letra Favorita do Alfabeto,
Os dias estãofrios e os céus escuros. Afalta que mefaz o teu sorriso para me aquecer!
Não voltarei a incomodar-te. Será um alívio para ti? Tem alguma ímportância?
Desce a Avenida comigo, passa diante da casa da viúva e chega à ponte. Estás a ver o rio barrento, ali ao fundo? A correr e a agitar-se em turbilhão debaixo dos pilares escuros, com murmúrios fantasmáticos e sussurros de sereia. O que encontrarei nessas profundezas? Repouso? - Paz? - Peixes-gato? Basta um momento. Um salto! Um mergulho! E depois - o esquecimento? Dizem que houve um homem que desapareceu naquelas profundezas e regressou ao reino dos vivos com um arreio de cavalo ao pescoço e uma saia de balão. O que sabemos acerca do além? Nunca mais voltamos a este mundo de dificuldades epreocupações - mas para onde vamos? Haverá terras onde nenhum viajante vivo esteve jamais, que nenhum pé mortal pisou? Um caos, um vazio - talvez Bastrop - talvez Newjersey! Passaremos pior? Não épossível passarmos pior. Para lá chegarmos, passamos o pior
Ouve, um grito da fábrica! É um homem a mandar-nos sair da ponte. Terá receio de que saltemos? Não, esquecemo-nos de pagar a portagem. Sem vontade de prosseguir,
w
Ao fim da tarde, depois de ter entregado a carta, Will deu um longo passeio pela Avenida abaixo. Deteve-se durante algum tempo diante da casa de May Tobin, do outro lado da rua. No espaço de meia hora, viu
390chegar e partir diversos trens de aluguer, que largavam e apanhavam passageiros. Os homens usavam os colarinhos voltados para cima e as abas dos chapéus voltadas para baixo. As mulheres tinham véus diante do rosto. Não parecia haver grande necessidade destes disfarces, dado que estava escuro.
No dia do encontro entre ambos, teria Eula chegado e partido desta maneira, escondendo o rosto por trás de sedas e tules, qual beleza ociosa pertencente ao harém de um sultão? Will sorriu, recordando-se do quarto, da cama, do sorvete de limão. Depois encolheu-se, recordando-se do encontro inesperado com William Shelley no vestíbulo.
Por fim, repararam nele. Um enorme homem de cor saiu da casa e lançou-lhe um olhar tal do alpendre, que ele se afastou.
Passou pelo depósito de madeiras e pela fábrica de gelo, pagou a portagem e avançou para a ponte. Era perfeitamente normal e aceitável demorar-se um pouco no tabuleiro, observando as estrelas lá no alto, vendo pedaços misteriosos de madeira flutuar abaixo de si, e os remoinhos, com reflexos de prata e verde ao luar; uma ponte tanto podia ser um divertimento como um meio de passagem. Mas o portageiro não gostou da maneira como Will olhava para as águas e ordenou-lhe que atravessasse de uma vez ou voltasse para tras.
Will regressou ao terminal norte, voltou a passar pela fábrica de gelo e pelo depósito de madeiras, e passou mesmo em frente à casa da Viúva Tobin.
Viu parar um trem de aluguer, do qual saíram dois cavalheiros que passaram mesmo diante de Will, a fim de atravessarem o pátio. Um dos homens levou a mão ao chapéu; era um sujeito grande com óculos de pince-nez e um bigode farfalhudo. Parecia conduzir o amigo, um homem alto e magro que usava uma bengala e óculos de lentes azul-cobalto, como os cegos.
- Que par tão estranho! - pensou Will, seguindo caminho. Tentou recordar onde já os tinha visto.
39138
As reuniões do conselho municipal de Austin foram tão turbulentas como o tempo. As eleições de Dezembro avultavam-se no horizonte, qual amontoado de nuvens de tempestade.
Na reunião de 19 de Outubro, Alderman R. J. Hill, um defensor do Comissário Lee, apresentou uma proposta de decreto-lei destinado a aumentar o número de polícias. Seguiu-se um debate azedo, durante o qual se tornou claro que Alderman Hill estava em minoria. A tese consensual defendia que, não tendo conseguido coisa alguma com as forças ao seu dispor, não era com o dobro dos homens que o Comissário obteria melhores resultados.
- O dobro de nada continua a ser nada - declarou sucintamente Alderman Radcliff Platt.
Platt era proprietário de uma estrebaria de trens de aluguer situada na Rua Pecan, zona leste. Aos cinquenta anos, o cabelo branco e o bigode branco e farfalhudo faziam com que se assemelhasse ligeiramente ao famoso autor Mark Twain. Não era menos intolerante com embustes, e era igualmente irascível quando se tratava de atacar os idiotas. também era um inimigo implacável do Comissário da polícia, afirmando que durante a sua vigência as forças policiais se tinham tornado degradadas, desmoralizadas e debochadas.
- Há homens na força que não deviam lá estar. Não hesitam em arrastar pessoas inocentes para os tribunais, e ainda se gabam disso. Não senhores, não têm o meu voto para aumentar as forças enquanto este conselho não despedir todos os homens que delas fazem parte, e contratar sujeitos decentes para o seu lugar!
O conselho votou contra a proposta do vereador Hill. Foi um contundente voto de desconfiança no Comissário Lee.
Os controversos detectives da Agência Nobre, de Houston, o Sr. Hanna e o Sr. Hennessy, tinham sido dispensados pelo Comissário Lee. O vereador Hill propôs que o conselho contratasse outros detectives.
392- Se querem saber a minha opinião - declarou o vereador Pitt -, a intervenção desses malditos detectives fez mais mal que bem. Por mim, não tocava num desses nem ratos com uma vara de três metros de comprimento! Se calhar, devíamos era contratar dois grupos de detectives uns para detectar e outros para vigiarem os primeiros!
O vereador Hill optou por retirar a proposta sem a levar a votação. Mas o pior estava para vir para o Comissário e os seus partidários. Na sequência de uma proposta do vereador J. W ”Bud” DriskiII, abastado barão do gado (que dentro em breve seria o dono do principal hotel da cidade), o conselho constituiu uma comissão especial destinada ”a investigar até ao fim a conduta dos detectives especiais ao serviço da cidade de Austin, e a investigar igualmente os alegados ultrajes cometidos contra o homem de cor Alec Mack pelos referidos detectives e por determinados funcionários da cidade”.
A comissão de investigação recolheu depoimentos de Hugh Hancock, Sallie Mack, Alec Mack e Press Hopkins. Os Detectives Hennessy e Hanna foram convocados, mas não foi possível localizá-los. O Comissário Lee e os agentes Johnson e Connors foram igualmente convocados, tendo-lhes sido ordenado que comparecessem a presença da comissão na terça-feira, 10 de Novembro.
O Comissário e os seus homens apresentaram-se na sede do conselho municipal na companhia do seu advogado. DudIey Goodall Wooten, filho de um proeminente cirurgião de Austin, tinha apenas trinta e sete anos, mas formara-se em Princeton e tinha um ar cosmopolita. Wooten era alto e magro e usava uma sobrecasaca preta. Não usava barba nem bigode e tinha um cabelo para o curto, à excepção de uma madeixa que formava um caracol na testa. Tinha um ar de dandy, que muitas vezes desarmava os seus opositores nas salas dos tribunais, para mágoa destes.
A comissão informou o Comissário e os seus homens de que tencionava interrogar cada um deles individualmente e a sós.
O Sr. Wooten replicou que teria de assistir ao interrogatório de qualquer dos seus clientes.
A comissão informou o Comissário e os seus homens de que nem eles nem o advogado determinariam as regras de procedimento da comissão. O Sr. Wooten objectou que os seus clientes tinham o direito a ser representados por um advogado em todas as fases de qualquer investigação.
393Exigiu que os seus
clientes fossem autorizados a enfrentar e contra-interrogar quaisquer testemunhas que fizessem alegações contra eles. E exigiu ainda que os seus clientes fossem autorizados a apresentar as suas próprias testemunhas.
A comissão voltou a recordar ao Comissário Lee e aos agentes que não seria o seu advogado a determinar as regras de funcionamento da comissão.
O Sr. Wooten objectou que os seus clientes não tinham qualquer obrigação legal de dispensar o seu direito a um advogado por ordem de uma exparte, uma comissão do conselho municipal que fazia tenções de conduzir os seus assuntos em segredo.
A comissão ordenou ao Comissário e aos agentes que se retirassem para a ante-sala, de onde seriam convocados individualmente, sem o Sr. Wooten.
Após uma breve troca sussurrada de palavras, o Comissário Lee, os Agentes Johnson e Connors e o Sr. Wooten levantaram-se e saíram da sala.
A comissão conferenciou brevemente, e depois mandou um escrivão chamar o Comissário Lee. O escrivão regressou sozinho. A ante-sala estava vazia.
Nesse mesmo dia, na habitual reunião das terças-feiras do conselho municipal, os membros da comissão fizeram o seu relato dos acontecimentos, acompanhado por uma veemente condenação do que consideravam terem sido tentativas deliberadas do Comissário Lee de frustrar os seus esforços para investigar a questão de forma completa, livre e justa. A comissão devolvia o problema ao conselho, solicitando dispensa.
O Comissário Lee e os Agentes Johnson e Connors fizeram as suas próprias declarações ao conselho, denunciando como falsas as acusações de que tinham abusado de um prisioneiro entregue a sua guarda e denunciando as tentativas ilegais da comissão de conduzir as suas investigações em segredo e de intimidar as testemunhas.
Foi apresentada uma moção no sentido de o assunto ser transferido para as mãos do Procurador Distrital. Na prática, a investigação aos alegados abusos contra Alec Mack chegou ao fim.
As eleições locais seriam dali a menos de um mês.
394- Foi boa ideia contratar DudIey Wooten, Pai - observou Grooms Lee nessa noite, ao jantar, fazendo deslizar o dedo entre o pescoço e o colarinho, a fim de o soltar ligeiramente. Era tarde, e o colarinho estava a irritá-lo. - A princípio, aquela cara de bebé não me convenceu lá muito, aquele estúpido caracol a meio da testa! Mas ele é esperto como um rato e teimoso como uma mula. Pusemo-los a andar.
Joseph Lee contemplava o prato de sopa com ar carregado. À primeira vista, a situação era absurda! Umas mulherzitas de cor tinham sido assassinadas, por um ou mais homens de cor. Era um assunto desagradável e sujo, mas outra coisa não era de esperar de uma raça de selvagens que tinham sido libertados dos seus legítimos proprietários e entregues aos seus próprios expedientes morais. Um homem de cor tinha sido interrogado pela polícia, que só estava a fazer o que lhe competia, e que podia, ou não, ter sido um pouco severa com ele - e daí tinha resultado semelhante clamor, que podia muito bem vir a ser o fim da carreira do seu filho!
Tudo por causa da política e das invejas. Joseph Lee já não tinha idade para se preocupar com o que os outros pensassem dele, mas doía-lhe ver o filho diminuído pela animosidade de homens de espírito mesquinho. Tinha tantas esperanças no rapaz!
Se ao menos conseguissem resolver definitivamente um dos assassínios...
- O que se passa com o outro tipo de cor que tencionavas prender aqui há uns tempos, o que estava relacionado com o primeiro assassínio? Grooms Lee poisou a colher.
- Por acaso, o Procurador Distrital e eu falámos de Walter Spencer esta tarde. Acho que consegui finalmente convencer Robertson a fazer uma acusação, especialmente porque parece que não há provas contra Alec Mack. Ele acha que consegue apressar o processo e marcar um julgamento para antes das eleições.
- Ainda assim, pode ser difícil de provar - observou o pai. - Spencer não foi atingido na cabeça pela mesma pessoa que matou Mollie Smith? E não ficou desmaiado?
- Parece que sim: Mas não havia melhor maneira de desviar as atenções de si próprio. Se quer a minha opinião, a pancada na cabeça não foi assim tão forte. Um preto não tem assim muita dificuldade em fingir que se sente confuso.
395do mesmo ramo, e a partir dessa altura envolveram-se em trocas amigáveis. Se um frequentador da casa de May expressasse o seu apreço pela beleza de cor, May orientava-o para Fannie. Da mesma maneira, se um dos visitantes brancos de Fannie a interrogasse sobre um estabelecimento com mulheres da sua cor, e se lhe parecesse que se tratava de um homem do calibre adequado - também Fannie era contemplada com um ou outro barão do gado, político ou professor universitário -, ela falava-lhe de May. As mulheres informavam-se uma à outra dos visitantes que lhes tivessem parecido difíceis ou perigosos, e encontravam-se regularmente para conversarem sobre o temperamento dos agentes da lei da cidade.
Por essa razão, Fannie não ficou totalmente surpreendida quando, certo fim de tarde de Novembro, recebeu uma nota de May Tobin dizendo-lhe que ficaria muito agradecida se Fannie estivesse na disposição de alojar na sua casa de Red River, durante um dia ou dois, duas mulheres brancas, ambas excelentes jovens e amigas de May; as senhoras pagariam os quartos, evidentemente.
Tudo aquilo era muito misterioso. ”Para começar, por que hão-de as duas raparigas tar precisando de um sítio onde apoiá a cabeça? perguntou a si própria. ”E, se são tão amigas de May, por que não vão ficando em casa dela? E o que vão pensá alguns dos meus amigos se avistarem uma cabeça loura e um par de olhos azuis nesta casa? Não tou querendo que ninguém se engane quanto à cor deste estabelecimento, só pode gerá confusões e problemas! E já agora, onde é que eu vou instalá um par de meninas brancas? Acho que o melhor será vagá os dois quartos lá de cima para elas!”
As jovens chegaram uma hora depois. Fannie mandou-as entrar à pressa para a sala de estar. Não seria tão elegante como a sala de estar de May - não havia candelabros nem piano -, mas o tapete era novo e na lareira ardia um fogo exuberante. A morena declarou que se chamava Delia, e que a sua amiga se chamava Eula. Eram ambas admiravelmente belas e apresentavam-se como verdadeiras senhoras da sociedade, embora se mostrassem as duas muito agitadas. Fannie ofereceu-lhes chá e mandou a criada servir-lho.
- Valha-me Deus, parece que viram um fantasma! - observou Fannie.
- Oh, Menina Whipple - respondeu Delia -, não faz ideia.
- Tá havendo um homem por trás disto - comentou Fannie sensatamente.
398- O meu marido - replicou Eula baixinho.
- Que por acaso também é meu irmão - acrescentou Delia.
- Oh, oh!
- Ele bebe - informou Eula. Fannie acenou com a cabeça.
-Todos bebem. Um dia destes, vão proibindo o álcool, e não sou eu que vou lamentá!
- Houve uma discussão horrível - disse Delia. - Tenho vergonha do que fiz. Parece mesmo que temos os dois dez anos, pela forma como Jímmy e eu às vezes nos envolvemos.
- Irmãos! - declarou Fannie. - Não há ninguém capaz de discutir pior, menos marido e mulher, talvez. Puxam-se os cabelos e atiram-se pedras; os irmãos só tão treinando para o casamento quando são pequenos. Uma mulher tem de aprendê a se defendê, e quanto mais cedo melhor.
Delia suspirou.
- Não posso dizer que me sinta orgulhosa de o ter ameaçado com uma pa.
- De tê feito o quê?
- Ameacei-o com uma pá.
- Fez mais do que ameaçá-lo - interveio Eula. - Atingiu-o em cheio
na cara.
Fannie tapou a boca e soltou uma gargalhada guinchada. Delia e Eula olharam uma para a outra, desorientadas, mas não conseguiram evitar fazer coro com ela.
- Não tem que tê vergonha nenhuma, não - declarou Fannie. Ainda não nasceu o homem que não lhe façam bem umas pancada para lhe meter algum juizo na cabeça. Se tiver de ser uma mulhé a dar-las, pois que seja. E depois? Deixou-o caído?
- Nem pensar - respondeu Delia. - Acho que ele estava tão bêbedo que nem sentiu a dor. Ainda ficou mais irritado. Corri para o meu quarto e tranquei-me lá dentro. Jimmy não parava de gritar e de dar murros na porta, mas eu não estava disposta a abri-la...
- Abri-la? - disse Eula. - Como é que podias abri-la, com ele a gritar daquela maneira? ”Eu. mato-te! Eu mato-te! Maldita sejas!” Não parava de berrar, com o sangue a escorrer-lhe pela cara abaixo...
- Valha-me Deus! - comentou Fannie, abanando a cabeça.
399- Depois meteu dentro um dos paineis da porta - prosseguiu Delia.
- Valha-me Deus de misericórdia!
- Depois a Mãe e o Pai conseguiram afastá-lo da porta. Eu passei por eles e corri para o pátio com Eula. Jimmy veio atrás de nós, mas eu voltei a pegar na pá, Eula pôs-se atrás de mim, e gritámos a chamar a polícia. Foi tão humilhante! Com os vizinhos todos a ver. Pobre Mãe, por pouco não a matava. - Os olhos de Delia encheram-se de lágrimas.
- E a polícia veio?
- Não, graças a Deus - respondeu Eula. - Jimmy estava a ficar sem fôlego. Começou a gaguejar e a chorar e deixou os pais levarem-no para a cama. Delia e eu metemos umas coisas num saco e saímos dali para fora o mais depressa que pudemos. Eu disse ao Sr. e à Sra. Phillips que íamos para Manchaca, para casa da minha irmã. Fomos direitinhas para casa de May Tobin. Mas a May não tem quartos para nós esta noite. Disse-nos que podíamos ficar em sua casa. Jimmy nunca conseguirá encontrar-nos aqui. De certeza que não se importa, Menina Whipple?
- Valha-me Deus, piquena, uma mulhé tem de ir para algum sítio quando o homem dela perde a moleira!
- Muito obrigada, Menina Whipple! Graças a Deus por si e por May Tobin.
- Trate-me por Fannie, piquena.
Eula olhou fixamente o fogo. Depois começou a chorar, Delia envolveu-a com um braço.
- É por causa do bebé - explicou Eula.
- Um bebé! - exclamou Fannie. - Valha-me Deus, piquena, uma coisinha assim feita você e já tem um bebé!
- Um rapazinho. Deixei-o com a Sra. Phillips. Não podia fazer outra coisa. Não sabia bem onde iríamos parar. Ele fica bem, não fica, Delia? Jimmy adora o bebé. Jimmy nunca lhe faria mal.
- Claro que não - respondeu Delia. - Não chores.
- Mas, eu tenho saudades dele. Tenho saudades do meu menino!
- Claro que sim. Chora, se quiseres, querida...
Eula riu-se por entre as lágrimas.
- Não estás a perceber. Tenho saudades dele. Delia franziu o sobrolho.
- Não percebes? Não tinha a certeza se seria capaz de ter saudades dele. Mas tenho. Tenho saudades do meu menino! Afinal não sou completamente depravada, pois não? Afinal não sou um monstro!
400Eula redobrou o choro. Delia abraçou-a, embalou-a e fez-lhe festas no cabelo. Fannie Whipple ficou a olhar para as duas, tentando não fazer juízos. Os brancos sempre eram uma gente muito bizarra!
Delia e Eula passaram aquela noite em casa de Fannie. Na noite seguinte, já tarde, receberam a visita de um jovem cavalheiro branco. Fannie não tinha nada que saber quem era o sujeito, ou qual das mulheres ele vinha visitar, desde que alguém pagasse o aluguer dos quartos, mas uma das suas raparigas, que tinha um talento especial para ouvir coisas que não devia, contou-lhe que o sujeito era um funcionário do governo chamado William Shelley, e que era o braço direito do próximo governador do Texas, e que era praticamente ele que dirigia sozinho um departamento inteiro. Fannie achou que ele era demasiadamente novo para ser tão importante, mas a verdade é que tinha um ar bastante pretensioso.
- E é bem jeitoso - observou a rapariga.
Nessa mesma noite, Eula e Delia partiram de casa de Fannie na companhia de William Sheley. Tinham vagado uns quartos em casa de May Tobin.
Alguns dias depois, estava Jimmy fora, Delia voltou a casa. Pegou no bebé, foi ter com Eula à estação e meteu os dois no comboio que seguia para sul e parava em Manchaca, onde vivia a irmã de Eula.
Eula estava a cumprir o conselho da sogra. Desde que regressara a Austin que Jimmy bebia mais do que nunca, e já por várias vezes a Sra. Phillips sugerira a Eula que fosse passar uns tempos com a família. Se Jimmy se convencesse de que Eula podia tomar a decisão de o deixar para sempre, pensava a Sra. Phillips, talvez acabasse por se endireitar. Todos queriam a mesma coisa - que Jimmy parasse de beber, arranjasse um emprego e se tornasse bom marido e bom pai.
O julgamento de Walter Spencer, acusado de ter assassinado Mollie Smith ”atingindo-a e cortando-a com um machado”, teve início no próprio dia das eleições, 7 de Dezembro.
Muitos habitantes de Austin ficaram satisfeitos por ver que se estava finalmente a tomar medidas legais para castigar o assassino da primeira criada, e tinham a expectativa de que a acusação fosse bem sucedida e se procedesse ao enforcamento. Outros achavam que o momento escolhido para o julgamento era suspeito, e consideravam que ele se limitava a
401a apontar a deplorável incapacidade da cidade para a resolução do problema do crime. Era difícil determinar exactamente até que ponto o início do julgamento de Walter tinha ajudado os candidatos, e até que ponto os tinha prejudicado, ou se tinha melhorado, ou não, O prestígio do Comissário Grooms Lee.
O concorrente de John Robertson à Presidência do município era Joseph Nalle, um homem de negócios bem sucedido e famoso pelo seu temperamento explosivo. Nalle já tinha estado envolvido na vida política. Durante o seu último mandato como membro do conselho municipal, uma discussão com outro vereador tinha-se transformado numa rixa de rua, que tinha acabado com Nalle a dar duas punhaladas no coração ao homem. Nalle, um indivíduo pequeno que pesava menos de 60 quilos, declarou que se tratara de um caso de autodefesa e foi absolvido. O seu estilo agressivo atraía admiradores, especialmente quando comparado com a laboriosa seriedade de John Robertson, mas havia quem considerasse que talvez Nalle não fosse o homem mais indicado para limpar a cidade da escalada de crimes a que tinha estado sujeita. Os resultados, publicados no Statesman do dia seguinte, mostravam que o Presidente Robertson fora reconduzido no cargo por uma estreita maioria de 1327 votos contra 1293.
Na opinião de muitos eleitores, as eleições locais deixaram Austin mais perturbada do que nunca.
O julgamento de Walter Spencer durou três dias.
Robertson, o Procurador-Público, pouco tinha a apresentar que não fosse já sabido por todos, por ter sido publicado nos jornais ou ter passado de boca em boca. Apesar disso, convocou uma série de testemunhas, entre as quais o jovem Tom Chalmers, que Walter tinha acordado na noite do assassínio; Nancy Brown, a enfermeira que vivia naquela casa e assistia a Sra. Hall, e testemunhou que Mollie costumava desancar no acusado; os médicos que haviam examinado Mollie Smith e tratado as feridas de Walter; e Lem Brooks, cujo testemunho confirmou a moral dissoluta da vítima.
O júri era constituído por uma amostra dos cidadãos da cidade, desde J. M. Day, um famoso e abastado criador de gado, até Wesley Edwards, um homem de cor que era porteiro do Hotel Avenida. Deliberaram rapídamente, antes de apresentarem o veredicto unânime.
Walter Spencer foi considerado inocente do assassínio de Mollie Smith.
402O novo conselho municipal deliberou com igual rapidez sobre uma moção que visava determinar que o Sr. Grooms Lee não fosse reconduzido no cargo de Comissário da polícia da cidade. A moção foi aprovada. Grooms Lee não foi despedido; simplesmente, não voltou a ser contratado.
Durante o mês de Dezembro, Will Porter passou uma grande parte do seu tempo livre a ensaiar Mikado.
A Grande Companhia de ópera de Emina Abbott, uma companhia itinerante que já tinha feito espectáculos na ópera de Millett, regressaria no final do mês. O espectáculo da tarde, anunciado no prospecto impresso, seria a ”A Primeira Produção de uma Grande Companhia de ópera com TRÊS PRIMA-DONAS, Coro e Orquestra e um enorme elenco, da Fantasia japonesa MIKADO, de Gilbert & Suilivan.” Um representante da companhia fora anteriormente a cidade recrutar cantores para o coro. Will e os seus parceiros de serenata foram seleccionados e ensaiavam sempre que podiam com os outros membros locais do coro, reunidos a volta de um piano e partilhando uma pauta de música. Não lhes pagavam nada, mas tinham prometido a Will vários bilhetes de graça, e não fora para os lugares baratos, os lugares de galeria, de cinquenta cêntimos cada; fora para os lugares reservados da orquestra, que custavam um dólar. Os bilhetes dariam excelentes presentes de Natal.
A distracção proporcionada pelos ensaios era algo de que ele tinha intensa necessidade, porque lhe era impossível ignorar determinados acontecimentos que tinham lugar ao fundo da rua onde ficava a sua pensão. O concurso de gritos que ocorrera no pátio da frente da casa dos Phillips foi discutido no bairro durante dias; Will não assistira à cena, mas tinha ouvido diversas versões da mesma. O comportamento de Jimmy Phillips fora vergonhoso, diziam as pessoas. Ele e a irmã tinham sido excessivamente mimados em crianças. A discussão pública - com Delia a brandir uma pá e Jimmy a ser afastado dela pelos pais - tinha escandalizado a vizinhança.
A maioria das pessoas mostrava-se solidária com a mulher de Jimmy. Era uma coisinha tão bonita, e era tão amorosa, a empurrar o carrinho do bebé pela rua fora. Como é que ela podia saber o sarilho com que se ia casar? Tinha ido para Manchaca, para casa da irmã, diziam as pessoas
403- e quem poderia censurar semelhante atitude? -, e dizia-Se que talvez não voltasse.
Ao ouvir estes rumores, Will não podia deixar de sentir um arrepio de inconfessável esperança. Ouvir Jimmy Phillips ser repreendido de alto a baixo reconfortava-o, e saber que Eula devia sentir-se ainda mais infeliz do que ele próprio gerava nele uma satisfação perversa. O caminho para a felicidade continuava tão sombrio como sempre fora, mas quen sabe o que resultaria de elementos tão voláteis?
Foi, pois, com profundo desânimo que certa manhã de meio de Dezembro, muito cedo, Will reparou que uma carroça da Booth & Sons parava em frente da casa dos Phillips. Uma equipa estava a descarregar vários caixotes de grandes dimensões.
- O que e isso? - perguntou Will a um dos homens, que era seu conhecido.
É uma mobília de quarto de cama. Para o velho Phillips e a mulher?
Não, para Jimmy. Calculo que seja uma surpresa para a mulher, um presente de Natal adiantado. Dizem que o Jimmy deixou de beber. Arranjou um emprego na construção do novo quartel dos bombeiros.
- Deve ser um impulso momentâneo, não? - observou Will, erguendo uma sobrancelha num gesto de cepticismo.
- só sei que o Sr. Booth decidiu confiar no rapaz. Vendeu-lhe esta mobília a crédito. Mandou-nos desencaixotá-la e montá-la, para estar pronta quando a mulher voltar, esta tarde.
- Ela... vai voltar? - perguntou Will sem expressão.
- Calculo que fique bem impressionada. É em segunda-mão, não é nova, mas é uma bela mobília, de pinho maciço.
Na manhã seguinte, ao passar diante da casa dos Phillips a caminho do escritório, Will avistou Jimmy Phillips, que ia a sair para o trabalho. Jimmy fez uma pausa à porta para receber um beijo de despedida, que Eula lhe deu na face, enquanto segurava o filho no outro braço. Parecia bem repousada, depois de ter passado a noite na cama nova, pensou Will, e não estava com um ar tão desesperadamente infeliz como ele esperara.
- Mas que diabo tomou conta do Gaines? - exclamou Dave Shoemaker.
404- Para além de uma data de uísque caro e charutos e delícias culinárias que ultrapassam os meus reduzidos meios, não faço ideia - respondeu Hiram Glass. - Mas presumo que estejas a referir-te a alguma coisa específica.
- já viste isto? O artigo que ele publicou na edição de hoje? É o que acontece quando o proprietário de um jornal se transforma em chefe de redacção, não há ninguém que lhe corte as vasas! - Dave passou a Hiram a edição acabada de imprimir, apontando para o artigo em questão. - Francamente! Ele achará que a cidade já passou tempo de mais sem um assassínio?
- Os assassínios vendem jornais - fez notar Hiram, aspirando o cheiro a tinta fresca.
- Ele parece um daqueles rapazinhos que deitam sal no punch num dia de festa. Imagina publicar um artigo destes a poucos dias do Natal! Hiram pigarreou.
- Presumo que te refiras a este artigo que tem como título: ”Os assassínios: a fase da Lua na noite em que eles se deram.” Parece-me bastante científico.
Dave resfolegou. Hiram leu em voz alta:
- ”Será possível que um homem planeie calmamente e leve a cabo assassínios horríveis a luz brilhante da Lua? Será a Lua, conforme defendem alguns, capaz de afectar determinados maníacos, intensificando-lhes a doença? Uma coisa é certa: praticamente todos os assassínios de criadas cometidos durante o ano passado foram-no a uma distância de sete dias da Lua cheia e sob o seu brilho maligno”. Fascinante!
- Continua.
- ”Dentro em breve, fará um ano do assassínio de Mollie Smith, o que marcará uma comemoração sinistra. E dentro em breve a Lua voltará a estar cheia. Iluminará ela outro cenário sangrento de morte cruel e pavorosa?”
Dave abanou a cabeça.
- Gaines está praticamente a convidar o assassino a atacar de novo! uma loucura.
Hiram arqueou as sobrancelhas.
- A loucura da Lua!
40540
Quando se foi deitar, na véspera de Natal, a Sra. James Phillips decidiu que tinha muitas razões para se sentir agradecida. Eula tinha voltado para Jimmy. Jimmy tinha deixado de beber - e jurara que desta vez era definitivo. No próximo mês de janeiro, o casal comemoraria o terceiro aniversário de casamento. E Delia - a teimosa e voluntariosa Delia parecia ter feito as pazes com o irmão. O concurso público de gritos entre ambos tinha-a embaraçado tanto como aos outros, e o facto de ter atingido Jimmy na cabeça com uma pa parecia ter-lhe feito ganhar tanto juízo a ela como a ele.
Ocorreu à Sra. Phillips que também devia sentir-se agradecida pelo facto de o rapaz de Sallie Mack, Alec, ainda se contar entre os vivos. Ninguém poderia desejar melhor inquilina e lavadeira do que Sallie. A pobre mulher tinha sofrido muito enquanto o filho estivera na prisão, e tinha ficado com o coração destroçado ao ver as coisas que lhe tinham feito. Por muito doloroso que o seu próprio destino por vezes lhe parecesse, bastava à Sra. Phillips pensar em Sallie Mack para se recordar até que ponto era realmente uma mulher de sorte.
A casa tinha estado todo o dia silenciosa. Delia estava fora da cidade, no Entroncamento de Rosenberg, onde fora visitar uns amigos. O Sr. Phillips não andava a sentir-se bem, de maneira que passara a maior parte do dia no quarto de hóspedes, a dormir e a ler. A Sra. Phillips estivera ocupada na cozinha, a fazer os doces da época e a vigiar o bebé.
É certo que, por volta das cinco horas, tinha havido um desagradável quarto de hora. A Sra. Phillips tinha ido à sala de estar, onde havia encontrado Jimmy e Eula no sofá. Jimmy estava a ler o jornal e Eula a ler um romance. Eula estava deitada de lado, com a cabeça poisada no colo de Jimmy. Era um quadro tão agradável, que a Sra. Phillips estivera a observá-los por momentos, em silêncio. Eles eram realmente um casal lindo! Então, Jimmy apercebera-se da presença dela e agitara-se. Eula sentara-se direita. Jimmy dobrou o jornal e começou a andar de um lado para
406o outro com a sua habitual inquietude, e de repente declarou que ia à
Booth & Son pagar uma prestação da mobília de quarto. Eula franziu o sobrolho e mordeu o lábio.
- Mas já são 5 horas - observou a Sra. Phillips.
- Eles hoje estão abertos até tarde, Mãe, para as pessoas comprarem as prendas de Natal de última hora.
A Sra. Phillips sabia que este era o momento do dia em que o filho se sentia mais violentamente tentado a tomar uma bebida. E em particular naquele dia em que tanta gente saía mais cedo do emprego, e em que até os abstêmios tomavam um pouco de rum ou de cidra alcoólica, era natural que a tentação fosse bater à porta de Jimmy.
- Se sais agora, Jimmy, não voltas antes da meia-noite.
- Que disparate, Mãe.
- É véspera de Natal, Jimmy. Há muita gente na rua. E se alguém te convida a beber qualquer coisa...
- Vou direitinho ao Booth & Son e volto para casa - insistiu Jimmy.
- Só preciso de esticar as pernas e apanhar um pouco de ar fresco. Não demoro mais de um quarto de hora.
- Aposto contigo o preço de um charuto em como não voltas dentro de quinze minutos - replicou a Sra. Phillips, tentando aligeirar os seus receios.
- Apostado! - Jimmy agarrou no casaco e pôs-se a andar.
A Sra. Phillips e Eula sentaram-se a conversar, sobre nada de especial, ambas olhando de vez em quando para o relógio da prateleira da chaminé. Começava a escurecer. A Sra. Phillips nunca tinha passado um quarto de hora tão horrível. Perguntou a Eula o que estava ela a ler.
- Oh, é um livro de Francis Marion Crawford, An American Politician. É sobre uma inglesa que se apaixona por um democrata de Boston.
- Mas há democratas em Boston? - perguntou a Sra. Phillips.
- Acho que a ideia do livro é ser excêntrico. As pessoas são todas muito ricas e sofisticadas, e já todas foram a Londres e a Paris. - Eula suspirou. - Calculo que Boston seja muito diferente de Austin.
- Não consigo compreender que interesse tem ler uma história sobre um político. Esta cidade está cheia deles, e eles estão todos cheios de si próprios!
- Oh, não me parece que os políticos sejam assim muito diferentes dos outros homens - observou Eula com um leve sorriso.
407A Sra. Phillips ouviu os passos de Jimmy no alpendre. Tinha passado exactamente um quarto de hora. Sentia-se capaz de chorar de alívio.
Depois do jantar, Eula soltou o cabelo e sentou-se no chão da sala de estar. O bebé gatinhava no tapete. A Sra. Phillips sentou-se atrás de Eula, no sofá, e ajudou-a a pôr papelotes no cabelo. Jimmy pegou no livro de Eula e leu em silêncio durante algum tempo, depois ficou com uma expressão sombria.
- O que se passa, Jimmy? - perguntou a mãe.
- Oh, estou aborrecido. Tem a ver com dinheiro, principalmente.
- O emprego de Jimmy no quartel dos bombeiros tinha acabado.
- Não te preocupes muito, filho. Nesta altura, ninguém contrata ninguém por causa dos feriados. Logo que entrar o ano, encontras outro emprego, de certeza.
Por volta das 10 horas, Eula, Jimmy e o bebé retiraram-se para o quarto onde dormiam, do outro lado da varanda. Eula disse que lhe apetecia qualquer coisa doce. A Sra. Phillips sorriu e disse-lhe que ela só podia comer os doces de Natal no dia de Natal, mas que lhe ia buscar umas amêndoas e maçãs.
A Sra. Phillips foi ver como estava o marido, que continuava indisposto, arrumou a cozinha, partiu e torrou umas amêndoas e cortou uma ou duas maçãs. Atravessou a varanda, sentindo uma pontada de frio no ar, e entrou no quarto, onde foi encontrar Jimmy e Eula deitados na nova cama, de frente um para o outro, com o bebé entre os dois. Jimmy tinha o braço estendido, de tal maneira que a curva do cotovelo formava uma almofada para a cabeça do bebé, com a mão poisada na cabeça de Eula, afagando-lhe suavemente o cabelo. Estavam os dois a rir e a falar em voz baixa, brincando com as mãos e os pés do bebé.
A Sra. Phillips poisou o tabuleiro em cima da cómoda, ao pé da lamparina. Voltou para a casa principal, pensando de novo que eles formavam um belo casal. Parecia que o azedume que havia entre eles era coisa do passado.
A Sra. Phillips preparou-se para se deitar. Como passaria a noite a levantar-se e a deitar-se, para ver como estava o marido, doente no quarto ao lado, não se despiu por completo, deixando ficar a camisola interior e as meias. Pôs um xaile sobre os ombros e deitou-se de costas na cama. O relógio da cornija da sala de estar deu onze badaladas. Ela não tardou a deixar-se cair num sono ligeiro, pensando nas muitas coisas pelas quais tinha de se sentir agradecida naquela véspera de Natal.
408
Deve ter sido hora e meia mais tarde, depois da meia-noite, às primeiras horas do dia de Natal, que ela acordou. Sentou-se muito direita, à escuta. O grito vinha da direcção do quarto de Jimmy e Eula.
Correu para a varanda. O ar frio atingiu-lhe as orelhas. Talvez tivesse sonhado com o grito, pensou. Depois, ouviu novo grito. Era a voz de jimmy, em agudos tão estranhos que ela mal a reconheceu.
- Oh, Mãezinha! - gritava ele. - Oh, Eula!
A Sra. Phillips atravessou a varanda e abriu a porta.
A lamparina continuava acesa em cima da cómoda, embora a chama estivesse muito baixa. Jimmy estava deitado na cama, agitando freneticamente os braços como se estivesse a defender-se de um atacante invisível.
- Oh, Mãezinha! Eula, querida! - gritava, num tom estranho que lhe fazia arrepios na nuca. O bebé estava sentado direito entre duas almofadas, encostado a cabeceira da cama, a chuchar numa lasca de maçã que apertava na mãozinha fechada.
Durante muitos anos, esta cena povoaria os pesadelos da Sra. Phillips. Seria a esta imagem que a sua memória consciente regressaria uma vez e outra, compulsivamente, contra a sua vontade: os braços do seu filho agitando-se no ar como se fossem cobras monstruosas, e o bebé sentado muito direito, olhando-a com muda inocência, de olhos muito abertos, a chuchar naquele bocadito de maça.
A lamparina vacilou. Ela pestanejou. Como se uma lente vermelha tivesse coberto a imagem projectada de uma lanterna mágica, de repente pareceu-lhe que todas as coisas que havia no quarto tinham ficado saturadas com a cor daquela maçã vermelha e brilhante. Jimmy e o bebé estavam cobertos de sangue. As almofadas estavam ensopadas em sangue. No meio do chão, encontrava-se um machado coberto de sangue. Eula não se via em parte nenhuma.
Como era seu costume na véspera de Natal, William. Pendleton Gaines estava a dar uma festa no seu escritório do último andar. Tinha começado por volta da hora do jantar e prolongar-se-ia até à meia-noite. Todos os funcionários do Statesman tinham sido convidados, eles e quem quer que trabalhasse no edifício, incluindo o pessoal da Maddox Bros. & Anderson, onde trabalhava Will Porter.
A equipa da noite do Statesman tinha tido de fazer o turno habitual naquela noite, compondo a edição da manhã do dia de Natal, mas grande
409parte do trabalho tinha sido antecipado, de maneira que os trabalhadores circulavam à vontade entre o escritório de Gaines e os seus, com Os dedos sujos de tinta e as canetas espetadas atrás das orelhas, transportando travessas de comida e taças de punch ou de eggnog. O jantar era um verdadeiro banquete, com galinhas assadas, saladas quentes e frias, taças a abarrotar de uvas de Málaga, amêndoas torradas e tiras de laranja, sumptuosos bolos de fruta e taças de natas acabadas de bater.
No princípio da semana, tinha havido uma tempestade, mas esta noite o céu estava limpo. A porta que dava para a varanda do último andar estava destrancada, para que as pessoas pudessem ir apanhar um pouco de ar fresco se lhes apetecesse, e apreciar a linha do horizonte da Rua Pecan e da Avenida do Congresso, banhadas pelo luar. Foi na varanda que Dave Shoemaker encontrou Will, que tinha desaparecido algum tempo antes. Estava sozinho, a olhar abstractamente por sobre o corrimão de pedra, para um trem de mula que passava em baixo, na rua.
- Está frio aqui fora, Will!
- Está?
- Presumo que não queiras falar sobre isso.
- Sobre quê?
- Sobre o que te anda a comer as entranhas ultimamente.
- Eu? Estou feliz que nem um passarinho.
- Estás infeliz que nem um boneco de lama! Felizmente para ti, eu conheço um remédio para a melancolia.
- És médico?
- Sê paciente e verás.
Dave levou Will para dentro e começou a medicá-lo. Após umas taças de eggnog, que estava forte, o estado de espírito de Will alterou-se drasticamente.
- Sabes o que está a faltar a esta festa? - perguntou a Will. - Música!
- já cantámos todas as canções de Natal que conhecemos - replicou Dave.
- Nesse caso, entra um pouco de Gilbert e Sullivan!
Will passou a entreter quem o quisesse ouvir com uma versão muito abreviada do Mikado. Para além dos coros, também tinha aprendido de cor uma série de solos e era capaz de fazer acompanhar o seu natural baixo com um martirizante falsete. O seu espectáculo de um homem só atraiu muito público. O facto de a maioria dos ouvintes ter sido
410medicada com a mesma receita que lhe tinha sido aviada a ele, ajudou à festa.
Mergulhou de cabeça na canção do desajeitado Ko-Ko, o relutante Carrasco Superior:
”Como é provável que um dia se tenha de encontrar uma vítima, Tenho aqui uma listinha - Tenho aqui uma listinha
De delinquentes sociais que podem muito bem andar ocultos,
E que não devem ser esquecidos - que nunca devem ser esquecidos! O preto que faz serenatas, e outros da raça dele,
E o organista de piano - também o tenho na lista!
E as pessoas que comem hortelã-pimenta e no-la sopram para a cara...”
Dave retirou-se para um canto afastado, com um prato a abarrotar de comida. Hiram Glass foi ter com ele.
- O teu jovem amigo sabe entreter a malta - observou Hiram.
- Está bêbedo. E suspeito que está apaixonado.
- Isso não é desculpa.
- É a única desculpa que vale alguma coisa, hás-de convir.
- Tu, Dave Shoemaker, um sentimental?
- Deve ser do eggnog.
Do outro lado da sala, Will avançava ousadamente pela confusa intriga.
- Então Ko-Ko disse: ”Pelas leis do Mikado, quando um homem casado é decapitado, a mulher é enterrada viva.” Nanki-Poo e Yum-Yum quase se engasgam: ”Enterrada viva!” Ko-Ko observa: ”É uma morte muito desagradável!” - William Pendleton Gaines, que ia na quinta taça de punch, deu uma sonora gargalhada.
- Que planos tens para o Natal, Hiram? - perguntou Dave.
- Tenciono dormir o dia todo, talvez mesmo a semana toda, hibernar e não regressar senão em 1886.
- Significa que esta noite não te deitas cedo? Hiram lançou-lhe um rápido sorriso.
- Na verdade, tenho uma reserva para as onze e um quarto desta noite em casa de uma certa viúva.
- Uma reserva?
411- A Sra. Tobin declarou-me que a noite de Natal é a noite mais movimentada do ano em sua casa. Os quartos são todos reservados com imensa antecedência.
- Quem diria?
Do Outro lado da sala, chegou-lhes o som do trinado em falsete de Will:
”O plano é o seguinte! Se eu me casar contigo, Quando chegar a tua hora de morrer,
A dama a quem tu amares Deve ser morta também! O plano é o seguinte!”
- Não gosto especialmente de Gilbert e Suilivan - observou Hiram com secura. - Têm um sentido de humor excessivamente mórbido para a minha sensibilidade delicada. A propósito, que horas são isto?
Dave puxou do relógio de bolso.
- Quase onze.
Na pele do pomposo burocrata Pooh-Bah, Will gritou:
- ”Corta-lhe a cabeça! Corta-lhe a cabeça!” - Gaines ria-se à gargalhada.
Tendo acabado o que tinham no prato, Hiram e Dave acompanharam-se mutuamente à mesa para se aviarem pela segunda vez. Hiram foi à frente. Pegou nos talheres e encheu o prato de macarrão e salada de feijão.
Will avançava para o grande número do Mikado. Era cantado no seu tom natural de voz, de maneira que ele fez ribombar a canção a gosto:
”Alcançarei a tempo
O meu sublime objectivo.
Fazer com que a pena se adeqúe ao crime... Que a pena se adeqúe ao crime!”
Ao aproximar-se da mesa das bebidas, Hiram, tropeçou. Conseguiu manter o prato no ar, mas deu uma forte pancada na mesa com a anca, fazendo abalar a taça do punch, cujo conteúdo vermelho-sangue se lhe derramou sobre a virilha.
412Ouviu-se uma espécie de detonação. Hiram soltou um grito e atirou com o prato, que fez um percurso pelos ares, espalhando pedaços de macarrão e de feijão. O prato foi escaqueirar-se no chão.
Ignorando a interrupção, Will continuava a cantar: ”Fazer com que a pena se adeqúe ao crime... Que a pena se adeqúe ao crime!”
Dave precipitou-se para diante. Agarrou no ombro de Hiram para o amparar, e apanhou um choque como nunca tinha apanhado na sua vida!
Dave soltou um ganido e recuou violentamente. Hiram começou a agitar-se como um louco, agarrado ao tronco.
- Tirem-me isto! Tirem-me isto! - gritava. Do outro lado da sala, Will começava a perder a atenção dos seus ouvintes, até que, a certa altura, ele próprio se apercebeu de que havia qualquer coisa que estava a correr muito mal.
Hiram caiu ao chão, agitando as pernas e os braços, os dentes cerrados numa expressão de maníaco, o rosto cor de cinza. Sempre que tentava tocar-lhe, Dave recuava com o choque. De repente, Hiram apertou as mãos em volta do peito e imobilizou-se. Estendeu as pernas e os pés numa linha rígida. O corpo sofreu convulsões - uma, duas, três - como uma corda dedilhada e tornou-se flácido.
Tinha a boca fixa numa careta e os olhos muito abertos.
- Mas o que foi isto? - perguntou Gaines.
- Oh meu Deus, acho que já sei! - Com muito cuidado, com receio de apanhar um choque, Dave estendeu a mão para a testa de Hiram. Estava coberta de um suor pegajoso.
- Belzebu! Mefistófeles! Chamem um médico! - berrou Gaines. Os moços de recados saíram da sala a correr. - Toda a gente, à excepção de Dave, afastem-se todos! Todos daqui para fora, imediatamente!
Quando ficaram sozinhos, Dave desapertou as calças de Hiram.
- Eu sabia que ele trazia a porcaria dos suspensórios.
- O quê? - Gaines estava horrorizado.
- Uns suspensórios voltaicos. O senhor devia saber do que se trata. O Statesman faz publicidade as encomendas postais destas coisas.
- Bem, sim, mas nunca pensei chegar a pôr-lhes os olhos em cima. Valha-me Deus, queres dizer que isso se enrola a volta da cintura e depois passa por baixo dos...
413- Exactamente.
- Mas qual é a fonte de energia disso?
- Tem uma espécie de pilha atrás. Tenho medo de lhe tocar!
- Não deve ter problema. A electricidade é uma coisa boa.
- Se calhar, ele pôs uma pilha forte de mais, ou então - olhe aqui, esta parte, está toda aberta. Veem-se os fios! E quando o punch o molhou, oh, Hiram, Hiram!
- Deve ter sido o coração, não achas? - perguntou Gaines. - Por amor de Deus, fecha-lhe os olhos, Dave!
Com a mão a tremer, Dave estendeu dois dedos e fechou suavemente os olhos de Hiram.
A porta abriu-se. Gaines ergueu os olhos e viu Will à porta, com um ar enfiado.
- Bolas, se não é o médico, saia daqui!
- Mas eu... é que... está ali um homem a perguntar pelo Dave.
- Por amor de Deus, diga ao sujeito que espere - respondeu Gaines.
- Tenha respeito pelos mortos, senhor!
- Mas ele disse que o Dave devia ir imediatamente com ele. Disse que houve outro assassínio.
Will foi com Dave. Não conseguia permanecer nos escritórios do Statesman depois do que tinha acontecido, e estava excessivamente excitado para voltar para casa. A noite parecia um cavalo amansado que subitamente tivesse tomado o freio nos dentes, escoiceando para a direita e para a esquerda.
O homem que tinha vindo chamar Dave levou-os para sul; desceram a Avenida do Congresso e dirigiram-se ao rio.
- Onde diabo é que nós vamos? - perguntou Dave.
- A uma casa que fica no lado sul da Rua Water, num quarteirão a leste da Avenida.
- De quem e a casa?
- De um velhote chamado Moses Hancock e da mulher. Acho que é uma espécie de mecânico.
Ao passarem diante da casa de May Tobin, tanto Dave como Will olharam de fugida para a lamparina acesa na janela da frente. Will pensou em Eula. Dave pensou em Hiram, que já não iria ocupar o quarto reservado para essa noite. No cruzamento seguinte, voltaram à esquerda.
- Para sul? Mas isto é o depósito de madeiras - observou Dave.
414- Ha casas no próximo quarteirão - respondeu o homem. Prosseguiram e chegaram a uma fileira de quatro casinhas, todas parecidas. A casa para onde se dirigiam era obviamente a segunda; viam-se vários cavalos parados diante dela e uma série de gente reunida no pátio e no alpendre. Dave abriu caminho por entre a multidão, seguido de Will. Rodeava-os um rebuliço de vozes.
- Atingida na cabeça um par de vezes, pelo menos. Ouvi um dos médicos dizer que ela tem o crânio fracturado em dois sítios e que havia...
- Atingida com quê?
- O que achas? Com um machado!
- O marido encontrou-a no pátio. O vizinho viu-o levá-la para dentro de casa. Foi por causa disso que ficou cheio de sangue...
diz que viu dois homens saltarem por cima da vedação de trás... depois de a terem violado. Susan Hancock, a mulher de Moses Hancock! Uma branca! Arrastada para fora de casa e violada! Chegou a isto...
- Oiçam! Estão a ouvi-los? Os cães de caça! - A conversa febril diminuiu de tom quando os latidos dos cães de caça ecoaram no ar frio e agreste.
À porta da casa, que se encontrava aberta, via-se um polícia de uniforme. Dave levou a mão ao chapéu. Com má vontade, o homem deixou-o passar, mas barrou o caminho a Will. Dave apontou para ele com o polegar erguido e declarou:
- Está comigo. - O polícia afastou-se para o lado.
Na sala de estar, viam-se dois homens de joelhos, com malas de médicos ao lado, debruçados sobre uma figura estendida no chão. Ao Pé deles, havia duas bacias com diversos farrapos ensopados em sangue. A água de uma das bacias estava encarnada e opaca, a da outra só ligeiramente rosada. Perto deles, estava sentado um homem grande, de barba grisalha e olhar espantado, com a parte da frente da camisa coberta de sangue: Moses Hancock. Ao lado de Hancock, aquecendo as costas à lareira, estava James Lucy, o recentemente nomeado Comissário da Polícia. Era verdade o que se dizia, que o sujeito pouco maior era que um rapaz. Deviam ter-lhe feito um uniforme à medida, pensou Will. O velho uniforme de Grooms Lee tê-lo-ia engolido.
Dave puxou de um bloco e um lápis.
- Ainda está viva, Dr. Burt?
415O Dr. Burt olhou para eles por cima do ombro, Com uma expressão carrancuda.
- Oh, és tu, Shoemaker. - Voltou-se de novo para a paciente sem responder. - O que lhe parece, Dr. Graves? Haverá maneira de estancar a hemorragia dos ouvidos?
- Receio que não. E olhe aqui, por cima do ouvido esquerdo, onde o osso foi esmigalhado, vê-se o cérebro. Valha-me Deus, teve outra convulsão!
Os dois médicos recuaram, proporcionando a Will uma visão nítida da mulher deitada no chão. Tinha o cabelo densamente coberto de sangue, bem como o peito do vestido, mas tinham-lhe limpado a cara, o suficiente para se ver que era consideravelmente mais jovem que o marido. Tinha os olhos muito abertos, mas não se via nenhuma ponta de branco; era como se as cavidades se tivessem enchido de sangue, no qual as pupilas enormemente dilatadas flutuavam como duas manchas negras. Escorria-lhe sangue das orelhas. Os braços ergueram-se-lhe no ar. Os médicos seguraram-lhos. O peito elevou-se do chão e a garganta estremeceu. Um sangue espesso e escuro começou a escorrer-lhe por entre os lábios, cobrindo-lhe as faces e o queixo.
Will tapou a boca e desviou os olhos. Saiu da sala a cambalear, atravessou o vestíbulo, passou pelo polícia e saiu para o alpendre, mesmo a tempo de ver chegar os cães de caça. O luar incidia-lhes no pelo brilhante.
O polícia que estava a porta apontou para um portão que ficava na parte lateral da casa, e gritou ao homem que segurava a coleira:
- Leva-os à volta. Vou dizer ao Comissário Lucy que já chegaste. Enquanto os latidos dos cães iam diminuindo de volume, um homem a cavalo contornou a esquina vindo da Avenida e dirigiu-se a galope para casa. Entrou no pátio e chegou ao alpendre.
- O Comissário Lucy está aqui?
- Está lá dentro - disse alguém.
O homem desmontou e correu para a porta da frente. O polícia impediu-lhe a passagem. O homem disse qualquer coisa em voz baixa e o polícia recuou imediatamente, deixando-o passar. Pareceu a Will que tinha ouvido o que o homem dissera, mas não lhe parecia possível; com certeza tinha sido imaginação sua. Então, um homem sussurrou entre a multidão:
416- Ele disse que tinha havido outro assassínio? Juro que foi isso que o ouvi dizer!
o burburinho aumentou. A multidão correu para o polícia que estava à porta. Ele ergueu o bastão e mandou toda a gente recuar.
pouco depois, Dave emergia da casa, a andar muito depressa e a olhar fixamente em frente. Passou por Will como se não o tivesse visto. Will correu atrás dele.
- Aonde vais?
- Apanhar um trem de aluguer em frente à casa da viúva - respondeu Dave. - Se queres vir, despacha-te! - E desatou a correr.
Will ainda se sentia enjoado e deixou-se ficar para tras. Dave desapareceu do outro lado da esquina que dava para a Avenida do Congresso. Quando Will o apanhou, o carro que estava parado em frente a casa de May Tobin começava a andar. Will deu uma corrida e saltou para o degrau quando o carro ganhava velocidade. Trepou para o lado de Dave, que gritava ao condutor que andasse mais depressa.
Will encostou-se no assento, tonto e ofegante. Os solavancos do carro faziam-no sentir pior.
- Aonde vamos?
- Houve outro assassínio - gritou Dave.
- Eu sei. Mas onde...
- Espera, cala-te. Tenho de fazer isto enquanto tenho a memória fresca. - Dave colocou o bloco de notas numa mancha de luar, tentando ler as anotações que tinha feito em casa de Hancock e acrescentando mais umas garatujas. Murmurava e praguejava de cada vez que o breu e os balanços do carro faziam com que o lápis deslizasse para fora do bloco. Will recostou-se, apertando o estômago.
O carro subiu a Avenida a grande velocidade, até chegar a Rua Hickory.
- Aqui, condutor! Vire a esquerda! - gritou Dave. O condutor deu uma curva tão apertada, que um dos lados do carro deu a curva no ar. Will pensou que não ia conseguir deixar de vomitar. Dave perdeu o lápis, que saiu a voar pela janela fora.
- Maldição! - gritou Dave. Por momentos, pareceu desesperado, mas depois fechou o bloco de notas com um gesto decidido e meteu-o no bolso do peito. - Mais depressa!
417O carro disparou pelo cruzamento com a Rua do Colorado, quase atropelando dois pândegos, que correram em direcções contrárias. Un deles deixou cair uma garrafa de uísque, que se esmigalhou com uma ruidosa explosão.
- Mais depressa! - gritou Dave. Will nunca o tinha visto naquele estado.
- Acalme-se! - gritou o condutor por cima do ombro. - Estamos quase a chegar, mais um quarteirão, e na esquina da Hickory com a Lavaca, não é?
A indisposição que Will sentia no fundo do estômago acentuou-se.
- Aonde é que nós vamos? - perguntou.
O trem parou com um solavanco. Dave meteu uma moeda na mão do condutor e saltou para a rua. A tremer, ofegante, tonto, Will deixou-se ficar sentado, imóvel, a ver Dave atravessar o pátio a correr, aproximando-se do local onde uma pequena multidão já se tinha reunido diante da varanda que ligava a parte principal da casa dos Phillips ao anexo onde Jimmy e Eula moravam. A própria varanda estava toda iluminada com lamparinas.
O condutor espreitou a cena.
- Que raio? Assassínio, foi o que ele disse? - O homem saltou do seu lugar e foi juntar-se à multidão.
Will deixou-se estar sentado mais algum tempo, relutante em abandonar a escuridão silenciosa do trem. Uma estranha insensibilidade tomava conta dele. Finalmente, agitou-se e saiu do carro, movendo-se como que em sonhos. O ruído da multidão era abafado. A luz proveniente da varanda era estranhamente brilhante, quase cegava. O ar da noite parecia espesso e pesado.
Ao atravessar o pátio, a única coisa em que ele conseguia pensar era que estava a andar em território proibido. Não estava autorizado a pisar aquela propriedade. Era o último sítio do mundo onde seria bem recebido. Não podia estar ali. E contudo, ali estava, atravessando o pátio dos Phillips e subindo os degraus da frente...
De repente, um polícia impediu-lhe a passagem.
- Não pode subir à varanda, cavalheiro. Volte para o pátio. Uma voz que Will mal reconheceu como sua declarou:
- Venho com Dave Shoemaker. Do Statesman. O polícia recuou.
418- Bem, não toque em nada. E não pise essa pegada.
Will olhou para o local para onde o homem estava a apontar. Havia uma mancha no chão de madeira da varanda. Por momentos, não conseguiu perceber do que se tratava, depois compreendeu que era uma pegada. Ao brilho cruel da lamparina, via-se que o sangue ainda estava fresco.
A porta do pequeno anexo estava aberta. Will avançou em direcção a ela, de novo com a sensação de formigueiro de estar a entrar num local proibido. Quando estava à porta, Dave passou por ele, saindo para o exterior. Dave estava a escrevinhar no bloco de notas e não reparou nele.
O quarto estava fortemente iluminado, embora não tanto como a varanda. A primeira coisa em que Will reparou foi na bacia de água que se encontrava no chão, cuja superfície reflectia pontos brilhantes de luz; também vira bacias de água na sala de estar dos Hancock, pensou obtusamente. Havia uma mulher de cor - Sallie Mack - debruçada sobre a bacia, a torcer um trapo, conferindo a agua cor-de-rosa um tom mais profundo. Levantou-se, aproximou-se da cama que havia ao canto do quarto e estendeu o trapo a uma mulher branca - a Sra. Phillips, que estava a limpar o homem que se encontrava deitado na cama. Will não via a cara do homem, porque a Sra. Phillips lhe bloqueava a vista, mas sabia que devia ser Jimmy. A cama e as almofadas estavam cobertas de toalhas, aqui e ali o sangue penetrava nas toalhas, deixando nelas círculos de encarnado, como fe ridas ensopando um penso.
Ele estava no quarto deles.
Ele estava no quarto deles. Isto dava uma ideia da dimensão da catástrofe, o facto de ele, ele e mais ninguém, estar ali, sem que ninguém lhe perguntasse a fazer o quê, sem que ninguém reparasse sequer nele. Era como se o quarto fosse uma cidade conquistada: tinham-se aberto brechas nas muralhas e os guardas tinham sido dispersados; a mãe chorava sobre o filho; o santuário estava aberto, e qualquer desconhecido podia violá-lo. Havia no ar um sentimento de condenação, tão espesso que o engasgava.
Olhou em redor do quarto. Os pormenores gravavam-se-lhe indiscriminadamente no espírito. Ali perto, em cima da cómoda, reparou num livro com um marcador verde inserido a meio; na lombada lia-se: An American Politician de E Marion Crawford. Este pormenor adquiriu o mesmo peso que o facto de haver um machado aos pés da cama, com o cabo e a lâmina manchados de sangue.
419Deu por si distraído pela cómoda, e o pequeno toucador, e a própria cama. Era a tal mobília de quarto de que tinha ouvido falar, o presente que Jimmy dera a Eula, a prova de que estava reformado, a recuperação do casamento de ambos. Como ele odiara estas peças inanimadas de madeira! Odiara-as de tal maneira, que de boa vontade teria pegado num machado e as teria desfeito em pedaços, queimando cada tábua e cada puxador, até restarem apenas cinzas. Tinha imaginado uma mobília de quarto irritantemente bela, a mais bela cama, e cómoda e toucador que jamais haviam existido, um mobiliário suave e polido e brilhante, perfeitamente deleitável, obscenamente sedutor. À luz das lamparinas, as peças tinham um patético aspecto de refugo e de segunda-mão, manchadas e riscadas e mal acabadas. Teve vergonha de si próprio por tê-las odiado tão intensa-mente. Nesse momento, a Sra. Phillips olhou por acaso na sua direcção, com uma expressão ferida e confusa, e a vergonha empurrou-o para fora daquele quarto.
As lamparinas acesas na varanda entonteceram-no. Em vez de se aproximar da multidão que sussurrava no pátio, dirigiu-se em sentido contrário, sem pensar aonde ia.
- Não pise a pegada! - berrou o polícia, mas Will só ouviu uma vaga censura. Desceu para o pátio de trás, penetrando de tal maneira em território proibido, que era inconcebível. Era como se estivesse na lua!
Havia lamparinas acesas ao fundo do pátio, onde várias pessoas estavam reunidas em círculo. Parecia uma festa. Ele sentia-se tonto, e estranhamente separado do corpo, como as vezes se sentia quando tinha febre. Aproximou-se do grupinho, para ver para onde estavam a olhar.
Os homens falavam uns com os outros, com as vozes estranhamente desprovidas de emoção.
- Fizeram-lhe o mesmo que fizeram as raparigas de cor - esmagaram-lhe o crânio e depois arrastaram-na cá para fora para acabar o trabalho.
- Devem tê-la violado. Sabes bem que devem.
- Os médicos hão-de dizer.
- Deviam ser dois. Um segurava-lhe os braços com aquela tábua, enquanto o outro...
O grupo estava tão apertado, que ele não conseguia ver grande coisa. Alguns dos homens olharam de relance por cima dos ombros e, ao verem-no, afastaram-se um pouco para lhe dar espaço, como se fosse de bom tom permitir ao recém-chegado ver o mesmo que eles viam.
420Eula estava deitada de costas. Estava nua. Tinha as pernas abertas e os braços estendidos por cima da cabeça, de tal maneira que o seu corpo formavam um X. Tinha uma comprida tábua a cobrir-lhe a parte superior dos braços. O seu rosto estava desprovido de qualquer expressão, de qualquer sugestão de personalidade humana. A cabeça tinha sido esmagada.
Vindo de longe, transportado pelo ar frio e silencioso, chegou-lhe aos ouvidos o latido distante dos cães de caça. Ao som dos cães juntou-se outro, o apito solitário e queixoso do comboio que, algures na linha Missouri-Pacífico, atravessava a noite.
421A Viagem de regresso:
da Cidade de Nova iorque ao Texas, 1906
Não ha como uma viagem de comboio para libertar o intelecto e estimular a mente, pensa William Sydney Porter. Até uma curta viagem num comboio aéreo em Nova Iorque produz um estado rarefeito de contemplação, de onde saltam argumentos e personagens como Atena da cabeça de Zeus; muitas histórias de O. Henry foram concebidas a chocolatear por sobre as ruas de Manhattan, avistando de relance rostos à janela e observando os ajuntamentos de multidão, em baixo, na rua.
A longa viagem de Nova Iorque para o Texas tem sido muito mais estimulante. Contemplou durante horas a paisagem sempre mutável, embalado pelo estralejar rítmico das rodas, aninhado como um bebé no confortável lugar que ocupa, ao mesmo tempo que se sente estimulado com a permanente sensação de movimento e velocidade. Neste curioso estado mental, passaram-lhe pela cabeça, não apenas histórias, mas antologias inteiras. À noite, dorme um sono sem sonhos, porque todos os sonhos o visitam durante o dia.
É como se um vento frio e estimulante tivesse varrido o atravancado sótão que é a sua mente, arrancando as teias de aranha e limpando os cantos cobertos de pó, trazendo à luz memórias armazenadas muito ao longe, nos recessos da sua mente.
Até se ter posto a caminho, não fazia ideia da necessidade que tinha desta viagem. Bendito fosse o Dr. Kringel, o melhor de todos os companheiros de viagem, por ter aparecido vindo de lado nenhum e o ter levado consigo! Bendito fosse o Dr. Edmund Montgomery, por lhe ter enviado do Texas a misteriosa convocatória que dera início à viagem!
Nestas últimas etapas, à medida que se aproximam do Texas - chegam amanhã -, Porter deu por si a analisar a figura do Dr. Montgomery com considerável curiosidade. Que segredo poderá o filósofo conhecer acerca do destino que se abatera sobre Eula Phillips vinte anos antes? Que possível relação existirá entre Eula e Montgomery?
422Continua a espreitar ocasionalmente para o exemplar dos Problemas Filosóficos à Luz da Organização Vital da autoria de Montgomery, que o seu companheiro de viagem trouxe consigo. Porter continua a não conseguir perceber nada do que lê, mas pelo texto e pelas suas próprias recordações vagas -, reconstruiu uma imagem mental do autor. Imagina o idoso Dr. Montgomery com o cabelo branco, grandes patilhas brancas e a arredondada pronúncia escocesa. Diverte-o conceber o homem como um filósofo-eremita-detective, apreciando crimes antigos no seu escuso retiro de Liendo, e apresentando soluções baseadas na simples lógica e na percepção filosófica. Que série lucrativa de histórias não se extrairia a uma personagem destas! Infelizmente, Porter não tem talento para histórias policiais. Tal como as de Mark Twain, as suas ocasionais incursões na ficção detectivesca transformam-se inevitavelmente em paródias. só um inglês consegue escrever sobre pistas, herdeiros desaparecidos e ciladas ocultas sem se rir. Apesar disso, pode ser que se divirta um bocado com este filósofo-eremita-detective; se houver livro que mereceu jamais ser satirizado, foi certamente Problemas Filosóficos à Luz da Organização Vital.
De interesse mais imediato para Porter foi o volume que encontrou num quiosque de livros em segunda mão na estação de St. Louis, um exemplar antigo de um romance intitulado An American Politician, de E Marion Crawford; o vendedor insistiu em cobrar um níquel por ele. Porter comprou-o sem saber muito bem por quê, a não ser o facto de se ter recordado de que referira Crawford a Kringel como o exemplo de um escritor americano popular. Mas agora, ao pegar no livro, ocorre-lhe uma recordação intensa: An American Politician foi o livro que viu em cima da cómoda, no quarto de Eula Phillips, na noite em que ela foi assassinada. Fecha os olhos. Consegue ver o livro exactamente como o viu então, poisado em cima da cómoda à luz brilhante da lamparina, com um marcador verde a sair de algures a meio, a marcar a página onde Eula tinha ficado, para nunca mais retomar a leitura. Era realmente curioso que essa memória permanecesse no seu espírito ao fim de tantos anos! Se pudesse, esquecer-se-ia por completo dessa noite, de cada momento dessa noite, mas não consegue esquecer-se sequer de um pormenor insignificante como este.
Sorrindo ao Dr. Kringel, que vai sentado na sua frente, abre o romance e começa a lê-lo. Algumas páginas depois, chega a uma passagem
423que o impressiona de tal maneira, que a lê diversas vezes. Trata-se de uma descrição sentimental da heroína do romance, o típico canto de louvor às virtudes da donzela, mas as palavras perturbam-no:
Rosas frescas de cada ano, frescas com o orvalho dos ceus e o rubor da inocência, surgindo neste jardim selvagem que é o mundo, que seria do jardineiro sem vós? Se não fôsseis vós, como se encontraria beleza e doçura entre os silvados cheios de espinhos, os arbustos velhos e ressequidos e as ervas daninhas putrefactas? Donzelas de mãos limpas e corações puros, em cujo toque há algo que cura os males e alivia as dores da mortalidade, rosas cujas pétalas ainda não foram tocadas pelo pó e pela chuva, e cujo perfume divino ainda não foi ressequido pelo vento quente do sul, nem beliscado e enregelado pelo vento leste - vós sois o protesto, que todos os anos se faz diante de nós, contra a podridão dos males deste mundo, o protesto da vida angélica contra a terrena, do bem eterno contra o eterno mal.
Pensa em Eula. Ter-se-ia revisto nesta passagem, ao lê-la, vinte anos antes? Teria Jimmy Phillips lido estas palavras e visto nelas a sua mulher? Certamente que, se Porter tivesse lido estas palavras na altura, teria pensado em Eula. Era justamente assim que ele a imaginava, embora soubesse que o facto de se ter entregado a ele fizera dela uma adúltera. Punha-a num pedestal. Ela não o merecia. Mas o que merecia ela?
De repente, sente-se tolo por ter pago um níquel por aquela porcaria. Sente o impulso de atirar o livro pela janela fora. Mas o que pensaria o Dr. Kringel?
Continua a ler. As margens são largas. O tipo é fácil de ler. Passa as páginas a correr. Tem de admitir que Crawford tem um estilo suave, e que as suas personagens, ricas e sofisticadas, são bizarramente agradáveis
- na verdade, tudo aquilo é excessivamente suave e agradável para o gosto de Porter. Que e feito da acção, da reviravolta surpreendente, do toque de singeleza, do sal? É certo que existe uma espécie de vilão (que dá pelo incrível nome de Pocock Vancouver!), é um disparate absurdo sobre uma conspiração trilateral que dominara o país. Aquilo que o prende não é o enredo, mas o fascínio mórbido de saber que, vinte anos antes, nas horas que antecederam a sua morte, Eula Phillips deve ter lido estas mesmas palavras. Ocorre-lhe o pensamento sinistro de que, a certa altura, terá de atingir o ponto onde a leitura foi interrompida. Ele poderá acabar o romance que ela não acabou.
424Os seus pensamentos divagam. Lê distraidamente, passando os olhos pelas palavras sem as apreender verdadeiramente, voltando as páginas até chegar a meio do livro.
Vira outra página. Qualquer coisa cai do livro e poisa-lhe no colo. Um rectângulo de cartão verde.
Apercebendo-se do movimento, o Dr. Kringel espreita por cima do jornal. Vê a expressão de Porter.
- O que se passa?
- O quê? Nada, nada. - Porter pega no marcador verde e passa-lhe os dedos pelas arestas polidas. Estes marcadores devem ser tão vulgares como... tão vulgares como os romances de Francis Marion Crawford! o facto de ele ter encontrado este marcador, neste exemplar, não tem qualquer significado; quer apenas dizer que o último leitor se fartou da suave história e das suaves personagens, e não chegou a acabá-la. Considerar outra hipótese, imaginar que o exemplar que viu no quarto de Eula naquela noite pudesse, fosse de que maneira fosse, ter ido parar, anos mais tarde, a um quiosque de livros em segunda mão de St. Louis, e que ele, logo ele, pudesse tê-lo descoberto, a probabilidade de isso acontecer é de tal maneira infinitesimal que certamente confina com o impossível. Sugere um grau de coincidência que faria vacilar o próprio O. Henry!
Mete o marcador no bolso interior do casaco. Retoma a leitura, mas as palavras dissolvem-se umas nas outras. Pigarreia, porque de repente sentiu a garganta apertada, e insiste, mas agora é a página inteira que se funde diante dos seus olhos. Não lhe basta pestanejar para afastar as lágrimas que o cegam.
- Sr. Porter! - O Dr. Kringel poisa o jornal no banco e inclina-se para ele, com a testa franzida de preocupação. - Não se sente bem, Sr. Porter? É verdade, as costas de Porter voltaram a doer-lhe e ele sente necessidade de beber um uísque. Um negro de uniforme mete a cabeça no compartimento com uma expressão intrigada; tendo ouvido gritar a palavra ”porter”, pensa que o chamaram.
- Os cavalheiros precisam de alguma coisa?
Porter desvia a cara coberta de lágrimas. Kringel manda embora o funcionário.
425- Sr. Porter, em nome dos céus, o que se passa? Porter limpa os olhos com o lenço.
- Eula Phillips - diz baixinho.
- Ah, esse nome que o Dr. Montgomery refere na carta. O que significa ele, Sr. Porter?
Porter já contou ao Dr. Kringel, que o importunava solicitando pormenores acerca dos Aniquiladores de Criadas, tudo aquilo de que se recorda acerca das mortes das raparigas de cor; surpreendeu-o verificar a quantidade de coisas de que se recorda, embora alguns pormenores estejam baralhados. Também lhe contou como havia terminado o ano dos assassínios, com a morte de duas mulheres brancas na noite de Natal de 1885. até agora, porém, Porter evitou mencionar o nome de Eula Phillips.
Agora desabafa. Explica, com clareza e brutalidade, sem desculpas nem explicações, quem era Eula Phillips e como a conheceu. Conta a Kringel a forma horrível como ela morreu, e os terríveis segredos revelados após a sua morte, o escândalo que se seguiu, o julgamento, as terríveis dúvidas que haviam persistido...
O Dr. Kringel escuta-o com atenção. De vez em quando, faz um aceno de cabeça expressando simpatia, ou para mostrar que compreendeu. Caro Dr. Kringel, o melhor dos companheiros de viagem!
Ao terminar, Porter sente-se profundamente aliviado. Não é a sensação de ter tirado um grande peso de cima de si, mas de se ter despojado de uma pele incómoda, como uma cobra. O que é o passado, pensa, senão uma série de peles que usámos e abandonámos? As identidades largadas cobrem o chão que é o passado de um homem, como invólucros sem vida da pessoa que ele foi.
Nessa noite, enquanto dorme um sono sem sonhos, o comboio sai do Alabama e entra no Texas.
É absurdo, ele bem sabe, mas Porter acha que lhe basta inspirar, ao acordar, para perceber que regressou ao Texas. O ar parece mais forte, mais livre, mais expansivo. O horizonte é contornado a pinheiros altos de ramos emaranhados mas, onde quer que aviste um vislumbre de céu limpo, estava capaz de jurar que é mais azul do que o da véspera. Depois de passarem os bosques de pinheiros do Texas Oriental, o céu abrir-se-á, mais amplo do que em qualquer outro ponto do mundo.
426Tomam o pequeno-almoço pouco depois de atravessarem a cidade de Palestine. Austin fica a poucas horas de distância.
O Dr. Kringel consulta os seus horários e desdobra um mapa no colo.
- Sabe, não precisamos de ir mesmo até Austin. Podemos mudar para uma linha de ligação antes de chegarmos a Austin - aqui, em Hearne
- e virar directamente para Hempstead. Ou quer ir primeiro a Austin?
A pergunta coloca-lhe um dilema. O objectivo da viagem é visitar o Dr. Montgomery e descobrir que informações tem ele a dar-lhe relativamente aos assassínios que tiveram lugar vinte anos antes. A memória abriu uma ferida antiga, e Montgomery promete sará-la.
Por outro lado, conseguirá aproximar-se tanto de Austin sem visitar a cidade? Há oito anos que não põe lá os pés, desde que partiu para o Ohio, para cumprir a sentença de prisão por fraude. Nunca pensou regressar. Ainda lhe custa acreditar que tão estranha corrente de circunstâncias o tenha trazido de regresso ao Texas.
- Sabe - responde ao Dr. Kringel -, acho que talvez prefira seguir até Austin, dormir lá esta noite, e partir para Hempstead amanhã ou depois. Gostava muito de rever alguns locais...
- E de visitar algumas pessoas?
Porter olha pensativamente pela janela.
- Não me parece. O. Henry não conhece ninguém em Austin, compreende, e duvido que haja muitas pessoas em Austin que conheçam O. Henry.
-Tenho a certeza de que está enganado quanto a isso, Sr. Porter. O. Henry é famoso, e não apenas em Nova Iorque. Julgo que mesmo em Austin será um pouco famoso.
-Talvez. Mas ser famoso e ser conhecido são coisas diferentes. Foi incógnito que iniciei esta jornada, e incógnito permanecerei, especialmente em Austin.
- Nesse caso, que nome usará na cidade? Se quiser ficar alojado num hotel, terá de assinar o seu nome.
Porter pensa por momentos.
- jones - responde. - Serei o Sr. Henry O. Jones. Kringel sorri.
- Muito bem. Por mim, contudo, preferia seguir já hoje para Hempstead. Após tantos anos de correspondência, estou ansioso por conhecer finalmente o Dr. Montgomery em pessoa. Importar-se-ia muito se eu seguisse para Liendo e o deixasse ir sozinho até Austin?
427- De maneira nenhuma. Na verdade, acho que preferia seguir sozinho para Austin. Vai ser como antigamente, quando aqui vivi, sem compromissos nem algemas, com liberdade para vadiar por onde quiser.
O comboio chega à cidadezinha de Hearne. Porter desce com o Dr. Kringel para a plataforma, para se despedir dele.
- É melhor dizermos au revoir - observa o Dr. Kringel com um sorriso. - Estarei à sua espera em Liendo. Sabe, ainda tenho algum tempo antes de chegar o meu comboio. Vou mandar um telegrama ao Dr. Montgomery e à Menina Ney, a dizer-lhes quando chego. Então au revoír, Sr. Porter.
- Au revoir, Herr Dr. Kringel.
A última coisa que Porter vê antes de voltar a embarcar é a figura alta e esguia do Dr. Kringel entrar no escritório do telégrafo, levando consigo a omnipresente bolsa de cabedal castanho. Que guardara ele dentro daquela bolsa, que a enche daquela maneira?
A viagem de Porter recomeça. Sente-se um pouco sozinho, mas também aliviado; as confissões que fez ao Dr. Kringel a respeito de Eula Phillips fizeram-no sentir-se mais próximo do homem, mas também constrangido. Vai saber-lhe bem passar algum tempo a sós com as suas memórias.
À medida que o comboio vai adquirindo velocidade, começa a sentir uma curiosa excitação. Um golo de uísque reforça agradavelmente a sensação. Apenas 150 quilómetros até Austin! O comboio passa por Cause e pelo Entroncamentos de Milano, por Rockdale e Watson, por Thorndale e Taylor, e por fim por Hutto e Rourid Rock. A seguir à estação de Duval, a paisagem rural vai adquirindo contornos suburbanos, as quintas dão lugar a quarteirões ordenados de casas e pequenas lojas.
Acima dos topos das árvores, avista o granito cor-de-rosa do edifício do Capitólio. Se esforçar a vista, conseguirá distinguir a Deusa da Liberdade empoleirada no alto da cúpula. O que tem ela na mão erguida, uma estrela, uma foice, uma tocha? Não foi essa a missão que se atribuiu jocosamente a si próprio ao iniciar esta viagem, determinar o que tem a deusa na mão? Mas não consegue perceber. Está longe de mais.
Quando o comboio chega à estação da Avenida do Congresso, inspira profundamente e sente um frémito de regresso a casa. já na plataforma, enquanto espera pela bagagem, experimenta a desilusão do viajante que chega a um local onde ninguém o espera, com a entediante tarefa de
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arranjar um quarto de hotel para um. Rostos sorridentes dão as boas-vindas aos seus companheiros de viagem; ele inveja-os. Poderia haver um ou outro rosto à sua espera, se ele tivesse combinado as coisas; foi ele que optou por não dar conhecimento a ninguém da sua chegada. Partiu desta cidade envergonhado. Regressa a ela em segredo.
O sentimento de regresso a casa foi, afinal, uma simples ilusão. Esta não é a sua casa. Largou a pele do seu passado. A sua vida não é aqui. Aqui, ele é um fantasma, que se moverá por entre fantasmas.
429IV Parte
”O que é estar vivo?” Austin: Dezembro de 1885 e Depois41
Era um assunto horrível de tratar na noite do dia de Natal, pensou William Holland, subindo a Avenida do Congresso na escura penumbra, com o vento frio do norte a bater-lhe na cara.
Holland ia acompanhado por várias dúzias de homens de cor como ele. Apesar da gravidade do objectivo comum, Holland sorriu ao pensar que se encontrava, literalmente, entre o sagrado e o profano. Tinha a um lado Hugh Hancock, Lem Brooks, Alec Mack, Water Spencer e vários outros frequentadores habituais do Black Elephant. Do outro lado, seguiam os Reverendos Anderson, Massey, Grant, Swan. e Smith, pastores das cinco congregações de cor da cidade, acompanhados por membros dos respectivos rebanhos.
Dirigiam-se ao edifício estadual. O presidente da câmara tinha convocado uma reunião dos cidadãos interessados. O assunto eram as atrocidades cometidas na noite anterior e o procedimento a adoptar em consequência.
O dia tinha amanhecido frio, mas com céu limpo, uma manhã de Natal perfeita, com os galhos de cedro acabados de cortar perfumando a casa dos Holland. Seria o primeiro Natal que o pequeno Moses Shelley passaria sem a mãe. Holland tinha comprado um pião para oferecer ao seu protegido, mas não era um pião qualquer, era o mais belo pião jamais concebido, entalhado à máquina em carvalho e pintado de verde, com uma elegante ponta de aço. O próprio Holland havia-o experimentado na véspera de Natal, depois de Moses se ter ido deitar. O melhor lance havia mantido o pião a rodar durante cinco minutos. Gostaria de ter tentado os seis minutos, mas a mulher tinha-lhe confiscado O pião, decorando-o com um laço vermelho e escondendo-o por tras do relógio da prateleira da chaminé.
Na opinião de Holland, a sua principal tarefa nessa manhã de Natal era juntar o rapaz e o pião. Feito isso, poderia esperar calmamente pelo
433almoço - peru assado com o respectivo recheio e molho de arando, a que seguiria a cerimónia da tarde na sua igreja.
Ainda Moses estava deitado quando Holland bebeu a primeira chávena de café do dia e abriu o Statesman. Ao chegar a página das notícias locais, a primeira coisa que viu foi um anúncio em corpo grande de uma representação de Mikado na ópera de Millett. Seguia-se um título, a tipo consideravelmente mais pequeno:
SANGUE! SANGUE! SANGUE!
A terrível CARNIFICINA DA NOITE PASSADA.
Os demónios transferiram a sua sede de sangue para as brancas!
Holland apressou-se a ler o artigo, sentindo o estômago às voltas com as sinistras descrições das vítimas - o sangue a jorrar como uma fonte da boca de Susan Hancock, o corpo de Eula Phillips descoberto ”completamente nu”, de pernas e braços abertos, os braços presos com uma tábua, a cabeça esmagada. Apesar da rápida chegada dos agentes aos cenários dos crimes, e da utilização de cães de caça, não tinha havido prisões.
Holland sentiu um nó no fundo do estômago. Após a prisão errónea de Lem Brooks, após o longo Verão quente de assassínio sobre assassínio, após a tortura de Alec Mack, após o inútil julgamento de Walter Spencer, após um ano em que as mulheres de cor tinham vivido no terror nocturno do assassínio e da violação, esta era a pior coisa que podia acontecer. Era o suficiente para abalar a confiança de um homem em Deus.
Toda a gente - pelo menos todos os brancos - tinham presumido que o assassino, ou assassinos, tinham de ser negros. Enquanto as vítimas fossem negras, os brancos e os seus representantes eleitos sentir-se-iam indignados - até certo ponto. Agora, esse ponto tinha sido ultrapassado. Agora, as vítimas eram mulheres brancas - duas numa só noite, e na noite de Natal! Agora, a cidade de Austin daria livre curso à sua raiva, e Holland receava que o provável resultado fosse o corpo de um homem negro suspenso de uma corda.
Estava a ler a história pela segunda vez quando lhe bateu a porta um mensageiro, trazendo um sobrescrito creme. Holland abriu-o e retirou lá de dentro uma mensagem escrita a mão:
Caro Sr. Holland,
Na minha qualidade de presidente da câmara, venho convocar uma reunião dos cidadãos interessados, para esta- tarde, às 7 horas, no edifício
434estadual Espero uma ampla participação e alguma impaciência, mas tenho o optimismo de pensar que a lucidez prevalecerá. Acho que seria bom que a galeria estivesse cheia da sua gente. Talvez queira considerar apossibilidade de fazer uma intervenção nesta reunião, em nome da população de cor.
John W Robertson
William Holland teve, pois, um dia muito ocupado.
Nessa tarde, conseguiu passar pelas cerimónias das cinco igrejas para a população de cor, e convencer os cinco pastores a conceder-lhe uns momentos para falar às respectivas congregações.
Insistiu em que todos comparecessem a reunião dessa noite. Embora visse expressões de dúvida e de medo em muitas caras, todos o ouviram com respeito, excepto na Capela de Wesley, onde as portas estavam abertas e a cerimónia religiosa estava a terminar quando ele chegou. Na sequência de um apelo desesperado por parte de Holland, o pastor chamou de novo a congregação. A maioria regressou ao seu lugar. Holland explicou ao que fora. Quando lhes disse que a gente de cor tinha de mostrar a restante população de Austin que estava tão indignada com estes crimes como todos eles, um homenzinho ergueu a voz na última fila:
- Como eles ficaram indignado com a morte das mulhé de cor - que deixaram andar durante um ano? - O tom de voz do homem era de desdém. Era baixo e a mulher que estava sentada à frente dele tinha um chapéu enorme, de maneira que Holland não conseguiu ver a cara do homem.
- Compete-nos mostrar-lhes que não ha diferença entre matar mulheres brancas e matar mulheres negras, ou não devia haver - declarou Holland.
- O primeiro homem de cor que aparece nessa reunião, o que eles fazem é pendurá-lo na árvore mais próxima! - disse o homenzinho. Ou vêm enforcá aqui mesmo, diante desta capela, como iam fazendo ao Alec Mack.
- Se lá aparecesse só um homem de cor, sim, concedo-lhe que é bem provável que atraísse a raiva da multidão como uma vara acesa - replicou Holland. - É por isso que temos de ser muitos. O importante é irmos lá mostrar a cara. Mostrar que a gente de cor de Austin não tem nada de que se envergonhar, ou de que se esconder, ou de que se sentir culpada. Fomos os que mais sofremos com estes crimes diabólicos. Perdemos mães,
435filhas e mulheres. As nossas crianças ficaram Orfas. Concedo-lhe que eles pensam que foi um de nós. Ja decidiram que estes assassínios foram obra de um homem de cor...
- E não foram? - grasnou o homenzinho.
- Não sei. Ninguém sabe - respondeu Holland em tom soturno.
- Mas uma coisa sei: já houve demasiadas mortes e demasiado sofrimento, e é bem provável que ainda haja mais mortes, a não ser que nós mostremos que esperamos e merecemos que a lei se cumpra. Temos de permanecer unidos. Temos de manter a cabeça erguida.
- Se a gente erguê a cabeça, é mais fácil acertarem na gente com alguma coisa - disse o homem. - Cá por mim, vou tando cabeça baixa e bem agachado!
- É assim que o senhor anda pela vida, sem ver por onde caminha?
- lançou Holland. - Deve andar a bater com a cabeça nas paredes. Não é de espantar que seja tão pateta.
Uma gargalhada geral, acompanhada de pés a bater no chão, indicou a Holland que tinha ganho a discussão.
À saída, Holland demorou-se por ali, a falar com o pastor e com alguns anciãos. O homem que o tinha interpelado aproximou-se ousadamente. O Reverendo Swan cruzou os braços e ergueu uma sobrancelha. Alguns dos anciãos afastaram-se ostensivamente. Ao ver a cara do homem, Holland reconheceu-o.
- Bem, Sr. Hugh Hancock - disse Holland -, calculo que vai passar a noite a servir bebidas no Black Elephant em vez de ir a reunião.
- Pelo contrário, Sr. Holland.
- Não percebo.
- Eu venho a igreja uma vez por ano, Sr. Holland, no dia de Natal. Tou disposto a dizê que o senhô fez o melhor sermão que eu tenho ouvido ha muitos anos, sem ofensa, Reverendo Swan. Sabe o que eu vou fazer? Vou fechá o Elephant esta noite, e vou dizê a todos aqueles negro sem prestança que se ponham a andá para a reunião. A que horas se encontramos consigo mêmo?
A reunião teve lugar na sala do plenário onde meses antes a Assembleia de Deputados tinha debatido a questão das amanuenses. A atmosfera que reinava na sala lembrou a Holland o interior de um ninho de vespas que tivesse sido açoitado com um pau. Um zumbido sonoro e
436irado enchia o ar. A acústica da galeria, onde Holland estava sentado com o contingente de cor, dava a sensação de que o zumbido emanava de todas as direcções, cercando a sua gente. O ambiente na sala apinhada de pessoas era quente e abafado, apesar do vento frio que soprava lá fora.
O Presidente Robertson subiu ao pódio, fez soar o martelo e pediu ordem à assembleia. Enquanto a multidão se acalmava, ouviram-se alguns apupos e miados dirigidos a ele, juntamente com berros, mandando calar os que apupavam e miavam. Robertson fixou pausadamente face após face.
- Ouçam-me bem! Não chegamos a lado nenhum se começarmos a gritar e a implicar uns com os outros. Todos sabem o que estamos aqui a fazer, e não duvido de que estejam todos muito satisfeitos por terem sido convocados para uma reunião destas no dia de Natal. Não abusarei da vossa paciência, recitando os pormenores dos crimes que atormentaram esta cidade no último ano. Assassínio após assassínio, e agora o mais recente ultraje, estes ataques odiosos, cobardes e inexplicáveis a duas senhoras a noite passada! Estamos todos furiosos. Estamos todos fartos, todos os presentes nesta sala, negros e brancos. - Robertson voltou os olhos para a galeria, fixando Holland nos olhos.
Ouviram-se gritos como ”Muito bem! Muito bem!” e ”E agora, o que fazemos?”
Robertson prosseguiu, em tom mais sonoro:
- Depois de cada um destes crimes, as autoridades fizeram tudo o que podiam para encontrar os culpados e impedir novos crimes... ouçam-me faz favor! Ouçam-me faz favor! - Fez soar o martelo. - Foram feitos modelos em gesso das pegadas suspeitas. Os cães de caça seguiram todos os cheiros. Contrataram-se detectives, que investigaram todas as pistas. Qualquer homem que fosse objecto da mais pequena suspeita foi interrogado. Houve um homem que foi sujeito a julgamento com Júri. Mas todos estes esforços saíram gorados. Os criminosos não foram capturados. Os crimes prosseguem.
Recorro a vós, homens de Austin, para por fim a esta sangria. Temos de acabar com esta matança. Temos de recuperar o bom nome de Austin. Somos homens, os protectores da nossas famílias, e temos de agir como homens. De outra maneira, o melhor será vestirmos combinações! Mas também somos cidadãos, e temos de agir de acordo com a lei. A turbamulta
437nada resolvera. Uma turbamulta exige justiça imediata e está disposta a enforcar qualquer suspeito. O Juiz Linchamento é pior do que a ausência de lei. Não podemos voltar-nos uns contra os outros. Temos de nos unir, brancos e negros, para dar caça a estes demónios e fazê-los castigar!
Robertson mereceu um aplauso generalizado e a reunião prosseguiu, ruidosa mas ordeiramente. Aqueles que tinham alguma coisa a dizer formaram bicha no pódio. Alguns foram aplaudidos, outros apupados, outros foram alvo de escárnio.
Um velho veterano sugeriu uma solução militar: cercar a cidade de homens armados, proibir quem quer que fosse de partir, e prender quen, se mostrasse incapaz de justificar o seu paradeiro no momento dos crimes. A solução foi recebida com apupos; e se os assassinos já tivessem abandonado a cidade? Outro orador sugeriu que a cidade contratasse uma centena de cidadãos, que constituiriam uma força auxiliar a paisana, cujos membros só seriam conhecidos pelo Comissário da polícia e o presidente da câmara. A ideia da polícia secreta foi liminarmente rejeitada.
Alguns oradores atribuíram a praga dos assassínios ao clima de moralidade dissoluta, encorajado pelos bares, as salas de jogo e os bordéis de Guy Town. A mais suave das soluções propostas foi que os bares fossem obrigados a encerrar às 10 horas. Outros exigiram uma completa supressão do vício em Austin, à semelhança dos esforços recentemente levados a cabo em Dallas.
- Porque permitimos estas intermináveis Saturnálias de dissipação na cidade? - perguntou um orador, com deleite retórico. - Porque não mandamos fechar o White Elephant e o Black Elephant?
O orador seguinte sugeriu que, dado que não havia nenhum White Elephant em Austin, o moralista pusesse um freio nos seus paquidermes metafóricos.
Houve uma grande discussão em torno da constituição de uma comissão de vigilância, com poderes para agir independentemente da força policial. William Pendleton Gaines mostrou-se favorável:
- Na minha qualidade de jornalista, sinto-me autorizado a colocar essa comissão no contexto nacional, e gostaria de salientar que grupos desse género têm desempenhado um trabalho exemplar em Baltimore e em San Francisco. Capturam e dão destino a assassinos conhecidos.
438A sua simples presença faz com que os criminosos optem por deixar a cidade. Para os habitantes dessas cidades, ”vigilante” é um título de honra!
Os comentários de Gaines foram objecto de fortes aplausos e de gritos de apoio.
Seguiu-se um debate aceso. Foram apresentadas diversas moções. os oradores mais moderados, como o presidente da câmara, eram também os parlamentares mais habilidosos. Por meios invisíveis aos elementos mais truculentos da multidão, os moderados conseguiram levar a água ao seu moinho. Aquilo que começou por ser um apelo à constituição de uma centena de vigilantes armados foi-se diluindo até se transformar numa comissão consultiva de quarenta homens, constituída por representantes (três brancos e um negro) de cada um dos dez bairros, que actuaria em cooperação com o presidente da câmara e o Comissário da polícia, e reuniria uma verba destinada a recompensa. Ouviram-se resmungos de insatisfação, mas tinha-se dado livre curso a grande parte da hostilidade e da frustração, que era justamente o que o presidente da câmara tinha esperanças de conseguir.
William Holland era um dos membros da comissão. O Presidente Robertson pediu-lhe que dissesse umas palavras em nome da população de cor.
Ao subir ao pódio, Holland sentia-se simultaneamente aliviado e angustiado. As coisas tinham corrido muito melhor do que ele estava a espera. Tinha sido evitada uma catástrofe, pelo menos por agora. A sala era uma espécie de bomba que fora retardada, mas era uma bomba onde continuava armazenada uma grande quantidade de pólvora. Holland nunca tivera uma consciência tão aguda da sua cor, como teve ao contemplar o mar de caras brancas que olhavam para ele. Tinha aprendido a lidar com brancos poderosos em relações individuais. Estivera presente em duas convenções nacionais republicanas. Tinha sido membro da assembleia legislativa do Texas durante uma das suas sessões. Mas nunca se tinha confrontado com uma multidão como esta.
Havia uma frase dos títulos da manhã que lhe ecoava no espírito: Os demónios transferiram a sua sede de sangue para as brancas! Quantos elementos daquela multidão, ao olhar para ele, veriam naquele pódio, não William Holland, filho de um estadista do Texas e educador de sucesso, mas uma criatura só vagamente humana e erecta, na verdade
439mais próxima de demónios e macacos, mais outro preto que apreciava mulheres brancas e sangue branco?
Holland sentiu-se petrificado por um súbito pânico. Era estúpido e inexplicável, mas nem por isso menos paralisante. Desde a sua primeira aula de expressão pública, no Oberlin College, que não sentia semelhante embaraço. A língua transformou-se-lhe em chumbo. Pareceu-lhe que o alto da sua cabeça se despegava do resto do corpo e levantava voo, como os balões de ar quente largados do Scholz’S Beer Garden.
Nessa altura, ouviu uma voz proveniente da galeria:
- O que foi, Irmão Holland? O gato roubou-lhe a língua? Esta tarde, não lhe custô pOr-me na ordem, na presença de Deus e do Reverendo Swan!
A galeria encheu-se de gargalhadas bem humoradas, que contagiaram o andar de baixo. A tensão quebrou.
- Obrigado, Irmão Hancock - respondeu Holland, recuperando a voz -, por me ter recordado o meu objectivo. - O homenzinho cruzou os braços sobre o corrimão da galeria e sorriu-lhe.
William Holland disse o que tinha ido dizer:
- Parece-me que não devia precisar de dizer a simples verdade, mas vou dizê-la. As gentes de cor de Austin são tão respeitadoras da lei como os brancos. Isto é um facto. E as gentes de cor desta cidade estão tão ansiosas como os outros por que os culpados recebam o seu castigo, sejam eles de que cor forem. - Por meio de uma subtil ênfase, Holland havia afirmado que o assassino, ou assassinos, podiam ser negros... ou brancos.
- Como é que as gentes de cor de Austin não hão-de ansiar por justiça, e pelo fim destes assassínios? No último ano, abateu-se sobre nós um sofrimento terrível, infligido pelos autores destes crimes horríveis. Algumas mulheres de cor foram horrivelmente molestadas e assassinadas. Os seus amigos e os seus entes queridos tiveram de viver, não apenas com a normal dor e o pesar que a morte impõe pela interrupção dos vínculos de amor, mas com os pesadelos resultantes da forma como estas mortes se deram.
Houve crianças que ficaram órfãs. Uma delas, Moses, o rapazinho de Eliza Shelley, recolhi-a eu em minha casa. Quando a mãe foi violentada e chacinada, o rapazinho estava deitado na cama, a menos de três metros de distância. Uma das vítimas pouco mais era que uma criança. Nos últimos momentos da sua vida, a pequena Mary Ramey conheceu horrores por que nenhum homem ou mulher devia jamais ter de passar.
440Houve mais quem sofresse. Homens de cor inocentes foram falsamente acusados e presos. Foram perseguidos por cães, acorrentados e brutalmente maltratados. O único, que chegou a tribunal foi rápida e unanimemente inocentado. Se a lei do linchamento reinasse em Austin, como reina hoje em demasiados sítios, todos estes homens estariam hoje mortos - e os assassínios teriam prosseguido. Senti-me encorajado esta noite, ao ouvir muitos dirigentes responsáveis desta comunidade recusar o impulso para o recurso às comissões de vigilância. A ”justiça vigilante” é um nome elegante para os piores excessos de injustiça. Nunca resultou bem nenhum enforcamento de um inocente.
- Aí e que se engana, cavalheiro! - gritou uma voz de entre a multidão.
- Enforque o homem errado, que isso será um exemplo para os outros. Um corpo pendurado de uma corda é um aviso, um aviso bem claro. Às vezes, basta um linchamento para endireitar as coisas numa cidade, quer o enforcado fosse culpado, quer não. Várias cidades do sul compreenderam esse facto, e vivem melhor. O medo é a única coisa que mantém certas pessoas na linha. Os sujeitos de cor que diz que foram falsamente acusados - se um deles tivesse sido enforcado, ali mesmo, talvez tivéssemos posto fim a estas mortes naquele momento, assustando o verdadeiro assassino. - O homem olhava para Holland com uma expressão de desprezo, e sorriu com ar enfatuado ao ouvir exclamações dispersas de apoio entre a multidão.
Holland olhou o homem de frente. Se o presidente da câmara tinha conseguido manter a compostura no meio de semelhante hostilidade, ele também conseguiria.
- O seu argumento não me impressiona grandemente. Se enforcar o homem errado, o que está a mostrar é que não teve esperteza suficiente para apanhar o verdadeiro culpado. Limita-se a encorajar este, mostrando-lhe que é mais esperto do que o senhor. É como aquele agricultor que pendura o gato de uma corda porque lhe aparecem galinhas mortas. Com isso, deixa de ter quem lhe cace os ratos. Entretanto, a raposa espreita do bosque, e sorri.
Ouviram-se gargalhadas sonoras, especialmente provenientes da galeria. Holland podia ter descido do pódio naquele momento, mas sentiu-se encorajado a dizer uma coisa que ainda não tivera a certeza de poder dizer.
- Estou muito satisfeito por se ter feito esta reunião. Estou satisfeito por ver as gentes de Austin animadas e prontas para entrar em acção.
441Só gostava que isto tivesse acontecido mais cedo. Gostava de os ter visto irados há três meses, quando Gracie Vânce e Orange Washington foram mortos, ou em Agosto, quando a pequena Mary Ramey foi ultrajada, ou em Maio, quando Irene Cross foi assassinada e os filhos de Eliza Shelley ficaram órfãos. Gostava que tivéssemos feito esta reunião há um ano, quando Mollie Smith foi assassinada. Onde estava então a vossa ira? Quem apelou à intervenção dos cidadãos e a constituição de comissões de vigilância?
Alguém começou a chorar na galeria. Walter Spencer, que estava sentado entre Lem Brooks e Alec Mack, não conseguira conter as lágrimas, e escondia a cara entre as mãos. Holland olhou o mar de faces brancas e percebeu que tinha levado as coisas o mais longe que podia. Mais um pouco e começariam a escoicear, recusando-se a permitir que lhes enfiassem mais coisas amargas pela garganta abaixo. Era preferível deixá-los regressar a casa e remoer calmamente o que já lhes tinha dito.
- Mas, como diria a minha querida mãe, não vale a pena chorar sobre leite derramado. O senhor presidente juntou-nos a todos, e juntos temos de pôr fim a estas mortes.
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O medo tomou conta da cidade, frio, amargo e implacável como as intermináveis nortadas que sopravam de Oklahoma.
O Statesman aconselhou todos os seus leitores a andarem armados e a estarem constantemente vigilantes. ”Se virem ou ouvirem alguma coisa a mexer nos ferrolhos das janelas ou das portas, ’apontem para baixo e atirem’, como diz o ditado. Deixem as perguntas para depois.”
Austin assistiu a uma prisão equivocada após outra, incluindo a de um homem que fora visto a lavar o que se pensou ser uma camisa suja de sangue no Rio Colorado. Afinal, as nódoas castanhas que a camisa tinha eram manchas de noz e a efluência vermelha era a tinta barata de um novo par de peúgas vermelhas.
Will Porter passou uma grande parte dos dias seguintes na ópera de Millett, a ensaiar o Mikado. Um membro da Companhia de ópera de Errima Abbott chegou mais cedo à cidade a fim de afinar o coro e os fatos e de os ensaiar com direcções de palco. Will aprendeu as suas entradas e saídas, e as deixas para agitar o leque japonês ou fechá-lo com um estalido. Na matiné de segunda-feira, completamente esgotada, representou impecavelmente.
Começou imediatamente a ensaiar para a peça seguinte, uma produção amadora de The Black Mantles, agendada para o final de janeiro. O ano velho deu lugar ao ano novo. Will trabalhava arduamente no seu emprego de guarda-livros. Andava tão ocupado, que raramente tinha tempo para atravessar o corredor, a fim de ir cumprimentar Dave aos escritórios do Statesman, e ainda menos para ir almoçar com ele. A noite, ensaiava. Havia outras produções itinerantes e peças amadoras calendarizadas na Millett; Will inscreveu-se nos respectivos coros. Ao domingo, cantava na igreja.
Todos os amigos dele pareciam ter namoros a sério. A resolução de ano novo de Will foi fazer o mesmo. No anterior mês de Março, num
443baile comemorativo do lançamento da primeira pedra do novo edifício do capitólio, tinha conhecido e dançado com uma simpática rapariga chamada Athol Estes. Desde então, tinham-se visto em bailes e em reuniões da igreja. Ela tinha apenas dezassete anos, ainda andava no liceu e era namorada de um dos Zimpleman (filho do dono da fábrica de gelo), mas acolhia favoravelmente as atenções de Will e ria-se das piadas dele. Athol não era especialmente bonita - não o era à maneira lustrosa de certas mulheres, cuja beleza cegava -, mas havia nela uma inocência que o atraía fortemente. Tinha uma frescura e uma simplicidade que faziam com que ele se sentisse maduro e seguro.
Em suma, nas semanas que se seguiram ao Natal, Wíll fez todo o possível por evitar pensar na única coisa que, se assim não fosse, teria dominado os seus pensamentos à exclusão de tudo o resto. Preencheu os dias com trabalho, as noites com canções e as suas aspirações românticas com a doce e inocente Athol. Estas preocupações eram outros tantos tijolos colocados num muro e selados com argamassa, opondo-se ao mar de pensamentos negros que havia por tras dele.
Apesar disso, chegavam-lhe aos ouvidos os boatos e as especulações relativas aos assassínios da noite de Natal. Eram tantas as conversas e tantos os artigos no Statesman, que era impossível não ler alguns deles.
Ele sabia, por exemplo, que após o crime Jimmy Phillips permanecera vários dias insensível, incapaz de falar, presa de uma terrível febre cerebral resultante das machadadas que lhe haviam sido infligidas na cabeça. Durante algum tempo, os médicos não souberam dizer se Jimmy sobreviveria. Acabou por reagir, mas não conseguiu fornecer um relato coerente do que tinha acontecido na noite de Natal.
Parecia óbvio para toda a gente que a morte de Eula Phillips estava integrada na sequência das anteriores. O padrão era o mesmo: o assassino atacava a mulher ou o homem que se encontrasse no quarto, matando-os ou deixando-os inconscientes, depois arrastava a vítima da sua luxúria para o exterior da casa, a fim de satisfazer os seus desejos ao luar. A princípio, ninguém duvidou de que fora exactamente isto que acontecera a Jimmy e Eula.
O outro assassínio da noite de Natal parecia seguir exactamente o mesmo padrão. Susan Hancock e o marido, Moses, um casal muito mais velho que os Phillips, estavam sozinhos em casa; as filhas, adolescentes tinham ido a uma festa. Susan. Hancock estava deitada. Moses Hancoc,
444dormitava numa cadeira de baloiço na sala de estar, junto a lareira, depois de ter consumido uma considerável quantidade de álcool. Foi despertado por um ruído. Dirigiu-se ao quarto. A mulher tinha desaparecido; os lençóis estavam torcidos e cobertos de sangue. Havia um trilho de sangue que ia dar ao exterior da casa. No pátio, avistou duas figuras envoltas em sombras, que fugiram a correr quando o sentiram aproximar-se. Encontrou a mulher deitada no solo, terrivelmente ferida, a gemer. Levou-a para dentro de casa, produzindo outro trilho de sangue. Mais tarde, foi encontrado no pátio um machado coberto de sangue, tal como se encontrara um machado coberto de sangue ao lado da cama de Jimmy e Eula.
Se Moses Hancock se encontrasse na cama com a mulher, em vez de estar a dormitar na sala de estar, ninguém duvidava de que lhe teria acontecido o mesmo que a Jimmy Phillips, Walter Spencer, Orange Washington e Rebecca Ramey: ser atingido na cabeça e ficar desmaiado ou morto enquanto os demónios arrastavam a Sra. Hancock para o exterior, para se aproveitarem dela? Mas Moses Hancock encontrava-se na sala de estar, pelo que tinha escapado ao machado. Hancock tinha muita sorte em ter saído vivo e ileso, diziam as pessoas.
Sorte de mais, diziam algumas.
Sabia-se que Hancock era violento e que bebia. Susan Hancock tinha expressado o receio de que o marido a matasse; tinha-o comunicado ao seu pregador, e escrevera-o a irmã, que vivia em Waco. Havia quem afirmasse ter lido a carta, e dissesse que vira nela uma impressão digital ensanguentada, a marca de um anterior atentado contra a sua vida. também havia a questão dos cães de caça levados para a cena do crime. Os cães nada tinham cheirado no ponto onde Hancock afirmava ter visto os dois homens a saltar a sebe, e não conseguiram detectar um único rasto que saísse da propriedade. Se ninguém tinha abandonado o local, quem tinha assassinado Susan Hancock?
As pessoas também começaram a fazer perguntas sobre Jimmy Phillips. Os vizinhos recordaram o incidente de Novembro, em que Jimmy perseguira a mulher e a irmã pelo pátio fora, gritando: ”Maldita sejas, eu mato-te!”, tendo de ser afastado com uma pa. Jimmy Phillips era um alcoólico perigoso, o casamento estava a desmoronar-se, a febre cerebral era um embuste; estes boatos difundiram-se de tal maneira, que James
445Phillips Sénior se sentiu obrigado a conceder uma entrevista ao Statesman para defender o carácter do filho. Jimmy e Eula eram um jovem casal tão feliz como qualquer outro, e sempre se deram bem, insistiu ele.
Mas os boatos persistiam. Dizia-se que, na noite dos assassínios, os cães de caça tinham encontrado um odor na tábua que havia sido usada para prender os braços de Eula Phillips. Os cães tinham seguido o rasto até à sebe, mas haviam depois voltado atrás, subindo a varanda e entrando em massa, a ladrar, no quarto de Jimmy, subindo para cima da cama e quase matando de susto a pobre mãe. Dizia-se mesmo que, delirante como estava, Jimmy tinha confessado o crime ali mesmo.
Começaram a circular boatos acerca de Eula Phillips. No Tin Cup, em Guy Town, alguém ouviu um grupo de condutores de trens de aluguer a conversar acerca dos crimes. Alguns deles afirmavam ter conduzido uma mulher, em mais do que uma ocasião, da casa dos Phillips até uma conhecida habitação situada na Avenida. Surgiram especulações quanto ao género de esposa que Eula Phillips seria. Falou-se em sussurros de um comportamento que levaria qualquer marido a beber, e talvez mesmo
a matar.
Will tinha uma consciência vaga deste turbilhão de boatos e insinuações. Tinha conhecimento, mas conseguia ignorar, todos os passos resultantes dos acontecimentos que haviam tido lugar na noite de Natal. Quando, já para o final de Janeiro, Moses Hancock foi preso pelo assassínio da mulher, Susan, os pensamentos de Will estavam concentrados no seu iminente papel de Sansão em The Black Mantles.
Alguns dias depois foi a vez de Jimmy Phillips, ainda com ar perdido e abalado, ser preso pelo Comissário Lucy e acusado do assassínio da mulher.
A prisão foi comentada em toda a cidade, discutida nas casas de hóspedes e nos bancos, nas modistas de chapéus e nos mercados de legumes, nos genuflexOrios das igrejas e nos bares. Foi falada no nº 103 da Avenida do Congresso, onde Fannie Whipple correspondera a um convite urgente para ir tomar cha com May Tobin; e no edifício estadual, onde um nervoso Fiscal Swain convocou para o seu gabinete um nervoso William Shelley, com quem manteve uma reunião privada; e no Statesman, onde Dave Shoemaker ouvia uma chamada telefónica com um ouvido e Gaines com o outro, e assentava os pormenores, contemplando
446a secretária vazia de Hiram, Glass; e do outro lado do corredor, nos escritórios de Maddox Bros. & Anderson, onde Will Porter somava diligentemente colunas de algarismos, murmurando baixinho canções de Gilbert e Sullivan, tentando não ouvir os mexericos dos outros amanuenses.
Nessa noite, Will acordou coberto de suores frios, depois de ter sonhado, não com o roçagar de leques japoneses, nem com Athol, nem com livros de contas cheios de números, mas com ela, tal como a vira da primeira vez na galeria, durante os debates, e tal como a vira a última vez, no pátio de tras da casa do fundo da rua - e perguntou a si próprio, enquanto tentava expulsar essas imagens da mente, o que teria sido das cartas que lhe escrevera, as doces, tristes e tolas cartas que Delia concordara em receber por razões de segurança.
Taylor Moore pensava e voltava a pensar, até lhe doer a cabeça. Os seus pensamentos eram como um cão às voltas atrás da própria cauda, cavando um círculo no pó. A cauda era curta de mais para ele conseguir agarrá-la.
A maldita cauda era curta de mais!
Mas os bons cidadãos de Austin estavam a pagar a Taylor Moore para ele pensar bem naquilo; para considerar todas as possibilidades; para resolver o enigma; para agarrar a ponta da cauda curta de mais e segurá-la bem. Pelo que Taylor Moore, sentado no seu escritório de advogado, num primeiro andar da Avenida do Congresso, ponderava o assunto até lhe doer a cabeça. As vidas de pelo menos dois homens dependiam dele.
A comissão de cidadãos constituída na sequência dos crimes da noite de Natal decidira gastar uma parte do dinheiro da recompensa na contratação de um procurador especial. E não havia melhor homem para o cargo do que o deputado do povo do Septuagésimo Quinto Distrito, o Ilustre Taylor Moore. Tinha sido um acusador obstinado durante os seus quatro mandatos como procurador público. A forma arrebatada como defendera o Projecto de Lei nº 79 do Senado firmara-lhe a reputação de campeão das mulheres, e as mulheres de Austin estavam especialmente ansiosas por que se fizesse justiça nos assassínios de Susan Hancock e Eula Phillips.
Mas havia um problema. Taylor Moore não estava convencido, para além de uma dúvida razoável, de que quer Moses Hancock, quer Jimmy
447Phillips, fossem culpados. Moore não era o género de homem que enviasse um sujeito para o cadafalso com o simples fito de progredir na carreira. Preocupava-o genuinamente a necessidade de punir os culpados e por fim aos atrozes crimes que atormentavam a cidade. E não estava nada seguro de que a condenação de Hancock e de Phillips realizasse qualquer destes propósitos.
Há algum tempo que Moore estava convencido de que as mortes das raparigas de cor deviam ser obra, não de um amante ciumento e vingativo, mas de um único maníaco, de um homem com um peculiar ódio às mulheres e um apetite sexual revoltante. Quando Grooms Lee se dedicara a prender diversos sujeitos de cor por estarem romanticamente ligados as vítimas, Moore abanara a cabeça perante a ingenuidade do Comissário da polícia. Quando o seu amigo James Robertson decidira acusar Walter Spencer do assassínio de Mollie Smith, Moore tinha-o aconselhado vivamente a não o fazer, tentando não se mostrar presumido quando a acusação se revelara um miserável fracasso. O assassino das criadas, argumentava Moore, não matara num estado de raiva embriagada ou num ataque de ciúmes, como mata o assassino comum; assassinara de forma premeditada e metódica, com a intenção expressa de satisfazer um desejo necrofílico. O monstro era obviamente capaz de se movimentar livremente por entre a sociedade, pelo que a sua natureza não devia ser evidente a superfície, mas não havia a mais pequena dúvida de que onde ele devia estar era num manicómio.
Qual era, pois, a opinião de Moore sobre as recentes atrocidades? Fariam os assassínios de Susan Haricock e Eula Phillips parte da série a que também pertenciam os das criadas de cor, ou seriam totalmente independentes, quer desses, quer um do outro?
A decisão de prender os maridos fora do Comissário Lucy. Lucy, que também fora Ranger do Texas, era cem vezes melhor agente da lei do que Grooms Lee fora. O pequenino Lucy era diligente, esperto e persistente, um cão de caça humano, como lhe chamara o Statesman. Lucy farejara rapidamente a infelicidade que reinava no lar dos Hancock e dos Phillips, e começara a coligir provas contra os maridos, Na opinião do Comissário da polícia, Moses Hancock e Jimmy Phillips tinham matado as respectivas esposas, talvez de forma premeditada, mais provavelmente num impulso, e depois, para evitarem as suspeitas, haviam
448
deliberadamente feito com que os crimes se parecessem com os do assassino das criadas.
os pensamentos de Moore recomeçaram a sua caçada em rodopio, tentando agarrar a cauda da acusação, que lhe escapava. Seria possível que as feridas de Jimmy tivessem sido auto-infligidas? Qual era a possibilidade de, não um, mas dois homens, a pouco mais de quilómetro e meio de distância um do outro e agindo de forma independente, mataren, as respectivas mulheres no espaço de uma hora - e na noite de Natal? Qual era, mais ainda, a possibilidade de ambos os maridos tentarem fazer com que o seu crime parecesse ser obra do assassino das criadas? Qual era a possibilidade de uma das mulheres ter sido assassinada pelo marido e a outra pelo assassino das criadas - quase em simultâneo? Se ambos os crimes da noite de Natal tinham sido obra do anterior assassino, porque tinha havido uma alteração de padrões, com dois crimes na mesma noite, e com mulheres brancas - e não criadas de cor - como vítimas?
Moore deu uma volta na cadeira giratória e olhou pela janela do escritório. Dois trens de mula passaram um pelo outro, tocando as respectivas campainhas. Os transeuntes circulavam apressadamente nos passeios, envolvidos em pesados casacos e cachecóis. Um vento cortante soprava da direcção dos terrenos do capitólio, agitando poeiras e excrementos de mula.
A certa altura, ele teria de decidir se se opunha a uma acusação que não podia sancionar, ou se avançava para ela com todo o empenhamento. Se Hancock e Phillips fossem culpados, faria tudo o que estivesse ao seu alcance para enforcar os canalhas. Mas, e as oito vítimas assassinadas e ultrajadas no ano anterior? Onde estava o seu assassino? Quando voltaria a atacar?
Coligidos todos os depoimentos e analisadas todas as provas, o procurador-público retirou a acusação contra Moses Hancock. Pura e simplesmente, o caso não tinha solidez suficiente e ele ainda sentia a dor do fracasso da sua acusação contra Walter Spencer. Não queria repetir a experiência com um réu branco.
já o caso contra Jimmy Phillips era diferente. As provas acumulavam-se, incluindo informações intrigantes acerca da vítima, Eula Phillips. Tanto Robertson como Taylor Moore estavam cada vez mais convencidos de que Jimmy fora o assassino da mulher.
449As rodas da justiça moviam-se lentamente. Jimmy foi libertado con uma fiança de 2500 dólares, paga pelo pai, enquanto o Grande Júri prosseguia as investigações. As audições foram à porta fechada. O Statesman queixava-se de uma ”colossal comissão secreta”, mas tinha de se contentar com os boatos.
Janeiro deu lugar a Fevereiro, Fevereiro a Março. A deprimente estação das chuvas chegou a Austin. O adágio: ”Uma desgraça nunca vem só” não tardaria a estender-se do tempo atmosférico para outros domínios.
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May Tobin estava sentada na dura tarimba de metal de uma cela da prisão municipal.
Martelou impacientemente com o pé. Puxou os dedos das luvas pretas de renda. Aquilo de que aquele sítio precisava - para além de uma boa limpeza e de umas cortinas alegres para esconder as grades das janelas
- era de um piano vertical onde a pessoa pudesse ocupar os dedos e alegrar o local, pelo menos durante o dia. À noite era outra coisa. May imaginava a Sonata Ao Luar reverberando a meio da noite das frias paredes de pedra, com a chuva constante como pano de fundo, e decidiu que o efeito seria excessivamente melancólico.
Aquilo de que ela precisava mesmo era de um bom charuto... Ouviu passos nas escadas. Momentos depois, tinha o Comissário Lucy diante da sua cela. Noutras circunstâncias, May tê-lo-ia considerado um sujeito bastante atraente. Gostava de homens pequeninos. Que refinado que ele parecia dentro daquele uniforme de Comissário de polícia, qual rapazinho a brincar aos adultos. Era difícil acreditar que tivesse participado na caça ao homem que pusera fim às actividades de Sam. Bass, o bandido que olhara de cima o conhecido pistoleiro Ben Thompson. Os Rangers do Texas não exigiriam mínimos de altura? O homem tinha umas mãos tão pequenas e delicadas, e os pezinhos! As botas, brilhantes com a água da chuva, pouco maiores eram que as de uma criança. May pensou que ficariam amorosas ao lado dos chinelinhos de uma senhora, aos pés da cama de um dos seus quartos de aluguer.
May tinha ouvido dizer que James Lucy era um viúvo recente. Eram muitos os viUVOs que iam buscar consolo a casa de May Tobin, mas Lucy não fora um deles. A sua primeira visita fora ao princípio da manhã desse dia. Quando ele batera a porta, May ainda estava de roupão. Com os olhos remelentos, espreitara pelo espaço proporcionado pela corrente de segurança e convencera-se de que era um rapazinho que se encontrava no seu alpendre. Mas não conhecia nenhuma loja na cidade que obrigasse
451os seus moços de recados a andar de uniforme. Pôs os óculos e avistou o inconfundível brocado de ouro do chapéu do Comissário da polícia.
Ele teve de inclinar a cabeça para trás para conseguir olhar para ela, mas a sua expressão não era a de um rapazinho.
- May Tobin? - indagou.
- Sim?
- Vim prendê-la com a acusação de que tem aberta uma casa dissoluta.
May engoliu em seco.
- Apanhou-me a acabar de sair da cama, Comissário. Não estou em condições de receber visitas. Da-me licença que me vista convenientemente?
- Com certeza, minha senhora. Espero aqui no alpendre. Gostava que soubesse que tenho outro agente na porta das traseiras.
Flanqueada pelo Comissário da polícia e pelo seu agente, May foi obrigada a subir a Avenida a pé até ao palácio da justiça. Sentiu-se grata pelo chuvisco que caía; havia pouca gente nos passeios. Escondeu-se o melhor que pôde atrás do chapéu de chuva.
O juiz determinou uma fiança de duzentos dólares. Ela queixou-se de que a quantia era exorbitante; como é que se podia esperar que uma viúva com meios limitados tivesse tanto dinheiro? O juiz ignorou as objecções, e May deu por si numa cela do calabouço, à espera da resposta a uma mensagem que tivera a esperança de nunca ter sido obrigada a enviar.
Levantou-se da tarimba, tentando ler na expressão do Comissário da polícia quaisquer indicações quanto ao sentido da resposta.
- Então? - perguntou.
Lucy estendeu-lhe um pequeno sobrescrito. O coração de May afundou-se. O que significava o facto de o sobrescrito que enviara ter sido devolvido? Lucy passou-lho por entre as barras, metendo-lho nos dedos enluvados. O nome do destinatário tinha sido escrito na letra rebuscada de May: Ilustre Benjamin M Baker. Superintendente da Instrução Pública, Edifício Estadual
Uma das pontas do sobrescrito tinha sido cuidadosamente aberta; May imaginava o elegante abridor de cartas que o destinatário teria usado. Meteu a mão no interior, extraiu uma folha de papel e desdobrou-a. Era a sua própria carta.
452- Ele leu-a? - perguntou.
- Eu próprio vi o cavalheiro abri-la.
- Mas leu-a?
- Presumo que sim. Ficou a olhar para ela bastante tempo. Tendo em conta o cargo que ocupa no governo do estado, calculo que leia bastante bem.
- E não mandou resposta? Lucy pigarreou.
- O cavalheiro afirmou que não a conhece, minha senhora.
- O quê!
- Disse ter a certeza de que nunca tinha falado consigo na sua vida. May murmurou uma praga. As sobrancelhas do Comissário da polícia ergueram-se. Ele considerava-se um homem vivido, mas nunca tinha ouvido uma mulher pronunciar aquela palavra.
May releu o que tinha escrito.
Caro Amigo,
Encontro-me numa situação extremamente embaraçosa. Estou em dificuldades financeiras devido às exigências pecuniárias de umjuizpouco razoável. Preciso de 200 dólares. Tenho todo o gosto em assinar uma nota promissória em troca do seu empréstimo dessa quantia. Quer auxiliar uma viúva em apuros? Bem sabe que pode confiar na minha discrição.
A sua amiga Sra. Tobin
O Comissário da polícia levou a mão à aba do chapéu.
- Se não precisa de mais nada, minha senhora, deixo-a voltar àquilo que estava a fazer antes de eu chegar.
- Espere, Comissário! Por favor, tenho de sair daqui o mais depressa Possível. Se o Sr. Baker... não se lembra de mim... estou certa de que ha quem se lembre. Quer fazer-me o favor de ir entregar outra mensagem minha?
Não foi preciso escrever outra carta. A saudação imprecisa daquela Possibilitava o seu envio a diversos cavalheiros da cidade. Lucy trouxe-lhe caneta e tinta e facultou-lhe outro sobrescrito.
Ela fez uma pausa, de caneta na mão, depois decidiu enviá-la a um certo professor da universidade, cujo nome escreveu no sobrescrito.
453O Comissário partiu com o sobrescrito fechado. Meia hora depois, regressava, devolvendo-lhe de novo o sobrescrito enviado.
- Não houve resposta? - perguntou May ansiosamente.
- Calculo que um sujeito tenha de ter uma série de conhecimentos para ser professor - observou Lucy -, mas os conhecimentos deste não incluem a sua pessoa, minha senhora.
A palavra que, antes daquele dia, Lucy nunca tinha ouvido uma senhora pronunciar foi pronunciada segunda vez.
May enviou nova mensagem, desta vez a um certo criador de gado abastado. Para além de negar qualquer conhecimento da viúva Tobin, ao fazê-lo, o destinatário recorreu à mesma praga que May tinha usado. May pediu para enviar nova mensagem.
- Minha senhora, já entreguei três mensagens suas.
- Comissário Lucy, não pode negar-me a possibilidade de pagar a fiança.
- Se conseguir obter o dinheiro. De outra maneira...
- Espere! Já sei a quem hei-de pedir! Devia ter recorrido logo a ele, Outro sobrescrito, Comissário, por favor. Obrigada, - Endereçou-o apressadamente. - Este é um verdadeiro cavalheiro. Não vai negar-ma. Não se atreveria. E se o fizer, se ele lhe disser que não conhece May Tobin, nesse caso, nesse caso diga-lhe que eu, que eu...
- Não me compete comunicar ameaças, minha senhora. May fechou o sobrescrito e conseguiu sorrir.
- Só ia dizer que, se ele disser que não se lembra de mim, eu fico de coração despedaçado. Afinal, sou apenas uma mulher, Comissário Lucy
- Meteu o sobrescrito por entre as barras.
- até agora, minha senhora, a lista de homens importantes desta cidade que juram que não a conhecem é bastante impressionante. Calculo que seja um cumprimento, uma espécie de cumprimento retorcido.
- Lucy pegou no sobrescrito e olhou para ele. Ergueu as sobrancelhas e soltou um assobio baixinho. Leu em voz alta: - ”Ilustre William J. Swain, Fiscal das Contas Públicas, Edifício Estadual”. Pelo que oiço dizer, se este sujeito conseguir o que quer, dentro de um ano é provável que o endereço seja: ”William J. Swain. Mansão do Governador”.
- Talvez, ou talvez não - replicou May friamente. - Diga ísso ao Sr. Swain quando ele ler a carta.
O Comissário Lucy foi-se embora. Enquanto ele se encontrava ausente, May recebeu outra visita. Sabia quem era Taylor Moore, embora
454os caminhos de ambos nunca se tivessem cruzado. Era o homem que tão eloquentemente defendera as amanuenses. Noutras circunstâncias, May ter-se-ia sentido muito feliz por conhecê-lo. Neste momento, e infelizmente, ele era aliado do procurador. Um acusador público nunca mais deixava de o ser, pensou May. Quando Moore se aproximou das barras, ela recuou para a tarimba.
Parece-me que está com problemas, Sra. Tobin. É provisório, Sr. Moore.
Acha? Uma mulher que monta o seu próprio negócio tem de estar à espera de ser ocasionalmente importunada. Este episódio há-de passar, como o dilúvio de Março há-de passar.
- Talvez. Mas parece-me que as gentes de Austin estão a atravessar uma profunda mudança de atitude. até agora, têm sido tolerantes com determinadas coisas. Têm desviado os olhos de questões como, chamemos-lhes assim, relações sociais. Mas essa tolerância esgotou-se. Estão com vontade de limpar a casa. Manter um estabelecimento como o seu tornar-se-a, de futuro, decididamente mais difícil, talvez mesmo ímpossível.
May resfolegou.
- Estamos em Austin, Sr. Moore! Na capital do estado, terra de universidade, entroncamento do Texas, cheia de visitantes, de criadores de gado e de jovens universitários. Ja para não falar do influxo sazonal dos seus estimados, mas não totalmente virtuosos, colegas da assembleia legislativa. Os visitantes que vem de Twohig e de Tuna chegam com a esperança de encontrar algo um pouco mais animado do que as reuniões da igreja e outros encontros sociais. Haverá sempre casas como a minha em Austin.
- Talvez. O que não significa que a sua casa, em particular, se mantenha durante muito tempo.
May olhou-o de frente.
- Vejo que captei a sua atenção, Sra. Tobin. óptimo. Ouça-me com atenção. As gentes de Austin exigem actos. Querem que Guy Town seja limpa. Querem que a Avenida do Congresso se transforme numa rua respeitável, de uma ponta à outra. O procurador-público decidiu lançar uma campanha de limpeza, que se iniciará na sua extremidade da Avenida.
- Faria melhor se começasse do lado dele, com os hipócritas que povoam o edifício estadual!
455- Talvez tenha alguma razão. Mas vai começar por si.
- Eu conheço homens poderosos - disse May bruscamente.
- Ah, mas e eles conhecem- na? Segundo ouvi dizer, está a ter dificuldade em encontrar um amigo que lhe pague a fiança.
- Se eu for arrastada pela lama, arrastarei outros comigo. - May olhou fixamente para a fria parede de pedra, ouvindo cair a chuva. - Alguns homens desta cidade tratarão de impedir que isso aconteça. Homens com mulheres e reputações a proteger. Homens com ambições. Eles impedirão que eu chegue a tribunal.
- Está realmente convencida de que esses chamados amigos, que nem sequer estão dispostos a pagar-lhe a fiança, enfrentarão o sistema judicial para a ajudarem?
- Quando se virem ameaçados pelos tubarões da imprensa e dos púlpitos, trepam para o mesmo barco em que eu seguir.
- Onde muito provavelmente se afundarão todos juntos! May inclinou-se para diante e olhou-o.
- Porque está a fazer-me isto, Sr. Moore? Não se trata de limpar Austin, pois não?
- Claro que se trata. Os cidadãos pegaram em armas. Querem correr da cidade com pessoas como a senhora. O procurador-público tem de respeitar as exigências das pessoas. Claro que...
- Sim?
- Os tribunais só conseguem investigar diligentemente um certo número de casos. E há casos que têm precedência sobre outros. As acusações por vício e imoralidade não tem, de modo nenhum, a mesma importância que as acusações por homicídio, por exemplo.
May reclinou-se na tarimba e cruzou os braços.
- O que pretende de mim?
- Estou convencido de que possui informações valiosas a respeito do assassínio de Eula Phillips.
May mordeu os lábios.
- Não quero ter nada a ver com isso.
- Compreendo. Mas a senhora tem de compreender que estamos decididos a levar para a frente a acusação de ter aberta uma casa dissoluta. A não ser, evidentemente, que a sua cooperação como testemunha amigável seja necessária na acusação de um caso mais importante, a acusação contra Jimmy Phillips.
456Olharam-se por longos momentos, até serem distraídos por passos na escada. O Comissário Lucy levou a mão ao chapéu, num cumprimento a Taylor Moore, que lhe acenou com a cabeça, num gesto de resposta. May aproximou-se das barras.
- A mensagem que eu enviei, Comissario? Que resposta...
- Não cheguei a falar pessoalmente com o Sr. Swain - respondeu Lucy.
- Tive de esperar na ante-sala enquanto o assistente dele, o Sr. Shelley, lha levava. Conversaram os dois algum tempo.
- E...?
Ouviram-se novos passos. Alguém veio postar-se ao lado de Lucy. Era William Shelley, com um ar tão constrangido, que parecia uma mola comprimida. Sem olhar de frente para May, meteu-lhe na mão um sobrescrito sem endereço. Voltou-se e desceu as escadas sem dizer uma palavra.
- Um tipo silencioso - observou Taylor Moore.
- É o menino-bonito do fiscal - replicou Lucy. - Dá-me ideia que ainda não aprendeu a falar.
May abriu o sobrescrito. Estava cheio de notas enrugadas. Ela contou-as. Estava todo, os 200 dólares. Não havia nota promissória, nem resposta. Swain tinha guardado a carta.
Pouco depois, May saía para a rua e inspirava profundamente. Observou o céu. A chuva tinha parado de cair, mas continuavam a amontoar-se nuvens negras no horizonte. Enquanto decidia se abria ou não o guarda-chuva, ouviu uma voz conhecida e avistou um rosto conhecido no meio de um grupo de agentes da polícia que avançavam pelo passeio fora na sua direcção.
- Isto é disparate! Isto é loucura! Não tenho casa nenhuma de má reputação, a minha reputação é tão boa como a de qualquer senhoria! Onde diabo vai uma mulher de cor pobre como eu arranjá duzentos dólar?
O grupo dirigia-se à prisão. Por momentos, os olhos de May encontraram-se com os de Fannie Whipple. Apesar do seu tom combativo, os olhos de Fannie estavam escancarados de pânico. Pobre Fannie, apanhada na mesma rede! Quem seria o homem com coragem suficiente para pagar a fiança dela?
May afastou-se dali a toda a pressa. O céu abriu-se de repente e derramou um dilúvio. Ela abriu o guarda-chuva mesmo a tempo.
457Um mês depois, a 20 de Abril, o grande júri do Distrito de Travis processou Jimmy Phillips acusando-o de ”ter matado Eula Phillips com premeditação maliciosa, golpeando-a, retalhando-a e acabando com ela com um machado”.
Os agentes da polícia foram bater à porta da residência dos Phillips. Jimmy não estava em casa. Os pais juraram que não sabiam dele. Durante uma semana, Jimmy Phillips andou a monte. O Statesman especulava diariamente quanto ao seu paradeiro e perguntava, em editorial, por que motivo um homem inocente se escondia da lei.
A 26 de Abril, Jimmy reapareceu em Austin e entregou-se. Houve quem acreditasse na sua declaração de que estava fora da cidade, a tratar de assuntos pessoais, quando o processo fora metido, e que regressara mal fora informado desse facto. Outros, menos caridosos, especulavam que seis dias era um prazo razoável para um homem acusado de assassínio reunir coragem suficiente para se entregar.
O início do julgamento de Jimmy foi marcado para segunda-feira,
24 de Maio.
Entre Fevereiro e Maio, Will Porter encontrou-se por três vezes com Delia Campbell na Avenida do Congresso.
Da primeira vez, mal conseguiu reunir coragem para falar com ela. A situação era embaraçosa, no mínimo, e era impossível perceber que expressão era a de Delia por trás do véu preto que lhe cobria o rosto. Trocaram umas quantas palavras indecisas. No último momento, quando estavam prestes a separar-se, ele perguntou pelas cartas que tinha escrito a Eula, que Delia tinha concordado em receber por razões de segurança.
- Gostaria de as reaver, por favor. É que... se outra pessoa as lesse... podiam ser mal interpretadas.
Delia acenou com a cabeça.
- Claro. Compreendo, Sr. Porter. Vou devolver-lhas.
Da segunda vez que a viu, semanas mais tarde, voltou a perguntar-lhe pelas cartas. Delia pediu desculpa por ainda não lhas ter devolvido e voltou a prometer que o faria.
Da terceira vez, apenas duas semanas antes do julgamento, ele perguntou-lhe pelas cartas em tom contundente. O rosto velado de Delia
458permanecia indecifrável, mas o tom de voz era gelado. - Lamento, Sr. Porter. Não posso falar consigo. Estou à espera de ser chamada como testemunha no julgamento do meu irmão. Não posso falar de nada que tenha a ver com Eula, seja com quem for.
- Mas as cartas...
- Tenho de me despedir.
- Mas prometeu devolver-mas...
- Francamente, isto é impossível, Sr. Porter. Bom-dia. - Desceu apressadamente a Avenida, em direcção à casa de May Tobin.
45944
- Qual era o valor que o termómetro do átrio indicava? - Dave Shoemaker passou o dedo entre o colarinho e o pescoço e abanou-se com um Statesman dobrado.
- Trinta e cinco graus - respondeu Will, que também se abanava. A toda a volta da apinhada sala de julgamentos, leques manufacturados e leques improvisados agitavam o ar quente e húmido. Algumas senhoras usavam coloridos leques de bambu, de abrir e fechar, outras leques rígidos e redondos, feitos de folhas de palmeira envernizadas. Na sufocante atmosfera da sala de julgamentos, a multiplicidade de leques esvoaçava como enxames de borboletas.
Will não tencionara ir assistir ao julgamento, mas pouco depois do almoço Dave metera a cabeça no escritório de Will e convidara-o a acompanhá-lo ao tribunal, declarando que conseguia arranjar-lhe um lugar sentado. Will pediu-lhe que o dispensasse, explicando que não podia largar o trabalho. O chefe ouviu-o.
- Bolas, se o Dave consegue arranjar-te um lugar na fila da frente, ficas dispensado o resto do dia - disse o Sr. Anderson. - Seja como for, não é provável que se faça uma vírgula esta tarde, com gente a entrar aí de dois em dois minutos, com notícias do julgamento.
- Consigo arranjar-lhe um lugar na fila da frente todos os dias gabou-se Dave.
- Se Will quiser tirar a semana toda, por mim não há problema, desde que passe por ca à hora do almoço e nos intervalos para nos contar o que aconteceu. Assim, ficamos a saber tudo pela boca de uma testemunha.
E foi assim que Will deu por si, praticamente contra a sua vontade, sentado na galeria reservada a imprensa, rodeado por jornalistas de todos os jornais do Texas. Também havia correspondentes de outros estados, incluindo um homem do World de Nova Iorque e outro do Tribune de Chicago.
460jimmy Phillips entrou na sala rodeado pelos seus quatro advogados de defesa. Tinha o rosto desprovido de expressão. Continuava a ser incrivelmente bonito, pensou Will, apesar da feia cicatriz, ainda viva, que lhe atravessava a têmpora esquerda.
O principal dos advogados de jimmy era John Hancock, um dos mais conhecidos advogados de defesa de Austin. Aos sessenta e um anos, Hancock tinha um aspecto perfeitamente inofensivo - parecia uma morsa erecta, com um enorme e hirsuto bigode prateado. A sua independência de pensamento era lendária. Quando a Guerra Civil havia eclodido, opusera-se veementemente a secessão na assembleia legislativa, e preferira fugir para o México a lutar do lado da Confederação. Desde então, algumas pessoas chamavam-lhe Hancock, o Traidor. No entanto, depois da guerra tinha conseguido reentrar na arena política e fizera uma carreira brilhante como advogado. Em Março, Hancock concluíra o seu segundo mandato na Câmara dos Deputados dos Estados Unidos. O caso Phillips assinalava o seu regresso aos tribunais.
Hancock também era sócio de Nathan Shelley, o pai de William Shelley; a relação passou pela cabeça de Dave quando escrevinhava as suas notas.
- Estranho, o nosso amigo William. Shelley não parece andar por aí
- sussurrou a Will.
- E devia andar? - A última vez que Will vira Shelley fora na sala de estar de May Tobin.
- Não especialmente. Mas ele não anda sempre metido em tudo? O jornalista do World de Nova Iorque mandou calar Dave. Hancock iniciava a declaração de abertura da defesa.
- Senhores membros do júri: Jimmy Phillips, o acusado, é um homem da cidade, de vinte e quatro anos, nascido e criado aqui em Austin. Tal como o pai, um respeitado construtor civil, Jimmy é um carpinteiro talentoso. O seu mais recente emprego foi na construção do novo quartel dos bombeiros. Com o dinheiro que ganhou nesse emprego, como mostraremos, Jimmy Phillips comprou uma mobília de quarto para si e para a sua jovem esposa e o filhinho de ambos. Podemos supor que foi, em parte, um presente de Natal, e em parte um presente de aniversário, porque, em Janeiro deste ano, Jimmy e Eula Phillips teriam celebrado o seu terceiro aniversário de casamento.
- Ouvirão contar que, na própria noite da tragédia, a noite de Natal do ano passado, Jimmy saiu de casa especificamente para pagar uma
461prestação dessa mobília de quarto - foi um acto de um jovem consciencioso, responsável e previdente. Não seria propriamente o género de pessoa que estava a planear matar a esposa nessa mesma noite, atraindo o escândalo e a ruína sobre a sua família e o seu filho.
- Calculo que a acusação lhes dirá que havia problemas no casamento de Jimmy. Ouvirão manchar o carácter de Eula Phillips, juntamente com o carácter do marido. - Hancock puxou pensativamente o bigode em desalinho. - Peço-lhes que considerem a fonte dessas acusações, e que avaliem a sua importância e a sua credibilidade de acordo com ela. Qual é o casamento onde não se trocam de vez em quando palavras duras, onde não se discute com veemência, onde não se fazem ameaças vazias, desprovidas de significado, facilmente amplificáveis à distância? Qual é o casamento sem amigos e parentes invejosos, prontos a imaginar, ou mesmo a fabricar, escândalos? Sim, houve um momento complicado no casamento de Jimmy e Eula Phillips, devido essencialmente ao facto de terem passado um ano de dificuldades e incerteza financeiras. Mas o casamento tinha sobrevivido a esse momento, e ficara ainda mais forte por causa dele. Na véspera de Natal, a paz e a reconciliação reinavam na família Phillips. Homem, mulher e criança estavam juntos e contentes. Aproximava-se um próspero e feliz ano novo.
- Foi então que o destino, o destino tremendo e imprevisível, interveio. Deu-se uma tragédia inenarrável; inenarrável, chamo-lhe eu, mas não inédita nestes tempos terríveis. Um assaltante ou assaltantes desconhecidos violaram o santuário do lar feliz de Jimmy. A mulher foi arrastada do seu lado, molestada e brutalmente assassinada. O próprio Jimmy recebeu uma pancada, tão violenta, que ainda não recuperou por completo o espírito e a memória, e pode ser que nunca recupere. terá sido atingido na sequência de uma corajosa, conquanto vã, tentativa de proteger a mulher? Parece que sim. É de esperar que o marido e pai que tão conscienciosamente trabalhava para proporcionar a sua família uma boa casa, com o respectivo mobiliário, estivesse à altura das circunstâncias quando surgiu a necessidade de preservar a sua segurança.
- Imaginem o sofrimento deste jovem! Imaginem o seu desespero! E contudo, ironia das ironias, estamos hoje aqui reunidos com o objectivo expresso de acrescentar novos sofrimentos e maior vergonha à sua carga. Jimmy Phillips é acusado pelo estado de ter assassinado a mulher
- este pobre jovem que por pouco não foi ele próprio assassinado!
462
- A acusação tentará convencê-los de que Jimmy era efectivamente mau tipo, não só violento e perigoso, mas um verdadeiro monstro, pois só um monstro seria capaz de matar a própria mulher diante do filhinho de ambos. Semelhante acto é de tal maneira contranatura, é tão improvável no grande equilíbrio das coisas, que estou convencido de que os estimados membros da acusação, apesar das suas boas intenções e dos seus conhecidos dotes de oratória, terão grande dificuldade em convencer dele seja quem for. Tentarão mesmo convencê-los, porque o argumento deles é desprovido de sentido sem este absurdo a coroá-lo!, de que o terrível ferimento que Jimmy Phillips recebeu foi auto-infligido, administrado pela sua própria mão. Um homem teria de ser sobre-humano para conseguir fazer tal coisa!
- Quando todas as provas tiverem sido apresentadas, todas as testemunhas chamadas a depor, e lhes competir determinar até que ponto eram ou não fiáveis, quando tudo isso tiver sido analisado, estou certo de que os senhores membros do júri considerarão que o meu cliente não é culpado deste crime horrível. Pelo vosso sábio veredicto, libertá-lo-ão como convém, para que este pobre e sofredor viúvo possa continuar a recuperar o melhor que puder da perda e das feridas que sofreu.
Ao regressar ao seu lugar, Hancock fez uma pausa para tocar no ombro de Jimmy com a ternura de um pai reconfortando um filho.
O discurso de abertura da acusação foi feito por Taylor Moore, cuja elegância esguia e de bom corte estava em nítido contraste com o desajeitado porte de morsa de Hancock. Fez um discurso enérgico, andando de um lado para o outro diante do compartimento reservado ao júri, de mãos nas ancas e cotovelos salientes.
- Caros membros do júri, o Sr. Hancock tem toda a razão quando afirma que a acusação tem de provar os factos para além de uma dúvida razoável. Mas não me parece que seja, nem de longe, tão difícil como ele faz parecer, porque os factos deste caso são muito claros.
- Durante os próximos dias, mostraremos que o casamento de Jimmy e Eula Phillips não era ligeiramente perturbado pelas normais questiúnculas da vida de todos os dias, como sugere o Sr. Hancock, mas era devastado por uma profunda e irreconciliável animosidade. Na noite do último Natal, Jimmy e Eula estavam tudo menos reconciliados, como afirma o Sr. Hancock. De facto, estavam mais longe um do outro do que nunca, e a crise deste casamento desfeito atingiu um ponto tal, entrou de tal maneira em ebulição, que Jimmy Phillips recorreu ao assassínio violento.
463- Como é que ele fez isto? Com um machado. Pensem na dura realidade deste facto, cavalheiros! Mostrar-lhes-emos o próprio machado que foi usado; vê-lo-ão com os vossos próprios olhos. Este machado já existia na propriedade dos Phillips na noite do homicídio, pelo que estava à mão. Não foi levado para ali por um assaltante imaginário vindo do exterior.
- O crime foi cometido na sequência de um estímulo momentâneo, num impulso louco e não premeditado? Mostraremos que já noutras ocasiões jimmy tinha sido violento com a mulher. Na verdade, temos conhecimento de pelo menos um incidente em que ele a ameaçou com uma faca. Mostraremos que, mais do que uma vez, Jimmy Phillips disse a outras pessoas que mataria a mulher se soubesse que ela lhe era infiel.
- E Eula Phillips era infiel? - Quando Moore fez uma pausa para obter todo o efeito da sua pergunta, continuando a passear lentamente diante do compartimento do jurí, Will sentiu um arrepio na nuca. Infelizmente, mostraremos que sim. Como esposa, Eula Phillips não era o que devia ter sido. Partilhou os seus favores com outros homens, para além do marido, e não apenas uma vez, mas numerosas vezes; não apenas com um amante, mas com vários; não apenas por amor ou por simples prazer carnal, mas muito provavelmente em troca de ganhos monetários. Mostraremos que Eula Phillips chegou mesmo a engravidar de um dos seus amantes e, para esconder o facto ao marido, abortou a criança. Mostraremos que se encontrava com esses múltiplos amantes numa conhecida casa destinada a entrevistas amorosas situada na Avenida do Congresso. O seu penúltimo encontro nessa casa foi a 23 de Dezembro, véspera da sua morte.
O arrepio estendeu-se pelos ombros de Will e desceu-lhe pela espinha abaixo. Corou intensamente. Sentia-se sufocar; a sala parecia um forno. De que raio estava aquele advogado a falar? Moore tinha de estar a mentir, todos os advogados mentiam. Nada do que o homem dizia fazia sentido...
Moore prosseguiu, em tom tão volúvel, que Will tinha vontade de o estrangular antes de ele ter oportunidade de acumular novas mentiras.
- Não podemos conhecer todos os pormenores da morte de Eula Phillips - dizia Moore - porque há certos factos que apenas Eula Phillips poderia contar-nos, mas podemos entrever os contornos dessa noite fatídica. As provas físicas que apresentaremos e os depoimentos das
464nossas testemunhas tornarão a história bastante clara. Eula Phillips foi-se deitar com o marido e o filho na noite de Natal, e o Sr. Hancock deixou a história por aqui, com o marido, a mulher e a criança deitados em pacífica felicidade. Mas Eula Phillips não ficou deitada. Certamente que esperou que o marido adormecesse. Depois levantou-se, vestiu uma capa, apanhou um trem de aluguer e dirigiu-se a residência de uma certa May Tobin, onde costumava encontrar-se com os amantes.
- Mas o encontro gorou-se. O homem que tinha ficado de se encontrar com ela nessa noite não apareceu, e o quarto que lhes fora reservado foi ocupado por outros. May Tobin mandou Eula Phillips embora, como que em paródia blasfema do antigo hospedeiro que declarou, na primeira noite de Natal: ”Não ha lugar na estalagem.” Desiludida, Eula Phillips voltou para casa no mesmo trem de aluguer.
- O que se passou em seguida? Não podemos conhecer a sequência exacta dos acontecimentos, a não ser que o próprio Jimmy Phillips no-los narre. Um dos cenários possíveis é o seguinte: a própria Eula levou o machado do quintal, com receio de que o marido estivesse acordado e irritado, e com a ideia de se defender dele. Terá sido ela a atacar primeiro, e Jimmy Phillips, ferido e enraivecido, ter-lhe-á tirado o machado das mãos e respondido ao golpe com outro semelhante. Se assim foi, é melhor que os advogados de jimmy Phillips no-lo digam imediatamente, porque poderão alegar autodefesa.
- Mas receio que o verdadeiro cenário seja ainda pior do que este: Jimmy acordou e viu que a mulher estava ausente. Sabia, ou pelo menos suspeitava, da razão da sua ausência. Ficou a matutar no escuro, alimentando a sua raiva, e decidir fazer alguma coisa para resolver o assunto. Foi buscar o machado ao quintal e voltou a deitar-se, à espera. Quando a mulher chegou, Jimmy Phillips atacou-a com premeditação maliciosa,
e matou-a.
- Nessa altura, terá gritado: ”Tem piedade de mim, Senhor, que matei a minha mulher!” Não. É que Jimmy Phillips não tinha qualquer intenÇão de assumir a responsabilidade pelo terrível acto que cometera. Tinha pensado antecipadamente no que faria em seguida. Pegou no corpo moribundo da mulher, levou-o para o quintal, onde a depositou em posição obscena, por forma a desviar as suspeitas de si próprio, num acto declarado de cobardia assassina! Depois, com os nervos naturalmente esgotados pela ferocidade do crime cometido, e com uma determinação
465demoníaca de esconder todas as pistas, Jimmy Phillips regressou ao quarto e infligiu um golpe a si próprio. O machado caiu no chão. Jimmy vacilou em direcção à cama. Sucumbiu ao lado do seu espantado filho, a criança que ele próprio transformara num órfão! e, como cobarde que era, começou a chamar pela mãe. Tende piedade do filho de Eula Phillips, que chamará pela mãe em vão!
- Trata-se de uma história sórdida, senhores membros do júri. Repugna-me voltar a contá-la. É o crime mais horrendo e vil que se possa imaginar.
- Poderão sentir-se tentados, ao ouvir alguns dos depoimentos, a sentir simpatia por Jimmy Phillips. Poderão pensar: ”A mulher dele era uma rameira desavergonhada; teve o que merecia.” Mas não é vossa função julgar Eula Phillips. Ela era muito jovem, era fraca e era tola. Mas por nenhuma dessas culpas merecia morrer, e nenhum homem tinha o direito de a matar. Fossem quais fossem os pecados que tenha cometido, isso agora é entre ela e o seu Criador; será julgada por uma lei maior. É vosso dever administrar a lei dos vivos. Um homem que planeia um assassínio violento e vai buscar um machado para o cometer, um homem que faz do próprio filho um órfão e depois oculta o que fez e se esconde por trás das ligaduras, tal homem poderá ser, ou não, como dizia o Sr. Hancock, um monstro. Mas não pode certamente escapar ao juizo da lei.
Moore voltou para o seu lugar. Will estava siderado. À sua volta, a sala estava cheia de movimento. O juiz fez soar o martelo, os jornalistas escreviam furiosamente, as senhoras abanavam-se com os leques e sussurravam aos ouvidos umas das outras, os advogados empilhavam e analisavam pedaços de papel. Mas Will permanecia imóvel. só havia mais uma pessoa naquela sala que estava igualmente imóvel: Jimmy Phillips; era como se ambos tivessem sido transformados em pedra.
O estado chamou a primeira testemunha, a Sra. James Phillips, que exibia um ar macilento e apoquentado. Respondeu em tom neutro às perguntas que lhe foram feitas, olhando de vez em quando para o filho com uma expressão aflita. Se John Hancock lhe tivesse dado instruções para puxar pelo coração aos membros do júri, não se teria desempenhado melhor da missão.
Explicou que Jimmy e Eula tinham passado a maior parte do ano anterior na quinta de McCutcheon, no Distrito de Williamson, mas
466haviam regressado a Austin em Outubro. Descreveu a disposição da casa dos Phillips. Narrou os eventos da fatídica noite - que Jimmy tinha ido pagar uma prestação da mobília e tinha voltado quinze minutos depois, conforme tinham apostado; que a noite tinha sido calma e rotineira; que Jimmy e Eula se tinham retirado para o quarto com o bebé; que ela lhes tinha levado maçãs e nozes, e os tinha encontrado aos três aninhados; que os tinha visto pela última vez um pouco antes das onze, indo deitar-se em seguida; que tinha sido acordada depois da meia-noite pela voz do filho, que gritava: ”Oh, Mamã!” e ”Eula, querida!”; que se tinha dirigido ao quarto de Jimmy e Eula, que ficava do outro lado da varanda, e tinha encontrado Jimmy deitado na cama ao lado do bebé, confuso e coberto de sangue, que o tapete estava cheio de sangue e que havia um machado sujo de sangue no meio do chão; que tinha reparado nas roupas ensanguentadas de Eula, amontoadas ao lado da cama, mas não vira sinais de Eula; que tinha ido a correr acordar o marido, que estava doente, gritando: ”O Jimmy foi assassinado! Assassinaram o Jimmy!”; que tinha voltado para junto de Jimmy, que murmurava e delirava, desmaiando e voltando a si; que pouco tempo depois tinha começado a chegar gente. O resto da noite, incluindo a descoberta do corpo de Eula no pátio das traseiras, estava de tal maneira confuso no seu espírito, que ela não conseguia falar com segurança.
Taylor Moore interrogou-a sobre o alcoolismo do filho. Ela admitiu que, de vez em quando, ele bebia de mais. Moore interrogou-a sobre um incidente específico, em que Jimmy tinha perseguido a irmã e metido o painel de uma porta dentro a pontapé; a Sra. Phillips reconheceu que Jimmy tinha bebido no momento em que esse incidente ocorrera, e que na sequência dele Delia e Eula tinham saído de casa, e Eula tinha estado ausente várias semanas.
- E na manhã que se seguiu ao assassínio, Sra. Phillips, no dia de Natal, enquanto cuidava do seu filho, julgo que foi na presença de uma mulher de cor chamada Sallie Mack, que trabalha em sua casa, não é verdade, Sra. Phillips, que o seu filho recuperou a consciência e lhe perguntou: ”Mãe, onde está a Eula?”
A Sra. Phillips olhou para o filho e depois desviou os olhos. Demorou muito tempo a responder.
- Sim, é verdade.
- E o que foi que lhe respondeu?
467- Disse-lhe: ”Eula morreu.”
- E
como reagiu ele?
A Sra. Phillips baixou a cabeça.
- Qual foi a resposta de Jimmy, Sra. Phillips? - solicitou Moore suavemente.
- Disse-me... - Engoliu em seco. - Disse-me: ”Nesse caso, de certeza que eu vou para o inferno!”
A sala do tribunal reagiu. Os jornalistas escreviam que nem loucos. Moore afastou-se da bancada das testemunhas. Wil decidiu que odiava o homem.
A Sra. Phillips foi dispensada. O tribunal suspendeu os trabalhos. Os repórteres desataram a correr que nem loucos à excepção de Dave, que não precisava de correr para o posto do telégrafo. Os homens do Tribune de Chicago e do World de Nova Iorque pareciam conhecer-se. Ao passarem por Will, deram-lhe um encontrão e umas pisadelas.
- Belo material, hein? - dizia o homem do Tribune. Uniu as sobrancelhas e disse em tom arrastado e queixoso: ”Nesse caso, de certeza que eu vou para o inferno, Mamã!”
- Ah, mas o espectáculo a sério vai começar quando a irmã do acusado e uma mulher chamada May Tobin vierem depor - respondeu o homem do World. - O informador que eu tenho no gabinete do procurador prometeu-me fogo-de-artifício.
- Não vão ser apenas faíscas?
- Velas romanas e foguetes, meu amigo!
Calmamente, Dave agitou o pulso para descontrair da tensão e ergueu os olhos do bloco de notas.
- Mal disseste uma palavra desde que aqui chegamos, Will!
- Se o julgamento está a entediar-te, conheço uma série de indivíduos que gostariam de ocupar esse lugar.
- Não! - Will apertou o braço de Dave. - Tenho de ca voltar amanhã.
- Está bem, está bem! - Dave soltou uma gargalhada. - Bem, larga-me o braço, estás a magoar-me!
46845
O segundo dia do julgamento iniciou-se com mais testemunhas apresentadas pelo estado.
A Sra. S. M. Der, que morava ao lado da residência dos Phillips, testemunhou ter assistido a uma discussão em Novembro, durante a qual Jiminy tinha perseguido Eula e Delia até ao pátio. Tinha sido alertada para a discussão pelo ruido de madeira a partir-se proveniente da casa dos Phillips, e pelo som dos berros de Jimmy:
- Maldita sejas, eu mato-te!
R. B. Enes, tio de Eula, testemunhou que, quando Eula deixara o marido durante algum tempo, em Novembro, após a cena do pátio, Jimmy tinha ido a sua casa a procura dela e brandira uma faca, afirmando que mataria quem a escondesse.
Alberto Highsmith, um amigo de George McCutcheon, testemunhou que visitara por várias vezes a quinta de McCutcheon enquanto Jimmy e Eula lá viviam, e que em certa ocasião tinha ouvido Jimmy dizer, na presença de McCutcheon e outros, que se alguma vez descobrisse que Eula lhe era infiel, mataria Eula e depois se suicidaria. Highsmith pensava que, na altura, Jimmy estava embriagado.
Alma Burdett, a irmã de Eula, que vivia em Manchaca, testemunhou que Jimmy tinha uma natureza desconfiada e ciumenta. Lembrava-se de várias ocasiões em que Eula referira de passagem o nome de um homem, ou se limitara a reconhecer um homem na rua, o que levara Jimmy a agarrá-la com força por um braço, exigindo saber:
- Como raio é que tu conheces aquele sujeito?
Sallie Mack testemunhou que estava presente no momento em que Jimmy Phillips acordou, no dia de Natal, e perguntou a mãe onde estava Eula. Tendo-lhe a Sra. Phillips respondido que Eula estava morta, Salie ouviu nitidamente Jimmy exclamar: ”Nesse caso, de certeza que eu vou para o inferno!”
469- Anteriormente - prosseguiu Taylor Moore -, durante a noite e depois de o assassínio de Eula Phillips ter sido descoberto, ajudou a Sra. Phillips a cuidar do filho, não é verdade?
- Tive ao lado dela, a levá e a trazê o que ela me pedia, sim senhô
- respondeu Sallie.
- A levar e a trazer o que ela lhe pedia. Uma das coisas que ela lhe pediu foi uma bacia de agua?
- Sim, senhô.
- E viu o que ela fez com a bacia de agua?
- Lavô o Jimmy.
- Que parte específica da anatomia do acusado é que ela lavou?
- Perdão?
- Que parte do corpo de Jimmy lavou a Sra. Phillips?
- Lavou-lhe os pés, senhô.
- Viu a bacia depois?
- Sim, senhô.
- De que cor estava a agua?
- Uma cor avermelhada, como se tivesse sangue.
Moore introduziu uma bacia como prova. Sallie identificou-a como sendo a que tinha visto na referida noite.
G. R. Thompson, o polícia encarregado dos cães de caça utilizados para perseguir condenados fugidos, testemunhou que naquela noite havia chegado com os seus melhores cães a casa dos Phillips, onde já se haviam congregado várias pessoas, mas o corpo de Eula ainda não tinha sido encontrado.
- Como batedor experiente, qual foi a primeira coisa de que se apercebeu? - perguntou Moore.
- Bem, senhor, vi manchas de sangue e o que me pareceram ser pegadas de sangue nas tábuas do chão da varanda, em direcção aos degraus de tras.
- O que fez então?
- Bem, deixei os meus dois cães - e note que eram os dois melhores cães da matilha - deixei-os cheirar as manchas sangrentas e eles conduziram-me directamente ao fundo do pátio de trás, oh, a cerca de 450 metros da varanda.
- E o que foi que descobriu aí?
- O corpo da pobre mulher. Os cães e eu fomos os primeiros a encontrá-la.
470- O que fizeram os cães depois disso?
- Bem, senhor, tentaram ambos regressar à casa, o que na altura me pareceu bastante peculiar, porque deviam saber que não era isso que lhes competia. Eles sabem o que tem de fazer.
- E o que têm eles de fazer?
- Bem, agarrar uma pista e conduzir-nos para fora do local. Ora, naquela noite a lua estava mesmo luminosa, e eu vi mais manchas na vedação que da para o beco; pensei que fossem manchas de sangue, e acontece que eram mesmo. Por isso, segurei os cães e fui pôr-lhes o nariz sobre as manchas da vedação, e pedi ao juiz de Paz Von Rosenberg que me ajudasse a passar os cães por cima da vedação para os colocar no beco. Os cães desataram a correr para oeste, na direcção da Ribeira de Shoal, depois subiram a Colina do Castelo, em direcção à casa de Nathan Shelley, seguindo depois para sul. Von Rosenberg e eu fomos atrás deles até Clarksville, e de volta, mas eles nunca conseguiram encontrar uma pista segura.
- Por que diz isso?
- Quando eles encontram uma pista, soltam um certo tipo de uivo, mais ou menos assim... - Thompson pôs as mãos em concha diante da boca e produziu um uivo baixo e melancólico, que ecoou no tecto alto.
O ruído era medonho, pensou Will; gelara-lhe o sangue. Mas atrás de si ouviu os jornalistas do WorUde Nova Iorque e do Tribune de Chicago desatarem a rir as gargalhadas. O juiz fez soar o martelo e lançou-lhes um olhar severo.
- Prossiga, Sr. Thompson.
- Bem, coM’eu estava a dizer, seguimos os cães em alegre corrida, mas não encontramos nada, pelo que regressamos finalmente a casa dos Phillips. Ora, quando nos tínhamos ido embora a multidão era tal e o barulho era tanto, que os cães estavam distraídos, mas quando regressamos as coisas tinham acalmado, por isso achei por bem dar-lhes outra oportunidade.
- E nessa altura a pista já estaria fria? - perguntou Taylor Moore.
- Bem, há frio e frio. Eram os meus dois melhores cães, não se esqueça, e o mais velho deve ser o melhor batedor a frio que eu já vi na minha vida. Aquele cão consegue detectar uma pista com seis, e mesmo com oito horas. Depende da temperatura e da humidade da erva, e outros factores semelhantes. Seja como for, deixei-os cheirar o local onde tinham
471encontrado o corpo, nessa altura, já o tinham levado para dentro, tal como tinham feito antes, eles puxaram para dentro da casa, só que desta vez eu deixei-os.
- E o que fizeram os cães?
- Subiram à varanda, pararam a cheirar as pegadas sangrentas, e depois dirigiram-se ao quarto onde estavam Jimmy Phillips e a Mãe. Subiram ambos para cima da cama, a uivar de trazer a lua para a terra, assim... - Thompson voltou a cabeça para trás, pôs as mãos em concha diante da boca e produziu de novo o uivo melancólico. O efeito era tão inquietante, que até os jornalistas da grande cidade permaneceram silenciosos. - Jimmy Phillips começou a gemer, a chamar a Mãe, e a Mãe soltou um guincho. Receio que os cães lhes tenham pregado aos dois um susto valente antes d’eu conseguir agarrá-los.
- O que fizeram então os cães?
- Bem, havia uma pilha de roupas cobertas de sangue ao pé da cama
- eram roupas de mulher - e os cães cheiraram-nas e mostraram algum interesse. Depois avançaram para a bacia de água ensanguentada que estava no chão, e aí mostraram muito interesse em cheirá-la.
Moore mostrou-lhe a bacia que Sallie Mack tinha identificado como aquela que a Sra. Phillips utilizara para limpar os pés de Jimmy.
- Foi esta a bacia que eles farejaram?
- Parece a mesma - respondeu Thompson.
Na galeria reservada à imprensa, os jornalistas escreviam furiosamente. O juiz ordenou um intervalo para o almoço.
Ao todo, tinham sido chamados quatro médicos a casa dos Phillips na noite do assassínio. Nessa tarde, foram todos chamados a testemunhar. O Dr. Litten, o médico de família dos Phillips, fora o primeiro a chegar à casa, por volta da uma hora da manhã, acompanhado do seu assistente, o Dr. Cummings. O médico encontrara Jimmy inconsciente, deitado na cama e rodeado por uma considerável quantidade de sangue. Taylor Moore pediu ao Dr. Litten que descrevesse a ferida do acusado.
- Tinha uma parte da cutícula frontal da orelha abatida, como se tivesse sido atingida de lado. A ferida mais grave era a que tinha por cima da orelha, aqui na têmpora esquerda. - O Dr. Litten deu uma palmadinha na própria cabeça. - O golpe tinha sido dado para dentro e para baixo, e era mais profundo no alto e mais superficial à medida que
472se avançava. O que é consistente com um corte feito pela lâmina de um machado. As arestas da ferida eram irregulares e laceradas. Tinha uma profundidade de 12 milímetros, chegava ao periósteo, que estava raspado e pisado.
- Para os leigos presentes, Doutor, o que é o periósteo?
- É uma membrana de tecido conectivo duro e fibroso que cobre os ossos, incluindo o crânio.
- O crânio tinha sido afectado?
- Não vi sinais de que o crânio estivesse fracturado.
- Também examinou o corpo de Eula Phillips, não é verdade?
- Sim. O corpo foi descoberto pouco depois de eu ter chegado, enquanto estava a tratar dos ferimentos de Jimmy.
- Pode descrever-nos como encontrou a morta?
- Estava deitada de costas, despida. A testa tinha sido aberta com um instrumento. A ferida subia praticamente desde a base do nariz. O Dr. Litten ilustrou o que pretendia dizer colocando a mão na perpendicular da própria testa. - A ferida era mais profunda na parte superior da cabeça, teria uns 40 milímetros de profundidade e uns 30 milímetros de largura. Podia ter sido feita com um machado. Foi certamente a causa da morte, já que ela não tinha outras feridas no corpo. Imagino que um golpe daqueles a terá matado instantaneamente.
- Era uma mulher de pequena estatura, não era?
- Bastante pequena. Duvido de que pesasse mais de 45 quilos.
- Havia vestígios de relações sexuais?
O Dr. Litten mostrou-se pensativo. Na galeria, os homens da imprensa inclinaram-se para diante em uníssono.
- Não posso dizer que sim ou que não de forma conclusiva. Dadas as circunstâncias, senti-me obrigado a considerar a possibilidade de ela ter sido violada, quer antes, quer depois da morte, pelo que a examinei. Tinha as pernas abertas e as partes íntimas um pouco dilatadas. Não havia hemorragia. A vagina continha cerca de uma colher de cha de um fluido branco e opaco, semelhante ao sémen humano, embora, a meu ver, um pouco mais escuro. Mais tarde, examinei-o ao microscópio, e descobri que não continha quaisquer gérmenes vitais ou geradores de vida, como os que costumam existir no ssémen. No entanto, nem sempre esses gérmenes estão presentes no sêmen; podem não existir de todo no dos homens estéreis, e mesmo no sêmen normal podem expirar pouco
473depois de ele ser depositado. Se não fosse sêmen, poderia ser um fluido naturalmente excretado pela vagina. Por isso, não posso ser conclusivo quanto à possibilidade de ter havido relações sexuais por alturas da morte.
No contra-interrogatório, John Hancock pediu ao Dr. Litten que descrevesse o estado de Jimmy Phillips em consequência do golpe que recebera na cabeça.
- O golpe produziu um enorme choque nervoso e uma razoável incapacidade física. Depois dessa noite, o Sr. Phillips esteve entregue aos meus cuidados durante dois meses, e ao longo desse tempo sofreu de nervos, estados febris, insônias, ma circulação e enfraquecimento na actividade cardíaca. Continua a sofrer desses sintomas, embora mais atenuados.
- Quando examinou o acusado pela primeira vez, considerou a possibilidade de o ferimento ter sido auto-infligido? - perguntou Hancock.
- Não, não considerei. Dadas as circunstâncias, a ideia não me ocorreu.
- Quer dizer que não era óbvio, não era algo para que se apontasse, dizendo: ”Olhem para isto, outro louco a pôr o cérebro de fora com um machado.”
O Dr. Litten sorriu.
- Não.
- E, contudo, desde esse momento, a questão de poder tratar-se de uma ferida auto-infligida tem sido colocada com seriedade, pelo menos pelo procurador público - observou Hancock. - Qual é a sua opinião, como especialista médico, sobre o assunto? O ferimento foi auto-infligido?
- Não posso dizer com segurança que foi ou que não foi.
- Podia ter sido?
O Dr. Litten inspirou profundamente.
- Devo dizer que me parece altamente improvável. Não é impossível, medicamente falando, mas é altamente improvável.
O assistente de Litten, o Dr. Cummings, foi chamado a depor. De uma maneira geral, concordou com a descrição que o Dr. Litten fizera do ferimento de jimmy, mas expressou a opinião de que tinha sido provavelmente causado por dois ou mais golpes.
- Um homem pode controlar os nervos por forma a auto-infligir-se um golpe profundo, mas dois ou três, isso parece-me virtualmente impossível. Os reflexos naturais não o permitiriam.
474O Dr. Fisher, que também havia sido convocado naquela noite mas só chegara as três ou quatro horas, discordou do Dr. Cummings quanto ao número de golpes, afirmando que o ferimento que Jimmy tinha na cabeça havia sido causado por um único golpe violento, mas mostrou-se igualmente céptico quanto à possibilidade de ter sido auto-infligido.
- Após um cuidadoso estudo do ferimento, sou de opinião de que terá sido um golpe dado com muita força por alguém que se encontrava por trás do acusado.
- Quer dizer que era fisicamente impossível o acusado tê-lo feito? observou Hancock.
- Nesta era de milagres médicos, terá muita dificuldade em encontrar um médico disposto a utilizar a palavra impossÍvel - replicou o Dr. Fisher mas neste caso eu diria que é quase impossível.
O Dr. Bragg, que havia acompanhado o Dr. Fisher a residência dos Phillips, discordou dos três colegas.
- Não foram dois golpes, mas um só, e não foi infligido de trás, mas da frente. E, se o comparar com o golpe que matou instantaneamente a mulher do acusado, perceberá imediatamente por que motivo foi tão menos danoso. Foi dado com muito menos força, como prova o facto de não ter fracturado o osso, e em vez de ter sido directo, por assim dizer, foi um golpe de esguelha, na zona lateral da cabeça. Não vejo nenhuma razão para que uma pessoa não possa infligir semelhante ferimento a si própria.
- Quer dizer que acha possível que o ferimento do acusado tenha sido auto-infligido? - perguntou Taylor Moore.
- Não acho apenas possível, senhor, acho provável. - Estas palavras geraram um rebuliço na sala do tribunal.
Na sequência do testemunho do Dr. Bragg, o juiz suspendeu a sessão. O julgamento prosseguiria na manhã seguinte.
Estava demasiado calor para se conseguir dormir naquela noite. Embora estivesse completamente despido, Will dava voltas e mais voltas por baixo do lençol.
Sempre que fechava os olhos, tinha uma visão de Eula, não da bela mulher cujo rosto lhe tinha roubado o coração da primeira vez que a vira, mas da Eula que vira pela última vez, com a testa amolgada para dentro e o rosto desfeito. Estava nua. Ele teria olhado para o meio das
475pernas dela? Não se lembrava, mas não conseguia deixar de ouvir as palavras do médico: aspernas abertas... aspartes íntimas dilatadas...
No sonho, aproximava-se cada vez mais daquele sítio escuro, brilhante, que mais parecia uma ferida, que ela guardava entre as pernas... Ouvia cães de caça a uivar ao longe. Atrás dele, os jornalistas de Nova Iorque e de Chicago riam-se. Na bancada das testemunhas, o Dr. Litten erguia um frasquinho que continha um fluido branco opaco.
”Não encontrei gérmenes vitais ou geradores de vida no semen que lhe retirei da vagina” - dizia o médico. Depois, apontava um dedo acusador na direcção de Will. ”As minhas provas médicas indicam que o sêmen masculino era daquele jovem que se encontra na galeria da imprensa!”
O médico erguia um enorme desenho daquilo que tinha visto ao microscópio. Já não era o Dr. Litten, era o Dr. Edmund Montgomery, e a sala do tribunal era o rústico escritório de Liendo. No desenho, via-se um espécime protoplástico com a forma de um sombrero amarrotado, com uma franja de pequenos tentáculos. A legenda dizia: O que é estar vivo?
O juiz chamava Will a parte da frente da sala. Mandava-o sentar-se a secretária atravancada do Dr. Montgomery. ”Se olhar por esse microscópio, jovem, voltará a ver Eula Phillips.” O coração de Will dava um nó no peito. Colocava o olho no tubo e via uma horrível massa vermelha de matéria viscosa e ondulante, que se assemelhava a uma pilha de vermes ensanguentados.
Will voltava a erguer os olhos para o juiz, que o olhava com uma expressão severa. ”O seu castigo, jovem, será escrever mil páginas sobre o seguinte assunto: O que é estar vivo.
Will olhava fixamente a enorme pilha de folhas brancas que tinha diante de si: ”Mas eu não sou capaz!”
”Nesse caso, terá de fazer o que Jimmy fez.” Entre o amontoado de coisas que havia em cima da secretária, Will avistou um machado. Pegou nele. O cabo estava quente e escorregadio. A lâmina brilhante estava suja de sangue.
Will acordou sobressaltado. O sol entrava pelas janelas abertas. Tinha dormido a noite inteira, mas sentia-se completamente exausto.
Era o dia em que May e Delia iam testemunhar.
476
46
O terceiro dia do julgamento começou com Fannie Whipple na bancada das testemunhas.
Trazia o seu melhor fato de domingo, um vestido roxo e um chapéu roxo, sobre o qual estava empoleirado um pássaro amarelo, qual ave canora no meio da urze. Mantinha uma atitude rígida e uma expressão desconfiada. Nunca olhou de frente para o juiz ou para qualquer dos advogados que a interrogaram.
No começo do depoimento, ficou estabelecido que Fannie era conhecida por ter uma casa destinada a entrevistas amorosas, e que testemunhava sob promessa de isenção de acusação.
Fannie testemunhou que, em Novembro, Eula Phillips chegara a sua casa na Rua Red River, na companhia de Delia Campbell. Fannie não conhecia nenhuma das mulheres, sabendo apenas que eram amigas de May Tobin. Disseram-lhe que tinham fugido do marido de Eula que, num tumulto de embriaguez, tinha ameaçado Delia de morte. Enquanto se encontravam em casa de Fannie, tinham pago o quarto e a alimentação. Tinham lá passado uma noite inteira, todo o dia seguinte e uma segunda noite até as duas da manhã, altura em que haviam partido ambas na companhia de um homem branco.
- Quem era esse homem? - perguntou Taylor Moore.
Na galeria reservada à imprensa, os jornalistas agitavam-se com a expectativa.
- Não sei dizê - respondeu Fannie. - Não o conhecia, e ele não me disse como se chamava.
- Mas a Sra. Campbell e a Sra. Phillips conheciam-no?
- Não lhes era desconhecido.
May Tobin foi chamada a depor. Vinha vestida de azul-escuro e preto, como convinha a uma viúva. Passou os olhos pela sala do tribunal, usava uns óculos sem aros, com uma expressão de quase desprezo. O seu olhar pareceu deter-se em certos espectadores, aos quais concedeu ligeiros
477acenos de reconhecimento. Will baixou o rosto. Os jornalistas Puseram-se de pé, empurrando-se uns aos outros para tentarem seguir a direcção desse olhar. O juiz fez soar o martelo e ordenou-lhes que se sentassem.
Tal como acontecera com Fannie Whipple, ficou estabelecido que May era conhecida como proprietária de uma casa destinada a entrevistas amorosas e testemunhava sob promessa de isenção de acusação.
Foi interrogada sobre a noite de Novembro em que Eula e Delia tinham chegado a sua casa, provenientes da casa de Fannie Whipple.
- Sim, lembro-me dessa noite - disse May.
- Lembra-se da pessoa que as acompanhava?
- Lembro-me.
As cadeiras guincharam e gemeram. Na galeria reservada à imprensa, os blocos de notas agitaram-se.
- Quem era esse homem?
- Chama-se Sr. Shelley Era um jovem. Julgo que trabalha num departamento do estado.
Dave tornou-se rígido.
- Meu Deus, William Shelley! Não admira que cá não esteja. O homem do Tribune inclinou-se sobre a fila deles.
- Shelley escreve-se com dois es? Dave acenou com a cabeça.
- E John Hancock, o advogado de defesa, é sócio do pai de Shelley.
- O velhote esta com um ar de morrer - sussurrou o homem do Tribune.
Taylor Moore deixou acalmar o rebuliço antes de prosseguir.
- Esse Sr. Shelley levou a Sra. Campbell e a Sra. Phillips para sua casa às duas da manhã?
- Por volta dessa hora.
- Costuma receber visitas a essa hora, Sra. Tobin?
- Às vezes, acontece um quarto ficar vago as duas da manhã. Foi o que aconteceu neste caso, tanto quanto me lembro.
- Estou a ver. A Sra. Campbell e a Sra. Phillips ficaram alojadas em quartos separados?
- Ficaram.
- O Sr. Shelley também lá passou a noite?
- Passou. Essa e as duas noites seguintes.
- Passou essas noites com alguma das duas mulheres?
478- O Sr. Shelley passou essas três noites com Eula Phillips - respondeu May. Will teve a sensação de que lhe tinham puxado a cadeira e de que flutuava no ar.
- Estou a ver - disse Moore. - Tem a certeza de que o Sr. Shelley dormiu na mesma cama que a Sra. Phillips?
- Tenho a certeza de que nesse quarto só ha uma cama. Não posso ter a certeza se algum deles dormiu grande coisa.
As gargalhadas irromperam na sala do tribunal, roufenhas e desagradáveis aos ouvidos de Will. Eula recusara-se a voltar a vê-lo, recusara-se sequer a responder às suas cartas, essas cartas que tanto lhe tinham custado a escrever... e afinal William Shelley... três noites seguidas...
- Após a terceira noite, a Sra. Phillips continuou em sua casa?
- Não.
- Sabe para onde foi?
- Tanto quanto sei, foi uns tempos para casa da irmã, que vive em Machaca.
- Durante esse período de três dias, em Novembro, algum homem foi visitar a Sra. Phillips, para além do Sr. Shelley?
- Não.
- Antes dessa estadia em Novembro, alguma vez a Sra. Phillips tinha visitado a sua casa?
- Tinha.
- Seria correcto dizer que ela ia a sua casa com o objectivo de se encontrar com outros homens, que não o marido?
Os olhos de May brilharam.
- Às vezes, Eula vinha apenas visitar-me. Éramos amigas, compreende?
- Sim, mas a maioria das vezes ia encontrar-se com homens, num quarto privado, é assim?
- A maioria das vezes sim,
- Quando tiveram início essas visitas?
- Conheci a Sra. Phillips em Outubro.
- Foi nessa altura que ela começou a utilizar os quartos que a senhora tinha disponíveis.
- Foi.
- Isso foi pouco depois de a Sra. Phillips e o marido terem regressado a Austin, depois de terem vivido no Distrito de Williamson?
- Julgo que sim.
479- Ou seja, quase logo que regressou a Austin, ela começou a encontrar-se com homens em sua casa?
- Sim.
- É capaz de identificar esses homens?
May passou os olhos pela sala, divertida com a atenção indivisa dos jornalistas que se encontravam na galeria reservada à imprensa. Will desviou os olhos.
- Alguns.
Moore voltou-se para o juiz.
- Senhor Juiz, a fim de estabelecer que estes encontros se deram efectivamente, e de os caracterizar como acontecimentos específicos, em vez de nos ficarmos por vagas generalidades, tenciono perguntar a Sra. Tobin o nome dos homens que ela conhece.
O juiz acenou com a cabeça.
- Prossiga.
- Com quem se encontrou Eula Phillips em sua casa, Sra, Tobin?
- Encontrou-se com o Sr. Shelley, antes desses três dias de Novembro.
- Sim, podemos presumir que ja se conheciam. - Ouviram-se umas gargalhadas dispersas na sala. Alguns dos jornalistas mandaram calar o público. - Quem mais, Sra. Tobin?
O rosto de May ganhou uma expressão dura e fria.
- De uma maneira geral, apenas conheço os apelidos, compreende? Lembro-me de que havia um tal Sr. Dickinson. Lembro-me de o ouvir dizer certa vez que trabalhava para um tal Sr. Joseph Lee.
Dave soltou um assobio. O homem do Tribune espreitou-lhe por cima do ombro. Will viu-o escrever John Dickinson - Secret. Estado cap. Ed. com.!
- A Sra. Phillips encontrou-se várias vezes com o Sr. Dickinson, sempre da parte da tarde - prosseguiu May. - Lembro-me de ter pensado como é que um homem com um cargo tão importante conseguia ter tempo livre às tardes. É de uma pessoa se interrogar quanto à dedicação dos nossos funcionários públicos.
- Sim. Quem mais, Sra. Tobin?
- Havia um jovem muito elegante, com uma barbinha muito bem aparada e belos caracóis. Também vinha às tardes. Muito bem educado. Parecia um professor. Como é que ele se chamava? Ah, sim, Sr. Baker!
Dave moveu excitadamente o queixo. O homem do Tribune praticamente rastejava por sobre o banco. Will teve de fazer um esforço para
480ler o que Dave tinha escrito: Benjamin M Baker - Supt.. Educ. Pública!
- idade 35 - estrela em rápida ascensão na política texana...
- E houve outros, Sra. Tobin?
- Oh sim. A Sra. Phillips era uma mulher encantadora, sabia?
- Pode identificar os restantes, Sra. Tobin?
May encolheu os ombros.
- Em certos casos, quando o quarto era alugado à Sra. Phillips, o visitante não me dava o seu nome.
- Está a dizer-me que houve outras pessoas que se encontraram com a Sra. Phillips em sua casa, mas que não é capaz de os identificar?
- Exactamente. Mas, agora que penso nisso, houve outro que me deu o nome...
A galeria reservada à imprensa fervilhou de expectativa. Ha vários dias que se dizia que May Tobin ia referir um nome muito gordo, ainda mais gordo que o de Benjamin Balcer, o Comissário de outro departamento de estado, um homem com ambições à Mansão do Governador. já se aproximara muito, tendo nomeado o seu jovem protegido, William Shelley, e estava a atormentar a assistência. Atrever-se-ia a nomear o próprio Fiscal Swain?
- O sujeito em quem estou a pensar foi, tanto quanto me lembro, o primeiro de todos os que visitaram a Sra. Phillips em minha casa disse May.
- Sim? Bem, então e como se chamava?
- Jones. Era isso, Sr. Jones. Não sei que profissão tinha. Nem sequer tenho a certeza de que o jovem estivesse empregado; foi a Sra. Phillips quem pagou o quarto. Claro que se trata de um nome terrivelmente comum. Metade dos sujeitos que vão a minha casa chama-se Jones. Imagine!
s
May olhou directamente para Will. Ele pensou que o coração lhe parava de bater. Mas não havia nada de maligno no sorriso secreto que ela lhe lançou; ele teve até a impressão de que era um tanto triste. Baixou os olhos e o seu olhar foi poisar no bloco de notas de Dave, onde ao nome Jones se seguia uma fila de pontos de interrogação.
- Depois de a Sra. Phillips regressar de Manchaca e voltar para o marido - prosseguiu Moore - continuou a encontrar-se com cavalheiros em sua casa?
- Durante algum tempo, não. Disse-me que estava a tentar resolver as coisas com Jimmy. Ele tinha deixado de beber, pelo menos era o que
481dizia, e ela sentiu-se obrigada a dar outra oportunidade ao casamento, Mas parece-me que não era só isso. Acho que, durante algum tempo, ela se sentiu excessivamente receosa dele para voltar a minha casa.
O Sr. Hancock objectou que a testemunha estava a especular. As observações ofensivas foram eliminadas.
- Mas a Sra. Phillips acabou por retomar as entrevistas em sua casa?
- prosseguiu Moore.
- Sim. Encontrou-se com um homem na noite de 23 de Dezembro.
- Quem era esse homem?
May apertou os lábios.
- Receio que se tratasse de um daqueles sujeitos cujo nome nunca soube. - Foram tantos os jornalistas que pronunciaram o nome Swain sem emitir qualquer som, que ele quase se tornou audível.
- Depois do dia 23, quando é que ela regressou a sua casa?
- Na noite seguinte, na noite de Natal.
- Na noite em que foi morta?
O desdém desapareceu do rosto de May. O rouge que o decorava foi suplantado por um rubor natural.
- Sim, julgo que fui uma das últimas pessoas a vê-la com vida.
- Que horas eram?
- Entre as onze e meia e a meia-noite.
- Tem a certeza?
- Eula tinha marcado um encontro com determinado cavalheiro para essa noite, para as onze e um quarto. Eu tinha dito ao cavalheiro que ele teria de ser pontual, compreende, que não lhes guardava o quarto para além das onze e meia. A noite de Natal é muito movimentada. Havia mais quem estivesse disposto a pagar bom preço por aquele quarto. Mas o cavalheiro não chegou a horas, nem sequer apareceu. Quando Eula chegou, no trem de aluguer, eu dísse-lhe que o amigo não tinha aparecido. Dísse-lhe que tinha dado o quarto a outras pessoas, Mandei-a embora, compreende. Mandei-a voltar para o marido. Quem me dera não o ter feito.
- Sra. Tobin, como se chamava o homem com quem Eula tinha marcado encontro na noite de Natal?
Os jornalistas sustiveram a respiração. May abanou a cabeça.
- Não lhe posso dizer.
- Quer dizer que não chegou a saber o nome dele?
- Exactamente - respondeu May, mas sem convicção.
482Will olhou para Dave, que mordeu o lábio inferior e abanou lentamente a cabeça. Parecia distraído e pouco ciente do que estava a fazer quando escreveu no bloco de notas: Hiram Glass. Depois riscou as letras por cima, uma a uma. O jornalista do Tribune inclinou-se para diante, para espreitar. Dave rasgou a página do bloco de notas e amarrotou-a no punho fechado.
O tribunal fez um intervalo para o almoço. Dave convidou Will para ir com ele ao Iron Front, onde se juntavam os jornalistas, mas Will recusou. Não estava com vontade nenhuma de se encontrar num bar cheio de jornalistas entretidos a consumir cerveja e a rir-se e a dizer piadas sobre Eula Phillips. Passou apressadamente diante dos outros restaurantes da Avenida; a conversa devia ser a mesma em todos. Foi ter à casa dos tamales da Mamã Rodriguez, junto à Ribeira de Shoal, onde ao menos a conversa seria em espanhol. Mesmo aí, ouviu gargalhadas e as palavras puta gringa.
Quando se tinha apaixonado por Eula? Devia ter sido em Agosto; lembrava-se do encontro que tinham tido nas Ruínas de Swenson, da exuberante folhagem, do calor sufocante. Depois, Eula regressara a Austin. Tinham-se encontrado em casa de May Tobin, e ele era o Sr. Jones. O primeiro de todos os que visitaram a Sra. Phillips em minha casa, tinha dito May.
Afinal, o que tinha acontecido a Eula? Enquanto ele pensava que ela devia estar a sofrer tanto COMO ele, esforçando-se por ser fiel ao inútil do marido, ela frequentava repetidamente a casa de May Tobin... e nunca com ele. Por quê? Por ele não poder pagar-lhe? Seria por isso que ela se encontrava com Shelley, com Dickinson, com Baker, com... Hiram Glass! Ele mal podia acreditar.
A par do ciúme e da dor, sentia uma pontada de culpa. Ele tinha sido o primeiro, fora May Tobin a dizê-lo. O primeiro! Ele tinha aberto a caixa de Pandora. As mulheres eram fracas; competia aos homens serem fortes. Desde o princípio que ele sabia que ela era casada, e no entanto tinha-a perseguido, tinha-a tentado, tinha-a cortejado, tinha desejado que ela se extraviasse. O que lhe teria passado pela cabeça? Sempre que uma mulher caía, havia um homem por trás disso. Em todos os melodramas, em todos os romances trágicos, o sedutor era um indivíduo reles e egoísta, um homem sem moral, sem alma. Ele seria esse homem?
483Estava sem apetite para os tamales. Bebeu uma cerveja após outra, e depois regressou a sala do tribunal.
A sessão recomeçou com a convocatória de Delia Campbell. Trajava um vestido azul escuro e usava um chapelinho de penas com um véu preto. Will ficou novamente impressionado com a semelhança entre ela e Jimmy. Tinham os olhos e os malares quase idênticos, e o cabelo possuía o mesmo brilho azul-preto. Mas o seu aspecto era totalmente diferente. Jimmy mostrava-se pálido e enfraquecido. Delia estava de tal maneira composta, que parecia distante.
- Sra. Campbell, e irmã do acusado, segundo creio - disse Taylor Moore.
- Sou.
- Eula Phillips era sua cunhada.
- Era.
É viúva, não é verdade? Sou.
E, em Dezembro do ano passado, e durante algum tempo antes disso, residia em casa dos seus pais.
- Sim.
- Mas estava ausente na altura do assassínio.
- Estava em Entroncamento de Rosenberg, em casa de uns amigos. Regressei no dia de Natal.
- No último Verão, passou várias semanas em casa do seu irmão e da sua cunhada, que na altura viviam na quinta de McCutcheon, no Distrito de Williamson, segundo creio.
- Sim.
- Estava presente na ocasião em que o seu irmão atirou uma chávena de chá a Eula e a ameaçou com uma faca de cozinha?
- Estava.
- Quer descrever-nos o que se passou?
- Jimmy chegou tarde a casa para jantar. Vinha embriagado. Eula... falou-lhe com sarcasmo. Era terrível quando queria.
- O que quer dizer com isso?
- Eula detestava que Jimmy bebesse. Naquela noite, quando ele começou a fazer tolices a mesa, ela disse-lhe que ele estava a fazer figura de parvo. Foi nessa altura que ele lhe atirou a chávena de café. Depois, Jimmy pegou numa faca que estava em cima da mesa e brandiu-a na
484frente dela. Eula e eu corremos para o pátio. E acabou aí. George meteu jimmy na cama e nós voltámos para dentro.
- Esse George é George McCutcheon?
- É. Na manhã seguinte, Jimmy estava mansinho como um cordeiro, cheio de vergonha e de remorsos... o habitual.
Moore consultou uns papéis que tinha em cima da mesa.
- Sra. Campbell, era íntima da sua cunhada?
Sentiu-se uma ondulação na compostura de Delia, como uma rajada de vento num mar liso.
- Éramos amigas.
- Alguma vez teve razões para crer que ela era infiel as promessas matrimoniais.
Delia fez uma pausa.
- Sim.
- O que a levou a pensar semelhante coisa?
- Eula e eu não tínhamos segredos entre nós.
- Ela falou-lhe das infidelidades que cometia?
- Falou.
- Embora fosse casada com o seu irmão?
- Sim.
- Indicou-lhe o nome dos amantes?
- De alguns.
- Mas era tudo por ouvir dizer, não é verdade?
- Não percebo bem o que quer dizer.
- Alguma vez a viu na cama com outro homem, com os seus próprios olhos?
Delia fez uma pausa.
- Vi. Durante aqueles dias que passámos as duas em casa de May Tobin, em Novembro, vi-a na cama com o Sr. Shelley.
- E alguma vez a viu na cama com outros homens?
- Não, não vi.
Moore voltou a aproximar-se da sua mesa e consultou outros papéis.
- Há uns momentos, Sra. Campbell, descreveu um incidente que teve lugar ao jantar, em casa de George McCutcheon. O seu irmão e a sua cunhada viveram na quinta de McCutcheon, mais precisamente, em casa dele, grande parte do ano passado. Entre Janeiro e Setembro, não foi?
- Exactamente.
485- Alguma vez teve razões para crer que o Sr. McCutcheon era um dos homens de quem Eula era íntima?
Delia hesitou.
- Tenho a impressão de que é melhor fazer essa pergunta ao Sr. McCutcheon.
- Tenciono fazê-lo, Sra. Campbell - respondeu Moore. - Mas agora estou a fazer-lha a si.
- Então a resposta é sim.
- Está convencida de que foram íntimos.
- Sei que foram.
- Como é que sabe?
Delia manteve a compostura, mas não o distanciamento; a sua atitude tornou-se rígida. Não respondeu.
- Sra. Campbell, não é verdade que, em Julho passado, a senhora e o Sr. McCutcheon, em visitas separadas a um armazém aqui de Austin, adquiriram determinadas substâncias que, em combinação, constituem uma fórmula comum para induzir o aborto?
Houve grande agitação na galeria reservada a imprensa. Will estava paralisado, a arder de humilhação. George McCutcheon tinha-a conhecido antes dele. Ele não fora o primeiro, nem sequer fora o primeiro! Até a culpa que sentia era inútil, uma grandiosa ilusão. Tinha-se imaginado um sedutor, o agente da ruina de Eula. O mais provável era ter sido Eula a seduzi-lo! Nenhuma das memórias que tinha dela seria real? Não teria havido ponta de amor entre os dois? Seria este o seu castigo, manter-se sentado e em silêncio, petrificado perante a possibilidade de o seu nome ser referido a qualquer momento, enquanto uma testemunha após outra o açoitava com a verdade?
E agora, o aborto, também tinha percebido mal aquilo!
- Refiro-me, Sra. Campbell, aos seguintes ingredientes. - Taylor Moore leu uma lista. - Extracto de raiz de algodão, flores de camomila, ergotina.
O rosto de Delia ficou tenso.
- George era um homem só quando Eula e Jimmy foram morar para a quinta. A mulher tinha acabado de morrer. Eula também se sentia infeliz. Acho que eles... não vou tentar explicar o que se passou. No Verão passado, ela disse-me que estava grávida. Disse-me que o bebé não era de Jimmy. Era de George McCutcheon. Pediu-me que a ajudasse.
- Que a ajudasse de que forma?
486- Que obtivesse... aqueles ingredientes.
- E a senhora fê-lo?
- Com a ajuda do Sr. McCutcheon. Foi o Sr. McCutcheon quem os deu a Eula.
Jimmy Phillips enterrou a cara nas mãos e desatou a soluçar. Delia olhou para ele por instantes, depois desviou os olhos.
George McCutcheon foi chamado à bancada das testemunhas. Vestia um fato velho, que lhe assentava mal, e uma gravata. Tinha os sapatos cobertos de manchas e de lama seca. Trazia na mão o chapéu mole.
Will abanou a cabeça. O homem tinha idade para ser pai de Eula!
- Sr. McCutcheon - começou Moore -, estava presente na ocasião em que o acusado expressou a intenção de matar a mulher, e depois a si próprio, se descobrisse que ela lhe era infiel?
McCutcheon estava nervoso. Remexia na aba do chapéu. A voz fraquejou-lhe.
- Jimmy dizia esse género de coisas com frequência.
- Ai sim? Estou a referir-me a um incidente a que assistiu o seu amigo, o Sr. Highsmith, que testemunhou anteriormente.
- Sim, lembro-me disso. A gente, estávamos um grupo a beber na quinta. Jimmy estava bêbedo, claro. Mas foi isso que ele disse.
- E houve outras alturas em que expressou os mesmos sentimentos?
- Calculo que isso lhe atormentasse o espírito. A última vez que o ouvi dizer isso foi aqui em Austin, depois de ele e Eula terem regressado.
- Quando foi isso?
- Por volta do primeiro de Dezembro, na altura em que Eula estava em Manchaca. Eu vim à cidade tratar de uns assuntos e Jimmy foi comigo ao entreposto. Estava irritado Por Eula o ter deixado. Eu disse-lhe que ele tinha de parar de beber, porque estava a dar cabo da vida de todos os que o rodeavam. Depois perguntou-me se eu achava que Eula era uma cabeça no ar.
- Foi isso que ele disse?
- Foi. Eu respondi-lhe: ”Mas que bela pergunta! Eula é uma mulher boa e virtuosa.” Ele disse que também achava, mas que a mãe achava que Eula era uma cabeça no ar. Depois disse que, se alguma vez descobrisse que Eula não era virtuosa, a matava e depois se matava.
- O mesmo que tinha dito anteriormente, na sua presença e do Sr. Highsmith?
487- Mais ou menos.
- E nessas ocasiões considerou que as palavras do acusado eram uma ameaça velada à sua pessoa?
- Bem, não percebo porquê. - McCutcheon corou. - Não estava a ameaçar matar-me, pois não?
Ouviram-se umas gargalhadas dispersas entre os assistentes, que pareceram baralhar McCutcheon.
Moore interrogou-o sobre o incidente da chávena de cha e da faca.
- O que se passou depois de a Sra. Campbell e a Sra. Phillips terem fugido para o pátio?
- Jimmy ainda avançou para ir atrás delas com a faca. Eu gritei-lhe que parasse. Ele agitou a faca na minha direcção e disse: ”Não se meta nos meus assuntos de família.” Eu disse-lhe que ele estava a fazer figura de parvo. Disse-lhe para ir lavar a cara e deitar-se. Ele adormeceu logo. Moore acenou com a cabeça.
- Sr. McCutcheon, não é verdade que manteve relações carnais com Eula Phillips enquanto ela viveu em sua casa, no Distrito de Williamson? O juiz avisou McCutcheon.
- Devo adverti-lo, senhor, de que manter relações carnais com o cônjuge de outra pessoa é legalmente definido como adultério e punível com multa até mil dólares. Não tem de responder a esta pergunta, a não ser que queira.
McCutcheon empalideceu e apertou a aba do chapéu.
- Recuso-me a responder à pergunta.
Moore encolheu os ombros.
- Não é verdade que, em certo dia do passado mês de julho, e juntamente com Delia Campbell, comprou... - consultou a lista de flores de camomila, extracto de raiz de algodão e ergotina?
- Acho que comprei alguma ergotina.
- E o senhor e a Sra. Campbell compraram esses ingredientes para Eula, para a ajudar a provocar um aborto?
McCutcheon engoliu em seco.
- Eu comprei a ergotina porque Delia me pediu, e dei-a a Delia. Nunca dei nada disso a Eula.
Subitamente, Will, que tinha estado ali sentado a odiar o homem, teve pena dele, do viúvo solitário, do amante que ajudara a abortar o próprio filho, do adúltero que se contorcia na bancada das testemunhas. E pensar que Will se considerava o homem mais infeliz do mundo por Eula lhe ter virado as costas!
48847
No dia seguinte, os jornais de todo o estado publicaram um anúncio onde se lia:
Ao depor no julgamento do caso Phillips, a Sra. Tobin afirmou que eu fui a sua casa em certa tarde encontrar-me com a infeliz Sra. Phillips. A afirmação não é verdadeira. Não conhecia a Sra. Phillips e nunca falei com ela na minha vida. Os amigos fizeram-me ver que o cargo público que detenho me exigia que honrasse a afirmação com um desmentido público; de outro modo, não teria prestado atenção à cruel difamação.
Benjamin M. Baker, Superintendente da Educação Pública
Os outros funcionários do estado referidos pela Sra. Tobin guardaram silÊncio.
À excepção do desmentido de Baker, nenhum dos jornais do Texas publicou os nomes dos homens referidos por May Tobin. Os artigos aludiram às suas posições elevadas na hierarquia pública, e expressaram indignação pelo seu alegado comportamento, mas ninguém publicou os nomes. O Statesman citou elevados princípios jornalísticos: ”Alimentar o apetite mórbido do escândalo pelo escândalo não pode fazer bem a ninguém.” Nas últimas semanas, William Pendleton Gaines tinha participado num jantar de recolha de fundos para os bombeiros voluntários com Benjamin Baker, inspeccionara os grupos de presos que trabalhavam nas pedreiras de granito com John Dickinson e discutira assuntos legais de carácter pessoal com o pai de William Shelley.
Especulava-se abundantemente que vários cidadãos de nomeada teriam pago um alto preço pelo silêncio da viúva. Havia quem considerasse que os homens que tinham preferido ver os seus nomes arrastados pela lama a ceder à chantagem mereciam, apesar de tudo, algum respeito. Outros afirmavam que os homens estavam a ser vítimas de uma campanha
489de calúnias com motivos políticos, da qual May Tobin era um simples instrumento.
Num gesto de generosidade jornalística para com um homem a cujas ambições à Mansão de Governador Gaines se opunha inflexivelmente, o Statesman referiu um nome, mas apenas com o fito de o limpar de suspeitas: ”Neste contexto, devemos ao nome do Sr. Swain, recentemente manchado por boatos estouvados, afirmar que não foi mencionado, seja de que maneira for, em ligação com este caso.” À guisa de limpar o nome de Swain, Gaines relacionou-o inextricavelmente com o escândalo.
Na quinta-feira, a defesa apresentou as suas teses.
John Hancock convocou diversas testemunhas, que afirmaram ter visto marcas de mãos ensanguentadas de ambos os lados da vedação que dava para o beco, e pegadas no beco das traseiras da residência dos Phillips, que faziam pressupor que, na noite do assassínio, um ou vários intrusos tinham penetrado na propriedade vindos do beco, tendo depois fugido pelo mesmo caminho. Ao interrogar as suas testemunhas acerca do que se tinha passado naquela noite, Hancock conseguiu aludir por diversas vezes ao outro assassínio, muito semelhante ao de Eula Phillips, que tinha tido lugar a poucos quarteirões de distância minutos antes deste.
Ham Riley, um amigo de Jimmy que o tinha acompanhado durante a semana que se seguiu ao crime, testemunhou que Jimmy permanecera quase sempre inconsciente, mas que ocasionalmente voltava a si e estava relativamente lúcido, pedindo água ou qualquer coisa que lhe fizesse passar as dores, e chamando pela mãe. Numa dessas ocasiões, Jimmy despertou e disse: ”Aqueles sujeitos deram-me uma bela rareia!” Quando Riley lhe perguntou quem eram os ”sujeitos”, Jimmy recaiu num estado febril, emitindo sons inarticulados.
Walter Booth, da Booth & Son, foi chamado a testemunhar que Jimmy tinha ido à sua loja entre as cinco e meia e as seis horas, na noite de Natal, pagar uma prestação da mobília de quarto. Boothe afirmou que, nessa altura, Jimmy estava sóbrio.
Hancock voltou a chamar George McCutcheon, que interrogou acerca da sua relação com Eula Phillips.
- Depois de ela regressar a Austin com o marido - perguntou Hancock - tinha o hábito de vir a Austin encontrar-se com ela, com o objectivo específico de manterem relações carnais?
490- Não! Em Austin não. Nunca aconteceu em Austin.
- Quer dizer que, depois de ter regressado a Austin, Eula Phillips se recusou a manter relações carnais consigo? Isso irritou-o, Sr. McCutcheon?
O juiz ordenou que a pergunta fosse eliminada do registo, dado que a testemunha não havia admitido ter mantido relações carnais. Hancock insistiu.
- Onde se encontrava o senhor na noite do assassínio de Eula Phillips?
- No Distrito de Williamson, numa festa.
- Que género de festa?
- Uma festa só de homens, no rancho de Fred Mitchefi.
- E quantos amigos Ia se encontravam?
- Talvez uma dúzia.
- Beberam muito?
- É mais ou menos esse o objectivo de uma festa só de homens, não é? Os amigos poderem embebedar-se sem as mulheres os incomodarem.
- Quando começaram a beber?
- Por volta do pôr do Sol.
- O sol põe-se bastante cedo em Dezembro. Por volta das onze horas, já todos os amigos estavam a beber há quê?, umas cinco ou seis horas?
- Talvez.
- Quer dizer que os homens que poderiam fornecer-lhe um álibi para o momento do assassínio estavam a cair de bêbedos? McCutcheon rangeu os dentes e olhou-o friamente.
- Voltei para casa por volta da meia-noite. Tom Burdett estava alojado em minha casa, e acordei-o ao entrar. Sabe quem é? O pai de Eula! Ele pode dizer-lhe onde é que eu estava quando se deu o assassínio - a uns bons quarenta quilómetros de Austin. Tom e eu soubemos do crime no dia seguinte; eu vi a cara dele quando soube. Apanhámos juntos o comboio da tarde para Austin. Se quiser, chame-o a testemunhar e pergunte-lhe onde é que eu estava.
Escondendo quaisquer vestígios de desapontamento por trás do bigode de morsa, Hancock dispensou a testemunha.
O elemento central da defesa foi uma demonstração que teve lugar nessa tarde. As pegadas ensanguentadas encontradas na varanda que ligava a parte principal da casa dos Phillips ao anexo tinham sido várias vezes mencionadas pelas testemunhas. O Comissário Lucy tinha preservado
491um espécime, quer da direita, quer da esquerda, mandando serrar duas porções da madeira do chão da varanda. As pranchas, com as pegadas ensanguentadas, foram apresentadas como prova.
Hancock ergueu os dois pedaços de madeira, um em cada mão, e passeou-se lentamente diante do júri, para que as visse bem. As manchas tinham secado, adquirindo um tom castanho-escuro, mas continuavam a destacar-se vivamente da madeira desbotada. Eram evidentemente as marcas dos pés nus de um homem com pés grandes.
Hancock inclinou-se e poisou as tábuas no chão, distanciadas uma da outra como os pés de duas pernas abertas.
- Aqui está ele! - anunciou. - Aqui está o vosso assassino, na vossa frente, tão invisível e difícil de agarrar como esteve no último ano e meio, não conseguimos ver dele mais do que as plantas dos pés. Deve ser um indivíduo bastante alto, para ter deixado estas marcas. Sabem, se esforçar a vista, quase consigo vê-lo, aqui mesmo, diante de nós, coberto de sangue e com o corpo da pobre Eula Phillips nos braços. - O calor abafado da sala do tribunal era favorável à produção de aparições; a imagem conjurada do Hancock era de tal maneira viva, que um dos jurados quase se engasgou.
- Mas serão as pegadas do acusado? - perguntou Hancock. - Senhores membros do júri, acho que temos de descobrir.
O colaborador de Hancock entrou na sala do tribunal com as mãos cheias. Estendeu um pano no chão, diante do júri, em cima do qual poisou uma tábua de pinho. Ao lado da tábua de pinho, colocou um grande prato raso, para dentro do qual verteu tinta preta, em quantidade suficiente para cobrir o fundo. Também apresentou uma fita métrica.
- Jimmy, vai ter de se descalçar - disse Hancock. Jimmy tirou os sapatos e as meias, depois levantou-se e avançou, descalço, até ao ponto onde Hancock se encontrava, diante do júri. Os jornalistas e os espectadores levantaram-se, pondo-se os das últimas filas em bicos de pés para tentarem ver melhor. O juiz autorizou a quebra de formalismo. Inclinou-se por sobre a secretária para conseguir ter uma perspectiva mais nítida.
Taylor Moore interrompeu uma conferência sussurrada com o procurador-público.
- Senhor Juiz! Se a defesa pretende, de alguma maneira, comparar as pegadas de sangue que constituem a prova com impressões a tinta feitas pelos pés do acusado, tenho de objectar! O sangue humano e a
492tinta não são equivalentes. Ha certamente diferenças na consistência, na taxa de evaporação e na tendência para se expandirem, que só um especialista altamente qualificado poderia expor-nos.
O juiz considerou a objecção, depois abanou a cabeça.
- Acho que devemos ver o que vai a demonstração do Sr. Hancock produzir, desde que as medições sejam feitas pelo funcionário do tribunal.
Hancock fez um aceno de cabeça na direcção do juiz e lançou a Moore um olhar sardônico.
- Muito bem, jimmy, vou pedir-lhe que coloque os pés dentro do prato de tinta e que em seguida se posicione em cima da tábua. Jimmy assim fez. Alguns dos jornalistas que estavam sentados nas últimas filas da galeria reservada a imprensa puseram-se de pé em cima das cadeiras. Os jurados contemplavam a cena, fascinados.
jimmy desceu de cima da tábua e limpou os pés ao pano. As pegadas de tinta pareciam mais pequenas que as de sangue. O funcionário do tribunal mediu duas vezes cada pegada, uma à largura, na zona mais larga do pé, a outra ao comprimento, da ponta do dedo grande até ao côncavo do pé. As pegadas a tinta mediam 85 725 milímetros de largura por 111125 milímetros de comprimento. As pegadas de sangue mediam
104 775 milímetros de largura por 133 350 milímetros de comprimento.
Hancock ergueu os espécimes ensanguentados, enquanto o seu colaborador erguia a tábua de pinho, para os jurados verem melhor.
- A diferença é apreciável, não lhes parece, membros do júri? A pegada a tinta do acusado e 19 050 milímetros mais estreita e 22 225 milímetros mais curta. Uma discrepância de quase vinte por cento em ambos os casos!
Moore e Roberrson procederam a outra conferência sussurrada.
- Senhor Juiz! - disse Moore. - O estado gostaria de salientar que é muito provável, como declarou o próprio Sr. Hancock, que a pessoa que deixou as pegadas de sangue levasse aos ombros o corpo de Eula Phillips quando as produziu. Gostaríamos de solicitar que o acusado pegasse num peso equivalente...
- Raios e coriscos! - exclamou Hancock.
- E produzisse outro conjunto de pegadas.
O juiz pensou no assunto por momentos, depois acenou com a cabeça.
493- Não vejo por que não. É possível que o aumento de peso fizesse espraiar um pouco as pegadas.
Hancock ergueu uma sobrancelha hirsuta e resfolegou.
- Muito bem! Quanto pesava a Sra. Phillips? Creio que o Dr. Litten fez um cálculo de cerca de quarenta e cinco quilos. Pronto, Jimmy, pegue em mim, eu peso setenta e oito!
Ouviu-se um coro de gargalhadas na galeria da imprensa. O homem do Tribune de Chicago apertou as mãos.
- Meu Deus, terei morrido e ido parar ao céu dos jornalistas?
O juiz fez soar o martelo, a exigir ordem. Jimmy mostrava-se hesitante mas, seguindo as indicações de Hancock, conseguiu pegar nele com os braços estendidos e manter-se direito. Gemendo e vacilando, meteu os pés no prato de tinta, para os molhar. Em seguida, passou para uma zona limpa da tábua de pinho, onde se deixou estar enquanto Hancock contava até três, descendo em seguida para o pano.
Jimmy poisou Hancock no chão, depois tirou um lenço do bolso e limpou a testa. Estava um calor sufocante.
O funcionário do tribunal avançou com a fita métrica. Os espectadores sustiveram a respiração.
O funcionário poisou um joelho no chão, mediu de novo as pegadas, e ainda uma segunda vez. Levantou-se e voltou-se para o juiz:
- Não há diferença, Senhor Juiz. São do mesmo tamanho.
John Hancock sorriu por trás do bigode, e deu uma palmadinha nas costas a Jimmy.
No dia seguinte, sexta-feira, os dois lados fizeram os respectivos discursos de conclusão. Robertson, o procurador-público, falou durante uma hora. Taylor Moore falou durante duas horas. À tarde, os advogados de defesa fizeram discursos igualmente longos.
A acusação salientou a natureza violenta e ciumenta de Jimmy, a sua longa história de ameaças à mulher e o forte motivo para o assassínio que as infidelidades constituíam; a presença do machado na propriedade proporcionara-lhe os meios. A tentativa de enganar a polícia tinha sido superficialmente inteligente, mas facilmente detectável. Quem senão um homem culpado teria dito à própria mãe ”Nesse caso, de certeza que eu vou para o inferno!”? Quanto à prova das pegadas, o procurador-público sugeriu em tom sombrio que a defesa tinha feito antecipadamente
494experiências com a demonstração para encontrar maneira de a adaptar aos seus objectivos.
A defesa retratou um marido reformado e responsável, dominado e quase destruído pela tragédia. O estado, argumentou, nada tinha feito para provar que Jimmy tinha conhecimento das alegadas infidelidades da mulher; na verdade, havia todas as razões para presumir que ele permanecera até ao fim ingenuamente ignorante das suas actividades. A defesa tinha mostrado conclusivamente que os pés de Jimmy não se adequavam às pegadas de sangue, e três dos quatro especialistas médicos tinham declarado que era virtualmente impossível as suas feridas terem sido auto-infligidas. Havia marcas de sangue que provavam que o assassino tinha abandonado a casa fugindo pelo beco, e o estado nada tinha feito para eliminar a probabilidade de o crime ter sido perpetrado por outra pessoa, que não Jimmy; na realidade, se metade do que era atribuido a Eula Phillips fosse verdade, havia em Austin diversos homens imorais que poderiam ter desejado calá-la, ou vingar-se de alguma desfeita. O estado não tinha conseguido provar, para além de qualquer dúvida razoável e com segurança moral, que Jimmy era o assassino; havia muitas outras hipóteses, tanto ou mais plausíveis que esta.
O júri foi dispensado para deliberar.
Nessa noite, Will, Dave e o novo amigo de Dave, o jornalista de Chicago, foram a Guy Town embebedar-se. O homem do Tribune acompanhou-os aos primeiros bares, mas depois foi-se embora para o hotel, para ver se dormia.
- Porque és tão amigo daquele sujeito? - perguntou Will. - Pensei que os jornalistas eram todos rivais uns dos outros.
- Não sou propriamente rival de um homem do Tribune - respondeu Dave. - Limitei-me a explicar-lhe quem eram os homens que May Tobin tinha referido. Porque não? Gaines nem sequer quis publicá-los! Não me dispunha a partilhar segredos com outros jornalistas do Texas, mas não me faz mal nenhum ter um amigo em Chicago. Não tenciono ficar em Austin para sempre.
Will abanou a cabeça.
- Percebo-te. Bem de mais. Precisamos de mais um uísque.
Alguns bares e diversas rodadas mais tarde, chegaram ao Tin Cup. E melhor aproveitarmos Guy Town enquanto existe - comentou Dave.
495- O que queres dizer com isso? Guy Town nunca desaparecerá.
- Olha que não sei, Will. Sentem-se mudanças no ar. Maridos que matam mulheres, políticos apanhados com as calças na mão, proibicionistas em marcha, os poderes instituídos estão com vontade de Por fim a todo o género de vícios. Sabes o que Gaines quer que eu faça, assim que se conheça o veredicto e que o julgamento acabe? Quer que eu vá bater a uma dessas lavandarías chinesas da Avenida, para ver se consigo infiltrar-me num desses antros de ópio, e espiolhar o que lá se passa. Há quem queira ilegalizar o ópio, de maneira que ele quer que eu experimente o material.
- Se for melhor do que o uísque para ajudar a passar a dor, diz-me
- pediu Will, contemplando o fundo do copo vazio com ar taciturno. Dave olhou-o de esguelha.
- Sabes uma coisa, Will, não contei ao tipo do Tribune tudo o que consegui descobrir.
- Não?
- Não. Mas a ti vou-te contar, Will, porque tu és meu amigo do peito.
- Sou todo ouvidos.
- Mas com a condição de tu também me contares um segredo. Eu conto-te um segredo, tu contas-me outro. Quidpro quo, como diria Gaines. Concordas?
- Claro.
Dave baixou a voz.
- Sei com quem é que Eula Phillips ia encontrar-se na noite de Natal em casa de May Tobin.
Will fez uma careta.
- Também eu. Com Hiram Glass.
- Mas como...?
- Vi-te escrever o nome dele no bloco de notas, antes de amarrotares a página.
- Pobre Hiram - disse Dave. - De qualquer maneira, tens de me contar o teu segredo.
- Qual segredo?
- Eras tu o Sr. Jones, não eras?
Will estava tão entorpecido, que a pergunta quase não o picou.
- Como é que sabias?
- Sabia que se passava qualquer coisa estranha, pela maneira como te tens comportado. A maneira como te agitavas no primeiro dia do julgamento...
496
e quando May disse ”Sr. Jones”, olhou directamente para ti, Will, e a expressão da tua cara! Isto deve ter sido um inferno para ti. Will acenou com a cabeça.
- Não vais, quero eu dizer, no jornal?
- Nunca! Tu és meu amigo, Will. Nunca te lançaria aos leões. Gaines engolia-te e digeria-te na mesma edição!
Beberam outra rodada.
- Como era ela? - perguntou Dave. Will pestanejou e abanou a cabeça.
- Não sei.
- Deves saber alguma coisa! Quantas vezes estiveste com ela?
- Queres realmente saber?
- Tudo!
- Nesse caso, acho que vamos precisar de outra rodada.
Falaram durante muito tempo, até o próprio Tin Cup ter de fechar as portas.
O primeiro brilho da aurora iluminava as ruas quando Will foi bater a porta da residência dos Phillips. Sentia-se estranhamente lúcido. Parecia ter eliminado o uísque nas lágrimas que derramara ao conversar com Dave Shoemaker.
já havia alguém de pé, porque quase imediatamente uma mão afastou as cortinas de renda. Momentos depois, a porta abriu-se. Delia vestia uma camisa de noite de flanela, e trazia o cabelo preto, ainda por arranjar, solto pelos ombros.
- O que deseja, Will Porter?
- As cartas. Prometeu que mas devolvia. Ela franziu o nariz ao sentir-lhe o hálito.
- Fale mais baixo! A Mãe e o Pai estão a dormir. Estão num estado terrível, em especial a Mãe. Foi por pouco que tudo isto não a matou. Ele inclinou a cabeça.
- As cartas...
Ela apertou os lábios.
- Tem de parar de mas pedir. Devo tê-las perdido, não sei como.
- Perdeu-as?!
- Passou tanta gente cá por casa, a confusão foi tanta. Não sei onde as pus.
497Will abanou a cabeça.
- Mas se alguém vir aquelas cartas...
- Não as assinou, pois não?
- Não, mas a letra é a minha.
- É nisso que tem estado a pensar durante o julgamento? Tem estado preocupado com a possibilidade de o seu segredinho porco ser trazido à vista de toda a gente?
- Claro que não! Bem, também tenho. - Abanou a cabeça. - Todas aquelas coisas que se souberam, o aborto, os outros homens, e McCutcheon, era tudo verdade?
- Era.
- Eula, ela nunca gostou de mim, pois não?
Ouviu-a inspirar, depois expirar lentamente. Iluminada pela luz mortiça, o seu rosto tinha um elemento esfíngico.
- Como quer que eu saiba o que Eula sentia por si?
- Conhecia-a melhor do que ninguém.
- Também acho que sim. Mas o que ela sentia por si... nem tudo cabe em palavras.
- Ela era malvada. Era cruel.
- Era? - Delia parecia intrigada com a ideia. - É isso que as pessoas acham? É isso que andam a dizer dela? - Abanou a cabeça. - Não consigo vê-la dessa maneira. Eula era Eula. Não me parece que o senhor a amasse, Will Porter, nem um pouco. Limitou-se a amar uma coisa que imaginou, uma mulher que construiu do nada. Não pode ter amado Eula se está convencido de que ela era malvada e cruel.
- Eu não a conhecia, nisso tem razão! - Tremeu de raiva. - Quer dizer que não me devolve as cartas?
- Não! - A voz dela provocou-lhe um arrepio. Fez menção de se afastar, mas depois voltou atràs.
- Acha que o vão considerar culpado?
Ela soltou um suspiro.
- Não sei. Para bem da Mãe, espero que não.
- Acha que foi ele? Acha que Jimmy matou Eula?
Delia olhou para ele durante longos momentos. A luz do dia ia aumentando, iluminando-lhe o rosto, mas ele continuava sem conseguir ler-lhe a expressão. Lentamente, silenciosamente, ela fechou a porta.
49848
Os jornalistas que cobriram o julgamento de Jimmy Phillips tinham diversas opiniões quanto ao possível veredicto. Alguns achavam que o ponto de vista da acusação tinha sido solidamente defendido. Outros que o estado não tinha conseguido estabelecer nada que se parecesse com uma prova para além de qualquer dúvida razoável. Todos concordavam que o julgamento tinha gerado um escândalo espectacular. O Morning News de Dallas resumia assim a sua posição:” O julgamento da Sra. Phillips demonstrou três coisas: que a Sra. Phillips não era quem devia ser, que vários funcionários do governo não são o que deviam ser, e que ninguém sabe quem cometeu o assassínio.”
Entre aqueles que esperavam uma condenação, a discussão era sobre o grau que o júri atribuiria ao homicídio. A lei designava por homicídio agravado aquele que tivesse sido perpetrado com ”malícia expressa” ou decisão tomada a sangue-frio. Por homicídio simples o que fosse cometido com ”malícia implícita, em circunstâncias passíveis de o desculpar, justificar ou atenuar”. Se o júri se convencesse de que Jimmy estivera à espera de Eula, a atingira com o machado, para em seguida dispor calmamente o cadáver na posição em que fora encontrado, infligindo a si próprio um ferimento destinado a afastar suspeitas, nesse caso, a brutalidade e audácia do crime exigiam um veredicto de homicídio agravado, com enforcamento. Mas o júri podia dar um veredicto de homicídio simples, se se convencesse de que Eula tinha atacado Jimmy com o machado, e de que ele respondera ao ataque em autodefesa - ou se se convencesse de que Jimmy tinha, até certo ponto, justificação para o que fizera e de que, até certo ponto, Eula tinha merecido o que lhe acontecera.
O júri passou o dia de sábado a deliberar. Ao final da tarde, tinha chegado a um veredicto.
A sufocante sala do tribunal estava a abarrotar de gente. O juiz perguntou ao presidente dos jurados:
- Obtiveram um veredicto?
499- Obtivemos, Sr. Juiz.
- E qual é o vosso veredicto?
O Presidente dos jurados olhou para Jimmy, depois para o juiz:
- Consideramos o acusado culpado de homicídio simples e determinamos que cumpra sete anos de prisão.
A mãe de jimmy desmaiou. Sallie Mack abanou-a com o leque enquanto Delia lhe dava sais a cheirar. Jimmy inclinou a cabeça e começou a chorar, apertando as cicatrizes da têmpora. Will Porter fechou os olhos raiados de sangue e suspirou:
- Pronto, acabou.
Passou um ano.
No Verão de 1887, muitas coisas tinham mudado em Austin.
O Texas tinha novo governador. E não era William, Jesse Swain. A máquina política que Swain tinha criado enquanto ocupava o cargo de fiscal não tinha sido suficiente e os boatos relativos aos seus vícios pessoais nunca abrandaram. Foi derrotado na convenção democrática por Sul Ross, o famoso matador de índios. A candidatura fracassada de Swaín a Mansão do Governador marcou o fim da sua carreira política.
Uma das nomeações do Governador Ross foi a de William. Holland para primeiro director do Novo Instituto para Jovens Surdos, Mudos e Cegos de Cor, que fora criado devido a incansável pressão de Holland junto da assembleia legislativa. Holland seria o director deste Instituto até a sua morte, vinte anos depois.
Will Porter tinha outro emprego, trabalhava como desenhador na Direcção-Geral do Território, adjacente aos terrenos do Capitólio, de onde pode observar, da janela do andar superior onde ficava o seu gabinete, a construção do novo e compacto edifício do Capitólio e a erecção da Deusa da Liberdade ao alto da respectiva cúpula. Continuava a cantar nos coros das igrejas e em coros de espectáculos itinerantes. Trabalhava diligentemente no novo emprego e, enquanto desenhava, sonhava fundar um jornal seu, que poderia encher de histórias divertidas e de caricaturas - numa cidade como Austin, nunca mais acabavam as coisas de que uma pessoa podia fazer troça! Quanto a sua vida amorosa, concentrava todo o encanto que conseguia reunir a fazer a corte à jovem Athol Estes, cuja inocência e simplicidade se lhe tornavam cada vez mais atraentes. Os pais de Athol não o consideravam o candidato ideal, e ele andava
500a pensar seriamente na possibilidade de fugir com ela para se casarem em segredo.
Quanto a Jimmy Phillips, era de novo um homem livre. John Hancock conseguira que o Tribunal da Relação do Texas impusesse a necessidade de um novo julgamento. A base da sua argumentação foi o facto de o estado ter introduzido ameaças condicionais feitas por Jimmy (”se eu soubesse que Eula era infiel, matava-a e depois matava-me”), sem estabelecer em seguida que Jimmy sabia efectivamente que a mulher lhe era infiel; todos os testemunhos relativos à infidelidade de Eula, incluindo os de May Tobin, Delia Campbell e George McCutcheon, foram considerados inadmissíveis, e o Tribunal da Relação ordenou que se procedesse a novo julgamento. Robertson, o Procurador-público, frustrado mas disposto a controlar as perdas, declarou num memorando oficial que seria impossível o estado obter uma condenação sem utilizar os testemunhos considerados inadmissíveis, e recusou-se a fazer a acusação. Conquanto a sua reputação tivesse ficado definitivamente manchada pelo veredicto original de culpa, Jimmy era um homem livre, a salvo da ameaça de posteriores acusações.
Não houve outros suspeitos. O assassínio de Eula Phillips, morta na véspera de Natal de 1885, pelo qual fora obtido um veredicto de culpado contra o marido, Jimmy, subsequentemente anulado, permaneceu sem solução.
O assassínio de Susan Hancock, morta na véspera de Natal de 1885, permaneceu sem solução.
O assassínio de Orange Washington e Gracie Vance, mortos na noite de 27 de Setembro de 1885, permaneceu sem solução.
O assassínio de Mary Ramey, a pequena de onze anos morta na noite de 29 de Agosto de 1885, permaneceu sem solução.
O assassínio de Irene Cross, morta na noite de 22 de Maio de 1885, permaneceu sem solução.
O assassínio de Eliza Shelley, morta na noite de 6 de Maio de 1885, permaneceu sem solução.
O assassínio de Mollie Smith, morta às primeiras horas de 31 de Dezembro de 1885, pelo qual Walter Spencer foi julgado e considerado inocente, permaneceu sem solução.
No meio desta falta de resolução, houve contudo um consolo: os assassínios tinham chegado ao fim. Após as mortes de Susan Hancock e Eula Phillips, não houve mais atentados em Austin.
501Os homicídios tornaram-se lendários, em Austin e fora de Austin. Durante muitos anos, sempre que um crime semelhante ficava por resolver numa cidade do Texas ou mesmo em cidades tão distantes como New Orleans e Oklahoma City, a imprensa e a polícia especulavam que teriam sido obra do assassino de Austin.
Também no Verão de 1887, o movimento para a construção de uma barragem no Rio Colorado tinha adquirido tal vigor, que se tornara imparável, apesar de dois dos mais activos proponentes iniciais do plano, o Dr. Ephraim Ebenezer Terry (do ”Tónico Para o Fígado e Purgante de Gengibre do Dr. Terry”) e o Dr. Frederick Augustus Fry (o famoso frenólogo cego), terem desaparecido misteriosamente de cena. Ninguém soube o que lhes aconteceu. No início de 1886, William Pendleton Gaines perdeu mais de cem dólares em encomendas por liquidar, quando foi informado de que a fábrica do tónico, que ficava em Nova jérsia, tinha fechado. Gaines ficou tão espantado como as restantes pessoas com o desaparecimento dos dois homens, que durante algum tempo tinham sido duas figuras tão activas da comunidade económica da cidade.
502A Viagem de Regresso: Austin - Formosa -
A vista do Monte Bonnell, 1906
O que ela tem na mão é, definitivamente, uma estrela, decide ele, erguendo os olhos para a Deusa da Liberdade que encima a cúpula do Capitólio. É tão feia como ele se recordava. Com a sua monstruosa falta de graça, é um ponto de referência visível quilómetros em redor.
William Sydney Porter está parado ao alto da Avenida do Congresso, à entrada dos terrenos do Capitólio, com a cabeça inclinada para trás e os olhos semicerrados. Está capaz de jurar que, quando a deusa foi posta lá em cima, conseguia vê-la nitidamente sem semicerrar os olhos. Está a ficar velho. Olhos, costas e entranhas ressentem-se da idade. Tal como a alma.
Desde que regressou a Austin que se sente permanentemente dilacerado, entre a exuberância e a melancolia, o sentimento de regresso a casa e de alienação. Ora sente que tem outra vez vinte e cinco anos; ora que é um fantasma de um passado longínquo. A visão de um pormenor familiar - uma cornija num edifício, as iniciais de dois namorados impressas muito tempo antes num passeio - fá-lo rir, e em seguida abafar um soluço. Ele próprio havia gravado o nome de Athol no peitoril de uma janela da Rua Peach; quando atravessa o pátio da casa, descobre que as letras ainda ali estão.
Não existe uma Austin unificada na sua memória, uma paisagem uniforme de nostalgia. Viveu aqui doze anos, em que passou de rapazito sem nada a homem casado, a viúvo, de cantor de igreja a criminoso condenado, da inocência verde à vergonha enegrecida. A sua nostalgia é como um rio, profundo aqui, superficial adiante, turbulento nos pontos em que o canal tem o leito coberto de pedras, plácido onde corre ampla e livremente. A corrente é refrescada nuns pontos por fontes de alegria inesperada que brotam do interior, e constrangida noutros por águas turvas e indolentes de memórias que melhor seria se fossem esquecidas. Ele mergulhou despido neste rio e desaprendeu de nadar. Encontra-se à mercê das recordações.
503Graças às repetidas perguntas do Dr. Kringel acerca do ano em que se deram os assassínios das criadas, graças ao sortilégio que a inflamação da memória de Eula Phillips lançou sobre ele, a Austin que sobressaía na sua mente ao chegar era a Austin do passado mais distante, a cidade para onde ele viera ao partir do rancho. Lembra-se da graça que achou ao chegar a uma cidade cujas ruas tinham nomes de rios e de árvores. As ruas com nomes de rios permanecem, mas as ruas com nomes de árvores foram, por assim dizer, derrubadas, a grelha verde da sua juventude foi desflorestada e transformada em números. A Rua Hickory, onde Eula Phillips viveu e morreu, chama-se agora Rua 8a. A Rua Pecan, onde ele próprio se alojou no Hotel Driskill (incógnito, com o nome de Henry O. Jones), chama-se agora Rua 61. Live Oak e Cypress desapareceram, bem como Willow e Cedar, Pine, Ash, Mulberry e Mesquite, ou Peach, Walnut, Cherry, Chestnut e Linden; desapareceram Magnólia, Elm, Palmetto, Orange, Maple e Willow, bem como a eufónica Bois de Arc. Agora, o que se vê nas placas das ruas são números, números, números, das margens do Colorado até ao manicómio, e para além dele.
A Avenida do Congresso foi alcatroada; acabaram-se os demónios da lama no Inverno e da poeira no Verão. Vêem-se bicicletas por toda a parte, e as crianças vão para a escola de patins. Os trens são eléctricos desapareceram as fleumáticas mulas, bem como os dejectos que deixavam à sua passagem -, mas continuavam vulneráveis às diabruras dos jovens. Esta manhã, quando estava à janela do quarto do hotel, viu um grupo de jovens universitários subir para um trem eléctrico, puxá-lo para um lado e para o outro até ele sair dos carris, desatando depois a correr em grande algazarra, com o condutor atrás deles - um rito de iniciação das sresidências que data dos primeiros tempos da universidade.
Outra mudança de que se apercebeu quando foi dar uma volta, a noite passada, são as chamadas torres de luar, que lançam um pálido brilho sobre a cidade, em substituição dos candeeiros de rua. De dia, as torres de metal que espetam os céus de Austin conferem à cidade um ar ousadamente moderno que o desconcerta.
Nota: Os nomes, desde ”hickory”, correspondem a: nogueira amarga, nogueira-pecan, carvalho verde, cipreste, salgueiro, cedro, pinheiro, freixo, amoreira, algarobo, pessegueiro, nogueira, cerejeira, castanheiro, tília, magnólia, ulmeiro, palmito, laranjeira, ácer, salgueiro.
504Não parecem restar muitos vagabundos, nem sequer ao longo da Ribeira de Shoal. Os veteranos da Guerra Civil já morreram todos, ou foram encerrados no lar para veteranos. A geração mais nova considera que a vagabundagem não é maneira de ganhar a vida. Não há lugar para a ociosidade numa cidade avançada e próspera como Austin.
Reparou que os trens eléctricos são segregados. As últimas fileiras de bancos estão voltadas para trás e têm placas onde se lê: ”Pessoas de Cor”. As leis de Jim Crow foram generalizadas a todo o sul. Aparentemente, a lei dos eléctricos locais acaba de entrar em vigor, porque ele ouviu uma criada e um porteiro do hotel, aparentemente marido e mulher, conversar acerca do fracasso de um boicote imposto pelos negros de Austin.
- Devíamos ter aguentado, Alec Mack! - dizia a mulher.
- Os camarada tem de ir trabalhá, Rebecca. Olhe o Lem Brooks, ou o Moses Shelley, como e que eles haviam de í até à escola do Sr. Holland se não fosse de eléctrico? Jim Crow é maior que a gente, sim. Só espero que seja diferente para os nossos filho!
Fazendo umas quantas perguntas discretas - os empregados de bar são fontes de informação tais! -, soube do paradeiro de algumas das pessoas que lhe tinham atravessado o pensamento durante a viagem. O quartilho James Lucy continua a ser Comissário da polícia. ninguém sabe o que foi feito de Fannie Whipple e May Tobin, mas a lenda que circula em Guy Town é que se mudaram ambas para São Francisco, onde abriram um bordel com o qual enriqueceram de forma obscena. Taylor Moore continua a exercer a profissão de advogado. Os irmãos Robertson continuam em cena; James, o antigo procurador-público, é membro da Assembleia de Deputados do Texas. O Sr. e a Sra. Phillips tinham ambos morrido antes de Porter abandonar o Texas; de acordo com o empregado do bar do Texas, Jimmy morreu no ano passado.
Porter ergue os olhos para a Deusa da Liberdade. terá alguma vez sido perfeitamente feliz nesta cidade? Talvez, quando fugiu com Athol, em 1887; mas oh!, de quão curta duração foi a alegria perfeita! Um ano mais tarde, Athol dera-lhe um filho - e a criança morrera no mesmo dia. Depois disso, nunca mais houvera alegria sem uma ponta de sombra.
Ano e meio depois, nascera-lhes o segundo filho. Athol vivia aterrorizada com a possibilidade de este também morrer, mas Margaret viera
505ao mundo saudável e perfeita. Tinham-se instalado os três em doméstica tranquilidade. Will trocara a Direcção-Geral do Território por um emprego no First National Bank, onde era caixa. Costumava dizer a brincar: Trabalho atrás de um balcão, quando preferia estar a beber uísque à frente de um balcão.
Por essa altura, o proprietário do Statesman tinha mudado, e Dave Shoemaker partira para Chicago; o seu amigo jornalista do Tribune tinha ascendido a director de secção e tinha-lhe oferecido um emprego. Will começara a sentir que o tempo lhe escapava por entre os dedos. Já passava dos trinta, e o que tinha feito? Fora empregado de balcão a meio-tempo, guarda-livros, desenhador, caixa de banco - tudo, menos escritor. Poupara algum dinheiro às escondidas de Athol, e conseguira finalmente juntar o suficiente para lançar uma pequena revista, The Rolling Stone, que escrevia e editava no seu tempo livre. Quando viu um desconhecido a ler um exemplar na Scholz’S Beer Garden, a rir as gargalhadas e a dar cotoveladas aos amigos, mostrando-lhes a piada, Will percebeu que o que queria fazer o resto da vida era contar histórias histórias tão inteligentes e divertidas, que as pessoas tivessem vontade de as ler aos amigos.
Mas The Rolling Stone perdeu dinheiro desde o princípio. Will conseguiu mantê-la durante um ano, entre a Primavera de 1894 e a Primavera de 1895, mas depois teve de a deixar morrer. Foi nesta altura que as coisas começaram a correr mal. Athol deu os primeiros sinais de tuberculose; estava sempre a tossir, sempre cansada. Depois, os inspectores foram examinar os livros, no banco. Will foi Preso e acusado de fraude.
A soma em falta totalizava 5654 dólares. Ele sempre afirmou que estava inocente. A maioria dos amigos acreditou nele, pelo menos ao princípio. O bom e velho Will Porter! Não podia ser verdade! Mas as pessoas que sabiam do empenho que ele investira em The Rolling Stone perguntavam a si próprias onde teria ido buscar o dinheiro para lançar a revista, e depois para a manter durante tanto tempo. A verdade é que o First National Bank era conhecido por ter uma contabilidade descuidada. Dizia-se que os gerentes metiam a colher no caldo sempre que queriam, assinando papelinhos e pagando os empréstimos conforme lhes dava jeito. Se os inspectores do banco tinham decidido transformar em exemplo um infeliz funcionário que decidira tomar a mesma liberdade, era uma pena que o bode expiatório fosse Will Porter, achavam as pessoas
506- embora aceitassem que, no fundo talvez ele fosse de facto culpado de alguma coisa.
Se as pessoas tivessem conhecido toda a verdade - para onde tinha ido o dinheiro, e porquê -, teriam pensado melhor ou pior dele? Mas a verdade é coisa que ele nunca revelou a ninguém, nem tenciona revelar...
Em vez de enfrentar o julgamento, ele desaparecera de Austin. Falta de coragem, disseram os amigos timidamente; lá por um homem ser cobarde, não quer dizer que seja desonesto. Mas que género de cobarde era capaz de abandonar a pequena Margaret e a pobre Athol, que piorava dia após dia? Que género de homem, se não era desonesto, foge da possibilidade de limpar o seu nome?
Will fugira para New Orleans, seguindo depois até as Honduras, que não tinham tratado de extradição com os Estados Unidos. Aí, conhecera e relacionara-se com OS charlatães, os fugitivos e os sonhadores fracassados que viriam a povoar a mítica Anchuria, a república das bananas de Cabbages and Kings.
Estivera desaparecido durante oito meses, até ter conhecimento de que Athol estava a morrer. Então, decidira regressar a Austin. As autoridades tiveram pena dele e adaptaram as regras; a justiça cega esperou que Athol adormecesse para sempre antes de obrigar Will a enfrentar o tribunal.
Os números não mentiam. Will foi considerado culpado e enviado para uma prisão do Ohio. Margaret foi entregue a uns parentes que viviam na Pensilvânia. Austin era o local onde a rosca tinha emperrado. Tudo o que ele construíra tinha sido destruído, todos os seus sonhos haviam sido arrasados, os despojos da sua vida espalhados pelos quatro cantos do mundo.
Agora, voltara atrás, ao centro do ciclone. Vira as costas ao Capitólio, piscando os olhos para afastar as lágrimas.
Um grupo de homens caminha pelo passeio largo, em direcção a ele. São homens bem vestidos, bem alimentados, de cabelos cor de prata. Porter quase nem repara neles, a não ser quando reconhece o homem que vem ao centro, e por quem os outros mostram respeito. Ouve-os dirigirem-se a ele chamando-lhe ”Sr. Presidente da Câmara”. Será possível? Não!
Mas não pode haver dúvidas, porque a seguir ouve alguém chamar-lhe ”Presidente Shelley”. Vinte anos após o julgamento de Jimmy Phillips,
507um momento em que várias carreiras políticas foram destruídas como pratos de barro lançados ao ar e despedaçados a tiro, William Shelley é o Presidente da Câmara de Austin! Mostra-se tão arrogante como sempre foi, embora o andar emproado se tenha tornado lento, graças ao perímetro da cintura. Tem as faces mais roliças e os olhos mais pequenos
- assemelha-se ao seu antigo mentor, o Fiscal Swain. Presidente Shelley não é possível! E porque não? Há homens que são vítimas, e outros que são sobreviventes. O próprio Porter foi ambas as coisas, o que impediria Shelley de as ser igualmente?
Quando o grupo passa por ele, Porter olha Shelley nos olhos. Shelley devolve-lhe o olhar, sorrí-lhe e faz-lhe uma ligeira inclinação de cabeça, mas não da sinais de o ter reconhecido; é um sorriso de político, oferecido a um presumíVel eleitor.
Eula Phillips era o elo secreto entre os dois. terá Shelley sofrido como Porter sofreu? Terá Shelley amado Eula como ele, terá também imaginado que era amado por ela? Mesmo agora, Porter sente uma pontada de ciúme. E ralha consigo mesmo; William Shelley teve de sofrer a humilhação de o seu segredo ter sido tornado público da bancada das testemunhas. Mas nem isso foi tão terrível como o preço que Will acabou por ter de pagar...
Preciso do dinheiro, tinha dito Delia. A Mãe e o Pai morreram. Não tenho mais ninguém a quem recorrer. Considere isto uma aquisição. Durante todos estes anos, deve ter perguntado a si próprio o que teria acontecido àquelas cartas. Bem, no outro dia encontrei-as. Estou a pensar em sair de Austin, e do Texas, para sempre - quando conseguirjuntar dinheiro suficiente - e tenho andado a embalar coisas, compreende, e encontrei aquelas cartas num baú velho, e então pensei: ”É bem provável que Will Porter gostasse de as reaver.” Pois bem, pode reavê-las. E vai ajudar-me, não vai
- com algum dinheiro... ?
Ele disse-lhe que não tinha dinheiro para lhe dar. Não passava de um caixa de banco, com mulher e uma filha para sustentar.
Mas ainda agora lançou uma revista - aquela coisa chamada The Rolling Stone. É um nome absurdo para um jornal, mas deve dar dinheiro...
Ele explicou-lhe que o jornal custava dinheiro, não fazia dinheiro, mas ela não quis ouvi-lo. Queria que ele lhe desse dinheiro, ou então, quem sabia a que mãos iriam parar as cartas que ele tinha escrito a Eula?
Ele tentou recordar-se do conteúdo das cartas. Vieram-lhe à memória fragmentos. Aquilo de que se recordava mais claramente era da paixão
508temerária que sentia no momento em que as tinha escrito. A ideia de que mais alguém as lesse provocava-lhe suores frios. Will começava a ter nome em Austin; era respeitado como homem de família, trabalhava num banco prestigiado, publicava um jornal, era escritor. O que pensariam as pessoas se descobrissem que ele tinha escrito cartas de amor a uma mulher casada, que tinha visitado a casa de May Tobin, que tinha sido um dos famosos amantes de Eula Phillips?
O medo trabalhou-lhe a memória. Parecia recordar que as últimas cartas que escrevera a Eula Phillips continham uma nota de desespero. O que tinha ele dito? O que tinha ameaçado fazer? Deitado ao lado de Athol, acordado a meio da noite, imaginava que as cartas poderiam ser literalmente incriminatórias, que determinadas frases poderia transmitir a ideia de que ele havia tido um motivo para matar Eula Phillips! O crime nunca chegara a ser resolvido; nove anos depois, as pessoas continuavam a especular sobre ele. Se o seu nome fosse alguma vez relacionado com semelhante noção, o escândalo poderia arruiná-lo.
Voltou a dizer a Delia que não tinha dinheiro para lhe dar.
Mas voce trabalha num banco, não trabalha? tinha respondido ela, como se a solução para os problemas de ambos fosse tão simples, que até uma criança perceberia. Mexe em tanto dinheiro, todos os dias...
Ela tinha protestado, declarando que semelhante ideia era impossível. Prometera a si spróprio que nunca faria tal coisa. Mas acabara por fazer. Entregara-lhe a soma exigida. Delia cumprira a sua parte do acordo.
Devolvera-lhe todas as cartas, numa resma atada com cordel. Fiel à sua palavra, abandonara o Texas, para nunca mais voltar.
Nessa noite, enquanto Athol pensava que ele estava a concluir o último número de The Rolling Stone, ele tinha lido as cartas, uma a uma. Teriam valido o preço que tinha pago por elas? Se Delia as tivesse tornado públicas, teriam sido a causa de uma grande humilhação para ele, mas não eram tão incriminatórias como ele receava. Ao lê-las em privado, achou-as mágicas. Elas devolviam a morta à vida. Recordavam-lhe o rapaz apaixonado que ele tinha sido, com uma vivacidade arrebatadora. Só por isso, quase valiam o preço que ele tinha pago.
Depois de as ter lido, queimou-as.
Chegou então o momento de pagar o preço maior. Tinha sido inteligente na maneira de obter o dinheiro fora uma questão de acrescentar uma linha a este registo, outra linha àquele e tencionava devolvê-lo
509até ao último cêntimo antes de alguém detectar o empréstimo (era assim que o considerava). Tudo voltaria a ser como dantes, só que melhor, porque ele fora aliviado de uma história antiga e perturbadora. Nessa altura, chegaram os inspectores do banco.
A verdade não podia ajudá-lo. Se ele explicasse que tinha sido vítima de chantagem e pedisse misericórdia, eles haveriam de querer conhecer os factos; mas ele nem sequer tinha maneira de provar que tinha havido chantagem, porque Delia e o dinheiro tinham desaparecido, bem como as cartas - se ao menos ele as não tivesse queimado! Se confessasse que tinha cometido uma fraude, sem poder apresentar a desculpa da chantagem, toda a gente pensaria que ele tinha roubado o dinheiro por ganância, que era um vulgar ladrão. Por isso, tinha mentido, e fugido, em pânico, e regressado para assistir à morte da mulher e ouvir chamarem-lhe cobarde e malandro. Aceitou o castigo em silêncio. Esteve preso trinta e nove meses, tendo recebido um perdão parcial por bom comportamento. Decidiu começar o novo século numa nova cidade, e nunca mais olhar para trás.
E, contudo, aqui está ele, de regresso a cidade onde tudo tinha sido possível, e onde tudo tinha corrido mal.
Porter percorre lentamente o largo carreiro que divide em dois os terrenos do Capitólio. É realmente um edifício grandioso; apesar de viver entre arranha-céus, sente-se impressionado. Sobe os degraus e entra pela porta da frente, com a intenção de avançar até ao centro do edifício e espreitar para o interior da cúpula. Mas as duas estátuas que flanqueiam a entrada para a rotunda reclamam a sua atenção. Não existiam quando ele vivia em Austin. Ele teria reparado em duas esculturas de tão boa qualidade.
As estátuas são de mármore branco, em tamanho natural, com os nomes inscritos na base. A da esquerda é de Sam Houston; a da direita de Stephen E Austin. Ambos estão vestidos de peles de gamo. Houston, o mais alto e mais carrancudo dos dois, tem a mão direita sobre o peito e olha com ar pensativo para meia distância, a mão esquerda poisada no copo de uma espada. Tem sobre os ombros uma capa mexicana, que cai até ao chão em pregas que sugerem o efeito de uma toga romana. Austin está diante de um cepo de árvore, com um mapa nas mãos e uma espingarda de caça poisada na curva do braço.
510- Que trabalho extraordinário! - murmura Porter. A escultura pública é a grande forma de arte da época, congregam-se multidões para assistir às inaugurações das estátuas, e estes dois exemplares são dos mais belos que Porter jamais viu. Pergunta a um funcionário que vai a passar: - Desculpe! Há quanto tempo é que estas estátuas aqui estão? O homem esfrega o queixo.
- Oh, há uns dois ou três anos, foi isso, foram inauguradas em 1903, por volta da altura em que eu comecei aqui a trabalhá. Oh, foi uma discussão enorme, porque o Governador Sayers queria pô-las lá em cima de frente uma para a outra, do outro lado da rotunda, e a Menina Ney...
- Ney? Elisabet Ney?
- Isso mesmo. A Menina Ney ia tendo um ataque. Disse-lhe: ”Não senhô! Não tou querendo sabê que o senhô é o governadô, o Sr. Houston e o Sr. Austin têm de ficar no átrio, dos dois lado da entrada, porque foi assim que eu pensei que eles iam ficá, e se as pusé noutro sítio, é mas é um grande parolo!” E levou a sua avante.
- Elizabete Ney! Que coincidência espantosa...
- O senhô conhece-a?
- Não propriamente. Mas espero estar com ela em breve.
- Quê dizê que vai à Formosa?
- À Formosa?
- O castelo que ela construiu a norte da universidade.
- Castelo? Pensei que a Menina Ney ainda vivia numa plantação chamada Liendo, perto de Hempstead.
- Às vês, se calhá, mas o castelo onde faz as esculturas é cá em Austin. Pode lá chegar de trem eléctrico.
- Ai sim? - Porter estuda as duas estátuas, ponderando no estranho e invulgar tecido das coincidências.
511Logo após a Rua 40a o trem eléctrico faz uma paragem inesperada. O condutor remexe e torna a remexer as alavancas, mas o carro recusa-se a prosseguir.
- Outra vez? - queixa-se uma mulher de idade que vai sentada à frente de Porter.
- É a segunda vez esta semana - observa o marido. - Acho que este serviço era bastante mais fiável quando os carros eram puxados a mulas! Não há mulas tão teimosas como uma linha eléctrica quando fica suspensa. Bem, Mãe, a única coisa a fazer é seguirmos a pé.
Porter desce do trem. O seu destino fica poucos quarteirões mais adiante. Percorre um encantador subúrbio novo, com ruas amplas e grandes casas construídas dentro de quintais espaçosos, por entre pomares e terrenos de pastagem.
A Formosa não é bem um castelo, é mais um edifício maciço de blocos de calcário de talhe irregular, construído numa propriedade rústica que se assemelha a um parque. A arquitectura é excêntrica, para dizer o mínimo; um frontão clássico por cima de um alpendre, com nichos votivos de ambos os lados, sugere um templo romano; já a bizarra torre, com o cimo recortado em ameias, podia ser uma visão dos Irmãos Grirrim. O condutor do trem tinha-o avisado de que a propriedade era habitada por ”uma velhota estranha, alemã”, num tom que sugeria que Porter devia ter cuidado com maçãs envenenadas e bruxarias.
Sobe o carreiro sinuoso que vai dar ao alpendre. Bate a dupla porta de madeira. Não obtém resposta. Repara noutra porta, situada na base da torre quadrada, que está aberta para tras. Aproxima-se.
- Menina Ney! - chama. Tira o chapéu e mete a cabeça no vestíbulo. As paredes interiores também são de calcário de talhe irregular. O madeiramento e os corrimãos da escada são de cedro por polir. Não é de espantar que as pessoas estejam convencidas de que aquela casa é de uma bruxa! Não resiste a entrar.
512A seguir ao átrio, há um estúdio enorme, de tecto alto, inundado com a luz que entra pelas enormes janelas da parede norte. A sala está a abarrotar de pedaços de moldes de gesso e de barro, caixas cheias de formões, limas, alicates, martelos e calços de metal, baldes cheios de trapos e escovas, montes de papel de desenho, álbuns atulhados de recortes de revistas e jornais, e pilhas de livros de pintura abertos. As poucas peças de mobiliário são rústicas e dispersas; cadeiras e canapés para a Valhala, pensa ele, próprias para valquírias e senhores da guerra teutónicos.
De encontro a uma parede, está alinhada uma série de bustos em gesso montados em suportes. Reconhece imediatamente William Jennings Bryan, o eterno aspirante a Presidente. Os outros parecem-lhe ser, na sua maioria, estadistas do Texas.
Um dos bustos é de uma mulher. O rosto é-lhe vagamente familiar. Tem o cabelo curto, com risco ao meio e penteado para trás. O decote em forma da bata repousa folgadamente sobre os ombros. Tem uma expressão calma e inteligente, as feições idealizadas e eternas, mas tão vivas que ele consegue imaginar que os lábios se abrem para falar. Se o fizesse, seria com pronúncia alemã, pensa ele. O busto é um auto-retrato. Ele está a olhar de frente para Elizabete Ney.
Imagina-lhe um brilho de censura nos olhos, a recordar-lhe que ninguém o autorizou a entrar. Porter volta-se, pensando sair dali imediatamente, e fica petrificado diante de uma estátua em tamanho natural que se ergue diante dele.
Trata-se da estátua de uma mulher, vestida com um fato solto, como se fosse uma camisa de dormir, com um ombro nu. Tem as mãos enclavinhadas uma na outra e puxadas para um lado, a cabeça voltada para trás, o pescoço alongado e o queixo esticado para diante, a boca ameaçadora. Os olhos estão praticamente fechados. Tem uma expressão de desafio, mas sofredora. Pode ser uma sonâmbula, como pode ser uma assassina.
- Lady Macbeth - anuncia uma voz por tras dele.
Porter volta-se. A voz pertence a uma senhora idosa, que usa um grande gorro e óculos, calças soltas e uma bata.
- Peço desculpa! - diz ele, com a intenção de se desculpar por ter entrado sem lhe darem licença, mas ela pensa que ele quer dizer que não percebeu, pelo que se repete.
- Lady Macbeth. A minha obra-prima.
513Porter olha para a mulher, emudecido. Ney parece mais velha do que ele esperava; nunca a teria reconhecido.
- O que lhe parece? - Ney aponta para a estátua.
- Ah, Lady Macbeth! - murmura ele. - Sim, percebo agora. A contorcer as mãos, sonâmbula, a ver um sangue que não existe. Não é de espantar que tenha uma expressão tão agitada. Tantos... assassínios.
- Assassínios, sim! Assassínios devem todos os escritores dramáticos ter, para produzirem as suas histórias. Mas são escravos da cronologia, não? Primeiro isto, depois aquilo, uma coisa após outra sempre a seguir para mostrar o como é o por quê, a causa e o efeito. Mas uma estátua uma história não é. O escultor capta só o essencial, o momento mais exemplar de Lady Macbeth. Não antes, não depois, agora só. Esta atitude, este sofrimento, esta culpa. O tempo pára! E aqui está ela, em mármore captada.
Porter contempla a estátua.
- É magnífica, tal como as do Capitólio. Ney sorri.
- Ah, o Sr. Houston e o Sr. Austin. Eles, também, captei. Livres da carne estão, o pó ao pó. Mas em pedra, para sempre permanecem. O rosto de Cícero conhecemos ainda, para os olhos de César podemos olhar ainda. A arte do escultor isto é, honrar os mortos. Tão velho como os faraós, isto é.
Porter passa os olhos pelos bustos alinhados de encontro a parede.
- E se alguém morrer e ninguém honrar a sua memória depois de morto, ou de morta?
- Ah, isso deve ser morrer para sempre - responde Ney baixinho. Porter acena com a cabeça.
- Deixou a sua marca bem vincada por cá desde a última vez que eu estive no Texas.
Ney olha-o com ar interrogativo.
- Eu conheço-o, senhor?
- Ah! Bem, na realidade, julgo que está à minha espera, não aqui, mas em Liendo. Pelo menos o seu marido está a minha espera.
- A sério? - Ney estreita os olhos.
- Sim. Tenciono partir para Liendo amanhã. Mas, já que estou aqui em Austin, e soube da existência deste sítio, pensei em vir dar uma vista de olhos. Nunca vi um estúdio de um escultor. Pelo menos a esta escala. É impressionante.
514- Construído de acordo com as minhas instruções precisas, pedra a pedra, foi - responde Ney. - E não custou pouco, em dinheiro e exasperação, deixe-me dizer-lhe! - Franze os olhos. - Mas no seu nome ainda estou a tentar pensar...
- Perdoe-me, não me apresentei. William Sydney Porter. Quando nos conhecemos, há vinte anos, era apenas Will, amigo de Dave Shoemaker.
A cara dela permanece sem expressão durante longos momentos.’ Inspira profundamente e abana a cabeça. O espanto fá-la franzir novamente o sobrolho.
- Que curioso! Que mundo pequeno é! Sim, o amigo de Dave, o escritor deve o senhor ser, que vive em Nova Iorque agora, sim? E o seu livro de histórias, qual é o título? Carbuncles...
Porter estremece.
- Cabbages and Kings.
- Sim! Dave trouxe-nos como presente, quando de Chicago veio visitar-nos a Liendo, há uns meses. Tão orgulhoso estava de si, de que o seu velho amigo tivesse tão belo livro publicado, embora use um nom de plúme. Em troca, demos-lhe o novo livro do Dr. Montgomery - Acena com a cabeça com uma expressão pensativa. - Dave recordou-nos daquela altura em que o trouxe com ele, a visitar Liendo. Ha vinte anos já, foi mesmo? E contudo lembro-me, sim. Tempos difíceis foram esses para mim, à espera, sem saber o que era o futuro, ou se futuro alguma vez haveria. Como Lady Macbeth estava eu, apanhada num transe de sonâmbula, e quem sabia se para sempre seria? - Abana a cabeça, depois olha-o com atenção. - Lembro-me. Já nessa altura, escritor desejava ser, sim? Ao pé do riacho uma conversa tivemos.
- Lembra-se disso? Ela sorri.
- Não foi tantas vezes, mesmo quando era jovem, na Alemanha, que tive a companhia de um sujeito com uns olhos tão bonitos num recanto de floresta; e ainda mais raro em Liendo. Luz e ar, lembro-me, e a água a formar ondinhas... - Os seus pensamentos começaram a vaguear. Você e Dave, grandes amigos devem ter sido antes de ele deixar o Texas.
- Acho que éramos. Embora não o veja há anos e anos. Mantivemo-nos em contacto durante algum tempo depois de ele partir para Chicago. Depois perdemo-nos. - Porter recorda-se de ter enviado a Dave um
515exemplar do primeiro número de The Rolling Stone. Dave não respondeu; talvez andasse atarefado, ou estivesse a trabalhar fora da cidade, mas Will sentiu-se magoado. Depois deram-se os problemas de Will e, à semelhança de tantas outras coisas, Dave perdeu-se no passado. - Dave Shoemaker! Como é que ele podia saber que eu tinha publicado um livro? Como é que ele percebeu que eu era O. Henry?
- Dave é um jornalista e os jornalistas são uma espécie de cães de caça, sim? Ele vem ao Texas em viagem, ouve um boato sobre o seu velho amigo Will que está a viver em Nova Iorque e um famoso escritor e. Segue a pista do boato, e eis senão quando aos seus velhos amigos Dr. Montgomery e Menina Ney de Liendo ele oferece Carbuncles and Kin de Henry O., em memória dos velhos tempos.
Ele resiste ao impulso de a corrigir.
- Leu alguma das histórias do livro? Ela olha para ele, hesitante.
- Para responder a isso, eu própria teria de contar uma história; verdadeiramente, uma lenda de Sheherazade! Dave, compreende, não foi a nossa única visita nessa altura... - Semicerra os olhos. - Disse que o Dr. Montgomery estava a sua espera, em Liendo?
- Disse.
- Mas como é que tal coisa imagina?
- Por causa da carta.
- Uma carta? Mandou-lhe uma carta ele?
- Bem, na verdade a carta foi enviada a um colega do Dr. Montgomery que vive em Nova Iorque, mas continha uma mensagem para mim. O Dr. Montgomery convidava-me a vir a Liendo, a fim de me fornecer algumas informações relativas... - Interrompe-se ao ler o espanto no rosto dela. - Mas se não sabe nada sobre isto, talvez eu não devesse...
- Esse colega... como se chama ele?
- Dr. Kringel. O director de The Monist. A expressão dela enche-se de sombras.
- Dr. Kringel, disse? Oh, meu Deus!
- O que foi, Menina Ney?
Ela abana a cabeça.
- Tudo muito estranho é isto. Algo maligno prepara-se. Muito maligno! Essa tal carta do meu melhor amigo, o que foi que o levou a pensar que autenticamente dele era?
516Porter fica estupefacto.
- Estava assinada por ele. Em papel de carta de Liendo. - Mete a mão dentro do casaco. - Tenho a página que me dizia respeito aqui no bolso.
- Desdobra a folha de papel com os dedos hesitantes. A inexplicável reacção de Ney suscitou nele um tremor de susto. Ter percorrido todo este caminho, ter revivido tantas memórias dolorosas, fará tudo parte de um embuste sem sentido?
Ney pega na folha de papel timbrado e observa-a com atenção.
- Mas isto nem sequer...!
- Abana a cabeça e lê num sussurro apressado: - ”Descobri a solução para um antigo mistério... descobri a pessoa culpada da revoltante série de crimes... assassínios de jovens mulheres na cidade de Austin... terminaram com os horrores da noite de Natal de 1885... responsabilidade nunca estabelecida, até este momento... pormenores que não posso explicar aqui, mas devem ser comunicados pessoalmente. Se a memória que o Sr. Porter tem daqueles acontecimentos estiver enublada, refira-lhe o nome de Eula Phillips..”
Ela baixa o papel e lança-lhe um olhar tão estranho, que Porter sente um arrepio na nuca.
- Menina Ney, o que foi?
Ela dirige-se a uma secretária e remexe numa pilha de papéis, depois regressa com duas páginas, uma em cada mão, a que ele tirou do bolso e outra. Ambas estão escritas em papel timbrado, com Plantação Liendo ao alto, num belo tipo. Aí terminam as semelhanças. A carta que ele tirou do bolso está escrita numa letra altamente estilizada, difícil de ler, cheia de ângulos e floreados; a letra do espécime que ela trouxe da secretária é totalmente diferente, fluente, elegante e airosa.
- Isto, uma amostra da letra do Dr. Montgomery é.
- Mas então...?
- Parvos do meu melhor amigo e de mim ele fez, aquele ladrão malvado! E parvo de si também, parece. Onde está o homem que esta carta lhe deu?
- O Dr. Kringel? Fizemos a viagem de comboio juntos, desde Nova Iorque. Separámo-nos ontem na estação de Hearne. Ficou combinado eu ir ter com ele a Hempstead, a Liendo, amanhã ou no dia seguinte.
- Kringel? Regressar a Liendo? Nunca se atreveria! Um telegrama imediatamente devo mandar ao Dr. Montgomery. Ele deve a Austin vir no primeiro comboio que amanhã saia de Liendo. Então todos juntos, você e ele e eu, pensaremos nisto.
517- Mas...?
- Não! - Ela ergue uma mão. - Não mais sobre isto até o meu melhor amigo chegar. Depois uma explicação encontraremos juntos. Porter está abismado. Sente-se totalmente desorientado. Ela apercebe-se da sua perturbação e torna-se mais doce.
- Está sozinho em Austin?
- Estou - responde. Nunca se sentiu tão sozinho em toda a sua vida.
- Onde ficar tem?
- Estou instalado no Driskill.
- Um hotel? Não, não! Aqui deve a noite passar. O Dr. Montgomery amanhã virá, e aqui deve estar. Horace mandarei com o carro as suas coisas buscar, e ao mesmo tempo um telegrama para Hempstead mandar. Ele olha em redor do estúdio cheio de coisas.
Ela sorri.
- Acomodação para si tenho, na torre. Numa cama de rede não se importa de dormir, importa?
A cozinha fica na cave. A refeição é composta por rosbife, bolachas, feijão-verde e batatas. Depois, ela vai mostrar-lhe a Formosa. Os terrenos são do tamanho de um quarteirão da cidade. A paisagem ficou praticamente intocada, com figueiras selvagens, ervas altas e matagais. A Ribeira de Waller passa pelas traseiras da propriedade, sombreada por árvores, com as margens atravessadas por uma barragem de pedra por baixo da qual poderiam albergar-se duendes. Quanto à casa, nunca na sua vida ele viu uma habitação tão peculiar. O rés-do-chão é constituído por dois grandes compartimentos que servem de estúdios, cheios de obras de Ney, ambos inundados com luz de norte. No maior dos dois, há um recanto separado por uma cortina, que serve de quarto de dormir da Menina Ney.
Do átrio, sai um lanço de escadas que vai terminar no andar de cima, a maior parte do qual consiste numa única sala enorme, que é evidentemente o domínio do Dr. Montgomery. Encostada a uma parede, vê-se uma mesa tosca, coberta de peças de laboratório e instrumentos científicos, flanqueada por estantes cheias de revistas e tratados acadêmicos. The Monist ocupa uma prateleira inteira. Porter pega num exemplar e abre-o na página de rosto, à espera de encontrar um nome conhecido, mas o nome que aparece como director do jornal não é Kringel, e sim Dr. Paul Carus, um nome que ele nunca tinha ouvido.
518O homem que ele considerou o melhor de todos os companheiros de viagem é uma fraude. Porter foi enganado. Mas porquê? Qual será o objectivo de tão elaborado embuste? Kringel não lhe extorquiu dinheiro; foi Kringel quem pagou a viagem! O sujeito mentiu, ao dizer que era o director de The Monist. Também terá mentido ao dizer que se correspondia com o Dr. Montgomery? Kringel tinha consigo um exemplar do livro do Dr. Montgomery. Também tinha um exemplar de Cabbages and Kings. Porter lembra-se de uma coisa estranha. Quando abriu o exemplar do Dr. Kringel para o assinar, verificou que a página de rosto tinha sido rasgada...
Tudo aquilo é muito estranho. Os fios estão excessivamente enredados para que a sua mente, já esgotada, consiga desenredá-los. Passou o dia a caminhar e está exausto. Anseia por dormir.
Fica instalado num compartimento situado no alto da torre, ao qual se acede por uma estreita escada de ferro em espiral. O quartinho contém uma cadeira e uma mesa de criança, uma lareira em miniatura, uma estante metida na parede e um bacio. Tem uma forma estranha, que parece especificamente destinada a conter a cama de rede suspensa de dois ganchos, fixados em cantos opostos.
Uma cama de rede, francamente! A última vez que dormiu em semelhante coisa foi num barco de transporte de bananas, nas Honduras. Nessa altura, era mais jovem, e só conhecia as dores nas costas de ouvir dizer. Uma noite numa cama de rede ia provavelmente inutilizá-lo para o resto da vida!
Enquanto se despe, ficando apenas com a roupa interior, e se acomoda na cama de rede, os estranhos ângulos e a escala liliputiana do quarto fazem-no sentir uma criança perdida num conto de fadas, deitada num quarto estranho e encantado. Não ficaria muito surpreendido se visse abrir-se uma porta oculta e um gnomo entrasse por ali dentro.
A situação é absurda! Devia pegar nas suas coisas, ir a procura do velho Horace, o criado índio de Ney, e exigir-lhe que o levasse de volta ao Driskill. Mas a verdade é que o quartinho é bastante acolhedor, e a cama de rede surpreendentemente confortável. Tendo-se instalado, dava um trabalho enorme voltar a sair dali...
519Acorda de madrugada, deliciosamente repousado. Ha vários dias que não se sente tão bem das costas. Vai escrever uma carta aos caminhos-de-ferro, aconselhando-os a substituir os beliches por redes de dormir. O único sonho que teve estava relacionado com passos de um lado para o outro no telhado, por cima da sua cabeça, talvez de um gnomo agitado? O mais provável era que fossem ratos a passear nas vigas.
Horace não parece andar por ali. Porter hesita em entrar no estúdio onde fica o quarto de Ney. Decide dar um passeio pela propriedade. Dirige-se ao riacho. Os pássaros cantam. O sol brilha no dossel de folhas. A água gorgoleja e salpica os blocos partidos de calcário. Ele inspira profundamente, deliciado com a sensação de solidão no meio da natureza, que constituiu uma parte tão significativa da sua juventude no Texas, e que passou a ser uma coisa tão rara desde que se tornou nova-iorquino - na realidade, desde que foi preso, e aprendeu a viver sem solidão, nem dignidade...
Por entre os arbustos, entrevê movimentos próximos. Vê uma figura agachada num leito de calcário, sobre o qual a agua corre em lençol ondulado. Vê a Menina Ney, com as calças descidas, a aliviar-se. Imobiliza-se e contém a respiração.
Ney termina as abluções, salpica a cara e trepa para a margem do rio. É sem dúvida muito ágil para a idade! Ele recua, sem se aperceber de que o carreiro sinuoso por onde segue e que passa por entre os arbustos se cruza com o dela. Encontram-se face a face. Ney tem um sobressalto e Porter dá por si, abruptamente, a olhar estrabicamente para o cano de uma grande pistola.
Ney solta um guincho, que é uma gargalhada juvenil, e baixa a arma.
- Sr. Porter! Muita desculpa peço! Oh, a sua expressão!
Ele leva a mão ao peito. Sente o coração aos pulos.
- Menina Ney! Anda sempre com essa coisa atrás de si?
520- A minha escolta silenciosa? - ela olha para a pistola com ternura.
- Há muitos anos que a minha guarda é. Quando a Formosa a ser construída estava, e eu vinha sozinha a cavalo de Liendo, pendurava a cama de rede onde podia para a noite, com ela a meu lado dormia. Mas hoje em dia não; só quando durmo cá fora, e mesmo assim nem sempre. Quem se lembraria de incomodar uma velhota como eu me tornei? E o Texas não é um sítio tão perigoso como foi. Mas ontem à noite, sabendo que o Dr. Kringel tinha voltado ao Texas...
Ele repara numa cama de rede estendida entre duas árvores, ali perto.
- Não me diga, Menina Ney, que dormiu ao relento a noite passada!
- Durmo todas as noites, quando o tempo está a permitir. Lá dentro
é para dormidas fora-da-chuva. Mesmo no tempo frio durmo às vezes no telhado, debaixo de estrelas brilhantes e cobertores. Mas o melhor é aqui no riacho, onde a rede posso pendurar. E o Sr. Porter, dormiu bem a noite passada?
- Como uma pedra, minha senhora. Mas deixe-me ver se percebi... acha realmente que precisa de uma pistola para se defender do Dr. Kringel? Ela endurece o maxilar.
- Com aquele homem malvado, tudo é possível.
- Parece-me um pouco forçado...
- Não, Sr. Porter, você é que foi forçado, se aqui ele o trouxe desde Nova Iorque com motivos falsos.
- Touché - replicou Porter friamente. - Mas uma arma...
- Não se preocupe. Também protegido esteve.
- Protegido?
-Olhe para ali. Não está a ver, no alto da torre, Horace com a espingarda de caça?
Porter olha na direcção da casa. De sentinela atrás das ameias da pequena torre, o velho índio acena-lhes; em seguida, lança a cabeça para trás e boceja.
- O gnomo que andava de um lado para o outro por cima da minha cabeça! Pensei que fosse um sonho! Quer dizer que o indivíduo passou a noite toda ali, de guarda?
- Numa situação destas, não podia um convidado em minha casa ter sem precauções tomar!
Pouco antes do meio-dia, Horace parte na carruagem para a estação de comboios, para ir buscar o Dr. Montgomery. Chega a uma hora,
521chegam as duas horas, e a carruagem não volta. Ney declara que vão começar a almoçar sem o seu melhor amigo. Porter percebe que ela está um pouco inquieta.
Quando a carruagem finalmente chega, por volta das três horas, sai dela um cavalheiro bem vestido. Tem o ar distinto de um homem de ciência, mas é jovem de mais para se tratar do Dr. Montgomery. Ele ajuda outro homem a descer. Este é que deve ser o Dr. Montgomery sim, o velhote é exactamente como Porter se recorda dele e o imaginava, com a testa altiva coroada por uma fina cabeleira branca, e o rosto longo e ascético emoldurado pelas patilhas brancas. Usa uma bengala nodosa de cedro. Os seus velhos olhos brilham de inteligência. É a própria imagem do estudioso-filósofo-detective da imaginação de Porter.
E contudo, não foi este homem que escreveu a carta que repousa no bolso de Porter, com a promessa que o atraiu desde Nova Iorque. A base da expectativa de Porter revelou-se uma fraude. Mas, se não for este homem, quem poderá dar-lhe uma explicação?
Ney e Montgomery aproximam-se e dão as mãos.
- Meu melhor amigo! - diz ela, oferecendo-lhe a face para ele a beijar. - Atrasado estás! Mas agora vejo por quê. Dr. Merriman! - Estende a mão para o homem mais jovem, que se inclina para lha beijar.
- Sim - responde Montgomery -, pensei que pouparia tempo se fosse primeiro ao manicómio buscar o Dr. Merriman para o trazer comigo. Mas quando Horace e eu chegámos, o hospital estava em rebuliço...
- Um doente novo, mais violento do que se previa - explica o Dr. Merriman. - O colete de forças mal apertado - uma enfermeira estúpida! Uma perseguição esgotante...
- O manicómio? - murmura Porter.
- Ah, meu melhor amigo, este é o Sr. Porter - diz Ney. - Will, o velho amigo de Dave Shoemaker, que de si próprio fez um escritor em Nova Iorque. Aquele de quem Dave falou quando veio ver-nos.
Montgomery aperta a mão de Porter.
- Sim, minha querida, falavas nisso no telegrama. O autor de Cabbages and Kings.
- Exactamente - replica Porter, satisfeito por ouvir o título correctamente citado, pelo menos. O médico continua a falar com uns vestígios de pronúncia escocesa.
522- Mas devo confessar - prossegue o médico - que o resto do teu telegrama era um tanto misterioso, Elisabet. Tinha qualquer coisa a ver com aquele Kringel...
- Um caso triste! - O Dr. Merriman abana a cabeça. - Um verdadeiro teste aos limites da nossa ciência.
- Por favor, não compreendo - intervém Porter, sentindo-se como Alice no fundo da toca do coelho. Kringel será uma espécie de lunático fugido do manicómio?
- Estamos todos espantados, Sr. Porter - declara Montgomery - Parece-me que a situação é semelhante a fábula dos três cegos e do elefante. Cada um de nós tocou numa parte da anatomia do animal: tronco, tromba, cauda, de tal maneira que nenhum de nós tem uma ideia precisa do animal completo. Eis, por exemplo, uma peça do quebra-cabeças.
- Mete a mão no bolso do casaco e estende a Porter uma página de um livro.
- A página de rosto de Cabbages and Kings! - exclama Porter. - O que e isto aqui, escrito a mão? ”Para a Menina Ney e o Dr. Montgomery, este livro de uma antiga visita de Liendo, com gratidão e muitas lembranças afectuosas. Dave S.” Mas, o Dr. Kringel tinha um exemplar de Cabbages and Kings a que faltava a página de rosto!
Os outros trocam olhares de reconhecimento.
- Certamente o mesmo Kringel e, nesse caso - diz Ney. Montgomery e Merriman acenam com a cabeça. Porter sente-se mais enfiado dentro da toca do coelho do que nunca.
Estão sentados em toscas cadeiras de cedro à sombra de um antigo carvalho, ao pé do riacho. Horace traz-lhes um jarro de limonada e copos, depois senta-se no chão, de pernas cruzadas, com a espingarda de caça poisada na curva do cotovelo, atento aos arbustos.
Porter contou-lhes como ali chegou. Agora, está a olhar para eles, à espera de uma explicação.
- Por onde começar? - pergunta-se o Dr. Montgomery. - Pela chegada de Kringel a Liendo, não? Foi há vários meses. Nessa altura, Elisabet estava aqui em Formosa. Kringel, o Dr. Kringel, como chamava a si próprio, veio certo dia bater-me à porta. É raro aparecerem visitas em Liendo. Eu devia ter desconfiado. Mas ele vestia-se impecavelmente, era bem educado, tinha um discurso refinado, mas não preciso de o convencer
523do encanto do homem, Sr. Porter, dado que também foi vítima dele. O facto de trazer consigo um exemplar de Problemas Filosóficos à Luz da Organização Vital também ajudou.
Porter acena com a cabeça.
Conheço o seu livro. Kringel trazia-o com ele no comboio.
É certamente o mesmo exemplar que me apresentou quando veio bater-me à porta. Elogiou-o de forma extravagante. Disse que tinha vindo a Liendo em peregrinação, para conhecer o autor. Confesso que me senti lisonjeado. Os artistas como Elisabet habituam-se ao entusiasmo esfuziante de desconhecidos, mas para um eremita como eu foi irresistível. E os elogios não eram superficiais; ele tinha lido o livro do principio ao fim, tinha compreendido a tese e fez-me algumas perguntas muito subtis. Kringel pareceu-me um homem com uma inteligência considerável, que tinha lido muito, um cidadão culto do género dos que eu sonhara ingenuamente que encontraria em cada canto da América selvagem. Apercebi-me da falta que me tinham feito as conversas intelectuais. Os bons cidadãos do Entroncamento dos Seis Tiros sabem o preço da aveia, mas não são de grande préstimo a discutir Hegel.
Kringel ficou alojado em minha casa durante algum tempo. Nunca lhe fiz grandes perguntas sobre a vida dele. Afinal, isto é a América, um país onde a higiene e o sentido de humor de um homem são mais importantes do que a sua ascendência. Penso que é justo dizer que Elisabet tinha tão poucas dúvidas como eu quanto ao carácter de Kringel.
- Metidos num canto vocês os dois sempre estavam, a discutir o monismo. - Ney toma um golo da limonada. - Simpático eu achei que era, que um amigo tivesses arranjado.
Montgomery faz um aceno de cabeça.
- Então, Dave Shoemaker chegou de Chicago; vinha fazer-nos uma visita. Primeiro, esteve com alguns amigos aqui em Austin, e descobriu que voce tinha publicado um livro de contos, com um pseudónimo literário. Quando chegou a Liendo, trazia consigo um exemplar de Cabbages and Kings, que nos apresentou cheio de orgulho. Recordou-nos a sua visita a Liendo, há tantos anos. Creio que foi a primeira vez que Kringel ouviu falar de si, Sr. Porter.
- Dave recordou velhos tempos em Austin. Certo dia, mencionou uma série de assassínios que teve lugar no ano em que você e Dave foram a Liendo, em 1885, julgo eu. O que se passou a seguir foi muito estranho.
524A referência a esses assassínios suscitou uma reacção muito acentuada em Kringel, que até então estivera a prestar-lhe uma atenção superficial. Quando Kringel se apercebeu de que Dave era o jornalista do Statesman que tinha feito a cobertura dos crimes, o seu interesse tornou-se ainda mais pronunciado. Para mim, o assunto era desagradável, especialmente se discutido na presença de Elisabet, mas eles persistiam em falar dele. A excitação de Kringel aumentou ainda mais quando Dave o informou da existência de uma ligação pessoal entre si e uma das vítimas.
- Eula Phillips - sussurra Porter.
- Dave referiu um julgamento. Eu próprio me lembrava vagamente disso, na altura foi muito referido nos jornais. Dave referiu que voce tinha estado... envolvido com a mulher assassinada. ”Ela magoou-o muito”, foram as palavras dele. Kringel parecia fora de si de excitação. Queria saber mais. Elisabet e eu pedimos licença para nos retirarmos. Não me surpreendia que Dave estivesse tão informado sobre um assunto tão desagradável, dada a profissão que tem. O que realmente me espantou foi o apetite que o Dr. Kringel expressava por ele! Não sabia o que havia de pensar.
No dia seguinte, Kringel manteve a porta do quarto fechada durante toda a manhã. Quando a governanta se atreveu a entrar no quarto, descobriu que ele não tinha dormido na cama.
Ney junta-se ao relato, acenando com as mãos.
- Tinha desaparecido, puf! Desaparecidos todos os vestígios dele, as roupas e tudo. Como um ladrão a meio da noite!
- E foi mesmo como um ladrão - prosseguiu Montgomery com ar carrancudo. -Ao longo dos dias seguintes, demos pela falta de uma série de coisas. Pequenas coisas valiosas, um relógio de bolso, jóias. E dinheiro! Tínhamos acabado de receber a quantia que nos enviam anualmente da Europa, e tinhamos convertido uma parte razoável em dinheiro. E não podíamos propriamente dar-nos ao luxo de ficar sem ele.
- E também desapareceu o livro - acrescenta Ney.
- Sim, Kringel levou consigo o exemplar de Cabbages and Kings que Dave nos tinha dado, mas rasgou a página de rosto e deixou-a ficar, não faço ideia por que motivo.
- Informaram as autoridades? - pergunta Porter.
- Eu teria preferido não o fazer - responde Montgomery.
- Foi um episódio extremamente doloroso e não pouco embaraçoso. Kringel tinha
525sido meu convidado durante várias semanas! Parecia impossível que um homem capaz de discutir a ciência da organização vital pudesse ser um vulgar ladrão. Mas Elisabet insistiu em que informássemos o xerife de Hempstead. Dave afirmava que não valia a pena, que tínhamos sido levados, como ele dizia, por ”um faquir de primeira água”, que saberia disfarçar o rasto. O xerife conseguiu estabelecer que Kringel tinha apanhado o primeiro comboio para Houston, mas o rasto desaparecia aí.
- Furioso Dave estava - prossegue Ney -, muito incomodado, especialmente porque a sua visita estava quase a terminar e de regresso a Chicago tinha ele de ir dentro de poucos dias. Mas uma ideia teve! Se esse Kringel fosse um criminoso com alguma fama, Dave conhecia ainda homens em Austin que poderiam saber alguma coisa sobre ele, o Comissário Lucy, o Presidente Shelley, e por aí fora. E assim para Austin Dave partiu, com a promessa de fazer o que pudesse. E razão tinha! Ainda não tinha passado uma semana, quando o Dr. Merriman chega a Liendo, sabendo tudo sobre o Herr chamado Dr. Kringel. Um louco! Um lunático que tinha fugido do manicómio! Sob o nosso tecto durante semanas, enquanto em Austin andava toda a gente alerta!
- É desconcertante saber que o alberguei durante tanto tempo, sem a menor suspeita da sua loucura. - Montgomery franze o sobrolho. - Uma pessoa fica com dúvidas sobre a sua própria perspicácia.
-Tem de ter alguma condescendência consigo mesmo. - O Dr. Merriman poisa o copo de limonada e inclina-se para diante. É um homem com ar pensativo, olhos de um cinzento aveludado, aproximadamente com a idade de Porter. - Kringel não é propriamente o louco ostensivo que as pessoas imaginam quando pensam em doenças mentais. É outro tipo de lunático. Tem uma aparência inofensiva, encantadora mesmo. Pode parecer tão saudável como qualquer de nós, garanto-lhe. Há mesmo alguns médicos do manicómio que estão convencidos de que ele não é louco nenhum, de que é uma fraude.
Deixe-me repetir-lhe, Sr. Porter, algumas das coisas que expliquei anteriormente ao Dr. Montgomery e à Menina Ney. Kringel foi internado no manicómio há seis anos, depois de ter sido visto a vaguear pelas ruas de Austin, murmurando sozinho e claramente desorientado. Vestia roupas de boa qualidade e tinha dinheiro no bolso, mas o tribunal não conseguiu encontrar elementos que permitissem identificá-lo. Um júri de lunático inquirendo considerou-o louco e entregou-o aos cuidados do
526manicómio. Desde então, nem parentes nem amigos se apresentaram a responsabilizar-se por ele.
Sob os meus cuidados, Kringel foi gradualmente recuperando as capacidades mentais. Passou a conseguir conversar e responder a perguntas, mas algumas das suas ideias eram tão manifestamente alucinadas, que não se punha a questão de lhe dar alta. Declarou que se chamava Kringel, que tinha nascido na Bavária e que tinha vivido em muitos sítios, com nomes muito diversos.
Uma das anteriores identidades teria sido a de Dr. Frederick Augustus Fry, um frenólogo que tinha vivido durante algum tempo em Austin, na década de 1880. Kringel parece efectivamente familiarizado com a antiga teoria da frenologia. Consegui localizar algumas pessoas que tinham conhecido esse Dr. Fry quando ele residiu na cidade - e todas elas insistiam em que o Dr. Fry era cego!
Um dos antigos conhecidos de Fry teve a amabilidade de ir visitar o manicómio e conhecer Kringel, William Pendleton Gaines, o antigo director do Statesman. Depois de ter conversado meia hora com Kringel, Gaines não tinha a certeza de que se tratasse de Frederick Augustus (FrY) Em primeiro lugar, Gaines nunca tinha visto Fry sem os óculos escuros. Por seu lado, Kringel fez uma grande recepção a Gaines, recordando a visita que tinha feito a Bellevue, a casa onde Gaines vivia, e por aí fora; mas todos sabemos quão convincentemente um homem pode fingir que conhece outro quando pretende conquistar a sua confiança.
É que deve ter sido isso que Kringel foi durante a maior parte da sua vida: um vigarista. Aparentemente, terá tido um companheiro. O nome que lhe atribui com mais frequência e o de Dr. Terry, e de facto houve várias patentes de medicamentos registadas por um Ephraim Ebenezer Terry, que era sócio de um cego, o Dr. Fry
Como pode imaginar, é complicado distinguir factos de fantasias quando se está a lidar com um paciente alucinado. Mas parece-me bastante seguro que Kringel teve de facto um companheiro durante muitos anos, a quem podemos chamar igualmente Dr. Terry, e que a causa próxima do colapso mental de Kringel foi a morte desse companheiro. De acordo com Kringel, tinham ambos regressado a Austin em 1900, após terem passado vários anos a viajar, durante os quais se tinham sustentado por meio de contos do vigário a passageiros dos caminhos-de-ferro. O Dr. Terry terá morrido, aparentemente afogado no Rio
527Colorado, possivelmente em consequência de um suicídio. Fossem quais fossem as circunstâncias, a perda do Dr. Terry foi de tal maneira esmagadora, que fez com que Kringel ficasse desorientado; daí o estado em que foi encontrado, a vaguear pelas ruas. Estou convencido de que eles partilhavam aquilo a que os franceses chamam uma Jolie à deux, uma ”loucura a dois”, um edifício de alucinação mútua. Os cúmplices de crimes tendem a reforçar a alienação um do outro relativamente ao resto do mundo; neste caso, foi ainda mais extremo, tratou-se de uma total reordenação do mundo moral, com o objectivo de o adaptar aos dois. A perda deste companheiro de alucinação foi devastadora.
Desde que foi internado no manicómio, Kringel tem passado por periodos alternados de lucidez e perturbação. Às vezes, parece um homem são a fingir que é doente. Outras vezes, parece um louco a fingir que está são. É um embusteiro por natureza, e um camaleão. Há momentos em que chama a si mesmo Dr. Fry e finge que é cego com tal convicção, que se magoa caindo das escadas e colocando-se a frente de ciclistas.
Mas o mais perturbador é a circunstância de Kringel aludir repetidamente ao facto de ter cometido assassínios. Evita fornecer pormenores específicos, mas afirma ter molestado e assassinado várias mulheres, em associação com o parceiro já morto. É perfeitamente possível que estas afirmações sejam totalmente imaginárias, fantasias mórbidas de um espírito doente.
Apesar da sua loucura, Kringel é um homem de inteligência considerável e um leitor voraz. O manicómio tem uma biblioteca para os doentes; os médicos mais antigos ainda afirmam que jardins verdes, passeios vigorosos e a leitura de livros salutares podem curar um espírito perturbado. O Dr. Montgomery teve a gentileza de doar à biblioteca um exemplar do seu novo livro Problemas Filosóficos à Luz da Organização Vital Kringel leu-o e aparentemente meteu na cabeça conhecer o autor. Quando fugiu, o livro desapareceu com ele; receio que, na altura, ninguém se tenha apercebido. Informámos o Comissário Lucy da fuga, mas as autoridades não conseguiram encontrá-lo. Desconfio de que ele começou por ir para Waco ou Houston, onde conseguiu arranjar dinheiro suficiente para comprar um par de fatos, que lhe conferiram o bom aspecto com que apareceu em Liendo.
Partiu de Liendo apetrechado com o dinheiro que tinha roubado ao Dr. Montgomery e à Menina Ney, o suficiente para uma viagem de ida
528e volta a Nova Iorque em primeira classe. Deve ter decidido visitá-lo, Sr. Porter, ainda antes de partir de Liendo; foi por isso que roubou o papel de carta de Liendo, para forjar a carta do Dr. Montgomery que o atraiu de regresso ao Texas. Foi por isso que rasgou a página de rosto do exemplar de Cabbages and Kings que roubou, porque se você tivesse visto a dedicatória de Dave Shoemaker a Menina Ney e ao Dr. Montgomery, ter-lhe-ia certamente feito perguntas.
Porter sente a cabeça a andar à roda. Anseia por beber um uísque, mas remedeia o assunto com limonada.
- Esses assassínios que Kringel afirma ter cometido. Parece-lhe...? Merriman encolhe os ombros.
- Não é possível dizer se são reais ou imaginários. Porter olha para o Dr. Montgomery.
- Quando Kringel e eu nos separámos, em Hearne, ele declarou-me que se dirigia a Hempstead. A última vez que o vi, estava na sala do telégrafo da estação de Hearne, a mandar um telegrama, presumivelmente para Liendo.
Montgomery inspira profundamente.
- Ah, sim. Na verdade, recebi um telegrama anteontem. Na altura, fiquei sem saber o que pensar. Agora, já faz algum sentido. Creio que o telegrama deve ser para si, Sr. Porter.
- Para mim?
Montgomery tira um papel dobrado do bolso do casaco e estende-o a Porter. A Menina Ney e o Dr. Merriman inclinam-se para diante. Porter lê a mensagem em voz alta para eles ouvirem.
- ”Para o Sr. Henry O. Jones, ao cuidado da Plantação Liendo, Hempstead. Por favor, dê cumprimentos e peça sinceras desculpas à Menina N. e ao Dr. M. Nos dois temos de nos rever. Em Austin? Tenho uma história para lhe contar.” Está assinado ”K”. O remetente é Hotel de los Estranjeros, Corálio, República de Anchúria.
O Dr. Merriman franze o sobrolho.
- Anchúria? Fica na América do Sul?
- É o país de Cabbages and Kings. Não existe. - Porter dobra o telegrama. - Começo a perguntar a mim próprio se o Dr. Kringel existirá!
529Nessa noite, regressa ao Hotel Driskill, apesar dos protestos da Menina Ney, que gostaria que ele permanecesse na Formosa. Porter sente-se tentado a aceitar, mas desconfia de que o quartinho da torre é o compartimento onde o Dr. Montgomery costuma dormir. O eficaz anonimato do hotel adequa-se melhor ao seu estado de espírito. Tem necessidade de estar a sós com os seus pensamentos.
janta no restaurante do hotel. Depois, vai dar uma volta até Guy Town. O velho bairro de má fama parece estar intacto. Há muitos bares, bem como mulheres na rua. Guy Town sobrevive, apesar dos perenes esforços de políticos e pregadores para acabar com ele. Dá a impressão de que os cruzados da moral e os Proibicionistas nunca hão-de levar a sua avante.
O bairro parece, a um tempo, mais gasto e mais gracioso do que ele se lembrava. Parecia-lhe de tal maneira enorme, quando era novo! Era Bagdad e a Babilónia, Sodoma e Gomorra, cidade dentro da cidade, perigosa, secreta e mágica, e tudo isto a pouca distância da sua casa de hóspedes! Desde então, já conheceu partes de Nova Iorque comparadas com as quais Guy Town é pouca coisa.
Certamente que um pouco de uísque conferiria a todas as coisas um brilho mais rosado. Tenta localizar o velho Tin Cup, mas parece que ele desapareceu. Contenta-se com um estabelecimento chamado Buckle and Spur.
Bebe um uísque simples, depois outro. A embriaguez em nada contribui para melhorar aquilo que o rodeia; limita-se a torná-lo sentimental. De repente dá por si, imagine-se!, com saudades de Nova Iorque. Quem lhe dera estar na Pete’S Tavern naquele preciso momento, sentado no cubículo que lhe está reservado, com um prazo a soprar-lhe na nuca, a ver passar as Histórias de Nova Iorque. Austin é, afinal, uma cidade realmente pequena.
530Poisa o copo de uísque e leva a mão ao chapéu, num cumprimento ao empregado do bar. Quando vai a sair, cruza-se com um grupo que vai a entrar. Devem ser estudantes universitários, parecem-lhe meras crianças, sem idade legal sequer para beber. Abrem caminho até ao bar, a rir e a dar palmadas nas costas uns dos outros. Comparados com os velhos bêbados, parecem inflamados de energia. Um deles, em particular, chama-lhe a atenção, um rapaz ruivo com ar inteligente e reservado. Parece pouco a vontade naquele sítio, mas os olhos azuis brilham de excitação. Porter suspira. Guy Town continua a ser Bagdad e a Babilónia, Sodoma e Gomorra, mas não para ele.
Ao atravessar o átrio do Driskill, em passo ligeiramente vacilante, o empregado chama-o:
- Sr. Jones! - O nome suposto não capta a sua atenção. O empregado emerge de trás do balcão: - Sr. Jones! Um cavalheiro veio deixar isto para si, ainda não ha uma hora.
Trata-se da bolsa de cabedal que ele tão bem conhece. Ao vê-la, sente-se imediatamente sóbrio.
- E também deixou isto. - O funcionário estende-lhe um sobrescrito selado, dirigido ao Sr. Henry O. Jones. Porter da uma moeda ao homem e apressa-se a subir para o quarto.
Rasga uma ponta do sobrescrito. A mensagem que se encontra no seu interior foi escrita em papel timbrado do hotel. Kringel deve tê-la escrito ao balcão, quando lá foi deixar a bolsa de cabedal. Porter reconhece a letra angulosa e difícil de ler da carta forjada que Kringel afirmava ser do Dr. Montgomery:
Sr. PorterlHenryljones,
O conteúdo da bolsa destina-se-lhe. Só o senhorpoderá tratar condignamente esta história. Encontros como o nosso são obra do Destino! Se quiser uma entrevista, encontra-me no cume do Monte Bonnell amanhã de madrugada. Venha num trem de aluguer. Mande embora o condutor A não ser que esteja sozinho, não me mostrarei, e não voltaremos a encontrar-nos.
Dr. Kringell Fry.
Porter desaperta as tiras da bolsa e despeja-a em cima da cama. Dela saem dois volumosos cadernos com as capas semidesfeitas, um vermelho e outro azul. Abre o vermelho e passa as páginas, que estão cheias de recortes de jornais, secos e amarelados. Há notas nas margens, escritas
531na letra angulosa de Kringel. Algumas das anotações parecem recentes, outras estão desmaiadas e manchadas. Uma confusão de setas e travessões liga as notas ao texto do jornal e umas às outras.
Os recortes são de jornais de todo o Texas. Ele volta as páginas e passa os olhos pelos títulos:
SANGUE! SANGUE! SANGUE!
ASSASSÍNIO TENEBROSO À MEIA-NOITE NA PECAN, ZONA OESTE
- CRIME E MISTÉRIO
OUTRA CRIADA ENCONTRADA MORTA
OS CRIMES DE AUSTIN DEIXAM A POLÍCIA ATÓNITA
- AS MULHERES DA CIDADE VIVEM ATERRORIZADAS
CRIADAS ASSASSINADAS - ULTRAJE E GRITOS POR JUSTIÇA
OS DEMóNIOS TRANSFERIRAM A SUA SEDE DE SANGUE PARA AS BRANCAS
TERÃO SIDO OS MARIDOS?
PHILLIPS CONSIDERADO CULPADO DE UXORICíDIO!
Porter sente o coração aos pulos dentro do peito. Regressa ao início do caderno e lê as anotações rabiscadas:
Decidimos começarpelas mulheres de cor, porque achámos que era mais seguro; não tardámos a descobrir que gostávamos das coisinhas bonitas! Encontrámos Mollie Smith por acaso naquele mesmo dia; soubemos que
não tinha armas consigo; soubemos da presença do homem com quem vivia, pelo que levámos o machado Para tratar dele. Nessa tarde, o Dr. T. tinha-lhe dado um forte soporífero para as dores de cabeça, que ela deve ter tomado, porque mal acordou. O nosso primeiro êxito, foi completo!
Fomos nós que assaltámos o consultório do dentista e lhe pegámos fogo para destruir as pistas. O nosso plano era que o Dr Stoddard morresse no incêndio. Infelizmente, fomos incompetentes. O objectivo era roubar clorofórmio, que se tornou muito útil!
Cloroformizámos Elíza Shelley e a criança - a excitação de nos aproveitarmos dela (duas vezes cada um) com as crias a dormir ali ao pé!
Irene Cross., o clorofórmio não pareceu ter grande efeito. Ela ofereceu mais resistência do que estávamos à espera. Tanto melhor.
532A rapariguinha de 11 anos foi a melhor de todas até então. Terry queria abusar também da mãe, mas eu disse-lhe:” Comer beterraba quando temos foie-gras à disposição?”
Terá alguma vez havido homem tão estúpido como o Comissário Grooms Lee?
Porquê descalços? As botas e os sapatos deixam pegadas que se podem fazer corresponder com exactidão às respectivas solas (pelo menos por homens mais inteligentes do que Grooms Lee). Aspegadas descalças são, de longe, muito mais seguras! Também acabei por gostar da excitação de andarmos afazer aquilo descalços, como selvagens libertinos!
Gracie Vance: Tinhamosjantado com o patrão dela, o Major Dunham, para discutir a proposta de construção da barragem; e a coisinha boa serviu-nos, desviando o olhar sempre que eu lhe sorria. (As criadinhas porcas nunca sabem bem o que pensar de um cego que as come com os olhos!) Voltámos a usar clorofórmio; atingimos Gracie, Lucinda e o homem com o machado. Lucinda ardia defebre dentro dela - uma sensação curiosa. Gracie recuperou e quase nos fugia; foi o Destino que colocou o tijolo à mão. Quando li no jornal que tinham encontrado nela o relógio que eu tinha roubado à criada do Prof Tallichet, apanhei um susto. Graças a Deus que ainda era Grooms Lee que estava encarregado da investigação.
Sabíamos que Susan Hancock era um risco, gozar uma mulher branca. O susto que o marido nos pregou quando saiu de casa a cambalear, e nós ainda não tínhamos acabado.
Eula Phillips: a primeira vez que a vi foi num comboio que partia de Austin. (Li a cabeça vazia do marido; o Dr T. aliviou-o da carteira.) Parecia muito triste, com o pequeno Swugling nos braços, muito bonitinha e loira e miúda. No momento da morte, o suspiro final foi música celeste.
Porter atira o caderno vermelho para o chão. Uma folha solta cai lentamente a seus pés. Fica a olhar para ele durante longos momentos, depois debruça-se para o apanhar. Trata-se de um impresso do First National Bank de Austin: ”Solicitação para retirar o conteúdo de um cofre.” O número do cofre encontra-se na secção respectiva, juntamente com a assinatura de Frederick Augustus Fry, Ph.D., acompanhada das iniciais de um funcionário do banco. A folha está datada de poucos meses antes, imediatamente após a fuga de Kringel do manicómio. Deve ter retirado os cadernos do cofre antes de ir a Liendo.
533Então era este o conteúdo da bolsa que Kringel manteve a seu lado ao longo da viagem desde Nova Iorque, a ”obra” que tinha trazido consigo, dizia, para se manter ocupado, mas que nunca exibira na presença de Porter. Porter imagina o velhote a sair do compartimento a meio da noite, levando a bolsa para a carruagem-sala para se debruçar sobre os velhos cadernos em segredo, e escrevinhar nas margens, anotando a sua preciosa colecção de recortes.
O caderno azul continua em cima da cama. Ainda não lhe tocou. Abre-o. Mais recortes, mas anotações. Mais títulos sobre sangue e assassínios - mas agora não são os crimes de Austin, em 1885. São artigos de jornais de St. Louis, Memphis, New Orleans, Chicago, Baltimore, Filadélfia e outros sítios. O primeiro recorte é de 1886. A seguir, há recortes de todos os anos, até 1900.
Crime após crime, espalhados por todo o país. Numa das anotações pode ler-se: ”Austin ensinou-nos a esperar e a gozar o nosso prazer com intervalos irregulares, nunca mais do que uma vez na mesma cidade, sempre de forma discreta.”
Ao último recorte, de 1900, seguem-se páginas em branco. Foi no ano em que regressaram os dois a Austin e Terry se afogou no Colorado. Fry devia ter guardado os cadernos no cofre do banco antes de ficar desorientado e ser internado no manicómio.
Porter volta as páginas em branco e descobre um recorte solto. O papel ainda está branco, não foi amarelecido pelo tempo. Reconhece o tipo e tem um sobressalto. O artigo foi recortado do World de Nova Iorque, onde as suas histórias são publicadas todas as semanas.
UM CRIME CHOCANTE
Ao princípio desta manhã, o corpo de Helen Carter, uma conhecida prostituta, foi descoberto num quarto de aluguer em Bowery A causa da morte parece ter sido um golpe na cabeça, evidentemente feito com o machado coberto de sangue que a polícia descobriu no quarto. Outros habitantes do edifício relataram ter ouvido uma rixa durante a noite, mas na altura ninguém foi investigar...
Ao fundo do recorte, ha uma nota escrevinhada na letra angulosa do Dr. Kringel: Sinto que renasci! E uma data, a data em que os dois partiram de Nova Iorque com destino ao Texas.
534O último trecho da estrada que vai dar ao Monte Bonnell é mais íngreme e acidentado do que o resto, e mesmo assim fica bastante aquém do cimo. Porter paga ao condutor e manda-o embora. Espreita para os escuros arbustos, perguntando a si próprio se Kringel estará a observá-lo. E aquela hora azul enublada que antecede a madrugada.
Trepa o caminho rochoso com o auxílio das mãos. Não dormiu nada. Sente-se cansado e pesado, física e emocionalmente exausto. Faz uma pausa para recuperar o fôlego e olha por cima do ombro. Na imprecisão enublada, a cúpula do Capitólio é do tamanho da sua unha do polegar. O horizonte onde a madrugada se anuncia é uma racha fina por onde passa um amarelo cintilante. Por cima de si, o céu está de um roxo escuro e, na direcção do ocidente, para além das árvores que se alinham no alto da montanha, ainda brilham umas estrelas isoladas.
Recomeça a trepar, arquejante. A cada passo que dá, sente a bolsa de cabedal mais pesada. A noite passada, à luz da sibilante lamparina a gás poisada na mesa de cabeceira, leu os cadernos do princípio ao fim. Depois disso, foi-lhe impossível dormir.
Sente a pulsação acelerar. Desata a suar, num movimento que nada tem a ver com a subida. Quando chega à pequena clareira que há no topo, sente o coração a martelar dentro do peito e as palmas das mãos pegajosas.
A clareira está vazia. Aproxima-se do precipício e olha para baixo, para o rio que brilha, qual serpente preta na sombra das montanhas.
- Sempre veio, Sr. Porter.
Volta-se e vê o Dr. Kringel sair do bosque. Com o casaco preto comprido e a juba de cabelo branco, parece um maestro de concerto ou avô bondoso, ou um simpático companheiro de viagem. Tem uma expressão serena. Na mão direita, aperta uma pistola, apontada a Porter.
Ele não consegue falar. A subida esgotou-o. Doem-lhe horrivelmente as costas. Tem a cabeça cheia de teias de aranha.
535- Vejo que trouxe a bolsa, Sr. Porter. Leu os meus cadernos? Porter olha-o fixamente.
- Deve perguntar a si próprio por que motivo o trouxe até aqui, por que lhe dei os meus cadernos. Vamos, Sr. Porter, não consegue falar? Kringel guarda as distâncias mas aproxima-se do precipício, o suficiente para poder olhar para baixo. - Foi precisamente daqui que o pobre Ephraim saltou, quando o jogo acabou para ele. Era assim que lhe chamava, o grande jogo. Jogámo-lo juntos, o Dr. Terry e eu. Atrevemo-nos a fazer as coisas que todos os homens, no fundo do seu coração, desejam fazer. Vivemos como deuses.
Porter aperta a bolsa entre os dedos até os sentir dormentes.
- Porquê Eula?
- Ah, a sua bem-amada. A primeira vez que a vimos foi num comboio que saía de Austin, com o bebé ao colo. Percebi imediatamente que um dia ela seria nossa. Era o seu destino. Meses depois, vi-a em casa de May Tobin. Pensei que podíamos limitar-nos a pagar para a possuir; ter-me-ia contentado com isso. Mas ela achava-se boa de mais para sujeitos como nós. Imagine! Esperámos até terminar o nosso tempo em Austin. Um vigarista só pode permanecer em determinada cidade durante um certo tempo, e esta tinha finalmente contratado um Comissário de polícia mais esperto do que Grooms Lee. Decidimos oferecer a nós mesmos um presente de Natal e de despedida: uma mulher branca, e paciência para as consequências. Escolhemos Susan Hancock. Tínhamo-la observado ocasionalmente, porque a casa dela ficava mesmo à esquina da rua, a seguir a da viúva Tobin. Estávamos a lavar as mãos na bomba de agua do pátio das traseiras quando o Sr. Hancock saiu de casa a cambalear, cego de bêbado. Saltámos a vedação e corremos para a Avenida, e o que havíamos de ver, mesmo em frente a casa de May Tobin, senão Eula Phillips, que se afastava num trem de aluguer. Seguimo-la até casa. Foi o destino: era a noite, a hora, o momento que nos estava reservado para a possuirmos. Saltamos a vedação de trás. Vimos um machado ao pé da pilha de lenha.
O Sr. Porter esperou, paciente e delicadamente, por um convite de Eula Phillips que nunca recebeu. Nós entrevimos a nossa oportunidade e aproveitámo-la. Alguma vez se imaginou a fazer o que nós fizemos? Nunca alimentou a fantasia de conseguir dela o que queria, para em seguida extinguir aquela vidinha, vingando-se de ela o ter desprezado?
536Nós limitámo-nos a fazer aquilo que o senhor teria feito se tivesse tido coragem. Admita!
Porter estremece e abana a cabeça. Kringel semicerra os olhos.
- A convulsão que ela teve, no momento em que eu derramei o meu sêmen. Dentro dela, dentro de todas elas, toquei um ponto que não era vida nem morte. O Dr. Térry foi a única pessoa que jamais compreendeu. - Baixa os olhos para o rio. - No final, a virilidade abandonou-o. O corpo atraiçoou-o. Ficou impotente. Quando decidiu regressar a Austin, eu percebi o que ele tencionava fazer. Vi-o atirar-se precisamente deste local. Depois disso, perdi o fio. Mas agora reencontrei-o, velho como sou! Viu o último recorte, de Nova Iorque?
Porter acena com a cabeça.
- Quer dizer que leu os cadernos. óptimo! A princípio, pensei que o Dr. Montgomery fosse o homem indicado para contar a nossa história. Mas, depois de o ter conhecido, tornou-se óbvio que ele nunca faria tal coisa. Tem uma mente demasiadamente rígida, excessivamente limitada. Depois, o seu amigo Shoemaker apareceu em Liendo, o próprio homem que tinha feito as reportagens dos assassínios no Statesman! Montgomery foi apenas um degrau para chegar a Shoemaker.
A bolsa pesa no braço de Porter como um saco cheio de chumbo.
- Nesse caso, porque não lhe dá estes cadernos?
- A um jornalista? Precisamos de um artista para contar a nossa história! Um grande escritor, um autor famoso, cujas palavras sejam lidas daqui a cem anos, o Sr. Porter! Não vê que a rede do destino nos juntou? É você que vai contar a história.
- E o senhor?
- Não viu o novo recorte, do World? O jogo continua!
- Quer dizer que não veio... juntar-se ao Dr. Térry?
Kringel da uma gargalhada. - Garanto-lhe, Sr. Porter, que não faço qualquer tenção de me matar. Amanhã por esta hora estarei noutro estado, usarei outro nome. Ainda me restam muitos anos.
Porter olha para a arma que Kringel tem na mão. Ergue a bolsa com os dois braços, inspirando profundamente, e lança-a com toda a força. A bolsa atinge Kringel em cheio no peito. Num acto reflexo, ele fecha os braços a volta dela, e vacila para tras. Consegue manter a pistola na mão. Alguns seixos rolam para o precipício.
537- Não estou interessado nos seus cadernos nojentos. - Porter afasta-se do precipício na direcção das árvores, sem desviar os olhos de Kringel. O coração bate-lhe com toda a força dentro do peito. Mete a mão dentro do casaco.
Kringel olha para ele com um ar espantado. Continua a apertar a bolsa ao peito. O maxilar torna-se-lhe tenso. Enrola o lábio superior. Desajeitadamente, aponta a arma a Porter.
Ouve-se um tiro, que faz eco ao longo do Colorado e volta, obrigando bandos de pássaros a levantar voo.
O coice da arma faz chicotear o braço de Porter, repercutindo-se-lhe nas costas e obrigando-o a contrair-se. O cheiro a pólvora queima-lhe as narinas. Não disparava uma pistola desde os tempos em que era vaqueiro, no sul do Texas. Quando se dirigia ao Monte Bonnell, havia passado pela Formosa. O coice da ”escolta muda” de Ney e mais violento do que ele esperava.
Kringel recua, vacilante, com uma expressão de choque no rosto. Na bolsa, que continua a apertar de encontro ao peito, vê-se um orifício fumegante de bala. Ele solta um grito abrupto, ao perder o equilíbrio. Lança os braços ao ar. A bolsa e a pistola rodopiam. Kringel cai para tras e desaparece.
Porter corre para o precipício. Na descida, Kringel embate nos arbustos atrofiados que se mantêm presos as pedras e é arremessado por várias vezes contra a face da rocha, ressaltando em mortais para fora, e soltando pequenas nuvens de pó e de detritos. Sempre que atinge a rocha, ouve-se o eco de um grito e de um baque surdo. Finalmente, atinge a agua com um débil embate.
A bolsa segue-o. Atinge uma escarpa e abre-se, soltando os cadernos que flutuam em espiral em direcção ao rio, como aves frenéticas. Caem com dois embates mais reduzidos. Algumas páginas libertaram-se das encadernações rotas e flutuam no ar durante algum tempo, até a corrente as sugar para o seu interior.
538EpíLOGO
Diana, deusa da caça
Cidade de Nova Iorque, 1906
Encontraram-se numa mesa para dois na esplanada de um café de Madison Square Garden. Lá no alto, a deusa Diana preside no cimo da torre, o arco dourado erguido, o manto desfraldado.
Porter olha para a mulher que está sentada à sua frente. Poucas horas depois do seu regresso a Nova Iorque, ela tentou visitá-lo. Ele disse a Lena para a mandar embora. Ela voltou no dia seguinte, e no seguinte. Escreveu mensagens crípticas, ameaçadoras, que Lena lhe entregou. Ainda assim, ele recusou-se a recebê-la. Ainda não estava preparado.
Esta manhã, enviou-lhe uma nota para a elegante casa que ela habita em Gramercy Park, a dizer-lhe que se encontraria com ela por baixo da estátua de Diana, a determinada hora. Estão sentados frente a frente, com chávenas de café fumegante e um cesto intacto de bolinhos de chá diante deles. Delia vem elegantemente vestida e continua notável. Que arrebatadora era há vinte anos, pensa Porter. Na altura, ele estava excessivamente obcecado pela perfeição loura de Eula para conseguir apreciar devidamente a beleza morena de Delia.
- Desde que regressou, tem tido um comportamento bastante incorrecto, Sr. Porter - diz ela friamente. - Tentei falar consigo por diversas vezes. Recusou-se receber-me.
A desfaçatez da mulher! Tenho andado ocupado - responde ele com simplicidade. - Prazos ultrapassados, directores de jornais ameaçando suicidar-se, esse género de coisas.
- Quer dizer que os negócios lhe correm bem?
- Correm. Prevê-se um enorme sucesso para o meu novo livro.
- Como vai chamar-se?
- Histórias de Nova Iorque. Se todos os habitantes da cidade comprassem um exemplar, eu mudava-me para a sua zona!
Ela muda abruptamente de assunto.
- Não devia ter mandado aquela nota para minha casa. Os criados falam.
539O descaramento! Uma chantagista a queixar-se, primeiro da falta de delicadeza dele, depois da forma como a convidou!
- Não se preocupe, nunca mais voltarei a contactá-la. Nem a senhora contactará comigo.
- Quer dizer que tem dinheiro para mim? - Ela parece mesmo uma raposa, com aquele brilho nos olhos.
- Não, Delia, não tenho nem uma moeda para si. Nem um cêntimo de cobre.
- Isso é inaceitável, Sr. Porter.
- Não, Delia, a sua chantagem é que é inaceitável. Não vou continuar a permiti-la.
O rosto dela endurece.
- Tenho outros conhecimentos na imprensa, como sabe. Andam sempre à procura de mexericos, da verdade nua e crua como lhe chamam. E se eu lhes contasse a verdade nua e crua sobre o autor de um certo desfalque?
- Conte, se quiser. Desafio-a a que o faça. As narinas dela incham.
- Presumo que esteja convencido de que pode fazer-me xeque-mate, conjurar alguma coisa do meu próprio passado. Lamento desapontá-lo, mas o meu marido já sabe do julgamento de Jimmy.
- Eu nunca difamaria um morto para a atingir, Delia.
- Nesse caso, em que vai pegar? Se se atrever a sussurrar, sequer, o nome de May Tobin, ponho-lhe uma acção por difamação, mais depressa do que você consegue acabar uma das suas histórias.
- Por amor de Deus, Delia! Não tenho qualquer intenção de desenterrar o seu passado sórdido, nem o seu, nem seja o de quem for. O passado acabou, terminou, está morto e enterrado. Limitei-me a dizer-lhe que não tenho dinheiro para lhe dar. Agora, faça o que entender.
Ela fixa-o durante longos momentos.
- Chamou-me aqui para fazer esta declaração?
- Chamei-a aqui para me livrar de si para sempre, para me libertar do meu passado de uma vez por todas. E tenho uma coisa para lhe contar... sobre Eula.
Ela abana a cabeça.
- Não imagino o que poderá ter para me dizer sobre Eula... tantos anos depois.
540- Sei quem a matou.
Delia olha-o fixamente. Há uma quebra na sua expressão distanciada.
- Continue.
- É uma história muito longa, muito complicada, muito estranha. Com um dos seus obrigatórios finais surpreendentes?
- Cale-se, Delia, e oiça.
Uma hora depois, o cesto de bolinhos de chá continua intacto. A expressão do rosto de Delia mal se alterou; limitou-se a expressar, aqui e ali, uma sugestão de mágoa, de surpresa ou de pena.
- A seguir, encontrei o cavalo de Kringel preso entre os arbustos, perto do alto do Monte Bonnell. Tinha uma sela cheia de dinheiro e um bilhete em nome de jones para o comboio das sete para El Paso. Ela pensa por momentos.
- Tem a certeza de que ele morreu?
- Se o tivesse visto a ressaltar daquelas rochas, Delia... - Ele faz uma careta. - Mas compreendo a sua preocupação. Eu também queria ter a certeza. Quando regressei à cidade, estive atento a notícia da descoberta de um corpo no rio. O certo é que Kringel foi repescado naquele dia de manhã. De acordo com o Statesman, não estava com grande aspecto. Mas o orifício da bala, como foi que o explicaram?
É uma coisa mesmo estranha. Não havia qualquer referência a um ferimento de bala.
- Mas...
- A única explicação que consigo encontrar é que os cadernos tenham detido a bala. Apesar disso, a força do embate foi suficiente para o lançar no precipício. Foi a queda que o matou, e não a bala. O Dr. Merriman, do manicómio, identificou o corpo. As pessoas presumiram que tinha sido suicídio.
- E os cadernos?
- Tanto quanto sei, desapareceram. Foram engolidos pelo rio. Foi o fim de tudo. Imagine que ele esperava realmente que eu utilizasse aqueles cadernos de alguma maneira, que construisse uma história a partir deles. Achou que estava a oferecer-me um presente valioso. Como se alguém estivesse interessado em ler uma história tão horrível! As pessoas gostam de contos bonitos com finais tristes, ou de contos tristes com finais bonitos. Ninguém estaria interessado em ler um livro sobre um monstro como Kringel!
541Ela baixa a cabeça. Pressiona os cantos dos olhos com o indicador e o polegar. Será possível que Delia esteja a chorar? Ele tira o lenço do bolso do peito e estende-lho. Ela aceita-o e volta a cara para que ele não a veja limpar as lágrimas.
- Durante todos estes anos... - A voz quebra-se-lhe. Inspira audivelmente, como quem estremece de horror. - Durante todos estes anos, tive a certeza de que tinha sido o Jimmy. Ele afirmava estar inocente, mas eu nunca acreditei. Como poderia? Não nos falámos durante anos, desde que o Pai morreu. Agora, o Jimmy morreu. E eu nunca poderei... Ele poisa-lhe a mão no braço.
- O passado Morreu, Delia. Não percebe? Não tem nada que vir buscar-nos. Já avançamos o suficiente, a Delia e eu, para avistarmos o fim do caminho. Resta-nos tão pouco tempo! Não o passaremos a olhar para tras, sentindo-nos infelizes. Eu libertei-me de Eula, libertei-me de Athol, libertei-me de Will Porter e de todos os erros idiotas que ele cometeu. Libertei-me de si, Delia.
Ela volta-se para olhar para ele. Tem os olhos vermelhos. Não há desdém nem rancor na sua expressão, apenas tristeza. É estranho que ele tenha alguma vez tido medo dela.
Ele retira a mão, encosta-se na cadeira e sorri.
- Sabe, contactei recentemente uma agência de corações solitários, só para ver o que acontecia. Conheci uma senhora encantadora. Quem sabe?, talvez volte a casar-me.
Outrora, Delia teria tomado estas palavras como a revelação de uma fraqueza. Agora, limita-se a acenar com a cabeça, depois levanta-se e pega na mala de mão.
- Adeus, Sr. Porter. Presumo que não voltaremos a ver-nos.
- Presumo que não.
Ela consegue fazer um débil sorriso.
- Não se importa de, pelo menos, pagar esta conta, pois não?
Ele acena com a cabeça. Ela volta-se e afasta-se. Ele fica a observá-la até a sua figura se perder entre a multidão.
O passado morreu efectivamente; ele deixou de ter fosse o que fosse a recear dele. O seu único receio é de que os dias que lhe restam não sejam suficientes.
O que é estar vivo? Para onde foram todos os mortos? Deixará aos filósofos e aos lunáticos o encargo de tratarem tão sublimes tópicos.
542Que história, feita de palavras numa folha de papel, poderia captar o que ele sentiu por Eula Phillips, ou fazê-lo rejuvenescer, ou fazer reviver os mortos, ou tornar boa uma única acção má? Ele fará o que sabe fazer melhor. Escrevera histórias para caixas de banco e funcionárias de balcão, passageiros entediados e doentes acamados. será aquilo que é, O. Henry - e seja o fim de tudo!
Steven Saylor
O melhor da literatura para todos os gostos e idades