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Em Junho de 1941 a Dinamarca encontra-se sob" a ocupação de Hitler, enquanto a Grã-Bretanha é a única potência europeia em condições de fazer frente ao avanço dos nazis. Mas os aviões que partem em missões de bombardeamento são sistematicamente abatidos pêlos esquadrões germânicos, como se-de algum modo estes conhecessem os planos de ataque da Royal Air Force. Entretanto os Serviços Secretos Ingleses interceptam um sinal de rádio da Luftwaffe em que é mencionado o nome de código de "Fréya" e Hermia Moupt, uma agente do MI6, é destacada para investigar o que está a beneficiar os alemães..e isso leva-a numa missão secreta à Dinamarca... Ao mesmo tempo, na pequena ilha de Sande, o jovem Harald, estudante de física, encontra numa base secreta dos alemães algo cuja descoberta pode ser vital para mudar o curso dos acontecimentos... Um thriller empolgante de enredo complexo e absolutamente absorvente, baseado num caso verídico...
O homem com uma prótese de madeira na perna percorria o corredor do hospital.
Era um sujeito baixo e vigoroso com um porte atlético, trinta anos de idade, vestindo um fato cinzento-escuro simples e calçando sapatos pretos com biqueira. Caminhava energicamente, mas via-se que era coxo pela ligeira irregularidade no seu passo: toc-toc, toc-toc. Mantinha uma expressão carregada no rosto, como se reprimisse alguma emoção profunda.
Chegou ao fundo do corredor e parou junto à secretária da enfermeira. - O tenente-aviador Hoare? - perguntou.
A enfermeira levantou a cabeça de uma ficha. Era uma rapariga bonita com cabelo preto, e falava com a pronúncia suave do condado de Cork. - Presumo que seja um familiar - respondeu com um sorriso simpático.
O encanto dela não surtiu efeito. - Irmão - disse a visita. - Qual é a cama?
- A última da esquerda.
Girou nos calcanhares e avançou em passadas largas pelo corredor até ao fundo da enfermaria. Numa cadeira ao lado da cama estava sentada uma figura de roupão castanho de costas para a sala, a olhar pela janela e a fumar.
A visita hesitou. - Bart?
O homem na cadeira levantou-se e virou-se. Tinha uma ligadura na testa e o braço esquerdo ao peito, mas sorria. Era mais novo e alto do que a visita. - Olá, Digby.
Digby envolveu o irmão com os braços e estreitou-o com força. -Julguei que tivesses morrido - disse.
Depois começou a chorar.
- Eu pilotava um Whitley - referiu Bart. O Armstrong Whitworth Wbitley era um bombardeiro pesado de cauda longa que voava de uma maneira estranha, com o nariz para baixo. Na Primavera de 1941, o Comando de Bombardeiros possuía cento e um aviões, de uma força total de cerca de setecentos. - Um Messerscbmitt disparou sobre nós e fomos atingidos várias vezes - prosseguiu Bart. - Mas o piloto deve ter ficado sem combustível, porque abandonou a formação antes de nos destruir. Julguei que fosse o meu dia de sorte. Depois começámos a perder altitude. O Messerscbmitt ter-nos-á danificado ambos os motores. Livrámo-nos de tudo o que não estava aparafusado, para reduzirmos o peso, mas não valeu de nada, e apercebi-me de que íamos mesmo cair no Mar do Norte.
Digby sentou-se na borda da cama de hospital, agora de olhos secos, observando o rosto do irmão, vendo o olhar vago de um soldado cansado da guerra enquanto Bart ia recordando.
- Mandei a tripulação lançar ao mar o tampo da escotilha traseira e assumir depois a posição de aterragem de emergência, encostando-se à divisória. - O Whitley levava cinco tripulantes, lembrou-se Digby. - Quando atingimos a altitude zero, puxei para mim a manche e abri os aceleradores, mas o avião recusou-se a ficar na horizontal, e embatemos na água com toda a força. Perdi os sentidos.
Eram irmãos por afinidade, com oito anos de diferença. A mãe de Digby falecera quando ele tinha treze anos, e o pai casara com uma viúva que já tinha um filho seu. Desde logo, Digby olhara pelo irmão mais novo, protegendo-o dos rufiões e ajudando-o nos estudos. Eram ambos doidos por aviões, e sonhavam ser pilotos. Digby perdera a perna direita num acidente de motorizada, estudara engenharia, e tornara-se projectista de aviões; mas Bart pudera concretizar o seu sonho.
- Quando recuperei os sentidos, cheirou-me a fumo. O avião flutuava e a asa de estibordo ardia. Estava uma noite escura como breu, mas conseguia ver graças ao clarão das chamas. Arrastei-me pela fuselagem e encontrei o invólucro com o bote insuflável. Atirei-o pela escotilha e saltei. Meu Deus, a água estava mesmo fria.
A voz dele era baixa e calma, mas dava fumaças fortes no cigarro, engolindo o fumo bem até ao fundo dos pulmões e soprando-o num longo jacto por entre os lábios franzidos. - Tinha vestido o colete salva-vidas e flutuei como um bocado de cortiça. Havia bastante ondulação, e andava para baixo e para cima como as cuecas de uma pega. Felizmente, o bote insuflável estava mesmo à frente do meu nariz. Puxei o cordão e ele insuflou-se, mas não consegui entrar. Não tinha forças para me içar da água. Não compreendia, não me apercebera de que tinha um ombro deslocado, um pulso partido, três costelas fracturadas e sabe-se lá mais o quê. Deixei-me então ficar ali agarrado, gelando até à morte.
E dizer que houvera uma altura, recordou Digby, em que achava que o sortudo era Bart.
- O Jones e o Croft acabaram por aparecer. Tinham-se agarrado à cauda e esperado até ela se afundar. Nenhum deles sabia nadar mas os coletes salva-vidas insufláveis salvaram-nos, e conseguiram subir para o bote e puxar-me. - Acendeu outro cigarro. - Não cheguei a ver o Pickering. Não sei o que lhe aconteceu, mas presumo que esteja no fundo do mar.
Calou-se. Não havia informações sobre um membro da tripulação, apercebeu-se Digby. Após uma pausa, perguntou: - E o quinto homem?
- John Rowley, o oficial de artilharia, estava vivo. Ouvimo-lo gritar. Eu estava um pouco aturdido, mas o Jones e o Croft tentaram remar na direcção da voz. - Abanou a cabeça num gesto de impotência. - Não imaginas como foi difícil. A ondulação devia ser de um metro, um metro e vinte, as chamas estavam a diminuir, pelo que não conseguíamos ver grande coisa, e o vento soprava furiosamente. O Jones berrava, e se ele tem uma voz forte. O Rowley respondia-lhe no mesmo tom; depois uma parte do bote subia por um lado de uma onda, descia o outro, isto tudo enquanto rodopiava, e quando voltámos a gritar, a voz dele pareceu vir de uma direcção completamente diferente. Não sei quanto tempo durou aquilo. O Rowley continuava a gritar, mas a sua voz parecia enfraquecer à medida que o frio o gelava. - O rosto de Bart crispou-se. - Já era um tanto patético o que ele dizia, chamando por Deus e pela mãe e esse tipo de parvoíces. Acabou por se calar.
Digby apercebeu-se de que sustinha a respiração, como se o mero som de inspirar pudesse constituir uma intromissão numa lembrança tão horrível.
- Fomos encontrados pouco depois da alva, por um contratorpedeiro que andava a patrulhar submarinos alemães. Lançaram uma baleeira e içaram-nos. - Bart olhou pela janela, alheado da paisagem verde do Hertfordshire, vendo uma cena diferente, distante. - Uma sorte dos diabos, nem imaginas - referiu.
Permaneceram sentados em silêncio por algum tempo; depois Bart disse: - O ataque foi um sucesso? Não me quiseram dizer quantos regressaram com vida.
- Desastroso - respondeu Digby.
- E a minha esquadrilha?
- O sargento Jenkins e a sua tripulação regressaram em segurança. - Digby retirou um papel do bolso. - O oficial piloto Arasaratnam também. De onde é ele?
- Do Ceilão.
- E o avião do sargento Riley foi atingido mas conseguiu regressar.
- Irlandês sortudo - comentou Bart. - E então os restantes? Digby limitou-se a abanar a cabeça.
- Mas havia seis aviões da minha esquadrilha naquele ataque! - protestou Bart.
- Eu sei. Para além do teu, foram abatidos mais dois. Parece que não há sobreviventes.
- Nesse caso, o Creighton-Smith morreu. E o Billy Shaw. E... Ó meu Deus. - Virou a cara.
- Lamento.
O estado de espírito de Bart passou do desespero à raiva. - Não basta lamentar - disse. - Estão a mandar-nos para ali para uma morte certa!
- Eu sei.
- Por amor de Deus, Digby, tu pertences ao maldito governo.
- Eu trabalho para o Primeiro-Ministro, sim. - Churchill gostava de trazer as pessoas do sector privado para o governo e Digby, um bem-sucedido projectista de aviões antes da guerra, era um dos seus peritos na resolução de problemas.
- Nesse caso, tens tanta culpa disto como qualquer outra pessoa. Não deverias estar a perder o teu tempo a visitar doentes. Vai-te mas é daqui e faz alguma coisa para resolver o assunto.
- Eu estou a fazer alguma coisa - respondeu Digby calmamente. - Fui incumbido de descobrir a razão de isto estar a acontecer. Perdemos metade dos aviões naquele ataque.
- Cá para mim, foi uma maldita traição vinda de cima. Ou algum marechal do ar armado em palerma que se pôs a falar do ataque do dia seguinte no seu clube enquanto um empregado de bar nazi ia tomando notas por trás das canecas de cerveja.
- Não deixa de ser uma hipótese.
Bart suspirou. - Lamento, Diggers - disse, usando um diminutivo de infância. - A culpa não é tua. Eu é que me descontrolei.
- Agora a sério, fazes alguma ideia do que levou a que tantos dos nossos fossem abatidos? Já voaste em mais de doze missões. Qual é o teu palpite?
Bart ficou pensativo. - Eu não falei de espiões apenas por falar. Quando chegámos à Alemanha, eles estavam à nossa espera. Sabem quando nós vamos aparecer.
- O que te leva a afirmar uma coisa dessas?
- Os caças deles já estão no ar, à nossa espera, e bem sabes como é difícil as forças de defesa calcularem o momento exacto. A esquadrilha de caças tem de se deslocar precisamente no momento certo; tem de partir da base aérea para a zona onde pensam que poderíamos estar. Depois, têm de se posicionar por cima de nós e, quando tiverem feito tudo isso, precisam de nos encontrar ao luar. O processo demora tanto tempo que conseguiríamos lançar a nossa artilharia e desaparecer antes de eles nos apanharem. Mas não tem sucedido assim.
Digby anuiu. A experiência de Bart condizia com a de outros pilotos que interrogara. Preparava-se para lho dizer quando Bart levantou a cabeça e sorriu por cima do ombro de Digby. Este virou-se e viu um negro com o uniforme de comandante de esquadrilha. Tal como Bart, era jovem para a patente, e Digby calculou que tivesse recebido as promoções automáticas por experiência em combate: tenente-aviador após doze missões, comandante de esquadrilha ao fim de quinze.
Bart cumprimentou-o: - Olá, Charles.
- Deixaste-nos a todos preocupados, Bartlett. Como estás? - A pronúncia do recém-chegado era das Caraíbas, sobrepondo-se a uma maneira de falar de Oxbridge(1).
- Dizem que devo escapar desta.
Com a ponta de um dedo, Charles tocou nas costas da mão de Bart que saíam da tira ao pescoço. Era um curioso gesto afectuoso, pensou Digby. - Folgo imenso em sabê-lo - disse Charles.
- Charles, apresento-te o meu irmão Digby. Digby, este é o Charles Ford. Andámos juntos na Trinity até nos alistarmos na força aérea.
- Foi a única maneira de nos furtarmos aos exames - referiu Charles, apertando a mão a Digby.
Bart afirmou: - Como estão os africanos a tratar-te?
Charles sorriu e explicou a Digby. - Existe na nossa base aérea uma esquadrilha de rodesianos. Aviadores de primeira, mas têm dificuldade em lidar com um oficial da minha cor. Chamamos-lhes africanos, o que parece deixá-los ligeiramente irritados. Não percebo porquê.
Digby respondeu: - Obviamente, não deixará que isso o afecte.
- Acredito que, com paciência e uma melhor educação, possamos acabar por conseguir civilizar tal gente, por mais primitiva que se afigure neste momento. - Charles desviou o olhar e Digby vislumbrou uma certa raiva por debaixo do seu bom humor.
- Estava precisamente a perguntar ao Bart por que acha que estamos a perder tantos bombardeiros - referiu Digby. - Qual é a sua opinião?
(1) Termo inventado, por vezes com sentido pejorativo, para Oxford e/ou Cambridge (comparadas com universidades britânicas mais recentes). (NT)
- Não participei neste ataque - respondeu Charles. - Pelos vistos, tive a sorte de o falhar. Mas outras operações recentes não correram nada bem. Tenho a impressão de que a Luftwaffe consegue seguir-nos através das nuvens. Poderão ter algum equipamento a bordo que lhes permita localizar-nos mesmo quando não somos visíveis?
Digby abanou a cabeça. - Cada avião inimigo abatido é minuciosamente examinado, e nunca vimos nada semelhante àquilo que refere. Estamos a esforçar-nos por inventar esse tipo de aparelho, e estou convencido de que o inimigo também, mas ainda nos encontramos muito longe de o conseguirmos, e temos a certeza absoluta de que eles estão bem mais atrasados do que nós. Não creio que seja isso.
- Bem, é a sensação que transmite.
- Continuo a achar que existem espiões - afirmou Bart.
- Curioso. - Digby levantou-se. - Tenho de voltar a Whitehall. Obrigado pelas vossas opiniões. É sempre útil falar com os homens que estão no terreno. - Despediu-se de Charles com um aperto de mão e pressionou o ombro bom de Bart. - Repousa bastante e rápidas melhoras.
- Dizem que dentro de algumas semanas estarei de novo a voar.
- Não posso afirmar que isso me agrade.
Quando Digby se preparava para retirar, Charles interpelou-o: - Posso fazer-lhe uma pergunta?
- Com certeza.
- Num ataque como este, os custos de substituição dos nossos aparelhos perdidos devem ser superiores aos custos dos do inimigo para reparar os estragos causados pelas nossas bombas.
- Sem dúvida.
- Nesse caso... - Charles abriu os braços em sinal de incompreensão - por que o fazemos? Qual a finalidade dos bombardeamentos?
- Pois - redarguiu Bart. - Também gostava de saber.
- O que mais podemos fazer? - observou Digby. - Os nazis controlam a Europa: a Áustria, a Checoslováquia, a Holanda, a Bélgica, a França, a Dinamarca, a Noruega. A Itália é aliada deles, a Espanha simpatizante, a Suécia é neutra, e têm todas um pacto com a União Soviética. Nós não temos forças militares no continente. Não temos nenhuma outra forma de ripostar.
Charles anuiu. - Por conseguinte, nós somos tudo o que vos resta.
- Precisamente - referiu Digby. - Se os bombardeamentos cessarem, a guerra acaba... e Hitler vencerá.
O Primeiro-Ministro assistia a O Falcão de Malta. Fora construído recentemente um cinema privado nas velhas cozinhas da Casa do Almirantado. Dispunha de cinquenta ou sessenta cadeiras de veludo e de uma cortina de veludo vermelho, mas era normalmente usado para visionar filmes de bombardeamentos e examinar peças de propaganda antes de serem exibidas ao público.
Churchill, no final da noite, depois de todos os memorandos terem sido ditados, os telegramas enviados, os relatórios anotados e as minutas rubricadas, quando estava demasiado preocupado, aborrecido e tenso para conseguir dormir, sentava-se num dos grandes lugares VIP na primeira fila com um cálice de brande e perdia-se no mais recente encantamento de Hollywood.
Quando Digby entrou, Humphrey Bogart explicava a Mary Astor que, quando o companheiro de um homem é morto, lhe compete tomar uma atitude. O ar estava carregado de fumo de charuto. Churchill apontou para um lugar. Digby sentou-se e assistiu aos últimos minutos do filme. Quando surgiu no ecrã a ficha técnica por cima da estatueta de um falcão preto, Digby informou o seu chefe de que a Luftwaffe parecia ter conhecimento prévio do momento em que o Comando de Bombardeiros(1) ia atacar.
Quando terminou, Churchill olhou para o ecrã por alguns momentos, como se estivesse à espera de descobrir quem fizera o papel de Bryan. Havia ocasiões em que era encantador, com um sorriso cativante e um brilho nos olhos azuis, mas, naquela noite, parecia profundamente pesaroso. Por fim, disse: - Qual é a opinião da RAF?
- Atribuem as culpas à má formação durante o voo. Teoricamente, se os bombardeiros voarem em formação cerrada, o seu armamento deveria cobrir o céu todo, pelo que qualquer caça inimigo que apareça deveria ser abatido de imediato.
- E qual é a sua opinião sobre o assunto?
- É um absurdo. A formação de voo nunca resultou. Deve ter entrado um novo factor na equação.
- Concordo. Mas o quê?
- O meu irmão atribui as culpas aos espiões.
- Todos os espiões que apanhámos eram amadores; por isso mesmo foram apanhados, claro. Pode suceder que os competentes tenham conseguido escapar por entre as malhas da rede.
- Talvez os alemães possuam alguma inovação técnica.
- Segundo os Serviços Secretos, o inimigo está muito mais atrasado do que nós no desenvolvimento do radar.
- Confia na avaliação deles?
(1) Unidade militar organizacional, por via de regra subordinada à força aérea de um país. (NT)
- Não. - As luzes do tecto acenderam-se. Churchill estava de smoking. Tinha sempre um aspecto janota, apesar das muitas rugas de preocupação no rosto. Retirou do bolso do colete uma folha de papel fino dobrada. - Aqui está uma pista - disse, e entregou-a a Digby.
Digby analisou o papel. Parecia ser uma descodificação de um sinal de rádio da Luftwaffe, em alemão e inglês. Referia que a nova estratégia da Luftwaffe de ataques em noites escuras, Dunkle Nachtjagd, tivera um êxito enorme, graças às excelentes informações de Freya. Digby leu a mensagem em inglês e depois novamente em alemão. "Freya" não era uma palavra pertencente a qualquer das línguas. - O que significa? - inquiriu.
- É o que eu quero que descubra. - Churchill levantou-se e vestiu o casaco. - Acompanhe-me - pediu. Quando saiu, gritou: - Obrigado!
Uma voz respondeu da cabina de projecção: - O prazer foi todo meu, senhor primeiro-ministro.
Enquanto atravessavam o edifício, foram acompanhados por dois homens: o inspector Thompson da Scotland Yard e o guarda-costas particular de Churchill. Saíram para a praça de armas, passaram por uma equipa que manobrava um balão de barragem e transpuseram uma porta na vedação de arame farpado que dava para a rua. Londres estava às escuras, mas uma lua em quarto crescente iluminava o suficiente para encontrarem o caminho.
Percorreram alguns metros lado a lado por Horse Guards Parade até ao número um de Storeys Gate. Uma bomba danificara as traseiras do número dez de Downing Street, por isso Churchill ocupava o anexo nas imediações, por cima das Salas do Gabinete de Guerra(1). A entrada encontrava-se protegida por uma parede à prova de bombas. O cano de uma metralhadora saía de um buraco na parede.
Digby despediu-se: - Boa noite, senhor.
- Temos de fazer alguma coisa - disse Churchill. - A este ritmo, no Natal o Comando de Bombardeiros já não existirá. Preciso de saber quem ou o que é Freya.
- Vou descobrir.
- Faça-o com a máxima urgência.
- Sim, senhor.
- Boa noite - disse o Primeiro-Ministro, e entrou.
(1) Estas salas foram mandadas construir,por Churchill em 1938. Funcionavam como um bunker e as instalações estavam equipadas com um "tecto" em aço reforçado. Era na sala principal que se reunia o seu executivo. (NT)
No último dia de Maio de 1941, aparecera um estranho veículo nas ruas de Morlunde, uma cidade na costa ocidental da Dinamarca.
Era uma motorizada Nimbus de fabrico dinamarquês com um carro lateral. Em si mesma, constituía uma visão invulgar, em virtude de não haver combustível excepto para os médicos e a polícia e, claro, as tropas alemãs que ocupavam o país. Mas esta Nimbus sofrera adaptações. O motor de quatro cilindros a gasolina fora substituído por um motor a vapor retirado de uma lancha fluvial na sucata. O banco do carro lateral havia sido removido para caberem uma caldeira, uma câmara de combustão e uma chaminé. O novo motor era de baixa potência, e a mota atingia uma velocidade máxima de cerca de trinta e cinco quilómetros por hora. Em vez do habitual ruído do escape de uma motorizada, ouvia-se tão-somente o silvo delicado do vapor. O misterioso silêncio e o ritmo lento conferiam ao veículo um ar imponente.
No assento vinha Harald Olufsen, um jovem alto de dezoito anos, com tez clara e cabelo louro penteado para trás numa testa alta. Parecia um viquingue com um casaco de uniforme de colégio. Economizara durante um ano para comprar a Nimbus, que lhe custara seiscentas coroas - depois, no dia seguinte a tê-la comprado, os alemães haviam imposto as restrições aos combustíveis.
Harald ficara furioso. Como se atreviam? Mas fora educado para agir em vez de se lamentar.
Levara outro ano a modificar a mota, trabalhando durante as férias escolares, intercalando-o com as revisões para os exames de acesso à universidade. Naquele dia, tendo regressado a casa do colégio interno para o feriado do Pentecostes, dedicara a manhã à memorização das equações de física e a tarde à colocação na roda traseira de uma roda dentada de uma máquina de cortar relva enferrujada. Naquele momento, com a motorizada a trabalhar na perfeição, dirigia-se a um bar, onde esperava ouvir um pouco de jazz e talvez mesmo conhecer algumas raparigas.
Adorava jazz. Depois da física, era a coisa mais interessante que jamais lhe acontecera. Os músicos americanos eram os melhores, claro, e até os seus imitadores dinamarqueses eram dignos de ser ouvidos. Por vezes, era possível ouvir bom jazz em Morlunde, talvez por ser um porto internacional, visitado por marinheiros de todo o mundo.
Mas quando Harald chegara ao exterior do Club Hot, no coração do bairro portuário, encontrara o estabelecimento encerrado e as janelas com as portadas fechadas.
Ficou intrigado. Eram oito horas de um sábado à noite, e tratava-se do local mais popular na cidade. Deveria fervilhar de animação.
Enquanto olhava para o edifício silencioso, um transeunte parou e olhou para o seu veículo. - Que engenhoca é essa?
- Uma Nimbus com motor a vapor. Sabe o que se passa com este clube?
- Sou o dono. Que combustível usa a mota?
- Tudo o que dê para queimar. Eu uso turfa. - Apontou para o monte no fundo do carro lateral.
- Turfa!- O homem soltou uma gargalhada.
- Por que estão as portas fechadas?
- Os nazis obrigaram-me a encerrar o estabelecimento. Harald ficou descoroçoado. - Porquê?
- Por contratar músicos negros.
Harald nunca vira um músico negro em carne e osso, mas sabia pelos discos que eles eram os melhores. - Os nazis são uns porcos ignorantes - respondeu, cheio de fúria. Ficara com a noite estragada.
O dono do clube olhou para um lado e o outro da rua para se certificar de que ninguém ouvira. A potência ocupante dominava a Dinamarca com mão leve mas, mesmo assim, poucas pessoas insultavam abertamente os nazis. No entanto, não se via mais ninguém. Volveu o olhar para a motorizada. - Funciona?
- Claro que sim.
- Quem fez a adaptação?
- Fui eu mesmo.
O divertimento do homem estava a transformar-se em admiração.
- Foi muito inteligente.
- Obrigado. - Harald abriu a válvula de admissão de vapor para o motor. - Lamento pelo seu clube.
- Espero que mo deixem reabrir dentro de semanas. Mas terei de prometer só contratar músicos brancos.
- Jazz sem negros? - Harald abanou a cabeça, indignado. - É o mesmo que expulsar os cozinheiros franceses dos restaurantes. - Tirou o pé do travão e a mota afastou-se lentamente. Pensou dirigir-se ao centro da cidade, para ver se encontrava algum conhecido nos cafés e bares à volta da praça, mas ficara tão desapontado com o clube de jazz que decidiu que seria deprimente deter-se por ali. Harald virou para o porto.
O pai era pastor da igreja de Sande, uma pequena ilha a pouco mais de duas milhas da costa. O pequeno ferry que fazia a ligação de e para a ilha encontrava-se acostado, e entrou directamente. Havia um animado grupo de pescadores que tinha ido assistir a um desafio de futebol e bebera uns copos depois; duas mulheres abastadas de chapéus e luvas com um pónei e um carro de duas rodas e um monte de compras; e uma família que viera visitar parentes à cidade. Um casal bem vestido que não reconheceu iria provavelmente jantar ao hotel da ilha, que tinha um restaurante de luxo. A sua motorizada despertou o interesse de todos e teve de explicar novamente o motor a vapor.
Mesmo em cima da hora, entrou um Ford de quatro lugares de fabrico alemão. Harald conhecia o carro: pertencia a Axel Flemming, proprietário do hotel da ilha. Os Flemming eram inimigos da família de Harald. Axel Flemming achava-se o líder natural da comunidade insular, funções que o pastor Olufsen acreditava pertencerem-lhe, e o atrito entre os patriarcas rivais afectava todos os outros membros da família. Harald perguntou a si mesmo como conseguia Flemming arranjar combustível para o seu carro. Calculou que para os ricos tudo fosse possível.
O mar estava agitado e havia nuvens escuras no céu a oeste. Vinha lá uma tempestade, mas os pescadores diziam que teriam tempo de chegar a casa antes mesmo que ela se abatesse. Harald pegou num jornal que recolhera na cidade. Intitulado Realidade, era uma publicação ilegal, impressa para desafiar a potência ocupante e distribuída gratuitamente. A polícia dinamarquesa não tentara reprimi-lo e os alemães pareciam considerá-lo indigno de atenção. Em Copenhaga, as pessoas liam-no abertamente nos comboios e eléctricos. Aqui, eram mais discretas, e Harald dobrou-o para esconder o cabeçalho enquanto lia uma notícia sobre a escassez de manteiga. A Dinamarca produzia anualmente milhões de quilos de manteiga, mas esta era agora enviada na quase totalidade para a Alemanha, e os dinamarqueses tinham dificuldade em arranjá-la. Era o tipo de história que nunca aparecia na imprensa oficial censurada.
A forma plana e familiar da ilha ficou mais próxima. Tinha dezanove quilómetros de comprimento e um quilómetro e meio de largura, com uma aldeia em cada extremo. As cabanas dos pescadores, e a igreja com o seu presbitério, constituíam a aldeia mais antiga na ponta sul. Também aqui, uma escola de navegação, há muito abandonada, fora ocupada pelos alemães e transformada numa base militar. O hotel e as casas maiores ficavam na ponta norte. No meio, a ilha era constituída principalmente por dunas de areia e vegetação rasteira com algumas árvores e nenhumas colinas, mas ao longo do lado virado para o mar havia uma magnífica praia com dezasseis quilómetros de extensão.
Harald sentiu algumas gotas de chuva quando o ferry se aproximou do cais no extremo norte da ilha. O táxi do hotel, puxado por cavalos, aguardava o casal bem vestido. Os pescadores foram recebidos pela mulher de um deles que conduzia uma carroça e um cavalo. Harald decidiu atravessar a ilha e seguir para casa pela praia, que era de areia compacta - na verdade, fora usada para testes de velocidade de carros de corrida.
Ia a meio do cais antes do hotel quando se lhe acabou o vapor.
Estava a usar o depósito de combustível da mota como reserva de água e apercebia-se naquele momento de que não era suficientemente grande. Teria de arranjar um bidão de vinte e dois litros e meio e colocá-lo no carro lateral. Entretanto, precisava de água para conseguir chegar a casa.
Só se avistava uma casa e, infelizmente, era a de Axel Flemming. Não obstante a sua rivalidade, os Olufsen e os Flemming não estavam de relações cortadas: todos os membros da família Flemming iam à igreja aos domingos e sentavam-se na frente. Axel era até diácono. Mesmo assim, não agradava a Harald a ideia de pedir ajuda aos antagónicos Flemming. Ainda ponderou percorrer a pé os quatrocentos metros até à casa mais próxima, depois achou que seria absurdo. Suspirando, começou a subir o longo acesso.
Em vez de bater à porta da frente, contornou a lateral da casa até aos estábulos. Ficou satisfeito ao ver um criado guardar o Ford na garagem. - Olá, Gunnar - saudou Harald. - Posso tirar um pouco de água?
O homem foi simpático. - Sirva-se - disse. - Há uma torneira no pátio.
Harald encontrou um balde ao lado da torneira e encheu-o. Voltou à estrada e despejou a água no depósito. Talvez conseguisse evitar um encontro com alguém da família. Mas quando regressou ao pátio para devolver o balde, Peter Flemming estava lá.
Alto e arrogante, de trinta anos, com um fato de bom corte em tweed cor de aveia, Peter era filho de Axel. Antes da discussão entre as famílias, fora o melhor amigo do irmão de Harald, Arne, e na adolescência eram uns autênticos arrasa-corações, Arne seduzindo as raparigas com o seu encanto malandro e Peter com a sua tranquila sofisticação. Peter vivia agora em Copenhaga mas viera passar o fim-de-semana prolongado a casa, calculou Harald.
Peter estava a ler o Realidade. Levantou a cabeça do jornal ao ver Harald. - O que fazes aqui? - indagou.
- Olá, Peter, vim buscar um pouco de água.
- Presumo que esta porcaria seja tua?
Harald levou a mão ao bolso e apercebeu-se com consternação de que o jornal devia ter caído quando se baixara para pegar no balde.
Peter reparou no gesto e compreendeu o seu significado. - Obviamente que é - comentou. - E tens consciência de que podias ir para a prisão só por o teres na tua posse?
A menção à prisão não era uma ameaça vã: Peter era detective da polícia. Harald retorquiu: - Toda a gente na cidade o lê. - Procurou falar em tom de desafio, mas na verdade estava ligeiramente assustado: Peter era suficientemente mesquinho para o deter.
- Não estamos em Copenhaga - advertiu Peter em tom solene. Harald sabia que Peter adoraria a oportunidade de desgraçar um
Olufsen. Todavia, hesitava. Harald julgou saber por que razão. - Ficará mal visto se prender um estudante de Sande por algo que metade da população faz abertamente. Em especial sabendo toda a gente que guarda ressentimento contra o meu pai.
Peter estava visivelmente dividido entre o desejo de humilhar Harald e o receio de ser alvo de chacota. - Ninguém tem o direito de infringir a lei - afirmou.
- A lei de quem? A nossa ou a dos Alemães?
- A lei é a lei.
Harald sentiu-se mais confiante. Peter não estaria a argumentar de uma forma tão defensiva se tencionasse efectuar uma detenção. - Só o diz porque o seu pai ganha imenso dinheiro a proporcionar bons momentos de diversão aos nazis no hotel dele.
O hotel era popular entre os oficiais alemães, que tinham mais dinheiro para gastar do que os dinamarqueses. Acusando o toque, Peter corou de raiva. - Enquanto o teu pai faz sermões inflamados - retorquiu. Era verdade: o pastor pregara contra os nazis, sendo o seu tema "Jesus era judeu". Peter prosseguiu: - Será que ele não se apercebe dos sarilhos que pode causar se agitar as pessoas?
- Estou certo que sim. O fundador da religião cristã também tinha o seu quê de agitador.
- Não me fales de religião. Tenho de manter a ordem aqui na terra.
- A ordem que vá para o inferno, fomos invadidos! - A frustração de Harald pela noite estragada veio à tona. - Que direito têm os nazis de nos dizer o que fazer? Deveríamos expulsar toda aquela súcia a pontapé do nosso país!
- Não devias odiar os alemães. São nossos amigos - disse Peter com um ar de hipocrisia devota que enfureceu Harald.
- Eu não odeio os alemães, seu tolo. Tenho primos alemães. - A irmã do pastor casara-se com um jovem dentista bem-sucedido de Hamburgo que viera passar férias a Sande nos anos 20. A filha deles, Monika, fora a primeira rapariga que Harald beijara. - Eles sofreram mais do que nós às mãos dos nazis - acrescentou Harald. O tio Joachim era judeu e, apesar de ser um cristão baptizado e presbítero da sua igreja, os nazis haviam decretado que só poderia tratar judeus, afectando assim a sua clínica. Havia cerca de um ano, fora detido por suspeita de açambarcar ouro e enviado para um tipo de prisão especial, chamado Konzentrazionslager na pequena cidade bávara de Dachau.
- As pessoas é que procuram os problemas - respondeu Peter com um ar de experiência do mundo. - O teu pai não devia ter permitido que a irmã se casasse com um judeu. - Atirou o jornal para o chão e afastou-se.
A princípio, Harald ficou demasiado abalado para replicar. Curvou-se e apanhou o jornal. Depois disse nas costas de Peter, que se afastava: - Começa a parecer-se com um nazi.
Ignorando-o, Peter enfiou-se por uma entrada da cozinha e bateu com a porta.
Harald sentiu que perdera a razão, o que o enfureceu, pois sabia que o que Peter acabara de dizer era ultrajante.
Começara a chover com intensidade quando regressou à estrada. Ao chegar perto da mota, apercebeu-se de que o fogo por debaixo da caldeira se apagara.
Tentou reacendê-lo. Amachucou o seu exemplar do Realidade para fazer de lenha, e tinha no bolso uma caixa com fósforos de madeira de boa qualidade, mas não trouxera consigo o fole com que espevitava o fogo. Após vinte frustrantes minutos à chuva debruçado sobre a câmara de combustão, desistiu. Iria a pé para casa.
Levantou a gola do casaco.
Empurrou a mota pelos oitocentos metros até ao hotel e deixou-a no pequeno parque de estacionamento, seguindo depois ao longo da praia. Naquela altura do ano, a três semanas do solstício de Verão, o entardecer escandinavo durava até às onze horas; mas naquela noite as nuvens escureciam o céu e a chuva que caía limitava ainda mais a visibilidade. Harald seguiu pela orla das dunas, orientando-se pelo tactear do solo sob os pés e o som do mar no ouvido direito. Não tardou a ficar com as roupas tão encharcadas que, se tivesse vindo a nado, não estaria mais molhado.
Era um homem jovem e forte, e são como um pêro, mas duas horas depois sentiu-se cansado, gelado e infeliz quando se lhe deparou a vedação à volta da nova base alemã e se apercebeu de que teria de percorrer mais de três quilómetros contornando-a para chegar à sua casa, que ficava a algumas centenas de metros.
Se a maré estivesse vazia, teria podido continuar pela praia pois, apesar de a extensão de areia ficar oficialmente dentro da área interdita, os guardas não teriam conseguido vê-lo com aquele tempo. No entanto, a maré estava cheia e a vedação chegava à água. Ainda pensou atravessar a nado a última porção, mas desistiu imediatamente da ideia. A semelhança das outras pessoas daquela comunidade piscatória, Harald tinha um enorme respeito pelo mar, e seria perigoso nadar à noite com aquele tempo quando já se sentia exausto.
Mas podia escalar a vedação.
A chuva abrandara, e aparecia irregularmente um quarto de lua por entre as nuvens que passavam a correr, lançando intermitentemente uma luz incerta sobre a paisagem molhada. Harald conseguia ver a vedação de rede de galinheiro com um metro e oitenta de altura e dois fios de arame farpado no cimo, bastante difícil mas não um obstáculo de maior para uma pessoa determinada e em boa forma física. Cinquenta metros para o interior, ela atravessava uma mata de árvores e arbustos enfezados que a escondiam da vista. Seria o local ideal para passar.
Sabia o que ficava do outro lado da vedação. No Verão anterior, trabalhara como operário na construção. Na altura não sabia que aquilo se destinava a uma base militar. Os construtores, uma empresa de Copenhaga, haviam dito a toda a gente que era um novo posto da guarda costeira. Teriam tido dificuldade em recrutar pessoal se revelassem a verdade - para começar, Harald não teria trabalhado para os nazis com conhecimento de causa. Depois, quando os edifícios ficaram de pé e a vedação foi concluída, todos os Dinamarqueses foram dispensados, e chegaram os alemães para instalar o equipamento. Mas Harald conhecia o traçado. A escola de navegação abandonada fora remodelada e erguidas duas novas construções de cada lado. Todos os edifícios ficavam afastados da praia, pelo que poderia atravessar a base sem ter de se aproximar deles. Para além disso, grande parte do solo naquele ponto do local estava coberto de arbustos baixos que o poderiam ocultar. Só teria de ficar atento à patrulha de guardas.
Encontrou o caminho para a mata, trepou a vedação, passou com cuidado sobre o arame farpado no cimo e saltou para o outro lado, aterrando suavemente nas dunas molhadas. Olhou à sua volta, espreitando no escuro, vendo apenas as formas vagas das árvores. Os edifícios ficavam escondidos, mas conseguia ouvir música ao longe e uma ou outra gargalhada. Era sábado à noite: talvez os soldados estivessem a beber cervejas enquanto os oficiais jantavam no hotel de Axel Flem-ming.
Atravessou a base, movendo-se o mais rapidamente que podia ao luar incerto, mantendo-se próximo dos arbustos sempre que possível, orientando-se pelas ondas do lado direito e pela música em surdina do lado esquerdo. Passou por uma estrutura alta e reconheceu-a, no escuro, como uma torre de vigia. Toda a área se iluminaria numa emergência, mas de outro modo a base estava às escuras.
Sobressaltou-se com um som súbito à sua esquerda e acocorou-se, com o coração batendo mais célere. Olhou na direcção dos edifícios. Abriu-se uma porta, saindo um jorro de luz. Enquanto observava, saiu um soldado e correu pelo complexo; a seguir abriu-se outra porta num edifício diferente, e o soldado entrou rapidamente.
Os batimentos cardíacos de Harald abrandaram.
Atravessou um pequeno aglomerado de coníferas e desceu uma depressão. Quando chegou ao fundo do declive, viu uma estrutura que se erguia no escuro. Não conseguia distinguir bem, mas não se recordava de ter sido construída alguma coisa naquele local. Aproximando-se mais, viu um muro circular de betão mais ou menos à altura da sua cabeça. Por cima do muro algo se movia, e ouviu um zumbido baixo, como que de um motor eléctrico.
Devia ter sido construído pelos alemães depois de dispensados os operários locais. Estranhou nunca ter visto a estrutura do lado de fora da vedação, mas depois apercebeu-se de que as árvores e a depressão no terreno a ocultariam da maior parte das perspectivas, a não ser talvez da praia - que ficava fora dos limites da base.
Quando olhou para cima e tentou distinguir os pormenores, a chuva caiu-lhe no rosto, fazendo-lhe arder os olhos. Mas estava demasiado curioso para seguir caminho. A lua brilhou por um momento. Semi-cerrando os olhos, voltou a tentar enxergar alguma coisa. Por cima do muro circular, distinguiu uma grelha de metal ou arame como um colchão gigante, talvez com dois metros e quarenta de lado. A engenhoca rodava como um carrossel, completando uma volta de tantos em tantos segundos.
Harald ficou fascinado. Era uma máquina de um tipo nunca antes visto, e o engenheiro que havia nele ficou encantado. Qual a sua função? Por que rodava? O som pouco ou nada lhe disse - era apenas um motor a fazer girar aquilo. Teve a certeza de que não era uma metralhadora, pelo menos não do tipo convencional, pois não tinha cano. O seu palpite ia mais para algo relacionado com um rádio.
Ali perto, alguém tossiu.
Harald reagiu instintivamente. Deu um salto, passou os braços pela beira do muro e içou-se. Ficou por um segundo no cimo estreito, sentindo que dava perigosamente nas vistas, depois desceu para o lado de dentro. Receou que os seus pés pudessem encontrar maquinaria em movimento, mas teve quase a certeza de que haveria um caminho em torno do mecanismo destinado à intervenção dos técnicos; e, após um momento tenso, tocou no chão de betão. O zumbido era mais forte e sentiu o cheiro a óleo de motor. Notou na língua o travo peculiar da electricidade estática.
Quem tossira? Presumiu que uma sentinela de passagem. Os passos do homem deviam ter-se perdido no vento e na chuva. Felizmente, os mesmos ruídos tinham abafado o som de Harald a trepar o muro. Mas poderia a sentinela tê-lo visto?
Coseu-se com o interior curvo do muro, respirando ofegantemente, à espera de que o feixe luminoso de um holofote potente o denunciasse. Perguntou-se o que sucederia se fosse apanhado. Os alemães eram amistosos ali no campo: a maior parte deles não se pavoneava com ar de conquistadores, parecendo quase embaraçados por estarem em posição de superioridade. Provavelmente entregá-lo-iam à polícia dinamarquesa. Não sabia muito bem qual a linha seguida pelos polícias. Se Peter Flemming fizesse parte da força local, certificar-se-ia de que Harald sofresse o máximo possível; mas, felizmente, estava destacado em Copenhaga. O que Harald temia, mais do que qualquer castigo oficial, era a ira do pai. Parecia até ouvir já o interrogatório sarcástico do pastor: "Trepaste a vedação? E entraste no complexo militar secreto? De noite? E usaste-o como atalho para vires para casa? Só porque estava a chover?"
Mas não incidiu nenhuma luz sobre Harald. Aguardou e olhou para o volume escuro do aparelho à sua frente. Julgou conseguir distinguir pesados cabos que vinham da extremidade inferior da grelha e desapareciam no escuro do outro lado do poço. Tinha de constituir um meio de enviar sinais de rádio, ou de os receber, pensou.
Decorridos alguns minutos lentos, teve a certeza de que o guarda seguira caminho. Escalou até ao cimo do muro e tentou ver através da chuva. Distinguiu duas formas escuras-mais pequenas de cada lado da estrutura, mas não se moviam, e decidiu que deviam fazer parte da maquinaria. Não se via nenhuma sentinela. Deslizou para o lado de fora do muro e voltou a atravessar as dunas.
Num momento de escuridão, quando a Lua se encontrava por detrás de uma nuvem espessa, foi de encontro a uma parede de madeira. Em choque e momentaneamente assustado, soltou uma imprecação abafada. Um segundo depois apercebeu-se de que chocara com um velho alpendre de barcos usado pela escola de navegação. Estava abandonado, e os alemães não o tinham reparado, não vendo aparentemente qualquer uso para ele. Permaneceu imóvel por um momento, mas só ouvia o bater do seu coração. Prosseguiu a marcha.
Chegou ao outro lado da vedação sem mais percalços. Trepou-a e dirigiu-se para casa.
Chegou primeiro à igreja. Viu luz através da longa fila de janelas baixas quadradas na parede virada para o mar. Surpreendido por ainda se encontrar alguém no edifício àquela hora num sábado à noite, resolveu ir espreitar.
A igreja era comprida e de tecto baixo. Em ocasiões especiais, tinha capacidade para a população residente da ilha, em número de quatrocentas almas, mas mesmo à justa. Viam-se filas de bancos virados para uma estante de leitura em madeira. Não havia altar. Nas paredes não havia nada além de alguns textos emoldurados.
Os dinamarqueses não eram nada dogmáticos no tocante à religião, e a maior parte da nação aderira ao luteranismo evangélico. No entanto, a população de pescadores de Sande convertera-se, havia uma centena de anos, a um credo mais austero. Durante os últimos trinta anos, o pai de Harald mantivera viva a fé deles, dando um exemplo de puritanismo inflexível mediante a sua própria vida, fortalecendo a determinação da sua congregação em cáusticos sermões semanais e confrontando pessoalmente os apóstatas com a irresistível santidade dos seus olhos azuis. Apesar do exemplo da sua ardente convicção, o filho não era crente. Harald ia aos serviços sempre que estava em casa, para não ferir os sentimentos do pai, mas no seu íntimo divergia dele. Ainda não se decidira sobre a religião em geral, mas sabia que não acreditava num deus de regras mesquinhas e castigos vingativos.
Quando espreitou pela janela, ouviu música. O seu irmão, Arne, estava ao piano, a tocar uma melodia de jazz com um toque delicado. Harald sorriu de prazer. Arne viera passar o feriado a casa. Era divertido e sofisticado, e animaria o fim-de-semana prolongado no presbitério.
Encaminhou-se para a porta e entrou. Sem se virar, Arne mudou sem interrupções para a melodia de um hino. Harald sorriu. Arne ouvira a porta abrir-se e julgara que pudesse ser o pai a entrar. O pastor reprovava o jazz e certamente não permitiria que fosse tocado na sua igreja. - Sou apenas eu - anunciou Harald.
Arne virou-se. Tinha vestido um uniforme castanho. Dez anos mais velho do que Harald, era instrutor de voo nas Tropas da Aviação Militar sediadas na escola de voo próximo de Copenhaga. Os alemães haviam suspendido toda a actividade militar dinamarquesa, e os aviões ficavam em terra a maior parte do tempo, mas os instrutores podiam dar lições em planadores.
- Quando olhei para ti pelo canto do olho, julguei que eras o velho. - Arne mirou Harald de alto a baixo com carinho. - Estás cada vez mais parecido com ele.
- Isso significa que vou ficar calvo?
- Provavelmente.
- E tu?
- Não me parece. Saio à mãe.
Era verdade. Arne tinha o cabelo espesso e escuro e os olhos cor de avelã da mãe. Harald era louro, tal como o pai de ambos, e herdara também os olhos azuis penetrantes com que o pastor intimidava o seu rebanho. Tanto Harald como o pai eram extremamente altos, fazendo Arne parecer pequeno com o seu metro e setenta e sete e meio.
- Tenho uma coisa para te tocar - disse Harald. Arne levantou-se do banco e Harald sentou-se ao piano. - Tirei isto de um disco que levaram para o colégio. Conheces o Mads Kirke?
- O primo do meu colega Poul.
- Isso mesmo. Ele descobriu este pianista americano chamado Clarence Pine Top Smith. - Harald hesitou. - O que está o velho a fazer neste momento?
- A escrever o sermão de amanhã.
- Óptimo. - Do presbitério, a cinquenta metros de distância, não se conseguia ouvir o piano e era improvável que o pastor fosse interromper os preparativos para ir dar um passeio até à igreja, especialmente com aquele tempo. Harald começou a tocar "Pine Top Boogie-Woogie" e a sala encheu-se das harmonias sensuais sulistas americanas. Era um pianista entusiástico, conquanto a mãe dissesse que tinha a mão pesada. Não conseguia sentar-se quieto quando tocava, de modo que se levantou, deu um pontapé no banco, derrubando-o, e tocou de pé, curvando a sua estatura alta sobre o teclado. Assim cometia mais erros, mas não pareciam importar desde que mantivesse o ritmo compulsivo. Fez soar ruidosamente o último acorde e disse em inglês: "É disto que estou a falar!", tal como fazia Pine Top no disco.
Arne soltou uma gargalhada. - Nada mal!
- Devias ouvir o original.
- Vem sentar-te no alpendre. Quero fumar. Harald endireitou-se. - O velho não vai gostar disso.
- Tenho vinte e oito anos - respondeu Arne. - Já sou velho de mais para receber ordens do pai.
- Concordo. Mas será que ele é da mesma opinião?
- Tens medo dele?
- Claro. E a mãe também, e praticamente toda a gente nesta ilha, até tu.
Arne fez um esgar. - Está bem, talvez só um bocadinho.
Estavam à porta da igreja, do lado de fora, abrigados da chuva por um pequeno pórtico. No outro extremo de uma extensão de solo arenoso viam a forma escura do presbitério. A luz saía pela janela em forma de losango na porta da cozinha. Arne tirou os cigarros.
- Tiveste notícias da Hermia? - perguntou-lhe Harald. Arne estava noivo de uma rapariga inglesa que não via há mais de um ano, desde que os alemães haviam ocupado a Dinamarca.
Arne abanou a cabeça. - Tentei escrever-lhe. Descobri a morada do Consulado Britânico em Gotemburgo. - Os dinamarqueses podiam enviar cartas para a Suécia, que era neutra. - Enderecei-lha para aquela morada, sem mencionar o consulado no envelope. Julguei que tivesse sido esperto o suficiente, mas os censores não se deixam enganar tão facilmente. O meu oficial de comando trouxe-me a carta e disse que, se eu voltasse a fazer algo semelhante, seria julgado num tribunal de guerra.
Harald gostava de Hermia. Algumas das namoradas de Arne tinham sido, enfim, louras estúpidas, mas Hermia era inteligente e corajosa. Metera-lhe um certo medo quando a conhecera, com o seu ar dramático e sombrio e o seu modo directo de falar; mas cativara Harald tratando-o como um homem, não apenas como o irmão mais novo de alguém. E ficava sensacionalmente voluptuosa em fato de banho. - Ainda queres casar com ela?
- Por Deus, sim. Se ela estiver viva. Pode ter sido morta por uma bomba em Londres.
- Deve ser difícil para ti não o saberes.
Arne anuiu, depois perguntou: - E tu? Alguma acção?
Harald encolheu os ombros. - As raparigas da minha idade não estão interessadas em alunos. - Falou em tom ligeiro, mas escondia um ressentimento genuíno. Sofrera algumas rejeições que o tinham magoado.
- Acho que preferem sair com um tipo que possa gastar algum dinheiro com elas.
- Precisamente. E raparigas mais novas... conheci uma na Páscoa, Birgit Claussen.
- Claussen? A família de armadores em Morlunde?
- Sim. É bonita, mas só tem dezasseis anos, e uma conversa muito enfadonha.
- Pois ainda bem. A família é católica. O velho não aprovaria.
- Eu sei. - Harald ficou carrancudo. - Mas olha que ele anda estranho. Na Páscoa pregou sobre a tolerância.
- Logo ele que é tão tolerante quanto Vlad, o Empalador(1) - Arne arremessou a beata. - Vamos entrar e falar com o velho tirano.
- Antes de entrarmos...
- O que foi?
- Como estão as coisas na base?
- Feias. Não podemos defender o nosso país, e a maior parte do tempo não estou autorizado a voar.
- Por quanto tempo se poderá prolongar esta situação?
- Sabe-se lá. Talvez para sempre. Os nazis conquistaram tudo. Só há oposição dos britânicos, e eles estão por um fio.
Harald baixou a voz, apesar de não haver ninguém que pudesse escutar. - Decerto alguém estará a preparar um movimento de Resistência em Copenhaga, não?
Arne encolheu os ombros. - Se estivessem, e eu tivesse conhecimento, não te poderia contar, pois não? - Depois, antes que Harald falasse mais, Arne correu pela chuva em direcção à luz acesa na cozinha.
Hermia Mount olhou com desalento para o seu almoço - duas salsichas esturricadas, um bocado de puré de batata líquido e um monte de couve espapaçada - e pensou com anseio num bar no passeio marítimo de Copenhaga que servia três variedades de arenque com salada, pickles, pão quente e cerveja alemã.
Crescera na Dinamarca. O pai fora um diplomata britânico que passara a maior parte da sua carreira nos países escandinavos. Hermia trabalhara na Embaixada Britânica em Copenhaga, primeiro como secretária, mais tarde como assistente de um adido naval que, na verdade, pertencia ao MI6, os Serviços Secretos Britânicos. Quando o pai faleceu e a mãe regressou a Londres, Hermia decidiu ficar, em parte
(1) Príncipe da Valáquia (1431-1476), na actual Roménia. Ficou mais conhecido pelas lendas a respeito dos castigos excepcionalmente cruéis impostos durante o seu reinado, servindo de inspiração à personagem do romance popular de Bram Stoker, Drácula. (NT)
por causa do seu trabalho, mas principalmente porque estava noiva de um piloto dinamarquês, Arne Olufsen.
Depois, a 9 de Abril de 1940, Hitler invadiu a Dinamarca. Após quatro dias de ansiedade, Hermia e um grupo de funcionários britânicos partiram num comboio diplomático especial que os levara pela Alemanha até à fronteira holandesa, depois tinham atravessado a Holanda neutra e chegado a Londres.
Agora com trinta anos, Hermia era analista dos serviços secretos responsável pela secção do MI6 na Dinamarca. Juntamente com a maior parte dos serviços, fora evacuada da sede em Londres, em 54 Broadway, perto do Palácio de Buckingham, para Bletchley Park, uma enorme casa de campo à saída de uma aldeia a oitenta quilómetros a norte da capital.
Tinha sido montado à pressa nos terrenos um barracão em madeira para servir de cantina. Hermia ficara satisfeita por escapar à Blitz, mas desejava que, por algum milagre, pudessem também ter evacuado de Londres um dos encantadores pequenos restaurantes italianos ou franceses, a fim de ter algo que comer. Enfiou um pouco de puré na boca e fez um esforço por engolir.
A fim de se abstrair do gosto da comida, colocou o Daily Express ao lado do prato. Os britânicos tinham acabado de perder a ilha de Creta, no Mediterrâneo. O Express procurava aceitar a notícia com bravura, referindo que a batalha custara a Hitler dezoito mil homens, mas a deprimente verdade era que esta fora mais outra numa longa série de vitórias dos nazis.
Ao levantar a cabeça, viu um homem baixo, mais ou menos da sua idade, avançando para si, trazendo uma chávena de chá, caminhando decididamente mas com um nítido coxear. - Posso fazer-lhe companhia? - perguntou, animado, e sentou-se defronte dela sem esperar por uma resposta. - Sou Digby Hoare. Sei quem você é.
Ela arqueou uma sobrancelha e respondeu: - Esteja à vontade.
O tom de ironia na voz dela não surtiu qualquer efeito nele. Limitou-se a responder: - Obrigado.
Vira-o por ali uma ou duas vezes. Tinha um ar enérgico, apesar do manquejar. Não era um ídolo das matinés, com cabelo escuro despenteado, mas tinha uns belos olhos azuis, e as suas feições eram agradavelmente talhadas à maneira de Humphrey Bogart. Perguntou-lhe: - Em que departamento trabalha?
- Presentemente, trabalho em Londres.
Não respondera à sua pergunta, apercebeu-se. Afastou o prato para o lado.
Ele inquiriu: - Não gosta da comida?
- E você?
- Vou dizer-lhe uma coisa. Tenho interrogado pilotos que foram abatidos em França e conseguiram regressar. Julgamos estar a atravessar uma fase de austeridade, mas desconhecemos o significado da palavra. Os franciús estão a morrer de fome. Depois de ouvir aquelas histórias, tudo me sabe bem.
- A austeridade não é pretexto para cozinhar mal - redarguiu Hermia, com secura.
Ele fez um esgar. - Disseram-me que era um pouco abespinhada.
- E o que mais lhe disseram?
- Que é bilingue em inglês e dinamarquês e que, por esse motivo, se encontra à frente da secção na Dinamarca, presumo.
- Não. A razão disso é a guerra. Antes, nenhuma mulher no MI6 fora além do nível de secretária-assistente. Não possuíamos mentes analíticas, sabe? Mas, desde que a guerra começou, os cérebros das mulheres sofreram uma mudança notável, e tornámo-nos capazes de realizar um trabalho que anteriormente só podia ser desempenhado pela mente masculina.
Aceitou o sarcasmo dela com tranquilo bom humor. - Por sinal, já me tinha apercebido disso - referiu. - São surpresas atrás de surpresas.
- Por que se andou a informar a meu respeito?
- Por duas razões. Primeiro porque é a mulher mais bela que alguma vez vi. - Desta vez não sorriu.
Conseguira surpreendê-la. Não era frequente os homens dizerem-lhe que era bela. Atraente, talvez; extraordinária, por vezes; imponente, amiúde. O seu rosto era de um oval comprido, perfeitamente regular, mas com cabelo escuro austero, olhos encovados e um nariz demasiado grande para ser bonito. Não lhe ocorreu uma réplica espirituosa. - Qual é a outra razão?
Ele olhou de soslaio. Duas mulheres mais velhas partilhavam a mesa deles e, apesar de estarem a conversar uma com a outra, provavelmente estariam também em parte a escutar o que Digby e Hermia diziam. - Já falamos - respondeu. - Gostaria de passar uma noite no pagode?
Voltara a surpreendê-la. - O quê?
- Quer sair comigo?
- Claro que não.
Por um momento, ele pareceu atrapalhado. Depois o sorriso voltou, e disse: - Não esteja a dourar a pílula... responda-me sem rodeios. Ela não pôde deixar de sorrir.
- Podíamos ir ao cinema - insistiu. - Ou ao Shoulder of Mutton Pub em Old Bletchley. Ou ambas as coisas.
Ela abanou a cabeça. - Não, obrigada - respondeu com firmeza.
- Oh. - Pareceu esmorecido.
Pensaria que o estava a rejeitar por causa da deficiência? Apressou-se a corrigir. - Estou noiva - disse. Mostrou-lhe o anel na mão esquerda.
- Não tinha reparado.
- Os homens nunca reparam.
- Quem é o sortudo?
- Um piloto da força aérea dinamarquesa.
- Presumo que se encontre lá.
- Tanto quanto sei. Não tenho notícias dele há um ano.
As duas senhoras abandonaram a mesa, e os modos de Digby mudaram. O seu rosto tornou-se sério, e a voz calma, mas premente. - Veja isto, por favor. - Retirou do bolso uma folha de papel fino e entregou-lha.
Já antes vira aquelas folhas de papel muito finas, ali em Bletchley Park. Tal como esperava, continha uma descodificação de um sinal de rádio do inimigo.
- Julgo que não é preciso dizer-lhe que isto é extremamente secreto - afirmou Digby.
- Não, não é.
- Creio que tanto fala alemão como dinamarquês.
Anuiu. - Na Dinamarca, todos os alunos aprendem alemão, inglês e latim também. - Analisou o sinal por um momento. - Informações de Freya?
- É o que nos anda a intrigar. Não é uma palavra alemã. Pensei que pudesse ter significado em alguma das línguas escandinavas.
- De certa forma, tem - afirmou ela. - Freya é uma deusa nórdica... Na verdade, é a Vénus viquingue, a deusa do amor.
- Ah! - Digby pareceu pensativo. - Bem, já é um começo, mas não nos leva muito longe.
- Para que vem a ser tudo isto?
- Estamos a perder demasiados bombardeiros.
Hermia carregou o semblante. - Li sobre o último grande ataque aéreo nos jornais. Diziam que tinha sido um enorme sucesso. Digby limitou-se a olhar para ela.
- Oh, estou a ver - afirmou. - Não se conta toda a verdade aos jornais.
Ele permaneceu em silêncio.
- De facto, a perspectiva geral da campanha de bombardeamentos é mera propaganda - prosseguiu Hermia. - A verdade é que foi um completo desastre. - Para seu desalento, ele nem assim a contradisse. - Por amor de Deus, quantos aviões perdemos?
- Cinquenta por cento.
- Santo Deus! - Hermia desviou o olhar. Alguns daqueles pilotos tinham noivas, pensou. - Mas se isto continuar...
- Precisamente.
Olhou de novo para a descodificação. - Freya é uma espia?
- É isso que me compete descobrir.
- O que posso fazer?
- Fale-me mais sobre a deusa.
Hermia rebuscou na sua memória. Dera mitologia nórdica no colégio, mas fora há muito tempo. - Freya tem um colar de ouro que é muito valioso. Foi-lhe dado por quatro anões. É guardado pelo vigilante dos deuses... Heimdal(1), creio que é esse o seu nome.
- Um vigilante. Isso faz sentido.
- Freya poderia ser uma espia com acesso a informação privilegiada sobre os ataques aéreos.
- Poderia igualmente ser uma máquina para detectar a aproximação de aviões antes de eles serem visíveis.
- Já me constou que temos essas máquinas, mas não imagino como funcionam.
- De três formas possíveis: infravermelhos, lidar e radar. Os detectores de infravermelhos captam os raios emitidos por um motor de avião quente, ou possivelmente o seu escape. O lidar é um sistema de vibrações ópticas enviado por um aparelho de detecção e reflectido do avião. O radar é o mesmo, mas com vibrações de ondas electromagnéticas.
- Acabo de me lembrar de mais um pormenor. Heimdal consegue ver num raio de cento e sessenta quilómetros, seja de dia ou de noite.
- Isso faz com que se pareça mais com uma máquina.
- Era o que estava a pensar.
Digby terminou o seu chá e levantou-se. - Se lhe ocorrer algo mais, avisa-me?
- Claro. Onde posso encontrá-lo?
- Número dez, Downing Street.
- Oh! - Ficara impressionada.
- Adeus.
- Adeus - disse ela, e ficou a vê-lo afastar-se.
Permaneceu sentada por alguns momentos. Tinha sido, sob vários pontos de vista, uma conversa interessante. Digby Hoare era muito dinâmico: o próprio Primeiro-Ministro devia estar preocupado
(1) Deus da alva e da luz; é o guardião de Asgard, a fortaleza dos deuses Aegir, na mitologia nórdica. (NT)
com a perda dos bombardeiros. O uso do nome de código Freya era mera coincidência, ou havia uma ligação escandinava?
Agradara-lhe o convite de Digby para saírem. Apesar de não estar interessada em andar com outro homem, fora um gesto que lhe caíra bem.
Passado um pouco, a visão do seu almoço praticamente intacto começou a deprimi-la. Levou o tabuleiro para a mesa dos despejos e raspou o prato para a lavagem dos porcos. Depois dirigiu-se à casa de banho das senhoras.
Enquanto estava dentro de um cubículo, ouviu entrar um grupo de mulheres jovens, tagarelando animadamente. Preparava-se para sair quando uma delas disse: - Aquele Digby Hoare não perde tempo, é o que se chama um trabalhador expedito.
A mão de Hermia ficou estática na maçaneta da porta.
- Vi-o fazer-se a Miss Mount - referiu uma voz mais velha. - Ele deve ser dos que gostam de apalpar mamas.
As outras riram-se. No cubículo, Hermia carregou o semblante ante aquela referência à sua generosa figura.
- No entanto, acho que ela o sacudiu - afirmou a primeira rapariga.
- Não farias o mesmo? Eu era incapaz de gostar de um homem com uma perna de pau.
Uma terceira rapariga falou com pronúncia escocesa. - Pergunto-me se ele a tira quando as come - comentou, e riram-se todas.
Hermia já estava saturada. Abriu a porta, saiu e disse: - Se eu descobrir, depois aviso-as.
O choque de surpresa reduziu as três raparigas ao silêncio, e Hermia saiu antes que elas tivessem tempo de se recompor.
Abandonou o edifício de madeira. O amplo relvado verde, com os cedros e o lago dos cisnes, fora desfigurado por cabanas montadas à pressa para acomodar as centenas de funcionários de Londres. Atravessou o parque até à residência, uma pesada mansão vitoriana construída em tijolo vermelho.
Transpôs o grande pórtico e dirigiu-se ao seu gabinete nas antigas instalações da criadagem, um espaço minúsculo em forma de L que provavelmente fora um quarto de arrumos. Tinha uma janela pequena demasiado alta para se ver para o exterior, pelo que trabalhava todo o dia com a luz acesa. Havia um telefone em cima da sua secretária e uma máquina de escrever numa mesa de apoio. O seu antecessor tivera uma ajudante, mas agora esperava-se que as mulheres dactilografassem o seu próprio trabalho. Encontrou na sua secretária uma encomenda de Copenhaga.
Após a invasão da Polónia por Hitler, Hermia lançara as bases de uma pequena rede de espionagem na Dinamarca. O cabecilha era Poul Kirke, amigo do seu noivo. Conseguira reunir um grupo de homens jovens que acreditavam que o seu pequeno país ia ser dominado pelo vizinho mais poderoso, e a única forma de lutar pela liberdade era cooperar com os britânicos. Poul declarara que o grupo, intitulado os Guardas-Nocturnos, não seria composto por sabotadores nem assassinos, transmitindo antes informações militares aos Serviços Secretos Britânicos. Esta proeza de Hermia - a única promovida por uma mulher - granjeara-lhe a promoção a chefe da secção na Dinamarca.
A encomenda continha alguns dos frutos da sua iniciativa. Havia uma série de relatórios, já descodificados pela sala de código, sobre as disposições militares alemãs na Dinamarca: bases do exército na ilha central de Fyn; tráfego naval no Categate, o mar que separava a Dinamarca da Suécia; e os nomes dos oficiais alemães de maior patente em Copenhaga.
Na encomenda vinha também um exemplar de um jornal clandestino chamado Realidade. A imprensa clandestina era, até ao momento, o único sinal da resistência aos nazis na Dinamarca. Deu-lhe uma vista de olhos, lendo um antigo indignado que afirmava que a falta de manteiga se devia ao facto de ser enviada na totalidade para a Alemanha.
A encomenda saíra às escondidas da Dinamarca e fora entregue a um mensageiro na Suécia, que, por sua vez, a entregara ao homem do MI6 na Legação Britânica em Estocolmo. Com a encomenda vinha um bilhete do mensageiro dizendo que entregara também um exemplar do Realidade aos serviços telegráficos da Reuters em Estocolmo. Hermia ficou apreensiva. A primeira vista, parecia boa ideia divulgar notícias das condições sob a ocupação, mas não gostava que os agentes misturassem a espionagem com outro tipo de trabalho. A acção de resistência poderia fazer recair as atenções das autoridades sobre um espião que de outro modo continuaria o seu trabalho durante anos sem ser descoberto.
Ao pensar nos Guardas-Nocturnos, veio-lhe a dolorosa recordação do noivo. Arne não pertencia ao grupo. O seu carácter seria incompatível. Adorava-o pela sua negligente alegria de viver. Fazia-a descontrair, especialmente na cama. Mas um homem despreocupado, sem cabeça para os pormenores da realidade, não se adequava ao trabalho secreto. Nos seus momentos de maior sinceridade, admitira a si própria não estar convicta de que ele tivesse coragem. Fora temerário nas pistas de esqui - tinham-se conhecido numa montanha na Noruega, onde Arne fora o único esquiador mais exímio do que Hermia -, mas não sabia bem como ele enfrentaria os terrores mais subtis de operacional infiltrado.
Ponderara enviar-lhe uma mensagem através dos Guardas-Nocturnos. Poul Kirke trabalhava na escola de voo e, se Arne ainda lá estivesse, deveriam ver-se todos os dias. Teria sido vergonhosamente amadorístico usar a rede de espionagem para uma comunicação pessoal, mas nem isso a faria desistir. Teria sido descoberta, de certeza, porque as suas mensagens tinham de ser codificadas pela sala de código, mas nem isso a haveria impedido. O que a deteve foi o potencial perigo para Arne. As mensagens secretas poderiam ir parar às mãos do inimigo. As chaves usadas pelo MI6 eram códigos inocentes em poemas, reminiscência dos tempos de paz, e podiam ser facilmente decifrados. Se o nome de Arne figurasse numa mensagem dos Serviços Secretos Britânicos para os espiões dinamarqueses, provavelmente ele perderia a vida. Os esforços de Hermia para ter notícias dele poderiam transformar-se na sua sentença de morte. Por isso permaneceu sentada na sua sala com uma ansiedade ácida a queimá-la por dentro.
Compôs uma mensagem para o mensageiro sueco, dizendo-lhe que se afastasse da guerra de propaganda e se cingisse ao seu trabalho como correio. Dactilografou depois um relatório para o chefe contendo todas as informações militares constantes da encomenda, com cópias a químico para outros departamentos.
Às quatro horas saiu. Tinha mais trabalho a efectuar, e regressaria por duas horas ao final da tarde, mas de momento tinha de ir ter com a mãe, para lancharem.
Margaret Mount vivia numa pequena casa em Chelsea. Depois de o pai de Hermia ter morrido de cancro com perto de cinquenta anos, a mãe fora morar com uma amiga de escola, solteira, chamada Eliza-beth. Tratavam-se mutuamente por Mags e Bets, os seus diminutivos de adolescentes. Naquele dia tinham vindo as duas de comboio até Bletchley para inspeccionarem a casa onde Hermia estava alojada.
Atravessou rapidamente a aldeia até à rua onde alugara um quarto. Encontrou Mags e Bets na sala de visitas a conversar com a senhoria, Mrs. Bevan. A mãe de Hermia trazia vestido o uniforme de condutora de ambulância, com calças e boné. Bets era uma mulher bonita de cinquenta anos com um vestido de manga curta às flores. Hermia abraçou a mãe e deu um beijo na face a Bets. Ela e Bets nunca se tinham tornado íntimas, e às vezes Hermia desconfiava de que Bets tinha ciúmes dela pela sua cumplicidade com a mãe.
Hermia levou-as para o andar de cima. Bets olhou de soslaio para o quartinho desinteressante com a sua cama de solteira, mas a mãe de Hermia disse em tom animado: - Bem, não é nada mau para tempo de guerra.
- Não passo aqui muito tempo - mentiu Hermia. Na verdade, passava bastantes serões longos e solitários a ler e a ouvir rádio.
Acendeu o fogareiro a gás para preparar o chá e cortou às fatias um pequeno bolo que comprara para a ocasião.
A mãe disse: - Calculo que não tenhas tido notícias de Arne.
- Não. Escrevi-lhe através da Legação Britânica em Estocolmo e eles encaminharam a carta, mas não cheguei a receber resposta, por isso não sei se ele a recebeu.
- Valha-me Deus.
Bets afirmou: - Gostava de o ter conhecido. Como é que ele é?
Apaixonar-se por Arne fora o mesmo que descer uma pista de esqui, pensou Hermia: um pequeno impulso para começar, um aumento súbito de velocidade e depois, antes de estar bem preparada, a sensação hilariante de vir pela pista abaixo a uma velocidade vertiginosa, sem conseguir parar. Mas como explicá-lo? - Ele parece uma estrela de cinema, é um atleta maravilhoso e possui o encanto de um irlandês, só que não o é - referiu Hermia. - É tão agradável estar com ele. Aconteça o que acontecer, está sempre a rir-se. Às vezes zango-me... embora nunca com ele, e então sorri-me e diz: "Não existe ninguém como tu, Hermia, juro." Santo Deus, como sinto a falta dele. - Reprimiu as lágrimas.
A mãe disse subitamente: - Imensos homens se apaixonaram por ti, mas não há muitos que te consigam aturar. - O estilo de conversa de Mags era tão natural quanto o da própria Hermia. - Devias tê-lo sabido agarrar enquanto era tempo.
Hermia mudou de assunto e perguntou-lhes sobre a Blitz. Durante os ataques aéreos, Bets escondia-se debaixo da mesa da cozinha, mas Mags conduzia a ambulância em plenos bombardeamentos. A mãe de Hermia sempre fora uma mulher formidável, um pouco directa de mais e com falta de tacto para esposa de um diplomata, mas a guerra dera-lhe força e coragem, assim como uns serviços secretos com falta de homens haviam permitido a Hermia desabrochar. - A Luftwaffe não pode continuar com isto indefinidamente - referiu Mags. - Eles não possuem uma reserva inesgotável de aviões e pilotos. Se os nossos bombardeiros continuarem a destruir a indústria alemã, acabarão por afectá-la.
Bets respondeu: - Entretanto, mulheres e crianças alemãs inocentes sofrem tanto quanto nós.
- Eu sei, mas a guerra é mesmo assim - retorquiu Mags.
Hermia recordou a sua conversa com Digby Hoare. Pessoas como Mags e Bets imaginavam que a campanha de bombardeamentos britânicos estava a dizimar os nazis. Felizmente ignoravam que metade dos bombardeiros era abatida. Se as pessoas soubessem a verdade, seriam capazes de desistir.
Mags começou a contar uma história sobre o salvamento de um cão de um edifício em chamas, e Hermia escutou apenas com um ouvido, pensando em Digby. Se Freya era uma máquina, e os alemães a estavam a usá-la para defender as suas fronteiras, muito possivelmente encontrar-se-ia na Dinamarca. Poderia fazer algo para investigar? Digby afirmara que a máquina conseguia emitir um certo tipo de raio, ou vibrações ópticas, ou ondas electromagnéticas. Tais emissões poderiam ser detectadas. Talvez os seus Guardas-Nocturnos conseguissem fazer algo.
Começou a sentir-se entusiasmada com a ideia. Podia enviar uma mensagem aos Guardas-Nocturnos. Mas, primeiro, necessitava de mais informações. Iria começar a trabalhar no assunto naquela noite, decidiu, assim que acompanhasse Mags e Bets ao comboio.
Começou a sentir-se ansiosa por vê-las pelas costas. - Mais bolo, mãe? - perguntou.
Jansborg Skole tinha trezentos anos e orgulhava-se disso.
Inicialmente, o colégio consistira numa igreja e numa casa onde os rapazes comiam, dormiam e tinham aulas. Agora era um conjunto de edifícios antigos e novos de tijolo vermelho. A biblioteca, a dada altura uma das melhores na Dinamarca, situava-se num edifício separado, tão grande quanto a igreja. Havia laboratórios de ciência, modernos dormitórios, uma enfermaria e um ginásio num celeiro adaptado.
Harald Olufsen dirigia-se do refeitório para o ginásio. Era meio-dia, e os rapazes tinham acabado de almoçar - uma fatia de pão com carne de porco fria e pickles, preparada por cada um, a mesma refeição que era servida todas as quartas-feiras ao longo dos sete anos em que frequentara o colégio.
Achava uma estupidez sentir orgulho por a instituição ser antiga. Quando os professores falavam com reverência da história do colégio, ele lembrava-se do que as mulheres dos velhos pescadores em Sande costumavam dizer: "Já conto para lá de setenta", com um sorriso tímido, como se fosse uma proeza.
Quando passou pela casa do director, a mulher dele saiu e sorriu-lhe. - Bom dia, Mia - cumprimentou educadamente. O director era sempre tratado por Heis, a palavra em grego antigo para o número um, por isso a mulher dele era Mia, a forma feminina para o mesmo termo grego. O colégio deixara de leccionar grego havia cinco anos, mas as tradições demoravam a perder-se.
- Alguma novidade, Harald? - perguntou ela.
Harald tinha um rádio de fabrico caseiro que conseguia sintonizar a BBC. - Os rebeldes iraquianos foram derrotados - informou. - Os britânicos entraram em Bagdade.
- Uma vitória britânica - comentou ela. - Sempre é uma mudança. Mia era uma mulher simples, com um rosto rústico e cabelo castanho sem vida, vestindo sempre roupas informes, mas era uma das duas únicas mulheres no colégio, e os rapazes especulavam constantemente sobre qual o seu aspecto nua. Harald duvidava de que alguma vez deixasse de sentir uma obsessão pelo sexo. Teoricamente, acreditava que depois de dormir com a esposa todas as noites durante anos, uma pessoa se acostumasse, e chegasse mesmo a fartar-se, mas não conseguia simplesmente imaginá-lo.
A aula seguinte consistiria em duas horas de matemática, mas naquele dia havia uma visita. Era Svend Agger, um antigo aluno do colégio que agora representava a sua terra natal no Rigsdag, o parlamento nacional. Todo o colégio ia ouvi-lo falar no ginásio, o único espaço suficientemente grande para conter a totalidade dos cento e vinte alunos. Harald preferia ter tido matemática.
Não conseguia recordar o momento exacto em que os estudos se haviam tornado interessantes. Em rapazito, encarara cada aula como uma enfurecedora distracção de assuntos mais importantes como represar rios e construir casas em árvores. Por volta dos catorze anos, quase sem se aperceber, começara a achar a física e a química mais interessantes do que brincar nas matas. Ficara encantado ao descobrir que o inventor da física quântica fora um cientista dinamarquês, Niels Bohr. A interpretação que Bohr fez da tabela periódica dos elementos, explicando as reacções químicas através da estrutura atómica dos elementos intervenientes, afigurou-se a Harald uma revelação divina, um relato fundamental e profundamente satisfatório sobre a constituição do universo. Venerava Bohr da mesma forma que os outros rapazes adoravam Kaj Hansen - "Little Kaj" - o herói do futebol que jogava como avançado-centro na equipa conhecida como B93 Kobenhavn. Harald candidatara-se ao curso de física na Universidade de Copenhaga, onde Bohr era director do Instituto de Física Teórica.
O ensino era caro. Felizmente, o avô de Harald, vendo o seu próprio filho abraçar uma profissão que o condenaria a uma vida de pobreza, prouvera à educação dos netos. O seu legado dera para Arne e Harald poderem andar em Jansborg Skole. Iria também financiar o curso universitário de Harald.
Entrou no ginásio. Os rapazes mais novos tinham disposto bancos em filas ordenadas. Harald sentou-se atrás, ao lado de Josef Duchwitz. Josef era muito baixo, e o seu apelido soava como a palavra inglesa "pato"(1), por isso fora alcunhado de Anaticula, a palavra latina para patinho. Com o passar dos anos, fora abreviada para Tik. Os dois rapazes tinham antecedentes muito diferentes - Tik provinha de uma abastada família judia -, no entanto, haviam sido amigos durante o tempo de frequência do colégio.
Alguns momentos depois, Mads Kirke sentou-se ao lado de Harald. Mads andava no mesmo ano. Provinha de uma distinta família militar: o avô fora general, o falecido pai ministro da Defesa nos anos 30. O seu primo Poul era piloto, juntamente com Arne, na escola de voo.
Os três amigos eram alunos de ciências. Andavam normalmente juntos, e eram diferentes de uma forma cómica - Harald alto e louro, Tik pequeno e moreno, Mads ruivo e sardento -, por isso, quando um espirituoso professor de inglês se lhes referira como os Três Estarolas, a alcunha pegara.
Heis, o director, entrou acompanhado da visita e, por cortesia, os rapazes levantaram-se. Heis era alto e magro, com óculos empoleirados na cana de um nariz adunco. Estivera dez anos no exército, mas era fácil ver por que mudara para o ensino. Sendo um homem de modos brandos, quase parecia pedir desculpa por ocupar um cargo de autoridade. Despertava simpatia e não temor. Os rapazes obedeciam-lhe porque não queriam ferir a sua susceptibilidade.
Quando se voltaram a sentar, Heis apresentou o deputado parlamentar, um homem pequeno tão apagado que qualquer pessoa teria julgado que era ele o professor e Heis, o ilustre convidado. Agger principiou a falar sobre a ocupação alemã.
Harald recordou o dia em que começara, havia catorze meses. Acordara a meio da noite com os aviões a sobrevoarem ruidosamente as casas. Os Três Estarolas haviam ido para o telhado do dormitório para observarem mas, depois de terem passado cerca de uma dúzia de aviões, não aconteceu mais nada, de modo que voltaram para a cama.
Não soubera mais nada senão de manhã. Estava a lavar os dentes na casa de banho comum quando entrou um professor a correr e disse:
(1) No original, duck. (NT)
"Os alemães desembarcaram!" Após o pequeno-almoço, às oito horas, quando os rapazes se reuniram no ginásio para o hino matinal e os comunicados, o director deu-lhes a notícia. "Vão aos vossos quartos e destruam tudo o que possa indicar oposição aos nazis ou simpatia pela Grã-Bretanha", pedira-lhes. Harald retirara da parede o seu póster preferido de um biplano Tiger Motb com as marcas circulares da RAF nas asas.
Mais tarde naquele dia - uma terça-feira -, os rapazes mais velhos tinham sido destacados para encher sacos de areia e levá-los para a igreja a fim de cobrirem as valiosíssimas esculturas antigas e os sarcófagos. Por detrás do altar ficava o túmulo do fundador do colégio, a sua réplica em pedra, vestido com armadura medieval e uma protecção dos genitais extraordinariamente grande. Harald causara grande divertimento colocando um saco de areia em cima da saliência. Heis não apreciara a brincadeira, e o castigo de Harald fora passar a tarde a mudar os quadros para a cripta por uma questão de segurança.
Todas as precauções haviam sido desnecessárias. O colégio situava-se numa aldeia nos arredores de Copenhaga, e decorreu um ano antes de verem quaisquer alemães. Nunca houvera nenhum bombardeamento ou sequer disparos.
A Dinamarca rendera-se em menos de vinte e quatro horas. - Os acontecimentos subsequentes provaram a sabedoria daquela decisão - afirmou o orador com uma irritante presunção, e gerou-se um sussurro de discordância quando os rapazes se agitaram desconfortavelmente nos bancos e fizeram comentários em voz baixa.
- O nosso rei continua no trono - prosseguiu Agger. Ao lado de Harald, Mads resfolegou de repulsa. Harald partilhava da contrariedade de Mads. O Rei Christian X saía a cavalo a maior parte dos dias, mostrando-se ao povo nas ruas de Copenhaga, mas isso parecia um gesto vão.
- A presença alemã tem sido, de um modo geral, benigna - continuou o orador. - A Dinamarca soube provar que uma perda parcial da independência, mercê das exigências da guerra, não tem forçosamente de conduzir a provações e conflitos desnecessários. A lição, para rapazes como vocês, é que pode existir muito mais honra na submissão e na obediência do que na rebelião precipitada. - Sentou-se.
Heis aplaudiu cortesmente, e os rapazes seguiram o seu exemplo, conquanto sem grande entusiasmo. Se o director tivesse sabido avaliar mais argutamente o estado de espírito da assistência, teria dado por terminada a sessão; mas sorriu e disse: - Então, rapazes, algumas perguntas ao nosso convidado?
Mads pôs-se em pé num instante. - Senhor, a Noruega foi invadida no mesmo dia que a Dinamarca, mas os Noruegueses lutaram durante dois meses. Isso não faz de nós uns cobardes? - O tom foi escrupulosamente cortês, mas a pergunta constituía um desafio, e gerou-se um burburinho de concordância entre os rapazes.
- Uma perspectiva ingénua - respondeu Agger. O seu tom depreciativo irritou Harald.
Heis interveio. - A Noruega é uma terra de montanhas e fiordes, difícil de conquistar - referiu, aplicando a sua perícia militar. - A Dinamarca é um país plano com um bom sistema viário... impossível de defender de um enorme exército motorizado.
Agger acrescentou: - Resistir só teria provocado derramamento de sangue desnecessário, e o resultado final não teria sido diferente.
Mads interpelou-o grosseiramente: - Só que poderíamos andar de cabeça bem erguida, em vez de a baixarmos de vergonha. - Pareceu a Harald que poderia ter ouvido aquilo em casa, vindo da boca dos seus parentes militares.
Agger ruborizou-se. - A melhor parte do valor é a discrição, como escreveu Shakespeare.
Mads retrucou: - De facto, senhor, quem o afirmou foi Falstaff,(1) o mais famoso cobarde da literatura mundial. - Os rapazes riram-se e aplaudiram.
- Então, então, Kirke - interveio Heis, delicadamente. - Sei que este assunto te incomoda, mas não há necessidade de indelicadeza. - Relanceou a sala e apontou para um dos rapazes mais novos. - Sim, Borr.
- Senhor, não acha que a filosofia do orgulho nacional e da pureza da raça de Herr Hitler poderia ser benéfica se adoptada aqui na Dinamarca? - Woldemar Borr era filho de um destacado nazi dinamarquês.
- Alguns elementos, talvez - disse Agger. - Mas a Alemanha e a Dinamarca são países diferentes. - Aquilo era pura falsidade, pensou Harald, furioso. Por que era que o homem não tinha a coragem de afirmar que a perseguição racial estava errada?
Heis interveio em tom lamuriento: - Algum rapaz gostaria, talvez, de interrogar Mr. Agger sobre o seu trabalho quotidiano como membro do Rigsdag?
Tik levantou-se. O tom enfatuado de Agger também o irritara. - Não se sente uma marioneta? - inquiriu. - Afinal, quem nos governa realmente são os alemães. O senhor só está a fingir.
- A nossa nação continua a ser governada pelo parlamento dinamarquês - replicou Agger.
(1) Personagem dissoluto inventado por Shakespeare para as peças Henrique IV (primeira e segunda partes) e As Alegres Comadres de Windsor. (NT)
Tik murmurou. - Sim, para poder conservar o seu emprego. - Os rapazes mais próximos ouviram-no e riram-se.
- Os partidos políticos subsistem, até os comunistas - prosseguiu Agger. - Temos a nossa própria polícia, e as nossas forças armadas.
- Mas assim que o Rigsdag fizer algo que os alemães condenem, será encerrado, e a polícia e os militares, desarmados - argumentou Tik. - Por isso, está a alinhar numa farsa.
Heis começou a dar mostras de contrariedade. - Não te esqueças das boas maneiras, por favor, Duchwitz - admoestou em tom impaciente.
- Não tem importância, Heis - afirmou Agger. - Agrada-me um debate animado. Se o Duchwitz acha o nosso parlamento inútil, deveria comparar as nossas circunstâncias com as que predominam em França. Em virtude da nossa política de cooperação com os alemães, a vida é muito melhor, para o povo dinamarquês em geral, do que poderia ser.
Harald já ouvira o suficiente. Levantou-se e interveio sem esperar pela permissão de Heis. - E se os nazis vierem buscar o Duchwitz? - indagou. - Nessa altura, aconselhará também a cooperação amigável?
- E por que haveriam de vir buscar o Duchwitz?
- Pela mesma razão que foram buscar o meu tio em Hamburgo: porque ele é judeu.
Alguns dos rapazes olharam à sua volta com interesse. Provavelmente não se tinham apercebido de que Tik era judeu. A família Duchwitz não era religiosa, e Tik ia aos serviços religiosos na antiga igreja de tijolo vermelho, tal como os demais.
Agger deu mostras de irritação pela primeira vez. - As forças de ocupação demonstraram completa tolerância pelos judeus dinamarqueses.
- Por enquanto - argumentou Harald. - E se resolverem mudar de ideias? Suponha que decidem que o Tik é tão judeu como o meu tio Joachim? O que nos aconselha então? Deveremos afastar-nos quando eles o vierem buscar? Ou deveríamos estar já a organizar um movimento de Resistência para nos prepararmos para esse dia?
- O melhor que tens a fazer é certificares-te de que nunca te vês confrontado com semelhante decisão, apoiando a política de cooperação com a potência ocupante.
A fuga hábil à resposta enfureceu Harald. - E se não resultar? - insistiu. - Por que não responde à pergunta? O que faremos quando os nazis vierem buscar os nossos amigos?
Heis interveio. - Estás a colocar o que se chama uma pergunta hipotética, Olufsen - advertiu. - Os homens nos cargos públicos preferem não se meter em sarilhos.
- A questão que se coloca é até onde irá esta política de cooperação - afirmou Harald, ao rubro. - E não haverá tempo para debate quando eles vierem bater à sua porta a meio da noite, Heis.
Por um momento, Heis pareceu prestes a admoestar Harald pela sua falta de educação, mas acabou por responder calmamente. - Colocaste uma questão interessante, e Mr. Agger respondeu-lhe com bastante minúcia - disse. - Agora, acho que já tivemos um bom debate, e está na hora de voltarmos às nossas aulas. Mas, primeiro, vamos agradecer ao nosso convidado pelo tempo que disponibilizou da sua vida ocupada para nos vir visitar. - Levantou as mãos para pedir uma salva de palmas.
Harald impediu-o. - Obrigue-o a responder à pergunta! - gritou. - Deveríamos ter um movimento de Resistência, ou deixar que os nazis façam tudo o que lhes apetecer? Por amor de Deus, haverá aulas mais importantes do que esta?
Fez-se silêncio na sala. Era permitido discutir com os docentes, dentro do razoável, mas Harald pisara o risco e desafiara.
- Acho preferível retirares-te - ordenou Heis. - Sai, e falarei contigo mais tarde.
Harald ficou furioso com aquelas palavras. A ferver de frustração, levantou-se. A sala permaneceu silenciosa enquanto todos os rapazes o viam encaminhar-se para a porta. Sabia que devia ter saído discretamente, mas foi mais forte do que ele. Chegou à porta e apontou um dedo de acusação a Heis. - O senhor não poderá mandar a Gestapo abandonar o raio da sala! - insurgiu-se.
Depois saiu e bateu com a porta.
O despertador de Peter Flemming tocou às cinco e meia da manhã. Silenciou-o, acendeu a luz e sentou-se direito na cama. Inge estava deitada de costas, de olhos abertos, a fitar o tecto, tão inexpressiva como um cadáver. Olhou-a por um momento, depois levantou-se.
Dirigiu-se à pequena cozinha no apartamento de ambos em Copenhaga e ligou o rádio. Um repórter dinamarquês lia uma declaração sentimental dos alemães sobre a morte do almirante Lutjens, que se afundara com o Bismark havia dez dias. Peter colocou uma pequena panela de papas de aveia ao lume, depois preparou um tabuleiro. Barrou uma fatia de pão de centeio com manteiga e preparou um sucedâneo de café.
Sentia-se optimista e, um momento depois, recordou o motivo. Na véspera houvera um novo desenvolvimento no caso em que estava a trabalhar.
Era detective-inspector na unidade de segurança, uma secção do departamento de investigação criminal de Copenhaga que tinha por missão vigiar os organizadores sindicais, os comunistas, os estrangeiros e outros potenciais agitadores. O seu superior hierárquico, o chefe do departamento, era o superintendente Frederik Juel, inteligente, mas preguiçoso. Educado no famoso Jansborg Skole, Juel gostava do provérbio latino Quieta non movere, "Não acordes cão que dorme". Descendia de um herói da história naval dinamarquesa, mas havia muito que a garra se perdera na sua árvore genealógica.
Nos últimos catorze meses o trabalho deles aumentara, à medida que os opositores ao domínio alemão iam engrossando a lista de vigilância do departamento.
Até ao momento, o único sinal exterior de resistência fora o aparecimento de jornais clandestinos como o Realidade, aquele que o rapaz Olufsen deixara cair. Juel acreditava que os jornais ilegais eram inofensivos, se não mesmo benéficos como válvula de segurança, e recusava-se a perseguir os editores. Esta atitude enfurecia Peter. Afigurava-se-lhe uma loucura deixar os criminosos à vontade, para prosseguirem com os seus delitos.
Os alemães não apreciavam muito a atitude negligente de Juel, mas até ao momento não tinham visto necessidade de o confrontar. O agente de ligação de Juel com a potência ocupante era o general Walter Braun, um soldado de carreira que perdera um pulmão na batalha de França. O objectivo de Braun era manter a Dinamarca tranquila custasse o que custasse. Só afastaria Juel se a tal se visse obrigado.
Recentemente, Peter soubera que os exemplares do Realidade eram enviados clandestinamente para a Suécia. Até ali, vira-se obrigado a acatar a regra de não interferência do chefe, mas esperava que a complacência de Juel ficasse abalada com a notícia de que os jornais estavam a conseguir sair do país. Na noite anterior, um detective sueco e amigo pessoal de Peter telefonara a dizer que julgava que o jornal era levado num voo da Lufthansa de Berlim para Estocolmo que fazia escala em Copenhaga. Fora este desenvolvimento que estivera na origem da sensação de excitação de Peter ao acordar. Podia estar à beira de uma vitória.
Quando as papas de aveia ficaram prontas, adicionou-lhes leite e açúcar, depois levou o tabuleiro para o quarto.
Ajudou Inge a sentar-se. Provou as papas de aveia para se certificar de que não estavam demasiado quentes, depois começou a dar-lhas com uma colher.
Havia um ano, mesmo antes de aplicadas as restrições aos combustíveis, Peter e Inge tinham ido de carro até à praia quando um homem jovem num carro desportivo colidira com eles. Peter partira ambas as pernas e recuperara rapidamente. Inge fracturara o crânio, e nunca mais fora a mesma.
O outro condutor, Finn Jonk, filho de um conhecido professor universitário, fora projectado e aterrara num arbusto, ileso.
Não tinha carta de condução - fora apreendida pelo tribunal depois de um anterior acidente - e estava embriagado. Mas a família Jonk contratara um dos melhores advogados, que conseguira adiar o julgamento por um ano, pelo que Finn ainda não fora castigado por ter destruído a mente de Inge. A tragédia pessoal, para Inge e Peter, era também um exemplo da forma vergonhosa como os crimes podiam ficar impunes na sociedade moderna. Podiam criticar à vontade os nazis, mas felizmente eram duros com os criminosos.
Depois de Inge tomar o pequeno-almoço, Peter levou-a à casa de banho, a seguir lavou-a. Sempre fora escrupulosamente metódica e asseada. Era uma das coisas que adorava nela. Era especialmente asseada com o sexo, fazendo sempre cuidadosamente a higiene depois - algo que ele apreciava. Nem todas as raparigas eram assim. Uma mulher com quem dormira, uma cantora de um clube nocturno que conhecera durante um ataque aéreo e com quem tivera um breve romance, opusera-se a que ele se lavasse depois do sexo, dizendo que não era romântico.
Inge não mostrou qualquer reacção enquanto lhe dava banho. Aprendera a ser igualmente impávido, mesmo quando tocava nas partes mais íntimas do corpo dela. Enxugou a sua pele macia com um toalhão, a seguir vestiu-a. A parte mais difícil era calçar-lhe as meias. Primeiro enrolava a meia, deixando apenas a biqueira saída. Depois enfiava-a cuidadosamente no pé e desenrolava-a pela barriga da perna acima até ao joelho, prendendo finalmente a parte superior às molas do cinto de ligas. A princípio, fazia sempre malhas nas meias, mas era um homem persistente, e conseguia ser muito paciente quando se propunha concretizar algo; acabara por se tornar exímio.
Ajudou-a a enfiar um alegre vestido de algodão amarelo, depois colocou-lhe um relógio de pulso com bracelete de ouro. Ela não sabia ver as horas, mas às vezes tinha a impressão de que quase sorria quando as jóias brilhavam nos seus pulsos.
Quando a penteava, olhavam ambos para o reflexo dela no espelho. Era uma loura bonita e pálida, e antes do acidente tivera um sorriso um pouco provocante e uma maneira tímida de pestanejar. Agora o seu rosto era inexpressivo.
Na visita de Pentecostes a Sande, o pai de Peter tentara persuadi-lo a colocar Inge numa casa de repouso particular. Peter não tinha maneira de pagar as mensalidades, mas Axel estava disposto a ajudar. Disse que queria que Peter fosse livre, conquanto, na verdade, estivesse desesperado por um neto a quem fosse dado o seu nome. Todavia, Peter sentia que era sua obrigação cuidar da mulher. Para ele, o dever era a mais importante das obrigações de um homem. Se se eximisse, perderia o respeito por si próprio.
Levou Inge para a sala de estar e sentou-a junto à janela. Deixou o rádio a tocar música com o volume baixo, depois regressou à casa de banho. O rosto no espelho da barba era regular e bem proporcionado. Inge costumava dizer que ele parecia uma estrela de cinema. Do acidente para cá, notara uns quantos pêlos brancos na barba ruiva crescida, e havia rugas de cansaço à volta dos olhos castanho-alaranjados. Mas apresentava uma expressão altiva no porte da cabeça e uma probidade imutável na linha recta dos lábios. Depois de fazer a barba, colocou a gravata e fixou o coldre de usar ao ombro com o modelo tradicional da pistola Walter de 7.65mm, a versão "PPK" mais pequena, com sete balas, concebida como arma oculta para detectives. Dirigiu-se seguidamente à cozinha e comeu três fatias de pão, guardando a parca manteiga para Inge. A enfermeira deveria chegar às oito horas.
Entre as oito e as oito e cinco o humor de Peter alterou-se. Começou a andar de um lado para o outro no pequeno hall de entrada do apartamento. Acendeu um cigarro, depois apagou-o impacientemente. Olhava para o relógio de poucos em poucos segundos.
Entre as oito e cinco e as oito e dez ficou furioso. Já não lhe bastava o que tinha de aguentar? Combinava a assistência à mulher dependente com o trabalho exigente e altamente responsável de detective da polícia. A enfermeira não tinha o direito de lhe falhar.
Quando ela tocou à campainha às oito e um quarto, escancarou a porta e gritou: - Como se atreve a chegar atrasada?
Era uma rapariga rechonchuda de dezanove anos, vestindo um uniforme impecavelmente engomado, o cabelo bem arranjado por debaixo da touca de enfermeira, o rosto redondo levemente maquilhado. Ficara chocada com a raiva dele. - Peço desculpa - disse. Desviou-se para a deixar entrar. Sentiu uma forte tentação de lhe bater, e obviamente que ela a sentiu, pois passou rapidamente por ele, toda nervosa.
Seguiu-a até à sala de estar. - Teve tempo para arranjar o cabelo e para se maquilhar - comentou, furiosamente.
- Já pedi desculpa.
- Não percebe que tenho um trabalho muito exigente? Você não tem mais nenhuma preocupação importante senão passear-se com rapazes no Jardim Tivoli; mesmo assim, nunca é capaz de chegar a horas ao trabalho!
Olhou nervosamente para a arma dele no coldre de usar ao ombro, como se receasse que ele a pudesse alvejar. - O autocarro atrasou-se - respondeu, em voz trémula.
- Apanhe um autocarro mais cedo, sua vaca preguiçosa!
- Oh! - A rapariga parecia à beira das lágrimas.
Peter virou costas, reprimindo a vontade de a esbofetear no rosto. Se ela se fosse embora, a sua situação pioraria consideravelmente. Vestiu o casaco e dirigiu-se para a porta. - Nunca mais volte a chegar atrasada! - gritou-lhe. Depois saiu do apartamento.
No exterior do prédio, saltou para um eléctrico que se dirigia para o centro da cidade. Acendeu um cigarro e fumou-o em baforadas rápidas, procurando acalmar-se. Continuava furioso quando se apeou junto a Politigaarden, a sede ousadamente moderna da polícia, mas a visão do edifício acalmou-o: a sua forma atarracada transmitia uma tranquilizante impressão de força, a pedra ofuscantemente branca denotava pureza, e as filas de janelas idênticas simbolizavam a ordem e a previsibilidade da justiça. Atravessou o vestíbulo escuro. Escondido no meio do edifício havia um enorme pátio aberto circular, com um redondel de colunas duplas a assinalar um caminho coberto, como os claustros de um mosteiro. Peter atravessou o pátio e entrou na sua secção.
Foi saudado pela agente detective Tilde Jespersen, uma das poucas mulheres na polícia de Copenhaga. Jovem viúva de um polícia, era dura e inteligente como qualquer agente no departamento. Peter usava-a com frequência para trabalho de vigilância, um papel em que uma mulher tinha menos probabilidades de levantar suspeitas. Era bastante atraente, com olhos azuis e cabelo louro encaracolado e o tipo de figura pequena e torneada a que as mulheres chamariam demasiado gorda mas os homens achavam simplesmente perfeita. - O autocarro atrasou-se?
- perguntou com ar compadecido.
- Não. A enfermeira da Inge chegou um quarto de hora atrasada. Uma desmiolada irresponsável.
- Isso é que é pior.
- Aconteceu alguma coisa?
- Receio que sim. O general Braun está com o Juel. Querem falar contigo assim que aqui chegares.
Já era azar: uma visita de Braun logo no dia em que Peter chegava atrasado. - Maldita enfermeira - murmurou e dirigiu-se para o gabinete de Juel.
O porte direito de Juel e os olhos azuis penetrantes teriam combinado com o seu homónimo naval. Falava alemão por deferência para com Braun. Todos os dinamarqueses instruídos falavam fluentemente alemão, e inglês também. - Onde se meteu, Flemming? - dirigiu-se a Peter. - Estávamos à espera.
- Peço desculpa - respondeu Peter na mesma língua. Não justificou o motivo do seu atraso: as desculpas não dignificavam.
O general Braun rondaria os quarenta anos. Provavelmente já fora atraente, mas a explosão que lhe destruíra o pulmão levara-lhe também parte do maxilar, e o lado direito do seu rosto ficara deformado. Talvez em virtude do seu aspecto danificado, usava sempre um uniforme de oficial imaculado, juntamente com botas altas e pistola no coldre.
Era cortês e comedido na conversação. A sua voz era um quase sussurro suave. - Veja isto, se faz favor, inspector Flemming - disse ele. Espalhara diversos jornais em cima da secretária de Juel, todos abertos para mostrar uma notícia em particular. Vinha a mesma história em cada jornal, reparou Peter: uma referência à escassez de manteiga na Dinamarca, culpando os alemães por a açambarcarem. Os jornais eram o Toronto Globe and Mail, o Washington Post e o Los Angeles Times. Em cima da secretária encontrava-se também o jornal dinamarquês clandestino Realidade, mal impresso e com aspecto amador ao pé das grandes publicações, mas contendo a história original que os outros haviam copiado. Fora uma pequena vitória da propaganda.
Juel disse: - Conhecemos a maior parte das pessoas que produzem jornais de fabrico artesanal. - Falou num tom suave de segurança que irritou Peter. Poderia imaginar-se, pelos seus modos, que fora ele, e não o seu famoso antepassado, que derrotara a marinha sueca na batalha de Koge Bay. - Claro que podíamos detê-los todos. Mas preferia deixá-los em paz e ficar de olho neles. Assim, se fizerem algo grave como explodir uma ponte, saberemos quem prender.
Peter achou aquilo uma estupidez. Deveriam ser presos de imediato, para os impedir de fazer explodir pontes. Mas já antes tivera esta discussão com Juel, de modo que cerrou os dentes e não disse nada.
Braun afirmou: - Até seria aceitável, desde que as suas actividades se cingissem à Dinamarca. Mas esta história correu mundo! Berlim está furiosa. E a última coisa que queremos é um reforço da autoridade. Teríamos a maldita Gestapo a percorrer a cidade de botas altas, a provocar agitação, a meter pessoas na prisão, e sabe Deus aonde isto iria parar.
Peter ficou grato. A notícia estava a surtir o efeito pretendido. - Já estou a tratar do assunto - referiu. - Todos estes jornais americanos souberam a história através dos serviços telegráficos da Reuters, que a obtiveram em Estocolmo. Tenho a convicção de que o jornal Realidade está a ser levado clandestinamente para a Suécia.
- Excelente trabalho! - exclamou Braun.
Peter deitou um olhar furtivo a Juel, que parecia aborrecido. E tinha motivos para tal. Peter era melhor detective do que o seu chefe, e incidentes como aquele provavam-no. Havia dois anos, quando o cargo de chefe da unidade de segurança ficara vago, Peter candidatara-se ao lugar, mas Juel ficara com ele. Peter era alguns anos mais novo do que Juel, mas tinha mais casos concluídos com êxito em seu abono. No entanto, Juel pertencia a uma elite metropolitana pretensiosa que andara toda nos mesmos colégios, e Peter estava convencido de que tinham conspirado para ficar com os melhores lugares para eles e afastar os de fora com maior talento.
Juel disse então: - Mas como pode o jornal sair clandestinamente? Todas as encomendas são inspeccionadas pelos censores.
Peter hesitou. Quisera ter a confirmação antes de revelar as suas desconfianças. A sua informação da Suécia podia estar errada. Todavia, Braun encontrava-se mesmo ali à sua frente, furioso e impaciente, e aquele não era o momento para se equivocar. - Tive uma indicação. A noite passada falei com um detective amigo em Estocolmo que andou a fazer discretamente perguntas nos serviços telegráficos. Calcula que o jornal venha no voo da Lufthansa de Berlim para Estocolmo, que faz escala aqui.
Braun anuiu, todo entusiasmado, e disse: - Por conseguinte, se revistássemos todos os passageiros que embarcam aqui em Copenhaga, encontraríamos a última edição.
- Sim.
- O voo parte hoje?
O coração de Peter caiu-lhe aos pés. Não era assim que trabalhava. Preferia verificar a informação antes de fazer uma busca precipitada. Mas ficou grato pela atitude agressiva de Braun: um agradável contraste com a indolência e a cautela de Juel. De qualquer forma, não podia conter a avalancha de avidez de Braun. - Sim, dentro de algumas horas - referiu, ocultando a sua apreensão.
- Então, vamos agir!
A pressa era inimiga da perfeição. Peter não podia deixar que Braun se encarregasse da operação. - Posso fazer uma sugestão, general?
- Com certeza.
- Temos de agir discretamente, para evitarmos alertar o nosso culpado. Vamos reunir uma equipa de detectives dinamarqueses e oficiais alemães, mas mantemo-los aqui na sede até ao último minuto. Deixamos os passageiros reunir-se para o voo antes de avançarmos. Deslocar-me-ei sozinho ao aeródromo de Kastrup para tomar discretamente providências. Quando os passageiros tiverem despachado a bagagem, depois de o avião ter aterrado e reabastecido, e eles se prepararem para embarcar, será demasiado tarde para algum tentar passar despercebido... e nessa altura poderemos atacar.
Braun sorriu com ar de entendido. - Receia que uma quantidade de alemães a marchar possa denunciar a manobra.
- De modo algum, senhor - redarguiu Peter, de rosto muito sério. Quando os ocupantes troçavam de si mesmos, não era prudente alinhar. - Será importante o senhor e os seus homens acompanharem-nos, não vá ser necessário interrogar cidadãos alemães.
O rosto de Braun crispou-se, ao ver rejeitado o seu gracejo auto-depreciativo. - Precisamente - disse. Dirigiu-se para a porta. - Ligue para o meu gabinete quando a sua equipa estiver pronta para partir. - Saiu.
Peter ficou aliviado. Pelo menos recuperara o controlo. A sua única preocupação era que o entusiasmo de Braun pudesse tê-lo obrigado a agir antes de tempo.
- Parabéns, por ter descoberto a rota clandestina - comentou Juel em tom condescendente. - Excelente trabalho de detective. Mas teria sido aconselhável contar-me antes de o ter feito a Braun.
- Peço desculpa, senhor - respondeu Peter. Efectivamente, não fora possível: Juel já se tinha ido embora quando o detective sueco lhe telefonara na noite da véspera. Mas Peter não se justificou.
- Está bem - disse Juel. - Reúna uma brigada e mande os homens vir ter comigo para serem instruídos. Depois vá para o aeródromo e telefone-me quando os passageiros estiverem prontos para embarcar.
Peter abandonou o gabinete de Juel e regressou à secretária de Tilde no edifício principal. A detective vestia um casaco, uma blusa e uma saia em diferentes tons de azul-claro, como uma rapariga numa pintura francesa. - Que tal correu? - perguntou.
- Cheguei atrasado, mas consegui compensar.
- Ainda bem.
- Vai haver uma busca policial ao aeródromo esta manhã - informou-a. Sabia quais os detectives que queria consigo. - Vou levar o Bent Conrad, o Peter Dresler e o Knut Ellegard. - O sargento detective Conrad era entusiasticamente pró-alemão, os agentes detectives Dresler e Ellegard não tinham afinidades políticas nem patrióticas, mas eram polícias conscientes que acatavam as ordens e faziam um trabalho consciencioso. - E gostaria também que me acompanhasses, para o caso de ser preciso revistar mulheres suspeitas.
- Claro.
- O Juel irá instruí-los a todos. Eu vou andando para Kastrup. - Peter dirigiu-se para a porta, depois virou-se. - Como está o pequeno Stig? - Tilde tinha um filho de seis anos, que ficava com a avó durante o dia.
Ela sorriu. - Está óptimo. Aprende a ler muito depressa.
- Um dia há-de ser chefe da polícia.
O rosto dela ensombrou-se. - Não quero que ele seja polícia.
Peter anuiu. O marido de Tilde fora morto durante um tiroteio com um bando de contrabandistas. - Compreendo.
Ela acrescentou na defensiva: - Gostarias que o teu filho fizesse este trabalho?
Ele encolheu os ombros. - Não tenho filhos, e provavelmente nunca terei.
Ela deitou-lhe um olhar enigmático. - Não sabemos o que o futuro nos reserva.
- É verdade. - Virou costas. Não queria travar aquela discussão num dia movimentado. - Eu depois telefono.
- Está bem.
Peter levou um dos Buicks pretos não-identificados do departamento da polícia, recentemente equipado com rádio-transmissor. Abandonou a cidade e atravessou uma ponte para a ilha de Amager, onde se localizava o aeródromo de Kastrup. Estava um dia de sol, e da estrada conseguia ver as pessoas na praia.
Parecia um homem de negócios ou um advogado, com o seu fato conservador de riscas brancas e gravata com motivos discretos. Não usava pasta mas, para tornar a encenação mais plausível, pegara num dossier de processo, cheio de folhas tiradas de um cesto dos papéis.
Sentiu-se ansioso quando se aproximou do aeródromo. Se tivesse podido dispor de mais um ou dois dias, teria conseguido determinar se todos os voos levavam as encomendas clandestinas, ou apenas alguns. Havia uma exasperante possibilidade de não encontrar nada naquele dia, de a sua busca alertar o grupo subversivo e de o levar a escolher rota diferente. E depois teria de começar do zero.
O aeródromo era um conjunto de edifícios baixos alinhados de um lado da única pista. Estava fortemente guardado por tropas alemãs, mas os voos civis continuavam a ser operados pela companhia aérea dinamarquesa, DDL, e pela sueca ABA, bem como pela Lufthansa.
Peter estacionou à porta do gabinete do controlador do aeroporto. Informou a secretária de que pertencia ao Departamento de Segurança da Aviação do governo e entrou imediatamente. O controlador, Chris-tian Varde, era um homem pequeno com um sorriso pronto de caixeiro viajante. Peter mostrou o seu cartão da polícia. - Vai haver um controlo especial de segurança ao voo de hoje da Lufthansa para Estocolmo - comunicou. - Foi autorizado pelo general Braun, que chegará em breve. Temos de preparar tudo.
No rosto do responsável estampou-se um ar assustado. Pegou no telefone em cima da sua secretária, mas Peter cobriu o aparelho com a sua própria mão. - Não - disse. - Por favor, não avise ninguém. Tem uma lista dos passageiros que deverão embarcar aqui no voo?
- A minha secretária tem.
- Peça-lhe que a traga.
Varde chamou a secretária e ela trouxe uma folha de papel. Entregou-a a Peter.
Peter disse: - O voo vai chegar de Berlim a horas?
- Sim. - Varde olhou para o relógio. - Deveria aterrar dentro de quarenta e cinco minutos.
Havia tempo suficiente, à justa.
Peter teria a tarefa simplificada se precisasse apenas de revistar os passageiros que entravam na Dinamarca. - Quero que comunique com o piloto e diga que ninguém estará autorizado a desembarcar hoje em Kastrup. Isto inclui passageiros e tripulação.
- Muito bem.
Observou a lista que a secretária trouxera. Continha quatro nomes: dois dinamarqueses, uma dinamarquesa e um alemão. - Onde estão os passageiros neste momento?
- Deveriam estar a fazer o check-in.
- Reúna a bagagem deles, mas não deixe que a coloquem no avião enquanto não tiver sido revistada pelos meus homens.
- Muito bem.
- Os passageiros também serão revistados antes de embarcarem. Vai entrar mais alguma carga aqui, para além dos passageiros e da sua bagagem?
- Café e sanduíches para o voo, e um saco com o correio. E o combustível, claro.
- Os alimentos terão de ser examinados, assim como o saco do correio. Um dos meus homens observará o reabastecimento.
- Óptimo.
- Agora vá enviar a mensagem ao piloto. Quando todos os passageiros tiverem feito o check-in, venha ter comigo à sala de partida. Mas, por favor, procure dar a impressão de que não se passa nada de especial.
Varde saiu.
Peter encaminhou-se para a área de partida, dando tratos ao juízo para se certificar de que pensara em tudo. Sentou-se na sala e observou discretamente os outros passageiros, curioso sobre qual deles iria acabar aquele dia na prisão e não dentro de um avião. Estavam previstos naquela manhã voos para Berlim, Hamburgo, a capital norueguesa, Oslo, a cidade meridional sueca de Malmoe e a ilha dinamarquesa de veraneio de Bornholm, por isso não podia ter a certeza de qual dos passageiros seguiria com destino a Estocolmo.
Estavam apenas duas mulheres na sala: uma jovem mãe com dois filhos, e uma mulher mais velha, magnificamente vestida, com cabelo branco. Podia ser a mulher mais velha, pensou Peter: adoptara aquele aspecto propositadamente para afastar as desconfianças.
Três dos passageiros vestiam uniformes alemães. Peter verificou a lista: o homem era um tal coronel von Schwarzkopf. Apenas um dos militares era coronel. Mas era altamente improvável que um oficial alemão levasse escondidos jornais dinamarqueses clandestinos.
Todos os outros eram homens iguais a Peter, trajados com fato e gravata, segurando os chapéus no colo.
Tentando mostrar-se enfadado mas paciente, como se aguardasse um voo, observou todos cuidadosamente, atento a sinais de que alguém tivesse pressentido o controlo de segurança iminente. Alguns passageiros pareciam nervosos, mas isso podia ser apenas por medo de andarem de avião. Peter estava mais preocupado em certificar-se de que ninguém tentava livrar-se de um embrulho, ou esconder papéis algures na sala.
Varde reapareceu. Sorrindo como se encantado por voltar a ver Peter, disse: - Todos os passageiros fizeram já o check-in.
- Óptimo. - Estava na hora de começar. - Diga-lhes que a Lufthansa gostaria de lhes oferecer um tratamento especial, depois leve-os para o seu gabinete. Irei lá ter.
Varde anuiu e encaminhou-se para o balcão da Lufthansa. Enquanto pedia aos passageiros para Estocolmo que avançassem, Peter dirigiu-se a uma cabina pública, ligou a Tilde, e disse-lhe que estava tudo a postos para a busca policial. Varde conduziu dali o grupo de quatro passageiros, e Peter seguiu o pequeno cortejo.
Quando se encontraram reunidos no gabinete de Varde, Peter revelou a sua identidade. Mostrou o distintivo da polícia ao coronel alemão. - Estou a agir sob as ordens do general Braun - explicou, a fim de evitar protestos. - Ele vem a caminho e esclarecerá tudo.
O coronel pareceu contrafeito, mas sentou-se sem tecer comentários, e os outros três passageiros, a senhora de cabelo branco e dois homens de negócios dinamarqueses, fizeram o mesmo. Peter encostou-se à parede, observando-os, atento a comportamentos indiciadores de culpa. Cada um tinha a sua bagagem de mão: a senhora idosa, uma mala grande, o oficial, uma pasta estreita com documentos, os homens de negócios, pastas maiores. Qualquer delas poderia conter exemplares de um jornal ilegal.
Varde perguntou em tom animado: - Posso oferecer-vos chá ou café enquanto esperam?
Peter viu as horas no relógio. O voo de Berlim estava a chegar. Olhou pela janela de Varde e viu-o aproximar-se para aterrar. O avião era um trimotor Junkers Ju.52 - um aparelho feio, pensou: a sua superfície era de chapa ondulada, como o telhado de um alpendre, e o terceiro motor, sobressaindo do nariz, fazia lembrar o focinho de um porco. Mas aproximava-se a uma velocidade extraordinariamente baixa para um avião tão pesado, e o efeito era bastante majestoso. Pousou no solo e deslizou até ao terminal. A porta abriu-se, e a tripulação atirou os calços que prendiam as rodas quando o avião estava estacionado.
Braun e Juel chegaram, com os quatro detectives que Peter escolhera, enquanto os passageiros retidos bebiam o sucedâneo de café do aeroporto.
Peter observou avidamente enquanto os seus detectives despejavam as pastas dos homens e a mala de mão da senhora de cabelo branco. Era bem possível que o espião tivesse o jornal ilegal na bagagem de mão, pensou. Nesse caso, o traidor poderia afirmar que o comprara para ler no avião. Não que isso lhe servisse de muito.
Mas o conteúdo das malas era inocente.
Tilde levou a senhora para outra sala a fim de ser revistada, enquanto os três suspeitos masculinos despiam a roupa exterior. Braun apalpou o coronel, e o sargento Conrad encarregou-se dos dinamarqueses. Não foi encontrado nada.
Peter estava decepcionado, mas tentou convencer-se de que o material clandestino estaria na bagagem despachada.
Os passageiros puderam regressar à sala, mas não embarcar no avião. A sua bagagem foi colocada no pátio de estacionamento no exterior do terminal: duas malas de crocodilo com ar de novas que pertenciam sem dúvida à senhora idosa, um saco de lona que provavelmente seria do coronel, uma mala de pele castanha e uma barata de cartão.
Peter estava confiante de que iria encontrar um exemplar do Realidade num deles.
Bent Conrad obteve as chaves dos passageiros. - Aposto que é a velha - murmurou a Peter. - Cá para mim, tem cara de judia.
- Limite-se a abrir a bagagem - disse Peter.
Conrad abriu todas as malas e Peter começou a revistá-las, com Juel e Braun a espreitarem por cima dos ombros dele, e uma pequena multidão que observava da janela da sala de partida. Imaginou o momento em que exibiria o jornal com ar vitorioso, agitando-o diante de todos.
As malas de crocodilo estavam cheias de roupas caras e antigas, que atirou para o chão. O saco de lona continha um estojo de barba, uma muda de roupa interior e uma camisa de uniforme impecavelmente engomada. A mala castanha de pele do homem de negócios continha documentos, assim como roupa, e Peter inspeccionou tudo com cuidado, mas não havia quaisquer jornais nem nada de suspeito.
Deixara a mala barata de cartão para o fim, calculando que o homem de negócios menos abastado fosse, dos quatro passageiros, o candidato mais provável a espião.
A mala estava meio vazia. Continha uma camisa branca e uma gravata preta, corroborando a história do homem de que ia a um funeral. Havia também uma Bíblia preta muito usada. Mas nenhum jornal.
Peter começou a perguntar-se desesperadamente se os seus receios teriam sido bem fundados, e se aquele teria sido o dia certo para a busca policial, Sentia-se furioso por ter sido obrigado a agir prematuramente. Controlou a sua fúria. Ainda não terminara.
Tirou um canivete do bolso. Enfiou a ponta no forro da bagagem dispendiosa da senhora de idade e fez um rasgão na seda branca. Ouviu Juel resfolegar de surpresa ante a súbita violência com que rasgou o forro. Para seu desânimo, não estava lá nada escondido.
Fez o mesmo à mala de pele do homem de negócios, com idêntico resultado. A mala de cartão do segundo homem de negócios não tinha forro, e Peter não viu nada na sua estrutura que pudesse servir de esconderijo.
Sentindo o seu rosto ruborizar-se de frustração e embaraço, cortou a costura na base de pele do saco de lona do coronel e apalpou o interior à procura de jornais escondidos. Não havia nada.
Levantou a cabeça e viu Braun, Juel e os detectives a fitá-lo. Os seus rostos patenteavam fascínio e um tudo-nada de medo. O seu comportamento começara a parecer um pouco tresloucado, apercebeu-se.
Queria lá saber.
Juel afirmou suavemente: - Talvez a sua informação estivesse errada, Flemming.
"E vinha-te mesmo a calhar", pensou Peter, com ressentimento. Mas ainda não terminara.
Viu que Varde o observava da sala de partida, e chamou-o. O sorriso do homem pareceu forçado ao contemplar os estragos na bagagem dos seus passageiros.
- Onde está o saco do correio? - perguntou Peter.
- No depósito de bagagem.
- Bem, do que está à espera? Traga-o para aqui, seu idiota! Varde retirou-se. Peter apontou para a bagagem com um gesto de
repulsa e disse aos seus detectives: - Livrem-se desta porcaria.
Dresler e Ellegard refizeram desajeitadamente as malas. Um bagageiro veio buscá-las para as levar para ojunkers. - Espere - ordenou Peter quando o homem começou a pegar nas malas. - Reviste-o, sargento. - Conrad revistou o homem e não encontrou nada.
Varde trouxe o saco do correio e Peter despejou as cartas no chão. Tinham todas o carimbo do censor. Havia dois envelopes suficientemente grandes para conterem um jornal, um branco e um pardo. Abriu o branco. Continha seis cópias de um documento legal, uma espécie de contrato. O envelope pardo continha um catálogo de uma fábrica de vidro de Copenhaga. Peter praguejou em voz alta.
Um carrinho com uma bandeja com sanduíches e várias cafeteiras foi apresentado a Peter para inspecção. Era a sua última esperança. Abriu cada uma das cafeteiras e despejou o café no chão. Juel murmurou algo sobre a desnecessidade de tal, mas Peter estava demasiado desesperado para se preocupar. Levantou os guardanapos de pano que cobriam a bandeja e mexeu nas sanduíches. Para seu horror, não havia nada. Em fúria, pegou na bandeja e arremessou as sanduíches ao chão, na esperança de encontrar um jornal por debaixo, mas só havia outro guardanapo de pano.
Apercebeu-se de que iria ser completamente humilhado, e isso deixou-o ainda mais irado.
- Comecem a reabastecer - disse. - Ficarei a ver.
Um camião-cisterna aproximou-se do Junkers. Os detectives apagaram os cigarros e ficaram a ver o combustível de aviação ser bombeado para dentro dos depósitos do avião. Peter sabia que era escusado, mas perseverou obstinadamente, com uma expressão rígida, porque não lhe ocorria o que mais fazer. Os passageiros observavam com curiosidade através das janelas rectangulares do Junkers, perguntando-se, certamente, por que precisavam um general alemão e seis civis de assistir ao reabastecimento.
Os depósitos ficaram cheios e os bujões foram colocados.
Peter já não tinha como adiar mais a descolagem. Enganara-se, e agora cobrir-se-ia de ridículo.
- Deixem os passageiros embarcar - disse com fúria reprimida. Virou-se para a sala de partida, na maior humilhação. Apetecia-lhe
estrangular alguém. Enterrara-se por completo diante do general Braun, assim como do superintendente Juel. A comissão de nomeações sentir-se-ia justificada por ter escolhido Juel em vez de Peter para o cargo de topo. Juel podia inclusivamente aproveitar-se daquele fiasco para transferir Peter para um outro departamento sem importância, como o Trânsito.
Ficou parado na sala, para assistir à descolagem. Juel, Braun e os detectives aguardavam com ele. Varde encontrava-se ali perto, fazendo um esforço por parecer que não acontecera nada de extraordinário. Viram os quatro passageiros irados embarcar. Os calços de madeira foram retirados das rodas pela equipa de terra e atirados para bordo; depois a porta foi fechada.
Quando o avião se afastava do local de estacionamento, Peter teve um rasgo de inspiração. - Pare o avião - ordenou a Varde.
Juel disse: - Por amor de Deus...
Varde ficou fora de si. Virou-se para o general Braun: - Senhor, os meus passageiros...
- Pare o avião! - repetiu Peter.
Varde continuou a lançar olhares de súplica a Braun. Após um momento, Braun anuiu. - Obedeça-lhe.
Varde pegou num telefone.
Juel comentou: - Meu Deus, Flemming, espero bem que valha a pena.
O avião entrou na pista, deu meia-volta e regressou ao seu lugar. A porta abriu-se, e os calços foram atirados à equipa de terra.
Peter conduziu os restantes detectives ao pátio de estacionamento. As hélices abrandaram e pararam. Dois homens de fato-macaco introduziam os calços nas rodas principais. Peter dirigiu-se a um deles. - Entregue-me esse calço.
O homem ficou assustado, mas fez o que lhe mandavam.
Peter tirou-lhe o calço. Era um simples bloco de madeira triangular com cerca de trinta centímetros - sujo, pesado e sólido.
- E o outro - disse Peter.
Curvando-se debaixo da fuselagem, o mecânico apanhou o outro calço e entregou-o.
Parecia igual, mas pesava menos. Virando-o nas mãos, Peter descobriu que uma face era uma tampa de deslizar. Abriu-a. Lá dentro estava um embrulho cuidadosamente envolto em oleado.
Peter soltou um suspiro de profunda satisfação.
O mecânico virou-se e fugiu.
- Detenham-no! - exclamou Peter, mas foi desnecessário. O homem desviou-se dos detectives e tentou passar por Tilde, imaginando sem dúvida que seria fácil dar-lhe um empurrão. Ela rodou como uma bailarina, deixou-o passar, depois estendeu o pé e pregou-lhe uma rasteira. O homem voou.
Dresler caiu-lhe em cima, levantou-o e torceu-lhe o braço atrás das costas.
Peter fez um gesto com a cabeça a Ellegard. - Prende o outro mecânico. Ele devia saber o que se passava.
Peter convergiu a sua atenção para o embrulho. Retirou o oleado. Lá dentro estavam dois exemplares do Realidade. Entregou-os a Juel.
Juel olhou para os jornais, depois para Peter.
Peter fitou-o, na expectativa, sem falar, aguardando.
Relutantemente, Juel disse: - Muito bem, Flemming.
Peter sorriu. - Só estava a cumprir o meu dever, senhor.
Juel virou costas.
Peter ordenou aos detectives: - Algemem ambos os mecânicos e levem-nos para a sede para interrogatório.
Havia algo mais no embrulho. Peter retirou um monte de papéis presos com um clipe. Estavam cheios de caracteres dactilografados em grupos de cinco letras que não faziam qualquer sentido. Olhou para eles, momentaneamente perplexo. Depois fez-se luz, e apercebeu-se de que era um triunfo muito maior do que sonhara.
Os papéis continham uma mensagem em código.
Peter entregou os papéis a Braun. - Acho que descobrimos uma rede de espiões, general.
Braun olhou para os papéis e empalideceu. - Meu Deus, tem toda a razão.
- Talvez os serviços militares alemães tenham um departamento especializado em decifrar códigos do inimigo. - Claro que têm.
- Óptimo - respondeu Peter.
Uma carruagem antiga puxada por dois cavalos veio buscar Harald Olufsen e Tik Duchwitz à estação dos caminhos"-de-ferro de Kirsten-slot, a aldeia natal de Tik. Este explicou que a carruagem estivera anos a apodrecer no celeiro, mas que fora ressuscitada quando os alemães tinham imposto restrições aos combustíveis. A carroçaria pintada de fresco reluzia, mas a parelha era constituída, obviamente, por vulgares cavalos de tiro cedidos por uma quinta. O cocheiro tinha o ar de quem se sentiria mais confortável atrás de um arado.
Harald não percebia por que o convidara Tik para o fim-de-semana. Os Três Estarolas nunca tinham estado em casa uns dos outros, apesar de há sete anos serem grandes amigos no colégio. Talvez o convite fosse uma consequência da explosão antinazi de Harald no ginásio. Talvez os pais de Tik tivessem curiosidade em conhecer o filho do pastor que tanto se preocupava com a perseguição aos judeus. Deixaram a estação atravessando uma pequena aldeia com uma igreja e uma taberna. Depois da aldeia, saíram da estrada e passaram entre dois leões de pedra maciça. Ao fundo de um acesso com oitocentos metros, Harald viu um castelo de conto de fadas com ameias e torreões.
Existiam centenas de castelos na Dinamarca. Às vezes Harald consolava-se com esse facto. Apesar de ser um país pequeno, nem sempre se rendera abjectamente aos vizinhos beligerantes. Talvez ainda houvesse uma réstia do espírito viquingue.
Alguns castelos eram monumentos históricos, conservados como museus e visitados por turistas. Muitos deles pouco mais eram do que casas senhoriais de campo ocupadas por famílias de agricultores prósperos. No meio ficava uma série de casas espectaculares propriedade das pessoas mais abastadas do país. Kirstenslot - a casa tinha o mesmo nome da aldeia - era uma delas.
Harald sentiu-se intimidado. Soubera que a família Duchwitz era abastada - o pai e o tio de Tik eram banqueiros - mas não estava preparado para aquilo. Perguntou-se, tolhido de ansiedade, se se saberia comportar adequadamente. Nada na vida do presbitério o preparara para um lugar assim.
A tarde de sábado ia já adiantada quando a carruagem os deixou junto à porta da frente, que mais fazia lembrar a de uma catedral. Harald entrou, levando a sua pequena mala. O hall de mármore estava cheio de mobiliário antigo, jarrões trabalhados, pequenas estátuas e quadros a óleo enormes. A família de Harald tendia a interpretar à letra o Segundo Mandamento que proibia fazer algo à semelhança do que existisse na terra, por isso não havia quadros no presbitério (apesar de Harald saber que ele e Arne haviam sido fotografados em bebés, pois encontrara as fotografias escondidas na gaveta das meias da mãe). A riqueza de obras de arte em casa dos Duchwitz deixou-o ligeiramente desconfortável.
Tik conduziu-o por uma enorme escadaria até um quarto. - Este é o meu quarto - anunciou. Não existiam ali velhos mestres nem jarrões chineses, apenas o tipo de coisas que um jovem de dezoito anos coleccionava: uma bola de futebol, uma fotografia de Marlene Dietrich com ar apaixonado, um clarinete e um anúncio emoldurado de um carro desportivo Lancia Aprilla, criado por Pininfarina.
Harald pegou numa fotografia emoldurada. Via-se Tik havia cerca de quatro anos com uma rapariga mais ou menos da mesma idade. - Quem é a rapariga?
- A minha irmã gémea, Karen.
- Oh. - Harald sabia, vagamente, que Tik tinha uma gémea. Era mais alta do que Tik na fotografia. Era uma foto a preto e branco, mas ela parecia ter uma tez mais clara. - Obviamente, não é gémea idêntica, mas é muito bonita.
- Os gémeos idênticos têm de ser do mesmo sexo, idiota.
- Em que colégio é que ela anda?
- No do Ballet Real da Dinamarca.
- Não sabia que tinham um colégio.
- Quem quiser entrar para o corpo de bailado tem de frequentar o colégio. Algumas raparigas começam aos cinco anos. Têm todas as aulas normais, e dança também.
- E ela gosta?
Tik encolheu os ombros. - Segundo ela, é muito trabalhoso. - Abriu uma porta e percorreu um breve corredor até uma casa de banho e um segundo quarto, mais pequeno. Harald seguiu-o. - Ficas aqui, se achares bem - sugeriu Tik. - Partilharemos a casa de banho.
- Óptimo - disse Harald, largando a mala em cima da cama.
- Podias ter um quarto maior, mas ficarias muito distante.
- Este é melhor.
- Vem cumprimentar a minha mãe.
Harald seguiu Tik pelo corredor principal do primeiro piso. Tik bateu a uma porta, entreabriu-a e disse: - Pode receber os cavalheiros de visita, mãe?
Uma voz respondeu: - Entre, Josef.
Harald seguiu Tik até ao aposento privativo da senhora Duchwitz, um quarto bonito com fotografias emolduradas em todas as superfícies planas. A mãe de Tik parecia-se com ele. Eram ambos baixos e com os olhos escuros; só que enquanto Tik era magro, a mãe era anafada. Rondaria os quarenta anos, mas o cabelo preto estava já um pouco grisalho.
Tik apresentou Harald, que lhe apertou a mão com uma pequena vénia. A senhora Duchwitz mandou-os sentar e fez-lhes perguntas sobre o colégio. Era simpática e de conversa acessível, e Harald começou a sentir-se menos apreensivo em relação ao fim-de-semana.
Um pouco depois, ela disse: - Agora vão preparar-se para o jantar. - Os rapazes regressaram ao quarto de Tik. Harald perguntou, cheio de ansiedade: - Não é preciso vestir nada de especial para o jantar, pois não?
- Casaco e gravata estão óptimos.
Era tudo o que Harald tinha. O casaco do colégio, as calças, o sobretudo e o boné, mais o equipamento de desporto, já tinham sido uma grande despesa para a família Olufsen, e era necessário substituí-los amiúde, já que ele crescia alguns centímetros todos os anos. Não tinha outras roupas, a não ser os camisolões para o Inverno e os calções para o Verão. - O que vais vestir? - perguntou a Tik.
- Um casaco preto e calças de flanela cinzentas.
Harald ficou satisfeito por ter trazido uma camisa branca lavada.
- Não tomas banho primeiro? - inquiriu Tik.
- Claro. - A ideia de ter de tomar banho antes de jantar pareceu estranha a Harald, mas disse de si para si que estava a aprender os modos dos ricos.
Lavou a cabeça na banheira, e Tik fez a barba ao mesmo tempo. - Não costumas fazer a barba duas vezes ao dia no colégio - comentou Harald.
- A mãe é muito exigente. E a minha barba é escura. Diz que pareço um mineiro se não fizer a barba ao final do dia.
Harald vestiu a camisa lavada e as calças do colégio, depois foi ao quarto para pentear o cabelo molhado no espelho por cima do toucador. Enquanto o fazia, entrou uma rapariga, sem bater. - Olá - cumprimentou. - Deves ser o Harald.
Era a rapariga da fotografia, mas a imagem a preto e branco não lhe fizera jus. Tinha pele branca e olhos verdes e o cabelo encaracolado era de um vivo tom vermelho-acobreado. Uma figura alta com um vestido verde-escuro, deslizou pelo quarto como um fantasma. Com a força desenvolta de uma atleta, pegou numa pesada cadeira pelas costas e virou-a para se sentar. Cruzou as compridas pernas e disse: - Então? És o Harald?
Ele conseguiu falar. - Sim, sou. - Teve consciência de que estava descalço. - És a irmã do Tik.
- Tik?
- É como tratamos o Josef no colégio.
- Bem, eu sou a Karen, e não tenho diminutivo. Soube da tua explosão no colégio. Acho que estás coberto de razão. Odeio os nazis. Quem se julgam eles?
Tik saiu da casa de banho embrulhado num toalhão. - Não respeitas a privacidade de um cavalheiro? - perguntou.
- Não respeito, não - retorquiu. - Quero um cocktail e recusam-se a servir-mo enquanto não estiver pelo menos um homem na sala. Acho que são os criados que estabelecem estas regras, sabes?
- Bem, vira-te só por um minuto - pediu Tik e, para surpresa de Harald, deixou cair o toalhão.
Karen ficou impávida ante a nudez do irmão e não se deu ao incómodo de desviar o olhar. - Então, como estás, meu anão de olhos pretos? - perguntou em tom amistoso, enquanto ele vestia umas cuecas brancas lavadas.
- Estou óptimo, muito embora vá ficar melhor quando terminarem os exames.
- O que farás se chumbares?
- Acho que vou trabalhar para o banco. Provavelmente o pai obrigar-me-á a começar de baixo, a encher os tinteiros dos funcionários mais novos.
Harald disse a Karen: - Ele não chumbará nos exames. Ela respondeu: - Presumo que sejas inteligente, tal como o Josef. Tik afirmou: - Muito mais inteligente, na verdade. Harald não podia negá-lo, em abono da verdade. Sentindo-se envergonhado, inquiriu: - Como é na escola de bailado?
- Um cruzamento entre seguir a carreira militar e estar na prisão. Harald olhou fascinado para Karen. Não sabia se devia considerá-la um rapaz ou uma deusa. Troçava do irmão como se fosse um miúdo. Contudo, era extraordinariamente graciosa. Ali sentada na cadeira, a agitar um braço ou com o queixo apoiado na mão, parecia estar a dançar. Todos os seus movimentos eram harmoniosos. No entanto, a sua postura não a limitava, e Harald ia observando a mudança das expressões no rosto dela, como que hipnotizado. Tinha uma boca de lábios cheios e um amplo sorriso que era ligeiramente de esguelha. Na verdade, todo o seu rosto era um pouco irregular - o nariz não era bem direito e o queixo imperfeito - mas o efeito geral era belo. Pensou, inclusivamente, que era a rapariga mais bela que jamais conhecera.
- É melhor calçares-te - sugeriu Tik a Harald.
Harald regressou ao seu quarto e acabou de se arranjar. Quando voltou, Tik estava muito elegante com um casaco preto, camisa branca e gravata escura lisa. Harald, depois de vestir o casaco, sentiu-se muito o aluno que era.
Karen seguiu na dianteira até ao andar de baixo. Entraram numa sala comprida e desarrumada com diversos sofás enormes, um piano de cauda e um cão já velho deitado num tapete diante da lareira. O ar de descontracção contrastava com o formalismo emproado do hall, apesar de também ali as paredes estarem cheias de quadros a óleo.
Uma mulher jovem de vestido preto e avental branco perguntou a Harald o que queria beber. - O mesmo que o Josef vai tomar - respondeu. Não havia álcool no presbitério. No colégio, no final do ano, os rapazes eram autorizados a beber um copo de cerveja todas as sextas-feiras à noite no convívio. Harald nunca bebera um cocktail e não sabia muito bem o que era.
Para se entreter, baixou-se e fez uma festa ao cão. Era um setter irlandês comprido e magro de pelagem arruivada salpicada de grisalho. Abriu um olho e abanou a cauda em reconhecimento cortês das atenções de Harald.
Karen disse: - É o Thor.
- O deus do trovão - comentou Harald, com um sorriso.
- Uma parvoíce, concordo, mas foi o Josef quem escolheu o nome. Tik protestou. - Tu querias chamar-lhe Ranúnculo Amarelo!
- Eu só tinha oito anos na altura.
- Também eu. Além disso, Thor não é assim tão disparatado. Ele parece um trovão quando se descuida.
Naquele momento, o pai de Tik entrou, e era tão parecido com o cão que Harald quase se riu. Era um homem alto e magro, elegantemente vestido com um casaco de veludo, um laço preto e o cabelo ruivo encaracolado já a ficar grisalho. Harald levantou-se e apertaram as mãos.
O senhor Duchwitz dirigiu-se-lhe com a mesma cortesia suave que o cão mostrara. - Muito prazer em conhecê-lo - disse em tom arrastado e indolente. - O Josef está sempre a falar-me de si.
Tik interveio: - Pronto, agora já conheces a família toda.
O senhor Duchwitz disse a Harald: - Como vão as coisas no colégio, depois da sua explosão?
- Curiosamente, não fui castigado - redarguiu Harald. - No passado, fui obrigado a cortar a relva com uma tesoura de unhas só por dizer "que parvoíce" quando algum professor fazia uma afirmação estúpida. Fui muito mais grosseiro com o senhor Agger. Mas o Heis... é o director... pregou-me apenas um sermão calmo sobre a maneira muito mais eficaz de fazer valer o meu ponto de vista se tenho mantido a calma.
- Dando ele o exemplo não se zangando consigo - referiu o senhor Duchwitz com um sorriso, e Harald apercebeu-se de que fora exactamente o que Heis fizera.
Karen interveio: - Acho que o Heis está errado. As vezes é preciso fazer chinfrim para as pessoas ouvirem.
Harald apercebeu-se de que era verdade, e desejou ter-se lembrado de dizer isso mesmo a Heis. Karen era inteligente, para além de bela. Mas queria fazer uma pergunta ao senhor Duchwitz e estava ansioso pela oportunidade de a concretizar. - O senhor não está preocupado com o que os nazis lhe possam fazer? Sabemos que os judeus são maltratados na Alemanha e na Polónia.
- Estou preocupado. Mas a Dinamarca não é a Alemanha, e os alemães parecem considerarem-nos primeiro dinamarqueses e depois judeus.
- Pelo menos por enquanto - interveio Tik.
- É verdade. Mas há também a questão das opções que se nos deparam. Acho que poderia efectuar uma viagem de negócios à Suécia, depois pedir um visto para os Estados Unidos. Tirar a família toda seria mais difícil. E veja o que teríamos de abandonar: um negócio que foi criado pelo meu bisavô, esta casa onde os meus filhos nasceram, uma colecção de quadros que levei uma vida inteira a reunir... Vendo as coisas por este prisma, parece mais simples ficar sentado e esperar que corra tudo pelo melhor.
- Até porque não somos uns meros comerciantes, por amor de Deus - interveio Karen, delicadamente. - Odeio os nazis, mas o que irão fazer à família que é dona do maior banco do país?
Harald achou aquilo uma estupidez. - Os nazis podem fazer o que lhes apetecer; já o deverias saber nesta altura - redarguiu em tom de escárnio.
- Ai sim? - perguntou Karen com frieza, e apercebeu-se de que a ofendera.
Ia explicar que o tio Joachim fora perseguido mas, naquele momento, a senhora Duchwitz reuniu-se-lhes e começaram a falar da actual produção do Ballet Real da Dinamarca, que era Les Sylphides.
- Adoro a música - afirmou Harald. Ouvira-a no rádio e conseguia tocar umas partes no piano.
- Já viu o bailado? - perguntou-lhe a senhora Duchwitz.
- Não. - Apeteceu-lhe dar a impressão de que já assistira a muitos bailados, mas que por acaso perdera aquele. Apercebeu-se depois até que ponto seria arriscado fingir diante daquela família tão bem informada. - Para ser sincero, nunca fui ao teatro - confessou.
- Que horror! - comentou Karen, com ar de superioridade.
A senhora Duchwitz lançou-lhe um olhar reprovador. - Nesse caso, a Karen tem de o levar - disse.
- Mãe, estou imensamente ocupada - protestou Karen. - Estou a preparar um papel principal!
Harald ficou magoado com a rejeição dela, mas calculou que estivesse a ser castigado por lhe falar em tom desdenhoso sobre os nazis.
Esvaziou o copo. Agradara-lhe o sabor agridoce do cocktail, e dera-lhe uma sensação descontraída de bem-estar, mas talvez o impedisse também de medir as palavras. Arrependeu-se de ter afrontado Karen. Agora que se mostrava fria, apercebeu-se do quanto começava a gostar dela.
A criada que andara a servir as bebidas anunciou que o jantar estava pronto e abriu duas portas que davam para a sala de jantar. Transpuseram-nas e sentaram-se a uma ponta de uma mesa comprida. A criada ofereceu vinho, mas Harald declinou.
Comeram sopa de legumes, bacalhau com molho branco e costeletas de borrego com o suco da carne. Havia fartura de comida, apesar do racionamento, e a senhora Duchwitz explicou que grande parte do que consumiam provinha da propriedade.
Durante a refeição, Karen não falou directamente com Harald, dirigindo a conversa ao grupo em geral. Mesmo quando lhe fazia uma pergunta, ela olhava para os outros ao responder. Harald estava descoroçoado. Era a rapariga mais encantadora que jamais conhecera e, numa questão de horas, ele conseguira já desagradar-lhe.
Depois regressaram à sala de estar e beberam café autêntico. Harald perguntou-se onde a senhora Duchwitz o compraria. O café era como ouro em pó, e certamente não o cultivaria num jardim dinamarquês.
Karen foi para o terraço fumar um cigarro e Tik explicou-lhe que os pais eram antiquados e não gostavam de ver as raparigas fumar. Harald ficou abismado com a sofisticação de uma rapariga que bebia cocktails e fumava.
Quando Karen veio para dentro, a senhora Duchwitz sentou-se ao piano e começou a virar as páginas numa estante de música. A senhora Duchwitz colocou-se por detrás dele. - Beethoven? - perguntou e ela anuiu. Tocou algumas notas, e ela começou a cantar uma canção em alemão. Harald ficou impressionado, e no fim aplaudiu.
Tik pediu: - Cante outra, mãe.
- Está bem - acedeu. - Mas depois vai ter de tocar algo.
Os pais executaram outra canção; a seguir Tik foi buscar o clarinete e tocou uma simples canção de embalar de Mozart. A senhora Duchwitz regressou ao piano e tocou uma valsa de Chopin, de Les Sylphides, e Karen descalçou os sapatos e mostrou-lhes uma das danças que andava a preparar.
Depois olharam todos, expectantes, para Harald.
Apercebeu-se de que era suposto actuar. Não sabia cantar, excepto trautear canções folclóricas dinamarquesas, por isso teria de tocar. - Não tenho grande jeito para música clássica - referiu.
- Que absurdo - protestou Tik. - Tocas piano na igreja do teu pai, tu mesmo mo disseste.
Harald sentou-se ao piano. Evidentemente que não podia impingir hinos de inspiração luterana a uma família judaica erudita. Hesitou, depois começou a tocar "Pine Top's Boogie-Woogie". Principiou por um trilo melódico executado com a mão direita. A seguir, a esquerda iniciou o padrão rítmico insistentemente baixo, e a direita tocou as tão sedutoras dissonâncias dos blues. Passados alguns momentos, perdeu o constrangimento e começou a sentir a música. Tocou mais alto e enfaticamente, exclamando em inglês nos pontos altos: "Todos, boogie-woogie(1)" precisamente como fazia Pine Top. A melodia atingiu o clímax e entoou: - É disto que estou a falar!
Quando terminou, reinava o silêncio na sala. O senhor Duchwitz pusera a expressão compungida de um homem que engoliu sem querer algo estragado. Até Tik ficara embaraçado. A senhora Duchwitz comentou: - Bem, devo dizer que não creio que alguma vez tenha sido tocado algo dessa natureza nesta sala.
Harald apercebeu-se de que cometera uma gafe. A emproada família Duchwitz reprovava ojazz tal como os seus pais. Eram cultos, mas isso não lhes conferia abertura de espírito. - Meu Deus - disse. - Vejo que não foi nada apropriado.
- De facto, não foi - redarguiu o senhor Duchwitz.
Por detrás do sofá, Karen captou o olhar de Harald. Esperou ver um sorriso altivo no rosto dela mas, para espanto e prazer seus, ela piscou-lhe descaradamente o olho.
Afinal, sempre valera a pena.
No domingo de manhã, acordou a pensar em Karen.
Tinha esperança de que viesse ao quarto dos rapazes para conversar, como fizera na véspera, mas não a viram. Também não desceu para o pequeno-almoço. Esforçando-se por parecer descontraído, Harald perguntou a Tik onde ela estava. Desinteressado, Tik respondeu que provavelmente estaria a fazer os seus exercícios.
Após o pequeno-almoço, Harald e Tik efectuaram duas horas de revisões para os exames. Contavam ambos passar com facilidade, mas não queriam correr riscos, pois os resultados seriam decisivos para poderem entrar na universidade. Às onze horas foram dar um passeio pela propriedade.
Perto do fim do longo acesso, parcialmente escondido da vista por um aglomerado de árvores, havia um mosteiro em ruínas. - Foi ocupado pelo rei após a Reforma, e usado como habitação durante um século - explicou Tik. - Depois construíram Kirstenslot, e o velho sítio caiu em desuso.
Exploraram os claustros, por onde os monges tinham caminhado. As celas serviam agora de armazéns do equipamento de jardinagem. - Há décadas que uma parte desta tralha não é cuidada - referiu Tik, dando um pontapé numa roda de ferro enferrujada com a biqueira do sapato. Abriu uma porta para um espaço grande e bem iluminado. As estreitas janelas não tinham vidros, mas o sítio estava limpo e seco. - Aqui era o dormitório - acrescentou. - Ainda é usado no Verão, pelos trabalhadores sazonais da quinta.
Entraram na igreja abandonada, agora cheia de tralha. Cheirava a bafio. Um gato preto e branco, magro, olhou para eles como se perguntasse com que direito entravam ali; depois escapuliu-se por uma das janelas sem vidro.
Harald levantou uma cobertura de lona e expôs um reluzente Rolls-Royce de quatro lugares assente em cepos de madeira. - Do teu pai? - perguntou Harald.
- Sim... guardado até voltarem a vender combustíveis.
Havia uma bancada de trabalho em madeira, cheia de sulcos, com um torno e uma série de ferramentas que supostamente seriam usadas para a manutenção do carro, quando circulava. Ao canto via-se um lavatório com uma única torneira. Encostadas à parede estavam várias pilhas de caixotes de madeira que tinham contido em tempos sabão e laranjas. Harald espreitou para dentro de um deles e encontrou um monte de carros de brincar feitos de folha de alumínio pintada. Pegou num deles. O condutor aparecia através dos vidros, de perfil na janela lateral, de frente no pára-brisas. Recordou a altura em que semelhantes brinquedos teriam sido infinitamente desejáveis para si. Guardou de novo o carro, cuidadosamente.
Ao fundo, a um canto, estava um avião monomotor sem asas.
Harald olhou-o com interesse. - O que é isto?
- Um Hornet Moth, fabricado por Havilland, a empresa inglesa. O pai comprou-o há cinco anos, mas nunca aprendeu a pilotá-lo.
- Já estiveste lá dentro?
- Oh sim, demos grandes passeios quando o aparelho era novo. Harald tocou na hélice grande, com pelo menos um metro e oitenta de comprimento. As curvas de uma precisão matemática tornavam-no uma obra de arte aos seus olhos. O avião estava ligeiramente inclinado para um lado, e viu que tinha o trem de aterragem danificado e um pneu vazio.
Passou a mão pela fuselagem e ficou surpreendido ao constatar que era feita de uma espécie de tecido, bem esticado sobre uma armação, com pequenos rasgões e vincos em determinados sítios. Estava pintado de azul-claro, com uma lista preta orlada de branco, mas a tinta que teria em tempos sido brilhante estava agora baça, cheia de pó e suja de óleo. Tinha asas, apercebia-se naquele momento - asas de biplano, pintadas de prateado - mas eram articuladas, e tinham sido deslocadas, ficando a apontar para trás.
Espreitou a cabina pela janela lateral. Era muito semelhante à parte da frente de um carro. Havia dois bancos, um ao lado do outro, e um painel de instrumentos em madeira envernizada com uma variedade de mostradores. O estofo de um dos bancos rompera-se e o enchimento saíra. Parecia que os ratos tinham nidificado ali.
Encontrou a pega da porta e entrou lá para dentro, ignorando o ruído suave de patas a correr que ouviu. Sentou-se no banco intacto. Os comandos pareciam simples. Ao meio havia uma manche em forma de Y que podia ser operada de qualquer dos lugares. Colocou a mão na manche e os pés nos pedais. Achava que voar seria ainda mais emocionante que guiar uma motorizada. Imaginou-se a sobrevoar o castelo qual ave gigante, com o ruído do motor nos ouvidos.
- Já alguma vez pilotaste? - perguntou a Tik.
- Não. No entanto, a Karen teve lições.
- A sério?
- Ainda não tinha idade para prestar provas, mas era bastante boa. Harald experimentou os comandos. Viu dois interruptores LIGADO/
DESLIGADO e mexeu-lhes, mas não aconteceu nada. A manche e os pedais pareciam soltos, como se não estivessem ligados a nada. Apercebendo-se do que ele fazia, Tik disse: - Alguns dos cabos foram retirados o ano passado; serviram para reparar uma das máquinas agrícolas. Vamos embora.
Harald teria ficado ali outra hora a mexericar no avião, mas Tik estava impaciente, de modo que acedeu.
Saíram pelas traseiras do mosteiro e percorreram um trilho de carroças através de uma mata. Anexa a Kirstenslot, ficava uma quinta grande. - Foi arrendada à família Nielsen ainda eu não era nascido - explicou Tik. - Criam porcos para o bacon, têm gado leiteiro premiado e várias centenas de hectares com culturas de cereais.
Contornaram um extenso campo de trigo, atravessaram um pasto cheio de vacas pretas e brancas e sentiram de longe o cheiro dos porcos. Encontraram um tractor com reboque na estrada de terra batida que conduzia à casa da quinta. Um homem novo de fato-macaco observava o motor. Tik apertou a mão ao homem e disse: - Olá, Frederik, o que se passa?
- O motor parou-me no meio da estrada. Ia buscar o senhor Nielsen e a família à igreja no reboque. - Harald olhou de novo para o reboque e viu que tinha dois bancos. - Agora os adultos vão a pé para a igreja e as crianças vão voltar para casa.
- Aqui o meu amigo Harald é um génio com todos os tipos de motores.
- Não me importava que ele desse uma espreitadela.
O tractor era um modelo actual, com motor a diesel e pneus de borracha em vez de rodas de aço. Harald debruçou-se para observar o interior. - O que acontece quando dá à ignição?
- Já lhe mostro. - Frederik puxou um manípulo. O dispositivo de arranque gemeu, mas o motor não pegou. - Acho que precisa de uma bomba de óleo nova. - Frederik abanou a cabeça, desesperado. - Não conseguimos arranjar peças sobressalentes para nenhuma das nossas máquinas.
Harald carregou o semblante, na dúvida. Sentiu o cheiro a combustível, um indício de que a bomba estava a funcionar, mas o diesel não chegava aos cilindros. - Podia tentar mais uma vez o motor de arranque?
Frederik puxou o manípulo. Harald julgou ver o tubo de descarga do filtro do combustível mover-se. Olhando agora com mais atenção, reparou que o diesel se derramava da válvula de libertação. Enfiou a mão lá dentro e rodou a porca. Todo o encaixe da válvula se soltou do filtro. - Aqui está o problema - disse. - A espiral deste parafuso está moída, por alguma razão, e provoca uma fuga de combustível. Tem um pedaço de arame?
Frederik procurou nos bolsos das calças de tweed. - Tenho aqui um bocado de cordel grosso.
- Servirá temporariamente. - Harald voltou a colocar a válvula na posição e prendeu-a ao filtro com o cordel para não oscilar. - Experimente agora o motor de arranque.
Frederik puxou o manípulo, e o motor pegou. - Não querem lá ver? - disse. - Conseguiu arranjá-lo.
- Quando tiver oportunidade, substitua o cordel por arame. Assim já não precisará de uma peça sobressalente.
- Por acaso não vai ficar aqui uma semana ou duas? - indagou Frederik. - Esta quinta tem maquinaria avariada por todo o lado.
- Não, lamento; tenho de voltar para o colégio.
- Bem, boa sorte. - Frederik subiu para o tractor. - Agora já posso chegar à igreja a tempo de trazer os Nielsen para casa, e mais uma vez, obrigado. - Afastou-se.
Harald e Tik retomaram a direcção do castelo. - Aquilo foi impressionante - comentou Tik.
Harald encolheu os ombros. Desde que se lembrava, sempre tivera jeito para reparar máquinas.
- O velho Nielsen é entusiasta de todas as invenções mais recentes - acrescentou Tik. - Máquinas de semear, ceifar, até de ordenha.
- Consegue combustível para elas?
- Sim. É possível se se destinar à produção alimentar. Mas ninguém consegue encontrar peças sobressalentes para nada.
Harald viu as horas: estava ansioso por encontrar Karen ao almoço. Inquiri-la-ia sobre as lições de voo.
Na aldeia, pararam na taberna. Tik comprou dois copos de cerveja e sentaram-se no exterior a apanhar sol. Do outro lado da rua, as pessoas saíam da pequena igreja de tijolo vermelho. Frederik passou no tractor e acenou. Vinham sentadas cinco pessoas atrás de si no reboque. O homem grande com cabelo branco e um rosto corado do ar livre devia ser o agricultor Nielsen, pensou Harald.
Um homem de uniforme preto da polícia saiu com uma mulher de ar tímido e duas crianças pequenas. Deitou um olhar hostil a Tik quando se aproximou.
Uma das crianças, uma menina de cerca de sete anos, perguntou em voz alta: - Por que é que eles não vão à igreja, papá?
- Porque são judeus - respondeu o homem. - Não acreditam em Nosso Senhor.
Harald olhou para Tik.
- O polícia da aldeia, Per Hansen - explicou Tik em voz baixa. - E representante local do Partido dos Operários Nacional-Socialistas dinamarquês.
Harald acenou com a cabeça. Os nazis dinamarqueses eram um partido fraco. Nas últimas eleições gerais, havia dois anos, tinham conquistado apenas três lugares no Rigsdag. Mas a ocupação fizera aumentar as suas esperanças e, de facto, os alemães haviam pressionado o governo dinamarquês a atribuir um cargo ministerial ao líder nazi, Fritz Clausen. No entanto, o rei Christian batera o pé e impedira a manobra, e os alemães tinham recuado. Os membros do partido como Hansen ficaram decepcionados, mas pareciam estar à espera de uma mudança. Pareciam confiantes de que a sua hora acabaria por chegar. Harald temia que pudessem ter razão.
Tik esvaziou o copo. - Está na hora do almoço.
Regressaram ao castelo. Harald ficou surpreendido por ver no pátio da frente Poul Kirke, primo do seu colega de turma Mads e amigo do irmão de Harald, Arne. Poul vestia calções, e estava uma bicicleta encostada ao grandioso pórtico de tijolo. Harald vira-o várias vezes, e resolveu parar para conversar enquanto Tik ia lá dentro.
- Trabalhas aqui? - perguntou-lhe Poul.
- Não, estou de visita. As aulas ainda não acabaram.
- Sei que a quinta contrata alunos para as colheitas. O que tencionas fazer este Verão?
- Ainda não sei bem. O ano passado trabalhei como operário num empreendimento em Sande. - Esboçou um esgar. - Afinal era uma base alemã, muito embora só mais tarde o revelassem.
Poul pareceu interessado. - Oh? E que tipo de base?
- Uma espécie de estação de rádio, creio. Despediram todos os dinamarqueses antes de instalarem o equipamento. Provavelmente irei trabalhar nos barcos de pesca este Verão, e fazer as leituras preliminares para o meu curso na universidade. Tenho esperanças de conseguir estudar física com Niels Bohr.
- Que bom para ti. O Mads sempre disse que eras um génio. Harald preparava-se para perguntar a Poul o que fazia ali em Kirs-
tenslot, quando a resposta se tornou óbvia. Karen apareceu vinda da lateral da casa empurrando uma bicicleta.
Vinha deslumbrante, com calções de caqui que exibiam as suas pernas compridas.
- Bom dia, Harald - saudou. Aproximou-se de Poul e beijou-o. Harald registou com inveja que fora um beijo nos lábios, embora fugaz. - Olá - disse-lhe.
Harald ficou descoroçoado. Estivera a contar com uma hora na companhia de Karen à mesa do almoço. Mas ela ia dar um passeio de bicicleta com Poul, que obviamente era seu namorado, apesar de dez anos mais velho. Harald viu então, pela primeira vez, que Poul era muito bem-parecido, com feições regulares e um sorriso de estrela de cinema que mostrava uns dentes perfeitos.
Poul pegou nas mãos de Karen e mirou-a de alto a baixo. - Estás absolutamente deliciosa - comentou. - Quem me dera ter uma fotografia tua assim.
Ela sorriu graciosamente. - Obrigada.
- Pronta para irmos?
- Absolutamente. Montaram nas bicicletas.
Harald ficou doente. Viu-os afastar-se lado a lado pelo acesso de oitocentos metros exposto ao sol. - Divirtam-se! - gritou. Karen acenou sem se virar.
Hermia estava prestes a ser despedida.
Nunca tal lhe acontecera antes. Era inteligente e conscienciosa, e os seus empregadores sempre a haviam considerado uma preciosidade, apesar de ter a língua afiada. Mas o actual chefe, Her-bert Woodie, ia comunicar-lhe que estava despedida, mal arranjasse coragem.
Dois dinamarqueses que trabalhavam para o MI6 tinham sido presos no aeródromo de Kastrup. Encontravam-se naquele momento detidos e sem dúvida a ser interrogados. Fora um duro golpe para a rede dos Guardas-Nocturnos. Woodie era um homem de tempo de paz do MI6, um burocrata com muitos anos de serviço. Precisava de um bode expiatório, e Hermia era a candidata adequada.
Hermia entendia. Havia uma década que trabalhava na função pública britânica, e conhecia os seus meandros. Se Woodie fosse obrigado a aceitar que a culpa era do seu departamento, imputá-la-ia ao funcionário mais novo existente. De qualquer forma, Woodie nunca se sentira confortável a trabalhar com uma mulher, e de bom grado a veria ser substituída por um homem.
A princípio, Hermia sentira-se inclinada a oferecer-se como vítima sacrificial. Nunca vira os dois mecânicos de aviões - tinham sido recrutados por Poul Kirke -, mas a rede fora criada por si e era responsável pelo destino dos homens detidos. Preocupava-a que pudessem estar já mortos, e não queria continuar.
Afinal, pensou, o que fizera realmente para ajudar o esforço de guerra? Limitara-se a acumular informações. Não que alguma vez tivessem sido usadas. Havia homens a arriscar as suas vidas para lhe enviarem fotografias do porto de Copenhaga sem que estivesse a acontecer nada de especial. Afigurava-se-lhe absurdo.
Só que, na verdade, sabia da importância deste laborioso trabalho de rotina. Numa qualquer data futura, um avião de reconhecimento fotografaria o porto cheio de navios, e os planadores militares precisariam de saber se isso representava um tráfego normal ou a súbita concentração de uma força de invasão - e era aí que as fotografias de Hermia se tornariam cruciais.
Além disso, a visita de Digby Hoare conferira uma urgência imediata ao seu trabalho. O sistema alemão de detecção de aviões podia ser a arma para vencer a guerra. Quanto mais pensava no assunto, mais provável se lhe afigurava que a solução para o problema poderia estar na Dinamarca. A costa ocidental dinamarquesa parecia a localização ideal para um posto de aviso destinado a detectar bombardeiros que se aproximassem da Alemanha.
E não havia mais ninguém no MI6 com tão profundos conhecimentos da Dinamarca como os seus. Lidara pessoalmente com Poul Kirke e ele confiara em si. Poderia ser desastroso se um desconhecido passasse a assumir as funções. Tinha de conservar o emprego. E isso significava usar de argúcia com o seu chefe.
- Isto são péssimas notícias - referiu Woodie sentenciosamente quando ela se encontrava diante da sua secretária.
O gabinete dele situava-se num quarto da velha casa de Bletchley Park. O papel às flores e os candeeiros com quebra-luzes de seda nas paredes sugeriam que fora ocupado por uma senhora antes da guerra. Naquele momento continha ficheiros de arquivo em vez de guarda-fatos cheios de vestidos, e uma mesa de aço com um mapa no sítio onde poderia ter estado um toucador de pernas finas e um espelho triplo. E em vez de uma mulher glamorosa com um valiosíssimo negligée de seda, a divisão era ocupada por um homem pequeno e arrogante de fato cinzento e óculos.
Hermia aparentava uma falsa calma. - Claro que existe sempre perigo quando um operacional é interrogado - referiu. - No entanto... - Pensou nos dois homens corajosos a serem interrogados e torturados, e ficou por um momento com a respiração presa na garganta. Depois recobrou. - No entanto, neste caso, sinto que o risco é ligeiro.
Woodie resmungou em tom céptico. - Podemos ter de abrir um inquérito.
O coração caiu-lhe aos pés. Um inquérito significava um investigador de fora do departamento. Teria de encontrar um bode expiatório, e ela era a escolha óbvia. Começou a apresentar a defesa que preparara. - Os dois homens detidos não têm segredos a revelar - disse. - Pertenciam ao pessoal de terra do aeródromo. Um dos Guardas-Nocturnos entregava-lhes os documentos para serem escondidos, e eles guardavam o contrabando num calço de roda oco. - Mesmo assim, sabia, eles poderiam revelar pormenores aparentemente inocentes sobre a forma como haviam sido recrutados, pormenores esses que seriam úteis a um caça-espiões inteligente para chegar aos outros agentes.
- Quem lhes entregava os documentos?
- Matthies Hertz, um tenente do exército. Ele escondeu-se. E os mecânicos não conhecem mais ninguém na rede.
- Pelos vistos a nossa segurança apertada limitou os danos para a organização.
Hermia calculou que Woodie estivesse a ensaiar uma frase que poderia usar na presença dos seus superiores, e fez um esforço para o lisonjear. - Precisamente, senhor, é uma maneira magnífica de colocar a questão.
- Mas como foi que a polícia dinamarquesa conseguiu, antes de mais, chegar à sua gente?
Hermia contara com aquela pergunta, e a sua resposta fora cuidadosamente preparada. - Penso que o problema esteja no lado sueco.
- Ah. - Woodie animou-se. A Suécia, sendo um país neutro, não estava sob o seu controlo. Veria com bons olhos a transferência da culpa para outro departamento. - Sente-se, Miss Mount.
- Obrigada. - Hermia sentiu-se encorajada: Woodie estava a reagir exactamente como ela esperava. Cruzou as pernas e prosseguiu:
- Penso que o mensageiro sueco também fazia chegar exemplares dos jornais ilegais à Reuters em Estocolmo, e isso pode ter alertado os alemães. O senhor sempre deixou muito claro que os nossos agentes se deveriam cingir à recolha de informação e evitar quaisquer actividades paralelas como a propaganda. - Mais lisonja: nunca ouvira Woodie fazer semelhante afirmação, conquanto fosse uma regra geral em espionagem.
No entanto, ele anuiu sabiamente. - De facto.
- Lembrei aos suecos a sua decisão assim que descobri o que se estava a passar, mas receio que os estragos já tivessem sido causados.
Woodie ficou pensativo. Gostaria de poder afirmar que o seu conselho fora ignorado. Na realidade, não gostava que as pessoas seguissem as suas sugestões, porque quando corria tudo bem, elas ficavam simplesmente com os louros. Preferia que ignorassem o seu conselho e corresse tudo mal. Assim sempre poderia dizer: "Eu bem avisei."
Hermia perguntou: - Quer que elabore um memorando, mencionando a sua regra e referindo o meu alerta à Legação Sueca?
- Excelente ideia. - Isso agradou ainda mais a Woodie. Assim não teria de atribuir as culpas a si próprio, limitando-se a referir um subordinado que inadvertidamente se convencera de que ele mandara soar o alarme.
- Assim sendo, iremos precisar de uma nova maneira de fazer sair as informações da Dinamarca. Não podemos usar o rádio para este tipo de material, leva demasiado tempo a transmitir.
Woodie não fazia ideia de como organizar uma via alternativa de saída das informações. - Ah, mas isso é um problema - afirmou, com uma pontinha de pânico.
- Felizmente criámos uma opção alternativa, usando o comboio que faz a ligação com os barcos que efectuam a travessia de Elsinore, na Dinamarca, para Helsingborg, na Suécia.
Woodie ficou aliviado. - Esplêndido - congratulou-se.
- Talvez devesse referir no memorando que o senhor me autorizou a accioná-la.
- Óptimo.
Ela hesitou. - E... o inquérito?
- Sabe, não me parece que seja necessário. O seu memorando deveria servir para dar resposta a quaisquer questões.
Ocultou o seu alívio. Afinal não ia ser despedida.
Sabia que deveria retirar-se enquanto levava vantagem. Mas havia outro problema que estava desesperada por lhe colocar. Aquela parecia constituir uma oportunidade ideal. - Há uma coisa que poderíamos fazer para melhorar enormemente a nossa segurança, senhor.
- Ah sim? - A expressão de Woodie dizia que se semelhante procedimento existisse, certamente já lhe teria ocorrido.
- Podíamos usar códigos mais sofisticados.
- Que mal têm os nossos códigos de livro e poema? Há anos que os agentes do MI6 os usam.
- Temo que os alemães possam ter descoberto a forma de decifrá-los.
Woodie sorriu com ar sabedor. - Não me parece, minha cara.
Hermia decidiu arriscar contradizê-lo. - Posso mostrar-lhe ao que me refiro? - Sem esperar pela resposta dele, prosseguiu: - Repare nesta mensagem codificada. - Rabiscou rapidamente no seu bloco:
gsffcffs jo uifdbouffo
Ela disse: - A letra mais comum é /.
- Obviamente.
- Na língua inglesa, a letra que mais vulgarmente se usa é o e, por isso a primeira coisa que um decifrador de códigos faria é presumir que /corresponde a e, o que lhe dá isto.
gsEE cEEs jo uiE dbouEEo
- Poderia não querer ainda significar nada - afirmou Woodie.
- Nem por isso. Quantas palavras de quatro letras terminam com dois é?
- Não faço a menor ideia.
- Apenas algumas comuns; flee, free, glee, thee e tree(1). Repare agora no segundo grupo.
- Miss Mount, sinceramente, não tenho tempo...
- São só mais uns segundos, senhor. Existem muitas palavras de quatro letras com dois e no meio. Qual poderia ser a primeira letra? Não a, com certeza, mas poderia ser b. Pense então em palavras começadas por bee que logicamente poderiam vir a seguir. Flee bees não faz sentido, free bees soa estranho, muito embora tree bees pudesse fazer sentido...
Woodie interrompeu. - Cerveja de graça!(2) - exclamou em tom vitorioso.
(1) As palavras aqui apresentadas revestem um carácter meramente exemplificativo do funcionamento dos códigos, tendo-se optado pela sua não tradução nem explicação do significado em nota de rodapé, o que a alongaria desnecessariamente. No entanto, sempre que se afigurar pertinente, incluir-se-á uma referência. (NT)
(2) Free beer no original. (NT)
- Vamos lá experimentar. O grupo seguinte é o de duas letras, e não existem muitas palavras com duas letras: an, at, in, if it, on, of, or e up são as mais comuns. O quarto grupo é uma palavra de três letras que termine em e, e por acaso existem muitas, mas a mais comum é the.
Woodie começava a interessar-se, contrariamente à sua vontade. - Cerveja de graça at qualquer coisa.
- Ou in qualquer coisa. E esse qualquer coisa é uma palavra de sete letras com dois e, por isso termina em eed, eef eek, eel, eem, een, eep...
- Cerveja de graça na cantina!(1) - exclamou Woodie, vitoriosamente.
- Sim - respondeu Hermia. Permaneceu sentada em silêncio, olhando Woodie, deixando que as implicações do que acabara de dizer fossem absorvidas. Decorridos alguns momentos prosseguiu: - É esta a facilidade com que os nossos códigos são decifrados, senhor. - Olhou para o relógio. - Bastaram-lhe três minutos.
Soltou um resmungo. - Um excelente truque para uma reunião festiva, Miss Mount, mas a velha guarda do MI6 percebe mais disto do que a senhora, acredite.
Fora em vão, pensou, entrando em desespero. Naquele dia não se deixara sensibilizar. Teria de voltar a tentar mais tarde. Fez um esforço para ceder com graciosidade. - Muito bem, senhor.
- Concentre-se nas suas próprias responsabilidades. O que está a preparar o resto dos seus Guardas-Nocturnos?
- Estava a pensar pedir-lhes que ficassem de olhos abertos a quaisquer indícios de que os alemães tenham desenvolvido aparelhos de detecção de aviões a longa distância.
- Por amor de Deus, não faça isso!
- E por que não?
- Se o inimigo descobre que andamos a fazer essa pergunta, calculará que nós os temos!
- Mas, senhor, e se o inimigo o tiver realmente?
- Não tem. Pode ficar tranquila.
- O cavalheiro de Downing Street que esteve cá a semana passada parecia ser de opinião contrária.
- Aqui só entre nós, Miss Mount, uma comissão do MI6 debruçou-se muito recentemente sobre toda a questão do radar, e concluiu que faltariam ainda uns dezoito meses para o inimigo desenvolver semelhante sistema.
(1) Free beer in the canteen, no original. (NT)
Afinal, pensou Hermia, chamava-se radar. Sorriu. - É muito tranquilizador - mentiu. - Devo presumir que o senhor tenha integrado a comissão?
Woodie anuiu. - Na verdade, fui o seu presidente.
- Obrigada por me sossegar o espírito. Vou dar seguimento àquele memorando.
- Muito bem.
Hermia saiu. Doía-lhe o rosto de sorrir e estava exausta do esforço de ter de se se submeter constantemente a Woodie. Salvara o emprego e permitiu-se um momento de satisfação enquanto regressava ao seu próprio gabinete. Mas falhara nos códigos. Descobrira o nome do sistema de detecção de aviões a longa distância - radar - mas era evidente que Woodie não a deixaria investigar se os alemães possuíam semelhante sistema na Dinamarca.
Ansiava fazer algo de valor imediato para o esforço de guerra. Todo aquele trabalho de rotina deixava-a impaciente e frustrada. Seria muito mais satisfatório ver alguns resultados reais. E poderia inclusivamente justificar o que acontecera àqueles dois pobres mecânicos de aviões em Kastrup.
Iria investigar o radar do inimigo sem permissão de Woodie, claro. Ele acabaria por descobrir, mas estava disposta a correr esse risco. No entanto, não sabia o que dizer aos seus Guardas-Nocturnos. O que deveriam procurar, e onde? Necessitava de mais informações antes de poder avisar Poul Kirke. E Woodie não lhas iria fornecer.
Mas ele não era a sua única esperança.
Sentou-se à secretária, pegou no telefone e disse: - Por favor, ligue-me ao número dez, Downing Street.
Encontrou-se com Digby Hoare em Trafalgar Square. Estava junto à Coluna de Nelson e viu-o atravessar a rua vindo de Whitehall. Sorriu ante o passo enérgico e assimétrico que já lhe parecia característico dele. Apertaram as mãos, depois encaminharam-se para o Soho.
Estava um final de tarde de Verão quente, e o West End de Londres movimentado, os passeios cheios de pessoas que se dirigiam para os teatros, cinemas, bares e restaurantes. A cena feliz apenas era manchada pelos estragos das bombas, uma esporádica ruína enegrecida numa fila de edifícios a destacar-se como um dente podre num sorriso.
Pensara que fossem tomar uma bebida a um pub, mas Digby conduziu-a a um pequeno restaurante francês. As mesas ao lado da sua, de ambos os lados, estavam vazias, por isso podiam falar sem serem escutados.
Digby vestia o mesmo fato cinzento-escuro, mas naquele dia pusera uma camisa azul-clara que realçava os seus olhos azuis. Hermia ficou satisfeita por ter decidido usar a sua jóia preferida, um alfinete com uma pantera com olhos de esmeralda.
Estava ansiosa por falar do assunto. Recusara sair com Digby e não queria que ele pensasse que mudara de ideias. Assim que encomendaram, ela disse: - Quero usar os meus agentes na Dinamarca para descobrir se os alemães têm radar.
Fitou-a de olhos semicerrados. - A questão é mais complexa do que isso. Não existem dúvidas neste momento de que eles têm radar, tal como nós. Só que o deles é mais eficaz do que o nosso, e de uma forma devastadora.
- Oh. - Ficou estupefacta. - O Woodie disse-me... Esqueça.
- Estamos desesperados por descobrir a razão de o sistema deles ser tão bom. Ou inventaram algo melhor do que aquilo que nós temos, ou então conceberam uma maneira de o usar com mais eficácia; ou ambas as coisas.
- Está bem. - Reajustou rapidamente as suas ideias à luz desta nova informação. - Mesmo assim, parece provável que alguma desta maquinaria se encontre na Dinamarca.
- Seria um local lógico, e o código "Freya" sugere a Escandinávia.
- O que tem então a minha gente de procurar?
- Isso é difícil. - Ficou carrancudo. - Desconhecemos o aspecto da maquinaria. Essa é a questão, não é?
- Presumo que emita ondas electromagnéticas.
- Sim, claro.
- E supostamente os sinais percorrem uma grande distância, caso contrário o aviso não chegaria suficientemente cedo.
- Sim. Seria inútil a menos que os sinais percorressem, pelo menos, oitenta quilómetros. Provavelmente mais.
- Consegui-lo-íamos ouvir?
Arqueou os sobrolhos de surpresa. - Sim, com um receptor de rádio. Uma noção inteligente... não sei por que nunca ninguém se lembrou disso.
- Os sinais conseguem distinguir-se de outras transmissões, como as emissões normais, os noticiários, e por aí fora?
Anuiu. - Estaria a escutar uma série de vibrações provavelmente muito rápidas, digamos que mil por segundo. Ouvi-las-ia como uma nota musical contínua. Assim ficaria a saber que não era a BBC. E seria completamente diferente dos pontos e traços do tráfego militar.
- Você é engenheiro. Conseguiria criar um receptor de rádio adequado à captação desses sinais?
Ficou pensativo. - Tem de ser portátil, presumo.
- Deveria caber numa mala.
- E trabalhar com uma bateria, para poder ser usado em qualquer lugar.
- Sim.
- Seria possível. Existe uma equipa de cientistas em Welwyn capaz de fazer isso. - Welwyn era uma pequena cidade entre Bletchley e Londres. - Fazer explodir relógios de bolso, transmissores de rádio escondidos em tijolos, esse tipo de coisas. Provavelmente conseguiriam arranjar alguma coisa desse tipo.
A comida chegou. Hermia pedira uma salada de tomate. Vinha polvilhada com uma pequena quantidade de cebola picada e um raminho de hortelã, e perguntou-se por que razão os britânicos não eram capazes de confeccionar refeições simples e deliciosas como aquela, em vez de sardinhas em lata e couve cozida.
- O que a levou a criar os Guardas-Nocturnos? - perguntou-lhe Digby.
Não percebeu aonde ele queria chegar. - Pareceu-me uma boa ideia.
- Mesmo assim, não uma ideia que ocorresse à mulher jovem mediana, se me permite afirmá-lo.
Recuou no tempo, lembrando a luta que travara com uma outra chefia burocrática, e perguntou-se por que insistira. - Queria desferir um golpe aos nazis. Há algo neles que acho absolutamente desprezível.
- O fascismo atribui os problemas a uma falsa causa: as pessoas de outras raças.
- Eu sei, mas não é isso. São os uniformes, o andar pomposo e a postura, e a forma como gritam aqueles discursos execráveis. Dá-me simplesmente náuseas.
- Quando foi que sentiu tudo isso? Não existem muitos nazis na Dinamarca.
- Passei um ano em Berlim na década de 30. Vi-os marchar, fazer a saudação, cuspir nas pessoas e partir as montras dos lojistas judeus. Recordo-me de pensar: estas pessoas têm de ser contidas antes que estraguem o mundo inteiro. Continuo a pensar assim. Tenho a certeza absoluta.
Ele sorriu. - Eu também.
Trouxeram a Hermia um fricassé de marisco, e mais uma vez ficou surpreendida com o que um cozinheiro francês era capaz de fazer com ingredientes comuns, apesar do racionamento. O prato continha enguia às rodelas, uns búzios tão do agrado dos londrinos, e lascas de bacalhau, mas era tudo fresco e bem temperado, e deliciou-se a saboreá-lo.
De vez em quando, captava o olhar de Digby, e tinha sempre a mesma expressão, um misto de adoração e desejo. Ficou alarmada. Se se apaixonasse por ela, o resultado seria: problemas e desgosto de amor. Mas era agradável, e também embaraçoso, ver um homem desejá-la de uma forma tão óbvia. A dada altura sentiu-se corar, e levou a mão à garganta para ocultar os rubores.
Transferiu deliberadamente os seus pensamentos para Arne. A primeira vez que falara com ele, num bar de um hotel de esqui na Noruega, soubera que encontrara o que faltava na sua vida. "Agora percebo por que nunca tive uma relação satisfatória com um homem", escrevera à mãe. "É porque ainda não conhecera o Arne." Quando a pedira em casamento, dissera-lhe: "Se tenho sabido que existiam homens como tu, há anos que me teria casado com um."
Dizia sim a tudo o que ele sugeria. Por norma, gostava tanto de ter tudo à sua maneira que nunca conseguira partilhar o apartamento com uma amiga, mas com Arne perdia a força de vontade. Sempre que ele a convidava para saírem, aceitava; quando a beijava, ela retribuía o beijo; quando lhe acariciava os seios por debaixo da camisola de esqui, ela suspirava de puro prazer; e quando vinha bater à porta do seu quarto no hotel à meia-noite ela dizia: "Ainda bem que estás aqui."
Pensar em Arne ajudou-a a sentir maior frieza em relação a Digby; e, quando terminaram a refeição, a conversa mudara entretanto para a guerra. Um exército aliado, constituído por forças britânicas, da Commonwealth e da França Livre(1) invadira a Síria. Fora uma escaramuça nas franjas da guerra, e tiveram ambos dificuldade em considerar o resultado importante. O conflito na Europa era tudo o que realmente contava. E aqui travava-se uma guerra de bombardeiros.
Quando deixaram o restaurante já estava escuro, mas havia lua cheia. Seguiram a pé para sul, dirigindo-se à casa da mãe dela em Pimlico, onde Hermia ia passar a noite. Quando atravessavam St. James's Park, a lua escondeu-se por detrás de uma nuvem, e Digby virou-se para ela e beijou-a.
Não pôde deixar de admirar a certeza rápida dos seus movimentos. Os lábios dele tinham-se colado aos seus antes de ter tempo de se desviar. Com uma mão forte, atraiu o corpo dela ao seu, e os seios dela faziam pressão no seu peito. Sabia que deveria ter mostrado indignação, mas, para sua surpresa consternada, apercebeu-se de que correspondia.
(1) Designação dada inicialmente aos voluntários que responderam a um apelo do General De Gaulle (18/06/1940), depois a todas as tropas e territórios anexos à França que continuaram a luta contra a Alemanha apesar do armistício. (NT)
Lembrou-se, de repente, do que era sentir o corpo duro e a pele quente de um homem, e num ímpeto de desejo abriu a boca para ele.
Beijaram-se anelantemente durante um minuto; depois ele levou a mão ao seu seio, e o encanto quebrou-se. Era demasiado velha e respeitável para ser apalpada num parque. Interrompeu o corpo-a-corpo.
Ocorreu-lhe levá-lo para casa. Imaginou a reprovação magoada de Mags e Bets, e a cena fê-la soltar uma gargalhada.
- O que é? - perguntou ele.
Viu que ele ficara ofendido. Provavelmente imaginara que a gargalhada dela tinha a ver com a sua deficiência. "Não me posso esquecer de que ele é muito vulnerável ao escárnio", pensou. Apressou-se a explicar. - A minha mãe é viúva e vive com uma solteirona de meia-idade. Pensei como iriam reagir se eu quisesse levar um homem lá a casa esta noite.
A expressão ofendida desapareceu. - Agrada-me a sua maneira de pensar - disse, e procurou beijá-la novamente.
Sentiu-se tentada, mas pensou em Arne, e apoiou uma mão no peito de Digby, oferecendo resistência. - Mais não - falou com firmeza. - Acompanhe-me a casa.
Deixaram o parque. A euforia momentânea desapareceu, e começou a sentir-se perturbada. Como podia gostar de beijar Digby quando amava Arne? Ao passarem pelo Big Ben e pela Abadia de Westminster, um aviso de ataque aéreo afastou todos aqueles pensamentos da sua cabeça.
Digby disse: - Quer ir procurar um abrigo?
Muitos londrinos já não se abrigavam durante os ataques aéreos. Fartos de noites sem dormir, alguns haviam decidido que valia a pena correr o risco das bombas. Outros haviam-se tornado fatalistas, dizendo que uma bomba ou lhes era destinada ou não e, de qualquer das formas, também não podiam fazer nada. Hermia não se deixava afectar a esse ponto, mas, por outro lado, não fazia tenções de passar a noite num abrigo antiaéreo ao lado do pinga-amor Digby. Rodou nervosamente o anel de noivado na mão esquerda. - Estamos apenas a alguns minutos de distância - respondeu. - Importa-se que continuemos?
- Afinal posso ver-me obrigado a passar a noite em casa da sua mãe.
- Ao menos terei paus-de-cabeleira.
Atravessaram apressadamente Westminster até Pimlico. Os holofotes sondavam as nuvens dispersas; ouviram depois o sinistro ruído baixo de aviação pesada, como um animal enorme esfomeado a soltar rosnadelas cavas. Atroou algures um canhão antiaéreo, e o disparo rebentou no céu como fogo de artifício. Hermia pensou se a mãe andaria a conduzir a ambulância naquela noite.
Para horror de Hermia, as bombas começaram a cair ali perto, apesar de o mais atingido ser normalmente o East End industrial. Houve uma pancada ensurdecedora que pareceu vir da rua seguinte. Um minuto depois, um carro dos bombeiros passou a apitar. Hermia caminhava o mais depressa que podia.
Digby disse: - Está tão calma. Não tem medo?
- Claro que tenho medo - respondeu com impaciência. - Só não entro em pânico.
Viraram uma esquina e viram um edifício em chamas. O carro dos bombeiros encontrava-se no exterior e os homens desenrolavam as mangueiras.
- Ainda falta muito? - perguntou Digby.
- É na próxima rua - respondeu Hermia, arquejante. Quando viraram a esquina seguinte, viram outro carro dos bombeiros
ao fundo da rua, perto da casa de Mags. - Ó meu Deus! - exclamou Hermia, e desatou a correr. O seu coração batia de medo enquanto corria pelo passeio. Viu que havia uma ambulância, e que pelo menos uma casa na secção da mãe fora atingida. - Não, por favor - proferiu em voz alta.
Aproximando-se mais, ficou perplexa por não conseguir identificar a casa da mãe, apesar de ver com clareza que a do lado estava em chamas. Estacou e ficou a olhar, tentando compreender o que via. Então, finalmente, apercebeu-se de que a casa da mãe desaparecera. Não restava nada dela senão um buraco no terraço e um monte de escombros. Gemeu de desespero. Digby disse: - É aquela a casa?
Hermia anuiu, incapaz de falar.
Digby interpelou um bombeiro em voz autoritária. - Você aí! - disse. - Algum sinal dos ocupantes deste edifício?
- Sim, senhor - respondeu o bombeiro. - Uma pessoa foi projectada pela explosão. - Apontou para o pequeno pátio da frente da casa não-danificada do outro lado. Jazia um corpo numa maca assente no chão. O rosto estava coberto.
Hermia sentiu Digby dar-lhe o braço. Entraram juntos no pátio. Hermia ajoelhou e Digby destapou o rosto.
- É a Bets - disse Hermia, com uma sensação de alívio doentiamente culpada.
Digby olhava à sua volta. - Quem é aquela, sentada no muro?
Hermia levantou a cabeça, e o seu coração teve um sobressalto ao reconhecer a figura da mãe, vestida com o uniforme da ambulância e capacete de alumínio, inerte no muro baixo como se toda a vida se tivesse esvaído de si. - Mãe? - chamou.
A mãe ergueu a cabeça, e Hermia viu que as lágrimas lhe desciam pelo rosto.
Hermia aproximou-se dela e abraçou-a.
- A Bets está morta - disse-lhe a mãe.
- Lamento, mãe.
- Ela gostava tanto de mim - soluçou a mãe.
- Eu sei.
- Sabes? Sabes mesmo? Ela esperou por mim toda a vida. Tens consciência disso? Toda a vida.
Hermia estreitou a mãe. - Lamento imenso - disse.
Na manhã do dia 9 de Abril de 1940, quando Hitler invadiu a Dinamarca, havia cerca de duzentos navios dinamarqueses no mar. Todo aquele dia, as transmissões da BBC em dinamarquês apelaram aos marinheiros para se dirigirem aos portos aliados em vez de regressarem a um país conquistado. No total, cerca de cinco mil homens aceitaram a oferta de refúgio. A maior parte procurou abrigo na costa leste de Inglaterra, içou o pavilhão britânico e continuou a navegar durante a guerra sob a bandeira inglesa. Consequentemente, em meados do ano seguinte, tinham-se instalado pequenas colónias de dinamarqueses em diversos portos ingleses.
Hermia decidira ir à cidade piscatória de Stokeby. Visitara duas vezes o local para falar com os dinamarqueses que lá se encontravam. Informou então o seu chefe, Herbert Woodie, de que tinha como missão verificar os planos algo ultrapassados dos principais portos dinamarqueses e proceder às alterações necessárias.
Acreditou nela.
Já para Digby Hoare a história tinha uma versão diferente.
Digby viera a Bletchley, dois dias depois de a bomba ter destruído a casa da mãe, com um receptor de rádio e um radiogoniómetro muito bem acondicionados numa mala castanha de pele com aspecto usado. Enquanto lhe mostrava como usar o equipamento, não conseguia deixar de pensar, com uma certa culpa, no beijo no parque, e no quanto lhe agradara, perguntando-se com um certo constrangimento se conseguiria encarar Arne olhos nos olhos.
O seu plano inicial fora tentar fazer chegar o receptor de rádio aos Guar-das-Nocturnos, mas depois pensara em algo mais simples. Provavelmente, seria possível detectar os sinais do radar no mar com a mesma facilidade que em terra. Informou Digby de que ia entregar a mala ao capitão de um barco de pesca e mostrar-lhe como funcionava. Digby aprovou.
Esse plano poderia ter funcionado perfeitamente, mas na verdade não queria incumbir mais ninguém de uma tarefa tão importante. Fazia, assim, questão de ir pessoalmente.
Havia, no Mar do Norte, entre a Inglaterra e a Dinamarca, um grande banco de areia conhecido como Dogger Bank, onde o mar tinha apenas quinze metros de profundidade em alguns locais, e a pesca era boa. Tanto as embarcações inglesas como as dinamarquesas pescavam de arrasto ali. Rigorosamente falando, os barcos registados na Dinamarca estavam proibidos de se aventurar tão longe da sua costa, mas a Alemanha necessitava de arenques, por isso a proibição era aplicada com carácter irregular e constantemente desafiada. Durante algum tempo, Hermia guardara no subconsciente que as mensagens - ou mesmo as pessoas - podiam deslocar-se entre os dois países em barcos de pesca, sendo trocadas entre dinamarqueses e britânicos, ou vice-versa no meio do caminho. No entanto, naquele momento tinha uma ideia melhor. O outro extremo de Dogger Bank ficava apenas a cem milhas da costa dinamarquesa. Se os seus palpites estivessem certos, os sinais da máquina Freya seriam detectáveis da zona de pesca.
Apanhou um comboio na sexta-feira à tarde. Ia equipada para o mar com calças, botas e uma camisola larga, o cabelo enfiado debaixo de um boné de xadrez masculino. Enquanto o comboio atravessava a zona plana de pântanos da Inglaterra oriental, o que mais a preocupava era se o seu plano iria resultar. Conseguiria encontrar uma embarcação disposta a levá-la? Captaria os sinais que esperava? Ou seria tudo uma perda de tempo?
Algum tempo depois os seus pensamentos transferiram-se para a mãe. Mags conseguira controlar-se de novo na véspera, durante o funeral de Bets, mostrando-se calmamente pesarosa e não acometida pela dor, e estava agora na Cornualha com a irmã, Bella, a tia de Hermia. Mas na noite da bomba expusera a sua alma.
As duas mulheres haviam sido amigas devotadas, mas era manifestamente mais do que isso. Hermia nem queria pensar no que mais poderia estar envolvido, mas não conseguia deixar de ficar intrigada. Pondo de lado o pensamento embaraçoso de qual a relação física que poderia existir entre Mags e Bets, Hermia ficara chocada por a mãe ter acalentado durante uma vida inteira uma ligação apaixonada que fora cuidadosamente disfarçada, todos aqueles anos, escondida da própria Hermia e, ao que tudo indicava, do marido de Mags, o pai de Hermia.
Chegou a Stokeby às oito horas de um ameno final de tarde e, da estação dos caminhos-de-ferro, foi direita ao pub Shipwrights Arms na doca. Bastaram apenas alguns minutos a fazer perguntas para ficar a saber que Sten Munch, um capitão dinamarquês que conhecera na sua última visita ali, partiria na manhã seguinte no seu barco Morganmand, que significava "madrugador". Encontrou Sten na sua casa na colina, a aparar a sebe do jardim da frente como um inglês nato. Convidou-a a entrar.
Era viúvo e morava com o filho, Lars, que se encontrava com ele no barco no dia 9 de Abril de 1940. Lars casara entretanto com uma rapariga local, Carol. Quando Hermia entrou, Carol estava a cuidar de um bebé minúsculo com alguns dias de vida. Lars preparou chá. Falaram todos em inglês em atenção a Carol.
Hermia explicou que precisava de se aproximar o máximo possível da costa dinamarquesa para tentar escutar uma transmissão alemã no rádio; de que tipo, não referiu. Sten não questionou a história dela. - Claro! - disse expansivamente. - Tudo para ajudar a derrotar os nazis! Mas o meu barco não tem grandes condições.
- Por que não?
- É muito pequeno, apenas dez metros e meio, e vamos estar fora cerca de três dias.
Hermia já estava à espera. Avisara Woodie de que precisava de acomodar a mãe nas novas instalações e regressaria num determinado dia da semana seguinte. - Não tem importância - respondeu a Sten. - Tenho tempo.
- O meu barco só tem três beliches. Dormiremos por turnos. Não foi concebido para senhoras. Deveria ir numa embarcação maior.
- Há alguma que parta de manhã?
Sten olhou para Lars, que disse: - Não. Partiram três ontem, só regressarão para a próxima semana. O Peter Gorning deveria estar de volta amanhã. Voltará a sair lá para quarta-feira.
Ela abanou a cabeça. - Tarde de mais.
Carol levantou a cabeça do bebé. - Eles dormem vestidos, sabe. É por isso que cheiram tão mal quando regressam a casa. É pior do que o cheiro do peixe.
Hermia gostou imediatamente dela pela sua enorme frontalidade.
- Ficarei bem - disse. - Posso dormir vestida, numa cama ainda quente do anterior ocupante. Não morrerei por isso.
Sten desculpou-se: - Sabe que quero ajudar. Mas o mar não é para as mulheres. Vocês foram feitas para as coisas graciosas da vida.
Carol resfolegou desdenhosamente. - Como dar à luz?
Hermia sorriu, grata por ter Carol como aliada. - Exactamente. Nós conseguimos aguentar o desconforto.
Carol anuiu vigorosamente. - Imagine o que o Charlie está a passar no deserto. - Explicou a Hermia: - O meu irmão Charlie está algures com o exército no Norte de África.
Sten afivelou um ar apreensivo. Não queria levar Hermia, mas tinha relutância em afirmá-lo, querendo mostrar-se patriótico e corajoso.
- Partimos às três da manhã.
- Lá estarei.
Carol sugeriu: -Já agora, podia ficar aqui. Temos um quarto vago. - Olhou para o sogro. - Se não vir nenhum inconveniente, pai.
Ele não tinha mais desculpas a alegar. - Claro! - respondeu.
- Obrigada - disse Hermia. - É muito gentil.
Foram-se deitar cedo. Hermia não se despiu, ficou sentada no quarto com a luz acesa. Receava que, se se deixasse dormir, Sten partisse sem ela. A família Munch não era dada à leitura, e o único livro que encontrou foi a Bíblia em dinamarquês, mas manteve-a acordada. Às duas horas foi à casa de banho e lavou-se rapidamente, depois desceu em bicos de pés e pôs a chaleira ao lume. Sten apareceu às duas e meia. Quando viu Hermia na cozinha, ficou surpreendido e desapontado. Serviu-lhe uma chávena grande de chá e ele aceitou-a, grato.
Hermia, Sten e Lars desceram a colina até ao cais alguns minutos antes das três horas. Estavam mais dois dinamarqueses à espera na doca. O Morganmand era muito pequeno. Dez metros e meio era praticamente o comprimento de um autocarro londrino. A embarcação era de madeira e tinha um mastro e um motor a diesel. No convés havia uma pequena casa do leme e uma série de escotilhas sobre o porão. Da casa do leme, uma escada de convés conduzia às camaratas. Na popa ficavam os sólidos botalós e o mecanismo para enrolar as redes.
A alva despontava quando a pequena embarcação avançou pelo campo de minas defensivo à saída do porto. O tempo estava bom, mas encontraram ondulação de um metro e meio a dois metros mal deixaram o abrigo da terra. Felizmente, Hermia nunca enjoava.
Ao longo do dia, tentou tornar-se útil no barco. Não conhecia a arte de marear, por isso manteve a cozinha limpa. Os homens estavam acostumados a preparar as suas refeições, mas lavou os pratos e a frigideira em que preparavam praticamente tudo o que comiam. Procurou conversar com os dois tripulantes, falando em dinamarquês, relacionando-se respeitosamente com cada um deles. Quando não tinha mais nada que fazer, sentava-se no convés e apanhava sol.
Perto do meio-dia chegaram a Outer Silver Pit, no canto sudeste de Dogger Bank, e começaram o arrasto. O barco reduziu a velocidade e rumou a nordeste. A princípio não encontraram os peixes, e as redes vieram quase vazias. Depois, para o fim da tarde, os peixes começaram a afluir.
Ao cair da noite, Hermia foi para baixo e estendeu-se numa tarimba. Pensou que não conseguisse dormir, mas estava a pé há trinta e seis horas, e o cansaço venceu a tensão. Numa questão de minutos mergulhou no sono.
Durante a noite foi acordada, por breves instantes, pelo ruído vulcânico de um voo de bombardeiros por cima do barco. Perguntou-se vagamente se era a RAF a dirigir-se para a Alemanha ou a Luftwaffe a seguir no sentido inverso; voltou então a adormecer.
Depois, só teve consciência de Lars a sacudi-la. - Estamos a chegar ao ponto mais próximo da Dinamarca - disse-lhe. - Estamos a cerca de cento e vinte milhas de Morlunde.
Hermia trouxe a mala com o receptor para o convés. Os homens recolhiam uma rede cheia de peixes a debater-se, principalmente arenques e cavalas, e despejavam-nos no porão. Hermia achou que era uma visão arrepiante, e desviou o olhar.
Ligou a bateria ao rádio e ficou aliviada ao ver os mostradores agitarem-se. Prendeu a antena ao mastro com uma extensão de fio prudentemente fornecido por Digby. Deixou que o aparelho aquecesse, a seguir colocou os auscultadores.
Enquanto o barco seguia rumo a nordeste, Hermia percorreu para cima e para baixo as frequências de rádio. Para além das transmissões da BBC em inglês, apanhou programas de rádio em francês, holandês, alemão e dinamarquês, para além de uma série de transmissões em Morse que presumiu serem sinais militares de ambos os lados. À primeira passagem para cima e para baixo, não escutou nada que pudesse ter sido um radar.
Repetiu o exercício mais lentamente, certificando-se de que não lhe escapava nada. Tinha tempo suficiente. No entanto, mais uma vez não ouviu o que procurava.
Continuou a tentar.
Ao fim de duas horas, apercebeu-se de que os homens tinham parado de pescar e a observavam. Captou o olhar de Lars, que lhe perguntou: - Alguma sorte?
Retirou os auscultadores. - Não estou a captar o sinal que esperava - referiu em dinamarquês.
Sten respondeu na mesma língua. - Os peixes afluíram toda a noite. Saímo-nos bem; o porão está cheio. Podemos regressar a casa.
- Poderia rumar a norte por um bocado? Preciso de tentar encontrar este sinal; é deveras importante.
Sten ficou na dúvida, mas o filho disse: - Podemos fazê-lo perfeitamente; tivemos uma boa noite.
Sten continuava relutante. - E se um avião alemão de identificação nos sobrevoar?
Hermia sugeriu: - Podia atirar as redes e fingir estar a pescar.
- Não existem zonas de pesca no sítio aonde quer ir.
- Os pilotos alemães não sabem disso.
Um dos membros da tripulação interveio: - Se é para ajudar a libertar a Dinamarca...
O outro tripulante acenou vigorosamente com a cabeça.
Mais uma vez, Hermia foi salva pela relutância de Sten em se mostrar cobarde na presença de terceiros. - Está bem - anuiu. - Vamos rumar a norte.
- Mantenha-se a cem milhas da costa - pediu Hermia, voltando a colocar os auscultadores.
Continuou a sondar as frequências. À medida que o tempo passava, foi ficando menos esperançada. O local mais provável para uma estação de radar era no extremo meridional da costa da Dinamarca, próximo da fronteira com a Alemanha. Pensara ser possível captar a transmissão mais cedo. Mas as suas esperanças diminuíam de hora para hora à medida que o barco rumava a norte.
Não estava disposta a afastar-se do aparelho mais de um minuto ou dois, de modo que os pescadores lhe levaram chá em intervalos e uma tigela com guisado de lata à ceia. Enquanto escutava, olhava para leste. Não conseguia ver a Dinamarca, mas sabia que Arne se encontrava algures ali, e agradou-lhe a sensação de maior proximidade dele.
Perto do anoitecer, Sten ajoelhou no convés a seu lado para conversar, e ela tirou os auscultadores. - Encontramo-nos ao largo da ponta norte da península da Jutlândia - referiu. - Temos de regressar.
Em desespero, suplicou: - Não poderíamos aproximar-nos um pouco mais? Talvez a cem milhas da costa seja demasiado longe para captar o sinal.
- Precisamos de voltar para casa.
- Não podíamos seguir a costa para sul, retomando o rumo, mas cinquenta milhas mais perto de terra?
- Demasiado perigoso.
- É quase noite. Não há aviões de identificação à noite.
- Não me agrada.
- Por favor. É muito importante. - Lançou um olhar de súplica a Lars, que se encontrava por perto, a ouvir. Era mais afoito do que o pai, talvez porque encarava o seu futuro na Grã-Bretanha, com a mulher inglesa.
Tal como esperava, Lars interveio. - E que tal setenta milhas da costa?
- Isso seria óptimo.
Lars olhou para o pai. - De qualquer maneira, tínhamos de ir para sul. Não acrescentaremos mais de umas horas à nossa viagem.
Sten respondeu furiosamente: - Estaremos a pôr em perigo a nossa tripulação.
Lars redarguiu calmamente: - Pense no irmão de Carol em África. Ele não teve medo de enfrentar o perigo. Esta é a nossa oportunidade de fazermos algo para ajudar.
- Está bem, pega tu no leme - cedeu Sten, carrancudo. - Vou dormir. - Entrou na casa do leme e desceu a escada do convés.
Hermia sorriu a Lars. - Obrigada.
- Nós é que lhe devíamos agradecer.
Lars virou o barco e Hermia continuou a sondar as ondas electromagnéticas. A noite caiu. Navegavam sem luzes, mas o céu estava limpo e havia três quartos de lua, o que provocou em Hermia a sensação de que o barco daria nas vistas. Todavia, não viram qualquer avião nem nenhum outro barco. Periodicamente, Lars verificava a posição com um sextante.
A mente dela vogou até ao ataque aéreo em que estivera envolvida com Digby escassos dias antes. Pela a primeira vez, havia sido apanhada fora de portas durante um ataque aéreo. Conseguira manter a calma-, mas fora um cenário aterrador: o ronco do avião, os holofotes e os disparos, a pancada das bombas a cair e a luz infernal das casas em chamas. No entanto, estava ali a esforçar-se por ajudar a RAF a infligir os mesmos horrores às famílias alemãs. Parecia uma loucura - mas a única alternativa era deixar os nazis ocuparem o mundo.
A noite de solstício de Verão era curta, e alvorecia cedo. O mar encontrava-se invulgarmente calmo. Uma bruma matinal erguia-se da superfície, reduzindo a visibilidade e fazendo Hermia sentir-se mais segura. Enquanto o barco continuava a rumar a sul, ficou mais ansiosa. Tinha de captar o sinal em breve; a menos que ela e Digby estivessem errados, e Herbert Woodie certo.
Sten apareceu no convés com uma caneca de chá numa mão e uma sanduíche de bacon na outra. - Então? - perguntou. -Já conseguiu o que queria?
- O mais provável é vir do Sul da Dinamarca - disse ela.
- Ou então de lado nenhum.
Ela anuiu, com desânimo. - Começo a pensar que tem razão. - Depois ouviu algo. - Espere! - Estivera a percorrer as frequências para cima e julgara ter ouvido uma nota musical. Rodou o botão ao contrário, procurando o local. Apanhou imensas interferências, depois novamente a nota: um tom puramente mecânico, cerca de uma oitava abaixo do dó central. - Acho que pode ser isto! - anunciou, animada. O comprimento de onda era 2,4 metros. Fez uma anotação no livrinho que Digby introduzira na mala.
Agora só tinha de determinar a direcção. Havia um mostrador de 1 a 360 incorporado no receptor, com um ponteiro a indicar a origem do sinal. Digby frisara que o mostrador tinha de estar no alinhamento exacto do centro do barco. Depois a direcção do sinal poderia ser calculada com base no rumo do barco e no ponteiro no mostrador. - Lars! - gritou. - Qual é o nosso rumo?
- Es-sueste - respondeu ele.
- Não, exactamente.
- Bem... - Apesar de o tempo estar bom e o mar calmo, o barco movia-se constantemente e a bússola nunca ficava parada.
- O melhor que conseguir - disse.
- Cento e vinte graus.
A agulha no mostrador indicava 340. Somando 120 a esse valor situava a direcção perto de 100. Hermia efectuou uma anotação. - E qual é a nossa posição?
- Espere um pouco. Quando tirei a altura das estrelas, estávamos a atravessar o paralelo cinquenta e seis. - Consultou o diário, confirmou com o relógio de pulso e indicou a latitude e a longitude. Hermia anotou os números, sabendo que eram apenas uma estimativa.
Sten interveio: - Já está satisfeita? Podemos ir para casa.
- Preciso de outra leitura para fazer a triangulação da origem da transmissão.
Resmungou de contrariedade e afastou-se.
Lars piscou-lhe o olho.
Manteve o receptor sintonizado na nota enquanto seguiam para sul. A agulha no radiogoniómetro moveu-se imperceptivelmente. Cerca de meia hora depois voltou a pedir a Lars o rumo do barco.
- Continua nos cento e vinte.
A agulha no mostrador dela indicava agora 335. Por conseguinte, a direcção do sinal era 095. Pediu-lhe de novo a estimativa da posição, e anotou os números.
- Casa? - perguntou ele. -- Sim. E obrigada. Virou o leme.
Hermia sentia-se vitoriosa, só que estava ansiosa por descobrir de onde vinha o sinal. Dirigiu-se à casa do leme e encontrou um roteiro marítimo em grande escala. Com a ajuda de Lars, assinalou as posições que anotara e traçou linhas para a direcção do sinal de cada posição, corrigindo com o Norte geográfico. As linhas intersectavam-se ao largo da costa, perto da ilha de Sande.
- Meu Deus - disse Hermia. - É de onde provém o meu noivo.
- Sande? Conheço-a: fui lá assistir às provas de velocidade de carros de corrida há alguns anos.
Rejubilou. O seu palpite estivera certo e o seu método resultara. O sinal que esperara vinha do lugar mais lógico.
Agora precisava de mandar Poul, ou um da sua equipa, a Sande para procurar. Assim que regressasse a Bletchley, enviaria uma mensagem codificada.
Passados alguns minutos, anotou outro rumo. O sinal era agora mais fraco, mas a terceira linha no mapa formou um triângulo com as outras duas, e a ilha de Sande situava-se basicamente dentro daquele triângulo. Todos os cálculos eram aproximados, mas a conclusão parecia evidente. O sinal de rádio vinha da ilha.
Mal podia esperar para contar a Digby.
Para Harald, o Tiger Moth era a mais bela máquina que alguma vez vira. Parecia uma borboleta pronta para voar, com as asas superiores e inferiores todas abertas, as rodas de carrinho de brincar assentes ao de leve na relva, a cauda comprida a afunilar para trás. O tempo estava óptimo, soprando suaves brisas, e o pequeno avião tremia ao vento como se estivesse ansioso por descolar. Tinha um único motor no nariz, que fazia mover a hélice enorme pintada de um tom creme. Por detrás do motor havia dois cockpits abertos, um diante do outro.
Era parente do Hornet Moth em mau estado que vira no mosteiro em ruínas de Kirstenslot, e os dois aviões assemelhavam-se em termos de mecânica, exceptuando que o Hornet Moth tinha uma cabina fechada com os lugares lado a lado. Todavia, o Hornet Moth aparentava um ar infeliz, inclinado para um dos lados do trem de aterragem partido, com o tecido rasgado e manchado de óleo, os estofos rotos. Em contraste, o Tiger Moth tinha um ar cheio de vida, com tinta nova e brilhante na fuselagem e o sol a reflectir do pára-brisas. A cauda assentava no solo e o nariz estava empinado, como se farejasse o ar.
- Repara que as asas são planas por baixo mas curvas por cima - disse o irmão de Harald, Arne Olufsen. - Quando o avião está em movimento, o ar que se desloca sobre a parte de cima da asa é obrigado a mover-se mais rapidamente do que o ar que passa por baixo. - Brindou-o com aquele sorriso cativante que levava as pessoas a perdoarem-lhe tudo. - Por razões que nunca entendi, isso faz levantar o avião do solo.
- Cria uma diferença de pressão - explicou Harald.
- Efectivamente - replicou Arne, com secura.
A turma de finalistas de Jansborg Skole fora passar o dia na Escola de Aviação Militar em Vodal. Eram acompanhados por Arne e pelo seu amigo Poul Kirke. Tratava-se de um exercício de recrutamento da aviação, que estava com dificuldades em persuadir os jovens inteligentes a entrarem para um ramo das forças armadas que naquela altura não tinha nada que fazer. Heis, com os seus antecedentes militares, gostava que Jansborg enviasse anualmente um ou dois alunos para o serviço militar. Para os rapazes, a visita constituía uma pausa bem-vinda nas revisões para os exames.
- As superfícies articuladas nas asas inferiores chamam-se ailerons - informou-os Arne. - Encontram-se ligados por cabos à coluna da direcção, que por vezes se chama joystick, por razões que vocês são demasiado jovens para entender. - Quando a manche se desloca para a esquerda, o aileron esquerdo sobe e o direito desce. Isto faz com que o avião vire e curve para a esquerda. Chamamos-lhe inclinação vertical.
Harald estava fascinado, mas queria entrar nele e voar.
- Reparem que a metade traseira do estabilizador também é articulada - referiu Arne. - Chama-se leme de profundidade, e aponta o avião para cima ou para baixo. Puxando para nós a manche, o leme de profundidade inclina-se para cima, fazendo baixar a cauda, para que o avião suba.
Harald apercebeu-se de que a parte vertical da cauda tinha também uma aba. - Para que é aquilo? - inquiriu, apontando para lá.
- É o leme, controlado por dois pedais na reentrância do cockpit, em frente dos bancos. Funciona do mesmo modo que o leme de um barco.
Mads interveio: - Para que precisa de um leme? Usa os ailerons para mudar de direcção.
- Bem visto! - exclamou Arne. - Só prova que estiveste com atenção. Mas não consegues chegar lá? Por que precisaríamos de um leme bem como de ailerons para virar o avião?
Harald adivinhou. - Não é possível usar os ailerons quando estamos na pista.
- Porque... ?
- As asas bateriam no solo.
- Correcto. Usamos o leme enquanto deslizamos pela pista, quando não podemos inclinar as asas porque bateriam no solo. Usamos igualmente o leme no ar, para controlar movimentos laterais indesejados, aquilo a que chamamos guinada.
Os quinze rapazes tinham visitado a base aérea, assistido a uma palestra - sobre oportunidades, vencimento e formação na aviação - e almoçado com um grupo de jovens aprendizes de piloto. Estavam então ansiosos pela aula individual de voo que fora prometida a cada um deles como ponto alto do dia. Havia cinco Tiger Moths alinhados na relva. A aviação militar dinamarquesa fora oficialmente impedida de levantar voo desde o início da ocupação, mas existiam excepções. A escola de voo estava autorizada a dar aulas em planadores, e tivera uma autorização especial para os exercícios daquele dia nos Tiger Moths. Não fosse alguém ter a ideia de pilotar um Tiger Moth até à Suécia, encontravam-se dois caças Messerschmitt ME-109 na pista, prontos para perseguir e abater quem tentasse a fuga.
Poul Kirke aproveitou o comentário de Arne. - Quero que observem o cockpit, um de cada vez - disse. - Subam pela faixa preta ao longo da asa inferior. Não apoiem os pés em mais lado nenhum, senão eles atravessarão o tecido e vocês não poderão voar.
Tik Duchwitz foi o primeiro. Poul disse: - Vêem do lado esquerdo uma alavanca metalizada, o acelerador, que controla a velocidade do motor, e mais abaixo uma alavanca verde, o compensador, que aplica uma carga de mola ao leme de profundidade. Se o compensador estiver puxado quando se deslocam em altitude de cruzeiro, o avião deveria voar na horizontal quando tiram a mão da manche.
Harald foi o último. Estava extremamente interessado, apesar do ressentimento em relação à forma arrogantemente melíflua como Poul mirara Karen Duchwitz na bicicleta.
Quando desceu, Poul perguntou-lhe: - Então, o que te parece, Harald?
Harald encolheu os ombros. - Parece simples.
- Nesse caso podes ir primeiro - disse Poul, com um largo sorriso.
Os outros soltaram gargalhadas, mas Harald ficou satisfeito.
- Vamos todos equipar-nos - anunciou Poul.
Regressaram ao hangar e vestiram os fatos de voo: fatos-macacos de enfiar pelas pernas que abotoavam na frente. Foram também distribuídos capacetes e óculos. Para contrariedade de Harald, Poul fez questão de o ajudar.
- A última vez que nos encontrámos foi em Kirstenslot - referiu Poul enquanto compunha os óculos de Harald.
Harald anuiu com secura, não desejando que lho recordassem. Mesmo assim, não podia deixar de estar curioso em saber qual o tipo de relacionamento de Poul com Karen. Andavam apenas a sair, ou algo mais? Ela beijava-o apaixonadamente e deixava-o tocar no seu corpo? Falavam em casar-se? Tinham tido relações sexuais? Não queria pensar naquelas coisas, mas era superior às suas forças.
Quando ficaram prontos, os primeiros cinco alunos regressaram ao campo, cada um com o seu um piloto. Harald teria preferido subir com o irmão, mas Poul voltou a escolher Harald. Até parecia que queria ficar a conhecê-lo melhor.
Um ajudante de fato-macaco sujo de óleo reabastecia o avião, com um pé apoiado na fuselagem. O depósito de combustível ficava no centro da asa superior, no sítio onde passava por cima do banco da frente - uma posição incómoda, achou Harald. Conseguiria abstrair-se dos litros de líquido inflamável por cima da sua cabeça?
- Primeiro, a inspecção que antecede o voo - disse Poul. Debruçou-se sobre o cockpit. - Verificamos se os comutadores do magneto estão desligados e o acelerador fechado. - Olhou para as rodas. - Calços colocados. - Deu pontapés nos pneus e agitou os ailerons. - Mencionaste que tinhas trabalhado na nova base alemã em Sande - comentou casualmente.
- Sim.
- Que tipo de trabalho?
- Apenas mão-de-obra geral: abrir buracos, misturar cimento, carregar tijolos.
Poul deslocou-se até à traseira do avião e verificou o movimento dos lemes de profundidade. - Descobriste ao que o local se destina?
- Na altura, não. Assim que o trabalho básico de construção ficou pronto, os operários dinamarqueses foram dispensados, e os alemães encarregaram-se do resto. Mas tenho a certeza de que é uma estação de rádio qualquer.
- Penso que o mencionaste da última vez. Mas como é que sabes?
- Vi o equipamento.
Poul fitou-o com dureza, e Harald apercebeu-se de que as perguntas não eram fortuitas. - É visível do exterior?
- Não. O local está vedado e guardado, e o equipamento de rádio fica encoberto pelas árvores, excepto do lado virado para o mar, e aquela parte da praia dentro da área interdita.
- Mas afinal como é que viste?
- Estava com pressa de chegar a casa, de modo que atalhei pela base.
Poul acocorou-se por detrás do leme e verificou a "bequilha. - E então - perguntou -, o que viste?
- Uma antena enorme, a maior que alguma vez encontrei, quadrada, talvez com três metros e meio, numa base rotativa.
O ajudante que estivera a reabastecer o aparelho interrompeu a conversa. - Quando quiser, pode partir, senhor.
Poul perguntou a Harald: - Preparado para voar?
- À frente ou atrás?
- O instruendo senta-se sempre atrás.
Harald subiu. Teve de ficar de pé no assento com rebaixo no encosto para o pára-quedas, depois é que se sentou. O cockpit era estreito, e perguntou-se como conseguiam lá caber os pilotos gordos; apercebeu-se depois de que não existiam pilotos gordos.
Em virtude do ângulo de nariz levantado em que o avião se encontrava sobre a relva, não conseguia ver nada para a frente senão o céu azul limpo. Teve de se inclinar para um lado a fim de ver o solo à sua frente.
Apoiou os pés nos pedais do leme e a mão direita na manche. A título experimental, deslocou a manche de um lado para o outro e viu os ailerons subirem e descerem por ordem sua. Com a mão esquerda tocou no acelerador e no compensador.
Na fuselagem, mesmo do lado de fora do cockpit, havia dois botões pequenos, que presumiu serem os comutadores gémeos do magneto.
Poul debruçou-se para ajustar o cinto de segurança de Harald. - Estes aviões foram concebidos para instrução, por isso têm comandos duplos - referiu. - Enquanto eu estiver a pilotar, apoia as mãos e os pés nos comandos e sente como os faço deslocar. Dir-te-ei quando puderes assumir o comando.
- Como é que comunicamos?
Poul apontou para um tubo de borracha em forma de Y como o estetoscópio de um médico. - Isto funciona como o tubo acústico num navio. - Mostrou a Harald como se prendiam as extremidades aos auriculares no seu capacete de voo. A base do Y estava enfiada num tubo de alumínio, que sem dúvida conduzia à parte da frente do cockpit. Outro tubo com um bocal servia para falar.
Poul subiu para o banco da frente. Um momento depois, Harald escutou a voz dele através do tubo acústico. - Consegues ouvir-me?
- Perfeitamente.
O ajudante encontrava-se na parte dianteira esquerda do avião, e seguiu-se um diálogo gritado, com o ajudante a fazer perguntas e Poul a responder.
- Pronto para o arranque, senhor?
- Pronto para o arranque.
- Combustível ligado, comutadores desligados, válvula fechada?
- O combustível está ligado, os comutadores estão desligados, a válvula está fechada.
Harald esperou que o ajudante rodasse a hélice naquele momento, mas ele colocou-se antes do lado direito do avião, abriu a tampa removível na fuselagem e mexeu no motor, preparando-o para começar a trabalhar. A seguir fechou o painel e regressou ao nariz do avião.
- A aspirar, senhor - disse, depois levantou o braço e fez descer a pá da hélice. Repetiu a acção três vezes, e Harald calculou que este procedimento fizesse afluir o combustível aos cilindros.
O ajudante debruçou-se sobre a asa inferior e accionou os dois pequenos comutadores do lado de fora do cockpit de Harald. - Acelerador a postos?
Harald sentiu o acelerador avançar um centímetro e meio sob a sua mão, depois ouviu Poul dizer: - Acelerador a postos.
- Contacto.
Poul esticou o braço e empurrou para a frente os comutadores do seu cockpit.
O ajudante fez girar novamente a hélice, desta vez recuando praticamente de imediato. O motor pegou e a hélice rodou. Ouviu-se um ronco, e o pequeno avião estremeceu. Harald teve uma súbita e nítida sensação da enorme leveza e fragilidade do aparelho, e recordou com um certo choque do que era feito, não de metal mas de madeira e tecido. A vibração não se assemelhava nada à de um carro ou sequer de uma motorizada, que, comparativamente, se afigurava sólida e firmemente assente na terra. Aquilo era mais como trepar a uma árvore jovem e sentir o vento a sacudir os seus ramos esguios.
Harald ouviu a voz de Poul através do tubo acústico. - Temos de deixar o motor aquecer. Demora alguns minutos.
Harald pensou nas perguntas de Poul sobre o assunto da base em Sande. De certeza não se tratara de simples curiosidade. Poul tinha uma finalidade. Quisera saber a importância estratégica da base. Porquê? Poul fazia parte de algum movimento secreto de Resistência? O que mais poderia ser?
A toada do motor subiu, e Poul desligou e ligou sucessivamente os comutadores do magneto - efectuando mais outra verificação de rotina, calculou Harald. Depois a toada diminuiu para um trabalhar lento e, finalmente, Poul fez sinal ao ajudante para retirar os calços das rodas. Harald sentiu um esticão e o avião avançou.
Os pedais sob os seus pés moveram-se enquanto Poul usava o leme para virar o avião na pista sobre a relva. Deslizaram até à pista, que estava assinalada com bandeirinhas, e viraram-se para o vento. Depois pararam, e Poul disse: - Mais algumas verificações antes de descolarmos.
Pela primeira vez, ocorreu a Harald que o que se preparava para fazer era perigoso. Havia anos que o seu irmão voava sem um acidente, mas outros pilotos tinham-se despenhado, e alguns, inclusivamente, morrido. Mentalizou-se de que as pessoas morriam em carros, motorizadas, e a bordo de barcos - mas, de certa forma, aquilo parecia diferente. Fez um esforço por não pensar mais nos perigos. Não ia entrar em pânico e cobrir-se de ridículo perante a turma.
De repente, o acelerador sob a sua mão deslocou-se suavemente para a frente, o motor roncou mais forte e o Tiger Moth deslizou impacientemente pela pista. Após escassos segundos, a manche afastou-se dos joelhos de Harald e este sentiu-se inclinar ligeiramente para a frente enquanto a cauda atrás de si levantava. O pequeno avião ganhou velocidade, chocalhando e tremendo sobre a relva. O sangue de Harald pareceu vibrar de entusiasmo. Depois a manche retrocedeu sob a sua mão, o avião deu a impressão de saltar do solo e, finalmente, elevaram-se no ar.
Era muito interessante. Subiam a um ritmo constante. De um lado, Harald conseguia ver uma pequena aldeia. Na Dinamarca, um país densamente povoado, não eram muitos os locais onde não existisse uma aldeia. Poul inclinou o avião para a direita. Sentindo-se tombar para o lado, Harald combateu a noção de pânico de que ia cair do cockpit.
Para se acalmar, olhou para os instrumentos. O conta-rotações mostrava duas mil rpm e a velocidade era de noventa e cinco quilómetros por hora. Encontravam-se já a uma altitude de trezentos metros. O ponteiro no indicador de curva e inclinação estava na vertical.
O avião endireitou-se e ficou na horizontal. O acelerador deslocou-se para trás, a toada do motor diminuiu e as rotações baixaram para mil e novecentas. Poul perguntou-lhe: - Estás a segurar a manche?
- Sim.
- Verifica a linha do horizonte. Provavelmente atravessa a minha cabeça.
- De uma orelha à outra.
- Quando eu largar os comandos, quero simplesmente que mantenhas as asas niveladas e o horizonte no mesmo lugar relativamente às minhas orelhas.
Tomado de nervoso, Harald afirmou: - Está bem.
- Tens o controlo.
Harald sentiu o avião ganhar vida nas suas mãos, enquanto cada leve movimento que fazia afectava o voo do aparelho. A linha do horizonte desceu para os ombros de Poul, mostrando que o nariz se levantara, e apercebeu-se de que um medo quase inconsciente de ir direito ao solo o levava a puxar a manche para si. Empurrou-a um infinitésimo para a frente, e teve a satisfação de ver a linha do horizonte voltar às orelhas de Poul.
O avião deu uma guinada e inclinou-se. Harald sentiu que perdera o controlo e estavam prestes a cair do céu. - O que foi aquilo? - gritou.
- Apenas uma rajada de vento. Corrige-o, mas não demasiado. Reprimindo o pânico, Harald moveu a manche no sentido contrário
à inclinação. O avião deu uma guinada na outra direcção, mas pelo menos sentiu que o controlava, e voltou a rectificar com outro pequeno movimento. Viu então que tornava a subir, e fez baixar o nariz. Constatou que tinha de se concentrar intensamente para reagir ao mais ínfimo movimento do avião só para manter um rumo constante. Tinha a sensação de que um pequeno erro poderia fazê-lo despenhar-se no solo.
Quando Poul falou, Harald levou-lhe a mal a interrupção. - Estás a ir muito bem - comentou Poul. - Começas a apanhar-lhe o jeito.
Harald sentiu que necessitava apenas de mais um ano ou dois de prática.
- Agora prime ligeiramente os pedais do leme com ambos os pés - disse Poul.
Durante um bocado Harald não pensara nos pés. - Está bem - respondeu bruscamente.
- Olha para o indicador de curva e inclinação.
Harald teve vontade de dizer, Por amor de Deus, como posso fazer isso e pilotar o avião ao mesmo tempo? Obrigou-se a tirar os olhos do horizonte por um instante e a olhar para o painel de instrumentos. O ponteiro continuava na posição do meio-dia. Olhou de novo para o horizonte e verificou que levantara novamente o nariz. Corrigiu.
- Quando eu tirar os pés do leme, verificarás que o nariz guina para a esquerda e a direita devido à turbulência. Caso não tenhas a certeza, verifica no indicador. Quando o avião guinar para a esquerda, o ponteiro mover-se-á para a direita, informando-te de que tens de premir com o pé direito para corrigires.
- Está bem.
Harald não sentiu qualquer movimento lateral, mas alguns instantes depois, quando conseguiu deitar uma olhada ao mostrador, viu que estava a inclinar-se para a esquerda. Premiu o pedal do leme com o pé direito. O ponteiro não se mexeu. Premiu com mais força. Lentamente, o ponteiro retomou a posição central. Olhou para cima e viu que estava a descer ligeiramente. Puxou a manche para si. Verificou novamente o indicador de curva e inclinação. O ponteiro estava parado.
Teria parecido simples e fácil se não se encontrasse a quatrocentos e cinquenta metros do solo.
Poul disse-lhe: - Agora vamos experimentar dar a volta.
- Oh, merda - protestou Harald.
- Primeiro, olha para a esquerda e repara se não há nenhum obstáculo no caminho.
Harald olhou para a esquerda. Conseguiu ver lá ao longe outro Tiger Moth, supostamente com um dos seus colegas lá dentro, a fazer o mesmo que ele. Sempre era tranquilizador. - Nada por perto - referiu.
- Desloca a manche para a esquerda.
Harald assim fez. O avião inclinou-se para a esquerda e teve de novo a sensação doentia de que ia cair. Mas o avião começou a virar para a esquerda, e Harald sentiu uma enorme excitação ao aperceber-se de que estava efectivamente a manobrar o Tiger Moth.
- Numa volta, o nariz tende a descer - explicou Poul. Harald viu efectivamente que o avião se inclinava para baixo, e puxou para trás a manche.
- Atenção ao indicador de curva e inclinação - advertiu Poul. - Estás a fazer o equivalente a uma derrapagem.
Harald verificou o mostrador e viu que o ponteiro se deslocara para a direita. Premiu o pedal do leme com o pé direito. Mais uma vez, ele reagiu muito lentamente.
O avião virara noventa graus, e Harald estava ansioso por o endireitar e sentir-se novamente seguro mas Poul pareceu ler-lhe o pensamento (ou talvez todos os alunos tivessem a mesma sensação naquele momento) e disse: - Continua a virar, estás a ir bem.
O ângulo de inclinação afigurou-se a Harald perigosamente acentuado mas continuou a virar, mantendo o nariz levantado, verificando o indicador de inclinação de poucos em poucos segundos. Pelo canto do olho reparou num autocarro que seguia lá em baixo na estrada, tal como se não estivesse a acontecer nada de dramático no céu, e não houvesse o perigo de um aluno de Jansborg poder cair dos céus e morrer em cima do tejadilho dele.
Dera já uma volta de três quartos de círculo quando Poul disse por fim: - Endireita.
Aliviado, Harald deslocou a manche para a direita e o avião endireitou-se.
- Atenção ao indicador de inclinação.
O ponteiro deslocara-se para a esquerda. Harald premiu o pedal do leme com o pé esquerdo.
- Consegues ver o aeródromo?
De início Harald não conseguiu. O terreno por debaixo dele era um padrão sem sentido de campos salpicados de edifícios. Não fazia ideia do aspecto da base aérea vista lá de cima.
Poul ajudou-o a orientar-se. - Uma fila de edifícios brancos compridos ao lado de um campo verde-vivo. Olha para a esquerda da hélice.
- Estou a ver.
- Continua nessa direcção, mantendo o aeródromo do lado esquerdo do nosso nariz.
Até ali, Harald não pensara no rumo que seguiam. Só estivera concentrado em estabilizar o avião. Agora tinha de fazer tudo o que aprendera anteriormente e, ao mesmo tempo, regressar à base. Havia sempre tanta coisa em que atentar.
- Estás a subir - advertiu Poul. - Recua a manche dois centímetros e meio e coloca-nos a trezentos metros quando nos aproximarmos dos edifícios.
Harald verificou o altímetro e viu que o avião estava efectivamente a seiscentos metros. Estivera a quatrocentos e cinquenta da última vez que olhara. Desacelerou e empurrou a manche para a frente.
- Baixa mais um pouco o nariz - disse Poul.
Harald sentiu que o avião estava em perigo de descer a pique até ao solo, mas fez um esforço para empurrar a manche bastante mais para a frente.
- Muito bem - comentou Poul.
Quando se encontravam a trezentos metros, a base estava por debaixo deles.
- Vira à esquerda perto da margem mais distante daquele lago e alinha-nos com a pista - ordenou Poul.
Harald nivelou-se e verificou o indicador de inclinação. Quando ficou paralelo à extremidade do lago, deslocou a manche para a esquerda. Desta vez, a sensação de que ia cair não foi tão acentuada.
- Atenção ao indicador de direcção. Esquecera-se. Corrigindo com o pé, endireitou o avião.
- Fecha o acelerador cerca de dois centímetros e meio.
Harald puxou a alavanca para trás e a toada do motor baixou bruscamente.
- Demasiado.
Harald deslocou-a novamente para a frente.
- Baixa o nariz.
Harald empurrou a manche para a frente.
- Isso mesmo. Mas procura manter o rumo da pista.
Harald viu que se desviara da rota e ia direito aos hangares. Obrigou o avião a dar uma volta a rasar, corrigindo com o leme, depois voltou a alinhá-lo com a pista. Mas via naquele momento que estava a demasiada altitude.
- A partir daqui assumo o controlo - disse Poul.
Harald julgara que Poul o fosse ensinar a aterrar, mas era evidente que não adquirira ainda o controlo suficiente para tal. Ficou desapontado.
Poul fechou o acelerador. A toada do motor baixou abruptamente, dando a Harald a sensação preocupante de que nada impediria o avião de cair por ali abaixo, mas a verdade é que ele deslizou gradualmente até à pista. Alguns segundos antes de pousar, Poul deslocou a manche para trás. O avião pareceu flutuar apenas alguns centímetros acima do solo. Harald sentiu os pedais na reentrância do cockpit a moverem-se constantemente, e apercebeu-se de que Poul orientava o leme agora que estavam demasiado próximo do solo para inclinar uma asa. Deu-se finalmente um embate quando as rodas e a bequilha tocaram no chão.
Poul saiu da pista e deslizou em direcção ao local de estacionamento. Harald estava encantado. Fora ainda mais excitante do que imaginara. Estava também exausto do enorme esforço de concentração. Fora apenas um breve período de tempo, pensou; quando olhou para o relógio, viu, para espanto seu, que tinham estado quarenta e cinco minutos no ar. Tinham-lhe parecido cinco.
Poul desligou o motor e saiu. Harald levantou os óculos, tirou o capacete, abriu o cinto de segurança e levantou-se do banco. Desceu para a faixa reforçada sobre a asa e saltou para o solo.
- Estiveste muito bem - disse-lhe Poul. - Demonstraste imenso talento, na verdade; tal como o teu irmão, aliás.
- Lamento não ter conseguido trazê-lo até à pista.
- Duvido que algum dos outros rapazes tenha sequer sido autorizado a experimentar. Vamos mudar-nos.
Quando Harald despiu o fato de voo, Poul pediu-lhe: - Vem um instante ao meu gabinete. - Harald acompanhou-o até uma porta assinalada INSTRUTOR-CHEFE DE VOO e entrou numa pequena sala com um ficheiro de arquivo, uma secretária e duas cadeiras.
- Importar-te-ias de fazer um desenho do tal equipamento de rádio que me descreveste antes? - O tom de Poul era descontraído, mas o seu corpo estava rígido da tensão.
Harald perguntara-se se o assunto voltaria a ser abordado. - Com certeza.
- É bastante importante. Não te vou explicar as razões.
- Não tem importância.
- Senta-te à secretária. Há uma caixa de lápis e papel na secretária. Leva o tempo que quiseres. Aperfeiçoa-o até te dares por satisfeito.
- Está bem.
- Quanto tempo pensas que podes demorar?
- Talvez um quarto de hora. Estava escuro, por isso não posso desenhar os pormenores. Mas tenho uma ideia nítida na minha cabeça.
- Vou deixar-te sozinho para não te sentires pressionado. Voltarei dentro de quinze minutos.
Poul saiu e Harald começou a desenhar. A sua mente voltou àquele sábado à noite em que chovera a cântaros. Havia um muro de betão circular, recordou, com cerca de um metro e oitenta de altura. A antena era uma grelha de metal que fazia lembrar um colchão de arame. A sua base giratória ficava dentro do muro circular, e os cabos saíam da parte de trás da antena para um tubo.
Desenhou primeiro o muro com a antena por cima. Recordava-se vagamente de que havia uma ou duas estruturas semelhantes próximo, de modo que as esboçou ao de leve. A seguir desenhou a maquinaria como se não existisse lá o muro, mostrando a sua base e os cabos. Não era nenhum artista mas conseguiu reproduzir a maquinaria com rigor, provavelmente porque lhe agradava.
Quando terminou, virou a folha de papel do outro lado e traçou um plano da ilha de Sande, mostrando a posição da base e a área de praia circunscrita.
Poul voltou passados quinze minutos. Observou os desenhos com atenção, depois disse: - Isto está excelente. Obrigado.
- Não tens de quê.
Apontou para as estruturas auxiliares que Harald esboçara. - O que são?
- Na realidade, não sei. Não as observei com atenção. Mas achei que as devia incluir.
- Fizeste bem. Mais uma pergunta. Esta grelha com arames, que supostamente é uma antena. É plana ou em forma de prato?
Harald puxou pela cabeça, mas não se conseguia lembrar. - Não tenho a certeza - referiu. - Desculpa.
- Não faz mal. - Poul abriu o ficheiro de arquivo. Todas as pastas continham nomes, ao que tudo indicava de antigos e actuais alunos da escola. Escolheu uma assinalada ANDERSEN, H. C. Não era um nome invulgar, mas Hans Christian Andersen era um famoso escritor dinamarquês, e Harald calculou que o ficheiro pudesse ser um esconderijo. De facto, Poul guardou os desenhos na pasta e voltou a arrumá-la no seu lugar.
- Vamos voltar para junto dos outros - propôs. Encaminhou-se para a porta. Detendo-se com a mão no puxador, disse: - Tecnicamente, desenhar instalações militares alemãs é crime. Seria melhor não o mencionares isto a ninguém, nem sequer ao Arne.
Harald sentiu uma pontada de desalento. O seu irmão não estava envolvido naquilo. Nem o melhor amigo de Arne achava que ele tinha coragem.
Harald anuiu. - Concordo plenamente, mas com uma condição.
Poul ficou surpreendido. - Condição? Qual?
- A de seres sincero comigo.
Ele encolheu os ombros. - Está bem, posso tentar.
- Existe um movimento de Resistência, não existe?
- Sim - respondeu Poul, com ar sério. Após uma pausa momentânea, acrescentou: - E agora tu fazes parte dele.
Tilde Jespersen usava um perfume com uma suave fragrância floral que vogava suavemente por cima da mesa posta no passeio e que provocava as narinas de Peter Flemming, mas nunca suficientemente forte para conseguir identificá-lo, mais como uma lembrança que teimava em escapar-lhe. Imaginou a fragrância a elevar-se-lhe da pele morna quando lhe despisse a blusa, a saia e a roupa interior.
- No que estás a pensar? - inquiriu.
Sentiu-se tentado a contar-lhe. Ela fingir-se-ia chocada, mas, no seu íntimo, satisfeita. Percebia quando uma mulher estava preparada para aquele tipo de conversa e sabia como fazê-lo: frivolamente, com um sorriso de condescendência, mas um tom de sinceridade subjacente.
Depois pensou na sua mulher e conteve-se. Levava muito a sério os votos matrimoniais. Os outros podiam achar que ele tinha um bom pretexto para os quebrar, mas impunha-se padrões mais elevados.
Disse então: - Estava a pensar na rasteira que pregaste ao mecânico em fuga no aeródromo. Revelaste uma enorme presença de espírito.
- Nem sequer pensei, limitei-me a estender o pé.
- Tens bons instintos. Nunca fui a favor de mulheres-polícias e, para ser sincero, ainda tenho as minhas dúvidas; mas ninguém poderia negar que és uma agente de primeira.
Ela encolheu os ombros. - Eu própria tenho dúvidas. Talvez as mulheres devessem ficar em casa a cuidar dos filhos. Mas depois de o Oskar morrer... - Oskar fora o marido dela, um detective de Copenhaga e amigo de Peter - ... tive de trabalhar, e a aplicação da lei é a única vida de que conheço alguma coisa. O meu pai foi funcionário das alfândegas, o meu irmão mais velho é agente da Polícia Militar e o meu irmão mais novo é polícia fardado em Aarhus.
- Vou dizer-te o que é extraordinário em ti, Tilde: nunca tentas que os homens façam o teu trabalho armando-te em mulher indefesa.
Pretendera que a sua observação fosse um elogio, mas não ficou tão satisfeita quanto ele esperara. - Nunca peço qualquer ajuda - redarguiu em tom decidido.
- Provavelmente, isso é uma política acertada.
Deitou-lhe um olhar que ele não conseguiu interpretar. Intrigado com o arrefecimento súbito do ambiente, perguntou-se se poderia ter receio de pedir ajuda para evitar ser imediatamente classificada como uma mulher indefesa. Viu que ela poderia melindrar-se. Afinal, os homens pediam constantemente ajuda uns aos outros.
Ela inquiriu: - Mas por que és polícia? O teu pai tem um negócio próspero; não gostarias de ficar à frente dele um dia?
Abanou a cabeça, pesaroso. - Costumava trabalhar no hotel durante as férias grandes. Detestava os hóspedes, com as suas exigências e queixas: esta carne de vaca está passada de mais, o meu colchão é duro, estou há vinte minutos à espera de um café. Não aguentava aquilo.
O empregado aproximou-se. Peter resistiu à tentação de comer arenque e cebolas no seu smorrebrod(1), pensando, vagamente, que se poderia aproximar o suficiente de Tilde para ela sentir o cheiro do seu hálito, de modo que pediu antes com queijo mole e pepinos. Entregaram os cartões de racionamento ao empregado.
Tilde perguntou: - Alguma evolução no caso dos espiões?
- Nem por isso. Os dois homens que prendemos no aeródromo não nos disseram nada. Foram enviados para Hamburgo para aquilo que a Gestapo chama "interrogatório minucioso", e deram o nome do seu contacto: Matthies Hertz, um oficial do exército. Mas ele desapareceu.
- Um beco sem saída, nesse caso.
- Sim. - A frase fê-lo pensar num outro beco sem saída em que se metera. - Conheces alguns judeus?
Ela pareceu surpreendida. - Um ou dois, acho. Nenhuns na polícia. Porquê?
- Estou a elaborar uma lista.
(1) À letra "pão com manteiga", o smorrebrodé um símbolo da cozinha dinamarquesa. Situa-se entre o canapé e a sanduíche, podendo ser colocados em cima da fatia peixes, carnes, queijos, legumes, patês. Come-se com faca e garfo. (NT)
- Uma lista de judeus?
- Sim.
- Onde, em Copenhaga?
- Na Dinamarca.
- Porquê?
- A razão do costume. É minha missão não perder de vista os agitadores.
- E os judeus são agitadores?
- Os alemães acham que sim.
- Até podemos perceber que motivos os levariam, a eles, a terem problemas com os judeus; mas nós temo-los?
Ficou surpreendido. Esperara que ela visse a situação pelo seu prisma. - Convém estarmos preparados. Temos listas de organizadores sindicais, de comunistas, de cidadãos estrangeiros e de membros do Partido Nazi dinamarquês.
- E achas que é a mesma coisa?
- É tudo informação. Ora, é fácil identificar os novos imigrantes judeus que vieram para aqui nos últimos cinquenta anos. Vestem-se de forma esquisita, falam com uma pronúncia característica e a maior parte vive num conjunto restrito de ruas de Copenhaga. Mas existem também judeus cujas famílias são dinamarquesas há séculos. Esses parecem-se com toda a gente, falam como nós. A maioria come carne de porco assada e vai trabalhar aos sábados de manhã. Se alguma vez precisássemos de os encontrar, seria complicado. Por isso estou a elaborar uma lista.
- Como? Não podes simplesmente andar a perguntar às pessoas se conhecem judeus.
- É complicado. Tenho dois detectives principiantes a analisar a lista telefónica, e mais uma ou duas outras listas, tomando notas de nomes que pareçam judeus.
- Isso não é muito fiável. Existem imensas pessoas chamadas Isaksen que não são judias.
- E imensos judeus com nomes como Jan Christiansen. O que eu gostaria mesmo era de fazer uma rusga à sinagoga. Provavelmente terão uma lista dos membros.
Para surpresa sua, ela pusera um ar reprovador, mas disse: - Por que não o fazes?
- O Juel não o permitirá.
- Acho que ele tem razão.
- A sério? Porquê?
- Peter, será que não entendes? Que utilidade teria a tua lista no futuro?
- Não é óbvio? - redarguiu Peter, irritado. - Se os grupos judeus começarem a organizar a resistência aos alemães, saberemos onde ir procurar suspeitos.
- E se os nazis decidirem simplesmente capturar todos os judeus e mandá-los para aqueles campos de concentração que têm na Alemanha? Usarão a tua lista!
- Mas por que haveriam de mandar os judeus para campos?
- Porque os nazis odeiam os judeus. Mas nós não somos nazis, somos agentes da polícia. Prendemos pessoas porque cometeram crimes, não porque as odiamos.
- Eu sei - referiu Peter, furioso. Ficara espantado por ser atacado deste ângulo. Tilde deveria saber que o seu motivo era fazer cumprir a lei, não subvertê-la. - Existe sempre o risco de se fazer uso indevido dessas informações.
- Então não seria melhor não elaborar a maldita lista?
Como podia ser tão estúpida? Enfurecia-o o facto de alguém que tinha na conta de camarada na guerra contra os infractores da lei lhe pudesse estar a levantar entraves. - Não! - gritou. Foi com esforço que baixou a voz. - Se pensássemos assim, não teríamos sequer um departamento de segurança!
Tilde abanou a cabeça. - Olha, Peter, os nazis têm feito imensas coisas boas, ambos o sabemos. Basicamente, estão ao lado da polícia. Têm combatido a subversão, mantêm a lei e a ordem, reduziram o desemprego e assim por diante. Mas, no que diz respeito aos judeus, são loucos.
- É possível, mas estão agora a criar regras.
- Vê só os judeus dinamarqueses: são cumpridores da lei, trabalhadores, mandam os filhos à escola... É ridículo fazer uma lista com os seus nomes e moradas como se pertencessem a alguma conspiração comunista.
Ele recostou-se e proferiu em tom acusador: - Recusas-te, portanto, a trabalhar comigo nisto?
Foi a vez de ela se mostrar ofendida. - Como podes fazer semelhante afirmação? Sou uma agente da polícia profissional, e tu és o meu chefe. Farei o que me mandares. Devias sabê-lo.
- Falas a sério?
- Olha, se quisesses elaborar uma lista completa das bruxas na Dinamarca, dir-te-ia que não considerava as bruxas criminosas ou subversivas, mas ajudar-te-ia a elaborar a lista.
A comida deles chegou. Reinou um estranho silêncio quando começaram a comer. Passados alguns minutos, Tilde indagou: - Como vão as coisas em tua casa?
Peter teve uma súbita lembrança de Inge, alguns dias antes do acidente, a caminhar até à igreja ao domingo de manhã, duas pessoas jovens, saudáveis e felizes com as suas melhores roupas. Com tanta escumalha e ralé no mundo, por que tivera o cérebro da sua mulher de ser destruído por um rapaz embriagado ao volante do seu carro desportivo? - A Inge está na mesma - referiu.
- Nenhumas melhoras?
- Quando o cérebro é afectado daquela maneira, não se reconstitui. Nunca haverá quaisquer melhoras.
- Deve ser difícil para ti.
- Felizmente tenho um pai generoso. Não poderia pagar a uma enfermeira com o ordenado da polícia. A Inge teria de ir para um hospital de doentes mentais.
Mais uma vez, Tilde olhou-o com aquele ar que era difícil de interpretar. Até parecia achar que o hospital para doentes mentais não seria uma má solução. - E o condutor do carro desportivo?
- Finn Jonk. O julgamento começou ontem. Deve terminar dentro de um dia ou dois.
- Finalmente! O que achas que irá acontecer?
- Ele declarou-se culpado. Presumo que apanhará uma pena de cinco a dez anos.
- Isso não parece suficiente.
- Por destruir a mente de alguém? O que seria suficiente? Depois do almoço, quando regressavam a Politigaarden, Tilde deu o braço a Peter. Foi um gesto afectuoso, e sentiu que ela lhe estava a dizer que gostava dele apesar de divergirem. Quando se aproximaram do edifício ultramoderno onde funcionava a sede da polícia, ele disse:
- Lamento que discordes da minha lista de judeus.
Ela estacou e virou-se para ele. - Tu não és má pessoa, Peter. - Para surpresa sua, parecia à beira das lágrimas. - O teu sentido de dever é a tua enorme força. Mas o teu dever não é a única lei.
- Não consigo perceber a tua ideia.
- Eu sei. - Afastou-se e entrou sozinha no edifício. Enquanto se dirigia ao seu gabinete, procurou avaliar a questão do ponto de vista dela. Se os nazis prendessem os judeus cumpridores da lei, isso seria crime, e a sua lista ajudaria os criminosos. Mas poderia dizer-se o mesmo a respeito de uma arma, ou até de um carro: o facto de algo poder ser usado por criminosos não significava que fosse errado tê-lo.
Quando atravessava o pátio central aberto, foi saudado pelo seu chefe, Frederik Juel. - Venha comigo - ordenou Juel com secura.
- Fomos convocados pelo general Braun. - Marchou na frente, e o seu porte militar dava uma impressão de poder de decisão e eficiência que Peter sabia serem completamente falsos.
Foi uma breve caminhada de Politigaarden até à praça do município, onde os alemães tinham ocupado um edifício chamado Dag-marhus. Fora rodeado de arame farpado e tinha metralhadoras e canhões antiaéreos no telhado plano. Foram conduzidos ao gabinete de Walter Braun, uma sala de canto com vista para a praça, confortavelmente mobilada com uma secretária antiga e um sofá de pele. Havia um quadro bastante pequeno do Fúhrer na parede e uma fotografia emoldurada em cima da secretária de dois rapazinhos com uniforme de colégio. Nem mesmo ali Braun tirava a pistola, reparou Peter, como se para afirmar que, apesar de ter um gabinete confortável, levava a sério as suas funções.
Braun não cabia em si de contente. - A nossa gente descodificou a mensagem encontrada no calço oco do avião - proferiu no seu habitual quase sussurro.
Peter ficou exultante.
- Muito impressionante - murmurou Juel.
- Aparentemente, não foi difícil - prosseguiu Braun. - Os britânicos usam códigos simples, muitas vezes baseados num poema ou num excerto de prosa famoso. Mal os nossos criptanalistas conseguem algumas palavras, um professor de inglês consegue normalmente completar o resto. Nunca antes imaginara que o estudo da literatura inglesa pudesse ter qualquer fim útil. - Riu-se do seu próprio humor.
Cheio de impaciência, Peter perguntou: - O que dizia a mensagem?
Braun abriu uma pasta em cima da sua secretária. - Provém de um grupo que se proclama os Guardas-Nocturnos. Apesar de estarem a falar alemão, usou a palavra dinamarquesa Natvaegterne. - Isto diz-lhe alguma coisa?
Peter foi apanhado de surpresa. - Vou consultar os arquivos, claro, mas tenho a certeza absoluta de que ainda não nos tinha surgido esse nome. - Franziu os sobrolhos, ponderando. - Os guarda-nocturnos verdadeiros são normalmente polícias ou soldados, não são?
Juel empertigou-se. - Não estou em crer que agentes da polícia dinamarquesa...
- Eu não disse que eram dinamarqueses - interrompeu Peter.
- Os espiões podiam ser traidores alemães. - Encolheu os ombros.
- Ou podem simplesmente aspirar ao estatuto militar. - Olhou para Braun. - Qual é o conteúdo da mensagem, general?
- Pormenores sobre as nossas posições militares na Dinamarca. Veja. - Estendeu um monte de papéis por cima da secretária. - Localizações de baterias antiaéreas dentro e à volta de Copenhaga.
Navios alemães no porto durante o último mês. Regimentos estacionados em Aarhus, Odense e Morlunde.
- A informação é rigorosa?
Braun hesitou. - Não propriamente. Próxima da verdade, mas não exacta.
Peter anuiu. - Nesse caso, os espiões não são alemães com informações privilegiadas, pois tais pessoas conseguiriam corrigir os pormenores constantes dos ficheiros. Muito provavelmente, são observadores dinamarqueses cuidadosos que fazem estimativas com base na experiência.
Braun anuiu. - Uma dedução arguta. Mas consegue descobrir essa gente?
- Espero sinceramente que sim.
O foco da atenção de Braun deslocara-se por completo para Peter, como se Juel não estivesse ali, ou fosse apenas um subalterno em sentido e não o oficial graduado. - Acha que são as mesmas pessoas que andam a distribuir os jornais ilegais?
Peter ficou satisfeito por Braun reconhecer a sua perícia, mas frustrado por, infelizmente, Juel ser o chefe. Tinha esperança de que o próprio Braun se tivesse apercebido daquela ironia. Levantou a cabeça. - Conhecemos os editores clandestinos e estamos atentos às suas actividades. Se estivessem a efectuar observações meticulosas das posições militares alemãs, ter-nos-íamos apercebido. Não. Acredito tratar-se de uma nova organização que ainda não havíamos descoberto.
- E como irá apanhá-los?
- Existe um grupo de potenciais subversivos que nunca chegámos a investigar convenientemente: os judeus.
Peter ouviu uma forte aspiração de ar da parte de Juel. Braun referiu: - É melhor observá-los.
- Neste país, nem sempre é fácil saber quem são os judeus.
- Então vá à sinagoga!
- Excelente ideia - disse Peter. - Eles podem ter uma lista dos membros. Sempre seria um começo.
Juel deitou um olhar fuzilante a Peter, mas não disse nada.
Braun prosseguiu: - Os meus superiores em Berlim estão impressionados com a lealdade e a eficiência da polícia dinamarquesa pela intercepção desta mensagem para os Serviços Secretos britânicos. Não obstante, têm estado ansiosos por enviar uma equipa de investigadores da Gestapo. Consegui dissuadi-los, com a promessa de que irão proceder a uma enérgica investigação da rede de espiões e levar os traidores perante a justiça. - Fora uma longa tirada para um homem só com um pulmão, e deixara-o sem fôlego. Fez uma pausa, olhando de Peter para Juel e de novo para o primeiro. Quando recuperou o alento, terminou: - Para o bem de ambos, e para o bem de todos na Dinamarca, espero sinceramente que tenham êxito.
Juel e Peter levantaram-se, e o primeiro afirmou em tom tenso: - Faremos todos os possíveis.
Saíram. Assim que se encontraram no exterior do edifício, Juel fuzilou Peter com os seus olhos azuis penetrantes. - Sabe perfeitamente que isto não tem nada a ver com a sinagoga, maldito seja.
- Não sei tal coisa.
- Só está a lamber as botas aos nazis, seu cretino nojento.
- Por que não haveríamos de os ajudar? Eles representam a lei, neste momento.
- Acha que o ajudarão a subir na carreira?
- E por que não? - retrucou Peter, desejoso de retaliar. - A elite de Copenhaga tem preconceitos contra os homens das províncias, mas os alemães conseguem ser bem menos preconceituosos.
Juel estava incrédulo. - Acredita mesmo nisso?
- Pelo menos não fingem ignorar as capacidades de rapazes que não andaram no Jansborg Skole.
- Pensa então que foi ultrapassado por causa dos seus antecedentes? Idiota. Você não ficou com o cargo porque é demasiado extremista! Não tem a noção das proporções. Erradicaria o crime detendo todos os que parecessem suspeitos! - Esboçou um som de repulsa. - No que depender de mim, não voltará a ser promovido. Agora desapareça da minha vista. - Afastou-se.
Peter fervia de ressentimento. Mas quem se julgava Juel? Ter um antepassado famoso não o tornava melhor do que qualquer outro. Ele era um polícia, tal como Peter, e não tinha o direito de lhe falar como se fosse um ser superior.
Mas Peter conseguira o que queria. Derrotara Juel. Obtivera permissão para efectuar uma rusga policial à sinagoga.
Juel ficaria a odiá-lo o resto da vida por isso. Mas que importância tinha? Braun, e não Juel, é que representava o poder naquele momento. Mais valia ser o favorito de Braun e o inimigo de Juel do que o inverso.
De regresso à sede, Peter reuniu rapidamente a sua equipa, escolhendo os mesmos detectives que usara em Kastrup: Conrad, Dresler e Ellegard. Disse a Tilde Jespersen: - Gostaria que viesses também, se não tiveres nada a objectar.
- E por que haveria de objectar? - redarguiu, mal-humorada.
- Depois da nossa conversa ao almoço...
- Por favor! Sou uma profissional. Já te tinha dito.
- Ainda bem - respondeu.
Seguiram por uma rua chamada Krystalgade. A sinagoga de tijolo amarelo situava-se à esquina da rua, como que a proteger-se de um mundo hostil. Peter colocou Ellegard ao portão para se certificar de que ninguém se esgueirava.
Apareceu um homem idoso de yarmulke(1) à porta do lar de idosos, mesmo ao lado. - Posso ajudá-lo? - perguntou educadamente.
- Somos agentes da polícia - disse Peter. - Quem é o senhor? O rosto do homem assumiu uma expressão de medo tão abjecto que
Peter quase sentiu pena dele. - Gorm Rasmussen. Sou o responsável de dia pelo lar - respondeu com voz trémula.
- Tem as chaves da sinagoga?
- Sim.
- Deixe-nos entrar.
O homem tirou um molho de chaves do bolso e abriu uma porta.
A maior parte do edifício era ocupada pelo salão principal, uma divisão ricamente decorada com colunas egípcias douradas que sustentavam galerias por cima dos corredores laterais. - Estes judeus têm muito dinheiro - murmurou Conrad.
Peter ordenou a Rasmussen: - Mostre-me a lista dos membros.
- Membros? O que quer dizer?
- Deve ter os nomes e moradas da sua congregação.
- Não; todos os judeus são bem-vindos.
O instinto de Peter disse-lhe que o homem estava a falar verdade, mas teria de revistar, mesmo assim, o local. - Existe aqui algum gabinete?
- Não. Apenas a pequena sala de vestir para o rabino e outros eclesiásticos, e um vestiário para a congregação pendurar os seus casacos.
Peter fez sinal com a cabeça a Dresler e Conrad. - Vão inspeccioná-los. - Atravessou do centro da sala até ao púlpito ao fundo e subiu uns degraus até um estrado elevado. Encontrou por detrás de uma cortina um nicho escondido. - O que temos aqui?
- Os pergaminhos da Tora - disse Rasmussen.
Havia seis pergaminhos grandes, de aspecto pesado e cuidadosamente envoltos em veludo, proporcionando esconderijos perfeitos para documentos secretos. - Desembrulhem-nos todos - ordenou. - Espalhe-os no chão para eu poder ver se não têm nada mais lá dentro.
(1) Pequeno barrete usado pelos homens judeus, especialmente nas preces, semelhante ao solidéu. (NT)
- Sim, é para já.
Enquanto Rasmussen fazia o que lhe mandavam, Peter afastou-se um pouco com Tilde, e falou com ela enquanto olhava com desconfiança o responsável. - Estás bem?
- Já te disse.
- Se descobrirmos alguma coisa, admitirás que eu estava certo? Ela sorriu. - Se não descobrirmos, admitirás que estavas errado? Anuiu, satisfeito por ela já não estar zangada com ele. Rasmussen estendeu-lhe os pergaminhos, cobertos de escrita
hebraica. Peter não viu nada de suspeito. Calculou que fosse possível não terem nenhum registo dos membros. Muito provavelmente, costumavam ter um mas haviam-no destruído como precaução no dia da invasão dos alemães. Sentiu-se frustrado. Dera-se a imenso trabalho para efectuar aquela busca, e tornara-se ainda mais impopular aos olhos do seu chefe. Seria enfurecedor se aquilo desse em nada.
Dresler e Conrad regressaram dos extremos opostos do edifício. Dresler vinha de mãos vazias, mas Conrad trazia um exemplar do jornal Realidade.
Peter tirou-lhe o jornal e mostrou-o a Rasmussen. - Isto é ilegal.
- Lamento - disse o homem. Parecia prestes a começar a chorar.
- Eles metem-no na caixa do correio.
As pessoas que imprimiam o jornal não eram procuradas pela polícia, por isso aqueles que se limitavam a lê-lo não corriam qualquer perigo; Rasmussen, porém, desconhecia-o, e Peter tirou partido da sua vantagem moral. - Deve escrever à sua gente de vez em quando - disse-lhe.
- Bem, claro, aos membros dirigentes da comunidade judaica. Mas não temos nenhuma lista. Sabemos quem são. - Esboçou um fraco sorriso. - E o senhor também, imagino.
Era verdade. Peter conhecia os nomes de uma dúzia ou mais de judeus proeminentes: dois banqueiros, um juiz, diversos professores da universidade, algumas figuras políticas, um pintor. Não eram aqueles que procurava: demasiado conhecidos para serem espiões. Essas pessoas não se colocariam nas docas a contar os navios sem darem nas vistas.
- Não enviam cartas a pessoas vulgares, pedindo-lhes dinheiro para obras de caridade, referindo-lhes eventos que estão a organizar, comemorações, piqueniques, concertos?
- Não - respondeu o homem. - Afixamos apenas um aviso no centro comunitário.
- Ah - disse Peter, com um sorriso de satisfação. - O centro comunitário? E onde fica?
- Perto de Christianborg, em Ny Kongensgade.
Distava cerca de um quilómetro e meio. - Dresler - chamou Peter. - Fica aqui a vigiar este sujeito durante quinze minutos e certifica-te de que ele não avisa ninguém.
Foram de carro até à rua chamada Ny Kongensgade. O centro comunitário judaico ficava num edifício grande do século XIX com um pátio interno e uma elegante escadaria, apesar de estar a precisar de ser redecorado. A cafetaria encontrava-se fechada, e não se via ninguém a jogar pingue-pongue na cave. Um homem jovem bem vestido, com ar desdenhoso, era o responsável pelos escritórios. Disse que não tinham nenhuma lista de nomes e moradas, mas os detectives revistaram ainda assim o local.
O nome do homem era Ingemar Gammel, e algo nele deixou Peter desconfiado. O que era? Ao contrário de Rasmussen, Gammel não estava assustado; mas, se por um lado Peter sentira que Rasmussen estava com medo mas inocente, Gammel causou-lhe a impressão contrária.
Gammel estava sentado a uma secretária, vestindo um colete com uma corrente de relógio, e olhava com frieza enquanto o seu gabinete era minuciosamente rebuscado. As suas roupas pareciam caras. Por que trabalhava ali como secretário um homem jovem e abastado? Este tipo de trabalho era normalmente efectuado por raparigas mal pagas, ou donas de casa de meia-idade cujos filhos já tinham abandonado o ninho.
- Penso que é isto que procuramos, chefe - disse Conrad, entregando a Peter uma pasta preta com argolas. - Uma lista dos ninhos das ratazanas.
Peter espreitou lá para dentro e viu páginas e páginas de nomes e moradas, várias centenas deles. - Em cheio! - exclamou. - Muito bem. - Mas o instinto dizia-lhe que as revelações não se ficariam por ali. - Continuem a procurar, todos, para o caso de aparecer mais alguma coisa.
Folheou a pasta, procurando algo estranho, ou familiar, ou... qualquer coisa. Tinha uma sensação de insatisfação. Mas nada despertava a sua atenção.
O casaco de Gammel estava pendurado num cabide por detrás da porta. Peter leu a etiqueta do alfaiate. O fato fora feito por Anderson & Sheppard, de Saville Row, Londres, em 1938. Peter sentiu inveja. Comprava as suas roupas nas melhores lojas de Copenhaga, mas nunca se poderia permitir um fato inglês. Havia um lenço de seda a sair do bolso exterior. Encontrou uma carteira bem recheada de dinheiro no bolso interior esquerdo. No bolso direito estava um bilhete de comboio para Aarhus, ida e volta, com um buraco perfeito feito pelo furo de um revisor. - Por que foi a Aarhus?
- Para visitar amigos.
A mensagem descodificada incluía o nome do regimento alemão estacionado em Aarhus, recordou-se Peter. No entanto, Aarhus era a maior cidade da Dinamarca a seguir a Copenhaga, e centenas de pessoas viajavam diariamente entre as duas cidades.
No bolso interior do casaco estava uma agenda fina. Peter abriu-a.
Gammel perguntou com desprezo: - Gosta do seu trabalho?
Peter levantou a cabeça com um sorriso. Gostava de enfurecer homens ricos e enfatuados que se julgavam superiores às pessoas vulgares. Mas o que disse foi: - Sou tal qual um canalizador: vejo imensa merda. - Volveu intencionalmente o olhar para a agenda de Gammel.
A caligrafia de Gammel era elegante, tal como o seu fato, com maiúsculas grandes e floreados. Os registos na agenda pareciam todos normais: datas de almoços, teatro, aniversário da mãe, telefonar a Jorgen sobre Wilder. - Quem é Jorgen? - indagou Peter.
- O meu primo, Jorgen Lumpe. Trocamos livros.
- E Wilder?
- Thornton Wilder.
- E ele é...?
- O escritor americano. The Bridge of San Luís Rey. Deve tê-lo lido. Havia ali um certo escárnio, uma insinuação de que os polícias não
eram suficientemente cultos para lerem romances estrangeiros, mas Peter ignorou-o e passou à última parte da agenda. Tal como esperava, continha uma lista de nomes e moradas, alguns com números de telefone. Olhou para Gammel, e julgou detectar um leve rubor nas suas faces bem escanhoadas. Aquilo prometia. Observou com cuidado a lista de moradas. Escolheu um nome ao acaso. - Hilde Bjergager... Quem é ela?
- Uma senhora amiga - respondeu Gammel com frieza. Peter experimentou outro. - Bertil Bruun?
Gammel manteve-se imperturbável. - Jogamos ténis.
- Fred Eskildsen.
- O meu gestor bancário.
Os outros detectives tinham parado de revistar e mantinham-se calados, sentindo a tensão.
- Poul Kirke?
- Um velho amigo.
- Preben Klausen.
- Negociante de quadros.
Pela primeira vez, Gammel deu mostras de alguma emoção, mas foi de alívio, em vez de culpa. Porquê? Pensava que conseguira escapar a algo? Qual a importância do negociante de quadros Klausen? Ou o nome anterior é que era importante? Gammel mostrara alívio porque Peter passara para Klausen? - Poul Kirke é um velho amigo?
- Andámos juntos na universidade. - A voz de Gammel era regular, mas havia um leve indício de medo nos seus olhos.
Peter olhou para Tilde, e ela esboçou um pequeno aceno. Também ela se apercebera de algo na reacção de Gammel.
Peter observou novamente a agenda. Kirke não tinha morada, mas ao lado do número de telefone estava um N, escrito em tamanho incaracteristicamente pequeno. - O que significa isto... a letra N? - perguntou Peter.
- Naestved. É o número de Naestved.
- Qual é o outro número dele?
- Ele não tem outro.
- Nesse caso porquê a anotação?
- Para ser sincero, não me lembro - respondeu Gammel, mostrando irritação.
Até era capaz de ser verdade. Por outro lado, N podia querer dizer Guarda-Nocturno.
Peter inquiriu: - Como é que ele ganha a vida?
- É piloto.
- De quem?
- Da aviação militar.
- Ah. - Peter especulara que os Guardas-Nocturnos podiam ser membros das forças armadas, por causa do nome e por serem observadores muito minuciosos dos pormenores militares. - Em que base?
- Vodal.
- Pareceu-me ter dito que ele estava em Naestved.
- Fica perto.
- A trinta e dois quilómetros.
- Bem, é a ideia que tenho.
Peter anuiu pensativamente, depois disse a Conrad: - Prende este finório mentiroso.
A busca ao apartamento de Ingemar Gammel foi decepcionante. Peter não encontrou nada de interesse: nem livro de código, nem literatura subversiva, nem armas. Concluiu que Gammel deveria ser uma figura menor na rede de espiões, uma daquelas cuja função seria simplesmente fazer observações e transmiti-las a um contacto central. Esse homem-chave reuniria as mensagens e enviá-las-ia para Inglaterra. Mas quem era essa figura fulcral? Peter tinha esperanças de que pudesse ser Poul Kirke.
Antes de percorrer os oitenta quilómetros até à escola de voo em Vodal onde Poul Kirke estava destacado, Peter passou uma hora em casa com a mulher, Inge. Ao dar-lhe a comer sanduíches de maçã com mel em pedaços minúsculos, apercebeu-se de que devaneava sobre a vida conjugal com Tilde Jespersen. Imaginou-se a ver Tilde arranjar-se para sair à noite: a lavar o cabelo e a secá-lo vigorosamente com uma toalha, sentada ao toucador em roupa interior a pintar as unhas, a ver-se ao espelho enquanto colocava um lenço de seda ao pescoço. Apercebeu-se de que ansiava estar com uma mulher que conseguisse fazer tudo sozinha.
Tinha de parar de pensar daquela maneira. Era um homem casado. O facto de um homem ter a mulher doente não constituía um pretexto para o adultério. Tilde era uma colega e uma amiga, e para ele nunca seria mais do que isso.
Sentindo-se agitado e descontente, ligou o rádio e ouviu as notícias enquanto esperava que a enfermeira da noite chegasse. Os britânicos tinham desencadeado um novo ataque no Norte de África, atravessando a fronteira egípcia para a Líbia com uma divisão de tanques numa tentativa de socorrer a cidade sitiada de Tobruk. Parecia ser uma operação em grande, apesar de a estação de rádio dinamarquesa censurada prever, como seria de esperar, que os canhões antitanque alemães fossem dizimar as forças britânicas.
O telefone tocou e Peter atravessou a sala para o atender.
- Fala Allan Forslund, da Divisão de Trânsito. - Forslund era o agente que estava a tratar do caso Finn Jonk, o condutor embriagado que colidira com o carro de Peter. - O julgamento terminou há pouco.
- O que aconteceu?
- Jonk apanhou seis meses.
- Seis meses?
- Lamento...
A visão de Peter turvou-se. Sentiu que ia desfalecer e apoiou a mão na parede para se equilibrar. - Por destruir o cérebro da minha mulher e dar cabo da minha vida? Seis meses?
- O juiz disse que ele já estava a sofrer bastante e teria de viver o resto da vida com a culpa.
- Isso é uma aldrabice!
- Eu sei.
- Pensei que a acusação fosse pedir uma pena pesada.
- E pedimos. Mas o advogado de Jonk foi muito persuasivo. Disse que o rapaz deixou de beber, anda de bicicleta, está a estudar arquitectura...
- Qualquer um pode afirmar isso.
- Eu sei.
- Recuso-me a aceitar! Recuso-me a aceitar!
- Não podemos fazer nada...
- Vamos ver se não podemos.
- Peter, não faças nada precipitado.
Peter procurou acalmar-se. - Claro que não vou fazer.
- Estás sozinho?
- Vou voltar ao trabalho dentro de minutos.
- Desde que tenhas alguém com quem conversar.
- Tenho. Obrigado por ligar, Allan.
- Lamento que não conseguíssemos melhor.
- Não tiveste culpa. Um advogado manhoso e um juiz estúpido. Já não é a primeira vez. - Peter desligou. Fizera um esforço por aparentar calma, mas estava a ferver. Se Jonk tivesse ficado em liberdade, era capaz de ter ido à sua procura para o matar - mas o rapaz estava seguro na cadeia, nem que fosse apenas por uns meses. Pensou em ir procurar o advogado, detê-lo com um pretexto qualquer, e arrear-lhe forte e feio; mas sabia que não o faria. O advogado não violara qualquer lei.
Olhou para Inge. Estava sentada no sítio onde a deixara, olhando-o de rosto inexpressivo, à espera de que lhe continuasse a dar a comida. Reparou que um bocado de maçã mastigada lhe caíra da boca para o corpo do vestido. Normalmente não se sujava, apesar do seu estado. Antes do acidente fora extraordinariamente exigente com o seu aspecto. Ao vê-la com a comida no queixo e nódoas na roupa, deu-lhe subitamente vontade de chorar.
Foi salvo pela campainha da porta. Recompôs-se rapidamente e foi abrir. A enfermeira chegara no mesmo instante que Bent Conrad, que o viera buscar para a viagem até Vodal. Vestiu o casaco e deixou a enfermeira a limpar Inge.
Foram em dois carros, os Buicks pretos usados pela polícia. Peter pensou que os militares fossem levantar objecções à sua entrada, de modo que pedira ao general Braun para destacar um oficial alemão para impor autoridade se necessário, e seguia no carro da frente um tal major Schwarz do comando de Braun.
A viagem demorou uma hora e meia. Schwarz fumou um charuto grande, enchendo o carro de fumo. Peter procurou não pensar na pena ultrajantemente leve de Finn Jonk. Iria precisar de manter a cabeça fria na base aérea, e não queria que o seu discernimento fosse afectado pela raiva. Procurou reprimir a fúria ardente, mas ela continuava latente sob uma capa de aparente calma, fazendo-lhe arder os olhos com o seu fumo, tal como o charuto de Schwarz.
Vodal era um aeródromo relvado com uma série de edifícios baixos de um lado. A segurança era ligeira - não passava de uma escola de treino, por isso não acontecia ali nada de remotamente secreto - e um único guarda ao portão fez-lhes descontraidamente sinal para passarem sem perguntar ao que vinham. Meia dúzia de Tiger Moths encontravam-se estacionados em fila, como aves numa vedação. Havia também alguns planadores e dois Messerscbmitt Me-109-
Quando Peter se apeou do carro, viu Arne Olufsen, o seu rival de infância de Sande, deambulando pelo parque de estacionamento no seu elegante uniforme castanho da força aérea. O travo amargo do ressentimento subiu à boca de Peter.
Peter e Arne tinham sido amigos, durante toda a infância, até à discussão entre as famílias havia doze anos. Tudo começara quando Axel Flemming, pai de Peter, fora acusado de fraude fiscal. Axel achara a acusação um ultraje: limitara-se a fazer o que todos os outros faziam, e diminuíra os lucros inflacionando as despesas. Fora condenado, e tivera de pagar uma pesada multa para além dos impostos anteriores.
Persuadira os amigos e vizinhos a verem o caso como uma mera divergência de aspectos técnicos de contabilidade em vez de uma acusação de desonestidade. Depois o pastor Olufsen interviera.
Havia uma regra na igreja segundo a qual qualquer membro que cometesse um crime seria "exposto", ou expulso da congregação. O infractor poderia participar no domingo seguinte, se o desejasse, mas durante uma semana era um estranho. O procedimento não se aplicava a crimes banais como excesso de velocidade, e Axel argumentara que a sua infracção se inseria nessa categoria. O pastor Olufsen fora de opinião contrária.
Esta humilhação fora muito pior para Axel do que a multa que o tribunal lhe aplicara. O seu nome fora divulgado na congregação, vira-se obrigado a abandonar o seu lugar e sentar-se ao fundo da igreja e, para completar a sua mortificação, o pastor fizera uma prédica sobre o texto "A César o que é de César".
Peter estremecia de cada vez que o recordava. Axel orgulhava-se da sua posição de homem de negócios bem-sucedido e chefe da comunidade, e não podia haver maior castigo para ele do que perder o respeito dos seus vizinhos. Para Peter, fora uma tortura ver o pai ser repreendido publicamente por um pedante enfatuado e farisaico como Olufsen. Acreditava que o pai merecera a multa, mas não a humilhação na igreja. Jurara então que se algum membro da família Olufsen alguma vez cometesse uma infracção, não haveria misericórdia.
Mal ousava ter esperança de que Arne estivesse envolvido na rede de espiões. Seria uma doce vingança.
Arne captou o olhar dele. - Peter! - Pareceu surpreendido, mas não assustado.
- É aqui que trabalhas? - inquiriu Peter.
- Quando há trabalho. - Arne parecia tão jovial e descontraído como sempre. Se tinha algo a pesar-lhe na consciência, estava a disfarçar muito bem.
- Claro, és piloto.
- Isto é uma escola de instrução, mas não temos muitos alunos. Mas diz-me, o que fazes aqui? - Arne olhou para o major de uniforme alemão de pé atrás de Peter. - Houve algum despejo de lixo perigoso? Ou alguém circulou de bicicleta sem luzes depois de escurecer?
Peter não achou muita piada ao gracejo de Arne. - Investigação de rotina - respondeu sumariamente. - Onde posso encontrar o teu oficial de comando?
Arne apontou para um dos edifícios baixos. - A sede da base. é o chefe de esquadrilha Renthe.
Peter deixou-o e entrou no edifício. Renthe era um homem esgalgado com um bigode farfalhudo e uma expressão azeda. Peter apresentou-se e disse: - Estou aqui para entrevistar um dos seus homens, tenente-aviador Poul Kirke.
O chefe de esquadrilha olhou severamente para o major Schwarz e inquiriu: - Qual é o problema?
Peter teve mesmo vontade de responder Não tem nada a ver com isso, mas decidiu manter a calma, de modo que inventou uma mentira esfarrapada. - Ele tem andado a vender artigos roubados.
- Quando o pessoal militar é suspeito de crimes, preferimos ser nós a investigar o assunto.
- Evidentemente que sim. Todavia... - moveu uma mão na direcção de Schwarz -, os nossos amigos alemães querem que seja a polícia a encarregar-se disso, por isso as suas preferências são irrelevantes. O Kirke encontra-se na base neste momento?
- Por acaso está a voar.
Peter arqueou os sobrolhos. - Julgava que os seus aviões estavam proibidos de levantar voo.
- Por via de regra, sim, mas existem excepções. Estamos à espera da visita de um grupo da Luftwaffe amanhã e eles querem ser transportados nos nossos aviões de instrução, por isso temos permissão para efectuar voos de teste hoje a fim de nos certificarmos de que os aparelhos estão em condições. O Kirke deve aterrar dentro de alguns minutos.
- Entretanto, vou revistar as instalações dele. Onde é que ele dorme?
Renthe hesitou, depois respondeu com relutância: - No Dormitório A, ao fundo da pista.
- Ele tem um gabinete, ou um cacifo, ou outro lugar onde possa guardar coisas?
- Ele tem um pequeno gabinete três portas adiante neste corredor.
- Começarei por lá. Tilde, vem comigo. Conrad, vai até ao aeródromo para receberes o Kirke quando ele voltar. Não quero que se escape. Dresler e Ellegard, revistem o Dormitório A. Chefe de esquadrilha, obrigado pela sua ajuda... - Peter viu os olhos do comandante vaguearem até ao telefone em cima da secretária. - Não efectue quaisquer chamadas nos próximos minutos. Não deverá avisar ninguém de que vamos a caminho, isso constituiria obstrução à justiça. Mandá-lo-ia deter e isso não abonaria nada a favor da reputação da força aérea, pois não?
Renthe não respondeu.
Peter, Tilde e Schwarz seguiram corredor fora até uma porta assinalada INSTRUTOR-CHEFE DE VOO. Uma secretária e um ficheiro de arquivo cabiam à justa na pequena sala sem janelas. Peter e Tilde começaram a revistar e Schwarz acendeu outro charuto. O ficheiro de arquivo continha registos de alunos. Peter e Tilde observaram pacientemente cada papel. A pequena sala não tinha ar, e o perfume suave de Tilde perdia-se no fumo do charuto de Schwarz.
Após quinze minutos, Tilde emitiu um ruído de surpresa e disse: - Isto é estranho.
Peter levantou a cabeça dos resultados do exame de um aluno chamado Keld Hansen, que chumbara no teste de navegação.
Tilde entregou-lhe uma folha de papel. Peter analisou-a, carrancudo. Apresentava um esboço cuidado de um aparelho que Peter não reconheceu: uma antena quadrada grande numa base, rodeada por um muro. Um segundo desenho do mesmo aparelho sem o muro mostrava mais pormenores da base, que parecia poder rodar.
Tilde espreitou por cima do ombro dele. - O que achas que pode ser?
Tinha intensa consciência da proximidade dela. - Nunca vi nada assim, mas aposto tudo em como é secreto. Mais alguma coisa na pasta?
- Não. - Mostrou-lhe uma pasta assinalada ANDERSEN, H.C.
Peter soltou um resmungo. - Hans Christian Andersen... Altamente suspeito em si mesmo. - Virou a folha. Na parte de trás estava traçado um mapa da ilha cuja forma longa e estreita era tão familiar a Peter quanto o mapa da própria Dinamarca. - Isto é Sande, onde vive o meu pai! - exclamou.
Olhando com mais atenção, viu que o mapa mostrava a nova base alemã e a zona da praia que ficava na área interdita.
- Em cheio - disse baixinho.
Os olhos azuis de Tilde brilhavam de excitação. - Apanhámos um espião, não apanhámos?
- Ainda não - redarguiu Peter. - Mas estamos prestes a fazê-lo. Saíram para o exterior, seguidos pelo silencioso Schwarz. O Sol pusera-se, mas conseguiam ver com clareza ao suave crepúsculo da longa tarde do Verão escandinavo.
Encaminharam-se para o aeródromo e colocaram-se ao lado de Conrad, perto do sítio onde os aviões estavam estacionados. Os aparelhos ficavam guardados de noite. Um estava naquele momento a ser levado para o hangar por dois ajudantes que empurravam as asas e um terceiro que levantava a cauda do solo.
Conrad apontou para o avião que se aproximava do aeródromo, vindo contra o vento e disse: - Penso que este deve ser o nosso homem.
Era outro Tiger Motb. Enquanto dava uma volta para perder altitude como indicavam os manuais e ficar virado para o vento a fim de poder aterrar, Peter reflectiu que não havia dúvida de que Poul Kirke era espião. As provas encontradas no ficheiro de arquivo seriam suficientes para o enforcar. Mas antes que tal acontecesse, Peter tinha imensas perguntas a fazer-lhe. Era um simples informador, como Ingemar Gam-mel? Ter-se-ia o próprio Kirke deslocado a Sande para inspeccionar a base aérea e desenhar o misterioso aparelho? Ou desempenhava as funções mais importantes de coordenador, reunindo as informações e transmitindo-as para Inglaterra em mensagens codificadas? Se Kirke era o contacto central, quem fora a Sande e efectuara o esboço? Poderia ter sido Arne Olufsen? Era possível, mas Arne não mostrara quaisquer indícios de culpa havia cerca de uma hora quando Peter chegara inesperadamente à base. Mesmo assim, valeria a pena colocar Arne sob vigilância.
Quando o avião pousou e saltou pela relva, um dos Bukks da polícia avançou do lado da pista de onde soprava o vento, a uma velocidade furiosa. Parou derrapando, e Dresler apeou-se, trazendo algo amarelo-vivo.
Peter deitou-lhe um olhar nervoso. Não queria uma confusão que pudesse alertar Poul Kirke. Olhando à sua volta, apercebeu-se de que baixara a guarda por um momento, e não reparara que o grupo à beira da pista parecia um pouco deslocado: ele próprio de fato escuro, Schwarz de uniforme alemão a fumar um charuto, uma mulher e agora um homem a saltar de um carro obviamente com pressa. Faziam lembrar uma comissão de recepção, e o aparato poderia deixar Kirke de sobreaviso.
Dresler veio ter com ele todo excitado, agitando o objecto amarelo, um livro com uma capa garrida. - Este é o livro de código dele! - exclamou.
Isso queria dizer que Kirke era o homem-chave. Peter olhou para o pequeno avião, que saíra da pista antes de ficar ao nível do grupo que aguardava, e passava por eles naquele momento em direcção à zona de estacionamento. - Guarda o livro debaixo do casaco, meu palerma - ordenou a Dresler. - Se te vê a agitá-lo, saberá que andamos atrás dele!
Olhou de novo para o Tiger Moth. Conseguia ver Kirke no cockpit aberto, mas não interpretar a expressão do homem por detrás dos óculos, do cachecol e do capacete.
No entanto, era impossível não perceber o que sucedeu de seguida.
Subitamente, o motor roncou mais ruidosamente quando o acelerador foi aberto na totalidade. O avião virou, ficando de frente para o vento mas seguindo também direito ao pequeno grupo em torno de Peter. - Raios, ele vai tentar fugir! - exclamou Peter.
O avião ganhou velocidade e avançou direito a eles.
Peter sacou da pistola.
Queria apanhar Kirke vivo, e interrogá-lo - mas preferia vê-lo morto a deixá-lo escapar. Segurando a arma com ambas as mãos, apontou-a ao avião que se aproximava. Era praticamente impossível abater um avião com uma pistola, mas talvez conseguisse alvejar o piloto com um tiro de sorte.
A cauda do Tiger Motb levantou-se do solo, colocando a fuselagem na horizontal e fazendo aparecer a cabeça e os ombros de Kirke. Peter apontou cuidadosamente ao capacete de voo e puxou o gatilho. O avião levantou do solo, e Peter ergueu o braço, esvaziando a câmara de sete tiros da Walter PPK. Viu com amarga decepção que apontara demasiado alto, pois apareceu uma série de buracos pequenos semelhantes a manchas de tinta no depósito de combustível por cima da cabeça do piloto, e o combustível esguichava para dentro do cockpit em pequenos jactos. O avião não vacilou.
Os outros atiraram-se para o chão.
Peter foi acometido de uma raiva suicida quando a hélice a rodar se aproximou dele a noventa e cinco quilómetros por hora. Aos comandos, com Poul Kirke, estavam todos os criminosos que haviam escapado à justiça, inclusive Finn Jonk, o condutor que ferira Inge. Se o matasse, Peter impediria Kirke de fugir.
Pelo canto do olho, viu o charuto do major Schwarz a fumegar na relva e teve um rasgo de inspiração.
Enquanto o biplano avançava letalmente para ele, baixou-se, pegou no charuto aceso e atirou-o ao piloto.
Depois arremessou-se para o lado.
Sentiu a rajada de vento quando a asa inferior passou a centímetros da sua cabeça.
Embateu no chão, rebolou e olhou para cima.
O Tiger Moth subia. As balas e o charuto aceso não pareciam ter surtido qualquer efeito. Peter falhara.
Iria Kirke escapar? A Luftwaffe utilizaria os dois Messerschmitts para o perseguir, mas demoraria alguns minutos, e nessa altura já o Tiger Moth teria desaparecido de vista. O depósito de combustível de Kirke fora atingido, mas os buracos podiam não se situar no ponto mais baixo do depósito e, nesse caso, ele teria ainda gasolina suficiente para conseguir chegar à Suécia, que ficava apenas a trinta e dois quilómetros. E instalava-se a escuridão.
Kirke tinha uma hipótese, concluiu Peter com azedume.
De seguida, ouviu-se o som sibilante de um fogo súbito e uma única chama grande elevou-se do cockpit.
Espalhou-se com uma rapidez medonha a toda a cabeça e ombros visíveis do piloto, cujas roupas deviam estar encharcadas em gasolina. As chamas estenderam-se à fuselagem, consumindo rapidamente o tecido de revestimento.
Durante alguns segundos o avião continuou a subir, conquanto a cabeça do piloto se tivesse tornado um tronco calcinado. Depois o corpo de Kirke tombou, aparentemente empurrando a manche para a frente, e o Tiger Moth virou de nariz para baixo e desceu a pique a curta distância até à terra, mergulhando como uma seta no solo. A fuselagem amachucou-se como uma concertina.
Reinou um silêncio horrorizado. As chamas continuavam a lamber as asas e a cauda, desfazendo o tecido, devorando as longarinas de madeira e expondo os tubos quadrados de aço da fuselagem como o esqueleto de um mártir queimado.
Tilde disse: - Meu Deus, que horror! Pobre homem. - Tremia.
Peter passou os braços à volta dela. - Sim - respondeu ele. - E o pior de tudo é que agora não pode responder a quaisquer perguntas.
Na placa no exterior do edifício lia-se INSTITUTO DINAMARQUÊS DE CANÇÕES POPULARES E DANÇAS FOLCLÓRICAS, mas isso era só para enganar as autoridades. Descendo as escadas, transpondo a cortina dupla que servia para não deixar passar a luz e entrando na cave sem janelas, funcionava um clube de jazz.
A sala era pequena e mal iluminada. O chão húmido de betão estava sujo de beatas e pegajoso da cerveja entornada. Havia algumas mesas cambadas e umas quantas cadeiras de madeira, mas a maior parte do público estava de pé. Marinheiros e estivadores lado a lado com pessoas jovens bem vestidas e alguns soldados alemães.
No palco minúsculo, via-se uma mulher nova sentada ao piano, cantando baladas a um microfone. Talvez fosse jazz, mas não era a música que tanto apaixonava Harald. Estava à espera de Memphis Johnny Madison, que era de cor, apesar de ter vivido a maior parte da vida em Copenhaga e provavelmente nunca ter conhecido Memphis.
Eram duas da manhã. Mais ao princípio da noite, depois de as luzes serem apagadas no colégio, os Três Estarolas - Harald, Mads e Tik - tinham voltado a vestir-se, saindo sorrateiramente do dormitório, e apanhado o último comboio para a cidade. Era arriscado - podiam ver-se em grandes sarilhos se fossem descobertos -, mas teria valido a pena só para verem Memphis Johnny.
A aguardente que Harald bebia à mistura com cerveja a copo estava a deixá-lo ainda mais eufórico.
Pairava no seu subconsciente a emocionante lembrança da conversa com Poul Kirke, e o facto assustador de pertencer agora à Resistência. Mal ousara pensar no assunto, pois era algo que não podia sequer partilhar com Mads e Tik. Entregara informações militares secretas a um espião.
Depois de Poul ter admitido que fazia parte de uma organização secreta, Harald afirmara fazer tudo o que pudesse para ajudar. Poul prometera usar Harald apenas como um dos seus observadores. Teria como tarefa a recolha e entrega a Poul de informações sobre as forças ocupantes para serem enviadas para a Grã-Bretanha. Orgulhava-se de si próprio, e estava ansioso pela primeira missão. Sentia-se também assustado, mas procurava não pensar no que poderia acontecer se fosse apanhado.
Continuava a odiar Poul por andar a sair com Karen Duchwitz. Sentia o travo amargo do ciúme na boca do estômago sempre que pensava no assunto. Mas reprimiu o sentimento a bem da Resistência.
Desejou que Karen se encontrasse ali naquele momento. Iria gostar da música.
Precisamente quando estava a pensar que lhe fazia falta uma companhia feminina, apercebeu-se de uma recém-chegada: uma mulher com cabelo escuro encaracolado, com um vestido vermelho, sentada num banco alto junto ao bar. Não a conseguia ver bem: o ar estava cheio de fumo, ou talvez houvesse algum problema com a sua visão, mas ela parecia estar sozinha. - Olhem para aquilo - disse aos outros.
- Bonita, se gostas de mulheres mais velhas - referiu Mads. Harald olhou-a, procurando focá-la melhor. - Ora essa, que idade
terá ela?
- Tem pelo menos trinta.
Harald encolheu os ombros. - Não se pode dizer que seja realmente velha. Acham que gostaria de alguém com quem conversar?
Tik, que não estava tão embriagado quanto os outros dois, retorquiu: - Ela falará contigo.
Harald não percebeu muito bem por que motivo Tik se ria feito um tolo. Ignorando-o, Harald levantou-se e encaminhou-se para o bar. Quando se aproximou mais, reparou que a mulher era bastante roliça, e o rosto redondo apresentava maquilhagem carregada. - Olá, rapazola - saudou-o, mas o seu sorriso era simpático.
- Reparei que estava sozinha.
- De momento.
- Pensei que talvez quisesse alguém com quem conversar.
- Não é bem para isso que aqui estou.
- Ah, prefere ouvir a música. Sou um grande fã de Jazz, há anos que o sou. O que acha da cantora? Ela não é americana, claro, mas...
- Detesto a música.
Harald ficou baralhado. - Nesse caso, por que...
- Sou uma rapariga trabalhadora.
Ela pareceu convencida de que aquilo explicava tudo, mas deixou-o intrigado. Continuava a sorrir-lhe calorosamente, mas Harald ficou com a sensação de que falavam de coisas diferentes. - É uma rapariga trabalhadora - repetiu.
- Sim. O que é que pensaste que eu era?
Sentiu-se inclinado a ser simpático com ela, de modo que afirmou: - Pois a mim parece-me uma princesa. Ela soltou uma gargalhada. Ele perguntou-lhe: - Como se chama?
- Betsy.
Era um nome improvável para uma dinamarquesa da classe operária, e Harald calculou que fosse falso.
Apareceu um homem ao pé de Harald. Este ficou surpreendido com o aspecto do recém-chegado: tinha a barba por fazer, dentes podres e um olho meio fechado devido a uma enorme equimose. Vestia um smoking e uma camisa sem colarinho. Apesar de baixo e escanzelado, tinha um ar intimidante. Disse-lhe: - Vá lá, filho, vê se te decides.
Betsy dirigiu-se a Harald - Este é o Luther. Deixa o rapaz sossegado, Lou... Ele não está a fazer nada de errado.
- Está a afastar os outros clientes.
Harald apercebeu-se de que não fazia ideia do que se passava e calculou que estivesse mais embriagado do que imaginara. Luther interpelou-o: - Então, queres fodê-la ou não? Harald ficou espantado. - Nem sequer a conheço! Betsy desatou às gargalhadas.
- São dez coroas, podes pagar-me - explicou Luther.
Fez-se então luz. Harald virou-se para ela e proferiu numa voz alta cheia de espanto: - É prostituta?
- Sou, mas não precisas de gritar - admoestou-o, aborrecida. Luther agarrou Harald pelo peitilho da camisa e puxou-o para si.
O homem tinha força, e Harald cambaleou. - Eu conheço os tipos de falinhas mansas como tu - disse Luther em tom ríspido. - Estás muito divertido, não é verdade?
Harald cheirou o mau hálito do homem. - Não se irrite - apaziguou-o. - Eu só queria conversar com ela.
Um empregado com uma faixa à volta da cabeça debruçou-se sobre o bar e avisou: - Não quero sarilhos, por favor, Lou. O rapaz não tem más intenções.
- Ai não tem? Pois eu cá acho que se está a rir de mim. Harald começava a perguntar-se, cheio de ansiedade, se Luther teria
uma faca, quando o gerente do clube pegou no microfone e anunciou Memphis Johnny Madison, e houve uma série de aplausos.
Luther empurrou Harald. - Desaparece da minha vista antes que te corte a garganta - ameaçou-o.
Harald voltou para junto dos outros. Sabia que fora humilhado, mas estava demasiado embriagado para se importar. - Cometi um erro de etiqueta - referiu.
Memphis Johnny entrou no palco, e imediatamente Harald esqueceu Luther.
Johnny sentou-se ao piano e aproximou-se do microfone. Falando correctamente dinamarquês sem qualquer sotaque, disse: - Obrigado. Gostaria de começar com uma composição do maior pianista de boogie-woogie de sempre, Clarence Pine Top Smith.
Houve novos aplausos, e Harald gritou em inglês: - Toca lá, Johnny!
Registaram-se alguns distúrbios próximo da porta, mas Harald nem se apercebeu. Johnny tocou quatro compassos introdutórios, depois parou bruscamente e disse ao microfone: - Heil Hitler, bebé.
Um oficial alemão avançou pelo palco.
Harald olhou à sua volta, perplexo. Entrara no clube um grupo de polícias militares. Estavam a deter os soldados alemães, mas não os civis dinamarqueses.
O agente arrancou o microfone a Johnny e disse em dinamarquês:
- Não são permitidos artistas de raça inferior. Este clube está encerrado.
- Não! - exclamou Harald, desanimado. - Não pode fazer isso, seu campónio nazi!
Felizmente a voz dele foi abafada pelo tumulto geral de protesto.
- Vamos embora daqui antes que cometas mais erros de etiqueta
- sugeriu Tik. Pegou no braço de Harald.
Harald ofereceu resistência. - Vamos! - berrou. - Deixa o Johnny tocar!
O agente algemou Johnny e levou-o.
Harald ficou descoroçoado. Era a sua primeira oportunidade de ouvir um verdadeiro pianista de boogie, e os nazis tinham proibido o espectáculo após alguns compassos. - Eles não têm o direito! - gritou.
- Claro que não - concordou Tik para o acalmar, e encaminhou-o para a porta.
Os três jovens subiram as escadas até à rua. Estava-se no solstício de Verão e a curta noite escandinava já terminara. O dia raiava. O clube ficava junto ao mar, e o amplo canal de água brilhava à média luz. Os navios adormecidos flutuavam imóveis nas suas amarras. Soprava do mar uma brisa fresca e salgada. Harald inspirou fundo, depois sentiu-se momentaneamente tonto.
- Podíamos ir até à estação dos caminhos-de-ferro e esperar pelo primeiro comboio para regressarmos - alvitrou Tik. Tinham planeado meter-se na cama, a fingir que dormiam, antes que alguém no colégio se levantasse.
Dirigiram-se para o centro da cidade. Nos cruzamentos principais, os alemães haviam erigido postos de sentinela em betão, de plano octogonal e cerca de um metro e vinte de altura, com espaço no meio para um soldado ficar em sentido, visível do peito para cima. Não havia lá ninguém à noite. Harald continuava furioso com o encerramento do clube, enraiveceu-se ainda mais com aqueles símbolos horrorosos do domínio nazi. Passando por um, deu-lhe um pontapé, em vão.
Mads referiu: - Dizem que as sentinelas nestes postos usam leder-hosen(1) porque ninguém lhes consegue ver as pernas. - Harald e Tik riram-se.
Um momento depois, passaram por um monte de entulho de obras à porta de uma loja que acabara de ser remodelada, e por acaso Harald reparou numas quantas latas de tinta no cimo do monte - o que lhe deu uma ideia. Curvou-se sobre o monte de lixo e pegou numa lata.
- O que raio vais tu fazer? - indagou Tik.
Havia um resto de tinta preta no fundo, ainda líquida. De entre os bocados de madeira no monte, Harald escolheu uma ripa com cerca de dois centímetros e meio de largura que serviria de pincel.
Ignorando as perguntas de estupefacção de Tik e Mads, voltou ao posto da sentinela. Ajoelhou-se diante dele com a lata e a ripa. Ouviu Tik dizer algo em tom de aviso, mas ignorou-o. Com enorme cuidado, escreveu a tinta preta na parede de betão:
ESTE NAZI - NÃO USA CALÇAS
Recuou para admirar o trabalho. As letras eram grandes e as palavras podiam ler-se à distância. Mais tarde naquela manhã, milhares de copenhaguenses a caminho do trabalho veriam a brincadeira e rir-se-iam.
- O que me dizem? - perguntou. Olhou à sua volta. Tik e Mads não se viam em lado nenhum, mas tinham-se colocado mesmo atrás dele dois polícias dinamarqueses fardados.
- Muito engraçadinho - comentou um deles. - Estás detido.
(1) Em alemão no original: o termo designa os calções de pele com suspensórios usados pelos homens e rapazes na Baviera. (NT)
Passou o resto da noite em Politigaarden, na cela dos bêbedos com um velho que urinara nas calças e um rapaz da sua idade que vomitara no chão. Era demasiada a repulsa por eles e por si mesmo para dormir. Com o passar das horas, apareceu-lhe uma forte dor de cabeça e uma tremenda sede.
Mas a ressaca e a sujidade não eram as suas piores apreensões. Preocupava-o mais ser interrogado sobre a Resistência. E se fosse entregue à Gestapo e torturado? Desconhecia a sua tolerância à dor. Acabaria por trair Poul Kirke. E tudo por causa de uma brincadeira estúpida! Não acreditava que pudesse ter sido tão infantil. Sentia-se tremendamente envergonhado.
Às oito da manhã, um polícia fardado trouxe um tabuleiro com três canecas de sucedâneo de chá e um prato com pão escuro barrado ao de leve com um substituto de manteiga. Harald ignorou o pão (não conseguia comer num sítio que mais parecia uma latrina) mas bebeu o chá com sofreguidão.
Pouco depois foi conduzido da cela até uma sala. Aguardou alguns minutos; entrou então um sargento trazendo uma pasta e uma folha de papel dactilografada. - Levanta-te! - vociferou o sargento, e Harald pôs-se em pé de um salto.
O sargento sentou-se à mesa e leu o relatório. - Com que então um aluno de Jansborg? - comentou.
- Sim, senhor.
- Devias ter vergonha, rapaz.
- Sim, senhor.
- Onde arranjaste a bebida alcoólica?
- Num clube de jazz.
Levantou a cabeça da folha dactilografada. - O Instituto Dinamarquês?
- Sim.
- Devias lá estar quando os boches o encerraram.
- Sim. - Harald ficou confuso por ele ter usado o termo de calão algo depreciativo "boche" para "alemão". Destoava do seu tom formal.
- É costume embebedares-te?
- Não, senhor. Foi a primeira vez.
- E depois viste o posto da sentinela, e calhou encontrares uma lata de tinta...
- Lamento imenso.
O polícia sorriu de repente. - Bem, não lamentes tanto. Até achei bastante piada. Não usa calças! - Soltou uma gargalhada.
Harald estava perplexo. O homem parecera hostil, mas agora estava divertido com a brincadeira. - O que me vai acontecer?
- Nada. Nós somos a polícia, não a patrulha das brincadeiras. - O sargento rasgou o relatório ao meio e atirou-o para o cesto dos papéis.
Harald nem queria acreditar na sua sorte. Ia realmente sair em liberdade? - O que... o que deveria fazer?
- Voltar para Jansborg.
- Obrigado! - Harald perguntou-se se conseguiria entrar no colégio sem darem por isso, mesmo àquela hora tardia. Teria algum tempo, no comboio, para inventar uma história. Talvez nunca viessem a saber do sucedido.
O sargento levantou-se. - Mas aceita um conselho. Afasta-te da bebida.
- Assim farei - respondeu Harald fervorosamente. Se conseguisse sair daquele aperto, nunca mais voltaria a tocar no álcool.
O sargento abriu a porta, e Harald sofreu um terrível choque. Do lado de fora estava Peter Flemming.
Harald e Peter olharam um para o outro por um longo momento. O sargento perguntou: - Posso ajudá-lo, inspector? Peter ignorou-o e dirigiu-se a Harald. - Ora, ora - disse, no tom de satisfação de um homem que constatou que afinal tinha razão.
- Fiquei curioso, quando vi o nome na lista de detenções da noite. Poderia Harald Olufsen, autor de graffiti e bêbedo, ser Harald Olufsen, filho do pastor de Sande? Vejam só, são uma e a mesma pessoa.
Harald ficou descoroçoado. Precisamente quando começara a ter esperanças de que aquele terrível incidente ficasse em segredo, a verdade fora descoberta logo por aquele que guardava ressentimento contra toda a sua família.
Peter virou-se para o sargento e disse-lhe em tom desembaraçado:
- Deixe estar, eu agora encarrego-me disto.
O sargento ficou ofendido. - Não haverá acusações, senhor, decisão do superintendente.
- Isso é o que veremos.
Harald sentiu vontade de chorar. Estivera prestes a escapar impune. Era tão injusto.
O sargento hesitou, parecendo disposto a argumentar, e Peter ordenou com firmeza: - Pode ir.
- Muito bem, senhor. - Saiu.
Peter olhou para Harald, sem dizer nada, até que por fim Harald perguntou: - O que vai fazer?
Peter sorriu e disse: - Acho que te vou levar de volta ao colégio.
Entraram nos terrenos de Jansborg Skole num Buick da polícia conduzido por um agente fardado, com Harald atrás, qual prisioneiro.
O sol incidia nos velhos edifícios de tijolo vermelho e nos relvados, e Harald sentiu uma pontada de arrependimento pela vida simples e segura que vivera ali durante os últimos sete anos. O que quer que fosse acontecer naquele momento, o local tranquilizadoramente familiar não voltaria a ser um lar para si por muito mais tempo.
A visão despertou sentimentos diferentes em Peter Flemming, que murmurou com azedume ao condutor: - É aqui que educam os nossos futuros governantes.
- Sim, senhor - respondeu o condutor, em tom neutro. Estava na hora da sanduíche do meio da manhã, e os rapazes comiam cá fora; por conseguinte, a maior parte do colégio viu o carro dirigir-se ao edifício principal e Harald sair.
Peter mostrou o distintivo da polícia ao secretário do colégio, e ele e Harald foram imediatamente conduzidos ao gabinete de Heis.
Harald não sabia o que pensar. Parecia que Peter não o ia entregar à Gestapo, o seu pior receio. Estava relutante em encher-se demasiado cedo de esperanças, mas tudo indicava que Peter o considerasse um aluno traquina, não um membro da Resistência dinamarquesa. Deu graças por estar pelo menos a ser tratado como uma criança e não como um homem.
Mas, nesse caso, qual era a intenção de Peter?
Quando entraram, Heis ergueu a sua estatura alta e magra por detrás da secretária e fitou-os, com ligeira apreensão, através dos óculos empoleirados no seu nariz adunco. A voz era simpática, mas uma tremura denunciava o seu nervosismo. - Olufsen? O que vem a ser isto?
Peter não deu a Harald oportunidade de responder à pergunta. Apontando um dedo na sua direcção, interrogou Heis em tom áspero: - Este é um dos seus?
O frágil Heis estremeceu como se tivesse sido agredido. - O Olufsen é nosso aluno, sim.
- Foi detido a noite passada por danificar uma instalação militar alemã.
Harald apercebeu-se de que Peter estava a adorar a humilhação de Heis, e determinado a tirar o máximo partido dela. Heis ficou mortificado. - Lamento imenso sabê-lo.
- Também estava embriagado.
- Oh, meu Deus.
- A polícia tem de decidir o que fazer em relação ao sucedido.
- Não sei bem se...
- Sinceramente, preferia não acusar um aluno por causa de uma brincadeira infantil.
- Bem, folgo em sabê-lo...
- Por outro lado, ele não pode escapar impune.
- De facto, não.
- Para além de tudo o mais, os nossos amigos alemães vão querer saber que o perpetrador foi tratado com firmeza.
- Com certeza, com certeza.
Harald sentiu pena de Heis, mas ao mesmo tempo desejou que não fosse tão fraco. Até ali, limitara-se a concordar com o provocador Peter.
O inspector prosseguiu: - Por conseguinte, o resultado depende de si.
- E de que maneira?
- Se o libertarmos, vai expulsá-lo do colégio?
Harald viu logo o que Peter pretendia. Queria ter a certeza de que o delito de Harald se tornaria do domínio público. Só estava interessado em embaraçar a família Olufsen.
A detenção de um aluno de Jansborg viria em destaque nos jornais. A vergonha de Heis só seria suplantada pela dos pais de Harald. O pai reagiria de modo vulcânico e a mãe de maneira suicida.
Mas, apercebeu-se Harald, a inimizade de Peter pela família Olufsen embotara os seus instintos de polícia. Ficara tão satisfeito por ter apanhado um Olufsen embriagado que descurara um crime maior. Nem sequer ponderara se a aversão de Harald pelos nazis suplantava a pintura de paredes e envolvia a espionagem. A maldade de Peter salvara a pele de Harald.
Heis evidenciou o primeiro sinal de oposição. - A expulsão parece-me um pouco dura...
- Não tão dura quanto uma acusação e possível pena de prisão.
- Efectivamente, não.
Harald não participara na argumentação propriamente dita, porque não via qualquer saída daquele apuro que lhe permitisse manter o incidente em segredo. Consolou-se com a ideia de que escapara à Gestapo. Qualquer outro castigo afigurar-se-ia menor.
Heis disse: - Estamos quase no final do ano académico. Ele não faltaria a muitas aulas se fosse expulso agora.
- Nesse caso, não perderia muita matéria.
- É apenas um pormenor técnico, considerando que está apenas a duas semanas de sair.
- Mas agradará aos alemães.
- A sério? Isso é importante, claro.
- Se me garantir que ele será expulso, posso libertá-lo. Caso contrário, terei de o levar de volta para Politigaarden.
Heis lançou um olhar de culpa a Harald. - Parece que o colégio não tem verdadeiro voto na matéria, pois não?
- De facto, senhor.
Heis olhou para Peter. - Muito bem, então. Expulsá-lo-ei.
Peter sorriu de satisfação. - Ainda bem que resolvemos o assunto de uma forma tão sensata. - Levantou-se. - Vê se de futuro não te metes em sarilhos, jovem Harald - proclamou em tom pomposo.
Harald desviou o olhar.
Peter apertou a mão a Heis. - Bem, obrigado, Inspector - disse Heis.
- Foi um prazer ajudar. - Peter saiu.
Harald sentiu todos os seus músculos relaxar. Conseguira escapar. Seria o bom e o bonito em casa, claro, mas o mais importante fora o facto de a sua tolice não ter comprometido Poul Kirke e a Resistência.
Heis disse: - Aconteceu algo horrível, Olufsen.
- Sei que agi mal...
- Não, não é isso. Acho que conheces o primo do Mads Kirke.
- Poul, sim. - Harald voltou a ficar tenso. E agora? Conseguira Heis de alguma forma descobrir o envolvimento de Harald na Resistência? - O que se passou com o Poul?
- Teve um desastre de avião.
- Meu Deus! Ainda há uns dias voei com ele!
- Foi a noite passada na escola de voo. - Heis hesitou.
- O que...?
- Lamento ter de te informar que o Poul Kirke morreu.
- Morto? - estranhou Herbert Woodie com voz esganiçada. - Como é que pode estar morto?
- Estão a dizer que se despenhou no seu Tiger Moth - respondeu Hermia. Estava aborrecida e perturbada.
- Maldito palerma - proferiu Woodie, com indiferença. - Isto pode estragar tudo.
Hermia olhou para ele com repulsa. Sentiu vontade de esbofetear o seu rosto estúpido.
Encontravam-se no gabinete de Woodie, em Bletchley Park, com Digby Hoare. Hermia enviara uma mensagem a Poul Kirke, instruindo-o para que arranjasse uma descrição por uma testemunha ocular da instalação do radar na ilha de Sande. - A resposta chegou de Jens Toksvig, um dos colaboradores de Poul - referiu, fazendo um esforço por se manter calma e objectiva. - Foi enviada através da Legação Britânica em Estocolmo, como sempre, mas nem sequer estava codificada; obviamente, o Jens não conhece o código. Referiu que o despenhamento estava a ser tratado como um acidente, mas a verdade é que o Poul tentava fugir à polícia e que o avião foi abatido.
- Pobre homem - comentou Digby.
- A mensagem chegou esta manhã - acrescentou Hermia. - Preparava-me para lhe vir comunicar, Sr. Woodie, quando o senhor me mandou chamar. - Na verdade, estivera a chorar. Não o fazia com frequência, mas ficara sensibilizada com a morte de Poul, tão jovem, bem-parecido e cheio de energia. Sabia, também, que era responsável pela morte dele. Fora ela quem lhe pedira que espiasse a favor da Grã-Bretanha, e o seu assentimento corajoso conduzira directamente à sua morte. Pensara nos pais dele, e no primo Mads, e chorara também por eles. Principalmente, ansiava por terminar a tarefa que ele iniciara, para que os seus assassinos não acabassem por triunfar.
- Lamento imenso - disse Digby, passando o braço pelos ombros de Hermia num gesto de comiseração. - Estão a morrer muitos homens, mas custa mais quando é alguém que conhecemos.
Ela anuiu. As palavras dele foram simples e óbvias, mas ficou grata pela ideia. Que excelente homem era. Sentiu um acesso de afecto por ele, depois lembrou-se do noivo e sentiu-se culpada. Desejou poder voltar a ver Arne. Falar com ele e tocar-lhe reforçaria o seu amor e torná-la-ia inume ao apelo de Digby.
- E agora, em que ficamos? - perguntou Woodie.
Hermia recompôs-se rapidamente. - Segundo o Jens, os Guardas-Nocturnos decidiram não fazer ondas, pelo menos por enquanto, e ver até onde a polícia leva a investigação. Por isso, respondendo à sua pergunta, ficamos sem quaisquer fontes de informação na Dinamarca.
- Transmitimos uma imagem de grande incompetência - afirmou Woodie.
- Esqueça isso - ripostou Digby, sacudidamente. - Os nazis descobriram uma arma capaz de vencer a guerra. Julgámos que estávamos anos à frente deles com o radar, e sabemos agora que também o têm, e que o deles é melhor do que o nosso! Estou-me nas tintas para a imagem. A única questão é como vamos descobrir mais.
Woodie pareceu ultrajado, mas não abriu a boca. Hermia perguntou: - E as outras fontes de espionagem?
- Estamos a aplicá-las todas. E conseguimos mais uma pista: a palavra himmelbett tem aparecido nas descodificações da Luftwaffe.
Woodie interveio: - Himmelbett? Isso quer dizer "cama do céu". O que significa?
- É o termo deles para cama de dossel, daquelas com quatro colunas - explicou-lhe Hermia.
- Não faz sentido - referiu Woodie, de mau humor, como se a culpa fosse dela.
Digby perguntou: - Em algum contexto?
- Não propriamente. Parece que o radar deles opera numa himmelbett. Não conseguimos entender.
Hermia tomou uma decisão. - Eu mesma terei de ir à Dinamarca - comunicou.
- Não seja ridícula - protestou Woodie.
- Não temos agentes no país, por isso alguém tem de ser infiltrado - referiu. - Conheço o terreno como mais ninguém no MI6. Por esse motivo sou a chefe da secção na Dinamarca. E falo a língua como um natural. Tenho de ir.
- Nós não enviamos mulheres em missões dessa natureza - retorquiu em tom desprendido.
Digby interveio: - Enviamos, sim. - Virou-se para Hermia. - Partirá para Estocolmo esta noite. E eu acompanhá-la-ei.
- Por que disseste aquilo? - perguntou Hermia a Digby no dia seguinte, quando percorriam a Sala Dourada na Stadhuset, a famosa câmara municipal de Estocolmo.
Digby fez uma pausa para observar um mosaico na parede. - Eu sabia que o Primeiro-Ministro queria que me mantivesse o mais próximo possível numa missão tão importante como esta.
- Entendo.
- E queria a oportunidade de te ter só para mim. E esta é a melhor maneira de o conseguir.
- Mas sabes que tenho de entrar em contacto com o meu noivo. É a única pessoa em quem posso confiar para nos ajudar.
- Sim.
- E consequentemente, é provável que o vá ver muito em breve.
- Por mim, tudo bem. Não posso competir com um homem que está preso num país a centenas de quilómetros, heroicamente silencioso e invisível, preso ao seu afecto por fios invisíveis de lealdade e culpa. Preferia ter um rival de carne e osso com falhas humanas, alguém que se zanga, tem caspa na gola e coça o rabo.
- Isto não é uma competição - redarguiu Hermia, com exasperação. - Amo o Arne. Vou casar com ele.
- Mas ainda não casaste.
Hermia abanou a cabeça como que para se libertar daquela conversa irrelevante. Anteriormente, o interesse romântico de Digby por ela agradara-lhe - quiçá com uma certa culpa -, mas agora constituía uma distracção do trabalho. Estava ali para um encontro. Ela e Digby apenas se faziam passar por turistas que tentavam passar o tempo da melhor maneira.
Abandonaram a Sala Dourada e desceram a ampla escadaria de mármore, entrando no pátio empedrado. Atravessaram uma arcada de colunas de granito rosa e encontraram-se num jardim com vista para a água cinzenta do lago Malaren. Virando-se para olhar para a torre de noventa metros de altura que se erguia no edifício de tijolo vermelho, Hermia verificou que o sombra deles os acompanhava.
Um homem com ar enfastiado, de fato cinzento e sapatos muito gastos esforçava-se pouco por ocultar a sua presença. Quando Digby e Hermia se tinham afastado da Legação Britânica, numa limusina Volvo conduzida por motorista que fora adaptada para trabalhar a carvão, tinham sido seguidos por dois homens num Mercedes 230 preto. Ao pararem junto à Stadhuset, o homem de fato cinzento seguira-os até ao interior.
De acordo com o adido britânico da força aérea, um grupo de agentes alemães mantinha sob constante vigilância todos os cidadãos britânicos na Suécia. Poderiam ficar por conta própria, mas era desaconselhado. Despistar o homem que os seguia seria considerado uma prova de culpa. Os homens que haviam escapado à vigilância tinham sido detidos e acusados de espionagem, e as autoridades suecas, pressionadas para os expulsar.
Por conseguinte, Hermia tinha de desaparecer sem que o sombra se apercebesse de que fora despistado deliberadamente.
Na sequência de um plano previamente combinado, Hermia e Digby passeariam pelo jardim e virariam a esquina do edifício para irem ver o cenotáfio do fundador da cidade, Birger Jarl(1). O sarcófago dourado encontrava-se num túmulo abobadado com colunas de pedra em cada canto. - Como uma himmelbett - comentou Hermia.
Escondida do outro lado do cenotáfio, encontrava-se uma sueca da mesma altura e constituição que Hermia, com cabelo escuro idêntico.
Hermia deitou um olhar inquiridor à mulher, que acenou decididamente com a cabeça.
(1) O termo jarl designa um chefe ou nobre medieval escandinavo. Também conhecido como Birger Magnusson (c. 1210-1266), foi um estadista sueco, tendo fundado a cidade em 1252. Enquanto membro da Casa de Bjelbo, desempenhou um papel fulcral na consolidação da Suécia. O cenotáfio na base da torre da Câmara Municipal em Estocolmo destinava-se à trasladação dos seus restos mortais, conquanto tal nunca se tenha verificado. (NT)
Hermia sentiu um instante de medo. Até ali não fizera nada de ilegal. A sua visita à Suécia estava a ser tão inocente quanto se afigurava. A partir daquele momento, estaria do lado errado da lei, pela primeira vez na vida.
- Depressa - disse a mulher em inglês.
Hermia despiu a gabardina leve de Verão e a boina vermelha, e a outra mulher colocou-as. Hermia tirou do bolso um lenço castanho que atou à cabeça, cobrindo o seu cabelo característico e ocultando parcialmente o rosto.
A mulher sueca deu o braço a Digby e os dois afastaram-se do cenotáfio e regressaram ao jardim ficando bem visíveis.
Hermia esperou alguns momentos, fingindo observar o complexo gradeamento em ferro forjado em torno do monumento, temendo que o perseguidor desconfiasse e viesse investigar. Mas não aconteceu nada.
Saiu de trás do cenotáfio, com um certo receio de que o perseguidor aparecesse, estivesse à espera, mas não se via ninguém por perto. Puxando o lenço um pouco mais sobre o rosto, virou a esquina para o jardim.
Viu Digby e o isco dirigirem-se para o portão ao fundo. O sombra seguia-os. O plano estava a resultar.
Hermia seguiu na mesma direcção, seguindo o perseguidor. Conforme o combinado, Digby e a mulher foram direitos ao carro, que aguardava na praça. Hermia viu-os entrar no Volvo e afastarem-se. O perseguidor foi atrás deles no Mercedes. Fariam com que os seguisse sempre até à legação, e ele relataria que as duas visitas da Grã-Bretanha tinham passado a tarde como turistas inocentes.
E Hermia estava livre.
Atravessou a ponte Stadhusbron e seguiu para a praça Gustav Adolf, no centro da cidade, caminhando rapidamente, ansiosa por realizar a sua tarefa.
Nas últimas vinte e quatro horas, os acontecimentos tinham-se precipitado com uma rapidez estonteante. Hermia tivera apenas uns minutos para meter algumas roupas numa mala; depois, ela e Digby haviam sido levados num carro, a alta velocidade, para Dundee, na Escócia, onde se registaram num hotel alguns minutos depois da meia-noite. Naquela manhã, ao raiar do dia, tinham sido levados ao aeródromo de Leuchars, na costa de Fife, e uma tripulação da RAF, disfarçada com as fardas da British Overseas Airways Corporation, levara-os para Estocolmo, numa viagem de três horas. Haviam almoçado na Legação Britânica, depois posto em acção o plano concebido no carro entre Bletchley e Dundee.
Como a Suécia era neutra, podia-se telefonar ou escrever dali para pessoas na Dinamarca. Hermia ia tentar ligar ao noivo, Arne.
Do lado dinamarquês, os telefonemas eram monitorizados e as cartas abertas pelos censores, por isso teria de ser extraordinariamente cuidadosa no que dizia. Precisava de preparar um ardil que parecesse inocente a quem escutasse e, no entanto, trouxesse Arne para a Resistência.
Em 1939, quando criara os Guardas-Nocturnos, excluíra deliberada-mente Arne. Não por causa das suas convicções: era tão antinazi quanto ela, quiçá de uma forma menos apaixonada; no entanto, achava-os uns palhaços estúpidos de uniformes ridículos que queriam impedir as pessoas de se divertir. Não, o problema dele era a sua natureza despreocupada, bonacheirona. Era demasiado franco e simpático para o trabalho clandestino. Talvez também não se encontrasse disposta a pô-lo em perigo, muito embora Poul tivesse sido da mesma opinião que ela sobre a inadequabilidade de Arne. Naquele momento, porém, estava desesperada. Arne continuava o mesmo despreocupado de sempre, mas ela não tinha mais ninguém a quem recorrer.
Além disso, presentemente cada um tinha uma noção do perigo diferente de quando a guerra começara. Milhares de excelentes homens jovens tinham já sacrificado a vida. Arne era um oficial militar: era suposto correr riscos pelo seu país.
Mesmo assim, sentiu um aperto no coração perante a ideia do que lhe ia pedir para fazer.
Virou para Vasagatan, uma rua movimentada onde existiam vários hotéis, a estação central dos caminhos-de-ferro e a sede dos correios. Ali na Suécia, os serviços telefónicos tinham sempre funcionado separados dos correios, e havia vários balcões especiais com telefones públicos. Hermia dirigiu-se ao da estação dos caminhos-de-ferro.
Poderia ter ligado da Legação Britânica, mas isso levantaria quase de certeza suspeitas. No balcão telefónico não haveria nada de invulgar no facto de uma mulher que falava macarronicamente sueco com pronúncia dinamarquesa fazer uma chamada para o seu país.
Ela e Digby tinham discutido a hipótese de o telefonema ser escutado pelas autoridades. Havia pelo menos uma jovem alemã de uniforme a escutar em cada central telefónica da dinamarca. Evidentemente que não seria possível ouvir todos os telefonemas. Contudo, era muito mais provável que prestassem atenção às ligações internacionais e às chamadas para bases militares, por isso havia fortes probabilidades de a conversa de Hermia com Arne ser monitorizada. Teria de comunicar por meias palavras e sentidos dúbios. Mas isso seria possível. Ela e Arne tinham sido amantes, por isso deveria conseguir fazê-lo entender sem ser explícita.
A estação fora construída como um castelo francês. O grandioso átrio tinha um painel ornamental no tecto e lustres. Encontrou o balcão telefónico e colocou-se na fila.
Quando chegou ao balcão, disse à funcionária que queria fazer um telefonema para Arne Olufsen, e indicou o número da escola de voo. Aguardou impacientemente, tomada de apreensão, enquanto a telefonista tentava colocar Arne em linha. Nem sequer sabia se ele estaria em Vodal naquele dia. Podia estar a voar, ou ausente da base durante a tarde, ou de licença. Podia inclusivamente ter sido transferido para outra base ou mesmo ter abandonado a vida militar.
Mas tentaria encontrá-lo, onde quer que estivesse. Podia falar com o oficial de comando dele e perguntar para onde fora, podia ligar aos pais dele em Sande, e tinha os números de alguns amigos dele em Copenhaga. Dispunha da tarde inteira e de bastante dinheiro para telefonemas.
Seria estranho falar com ele ao cabo de mais de um ano. Estava entusiasmada mas ansiosa. O mais importante era a missão, mas não conseguia deixar de se atormentar quanto aos sentimentos de Arne. Talvez já nem a amasse como outrora. E se fosse frio com ela? Destroçar-lhe-ia o coração. Mas podia ter conhecido outra pessoa. Afinal, ela tivera um leve envolvimento com Digby. E não seria muito mais fácil ainda que um homem sentisse o coração a pender noutro sentido?
Recordou a altura em que haviam esquiado juntos, descendo rapidamente uma pista ensolarada, inclinando-se para um lado e depois para o outro em perfeito ritmo, transpirando no ar gélido, rindo da pura alegria de estarem vivos.
Chamaram-na a uma cabina.
Pegou no telefone e disse: - Está?
Arne perguntou: - Quem fala?
Esquecera a voz dele. Era cava e calorosa e dava a impressão de poder desatar às gargalhadas a qualquer momento. Falava um dinamarquês correcto, com uma dicção exacta aprendida entre as forças militares e um leve traço da pronúncia da Jutlândia, reminiscência da sua infância.
Hermia planeara a primeira frase. Tencionava usar os nomes carinhosos com que se tratavam, esperando que isso fosse suficiente para alertar Arne da necessidade de falar discretamente.
Mas por um momento não conseguiu dizer nada.
- Está? - perguntou ele. - Mas quem é que fala?
Ela engoliu em seco e recuperou a voz. - Olá, Escova de Dentes, é a tua gata preta. - Ela chamava-lhe "Escova de Dentes" porque era essa a sensação provocada pelo bigode dele quando a beijava. A alcunha dela provinha da cor do seu cabelo.
Foi a vez de ele ficar atónito. Seguiu-se um silêncio.
Hermia indagou: - Como estás?
- Estou bem - respondeu finalmente. - Meu Deus, és mesmo tu?
- Sou.
- Estás bem?
- Estou. - De repente, não suportou mais qualquer conversa banal. Inquiriu abruptamente: - Ainda me amas?
Ele não respondeu de imediato. O que a levou a supor que os sentimentos dele pudessem ter mudado. Não o afirmaria directamente, pensou; usaria frases equívocas, e diria que precisavam de reavaliar a sua relação depois de todo aquele tempo, mas ela saberia...
- Amo-te - disse-lhe.
- A sério?
- Mais do que nunca. Morro de saudades tuas.
Ela fechou os olhos. Sentindo vertigens, encostou-se à parede.
- Fico contente por ainda estares viva - afirmou. - Estou tão feliz por poder falar contigo.
- Também te amo - disse ela.
- O que tem acontecido? Como estás? De onde estás a ligar? Hermia recompôs-se. - Não estou muito longe. Apercebeu-se das reservas dela e respondeu no mesmo tom. - Está
bem, pelo que percebo.
Ela preparara a parte seguinte. - Lembras-te do castelo? - Havia muitos castelos na Dinamarca, mas um era especial para eles.
- Referes-te às ruínas? Como poderia esquecer-me?
- Poderias encontrar-te comigo lá?
- Como conseguirias lá chegar... Esquece. Falas a sério?
- Sim.
- é uma grande distância.
- É realmente muito importante.
- Iria muito mais longe só para te ver. Estou a pensar numa maneira. Posso pedir uma licença, mas se houver problema, ausentar-me-ei simplesmente...
- Não faças isso. - Não queria que a polícia militar andasse atrás dele. - Quando é o teu próximo dia de folga?
- No sábado.
A telefonista entrou em linha para lhes dizer que tinham dez segundos.
A pressa, Hermia disse: - Estarei lá no sábado, espero. Se não conseguires, voltarei todos os dias sempre que possível.
- Farei o mesmo.
- Tem cuidado. Amo-te. A ligação terminou.
Hermia manteve o auscultador encostado ao ouvido, como se, daquela maneira, pudesse mantê-lo mais um pouco em contacto. Depois a telefonista perguntou se queria fazer outra chamada. Ela disse que não e desligou.
Pagou ao balcão, depois saiu, transbordante de felicidade. Permaneceu no átrio da estação, debaixo do tecto alto e curvo, com pessoas a passar apressadas por ela em todas as direcções. Ele ainda a amava. Dentro de dois dias iria vê-lo. Alguém chocou com ela; decidiu abandonar a multidão entrando num café, onde se deixou cair numa cadeira. Dois dias.
O castelo em ruínas a que ambos se haviam referido enigmaticamente era Hammershus, uma atracção turística na ilha dinamarquesa de veraneio de Bornholm, no Mar Báltico. Tinham passado uma semana na ilha em 1939, fazendo-se passar por marido e mulher, e feito amor entre as ruínas num final de tarde quente de Verão. Arne apanharia o ferry de Copenhaga, uma viagem de sete ou oito horas, ou voaria de Kastrup, o que levava cerca de uma hora. A ilha ficava a cem milhas da Dinamarca continental, mas apenas a vinte milhas da costa meridional da Suécia. Hermia teria de arranjar um barco de pesca que a levasse ilegalmente por aquela curta extensão de água.
Mas não conseguia deixar de pensar no perigo que constituiria para Arne, não para si própria. Ele ia encontrar-se secretamente com uma agente dos serviços secretos britânicos. Ela iria pedir-lhe que se tornasse espião.
Se fosse apanhado, o castigo seria a morte.
No segundo dia após a sua detenção, Harald regressou a casa.
Heis deixara-o ficar mais dois dias no colégio para fazer os últimos exames. Ser-lhe-ia permitido terminar o curso, mas não assistir à cerimónia, que teria lugar dali a uma semana. Mas o importante era que o seu lugar na universidade não tivesse ficado comprometido. Iria estudar física sob a orientação de Niels Bohr - se vivesse até lá.
Durante aqueles dois dias, soubera por Mads Kirke que a morte de Poul não se devera a um simples despenhamento. As entidades militares recusavam-se a revelar pormenores, alegando que a investigação ainda estava em curso, mas os outros pilotos tinham contado à família que, na altura, a polícia estivera na base e efectuara disparos. Harald tinha a certeza, conquanto não pudesse dizer a Mads, que Poul fora morto por causa do seu trabalho na Resistência.
Não obstante, quando seguia a caminho de casa, temia mais o pai do que a polícia. Era uma viagem de uma familiaridade entediante a toda a largura da Dinamarca, de Jansborg, a leste, até Sande, ao largo da costa ocidental. Conhecia a estação dos caminhos-de-ferro de cada pequena cidade e o cais do ferry a tresandar a peixe e toda a paisagem plana e verde de permeio. A viagem demorava um dia inteiro, devido aos múltiplos atrasos dos comboios, mas desejou que pudesse ser ainda mais longa.
Passou o tempo a preparar-se para a ira do pai. Ensaiou discursos indignados de justificação pessoal que até a si pareceram pouco convincentes. Experimentou uma variedade de desculpas mais ou menos servis, sem conseguir encontrar uma fórmula que fosse sincera mas não abjecta. Ainda pensou dizer aos pais que dessem graças por ele estar vivo, quando poderia ter tido o mesmo destino que Poul Kirke; mas seria aviltar uma morte heróica.
Quando chegou a Sande, adiou ainda mais a sua chegada indo a pé pela praia até casa. A maré estava baixa, e o mar quase não se via a um quilómetro e meio de distância, uma faixa azul-escura estreita com contornos inconstantes de rebentação branca, ensanduichada entre o azul-vivo do céu e a areia amarelada. A tarde ia adiantada e o Sol estava baixo. Alguns veraneantes passeavam pelas dunas, e um grupo de rapazes com cerca de doze ou treze anos jogava futebol. Teria sido uma cena feliz, não fossem os novos bunkers de betão cinzento com intervalos de um quilómetro e meio a estender-se pela linha da maré alta, carregados de artilharia e equipados com soldados de capacetes de aço.
Chegou à nova base militar e abandonou a praia para seguir o longo desvio em torno dela, grato pela demora acrescida. Perguntou-se se Poul conseguira enviar o seu esboço do equipamento de rádio aos britânicos. Se não, a polícia devia tê-lo encontrado. Estariam curiosos quanto ao seu autor? Felizmente, não existia nada que o ligasse a Harald. Mesmo assim, a ideia era assustadora. A polícia continuava a ignorar que ele era um criminoso, mas naquele momento tinha conhecimento do seu crime.
Avistou finalmente a sua casa. Tal como a igreja, o presbitério fora construído segundo o estilo local, com tijolos pintados de vermelho e um telhado de colmo que descaía sobre as janelas, como um chapéu puxado sobre os olhos para não deixar entrar a chuva. O lintel por cima da porta da frente tinha pintadas faixas oblíquas pretas, brancas e verdes, uma tradição local.
Harald dirigiu-se às traseiras e espreitou pela vidraça em losango na porta da cozinha. A mãe encontrava-se sozinha. Observou-a por um momento, perguntando-se qual o aspecto dela quando tinha a sua idade. Até onde a memória lhe permitia alcançar, sempre aparentara um ar cansado; mas devia ter sido bonita, em tempos.
Rezava a história da família que o pai de Harald, Bruno, fora considerado um solteirão inveterado aos trinta e sete anos, completamente dedicado ao trabalho da sua pequena seita. Conhecera então Lisbeth, dez anos mais nova, e perdera-se de amores por ela. Estava tão loucamente apaixonado que pusera uma gravata colorida numa tentativa de parecer romântico, e os diáconos tinham-se visto obrigados a admoestá-lo por causa dos seus atavios pouco apropriados.
Vendo a mãe debruçada sobre o lava-loiças, a esfregar uma panela, Harald tentou idealizar o cabelo grisalho e baço como fora outrora, negro e brilhante, e os olhos cor de avelã fulgindo de humor; as rugas do rosto alisadas e o corpo fatigado cheio de energia. Devia ter sido irresistivelmente graciosa, calculou Harald, para ter levado os pensamentos desapiedadamente sagrados do pai a desejar a carne. Era difícil de imaginar.
Entrou, pousou a mala e deu um beijo à mãe.
- O teu pai saiu - comunicou-lhe.
- Aonde é que ele foi?
- O Ove Borking está doente. - Ove era um pescador idoso e membro fiel da congregação.
Harald sentiu alívio. Qualquer adiamento do confronto era bem-vindo.
A mãe estava séria e lacrimejante. A sua expressão comoveu-o. Disse: - Lamento ter-lhe causado este desgosto, mãe.
- O teu pai está mortificado - disse. - O Axel Flemming convocou uma reunião de emergência do Conselho de Diáconos para discutir o assunto.
Harald anuiu. Já previra que os Flemming fossem explorar ao máximo o sucedido.
- Mas por que o fizeste? - indagou a mãe em tom choroso. Não tinha resposta.
Preparou-lhe uma sanduíche para a ceia. - Há algumas notícias do tio Joachim? - perguntou.
- Nada. Não responde às nossas cartas.
Os problemas do próprio Harald pareceram uma insignificância quando pensou na sua prima Monika, sem recursos e perseguida, não sabendo sequer se o pai estava morto ou vivo. Enquanto Harald crescia, a visita anual dos primos Goldstein constituíra o ponto alto do ano.
Durante duas semanas, a atmosfera monástica do presbitério transformava-se, e a casa enchia-se de pessoas e ruído. O pastor tinha um carinho complacente pela irmã e pela família dela que não demonstrava por mais ninguém, muito menos pelos seus próprios filhos, e sorria favoravelmente quando cometiam transgressões, como ir comprar gelados a um domingo, pelas quais teria punido Harald e Arne. Para Harald, o som da língua alemã significava gargalhadas, partidas e brincadeiras. Perguntava-se naquele momento se os Goldstein alguma vez voltariam a rir.
Ligou o rádio para escutar as notícias da guerra. Eram más. O ataque britânico ao Norte de África fora abandonado, um fracasso catastrófico, metade dos tanques perdidos, ou abandonados no deserto devido a avarias mecânicas, ou destruídos por hábeis artilheiros antitanque alemães. O domínio do Eixo no Norte de África mantinha-se. A rádio dinamarquesa e a BBC contavam essencialmente a mesma história.
À meia-noite, um voo de bombardeiros sobrevoou a ilha. Harald foi espreitar e viu que se dirigiam para leste. Isso significava que eram britânicos. Os bombardeiros eram tudo o que os britânicos tinham naquele momento.
Quando voltou para dentro, a mãe disse-lhe: - O teu pai pode ficar fora toda a noite. É melhor ires-te deitar.
Ficou acordado muito tempo. Perguntou-se por que estava com medo. Era demasiado crescido para apanhar uma sova. A ira do pai metia respeito, mas não iria seguramente para além de um ataque verbal. Harald não se deixava intimidar facilmente. Muito pelo contrário: tendia a virar-se contra a autoridade e a desafiá-la por mera rebeldia.
A noite curta chegou ao fim e um rectângulo de luz cinzenta do alvorecer apareceu ao redor da cortina na sua janela como a moldura de uma fotografia. Mergulhou no sono. O seu último pensamento foi que talvez o que temia realmente não era prejudicar-se, mas o sofrimento do pai.
Foi bruscamente acordado uma hora depois.
A porta escancarou-se, a luz acendeu-se e o pastor apareceu junto à cama, completamente vestido, de mãos nas ancas, o queixo espetado.
- Como foste capaz? - bradou.
Harald sentou-se, meio zonzo, vendo o pai, alto, calvo, vestido de preto, a fitá-lo com os seus olhos azuis intensos que aterravam a sua congregação.
- Onde é que tinhas a cabeça? - O pai deu largas à sua fúria.
- O que te possuiu?
Harald não queria encolher-se na cama como uma criança. Afastou o lençol e levantou-se. Como fazia calor, dormira de cuecas.
- Cobre-te, rapaz - ordenou o pai. - Estás praticamente nu.
O exagero daquela crítica levou Harald a replicar. - Se a roupa interior o ofende, não entre nos quartos sem bater à porta.
- Bater à porta? Não me digas para bater às portas na minha própria casa!
Harald registou a sensação familiar de que o pai tinha resposta para tudo. - Muito bem - respondeu, carrancudo.
- Que demónio se apoderou de ti? Como foste capaz de fazer recair semelhante desgraça sobre ti próprio, a tua família, o teu colégio e a tua igreja? - Harald vestiu as calças e virou-se para enfrentar o pai.
- Então? - encolerizou-se o pastor. - Vais responder-me?
- Desculpe. Julguei que estivesse a fazer perguntas retóricas. - Harald ficou surpreendido com a frieza do seu próprio sarcasmo.
O pai estava enfurecido. - Não tentes servir-te da tua instrução para te pores com evasivas; eu também andei em Jansborg.
- Não estou com evasivas. Estou a perguntar se existirá alguma probabilidade de ouvir o que quer que eu tenha a dizer.
O pastor levantou a mão como se lhe fosse bater. Teria sido um alívio, pensou Harald ao ver o pai hesitar. Quer recebesse o golpe passivamente, quer ripostasse, a violência teria constituído uma espécie de decisão.
Mas o pai não ia facilitar-lhe a vida. Baixou a mão e disse: - Bem, sou todo ouvidos. O que tens a abonar em tua defesa?
Harald concentrou-se. No comboio, ensaiara muitas versões daquele discurso, algumas delas de grande eloquência; naquele momento, porém, esqueceu todos os seus floreados de oratória. - Lamento ter sujado o posto da sentinela, porque foi um gesto vão, um acto de desafio pueril.
- No mínimo!
Ainda chegou a pensar contar ao pai a sua ligação à Resistência, mas decidiu rapidamente não arriscar cobrir-se ainda mais de ridículo. Além disso, agora que Poul estava morto, a Resistência poderia já nem existir.
Concentrou-se antes no lado pessoal. - Lamento ter comprometido o colégio, porque o Heis é um homem bondoso. Lamento ter-me embebedado, porque me senti pessimamente na manhã seguinte. Acima de tudo, lamento ter causado sofrimento à minha mãe.
- E ao teu pai?
Harald abanou a cabeça. - O senhor está incomodado porque o Axel Flemming tem conhecimento disto e vai esfregar-lho na cara. O seu orgulho foi ferido, mas não sei se estará sequer preocupado
comigo.
- Orgulho? - atroou o pai. -- O que tem o orgulho a ver seja com o que for? Procurei educar os meus filhos para serem homens decentes, sóbrios e tementes a Deus, e tu decepcionaste-me.
Harald sentiu-se exasperado. - Olhe, também não é assim uma desgraça tão grande. A maior parte dos homens embebeda-se...
- Não os meus filhos!
- . . . pelo menos uma vez na vida.
- Mas tu foste detido.
- Isso foi azar.
- Foi mau comportamento...
- E não fui acusado, o sargento da polícia até achou que aquilo que eu fiz teve graça. "Nós não somos a patrulha das brincadeiras", disse ele. Eu nem sequer teria sido expulso do colégio se o Peter Flemming não tem ameaçado o Heis.
- Não te atrevas a minimizar o caso. Nunca nenhum membro desta família foi preso fosse por que motivo fosse. Arrastaste-nos para a sarjeta. - O rosto do pastor alterou-se repentinamente. Pela primeira vez, mostrou tristeza em vez de raiva. - E seria chocante e trágico mesmo que ninguém no mundo soubesse disto excepto eu.
Harald viu que o pai estava a ser sincero, e essa consciencialização fê-lo hesitar. Era verdade que o orgulho do velho estava ferido, mas isso não era tudo. Temia sinceramente pelo bem-estar espiritual do filho. Harald lamenrou ter sido sarcástico.
Mas o pai não lhe deu oportunidade de ser conciliatório. - Subsiste a questão do que fazer contigo.
Harald não percebeu bem o alcance daquelas palavras. - Só perdi uns dias de aulas - disse. - Posso fazer as leituras preliminares para o curso universitário aqui em casa.
- Não - redarguiu o pai. - Não vais escapar assim tão impunemente. Harald teve um péssimo presságio. - O que quer dizer? O que está
a planear?
- Tu não vais para a universidade.
- Do que está a falar? Claro que vou. - De repente, Harald sentiu muito medo.
- Não te vou enviar para Copenhaga para conspurcares a tua alma com bebidas fortes e música de jazz. Deste provas de não teres maturidade suficiente para a cidade. Ficarás aqui, onde eu possa supervisionar o teu desenvolvimento espiritual.
- Mas não pode telefonar para a universidade e dizer: "Não aceitem este rapaz." Eles deram-me uma vaga.
- Porém, não te deram dinheiro.
Harald ficou chocado. - O meu avô legou dinheiro para os meus estudos.
- Mas deixou-o para eu o administrar. E não to vou dar para o gastares em clubes nocturnos.
- O dinheiro não é seu, não tem esse direito!
- Acredita que tenho. Sou teu pai.
Harald ficou atónito. Não contara com aquela hipótese. Era o único castigo que o afectaria de verdade. Perplexo, disse: - Mas sempre me disse que a educação era muito importante.
- Educação não é o mesmo que religiosidade.
- Mesmo assim...
O pai viu que ele ficara genuinamente chocado e moderou um pouco a sua atitude. - Há uma hora, o Ove Borking morreu. Não tinha estudos dignos de menção, mal sabia escrever o seu nome. Passou a vida a trabalhar nos barcos de outros homens, e nunca ganhou o suficiente para comprar uma carpete para a mulher colocar na sala de visitas. Mas criou três filhos tementes a Deus, e todas as semanas entregava a dízima do seu magro salário à igreja. É o que Deus considera uma
boa vida.
Harald conhecia e gostava de Ove, e lamentava a sua morte. - Era
um homem simples.
- Não existe nada de mal na simplicidade.
- No entanto, se todos os homens fossem como o Ove, ainda estaríamos a pescar em canoas escavadas em troncos de árvores.
- É possível. Mas vais aprender a imitá-lo antes de fazeres seja o
que for.
- E o que significa isso?
- Arranja-te. Veste as roupas do colégio e uma camisa lavada. Vais trabalhar. - Saiu do quarto.
Harald ficou a olhar para a porta fechada. E agora?
Lavou-se e barbeou-se num ápice. Mal queria acreditar no que estava a acontecer.
Claro que podia ir para a universidade sem a ajuda do pai. Teria de arranjar um emprego para se sustentar, e não poderia permitir-se pagar as aulas particulares que a maior parte das pessoas considerava essenciais para suplementar as palestras gratuitas. Mas poderia conseguir tudo o que queria nessas circunstâncias? Não pretendia simplesmente passar nos exames. Queria ser físico, o sucessor de Niels Bohr. Como conseguiria fazê-lo se não tinha dinheiro para comprar livros?
Precisava de tempo para pensar. E, enquanto pensava, teria de alinhar no que quer que o pai planeara para ele.
Desceu e comeu, sem as saborear, as papas de aveia que a mãe
preparara.
O pai selara o cavalo, o Major, um corpulento castrado irlandês, suficientemente forte para transportar ambos. O pastor montou e Harald subiu para a garupa.
Seguiram ao longo do comprimento da ilha. Major levou mais de uma hora a efectuar o percurso. Quando chegaram ao cais, deram de beber ao cavalo da gamela do desembarcadouro e esperaram pelo ferry. O pastor ainda não contara a Harald aonde iam.
Quando o barco atracou, o barqueiro tirou o boné ao pastor, que lhe disse: - O Ove Borking finou-se hoje de manhãzinha.
- Já esperava - respondeu o barqueiro.
- Foi um bom homem.
- Paz à sua alma.
- Amén.
Atravessaram para o continente e subiram a colina até à praça da cidade. As lojas ainda não estavam abertas, mas o pastor bateu à porta da retrosaria. Foi aberta pelo proprietário, Otto Sejr, um diácono da igreja de Sande. Parecia estar à espera deles.
Entraram, e Harald olhou à sua volta. Caixas de vidro exibiam novelos de lã colorida. As prateleiras estavam cheias de peças de tecido, fazendas, algodões estampados e algumas sedas. Por debaixo das prateleiras havia gavetas, cada uma devidamente etiquetada: FITA - BRANCA, FITA - FANTASIA, ELÁSTICOS, BOTÕES - CAMISA, BOTÕES - OSSO, ALFINETES, AGULHAS DE TRICÔ.
Notava-se um cheiro a mofo de bolas de naftalina e lavanda, como o guarda-fatos de uma senhora idosa. O odor trouxe a Harald uma recordação da infância, subitamente viva: ter estado ali em rapazinho enquanto a mãe comprava cetim preto para as camisas eclesiásticas do pai.
A loja tinha agora um ar abandonado, provavelmente em virtude da austeridade do tempo de guerra. As prateleiras mais altas encontravam-se vazias, e pareceu-lhe que não havia a extraordinária variedade de cores de lã de tricô que recordava da infância.
Mas o que fazia ali naquele dia?
O pai não tardou a responder à sua pergunta. - O irmão Sejr acedeu generosamente a dar-te emprego - comunicou-lhe. - Irás ajudar na loja, atender as freguesas e fazer tudo o mais em que possas ser útil.
Olhou para o pai, sem fala.
- A senhora Sejr está doente, e já não pode trabalhar, e a filha deles casou recentemente e foi viver para Odense, por isso ele precisa de ajuda - prosseguiu o pastor, como fosse necessária aquela justificação.
Sejr era um homem pequeno, careca, com um bigodinho. Toda a vida Harald o conhecera. Era enfatuado, mesquinho e dissimulado. Brandiu um dedo e disse: - Trabalha com afinco, presta atenção, sê obediente e poderás aprender um ofício valioso, jovem Harald.
Harald ficou confuso. Levara dois dias a pensar na forma como o pai iria reagir ao seu crime, mas nada o fizera prever aquele desfecho. Era uma pena perpétua.
O pai apertou a mão a Sejr e agradeceu-lhe, depois dirigiu-se a Harald ao sair: - Almoçarás aqui com a família, e vais direito para casa quando terminares o trabalho. Vemo-nos logo à noite. - Aguardou um momento pela resposta, mas como Harald não dissesse nada, saiu.
- Muito bem - disse Sejr. - Ainda há tempo de varrer o chão antes de abrirmos. Encontrarás uma vassoura no armário. Começas pelas traseiras, varres na direcção da frente, e empurras o pó lá para fora.
Harald iniciou a sua tarefa. Vendo-o varrer só com uma mão, Sejr admoestou-o: - Agarra-me nessa vassoura com as duas mãos, rapaz! Harald obedeceu.
Às nove horas, Sejr colocou a tabuleta ABERTO na porta. - Quando eu quiser que atendas uma freguesa, direi: "Avança" e dás um passo em frente - explicou. - Dizes: "Bom dia, em que posso ser útil?" Mas observa-me primeiro com uma ou duas freguesas.
Harald viu Sejr vender seis agulhas num cartão a uma velhota que contou cuidadosamente as moedas como se fossem de ouro. A seguir, foi uma senhora elegantemente vestida com cerca de quarenta anos que comprou dois metros de galão preto. Chegou então a vez de Harald atender. A terceira freguesa era uma mulher de lábios grossos que lhe pareceu familiar. Pediu um carrinho de fio de algodão branco. Sejr falou bruscamente: - A tua esquerda, prateleira de cima. Harald encontrou a linha. O preço estava marcado a lápis na extremidade de madeira do carrinho. Recebeu o dinheiro e deu o troco. Depois a mulher disse: - Então, Harald Olufsen, constou-me que estiveste num antro de perdição.
Harald corou. Não estava preparado para aquilo. Estaria a cidade inteira ao corrente do que fizera? Não se ia defender perante pessoas coscuvilheiras. Não deu resposta.
Sejr interveio: - O jovem Harald encontrará aqui uma influência mais regrada, senhora Jensen.
- Tenho a certeza de que lhe fará bem.
Estavam a adorar em absoluto a sua humilhação, apercebeu-se Harald. Respondeu: - Deseja então mais alguma coisa?
- Oh, não, obrigada - disse a Sr.a Jensen, mas não fez menção de sair. - Nesse caso já não vais para a universidade?
Harald virou-se e perguntou: - Onde é a casa de banho, Senhor Sejr?
- Lá atrás ao cimo das escadas.
Ao sair, ouviu Sejr dizer como quem pede desculpa: - Ele ficou
embaraçado, claro.
- E não admira - replicou a mulher.
Harald subiu as escadas para o apartamento por cima da loja. A Sr.a Sejr estava na cozinha, com um casaco de trazer por casa cor-de-rosa aos retalhos, a lavar as chávenas do pequeno-almoço no lava-loiças.
- Só tenho uns arenques para o pequeno-almoço - disse. - Espero que não comas muito.
Demorou-se na casa de banho e, quando regressou à loja, ficou aliviado por ver que a Sr.a Jensen saíra. Sejr disse-lhe: - É natural que as pessoas fiquem curiosas, mas deves ser educado, digam o que disserem.
- A minha vida não é da conta da senhora Jensen - respondeu, furioso.
- Mas ela é uma freguesa, e o freguês tem sempre razão.
A manhã passou com uma lentidão atroz. Sejr verificou as existências, anotou encomendas, efectuou registos nos livros e atendeu alguns telefonemas, mas Harald foi obrigado a ficar de pé, à espera de que a próxima pessoa entrasse pela porta. Teve muito tempo para ponderar. Ia realmente passar a vida a vender carrinhos de linha a donas de casa? Era impensável.
A meio da manhã, quando a Sr.a Sejr levou uma chávena de chá a cada um deles, decidiu que não passaria sequer o resto do Verão a trabalhar ali.
À hora do almoço sabia que não ia aguentar o resto do dia.
Quando Sejr colocou a tabuleta do lado FECHADO, Harald disse-lhe:
- Vou dar uma volta.
Sejr ficou surpreso. - Mas a senhora Sejr preparou o almoço.
- Ela disse-me que não tem comida suficiente. - Harald abriu a porta.
- Só tens uma hora - gritou Sejr atrás dele. - Não te atrases! Harald desceu a colina e apanhou o ferry.
Atravessou para Sande e caminhou pela praia em direcção ao presbitério. Sentiu uma estranha sensação de aperto no peito quando olhou para as dunas, para os quilómetros de areia molhada e para o mar infinito. A visão era-lhe tão familiar quanto o seu rosto no espelho, no entanto, causou-lhe naquele momento uma dolorosa sensação de perda. Quase lhe apeteceu chorar, e após um bocado percebeu porquê.
Ia abandonar o lugar naquele mesmo dia.
A razão lógica veio depois da percepção. Não era obrigado a efectuar o trabalho que lhe fora imposto, mas não podia continuar a viver em casa depois de ter desafiado o pai. Teria de partir.
A ideia de desobedecer ao pai já não o assustava, apercebeu-se ao dar grandes passadas pela areia. Perdera todo o dramatismo. Quando ocorrera tal mudança? Fora na altura em que o pastor dissera que iria reter o dinheiro que o avô deixara, decidiu Harald. Fora uma traição chocante que não podia deixar a relação deles intacta. Naquele momento, Harald compreendeu que já não podia confiar no pai para zelar pelos seus interesses. Tinha de passar a olhar por si.
A conclusão era de um estranho anticlímax. Claro que tinha de assumir a responsabilidade pela sua própria vida. Era como se se apercebesse de que a Bíblia não era infalível: teve dificuldade em imaginar como pudera ser tão crédulo antes.
Quando chegou ao presbitério, o cavalo não se encontrava no cercado. Harald calculou que o pai tivesse regressado a casa dos Borking para efectuar os preparativos para o funeral de Ove. Entrou pela porta da cozinha. A mãe estava à mesa a descascar batatas. Ficou assustada quando o viu. Deu-lhe um beijo, mas não adiantou qualquer explicação.
Dirigiu-se ao seu quarto e fez a mala como se fosse para o colégio. A mãe apareceu à porta do quarto dele, a limpar as mãos a um pano. Viu o rosto dela, sulcado e triste, e desviou rapidamente o olhar. Dali a um bocado, ela perguntou-lhe: - Para onde irás?
- Não sei.
Pensou no irmão. Foi ao gabinete de trabalho do pai, pegou no telefone e pediu que lhe ligassem para a escola de voo. Alguns minutos depois, Arne apareceu em linha. Harald contou-lhe o sucedido.
- O velho exagerou - comentou Arne. - Se te pusesse num trabalho duro, como limpar peixe na fábrica de conservas, terias aguentado só para provar a tua virilidade.
- É possível que sim.
- Mas tu nunca ficarias muito tempo a trabalhar numa maldita loja. As vezes o nosso pai tem umas atitudes mesmo descabidas. Para onde irás agora?
Harald ainda não decidira, até àquele momento, mas teve um rasgo de inspiração. - Kirstenslot - disse. - Para casa do Tik Duchwitz. Mas não digas ao pai. Não quero que venha atrás de mim.
- O velho Duchwitz é capaz de lhe contar.
Não deixava de fazer sentido, reflectiu Harald. O respeitável pai de Tik teria pouca compaixão por um fugitivo que tocava boogie-woogie e pintava slogans. Mas o mosteiro em ruínas era usado como dormitório pelos trabalhadores sazonais da quinta. - Dormirei no velho mosteiro - disse. - O pai do Tik nem vai saber que lá estou.
- Como te alimentarás?
- Talvez consiga arranjar um emprego na quinta. Contratam estudantes no Verão.
- O Tik ainda está no colégio.
- Mas a irmã dele poderia ajudar-me.
- Eu conheço-a. Saiu umas duas vezes com o Poul. É a Karen.
- Só duas vezes?
- Sim. Não me digas que estás interessado nela?
- Ela não é para o meu bico.
- Pois não.
- O que aconteceu ao Poul... ao certo?
- Foi o Peter Flemming.
- Peter! - Mads Kirke desconhecia esse pormenor.
- Apareceu com um carro cheio de polícias, à procura do Poul. Ele tentou fugir no seu Tiger Moth, e o Peter alvejou-o. O avião despenhou-se e incendiou-se.
- Santo Deus! Assististe a tudo?
- Não, mas um dos aviadores sim.
- O Mads contou-me uma parte do sucedido, mas ele não estava a par de tudo. Por isso Peter Flemming matou Poul. Foi horrível.
- Não fales muito sobre o assunto, poderias meter-te em sarilhos. Eles estão a tentar fazer com que passe por acidente.
- Está bem. - Harald apercebeu-se de que Arne não referira o porquê de a polícia ter vindo à procura de Poul. E Arne devia ter reparado que Harald não perguntara.
- Avisa-me quando chegares a Kirstenslot. Se precisares de alguma coisa, telefona.
- Obrigado.
- Boa sorte, miúdo.
Quando Harald desligou, o pai entrou. - E o que pensas que estás a fazer?
Harald levantou-se. - Se quer o dinheiro do telefonema, peça ao Sejr o meu salário da manhã.
- Não quero nenhum dinheiro, quero saber por que não estás na loja.
- O meu destino não é ser retroseiro.
- Tu não sabes qual é o teu destino.
- É possível. - Harald abandonou a divisão.
Foi até à oficina e acendeu a caldeira da sua motorizada. Enquanto esperava que criasse vapor, encheu de turfa o carro lateral. Não sabia de quanta iria precisar para chegar a Kirstenslot, de modo que a levou toda. Regressou a casa e pegou na mala.
O pai estava à sua espera na cozinha. - Aonde é que tu pensas que vais?
- Prefiro não revelar.
- Proíbo-te de saíres.
- Na realidade, o pai já não pode proibir de nada - retorquiu Harald calmamente. - Deixou de estar disposto a sustentar-me.
Está a esforçar-se por sabotar a minha educação. Acho que perdeu o direito de me dizer o que fazer.
O pastor ficou atónito. - Tens de me dizer para onde vais.
- Não.
- E por que não?
- Se não souber onde estou, não pode intrometer-se nos meus planos.
O pastor ficou extremamente ofendido. Harald sentiu o arrependimento como uma pontada súbita. Não tinha desejo de vingança e não sentia a menor satisfação em ver o pai sofrer; mas temia que, se mostrasse remorsos, fosse perder a determinação e sentir-se obrigado a ficar. Virou então a cara e saiu.
Prendeu a mala à traseira da motorizada e trouxe-a da oficina.
A mãe atravessou o pátio a correr e enfiou-lhe um embrulho nas mãos. - Comida - disse. Chorava.
Guardou a comida no carro lateral com a turfa.
A mãe deitou-lhe os braços ao pescoço quando ele se sentou na motorizada. - O teu pai ama-te, Harald. Entendes isso?
- Sim, mãe, acho que sim.
Ela deu-lhe um beijo. - Não deixes de dar notícias. Telefona, ou envia um postal.
- Está bem.
- Promete.
- Prometo. Libertou-o, e ele afastou-se.
Peter Flemming despiu a mulher.
Encontrava-se passivamente diante do espelho, uma estátua de sangue quente de uma mulher pálida e bela. Tirou-lhe o relógio de pulso e o colar, depois soltou pacientemente os colchetes das fêmeas do vestido com os seus dedos desajeitados que se haviam tornado hábeis das horas de prática. Havia uma nódoa de lado, reparou com uma expressão reprovadora, como se ela tivesse tocado em algo pegajoso e limpo depois a mão à anca. Por norma não era porca. O vestido saiu pela cabeça, tendo o cuidado de não a despentear.
Inge era tão bela naquele dia como quando da primeira vez que a vira em roupa interior. Mas então ela sorrira, proferira palavras ternas, a sua expressão revelando um desejo intenso e uma pontinha de apreensão. Naquele dia o seu rosto estava inexpressivo.
Pendurou o vestido dela no guarda-fatos e depois despiu-lhe o soutien. Tinha uns seios cheios e redondos, os mamilos de uma cor tão clara que eram quase invisíveis. Engoliu em seco com força e evitou olhá-los. Fê-la sentar-se no banco do toucador, depois descalçou-lhe os sapatos, soltou as meias e baixou-as, enrolando-as, e a seguir desapertou-lhe o cinto de ligas. Tornou a levantá-la para lhe tirar as cuecas. Brotou nele o desejo quando pôs a descoberto os caracóis louros entre as pernas dela. Sentiu repulsa de si mesmo.
Sabia que podia ter relações sexuais com ela se o desejasse. Permaneceria deitada imóvel e aceitaria com inexpressiva passividade tudo o que lhe estivesse a acontecer. Mas ele não tinha coragem de o fazer. Tentara, uma vez, não muito depois de ela ter vindo para casa do hospital, dizendo de si para si que talvez isso fizesse reacender nela a centelha da consciência; mas ficara revoltado consigo mesmo, e parara alguns segundos depois. Naquele momento o desejo voltara, e teve de o reprimir, muito embora soubesse que a cedência não lhe traria qualquer alívio.
Atirou a roupa interior dela para o cesto com um gesto irado. Inge não se mexeu enquanto ele abriu uma gaveta e retirou uma camisa de dormir de algodão branco com pequenas flores bordadas, oferecida pela mãe dele. Era inocente na sua nudez, e desejá-la afigurava-se tão errado quanto cobiçar uma criança. Enfiou-lhe a camisa de dormir pela cabeça, fez entrar os braços e compô-la pelas costas abaixo. O padrão às flores combinava com ela, e estava bonita. Julgou ver um ténue sorriso aflorar-lhe aos lábios, mas provavelmente era imaginação sua.
Levou-a à casa de banho, depois meteu-a na cama. Enquanto se despia, olhou para o seu próprio corpo no espelho. Tinha uma longa cicatriz na barriga, recordação de uma rixa de rua numa noite de sábado em que, nos seus tempos de jovem polícia, decidira apartar os contendores. Já não possuía o físico atlético da juventude, mas ainda estava em forma. Perguntou-se quanto tempo faltaria para uma mulher lhe acariciar a pele com mãos ávidas.
Vestiu o pijama, mas não sentia sono. Decidiu regressar à sala de estar e fumar outro cigarro. Olhou para Inge. Permanecia imóvel, com os olhos abertos. Ouviria se ela se mexesse. Por norma, sabia quando ela necessitava de alguma coisa. Levantava-se simplesmente, e ficava à espera, como se não soubesse o que fazer a seguir; e teria de adivinhar o que queria: beber água, ir à casa de banho, um xaile para se aquecer, ou algo mais complicado. De vez em quando, ela deslocava-se pelo apartamento, de uma forma aparentemente aleatória, mas não tardava a deter-se, talvez a uma janela, ou simplesmente no meio da divisão.
Saiu do quarto e atravessou a pequena entrada até à sala de estar, deixando ambas as portas abertas. Encontrou os cigarros, depois, por impulso, foi buscar meia garrafa de aguardente a um armário e deitou um pouco num copo. Ia bebendo em pequenos goles e fumando enquanto pensava na semana que passara.
Começara bem e acabara mal. Começara por apanhar dois espiões, Ingemar Gammel e Poul Kirke. Melhor ainda, porque não eram como os seus alvos habituais, organizadores sindicais que intimidavam os fura-greves, ou comunistas que enviavam cartas codificadas para Moscovo dizendo que a Jutlândia estava pronta para a revolução. Não, Gammel e Kirke eram espiões a sério, e os esboços que Tilde Jespersen encontrara no gabinete de Kirke constituíam importantes informações secretas militares.
A estrela de Peter parecia em ascensão. Alguns dos seus colegas tinham começado a agir com frieza em relação a ele, reprovando a sua entusiástica cooperação com os ocupantes alemães, mas eles não eram importantes. O general Braun ligara-lhe a dizer que achava que Peter seria chefe do Departamento de Segurança. Não referira o que aconteceria a Frederik Juel, mas deixara claro que o cargo era de Peter se conseguisse desvendar aquele caso.
Era uma pena Poul Kirke ter morrido. Vivo, poderia ter revelado quem eram os seus colaboradores, de onde vinham as suas ordens, e como enviava a informação aos britânicos. Gammel ainda estava vivo, e fora entregue à Gestapo para "interrogatório minucioso", mas não revelara mais nada, provavelmente porque não sabia.
Peter prosseguira a investigação com as suas habituais energia e determinação. Questionara o oficial de comando de Poul, o altivo chefe de esquadrilha Renthe. Entrevistara os pais de Poul, os seus amigos e até o seu primo Mads, e não conseguira arrancar-lhes nada. Pusera detectives a seguir a namorada de Poul, Karen Duchwitz, mas até ao momento ela parecia não ser mais do que uma aluna aplicada na escola de bailado. Peter colocara também Arne Olufsen, o melhor amigo de Poul, sob vigilância. Arne era a melhor hipótese, pois poderia ter facilmente desenhado os esboços da base militar em Sande. Mas Arne passara a semana a cumprir irrepreensivelmente as suas obrigações. Naquela noite, sexta-feira, apanhara o comboio para Copenhaga, mas não havia nada de invulgar nisso.
Após um começo brilhante, o caso parecia ter chegado a um beco sem saída.
O triunfo menor da semana fora a humilhação do irmão de Arne, Harald. Peter tinha a certeza de que Harald não estava envolvido em espionagem. Um homem que arriscava a vida como espião não pintava slogans ridículos.
Peter perguntava-se que rumo dar de seguida à investigação quando bateram à porta.
Olhou para o relógio na prateleira da lareira. Eram dez e meia, não excessivamente tarde mas, mesmo assim, uma hora invulgar para uma visita inesperada. A pessoa não ficaria certamente surpreendida de o encontrar de pijama. Veio até à entrada e abriu a porta. Tilde Jespersen encontrava-se ali, uma boina azul-celeste assente sobre o seu cabelo louro encaracolado.
- Houve um desenvolvimento - informou. - Achei que o deveríamos discutir.
- Claro. Entra. Desculpa o meu aspecto.
Olhou para o padrão do pijama dele com um esgar. - Elefantes - comentou ao entrar para a sala de estar. - Não me passaria pela cabeça.
Sentiu-se embaraçado e desejou ter vestido um roupão, apesar de fazer demasiado calor.
Tilde sentou-se. - Onde está a Inge?
- Na cama. Queres um pouco de aguardente?
- Obrigada.
Foi buscar um copo lavado e serviu para os dois. Ela cruzou as pernas. Os joelhos eram redondos e as barrigas das pernas gordas, bem diferentes das pernas esguias de Inge. Disse:
- O Arne Olufsen comprou um bilhete para o ferry de amanhã para Bornholm.
Peter ficou com o copo a meio caminho dos lábios. - Bornholm
- proferiu em voz baixa. A ilha dinamarquesa de veraneio ficava extremamente perto da costa sueca. Poderia ser o tal golpe de sorte por que esperava?
Ela tirou um cigarro e ele acendeu-o. Soprando o fumo, afirmou:
- Claro que ele pode estar simplesmente de licença, e ter decidido fazer umas férias...
- Precisamente. Por outro lado, pode estar a planear fugir para a Suécia.
- Foi o que pensei.
Peter emborcou a bebida com um sonoro trago de satisfação.
- Quem está com ele neste momento?
- O Dresler. Substituiu-me há quinze minutos. Vim directamente para aqui.
Peter fez um esforço por se mostrar céptico. Era tão fácil, numa investigação, uma pessoa deixar-se levar por uma ilusão. - Por que haveria o Olufsen de querer abandonar o país?
- Pode ter-se assustado com o que aconteceu ao Poul Kirke.
- Não se tem mostrado nada assustado. Até hoje, tem feito o seu trabalho, aparentemente feliz e contente.
- Talvez se tenha apercebido da vigilância.
Peter anuiu. - Acaba por ser notada, mais cedo ou mais tarde.
- Ou então, pode ir a Bornholm para espiar. Talvez os britânicos lhe tenham ordenado que fosse lá.
Peter fez uma expressão de dúvida. - O que existe em Bornholm?
Tilde encolheu os ombros. - Talvez seja essa a questão que eles querem ver respondida. Ou talvez se trate de um encontro. Repara, se ele conseguir ir de Bornholm para a Suécia, a viagem no sentido inverso provavelmente será também fácil.
- Bem visto. - Tilde era muito perspicaz, reflectiu. Não descurava nenhuma hipótese. Olhou o seu rosto inteligente e os olhos azul-claros. Observou a sua boca enquanto falava.
Ela pareceu ignorar a sua observação. - Provavelmente, a morte do Kirke interrompeu a via normal de comunicação. Pode tratar-se de um plano alternativo de emergência.
- Não estou convencido, mas só existe uma maneira de o descobrirmos.
- Continuarmos a vigiar o Olufsen?
- Sim. Avisa o Dresler para embarcar no ferry com ele.
- O Olufsen leva uma bicicleta. Digo ao Dresler para levar também uma?
- Sim. Depois reserva lugares para ti e para mim no voo de amanhã para Bornholm. Chegaremos lá primeiro.
Tilde apagou o cigarro e levantou-se. - Certo.
Peter não queria que ela se fosse embora. A aguardente aquecia-lhe a barriga, sentia-se descontraído e estava a adorar ter uma mulher atraente com quem conversar. Mas não lhe ocorria nenhum pretexto para a deter.
Seguiu-a até à entrada. Ela disse: - Vemo-nos amanhã no aeroporto.
- Sim. - Levou a mão ao puxador da porta mas não a abriu. - Tilde...
Ela olhou-o com uma expressão neutra. - Sim?
- Obrigado pela informação. Excelente trabalho.
Fez-lhe uma festa na face. - Dorme bem - disse, mas não se afastou.
Olhou-a. Aflorara-lhe um ínfimo laivo de um sorriso aos cantos da boca, mas não soube dizer se era de convite ou de mofa. Aproximou-se, e de repente estava a beijá-la.
Ela retribuiu o beijo com intensa paixão. Foi apanhado de surpresa. Atraiu a cabeça dele para si, enfiou-lhe a língua na boca. Após um momento de choque, ele correspondeu. Tomou-lhe o seio macio e apertou-o rudemente. Ela emitiu um ruído gutural profundo e impeliu as ancas contra o corpo dele.
Peter registou um movimento pelo canto do olho. Interrompeu o beijo e virou a cabeça.
Inge estava à porta do quarto, como um fantasma na sua camisa de dormir clara. O rosto dela apresentava a eterna expressão vazia, mas olhava-os directamente. Peter ouviu-se emitir um som semelhante a um soluço.
Tilde soltou-se do abraço. Virou-se para falar com ela, mas as palavras não saíram. Abriu a porta do apartamento e saiu. Desapareceu num ápice.
A porta bateu com força.
O voo diurno de Copenhaga para Bornholm era operado pela companhia aérea dinamarquesa, DDL. Partiu às nove da manhã e demorou uma hora. O avião aterrou num aeródromo a cerca de um quilómetro e meio da cidade principal de Bornholm, Ronne. Peter e Tilde foram recebidos pelo chefe da polícia local, que lhes cedeu um carro de empréstimo como se lhes confiasse as jóias da coroa.
Foram até à cidade. Era um lugar indolente, com mais cavalos do que automóveis. As casas, metade em madeira, estavam pintadas de cores extraordinariamente fortes: mostarda-escuro, rosa-terracota, verde-floresta e vermelho-ferrugem. Encontravam-se dois soldados alemães na praça central, a fumar e a conversar com os transeuntes. Da praça, uma rua empedrada descia até ao porto. Havia um torpedeiro Kriegsmarine na doca, com um grupo de gaiatos aglomerados no cais a olhar para ele. Peter localizou o porto do ferry, do outro lado do edifício de tijolo da alfândega, a maior construção da cidade.
Peter e Tilde deram uma volta de carro para se familiarizarem com as ruas, depois regressaram ao porto de tarde para esperarem o ferry. Nenhum deles mencionou o beijo da noite anterior, mas Peter estava intensamente consciente da presença física dela: aquele discreto perfume floral, os olhos azuis atentos, a boca que o beijara com uma paixão tão urgente. Ao mesmo tempo, continuava a pensar em Inge à porta do quarto, com o seu rosto branco inexpressivo - mais uma censura agonizante do que uma acusação explícita.
Quando o barco chegou ao porto, Tilde disse: - Espero que estejamos certos, e o Arne seja um espião.
- Não perdeste o entusiasmo por este trabalho?
A resposta dela foi mordaz. - O que te leva a fazer semelhante afirmação?
- A nossa discussão sobre os judeus.
- Oh, isso. - Encolheu os ombros. - Tinhas razão, não tinhas? Provaste-o. Fizemos a rusga à sinagoga e isso levou-nos ao Gammel.
- Depois, perguntei-me se a morte do Kirke não terá sido uma
tragédia terrível...
- O meu marido morreu - respondeu-lhe secamente. - Não me
importo de ver morrer criminosos.
Era ainda mais dura do que ele imaginara. Ocultou um sorriso de satisfação. - Assim sendo, vais ficar na polícia.
- Não vislumbro qualquer outro futuro. Além disso, poderia ser a primeira mulher a ser promovida a sargento.
Peter duvidou que isso alguma vez fosse acontecer. Implicava que os homens recebessem ordens de uma mulher, e isso parecia ultrapassar os limites do possível. Mas não o exteriorizou. - O Braun prometeu-me praticamente uma promoção se eu conseguir capturar esta rede de espiões.
- Promoção a quê?
- Chefe do departamento. O lugar do Juel. - E um homem que era chefe do Departamento de Segurança aos trinta podia perfeitamente vir a chefiar toda a polícia de Copenhaga, pensou. O seu coração bateu mais depressa ao perspectivar a perseguição que moveria, com o apoio dos nazis.
Tilde sorriu calorosamente. Apoiando uma mão no braço dele, disse: - Então é melhor certificarmo-nos de que os apanhamos a todos.
O barco atracou e os passageiros começaram a desembarcar. Enquanto observavam, Tilde referiu: - Conheces o Arne desde a infância; ele tem perfil para a espionagem?
- Eu diria que não - replicou Peter, pensativo. - É demasiado
despreocupado.
- Oh. - Tilde ficou carrancuda.
- Na verdade, até o poderia excluir como suspeito, se não fosse a
noiva inglesa dele.
Ela animou-se. - Isso encaixa-o perfeitamente no quadro.
- Não sei se continuam noivos. Ela voltou para Inglaterra a toda a velocidade quando os alemães chegaram. Mas basta a possibilidade.
Desembarcou uma centena ou mais de passageiros, alguns a pé, um punhado em carros, muitos com bicicletas. A ilha tinha apenas trinta e dois quilómetros de uma ponta à outra, e a forma mais fácil de circular era de bicicleta.
- Ali - disse Tilde, apontando.
Peter viu Arne Olufsen desembarcar, trajado com o seu uniforme militar, empurrando a bicicleta. - Mas onde é que está o Dresler?
- Quatro pessoas atrás.
- Estou a vê-lo. - Peter colocou os óculos de sol e puxou o chapéu sobre o rosto, depois ligou o motor. Arne subiu a pedalar a rua empedrada até ao centro da cidade, e Dresler fez o mesmo. Peter e Tilde seguiram devagar no carro.
Arne abandonou a cidade rumo a norte. Peter começou a sentir que dava nas vistas. Circulavam poucos carros na estrada, e teve de seguir devagar para acompanhar as bicicletas. Não tardou a ser obrigado a ficar para trás e a desaparecer de vista com receio de ser notado. Passados alguns minutos, acelerou até avistar Dresler, depois abrandou novamente. Passaram por eles dois soldados alemães numa motorizada com carro lateral, e Peter desejou ter pedido emprestada uma motorizada em vez de um carro.
Poucos quilómetros para lá da cidade, eram as únicas pessoas na estrada. - Assim é impossível - protestou Tilde em voz alta e ansiosa. - Ele vai topar-nos.
Peter acenou com a cabeça. Ela tinha razão, mas foi então que lhe ocorreu uma ideia. - E quando o fizer, a sua reacção será altamente reveladora.
Tilde deitou-lhe um olhar inquiridor, mas ele não se alongou.
Aumentou a velocidade. Descrevendo uma curva, viu Dresler acocorado na mata à beira da estrada e, cem metros à frente, Arne sentado num muro, a fumar um cigarro. Peter não teve outra opção senão seguir caminho. Percorreu mais um quilómetro e meio, depois subiu em marcha atrás uma estrada de acesso a uma quinta.
- Ele estava a testar-nos, ou apenas a descansar? - indagou Tilde. Peter encolheu os ombros.
Alguns minutos depois, Arne passou de bicicleta, seguido de Dresler. Peter voltou à estrada.
A luz do dia estava a desaparecer. Cinco quilómetros adiante, chegaram a um cruzamento. Dresler parara ali e parecia atrapalhado.
Nem sinal de Arne.
Dresler aproximou-se da janela do carro, com ar furioso. - Lamento, chefe. Ele acelerou e distanciou-se de mim. Perdi-o de vista, e não sei que direcção tomou neste cruzamento.
Tilde desabafou: - Raios. Ele deve ter feito de propósito. É óbvio que conhece a estrada.
- Lamento - repetiu Dresler.
Tilde referiu em voz baixa: - Lá se vai a tua promoção; e a minha.
- Não sejas tão pessimista - contrapôs Peter. - São boas notícias. Tilde pareceu perplexa. - O que queres dizer?
- Se um homem inocente acha que está a ser seguido, o que é que ele faz? Pára, dá meia-volta e pergunta: "Mas quem é que você se julga para me andar a seguir?" Só um homem culpado despista deliberadamente uma equipa de vigilância. Não percebes? Isto quer dizer que tínhamos razão: o Arne Olufsen é um espião.
- Mas nós perdemo-lo.
- Oh, não te preocupes. Haveremos de voltar a encontrá-lo.
Passaram a noite num hotel à beira-mar com uma casa de banho ao fundo de cada corredor. A meia-noite, Peter vestiu um robe por cima do pijama e bateu à porta do quarto de Tilde. Ela disse: -
Entra.
Ele entrou. Estava sentada na cama de solteiro, com uma camisa de dormir azul-clara de seda, a ler um romance americano intitulado E Tudo o Vento Levou. - Não perguntaste quem era.
- Eu sabia.
A sua mente de detective reparou que ela pusera batom, escovara cuidadosamente o cabelo, e o perfume floral pairava no ar, como se estivesse vestida para um encontro. Ele beijou-lhe os lábios, e ela acariciou-lhe a nuca. Passado um momento, olhou para a porta, certificando-se de que a fechara.
- Ela não está aqui - tranquilizou-o Tilde.
- Quem?
- A Inge.
Voltou a beijá-la, mas instantes depois apercebeu-se de que não estava a ficar excitado. Interrompeu o beijo e sentou-se na beira da cama.
- Passa-se o mesmo comigo - explicou Tilde.
- O quê?
- Penso constantemente no Oskar.
- Ele morreu.
- E a Inge é como se o estivesse. Ele estremeceu.
Tilde disse-lhe: - Desculpa. Mas é verdade. Estou a pensar no meu marido e tu estás a pensar na tua mulher, e nenhum deles importa.
- Não foi o que pareceu a noite passada, no meu apartamento.
- Não tivemos tempo para pensar.
Que coisa mais ridícula, reflectiu. Na sua juventude fora um sedutor confiante, capaz de persuadir muitas mulheres a entregarem-se-lhe e deixando a maior parte delas bastante satisfeita. Estava apenas destreinado?
Despiu o roupão e enfiou-se na cama ao lado dela. Estava quente e receptiva, e o seu corpo redondo debaixo da camisa de dormir não oferecia resistência às carícias dele. Apagou a luz. Beijou-a, mas não conseguiu reacender a paixão da noite anterior.
Ficaram deitados um ao lado do outro no escuro. - Não tem importância - disse ela. - Vais ter de deixar o passado para trás. É difícil para ti.
Beijou-a de novo, ao de leve; depois levantou-se e regressou ao seu quarto.
A vida de Harald estava a desmoronar-se. Todos os seus planos haviam sido cancelados e não tinha futuro. Contudo, em vez de lamentar o seu destino, estava ansioso por renovar o seu relacionamento com Karen Duchwitz. Recordou a sua pele branca e o cabelo ruivo-vivo, a forma de atravessar a sala como se dançasse, e nada parecia tão importante como revê-la.
A Dinamarca era um país pequeno e bonito, mas a trinta quilómetros por hora parecia um deserto sem fim. A motorizada de Harald movida a turfa demorou um dia e meio para ir da sua casa em Sande, atravessando o país a toda a largura, até Kirstenslot.
As avarias retardaram ainda mais o progresso da mota pela monótona paisagem ondulante. Teve um furo antes de se afastar cinquenta quilómetros de casa. Depois, numa ponte que ligava a península da Jutlândia à ilha central de Fyn, a corrente partiu-se. A motorizada Nimbus tivera inicialmente uma transmissão de eixo, mas era difícil fazer a ligação a um motor a vapor, de modo que Harald colocara-lhe uma corrente articulada de uma velha máquina de cortar relva. Teve então de empurrar a mota durante quilómetros até uma garagem e introduzir uma nova ligação. Quando conseguiu atravessar Fyn, perdera o último ferry para a ilha principal da Zelândia. Estacionou a mota, comeu a comida que a mãe lhe dera - três fatias grossas de presunto e uma fatia de bolo - e passou uma noite gélida à espera no cais. Quando reacendeu a caldeira na manhã seguinte, a válvula de segurança tinha uma fuga, mas conseguiu vedá-la com pastilha elástica e adesivo.
Chegou a Kirstenslot ao final da tarde de sábado. Apesar de estar impaciente por ver Karen, não se dirigiu de imediato ao castelo. Passou pelo mosteiro em ruínas e pela entrada para os terrenos do castelo, atravessou a aldeia com a sua igreja e a taberna e encontrou a quinta que visitara com Tik. Estava confiante em conseguir arranjar trabalho ali. Era a ocasião certa do ano, e tinha a seu favor a juventude e a força.
Havia uma granja grande com um pátio arrumado. Quando estacionou a mota, foi observado por duas rapariguinhas: netas, imaginou, do agricultor Nielsen, o homem de cabelo branco que vira sair da igreja.
Encontrou o agricultor nas traseiras da casa, vestindo umas calças de bombazina enlameadas e uma camisa sem colarinho, encostado a uma vedação e a fumar cachimbo. - Boa tarde, senhor Nielsen - saudou-o.
- Olá, meu jovem - respondeu Nielsen, com prudência. - O que posso fazer por ti?
- O meu nome é Harald Olufsen. Preciso de trabalho, e o Josef Duchwitz disse-me que contratava trabalhadores estivais.
- Este ano não, filho.
Harald ficou descoroçoado. Nem sequer ponderara a possibilidade de uma recusa. - O trabalho não me assusta...
- Não duvido, e pareces bastante forte, mas não estou a contratar ninguém.
- Por que não?
Nielsen arqueou um sobrolho. - Poderia responder que não é da tua conta, meu rapaz, mas como também já fui jovem e impertinente, dir-te-ei que os tempos estão difíceis, os alemães compram praticamente tudo o que produzo a um preço estabelecido por eles, e não há dinheiro para pagar a trabalhadores sazonais.
- Trabalharei a troco de comida - alvitrou Harald, desesperado. Não podia voltar para Sande.
Nielsen deitou-lhe um olhar penetrante. - Pareces estar metido em apuros. Mas não posso contratar-te nesses termos. Teria problemas com o sindicato.
A situação parecia desesperada. Harald tentou encontrar uma alternativa. Poderia arranjar trabalho em Copenhaga, mas nesse caso onde viveria? Nem sequer podia ir ter com o irmão, que estava numa base militar onde não era permitido os hóspedes passarem a noite.
Nielsen viu a aflição dele e disse: - Lamento, filho. - Bateu com o cachimbo na parte de cima da vedação. - Anda, vou acompanhar-te até à saída da propriedade.
Era bem provável que o agricultor julgasse que estava suficientemente desesperado para roubar, pensou Harald. Contornaram ambos a casa até ao pátio da frente.
- O que diacho é aquilo? - indagou Nielsen quando viu a mota, com a caldeira a fumegar suavemente.
- Não passa de uma vulgar motorizada, mas adaptei-a para andar a turfa.
- De onde vieste nela?
- De Morlunde.
- Santo Deus! Parece prestes a explodir a qualquer instante. Harald sentiu-se ofendido. - É perfeitamente segura - retorquiu,
indignado. - Eu percebo de motores. Na verdade, consertei um dos seus tractores, há algumas semanas. - Por um momento, Harald perguntou-se se Nielsen o poderia contratar por uma questão de gratidão, mas depois achou que era uma tolice. A gratidão não pagava salários.
- Tinha uma fuga no fornecimento de combustível. Nielsen franziu os sobrolhos. - Do que estás a falar?
Harald deitou outro bocado de turfa para a câmara de combustão.
- Eu estava a passar o fim-de-semana em Kirstenslot. O Josef e eu encontrámos um dos seus homens, Frederik, que tentava fazer pegar um tractor.
- Já me recordo. Eras tu o tal moço?
- Era. - Subiu para a mota.
- Espera um pouco. Talvez eu te possa contratar. Harald olhou para ele, mal ousando ter esperança.
- Não posso pagar a trabalhadores, mas um mecânico é outro assunto. Percebes de todo o tipo de maquinaria?
Não era ocasião para a modéstia, decidiu Harald. - Sou capaz de reparar tudo o que tenha um motor.
- Tenho meia dúzia de máquinas paradas por falta de peças sobressalentes. Achas que conseguias pô-las a trabalhar?
- Sim.
Nielsen olhou para a motorizada. - Se foste capaz de fazer isto, talvez consigas reparar a minha máquina de semear.
- Não vejo por que não.
- Está bem - afirmou o agricultor em tom decidido. - Vou dar-te uma oportunidade.
- Obrigado, senhor Nielsen!
- Amanhã é domingo, por isso aparece aqui na segunda-feira de manhã ao bater das seis. Nós, os agricultores, começamos a trabalhar cedo.
- Cá estarei.
- Não te atrases.
Harald abriu o regulador para deixar entrar o vapor no cilindro e afastou-se antes que Nielsen mudasse de ideias.
Quando já não era possível ouvir, soltou um grito de triunfo. Arranjara trabalho - por sinal bem mais interessante do que atender freguesas numa retrosaria - e conseguira-o pelos seus próprios meios. Sentiu-se cheio de confiança. Estava por sua conta, mas era jovem, forte e inteligente. Iria correr tudo bem.
A luz do dia estava a desaparecer quando voltou a atravessar a aldeia. Por pouco não via um homem com uniforme da polícia que saiu da estrada e o mandou parar. Travou a fundo no último instante, e a caldeira libertou uma nuvem de vapor através da válvula de segurança. Reconheceu o polícia como Per Hansen, o nazi local.
- O que diabo é isto? - perguntou Hansen, apontando para a mota.
- É uma motorizada Nimbus, convertida para energia a vapor - explicou-lhe Harald.
- Parece-me perigosa.
Harald estava com pouca paciência para aquele tipo de intromissão oficiosa, mas fez um esforço para responder educadamente. - Garanto-lhe, senhor agente, que é perfeitamente inofensiva. Está a investigar oficialmente, ou pretende apenas satisfazer a sua curiosidade?
- Escusas de te armar em descarado, moço. Já te vi antes, não vi?
Harald disse de si para si que não provocasse a autoridade. Já passara uma noite na prisão naquela semana. - O meu nome é Harald Olufsen.
- Tu és amigo dos judeus do castelo.
Harald perdeu a paciência. - Os meus amigos não são da sua conta.
- Ai não são? - Hansen pareceu satisfeito, como se tivesse obtido o resultado que pretendia. - Já te tirei as medidas, meu jovem - afirmou maldosamente. - Vou ficar de olho em ti. Agora, vai-te embora.
Harald afastou-se. Amaldiçoou o seu mau génio. Acabara de fazer inimizade com o polícia local, só por causa de um comentário inofensivo a respeito dos judeus. Quando é que aprenderia a não se meter em sarilhos?
A quatrocentos metros dos portões de Kirstenslot, saiu da estrada para o trilho de carroças que atravessava a mata até às traseiras do mosteiro. Não seria visto da casa, e estava a contar que não se encontrasse ninguém a trabalhar no jardim num sábado ao anoitecer.
Parou a mota na fachada poente da igreja abandonada, depois atravessou os claustros e entrou na igreja por uma porta lateral. A princípio, apenas conseguiu ver formas espectrais à luz fraca do sol-posto que entrava pelas janelas altas. Quando a sua visão se adaptou, distinguiu o Rolls-Royce comprido debaixo do oleado, os caixotes com brinquedos velhos e o biplano Hornet Moth com as asas recolhidas. Teve a sensação de que não entrara ninguém na igreja desde a última vez que ali estivera.
Abriu a grande porta principal, enfiou a mota lá dentro e fechou a porta. Permitiu-se um momento de satisfação quando desligou o motor a vapor. Atravessara o país na sua motorizada improvisada, conseguira arranjar trabalho e encontrara um lugar onde ficar. E mesmo que tivesse azar, o pai não descobriria o seu paradeiro; mas se houvesse alguma notícia importante sobre a família, o irmão sabia como entrar em contacto com ele. No entanto, o melhor de tudo era ter oportunidade de ver Karen Duchwitz. Recordou que ela gostava de fumar um cigarro no terraço após o jantar. Resolveu ir à procura dela. Era arriscado - poderia ser visto pelo Sr. Duchwitz - mas sentia que aquele era o seu dia de sorte.
A um canto da igreja, ao lado da bancada e do suporte das ferramentas, havia um lavatório com uma torneira de água fria. Harald não tomava banho havia dois dias. Despiu a camisa e lavou-se o melhor que pôde sem sabão. Passou a camisa por água, pendurou-a num prego a secar, e vestiu a de reserva que trazia na mala.
Havia um acesso com cerca de oitocentos metros que partia dos portões principais em linha recta até ao castelo, mas ficava demasiado exposto, e Harald fez um desvio para se aproximar da casa através da mata. Passou os estábulos, atravessou a horta e observou as traseiras da casa abrigado por um cedro. Conseguiu identificar a sala de estar pelas portas envidraçadas, que estavam abertas para o terraço. A seguir ficava a sala de jantar, recordou. Os cortinados opacos ainda não tinham sido corridos, pois a luz eléctrica ainda não se encontrava acesa, apesar de avistar o tremular de uma vela.
Calculou que a família estivesse a jantar. Tik encontrar-se-ia no colégio - os rapazes de Jansborg tinham autorização para vir a casa de quinze em quinze dias, e aquele era um fim-de-semana de ficar no colégio -, por isso à mesa do jantar estariam Karen e os pais, a menos que houvesse convidados. Decidiu arriscar e ver mais de perto.
Atravessou o relvado e aproximou-se sorrateiramente da casa. Ouviu o som de um locutor da BBC a dizer que as forças francesas de Vichy(1) tinham abandonado Damasco a favor de um exército de britânicos, da Commonwealth e da França Livre. Sempre era uma agradável mudança saber de uma vitória britânica, mas não conseguiu perceber de que
(1) Governo estabelecido em Vichy (Julho de 1940 - Agosto de 1944) sob a direcção do marechal Pétain e que constituiu o regime da França durante a ocupação alemã. (NT)
forma as boas notícias da Síria iam ajudar a sua prima Monika em Hamburgo. Espreitando pela janela da sala de jantar, viu que a refeição terminara, e uma criada levantava a mesa.
Um instante depois, uma voz atrás de si disse: - O que pensa que está a fazer?
Virou-se.
Karen avançava pelo terraço na direcção dele. A sua pele pálida era luminosa ao lusco-fusco. Usava um vestido comprido de seda num tom aquoso de verde-azulado. O seu porte de bailarina dava a sensação de estar a deslizar. Parecia um fantasma.
- Chhh! - disse-lhe.
Não o reconhecera na luz sumida. - Chhh? - retorquiu, indignada. Não existia nada de espectral no tom de desafio dela. - Encontro um intruso a espreitar por uma janela da minha casa e ele manda-me calar? - Veio um latido lá de dentro.
Harald não conseguiu ver se Karen estava genuinamente ofendida ou apenas divertida. - Não quero que o teu pai saiba que estou aqui! - respondeu-lhe em voz baixa, urgente.
- Devia preocupar-se com a polícia, não com o meu pai.
O velho setter irlandês, Thor, apareceu a correr, pronto para atacar o ladrão, mas reconheceu Harald e lambeu-lhe a mão.
- Sou o Harald Olufsen. Estive aqui há duas semanas.
- Oh, o rapaz do boogie-woogie! O que fazes escondido no terraço? Vieste assaltar a casa?
Para desânimo de Harald, o Sr. Duchwitz aproximou-se das portas envidraçadas e espreitou. - Karen? - chamou. - Está aí alguém?
Harald susteve a respiração. Se Karen o denunciasse naquele momento, iria estragar tudo.
Passado um instante, disse: - Está tudo bem, papá... É apenas um amigo.
O Sr. Duchwitz espreitou Harald no escuro, mas não pareceu reconhecê-lo, e dali a instantes resmungou e voltou para dentro.
- Obrigado - disse Harald entre dentes.
Karen sentou-se num muro baixo e acendeu um cigarro. - És bem-vindo, mas tens de me contar o que vem a ser isto. - O vestido condizia com os olhos dela, que brilhavam no rosto como se iluminados por dentro.
Sentou-se no muro, de frente para ela. - Discuti com a minha família e saí de casa.
- Por que vieste para aqui?
A própria Karen era metade da razão, mas decidiu não lha revelar.
- Consegui que o agricultor Nielsen me desse trabalho, a reparar-lhe os tractores e máquinas.
- És empreendedor. Onde estás a viver?
- Bom... no velho mosteiro.
- E presunçoso também.
- Eu sei.
- Calculo que tenhas trazido cobertores e isso.
- Por acaso, não.
- É capaz de fazer muito frio de noite.
- Hei-de sobreviver.
- Hum. - Fumou em silêncio por um bocado, vendo a escuridão descer como uma bruma sobre o jardim. Harald observou-a, hipnotizado pelo crepúsculo nas formas do rosto dela, a boca grande e o nariz ligeiramente torto, e na cabeleira hirsuta que de certa forma se combinavam para que fosse encantadoramente bela. Observou os lábios dela quando soprou o fumo. Acabou por atirar o cigarro para um canteiro de flores, levantou-se e disse: - Bem, boa sorte. - Depois voltou para dentro de casa e fechou as portas envidraçadas atrás de si.
Quanta brusquidão, pensou Harald. Ficara desiludido. Demorou-se ali mais um minuto. Teria ficado feliz a conversar com ela a noite inteira, mas fartara-se dele em cinco minutos. Recordou-se, naquele momento, que o fizera sentir-se alternadamente bem-vindo e rejeitado durante a sua visita no fim-de-semana. Talvez fosse um jogo. Ou então talvez reflectisse os seus próprios sentimentos vacilantes. Agradou-lhe a ideia de que pudesse sentir algo por ele, mesmo que fosse instável.
Regressou ao mosteiro. O ar da noite começava já a arrefecer. Karen tinha razão - ficaria gélido. A igreja tinha um chão de ladrilhos que parecia frio. Desejou ter trazido um cobertor de casa.
Olhou à sua volta, à procura de uma cama. A luz das estrelas entrava pelas janelas iluminando tenuemente o interior da igreja. A extremidade nascente tinha uma parede curva onde estivera em tempos o altar. De um lado, havia uma saliência grande incorporada na parede. Por cima dela via-se uma abóbada de azulejos, e Harald calculou que outrora albergasse algum objecto de veneração - uma relíquia sagrada, um cálice com pedras preciosas, um quadro da Virgem. Naquele momento, mais parecia uma cama do que qualquer outra coisa que pudesse imaginar, e estendeu-se na saliência.
Conseguia lobrigar, através de uma janela sem vidros, as copas das árvores e uma dispersão de estrelas num fundo de céu azul-escuro. Pensou em Karen. Imaginou-a a passar-lhe a mão pelo cabelo num gesto de ternura, a roçar-lhe os lábios com os seus, a envolvê-lo e a abraçá-lo. Aquelas imagens eram diferentes das cenas que imaginara com Birgit Claussen, a rapariga de Morlunde com quem saíra na Páscoa. Quando Birgit figurava nas suas fantasias, estava sempre a despir o soutien, ou a rebolar-se numa cama, ou a rasgar-lhe a camisa na pressa de se lhe entregar. Karen tinha um papel mais discreto, mais terno do que lascivo, conquanto existisse sempre a promessa de sexo ao fundo dos seus olhos.
Tinha frio. Levantou-se. Talvez fosse melhor dormir dentro do avião. Tacteando no escuro, encontrou o puxador da porta. Mas quando a abriu, ouviu patas em corrida, e recordou que os ratos tinham feito o ninho no estofo. Não temia criaturas em fuga, mas não era propriamente capaz de se deitar com elas.
Pensou no Rolls-Royce. Poderia enroscar-se no banco traseiro. Teria mais espaço do que no Hornet Moth. Retirar, no escuro, a lona que o cobria poderia demorar o seu tempo, mas talvez valesse a pena. Perguntou-se se as portas do carro estariam trancadas.
Estava a levantar a cobertura, à procura de algum fecho que pudesse abrir, quando ouviu passos leves. Ficou estático. Um instante depois, um feixe de luz de lanterna passou pela janela. Teriam os Duchwitz patrulha de segurança à noite?
Espreitou pela porta que dava para os claustros. A luz da lanterna aproximava-se. Coseu-se com a parede, evitando respirar. A seguir ouviu uma voz. - Harald?
O seu coração sobressaltou-se de prazer. - Karen.
- Onde estás?
- Na igreja.
O feixe de luz encontrou-o; depois ela apontou para cima para se ver melhor. Reparou que trazia uma trouxa. - Tens aqui uns cobertores.
Ele sorriu. Ficaria grato pelo calor, mas ainda mais feliz do que ela julgava. - Estava a pensar dormir no carro.
- És demasiado alto.
Quando desdobrou os cobertores encontrou algo lá dentro.
- Pensei que pudesses ter fome - explicou.
À luz da lanterna dela, viu meio pão, um cesto pequeno com morangos e uma porção de salsichas. Havia também um termo. Desatarraxou a tampa e cheirou-lhe a café acabado de fazer.
Apercebeu-se de que estava faminto. Atacou a comida, tentando não parecer um chacal esfaimado. Ouviu um miado, e apareceu um gato no círculo de luz. Era o gato preto e branco magricela que vira da primeira vez que entrara na igreja. Atirou um pedaço de salsicha para o chão. O gato cheirou-o, virou-o com uma pata, depois começou a comer delicadamente. - Como se chama o gato? - perguntou Harald a Karen.
- Acho que não tem nome. É vadio.
Apresentava no cachaço um tufo de pêlo em forma de pirâmide.
- Acho que lhe vou chamar Pinetop - propôs Harald. - Em homenagem ao meu pianista preferido.
- Um excelente nome.
Comeu tudo. - Caramba, soube-me mesmo bem. Obrigado.
- Devia ter trazido mais. Quando foi a última vez que comeste?
- Ontem.
- E como chegaste aqui?
- De motorizada. - Apontou para o outro lado da igreja, onde estacionara a mota. - Mas é lenta, porque anda a turfa, de modo que demorei dois dias a chegar aqui, desde Sande.
- És uma pessoa determinada, Harald Olufsen.
- Sou? - Não chegou a perceber se era um elogio.
- Sim. Na realidade, nunca conheci ninguém como tu. Ponderando, achou que era bom. - Bem, em abono da verdade,
penso o mesmo de ti.
- Vamos, deixa-te disso. O mundo está cheio de meninas ricas e mimadas que querem ser bailarinas, mas quantas pessoas atravessaram a Dinamarca numa motorizada movida a turfa?
Soltou uma gargalhada, satisfeito. Permaneceram um minuto em silêncio. - Lamento imenso o sucedido ao Poul - acabou por dizer Harald. - Deve ter sido um choque terrível para ti.
- Fiquei absolutamente arrasada. Chorei o dia inteiro.
- Vocês eram muito chegados?
- Só tínhamos saído três vezes e não estava apaixonada por ele, mas não deixou de ser horrível. - Vieram-lhe as lágrimas aos olhos, fungou e engoliu em seco.
Harald ficou vergonhosamente satisfeito ao saber que não estivera apaixonada por Poul. - É muito triste - referiu sentindo-se hipócrita.
- Fiquei destroçada quando a minha avó morreu, mas de certa forma isto foi pior. A avó estava velha e doente, mas o Poul era tão cheio de energia e divertido, tão bem-parecido e em forma.
- Sabes como aconteceu? - Harald experimentou perguntar.
- Não. Os militares têm-se mostrado absurdamente reservados - respondeu, começando a sua voz a ficar zangada. - Disseram apenas que o avião se despenhou, e os pormenores eram secretos.
- Talvez estejam a encobrir alguma coisa.
- Como, por exemplo? - inquiriu bruscamente.
Harald apercebeu-se de que não lhe podia contar o que sabia sem revelar a sua ligação à Resistência. - A sua própria incompetência?
- improvisou. - Talvez o avião não estivesse nas devidas condições.
- Não usariam o pretexto do segredo militar para esconder algo
daquela natureza.
- Claro que usariam. Quem iria descobrir?
- Não acredito que os nossos oficiais sejam tão amorais - redarguiu, toda empertigada.
Harald apercebeu-se de que a ofendera, tal como quando a vira pela primeira vez; e da mesma maneira, desdenhando da credulidade dela.
- Espero que tenhas razão - apressou-se a dizer. Havia ali insinceridade: tinha a certeza de que ela estava enganada. Mas não queria que discutissem.
Karen levantou-se. - Tenho de voltar antes que tranquem a porta.
- Havia frieza na sua voz.
- Obrigado pela comida e pelos cobertores; és um anjo de misericórdia.
- Nem sempre sou assim - referiu, amenizando um pouco.
- Talvez te veja amanhã?
- Talvez. Boa noite.
- Boa noite. Depois desapareceu.
Hermia dormiu mal. Tivera um sonho em que estava a falar com um polícia dinamarquês. A conversa era amistosa, apesar de ansiosa por não se denunciar; mas apercebeu-se, passado um pouco, de que falavam inglês. O homem continuava a conversar como se não tivesse acontecido nada, enquanto ela tremia e aguardava que ele a detivesse.
Acordou e encontrou-se na cama estreita de uma pensão na ilha de Bornholm. Ficou aliviada por constatar que a conversa com o polícia fora um sonho - mas não existia nada de irreal no perigo que a esperava agora que acordara. Encontrava-se em território ocupado, com documentos falsos, fingindo ser uma secretária de férias e, se fosse descoberta, enforcá-la-iam como espia.
Antes, em Estocolmo, ela e Digby haviam iludido mais uma vez os seus perseguidores alemães com substitutos e, tendo-se livrado deles, apanhado um comboio para a costa sul. Na minúscula aldeia piscatória de Kalvsby tinham encontrado um barqueiro disposto a levá-la na travessia das cerca de vinte milhas por mar até Bornholm. Despedira-se de Digby - que nunca conseguiria passar por dinamarquês - e entrou no barco. Ele iria a Londres por um dia para informar Churchill, mas regressaria imediatamente e estaria à espera dela no molhe em Kalvsby quando regressasse - se regressasse.
O pescador desembarcara-a, com a bicicleta, numa praia isolada ao raiar da véspera. O homem prometera regressar ao mesmo local quatro dias depois, à mesma hora. Para ter a certeza de que não lhe falhava, Hermia prometera-lhe o dobro da quantia pela viagem de regresso.
Fora de bicicleta até Hammershus, o castelo em ruínas onde se deveria encontrar com Arne, e esperara ali todo o dia por ele. Não aparecera.
Mentalizou-se de que não deveria ficar surpreendida. Arne estivera a trabalhar no dia anterior, e calculou que não tivesse tido tempo de sair suficientemente cedo para embarcar no ferry do final do dia. Provavelmente apanhara o barco no sábado de manhã e chegara a Bornholm demasiado tarde para alcançar Hammershus antes de escurecer. Nessas circunstâncias, procuraria um sítio onde passar a noite e viria ao local do encontro logo de manhãzinha.
Era no que acreditava nos seus momentos mais animados. Mas lá no fundo estava o receio constante de que ele pudesse ter sido preso. Era escusado ficar curiosa quanto ao motivo da sua detenção, ou argumentar que ele ainda não cometera nenhum crime, pois isso só servia para que imaginasse cenários fantasiosos em que fizera confidências a um amigo traiçoeiro, ou anotara tudo numa agenda, ou se confessara a um padre.
Ao final do dia, desistira de Arne e regressara de bicicleta à aldeia mais próxima. No Verão, muitos dos ilhéus disponibilizavam dormida e pequeno-almoço aos turistas, e encontrou sem dificuldade um local onde ficar. Deitara-se na cama ansiosa e com fome, e tivera pesadelos.
Ao vestir-se, recordou as férias que ela e Arne tinham passado naquela ilha, registando-se no hotel como Sr. e Sr.a Olufsen. Fora então que sentira maior intimidade com ele. Era um homem que adorava jogar, e fazia apostas em troca dos favores sexuais dela: "Se o barco vermelho chegar primeiro ao porto, amanhã terás de" andar o dia todo sem cuecas; e se ganhar o barco azul, podes ficar por cima esta noite." "Podes ter tudo o que quiseres, meu amor", pensou, "se apareceres ainda hoje."
Decidiu tomar o pequeno-almoço naquela manhã antes de voltar a Hammershus. Poderia ter de esperar de novo o dia inteiro, e não queria desfalecer de fome. Vestiu roupas novas baratas que comprara em Estocolmo - as roupas inglesas poderiam tê-la denunciado - e desceu.
Sentiu-se nervosa quando entrou na sala de jantar da família. Fazia mais de um ano que não tinha o hábito de falar diariamente dinamarquês. Depois de desembarcar na véspera, só proferira algumas breves palavras. Agora teria de trocar banalidades.
Estava um outro hóspede na sala, um homem de meia-idade com um sorriso simpático que disse: - Bom dia, sou Sven Fromer.
Hermia fez um esforço para descontrair. - Agnes Ricks - respondeu, usando o nome nos documentos falsos. - Está um lindo dia. - Não tinha nada a temer, disse de si para si. Falava dinamarquês com a pronúncia da burguesia metropolitana, e os dinamarqueses só saberiam que era inglesa se lhes dissesse. Serviu-se de papas de aveia, deitou leite frio por cima e começou a comer. A tensão dificultava-lhe a deglutição.
Sven sorriu-lhe e disse: - Ao estilo inglês.
Fitou-o, apavorada. Como é que a descobrira tão depressa? - O que quer dizer?
- A maneira como come as papas de aveia.
Tinha o leite num copo, e bebia goles entre colheradas de papas de aveia. Era assim que os dinamarqueses comiam as papas de aveia, sabia-o perfeitamente. Amaldiçoou-se pelo descuido e tentou disfarçar. - Prefiro assim - respondeu o mais descontraidamente possível. - O leite arrefece as papas e dá para comê-las mais rapidamente.
- Uma rapariga com pressa. De onde é?
- Copenhaga.
- Também eu.
Hermia não queria entrar numa conversa sobre o sítio exacto de Copenhaga onde moravam ambos. Poderia levá-la a cometer erros com demasiada facilidade. O mais seguro seria ela fazer-lhe as perguntas. Nunca conhecera um homem que não gostasse de falar da sua pessoa. - Está de férias?
- Infelizmente, não. Sou geógrafo, trabalho para o governo. No entanto, cumpri a tarefa, e só regresso a casa amanhã, por isso vou passar o dia de hoje a dar umas voltas por aqui, e apanho o ferry esta noite.
- Tem carro?
- Preciso dele para o meu trabalho.
A dona da casa trouxe bacon e pão escuro. Quando ela saiu da sala, Sven sugeriu: - Se estiver sozinha, terei muito gosto em acompanhá-la.
- Estou noiva - respondeu Hermia com firmeza.
Ele sorriu, pesaroso. - O seu noivo é um sortudo. Mesmo assim, agradar-me-ia a sua companhia.
- Por favor, não me leve a mal, mas quero ficar sozinha.
- Entendo perfeitamente. Espero que não tenha levado a mal o meu convite.
Brindou-o com o sorriso mais encantador. - Pelo contrário, fico lisonjeada.
Serviu-se de outra chávena de sucedâneo de café e pareceu tencionar demorar-se. Hermia começou a descontrair. Até ao momento não levantara suspeitas.
Entrou outro hóspede, um homem mais ou menos da idade de Hermia, vestindo um fato elegante. Fez-lhes uma vénia rígida e falou dinamarquês com sotaque alemão. - Bom dia. Sou Helmut Mueller.
O coração de Hermia disparou. - Bom dia - respondeu. - Sou Agnes Ricks.
Mueller virou-se na expectativa para Sven, que se levantou, ignorando propositadamente o recém-chegado, e abandonou a sala.
Mueller sentou-se, parecendo ofendido. - Obrigado pela sua gentileza - dirigiu-se a Hermia.
Hermia procurou agir com normalidade. Apoiou as mãos uma na outra para conter as tremuras. - De onde é, Herr Mueller?
- Nasci em Liibeck.
Perguntou-se o que diria um dinamarquês a um alemão à guisa de conversa trivial. - Fala bem a nossa língua.
- Quando era rapaz, a minha família vinha muitas vezes passar férias aqui a Bornholm.
Não estava desconfiado, reparou Hermia, e sentiu-se com coragem para fazer uma pergunta menos superficial. - Diga-me, muitas pessoas recusam-se a falar consigo?
- Tamanha grosseria como a que este hóspede acaba de demonstrar não é muito vulgar. Nas presentes circunstâncias, os alemães e os dinamarqueses têm de viver juntos, e a maior parte dos dinamarqueses é educada. - Deitou-lhe um olhar de curiosidade. - Mas a senhora deve tê-lo observado, a menos que chegasse recentemente de outro país.
Apercebeu-se de que cometera outro deslize. - Não, não - apressou-se a responder, tentando disfarçar. - Sou de Copenhaga, onde, como afirma, convivemos o melhor possível. Só tive curiosidade em saber se aqui em Bornholm as coisas são diferentes.
- Não, é praticamente o mesmo.
Qualquer conversa era perigosa, deu-se conta. Levantou-se. - Bem, espero que o pequeno-almoço lhe faça bom proveito.
- Obrigado.
- E tenha um bom dia aqui no nosso país.
- Igualmente.
Saiu da sala, perguntando-se se não teria sido demasiado simpática. O excesso de simpatia poderia levantar suspeitas tão facilmente quanto a hostilidade. Mas ele não evidenciara qualquer sinal de desconfiança.
Quando ia partir na sua bicicleta, viu Sven guardar a bagagem no carro. Era um Volvo PV444 com a traseira inclinada, um carro popular na Suécia mas visto com frequência na Dinamarca. Reparou que o banco traseiro fora retirado para caber o equipamento, tripés, assim como um teodolito e outro material, uma série de estojos de pele, alguns embrulhados em cobertores para protecção. - Peço desculpa por ter feito uma cena - disse ele. - Não era minha intenção ser indelicado consigo.
- Não tem importância. - Via que ele ainda estava aborrecido.
- Sentiu-se obviamente incomodado.
- Venho de uma família militar. É-me difícil aceitar que nos tenhamos rendido tão rapidamente. Acho que fizemos mal em não ter oferecido resistência. Deveríamos estar a lutar neste momento! - Esboçou um gesto de frustração, como se arremessasse algo. - Não devia falar desta maneira. Estou a embaraçá-la.
Ela tocou-lhe no braço. - Não precisa de pedir desculpa.
- Obrigado. Ela afastou-se.
Churchill percorria o campo de croquete em Chequers, a residência oficial de campo do Primeiro-Ministro britânico. Escrevia mentalmente um discurso: Digby conhecia os sinais. Os convidados do fim-de-semana eram o embaixador americano, John Winant, e o Ministro dos Negócios Estrangeiros, Anthony Éden, com as respectivas esposas; mas não se viam em lado nenhum. Digby sentia que havia alguma crise, mas ninguém o informara de qual. O secretário particular de Churchill, Colville, indicou o sisudo chefe do governo. Digby atravessou a relva macia para ir ter com Churchill.
O Primeiro-Ministro levantou a cabeça curvada. - Ah, Hoare - disse. Parou de andar de um lado para o outro. - Hitler invadiu a União Soviética.
- Santo Deus! - exclamou Digby Hoare. Quis sentar-se mas não havia cadeiras. - Santo Deus! - repetiu. Ainda na véspera, Hitler e Estaline tinham sido aliados, a sua amizade cimentada pelo pacto nazi-soviético de 1939- Agora estavam em guerra. - Quando foi que aconteceu?
- Esta manhã - respondeu Churchill, carrancudo. - O general Dill esteve ainda há pouco aqui a informar-me dos pormenores. - Sir John Dill era o Chefe do Estado-Maior Imperial, por conseguinte, o homem mais graduado nas forças armadas. - As primeiras estimativas dos serviços secretos situam a dimensão do exército invasor em três milhões de homens.
- Três milhões?
- Atacaram ao longo de uma frente de três mil e duzentos quilómetros. Há um grupo setentrional que se dirige para Leninegrado, um central que vai a caminho de Moscovo e uma força meridional que segue para a Ucrânia.
Digby ficou atónito. - Ó meu Deus! Isto é o fim, senhor?
Churchill aspirou o seu charuto. - É bem possível. A maior parte das pessoas acredita que os russos não vão conseguir vencer. Serão lentos a mobilizar-se. Com forte apoio aéreo da Luftwaffe, os tanques de Hitler conseguiriam eliminar o Exército Vermelho em escassas semanas.
Digby nunca vira o seu chefe com um ar tão derrotado. Em face das más notícias, Churchill costumava tornar-se ainda mais pugnaz, querendo sempre reagir à derrota com a passagem ao ataque. Mas naquele dia estava mesmo abatido. - Existe alguma esperança? - indagou Digby.
- Sim, se os Vermelhos conseguirem sobreviver até ao fim do Verão, o caso pode mudar de figura. O Inverno russo derrotou Napo-leão e pode muito bem aniquilar também Hitler. Os próximos três meses serão decisivos.
- E o que vai fazer?
- Vou esta noite à BBC, às nove horas.
- E dizer o quê?
- Que temos de prestar toda a ajuda possível à Rússia e ao povo russo.
Digby arqueou os sobrolhos. - Algo bastante difícil de ser proposto por um anticomunista ferrenho.
- Meu caro Hoare, se Hitler invadisse o inferno, no mínimo eu faria uma referência favorável ao Diabo na Câmara dos Comuns.
Digby sorriu, curioso em saber se estaria a ponderar a inclusão da frase no discurso daquela noite. - Mas há alguma ajuda que possamos dar?
- Estaline pediu-me que aumentasse a campanha de bombardeamentos contra a Alemanha. Espera que assim Hitler seja obrigado a mandar regressar a aviação para defender a pátria. O que enfraqueceria o exército invasor e poderia colocar os russos em pé de igualdade.
- Vai fazê-lo?
- Não tenho escolha. Ordenei um bombardeamento para a próxima lua cheia. Será a maior operação aérea da guerra até ao momento, o que significa a maior na história da humanidade. Haverá para cima de quinhentos bombardeiros, mais de metade de toda a nossa força militar.
Digby perguntou-se se o irmão iria participar no ataque. - Mas se eles sofrerem o tipo de baixas que temos registado...
- Ficarão enfraquecidos. Foi por isso que o mandei regressar. Tem alguma resposta para mim?
- Ontem infiltrei uma agente na Dinamarca. Tinha ordens para tirar fotografias ao radar instalado em Sande. Isso responderá à pergunta.
- Espero bem que sim. O bombardeamento aéreo está previsto para daqui a dezasseis dias. Quando conta ter as fotografias na sua posse?
- Dentro de uma semana.
- Óptimo - respondeu Churchill desprendidamente.
- Obrigado, Primeiro-Ministro. - Digby virou costas.
- Não me desiluda - pediu Churchill.
Hammershus ficava na extremidade norte de Bornholm. O castelo situava-se numa colina de onde se avistava a Suécia do outro lado do mar, e em tempos guardara a ilha das invasões do seu vizinho. Hermia subia na sua bicicleta o caminho serpenteante até às vertentes rochosas, curiosa de saber se aquele dia iria ser tão infrutífero quanto o anterior. O sol brilhava, e sentia calor do esforço de pedalar.
O castelo fora construído com uma mistura de tijolo e pedra. Subsistiam paredes solitárias, as suas características remotamente sugestivas de uma vida familiar: lareiras grandes com fuligem expostas ao céu, caves frias de pedra para guardar maçãs e cerveja, escadas interrompidas que não conduziam a lado algum, janelas estreitas através das quais crianças de imaginação fértil teriam em tempos contemplado o mar.
Hermia chegara cedo, e o local encontrava-se deserto. A avaliar pela experiência da véspera, tê-lo-ia à sua disposição por mais uma hora. "Como seria se o Arne aparecesse hoje?", perguntou-se ao empurrar a bicicleta pelas arcadas em ruínas e pelo chão com a erva crescida.
Em Copenhaga, antes da invasão, ela e Arne tinham sido um casal encantador, o centro de um círculo social de jovens oficiais e raparigas bonitas com contactos no governo, sempre em festas e piqueniques, que iam dançar, praticar desporto, velejar, cavalgar e à praia. Agora que esses dias tinham terminado, teria Arne a sensação de que ela fazia já parte do passado? Ao telefone, afirmara amá-la ainda - mas não a via há mais de um ano. Achá-la-ia igual, ou mudada? Agradar-lhe-ia ainda o cheiro do cabelo dela e o gosto da sua boca? Começou a sentir-se nervosa.
Passara toda a véspera a olhar para as ruínas, e já não lhe ofereciam nada de interessante. Dirigiu-se ao lado virado para o mar, encostou a bicicleta a um muro baixo de pedra, e olhou para a praia lá em baixo.
Uma voz familiar disse: - Olá, Hermia.
Virou-se bruscamente e viu Arne encaminhar-se para ela, sorrindo, de braços bem abertos. Estivera à espera por detrás de uma torre. O nervosismo dela desapareceu. Correu para os braços dele e estreitou-o com tanta força que correu o risco de o magoar.
- O que foi? - perguntou ele. - Por que estás a chorar? Apercebeu-se de que chorava, o peito arquejante dos soluços, as lágrimas a escorrer-lhe pelo rosto. - Estou tão feliz - disse.
Arne beijou-lhe as faces molhadas. Tomou o rosto dela em ambas as mãos, apalpando os ossos com as pontas dos dedos para lhe provar que era real, que não se tratava de uma daquelas cenas de encontro imaginárias com que tantas vezes ela sonhava. Enterrou o nariz no pescoço dele, inspirando o seu cheiro: a sabão do exército, a brilhantina e a combustível de aviões. Nos sonhos dela não havia cheiros.
Foi vencida pela emoção, mas a sensação mudou ligeiramente de excitação e felicidade para algo mais. Os seus beijos ternos tornaram-se sôfregos; as suaves carícias urgentemente exploratórias. Quando os joelhos dela cederam, deixou-se cair na erva, levando-o consigo. Lambeu-lhe o pescoço, chupou-lhe o lábio e mordeu-lhe o lobo da orelha. A erecção dele pressionava-a na coxa. Mexeu desajeitadamente nos botões das calças do uniforme dele, abrindo a braguilha para que o pudesse sondar convenientemente. Ele levantou-lhe a saia do vestido e introduziu a mão por debaixo do elástico da roupa interior dela. Registou um momento de tímido embaraço ao sentir-se tão húmida; depois isso foi esquecido num acesso de prazer. Impacientemente, interrompeu o abraço apenas o suficiente para despir as cuecas e atirá-las para o lado, a seguir atraiu-o para cima de si. Teve consciência de que estavam bem à vista de quaisquer turistas madrugadores que viessem visitar as ruínas, mas não se importou. Sabia que mais tarde, quando a loucura lhe passasse, estremeceria de horror ante o risco que correra, mas não se conseguia conter. Arfou quando a penetrou, depois agarrou-se a ele com os braços e as pernas pressionando o ventre dele no seu, o peito dele nos seus seios, o rosto dele no seu pescoço, insaciavelmente faminta daquele corpo. Depois, também isso passou ao concentrar-se num nó de intenso prazer que começou pequeno e quente, como uma estrela distante, e aumentou sucessivamente, parecendo apoderar-se cada vez mais do seu corpo, até que explodiu.
Permaneceram imóveis alguns momentos. Apreciou o peso do corpo dele sobre o seu, a sensação de ansiedade que lhe proporcionava, a lenta desintumescência dele. A seguir, uma sombra incidiu neles. Era apenas uma nuvem a passar à frente do Sol, mas recordou-lhe que as ruínas estavam abertas ao público, e alguém poderia aparecer a qualquer momento. - Ainda estamos sozinhos? - murmurou.
Ele levantou a cabeça e olhou à sua volta. - Sim.
- É melhor levantarmo-nos antes que cheguem os turistas.
- Está bem.
Agarrou-o quando ele se retirou. - Mais um beijo.
Beijou-a suavemente, depois levantou-se.
Apanhou as cuecas e vestiu-as rapidamente, depois levantou-se e sacudiu a erva do vestido. Agora que estava decente, a sensação de urgência abandonou-a, e todos os músculos do seu corpo se sentiram agradavelmente indolentes, como sucedia por vezes quando ficava na cama ao domingo de manhã, a dormitar e a ouvir os sinos da igreja.
Encostou-se ao muro, a olhar o mar, e Arne abraçou-a. Era-lhe difícil alhear-se da guerra, do logro, do secretismo.
- Estou a trabalhar para os Serviços Secretos britânicos - contou-lhe, de repente.
Ele acenou com a cabeça. - Já receava isso mesmo.
- Receavas? Porquê?
- Significa que corres ainda maior perigo do que se tivesses simplesmente vindo visitar-me.
Ficou satisfeita por o primeiro pensamento dele ir para o perigo que corria. Amava-a de verdade. Mas ela significava sarilhos.
- Agora tu também corres perigo, só por estares comigo.
- É melhor explicares-te.
Sentou-se no muro e ordenou as ideias. Não conseguira conceber uma versão truncada da história apenas com o que era imprescindível ele saber. Por mais que a cortasse, a meia-verdade não fazia sentido, por isso impunha-se contar-lhe tudo. Ia pedir-lhe que pusesse a sua vida em risco, e ele tinha de saber porquê.
Falou-lhe dos Guardas-Nocturnos, das detenções no aeródromo de Kastrup, do ritmo devastador de perda dos bombardeiros, da instalação do radar na sua ilha natal de Sande, da pista da bimmelbett e do envolvimento de Poul Kirke. Enquanto ia falando, a expressão dele modificou-se. A alegria desapareceu-lhe dos olhos, e o seu sorriso perene foi substituído por uma expressão de ansiedade. Ficou curiosa em saber se aceitaria a missão.
Se fosse um cobarde, por certo não teria escolhido pilotar as frágeis máquinas de madeira e tecido das tropas da Aviação Militar? Por outro lado, ser piloto fazia parte da sua imagem impetuosa. E era frequente colocar o prazer à frente do trabalho. Fora uma das razões por que se apaixonara por ele: ela era demasiado séria, e ele fazia-a divertir-se. Qual o verdadeiro Arne: o hedonista ou o aviador? Até ali nunca fora posto à prova.
- Vim pedir-te para fazeres o que o Poul Kirke teria feito, se estivesse vivo: ires a Sande, entrares na base e examinares a instalação do radar.
Arne assentiu com a cabeça, de ar sério.
- Precisamos de fotografias, de qualidade. - Debruçou-se sobre a bicicleta, abriu a bolsa no selim e retirou uma pequena máquina fotográfica de 35mm, uma Leica Illa de fabrico alemão. Ponderara a hipótese de uma Minox Riga em miniatura, que era mais fácil de esconder, mas acabara por preferir a precisão da objectiva da Leica. - Esta é provavelmente a tarefa mais importante que te será exigida. Quando percebermos o sistema de radar deles, poderemos conceber formas de o anular, e isso salvará as vidas de milhares de aviadores.
- Até aí entendo.
- Todavia, se fores apanhado, serás fuzilado ou enforcado por espionagem. - Entregou-lhe a máquina fotográfica.
Em parte, desejava que ele recusasse a missão, pois não suportaria a ideia do perigo que correria se aceitasse. Mas, se recusasse, conseguiria voltar a respeitá-lo?
Ele não aceitou a máquina fotográfica. - O Poul era o cabecilha dos teus Guardas-Nocturnos.
Ela anuiu.
- Calculo que a maior parte dos nossos amigos esteja envolvida.
- É preferível não saberes...
- Praticamente toda a gente menos eu. Ela confirmou. Temia o que vinha a seguir.
- Achas que sou um cobarde.
- Não se afigurou que tivesses perfil...
- Lá por eu gostar de festas, de dizer piadas e de namoriscar com as raparigas, concluíste que não tinha coragem para o trabalho secreto. - Não lhe deu resposta, mas ele insistiu. - Responde-me.
Hermia anuiu, com ar infeliz.
- Nesse caso, vou provar-te que estás errada. - Pegou na máquina fotográfica.
Não soube se ficava feliz ou triste. - Obrigada - disse-lhe, reprimindo as lágrimas. - Vais ter cuidado, não vais?
- Sim. Mas há um problema. Fui seguido até Bornholm.
- Oh, raios. - Era algo que não previra. - Tens a certeza?
- Sim. Vi duas pessoas a rondar a base, um homem e uma mulher jovem. Ela veio comigo no comboio para Copenhaga; a seguir foi ele no ferry. Quando aqui cheguei, ele seguiu-me de bicicleta, e vinha um carro atrás. Livrei-me deles alguns quilómetros depois de sair de Ronne.
- Devem ter suspeitado que trabalhavas com o Poul.
- Por irónico que pareça, não trabalhava.
- Quem pensas que possam ser?
- A polícia dinamarquesa, a agir sob as ordens dos alemães.
- Agora que os despistaste, devem estar convencidos de que és culpado. Devem continuar à tua procura.
- Não podem revistar todas as casas em Bornholm.
- Não, mas terão pessoas a vigiar o cais do ferry e o aeródromo.
- Não tinha pensado nisso. Nesse caso, como vou voltar para Copenhaga?
Ainda não pensava como um espião, apercebeu-se Hermia. - Teremos de arranjar maneira de te enfiar às escondidas no ferry.
- E depois para onde vou? Não posso regressar à escola de voo; será o primeiro lugar onde me irão procurar.
- Terás de ficar em casa do Jens Toksvig.
O rosto de Arne ensombrou-se. - Pelos vistos ele é um dos Guardas-Nocturnos.
- Sim. A morada dele...
- Sei onde ele vive - respondeu Arne com brusquidão. - Antes de ele ser Guarda-Nocturno, já era meu amigo.
- Pode estar nervoso por causa do que aconteceu ao Poul...
- Não me mandará embora.
Hermia resolveu ignorar a raiva de Arne. - Vamos supor que consegues embarcar no ferry desta noite. Quanto tempo demorarás a chegar a Sande?
- Vou falar primeiro com o meu irmão, o Harald. Ele trabalhou como operário no local quando estavam a construir a base, por conseguinte, poderá fornecer-me o traçado. Depois terás de contar com um dia inteiro para chegar à Jutlândia, pois os comboios andam sempre atrasados. Poderia lá estar ao final de terça-feira, infiltrar-me às escondidas na base na quarta, e regressar a Copenhaga na quinta. E depois, como entro em contacto contigo?
- Voltas aqui na sexta. Se a polícia ainda estiver a vigiar o ferry, terás de descobrir uma maneira de te disfarçares. Encontrar-me-ei contigo aqui mesmo. Faremos a travessia para a Suécia com o pescador que me trouxe. Depois arranjamos-te documentos falsos na Legação Britânica e metemos-te num voo para Inglaterra.
Anuiu, carrancudo.
Ela disse: - Se isto resultar, poderíamos estar de novo juntos, e livres, daqui a uma semana.
Sorriu-lhe. - Parecem-me expectativas a mais.
Amava-a, decidiu, apesar de ainda se sentir magoado por ter sido excluído dos Guardas-Nocturnos. E, lá mesmo muito no fundo, duvidava de que ele tivesse coragem para aquele trabalho. Mas iria acabar por descobrir.
Enquanto conversavam, os primeiros escassos turistas tinham chegado, e um punhado de pessoas passeava-se agora pelas ruínas, espreitando as caves e tocando nas pedras antigas. - Vamo-nos embora daqui - propôs Hermia. - Vieste de bicicleta?
- Está atrás daquela torre.
Arne foi buscar a sua bicicleta e abandonaram o castelo, tendo ele posto os óculos de sol e um boné para ser mais difícil reconhecerem-no. O disfarce não passaria numa inspecção minuciosa dos passageiros que embarcassem num ferry, mas poderia protegê-lo se por acaso encontrasse os seus perseguidores na estrada.
Hermia ponderou o problema da fuga enquanto desciam a colina em roda livre. Conseguiria arranjar um melhor disfarce para Arne? Não tinha perucas nem máscaras, nem qualquer maquilhagem a não ser o mínimo de batom e pó-de-arroz que ela própria usava. Ele tinha de parecer uma pessoa diferente, e para tal necessitava de ajuda profissional. Ele consegui-la-ia certamente arranjar em Copenhaga, mas não ali.
No sopé da colina, avistou o outro hóspede da pensão, Sven Fromer, a sair do Volvo. Não queria que ele visse Arne, e tinha esperança de conseguir passar despercebida, mas teve azar. Ele viu-a, acenou e ficou à espera à beira do caminho. Teria sido manifestamente indelicado ignorá-lo, de maneira que se sentiu obrigada a parar.
- Voltamos a encontrar-nos - saudou. - Este deve ser o seu noivo. Não corria perigo com Sven, procurou mentalizar-se. Não havia
nada de suspeito no que estava a fazer e, de qualquer maneira, Sven era antialemão. - Este é o Oluf Arnesen - disse, trocando o nome de Arne. - Oluf, apresento-te o Sven Fromer. Ficou na mesma pensão que eu ontem à noite.
Os dois homens deram um aperto de mão. Para fazer conversa, Arne perguntou-lhe: - Está aqui há muito tempo?
- Uma semana. Parto esta noite.
Hermia teve uma ideia repentina. - Sven - afirmou. - Esta manhã disse-me que deveríamos combater os alemães.
- Falo demais. Devia ser mais discreto.
- Se eu lhe desse uma oportunidade de ajudar os britânicos, estaria disposto a correr o risco?
Ficou a olhar para ela. - Você? - perguntou. -- Mas como... Está a dizer que é...
- Estaria disposto? - pressionou-o.
- Isto não é nenhuma brincadeira, pois não?
- Terá de confiar em mim. Sim ou não?
- Sim - respondeu. - O que quer que eu faça?
- Conseguiria esconder um homem na mala do seu carro?
- Claro. Poderia escondê-lo atrás do meu equipamento. Não ficaria confortável, mas há espaço.
- Estaria disposto a levar alguém clandestinamente no ferry desta noite?
Sven olhou para o seu carro, depois para Arne. - Você?
Arne anuiu.
Sven sorriu. - Raios, claro que sim - disse.
O primeiro dia de trabalho de Harald na quinta de Nielsen foi mais bem-sucedido do que se atrevera a esperar. O velho Nielsen tinha uma pequena oficina com equipamento suficiente para Harald reparar praticamente tudo. Consertara a bomba de água de um arado a vapor, soldara uma dobradiça num tractor de lagarta e descobrira o curto-circuito que fazia com que as luzes da quinta se fundissem todas as noites. Almoçara prodigamente arenques e batatas com os trabalhadores da quinta.
A noite, passara duas horas na taberna da aldeia com Karl, o filho mais novo do agricultor - muito embora bebesse apenas dois copos pequenos de cerveja, lembrando-se da triste figura que fizera devido ao álcool havia uma semana. Toda a gente falava da invasão da União Soviética por Hitler. As notícias eram más. A Luftwaffe afirmava ter destruído 1800 aviões soviéticos no solo durante os ataques-relâmpago. Na taberna, toda a gente achava que Moscovo cairia antes do Inverno, à excepção do comunista local, mas até ele parecia preocupado.
Harald viera-se embora cedo porque Karen dissera que talvez se encontrasse com ele depois do jantar. Sentia-se cansado mas satisfeito consigo mesmo no regresso ao velho mosteiro. Quando entrou no edifício em ruínas, ficou espantado ao encontrar o irmão na igreja, a olhar para o avião abandonado. - Um Hornet Moth - referiu Arne. - A carruagem aérea do cavalheiro.
- Está destruído - disse Harald.
- Nem por isso. O trem de aterragem está um pouco dobrado.
- Como achas que aconteceu?
- Ao aterrar. A extremidade traseira do Hornet tende a oscilar de forma descontrolada, em virtude de as rodas principais estarem demasiado à frente. Mas os eixos das rodas não foram concebidos para suportar pressão lateral, por isso quando se guina violentamente, eles podem ceder.
Harald reparou que Arne estava com péssimo aspecto. Em vez do uniforme militar, parecia ter vestidas as roupas velhas de outra pessoa, um casaco de tweed usado e calças de bombazina coçadas. Rapara o bigode e um boné seboso cobria o seu cabelo encaracolado. Tinha nas mãos uma pequena máquina fotográfica de 35mm. Via-se uma expressão tensa no seu rosto em vez do habitual sorriso despreocupado. - O que te aconteceu? - inquiriu Harald, ansioso.
- Estou em apuros. Tens alguma coisa que se coma?
- Nadinha. Podemos ir à taberna...
- Não posso ser visto. Sou um homem procurado. - Arne tentou um sorriso forçado, mas acabou por lhe sair um esgar. - Todos os polícias na Dinamarca têm a minha descrição e há cartazes meus espalhados por Copenhaga inteira. Fui perseguido por um polícia ao longo da Stroget e escapei mesmo por um triz.
- Pertences à Resistência?
Arne hesitou, encolheu os ombros, depois respondeu: - Sim.
Harald ficou entusiasmado. Sentou-se na saliência que costumava usar como cama e Arne instalou-se ao seu lado. O gato Pinetop apareceu e esfregou a cabeça na perna de Harald. - Nesse caso, estavas a trabalhar com eles quando te perguntei em casa, há três semanas?
- Não, nessa altura ainda não. A princípio excluíram-me. Achavam que eu não tinha perfil para o trabalho secreto. Por Deus, eles tinham razão. Só que agora estão desesperados, e daí o meu envolvimento. Tenho de tirar fotografias a um aparelho na base militar em Sande.
Harald anuiu. - Fiz um esboço dele para o Poul.
- Até tu te envolveste antes de mim - comentou Arne com azedume. - Muito bem, muito bem.
- O Poul pediu-me que não te contasse.
- Pelos vistos, toda a gente me tinha na conta de cobarde.
- Eu podia voltar a desenhar os meus esboços... apesar de serem apenas de memória.
Arne abanou a cabeça. - Eles precisam de fotografias rigorosas. Vim perguntar-te se existe maneira de lá entrar à socapa.
Harald estava a achar muito interessante aquela conversa sobre espionagem, mas incomodava-o que Arne não parecesse ter um plano bem concebido. - Há um sítio onde a vedação fica escondida pelas árvores, sim; mas como vais conseguir chegar a Sande se a polícia anda à tua procura?
- Mudei de aspecto.
- Nem por isso. Que documentos trazes contigo?
- Apenas os meus; como poderia arranjar outros?
- Portanto, se a polícia te interpelar por qualquer motivo, bastarão dez segundos para perceberem que és o homem de que todos andam à procura.
- É mais ou menos isso.
Harald abanou a cabeça. - É uma loucura.
- Não pode ser doutra maneira. Este equipamento permite aos alemães detectar os bombardeiros quando se encontram ainda a quilómetros, a tempo de levantarem voo nos seus caças.
- Devem usar ondas electromagnéticas - afirmou Harald, todo entusiasmado.
- Os britânicos possuem um sistema semelhante, mas os alemães parecem tê-lo apurado, e estão a abater quase metade dos aviões num ataque aéreo. A RAF está desesperada para saber como conseguem. Vale a pena arriscar a minha vida.
- Não desnecessariamente. Se fores apanhado, não poderás transmitir a informação aos britânicos.
- Tenho de tentar.
Harald respirou fundo. - Por que não vou eu?
- Sabia que ias dizer isso.
- Não anda ninguém à minha procura. Conheço o local. Já saltei a vedação, atalhei por lá uma noite. E percebo mais de rádio do que tu, por isso tenho uma melhor noção do que fotografar. - Harald achava irresistível a lógica do seu argumento.
- Se fores apanhado, serás abatido como espião.
- O mesmo se aplica a ti, só que tu tens praticamente a certeza de ser apanhado, ao passo que eu provavelmente conseguirei escapar.
- A polícia pode ter encontrado os teus esboços quando veio à procura do Poul. Nesse caso, os alemães devem saber que há alguém interessado na base em Sande e provavelmente terão reforçado a segurança. Transpor a vedação pode não ser tão fácil como antes.
- Mesmo assim, continuo a ter mais hipóteses do que tu.
- Não posso mandar-te ao encontro do perigo. E se fores apanhado, o que direi à mãe?
- Dir-lhe-ás que morri a lutar pela liberdade. Tenho tanto direito como tu de correr o risco. Passa para cá o raio da máquina fotográfica.
Antes que Arne tivesse tempo de responder, Karen entrou.
Chegou de mansinho e apareceu sem avisar, pelo que Arne não teve hipótese de se esconder, apesar de fazer menção de se levantar, num gesto reflexo, depois parou.
- Quem é o senhor? - inquiriu Karen com a sua habitual frontalidade. - Oh! Olá, Arne. Rapaste o bigode; acho que foi por causa de todos os cartazes que vi hoje em Copenhaga. Por que andas fugido? - Sentou-se na cobertura do motor do Rolls-Royce que estava tapado, cruzando as pernas compridas como uma manequim.
Arne hesitou, depois respondeu: - Não te posso contar.
A mente ágil de Karen antecipou-se, retirando ilações com uma rapidez impressionante. - Meu Deus, tu pertences à Resistência! O Poul estava envolvido, não estava? Foi por isso que morreu?
Arne anuiu. - O avião dele não se despenhou. Ele estava a tentar fugir à polícia e foi alvejado.
- Pobre Poul. - Desviou por momentos o olhar. - Por isso resolveste retomar do ponto onde ele ficara. Mas agora a polícia anda atrás de ti. Alguém deve estar a dar-te guarida, provavelmente o Jens Toksvig. Era o amigo mais chegado do Poul, depois de ti.
Arne encolheu os ombros e anuiu.
- Mas não podes andar por aí, sem te arriscares a ser preso, por isso... - Olhou para Harald e baixou a voz. - Agora também estás envolvido, Harald.
Para surpresa de Harald, ficou apreensiva, como se temesse por ele. Agradou-lhe a preocupação dela.
Olhou para Arne. - Então? Estou envolvido? Arne suspirou e entregou-lhe a máquina fotográfica.
Harald chegou a Morlunde ao final do dia seguinte. Deixara a motorizada num parque de estacionamento próximo do cais do ferry, achando que daria demasiado nas vistas em Sande. Não tinha com que cobri-la nem uma maneira de a trancar, mas esperava que um ladrão de ocasião não conseguisse descobrir como pô-la a trabalhar.
Chegou a tempo do último ferry do dia. Enquanto esperava no cais, a noite avançou lentamente, e as estrelas surgiram como as luzes de navios distantes num mar escuro. Apareceu um ilhéu bêbedo a cambalear pelo cais, olhou com rudeza para Harald e murmurou: "Ah, jovem Olufsen", depois sentou-se num cabrestante a alguma distância e tentou acender um cachimbo.
O barco atracou e desembarcou um punhado degente. Para surpresa de Harald, havia um polícia dinamarquês e um soldado alemão à entrada da prancha de embarque. Quando o bêbedo embarcou, verificaram a sua identidade. O coração de Harald sofreu um baque. Hesitou, assustado, sem saber se embarcar. Haviam simplesmente aumentado a segurança depois de descobrirem os seus esboços, tal como Arne previra? Ou andavam atrás do próprio Arne? Saberiam que Harald era irmão do homem procurado? Olufsen era um nome vulgar - mas podiam ter sido informados sobre a família. Levava uma máquina fotográfica cara na sacola. Era uma marca alemã popular, mesmo assim não deixaria de levantar suspeitas.
Procurou sossegar a mente e considerar as opções. Havia outras formas de chegar a Sande. Não sabia se aguentaria nadar duas milhas em pleno mar, mas podia pedir emprestado, ou roubar, um pequeno barco. No entanto, se fosse visto a chegar a Sande de barco, seria certamente interrogado. Mais valia armar-se em inocente.
Embarcou no ferry.
O polícia perguntou-lhe: - Que motivo o leva a deslocar-se a Sande?
Harald reprimiu um sentimento de indignação por alguém se atrever a fazer semelhante pergunta. - Vivo aqui - respondeu. - Com os meus pais.
O polícia olhou-lhe para o rosto. - Não me recordo de o ter visto antes, e estou a fazer este trabalho há quatro dias.
- Estive fora no colégio.
- Terça-feira é um dia estranho para vir a casa.
- É o final do período.
O polícia resmungou, aparentemente satisfeito. Verificou a morada no documento de Harald e mostrou-o ao soldado, que anuiu e deixou Harald embarcar.
Dirigiu-se para a outra ponta do barco e ficou a olhar para o mar, esperando que o seu coração parasse de bater com tanta força. Sentiu-se aliviado por ter passado o posto de controlo, mas furioso por ter de se justificar a um polícia quando se deslocava no seu próprio país. Parecia uma reacção absurda, ao pensar de forma lógica, mas não podia deixar de se sentir ultrajado.
A meia-noite, o barco abandonou o cais.
Não havia lua. A luz das estrelas, a ilha plana de Sande era uma ondulação escura igual a qualquer outra onda no horizonte. Harald não contara regressar tão cedo. Na verdade, quando partira na sexta-feira, perguntara-se se alguma vez voltaria a ver aquele lugar. Regressava agora como espião, com uma máquina fotográfica na sacola e tendo por missão fotografar a arma secreta dos nazis. Recordou-se vagamente de pensar como seria excitante fazer parte da Resistência. Na realidade, não tinha piada nenhuma. Pelo contrário, o medo deixava-o doente.
Sentiu-se pior ao desembarcar no cais familiar e ao olhar para os correios e a mercearia do outro lado da estrada que mantinham o mesmo aspecto, tanto quanto se conseguia lembrar. Tivera uma vida segura e estável durante os primeiros dezoito anos. Dali em diante nunca mais voltaria a sentir-se seguro.
Encaminhou-se para a praia e começou a avançar para sul. A areia molhada tinha um brilho prateado à luz das estrelas. Ouviu uma gargalhada de rapariga vinda de um ponto invisível nas dunas, e sentiu uma pontada de ciúme. Alguma vez conseguiria fazer Karen rir-se daquela maneira?
Estava quase a alvorecer quando avistou a base. Conseguia distinguir os postes da vedação. As árvores e os arbustos lá dentro surgiam como manchas escuras nas dunas. Se ele conseguia ver, sucederia o mesmo aos guardas, apercebeu-se. Ajoelhou-se e começou a rastejar. Um minuto depois, ficou grato pela sua cautela. Avistou dois guardas a patrulhar do lado de dentro da vedação, juntos, com um cão. Aquilo era novidade. Antes não costumavam patrulhar aos pares, nem havia cães. Deitou-se de bruços. Os dois homens não pareciam particularmente alerta. Deambulavam, não marchavam. O que segurava o cão conversava animadamente enquanto o outro fumava. Quando se aproximaram, Harald conseguiu ouvir a voz acima do som das ondas a rebentar na praia. Aprendera alemão no colégio, como todas as crianças dinamarquesas. O homem contava uma história de gabarolice sobre uma mulher chamada Margareta.
Harald encontrava-se a cinquenta metros da vedação. Quando os guardas se aproximaram do ponto mais próximo dele, o cão farejou o ar. Provavelmente, sentira Harald, mas não sabia onde estava. Soltou um latido de dúvida. O guarda que segurava a trela não estava tão bem treinado quanto o cão, e mandou o animal calar-se, depois continuou a explicar que conseguira que Margareta se encontrasse com ele no telheiro da lenha. Harald permaneceu completamente imóvel. O cão tornou a ladrar, e um dos guardas acendeu uma lanterna potente. Harald escondeu o rosto na areia. O feixe de luz da lanterna percorreu as dunas mas passou por cima dele sem parar.
O guarda prosseguiu: - Depois ela disse que sim, mas não te poderás demorar muito. - Continuaram a caminhar e o cão calou-se de novo. Harald permaneceu imóvel até eles desaparecerem de vista. Depois virou para o interior e aproximou-se da zona da vedação que ficava escondida pela vegetação. Receava que os soldados pudessem ter derrubado as árvores, mas a mata continuava lá. Rastejou por entre os arbustos, alcançou a vedação e levantou-se.
Hesitou. Poderia recuar neste ponto, e não infringiria qualquer lei. Poderia regressar a Kirstenslot e concentrar-se no seu novo trabalho, passando os serões na taberna e as noites a sonhar com Karen. Poderia tomar a atitude de que a guerra e a política não eram da sua conta, como faziam muitos dinamarqueses. Mesmo enquanto ponderava tal hipótese, sentiu-se revoltado. Imaginou-se a explicar a sua decisão a Arne e Karen, ou ao tio Joachim e à prima Monika, e sentiu-se envergonhado só de ter pensado no assunto.
A vedação mantinha-se como antes - um metro e oitenta de rede de galinheiro com dois fios de arame farpado. Harald pôs a sacola para trás das costas, a fim de não constituir um empecilho, depois escalou a vedação, passou cautelosamente por cima do arame farpado e saltou para o outro lado.
Agora sim, estava totalmente comprometido. Estava dentro de uma base militar com uma máquina fotográfica. Se o apanhassem, matá-lo-iam.
Avançou rapidamente, pisando suavemente o terreno, mantendo-se perto dos arbustos e árvores, olhando constantemente à sua volta. Passou a torre de vigia com o holofote, e pensou com algum frémito como ficaria absolutamente exposto se decidissem acender os potentes feixes luminosos. Apurou o ouvido para passos da patrulha, mas escutou apenas o constante marulhar das ondas. Após alguns minutos, desceu uma inclinação suave e entrou num aglomerado de coníferas, que lhe proporcionava uma boa cobertura. Chegou a perguntar-se por que razão os soldados não se tinham lembrado de proceder ao abate das árvores, para melhor segurança; apercebeu-se depois de que serviam para ocultar o equipamento de rádio dos olhos curiosos.
Um instante depois chegou ao seu destino. Agora que sabia o que procurava, conseguia ver com perfeita clareza o muro circular e a enorme grelha rectangular que se erguia do núcleo oco, a antena a rodar lentamente, qual olho mecânico perscrutando o horizonte escuro. Ouviu novamente o zumbido baixo do motor eléctrico. Distinguiu de ambos os lados da estrutura duas formas mais pequenas, e via naquele momento, à luz das estrelas, que eram versões em miniatura da grande antena rotativa. Afinal havia três máquinas. Ficou curioso quanto à razão de tal. Poderia de alguma forma explicar a notável superioridade do radar alemão? Olhando com muita atenção para as antenas mais pequenas, pensou que tinham sido construídas de forma diferente. Precisaria de as observar novamente de dia, mas afigurava-se-lhe que tanto podiam inclinar-se como rodar. Por que seria? Tinha de se certificar de que obtinha boas imagens dos três aparelhos.
A primeira vez que ali estivera, saltara o muro circular, assustado, depois de ter ouvido um guarda tossir ali perto. Agora que tinha tempo para pensar, sentia que haveria de certeza uma maneira mais fácil de entrar. Os muros eram necessários para proteger o equipamento de danos acidentais, mas por certo os técnicos precisavam de lá entrar para manutenção. Contornou o círculo, espreitando a alvenaria à luz difusa, e encontrou uma porta de madeira. Não estava trancada, e atravessou-a, fechando-a cuidadosamente atrás de si.
Sentiu-se um pouco mais seguro. Ninguém o conseguiria ver do exterior. Os técnicos não fariam a manutenção àquela hora da noite, excepto numa emergência. Se alguém entrasse, sempre poderia pular o muro antes de ser detectado.
Olhou para a enorme grelha giratória. Devia captar os feixes electromagnéticos reflectidos do avião, calculou. A antena funcionava como uma lente, focando os sinais recebidos. O cabo que saía da base transmitia os dados para os novos edifícios que Harald ajudara a construir no Verão anterior. Ali, ao que tudo indicava, os resultados surgiriam em monitores, e os operadores estariam a postos para alertar a Luft-waffe. Na semiescuridão, com a maquinaria a zumbir por cima dele e o cheiro a ozono da electricidade nas narinas, sentiu-se dentro do coração pulsante da máquina de guerra. A luta entre os cientistas e os técnicos de ambos os lados poderia ser tão importante quanto o confronto dos tanques e das metralhadoras no campo de batalha. E ele tornara-se um dos participantes.
Ouviu um avião. Não havia luar, por isso, provavelmente, não seria um bombardeiro. Talvez fosse um caça alemão num voo local, ou um transporte de civis que se perdera. Perguntou-se se a grande antena detectara a sua aproximação uma hora antes. Perguntou-se igualmente se as antenas mais pequenas estavam apontadas para ele. Decidiu sair e dar uma espreitadela.
Uma das antenas mais pequenas estava virada para o mar, na direcção do avião em aproximação. A outra apontava para terra. Estavam ambas inclinadas em ângulos diferentes dos anteriores, pensou. Enquanto o avião roncava mais perto, reparou que a primeira antena se inclinara mais, como se o seguisse. A outra continuava a mover-se, muito embora não conseguisse perceber sob que estímulo o fazia.
O avião atravessou Sande e dirigiu-se para o continente, com o prato da antena sempre a segui-lo. Harald regressou ao seu esconderijo dentro do muro circular, matutando no que vira.
O céu estava a passar de negro a cinzento. Nesta altura do ano, alvorecia antes das três da manhã. Dali a uma hora, o Sol nasceria.
Tirou a máquina fotográfica da sacola. Arne mostrara-lhe como funcionava. Quando a claridade aumentou, contornou silenciosamente a parte de dentro do muro, calculando os melhores ângulos para as fotografias que revelariam cada pormenor da maquinaria.
Ele e Arne tinham combinado que tiraria as fotografias por volta das 4h45m.. O Sol já teria nascido, mas não estaria a incidir no muro da instalação. Não era necessária a luz do Sol - a película na máquina era suficientemente sensível para registar os pormenores sem ela.
Com o passar do tempo, os pensamentos de Harald concentraram-se ansiosamente na fuga. Chegara de noite, e entrara na base a coberto do escuro, mas não podia esperar até à noite seguinte para sair dali. Quase de certeza viria um técnico efectuar uma inspecção de rotina ao equipamento, pelo menos uma vez durante o dia, mesmo que nada corresse mal. Por conseguinte, Harald tinha de se ir embora assim que tirasse as fotografias - e nessa altura já seria dia claro. A sua partida envolvia muito mais perigo do que a sua chegada.
Ponderou a direcção a seguir. Para sul do local onde se encontrava, na direcção da casa dos pais, a vedação ficava apenas a algumas centenas de metros, mas o percurso era pelas dunas descobertas, sem árvores nem arbustos. Ir para norte, voltando para trás, encobrindo-se com a vegetação grande parte do caminho, levaria mais tempo mas poderia revestir maior segurança.
Perguntou-se como enfrentaria um pelotão de fuzilamento. Manter-se-ia calmo e orgulhoso, controlando o terror, ou não aguentaria e faria uma triste figura, suplicando por misericórdia e urinando-se?
Fez um esforço para aguardar calmamente. A claridade tornava-se mais intensa e o ponteiro dos minutos deslocava-se lentamente pelo mostrador do seu relógio. Não ouvia quaisquer sons do exterior. O dia de um soldado começava cedo, mas tinha esperança de que não houvesse grande actividade antes das seis - altura em que já teria partido.
Chegou finalmente o momento de tirar as fotografias. O céu estava limpo e a luz matinal era boa. Conseguia ver cada rebite e terminal da complexa maquinaria à sua frente. Focando a objectiva com cuidado, fotografou a base giratória do aparelho, os cabos e a grelha da antena. Desdobrou um metro articulado que encontrara no suporte das ferramentas no mosteiro e colocou-o em algumas das fotografias para mostrar a escala - uma ideia inteligente da sua autoria.
De seguida, tinha de vir para o lado exterior do muro.
Hesitou. Ali dentro sentia-se seguro. Mas precisava de obter fotografias das duas antenas mais pequenas.
Entreabriu a porta. Reinava o silêncio. Percebeu, pelo som da rebentação, que a maré estava a encher. A base era banhada pela luz aquosa de uma manhã na orla marítima. Nenhum sinal de vida. Era a hora em que os homens dormem profundamente, e até os cães têm sonhos.
Fotografou cuidadosamente as duas antenas mais pequenas, que estavam protegidas apenas por muros baixos. Pensando na sua função, apercebeu-se de que uma delas estivera a acompanhar um avião que se encontrava no raio de visão. A verdadeira função do aparelho era detectar os bombardeiros antes de serem visíveis, pensara. Ao que tudo indicava, a segunda antena pequena seguia outro avião.
Enquanto tirava fotografias, ia dando voltas ao enigma na sua cabeça. Como podiam os três dispositivos trabalhar em conjunto para aumentar a taxa de abatimento dos caças da Luftwaffe? Talvez a antena grande avisasse antecipadamente da aproximação de um bombardeiro e a mais pequena acompanhasse o bombardeiro dentro do espaço aéreo alemão. Nesse caso, qual seria a função da segunda antena mais pequena?
Ocorreu-lhe que deveria haver outro avião no céu - o caça que descolara para atacar o bombardeiro. Poderia a segunda antena ser usada pela Luftwaffe para seguir o seu próprio avião? Parecia absurdo, mas quando recuou para fotografar as três antenas juntas, mostrando a sua posição em relação umas às outras, apercebeu-se de que fazia todo o sentido. Se um controlador da Luftwaffe soubesse as posições do bombardeiro e do caça, poderia orientar o caça através do rádio até ele estabelecer contacto com o bombardeiro.
Começou a perceber o eventual modo de funcionamento da Luftwaffe. A antena grande avisava antecipadamente de um ataque aéreo para que os caças pudessem descolar atempadamente. Uma das antenas mais pequenas captava um bombardeiro ao aproximar-se. A outra seguia o caça, permitindo ao controlador indicar ao piloto a localização exacta do bombardeiro. Depois, o inimigo ficava completamente à mercê deles. Aquele pensamento consciencializou Harald da forma como se encontrava exposto: de pé, em plena luz do dia, no meio de uma base militar, a fotografar equipamento ultra-secreto. O pânico percorreu as suas veias como veneno. Procurou acalmar-se e tirar as últimas fotografias que planeara, mostrando as três antenas de diferentes ângulos, mas estava absolutamente apavorado. Tirara pelo menos umas vinte fotografias. Deviam ser suficientes, pensou para com os seus botões.
Guardou a máquina fotográfica na sacola e começou a afastar-se rapidamente. Esquecendo a resolução de seguir o percurso mais demorado mas seguro para norte, rumou a sul, atravessando as dunas descobertas. Nessa direcção, a vedação ficava visível, mas logo a seguir havia a velha casa dos barcos que descobrira da última vez. Iria então passar por ela no lado virado para o mar, permitindo-lhe não ser visível alguns passos. Quando se aproximou dela, um cão ladrou.
Olhou esgazeado à sua volta mas não viu quaisquer soldados nem o cão. Apercebeu-se então de que o som viera da casa dos barcos. Os soldados deviam estar a usar o edifício abandonado como canil. Um segundo cão começou também a ladrar. Harald desatou a correr.
Os cães excitavam-se um ao outro, juntaram-se mais, e o ruído adquiriu um tom altamente histérico. Harald chegou ao edifício, depois virou para o mar, procurando manter a casa dos barcos entre si e os edifícios principais enquanto corria feito um louco para a vedação. O medo imprimiu-lhe celeridade. Esperava a cada segundo ouvir soar um tiro.
Alcançou a vedação sem saber se fora visto ou não. Trepou-a feito um macaco e saltou por cima do arame farpado no cimo. Caiu pesadamente do outro lado, chapinhando na água pouco funda. Pôs-se rapidamente em pé e olhou através da vedação. Via, para lá da casa dos barcos, parcialmente obscurecidos pelas árvores e os arbustos, os edifícios principais, mas nenhum soldado. Virou-se e correu. Manteve-se algumas centenas de metros na água rasa, para que os cães não lhe pudessem seguir o rasto; virou então para o interior. Deixou pegadas pouco profundas na areia molhada, mas sabia que o avanço rápido da maré as cobriria dentro de um minuto ou dois. Alcançou as dunas, onde não deixou qualquer rasto visível.
Passados uns minutos, chegou à estrada de terra batida. Olhou para trás e não viu ninguém a segui-lo. Respirando a custo, encaminhou-se para o presbitério. Passou a correr pela igreja e alcançou a porta da cozinha.
Estava aberta. Os pais levantavam-se cedo.
Entrou. A mãe encontrava-se ao fogão, com um robe vestido, a fazer chá. Quando o viu, soltou um grito de choque e deixou cair o bule de barro. Bateu no chão de ladrilhos e o bico partiu-se. Harald apanhou os dois bocados. - Desculpe tê-la assustado - disse.
- Harald!
Beijou-a na face e abraçou-a. - O meu pai está em casa?
- Na igreja. Não houve tempo para arrumar a noite passada, de maneira que foi endireitar as cadeiras.
- O que aconteceu na noite passada? - Não havia serviço às segundas à noite.
- A comissão de diáconos reuniu-se para discutir o teu caso. Vais ser exposto no próximo domingo.
- A vingança dos Flemming. - Harald achou estranho que antes tivesse dado importância a tal ocorrência.
Entretanto, os guardas já teriam ido ver o que perturbara os cães. Se fossem minuciosos, possivelmente revistariam as casas mais próximas, à procura de um fugitivo em alpendres e celeiros. - Mãe - disse-lhe - , se os soldados cá aparecerem, diz-lhes que estive na cama toda a noite?
- Mas o que aconteceu? - indagou, receosa.
- Explicarei depois. - Seria mais natural se estivesse deitado, pensou. - Diga-lhes que ainda estou a dormir... Pode ser?
- Está bem.
Saiu da cozinha e subiu as escadas até ao quarto. Colocou a sacola nas costas da cadeira. Tirou a máquina fotográfica e guardou-a numa gaveta. Pensou escondê-la, mas não havia tempo, e uma máquina fotográfica escondida era uma prova de culpa. Despiu-se rapidamente, colocou o pijama e meteu-se na cama.
Ouviu a voz do pai na cozinha. Saiu da cama e veio escutar ao cimo das escadas.
- O que faz ele aqui? - perguntou o pastor.
A mãe respondeu: - Está escondido dos soldados.
- Por amor de Deus, no que se meteu agora aquele rapaz?
- Não sei, mas...
A mãe foi interrompida por pancadas sonoras. Uma voz de homem jovem disse em alemão: - Bom dia. Andamos à procura de uma pessoa. Viu um desconhecido por aqui nas últimas horas?
- Não, não vi ninguém. - O nervosismo na voz da mãe era tão evidente que o soldado deve ter-se apercebido; mas era possível que estivesse acostumado a que as pessoas se assustassem com a sua presença.
- E o senhor?
O pai respondeu com firmeza: - Não.
- Está mais alguém aqui?
A mãe de Harald respondeu: - O meu filho. Ele ainda está a dormir.
- Preciso de revistar a casa. - A voz era educada, mas fazia uma afirmação, não pedia autorização.
- Eu acompanho-o - disse o pastor.
Harald voltou para a cama, o coração a bater com força. Ouviu passos de botas nos ladrilhos em baixo e portas a abrirem-se e a fecharem-se. Depois as botas subiram as escadas de madeira. Entraram no quarto dos pais, a seguir no de Arne e, finalmente, aproximaram-se do de Harald. Ouviu o puxador da sua porta rodar.
Fechou os olhos, fingindo dormir, e procurou respirar lenta e regularmente.
A voz alemã falou baixo: - O seu filho?
- Sim.
Seguiu-se uma pausa.
- Ele esteve aqui toda a noite?
Harald susteve a respiração. Desconhecia que o pai alguma vez tivesse dito nem que fosse uma mentira inofensiva.
Ouviu então: - Sim. Toda a noite.
Ficou estupefacto. O pai mentira por ele. O velho tirano impiedoso, teimoso e farisaico quebrara as suas próprias regras. Afinal sempre era humano. Harald sentiu as lágrimas por detrás das pálpebras fechadas.
As botas afastaram-se pelo corredor, desceram as escadas e Harald ouviu o soldado ir-se embora. Saiu da cama e veio até ao cimo das escadas.
- Já podes descer - disse-lhe o pai. - Ele foi-se embora.
Desceu. O pai tinha um ar solene. - Obrigado pelo que fez, pai - agradeceu Harald.
- Cometi um pecado - respondeu o pai. Por um momento, Harald pensou que ele se fosse enfurecer. Depois o rosto velho suavizou-se. - No entanto, creio num Deus clemente.
Harald apercebeu-se da agonia do conflito que o pai travara nos últimos minutos, mas não sabia como dizer-lhe que entendia. Só lhe ocorreu um aperto de mãos. Tomou a iniciativa.
O pai olhou para ela, a seguir tomou-a. Atraiu Harald a si e passou o braço esquerdo pelos ombros do jovem. Fechou os olhos, esforçando-se por conter a profunda emoção. Quando falou, a voz atroadora do pregador desaparecera, e as palavras saíram num murmúrio de angústia.
- Julguei que eles te fossem matar - disse. - Meu querido filho, julguei que eles te fossem matar.
Arne Olufsen escapara-se por entre os dedos de Peter Flemming.
Peter matutava nisso enquanto cozia um ovo para o pequeno-almoço de Inge. Depois de Arne ter iludido a vigilância em Bornholm, Peter desdramatizara dizendo que em breve o voltariam a apanhar. A confiança de Peter fora um pouco exagerada. Convencera-se de que Arne não era suficientemente esperto para sair da ilha sem ser detectado - e afinal enganara-se. Ainda não sabia como ele o conseguira, mas não havia dúvida de que regressara a Copenhaga, pois um polícia fardado avistara-o no centro da cidade. O agente da patrulha perseguira-o, mas Arne fora mais rápido do que ele - e tornara a desaparecer.
Estava obviamente em curso alguma espionagem, como o chefe de Peter, Frederik Juel, comentara com gélido escárnio. "Pelos vistos, o Olufsen anda a efectuar manobras de evasão", dissera.
O general Braun fora mais directo. "É óbvio que a morte do Poul Kirke não conseguiu desactivar a rede de espiões", afirmara. Não se voltara a falar de promover Peter a chefe do departamento. "Vou mandar chamar a Gestapo."
Era tão injusto, pensou Peter, furioso. Desmascarara aquela rede de espiões, descobrira a mensagem secreta no calço do avião, detivera os mecânicos, efectuara uma rusga policial à sinagoga, prendera Ingemar Gammel, vasculhara a escola de voo, matara Poul Kirke e obrigara Arne Olufsen a abandonar o esconderijo. No entanto, pessoas como Juel, que não haviam feito nada, conseguiam denegrir as suas proezas e impedi-lo de obter o reconhecimento que lhe era devido.
Mas ele ainda não estava arrumado. "Sou capaz de encontrar o Arne Olufsen", afirmara ao general Braun a noite passada. Juel começara a levantar objecções, mas Peter passara por cima dele. "Dê-me vinte e quatro horas. Se ele não estiver detido até amanhã à noite, chame a Gestapo."
Braun acedera.
Arne não regressara à caserna, tão-pouco estava com os pais em Sande, por isso só podia estar escondido em casa de um outro espião. Só que naquele momento estariam todos a tentar não dar nas vistas. Todavia, uma pessoa que provavelmente conheceria a maior parte dos espiões era Karen Duchwitz. Fora namorada de Poul Kirke, e o irmão dela andava no colégio com o primo de Poul. Não era espia, Peter tinha a certeza, por isso não havia motivos para não dar nas vistas. Poderia levar Peter até Arne.
Era uma hipótese remota, mas não lhe restava mais nenhuma.
Misturou o ovo quente com sal e um pouco de manteiga, depois levou o tabuleiro para o quarto. Sentou Inge e deu-lhe uma colher de ovo. Ficou com a sensação de que ela não gostara muito. Provou-o, e estava óptimo, de modo que lhe deu outra colher. Dali a instantes, cuspiu-o, como um bebé. O ovo escorreu-lhe pelo queixo e caiu no peitilho da camisa de dormir.
Peter olhou, desesperado. Ela sujara-se por diversas vezes ao longo das duas últimas semanas. Era um novo desenvolvimento. - A Inge nunca teria feito isto - comentou.
Pousou o tabuleiro, deixou-a e dirigiu-se ao telefone. Ligou para o hotel em Sande e perguntou pelo pai, que começava sempre a trabalhar cedo. Quando foi feita a ligação, disse: - Tinha razão. Chegou o momento de meter a Inge num lar.
Peter observou o Teatro Real, um edifício do século XIX com cúpula em pedra amarela. A fachada tinha esculpidas colunas, pilastras, capitéis, modilhões, festões, escudos, liras, máscaras, querubins, sereias e anjos. No telhado viam-se urnas, tocheiros e criaturas de quatro patas com asas e troncos humanos. - É um pouco exagerado - comentou. - Mesmo para um teatro.
Tilde Jespersen riu-se.
Estavam sentados na esplanada do Hotel d'Angleterre. Tinham uma boa vista de Kongens Nytorv, a maior praça de Copenhaga. No interior do teatro, os alunos da escola de bailado assistiam ao ensaio geral de Les Sylphides, a actual produção. Peter e Tilde estavam à espera de que Karen Duchwitz saísse.
Tilde fingia ler o jornal do dia. A parangona na primeira página dizia: "LENINEGRADO EM CHAMAS." Até os nazis haviam ficado surpreendidos com o bom ritmo a que a campanha russa estava a decorrer, afirmando que o seu êxito "suplantava a imaginação".
Peter conversava para aliviar a tensão. Até ali, o plano fora um completo fracasso. Karen estivera sob vigilância todo o dia e não fizera nada senão ir à escola. Mas a ansiedade infrutífera era debilitante, e levava a que se cometessem erros, por isso procurou descontrair. Perguntou-lhe: - Achas que os arquitectos fazem os teatros e as óperas deliberadamente intimidantes, para desencorajar as pessoas vulgares de lá entrarem?
- Consideras-te uma pessoa vulgar?
- Claro. - A entrada tinha de cada lado duas estátuas verdes de figuras sentadas, em tamanho maior do que o natural. - Quem são aqueles dois?
- Holberg e Oehlendschlãger.
Reconheceu os nomes. Tinham ambos sido dois grandes dramaturgos dinamarqueses. - Não gosto muito de drama... demasiados discursos. Prefiro ver um filme, algo que me faça rir, Buster Keaton ou o Bucha e o Estica. Viste aquele em que os sujeitos estavam a caiar uma sala e entra alguém com uma tábua ao ombro? - Riu-se da lembrança. - Quase caí da cadeira de tantas gargalhadas.
Ela deitou-lhe um dos seus olhares enigmáticos. - Agora surpreendeste-me. Não te imaginava apreciador de comédias inferiores.
- O que imaginaste que eu gostava?
- Filmes do Oeste, onde é precisa a força das armas para que a justiça triunfe.
- Tens razão, esses também me agradam. E tu? Gostas de teatro? Os copenhaguenses aprovam a cultura em teoria, mas a maior parte nunca entrou naquele edifício.
- Gosto de ópera; e tu?
- Bem... as melodias ainda vá, mas as histórias são estúpidas. Ela sorriu. - Nunca as vi por esse prisma, mas tens razão. E então
o bailado?
- Não vejo a utilidade. E o guarda-roupa é muito peculiar. Para ser sincero, acho os collants dos homens um pouco embaraçosos.
Ela voltou a dar uma gargalhada. - Oh, Peter, és tão engraçado, mas gosto de ti na mesma.
Não fora sua intenção ser engraçado, mas aceitou o elogio com boa disposição. Olhou para a fotografia na sua mão. Trouxera-a do quarto de Poul Kirke. Mostrava Poul sentado numa bicicleta com Karen empoleirada no guiador. Vestiam ambos calções. Karen tinha umas pernas compridas fabulosas. Pareciam um casal tão feliz, cheio de energia e divertido, que por um momento Peter lamentou que Poul tivesse morrido. Teve de se lembrar austeramente de que Poul escolhera ser espião e escarnecer da lei.
A finalidade da fotografia era ajudá-lo a identificar Karen. Era atraente, com um grande sorriso e uma cabeleira volumosa aos caracóis. Parecia a antítese de Tilde, que era pequena, de feições bem proporcionadas num rosto redondo. Alguns homens achavam Tilde frígida, em virtude de repelir as provocações deles, "mas eu é que sei", pensou Peter.
Não haviam comentado o fiasco no hotel em Bornholm. Peter sentia-se demasiado embaraçado para tocar no assunto. Não ia pedir desculpa; isso seria aumentar ainda mais a humilhação. Mas começava a formar-se um plano no seu subconsciente, algo tão dramático que preferia pensar nele apenas muito vagamente. - Aí vem ela - anunciou Tilde.
Peter olhou para o outro lado da praça e viu um grupo de pessoas jovens sair do teatro. Detectou Karen de imediato. Trazia um chapéu de palha dura inclinado e um vestido de Verão amarelo-mostarda com saia aos folhos que dançava sedutoramente à volta dos seus joelhos. A fotografia a preto e branco não mostrava a pele branca e o cabelo ruivo flamejante, nem tão-pouco fizera justiça ao ar de energia que chamara a atenção de Peter mesmo de longe. Parecia estar a fazer uma entrada no palco do teatro, em vez de descer meramente as escadas exteriores.
Atravessou a praça e virou na artéria principal, a Stroget. Peter e Tilde levantaram-se.
- Antes de irmos - disse Peter.
- O que é?
- Vens ao meu apartamento esta noite?
- Alguma razão em especial?
- Sim, mas preferia não explicar.
- Está bem.
- Obrigado. - Não disse mais nada, partindo apressado atrás de Karen. Tilde seguia-o à distância, como tinha sido previamente acordado.
A Stroget era uma rua estreita cheia de pessoas às compras e autocarros, frequentemente bloqueados por carros mal estacionados.
Duplicando as multas e autuando todos os carros resolvia-se o problema, achava Peter. Não perdeu de vista o chapéu de palha de Karen. Rezou para que ela não se dirigisse simplesmente para casa.
Ao fundo da Stroget ficava a praça da câmara municipal. Aqui, o grupo de alunos dispersou. Karen continuou a caminhar apenas com uma das raparigas, conversando animadamente. Peter aproximou-se mais. Passaram o jardim Tivoli e pararam, como se se fossem separar, mas prosseguiram a conversa. Pareciam bonitas e despreocupadas ao sol da tarde. Peter perguntou-se se duas raparigas teriam muito mais que conversar uma com a outra depois de terem passado o dia inteiro juntas.
Por fim, a amiga de Karen encaminhou-se para a estação principal e Karen seguiu na direcção contrária. As esperanças de Peter aumentaram. Tinha um encontro com alguém da rede de espiões? Seguiu-a, mas para seu desânimo, ela aproximou-se de Vesterport, uma estação de caminhos-de-ferro suburbanos onde apanharia o comboio para a aldeia natal de Kirstenslot.
Assim não. Restavam-lhe apenas algumas horas. Era evidente que ela não iria levá-lo a um dos da rede. Teria de forçar a situação.
Alcançou-a à entrada da estação. - Queira desculpar - disse. - Preciso de falar consigo.
Ela olhou-o por instantes e continuou a andar. - O que é? - perguntou com fria cortesia.
- Poderíamos conversar só por um minuto?
Transpôs a entrada e olhou para as escadas da plataforma. - Estamos a conversar.
Ele fingiu-se nervoso. - Estou a correr um risco enorme só de estar aqui a falar consigo.
Conseguira prender-lhe a atenção. Parou na plataforma e olhou à sua volta, com nervosismo. - Mas o que vem a ser isto?
Tinha uns olhos magníficos, apercebeu-se: de um verde-cristalino. - É sobre o Arne Olufsen. - Viu o medo naqueles olhos e ficou grato. O seu instinto não falhara. Ela sabia algo.
- O que se passa com ele? - Conseguiu manter a voz baixa e uniforme.
- Não é amiga dele?
- Não. Conheci-o, costumava sair com um amigo dele. Mas na verdade não o conheço. Por que me está a perguntar?
- Sabe onde ele está?
- Não.
Falara com firmeza, e pensou com desânimo que ela parecia estar a dizer a verdade.
Mas ainda era cedo para desistir. - Poderia dar-lhe um recado?
Ela hesitou, e o coração de Peter encheu-se de esperança. Calculou que ela estivesse a perguntar-se se haveria de mentir ou não. - Possivelmente - redarguiu passado um momento. - Não posso ter a certeza. Que tipo de recado?
- Sou da polícia. Ela recuou, assustada.
- Não fique preocupada, estou do seu lado. - Viu que ela não sabia se havia de acreditar nele. - Não tenho nada que ver com o Departamento de Segurança. Estou nos acidentes de viação. Mas o nosso serviço é mesmo ao lado do deles, e por vezes ouço o que se passa.
- O que foi que ouviu?
- O Arne corre grande perigo. O Departamento de Segurança sabe onde ele está escondido.
- Meu Deus!
Peter reparou que ela não perguntara o que era o Departamento de Segurança, ou que crime teria Arne supostamente cometido, e também não mostrara surpresa por ele estar escondido. Por conseguinte, devia saber no que Arne estava envolvido, concluiu com uma sensação de triunfo.
Assim sendo, poderia detê-la e interrogá-la. Mas tinha um plano melhor. Conferiu um tom de urgência dramática à sua voz. - Vão prendê-lo esta noite.
- Oh, não!
- Se tem maneira de contactar o Arne, por favor, por amor de Deus, tente fazer-lhe chegar um aviso o mais depressa possível.
- Não creio...
- Não posso arriscar-me a ser visto consigo. Lamento. Dê tudo por tudo. - Virou-se e afastou-se rapidamente.
No cimo das escadas passou por Tilde, que fingia consultar o horário. Ela não o olhou, mas soube que o vira e agora iria seguir Karen.
Do outro lado da rua, um homem de avental de couro descarregava grades de cerveja de uma carroça puxada por dois cavalos grandes. Peter colocou-se atrás da carroça. Tirou o chapéu mole, enfiou-o no bolso do casaco e substituiu-o por um boné com pala. Sabia por experiência que esta troca simples operara uma mudança extraordinária no seu aspecto. Não passaria num exame mais minucioso, mas num olhar fortuito, parecia uma pessoa completamente diferente.
Meio escondido pela carroça, observou a entrada da estação. Uns instantes depois apareceu Karen.
Tilde vinha alguns passos atrás dela.
Peter foi atrás de Tilde. Viraram numa esquina e seguiram pela rua que ficava entre o Tivoli e a estação principal dos caminhos-de-ferro.
No quarteirão seguinte, Karen virou para a sede dos correios, um grandioso edifício clássico de tijolo vermelho e pedra cinzenta. Tilde seguiu-a até lá dentro.
Ia efectuar um telefonema, pensou Peter com satisfação. Precipitou-se para a entrada do pessoal. Mostrou o distintivo da polícia à primeira pessoa que lhe apareceu, uma mulher jovem, e ordenou: - Chame-me o chefe, depressa.
Alguns instantes depois, surgiu um homem cabisbaixo com um fato preto muito usado. - Em que posso ajudá-lo?
- Uma jovem de vestido amarelo acaba de entrar no átrio principal - disse-lhe Peter. - Não quero que ela me veja, mas preciso de saber o que faz.
O chefe mostrou-se encantado. Seria provavelmente a acção mais excitante que alguma vez acontecera nos correios, pensou Peter. - Valha-me Deus! - exclamou o homem. - É melhor vir comigo.
Seguiu apressado por um corredor e abriu uma porta. Peter avistou um balcão com uma fila de bancos altos virados para janelas pequenas. O chefe entrou. - Acho que a estou a ver - disse. - Cabelo ruivo encaracolado e um chapéu de palha?
- É essa mesma.
- Ninguém diria que é uma criminosa.
- O que é que ela está a fazer?
- A consultar uma lista telefónica. É espantoso como alguém tão bonito...
- Se ela fizer um telefonema, preciso de ouvir. O chefe hesitou.
Peter não tinha o direito de escutar telefonemas particulares sem um mandado, mas acalentava a esperança de que o chefe o desconhecesse. - É muito importante - disse-lhe.
- Não sei se posso...
- Não se preocupe, assumirei a responsabilidade.
- Ela está a pousar a lista telefónica.
Peter não ia deixar Karen telefonar a Arne sem escutar. Se necessário, puxaria da arma e ameaçaria aquele estúpido funcionário dos correios, decidiu. - Tenho de insistir.
- Nós aqui temos regras.
- Mesmo assim...
- Ah! - exclamou o chefe. - Ela pousou a lista, mas não se dirige ao balcão. - O seu rosto deixou transparecer o alívio. - Vai-se embora!
Peter praguejou de frustração e correu para a saída. Entreabriu a porta e espreitou lá para fora. Viu Karen atravessar a rua. Esperou que Tilde aparecesse, seguindo Karen. Depois foi atrás.
Ficara decepcionado, mas não derrotado. Karen sabia o nome de alguém que poderia entrar em contacto com Arne. Procurara esse mesmo nome na lista telefónica. Por que raio não telefonara à pessoa? Talvez receasse - e com razão - que a conversa pudesse ser escutada pela polícia ou pelo pessoal da segurança alemã em vigilância de rotina.
Mesmo assim, se não quisera o número de telefone, devia ter andado à procura da morada. E agora, se a sorte continuasse a ser aliada de Peter, encaminhava-se para essa morada.
Deixou Karen desaparecer de vista mas continuou com Tilde debaixo de olho. Era sempre um prazer caminhar atrás de Tilde. Que bom ter um pretexto para observar a sua rotunda retaguarda. Saberia que a estava a olhar? Exagerava deliberadamente o menear das ancas? Não fazia ideia. Quem podia dizer o que ia na cabeça de uma mulher?
Atravessaram a pequena ilha de Christianborg e seguiram pelo passeio marítimo, com o porto à direita e os edifícios antigos da ilha do governo à esquerda. O ar da cidade aquecido pelo sol era refrescado aqui pela brisa salgada do Mar Báltico. O amplo canal estava cheio de cargueiros, barcos de pesca, ferries e navios das marinhas dinamarquesa e alemã. Dois jovens marinheiros colocaram-se ao lado de Tilde e tentaram meter conversa com ela, mas ela falou-lhes com dureza e os rapazes dispersaram de imediato.
Karen foi até ao palácio de Amalienborg, depois virou para dentro. Seguindo Tilde, Peter atravessou a ampla praça formada pelas quatro mansões rococó onde vivia a família real. Dali dirigiram-se para Nybo-der, o bairro de pequenas casas originalmente construídas como acomodações baratas para marinheiros.
Entraram numa rua chamada St. Pauis Gade. Peter conseguia ver Karen ao longe, a olhar para uma fila de casas amarelas com telhados vermelhos, aparentemente à procura de um número. Tinha uma forte sensação excitante de estar perto da sua presa.
Karen estacou e olhou para um lado e o outro da rua, como se a verificar se estava a ser observada. Evidentemente, era tarde de mais para isso, no entanto ela era uma amadora. De qualquer forma, não pareceu aperceber-se de Tilde, e Peter estava demasiado longe para ser reconhecido. Bateu a uma porta.
Quando Peter alcançou Tilde, a porta abriu-se. Não conseguiu ver quem lá estava. Karen disse algo, entrou, e a porta fechou-se. Era o número cinquenta e três, reparou Peter.
Tilde indagou: - Achas que Arne está ali dentro?
- Ou ele, ou alguém que sabe onde ele está.
- O que queres fazer?
- Esperar. - Olhou para ambos os lados da rua. Em frente havia uma loja de esquina. - Além. - Atravessaram a rua e puseram-se a olhar para a janela. Peter acendeu um cigarro.
Tilde disse: - Provavelmente a loja tem telefone. Deveríamos ligar para a sede? Assim fazíamos uma entrada em força. Não sabemos quantos espiões podem lá estar dentro.
Peter pensou pedir reforços. - Por enquanto, não - disse. - Não temos a certeza do que está a acontecer. Vejamos qual o desenvolvimento.
Tilde anuiu. Retirou a boina azul-celeste e colocou um lenço de padrão indefinido na cabeça. Peter viu-a esconder os caracóis louros debaixo do lenço. Pareceria um bocado diferente quando Karen saísse da casa, tendo menores probabilidades de reparar nela.
Tilde tirou o cigarro dos dedos de Peter, meteu-o na boca, aspirou o fumo e devolveu-lhe o cigarro. Era um gesto íntimo, e sentiu-se quase como se ela o tivesse beijado. Apercebeu-se de um rubor e desviou o olhar, na direcção do número cinquenta e três.
A porta abriu-se e Karen saiu.
- Olha - disse ele, e Tilde seguiu o seu olhar.
A porta fechara-se atrás de Karen e ela afastou-se sozinha.
- Raios - protestou Peter.
- O que sabemos neste momento? - inquiriu Tilde.
Peter pensou rapidamente. Suponhamos que Arne estava dentro da pequena casa amarela. Nesse caso, Peter precisava de chamar reforços, entrar na casa à força, prendê-lo e quem quer que estivesse com ele. Por outro lado, Arne podia estar noutro sítio qualquer, e Karen ir a caminho de lá; e nesse caso Peter precisava de segui-la.
Ou podia não ter conseguido nada e decidido desistir e voltar para casa.
Tomou uma decisão. - Vamos separar-nos - disse a Tilde. - Tu segues a Karen. Eu telefono para a sede e faço uma rusga à casa.
- Está bem. - Tilde apressou-se a seguir Karen.
Peter entrou na loja. Era um daqueles estabelecimentos que vende de tudo, desde legumes e pão a artigos domésticos de primeira necessidade como sabão e fósforos. Viam-se latas de comida nas prateleiras, e o chão estava obstruído por molhos de lenha e sacas de batatas. Tinha um ar porco mas próspero. Mostrou o distintivo da polícia a uma mulher de cabelo grisalho de avental com nódoas. - Tem um telefone?
- Terei de lhe cobrar.
Remexeu nos bolsos à procura de moedas. - Onde está? - perguntou, cheio de impaciência.
Ela indicou com a cabeça na direcção de uma cortina ao fundo. - Por ali.
Atirou algumas moedas para cima do balcão e entrou numa pequena saleta que tresandava a gatos. Agarrou bruscamente no telefone, ligou para Politigaarden e atendeu Conrad. - Acho que posso ter descoberto o esconderijo de Arne. Número cinquenta e três, St. Pauis Gade. Chama o Dresler e o Ellegard e venham para aqui num carro o mais rapidamente que puderem.
- É para já - respondeu Conrad.
Peter desligou e correu para fora. Demorara-se menos de um minuto. Se alguém tivesse saído da casa durante esse tempo, ainda seria visível na rua. Olhou para cima e para baixo. Viu um velho com uma camisa sem colarinho a passear um cão artrítico, movendo-se ambos com uma lentidão custosa. Um pónei forte puxava uma carroça de fundo plano com um sofá forrado a pele todo esburacado. Um grupo de rapazes jogava futebol na rua, usando uma velha bola de ténis já sem pêlo. Nem sinal de Arne. Atravessou a rua.
Concedendo-se um momento, pensou na satisfação que seria deter o filho mais velho da família Olufsen. Que melhor forma de vingar a humilhação de Axel Flemming havia todos aqueles anos! Ocorrendo imediatamente após a expulsão do filho mais novo do colégio, o desmascarar de Arne como espião significaria sem dúvida o fim da hegemonia do pastor Olufsen. Como poderia pavonear-se e pregar quando ambos os filhos haviam seguido por maus caminhos? Seria obrigado a demitir-se. O pai de Peter ficaria satisfeito.
A porta do número cinquenta e três abriu-se. Peter enfiou a mão debaixo do casaco e tocou no cabo da pistola no coldre de usar ao ombro quando Arne saiu da casa.
Peter encheu-se de júbilo. Arne rapara o bigode e cobrira o cabelo preto com um boné de operário, mas Peter toda a vida o conhecera, e identificou-o imediatamente.
Passado um momento, o triunfo deu lugar à cautela. Era frequente haver problemas quando um agente tentava efectuar uma detenção sozinho. A possibilidade de fuga afigurava-se tentadora ao suspeito que enfrentava apenas um polícia. Sendo um detective à paisana, e faltando-lhe a autoridade de um uniforme, pior ainda. Se houvesse luta, os transeuntes não tinham maneira de saber que um dos dois era um agente, e podiam intervir a favor do lado errado.
Já antes Peter e Arne se tinha envolvido numa briga, havia doze anos, na altura da discussão entre as famílias. Peter era maior, mas Arne encontrava-se em boa forma e forte de todo o desporto que praticava. O resultado não era inequívoco. Haviam trocado socos, depois sido apartados. Naquele momento, Peter tinha uma arma. Mas era possível que Arne também tivesse.
Arne bateu com a porta da casa e virou para a rua, avançando na direcção de Peter.
Quando se aproximaram, Arne evitou o olhar dele, caminhando pelo lado de dentro do passeio, cosido com as paredes da casa, à maneira de um fugitivo. Peter seguia pela berma, observando furtivamente o rosto de Arne.
Quando estavam à distância de dez metros, Arne deitou um olhar furtivo ao rosto de Peter. Este encarou-o, observando a sua expressão. Viu um franzimento de perplexidade, depois o reconhecimento, a seguir choque, o medo e o pânico.
Arne parou, momentaneamente estarrecido.
- Estás detido - disse Peter.
Arne recuperou parcialmente a compostura, e por um momento o familiar sorriso desprendido estampou-se-lhe no rosto. - Peter Pão de Gengibre - referiu, usando uma alcunha da infância.
Peter percebeu que Arne se preparava para fugir. Sacou da arma. - Deita-te no chão de bruços com as mãos atrás das costas.
Arne pareceu mais preocupado do que assustado. Num rasgo momentâneo de perspicácia, Peter percebeu que Arne não tinha medo da arma, mas de outra coisa.
Arne provocou-o, em tom de desafio: - Estás preparado para me abater?
- Se necessário - redarguiu Peter. Estendeu a arma ameaçadoramente, mas na verdade estava desesperado por capturar Arne vivo. A morte de Poul Kirke prejudicara o progresso da investigação. Queria interrogar Arne, não matá-lo.
Arne sorriu enigmaticamente, depois virou-se e fugiu.
Peter mantinha o braço da arma em linha recta e olhou ao longo do cano. Apontou às pernas de Arne, mas era impossível disparar rigorosamente com uma pistola, e sabia que poderia atingir qualquer parte do corpo de Arne, ou nenhuma. Só que Arne se estava a distanciar cada vez mais, e as hipóteses de Peter diminuíam a cada fracção de segundo que passava.
Peter puxou o gatilho.
Arne continuou a correr.
Peter disparou sucessivamente. Após o quarto tiro, Arne pareceu cambalear. Peter tornou a disparar e Arne caiu, atingindo o chão com o embate forte de um peso morto, virando-se de costas.
- Oh, meu Deus, não, outra vez não - murmurou Peter. Avançou a correr, continuando a apontar a arma a Arne.
A figura no chão jazia imóvel. Peter ajoelhou ao lado dela.
Arne abriu os olhos. O seu rosto estava lívido da dor. - Meu porco estúpido, devias ter-me morto - disse.
Tilde veio ao apartamento de Peter naquela noite. Vestia uma blusa nova, cor-de-rosa, com flores bordadas nos punhos. O cor-de-rosa ficava-lhe bem. Realçava a sua feminilidade. O tempo estava quente e ela parecia não trazer nada por debaixo da blusa.
Acompanhou-a à sala de estar. O sol do entardecer iluminava a sala com um brilho estranho, conferindo um aspecto indistinto às mobílias e aos quadros nas paredes. Inge estava sentada numa cadeira junto à lareira, a olhar para a sala com o mesmo ar inexpressivo de sempre.
Peter atraiu Tilde a si e beijou-a. Ela ficou estática por um momento, surpreendida; depois retribuiu o beijo. Ele acariciou-lhe os ombros e as ancas.
Ela afastou-se e olhou-o no rosto. Ele viu o desejo nos seus olhos, mas também alguma perturbação. Olhou para Inge. - Isto está certo? - perguntou.
Ele acariciou-lhe o cabelo. - Chhh. - Beijou-a de novo, avidamente. Tornaram-se mais impetuosos. Sem interromper o beijo, desabotoou-lhe a blusa, pondo a descoberto os seios macios. Acariciou a pele morna.
Ela afastou-se de novo, com a respiração ofegante. Os seios subiam e desciam ao arfar. - E então ela? - perguntou. - E a Inge?
Peter olhou para a mulher. Observava ambos com uma expressão vaga, não evidenciando qualquer emoção. - Não está ali ninguém - disse a Tilde. - Ninguém mesmo.
Ela fitou-o. O rosto dela evidenciava compaixão e compreensão com um misto de curiosidade e volúpia. - Está bem - disse. - Está bem.
Ele enterrou a cabeça nos seios nus.
A pacata aldeia de Jansborg era assustadora ao lusco-fusco. Os aldeãos pareciam deitar-se cedo, de modo que as ruas estavam desertas e as casas escuras e silenciosas. Harald teve a sensação de se encontrar a percorrer um lugar onde acontecera algo medonho, sendo ele a única pessoa que o desconhecia.
Estacionou a motorizada no exterior da estação dos caminhos-de-ferro. Não dava tanto nas vistas quanto temera, pois ao lado encontrava-se um Opel Olympia cabriolei movido a gás, com uma estrutura de madeira semelhante a uma cabana por cima do tejadilho, na retaguarda, para guardar o saco de combustível gigante.
Abandonou a mota e afastou-se a pé até ao colégio envolto pela crescente escuridão.
Depois de ter escapado aos guardas em Sande, voltara para a sua velha cama e dormira profundamente até ao meio-dia. A mãe acordara-o, alimentara-o com um substancial almoço de carne de porco fria e batatas, metera-lhe dinheiro no bolso e suplicara-lhe que lhe dissesse onde estava a morar. Amolecido pelo afecto dela e pela inesperada brandura do pai, informara-a de que estava instalado em Kirstenslot. No entanto, não mencionara a igreja abandonada, receando preocupá-la por estar a dormir em más condições, e deixara-a com a impressão de ser um hóspede no casarão.
Depois propusera-se atravessar novamente a Dinamarca de oeste para leste. Assim, na noite do dia seguinte, aproximava-se do antigo colégio.
Decidira revelar ali a película antes de seguir para Copenhaga e entregá-la a Arne, que se encontrava escondido em casa de Jens Toksvig, no bairro de Nyboder. Precisava de se certificar de que as fotografias tinham ficado boas e as imagens no rolo, nítidas. As máquinas fotográficas podiam avariar-se, e os fotógrafos, cometer erros. Não queria que Arne arriscasse a vida a viajar até Inglaterra com uma película que estivesse em branco. O colégio tinha a sua própria câmara escura, com todos os químicos necessários à revelação. Tik Duchwitz era secretário do Clube de Fotografia e tinha uma chave.
Harald evitou os portões principais e atalhou pela quinta vizinha para entrar no colégio pelos estábulos. Eram dez horas. Os rapazes mais novos tinham-se já deitado, e os intermédios provavelmente fariam os preparativos. Somente os finalistas ainda estavam a pé, e a maioria deles nas suas salas de estudo. No dia seguinte era a formatura e faziam as malas para regressarem a casa.
Atravessando o familiar aglomerado de edifícios, Harald resistiu à tentação de avançar furtivamente junto às paredes e percorreu os espaços abertos. Se caminhasse com naturalidade e confiança, afigurar-se-ia, a um olhar fortuito, ser um finalista que se dirigia ao seu quarto. Ficou surpreendido com a dificuldade de fingir uma identidade que fora genuinamente sua havia escassos dez dias.
Não viu ninguém no caminho para a Casa Vermelha, o edifício onde Tik e Mads tinham os respectivos quartos. Era impossível esconder-se enquanto subia as escadas para o último piso: se encontrasse alguém, seria imediatamente reconhecido. Mas a sorte sorriu-lhe. O corredor de cima estava deserto. Passou a correr pelos quartos do encarregado do internato, o Sr. Moller. Abriu silenciosamente a porta de Tik e entrou.
Tik estava sentado na tampa da mala, a tentar fechá-la. - Tu!? - exclamou. - Santo Deus!
Harald sentou-se ao lado dele e ajudou-o a encaixar os fechos. - Ansioso por voltares para casa?
- Não tenho essa sorte - respondeu Tik. - Vou ser exilado para Aarhus. Tenho de passar o Verão a trabalhar numa filial do banco da família. É o meu castigo por ter ido àquele clube de jazz contigo.
- Oh. - Harald contara ansiosamente com a companhia de Tik em Kirstenslot, mas decidiu naquele momento que não havia necessidade de mencionar que estava a viver ali.
- O que vieste cá fazer? - inquiriu o amigo depois de fecharem a mala e colocarem as correias.
- Preciso da tua ajuda.
Tik sorriu. - O que é agora?
Harald tirou o pequeno rolo de 35mm do bolso das calças. - Quero revelar isto.
- Por que não o levas a uma loja?
- Porque seria detido.
O sorriso de Tik desapareceu e ficou muito sério. - Estás envolvido numa conspiração contra os nazis.
- Algo do género.
- Corres perigo.
- Sim.
Ouviu-se bater à porta. Harald atirou-se para o chão e enfiou-se debaixo da cama.
Tik perguntou: - Sim?
Harald ouviu a porta abrir-se e a voz de Moller dizer: - Apaga as luzes, por favor, Duchwitz.
- Sim, senhor.
- Boa noite.
- Boa noite, senhor.
A porta fechou-se e Harald rebolou de baixo da cama.
Ouviram Moller avançar pelo corredor, dando as boas noites a cada rapaz. Ouviram os passos dele regressando ao seu quarto, depois a porta fechar-se. Sabiam que só voltaria a aparecer de manhã, a menos que houvesse uma emergência.
Mantendo a voz baixa, Harald perguntou a Tik: - Ainda tens a chave da câmara escura?
- Sim, mas primeiro teríamos de entrar nos laboratórios. - O edifício de ciências ficava trancado de noite.
- Podemos partir um vidro nas traseiras.
- Quando eles virem o vidro partido, saberão que entrou lá alguém.
- O que te interessa? Vais-te embora amanhã!
- Está bem.
Descalçaram-se e avançaram sorrateiramente pelo corredor. Desceram as escadas em silêncio e voltaram a calçar-se quando chegaram à porta. Depois saíram para o exterior.
Passava agora das onze e anoitecera. Aquela hora, normalmente, não andaria ninguém a circular pelos terrenos, por isso era preciso ter cuidado não fosse alguém vê-los de uma janela. Felizmente não havia luar. Afastaram-se à pressa da Casa Vermelha, sendo os seus passos abafados pela relva. Quando chegaram à igreja, Harald olhou para trás e viu uma luz num dos quartos dos mais velhos. Uma figura atravessou a janela e estacou. Uma fracção de segundo depois, Harald e Tik tinham virado a esquina da igreja.
- Tenho a certeza de que deram por nós - murmurou Harald. - Há uma luz acesa na Casa Vermelha.
- Os quartos do pessoal dão todos para as traseiras - frisou Tik. - Se alguém nos viu, terá sido por um rapaz. Nada de preocupante.
Harald só esperava que ele tivesse razão.
Contornaram a biblioteca e aproximaram-se do edifício de ciências pelas traseiras. Apesar de novo, fora concebido para condizer com as estruturas mais antigas ao redor, por isso tinha paredes de tijolo vermelho e janelas com caixilhos de madeira e ferro, cada uma constituída por seis vidraças.
Harald descalçou um sapato e bateu numa janela com o tacão. Parecia bastante forte. - Quando estás a jogar futebol, o vidro é tão frágil - murmurou. Colocou a mão dentro do sapato e bateu com força na vidraça. Partiu-se com um ruído semelhante à trombeta do Juízo Final. Os dois rapazes não se mexeram, apavorados com o estrondo; mas o silêncio instalou-se como se nada tivesse acontecido. Não havia ninguém nos edifícios mais próximos - a igreja, a biblioteca e o ginásio - e, quando os batimentos cardíacos de Harald acalmaram, apercebeu-se de que o estrondo passara despercebido.
Serviu-se do sapato para fazer saltar as extremidades denteadas do caixilho. Caíram para dentro em cima de um banco de laboratório. Enfiou um braço e destrancou a janela. Servindo-se ainda do sapato para proteger a mão dos golpes, introduziu-a lá dentro e afastou os estilhaços. A seguir transpô-la.
Tik imitou-o e depois fecharam a janela.
Encontravam-se no laboratório de química. Cheiros acres a ácidos e amoníaco chegaram às narinas de Harald. Não conseguia ver quase nada, mas a sala era-lhe familiar, e alcançou a porta sem ir de encontro a nada. Passaram ao corredor e encontraram a porta para a câmara escura.
Uma vez os dois lá dentro, Tik trancou a porta e acendeu a luz. Harald apercebeu-se de que, da mesma maneira que não deixava entrar luz, a câmara escura também não permitia a sua saída.
Tik arregaçou as mangas e meteu mãos à obra. Deitou água quente num lavatório e mexeu nos químicos que estavam numa fila de frascos. Tirou a temperatura à água no lavatório e acrescentou água quente até se dar por satisfeito. Harald entendia os princípios, mas nunca tentara fazê-lo pessoalmente, por isso tinha de confiar no amigo.
E se algo corresse mal - o obturador não tivesse funcionado convenientemente, ou a película estivesse velada, ou a imagem desfocada? As fotografias não teriam utilidade. Encontraria coragem para tentar tudo de novo? Voltar a Sande, trepar aquela vedação no escuro, infiltrar-se à socapa na instalação, esperar pelo- nascer do Sol, tirar mais fotografias, depois tentar a fuga em pleno dia, tudo novamente? Não tinha a certeza de conseguir arranjar coragem suficiente.
Quando tudo ficou a postos, Tik marcou um temporizador e apagou a luz. Harald permaneceu pacientemente sentado no escuro enquanto Tik desenrolava a película exposta e iniciava o processo de revelação das fotografias - isto, se houvesse fotografias. Explicou que estava a mergulhar a película primeiro em pirogalhol, que reagiria com os sais de prata para formar uma imagem visível. Sentaram-se e aguardaram que o temporizador desse sinal; depois Tik mergulhou a película em ácido acético para parar a reacção. Por fim, colocou-a em hipossulfito de soda para fixar a imagem.
Finalmente, disse: - Já deve estar. Harald susteve a respiração.
Tik acendeu a luz. Harald ficou encandeado por alguns momentos e não conseguiu ver nada. Quando a sua visão se desanuviou, observou a extensão de película acinzentada nas mãos de Tik. Harald arriscara a vida por aquilo. Tik aproximou-a da luz. A princípio, Harald não conseguiu distinguir quaisquer imagens, e pensou que teria de repetir tudo. Depois lembrou-se de que estava a olhar para um negativo, em que o preto aparecia branco e vice-versa; e começou a distinguir as formas. Viu uma imagem inversa da grande antena rectangular que tanto o intrigara da primeira vez que a encontrara, havia quatro semanas. Conseguira.
Olhou para as filas de imagens e reconheceu cada uma: a base rotativa, o molho de cabos, a grelha tirada de diversos ângulos, duas máquinas mais pequenas com as suas antenas inclinadas e por fim a última fotografia, uma vista geral das três estruturas, tirada quando estava à beira do pânico. - Ficaram boas! - exclamou, triunfante. - Estão fantásticas!
Tik pareceu pálido. - Que fotografias são estas? - inquiriu, com voz assustada.
- São de uma nova maquinaria que os alemães inventaram para detectar aviões em aproximação.
- Quem me dera não ter perguntado. Tens consciência de qual o castigo para o que estamos a fazer?
- Eu tirei as fotografias.
- E eu revelei a película. Deus do céu, podia ser enforcado.
- Eu avisei-te que era algo desta natureza.
- Eu sei, mas não me apercebi bem.
- Desculpa.
Tik enrolou a película e colocou-a no recipiente cilíndrico. - Toma lá, guarda-o - disse. - Vou voltar para a cama para esquecer que isto alguma vez aconteceu.
Harald guardou a caixa no bolso das calças.
Ouviram então vozes.
Tik gemeu.
Harald ficou estático, à escuta. A princípio não conseguiu perceber as palavras, mas teve a certeza de que os sons vinham de dentro do edifício, não do exterior. Depois ouviu a voz característica de Heis afirmar: - Não me parece que esteja ninguém aqui.
A voz seguinte pertencia a um rapaz. - Garanto que eles vieram nesta direcção, senhor.
Harald carregou o cenho a Tik. - Parece-me o Woldemar Borr.
- Claro - gemeu Harald. Borr era o nazi do colégio. Devia ter sido ele que os vira da janela. Mas que azar; qualquer outro rapaz teria ficado de boca fechada.
A seguir ouviu-se uma terceira voz. - Repare, há uma vidraça partida nesta janela. - Era o Sr. Moller. - Deve ter sido assim que entraram... Quem quer que sejam.
- Tenho a certeza de que o Harald Olufsen era um deles, senhor
- afirmou Borr. Parecia ufano.
Harald disse a Tik: - Vamos sair desta câmara escura. Talvez consigamos evitar que saibam que estivemos a revelar fotografias. - Apagou a luz, rodou a chave na fechadura e abriu a porta.
Todas as luzes estavam acesas, e Heis encontrava-se mesmo do outro lado.
- Oh, merda - protestou Harald.
Heis vestia uma camisa sem colarinho: preparava-se obviamente para se deitar. Olhou do alto do seu nariz afilado. - Afinal és tu, Olufsen.
- Sim, senhor.
Borr e Mr. Moller apareceram por detrás de Heis.
- Sabes que já não és aluno deste colégio - prosseguiu Heis.
- O meu dever é chamar a polícia e mandar-te prender por assalto. Harald sentiu um momento de pânico. Se a polícia encontrasse a
película no seu bolso, estaria arrumado.
- E o Duchwitz está contigo... Eu devia ter calculado - acrescentou Heis, vendo Tik por detrás de Harald. - Mas o que raio estão vocês a fazer?
Harald tinha de persuadir Heis a não chamar a polícia; mas não podia explicar em frente de Borr. Disse: - Senhor, permite-me que fale consigo a sós?
Heis hesitou.
Harald decidiu que, se Heis recusasse e chamasse a polícia, não se renderia facilmente. Tentaria fugir. Mas até onde conseguiria ir?
- Por favor, senhor - pediu. - Dê-me uma oportunidade de me explicar.
- Muito bem - respondeu Heis com relutância. - Borr, volta para a cama. E tu, Duchwitz. Sr. Moller, talvez seja melhor acompanhá-los aos quartos. - Retiraram-se todos.
Heis entrou no laboratório de química, sentou-se num banco alto e puxou do cachimbo. - Muito bem, Olufsen - disse. - O que é desta vez?
Harald procurava o que dizer. Não lhe ocorria uma mentira plausível, mas temia que a verdade fosse mais incrível do que qualquer coisa que pudesse inventar. No fim, limitou-se a tirar o pequeno cilindro do bolso e entregá-lo a Heis.
Heis tirou a película e ergueu-a contra a luz. - Parece-me uma espécie de nova instalação de rádio - referiu. - É militar?
- Sim, senhor.
- Sabes o que faz?
- Creio que detecta aviões através de feixes de ondas electromagnéticas.
- Então é o que eles estão a fazer. A Luftwaffe afirma estar a abater os bombardeiros da RAF como moscas. Isto explica-o.
- Creio que acompanham o bombardeiro e o caça que foi enviado para o interceptar, a fim de que o controlador possa orientar o caça com precisão.
Heis olhou por cima dos óculos. - Meu Deus! Apercebes-te da importância que isto tem?
- Acho que sim.
- Só existe uma maneira de os britânicos poderem ajudar os russos, e é obrigando Hitler a retirar aviões da frente russa para defender a Alemanha dos ataques aéreos.
Heis pertencera ao exército e o raciocínio militar brotou naturalmente nele. Harald disse: - Não estou a perceber aonde quer chegar.
- Bem, a estratégia só resultará enquanto os alemães puderem abater facilmente os bombardeiros. Mas se os britânicos descobrirem como eles o conseguem, podem conceber medidas de prevenção. - Heis olhou à sua volta. - Deve haver para aqui um almanaque.
Harald não percebeu para que queria ele um almanaque, mas sabia onde se encontrava. - No gabinete de física.
- Vai buscá-lo. - Heis pousou a película na bancada do laboratório e acendeu o cachimbo enquanto Harald ia à sala ao lado, tirava o almanaque da estante e o trazia. Heis folheou-o. - A próxima lua cheia é a dezoito de Julho. Aposto que haverá um grande bombardeamento aéreo nessa noite. É daqui a doze dias. Consegues fazer chegar esta película a Inglaterra até lá?
- É tarefa de outra pessoa.
- Que a sorte a acompanhe. Olufsen, sabes o perigo que corres?
- Sim.
- A pena por espionagem é a morte.
- Eu sei.
- Sempre foste corajoso. Vou dar-te uma oportunidade. - Devolveu-lhe a película. - Precisas de alguma coisa? Comida, dinheiro, combustível?
- Não, obrigado.
Heis levantou-se. - Vou acompanhar-te até lá fora.
Saíram pela porta principal. O ar nocturno refrescou a transpiração na testa de Harald. Caminharam lado a lado pelo acesso até ao portão. - Não sei o que vou dizer ao Moller - referiu Heis.
- É-me permitida uma sugestão?
- Estás à vontade.
- Podia dizer que estávamos a revelar fotografias obscenas.
- Boa ideia. Todos irão acreditar.
Chegaram ao portão, e Heis apertou a mão a Harald. - Por amor de Deus, tem cuidado, rapaz - aconselhou-o o director.
- Terei.
- Boa sorte.
- Adeus.
Harald seguiu em direcção à aldeia.
Quando chegou à curva da estrada olhou para trás. Heis continuava ao portão, a observá-lo. Harald acenou e Heis retribuiu. Depois Harald continuou a afastar-se.
Enfiou-se debaixo de um arbusto e dormiu até o Sol nascer, depois foi buscar a motorizada e seguiu para Copenhaga.
Soube-lhe bem conduzir pelos arredores da cidade ao Sol da manhã. Conseguira escapar por um triz diversas vezes, mas no fim fizera o que prometera. Ia gostar de entregar a película. Arne ficaria impressionado. Nessa altura a tarefa de Harald estaria concluída e competiria a Arne fazer chegar as fotografias à Grã-Bretanha.
Depois de ver Arne, regressaria a Kirstenslot. Teria de convencer o agricultor Nielsen a dar-lhe de novo emprego. Trabalhara apenas um dia antes de desaparecer o resto da semana. Nielsen estaria aborrecido - mas talvez necessitasse desesperadamente dos serviços de Harald e o contratasse.
Encontrar-se em Kirstenslot significava ver Karen. Ansiava pelo momento. Ela não estava interessada num envolvimento romântico consigo, nem nunca estaria, mas parecia gostar dele. Por seu lado, já se contentava em falar com ela. A ideia de beijá-la afigurava-se demasiado remota para constituir sequer um desejo.
Pôs-se a caminho de Nyboder. Arne dera a Harald a morada de Jens Toksvig. St. Paul's Gade era uma rua estreita com pequenas casas com terraço. Não havia jardins para a frente: as portas davam directamente para o passeio. Harald estacionou a motorizada em frente ao número cinquenta e três e bateu à porta. Veio abrir um polícia fardado.
Por um momento, Harald ficou estupefacto. Onde estava Arne? Devia ter sido preso...
- O que é, meu rapaz? - inquiriu o polícia com impaciência. Era um homem de meia-idade com um bigode grisalho e divisas de sargento na manga.
Harald sentiu-se inspirado. Evidenciando um pânico por demais real, perguntou: - Onde está o médico? Ele tem de vir imediatamente... Ela vai ter o bebé agora!
O polícia sorriu. O futuro pai apavorado era uma eterna figura da comédia. - Não mora aqui nenhum médico, moço.
- Mas tem de morar!
- Acalma-te, filho. Antes dos médicos já havia bebés. Agora, que morada tens?
- Doutor Thorsen, cinquenta e três, Fischers Gade. Ele tem de estar aqui!
- Número certo, rua errada. Aqui é St. Pauis Gade. Fischers Gade fica um quarteirão para sul.
- Ó meu Deus, a rua errada! - Harald virou costas e saltou para a motorizada. - Obrigado! - gritou. Abriu o regulador do vapor e afastou-se.
- Foi um prazer poder ajudar-te - disse o polícia. Harald foi até ao fundo da rua e virou a esquina. "Muito inteligente", pensou, "mas o que raio faço agora?"
Hermia passou toda a sexta-feira nas belas ruínas do castelo de Hammershus, à espera de que Arne chegasse com a película vital.
Agora era ainda mais importante do que cinco dias atrás, altura em que o enviara na missão. Nesse entretanto, o mundo mudara. Os nazis estavam decididos a conquistar a União Soviética. Detinham já a for-taleza-chave de Brest. A sua total superioridade aérea estava a devastar o Exército Vermelho.
Digby informara-a, por meio de algumas frases sinistras, da conversa tida com Churchill. O Comando de Bombardeiros envolveria todos os aviões que conseguisse fazer descolar no maior ataque aéreo da guerra, numa tentativa desesperada de obrigar a Luftwaffe a retirar-se da frente russa e dar aos soldados soviéticos a oportunidade de ripostar. Esse ataque teria lugar dali a onze dias.
Digby falara também com o irmão, Bartlett, que entretanto recuperara, tendo regressado ao activo, e de certeza iria pilotar um dos bombardeiros.
O ataque aéreo seria uma missão suicida, e o Comando de Bombardeiros ficaria fatalmente enfraquecido, a menos que conseguissem desenvolver tácticas de evasão do radar alemão nos próximos dias. E isso dependia de Arne.
Hermia persuadira o seu pescador sueco a transportá-la novamente - apesar de ele a ter avisado de que aquela seria a última vez, pois achava perigoso fazer daquilo um hábito. Ao raiar do dia, chapinhara pelos baixios, levando a bicicleta, até à praia abaixo de Hammershus. Subira a colina íngreme até ao castelo, onde se postara nas muralhas qual rainha medieval, e vira o nascer do Sol num mundo cada vez mais governado pelos nazis, arrogantes e barulhentos, transbordantes de ódio, que tanto abominava.
Durante o dia deslocara-se, mais ou menos de meia em meia hora, de uma parte das ruínas para a outra, ou percorrera a mata, ou descera à praia, para que não fosse óbvio aos turistas que estava à espera de se encontrar com alguém. Registou um misto de terrível tensão e tédio de fazer bocejar que, curiosamente, a deixou esgotada.
Procurou distrair-se recordando o último encontro de ambos. A lembrança foi agradável. Ficara chocada por fazer amor com Arne ali mesmo na erva em plena luz do dia. Mas não se arrependia. Recordá-lo-ia toda a vida.
Esperou que ele viesse no ferry da noite. A distância do porto, em Ronne, ao castelo de Hammershus era apenas de vinte quilómetros. Arne podia percorrê-los de bicicleta numa hora ou a pé em três horas. No entanto, ele não apareceu durante a manhã.
Isso deixou-a ansiosa, mas procurou não se preocupar. Sucedera o mesmo da última vez: ele perdera o barco da noite e apanhara a partida da manhã. Calculou que fosse chegar ao final daquele dia.
Da última vez ficara sentada, tensa, à sua espera, e ele só aparecera na manhã seguinte. Agora estava demasiado impaciente para tal. Quando teve a certeza de que ele não chegaria no ferry da noite, decidiu ir de bicicleta até Ronne.
Sentiu-se cada vez mais nervosa quando passou das estradas rurais solitárias para as ruas mais populosas da pequena cidade.
Convenceu-se de que seria mais seguro - dava mais nas vistas no campo e pelo menos podia perder-se na cidade; no entanto, a sensação era precisamente a contrária. Viu desconfiança nos olhos de todos, não apenas dos polícias e soldados, mas dos lojistas às portas dos estabelecimentos, dos carroceiros que conduziam os cavalos, dos velhos a fumar nos bancos e dos estivadores que bebiam chá no cais. Percorreu a cidade durante um bocado, tentando não encarar directamente ninguém, depois dirigiu-se a um hotel no porto e comeu uma sanduíche. Quando o ferry atracou, juntou-se a um pequeno grupo de pessoas à espera de receber os passageiros. Quando desembarcaram, observou com atenção cada rosto, esperando que Arne usasse algum tipo de disfarce.
Decorreram alguns minutos antes de todos saírem. Quando o fluxo cessou, e os passageiros começaram a embarcar para a viagem de regresso, Hermia consciencializou-se de que Arne não viera no barco.
Afligiu-se sobre o que fazer a seguir. Havia um cento de explicações possíveis para o facto de ele não ter aparecido, que iam desde o trivial ao trágico. Faltara-lhe a coragem e abandonara a missão? Sentiu-se envergonhada de semelhante desconfiança, mas sempre duvidara se Arne teria perfil para herói. Poderia ter morrido, claro. Mas o mais provável era ter ficado retido por algo trivial como um comboio atrasado. Infelizmente, não tinha maneira de a avisar.
Apercebeu-se, porém, de que podia contactá-lo. Mandara-o esconder-se em casa de Jens Toksvig, no bairro de Nyboder de Copenhaga. Jens tinha telefone, e Hermia sabia o número. Hesitou. Se a polícia tivesse o telefone de Jens sob escuta, por qualquer motivo, conseguiriam localizar a chamada, e depois saberiam... o quê? Que se podia passar algo em Bornholm. Isso seria mau, mas não fatal. A alternativa que se lhe apresentava era arranjar um sítio onde passar a noite e esperar para ver se Arne chegava no próximo ferry. Não tinha paciência para tal.
Regressou ao hotel e pediu a chamada.
Enquanto a telefonista fazia a ligação, desejou ter demorado mais tempo a planear o que ia dizer. Perguntaria por Arne? Se alguém estivesse a escutar, denunciaria o paradeiro dele. Não, teria de falar por enigmas, como quando telefonara de Estocolmo. Provavelmente Jens atenderia o telefone. Reconheceria a voz dela, pensou. Senão, diria, Fala a tua amiga de Bredgade, lembras-te de mim? Bredgade era a rua onde se localizara a Embaixada Britânica quando lá trabalhara. Deveria ser uma pista suficiente para ele - muito embora pudesse também ser suficiente para alertar um detective.
Antes de ter tempo de reflectir mais, atenderam o telefone, e uma voz masculina perguntou: - Está?
Não era certamente Arne. Podia ser Jens, mas não ouvia a voz dele havia mais de um ano.
Disse: - Está?
- Quem fala? - A voz era de um homem mais velho. Jens tinha vinte e nove.
Pediu então: - Gostaria de falar com Jens Toksvig, por favor.
- Quem fala?
Mas afinal com quem raios estava a falar? Jens vivia sozinho. Talvez o pai estivesse de visita. Mas não ia indicar o nome verdadeiro. - Fala a Hilde.
- Qual Hilde?
- Ele sabe de quem se trata.
- Pode dizer-me o seu apelido, por favor?
Que sinistro. Decidiu tentar intimidá-lo. - Olhe, não sei quem diabo o senhor é, mas não liguei para estar com brincadeiras, por isso passe o raio do telefone ao Jens, está bem?
Não resultou. - Tem de me dizer o apelido.
Não era alguém a brincar, decidiu. - Quem é o senhor?
Seguiu-se uma longa pausa, posto o que respondeu: - Sou o sargento Egill da polícia de Copenhaga.
- O Jens está em apuros?
- Qual é o seu nome completo, por favor? Hermia desligou.
Ficou chocada e assustada. A situação estava mesmo complicada. Arne refugiara-se em casa de Jens, e agora a casa estava sob a guarda da polícia. Só podia querer dizer que tinham descoberto que Arne se encontrava lá escondido. Deviam ter prendido Jens e talvez Arne também. Hermia reprimiu as lágrimas. Iria voltar a ver o amante?
Abandonou o hotel e olhou para lá do porto, no sentido de Copenhaga, cem milhas na direcção do sol poente. Provavelmente Arne encontrava-se na prisão local.
Não ia encontrar-se com o pescador e regressar à Suécia de mãos a abanar. Isso seria uma decepção para Digby Hoare, Winston Churchill e milhares de aviadores britânicos. A buzina do ferry anunciou a partida iminente com um som semelhante ao que faria um gigante enfurecido. Hermia montou na bicicleta e pedalou furiosamente até ao cais. Tinha um conjunto completo de documentos falsos, incluindo bilhete de identidade e caderneta de racionamento, por isso poderia passar em qualquer posto de controlo. Comprou um bilhete e apressou-se a embarcar. Precisava de ir a Copenhaga. Precisava de descobrir o que sucedera a Arne. Precisava de obter o rolo dele, isto se tivesse tirado algumas fotografias. Quando o fizesse, preocupar-se-ia com a forma de fugir da Dinamarca e transportar a película para Inglaterra.
O ferry apitou pesarosamente mais uma vez e afastou-se com lentidão do cais.
Harald seguia pelo cais de Copenhaga ao pôr do Sol. A água suja do porto tinha um tom cinzento oleoso de dia, mas brilhava com o reflexo do ocaso, um céu vermelho e amarelo transformado pelo leve ondular em manchas de cor que faziam lembrar pinceladas.
Parou a motorizada perto de uma fila de camiões Daimler-Benz parcialmente carregados com madeira de um cargueiro norueguês. Em seguida, viu dois soldados alemães a guardar o carregamento. De repente, o rolo fotográfico no seu bolso pareceu queimar-lhe a perna. Levou a mão ao bolso e mentalizou-se para não entrar em pânico. Ninguém suspeitava dele por alguma infracção - e a mota ficaria segura próximo dos soldados. Estacionou ao lado dos camiões.
Da última vez que ali estivera, embriagara-se, e naquele momento fazia um esforço por se lembrar exactamente da localização do clube de jazz. Percorreu a fila de armazéns e tabernas. Os edifícios fuliginosos tinham-se transformado, tal como a água imunda do porto, à luz romântica do sol poente. Acabou por avistar a placa onde se lia INSTITUTO DINAMARQUÊS DE CANÇÕES POPULARES E DANÇAS FOLCLÓRICAS. Desceu as escadas até à cave e empurrou a porta. Estava aberto.
Eram dez horas, ainda cedo para os clubes nocturnos, e o local encontrava-se praticamente deserto. Não estava ninguém ao piano manchado de cerveja em cima do pequeno palco."Dirigiu-se ao bar, observando os rostos. Para decepção sua, não reconheceu ninguém.
O empregado do bar usava um pano amarrado à volta da cabeça como um cigano. Baixou a cabeça a Harald, desconfiado, pois não tinha o aspecto do tipo de cliente habitual.
- Viu a Betsy hoje? - inquiriu Harald.
O empregado do bar descontraiu-se, aparentemente tranquilizado por Harald ser apenas mais um jovem à procura de uma prostituta. - Anda por aí - disse.
Harald sentou-se num banco alto. - Vou esperar.
- A Trude está além - indicou o empregado do bar, solícito. Harald olhou na direcção em que ele apontava e viu uma mulher
loura a beber de um copo com marcas de batom. Abanou a cabeça. - Quero a Betsy.
- Estas coisas são muito pessoais - comentou o empregado do bar, em tom circunspecto.
Harald reprimiu um sorriso ante a evidência daquela observação. O que poderia ser mais pessoal do que as relações sexuais? - Lá isso é verdade - anuiu. As conversas de taberna eram sempre assim tão estúpidas?
- Toma uma bebida enquanto espera por ela?
- Uma cerveja, por favor.
- Misturada com algo mais forte?
- Não, obrigado. - Harald ainda se sentia nauseado só de ouvir falar em aguardente.
Foi bebendo goles de cerveja com ar pensativo. Passara o dia a matutar na situação complicada em que se encontrava. A presença da polícia no esconderijo de Arne queria sem dúvida dizer que o irmão fora apanhado. Se, por algum milagre, ele tivesse escapado à detenção, o único lugar onde poderia estar escondido era no mosteiro em ruínas em Kirstenslot; por isso Harald fora lá certificar-se. Encontrara o local vazio.
Estivera várias horas sentado no chão da igreja, ora lamentando o destino do irmão, ora tentando decidir o que deveria fazer de seguida.
Se queria terminar o que Arne começara, precisava de levar a película para Londres nos próximos onze dias. Arne deveria ter gizado algum plano para o conseguir, só que Harald não sabia qual era, e não lhe ocorria uma forma de o descobrir. Por conseguinte, teria de conceber o seu.
Ponderou colocar simplesmente os negativos num envelope e enviá-los para a legação britânica em Estocolmo. No entanto, tinha a certeza de que toda a correspondência seria, por rotina, aberta pelos censores.
Não tivera a sorte de conhecer ninguém do pequeno grupo de pessoas que viajava legitimamente entre a Dinamarca e a Suécia. Podia simplesmente dirigir-se ao cais do ferry em Copenhaga, ou à estação de caminhos-de-ferro com ligação ao barco em Elsinore, e pedir a um passageiro que levasse o envelope; mas isso seria tão arriscado quanto expedi-lo pelo correio.
Concluíra, após um dia a dar voltas à cabeça, que teria de ir pessoalmente.
Não o poderia fazer abertamente. Não lhe seria concedida autorização para viajar, agora que se sabia que o irmão era espião. Teria de encontrar uma via clandestina. Todos os dias se processava o tráfego de navios dinamarqueses de e para a Suécia. Tinha de haver uma maneira de conseguir embarcar num deles e sair do outro lado sem que ninguém desse por isso. Não podia arranjar trabalho num barco - os marinheiros possuíam documentos de identificação especiais. Mas havia sempre actividade clandestina em torno do cais: contrabando, roubo, prostituição, drogas. Por isso, precisava de estabelecer o contacto certo com criminosos e descobrir alguém disposto a fazê-lo entrar na Suécia.
Quando a tarde começou a arrefecer, e o chão de ladrilhos do mosteiro ficou gelado, foi buscar a motorizada e regressou ao clube de jazz, na esperança de ver o único criminoso que alguma vez conhecera.
Não teve de esperar muito por Betsy. Bebera apenas metade da cerveja quando ela chegou. Vinha a descer as escadas das traseiras com um homem que, presumia Harald, acabara de atender num quarto lá em cima. O cliente era pálido, com uma tez macilenta, cabelo muito curto e herpes na narina esquerda. Harald calculou que fosse um marinheiro. Atravessou rapidamente a sala e saiu pela porta, com ar furtivo.
Betsy dirigiu-se ao bar, viu Harald, e fez uma cara de espanto. - Olá, rapazola - saudou em tom amistoso.
- Olá, princesa.
Ela atirou a cabeça para trás, com ar provocante, sacudindo os caracóis escuros. - Mudaste de ideia? Queres experimentar?
A ideia de ter relações com ela escassos minutos após o marinheiro era péssima, mas respondeu com um gracejo. - Antes do casamento, não.
Ela riu-se. - O que diria a tua mãe?
Olhou para a figura rechonchuda dela. - Que precisas de te alimentar.
Sorriu-lhe. - Lisonjeiro. Tens alguma fisgada, não tens? Não voltaste cá só pela cerveja deslavada.
- Por acaso, preciso de dar uma palavrinha ao teu Luther.
- Ao Lou? - Deitou-lhe um olhar reprovador. - O que lhe queres?
- Tenho um pequeno problema em que talvez ele me possa ser útil.
- Qual?
- Provavelmente não te deveria contar...
- Não sejas estúpido. Meteste-te em sarilhos?
- Não propriamente.
Olhou para a porta e exclamou: - Oh, merda!
Seguindo o olhar dela, Harald viu Luther entrar. Naquela noite vestia um casaco desportivo de seda, muito sujo, por cima de uma camisola interior. Vinha acompanhado de um homem de cerca de trinta anos tão bêbedo que mal se conseguia aguentar de pé. Agarrando o homem pelo braço, Lou encaminhou-o para Betsy. O homem ficou a olhar para ela, ardente de desejo.
Betsy perguntou a Luther: - Quanto lhe sacaste?
- Dez.
- Aldrabão de merda.
Luther entregou-lhe uma nota de cinco coroas. - Aqui tens a tua metade.
Ela encolheu os ombros, arrecadou o dinheiro e levou o homem para cima.
Harald perguntou: - Vai uma bebida, Lou?
- Aguardente. - Os seus modos não haviam melhorado. - Diz lá, o que queres?
- Você é um homem com muitos contactos junto ao mar.
- Escusas de me dar graxa, filho - interrompeu Luther. - O que queres? Um rapazinho com um cu jeitoso? Cigarros baratos? Droga?
O empregado do bar encheu um pequeno copo com aguardente. Luther esvaziou-o de um trago. Harald pagou e esperou que o empregado do bar se afastasse. Baixando a voz, disse: - Quero ir para a Suécia.
Luther semicerrou os olhos. - Porquê?
- Isso é importante?
- Talvez.
- Tenho uma namorada em Estocolmo. Queremos casar-nos. - Harald começou a improvisar. - Posso arranjar emprego na fábrica do pai dela. Ele fabrica artigos em pele, carteiras, malas de mão e...
- Nesse caso, pede uma autorização às autoridades para ires para o estrangeiro.
- Já o fiz. Recusaram-me.
- Porquê?
- Não quiseram dizer.
Luther ficou intrigado. Passado um instante disse: - Parece-me razoável.
- Consegue meter-me num navio?
- Tudo é possível. Quanto dinheiro tens?
Harald recordou a desconfiança de Betsy em relação a Luther havia um minuto. - Nenhum - respondeu. - Mas posso arranjar. Então, arranja-me alguma coisa?
- Conheço um homem a quem posso perguntar.
- Excelente! Esta noite?
- Dá-me dez coroas.
- Para quê?
- Para ir falar com este homem. Ou achas que sou um serviço público, como a biblioteca?
- Já lhe disse, não tenho dinheiro nenhum.
Luther sorriu, mostrando os dentes podres. - Pagaste aquela bebida com uma de vinte, e tens uma de dez no troco. Passa-a para cá.
Harald odiou ser obrigado a ceder a um rufião, mas parecia não ter saída. Entregou a nota.
- Espera aqui - disse Luther, e saiu.
Harald aguardou, bebendo devagar a cerveja para a fazer durar. Perguntou-se onde estaria Arne naquele momento. Provavelmente numa cela em Politigaarden, a ser interrogado. Talvez Peter Flemming se encarregasse do interrogatório: a espionagem era do seu departamento. Iria Arne falar? De início não, Harald tinha a certeza. Arne não capitularia imediatamente. Mas teria forças para aguentar? Harald sempre achara que havia uma parte de Arne que não conhecia bem. E se fosse torturado? Quanto tempo resistiria antes de trair Harald?
Houve alguma agitação na escada das traseiras, e o mais recente cliente de Betsy, o bêbedo, caiu pelas escadas abaixo. Betsy seguiu-o, ajudou-o a levantar-se, acompanhou-o à porta e subiu as escadas para o exterior.
Regressou com outro cliente, este um respeitável cavalheiro de meia-idade de fato cinzento, velho mas impecavelmente engomado. Tinha o ar de quem toda a vida trabalhara num banco e nunca fora promovido. Quando atravessaram a sala, Betsy perguntou a Harald: - Onde está o Lou?
- Foi falar com um homem a meu pedido.
Ela parou e aproximou-se do bar, deixando o empregado bancário com ar embaraçado no meio da sala. - Não te metas com o Lou; é um trafulha.
- Não tive escolha.
- Então aceita um conselho. - Baixou a voz. - Não confies nele nem um bocadinho. - Agitou o dedo como uma professora primária. - Por amor de Deus, fica de pé atrás. - De seguida subiu as escadas com o homem de fato usado.
A princípio, Harald levou a mal que ela o achasse tão ingénuo a ponto de não saber olhar por si. Depois admoestou-se pela sua estupidez. Ela tinha razão - Harald era inexperiente. Nunca lidara com pessoas como Luther, e não fazia ideia de como se precaver.
Não confies nele, dissera Betsy. Bem, ele dera apenas dez coroas ao homem. Não via como poderia Luther enganá-lo naquela fase, muito embora depois pudesse receber uma quantia mais avultada e a seguir não cumprir o prometido.
Fica de pé atrás. Prepara-te para a traição. Harald não imaginava como Luther poderia traí-lo, mas haveria alguma precaução que pudesse tomar? Ocorreu-lhe que estava encurralado naquele bar, sem qualquer porta das traseiras. Talvez devesse sair e vigiar a entrada a certa distância. Talvez fosse bom ficar atento a algum comportamento inesperado.
Engoliu o resto da cerveja e saiu acenando ao empregado do bar. Caminhou pelo cais, ao lusco-fusco, até junto de um navio enorme com cereais que estava preso com amarras da grossura do seu braço. Sentou-se no cimo abobadado de um cabrestante de aço e virou-se para o clube. Conseguia ver perfeitamente a entrada e pensou que provavelmente reconheceria Luther. E este topá-lo-ia ali? Achou que não, pois o volume escuro do navio dificultar-lhe-ia a visão. Isso era bom. Harald tinha a situação sob controlo. Quando Luther regressasse, se tudo aparentasse estar bem, Harald voltaria ao bar. Se suspeitasse de alguma tramóia, desapareceria. Preparou-se para esperar.
Passados dez minutos, apareceu um carro da polícia. Avançou muito depressa pelo cais, mas sem qualquer sirena. Harald pôs-se em pé. O seu instinto foi fugir, mas apercebeu-se de que as atenções recairiam sobre si, e fez um esforço por voltar a sentar-se e permanecer imóvel.
O carro parou subitamente à porta do clube de jazz. Saíram dois homens. Um, o motorista, vestia um uniforme da polícia. O outro, um fato de cor clara. Observando-o à luz difusa, Harald reconheceu o rosto, e ficou boquiaberto. Era Peter Flemming. Os dois polícias entraram no clube.
Harald estava prestes a afastar-se dali quando apareceu outra figura, caminhando irregularmente pelo empedrado num passo familiar. Era Luther. Parou a alguns metros do carro da polícia e encostou-se à parede, como um espectador indolente à espera de ver o que sucedia.
Supostamente, avisara a polícia do plano de fuga de Harald para a Suécia. Esperava sem dúvida ser pago pela informação. Como Betsy fora sensata - e ainda bem que Harald seguira o conselho dela.
O polícia saiu do clube após alguns minutos. Peter Flemming pôs-se a conversar com Luther. Harald ouvia as vozes, pois falavam em tom zangado, mas estava longe de mais para distinguir as palavras. Todavia, parecia que Peter admoestava Luther, que levava constantemente as mãos ao ar num gesto de impotente frustração.
Um pouco depois os dois polícias afastaram-se, e Luther entrou.
Harald afastou-se rapidamente, abalado por ter escapado mesmo à tangente. Encontrou a sua motorizada e afastou-se ao declínio do lusco-fusco. Passaria a noite no mosteiro em ruínas, em Kirstenslot.
E a seguir, o que faria?
Harald contou a Karen toda a história na noite seguinte.
Estavam sentados no chão da igreja abandonada, enquanto a tarde escurecia lá fora e as formas cobertas e os caixotes à volta deles se transformavam em fantasmas na penumbra. Sentara-se de pernas cruzadas, como uma colegial, e puxara a saia do vestido de noite em seda sobre os joelhos, para ficar confortável. Harald acendeu cigarros, e sentiu que começava a haver intimidade entre eles.
Contou-lhe então como entrara na base em Sande, fingindo depois estar a dormir enquanto o soldado revistara a casa dos pais. - Tens tanto à-vontade! - exclamou. Ficou satisfeito com a admiração dela e contente por ela não ver a humidade nos seus olhos ao contar-lhe que o pai tivera de mentir para o salvar.
Explicou a dedução de Heis de que haveria um grande ataque aéreo na próxima lua cheia, e os seus motivos para pensar que a película tinha de chegar a Londres antes dessa altura.
Quando lhe relatou que um sargento da polícia abrira a porta da casa de Jens Toksvig, ela interrompeu-o. - Recebi um aviso - referiu.
- O que queres dizer?
- Um desconhecido abordou-me na estação dos caminhos-de-ferro e contou-me que a polícia sabia onde estava o Arne. Este homem também era polícia, do departamento de trânsito, mas escutara sem querer algo, e queria avisar-nos por simpatizar com a causa.
- Não foste avisar o Arne?
- Sim, fui! Eu sabia que ele estava com o Jens, por isso procurei o Jens na lista telefónica e a seguir fui a casa dele. Vi o Arne e contei-lhe o que sucedera.
Harald achou aquilo muito estranho. - O que disse o Arne?
- Mandou-me sair primeiro, e disse que ia sair logo a seguir a mim; mas obviamente fê-lo tarde demais.
- Ou o teu aviso foi um ardil - concluiu Harald.
- Como assim? - perguntou com brusquidão.
- Talvez o teu polícia estivesse a mentir. Suponhamos que ele não era nada simpatizante. Podia ter-te seguido até casa do Jens e prendido o Arne mal tu saíste.
- Isso é absurdo. Os polícias não fazem essas coisas!
Harald viu-se uma vez mais confrontado com a fé de Karen na integridade e boa vontade dos que a rodeavam. Ou ela era muito crédula, ou ele era excessivamente cínico, o que lhe fez lembrar a convicção do pai de que os nazis não fariam mal aos judeus dinamarqueses. Oxalá isso fosse verdade. - Como era o homem?
- Alto, bem-parecido, cabelo ruivo, um fato de boa qualidade.
- De tweed cor de aveia?
- Sim.
Não havia dúvida. - É o Peter Flemming. - Harald não sentiu azedume em relação a Karen: ela julgara estar a ajudar Arne. Fora vítima de um ardil inteligente. - O Peter é mais um espião do que um polícia. Conheço a família dele, lá de Sande.
- Não acredito em ti! - protestou vivamente. - Tens imaginação a mais.
Não queria discutir com ela. Condoía-o saber que o irmão estava detido. Arne nunca se deveria ter envolvido em estratagemas. Era destituído de astúcia. Harald perguntou-se com pesar se alguma vez tornaria a ver o irmão.
Mas estavam mais vidas em jogo. - O Arne não conseguirá fazer chegar a película a Inglaterra.
- O que vais fazer?
- Não sei. Gostaria de ser eu a levá-la, mas não consigo imaginar como. - Falou-lhe do clube de jazz e de Betsy e Luther. - E, por outro lado, ainda bem que não consigo ir para a Suécia. Provavelmente seria preso por não ter os documentos adequados. - O acordo de neutralidade do governo sueco com a Alemanha de Hitler previa a detenção dos dinamarqueses que se deslocassem ilegalmente à Suécia. - Não me importo de correr o risco, mas preciso de uma hipótese mais do que provável de sucesso.
- Tem de haver uma maneira. Qual era o plano do Arne?
- Não sei; ele não me contou.
- Isso foi uma estupidez.
- Em retrospectiva, talvez, mas provavelmente ele achava que quanto menos pessoas soubessem, mais seguro estaria.
- Alguém tem de saber.
- Bem, o Poul devia ter uma forma de comunicar com os britânicos, mas é imprescindível que estas coisas sejam mantidas em segredo.
Permaneceram um bocado em silêncio. Harald sentia-se deprimido. Arriscara a sua vida para nada?
- Já ouviste as notícias? - perguntou-lhe. Ali, sentia a falta do seu rádio.
- A Finlândia declarou guerra à União Soviética. E a Hungria também.
- Os abutres a pressentir a morte - comentou Harald com azedume.
- É tão frustrante estar aqui sem poder fazer nada enquanto os nazis imundos estão a conquistar o mundo. Quem me dera podermos fazer algo.
Harald levou a mão à caixa da película no bolso das calças. - Seria tudo diferente se eu conseguisse chegar a Londres nos próximos dez dias. Muito diferente.
Karen mirou o Hornet Moth. - É uma pena aquela coisa não poder voar.
Harald olhou para o trem de aterragem danificado e para o tecido rasgado. - Talvez eu o conseguisse reparar. Mas só tive uma lição. Não o conseguiria pilotar.
Karen ficou pensativa. - Pois não - respondeu lentamente. - Mas eu sim.
Arne Olufsen revelou-se extraordinariamente resistente ao interrogatório.
Peter Flemming questionou-o no dia da sua detenção, e novamente no seguinte, mas ele fingiu estar inocente e não revelou quaisquer segredos. Peter ficou decepcionado. Esperara que o bonacheirão Arne quebrasse com a facilidade de uma taça de champanhe.
Não teve mais sorte com Jens Toksvig.
Ponderou deter Karen Duchwitz, mas tinha a certeza de que ela era acessória ao caso. Além disso, ser-lhe-ia mais útil a vaguear livremente. Já o conduzira a dois espiões.
Arne era o principal suspeito. Tudo ia dar a ele: conhecia Poul Kirke, estava familiarizado com a ilha de Sande, tinha uma noiva inglesa, fora a Bornholm, que ficava tão perto da Suécia, e livrara-se da sombra da polícia.
A detenção de Arne e Jens voltara a colocar Peter nas boas graças do general Braun. Só que agora Braun queria mais: como funcionava a rede de espiões, quem mais estava envolvido, que meios usavam para comunicar com Inglaterra. Peter prendera ao todo seis espiões, mas nenhum falara. O caso só seria desvendado quando um deles cedesse e revelasse tudo. Peter tinha de fazer vergar Arne.
Planeou cuidadosamente o terceiro interrogatório.
Às quatro da manhã de domingo, irrompeu pela cela de Arne com dois polícias fardados. Acordaram-no aos gritos e apontando-lhe uma lanterna aos olhos, em seguida arrancaram-no da cama e levaram-no pelo corredor comprido até à sala de interrogatório.
Peter sentou-se na única cadeira, por detrás de um candeeiro barato, e acendeu um cigarro. Arne parecia pálido e assustado com o pijama da prisão. Tinha a perna esquerda envolta em ligaduras e presa com correias do meio da coxa à canela, mas conseguia aguentar-se de pé: as duas balas de Peter haviam danificado os músculos mas não fracturado os ossos.
Peter disse: - O teu amigo Poul Kirke era espião.
- Desconhecia semelhante facto - replicou Arne.
- Por que foste a Bornholm?
- Para umas pequenas férias.
- Por que escaparia um homem inocente à vigilância policial?
- Talvez não gostasse de ser seguido por uma série de polícias abelhudos. - Arne tinha mais sentido de humor do que Peter esperara, apesar da hora matutina e da forma rude como fora despertado. - Mas, por acaso, não reparei neles. Se, como dizes, escapei à vigilância, não o fiz intencionalmente. Talvez os teus homens sejam apenas incompetentes para a função que lhes cabe.
- Tretas. Livraste-te deliberadamente da tua sombra. Eu sei, fiz parte da equipa de vigilância.
Arne encolheu os ombros. - Isso não me surpreende, Peter. Em miúdo nunca foste muito inteligente. Andámos juntos na escola, lembras-te? Na verdade, fomos grandes amigos.
- Até te mandarem para Jansborg, onde aprendeste a desrespeitar a lei.
- Não. Fomos amigos até as nossas famílias ficarem desavindas.
- Por causa da maldade do teu pai.
- Julguei que tivesse sido por causa da fraude fiscal do teu pai. Aquilo não estava a correr como Peter planeara. Enveredou por outra
linha. - Com quem te encontraste em Bornholm?
- Com ninguém.
- Andaste por lá vários dias e nunca falaste com ninguém?
- Engatei uma rapariga.
Arne não o mencionara nos interrogatórios anteriores. Peter tinha a certeza de que era mentira. Talvez conseguisse apanhá-lo. - Como é que ela se chamava?
- Annika.
- Apelido?
- Não perguntei.
- Quando regressaste a Copenhaga, escondeste-te?
- Escondi-me? Fiquei em casa de um amigo.
- Jens Toksvig, outro espião.
- Ele não me informou disso. - Acrescentou com sarcasmo: - Estes espiões são um bocado reservados.
Peter estava decepcionado por o tempo que passara detido não ter enfraquecido Arne. Mantinha a sua versão, que era improvável mas não impossível. Peter começou a temer que Arne nunca chegasse a confessar. Mentalizou-se de que era apenas um conflito preliminar. Insistiu. - Portanto, não fazias ideia de que a polícia andava à tua procura?
- Não.
- Nem mesmo quando um polícia te perseguiu no jardim Ti-voli?
- Deve ter sido outra pessoa. Nunca fui perseguido por um polícia.
Peter deixou que o sarcasmo transparecesse na sua voz. - Por acaso não viste nenhum dos mil cartazes com o teu rosto que foram afixados na cidade?
- Não devo ter reparado.
- Nesse caso, por que mudaste de aspecto? . - Eu mudei de aspecto?
: - Rapaste o bigode.
- Disseram-me que ficava parecido com o Hitler.
- Quem?
- A rapariga que conheci em Bornholm, Anne. .
- Disseste que o nome dela era Annika.
- Tratava-a por Anne para abreviar.
Tilde Jespersen entrou com um tabuleiro. O cheiro a torrada quente fez crescer água na boca de Peter. Esperava que estivesse a ter o mesmo efeito sobre Arne. Tilde serviu o chá. Sorriu a Arne e disse: - Posso servir-lhe uma chávena?
Ele anuiu.
Peter atalhou. - Não.
Tilde encolheu os ombros.
Aquele pequeno diálogo fora encenado. Tilde fingia-se simpática na esperança de que Arne simpatizasse com ela.
Tilde trouxe outra cadeira e sentou-se para beber o chá. Peter comeu a sua torrada com manteiga, demoradamente. Arne teve de ficar de pé, a assistir.
Quando Peter terminou de comer, retomou o interrogatório. - Encontrei no gabinete do Poul Kirke um esboço de umas instalações militares na ilha de Sande.
- Estou chocado - redarguiu Arne.
- Se ele não tem sido morto, aqueles esboços seriam enviados aos britânicos.
- Talvez tivesse uma explicação inocente para eles, caso um tolo ávido de puxar o gatilho não o tivesse alvejado.
- Fizeste aqueles desenhos?
- Claro que não.
- Sande é a tua terra. O teu pai é pastor de uma igreja de lá.
- Também é a tua terra. O teu pai dirige um hotel onde os nazis de folga se embebedam com aguardente.
Peter ignorou o comentário. - Quando te encontrei em St. Paul's Gade, fugiste. Porquê?
- Tinhas uma arma. Se não fosse isso, ter-te-ia esmurrado essa tua cabeçorra, tal como fiz nas traseiras dos correios, há doze anos.
- Nessa altura, atirei contigo ao chão.
- Mas eu tornei a levantar-me. - Arne virou-se para Tilde com um sorriso. - A família do Peter e a minha estão há anos de costas viradas. É esse o verdadeiro motivo por que ele me prendeu.
Peter ignorou-o. - Há quatro noites, houve um alerta de segurança na base. Algo agitou os cães de guarda. As sentinelas viram alguém correr pelas dunas em direcção à igreja do teu pai. - Enquanto Peter falava, ia observando o rosto de Arne. Até ali, este não revelara surpresa. - Eras tu a correr pelas dunas?
- Não.
Peter sentiu que Arne estava a dizer a verdade. Prosseguiu: - A casa dos teus pais foi revistada. - Peter viu uma centelha de medo nos olhos de Arne: não tivera conhecimento de tal. - Os guardas andavam à procura de um desconhecido. Encontraram um homem jovem a dormir na cama, mas o pastor disse que era seu filho. Eras tu?
- Não. Não vou a casa desde o Pentecostes.
Mais uma vez, Peter achou que ele estava a dizer a verdade.
- Há duas noites, o teu irmão, Harald, regressou a Jansborg Skole.
- De onde foi expulso por causa da tua maldade.
- Ele foi expulso porque desgraçou o colégio!
- Por pintar uma frase numa parede? - Mais uma vez Arne dirigiu-se a Tilde. - O superintendente da polícia decidira perdoar o meu irmão, mas o Peter foi ao colégio dele e insistiu para que o expulsassem. Vê até que ponto ele odeia a nossa família?
Peter prosseguiu: - Ele entrou furtivamente no laboratório de química e usou a câmara escura para revelar fotografias.
Os olhos de Arne arregalaram-se de espanto. Via-se que era novidade para ele. Finalmente, ficara assustado.
- Felizmente, foi descoberto por outro rapaz. Soube esta manhã pelo pai do rapaz, que por sinal é um cidadão leal e acredita na lei e na ordem.
- Um nazi?
- A película era tua, Arne?
- Não.
- O director diz que a película continha fotografias de mulheres nuas, e afirma tê-la confiscado e queimado. Ele está a mentir, não está?
- Não faço ideia.
- Suspeito de que as fotografias eram da instalação militar em Sande.
- Ai sim?
- Eram as tuas fotografias, não eram?
- Não.
Peter sentiu que começava a intimidar Arne, e aproveitou a vantagem de que desfrutava. - Na manhã seguinte, um jovem bateu à porta da casa de o Jens Toksvig. Um dos nossos agentes abriu; era um sargento de meia-idade, não um dos gigantes intelectuais da força. O rapaz fingiu ter-se enganado na morada, procurava um médico, e o nosso homem foi suficientemente ingénuo e acreditou nele. Mas era mentira.
O jovem era o teu irmão, não era?
- Tenho a certeza absoluta de que não era - respondeu Arne, mas parecia assustado.
- O Harald ia levar-te a película revelada.
- Não.
- Nessa noite, uma mulher em Bornholm, que disse chamar-se Hilde, telefonou para casa do Jens Toksvig. Não disseste que tinhas engatado uma rapariga chamada Hilde?
- Não, Anne.
- Quem é a Hilde?
- Nunca ouvi falar dela.
- Talvez seja um nome falso. Não poderia ser a tua noiva, Hermia Mount?
- Ela está em Inglaterra.
- Aí é que te enganas. Estive a falar com os serviços de imigração suecos. - Fora difícil conseguir que cooperassem, mas Peter acabara por obter a informação que pretendia. - A Hermia Mount voou para Estocolmo há dez dias, e ainda não partiu.
Arne fingiu surpresa mas não conseguiu ser muito convincente.
- Não sei nada sobre o assunto - respondeu com demasiada calma. - Há mais de um ano que não tenho notícias dela.
Se isso fosse verdade, ter-se-ia mostrado espantado e chocado ao saber que ela estivera de facto na Suécia e possivelmente na Dinamarca. Estava nitidamente a mentir naquele momento. Peter prosseguiu:
- Nessa mesma noite, estamos a falar de anteontem, um jovem alcunhado de Rapazola dirigiu-se a um clube de jazz junto ao cais, encontrou-se com um criminoso menor chamado Luther Gregor e pediu-lhe ajuda para fugir para a Suécia.
Arne ficou horrorizado.
Peter perguntou-lhe: - Era o Harald, não era?
Arne não respondeu.
Peter recostou-se. Arne estava agora bastante abalado, mas no geral apresentara uma defesa engenhosa. Tinha explicações para tudo o que Peter lhe lançava. Pior, tirara inteligentemente partido da hostilidade política entre ambos, afirmando que a sua detenção fora motivada por despeito. Frederik Juel podia ser suficientemente ingénuo para acreditar nisso. Peter ficou preocupado.
Tilde deitou chá numa caneca e deu-a a Arne sem consultar Peter. Este nada disse: fazia tudo parte da encenação previamente combinada. Arne pegou na caneca com a mão trémula e bebeu sequiosamente.
Tilde dirigiu-se-lhe em voz bondosa: - Arne, você está em maus lençóis. Isto já não tem só a ver consigo. Envolveu os seus pais, a sua noiva e o seu irmão mais novo. O Harald arranjou graves sarilhos. Se isto continuar, ele acabará por ser enforcado como espião, e a culpa será toda sua.
Arne segurou a caneca com ambas as mãos, sem dizer nada, parecendo desorientado e assustado. Peter achou que estava prestes a ceder.
- Podemos fazer um acordo consigo - prosseguiu Tilde. - Conte-nos tudo, e tanto você como o Harald escaparão à pena de morte. Não preciso de lhe dar a minha palavra; o General Braun chegará aqui dentro de momentos, e garantir-lhe-á que a sua vida será poupada. Mas primeiro tem de nos contar onde está o Harald. Se não o fizer, será condenado à morte, e o mesmo acontecerá ao seu irmão.
A dúvida e o medo estamparam-se no rosto de Arne. Seguiu-se um longo silêncio. Por fim, Arne pareceu ter tomado uma decisão.
Estendeu o braço e colocou a caneca no tabuleiro. Olhou para Tilde, a
seguir fitou Peter. - Vão para o inferno - disse, tranquilamente.
Peter pôs-se em pé, furioso. - Tu é que vais para o inferno! - gritou.
Atirou a cadeira para trás. - Não compreendes o que te está a acontecer?
Tilde levantou-se e saiu em silêncio.
- Se não falares connosco, serás imediatamente entregue à Gestapo - continuou Peter, irritado. - Eles não te darão chá nem te farão perguntas educadas. Arrancar-te-ão as unhas das mãos, acenderão fósforos debaixo das solas dos teus pés. Colocarão eléctrodos nos teus lábios e despejar-te-ão em cima água fria para tornar os choques mais atrozes. Despir-te-ão e bater-te-ão com martelos. Esmagar-te-ão os ossos dos tornozelos e as rótulas para que nunca mais voltes a andar, e depois continuarão a bater-te, mantendo-te vivo, consciente e aos gritos. Pedir-lhes-ás, suplicar-lhes-ás que te deixem morrer, mas eles não o farão, pelo menos enquanto não confessares. E garanto-te que hás-de confessar. Mete isso na tua cabeça. No fim, todos confessam. Lívido, Arne respondeu calmamente: - Eu sei. Peter foi apanhado de surpresa pela postura e a resignação subjacentes ao medo. O que significava aquilo?
A porta abriu-se e o general Braun entrou. Eram agora seis horas, e Peter estivera à espera dele: o seu aparecimento fazia parte da encenação. Braun era a imagem da eficiência fria com o seu uniforme engomado e a pistola no coldre. Como sempre, os seus pulmões danificados transformavam a sua voz num delicado murmúrio: - É este o homem que vai ser enviado para a Alemanha?
Arne moveu-se rapidamente, apesar do ferimento. Peter olhava para o lado, na direcção de Braun, e viu apenas uma mancha quando Arne se precipitou para o tabuleiro do chá. O pesado bule de barro voou pelo ar e bateu de lado na cabeça de Peter, entornando-lhe o chá no rosto. Quando limpou o líquido dos olhos, viu Arne atacar Braun. Arne movia-se desajeitadamente devido à perna ferida, mas derrubou o general. Peter pôs-se rapidamente em pé, mas foi demasiado lento. No segundo em que Braun ficara imóvel no chão, a arfar, Arne desabotoara o coldre do general e tirara a pistola.
Virou a arma para Peter, segurando-a com ambas as mãos. Peter ficou estarrecido. A arma era uma Luger de 9mm. Continha oito cartuchos no depósito de munições no punho. Estaria carregada? Ou Braun usava-a apenas para vista?
Arne mantinha-se na posição sentada mas foi deslizando para trás até ficar de novo encostado à parede.
A porta continuava aberta. Tilde entrou, dizendo: - Mas o que...?
- Não se mexa! - atroou Arne.
Peter perguntou-se com urgência até que ponto Arne estaria familiarizado com armas. Era um oficial militar, mas podia não ter grande prática na força aérea.
Como se em resposta à sua pergunta, Arne soltou o fecho de segurança do lado esquerdo da pistola com um movimento deliberado que todos puderam ver.
Por detrás de Tilde, Peter via os dois polícias fardados que haviam escoltado Arne da cela.
Nenhum dos quatro polícias estava armado. Não levavam as armas para a área das celas. O regulamento era rigoroso, destinava-se a evitar que os prisioneiros fizessem precisamente o que Arne acabara de lograr. Mas Braun considerava-se acima desses regulamentos, e ninguém ousara pedir-lhe que entregasse a sua arma.
Agora estavam todos à mercê de Arne.
Peter disse-lhe: - Sabes que não vais conseguir fugir. Esta é a maior esquadra da polícia na Dinamarca. Podes ter vantagem sobre nós, mas existem dúzias de polícias armados lá fora. Não conseguirás passar por eles todos.
- Eu sei - respondeu Arne.
Havia um tom sinistro de resignação na sua voz. Tilde interpelou-o: - E estaria disposto a matar tantos polícias dinamarqueses inocentes?
- Não, não.
Começava tudo a fazer sentido. Peter recordou as palavras de Arne quando o alvejara: Meu porco estúpido, devias ter-me morto. Encaixavam na atitude fatalista que Arne evidenciara desde a sua detenção. Temia poder denunciar os seus amigos, talvez mesmo o irmão.
De repente, Peter viu o que ia acontecer a seguir. Arne calculara que a única maneira de estar completamente seguro era morrendo. Mas Peter quisera que Arne fosse torturado pela Gestapo e revelasse os seus segredos. Não podia permitir que Arne morresse.
Apesar da arma apontada directamente a si, Peter precipitou-se para Arne.
Arne não o alvejou. Virou antes a arma para trás e encostou a boca à pele macia debaixo do queixo.
Peter atirou-se a Arne.
A arma atroou uma vez.
Peter arrancou-a da mão de Arne, mas chegou tarde de mais. Saiu um jorro de sangue e cérebro do cimo da cabeça de Arne, deixando uma mancha em forma de leque na parede clara por detrás dele. Peter caiu sobre Arne, e uma parte da sujidade salpicou-lhe o rosto. Rebolou de cima de Arne e pôs-se em pé.
O rosto de Arme mantinha-se estranhamente inalterado. Os estragos situavam-se todos atrás, e evidenciava ainda o sorriso irónico que afivelara quando encostara a arma à garganta. Passado um momento, caiu para o lado, a parte traseira do seu crânio desfeito deixando uma mancha vermelha na parede. O seu corpo embateu no chão com uma pancada sem vida. Não se tornou a mexer.
Peter limpou o rosto com a manga.
O general Braun pôs-se em pé, aflito para respirar.
Tilde baixou-se e apanhou a pistola.
Olharam todos para o corpo.
- Um homem corajoso - comentou o general.
Quando Harald acordou, soube que acontecera algo maravilhoso, mas momentaneamente não se conseguiu recordar do que era. Estava deitado na saliência da abside da igreja, embrulhado no cobertor de Karen com o gato Pinetop enroscado em cima do seu peito, e ficou à espera de que a lembrança voltasse. Parecia-lhe que o acontecimento maravilhoso estava associado a algo preocupante, mas, de tanta excitação, ignorava o perigo.
Voltou tudo num ápice. Karen aceitara voar com ele para Inglaterra no Hornet Moth.
Endireitou-se de repente, desalojando Pinetop, que saltou para o pavimento com um miado de indignação.
O perigo era poderem ser ambos apanhados, presos e mortos. O que o deixava feliz, apesar de tudo, era o facto de ir passar algumas horas sozinho com Karen. Não que pudesse suceder algo de romântico. Tinha consciência de que ela não era para si. Mas não podia deixar de gostar dela. Mesmo que nunca a beijasse, a ideia do tempo que passariam juntos deixava-o encantado. Não era somente a viagem, conquanto isso constituísse o clímax. Antes de poderem partir, teriam de passar dias a trabalhar no avião.
No entanto, todo o plano dependia de ele conseguir reparar o Hornet Moth. Na noite anterior, apenas com uma lanterna como iluminação, não conseguira inspeccioná-lo minuciosamente. Agora, com o sol nascente a entrar pelas janelas altas sobre a abside, podia avaliar a dimensão da tarefa.
Lavou-se com água fria na torneira do canto, vestiu-se e iniciou o exame.
A primeira coisa em que reparou foi no pedaço comprido de corda grossa preso ao trem de aterragem. Qual a sua finalidade? Pensou um pouco, depois apercebeu-se de que era para deslocar o avião quando o motor estava desligado. Com as asas dobradas, podia ser difícil encontrar um ponto por onde empurrar a máquina, mas a corda permitiria a alguém puxá-lo como uma carroça.
Nesse preciso momento, Karen chegou.
Vinha informalmente vestida com calções, sandálias, exibindo as pernas compridas e fortes. O cabelo encaracolado acabara de ser lavado e emoldurava a sua cabeça como uma nuvem acobreada. Harald pensou que os anjos deviam ter um aspecto semelhante. Que tragédia seria ela morrer na aventura que tinham pela frente.
Era cedo de mais para falar em morrer, admoestou-se. Nem sequer começara a reparar o avião. E, à claridade da manhã, afigurava-se uma tarefa ainda mais assustadora.
Tal como Harald, naquela manhã Karen estava pessimista. Na véspera entusiasmara-se com a perspectiva da aventura. Agora a visão era mais sombria. - Tenho estado a pensar na reparação disto - afirmou.
- Não sei se é possível, especialmente em dez dias; melhor dizendo, em nove.
Harald sentiu os primeiros laivos de um estado de obstinação que o atacava sempre que alguém lhe dizia que ele não era capaz de fazer algo. - Veremos - disse.
- Lá estás com a cara do costume - observou Karen.
- Qual?
- Aquela que mostra que não dás ouvidos ao que estão a dizer-te.
- Não tenho cara nenhuma - redarguiu, com irritação.
Ela riu-se. - Tens os maxilares cerrados, os cantos da boca descaídos e a testa franzida.
Fez um sorriso forçado, mas a verdade é que ficara satisfeito por ela ter reparado na sua expressão.
- Assim está melhor - disse.
Começou a analisar o Hornet Moth com os olhos de um engenheiro. Da primeira vez que o vira, pensara que o avião não tinha asas, mas apercebera-se depois de que estavam dobradas para trás para facilitar a recolha. Harald observou as dobradiças que o acoplavam à fuselagem.
- Acho que podia pôr as asas direitas - disse.
- Isso é fácil. O nosso instrutor, o Thomas, fazia-o sempre que guardava o avião. Leva apenas uns minutos. - Tocou na asa mais próxima. - O tecido encontra-se em mau estado, porém.
As asas e a fuselagem eram feitas de madeira coberta com um tecido que fora tratado com uma espécie de tinta. Na superfície de cima, Harald conseguia ver os pontos onde o tecido fora preso às barras de sustentação com linha grossa. A tinta estava estalada e lascada, e o tecido rasgado em alguns sítios. - São apenas danos superficiais - referiu Harald. - Tem alguma importância?
- Sim. Os rasgões no tecido podem interferir na circulação do ar por cima das asas.
- Nesse caso, temos de as remendar. Estou mais preocupado com o trem de aterragem.
O avião sofrera um acidente qualquer, provavelmente uma aterragem desastrosa, como Arne descrevera. Harald ajoelhou-se para ver melhor o trem de aterragem. A ponta do eixo em aço sólido parecia ter dois dentes que encaixavam num suporte em forma de V. Este era constituído por um tubo de aço oval e ambos os braços do V apresentavam-se dobrados e deformados no seu ponto mais fraco, supostamente mesmo abaixo da ponta do eixo. Davam a impressão de se partirem facilmente. Um terceiro suporte, que se afigurava a Harald um amortecedor, parecia intacto. Mesmo assim, o trem era demasiado fraco para uma aterragem.
- Fui eu que fiz aquilo - confessou Karen.
- Despenhaste-te?
- Aterrei com ventos cruzados e guinei para o lado. A ponta da asa bateu no solo.
Parecia aterrador. - Tiveste medo?
- Não, senti-me apenas tola, mas o Tom disse que não é uma coisa invulgar num Hornet Moth. Na verdade, confessou que já lhe sucedera o mesmo uma vez.
Harald anuiu. Condizia com o que Arne dissera. Só que havia algo na maneira como ela falava de Thomas, o instrutor, que o fazia sentir ciúmes. - Por que nunca o repararam?
- Não dispomos de instalações aqui. - Indicou a bancada e o suporte das ferramentas. - O Tom podia efectuar pequenas reparações, e tinha muito jeito para motores, mas isto não é uma oficina de metalurgia, e não dispomos de equipamento de solda. Depois, o papá teve um pequeno ataque cardíaco. Ficou bom, mas isso impediu-o de obter o brevet de piloto e desinteressou-se de aprender a voar. Por isso o trabalho nunca chegou a ser feito.
Que situação tão desmoralizante, pensou Harald. Como iria trabalhar o metal? Aproximou-se da cauda e examinou a asa que batera no solo. - Não me parece fracturada - disse. - Consigo reparar facilmente a ponta.
- Como é que sabes? - perguntou-lhe, carrancuda. - Uma das longarinas de madeira pode ter sofrido uma sobrecarga. Não é possível ter a certeza olhando apenas o exterior. E, no caso de o avião ter uma asa debilitada, despenhar-se-á.
Harald observou o estabilizador. A metade da retaguarda era articulada, e subia e descia: era o leme de profundidade, recordou. O leme vertical deslocava-se da direita para a esquerda. Olhando com mais atenção, viu que eram controlados por cabos de arame que saíam da fuselagem. Porém, os cabos tinham sido cortados e removidos. - O que aconteceu ao arame? - indagou.
- Lembro-me de ter sido retirado para reparar uma outra máquina.
- Isto vai ser um problema.
- Só faltam os últimos três metros de cada cabo, no máximo até ao torniquete por detrás do painel de acesso debaixo da fuselagem. O resto foi difícil de alcançar.
- Mesmo assim, são doze metros, e não consegues comprar cabos, ninguém consegue arranjar peças sobressalentes para nada. Foi por isso que vieram tirar-lhe peças, sem dúvida. - Harald começava a sentir-se vencido face a tantos problemas, mas falou deliberadamente em tom animado. - Bem, vejamos o que mais está estragado. - Deslocou-se até ao nariz. Encontrou dois fechos do lado direito da fuselagem, rodou-os e abriu a tampa amovível, que era feita de um metal fino que fazia lembrar estanho, mas provavelmente seria alumínio. Inspeccionou o motor.
- É um motor com os quatro cilindros em linha - explicou Karen.
- Sim, mas parece estar de pernas para o ar.
- Comparado com o motor de um carro, sim. A cambota encontra-se no cimo. É para subir o nível da hélice por causa da distância do solo.
Harald ficou surpreso com os conhecimentos dela. Nunca lidara com uma rapariga que soubesse o que era uma cambota. - Como era esse tal Tom? - perguntou, esforçando-se por afastar o tom de desconfiança da voz.
- Era um excelente professor, paciente mas encorajador.
- Tiveste um romance com ele?
- Por favor! Eu tinha catorze anos!
- Aposto que tiveste uma paixoneta por ele.
Ficou zangada. - Deves pensar que é a única razão que pode levar uma rapariga a interessar-se por motores.
Harald pensara isso mesmo, mas disse ao invés: - Não, não, só reparei que falavas dele com carinho. Não é da minha conta. Vejo que o motor é arrefecido a ar. - Não havia radiador, mas os cilindros tinham filamentos de arrefecimento.
- Penso que todos os motores a ar o são, para reduzir peso.
Foi até ao outro lado e abriu a tampa removível da direita. Todos os tubos do combustível e do óleo pareciam estar firmemente presos, e não se viam sinais exteriores de estragos. Desatarraxou o bujão do óleo e verificou a vareta. Havia ainda um pouco de óleo no depósito. - Parece estar bem - disse. - Vamos ver se pega.
- É mais fácil com duas pessoas. Podes sentar-te lá dentro enquanto eu dou balanço à hélice.
- A bateria não estará descarregada ao fim de todos estes anos?
- Não existe bateria. A electricidade provém de dois magnetos, que são accionados pelo próprio motor. Vamos entrar na cabina e mostro-te o que fazer.
Karen abriu a porta, posto o que soltou um guincho e deu um pulo para trás - caindo nos braços de Harald. Era a primeira vez que tocava no corpo dela e foi percorrido por uma vibração eléctrica. Ela mal pareceu aperceber-se de que estavam abraçados. Apressou-se a endireitá-la e soltou-se. - Estás bem? - inquiriu. - O que aconteceu?
- Ratos.
Ele abriu de novo a porta. Saltaram dois ratos do buraco e desceram-lhe pelas calças até ao chão. Karen expressou repulsa.
O estofo de tecido de um dos bancos estava esburacado, e Harald calculou que eles tivessem nidificado no enchimento. - O problema resolve-se rapidamente - anunciou. Chamou Pinetop e este apareceu logo, esperançado em comida. Harald pegou no gato ao colo e introduziu-o na cabina.
Pinetop pareceu ficar subitamente cheio de energia. Correu de um lado para o outro pelo pequeno cockpit, e Harald julgou ver uma cauda de rato desaparecer por um buraco debaixo do banco do lado esquerdo através do qual passava um tubo de cobre. Pinetop saltou para o banco, depois para a prateleira da bagagem atrás, sem apanhar nenhum rato. A seguir investigou os buracos no estofo. Encontrou lá um rato-bebé, e começou a comê-lo com extrema delicadeza.
Harald reparou que existiam dois livros na prateleira da bagagem. Debruçou-se sobre a cabina e retirou-os. Eram manuais, um do Hornet Moth e um do motor Gipsy Major que o fazia andar. Ficou encantado. Mostrou-os a Karen.
- E então os ratos? - perguntou ela. - Detesto-os.
- O Pinetop afugentou-os. De futuro, deixarei as portas da cabina abertas, para que ele possa entrar e sair. Mantê-los-á afastados. - Harald abriu o manual do Hornet Moth.
- O que é que ele está a fazer neste momento?
- O Pinetop? Oh, está a comer os bebés. Olha para estes diagramas, isto é fantástico!
- Harald! - gritou. - É nojento! Não o deixes fazer aquilo! Ficou surpreso. - Qual é o problema?
- É repugnante!
- É natural.
- Não me interessa.
- Qual é a alternativa? - perguntou Harald, com impaciência.
- Temos de nos livrar do ninho. Eu podia retirar os bebés com as mãos e atirá-los para os arbustos, mas o Pinetop comê-los-ia na mesma, a menos que as aves os apanhassem primeiro.
- É tão cruel.
- São ratos, por amor de Deus!
- Como é possível que não entendas? Não vês que detesto isso!
- Eu entendo. Só acho que é absurdo...
- Oh, e tu não passas de um engenheiro estúpido que só pensa na maneira de resolver as coisas e nunca no que as pessoas sentem.
Aquela doera. - Isso não é verdade.
- É - insistiu, e foi-se embora furiosa.
Harald ficou espantado. - Mas que diabo foi isto? - perguntou em voz alta. Ela achava-o mesmo um engenheiro estúpido que nunca pensava no que as pessoas sentiam? Era profundamente injusto.
Empoleirou-se num caixote para espreitar por uma das janelas altas. Viu Karen afastar-se pelo acesso em direcção ao castelo. Pareceu arrepender-se e virou para a mata. Harald pensou segui-la, depois decidiu não o fazer.
Tinham discutido logo no primeiro dia da excelente colaboração de ambos. Que hipóteses havia de poderem voar até Inglaterra?
Regressou ao avião. Já agora podia tentar ligar o motor. Se Karen desistisse, encontraria outro piloto, disse de si para si.
As instruções estavam no manual.
Calçar as rodas e puxar firmemente o travão de mão.
Não encontrou os calços, mas arrastou dois caixotes de tralha pelo chão e encostou-os bem às rodas. Localizou a alavanca do travão de mão na porta do lado esquerdo e verificou se estava todo puxado. Pinetop continuava sentado no banco, a lavar as patas, com um ar de saciedade.
- A senhora acha-te repugnante - disse-lhe Harald. O gato afivelou um ar de desdém e saltou da cabina.
Abrir o combustível (comando na cabina).
Abriu a porta e debruçou-se sobre a cabina. Era suficientemente pequena para conseguir alcançar os comandos sem entrar. O indicador de nível do combustível estava parcialmente escondido entre as costas dos dois bancos. Ao lado via-se um botão numa ranhura. Passou-o de DESLIGADO para LIGADO.
Prover o carburador accionando a alavanca de ambos os lados das bombas do motor. O afluxo de combustível através do jacto é provocado pela acção da bóia do carburador.
A tampa esquerda continuava aberta, e avistou imediatamente as duas bombas de combustível, cada uma com uma pequena alavanca saída. A bóia do carburador foi mais difícil de identificar, mas por fim calculou que fosse uma argola de puxar com um mecanismo de recuo. Puxou a argola e deslocou uma das alavancas para cima e para baixo. Era impossível saber se o que fazia estava a surtir algum efeito. O depósito até podia estar vazio.
Sentiu-se desamparado agora que não tinha a presença de Karen. Por que fora tão desajeitado com ela? Quisera tanto ser simpático, encantador e fazer o que fosse preciso para lhe agradar, mas não conseguia perceber o que ela pretendia. Por que não se pareciam as raparigas mais com os motores?
Colocar o acelerador na posição FECHADO, ou quase. Detestava aqueles manuais cheios de indecisões. O acelerador devia estar fechado, ou ligeiramente aberto? Encontrou o comando, uma alavanca na cabina mesmo à frente da porta esquerda. Recuando ao seu voo num Tiger Moth duas semanas atrás, recordou que Poul Kirke colocara o acelerador a cerca de centímetro e meio antes de FECHADO. O Hornet Moth devia ser semelhante. Tinha gravada uma escala graduada de um a dez, ao passo que o Tiger Moth não tinha nada. Calculando, Harald colocou o acelerador no um. Pôr os comutadores na posição LIGADO.
Havia dois comutadores no painel de instrumentos assinalados simplesmente com LIGADO e DESLIGADO. Harald calculou que deviam accionar os dois magnetos. Colocou-os em ligado. Rodar a hélice.
Harald veio para a frente e agarrou uma das pás da hélice. Puxou-a para baixo. Estava muito perra, e teve de aplicar toda a sua força para a deslocar. Quando finalmente rodou, deu um estalido seco, depois parou.
Rodou-a novamente. Desta vez moveu-se mais facilmente. Deu novo estalido.
A terceira vez, aplicou-lhe um forte puxão, esperando que o motor pegasse.
Não aconteceu nada.
Voltou a tentar. A hélice deslocava-se com facilidade, dando estalidos de cada vez, mas o motor permanecia silencioso e sem trabalhar.
Karen apareceu. - Não quer pegar? - perguntou.
Olhou-a, surpreso. Não estava à espera de a voltar a ver naquele dia. Ficou encantado, mas respondeu em tom circunspecto. - É demasiado cedo para dizer, ainda mal comecei.
Parecia arrependida. - Desculpa ter disparatado.
Não conhecia aquela sua faceta. Seria levado a supor que fosse demasiado orgulhosa para pedir desculpa. - Não tem importância - disse.
- Foi precisamente a ideia do gato a comer os ratos-bebés. Não suportei. Sei que é absurdo pensar nos ratos quando homens como o Poul Kirke perdem a vida.
Era essa a perspectiva de Harald, mas não a exteriorizou. - E, de qualquer forma, o Pinetop já se foi embora.
- Não me surpreende que o motor não pegue - afirmou, voltando aos problemas práticos, tal como ele fazia quando ficava embaraçado, pensou. - Há pelo menos três anos que não trabalha.
- Talvez seja um problema de combustível. Com os dois invernos que passaram, a água deve ter condensado no depósito. Mas o petróleo vem à tona, por isso o combustível estará em cima. Talvez consigamos despejar a água. - Consultou de novo o manual.
- Devíamos desligar os comutadores, por segurança - sugeriu Karen. - Eu faço isso.
Harald ficou a saber pelo manual que existia um painel na parte de baixo da fuselagem que dava acesso ao bujão de escoamento do combustível. Tirou uma chave de parafusos do suporte das ferramentas, depois deitou-se no chão e enfiou-se debaixo do avião para desaparafusar o painel. Karen deitou-se ao lado e ele entregou-lhe os parafusos. Ela cheirava bem, um misto de pele quente e champô.
Quando o painel se soltou, Karen entregou-lhe a chave inglesa. O bujão de escoamento tinha uma localização estranha, situando-se ligeiramente de um lado do orifício de acesso. Era o tipo de falha que levava Harald a ansiar por um cargo de responsabilidade, para que pudesse obrigar os designers preguiçosos a fazerem as coisas como devia ser. Quando introduziu a mão no orifício, deixou de ver o bujão de escoamento, por isso teve de trabalhar às cegas.
Rodou lentamente o bujão mas, quando o abriu, foi surpreendido pelo jorro súbito de líquido gélido sobre a sua mão. Retirou-a rapidamente, batendo com os dedos dormentes na extremidade do orifício de acesso e, para sua intensa contrariedade, deixou cair o bujão.
Tomado de desânimo, ouviu-o rolar pela fuselagem. O combustível saía do orifício. Ele e Karen desviaram-se rapidamente do jorro.
Depois, não havia nada que pudessem fazer senão ver o sistema esvaziar-se e a igreja encher-se do cheiro a petróleo.
Amaldiçoou o capitão de Havilland e os descuidados engenheiros britânicos que tinham concebido o avião. - Agora não temos combustível - constatou em tom de azedume.
- Podíamos retirar algum do Rolls-Royce - alvitrou Karen.
- Não é combustível de avião.
- O Hornet Moth anda a combustível de automóvel.
- A sério? Não sabia. - Harald animou-se de novo. - Muito bem. Vamos ver se conseguimos recuperar o bujão de escoamento. - Calculou que o bujão tivesse rolado até embater num travessão. Enfiou o braço no buraco, mas não conseguiu chegar ao fundo. Karen tirou uma escova de arame da bancada e recuperou-o com ela. Harald voltou a colocar o bujão no orifício.
De seguida, tiveram de retirar combustível do carro. Harald encontrou um funil e um balde limpo, enquanto Karen se servia de um alicate grosso para cortar uma porção de mangueira de jardim. Levantaram a cobertura do Rolls-Royce. Karen desatarraxou o tampão do combustível e introduziu a mangueira no depósito.
Harald inquiriu: - Queres que seja eu a fazer isso? - Não - redarguiu ela. - É a minha vez.
Calculou que lhe quisesse provar ser capaz de fazer trabalho sujo, especialmente depois do incidente com os ratos, de modo que se desviou e ficou a assistir.
Karen colocou a extremidade da mangueira entre os lábios e chupou. Quando a gasolina lhe chegou à boca, canalizou rapidamente a mangueira para o balde, ao mesmo tempo que fazia um esgar e cuspia. Harald contemplou as expressões grotescas no rosto dela. Felizmente, não era menos bela quando semicerrava os olhos e franzia os lábios. Apanhou-o a olhar e interpelou-o: - Qual é o espanto?
Ele riu-se e respondeu: - Tu, claro; ficas tão bonita a cuspir. - Apercebeu-se logo de que revelara os seus sentimentos mais do que gostaria, e ficou à espera de uma réplica incisiva, mas ela limitou-se a soltar uma gargalhada.
Evidentemente que só dissera que ela era bonita, Isso não constituía novidade para Karen. Mas falara de forma afectuosa, e as raparigas reparavam sempre nos tons de voz, especialmente quando uma pessoa não queria que tal acontecesse. Se tivesse ficado aborrecida, tê-lo-ia mostrado com um olhar reprovador ou uma sacudidela impaciente da cabeça. Pelo contrário, parecera satisfeita - quase, pensou, como se visse com agrado o facto de gostar dela.
Sentiu que atravessara uma ponte.
O balde encheu-se até acima e a mangueira secou. Tinham esvaziado o depósito de combustível do carro. Estavam apenas cerca de quatro litros e meio de combustível no balde, calculou Harald, mas era bastante para experimentar o motor. Não sabia como iriam conseguir combustível suficiente para a travessia do Mar do Norte.
Harald levou o balde até junto do Hornet Moth. Abriu a cobertura de acesso e retirou o bujão do combustível. Tinha um gancho a prendê-lo ao rebordo do tubo. Karen segurou o funil enquanto Harald despejava o combustível no depósito.
- Não sei onde vamos conseguir mais - referiu Karen. - Comprá-lo não podemos com certeza.
- De quanto necessitamos?
- O depósito leva uns cento e sessenta litros. Mas isso é outro problema. O alcance do Hornet Moth é de novecentos e sessenta quilómetros, em condições ideais.
- E é mais ou menos a distância até à Grã-Bretanha.
- - Por conseguinte, se as condições não forem tão perfeitas... por exemplo, se apanharmos ventos frontais, o que não é improvável...
- Teremos de descer no mar.
- Exactamente.
- Um problema de cada vez - afirmou Harald. - Ainda nem pusemos o motor a trabalhar.
Karen sabia o que fazer. - Vou encharcar o carburador - disse.
Harald ligou o combustível. Karen mexeu no mecanismo de entrada até o combustível escorrer para o chão, depois gritou: - Ligar mag-netos.
Harald ligou os magnetos e verificou se o acelerador continuava na posição ligeiramente aberto.
Karen agarrou a hélice e fê-la descer. Mais uma vez, houve um estalido seco. - Ouviste aquilo? - perguntou.
- Sim.
- É o impulso do motor de arranque. Sabemos que está a funcionar pelo estalido. - Rodou a hélice uma segunda vez, depois uma terceira. Por fim, deu um puxão forte e recuou rapidamente.
O motor soltou um guincho horrível, que ecoou pela igreja, depois calou-se.
Harald soltou vivas.
Karen perguntou-lhe: - Por que estás tão satisfeito?
- Pegou! Não pode estar avariado.
- Só que não pegou.
- Vai pegar, vai pegar. Experimenta outra vez.
Rodou novamente a hélice, mas com idêntico resultado. A única diferença foi nas faces de Karen, que se ruborizaram atraentemente por causa do esforço.
Ao cabo de uma terceira tentativa, Harald desligou os comutadores. - O combustível flui agora livremente - afirmou. - Parece-me que o problema está na ignição. Precisamos de algumas ferramentas.
- Existe um estojo de ferramentas. - Karen debruçou-se sobre a cabina e levantou uma almofada, pondo a descoberto um compartimento grande debaixo do banco. Pegou num saco de lona com correias de couro.
Harald abriu o saco e retirou uma chave inglesa com cabeça cilíndrica e uma junta articulada, destinada a funcionar em ângulos. - Uma chave universal de velas de ignição - disse. - O capitão de Havilland fez ao menos uma coisa certa.
Havia quatro velas de ignição do lado direito do motor. Harald removeu uma e examinou-a. Tinha óleo nas pontas. Karen tirou do bolso dos calções um lenço de assoar com renda na ponta e limpou a vela. Encontrou um calibrador no estojo de ferramentas e verificou a medida. Harald substituiu então a vela. Repetiu o processo para as outras três.
- Existem mais quatro do lado de lá - advertiu Karen. Apesar de o motor ter apenas quatro cilindros, existiam dois magnetos, cada um fazendo funcionar o seu próprio conjunto de velas de ignição - uma medida de segurança, calculou Harald. As velas do lado esquerdo eram mais difíceis de alcançar, situavam-se por detrás de duas placas de arrefecimento que foi necessário remover primeiro.
Depois de verificadas todas as velas, Harald retirou as tampas de baquelite por cima dos platinados e inspeccionou as pontas. Por fim, removeu sucessivamente a tampa do distribuidor de cada magneto, e limpou o interior com o lenço de Karen, que se tornara naquele momento um trapo imundo.
- Efectuei todos os procedimentos óbvios - comunicou. - Se agora não pegar, estamos em sérios apuros.
Karen voltou a preparar o motor, depois rodou a hélice lentamente três vezes. Harald abriu a porta da cabina e accionou os comutadores dos magnetos. Karen deu um impulso final à hélice e recuou.
O motor rodou, guinchou e hesitou. Harald, de pé junto à porta com a cabeça dentro da cabina, abriu o acelerador. O motor ganhou vida. Harald soltou vivas quando a hélice girou, mas mal conseguia ouvir a sua voz acima do ruído. O som do motor repercutia-se pelas paredes da igreja e fazia uma barulheira infernal. Viu a cauda de Pinetop desaparecer por uma janela.
Karen aproximou-se dele, o cabelo em desalinho com a corrente de ar produzida pela hélice. Na sua exuberância, Harald abraçou-a. - Conseguimos! - berrou. Ela abraçou-o, para seu intenso prazer, depois disse algo. Ele abanou a cabeça, para indicar que não conseguia ouvi-la.
Aproximou-se deliciosamente dele e falou-lhe ao ouvido. Sentiu os lábios dela roçarem-lhe a face. Mal conseguia pensar fosse no que fosse excepto em como seria fácil beijá-la naquele momento. - Devíamos desligá-lo, antes que alguém ouça! - gritou.
Harald lembrou-se que não se tratava de uma brincadeira, e que a finalidade da reparação do avião era efectuarem uma perigosa missão secreta. Enfiou a cabeça na cabina, colocou o acelerador na posição de fechado e desligou os magnetos. O motor parou.
Quando o ruído cessou, o interior da igreja deveria ter ficado silencioso, mas não. Do exterior, vinha um som estranho. A princípio, Harald julgou que os seus ouvidos registavam ainda o ruído do motor, mas, aos poucos, foi-se apercebendo de que era algo mais. Mesmo assim, não queria acreditar no que ouvia, pois parecia o barulho de pés em marcha.
Karen fitou-o, a perplexidade e o medo estampados no seu rosto.
Viraram-se ambos e correram para as janelas. Harald saltou para o caixote que usava para espreitar pelas janelas altas. Estendeu a mão a Karen, que subiu para junto dele. Olharam os dois.
Um grupo de cerca de trinta soldados de uniforme alemão vinha a marchar pelo acesso.
A princípio, presumiu que andassem à sua procura, mas logo se apercebeu de que não tinham o ar de quem vinha numa caça ao homem. A maior parte parecia estar desarmada. Traziam uma carroça puxada por quatro cavalos cansados, carregada com o que se afigurava ser equipamento de campanha. Passaram a marchar pelo mosteiro e continuaram a subir o acesso. - O que raio é isto? - indagou.
- Eles não podem entrar aqui! - afirmou Karen.
Olharam ambos para o interior da igreja. A entrada principal, no extremo virado a poente, consistia em duas enormes portas de madeira. Era por lá que o Hornet Moth devia ter entrado, com as asas recolhidas. Harald entrara também por ali com a sua motorizada. Tinha uma enorme fechadura velha no interior com uma chave gigante, mais uma tranca de madeira assente em suportes.
Só havia uma outra entrada, a pequena porta lateral a que se acedia pelos claustros. Era a que Harald normalmente usava. Tinha uma fechadura, mas Harald nunca vira qualquer chave. Não havia tranca.
- Podíamos pregar a porta pequena, depois entrávamos e saíamos pelas janelas como o Pinetop - alvitrou Karen.
- Temos um martelo e pregos... precisamos de um bocado de madeira. Num espaço cheio de tralha deveria ter sido fácil encontrar uma
tábua forte mas, para decepção de Harald, não havia nada adequado. Acabou por tirar uma das prateleiras da parede por cima da bancada. Colocou-a na diagonal sobre a porta e pregou-a firmemente à ombreira.
- Dois homens conseguiriam deitá-la abaixo sem grande esforço - disse. - Mas pelo menos, assim já ninguém entra descontraida-mente e descobre o nosso segredo.
- No entanto, sempre podem espreitar pelas janelas - afirmou Karen. - Só precisariam de descobrir algo em que se empoleirar.
- Vamos esconder a hélice. - Harald pegou na cobertura de lona que tinham retirado do Rolls-Royce. Juntos, colocaram-na sobre o nariz do Hornet Moth. Era suficiente para cobrir a cabina.
Recuaram. Karen disse: - Continua a parecer um avião com o nariz tapado e as asas recolhidas.
- Para ti, sim. Mas tu já sabes o que é. Alguém que venha espreitar pela janela só vai ver um espaço cheio de tralha.
- A menos que seja aviador.
- Aquilo ali não era a Luftwaffe, pois não?
- Não sei - respondeu ela. - É melhor eu ir tentar descobrir.
Hermia vivera mais anos na Dinamarca do que em Inglaterra, mas de repente aquele país tornara-se estrangeiro para ela. As ruas familiares de Copenhaga apresentavam um ar hostil, e tinha a sensação de dar nas vistas. Seguia apressada como uma fugitiva pelas ruas onde passeara em criança de mão dada com o pai, inocente e despreocupada. Não eram apenas os postos de controlo, os uniformes alemães e os Mercedes verde-acinzentados. Até a polícia dinamarquesa a deixava sobressaltada.
Tinha amigos ali, mas não os contactou. Receava colocar as pessoas em perigo. Poul morrera, Jens teria sido preso, e não sabia o que sucedera a Arne. Sentiu-se amaldiçoada.
Estava exausta e rígida da viagem nocturna de ferry, e preocupadíssima com Arne. Dolorosamente consciente da passagem das horas até que surgisse a lua cheia, fez um esforço por se deslocar com a máxima cautela.
A casa de Jens Toksvig em St. Pauis Gade fazia parte de uma fila delas, todas de um só piso, com as portas da rua a darem directamente para o passeio. A número cinquenta e três afigurava-se vazia. Ninguém lá ia senão o carteiro. Na véspera, quando Hermia telefonara de Born-holm, estivera lá pelo menos um polícia, mas o guarda devia ter sido retirado.
Hermia observou também as vizinhas. De um lado ficava uma casa bastante estragada, ocupada por um casal jovem com um filho - o tipo de pessoas que estariam demasiado absortas na sua própria vida para se interessarem pelos vizinhos. Mas na casa recentemente pintada e com cortinas bonitas do outro lado vivia uma mulher mais velha que vinha com frequência espreitar à janela.
Depois de três horas a observar, Hermia aproximou-se da casa bem cuidada e bateu à porta.
Uma mulher roliça de cerca de sessenta anos veio abrir, de avental. Olhando para a maleta que Hermia trazia, disse: - Nunca compro nada à porta. - Sorriu com ar superior, como se a sua recusa fosse um sinal de distinção social.
Hermia retribuiu o sorriso. - Disseram-me que o número cinquenta e três poderia ter um quarto para alugar.
A atitude da vizinha mudou. - Oh? - inquiriu com interesse. - Anda à procura de um lugar para morar, é?
- Sim. - A mulher era tão abelhuda quanto Hermia esperara. Fazendo-lhe a vontade, Hermia acrescentou: - Vou-me casar.
O olhar da mulher dirigiu-se automaticamente para a mão esquerda de Hermia, e esta mostrou o anel de noivado. - Muito bonito. Bem, devo dizer que seria um alívio ter uma família respeitável a morar aqui ao lado, depois dos acontecimentos dos últimos dias.
- Acontecimentos?
Baixou a voz. - Era um ninho de espiões comunistas.
- Não me diga!?
A mulher cruzou os braços sobre o peito espartilhado. - Foram presos na passada quarta-feira, todo o bando.
Hermia sentiu um arrepio de medo, mas fez um esforço por manter um ar de mera bisbilhotice. - Valha-me Deus! Quantos?
- Não sei dizer ao certo. Havia o tenente, o jovem senhor Toksvig, que nunca teria na conta de um malfeitor, muito embora nem sempre se mostrasse respeitoso com os mais velhos, como convinha. Depois, ultimamente, parecia estar a morar lá um aviador, um rapaz bem-pare-cido, apesar de pouco falador; mas era um constante entrar e sair da casa, principalmente tipos militares.
- E foram todos presos na quarta-feira?
- Naquele mesmo passeio, onde vê o spaniel do senhor Schmidt a alçar a perna, houve um tiroteio.
Hermia sufocou um grito e levou a mão à boca. - Oh, não!
A velha acenou com a cabeça, satisfeita com aquela reacção à sua história, sem desconfiar de que pudesse estar a falar do homem que Hermia amava. - Um polícia à paisana alvejou um dos comunistas. - Acrescentou desnecessariamente: - Com uma pistola.
Hermia ficou com tanto medo do que pudesse vir a saber que nem conseguia falar. Fez um esforço para articular três palavras: - Quem foi alvejado?
- Não cheguei bem a ver - referiu a mulher, com infinito pesar. - Por acaso estava em casa da minha irmã, em Fischer's Gade, a pedir emprestada uma amostra de tricô para um casaco de malha. Não foi o próprio senhor Toksvig, disso tenho a certeza, porque o senhor Eriksen da loja viu tudo, e disse que era um homem que não conhecia.
- Ele... morreu?
- Oh, não. O senhor Eriksen pensa que ele tenha ficado ferido na perna. De qualquer forma gritou quando os homens da ambulância o colocaram na maca.
Hermia teve a certeza de que Arne fora alvejado. Pareceu sentir pessoalmente a dor de um ferimento de bala. Sentiu-se com falta de ar e tonta. Precisava de se afastar daquela velha horrorosa e metediça, capaz de contar uma história tão trágica com tamanho requinte. - Tenho de ir andando - disse-lhe. - Que coisa medonha foi acontecer. - Virou costas.
- De qualquer forma, acho que dentro em breve a casa estará para alugar - disse a mulher nas costas dela.
Hermia afastou-se, ignorando-a.
Virou as esquinas ao acaso até encontrar um café, onde se sentou para ordenar os pensamentos. Uma chávena de sucedâneo de chá quente ajudou-a a recuperar do choque. Tinha de saber ao certo o que acontecera a Arne e onde estava naquele momento. Mas primeiro precisava de um sítio onde passar a noite.
Arranjou um quarto num hotel barato perto da zona marítima. Era um lugar sórdido, mas a porta do quarto tinha uma fechadura forte. Por volta da meia-noite, uma voz pastosa do lado de fora perguntou-lhe se queria tomar uma bebida, e ela levantou-se e barrou a porta com uma cadeira inclinada.
Passou a maior parte da noite acordada, perguntando-se se Arne fora o homem alvejado em St. Pauis Gade. Se sim, qual a gravidade dos seus ferimentos? Se não, fora detido com os outros, ou ainda andava a monte? A quem poderia perguntar? Podia contactar a família de Arne, mas provavelmente não saberiam, e pregar-lhes-ia um susto de morte se perguntasse se ele fora alvejado. Conhecia muitos dos amigos dele, mas aqueles que provavelmente saberiam o que lhe acontecera estavam mortos, detidos ou escondidos.
Às primeiras horas da manhã, ocorreu-lhe que havia uma pessoa que saberia quase de certeza se Arne fora detido: o seu oficial de comando.
Ao raiar do dia, dirigiu-se à estação dos caminhos-de-ferro e apanhou o comboio para Vodal.
Enquanto o comboio se arrastava para sul, parando em todas as pacatas aldeias, pensou em Digby. Nesta altura, estaria de volta à Suécia, esperando impacientemente no cais, em Kalvsby, que ela chegasse com Arne e a película. O pescador teria regressado sozinho, e dito a Digby que Hermia não aparecera no ponto de encontro. Digby não saberia se ela fora capturada ou se simplesmente se atrasara. Ficaria preocupado consigo tal como ela estava com Arne.
A escola de voo causou-lhe uma impressão desolada. Não se viam aviões nem na pista nem no céu. Alguns aparelhos estavam a ser reparados e, num dos hangares, o interior de um motor era mostrado a alguns instruendos. Foi encaminhada para o edifício principal.
Teve de dar o seu nome verdadeiro, pois havia ali pessoas que a conheciam. Pediu para ser recebida pelo comandante da base, acrescentando: - Diga-lhe que sou amiga do Arne Olufsen.
Sabia que estava a correr um risco. Conhecera o chefe de esquadrilha Renthe, e recordava-o como um homem alto e magro, com bigode. Desconhecia as suas tendências políticas. Se, por acaso, fosse pró-nazi, estaria em apuros. Poderia telefonar à polícia e informar que uma inglesa andava a fazer perguntas. Mas ele gostava de Arne, assim como muitas outras pessoas, por isso tinha esperança de que, em consideração para com ele, não a fosse trair. De qualquer forma, teria de correr o risco. Precisava de descobrir o que acontecera.
Foi recebida de imediato, e Renthe reconheceu-a. - Meu Deus! Você é a noiva do Arne! - exclamou. - Julguei que tivesse voltado para Inglaterra. - Apressou-se a fechar a porta depois de ela entrar - um bom sinal, pensou, pois se ele queria privacidade, isso sugeria que não ia alertar a polícia, pelo menos não de imediato.
Decidiu não dar qualquer explicação sobre a razão da sua presença na Dinamarca. Deixá-lo-ia tirar as suas próprias conclusões. - Ando a tentar descobrir onde se encontra o Arne - disse-lhe. - Receio que possa estar em apuros.
- É pior do que isso - afirmou Renthe. Hermia permaneceu de pé. - Porquê? -
sentar-me? O que aconteceu?
- Ele foi detido na passada quarta-feira.
- É melhor sentar-se.
- indagou. - Porquê
- É tudo?
. - Foi alvejado e ferido ao tentar fugir à polícia.
- Afinal era ele.
- Desculpe?
- Uma vizinha contou-me que ele fora alvejado. Como é que ele está?
- Por favor, sente-se, minha cara. Hermia sentou-se. - É grave, não é?
- Sim. - Renthe hesitou. Depois, em voz baixa, declarou pausadamente. - Lamento imenso ter de lhe dar a notícia de que, infelizmente, o Arne morreu.
Hermia soltou um grito de angústia. No seu íntimo, soubera que era uma hipótese, mas a possibilidade de o perder fora demasiado medonha de imaginar. Agora que isso acontecera, sentiu-se como se tivesse sido colhida por um comboio. - Não - disse. - Não é verdade.
- Ele morreu à guarda da polícia.
- O quê? - A custo, fez um esforço para escutar.
- Ele morreu na sede da polícia.
Passou-lhe pela cabeça uma terrível possibilidade. - Torturaram-no?
- Não creio. Parece que, para evitar revelar informações sob tortura, acabou com a própria vida.
- Ó meu Deus!
- Calculo que se tenha sacrificado para proteger os amigos.
O rosto de Renthe ficou desfocado, e Hermia apercebeu-se de que o via por entre as lágrimas, que lhe desciam pelo rosto. Procurou um lenço de assoar e Renthe estendeu-lhe o seu. Limpou o rosto, mas as lágrimas continuavam a cair.
Renthe disse: - Foi apenas o que me constou. Tenho de telefonar aos pais do Arne a avisá-los.
Hermia conhecia-os bem. Achava o pastor inflexível e de trato difícil: parecia que só se conseguia relacionar com as pessoas dominando-as, e a subserviência não era fácil para Hermia. Ele amava os filhos, mas exprimia o seu amor impondo regras. O que Hermia recordava mais vivamente da mãe de Arne eram as mãos, sempre gretadas de passarem demasiado tempo na água, a lavar roupa, a preparar os legumes e a esfregar o chão. Ao pensar neles, Hermia afastou os pensamentos da sua própria dor, e sentiu um acesso de compaixão. Ficariam arrasados. - É horrível ter de ser o portador de tais notícias - afirmou a Renthe.
- Efectivamente. O seu filho primogénito.
O que a fez pensar no outro filho, Harald. Era louro, ao passo que Arne era moreno, entre outras diferenças: Harald era mais sisudo, um tanto intelectual, com muito pouco do encanto fácil de Arne, mas não deixando de ser simpático. Arne dissera que ia falar com Harald sobre a forma de se infiltrar na base em Sande. Até que ponto estaria Harald ao corrente da situação? Chegara a envolver-se?
A sua mente retomava as questões práticas, mas sentia-se vazia. O estado de choque em que se encontrava permitir-lhe-ia levar a sua vida por diante, mas achava que nunca mais voltaria a ser a mesma. - O que mais lhe disse a polícia? - perguntou a Renthe.
- Oficialmente, dizem que ele morreu enquanto dava informações e que "supostamente nenhuma outra pessoa estará envolvida", ou seja, o eufemismo deles para suicídio. Mas um amigo em Politigaarden contou-me que o Arne se matou para evitar ser entregue à Gestapo.
- Encontraram algo na sua posse?
- Está a referir-se ao quê?
- Por exemplo, fotografias?
Renthe empertigou-se. - O meu amigo não referiu, e é perigoso nós estarmos sequer a falar de semelhante possibilidade. Miss Mount, eu era amigo do Arne e, em nome dessa amizade, gostaria de fazer por si tudo o que pudesse, mas, por favor, lembre-se de que, como oficial, jurei lealdade ao Rei, o que me obriga a cooperar com a potência ocupante. Quaisquer que possam ser as minhas opiniões pessoais, não devo compactuar com espionagem; e, se eu achasse que alguém estava envolvido em semelhante actividade, teria o dever de comunicar os factos.
Hermia anuiu. Era inequivocamente um aviso. - Agradeço a sua franqueza, chefe de esquadrilha. - Levantou-se, limpando o rosto. Lembrou-se de que o lenço era dele e disse: - Vou lavá-lo, e depois devolvo-lho.
- Nem pense nisso. - Saiu de trás da secretária e colocou-lhe as mãos nos ombros. - Acredite que lamento profundamente. Por favor, aceite as minhas sentidas condolências.
- Obrigada - disse, e saiu.
Mal abandonou o edifício, as lágrimas voltaram. O lenço de Renthe era um trapo ensopado. Não imaginava que pudesse conter tanto fluido. Vendo tudo através de um filtro aquoso, encaminhou-se para a estação dos caminhos-de-ferro.
A calma aparente voltou ao considerar aonde ir de seguida. A missão que matara Poul e Arne não terminara. Ainda tinha de conseguir as fotografias do equipamento de radar em Sande antes da próxima lua cheia. Só que, naquele momento, tinha um motivo adicional: vingança. Concluir a tarefa seria a desforra mais dolorosa que poderia infligir aos homens que haviam levado Arne à morte. E encontrou uma nova força para a ajudar. Já não lhe interessava a sua própria segurança. Estava disposta a correr qualquer risco. Percorreria as ruas de Copenhaga de cabeça erguida, e ai daquele que a tentasse impedir. Mas o que iria exactamente fazer?
O irmão de Arne podia ser a solução. Provavelmente Harald saberia se Arne regressara a Sande antes de a polícia o apanhar, e podia inclusivamente saber se Arne tinha na sua posse as fotografias quando fora preso. Além disso, julgava saber onde encontrar Harald.
Apanhou um comboio de regresso a Copenhaga. Este circulou tão devagar que, quando chegou à cidade, era demasiado tarde para outra viagem. Foi dormir à sua espelunca, com a cadeira a travar a porta por causa dos bêbedos à procura de amor, e adormeceu a chorar. Na manhã seguinte apanhou o primeiro comboio para a aldeia suburbana de Jansborg.
O jornal que comprara na estação trazia a seguinte parangona: "A MEIO CAMINHO DE MOSCOVO". Os nazis haviam efectuado etapas extraordinárias. Apenas numa semana, Minsk fora tomada e estavam na mira de Smolensk, trezentos e vinte quilómetros para o interior do território soviético. A lua cheia era dali a oito dias.
Informou o secretário do colégio que era a noiva de Arne Olufsen, e foi imediatamente conduzida ao gabinete de Heis. O homem responsável pela educação de Arne e Harald lembrou-lhe uma girafa com óculos, olhando com desprezo o mundo cá em baixo. - Portanto é a futura mulher do Arne - disse-lhe com simpatia. - Muito prazer em conhecê-la.
Parecia não ter conhecimento da tragédia. Sem mais preâmbulos, Hermia perguntou-lhe: - Não soube a notícia?
- A notícia? Não sei ao que se...
- O Arne morreu.
- Oh, valha-me Deus! - Heis sentou-se pesadamente.
- Julguei que soubesse.
- Não. Quando foi isso?
- Ontem de madrugada, na sede da polícia em Copenhaga. Suicidou-se para não ser interrogado pela Gestapo.
- Que horror!
- Quer então dizer que o irmão dele ainda não sabe?
- Não faço ideia. O Harald já cá não está. Ficou surpreendida. - Como assim?
- Receio que tenha sido expulso.
- Julguei que era um aluno brilhante.
- Sim, mas teve um comportamento reprovável.
Hermia não dispunha de tempo para discutir o mau comportamento dos alunos. - E onde se encontra ele neste momento?
- Em casa dos pais, presumo. - Heis carregou o semblante. - Por que pergunta?
- Gostaria de falar com ele.
Heis pareceu pensativo. - Sobre algum assunto em particular?
Hermia hesitou. A cautela aconselhava-a a não mencionar a sua missão a Heis, mas as duas últimas perguntas haviam-lhe sugerido que ele sabia algo. Passou a explicar: - É possível que o Arne tivesse em seu poder algo que me pertence quando foi detido.
Heis fingia que as suas perguntas eram fortuitas, mas agarrara-se à borda da secretária com força suficiente para os nós dos dedos ficarem brancos. - Posso inquirir o quê?
Ela tornou a hesitar, depois decidiu arriscar. - Umas fotografias.
- Ah.
- Diz-lhe alguma coisa?
- Sim.
Hermia perguntou-se se Heis confiaria nela. Tanto quanto sabia, poderia ser uma detective a fazer-se passar pela noiva de Arne. - O Arne morreu por causa dessas fotografias - referiu. - Estava a tentar fazê-las chegar à minha mão.
Heis anuiu, e pareceu tomar uma decisão. - Depois de o Harald ter sido expulso, regressou ao colégio à noite, entrou furtivamente na câmara escura do laboratório de química.
Hermia suspirou de satisfação. Harald revelara a película. - Viu as fotografias?
- Sim. Tenho dito às pessoas que eram fotografias de jovens senhoras em poses escabrosas, mas isso é para enganar. As fotografias eram de uma instalação militar.
Hermia ficou encantada. As fotografias tinham sido tiradas. Pelo menos a missão tivera êxito. Mas onde estava a película naquele momento? Houvera tempo para Harald a entregar a Arne? Se sim, estaria nas mãos da polícia naquele momento, e o sacrifício dele fora inútil. - Quando foi que o Harald cá esteve?
- Na passada quinta-feira.
- O Arne foi preso na quarta-feira.
- Por conseguinte, as fotografias ainda estão com o Harald.
- Sim. - Hermia ficou mais animada. A morte de Arne não fora em vão. A película crucial ainda se encontrava em circulação, algures. Levantou-se. - Obrigado pela sua ajuda.
- Vai a Sande?
- Sim. Para encontrar o Harald.
- Boa sorte - desejou-lhe Heis.
O exército alemão tinha um milhão de cavalos. A maior parte das divisões incluía uma companhia de veterinária, encarregue do tratamento dos animais doentes e feridos, de arranjar forragem e apanhar os desembestados. Chegara agora uma dessas companhias a Kirstenslot.
Era o pior golpe de sorte possível para Harald. Os oficiais estavam a viver no castelo, e cerca de uma centena de homens fora instalada no mosteiro em ruínas. Os velhos claustros, adjacentes à igreja onde Harald ficava escondido, haviam sido transformados num hospital de cavalos.
O exército fora persuadido a não usar a própria igreja. Karen suplicara ao pai que entrasse em negociações sobre o assunto, dizendo que não queria que os soldados estragassem os tesouros de infância que ali estavam guardados. O Sr. Duchwitz fizera ver ao oficial de comando, o capitão Kleiss, que a tralha na igreja deixava também muito pouco espaço utilizável. Depois de espreitar por uma janela - estando Harald ausente, avisado por Karen - , Kleiss concordara em mantê-la fechada. Como compensação, solicitara três divisões no castelo para gabinetes, e o acordo fora celebrado.
Os alemães eram educados, simpáticos - e curiosos. Para além das dificuldades que Harald enfrentava para a reparação do Hornet Moth, era agora obrigado a fazer tudo mesmo nas barbas dos soldados.
Estava a desapertar as porcas que prendiam o eixo deformado em forma de fúrcula. Tencionava separar a secção danificada, depois passar sorrateiramente pelos soldados e ir à oficina do agricultor Nielsen. Se este o deixasse, repará-lo-ia ali. Entretanto, o terceiro suporte intacto, com o amortecedor, aguentaria o peso do avião enquanto parado. Provavelmente, o travão sobre a roda estaria danificado, mas Harald não se ia preocupar com os travões. Eram usados principalmente para deslizar, e Karen informara-o de que os dispensaria.
Enquanto trabalhava, Harald olhava constantemente pelas janelas, na esperança de ver a qualquer momento o rosto do capitão Kleiss a espreitar lá para dentro. Kleiss tinha o nariz grande e o queixo espetado, conferindo-lhe um aspecto beligerante. Mas não apareceu ninguém, e passados alguns minutos Harald tinha o suporte em forma de V na mão.
Empoleirou-se num caixote para espreitar por uma janela. A extremidade da igreja virada a nascente ficava parcialmente obscurecida por um castanheiro agora cheio de folhas. Parecia não se encontrar ninguém nas proximidades. Harald enfiou o suporte pela janela e atirou-o para o chão lá fora, depois foi a sua vez de saltar.
Via para lá da árvore o extenso relvado em frente ao castelo. Os soldados haviam montado quatro tendas grandes e estacionado os seus veículos ali, jipes, boxes de cavalos e um camião-cisterna. Viam-se alguns homens, a passar de uma tenda a outra, mas era de tarde, e a maior parte da companhia estava ausente em missões, levando cavalos para a estação dos caminhos-de-ferro, negociando com os agricultores, ou tratando dos cavalos doentes em Copenhaga e noutras cidades.
Apanhou o suporte e encaminhou-se rapidamente para a mata. Quando virou a esquina da igreja, deparou com o capitão Kleiss.
Este era um homem grande com ar agressivo, e estava de braços cruzados sobre o peito e pernas afastadas, a conversar com um sargento. Viraram-se ambos e olharam directamente para Harald.
Harald foi acometido de uma súbita náusea de medo. Ia ser apanhado tão cedo? Estacou, apetecendo-lhe virar costas, depois apercebeu-se de que fugir seria incriminatório. Hesitou, em seguida avançou, consciente de que o seu comportamento denotava culpa, para além de que levava parte do trem de aterragem de um avião. Fora apanhado em flagrante e só lhe restava tentar enganá-los. Procurou segurar o suporte descontraidamente, como se levasse uma raqueta de ténis ou um livro.
Kleiss dirigiu-se-lhe em alemão. - Quem é você?
Engoliu em seco, procurando manter-se calmo. - Harald Olufsen.
- E o que é isso que leva aí?
- Isto? - Harald ouvia os seus próprios batimentos cardíacos. Esforçou-se desesperadamente por arranjar uma mentira plausível. - E, hã... - Sentiu-se ruborizar, mas depois foi salvo pela inspiração. - Parte do dispositivo de ceifa de uma segadeira mecânica. - Ocorreu-lhe que um moço de lavoura dinamarquês pouco instruído não falaria um alemão tão correcto, e ficou ansioso por saber se Kleiss era suficientemente subtil para detectar a anomalia.
Kleiss respondeu: - Qual é o problema da máquina?
- Hã, passou por cima de um pedregulho e a estrutura ficou deformada.
Kleiss tirou-lhe o suporte. Harald esperava que ele não soubesse para o que estava a olhar. A especialidade do homem eram os cavalos, e nada fazia pensar que pudesse identificar parte do trem de aterragem de um avião. Harald ficara com a respiração em suspenso, aguardando o veredicto de Kleiss. Por fim, o homem devolveu-lhe o suporte. - Está bem, pode seguir.
Harald entrou na mata.
Quando desapareceu de vista, parou e encostou-se a uma árvore. Fora um momento atroz. Julgou que fosse vomitar, mas conseguiu reprimir a reacção.
Recompôs-se. Poderia haver mais momentos como aquele. Teria de se acostumar.
Prosseguiu a marcha. O tempo estava quente mas nublado, uma combinação estival tristemente familiar na Dinamarca, onde nenhum lugar ficava longe do mar. Quando se aproximou da quinta, ficou curioso em saber se o velho Nielsen estaria muito zangado por ele se ter vindo embora depois de trabalhar apenas um dia.
Encontrou Nielsen no pátio da quinta, a olhar muito carrancudo para um tractor com o motor a fumegar.
Nielsen fuzilou-o com o olhar. - O que queres tu, fugitivo?
Era um mau começo. - Peço desculpa por me ter ido embora sem dar explicações - afirmou Harald. - Fui chamado a casa dos meus pais de repente, e não tive tempo de o avisar antes de partir.
Nielsen não lhe perguntou qual fora a emergência. - Não posso permitir-me pagar a trabalhadores que não inspiram confiança.
Harald ficou esperançado. Se o que preocupava o velho agricultor era o dinheiro, podia ficar com ele. - Não estou a pedir-lhe que me pague.
Nielsen limitou-se a soltar um resmungo, mas o seu ar era agora ligeiramente menos ameaçador. - Afinal o que queres?
Harald hesitou. Esta era a parte difícil. Não queria revelar demasiado a Nielsen. - Um favor - disse-lhe.
- De que tipo?
Harald mostrou-lhe o suporte. - Gostaria de usar a sua oficina para reparar uma peça da minha motorizada.
Nielsen olhou para ele. - Deus seja louvado, rapaz, descaramento é coisa que não te falta.
"Eu sei", pensou Harald. - É muito importante - suplicou. - Talvez pudesse fazê-lo em vez de me pagar o dia que trabalhei.
- Talvez pudesse. - Nielsen hesitou, obviamente relutante em fazer algo útil, mas a sua parcimónia venceu-o. - Então está bem.
Harald disfarçou o seu júbilo.
Nielsen acrescentou: - Se primeiro me arranjares o raio deste tractor.
Harald praguejou entre dentes. Não queria desperdiçar uma hora com o tractor de Nielsen quando tinha tão pouco tempo para reparar o Hornet Moth. Mas era apenas um radiador a ferver. - Está bem - disse.
Nielsen afastou-se à procura de outra coisa com que resmungar.
Pouco depois, o tractor deixou de libertar vapor e Harald pôde observar o motor. Viu imediatamente que havia um tubo de borracha estragado no sítio onde estava fixo com um grampo a um cano, deixando sair a água do sistema de arrefecimento. Não era possível arranjar um substituto, como é evidente, mas, felizmente, aquele tinha alguma folga, pelo que foi possível cortar a extremidade estragada e voltar a introduzir o tubo. Foi buscar um balde de água quente à cozinha da casa da quinta e encheu de novo o radiador - não convinha deitar água fria num motor sobreaquecido. Por fim, ligou o tractor e certificou-se de que o grampo cumpria as suas funções. Cumpria. Pôde finalmente dirigir-se à oficina.
Precisava de folha de aço fina para reforçar a parte fracturada do suporte do eixo. Já sabia onde arranjá-la. Havia quatro prateleiras de metal na parede. Tirou tudo da de cima, arrumou novamente os artigos nas três prateleiras inferiores. A seguir, levantou a última prateleira. Servindo-se da tesoura de metal de Nielsen, aparou os rebordos da prateleira, depois cortou quatro tiras.
Usá-las-ia para criar uma estrutura de reforço. Colocou uma tira num torno e martelou-a até obter uma curva tosca que encaixaria no tubo oval do suporte. Fez o mesmo às outras três tiras. Seguidamente soldou-as por cima das mossas no suporte.
Recuou para observar a sua obra. - Feio, mas eficaz - afirmou em voz alta.
Regressando ao castelo pela mata, ouviu os sons do acampamento do exército: homens a chamarem uns pelos outros, motores a trabalhar, cavalos a relinchar. Principiava a anoitecer, e os soldados já teriam regressado das suas tarefas diárias. Perguntou-se se haveria problema em voltar à igreja sem ser notado.
Aproximou-se do mosteiro pelas traseiras. No lado nascente da igreja, estava um jovem soldado raso encostado à parede, a fumar um cigarro. Harald baixou-lhe a cabeça, e o soldado disse em dinamarquês: - Bom dia, sou o Leo.
Harald procurou sorrir. - Eu chamo-me Harald, muito prazer em conhecer-te.
- Queres um cigarro?
- Obrigado, fica para a próxima, estou com pressa.
Harald contornou a lateral da igreja. Encontrara um toro e fizera-o rolar até debaixo de uma das janelas. Subiu então para ele e espreitou a igreja. Introduziu o suporte em forma de fúrcula pela janela sem vidros e atirou-o para um caixote que se encontrava lá dentro por debaixo da janela. Fez ricochete no caixote e caiu para o chão. A seguir enfiou-se lá para dentro.
Uma voz disse: - Olá!
O seu coração estacou; depois viu que era Karen. Estava na cauda, parcialmente escondida pelo avião, a trabalhar na asa danificada. Harald apanhou o suporte do eixo e foi mostrar-lho.
A seguir, uma voz disse em alemão: - Julgava que este sítio estava
vazio.
Harald virou-se. O jovem soldado raso, Leo, espreitava pela janela. Harald olhou para ele, aterrado, amaldiçoando a sua sorte. - É um armazém - explicou-lhe.
Leo contorceu-se pela janela e saltou para o chão. Harald mirou furtivamente a cauda do avião. Karen desaparecera. Leo olhou à sua volta, parecendo mais curioso do que desconfiado.
O Hornet Moth estava coberto da hélice à cabina, e tinha as asas recolhidas, mas podia ver-se a fuselagem e o plano vertical ao fundo da igreja. Até que ponto era Leo observador?
Felizmente, o soldado pareceu mais interessado no Rolls-Royce. - Belo carro - comentou. - É teu?
- Infelizmente, não - redarguiu Harald. - A motorizada é minha. - Mostrou-lhe o suporte do eixo do Hornet Moth. - Isto é para o meu carro lateral. Estou a tentar arranjá-lo.
- Ah! - Leo não evidenciou qualquer cepticismo. - Gostaria de ajudar, mas não percebo nada de maquinaria. A minha especialidade é carne de cavalo.
- Claro. - Eram praticamente da mesma idade, e Harald sentiu compaixão pelo jovem solitário longe de casa. Mas não deixou de desejar que Leo se fosse embora antes que visse de mais.
Soou um apito estridente. - Hora de jantar - anunciou Leo. "Graças a Deus", pensou Harald.
- Foi um prazer conversar contigo, Harald. Estou ansioso por voltar a ver-te.
- Igualmente.
Leo subiu para o caixote e içou-se pela janela.
- Santo Deus! - exclamou Harald em voz alta.
Karen saiu de trás da cauda do Hornet Moth, parecendo abalada. - Foi um momento periclitante.
- Ele não estava desconfiado, só queria conversar.
- Deus nos livre dos alemães simpáticos - respondeu, com um sorriso.
- Amen. - Adorava quando ela sorria. Era como o Sol a nascer. Fitou o rosto dela o máximo que ousou.
Depois virou-se para a asa onde ela estivera a trabalhar. Viu que reparara os rasgões. Aproximou-se e ficou ao lado dela. Vestia umas calças velhas de bombazina que pareciam ter sido usadas para jardinagem, e uma camisa de homem com as mangas arregaçadas. - Estou a colar remendos de pano sobre as zonas danificadas - explicou. - Quando a cola secar, pinto os remendos para os tornar estanques.
- Onde arranjaste o material, a cola e a tinta?
- No teatro. Fiz olhinhos a um cenógrafo.
- Que bom para ti. - Pelos vistos era fácil conseguir que os homens fizessem tudo o que ela queria. Sentiu ciúmes do cenógrafo. - Afinal, o que fazes todo o dia no teatro?
- Estou a preparar o papel principal de Les Sylphides.
- Terás oportunidade de o dançar em palco?
- Não. Há dois elencos, por isso só se os outros bailarinos adoecerem.
- Que pena. Adoraria ver-te.
- Se acontecer o impossível, arranjo-te um bilhete. - Voltou a dar atenção à asas. - Temos de nos certificar de que não existem fracturas internas.
- Isso quer dizer que temos de examinar as longarinas de madeira debaixo do tecido.
- Sim.
- Bem, agora que temos o material para reparar os rasgões, acho que podíamos abrir um painel de inspecção no tecido e espreitar lá para dentro.
Ela pareceu ter dúvidas. - Está bem...
Harald não achou que uma faca conseguisse cortar com facilidade o tecido tratado, mas encontrou um cinzel afiado na prateleira das ferramentas. - Onde deveríamos cortar?
- Próximo dos suportes.
Pressionou a superfície com o cinzel. Uma vez aberto o rasgão inicial, o cinzel cortou o tecido com relativa facilidade. Harald fez uma incisão em forma de L e puxou para trás a aba, criando uma abertura considerável.
Karen apontou uma lanterna ao orifício, depois encostou o rosto e espreitou lá para dentro. Olhou demoradamente, posto o que retirou a cabeça e introduziu o braço. Agarrou algo e sacudiu vigorosamente.
- Acho que estamos com sorte. - Não sinto nada a mexer. Recuou e Harald tomou o lugar dela. Meteu a mão lá dentro, agarrou um suporte e empurrou-o e puxou-o. Toda a asa se moveu, mas não sentiu debilidade.
Karen parecia satisfeita. - Estamos a fazer progressos - disse.
- Se eu conseguir acabar amanhã o trabalho no tecido, e tu voltares a colocar o suporte do eixo, a carcaça estará concluída, à excepção dos cabos que faltam. E temos ainda oito dias.
- Não propriamente - referiu Harald. - Necessitamos de chegar a Inglaterra pelo menos vinte e quatro horas antes do ataque aéreo, para que a nossa informação possa ser eficaz. O que nos reduz a sete. Para chegarmos no sétimo dia, precisamos de partir ao final da tarde da véspera e voar de noite. Por isso, na melhor das hipóteses, temos realmente seis dias.
- Nesse caso, o tecido terá de ficar pronto esta noite. - Viu as horas. - É melhor eu aparecer em casa para jantar, mas voltarei o mais depressa que puder.
Guardou a cola e lavou as mãos no lavatório, usando o sabão que trouxera da casa para Harald. Observou-a. Sentia sempre pena quando ela partia. Gostaria de estar sempre na companhia dela, dia após dia. Calculou que as pessoas que se queriam casar se sentissem assim. E queria casar-se com Karen? Parecia uma pergunta tola. Claro que queria. Não tinha dúvidas. As vezes, tentava imaginar os dois ao fim de dez anos, saturados um do outro e enfadados, mas não conseguia. Karen nunca seria enfadonha.
Limpou as mãos a um bocado de turco. - Por que estás tão pensativo?
Sentiu-se corar. - A tentar saber o que o futuro nos reserva.
Lançou-lhe um surpreendente olhar directo e, por um momento, sentiu que lhe conseguia ler o pensamento; depois ela desviou o olhar. - Um voo longo sobre o Mar do Norte - disse. - Mais de novecentos e sessenta quilómetros sem aterrar. Por isso é bom que nos certifiquemos de que este velho papagaio de papel aguenta.
Foi à janela e subiu para o caixote. - Não olhes, esta manobra é indigna de uma senhora.
- Não o farei, juro - respondeu com uma gargalhada. Içou-se. Quebrando a sua promessa, animado, observou o traseiro
dela enquanto se contorcia. A seguir desapareceu de vista.
Fez convergir a atenção para o Hornet Moth. Não levaria muito tempo a colocar de novo o suporte do eixo. Encontrou as porcas e os parafusos onde os deixara, em cima da bancada. Ajoelhou-se junto à roda, encaixou o suporte e começou a fixar os parafusos que sustentavam a fuselagem e o encaixe da roda.
Precisamente quando estava a terminar, Karen regressou, muito mais cedo do que o previsto.
Sorriu-lhe, satisfeito pelo regresso antecipado, depois viu que ela estava transtornada. - O que aconteceu? - perguntou.
- A tua mãe telefonou.
Harald ficou furioso. - Raios! Não lhe devia ter dito onde estava. Com quem é que ela falou?
- Com o meu pai. Mas ele disse-lhe que tu não estavas mesmo aqui, e ela pareceu ficar convencida.
- Graças a Deus. - Ainda bem que decidira não dizer à mãe que estava a viver numa igreja abandonada. - Afinal o que queria ela?
- São más notícias.
- O que foi?
- Sobre o Arne.
Harald apercebeu-se, com um sobressalto de culpa, que nos últimos dias mal pensara no irmão, a apodrecer na cadeia. - O que aconteceu?
- O Arne... morreu.
De início, Harald não conseguiu compenetrar-se. - Morreu? - indagou, como se não entendesse o significado da palavra. - Como foi possível...?
- A polícia diz que ele se matou.
- Suicídio? - Harald teve a sensação de que o mundo se desmoronava à sua volta, as paredes da igreja a abaterem-se, e as árvores no parque a caírem, e o castelo de Kirstenslot a ser levado por um vento forte. - Por que faria ele semelhante coisa?
- Para não ser interrogado pela Gestapo, segundo a informou o oficial de comando do Arne.
- Para evitar... - Harald viu imediatamente o que aquilo significava. - Ele teve medo de não ser capaz de suportar a tortura.
Karen anuiu. - Era o que estava implícito.
- Se ele tivesse falado, trair-me-ia.
Karen permaneceu em silêncio, nem concordando com ele nem discordando dele.
- Ele matou-se para me proteger. - De repente, Harald necessitou que Karen lhe confirmasse a inferência. Agarrou-a pelos ombros. - Tenho razão, não tenho? - gritou. - Só pode ter sido isso! Ele fê-lo por mim! Diz alguma coisa, por amor de Deus.
Finalmente ela falou. - Acho que tens razão - murmurou.
Num instante, a raiva de Harald transformou-se em dor. Invadiu-o, e ele descontrolou-se. As lágrimas transbordaram-lhe dos olhos, e o seu corpo foi sacudido por soluços. - Ó meu Deus! - exclamou cobrindo o rosto molhado com as mãos. - Ó meu Deus! Deus, isto é horrível.
Sentiu os braços de Karen envolvê-lo. Delicadamente, deitou a cabeça dele no seu ombro. As lágrimas ensoparam-lhe o cabelo e desceram-lhe pela garganta. Acariciou-lhe o pescoço e beijou-lhe o rosto molhado.
- Pobre Arne - disse Harald, e a sua voz era sufocada pelo pesar. - Pobre Arne.
- Lamento - murmurou Karen. - Meu querido Harald, lamento imenso.
No meio da Politigaarden, a sede da polícia de Copenhaga, havia um espaçoso pátio circular aberto ao sol. Era rodeado por uma arcada com colunas clássicas duplas num padrão repetitivo perfeito. Para Peter Flemming, o plano representava a forma como a ordem e a regularidade permitiam que a luz da verdade incidisse sobre a maldade humana. Muitas vezes se perguntou se fora essa a intenção do arquitecto, ou se achara simplesmente que o pátio ficaria bonito.
Encontrava-se na arcada com Tilde Jespersen, encostados a duas colunas, a fumar cigarros. Tilde tinha uma blusa sem mangas que expunha a pele macia dos seus braços. - A Gestapo acabou de interrogar o Jens Toksvig - informou-a.
- E?
- Nada. - Sentiu-se exasperado e sacudiu os ombros como se para se livrar da sensação de frustração. - Ele contou tudo o que sabe, claro. É um dos Guardas-Nocturnos, transmitia informações ao Poul Kirke e aceitara dar abrigo ao Arne Olufsen quando este andava fugido. Referiu também que todo este projecto fora organizado pela noiva do Arne, a Hermia Mount, que trabalha para o MI em Inglaterra.
- Interessante... mas não nos leva a lado nenhum.
- Pois é. Infelizmente para nós, o Jens não sabe quem entrou na base em Sande, e não tem conhecimento da película que o Harald revelou.
Tilde aspirou o fumo. Peter observou a boca dela. Parecia estar a beijar o cigarro. Inalou, depois expeliu o fumo pelas narinas. - O Arne suicidou-se para proteger alguém - referiu. - Presumo que essa pessoa tenha a película.
- O irmão dele, o Harald; ou tem-na consigo ou entregou-a a mais alguém. Seja como for, precisamos de falar com ele.
- Onde é que ele está?
- No presbitério em Sande, calculo. É a única casa que tem. - Olhou para o relógio. - Vou apanhar um comboio dentro de uma hora.
- Por que não telefonas?
- Não quero dar-lhe a oportunidade de fugir.
Tilde pareceu apreensiva. - O que dirás aos pais? Não achas que te poderiam culpar pelo que sucedeu ao Arne?
- Eles não sabem que eu estava lá quando o Arne se matou. Eles nem sequer sonham que eu o detive.
- Claro que não - redarguiu ela, duvidosa.
- De qualquer maneira, estou-me nas tintas para o que eles pensam - retrucou Peter com impaciência. - O general Braun ficou furioso quando lhe disse que os espiões podem ter fotografias da base em Sande. Sabe Deus o que os alemães têm lá, mas é ultra-secreto. E ele atribui-me a culpa a mim. Se essa película sair da Dinamarca, não sei o que ele me fará.
- Mas foste tu que descobriste a rede de espiões!
- E quase me arrependo disso. - Atirou a beata para o chão e apagou-a, esmagando-a com a sola do sapato. - Gostaria que viesses comigo a Sande.
Os olhos azuis dela miraram-no com aprovação. - Claro, se queres a minha ajuda.
- E gostava que conhecesses os meus pais.
- Onde é que eu ficaria?
- Conheço um pequeno hotel em Morlunde, discreto e asseado, e acho que te conviria. - O pai dele era dono de um hotel, claro, mas situava-se demasiado perto de casa. Se Tilde ficasse lá, toda a população de Sande saberia a todo o instante o que ela andava a fazer.
Peter e Tilde não haviam falado do que acontecera no apartamento dele, muito embora tivesse ocorrido há seis dias. Não sabia bem o que dizer. Sentira-se impelido a agir daquela maneira, a fazer sexo com Tilde em frente de Inge, e Tilde alinhara, partilhando a paixão e parecendo compreender a necessidade dele. Depois sentira-se incomodado, levara-a a casa e dera-lhe um beijo de boa-noite.
Não se repetira. Uma vez bastara para provar o que quer que ele pretendia provar. Fora ao apartamento de Tilde na noite seguinte, mas o filho dela estava acordado, a pedir água e a queixar-se de pesadelos, e Peter viera-se embora cedo.
Mas ela parecia hesitar. Fez-lhe outra pergunta prática: - E então a Inge?
- Vou ligar ao centro de enfermagem para a acompanharem vinte e quatro horas, como fiz quando nos deslocámos a Bornholm.
- Entendo.
Olhou para o outro lado do pátio, ponderando, e ele observou o seu perfil: o nariz pequeno, a boca em forma de arco, o queixo decidido. Recordou a emoção avassaladora que fora possuí-la. Era impossível ela ter esquecido. Perguntou-lhe: - Queres que passemos uma noite juntos?
Virou-se para ele com um sorriso. - Claro que quero - disse. - É melhor ir fazer a mala.
Na manhã seguinte, Peter acordou no Oesterport Hotel em Morlunde. O Oesterport era um estabelecimento respeitável mas o seu proprietário, Erland Berten, não era casado com a mulher que se intitulava Sr.a Berten. Erland tinha uma esposa em Copenhaga que não lhe dava o divórcio. Ninguém em Morlunde sabia disso a não ser Peter Flemming, que o descobrira por acaso, enquanto investigava o assassínio de um tal Jacob Berten, que não era parente. Peter dera a entender a Erland que sabia da existência da verdadeira Sr.a Berten, mas guardou a informação para si, sabendo que o segredo lhe dava poder sobre Erland. Agora podia contar com a discrição de Erland. Este não divulgaria nada sobre o que quer que acontecesse entre Peter e Tilde no Oesterport Hotel.
Contudo, Peter e Tilde acabaram por não dormir juntos. O comboio deles atrasara-se, e tinham chegado finalmente a meio da noite, muito depois do último ferry para Sande. Cansados e mal-humorados após a frustrante viagem, tinham-se registado em quartos separados e dormido algumas horas. Agora iam apanhar o primeiro ferry da manhã.
Vestiu-se rapidamente, depois foi bater à porta de Tilde. Ela estava a colocar um chapéu de palha, vendo-se no espelho por cima da lareira enquanto o compunha. Deu-lhe um beijo na face, para não lhe estragar a maquilhagem.
Foram a pé até ao porto. Um polícia local e um soldado alemão pediram-lhes a identificação quando embarcaram no ferry. O posto de controlo era novo. Peter calculou que se tratasse de uma precaução adicional de segurança imposta pelos alemães em virtude do interesse dos espiões em Sande. Mas poderia ser igualmente útil a Peter. Mostrou o distintivo à polícia e pediu-lhes que anotassem os nomes de todos os que visitassem a ilha durante os próximos dias. Seria interessante ver quem vinha ao funeral de Arne.
Do outro lado do canal, o táxi do hotel puxado por cavalos estava à espera deles. Peter pediu ao condutor que os levasse ao presbitério.
O Sol estava ao nível do horizonte, incidindo nas pequenas janelas das casas baixas. Chovera durante a noite, e a erva grossa das dunas de areia brilhava com gotículas. Uma brisa ligeira agitava a superfície do mar. A ilha parecia ter vestido as suas roupas domingueiras para a visita de Tilde. - Que lugar tão bonito - comentou ela. Ficou satisfeito por lhe agradar. Indicou as vistas enquanto seguiam: o hotel, a casa do pai (a maior da ilha) e a base militar que era o alvo da rede de espiões.
Ao aproximar-se do presbitério, Peter reparou que a porta da pequena igreja estava aberta, e ouviu um piano. - Deve ser o Harald. - Ouviu a excitação na sua própria voz. Iria ser assim tão fácil? Tossiu e tornou a sua voz mais cava e calma. - Vamos ver, sim?
Apearam-se do veículo. O condutor inquiriu: - A que horas volto, senhor Flemming?
- Espera aqui, por favor - ordenou Peter.
- Mas eu tenho outros clientes...
- Eu mandei-te esperar!
O condutor murmurou algo entre dentes.
Peter ripostou: - Se não te encontrares aqui quando eu sair, estás despedido. - O condutor ficou carrancudo, mas não se foi embora.
Peter e Tilde entraram na igreja. Ao fundo da sala, encontrava-se sentada uma figura alta ao piano. Estava de costas para a porta, mas Peter reconheceu os ombros largos e a cabeça abobadada. Era Bruno Olufsen, o pai de Harald.
Peter estremeceu de desapontamento. Estava ansioso por aquela detenção. Tinha de ter cuidado para não deixar que a sua avidez tomasse conta da situação,
O pastor tocava um hino lento e melancólico. Peter olhou para Tilde e viu que parecia pesarosa. - Não te deixes enganar - murmurou.
- O velho tirano é duro como aço.
O verso terminou e Olufsen iniciou outro. Peter não estava disposto a esperar. - Pastor! - chamou em voz alta.
O pastor não parou logo de tocar, terminando a última frase e deixando a música a pairar no ar por um momento. Por fim, virou-se. - Jovem Peter - afirmou em voz uniforme.
Peter ficou momentaneamente chocado por ver que o pastor parecia ter envelhecido. Viam-se no seu rosto rugas de cansaço, e os olhos azuis haviam perdido o seu brilho gélido. Após um instante de surpresa, Peter afirmou: - Venho à procura do Harald.
- Não imaginava que fosse uma visita do condolências - redarguiu o pastor, com frieza.
- Ele está aqui?
- Isto é uma investigação oficial?
- Por que pergunta? O Harald está envolvido em algum delito?
- Claro que não.
- Folgo em saber. Ele está em casa?
- Não. Ele não está na ilha. Não sei para onde foi.
Peter olhou para Tilde. Que decepção... Mas, por outro lado, sugeria que Harald era culpado. Por que outro motivo desapareceria?
- Onde pensa que ele possa estar?
- Foi-se embora.
Arrogante como sempre; mas desta vez o pastor não ia escapar facilmente, pensou Peter com deleite. - O seu filho mais velho matou-se porque foi apanhado a espiar - referiu com dureza.
O pastor estremeceu como se Peter o tivesse agredido.
Peter ouviu Tilde arfar a seu lado, e apercebeu-se de que a chocara com a sua crueldade, mas insistiu. - O seu filho mais novo pode ser culpado de crimes semelhantes. Não está em posição de se mostrar arrogante com a polícia.
O rosto normalmente altivo do pastor pareceu magoado e vulnerável. - Já te disse que não sei onde está o Harald - respondeu, carrancudo. - Tens mais alguma pergunta?
- O que está a esconder?
O pastor suspirou. - Tu pertences ao meu rebanho, e se vieste em busca de ajuda espiritual, não ta negarei. Mas não falarei contigo por qualquer outro motivo. És arrogante e cruel, e quase tão indigno quanto uma das criaturas de Deus pode ser. Desaparece da minha vista.
- Não pode expulsar as pessoas da igreja; ela não lhe pertence.
- Se vieste rezar, és bem-vindo aqui. Caso contrário, vai-te embora. Peter hesitou. Não queria correr o risco de ser expulso, mas sabia
que fora derrotado. Passado um bocado, agarrou o braço de Tilde e levou-a lá para fora. - Eu avisei-te de que ele era duro. Tilde parecia abalada. - Acho que o homem está a sofrer.
- Não duvido. Mas estava a dizer a verdade?
- É óbvio que o Harald se escondeu, o que significa, quase de certeza, que tem a película.
- Nesse caso, temos de encontrá-lo. - Peter reflectiu na conversa. - Será que o pai não sabe realmente onde ele se encontra?
- Tens conhecimento de que alguma vez o pastor mentisse?
- Não; mas podia abrir uma excepção para proteger o filho. Tilde esboçou um gesto desdenhoso. - De qualquer forma, não
vamos conseguir arrancar-lhe nada.
- Concordo. Mas estamos no caminho certo, isso é o mais importante. Vamos experimentar a mãe. Pelo menos ela é feita de carne e osso.
Dirigiram-se à casa. Peter conduziu Tilde às traseiras. Bateu à porta da cozinha e entrou sem esperar por uma resposta, como era costume na ilha.
Lisbeth Olufsen estava sentada à mesa da cozinha, sem fazer nada. Peter nunca na vida a vira parada: andava sempre a cozinhar ou a limpar. Até na igreja estava sempre atarefada, a endireitar as filas de cadeiras, a distribuir os hinários ou a recolhê-los, a espevitar na caldeira a turfa que aquecia o salão no Inverno. Naquele momento encontrava-se sentada a olhar para as mãos. A pele estava gretada e em chaga em alguns sítios, como as de um pescador.
- Senhora Olufsen?
Virou o rosto para ele. Tinha os olhos vermelhos e as faces encovadas. Após um momento, reconheceu-o. - Olá, Peter - disse sem qualquer expressão.
Decidiu abordá-la de forma mais suave. - Lamento imenso o sucedido ao Arne.
Ela anuiu vagamente.
- Esta é a minha amiga Tilde. Trabalhamos juntos.
- Prazer em conhecê-la.
Sentou-se à mesa e fez sinal a Tilde para o imitar. Talvez uma questão simples e prática arrancasse a Sr.a Olufsen à apatia em que se encontrava. - Quando é o funeral?
Ela pensou por um momento, depois respondeu: - Amanhã.
Assim estava melhor.
- Falei com o pastor - informou Peter. - Vimo-lo na igreja.
- Ele tem o coração destroçado. Mas não deixa que o mundo perceba.
- Entendo. O Harald também deve estar muito perturbado.
Ela fitou-o e baixou rapidamente o olhar outra vez para as mãos. Foi uma brevíssima expressão, mas Peter detectou nela o medo e a falsidade. Murmurou: - Não temos falado com o Harald.
- E porquê?
- Não sabemos onde ele está.
Peter não podia afirmar se ela mentia de improviso, mas tinha a certeza de que a sua intenção era enganá-lo. Enfureceu-o o facto de o pastor e a mulher, que se fingiam tão superiores aos outros em questões de moral, pudessem estar deliberadamente a esconder a verdade da polícia. Elevou o tom de voz. - Aconselhá-la-ia vivamente a cooperar connosco!
Tilde colocou-lhe a mão no braço e lançou-lhe um olhar inquiridor. Ele fez-lhe sinal para avançar. Ela disse: - Senhora Olufsen, lamento ter de a informar que o Harald pode estar envolvido nas mesmas actividades ilegais que o Arne.
A Sr.a Olufsen ficou assustada.
Tilde prosseguiu: - Quanto mais tempo ele continuar assim, em piores lençóis estará quando finalmente o apanharmos.
A velha abanou a cabeça de um lado para o outro, parecendo aflita, mas não disse nada.
- Se nos pudesse ajudar a encontrá-lo, estaria a fazer o melhor para ele.
- Eu não sei onde ele está - repetiu, mas com menos firmeza. Peter sentiu a fraqueza. Levantou-se e apoiou-se na mesa da cozinha,
aproximando o rosto do dela. - Eu vi o Arne morrer - anunciou, em tom desagradável.
Os olhos da Sr.a Olufsen arregalaram-se de horror.
- Vi o seu filho encostar a arma à garganta e puxar o gatilho - prosseguiu.
Tilde interveio: - Peter, não...
Ele ignorou-a. - Eu vi o sangue e os miolos dele espalhados na parede por detrás.
A Sr.a Olufsen gritou de choque e dor.
Estava prestes a ceder, registou Peter com satisfação. Insistiu na sua vantagem. - O seu filho mais velho era um espião e um criminoso, e teve um fim violento. Quem com ferro mata com ferro morre, é o que diz a Bíblia. Quer que aconteça o mesmo ao seu outro filho?
- Não - murmurou ela. - Não.
- Então diga-me onde ele está!
A porta da cozinha escancarou-se e o pastor entrou de rompante. - Seu porco - bradou.
Peter endireitou-se, sobressaltado, mas provocador. - Tenho o direito de interrogar...
- Sai da minha casa.
Tilde pediu: - Vamos embora, Peter.
- Eu ainda quero saber...
- Imediatamente! - atroou o pastor. - Sai imediatamente! - Contornou a mesa.
Peter recuou. Sabia que não podia permitir que lhe gritassem. Viera em serviço legítimo da polícia e tinha o direito de fazer perguntas. Mas a presença altaneira do pastor assustou-o, apesar da arma no casaco, e apercebeu-se de que ia recuando sucessivamente para a porta.
Tilde abriu-a e saiu.
- Não julguem que isto vai ficar assim - proferiu Peter em tom furioso enquanto transpunha a ombreira da porta às arrecuas.
O pastor bateu-lhe com a porta na cara. Peter virou-se. - Malditos hipócritas! - disse. - Os dois. O veículo continuava à espera. - Para casa do meu pai - ordenou Peter, e entraram.
Enquanto se afastavam, procurou abstrair-se da cena humilhante e concentrar-se nos passos seguintes. - O Harald tem de estar a viver algures - afirmou.
- Como é óbvio. - O tom de Tilde foi lacónico, e calculou que estivesse incomodada com o que acabara de presenciar.
- Ele não está no colégio, também não está em casa e não tem familiares a não ser os primos em Hamburgo.
- Podíamos pôr a circular uma fotografia dele.
- Será difícil conseguirmos uma. O pastor não permite fotografias, diz que são um sinal de vaidade. Não viste nenhuma fotografia na cozinha, pois não?
- E se fosse uma fotografia do colégio?
- Não é uma tradição de Jansborg. A única fotografia que encontrámos do Arne foi a que estava no registo militar. Duvido que exista uma fotografia do Harald em qualquer lado.
- Qual vai ser, então, o próximo passo?
- Acho que ele está em casa de amigos, não te parece?
- Faz sentido.
Não quis olhar para ele. Suspirou. Não estava mesmo com paciência para ele. Não insistiria. - Vais fazer o seguinte - decidiu em tom de comando. - Telefonas para Politigaarden. Mandas o Conrad a Jansborg Skole. Ele que arranje uma lista com as moradas de casa de todos os colegas de turma do Harald. Depois mandas alguém ir a cada casa, fazer algumas perguntas, bisbilhotar um pouco.
- Devem estar espalhados por toda a Dinamarca. Levaríamos um mês a visitá-los todos. Quanto tempo temos?
- Muito pouco. Não sei quanto será preciso para o Harald descobrir uma maneira de fazer chegar a película a Londres, mas ele é astuto, o patifório. Recorre à polícia local sempre que necessário.
- Muito bem.
- Se ele não estiver em casa de amigos, deve estar escondido com outro membro da rede de espiões. Vamos ficar para o funeral e ver se ele aparece. Verificamos cada pessoa que comparecer. Uma delas deve saber onde está o Harald.
O veículo abrandou ao aproximar-se da entrada de casa de Axel Flemming. Tilde disse: - Importas-te que volte para o hotel?
Os pais estavam à espera de ambos para o almoço, mas Peter viu que Tilde não estava com disposição. - Está bem. - Bateu no ombro do condutor. - Volta ao cais do ferry.
Seguiram em silêncio durante um bocado. Ao aproximarem-se do cais, Peter perguntou: - O que vais fazer no hotel?
- Acho que devia regressar a Copenhaga.
Ficou aborrecido. Quando o cavalo parou junto ao cais, disse-lhe: - Mas que raio se passa contigo?
- Não gostei do que acabou de acontecer.
- Não tínhamos alternativa!
- Não tenho tanta certeza.
- Era nosso dever tentar obrigar aquelas pessoas a dizerem-nos o que sabiam.
- O dever não é tudo.
Afirmara-o durante a discussão sobre os judeus, recordou. - Isso é só um jogo de palavras. O dever é o que tens de fazer. Não podes abrir excepções. É esse o mal do mundo.
O ferry estava no cais. Tilde apeou-se do veículo. - É apenas a vida, Peter, nada mais.
- E é por isso que o crime existe! Não preferias viver num mundo em que todos cumprissem o seu dever? Imagina só! Pessoas bem comportadas de uniformes elegantes a fazer as coisas sem preguiça, sem atrasos, sem meias-medidas. Se todos os crimes fossem punidos e não se aceitassem justificações, a polícia teria muito menos que fazer!
- É realmente isso que queres?
- Sim, e se alguma vez chegar a chefe da polícia, e os nazis ainda estiverem a mandar, é assim que vai ser! Que mal tem isso?
Ela anuiu, mas não respondeu à pergunta dele. - Adeus, Peter - disse.
Quando se afastava, ele gritou-lhe: - Diz-me! Que mal tem isso? - Mas ela embarcara no ferry sem se virar.
Harald sabia que a polícia andava à sua procura.
A mãe voltara a telefonar para Kirstenslot, a informar ostensivamente Karen da data e da hora do funeral de Arne. Durante a conversa, afirmara ter sido interrogada pela polícia sobre o paradeiro de Harald. "Mas eu não sei onde ele está, por isso não lhes pude dizer", referira. Era um aviso, e Harald admirou a mãe pela coragem de o fazer e a argúcia de calcular que provavelmente Karen o transmitiria.
Apesar do recado, tinha de ir à escola de voo.
Karen surripiara umas roupas velhas do pai, para que Harald não tivesse de usar o casaco que identificava o colégio. Vestiu um fato desportivo extremamente leve e colocou um boné de linho e óculos de sol. Mais parecia umplayboy milionário do que um espião fugitivo quando entrou no comboio em Kirstenslot. Não obstante, estava nervoso. Sentia-se aprisionado na carruagem. Se um polícia o abordasse, não poderia fugir.
Em Copenhaga, percorreu a curta distância da estação suburbana de Vesterport até à estação da linha principal sem ver nenhum polícia fardado. Alguns minutos depois, seguia noutro comboio para Vodal.
No caminho, pensou no irmão. Todos haviam julgado que Arne não possuía perfil para o trabalho da Resistência: demasiado bonacheirão, demasiado negligente, talvez pouco corajoso. E, no fim, acabara por ser o maior herói de todos. O pensamento fez vir as lágrimas aos olhos de Harald por detrás dos óculos de sol.
O chefe de esquadrilha Renthe, oficial de comando da escola de voo, fez-lhe lembrar o seu antigo director, Heis. Ambos os homens eram altos e magros com narizes afilados. Em virtude da semelhança, Harald teve dificuldade em mentir a Renthe. - Vim, hã, buscar os pertences do meu irmão - disse. - Os objectos pessoais. Se puder ser.
Renthe não pareceu aperceber-se do constrangimento dele. - Claro - respondeu. - Um dos colegas do Arne, Hendrik Janz, guardou tudo. É só uma mala e um saco de lona.
- Obrigado. - Harald não queria os pertences de Arne, mas necessitara de um pretexto para lá ir. O que realmente pretendia era cerca de quinze metros de cabo de aço para substituir os cabos de controlo que faltavam no Hornet Motb. E aquele era o único lugar onde os poderia arranjar.
Agora que ali estava, a tarefa parecia mais assustadora do que à distância. Sentiu uma ligeira onda de pânico. Sem o cabo, o Hornet Moth não podia voar. Voltou então a pensar no sacrifício que o irmão fizera e esforçou-se por conservar a calma. Se mantivesse a cabeça fria, poderia descobrir uma maneira.
- Eu ia enviar as malas aos teus pais - acrescentou Renthe.
- Eu trato disso. - Harald perguntou-se se poderia confiar em Renthe.
- Só hesitei porque pensei que talvez devessem ir para a noiva dele.
- A Hermia? - indagou Harald. - Em Inglaterra?
- Ela está em Inglaterra? Passou por aqui há três dias. Harald ficou espantado. - O que é que ela veio cá fazer?
- Presumi que tivesse obtido a cidadania dinamarquesa e estivesse a viver aqui. Caso contrário, a presença dela seria ilegal e eu teria a obrigação de comunicar a sua visita à polícia. Mas, obviamente, não teria cá vindo se não fosse esse o caso. Como é lógico, ela saberia que, na qualidade de oficial do exército, sou obrigado a comunicar tudo o que seja ilegal à polícia. - Olhou com dureza para Harald e acrescentou: - Entendes o que quero dizer?
- Acho que sim. - Harald apercebeu-se de que estava a receber um aviso. Renthe suspeitava de que ele e Hermia estavam envolvidos em espionagem juntamente com Arne, e avisava Harald para que não lhe contasse nada sobre o assunto. Pelos vistos era simpatizante, mas não estava na disposição de violar quaisquer regras. Levantou-se. - Deixou tudo perfeitamente claro. Obrigado.
- Vou mandar alguém acompanhar-te às instalações do Arne.
- Não é necessário... Eu sei o caminho. - Estivera no quarto de Arne havia duas semanas, quando se deslocara ali para um voo no Tiger Moth.
Renthe apertou-lhe a mão. - As minhas sinceras condolências.
- Obrigado.
Harald abandonou o edifício principal e percorreu o único caminho que ligava todos os edifícios baixos da base. Deslocava-se lentamente, tentando ver bem o interior dos hangares. Não havia grande actividade. O que haveria a fazer numa base aérea onde os aviões não podiam levantar voo?
Sentiu-se frustrado. O cabo de que necessitava tinha de estar algures ali. Só precisava de descobrir onde, e deitar-lhe a mão. Mas não era tão simples como isso.
Viu num hangar um Tiger Moth completamente desmantelado. As asas estavam soltas, a fuselagem encontrava-se assente em cavaletes, o motor, em cima de uma bancada. As suas esperanças cresceram. Transpôs a porta gigante. Estava um mecânico de fato-macaco sentado num bidão de óleo, a beber chá de uma caneca grande. - É extraordinário - disse-lhe Harald. - Nunca tinha visto um assim todo aos bocados.
- Tem de ser - respondeu o homem. - As peças desgastam-se e não podem falhar em pleno voo. No avião, tem de estar tudo perfeito. Caso contrário, cai-se lá de cima.
Harald achou o pensamento profundo. Tencionava atravessar o Mar do Norte num avião que havia anos não era inspeccionado por um mecânico. - Quer dizer que substitui tudo?
- Tudo o que se move, sim.
Harald pensou com optimismo que aquele homem lhe poderia dar o que pretendia. - Deve ter imensas peças sobressalentes.
- É verdade.
- Haverá o quê, trinta metros de cabos de controlo em cada avião?
- Um Tiger Moth requer quarenta e oito metros de cabo de quatrocentos e cinquenta quilos.
"E é disso que eu necessito", pensou Harald com crescente entusiasmo. Mas voltou a hesitar em perguntar, com receio de se denunciar a algum não-simpatizante. Olhou à sua volta. Imaginara vagamente que as peças do avião estariam espalhadas por ali à mão de semear. - E onde é que guardam tudo?
- Em armazéns, claro. É uma base militar. Está tudo no devido lugar.
Harald resmungou de exasperação. Se ao menos tivesse visto um bocado de cabo e pegado descontraidamente nele... mas era escusado estar a contar com soluções fáceis. - Onde fica o armazém?
- No edifício a seguir. - O mecânico pôs um ar carrancudo. - Mais algumas perguntas?
- Pura curiosidade. - Harald calculou que não pudesse continuar a insistir com o homem. Deveria afastar-se antes de despertar graves suspeitas. Esboçou um aceno e afastou-se. - Foi um prazer falar consigo.
Dirigiu-se ao edifício seguinte e entrou. Havia um sargento por detrás de um balcão, a fumar e a ler um jornal. Harald viu uma fotografia de soldados russos a renderem-se, e a parangona: "ESTALINE ASSUME O COMANDO DO MINISTÉRIO DA DEFESA SOVIÉTICO".
Harald observou as prateleiras de aço que se estendiam do outro lado do balcão. Sentiu-se uma criança numa loja de guloseimas. Estava ali tudo o que queria, desde parafusos a motores inteiros. Podia construir um avião inteiro com aquelas peças.
E uma secção era inteiramente dedicada a quilómetros de cabo de tipos diferentes, todos enrolados em cilindros de madeira como carros de linhas.
Harald ficou encantado. Soubera exactamente onde estava o cabo. Agora só precisava de uma maneira de lhe conseguir deitar as mãos.
Passado um momento, o sargento levantou a cabeça do jornal. - Sim?
Seria o homem subornável? Mais uma vez, Harald hesitou. Tinha imenso dinheiro no bolso, que Karen lhe dera para o efeito. Só que não sabia formular uma oferta. Até um responsável de armazém corrupto se ofenderia com uma proposta crassa. Desejou ter reflectido melhor na abordagem. Mas tinha de a fazer. - Posso perguntar-lhe uma coisa? - começou. - Todas estas peças sobressalentes... Será que! existem algumas que uma pessoa, refiro-me a um civil, pudesse comprar, ou...
- Não - redarguiu o sargento bruscamente.
- Mesmo que o preço não constituísse, entende, um problema de monta...
- De modo algum.
Harald não soube o que mais dizer. - Se acaso o ofendi...
- Esqueça.
Pelo menos o homem não chamara a polícia. Harald afastou-se.
A porta era de madeira sólida com três fechaduras, reparou ao sair. Não seria fácil arrombar aquele armazém. Talvez ele não fosse o primeiro civil a aperceber-se de que a escassez de peças sobressalentes podia ser colmatada em armazéns militares.
Sentindo-se derrotado, encaminhou-se para as instalações dos oficiais e encontrou o quarto de Arne. Tal como Renthe prometera, lá estavam a mala e o saco cuidadosamente alinhados aos pés da cama. E não havia mais nada.
Afigurou-se patético a Harald que a vida do irmão pudesse caber em duas malas, e que o quarto não apresentasse mais nenhum vestígio da sua existência. O pensamento fez-lhe vir novamente as lágrimas aos olhos. Afinal, o mais importante era a imagem que um homem deixava de si, reflectiu. Arne estaria sempre vivo na memória de Harald - a ensiná-lo a assobiar, a fazer a mãe rir como uma colegial, a pentear o cabelo com brilhantina ao espelho. Pensou na última vez que vira o irmão, sentado no chão de ladrilhos da igreja abandonada em Kirstenslot, cansado e assustado, mas decidido a cumprir a sua missão.
E, uma vez mais, percebeu que a forma de honrar a memória de Arne seria terminar o trabalho que ele iniciara.
Apareceu um cabo à porta e perguntou: - És familiar do Arne Olufsen?
- Sou o irmão. Chamo-me Harald.
- Benedikt Vessell, mas trata-me por Ben. - Era um homem que rondaria os trinta anos com um sorriso simpático que mostrava uns dentes manchados de tabaco. - Estava esperançado de encontrar alguém da família do Arne. - Enfiou os dedos no bolso e retirou dinheiro. - Devo quarenta coroas ao Arne.
- De quê?
O cabo pareceu atrapalhado. - Bem, não digas nada a ninguém. Tenho um pequeno negócio de apostas em corridas de cavalos, e o Arne escolheu um vencedor.
Harald aceitou o dinheiro, não sabendo o que mais fazer. - Obrigado.
- Está tudo bem, nesse caso?
Harald não conseguiu perceber bem o alcance da pergunta. - Claro.
- Óptimo. - Ben lançou-lhe um olhar furtivo.
Ocorreu a Harald que a quantia devida poderia ser muito superior às quarenta coroas. Mas não ia discutir. - Vou entregá-las à minha mãe - referiu.
- Os meus sentimentos, meu rapaz. O teu irmão era um bom companheiro.
Obviamente, o cabo não era dos que respeitavam as regras. Parecia ser daquele tipo que murmurava: "Não digas nada" com demasiada frequência. A sua idade sugeria ser um soldado de carreira, mas ia subindo lentamente de patente. Talvez estivesse envolvido em actividades ilegais. Provavelmente vendia livros pornográficos e cigarros roubados. Mas talvez conseguisse resolver o problema de Harald. - Ben - disse-lhe. - Posso pedir-lhe uma coisa?
- Tudo o que quiseres. - Ben tirou uma bolsa de tabaco da algibeira e começou a enrolar um cigarro.
- Se um homem quisesse, para fins particulares, obter trinta metros de cabo de controlo para um Tiger Moto, sabe como poderia consegui-lo?
Ben olhou-o através dos olhos semicerrados. - Não - retrucou.
- Digamos que a pessoa estaria disposta a pagar duzentas coroas por ele.
Ben acendeu o cigarro. - Isto tem a ver com o motivo da prisão do Arne, não tem?
- Tem.
Ben abanou a cabeça. - Não, moço, não é possível. Lamento.
- Esqueça - afirmou Harald com displicência, apesar de se sentir profundamente desapontado. - Onde posso encontrar o Hendrik Janz?
- Duas portas adiante. Se ele não estiver no quarto, experimenta a cantina.
Harald encontrou Hendrik sentado a uma pequena secretária, a observar um livro de meteorologia. Os pilotos tinham de compreender o tempo para saberem quando era seguro voar e se se aproximava alguma tempestade. - Sou o Harald Olufsen.
Hendrik apertou-lhe a mão. - Foi lamentável o que aconteceu ao Arne.
- Obrigado por guardar os pertences dele.
- Ao menos isso.
Hendrik aprovava o que Arne fizera? Harald precisava de algum indício antes de se arriscar. Comentou: - O Arne fez o que achou certo pelo seu país.
Hendrik ficou logo desconfiado. - Eu não sei nada disso - redarguiu. - Para mim, ele era um colega de confiança e um bom amigo.
Harald ficou descoroçoado. Obviamente, Hendrik não o ia ajudar a roubar o cabo. Como ia sair daquela situação?
- Mais uma vez, obrigado - disse. - Adeus.
Virou-se para o quarto de Arne e pegou nas malas. Não sabia o que mais fazer. Não podia ir-se embora sem o cabo de que necessitava
- mas como levá-lo? Tentara tudo.
Talvez houvesse outro lugar onde pudesse arranjar o cabo. Só não lhe ocorria onde. E estava a ficar sem tempo. A lua cheia era dali a seis dias. O que significava que lhe restavam apenas quatro dias para trabalhar no avião.
Abandonou o edifício e encaminhou-se para o portão, levando as malas. Ia regressar a Kirstenslot - mas com que finalidade? Sem o cabo, o Hornet Moth não voaria. Perguntou-se como iria contar a Karen que falhara.
Quando passou pelo edifício dos armazéns, ouviu chamar o seu nome. - Harald!
Estava um camião estacionado de um lado do armazém, e Ben encontrava-se meio encoberto pelo veículo. Harald apressou-se a ir ter com ele.
- Toma - disse Ben, e estendeu um rolo grosso de cabo de aço.
- Quinze metros e mais um bocado. Harald ficou encantado. - Obrigado!
- Pega-lhe, por amor de Deus, é pesado. Harald agarrou no cabo e afastou-se.
- Não, não! - exclamou Ben. - Não podes atravessar o portão com isso na mão, por amor de Deus. Mete-o numa das malas.
Harald abriu a mala de Arne. Estava cheia. Ben sugeriu: - Dá-me esse uniforme, rápido. Harald tirou o uniforme de Arne e substituiu-o pelo rolo. Ben agarrou no uniforme. - Eu livro-me disto, não te preocupes. Agora desaparece!
Harald fechou a mala e levou a mão ao bolso. - Eu prometi-lhe duzentas coroas...
- Guarda o dinheiro - replicou Ben. - E boa sorte, meu rapaz.
- Obrigado!
- Agora vai-te daqui! Nunca mais te quero voltar a ver.
- Muito bem - disse Harald, e afastou-se rapidamente.
Na manhã seguinte, Harald encontrava-se no exterior do castelo, banhado por uma alva débil e cinzenta. Eram três e meia. Segurava na mão um bidão de dezoito litros vazio e limpo. O depósito do Hornet Moth levava cento e cinquenta e oito litros de combustível, um pouco menos de nove bidões cheios. Não existia uma forma legítima de obter combustível, por isso Harald ia roubá-lo aos alemães.
Tinha tudo o que precisava. O Hornet Moth requeria só mais algumas horas de trabalho, e estaria pronto para descolar. Só que o depósito de combustível estava vazio.
A porta da cozinha abriu-se e Karen saiu. Vinha acompanhada de Thor, o velho setter irlandês que fazia Harald sorrir por se parecer tanto com o Sr. Duchwitz. Karen estacou à porta, olhando à sua volta desconfiada, como um gato quando sabe que há desconhecidos em casa. Vestia uma camisola verde grossa que lhe disfarçava a figura, e as calças velhas de bombazina a que Harald chamara as suas calças de jardinagem. Mas estava maravilhosa. "Ela chamou-me querido", disse de si para si, acalentando a lembrança. "Ela chamou-me querido." Sorriu esplendorosamente, deixando-o aturdido. - Bom dia! A voz dela pareceu perigosamente forte. Levou um dedo aos lábios para a calar. Seria mais seguro manter silêncio absoluto. Não havia nada que discutir: tinham traçado o plano na noite anterior, sentados no chão da igreja abandonada, a comer bolo de chocolate da despensa de Kirstenslot. Harald seguia na frente pela mata. Sorrateiramente, atravessaram metade do parque. Quando ficaram ao nível das tendas dos soldados, espreitaram cautelosamente dos arbustos. Como seria de esperar, viram um único homem a guardar, postado à entrada da tenda da messe, a bocejar. Aquela hora, todos os outros estariam a dormir. Harald ficou aliviado por ver que as suas expectativas não estavam a sair goradas.
A reserva de combustível da companhia de veterinária provinha de um camião-cisterna que se situava a uma centena de metros das tendas - sem dúvida como medida de segurança. A distância continuava a convir a Harald, muito embora desejasse que fosse maior. A cisterna tinha uma bomba manual, constatara já, e não havia qualquer mecanismo de fecho.
O camião encontrava-se estacionado junto ao acesso que conduzia à porta do castelo, de modo a que os veículos se aproximassem dele por uma superfície dura. A mangueira situava-se do lado do acesso, por uma questão de conveniência. Consequentemente, o volume do camião não permitia que quem o usasse fosse visto do acampamento.
Estava tudo a correr conforme o previsto, mas Harald hesitou. Parecia loucura roubar combustível mesmo nas barbas dos soldados. Mas era perigoso pensar demasiado. O medo podia paralisá-lo. O antídoto era a acção. Sem mais delongas, abandonou o esconderijo, deixando para trás Karen e o cão, e encaminhou-se rapidamente pela erva húmida até ao camião-cisterna.
Tirou a agulheta do gancho e introduziu-a no bidão, depois levou a mão à alavanca da bomba. Quando a baixou, ouviu-se um som gorgolejante vindo do interior do depósito e o ruído do combustível a entrar no bidão. Pareceu muito forte, mas talvez não o suficiente para ser ouvido pela sentinela a uma centena de metros.
Olhou ansiosamente na direcção de Karen. Como combinado, vigiava a coberto da vegetação, pronta para alertar Harald caso alguém se aproximasse.
O bidão encheu depressa. Atarraxou a tampa e pegou nele. Estava pesado. Tornou a colocar a mangueira no gancho, depois voltou a correr para as árvores. Uma vez longe da vista, fez uma pausa, sorrindo vitorioso a Karen. Roubara dezoito litros de combustível e escapara impune. O plano estava a resultar!
Deixando-a ali, atravessou a mata até ao mosteiro. Abrira já a porta grande da igreja para poder entrar e sair facilmente. Teria sido muito estranho introduzir o bidão pela janela alta. Entrou. Com alívio, pousou o bidão. Abriu o painel de acesso e retirou o bujão do combustível do Hornet Moth. Os seus movimentos eram desajeitados em virtude de ter os dedos dormentes de transportar o pesado bidão, mas conseguiu abrir o bujão. Despejou o bidão no depósito do avião, voltou a colocar ambos os vedantes para minimizar o cheiro a combustível, e saiu.
Enquanto enchia o bidão pela segunda vez, a sentinela decidiu patrulhar.
Harald não conseguia ver o homem, mas soube que algo estava errado quando Karen assobiou. Levantou a cabeça e viu-a sair da mata com Thor junto a si. Tirou a mão da bomba e ajoelhou-se para espreitar por debaixo da cisterna o relvado do outro lado. Viu as botas do soldado a aproximarem-se.
Tinham previsto aquele problema e estavam preparados para ele. Ainda de joelhos, Harald viu Karen avançar pela erva. Encontrou-se com a sentinela quando estava ainda a cinquenta metros da cisterna. Simpaticamente, o cão cheirou as virilhas do homem. Karen tirou cigarros. Seria a sentinela afável e disposta a fumar na companhia de uma rapariga bonita? Ou seria uma daquelas pessoas respeitadoras da rotina, que lhe pediria para ir passear o cão para outro lado enquanto ele prosseguia a sua patrulha? Harald susteve a respiração. A sentinela aceitou um cigarro, acenderam-nos.
O soldado era um homem pequeno de mau aspecto. Harald não conseguiu ouvir as palavras deles, mas sabia o que Karen estava a dizer: que não conseguia dormir, sentia-se sozinha, queria alguém com quem conversar. "Não achas que ele pode desconfiar?", perguntara Karen quando tinham discutido o plano na noite anterior. Harald assegurara-lhe de que a vítima ficaria tão encantada por ela estar a meter conversa que nem questionaria os seus motivos. Harald não tivera tanta certeza quanto dera a entender, mas, para seu alívio, a sentinela estava a corresponder às previsões dele.
Viu Karen apontar para um pequeno cepo a alguma distância e depois conduzir o soldado até lá. Sentou-se de maneira a que o soldado tivesse de ficar de costas para a cisterna se quisesse ficar ao lado dela. Agora, sabia Harald, estaria a dizer que os rapazes locais eram muito estúpidos, que gostava de conversar com homens que tivessem viajado um pouco e visto o mundo, que lhe pareciam mais maduros. E, de facto, ele sentou-se.
Harald recomeçou a bombear.
Encheu o bidão e apressou-se a ir para a mata. Trinta e seis litros!
Quando regressou, Karen e a sentinela mantinham-se nas mesmas posições. Enquanto voltava a encher o bidão, calculou o tempo de que necessitava. Levava quase um minuto a encher o bidão, o caminho até à igreja cerca de dois, despejar o combustível no Hornet Moth outro minuto, a viagem de regresso mais dois. Seis minutos ao todo, isto é, cinquenta e quatro minutos para os nove bidões. Presumindo que para o fim se cansaria, contou com uma hora.
Seria possível entreter a sentinela a conversar tanto tempo? O homem não tinha mais nada que fazer. Os soldados levantavam-se às cinco e meia, e iniciavam as suas actividades às seis. Presumindo que os britânicos não invadissem a Dinamarca na próxima hora, a sentinela não tinha motivos para parar de conversar com uma rapariga bonita. Mas era soldado, estava sujeito à disciplina militar e podia achar que tinha o dever de patrulhar.
Harald apenas podia esperar que corresse tudo bem, e despachar-se.
Levou o terceiro bidão cheio para a igreja. "Já cinquenta e quatro litros", pensou, optimista, mais de trezentos e vinte quilómetros - um terço do caminho para Inglaterra.
Continuou no seu vaivém. De acordo com o manual que encontrara no cockpit, o Hornet Moth DH87B deveria percorrer 1014 quilómetros com o depósito cheio. Esse número presumia a ausência de vento. A distância até à costa inglesa, tanto quanto podia calcular pelo atlas, era de cerca de 963 quilómetros. A margem de segurança era praticamente nula. Um vento de frente reduziria a quilometragem e obrigá-los-ia a aterrar no mar. Levaria na cabina um bidão cheio de combustível, decidiu. Assim, acrescentaria cento e doze quilómetros à distância do Hornet Moth, presumindo que descobrisse uma maneira de o despejar no depósito durante o voo.
Bombeava com a mão direita e transportava com a esquerda, e doíam-lhe ambos os braços quando despejou o quarto bidão no avião. Regressando para o quinto, viu que a sentinela se levantava, como se se preparasse para se afastar. Mas Karen continuava a conversar com ele. Riu-se de algo que o homem disse e bateu-lhe no ombro num gesto brincalhão. Fora um gesto provocante nada característico dela, mas mesmo assim Harald não deixou de sentir uma pontada de ciúme. Nunca lhe batera no ombro assim, mesmo na brincadeira.
Mas chamara-lhe querido.
Levou o quinto e o sexto bidões e sentiu que estava a dois terços da costa inglesa.
Sempre que se sentia assustado, pensava no irmão. Era difícil, constatou, aceitar a morte de Arne. Pensava constantemente se o irmão aprovaria o que ele estava a fazer, o que diria quando Harald lhe contasse algum pormenor dos seus planos, se acharia piada ou se se mostraria céptico ou impressionado. Assim, Arne continuava a fazer parte da vida de Harald.
Não acreditava no fundamentalismo obstinadamente irracional do pai. Falar do céu e do inferno afigurava-se-lhe mera superstição. Mas via naquele momento que, de certa forma, os mortos viviam nas mentes dos que os haviam amado, e que isso era uma espécie de vida depois da morte. Sempre que a sua determinação vacilasse, recordaria que Arne dera tudo por aquela missão, e sentia um impulso de lealdade que lhe conferia força - apesar de o irmão a quem devia essa lealdade já cá não estar.
Ao regressar à igreja pela sétima vez, foi visto.
Quando se aproximava da porta da igreja, saiu dos claustros um soldado em roupa interior. Harald ficou estático, o bidão de combustível na mão tão incriminatório quanto uma arma ainda quente. O soldado, meio a dormir, aproximou-se de um arbusto e começou a urinar e a bocejar ao mesmo tempo. Harald viu que era Leo, o jovem soldado raso que fora tão intrometidamente simpático havia três dias.
Leo viu que o olhava, sobressaltou-se por estar a ser observado, e pôs um ar culpado. - Desculpa - balbuciou.
Harald calculou que fosse contra as regras urinar nos arbustos. Tinham cavado uma latrina por detrás do mosteiro, mas era uma longa caminhada, e Leo tivera preguiça. Harald tentou sorrir para o tranquilizar. - Não te preocupes - disse-lhe em alemão. Ouviu, porém, a tremura de medo na sua própria voz.
Leo não pareceu aperceber-se. Compondo a roupa, franziu os sobrolhos. - O que está no bidão?
- Agua, para a minha motorizada.
- Oh. - Leo bocejou. Depois, apontou com um dedo para o arbusto. - Não é suposto...
- Esquece.
Leo anuiu e afastou-se aos tropeções.
Harald entrou na igreja. Parou por um momento, fechando os olhos, vencendo a tensão. A seguir despejou o combustível no Hornet Moth.
Quando se aproximou do camião-cisterna pela oitava vez, viu que o seu plano começava a desmoronar-se. Karen afastava-se do cepo, regressando à mata. Acenou com simpatia à sentinela, pelo que se deviam ter separado de boas relações, mas Harald calculou que o homem tivesse algum dever que era obrigado a executar. No entanto, afastava-se da cisterna, em direcção à tenda da messe, pelo que Harald pôde prosseguir, e encheu o bidão.
Ao regressar à mata, Karen alcançou-o e murmurou: - Ele tem de ir acender o fogão da cozinha.
Harald anuiu e apressou-se. Despejou o oitavo bidão no depósito do avião, regressou para o nono, e viu Karen fazer-lhe sinal com os polegares levantados, indicando que podia prosseguir. Encheu o bidão pela nona vez e regressou à igreja. Tal como calculara, ficou quase cheio, sobrando um pouco. Necessitava, porém, de encher mais um bidão para transportar na cabina. Regressou pela última vez.
Karen susteve-o na orla da mata e apontou. A sentinela colocara-se junto ao camião-cisterna. Harald viu, com desalento, que se esquecera de voltar a colocar a agulheta no gancho, e a mangueira do combustível pendia fora do sítio. O soldado olhou para um lado e o outro do parque com uma expressão perplexa, depois voltou a colocar a mangueira no devido lugar. Permaneceu ali durante um bocado. Tirou os cigarros, colocou um na boca e abriu uma caixa de fósforos; de seguida afastou-se da cisterna antes de riscar o fósforo.
Karen murmurou a Harald: - Ainda não tens combustível suficiente?
- Necessito de mais um bidão.
A sentinela afastava-se de costas para o camião, a fumar, e Harald decidiu arriscar. Para seu desalento, apercebeu-se de que a cisterna não o escondia do ângulo de visão do soldado. Não obstante, introduziu a agulheta e começou a bombear, sabendo que seria visto se por acaso o homem se virasse. Encheu o bidão, colocou de novo a agulheta, atarraxou a tampa do bidão e afastou-se.
Estava quase na mata quando ouviu um grito.
Fingiu-se surdo e continuou a andar sem se virar ou estugar o passo.
A sentinela gritou novamente, e Harald ouviu botas a correr.
Enfiou-se entre as árvores. Karen apareceu. - Esconde-te! - murmurou. - Eu empato-o.
Harald correu para um matagal. Deitando-se de bruços, escondeu-se debaixo de um arbusto tortuoso, arrastando o bidão consigo. Thor tentou segui-lo, pensando tratar-se de uma brincadeira. Harald deu-lhe uma palmada com força no focinho, e o cão recuou, ofendido.
Harald ouviu a sentinela inquirir: - Onde está aquele homem?
- Referes-te ao Christian? - perguntou Karen.
- Quem é esse?
- Um dos jardineiros. Ficas incrivelmente atraente quando te zangas, Ludie.
- Esquece isso, o que estava ele a fazer?
- A tratar as árvores doentes com o produto que leva naquele bidão, que mata aquelas excrescências feias parecidas com cogumelos que vês nos troncos das árvores.
Fora invenção dela, pensou Harald, ainda que se tivesse esquecido do termo alemão para fungicida.
- Tão cedo? - perguntou Ludie, desconfiado.
- Ele disse-me que o tratamento resulta melhor pela fresca. - - Vi-o afastar-se do camião-cisterna.
- Do camião-cisterna? Para que queria o Christian combustível? Ele não tem carro. Calculo que atalhasse pelo relvado.
- Humm. - Ludie continuava desconfiado. - Não vi nenhuma árvore doente.
- Então, olha para esta. - Harald ouviu-os dar alguns passos. - Vês aquela excrescência na casca como uma verruga grande? Se o Christian não a tratasse, a árvore morreria.
- Acho que sim. Bem, por favor, avisa os teus criados para se afastarem do acampamento.
- Avisarei, e peço desculpa. Tenho a certeza de que o Christian não fez por mal.
- Muito bem.
- Adeus, Ludie. Talvez te encontre amanhã de manhã.
- Cá estarei.
- Adeus.
Harald aguardou alguns minutos; ouviu então Karen dizer: - O caminho está livre.
Saiu de baixo do arbusto a rastejar. - Foste brilhante!
- Estou a tornar-me uma bela mentirosa, o que é preocupante. Encaminharam-se para o mosteiro - e sofreram outro choque. Quando se preparavam para deixar o abrigo da mata, Harald viu
Per Hansen, o polícia da aldeia e nazi local, do lado de fora da igreja.
Praguejou. O que raio fazia Hansen ali? E àquela hora da manhã?
Hansen mantinha-se imóvel, de pernas afastadas e braços cruzados, a olhar para o acampamento militar do outro lado do parque. Harald travou Karen colocando-lhe a mão no braço, mas era tarde de mais para impedir Thor, que pressentiu imediatamente a hostilidade sentida por Karen. O cão irrompeu da mata a correr, dirigiu-se a Hansen, parou a uma distância segura e voltou a ladrar. Hansen pareceu assustado e furioso, e levou a mão à arma no cinto.
Karen murmurou: - Eu resolvo isto. - Sem esperar pela resposta de Harald, avançou e assobiou ao cão. - Anda cá, Thor!
Harald pousou o bidão com o combustível e acocorou-se, espreitando através das folhas.
Hansen disse a Karen: - Devia vigiar o seu cão.
- Porquê? Ele vive aqui.
- É agressivo.
- Ladra aos intrusos. É a sua função.
- Se ele atacar um membro da força policial, pode ser abatido.
- Não seja ridículo - ripostou Karen, e Harald não pôde deixar de observar que evidenciava a arrogância da sua riqueza e posição social. - O que anda a fazer, a bisbilhotar no meu jardim ao raiar do dia?
- Venho em assunto oficial, minha jovem, por isso veja como fala.
- Assunto oficial? - indagou, com ar de dúvida. Harald calculou que estivesse a fingir-se incrédula a fim de lhe sacar mais informações. - Que assunto?
- Ando à procura de alguém chamado Harald Olufsen. Harald murmurou: "Oh, merda." Não contava com aquilo.
Karen ficou chocada, mas conseguiu disfarçar. - Nunca ouvi falar dele.
- É amigo de colégio do seu irmão, e é procurado pela polícia.
- Bem, não pode esperar que eu conheça todos os colegas do meu irmão.
- Ele esteve no castelo.
- Ah sim? E como é o seu aspecto?
- Sexo masculino, dezoito anos, um metro e oitenta e dois, cabelo louro e olhos azuis, provavelmente vestindo um casaco azul-escuro do colégio com uma faixa na manga. - Hansen parecia estar a recitar algo que memorizara de um relatório da polícia.
- Parece-me incrivelmente atraente, à excepção do casaco, mas não me recordo dele. - Karen mantinha um ar de profundo desdém, mas Harald conseguia sentir a tensão e a preocupação no rosto dela.
- Ele esteve cá pelo menos duas vezes - referiu Hansen. - Eu próprio o vi.
- Deve ter-me escapado. Que crime cometeu, esqueceu-se de devolver um livro da biblioteca?
- Eu não... isto é, não posso dizer. Ou seja, trata-se de uma investigação de rotina.
Era óbvio que Hansen não sabia de que crime se tratava, pensou Harald. Devia andar a fazer perguntas a pedido de algum outro polícia: Peter Flemming, ao que tudo indicava.
Karen disse então: - Bem, o meu irmão foi para Aarhus, e não está cá ninguém neste momento, excepto uma centena de soldados, claro.
- A última vez que vi o Olufsen, ele tinha uma motorizada de aspecto muito perigoso.
- Oh, esse rapaz - afirmou Karen, fingindo lembrar-se. - Ele foi expulso do colégio. O papá não quer que ele cá volte.
- Não? Bem, acho que sempre vou dar uma palavrinha ao seu pai.
- Ele ainda está a dormir.
- Eu espero.
- Como queira. Anda, Thor! - Karen afastou-se e Hansen continuou a subir o acesso.
Harald esperou. Karen aproximou-se da igreja, virou-se para verificar se Hansen não a estava a observar, depois esgueirou-se pela porta. Hansen subia o acesso em direcção ao castelo. Harald esperava que ele não parasse para conversar com Ludie, e descobrisse que a sentinela vira um homem alto louro a agir de forma suspeita próximo do camião-cisterna. Felizmente, Hansen passou pelo acampamento e desapareceu então por detrás do castelo, dirigindo-se, ao que tudo indicava, à porta da cozinha.
Harald voltou à pressa para a igreja e entrou. Pousou o último bidão de combustível no chão ladrilhado.
Karen fechou a porta grande, rodou a chave na fechadura e colocou a tranca. Virou-se então para Harald. - Deves estar exausto.
Estava. Doíam-lhe ambos os braços e sentia as pernas moídas de correr pela mata com um peso enorme. Assim que relaxou, sentiu-se ligeiramente nauseado pelos vapores do combustível. Mas sentia uma felicidade extática. - Foste maravilhosa! - exclamou. - Namoriscaste com o Ludie como se ele fosse o solteirão mais disputado na Dinamarca.
- Ele era cinco centímetros mais baixo do que eu!
- E enganaste completamente o Hansen.
- Isso não foi difícil.
Harald pegou novamente no bidão e colocou-o na cabina do Hornet Moth, guardando-o na prateleira da bagagem por detrás dos bancos. Fechou a porta e virou-se, encontrando Karen mesmo atrás de si, com um sorriso rasgado. - Conseguimos - disse.
- Meu Deus, conseguimos.
Abraçou-o e olhou-o esperançada. Até parecia querer que ele a beijasse. Pensou perguntar, depois resolveu ser mais decidido. Fechou os olhos e inclinou-se. Os lábios dela eram macios e quentes. Teria permanecido assim, imóvel, a desfrutar da sensação dos lábios dela, por muito tempo. Mas ela tinha outras ideias. Interrompeu o contacto, depois beijou-o novamente. Beijou-lhe o lábio superior, depois o inferior, a seguir o queixo, voltou aos lábios. A boca dela explorava-o laboriosamente. Ele nunca beijara daquela maneira. Abriu os olhos e ficou surpreendido ao ver que o fitava com um brilho de alegria nos olhos.
- O que estás a pensar? - perguntou-lhe Karen.
- Gostas realmente de mim?
- Claro que gosto, estúpido.
- Eu também gosto de ti.
- Óptimo.
Ele hesitou, a seguir disse: - Por sinal, amo-te.
- Eu sei - respondeu ela, e tornou a beijá-lo.
Caminhando pelo centro de Morlunde à luz resplandecente de uma manhã de Verão, Hermia Mount corria mais perigo do que quando estivera em Copenhaga. As pessoas naquela pequena cidade conheciam-na.
Havia dois anos, depois de ter ficado noiva de Arne, ele levara-a a Sande, para a apresentar aos pais. Estivera na igreja, assistira a um desafio de futebol, visitara o bar favorito de Arne e fora às compras com a mãe dele. Partia-se-lhe o coração ao lembrar aqueles tempos felizes.
Como consequência, muitos habitantes locais recordar-se-iam da noiva inglesa do filho dos Olufsen, e corria o sério risco de ser reconhecida. Se tal acontecesse, as pessoas começariam a falar, e a polícia não tardaria a ser informada.
Naquela manhã usava chapéu e óculos de sol, mas continuava a achar que dava perigosamente nas vistas. Mesmo assim, tinha de tentar. Passara o final da tarde da véspera no centro da cidade, na esperança de encontrar por acaso Harald. Sabendo como ele adorava jazz, fora primeiro ao Club Hot, mas encontrava-se fechado. Não o vira em nenhum dos bares e cafés onde os jovens se reuniam. Fora um desperdício de tempo.
Naquela manhã ia passar por casa dele.
Pensara telefonar, mas era perigoso. Se revelasse o nome verdadeiro, havia a hipótese de ser escutada e traída. Se desse um nome falso, ou ligasse anonimamente, poderia assustar Harald e levá-lo a fugir. Tinha de lá ir pessoalmente.
Isto seria ainda mais arriscado. Apesar de Morlunde ser uma cidade, na pequena ilha de Sande todos os residentes se conheciam uns aos outros. Só podia esperar que os ilhéus a tomassem por uma veraneante, e não a olhassem com demasiada atenção. Não tinha uma opção melhor. A lua cheia seria dali a cinco dias.
Encaminhou-se para o porto, levando a mala pequena, e embarcou no ferry. No cimo da prancha de embarque estavam um soldado alemão e um polícia dinamarquês. Mostrou os documentos com o nome de Agnes Ricks. Estes tinham já passado em três inspecções, mas não deixou de sentir um arrepio de medo quando apresentou as falsificações aos dois homens fardados.
O polícia observou o seu bilhete de identidade. - Está muito longe da sua terra, Miss Ricks.
Tinha preparada uma história falsa. - Vim cá para o funeral de um familiar. - Era um bom pretexto para uma longa viagem. Não sabia ao certo para quando estava marcado o enterro de Arne, mas não havia nada de suspeito no facto de um membro da família chegar um dia ou dois antes, especialmente com as contingências das viagens em tempo de guerra.
- Deve ser o funeral do Olufsen.
- Sim. - Vieram-lhe lágrimas quentes aos olhos. - Sou prima em segundo grau, mas a minha mãe era muito chegada à Lisbeth Olufsen.
O polícia sentiu a dor dela, apesar dos óculos de sol, e falou delicadamente. - As minhas condolências. - Devolveu-lhe os documentos. - Tem ainda muito tempo.
- Tenho? - Isso queria dizer que era naquele dia. - Não sabia ao certo, não consegui telefonar a confirmar.
- Creio que o serviço é hoje às três da tarde.
- Obrigada.
Hermia avançou e encostou-se à amurada. Quando o ferry abandonava o porto, olhou pela água para a ilha plana e incaracterística e recordou a sua primeira visita. Ficara chocada ao ver as divisões frias e despidas onde Arne crescera e onde ela tinha conhecido os seus austeros pais. Era um mistério como daquela família solene brotara alguém tão divertido quanto Arne.
Ela própria era uma pessoa um tanto austera, ou pelo menos assim achavam os seus colegas. Desse modo, o papel que desempenhara na vida de Arne fora muito semelhante ao de uma mãe. Obrigara-o a ser pontual, enquanto ele a ensinava a relaxar e a divertir-se. Dissera-lhe uma vez: "Há um tempo e um lugar para a espontaneidade." E ele rira-se disso o dia inteiro.
Tinha voltado lá, mais uma vez, para a festa do Natal. Assemelhava-se mais à Quaresma. Para os Olufsen, o Natal era um acontecimento religioso, não festivo. No entanto, achara a quadra agradável na sua tranquilidade, fazendo palavras cruzadas com Arne, ficando a conhecer melhor Harald, comendo a comida simples da Sr.a Olufsen e caminhando pela comprida praia de casaco de peles, de mão dada com o seu apaixonado.
Nunca imaginara ter de lá regressar para o funeral dele.
Ansiava ir ao serviço, mas sabia ser impossível. Demasiadas pessoas a veriam e reconheceriam. Podia, inclusivamente, estar lá um detective da polícia, a observar os rostos. Afinal, se Hermia conseguira perceber que a missão de Arne estava a ser conduzida por outrem, a polícia poderia ter chegado à mesma dedução.
Na verdade, apercebia-se naquele momento, o funeral iria demorá-la algumas horas. Teria de esperar que o serviço terminasse antes de ir a casa. Antes haveria vizinhas na cozinha a preparar a comida, paroquianas na igreja a arranjar as flores e um agente funerário atarefado com os pormenores da cerimónia e com quem pegaria nas borlas do caixão. Seria quase tão mau quanto o próprio serviço. Mas depois, assim que os amigos e conhecidos tivessem tomado chá e comido smorrebrod, partiriam, deixando a família mais chegada sozinha e entregue à sua dor. O que significava que teria de arranjar maneira de matar o tempo, mas o mais importante era a cautela. Se conseguisse que Harald lhe entregasse a película naquela tarde, poderia apanhar o primeiro comboio para Copenhaga de manhã, o barco para Bornholm no dia seguinte à noite, efectuar a travessia para a Suécia no outro e chegaria a Londres doze horas depois, faltando ainda dois dias para a lua cheia. Valia a pena desperdiçar algumas horas.
Desembarcou no cais em Sande e encaminhou-se para o hotel. Não podia entrar no edifício, com receio de encontrar alguém que se lembrasse dela, de modo que caminhou pela praia. O tempo ainda não estava para banhos de sol - havia algumas nuvens e soprava uma brisa marítima - mas as barracas antiquadas às riscas tinham sido colocadas e algumas pessoas chapinhavam nas ondas ou piquenicavam na areia. Hermia conseguiu abrigar-se nas dunas e passar despercebida por entre aquele cenário de veraneio.
Aguardou ali até a maré subir e um cavalo do hotel vir retirar as barracas da praia. Nas duas últimas semanas passara imenso tempo sentada, à espera.
Vira os pais de Arne uma terceira vez, na visita que faziam de dez em dez anos a Copenhaga. Arne levara-os a todos ao Jardim Tivoli e fora muito afável, divertindo-se, cativando as empregadas de mesa, fazendo a mãe rir às gargalhadas, e levando até o azedo do pai a recordar o tempo que passara em Jansborg. Algumas semanas depois os nazis tinham chegado e Hermia abandonara o país, ignominiosamente em seu entender, num comboio fechado com uma quantidade de diplomatas de países hostis à Alemanha.
E agora estava de volta, à procura de um segredo mortífero, arriscando a sua vida e as vidas dos demais.
Abandonou a sua posição às quatro e meia. O presbitério ficava a dezasseis quilómetros do hotel, uma caminhada enérgica de duas horas e meia, para poder chegar às sete. Tinha a certeza de que todos os conhecidos já se teriam ido embora e encontraria Harald e os pais dele sentados em silêncio na cozinha.
A praia não estava deserta. Diversas vezes se cruzou com pessoas na sua longa caminhada. Afastara-se delas, deixando que presumissem tratar-se de uma veraneante antipática, e ninguém a reconheceu.
Avistou finalmente os contornos da igreja baixa e o presbitério. A ideia de aquela ter sido a casa de Arne encheu-a de tristeza. Não se avistava ninguém. Quando se aproximou, viu a sepultura recente no pequeno cemitério.
Com o coração pesado, atravessou o adro e foi colocar-se junto à campa do noivo. Tirou os óculos. Havia muitas flores, observou: as pessoas ficavam sempre sensibilizadas com a morte de um homem jovem. A dor apoderou-se dela e começou a soluçar descontroladamente. As lágrimas desceram-lhe pelas faces. Ajoelhou-se e pegou num punhado de terra amontoada, pensando no corpo dele que jazia na cova. "Duvidei de ti", disse mentalmente, "mas tu foste o mais corajoso de nós todos."
Por fim a tempestade passou e conseguiu levantar-se. Limpou o rosto com a manga. Tinha trabalho a efectuar.
Quando se virou, viu a figura alta e a cabeça abobadada do pai de Arne, a alguns metros, observando-a. Devia ter-se aproximado silenciosamente, e esperara que ela se levantasse. - Bem, Hermia - disse.
- Que Deus a abençoe.
- Obrigada, pastor. - Quis abraçá-lo, mas ele não era homem de abraços, por isso apertou-lhe a mão.
- Chegou tarde de mais para o funeral.
- Foi intencional. Não podia permitir que me vissem.
- É melhor irmos para dentro.
Hermia seguiu-o pela erva rija. A Sr.a Olufsen estava na cozinha, mas ao menos daquela vez não se encontrava junto ao lava-loiças. Hermia calculou que as vizinhas tivessem arrumado tudo depois do velório e lavado a loiça. A Sr.a Olufsen estava sentada à mesa com um vestido e um chapéu pretos. Quando viu Hermia, desatou a chorar.
Hermia abraçou-a, mas a sua compaixão foi distraída. A pessoa que pretendia não se encontrava ali. Assim que a decência o permitiu, referiu: - Estava a contar com a presença do Harald.
- Ele não está cá - respondeu a Sr.a Olufsen.
Hermia teve a terrível sensação de que aquela viagem longa e perigosa acabaria por ter sido em vão. - Ele não veio ao funeral? Ela abanou a cabeça, lacrimejante. Controlando a sua exasperação o melhor que podia, Hermia inquiriu:
- Afinal onde é que ele está?
O pastor anunciou: - É melhor sentar-se.
Fez um esforço para ser paciente. O pastor estava acostumado a que lhe obedecessem. Não conseguiria nada desafiando a vontade dele.
A Sr.a Olufsen perguntou: - Quer uma chávena de chá? Não é do verdadeiro, claro.
- Sim, por favor.
- E uma sanduíche? Sobraram imensas.
- Não, obrigada. - Hermia não se alimentara o dia inteiro, mas estava demasiado tensa para comer. - Onde está o Harald? - inquiriu, com impaciência.
- Não sabemos - informou o pastor.
- Como assim?
O pastor pareceu envergonhado, com uma expressão que era rara no seu rosto. - O Harald e eu trocámos palavras duras. Fui tão obstinado como ele. De então para cá, o Senhor tem-me recordado como é precioso o tempo que um homem passa com os filhos. - Rolou-lhe uma lágrima pelo rosto enrugado. - O Harald partiu muito zangado, recusando-se a dizer para onde ia. Cinco dias depois regressou, apenas por algumas horas, e tivemos uma espécie de reconciliação. Nessa ocasião, contou à mãe que ia ficar em casa de um colega, mas quando telefonámos, disseram que ele não estava lá.
- Acha que ele ainda está zangado consigo?
- Não - referiu o pastor. - Bem, é possível que esteja, mas não foi por esse motivo que desapareceu.
- O que quer dizer?
- O meu vizinho, Axel Flemming, tem um filho na polícia de Copenhaga.
- Recordo-me - disse Hermia. - Peter Flemming.
A Sr.a Olufsen interveio: - Ele teve o descaramento de vir ao funeral. - O tom dela era invulgarmente amargo.
O pastor prosseguiu: - O Peter afirma que o Arne era espião dos britânicos, e o Harald está a continuar o trabalho dele.
- Ah.
- Não parece surpreendida.
- Não vos vou mentir - afirmou Hermia. - O Peter tem razão. Pedi ao Arne que tirasse fotografias à base militar aqui na ilha. O Harald tem a película.
A Sr.a Olufsen exclamou: - Como se atreveu!? O Arne morreu por causa disso. Nós perdemos o nosso filho e você perdeu o seu noivo! Como se atreveu?
- Lamento - murmurou Hermia.
O pastor procurou amenizar. - Estamos em guerra, Lisbeth. Muitos jovens têm morrido a combater os nazis. A culpa não é da Hermia.
- Preciso que o Harald me entregue a película - disse Hermia. - Tenho de o encontrar. Não me vão ajudar?
A Sr.a Olufsen replicou: - Eu não quero perder o meu outro filho! Não aguentaria!
O pastor pegou-lhe na mão. - O Arne estava a trabalhar contra os nazis. Se a Hermia e o Harald puderem terminar o que ele começou, a sua morte terá algum significado. Precisamos de ajudar.
A Sr.a Olufsen anuiu. - Eu sei - disse. - Eu sei. Estou apenas assustada.
Hermia indagou: - Para onde disse o Harald que ia?
A Sr.a Olufsen respondeu: - Kirstenslot. É um castelo nos arredores de Copenhaga, a casa da família Duchwitz. O filho, Josef, anda no colégio com o Harald.
- Mas dizem que ele não se encontra lá?
Anuiu. - Mas ele não deve estar muito longe. Falei com a irmã gémea do Josef, a Karen. Ela está apaixonada pelo Harald.
O pastor inquiriu com incredulidade: - Como é que tu sabes isso?
- Pelo tom da sua voz quando falei sobre ele.
- Não me contaste nada.
- Terias dito que eu não tinha maneira de saber uma coisa dessas. O pastor sorriu pesarosamente. - É verdade, teria dito isso. Hermia insistiu: - Acha então que o Harald está nas proximidades
de Kirstenslot, e que a Karen sabe onde ele se encontra?
- Sim.
- Nesse caso, terei de lá ir.
O pastor tirou o relógio do bolso do colete.
- Perdeu o último comboio. É melhor ficar cá esta noite. Eu levo-a ao ferry logo de manhã.
A voz de Hermia baixou para um murmúrio: - Como pode ser tão bondoso? O Arne morreu por minha causa.
- Deus o deu, Deus o levou - respondeu o pastor. - Louvado seja Deus.
O Hornet Moth estava pronto para voar.
Harald instalara os novos cabos de Vodal. A derradeira tarefa fora o pneu furado. Servira-se do macaco do Rolls-Royce para levantar o avião; a seguir levara a roda à garagem mais próxima e pagara a um mecânico para reparar o pneu. Concebera um método de reabastecimento durante o voo, partindo uma janela da cabina e enfiando a mangueira através dela e até ao bocal do depósito de combustível. Por fim, estendera as asas, fixando-as na posição de voo com os pinos simples de aço fornecidos. Agora o avião enchia toda a largura da igreja.
Espreitou para fora. Estava um dia calmo, com vento fraco e nuvens baixas que serviriam para esconder o Hornet Moth da Luftwaffe. Partiriam naquela noite.
Só de pensar no assunto sentia o estômago apertado de ansiedade. Sobrevoar apenas a escola de treino em Vodal num Tiger Moth afigurara-se uma aventura de deixar os cabelos em pé. Agora tencionava percorrer centenas de quilómetros sobre o mar aberto.
Um avião como aquele devia seguir junto à costa, para poder planar até alcançar terra em caso de algum problema. Enquanto estivessem a voar dali para Inglaterra, teoricamente era possível seguir os litorais da Dinamarca, Alemanha, Holanda, Bélgica e França. Mas Harald e Karen estariam muitos quilómetros sobre o mar, bem longe dos territórios ocupados pelos alemães. Se algo corresse mal, não teriam para onde ir.
Harald ainda estava preocupado quando Karen entrou pela janela, trazendo um cesto como o Capuchinho Vermelho. O seu coração saltou de prazer ao vê-la. O dia inteiro, enquanto trabalhara no avião, pensara na forma como se haviam beijado ao início daquela manhã, depois de roubado o combustível. Levava constantemente as pontas dos dedos aos lábios para trazer de volta a lembrança.
Naquele momento, olhando para o Hornet Moth, ela exclamou: - Bravo!
Ficou satisfeito por a ter impressionado. - Ficou bonito, não ficou?
- Mas assim não consegues fazê-lo passar pela porta.
- Eu sei, terei de voltar a dobrar as asas, depois estendê-las lá fora.
- Nesse caso, por que as posicionaste agora?
- Para treinar. Conseguirei fazê-lo mais depressa da segunda vez.
- Mais depressa até que ponto?
- Não sei bem.
- E então os soldados? Se nos virem...
- Estarão a dormir.
Ficou muito séria. - Estamos prontos, não estamos?
- Estamos prontos.
- Quando poderemos partir?
- Esta noite, claro.
- Oh, meu Deus.
- A espera só aumenta as hipóteses de sermos descobertos antes de conseguirmos fugir.
- Eu sei, mas...
- O que é?
- Só não pensei que fosse tão cedo. - Tirou um embrulho do cesto e entregou-lho distraidamente. - Trouxe-te carne de vaca fria. - Karen alimentava-o todas as noites.
- Obrigado. - Observou-a com atenção. - Não estás a pensar desistir, pois não?
Ela abanou a cabeça decididamente. - Não. Só estava a lembrar-me de que faz três anos que me sentei no lugar do piloto.
Harald aproximou-se da bancada e escolheu um pequeno machado e um novelo de cordel grosso. Guardou-os no compartimento por debaixo do painel de instrumentos do avião.
Karen perguntou. - Para que são?
- Se descermos no mar, calculo que o avião se vá afundar, devido ao peso do motor. Mas as asas por si sós flutuariam. Se conseguirmos cortar as asas, poderíamos uni-las para improvisar uma jangada.
- No Mar do Norte? Acho que morreríamos num instante.
- É preferível a afogarmo-nos.
Ela sentiu um arrepio. - Se tu o dizes.
- Deveríamos levar umas bolachas-d'água-e-sal e duas garrafas de água.
- Vou buscá-las à cozinha. Por falar em água... vamos estar no ar durante mais de seis horas.
- E?
- Como urinamos?
- Abres a porta e esperas que corra tudo bem.
- Fala por ti.
Esboçou uma careta. - Desculpa.
Ela olhou à sua volta e pegou num monte de jornais antigos. - Põe-nos lá dentro.
- Para que são?
- Para o caso de eu precisar de urinar. Ficou carrancudo. - Não percebi como...
- Reza para nunca teres de passar por isto. Colocou os jornais sobre o banco.
- Temos alguns mapas? - perguntou-lhe Karen.
- Não. Presumi que fôssemos simplesmente voar para oeste até avistarmos terra, e que essa seria a Inglaterra.
Ela abanou a cabeça. - Quando estamos no ar, é bastante difícil sabermos onde estamos. Costumava perder-me só a voar por aqui. Imagina que o vento nos afasta do rumo? Poderíamos descer em França.
- Meu Deus, não tinha pensado nisso.
- A única maneira de verificares a tua posição é comparando as características do terreno por debaixo de ti com um mapa. Vou ver o que temos em casa.
- Está bem.
- É melhor ir arranjar tudo aquilo de que necessitamos. - Voltou a esgueirar-se pela janela, levando o cesto vazio.
Harald estava demasiado tenso para comer a carne de vaca que ela lhe trouxera. Começou a dobrar as asas. O processo, pelo desenho, era rápido: a intenção era que o cavalheiro proprietário o pudesse fazer todas as noites, e guardasse o avião na garagem ao lado do carro da família.
A fim de evitar que a asa superior colidisse com o tejadilho da cabina quando as asas eram dobradas, a secção interior do bordo de saída era articulada para poder ser levantada. Por conseguinte, o primeiro passo de Harald foi soltar as secções articuladas e levantá-las.
Na parte de baixo de cada asa inferior estava guardado um cabo, chamado esticador de reserva, que Harald soltou e depois prendeu entre as extremidades interiores das asas superior e inferior, para evitar que descaíssem.
As asas eram mantidas na posição de voo por pinos corrediços em forma de L nas longarinas dianteiras das quatro asas. Nas asas superiores, o pino era fixado pelo esticador de reserva, que Harald retirara entretanto, pelo que só precisava de rodar o pino noventa graus e fazê-lo deslizar para a frente cerca de dez centímetros.
Os pinos nas asas inferiores eram fixados por correias de couro. Harald soltou a correia sobre a asa esquerda, depois rodou o pino e retirou-o.
Assim que se soltou, a asa começou a mover-se. Harald apercebeu-se de que devia ter previsto aquilo. Na posição de estacionado, com a cauda assente no solo, o avião ficava inclinado, com o nariz no ar; e agora a pesada asa dupla pendia para trás devido à força da gravidade. Agarrou-a, apavorado de que pudesse embater com força na fuselagem e causar danos. Tentou agarrar o bordo de ataque da asa inferior, mas era demasiado grosso para o conseguir segurar. - Merda! - exclamou. Avançou, indo atrás da asa, e agarrou os cabos de aço de retesar entre as asas superior e inferior. Conseguiu equilibrar-se e suster o movimento; depois, o cabo trilhou-lhe a pele da mão. Gritou e largou-o automaticamente. A asa deslizou para trás e foi embater na fuselagem com uma pancada assustadora.
Amaldiçoando a sua falta de cuidado, Harald dirigiu-se à cauda, agarrou a ponta inferior da asa com ambas as mãos, e rodou-a a fim de poder verificar os estragos. Para seu imenso alívio, não parecia haver nenhum. Os bordos de saída das asas superior e inferior estavam intactos, e a fuselagem não apresentava quaisquer marcas. Os únicos danos visíveis eram na pele da mão direita de Harald.
Lambendo o sangue da palma da mão, deslocou-se ao lado direito. Desta vez amparou a asa inferior com um caixote de chá cheio de revistas velhas, para que não se pudesse mover. Retirou os pinos, depois contornou a asa, empurrou o caixote e segurou a asa, deixando-a deslizar lentamente até à posição dobrada.
Karen regressou.
- Arranjaste tudo? - perguntou-lhe Harald, cheio de ansiedade. Largou o cesto no chão. - Não podemos partir esta noite.
- O quê? - Sentiu-se enganado. Assustara-se para nada. - E por que não? - perguntou, furioso.
- Amanhã vou dançar.
- Dançar? - Sentiu-se ultrajado. - Como podes dar mais importância a isso do que à nossa missão?
- É muito especial. Eu disse-te que me tinha andado a preparar para o papel principal. Metade da companhia adoeceu com um problema gástrico qualquer. Há dois elencos, mas as figuras principais adoeceram ambas, por isso fui chamada. É uma tremenda sorte!
- É mais um tremendo azar, quer-me parecer.
- Amanhã actuarei no palco principal do Teatro Real e, adivinha: o Rei estará a assistir!
Ele passou os dedos pelo cabelo, distraidamente. - Não acredito que me estás a dizer isto.
- Reservei-te um bilhete. Podes levantá-lo na bilheteira.
- Eu não vou.
- Não sejas rezingão! Podemos voar amanhã à noite, depois de eu dançar. A companhia só volta a actuar daqui a uma semana, e um dos outros dois de certeza já estará melhor nessa altura.
- Quero lá saber do maldito bailado! E a guerra? O Heis calculou que a RAF deve estar a planear um ataque aéreo maciço. Necessitam das nossas fotografias antes disso! Pensa nas vidas que estão em jogo!
Ela suspirou, e a sua voz suavizou-se. - Eu sabia que ias reagir assim, e pensei abrir mão da oportunidade, mas simplesmente não posso. De qualquer forma, se voarmos amanhã, estaremos em Inglaterra três dias antes da lua cheia.
- No entanto, correremos muito perigo permanecendo aqui mais vinte e quatro horas!
- Olha, ninguém sabe deste avião. Por que haveriam de o descobrir logo amanhã?
- É possível.
- Vamos, não sejas tão infantil, tudo é possível.
- Infantil? A polícia anda à minha procura, sabe-lo perfeitamente. Sou um fugitivo e quero sair deste país o mais depressa que puder.
Começou então a ficar zangada. - Devias compreender a importância deste espectáculo para mim.
- Mas não compreendo.
- Olha, eu podia morrer neste maldito avião.
- E eu também.
- Enquanto estou a afogar-me no Mar do Norte, ou a congelar até à morte na tua jangada improvisada, gostaria de poder pensar que, antes de morrer, realizei a ambição da minha vida e dancei maravilhosamente no palco do Teatro Real Dinamarquês, perante o Rei. Não consegues entender isso?
- Não consigo, não!
- Então vai para o inferno - disse, e saiu pela janela.
Harald ficou a olhar. Estava estupefacto. Decorreu um minuto antes de se mexer. A seguir foi ver o que vinha no cesto que ele trouxera. Havia duas garrafas de água mineral, um pacote de bolachas-d'água-e-sal, uma lanterna, uma pilha de reserva e duas lâmpadas. Não havia mapas, mas colocara um velho atlas escolar. Pegou no livro e abriu-o. Na contracapa estava escrito em caligrafia infantil, KAREN DUCHWITZ, 3.a CLASSE.
- Que chatice - disse.
Peter Flemming encontrava-se no cais em Morlunde, a observar o último ferry do dia que chegava de Sande, à espera de uma mulher misteriosa.
Ficara decepcionado, embora não surpreendido, por Harald não ter vindo ao funeral do irmão na véspera. Peter examinara minuciosamente todos os presentes. A maior parte era constituída por ilhéus que Peter conhecera desde a infância. Estava interessado nos outros. Após o serviço, tomara chá no presbitério, e conversara com todos os desconhecidos. Havia uns dois antigos colegas de escola, uns companheiros militares, amigos de Copenhaga e o director de Jansborg Skole. Dera baixa dos seus nomes na lista que o polícia no ferry lhe fornecera. E reparou num nome não assinalado: Agnes Ricks.
Regressando ao cais do ferry, perguntara ao polícia se Agnes Ricks regressara ao continente. "Ainda não", respondera o homem.
"Lembrar-me-ia dela. É um belo pedaço de mulher." Sorriu e colocou as mãos em concha sobre o peito para indicar seios grandes.
Peter dirigira-se ao hotel do pai e ficara a saber que não se registara nenhuma Agnes Ricks.
Ficou intrigado. Quem era Agnes Ricks e o que andava ali a fazer? O instinto disse-lhe que ela teria alguma ligação com Arne Olufsen. Não queria encher-se de esperanças. Mas era a única pista de que dispunha.
Dava demasiado nas vistas a deambular pelo cais em Sande, pelo que decidiu atravessar para o continente e procurar passar despercebido no grande porto comercial ali existente. No entanto, Miss Agnes não apareceu. Naquele momento, enquanto oferry atracava pela última vez para só voltar a partir na manhã seguinte, Peter dirigiu-se ao Oesterport Hotel.
Havia um telefone numa pequena cabina no átrio e usou-a para ligar para casa de Tilde Jespersen em Copenhaga.
- O Harald estava no funeral? - perguntou imediatamente.
- Não.
- Raios.
- Verifiquei todos os presentes. Nenhumas pistas por lá. Mas há mais uma pista que vou seguir, uma tal Agnes Ricks. Então e tu?
- Passei o dia a ligar para as esquadras locais da polícia em todo o país. Tenho homens a verificar cada um dos colegas de turma do Harald. Deverei ter notícias de todos eles amanhã.
- Desligaste-te do trabalho - referiu, mudando subitamente de assunto.
- No entanto, não era um trabalho normal, pois não? - Era óbvio que estava à espera de semelhante insinuação.
- Por que não?
- Levaste-me porque querias dormir comigo.
Peter rangeu os dentes. Comprometera o seu próprio profissionalismo tendo relações com ela, e agora não podia admoestá-la. Enfurecido, redarguiu: - É esse o teu pretexto?
- Não é um pretexto.
- Não te agradou a forma como interroguei os Olufsen. Isso não é razão para uma agente da polícia se eximir.
- Eu não me eximi do trabalho. Só não quis dormir com um homem capaz de fazer o que tu fizeste.
- Eu só estava a cumprir a minha obrigação! A voz dela mudou. - Não propriamente.
- O que queres dizer?
- Estaria certo se fosses duro apenas para levares o trabalho até ao fim. Eu saberia respeitar essa atitude. Mas tu gostaste do que estavas a fazer. Torturaste o pastor e atormentaste a mulher dele e adoraste. A dor deles deu-te satisfação. Não consigo ir para a cama com um homem assim.
Peter desligou.
Passou grande parte da noite acordado, a pensar em Tilde. Deitado na cama, cheio de fúria, imaginou-se a esbofeteá-la. Apetecia-lhe ir ao apartamento dela, arrancá-la da cama em camisa de dormir e castigá-la. Na sua fantasia, ela suplicava por misericórdia, mas ele ignorava os gritos dela. A camisa rasgava-se, e ele ficava excitado e violava-a. Depois, ela pedia-lhe perdão de lágrimas nos olhos, mas ele ia-se embora sem dizer uma palavra.
Acabou por adormecer.
De manhã dirigiu-se à doca para esperar pelo ferry de Sande. Olhou esperançado para o barco coberto de sal que entrava na doca. Agnes Ricks era a sua única esperança. Se ela estivesse inocente, já não sabia o que fazer de seguida.
Desembarcou um punhado de passageiros. O plano de Peter era perguntar ao polícia se algum deles era Agnes Ricks, mas não foi necessário. Distinguiu logo, entre os homens com roupas de trabalho que iam entrar ao serviço no primeiro turno da fábrica de conservas, uma mulher alta com óculos escuros e um lenço na cabeça. Quando ela se aproximou, apercebeu-se de que a conhecia. Viu-lhe o cabelo preto a sair debaixo do lenço, mas foi o nariz grande e adunco que a denunciou. Caminhava em passo confiante, masculino, e recordou-se de ter reparado nessa característica da primeira vez que a vira, havia dois anos.
Era Hermia Mount.
Parecia mais magra e mais velha do que a mulher que lhe fora apresentada como noiva de Arne Olufsen em 1939, mas Peter não tinha dúvidas.
- Apanhei-te, minha cabra traiçoeira - disse com profunda satisfação.
Para que ela não o pudesse reconhecer, colocou os óculos de aros grossos e puxou o chapéu sobre o característico cabelo ruivo. Depois seguiu-a até à estação, onde comprou um bilhete para Copenhaga.
Após uma longa espera, embarcaram num comboio velho a carvão que percorreu a Dinamarca de oeste para leste, parando em estações construídas em madeira em estâncias a cheirar a algas e cidades mercantis adormecidas. Peter sentou-se na carruagem da primeira classe, agitando-se de impaciência. Hermia ia na carruagem seguinte, um lugar em terceira classe. Não conseguiria escapar-lhe enquanto fossem no comboio, mas, por outro lado, não poderia fazer progressos enquanto ela não se apeasse. A tarde ia a meio quando o comboio chegou a Nyborg, na ilha central de Fyn. Dali, tinham de mudar para um ferry que atravessava o Grande Belt até à Zelândia, a maior ilha, onde embarcariam noutro comboio para Copenhaga.
Peter ouvira falar de um plano ambicioso de substituir o ferry por uma ponte enorme com vinte quilómetros de comprimento. Os tradicionalistas gostavam dos inúmeros ferries, dizendo que o seu progresso lento fazia parte da atitude descontraída do país perante a vida, mas Peter teria gostado de os poder eliminar a todos. Tinha muito que fazer; preferia as pontes.
Enquanto esperava pelo ferry, encontrou um telefone e ligou a Tilde para Politigaarden.
Ela revelou-se de um frio profissionalismo. - Não encontrei o Harald, mas tenho uma pista.
- Excelente!
- Ele esteve por duas vezes em Kirstenslot, no mês passado, em casa da família Duchwitz.
- Os judeus?
- Sim. O polícia local recorda-se de falar com ele. Diz que o Harald tem uma motorizada movida a vapor. Mas jura que não está lá neste momento.
- Certifica-te outra vez. Vai lá pessoalmente.
- Tencionava fazê-lo.
Queria falar com ela sobre o que lhe dissera na véspera. Achava realmente que não podia dormir de novo com ele? Só que não lhe ocorria uma maneira de abordar o assunto, de modo que continuou a falar do caso. - Vi a Agnes Ricks. É a Hermia Mount, a noiva do Arne Olufsen.
- A rapariga inglesa?
- Sim.
- Que excelente notícia!
- Pois é. - Peter ficou satisfeito por Tilde não haver perdido o entusiasmo pelo caso. - Ela está agora a caminho de Copenhaga, e vou segui-la.
- Não há hipótese de ela te reconhecer?
- Há.
- Não vá ela tentar despistar-te, acho que podia ir esperar o comboio.
- Preferia que fosses para Kirstenslot.
- Talvez consiga fazer ambas as coisas. Onde te encontras?
- Em Nyborg.
- Estás pelo menos a duas horas de distância.
- Mais. Este comboio é vagaroso.
- Posso ir a Kirstenslot, dou uma vista de olhos durante uma hora, e encontro-me contigo na estação.
- Óptimo - respondeu. - Faz isso.
Quando Harald se acalmou, viu que a decisão de Karen de adiar o voo por um dia não era completamente absurda. Pôs-se no lugar dela imaginando que lhe fora oferecida a oportunidade de realizar uma experiência importante com o físico Niels Bohr. Teria adiado a fuga para Inglaterra por causa de semelhante oportunidade. Talvez ele e Bohr a trabalhar juntos conseguissem alterar a concepção que a humanidade tinha do funcionamento do universo. Se fosse morrer, gostaria de saber que realizara algo dessa natureza.
Não obstante, passou um dia tenso. Verificou tudo no Hornet Moth por duas vezes. Inspeccionou o painel de instrumentos, familiarizando-se com os indicadores a fim de poder ajudar Karen. O painel não era iluminado, pois o avião não fora concebido para voar de noite, por isso teriam de fazer incidir a lanterna nos mostradores para lerem os instrumentos. Treinou o dobrar e desdobrar das asas, melhorando o tempo. Experimentou o sistema de reabastecimento durante o voo, despejando um pouco de combustível pela mangueira que saía da cabina, através da janela partida, para o depósito. Observou as condições atmosféricas, que estavam boas, com algumas nuvens e vento fraco. Ao final da tarde, apareceu uma lua a três quartos. Vestiu roupa lavada.
Estava estendido na sua cama na saliência, a acariciar o gato Pinetop, quando alguém sacudiu a porta grande da igreja.
Harald endireitou-se, pondo Pinetop no chão, e ficou à escuta. Ouviu a voz de Per Hansen: - Eu disse-lhe que estava trancada. Uma mulher respondeu: - Mais uma razão para ir espreitar lá dentro. A voz era autoritária, apercebeu-se Harald, receoso. Imaginou uma mulher de trinta anos, atraente mas profissional. Obviamente, era da polícia. Ao que tudo indicava, mandara Hansen ir procurar Harald ao castelo na véspera. Não se dera por satisfeita com as investigações de Hansen e viera pessoalmente naquele dia.
Harald praguejou. Provavelmente seria mais minuciosa do que Hansen. Não demoraria muito a conseguir entrar na igreja. Não tinha onde se esconder senão na mala do Rolls-Royce, e quem fizesse uma busca a sério não a descuraria.
Harald receava que fosse já tarde de mais para sair pela sua janela habitual, que ficava a seguir à esquina da porta principal. Mas existiam janelas a toda a volta do coro circular, e escapuliu-se rapidamente por uma dessas.
Quando chegou ao chão, olhou à sua volta com cautela. Esta extremidade da igreja ficava apenas parcialmente escondida pelas árvores, e podia ter sido visto por um soldado; mas estava com sorte, e não havia ninguém por perto.
Hesitou. Queria fugir, mas precisava de saber o que aconteceria de seguida. Coseu-se com a parede da igreja e pôs-se à escuta. Ouviu a voz de Hansen dizer: - Senhora Jespersen? Se subirmos para aquele toro, conseguimos entrar pela janela.
- Não duvido que seja para isso que o toro lá está - redarguiu a mulher com secura. Percebia-se que era muito mais inteligente do que Hansen. Harald teve a terrível sensação de que ela iria descobrir tudo.
Ouviu o raspar de pés na parede, um resmungo de Hansen quando, supostamente, se enfiou pela janela, a seguir uma pancada quando bateu no chão ladrilhado da igreja. Seguiu-se uma pancada mais ligeira alguns segundos depois.
Harald contornou sorrateiramente a lateral da igreja, empoleirou-se no toro e espreitou pela janela.
A Sr.a Jespersen era uma mulher bonita dos seus trinta anos, não gorda mas bem torneada, elegantemente vestida com roupas práticas, saia e blusa, sapatos rasos e uma boina azul-celeste sobre os caracóis louros. Como não estava fardada, devia ser detective, deduziu Harald. Trazia uma mala a tiracolo, que por certo conteria uma arma.
Hansen tinha o rosto congestionado do esforço de entrar pela janela e parecia incomodado. Harald calculou que o polícia da aldeia tivesse dificuldade em lidar com a detective de raciocínio ágil.
Olhou primeiro para a motorizada. - Bem, está aqui a motorizada de que me falou. Vejo o motor a vapor. Engenhosa.
- Ele deve-a ter deixado aqui - afirmou Hansen em tom defensivo. Obviamente contara à detective que Harald desaparecera.
Mas ela não ficou convencida. - Talvez. - Aproximou-se do carro.
- Muito bonito.
- Pertence ao judeu.
Passou um dedo pela curva de um guarda-lamas e observou a poeira.
- Há algum tempo que não sai.
- Claro que não; não tem rodas. - Hansen julgou que a apanhara, e pareceu satisfeito.
- Isso não é muito significativo, as rodas podem ser colocadas rapidamente. Mas é difícil fingir uma camada de pó.
Atravessou o espaço e pegou na camisa que Harald despira. Este gemeu por dentro. Por que não a guardara algures? Cheirou-a.
Pinetop apareceu de algures e esfregou a cabeça na perna da Sr.a Jespersen. Ela curvou-se para lhe fazer uma festa. - O que é que tu queres? - perguntou ao gato. - Têm-te alimentado?
Não escapava nada àquela mulher, apercebeu-se Harald com desânimo. Era demasiado minuciosa. Encaminhou-se para a saliência onde Harald dormira. Pegou no cobertor cuidadosamente dobrado, depois voltou a colocá-lo onde estava. - Está alguém a viver aqui - afirmou.
- Talvez seja um vagabundo.
- E talvez seja o maldito Harald Olufsen. Hansen ficou chocado.
Ela virou-se para o Hornet Moth. - O que temos aqui? - Desesperado, Harald viu-a levantar a cobertura. - Julgo ser um avião. "É o fim", pensou Harald. "Agora acabou-se tudo." Hansen comentou: - O Duchwitz costumava ter um avião, agora me lembro. No entanto, há anos que não voa nele.
- Não se encontra em mau estado.
- Não tem asas!
- Estão dobradas para trás; foi assim que o fizeram entrar pela porta.
- Abriu a porta da cabina. Debruçando-se lá dentro, deslocou a manche, olhando ao mesmo tempo para o estabilizador, vendo o leme de profundidade a deslocar-se. Espreitou o indicador de nível do combustível. - O depósito está cheio. Relanceando a pequena cabina, acrescentou:
- Há um bidão de dezoito litros por detrás do banco. E o compartimento contém duas garrafas de água e um pacote de bolachas. Mais um machado, um novelo de cordel grosso, uma lanterna e um atlas. Nenhum deles tem pó.
Retirou a cabeça da cabina e olhou para Hansen. - O Harald faz
tenções de voar.
- Ora, diabos me levem - desabafou Hansen.
Passou pela cabeça de Harald a ideia louca de matar ambos. Só não sabia se seria capaz de matar outro ser humano fosse em que circunstâncias fosse, e apercebeu-se imediatamente de que não conseguiria vencer dois agentes da polícia armados só com as mãos, de modo que afastou o pensamento.
A Sr.a Jespersen tornou-se muito sacudida. - Tenho de ir a Copenhaga. O inspector Flemming, que está encarregue deste caso, vai chegar de comboio. Atendendo ao actual funcionamento dos comboios, deverá chegar nas próximas doze horas. Quando o fizer, regressaremos. Prenderemos o Harald, se ele aqui estiver, ou montar-lhe-emos uma armadilha caso não esteja.
- O que quer que eu faça?
- Fique aqui. Descubra uma posição vantajosa na mata e vigie a igreja. Se o Harald aparecer, não fale com ele, telefone simplesmente para Politigaarden.
- Não vai enviar ninguém para me ajudar?
- Não. Convém que não façamos nada que possa espantar o rapaz. Se ele o vir, não entrará em pânico: você é apenas o polícia da aldeia. Mas dois polícias desconhecidos poderiam assustá-lo. Não quero que ele fuja e se esconda algures. Agora que descobrimos o rasto dele, não podemos voltar a perdê-lo. Fui clara?
- Sim.
- Por outro lado, se ele tentar fugir naquele avião, impeça-o.
- Prendo-o?
- Mate-o, se for necessário mas, por amor de Deus, não o deixe escapar. Harald achou absolutamente aterrador o tom objectivo dela. Se
tem sido excessivamente dramática, poderia não se sentir tão apavorado. Mas tratava-se de uma mulher atraente a falar calmamente de aspectos práticos - e acabara de mandar Hansen matá-lo se necessário fosse. Até àquele momento, Harald não fora confrontado com a possibilidade de a polícia, simplesmente, o matar. A crueldade tranquila da Sr.a Jespersen deixou-o abalado.
- Pode abrir esta porta, para evitar que eu tenha de voltar a sair pela janela - disse. - Tranque-a depois de eu sair, para que o Harald não desconfie de nada.
Hansen rodou a chave, retirou a tranca e saíram.
Harald saltou para o chão e recuou até ao extremo da igreja. Afastando-se do edifício, escondeu-se atrás de uma árvore e observou de longe enquanto a Sr.a Jespersen se encaminhava para o carro, um Buick preto. Olhou o seu reflexo na janela do carro e compôs a boina azul-celeste num gesto muito feminino. A seguir retomou os modos de polícia, apertou a mão a Hansen, entrou no carro e afastou-se rapidamente.
Hansen regressou e desapareceu da vista de Harald, protegido pela igreja.
Harald encostou-se ao tronco da árvore por um momento, a pensar. Karen prometera vir à igreja mal regressasse a casa do bailado. Se o fizesse, poderia encontrar o polícia à sua espera. E como explicaria o que estava a fazer? A sua culpa seria óbvia.
Harald tinha de arranjar uma maneira de afastá-la dali. Pensando na melhor maneira de a interceptar e avisar, decidiu que o mais simples seria ir ao teatro. Só assim teria a certeza de que não se desencontrariam.
Por um momento, sentiu raiva dela. Se tivessem partido na noite anterior, poderiam já estar em Inglaterra naquele momento. Avisara-a de que estava a pôr ambos em perigo, e agora ficara provado que ele tinha razão. Mas as recriminações eram escusadas. O mal já estava feito e era preciso enfrentar as consequências.
Inesperadamente, Hansen apareceu à esquina da igreja. Viu Harald e estacou.
Ficaram ambos surpreendidos. Harald pensara que Hansen tinha voltado à igreja para a trancar. Por sua vez, Hansen não podia imaginar que a sua presa se encontrasse tão perto. Olharam um para o outro durante um momento de paralisia.
Depois, Hansen levou a mão à arma.
As palavras da Sr.a Jespersen atravessaram num ápice a mente de Harald: "Mate-o, se for necessário." Hansen, um polícia da aldeia, provavelmente nunca matara ninguém na vida. Mas podia agarrar a oportunidade.
Harald reagiu instintivamente. Sem pensar nas consequências, precipitou-se para Hansen. Quando este ia tirar a pistola do coldre, Harald abalroou-o. Hansen foi repelido e embateu com ruído na parede da igreja, mas não largou a arma.
Ergueu a pistola para a apontar. Harald sabia que tinha apenas uma fracção de segundo para se salvar. Fez recuar o punho e atingiu Hansen na ponta do queixo. O soco levava a força do desespero. A cabeça de Hansen deu um esticão para trás e bateu na alvenaria com um som semelhante ao estampido de uma espingarda. Revirou os olhos, o seu corpo deslizou e caiu por terra.
Harald chegou a temer que o homem tivesse morrido. Ajoelhou-se ao lado do corpo inconsciente. Viu imediatamente que Hansen respirava. Graças a Deus, pensou. Era horrível pensar que pudesse ter matado um homem - mesmo um cretino malévolo como Hansen.
A luta durara apenas alguns segundos, mas teria sido observada? Olhou para o outro lado do parque, para o acampamento dos soldados. Alguns homens deslocavam-se por ali, mas nenhum olhava na direcção de Harald.
Guardou no bolso a arma de Hansen, a seguir pegou no corpo inerte. Pondo-o ao ombro como um bombeiro, contornou rapidamente a igreja até à porta principal, que continuava aberta. A sua sorte manteve-se, e ninguém o viu.
Depositou Hansen no chão, a seguir trancou rapidamente a porta da igreja. Foi buscar o cordel à cabina do Hornet Moth e amarrou os pés de Hansen. Rebolou o homem e amarrou-lhe as mãos atrás das costas. Depois, pegou na sua camisa suja, enfiou metade dela na boca de Hansen para que ele não gritasse, e atou-lhe cordel à volta da cabeça a fim de que a mordaça não caísse.
Por último, meteu Hansen no porta-bagagens do Rolls-Royce e fechou a tampa.
Viu as horas. Ainda tinha tempo de chegar à cidade e avisar Karen.
Acendeu a caldeira da sua motorizada. Podia perfeitamente ser visto a abandonar a igreja, mas não havia mais tempo para cautelas.
Contudo, podia meter-se em apuros com a arma de um polícia a fazer-lhe volume no bolso. Não sabendo o que fazer à pistola, abriu a porta direita do Hornet Moth e colocou-a no chão, onde ninguém a veria a menos que entrasse no avião e a pisasse.
Quando o motor da motorizada ganhou vapor suficiente, abriu as portas, conduziu a motorizada para o exterior, trancou-a do lado de dentro e saiu pela janela. Teve sorte, e não viu ninguém.
Rumou à cidade, ficando nervosamente atento a polícias, e estacionou ao lado do Teatro Real. Uma carpete vermelha dava acesso à entrada, e lembrou-se de que o Rei iria assistir àquele espectáculo. Um cartaz informava que Les Sylphids era o último dos três bailados no programa. Uma quantidade de pessoas bem vestidas encontrava-se nas escadas com bebidas, e Harald calculou que tivesse chegado durante o intervalo.
Dirigiu-se à porta do palco, onde se lhe deparou um obstáculo. A entrada era guardada por um porteiro fardado. - Preciso de falar com a Karen Duchwitz - pediu-lhe Harald.
- Fora de questão - respondeu-lhe o porteiro. - Ela está prestes a entrar em cena.
- É mesmo muito importante.
- Terá de esperar que termine.
Harald viu que o homem não se deixava sensibilizar. - Quanto tempo dura o bailado?
- Cerca de meia hora, consoante o ritmo a que a orquestra tocar. Harald lembrou-se de que Karen lhe deixara um ingresso na bilheteira. Decidiu que iria vê-la dançar.
Dirigiu-se ao átrio de mármore, levantou o bilhete e entrou no auditório. Nunca antes estivera num teatro, e olhava maravilhado para a sumptuosa decoração dourada, as galerias em semicírculo e as filas de cadeiras de veludo vermelho. Encontrou o seu lugar na quarta fila e sentou-se. Estavam dois oficiais alemães fardados mesmo à sua frente. Viu as horas. Por que não começava o bailado? A cada minuto Peter Flemming ficava mais perto.
Apanhou um programa que fora esquecido no lugar ao seu lado e folheou-o, procurando o nome de Karen. Não constava da lista do elenco, mas um papel que caiu lá de dentro dizia que a primeira bailarina estava indisposta e que seria substituída por Karen Duchwitz. Referia também que o papel do bailarino a solo seria efectuado por um substituto, Jan Anders, supostamente por o bailarino principal ter sido também vítima da doença gástrica que afectara o elenco. Devia ser um momento preocupante para a companhia, pensou Harald, com os papéis principais a serem desempenhados por alunos, e logo numa altura em que o Rei iria assistir.
Passados alguns instantes, sobressaltou-se ao ver o Sr. e a Sr.a Duchwitz ocuparem os seus lugares duas filas à frente. Devia ter calculado que não perderiam o grande momento da filha. A princípio, ficou preocupado com o facto de que pudessem reparar nele. Apercebeu-se depois de que deixara de ter importância. Agora que a polícia descobrira o esconderijo dele, não precisava de guardar segredo de mais ninguém. Lembrou-se com alguma culpa que vestia o casaco desportivo americano do Sr. Duchwitz. Tinha quinze anos, de acordo com a etiqueta do alfaiate no bolso interior, só que Karen não chegara a pedir autorização ao pai para o levar. Iria Duchwitz reconhecê-lo? Ser acusado de roubar um casaco era a menor das suas preocupações.
Levou a mão ao rolo de película no bolso e perguntou-se se havia alguma hipótese de ele e Karen conseguirem ainda fugir no Hornet Moth. Estava tudo dependente do comboio de Peter Flemming. Se chegasse cedo, Flemming e Jespersen alcançariam Kirstenslot antes de Harald e Karen. Talvez pudessem evitar ser apanhados, mas era difícil imaginar como conseguiriam ter acesso ao avião com a polícia a vigiá-lo. Por outro lado, com Hansen fora do caminho, não estava ninguém a guardar o avião naquele momento. Se o comboio de Flemming não conseguisse chegar senão de madrugada, talvez houvesse ainda hipótese de poderem descolar. A Sr.a Jespersen desconhecia que Harald a vira. Julgava dispor de imenso tempo. Esse era o único elemento que jogava a favor de Harald. Quando é que o maldito espectáculo começa?
Depois de estarem todos sentados no auditório, o Rei chegou ao camarote real. O público levantou-se. Era a primeira vez que Harald via o Rei Christian X pessoalmente, porém, o rosto era-lhe familiar de fotografias, com o bigode descaído conferindo-lhe uma expressão eternamente sinistra, como convinha ao monarca de um país ocupado. Vestia o traje de gala e mantinha-se muito direito. Nas fotografias, o Rei usava sempre uma espécie de chapéu, e Harald reparou pela primeira vez que estava a ficar calvo.
Quando o Rei se sentou, o público seguiu o seu exemplo, e as luzes apagaram-se. Finalmente, pensou Harald.
O pano subiu revelando vinte ou mais mulheres imóveis num círculo e um homem de pé na posição das doze horas. As bailarinas, todas vestidas de branco, posavam a uma luz azulada pálida semelhante ao luar, e o palco vazio desapareceu no meio de sombras escuras nas extremidades. Era uma abertura dramática e Harald ficou fascinado, a despeito das suas preocupações.
Ouviu-se um acorde musical baixo, descendente, e as bailarinas moveram-se. O círculo alargou-se, deixando quatro pessoas imóveis ao fundo do palco, o homem e três mulheres. Iniciou-se uma valsa lenta. Onde estava Karen?
Todas as raparigas tinham vestidos idênticos, com corpetes justos que lhes expunham os ombros, e saias compridas que se agitavam ao dançarem.
Era uma roupa sensual, mas a iluminação atmosférica fazia com que parecessem todas iguais, e Harald não conseguia distinguir qual era Karen.
Depois, a que dormia moveu-se, e reconheceu o cabelo ruivo de Karen. Deslizou até ao centro do palco. Harald ficou tenso de ansiedade, receando que ela pudesse cometer algum erro que estragasse o seu grande dia; mas ela tinha um ar seguro e controlado. Começou a dançar em pontas. Parecia doloroso e fez Harald estremecer, mas ela dava a impressão de flutuar. O corpo de baile formava padrões à volta dela, linhas e círculos. O público mantinha-se silencioso e imóvel, cativado por ela, e o coração de Harald encheu-se de orgulho. Ficou satisfeito por Karen ter decidido dançar, independentemente das consequências.
A música mudou de clave e o bailarino moveu-se. Ao vê-lo saltar pelo palco, Harald achou-o inseguro e recordou-se de que também ele era um substituto, Anders. Karen dançara com confiança, efectuando cada movimento sem esforço, mas havia uma tensão nos movimentos do rapaz que conferia uma sensação de risco à sua execução.
A dança terminou com a frase lenta que lhe dera início, e Harald apercebeu-se de que não havia história, as danças conseguiam ser tão abstractas quanto a música. Viu as horas. Tinham passado apenas cinco minutos.
O corpo de baile dispersou e voltou a formar novas configurações que evoluíram numa série de danças a solo. Toda a música parecia ser no compasso ternário-quaternário, e muito melódica. Harald, que adorava as dissonâncias do jazz, achou-a quase demasiado harmoniosa.
O bailado fascinava-o, mas mesmo assim a sua mente vagueou até ao Hornet Moth, e a Hansen amarrado no porta-bagagens do Rolls, e à Sr.a Jespersen. Seria possível Peter Flemming ter apanhado o único comboio pontual na Dinamarca? Se sim, seguia já com a Sr.a Jespersen a caminho de Kirstenslot? Tinham encontrado Hansen? Estavam escondidos à espera? Como poderia Harald certificar-se? Talvez se aproximasse do mosteiro pela mata, e assim poderia detectar alguma emboscada.
Karen iniciou uma dança a solo, e ficou mais tenso por ela do que pela polícia. Não precisava de se preocupar: ela estava descontraída e senhora de si, rodopiando e andando em pontas e saltando tão alegremente como se fosse improvisando a cada momento. Ficou admirado com a sua capacidade de efectuar um passo vigoroso, correr ou saltar pelo palco, depois estacar subitamente, como se não tivesse qualquer inércia. Parecia escarnecer das leis da física.
Harald ficou ainda mais nervoso quando Karen começou a dançar com Jan Anders. Chamava-se pas de deux, pensou, apesar de não ter bem a certeza de como o sabia. Anders ia-a erguendo bem no ar. A saia subia, mostrando as pernas fabulosas. Anders segurava-a lá em cima, por vezes com uma mão, enquanto ela assumia uma pose ou se deslocava à volta do palco. Harald temia pela sua segurança, mas ela ia descendo sucessivamente com facilidade e graça. Não obstante, Harald ficou aliviado quando o pas de deux terminou e começou o conjunto. Viu novamente as horas. Aquela devia ser a última dança, graças a Deus.
Anders executou diversos saltos espectaculares durante a última dança e repetiu algumas das suas elevações com Karen. Então, quando a música atingiu um clímax, deu-se a catástrofe.
Anders levantou novamente Karen, depois aguentou-a no ar com a mão na nuca dela. Ela esticou-se ficando paralela ao chão. Curvou as pernas para a frente com os dedos dos pés em pontas, e os seus braços elevaram-se sobre a cabeça, descrevendo um arco. Mantiveram a pose por um momento. A seguir Anders escorregou.
O pé esquerdo deslizou debaixo de si. Cambaleou e estatelou-se de costas. Karen caiu no palco ao lado dele, sobre a perna e o braço direitos.
O público arfou, horrorizado. As outras bailarinas precipitaram-se para as suas figuras caídas. A música prosseguiu mais uns acordes, a seguir cessou. Entrou dos bastidores um homem de calças e camisola pretas.
Anders levantou-se, agarrando o cotovelo, e Harald apercebeu-se de que ele chorava. Karen tentou levantar-se mas caiu de costas. A figura de preto esboçou um gesto, e o pano desceu. O público começou a conversar, inquieto.
Harald apercebeu-se de que se levantara.
Viu o Sr. e a Sr.a Duchwitz, duas filas à frente de si, porem-se em pé e deslocarem-se com urgência até à coxia, pedindo desculpa às pessoas por quem iam passando. Harald decidiu fazer o mesmo.
Foi penosamente lento sair da fila de cadeiras. Na sua ansiedade, teve de fazer um esforço por não bater nos joelhos dos outros espectadores. Mas chegou à coxia ao mesmo tempo que os Duchwitz. - Eu vou convosco - comunicou.
- Quem é o senhor? - inquiriu o pai dela.
A mãe respondeu à pergunta. - É o amigo do Josef, o Harald. Já o conheceste. A Karen está encantada com ele. Deixa-o vir.
O Sr. Duchwitz assentiu com um resmungo. Harald não fazia ideia de que a Sr.a Duchwitz sabia que Karen estava "encantada" com ele, mas ficou aliviado por ser aceite como parte da família.
Quando chegaram à saída, o público remetera-se ao silêncio. Os Duchwitz e Harald viraram-se à porta. O pano subira. O palco estava vazio, à excepção do homem de preto.
- Vossa Majestade, senhoras e senhores - começou. - Por feliz acaso, o médico da companhia encontrava-se esta noite entre o público. - Harald calculou que todos aqueles associados à companhia de bailado gostariam de estar presentes para um espectáculo que contava com a presença real. - O médico já se deslocou aos bastidores, e está a examinar os dois bailarinos principais. Informou-me que nenhum parece apresentar ferimentos graves.
Ouviram-se alguns aplausos.
Harald ficou aliviado. Agora que sabia que ela ia ficar bem, pensou pela primeira vez na forma como o acidente iria afectar a fuga deles. Mesmo que conseguissem chegar ao Hornet Moth, conseguiria Karen voar? O homem de preto prosseguiu. - Como têm conhecimento pelo programa, ambos os papéis principais foram desempenhados por substitutos, a exemplo de muitos outros papéis. Mesmo assim, espero que concordem comigo que eles dançaram maravilhosamente, e proporcionaram um espectáculo magnífico praticamente até ao fim. Obrigado.
O pano desceu e o público aplaudiu. Voltou a subir para revelar todo o elenco, à excepção de Karen e Anders, e fizeram uma vénia.
Os Duchwitz saíram, e Harald seguiu-os.
Correram para a porta do palco. Um arrumador conduziu-os ao camarim de Karen.
Estava sentada com o braço direito ao peito. Parecia extraordinariamente bela no vestido branco-creme, com os ombros à mostra e a elevação dos seios a ver-se por cima do corpete. Harald ficou sem fôlego, e não soube se a causa era a ansiedade ou o desejo.
O médico encontrava-se ajoelhado diante dela, a enrolar-lhe uma ligadura no tornozelo direito.
A Sr.a Duchwitz precipitou-se para Karen, exclamando: - Minha pobre querida! - Envolveu Karen e abraçou-a. Era o que Harald gostaria de fazer.
- Oh, eu estou bem - afirmou Karen, apesar da palidez.
O Sr. Duchwitz falou com o médico. - Como é que ela está?
- Está bem - respondeu o homem. - Torceu o pulso e o tornozelo. Irá ter dores durante uns dias, e não deve fazer esforços durante pelo menos duas semanas, mas vai recuperar.
Harald ficou aliviado por os ferimentos não serem graves, mas o seu pensamento imediato foi: poderá voar?
O médico prendeu a ligadura com um alfinete-de-ama. Bateu-lhe ao de leve no ombro despido. - Vou ver como está o Anders. Ele não caiu tão de chapa como você, mas estou um pouco preocupado com o cotovelo dele.
- Obrigada, doutor.
A mão dele permaneceu no ombro de Karen, para contrariedade de Harald. - Dançou maravilhosamente como sempre, não se preocupe. - Retirou-se.
Karen afirmou: - Pobre Jan, não consegue parar de chorar. Harald achou que Anders devia ser fuzilado. - A culpa foi dele... Largou-te! - proferiu, cheio de indignação.
- Eu sei, é por isso que está tão aflito.
O Sr. Duchwitz olhou para Harald com irritação. - O que está a fazer aqui?
Mais uma vez, foi a mulher quem respondeu. - O Harald tem estado a viver em Kirstenslot.
Karen ficou em choque. - Mãe, como é que sabia?
- Achas que ninguém se apercebia de que os restos desapareciam da cozinha todas as noites? Sabes, nós, as mães, não nascemos ontem.
O Sr. Duchwitz inquiriu: - Mas onde é que ele dorme?
- Na igreja abandonada, espero - respondeu a mulher. - Por isso a Karen tem feito tanta questão de a manter fechada.
Harald ficou horrorizado por o seu segredo ter sido descoberto tão facilmente. O Sr. Duchwitz parecia furioso mas, antes que explodisse, o Rei entrou.
Calaram-se todos.
Karen tentou levantar-se, mas ele impediu-a. - Minha cara jovem, por favor, fique onde está. Como se sente?
- Dói, Vossa Majestade.
- Estou certo que sim. Mas não são danos permanentes, espero?
- Foi o que disse o médico.
- Saiba que dançou divinamente.
- Obrigada, Vossa Majestade.
O Rei olhou com ar inquiridor para Harald. - Boa noite, meu
jovem.
- Sou Harald Olufsen, Vossa Majestade, um amigo de colégio do
irmão da Karen.
- Que colégio?
- Jansborg Skole.
- Ainda tratam o director por Heis?
- Sim... e a esposa por Mia.
- Olhe bem pela Karen. - Virou-se para os pais dela. - Olá, Duchwitz, é bom voltar a vê-lo. A sua filha possui um talento maravilhoso.
- Obrigado, Vossa Majestade. Lembrais-vos da minha mulher,
Hanna.
- Claro. - O Rei apertou-lhe a mão. - Isto é muito preocupante para uma mãe, Senhora Duchwitz, mas tenho a certeza de que a Karen vai ficar bem.
- Sim, Vossa Majestade. Os jovens curam-se depressa.
- Sem dúvida alguma! Agora vou ver como está o pobre sujeito que a deixou cair. - O Rei aproximou-se da porta.
Pela primeira vez, Harald reparou no acompanhante do Rei, um jovem que era assistente, ou guarda-costas, ou talvez ambas as coisas. - Por aqui, senhor - disse o jovem, segurando a porta.
O Rei saiu.
- Bem! - exclamou a Sr.a Duchwitz com voz entusiasmada. - Que encantador!
O Sr. Duchwitz sugeriu: - Acho melhor levarmos a Karen para casa.
Harald perguntou-se quando teria oportunidade de falar com ela a sós.
Karen disse: - A mãe terá de me ajudar a despir este fato.
O Sr. Duchwitz aproximou-se da porta, e Harald seguiu-o, não sabendo o que mais fazer.
Karen pediu: - Antes de me mudar, importam-se que fale com o Harald a sós?
O pai pareceu irritado, mas a mãe interveio: - Está bem, mas não demores. - Saíram do camarim e a Sr.a Duchwitz fechou a porta.
- Estás mesmo bem? - perguntou Harald a Karen.
- Ficarei quando me beijares.
Ajoelhou ao lado da cadeira e beijou-lhe os lábios. Depois, incapaz de resistir à tentação, beijou-lhe os ombros despidos e a garganta. Os lábios dele continuaram a descer, e beijou-lhe o volume dos seios.
- Oh, meu Deus, pára, é bom demais.
Com relutância, Harald afastou-se. Viu que a cor voltara ao rosto dela, e que estava sem fôlego. Ficou espantado ao ver que fora obra dos seus beijos.
- Temos de conversar - disse.
- Eu sei. Estás em condições de pilotar o Hornet Moth?
- Não.
Já o temia. - Tens a certeza?
- Dói imenso. Não consigo sequer abrir uma porta. E nem posso andar, por isso seria impossível operar o leme com os pés.
Harald cobriu o rosto com as mãos. - Nesse caso, está tudo perdido.
- O médico disse que só teria dores durante alguns dias. Podemos partir assim que me sentir melhor.
- Há algo que ainda não te contei. O Hansen veio de novo bisbilhotar esta tarde.
- Eu não me preocupava com ele.
- Desta vez vinha acompanhado de uma detective, a senhora Jespersen, que é muito mais inteligente. Escutei a conversa deles. Ela entrou na igreja e percebeu tudo. Adivinhou que tenho estado a viver ali e que tenciono fugir no avião.
- Oh, não! O que fez ela?
- Foi buscar o chefe, que por acaso é o Peter Flemming. Deixou o Hansen a guardar e mandou-o matar-me se eu tentasse descolar.
- Matar-te? O que vais fazer?
- Agredi o Hansen e amarrei-o - contou Harald, sem uma pontinha de orgulho.
- Ó meu Deus! Onde é que ele está neste momento?
- No porta-bagagens do carro do teu pai. Ela achou piada. - Meu malandro!
- Pensei que tivéssemos só uma hipótese. O Peter vem num comboio e ela não sabe a que horas chega. Se nós os dois conseguíssemos voltar para Kirstenslot esta noite antes do Peter e da Jespersen, ainda podíamos descolar. Mas agora tu não podes voar...
- Ainda seria possível.
- Como?
- Tu podes ser o piloto.
- Não posso, só tive uma lição!
- Dar-te-ei todas as indicações. O Poul disse-me que possuías um talento inato. E eu podia operar a manche com a mão esquerda uma parte do tempo.
- Estás mesmo a falar a sério?
- Sim!
- Está bem. - Harald anuiu solenemente. - É o que vamos fazer. Reza só para que o comboio do Peter chegue atrasado.
Hermia detectara Peter Flemming no ferry.
Vira-o debruçado sobre a amurada, a olhar para o mar, e recordou um homem com bigode ruivo e fato de tweed elegante na plataforma em Morlunde. Claro que várias pessoas de Morlunde se dirigiam a Copenhaga, decidiu, mas o homem parecia-lhe vagamente familiar.
O chapéu e os óculos haviam-na desorientado um pouco, mas a sua memória acabou por o identificar: Peter Flemming.
Arne apresentara-lho, nos tempos felizes. Os dois homens tinham sido amigos, recordou vagamente, depois haviam-se incompatibilizado por ocasião da desavença entre as suas famílias.
Agora Peter era polícia.
Mal se lembrou desse pormenor, apercebeu-se de que devia estar a segui-la. Sentiu um arrepio de medo como um vento frio.
Estava a ficar sem tempo. A lua cheia era dali a três noites, e continuava sem encontrar Harald Olufsen. Se conseguisse obter dele a película naquela noite, não sabia muito bem como levá-la a tempo para o seu país. Mas não ia desistir - por causa da memória de Arne, por causa de Digby, e por todos os aviadores que arriscavam as suas vidas para combater os nazis.
E por que não a prendera Peter entretanto? Era uma espia britânica. Qual era a sua intenção? Talvez, como ela, Peter andasse à procura de Harald.
Quando o ferry atracou, Peter seguiu-a até ao comboio para Copenhaga. Assim que o comboio se pusera em marcha, avançara pelo corredor e avistara-o na carruagem da primeira classe.
Regressou ao seu lugar, preocupada. Aquele desenvolvimento não era nada bom. Não podia levar Peter até Harald. Tinha de o despistar.
Tempo era o que não lhe faltava para pensar numa maneira. O comboio atrasou-se sucessivamente, e chegou a Copenhaga às dez da noite. Quando ele chegou à estação, tinha traçado um plano. Iria ao jardim Tivoli e despistaria Peter no meio da multidão.
Ao abandonar o comboio, olhou para a plataforma e viu Peter descer da carruagem da primeira classe.
Seguiu em passo normal as escadas que partiam da plataforma, transpôs a barreira dos bilhetes e saiu da estação. Estava lusco-fusco. O Tivoli ficava a alguns passos dali. Dirigiu-se à entrada principal e comprou um ingresso. - Encerramos à meia-noite - avisou-a o vendedor.
Estivera lá com Arne em 1939. Fora uma noite de festival, e cinquenta mil pessoas haviam enchido o parque para assistir ao fogo de artifício. Naquele momento o local era uma triste versão de outros tempos, como uma fotografia a preto e branco de uma taça de fruta. Os caminhos continuavam a serpentear encantadoramente entre os canteiros, mas as luzes feéricas nas árvores estavam apagadas, e os percursos eram iluminados por lâmpadas especiais de baixa intensidade em conformidade com as normas do blackout. O abrigo em caso de ataque aéreo no exterior do Teatro de Pantomina conferia um toque soturno. Até as bandas pareciam abafadas. Mais descoroçoante para Hermia era o facto de a multidão não ser tão densa, facilitando a vida a alguém que a seguisse.
Parou, fingindo observar um malabarista, e olhou para trás. Viu que Peter a seguia de perto, estando a comprar um copo de cerveja numa banca. Como haveria de se livrar dele?
Avançou para uma multidão reunida à volta de um palco ao ar livre onde se cantava uma opereta. Foi abrindo caminho até à frente depois para o outro lado mas, ao caminhar, Peter seguia ainda atrás de si. Se aquilo continuasse muito mais tempo, ele perceberia que estava a tentar despistá-lo. Talvez então abandonasse o esquema e a prendesse.
Começou a sentir-se assustada. Contornou o lago e chegou à pista de dança ao ar livre, onde uma grande orquestra tocava um fox-trot. Estava pelo menos uma centena de casais a dançar energicamente, e muitos mais a observar. Finalmente Hermia sentiu um pouco da atmosfera do velho Tivoli. Vendo um homem jovem bem-parecido sozinho de um lado, sentiu-se inspirada. Aproximou-se dele e afivelou o seu melhor sorriso. - Gostaria de dançar comigo? - perguntou.
- Claro! - Tomou-a nos braços e afastaram-se. Hermia não era boa dançarina, mas ajeitava-se com um parceiro competente. Arne fora magnífico, com estilo e dominador. Este homem era confiante e decidido.
- Como se chama? - perguntou ele.
Por pouco não lhe disse, depois deteve-se no último instante. - Agnes.
- Sou o Johan.
- Muito prazer em conhecê-lo, Johan, e dança maravilhosamente o fox-trot. - Olhou para o caminho e viu Peter a observar os dançarinos.
Inconvenientemente, a música terminou de forma abrupta. Os dançarinos aplaudiram a orquestra. Alguns casais abandonaram a pista de dança e outros entraram. Hermia disse: - Vai outra dança?
- O prazer seria todo meu.
Decidiu ser sincera com ele. - Oiça, anda um homem horrível a seguir-me e estou a tentar fugir dele. Poderia conduzir-nos até ao outro lado?
- Que excitante! - Olhou para os espectadores do outro lado da pista. - Qual deles é? Aquele homem gordo com o rosto vermelho?
- Não, o de fato castanho-claro.
- Estou a vê-lo. Bastante jeitoso.
A banda começou a tocar uma polca. - Ó meu Deus! - lamentou-se Hermia. A polca era difícil, mas tinha de tentar.
Johan era suficientemente exímio e facilitou-lhe a vida. Conseguia também conversar ao mesmo tempo. - O homem que a está a incomodar é um perfeito desconhecido, ou alguém que conhece?
- Já o vi antes. Leve-me até ao outro lado, junto à orquestra... Isso mesmo.
- Ele é seu namorado?
- Não. Vou deixá-lo daqui a pouco, Johan. Se ele correr atrás de mim, prega-lhe uma rasteira, ou outra coisa qualquer?
- Se quiser.
- Obrigada.
- Acho que ele é seu marido.
- De modo algum. - Encontravam-se perto da orquestra. Johan conduziu-a ao extremo da pista de dança. - Talvez você seja
espia, e ele um polícia esperançado em apanhá-la a roubar segredos militares aos nazis.
- Algo do género - respondeu-lhe, animada, e esgueirou-se-lhe dos braços.
Afastou-se rapidamente da pista e contornou o coreto até às árvores. Correu pela relva até chegar a outro caminho; depois, dirigiu-se a uma saída lateral. Olhou para trás: Peter não a seguia.
Abandonou o parque e correu para a estação dos caminhos-de-ferro suburbanos do outro lado da rua, em frente ao término da linha principal. Comprou um bilhete para Kirstenslot. Sentiu-se radiante. Livrara-se de Peter.
Não estava ninguém na plataforma com ela a não ser uma mulher atraente de boina azul-celeste.
Harald aproximou-se cautelosamente da igreja.
Caíra um aguaceiro, e a erva estava molhada, mas parara de chover. Uma brisa ligeira empurrava as nuvens, e uma lua a três quartos brilhava intensamente por entre os intervalos. A sombra do campanário aparecia e escondia-se com o luar.
Não havia carros desconhecidos estacionados nas proximidades, mas isso não o deixou muito tranquilo. A polícia teria escondido os veículos se estivesse decidida a montar uma armadilha.
Não se viam luzes em lado nenhum no mosteiro em ruínas. Era meia-noite, e os soldados estavam deitados, todos excepto dois: a sentinela no parque do lado de fora da tenda da messe, e um enfermeiro veterinário de serviço no hospital dos cavalos.
Harald pôs-se à escuta do lado de fora da igreja. Ouviu um cavalo resfolegar nos claustros. Com a maior cautela, empoleirou-se no toro e espreitou por cima do parapeito da janela.
Conseguia ver os contornos vagos do carro e do avião ao luar difuso. Poderia estar alguém ali escondido, à espera.
Ouviu um resmungo abafado e uma pancada. O ruído repetiu-se passado um minuto, e calculou que fosse Hansen, a tentar libertar-se dos cordéis. O coração de Harald pulou de esperança. Se Hansen continuava amarrado, isso queria dizer que a Sr.a Jespersen ainda não regressara com Peter. Harald e Karen tinham ainda oportunidade de descolar no Hornet Moth.
Esgueirou-se pela janela e atravessou o chão até ao avião. Retirou a lanterna da cabina e fê-la incidir na igreja. Não estava ali ninguém.
Abriu a mala do carro. Hansen continuava amarrado e amordaçado. Harald verificou os nós. Estavam firmes. Voltou a fechar a mala.
Ouviu um murmúrio sonoro: - Harald! És tu?
Fez incidir a lanterna nas janelas e viu Karen a espreitar lá para dentro.
Viera para casa de ambulância. Os pais tinham-na acompanhado. Antes de se separarem, no teatro, prometera-lhe sair de casa assim que pudesse e ir ter com ele à igreja se o caminho estivesse livre.
Apagou a lanterna, de seguida abriu a porta grande da igreja para ela. Entrou a coxear, trazendo um casaco de peles pelos ombros e um cobertor. Envolveu-a delicadamente, tendo cuidado com o braço direito ao peito, e abraçou-a. Por um breve momento, maravilhou-se com o calor do corpo dela e o cheiro que o cabelo emanava.
Voltou então aos aspectos práticos. - Como te sentes?
- Dói infernalmente, mas hei-de aguentar. Olhou para o casaco dela. - Tens frio?
- Por enquanto não, mas terei a mil e quinhentos metros sobre o Mar do Norte. O cobertor é para ti.
Tirou-lhe o cobertor e agarrou-lhe a mão boa. - Estás preparada para fazer isto?
- Estou.
Beijou-a ao de leve. - Amo-te.
- Também te amo.
- A sério? Nunca o tinhas dito antes.
- Eu sei. Estou a dizer-to agora, para o caso de não sobreviver a esta viagem - redarguiu no seu tom desprendido. - És o melhor homem que jamais conheci, de longe. És inteligente, mas nunca deprecias as pessoas. És gentil e bondoso, mas tens a coragem de um exército. - Acariciou-lhe o cabelo. - Até és atraente, de uma maneira engraçada. O que mais poderia desejar?
- Algumas raparigas gostam de um homem que se vista bem.
- Tens razão. No entanto, isso resolve-se.
- Gostaria de explicar por que te amo, mas a polícia pode chegar aqui a qualquer instante.
Harald abriu a porta da cabina e atirou o cobertor lá para dentro. - É melhor entrares agora - disse. - Quanto menos tivermos de fazer assim que estivermos lá fora à vista de todos, mais oportunidades teremos de fugir.
- Está bem.
Viu que ia ser difícil metê-la na cabina. Arrastou um caixote e ela colocou-se lá em cima, mas depois não conseguiu enfiar o pé magoado lá dentro. De qualquer forma, era difícil entrar - sendo a cabina mais acanhada do que o banco da frente de um automóvel - e de todo impossível com dois membros magoados. Harald apercebeu-se de que teria de a levar ao colo.
Pegou-lhe, colocando o braço esquerdo por debaixo dos ombros e o direito sob os joelhos; depois, subiu para o caixote e introduziu-a no banco do passageiro do lado direito da cabina. Desse modo, sempre poderia operar a manche central em forma de Y com a mão esquerda boa, e Harald, a seu lado no banco do piloto, conseguiria usá-la com a direita.
- O que é isto no chão? - perguntou, levando lá a mão.
- A arma do Hansen. Não sabia o que fazer com ela. - Fechou a porta. - Estás bem?
Ela fez deslizar a janela. - Estou óptima. O melhor lugar para a descolagem será ao longo do acesso. O vento tem a intensidade certa, mas sopra na direcção do castelo, por isso vais ter de empurrar o avião até à porta do castelo, depois virá-lo para descolares a favor do vento.
- Está bem.
Escancarou as portas da igreja. A seguir tinha de tirar o avião. Felizmente fora bem estacionado, a apontar directamente para a porta. Havia uma porção de corda firmemente presa ao trem de aterragem que, deduzira Harald da primeira vez que a vira, era usada para puxar o avião. Agarrou a corda com força e puxou.
O Hornet Moth era mais pesado do que pensara. Para além do motor, levava cento e setenta e oito litros de combustível mais Karen. Era muito peso para puxar.
Para vencer a inércia, Harald conseguiu baloiçar o avião nas rodas, imprimir-lhe ritmo, depois pô-lo em movimento. Assim que se moveu, a tensão foi menor, mas continuava a ser pesado. Com considerável esforço, puxou-o da igreja para o parque e levou-o até ao acesso.
A Lua saiu de trás de uma nuvem. O parque ficou quase iluminado como se fosse dia. O avião estava bem à vista de quem quer que olhasse na direcção certa. Harald tinha de agir rapidamente.
Correu o fecho que segurava a asa esquerda à fuselagem e fê-la deslizar para a posição certa. A seguir, baixou o flap articulável na extremidade interior da asa superior. Desse modo, a asa não deslizaria enquanto a deslocava até à extremidade frontal. Aí, rodou o pino da asa inferior e introduziu-o na ranhura. Ofereceu alguma resistência. Deparara-se-lhe aquele problema quando treinara. Agitou delicadamente a asa, e isso permitiu-lhe fazer deslizar o pino até ao respectivo lugar. Prendeu-o com a tira de couro. Repetiu o processo com o pino da asa superior, fixando-o ao recolher o esticador de reserva.
Demorara três ou quatro minutos. Olhou para o acampamento dos soldados do outro lado do parque. A sentinela vira-o e aproximava-se.
Efectuou o mesmo procedimento com a asa direita. Quando terminou, a sentinela encontrava-se a seu lado. Era o simpático Leo.
- O que estás a fazer? - perguntou, curioso.
Harald preparara uma história. - Vamos tirar uma fotografia. O senhor Duchwitz quer vender o avião porque não consegue arranjar combustível para ele.
- Fotografia? À noite?
- É uma fotografia ao luar, com o castelo ao fundo.
- O meu capitão sabe?
- Oh, sim, o senhor Duchwitz falou com ele, e o capitão Kleiss disse que não haveria problema.
- Ah, bom - disse Leo; depois ficou novamente carrancudo.
- No entanto, é estranho que o capitão não me avisasse de nada.
- Provavelmente não achou que fosse importante. - Harald receou ver os seus planos frustrados. Se os militares alemães fossem negligentes, não teriam conquistado a Europa.
Leo abanou a cabeça. - Uma sentinela tem de ser informada de quaisquer acontecimentos invulgares que vão ter lugar durante a sua vigia - afirmou, como se papagueasse um livro de regras.
- Estou certo que o senhor Duchwitz não nos mandaria fazer isto sem falar com o capitão Kleiss. - Harald encostou-se ao estabilizador, empurrando.
Vendo-o com dificuldade em mover a cauda, Leo deu-lhe uma ajuda. Juntos rodaram a traseira um quarto de círculo de modo que o avião ficasse virado para o acesso.
Leo anunciou: - É melhor ir confirmar junto do capitão.
- Se tens a certeza de que ele não se importa de ser acordado. Leo pareceu reflectir, com ar apreensivo. - Talvez ele ainda não
esteja a dormir.
Harald sabia que os oficiais dormiam no castelo. Pensou numa forma de demorar Leo e acelerar o que tinha a fazer. - Bem, se tens mesmo de ir ao castelo, podias ajudar-me primeiro a deslocar este trambolho.
- Está bem.
- Eu fico com a asa esquerda e tu com a direita.
Leo pôs a espingarda ao ombro e encostou-se ao esticador de metal entre as asas superior e inferior. Com os dois a empurrarem, o Hornet Moth deslocava-se com mais facilidade.
Hermia apanhou o último comboio da noite na estação de Vester-port. Parou em Kirstenslot já passava da meia-noite.
Não sabia muito bem o que fazer quando chegasse ao castelo. Não queria que as atenções recaíssem sobre si indo bater à porta e acordando a família. Podia ter de esperar até de manhã para perguntar por Harald. Isso implicaria passar a noite ao relento. Mas não a mataria. Por outro lado, se houvesse luzes acesas no castelo, poderia encontrar alguém a quem dar discretamente uma palavrinha, um criado, talvez. E estava nervosa por ter de desperdiçar tempo precioso.
A outra pessoa no comboio apeou-se com ela. Era a mulher com a boina azul-celeste.
Registou um momento de receio. Cometera um erro? Poderia aquela mulher estar a segui-la, em substituição de Peter Flemming?
Bastar-lhe-ia confirmar.
No exterior da estação às escuras, parou e abriu a mala, fingindo procurar algo. Se a mulher a estivesse a seguir, também ela teria de arranjar um pretexto para esperar.
A mulher saiu da estação e passou por ela sem hesitar.
Hermia continuou a remexer na mala, ao mesmo tempo que observava pelo canto do olho.
A mulher encaminhou-se decididamente para um Buick preto estacionado ali perto. Estava alguém sentado ao volante, a fumar. Hermia não conseguia ver o rosto, apenas a incandescência do cigarro. A mulher entrou. O carro arrancou e afastou-se.
Hermia respirou de alívio. A mulher passara a tarde na cidade, e o marido viera buscá-la à estação. Falso alarme, pensou Hermia, aliviada.
Começou a afastar-se.
Harald e Leo empurraram o Hornet Moth pelo acesso, passando pelo camião-cisterna de onde Harald roubara o combustível, sempre até ao pátio diante do castelo, depois viraram-no para o vento. Leo foi lá dentro acordar o capitão Kleiss.
Harald tinha apenas um minuto ou dois.
Tirou a lanterna do bolso, acendeu-a e segurou-a na boca. Correu os fechos do lado esquerdo do nariz da fuselagem e abriu a cobertura do motor. - Combustível ligado?
- Combustível ligado - gritou Karen.
Harald puxou a argola da bobina e accionou a alavanca de uma das duas bombas de combustível para inundar o carburador. Baixou a cobertura do motor e correu os fechos. Tirando a lanterna da boca, gritou: - Acelerador a postos e magnetos ligados?
- Acelerador a postos, magnetos ligados.
Colocou-se diante do avião e girou a hélice. Imitando o que vira Karen fazer, rodou-a uma segunda vez, depois uma terceira. Finalmente, aplicou-lhe um impulso vigoroso e recuou prudentemente.
Não aconteceu nada.
Soltou uma imprecação. Não havia tempo para enfrentar obstáculos.
Repetiu o processo. Algo estava errado, pensou, enquanto fazia a tentativa. Antes, quando rodara a hélice, acontecera algo que não estava a acontecer naquele momento. Procurou desesperadamente lembrar-se
do que fora.
Mais uma vez, o motor teimou em não pegar.
Num vislumbre de lembrança, apercebeu-se do que faltava. Não houvera estalido quando rodara a hélice. Recordou-se de Karen lhe ter dito que o estalido era o impulso do motor de arranque. Sem isso, não haveria faísca.
Correu para a janela aberta do lado dela. - Não há estalido! - exclamou.
- Os magnetos estão encravados - respondeu com calma. - Acontece com frequência. Abre a cobertura do lado direito. Verás o motor de arranque entre o magneto e o motor. Dá-lhe uma pancada forte com uma pedra ou algo parecido. Normalmente costuma resultar.
Abriu a cobertura direita e fez incidir a lanterna. O motor de arranque de impulso era um cilindro de metal espalmado. Observou o solo à volta dos seus pés. Não havia pedras. - Dá-me algo do estojo de ferramentas - pediu a Karen.
Ela encontrou o estojo e entregou-lhe uma chave de porcas. Bateu com ela no motor de arranque.
Uma voz atrás dele gritou: - Pare imediatamente.
Virou-se e viu o capitão Kleiss, trajado com as calças do uniforme e o casaco do pijama, atravessando o pátio em grandes passadas na direcção dele, com Leo mesmo atrás. Kleiss não vinha armado, mas Leo tinha uma espingarda.
Harald guardou a chave de porcas no bolso, fechou a cobertura e aproximou-se do nariz.
- Afaste-se desse avião! - berrou Kleiss. - Isto é uma ordem. De repente, ouviu-se a voz de Karen. - Nem mais um passo, senão
mato-o!
Harald viu o braço saído da janela, a apontar a pistola de Hansen directamente a Kleiss.
Kleiss estacou, e Leo fez o mesmo.
Harald não imaginava se Karen a sabia disparar... Nem tão-pouco Kleiss.
- Deita a espingarda para o chão, Leo - avisou Karen. Leo largou a sua arma.
Harald levou as mãos à hélice e rodou-a.
Girou com um estalido sonoro e profundamente satisfatório.
Peter Flemming chegou ao castelo antes de Hermia, com Tilde Jespersen sentada a seu lado no banco do passageiro. - Vamos estacionar longe da vista, e observar o que ela faz quando aqui chegar - sugeriu.
- Está bem.
- Sobre o que aconteceu em Sande...
- Por favor, não vamos falar disso. Reprimiu a raiva. - O quê, nunca mais?
- Nunca mais. Apeteceu-lhe estrangulá-la.
Os faróis do carro mostraram uma pequena aldeia com uma igreja e uma taberna. Logo a seguir à aldeia surgiu uma entrada grandiosa.
- Lamento, Peter - afirmou Tilde. - Cometi um erro, mas acabou. Vamos ser apenas amigos e colegas.
Sentiu que já nada mais lhe interessava. - Que vá tudo para o inferno - proferiu, e virou para os terrenos do castelo.
Do lado direito do acesso havia um mosteiro em ruínas. - É estranho - comentou Tilde. - As portas da igreja estão escancaradas.
Peter esperava que houvesse ali alguma acção para se abstrair da rejeição de Tilde. Parou o Buick e desligou o motor. - Vamos dar uma espreitadela. - Tirou uma lanterna do porta-luvas.
Saíram do carro e entraram na igreja. Peter ouviu um resmungo abafado seguido de uma pancada. Parecia vir do Rolls-Royce que estava assente em cepos de madeira no meio do recinto. Abriu o porta-bagagens e fez incidir a lanterna num polícia, amarrado e amordaçado.
- Este é o teu homem, o Hansen? - indagou.
Tilde disse: - O avião não se encontra aqui! Desapareceu!
Naquele momento, ouviram o motor do avião pegar.
O Hornet Moth ganhou vida e pareceu inclinar-se para a frente como se ansioso por partir.
Harald dirigiu-se rapidamente ao sítio onde Kleiss e Leo se encontravam. Apanhou a espingarda e ergueu-a ameaçadoramente, pondo um ar de confiança que não sentia. Recuou lentamente para longe deles e passou ao largo da hélice a girar até à porta do lado esquerdo. Levou a mão ao puxador, escancarou a porta e atirou a espingarda para a prateleira da bagagem por detrás dos bancos.
Quando entrou, um movimento súbito fê-lo olhar para lá de Karen pela janela mais distante. Viu o capitão Kleiss arremessar-se para a frente, na direcção do avião, e atirar-se de cabeça para o solo. Ouviu-se um estampido, ensurdecedor mesmo acima do ruído do motor, quando Karen disparou a pistola de Hansen. Mas Harald apercebeu-se de que o caixilho da janela não a deixava baixar o suficiente o pulso e o tiro dela falhara o capitão.
Kleiss rebolou para debaixo da fuselagem, apareceu do outro lado, e saltou para a asa.
Harald tentou fechar a porta, mas Kleiss estava no caminho. O capitão agarrou Harald pelas lapelas e tentou arrancá-lo. Harald debateu-se, tentando que Kleiss o soltasse. Karen segurava a pistola na mão esquerda mas não se conseguia virar, na cabina apertada, para alvejar Kleiss. Leo apareceu a correr mas, em virtude da porta e das asas, não conseguiu chegar suficientemente perto para entrar na refrega.
Harald tirou a chave de porcas do bolso e arremessou-a com toda a força. A extremidade cortante da ferramenta atingiu Kleiss debaixo do olho, fazendo sangue, mas ele aguentou-se.
Karen aproximou-se de Harald e empurrou o manipulo do acelerador todo para a frente. O motor soou mais forte e o avião avançou. Kleiss perdeu o equilíbrio. Largou um braço, mas continuava a segurar Harald com o outro.
O Hornet Moth avançava mais depressa, saltando sobre a erva. Harald voltou a agredir Kleiss, e desta vez ele gritou, soltou-se e caiu no chão.
Harald fechou a porta com força.
Levou a mão à coluna da direcção no centro, mas Karen disse-lhe: - Deixa a manche comigo; consigo manobrá-la com a mão esquerda.
O avião estava orientado para o acesso mas, assim que começou a ganhar velocidade, guinou para a direita. - Usa os pedais do leme! - gritou Karen. - Mantém-no em linha recta!
Harald carregou no pedal esquerdo para obrigar o avião a regressar ao acesso. Não aconteceu nada, de modo que o premiu com toda a força. Dali a instantes, o avião guinou todo para a esquerda. Atravessou o acesso e enfiou-se pela erva alta do outro lado.
Karen gritou-lhe: - Há um atraso na resposta, tens de dar o desconto. Percebeu o que ela queria dizer. Era como manobrar um barco, só que pior. Carregou com toda a força com o pé direito para trazer o avião de volta; assim que ele começou a virar, corrigiu com o pé esquerdo. Desta vez não oscilou tão descontroladamente. Quando regressou ao acesso, conseguira alinhá-lo.
- Agora mantém-no assim - gritou Karen.
O avião acelerou.
Ao fundo do acesso, acenderam-se os faróis de um carro.
Peter Flemming meteu a primeira e carregou a fundo no acelerador. Precisamente quando Tilde ia abrir a porta do passageiro, o carro arrancou. Ela largou a porta com um grito e caiu para trás. Peter esperava que ela tivesse partido o pescoço.
Avançou pelo acesso, deixando a porta do passageiro aberta. Quando o motor começou a guinchar, meteu a segunda. O Buick ganhou velocidade.
Com os faróis, viu um pequeno biplano rolar pelo acesso, avançando direito a ele. Harald Olufsen vinha naquele avião, tinha a certeza. Ia impedir Harald, nem que para isso morressem ambos.
Meteu a terceira.
Harald sentiu o Hornet Moth inclinar-se quando Karen empurrou a manche, fazendo levantar a cauda. Gritou-lhe: - Vês aquele carro?
- Sim, está a tentar abalroar-nos.
- Sim. - Harald olhava pelo acesso, concentrando-se em manter o avião em linha recta com os pedais do leme. - Conseguimos descolar a tempo de lhe passar por cima?
- Não tenho a certeza...
- Tens de te decidir!
- Prepara-te para virares quando eu disser!
- Estou preparado!
O carro aproximava-se perigosamente. Harald viu que não iam passar-lhe por cima. Karen gritou: - Vira!
Ele premiu o pedal esquerdo. O avião, reagindo com menos lentidão a uma velocidade superior, saiu bruscamente do acesso - demasiado bruscamente; temeu que a reparação do trem de aterragem não conseguisse suportar a tensão. Corrigiu rapidamente.
Pelo canto do olho, viu o carro virar de idêntico modo, continuando a não conseguir abalroar o Hornet Moth. Era um Buick, reparou, tal como aquele em que Peter Flemming o conduzira a Jansborg Skole. Virou bruscamente, tentando manter uma rota de colisão com o avião.
Mas o avião tinha um leme, ao passo que o carro era manobrado pelas rodas, e isto fez toda a diferença na erva molhada. Assim que o Buick chegou à erva, entrou em derrapagem. No momento em que deslizava lateralmente, o luar iluminou por instantes o rosto do homem ao volante, e Harald reconheceu Peter Flemming.
O avião oscilou e endireitou-se. Harald viu que se preparava para colidir com o camião-cisterna. Carregou a fundo no pedal esquerdo e a ponta da asa direita do Hornet Moth falhou o camião por uma unha negra. Peter Flemming não teve tanta sorte.
Olhando para trás, Harald viu o Buick, completamente descontrolado, deslizar com terrível inevitabilidade na direcção da cisterna. Embateu no camião a toda a velocidade. Deu-se uma explosão atroadora, e um segundo depois todo o parque se iluminou com um clarão amarelo. Harald tentou ver se a cauda do Hornet Moth não pegara fogo, mas era impossível olhar directamente para trás, de modo que esperou que estivesse tudo bem.
O Buick era uma fornalha.
- Endireita o avião! - berrou-lhe Karen. - Estamos prestes a descolar!
Voltou a concentrar-se no leme. Viu que se dirigia para a tenda da messe. Carregou no pedal direito para a evitar.
Quando estavam novamente no rumo certo, o avião acelerou.
Hermia começara a correr quando ouvira o motor do avião a trabalhar. Ao chegar aos terrenos de Kirstenslot viu um carro escuro, muito parecido com o da estação, a acelerar pelo acesso. Enquanto observava, viu-o derrapar e embater num camião estacionado ao longo do acesso. Deu-se uma explosão medonha, e tanto o carro como o camião irromperam em chamas.
Ouviu uma mulher exclamar: - Peter!
No clarão do incêndio, reconheceu a mulher da boina azul. Tudo se encaixou. A mulher estivera a segui-la. O homem à espera no Buick fora Peter Flemming. Não haviam precisado de segui-la desde a estação, porque sabiam aonde se dirigia. Tinham chegado ao castelo antes dela. E depois?
Viu um pequeno biplano rolar pela erva, parecendo prestes a descolar. A seguir viu a mulher da boina azul ajoelhar-se, retirar uma arma da mala a tiracolo, e fazer pontaria ao avião.
O que acontecia ali? Se a mulher de boina azul era colega de Peter Flemming, o piloto devia estar do lado dos anjos, deduziu Hermia. Podia inclusivamente ser Harald, a fugir com a película no bolso.
Tinha de impedir a mulher de acertar no avião.
O parque era iluminado pelas chamas do camião-cisterna, e, à luz do clarão, Harald viu a Sr.a Jespersen apontar uma arma ao Hornet
Moth.
Não podia fazer nada. Avançava na sua direcção, e se virasse para um lado ou o outro, limitar-se-ia a facilitar-lhe a tarefa. Rangeu os dentes. As balas podiam perfurar as asas sem causar estragos consideráveis. Por outro lado, poderiam danificar os comandos, furar o depósito de combustível e matá-lo, ou a Karen.
Viu então uma segunda mulher correr pela erva, levando uma mala. - Hermia! - exclamou de espanto ao reconhecê-la. Atingiu a Sr.a Jespersen na cabeça com a mala. A detective tombou de lado e largou a arma. Hermia bateu-lhe outra vez, depois pegou na arma.
A seguir o avião sobrevoou-as e Harald teve consciência de que descolara.
Olhando para cima, viu que se preparava para colidir com o campanário da igreja.
Karen empurrou bruscamente para a esquerda a coluna da direcção em forma de Y, batendo com ela no joelho de Harald. O Hornet Moth inclinou para dentro ao subir, mas Harald conseguiu ver que a volta não era suficientemente pronunciada, e o avião ia embater no campanário.
- Leme esquerdo! - gritou Karen.
Lembrou-se de que também ele podia virar. Aplicou o pé esquerdo com força no pedal e sentiu imediatamente o avião a inclinar-se mais pronunciadamente. Mesmo assim, teve a certeza de que a asa direita se partiria contra a parede. O avião virou com uma lentidão atroz. Preparou-se para a colisão. A ponta da asa falhou a torre por centímetros.
- Santo Deus! - exclamou.
Uma rajada de vento fez o avião escoicear como um pónei. Harald chegou a pensar que pudessem cair do céu a qualquer instante. Mas Karen prosseguia a volta ascendente. Harald rangeu os dentes. O avião atingira um ângulo de cento e oitenta graus. Finalmente, quando se dirigia de novo ao castelo, ela endireitou-o. Ao ganharem altitude, o avião aguentou-se e Harald lembrou-se de Poul Kirke ter dito que a turbulência era maior perto do solo.
Olhou para baixo. As chamas tremulavam ainda no camião-cisterna, e à sua luz conseguia ver os soldados a sair do mosteiro em pijama. O capitão Kleiss agitava os braços e gritava ordens. A Sr.a Jespersen continuava estendida, aparentemente desmaiada. Não se via Hermia Mount em lado nenhum. A porta do castelo, havia alguns criados a olharem para o avião.
Karen apontou para um mostrador no painel de instrumentos. - Fica de olho nele - disse. - É o indicador de curva e inclinação. Usa o leme para manter o ponteiro na vertical, na posição das doze horas. O luar intenso entrava pelo tejadilho transparente da cabina, mas era insuficiente para permitir a leitura dos instrumentos. Harald fez incidir a lanterna no mostrador.
Continuavam a subir, e o castelo ia ficando mais pequeno atrás deles. Karen olhava constantemente para a esquerda, para a direita e também para cima, apesar de não haver muito que ver senão a paisagem dinamarquesa enluarada.
- Coloca o cinto de segurança - disse-lhe. Viu que o dela estava posto. - Evitará que batas com a cabeça no tejadilho da cabina se apanharmos turbulência.
Harald colocou o cinto. Começava a acreditar que tinham conseguido fugir. Permitiu-se uma sensação de triunfo. - Julguei que fosse morrer - afirmou.
- Também eu, por várias vezes!
- Os teus pais vão ficar loucos de preocupação.
- Deixei-lhes um bilhete.
- Eu nem isso fiz. - Não lhe ocorrera.
- Vamos tentar manter-nos vivos, para os deixarmos felizes. Harald pôs-lhe a mão na face. - Como te sentes?
- Um pouco febril.
- Tens febre. Devias beber um pouco de água.
- Não, obrigada. Temos pela frente um voo de seis horas e não há casa de banho. Não quero urinar em cima de jornais à tua frente. Seria o fim de uma bela amizade.
- Eu fecho os olhos.
- E pilotas o avião de olhos fechados? Esquece. Hei-de aguentar.
Quisera mostrar-se bem-humorada, mas isso não aliviava a preocupação de Harald. Sentia-se de rastos depois do que haviam passado, e ela não deixara de fazer tudo apesar das entorses no tornozelo e no pulso. Oxalá não fosse desmaiar.
- Olha para a bússola - pediu. - Qual é o nosso rumo? Harald examinara a bússola enquanto o avião estava na igreja, e
sabia interpretá-la. - Duzentos e trinta.
Karen inclinou para a direita. - Calculo que o rumo para Inglaterra seja duzentos e cinquenta. Avisa-me quando estivermos correctos.
Fez incidir a lanterna na bússola até ela indicar o rumo certo, depois disse: - Já está.
- Horas?
- Meia-noite e quarenta e cinco.
- Devíamos anotar tudo, mas não trouxemos lápis.
- Acho que não me vou esquecer de nada.
- Gostaria de ficar por cima desta mancha nublosa - referiu. - Qual é a nossa altitude?
Harald apontou a lanterna para o altímetro. - Mil quatrocentos e dez metros.
- Nesse caso esta nuvem está a cerca de mil e quinhentos metros. Alguns momentos depois o avião foi envolvido pelo que se afigurava
fumo, e Harald apercebeu-se de que haviam entrado na nuvem.
- Mantém a luz no anemómetro - pediu Karen. - Avisa-me se a nossa velocidade se alterar.
- Porquê?
- Quando voas às cegas, é difícil manter o avião na posição correcta. Podia levantar o nariz ou descer sem me aperceber. Mas se isso acontecer, sabê-lo-emos porque a nossa velocidade aumentará ou diminuirá.
O facto de não conseguir ver deixou-o enervado. "Deve ser assim que os acidentes acontecem", pensou. Um avião poderia ir facilmente contra a vertente de uma montanha encoberta. Felizmente não existiam montanhas na Dinamarca. Todavia, se por acaso outro avião estivesse a voar na mesma nuvem, nenhum dos pilotos o saberia senão quando já fosse tarde de mais.
Passados alguns minutos, verificou que o luar penetrava a nuvem permitindo-lhe vê-lo a rodopiar junto às janelas. Depois, para seu alívio, saíram e conseguiu ver a sombra do Hornet Moth projectada pela lua lá em baixo.
Karen empurrou a manche para o aparelho ficar nivelado. - Vês o conta-rotações?
Harald acendeu a lanterna. - Indica duas mil e duzentas.
- Fecha o acelerador até baixar para as mil e novecentas. Harald fez o que ela lhe pedia.
- Usamos a energia para mudar de altitude - explicou-lhe. - Abrindo o acelerador, subimos; fechando-o, descemos.
- Nesse caso, como controlamos a nossa velocidade?
- Pela posição do avião. Nariz para baixo para andar mais depressa, nariz levantado para andar mais devagar.
- Entendido.
- Mas nunca levantes o nariz demasiado bruscamente, senão perderás o controlo. Quer dizer que perdes a sustentação, e o avião começa a descer a pique.
Harald achou que era um pensamento aterrador. - O que fazes
nesse caso?
- Baixo o nariz e aumento as rotações. É fácil, a menos que instintivamente levantes o nariz, e aí é que tudo se complica.
- Não me vou esquecer.
Karen disse-lhe: - Segura a manche por um bocado. Vê se consegues pilotar a direito e equilibrado. Muito bem, tens o controlo.
Agarrou a manche com a mão direita.
Advertiu-o: - É suposto dizeres: "Tenho o controlo". É para que o piloto e o co-piloto nunca se vejam numa situação em que cada um pensa que o outro está a pilotar o avião.
- Tenho o controlo - disse, mas não o sentiu. O Hornet Moth tinha vida própria, virando e descendo com a turbulência do ar, e apercebeu-se de que usava todo o seu poder de concentração para manter as asas equilibradas e o nariz na mesma posição.
Karen disse-lhe: - Achas que estás constantemente a puxar a manche para ti?
- Sim.
- É porque usámos algum combustível e o centro de gravidade do avião se alterou. Vês aquela alavanca junto ao canto superior da tua porta?
Levantou por breves instantes a cabeça. - Sim.
- É o compensador do leme de profundidade. Empurrei-o todo para a descolagem, quando o depósito estava cheio e a cauda pesada. Agora o avião necessita de ser recompensado.
- Como é que o fazemos?
- É simples. Alivia a pressão na manche. Sente-la querer ir para a frente sozinha?
- Sim.
- Puxa o compensador para ti. Verás que não necessitas de estar a fazer tanta pressão na manche.
Ela tinha razão.
- Ajusta o compensador até já não precisares de puxar a manche.
Harald deslocou a alavanca gradualmente para si. Antes que se apercebesse, a coluna da direcção fazia pressão na sua mão. - Demasiado - referiu. Empurrou o compensador uma fracção. - Deve estar bem.
- Podes também equilibrar o leme deslocando o manípulo naquela roda dentada ao fundo do painel de instrumentos. Quando o avião estiver correctamente compensado, deveria voar a direito e equilibrado sem qualquer pressão sobre os comandos.
Harald experimentou tirar a mão da coluna. O Hornet Moth continuou a voar equilibrado.
Voltou a agarrar na manche.
A nuvem por baixo deles não era contínua, e de onde em onde conseguiam ver através dos intervalos a terra enluarada lá em baixo. Não tardaram a deixar para trás a Zelândia e a voarem sobre o mar. Karen advertiu-o: - Verifica o altímetro.
Teve dificuldade em olhar para o painel de instrumentos, sentindo instintivamente que necessitava de se concentrar na pilotagem do avião. Quando desviou o olhar do exterior, viu que haviam chegado aos dois mil e cem metros. - Como foi que isto aconteceu? - perguntou.
- Estás a levantar demasiado o nariz. É natural. Inconscientemente, tiveste medo de bater no solo, por isso continuaste a tentar subir. Baixa o nariz.
Empurrou a manche. Quando o nariz desceu, viu outro avião. Tinha cruzes grandes nas asas. Harald sentiu um medo doentio.
Karen viu-o simultaneamente. - Raios - proferiu. - A Luft-waffe. - Pareceu tão assustada quanto Harald.
- Estou a vê-lo - afirmou Harald. Estava à sua esquerda e abaixo, mais ou menos a uns quatrocentos metros, e subia na direcção deles.
Ela pegou na manche e baixou bruscamente o nariz. - Tenho o controlo.
- Tens o controlo.
O Hornet Moth desceu a pique.
Harald identificou o outro avião como um Messerschmitt Bfl 10, um caça nocturno bimotor caracterizado por dois estabilizadores verticais e a comprida coberta do cockpit semelhante a uma estufa. Recordou-se de Arne ter falado do armamento do Bfl 10 com um misto de receio e inveja: possuía canhões e metralhadoras no nariz, e Harald conseguiu ver a metralhadora da retaguarda a sair por detrás da coberta. Era o avião usado para abater os bombardeiros dos Aliados depois de a estação de rádio em Sande os haver detectado.
O Hornet Moth estava completamente indefeso.
Harald inquiriu: - O que vamos fazer?
- Tenta voltar àquela camada de nuvens antes que fiquemos ao alcance dele. Raios, não devia ter-te deixado subir tanto.
O Hornet Moth descia acentuadamente. Harald olhou para o anemómetro e viu que haviam chegado aos cento e trinta e cinco nós. Sentiu-se como se descesse uma montanha-russa. Apercebeu-se de que agarrava a borda do banco. - Isto é seguro? - perguntou.
- Mais seguro do que sermos abatidos.
O outro avião aproximou-se rapidamente. Era muito mais veloz do que o Moth. Houve um clarão e um ruído de disparos. Harald já esperava que o Messerschmitt disparasse sobre eles, mas não conteve um grito de choque e medo.
Karen virou para a direita, tentando estragar a pontaria do atirador. O Messerschmitt passou rápido por baixo. Os disparos cessaram, e o motor do Hornet Moth manteve a toada. Não haviam sido atingidos.
Harald recordou-se de Arne lhe ter dito que era bastante difícil um avião rápido disparar sobre um lento. Talvez fosse isso que os salvara.
Ao virarem, olhou pela janela e viu o caça desaparecer ao longe. - - Acho que estamos fora do seu alcance - referiu.
- Não por muito tempo - replicou Karen.
De facto, o Messerschmitt dava a volta. Os segundos arrastaram-se enquanto o Hornet Moth descia a pique em direcção à protecção da nuvem e o caça célere descrevia uma volta ampla. Harald viu que o anemómetro deles atingira os cento e sessenta. A nuvem estava torturantemente próxima - mas não o suficiente.
Viu os clarões e ouviu os estampidos quando o caça abriu fogo. Desta vez o avião estava mais próximo e o caça tinha um melhor ângulo de ataque. Para seu horror, viu aparecer um rasgão em ziguezague no tecido da asa inferior esquerda. Karen empurrou a manche e o Hornet Moth inclinou-se.
Depois, subitamente, mergulharam na nuvem.
Os disparos cessaram.
- Graças a Deus - disse Harald. Apesar de ter frio, estava a suar. Karen puxou a manche para si e a descida a pique terminou. Harald
fez incidir a lanterna no altímetro e viu a agulha abrandar o movimento retrógrado e fixar-se mesmo acima dos mil e quinhentos metros. O anemómetro retomou gradualmente a velocidade normal de cruzeiro de oitenta nós.
Ela inclinou de novo o avião, mudando de direcção, para que o caça não os conseguisse ultrapassar seguindo simplesmente o rumo anterior.
- Reduz as rotações para cerca de mil e seiscentas - disse. - Vamos ficar um pouco abaixo desta nuvem.
- Por que não ficar dentro dela?
- É difícil voar muito tempo dentro de uma nuvem. Desorientamo-nos. Não sabemos se estamos em cima ou em baixo. Os instrumentos dizem-nos o que está a acontecer mas não acreditamos neles. É assim que se dão muitos acidentes.
Harald encontrou a alavanca no escuro e empurrou-a.
- Foi apenas por acaso que o caça apareceu? - perguntou Karen.
- Talvez nos consigam ver com os feixes de ondas electromagnéticas. Harald franziu os sobrolhos, pensativo. Ainda bem que tinha algo que lhe permitia abstrair-se do perigo que corriam. - Duvido - disse.
- O metal interfere nas ondas electromagnéticas, mas não creio que a madeira ou o tecido o façam. Um bombardeiro grande de alumínio reflectiria os feixes para as antenas deles, mas, no nosso caso, só o motor faria isso, e provavelmente é demasiado pequeno para surgir nos detectores.
- Espero que tenhas razão - redarguiu ela. - Se não, estamos mortos.
Saíram de baixo da nuvem. Harald aumentou as rotações para mil e novecentas, e Karen puxou a manche para si.
- Continua atento - disse-lhe Karen. - Se o virmos de novo, teremos de subir rapidamente.
Harald fez o que ela disse, mas não havia muito que ver. Um quilómetro e meio à frente, a lua brilhava por um intervalo nas nuvens, e Harald conseguiu ver a geometria irregular dos campos e do arvoredo. Deviam estar a sobrevoar a ilha central de Fyn, pensou. Mais próximo, uma luz intensa movia-se perceptivelmente sobre a paisagem escura, e calculou que fosse um comboio ou um carro da polícia.
Karen inclinou para a direita. - Olha para a tua esquerda - pediu. Harald não conseguiu ver nada. Ela inclinou o avião na outra direcção, e olhou para cima pela janela. - Temos de observar todos os ângulos - explicou-lhe. Apercebeu-se de que ela estava a ficar rouca de gritar constantemente acima do ruído do motor. O Messerschmitt apareceu mais à frente.
Saiu da nuvem quatrocentos metros à frente deles, revelado difusamente pelo luar reflectido do solo, vindo na sua direcção. - Potência máxima! - gritou Karen, mas Harald já o fizera. Ela deu um puxão brusco à manche para levantar o nariz.
- Talvez não nos veja sequer - afirmou Harald, com optimismo, mas as suas esperanças desfizeram-se imediatamente quando o caça efectuou uma volta pronunciada.
O Hornet Moth levou diversos segundos a reagir aos comandos. Por fim começaram a subir em direcção à nuvem. O caça descreveu um amplo círculo e arfou para acompanhar a subida deles. Assim que ficou alinhado, disparou.
Só que nessa altura o Hornet Moth já estava na nuvem.
Karen mudou imediatamente de direcção. Harald animou-se. - Voltámos a iludi-lo! - exclamou. Mas o medo subjacente conferiu um tom frágil ao triunfo na sua voz.
Atravessaram a nuvem sempre a subir. Quando o brilho do luar começou a iluminar a bruma turbilhonante que os envolvia, Harald apercebeu-se de que estavam quase no cimo da camada de nuvens. - Fecha o acelerador - disse Karen. - Teremos de ficar na nuvem o máximo que pudermos. - O avião endireitou-se. - Vigia o anemómetro - avisou-o. - Certifica-te de que não estamos a subir nem a descer.
- Muito bem. - Verificou igualmente o altímetro. Estavam a mil setecentos e cinquenta metros.
Precisamente nessa altura, o Messerschmitt apareceu a escassos metros deles.
Estava ligeiramente abaixo e para a direita, atravessando-se no seu caminho. Por uma fracção de segundo, Harald viu o rosto apavorado do piloto alemão, a boca a abrir-se num grito de horror. Estavam todos a centímetros da morte. A asa do caça passou debaixo do Hornet Moth, falhando por um triz o trem de aterragem.
Harald carregou no pedal do leme esquerdo e Karen puxou bruscamente a manche para trás, mas o caça já desaparecera de vista.
Karen afirmou: - Meu Deus, foi por pouco.
Harald olhou para a nuvem turbilhonante, à espera de ver aparecer o Messerschmitt. Passou um minuto, depois outro. Karen disse: - Acho que ele se assustou tanto como nós.
- O que achas que vai fazer?
- Voar durante um bocado acima e abaixo da nuvem, à espera de nos ver aparecer. Com sorte, os nossos rumos divergirão, e perdê-lo-emos.
Harald verificou a bússola. - Estamos a seguir para norte - referiu.
- Perdi o rumo com aquela manobra evasiva - explicou. Guinou para a esquerda, e Harald ajudou com o pedal do leme. Quando a bússola indicou duzentos e cinquenta, avisou-a: - Chega - e ela endireitou o aparelho.
Chegaram ao fim da nuvem. Perscrutaram ambos o céu em todas as direcções, mas não viram nenhum outro avião.
- Sinto-me tão cansada - disse Karen.
- Não é de admirar. Deixa-me assumir o controlo. Descansa um pouco.
Harald concentrou-se em voar a direito e equilibrado. A infinidade de ajustamentos ínfimos começou a tornar-se instintiva.
- Fica atento aos mostradores - advertiu-o Karen. - Vigia o anemómetro, o altímetro, a bússola, a pressão do óleo e o indicador de nível do combustível. Quando estamos a voar, temos de proceder constantemente a verificações.
- Está bem. - Fez um esforço para olhar para o painel de instrumentos a cada minuto ou dois e verificou, contrariamente ao que a sua intuição lhe dizia, que o avião não se despenhava assim que o fazia.
- Devemos estar agora sobre a Jutlândia - conjecturou Karen. - Quanto nos teremos desviado para norte?
- Como podemos saber?
- Teremos de voar baixo quando atravessarmos a costa. Deveríamos conseguir identificar alguns aspectos do terreno e determinar a nossa posição no mapa.
A lua estava baixa no horizonte. Harald olhou para o relógio e ficou espantado ao aperceber-se de que estavam a voar há quase duas horas. Tinham-lhe parecido escassos minutos.
- Vamos dar uma espreitadela - sugeriu Karen passado um bocado. - Reduz as rotações para mil e quatrocentas e baixa o nariz. - Encontrou o atlas e observou-o à luz da lanterna. - Teremos de descer mais - disse. - Não consigo ver bem a terra.
Harald trouxe o avião para os novecentos metros, depois seiscentos. O solo era visível ao luar, mas não havia elementos distintivos, apenas campos. Então Karen inquiriu: - Olha... Aquilo lá à frente é uma cidade?
Harald espreitou. Era difícil afirmar. Não havia luzes por causa do blackout - que fora imposto precisamente para dificultar a identificação das cidades lá de cima. Mas o solo mais adiante parecia ter uma textura diferente ao luar.
De repente, começaram a surgir pequenas luzes ardentes no ar. - O que raio é aquilo? - gritou Karen.
Estava alguém a lançar fogo de artifício ao Hornet Moth! O fogo de artifício estava proibido desde a invasão.
Karen afirmou: - Nunca vi projécteis luminosos, mas...
- Merda, é isso que são? - Sem esperar por instruções, Harald abriu o acelerador por completo e levantou o nariz para ganhar altitude.
Quando o fez, acenderam-se holofotes.
Ouviu-se um estampido e algo explodiu nas proximidades. - O que foi aquilo? - exclamou Karen.
- Acho que deve ter sido um projéctil.
- Alguém a disparar sobre nós?
De repente, Harald apercebeu-se de onde estavam. - Deve ser Morlunde! Estamos a sobrevoar as defesas do porto!
- Vira! Inclinou o aparelho.
- Não subas demasiado a pique - avisou-o, Perderás o controlo.
Rebentou outro projéctil por cima deles. Os feixes dos holofotes cortavam a escuridão a toda a volta. Harald tinha a sensação de que fazia subir o avião pela mera força de vontade.
Chegaram aos cento e oitenta graus. Harald endireitou-se e continuou a subir. Explodiu outro projéctil, mas foi atrás deles. Começou a convencer-se de que ainda era possível sobreviverem.
Os disparos cessaram. Virou novamente, retomando a direcção original, continuando a subir.
Um minuto depois tinham passado a costa.
- Estamos a deixar a terra para trás - disse.
Karen não respondeu, e ele virou-se, encontrando-a de olhos fechados.
Olhou para trás de si e viu que o litoral desaparecia. - Gostava de saber se alguma vez voltaremos a ver a Dinamarca - comentou.
A Lua desapareceu, mas durante um tempo o céu não apresentou nuvens, e Harald conseguiu ver as estrelas. Ficou grato por elas, já que constituíam a única forma de saber se estava em cima ou em baixo. O motor emitia uma toada tranquilizadoramente constante. Voava a mil e quinhentos metros e oitenta nós. Havia menos turbulência do que se recordava do seu primeiro voo, e perguntou-se se seria porque se encontrava sobre o mar, ou porque era de noite - ou ambas as situações. Verificava constantemente a direcção pela bússola, mas não sabia quanto o Hornet Moth se poderia afastar do rumo com o vento.
Tirou a mão da manche e acariciou o rosto de Karen. A face dela escaldava. Equilibrou o avião para voar a direito e nivelado, depois foi buscar uma garrafa de água ao compartimento debaixo do painel de instrumentos. Deitou um pouco na mão e molhou-lhe a testa para a refrescar. Respirava normalmente, apesar de sentir o hálito quente na sua mão. Parecia mergulhada num sono febril.
Quando voltou a dar atenção ao mundo exterior, reparou que a aurora raiava. Viu as horas: passava pouco das três da manhã. Deviam ir a meio caminho de Inglaterra.
Na claridade ténue, viu uma nuvem mais adiante. Parecia não ter cimo nem fundo, de modo que entrou nela. Havia também chuva, e a água ficava no pára-brisas. Ao contrário de um carro, o Hornet Moth não tinha limpa-pára-brisas.
Lembrou-se de Karen ter falado em desorientação, e decidiu não fazer quaisquer movimentos bruscos. No entanto, era estranhamente hipnótico olhar constantemente para o nada turbilhonante. Desejou poder falar com Karen, mas achou que ela necessitava de dormir depois de tudo aquilo que lhe sucedera. Perdeu a noção do passar do tempo. Começou a imaginar formas na nuvem. Viu uma cabeça de cavalo, a cobertura do motor de um Lincoln Continental e o rosto bigodudo de Neptuno. A sua frente, às onze horas e alguns metros abaixo, avistou um barco de pesca, com marinheiros no convés a olharem maravilhados para ele.
Não era uma ilusão, compenetrou-se, retomando a plena consciência. A bruma desaparecera e via mesmo um barco de verdade. Olhou para o altímetro. Ambos os ponteiros estavam para cima. Encontrava-se ao nível do mar. Perdera altitude sem se aperceber.
Instintivamente, puxou para si a manche, levantando o nariz, mas nesse momento ouviu a voz de Karen dizer dentro da sua cabeça: Mas nunca levantes o nariz demasiado bruscamente, senão perderás o controlo. Quer dizer que perdes a sustentação, e o avião começa a descer o pique. Apercebeu-se do que fizera, e lembrou-se de como corrigi-lo, mas não sabia bem se teria tempo. O avião começava já a perder altitude. Baixou o nariz e abriu o acelerador por completo. Estava ao nível do barco de pesca quando o sobrevoou. Arriscou levantar o nariz uma fracção. Esperou que as rodas batessem nas ondas. O avião continuou a voar. Levantou mais um pouco o nariz. Ousou olhar para o altímetro. Estava a subir. Soltou um longo suspiro.
- Presta atenção, meu tolo - admoestou-se em voz alta. - Mantém-te acordado.
Continuou a subir. A nuvem dissipou-se e saiu para uma manhã de céu limpo. Olhou para o relógio. Eram quatro horas. O Sol preparava-se para nascer. Espreitando pela cobertura transparente da cabina, viu a Estrela Polar à sua direita. Queria dizer que a sua bússola estava certa, e continuava a rumar a oeste.
Receoso de se aproximar demasiado do mar, subiu durante meia hora. A temperatura desceu, e o ar frio entrava pela janela que partira para o tubo de combustível improvisado. Embrulhou-se no cobertor para se aquecer. Aos três mil metros, preparava-se para ficar equilibrado quando o motor tossiu.
A princípio não percebeu o que era o ruído. O som do motor mantivera-se constante durante tantas horas que deixara de o ouvir.
Depois sucedeu de novo, e apercebeu-se de que o motor falhava.
Teve a sensação de que o seu coração parara. Estava a cerca de trezentos e vinte quilómetros de terra em qualquer direcção. Se o motor avariasse, desceria no mar.
Voltou a tossir.
- Karen! - gritou. - Acorda!
Ela continuou a dormir. Tirou a mão da manche e sacudiu-lhe o ombro. - Karen!
Os olhos dela abriram-se. Parecia melhor depois do sono, mais calma e menos ruborizada, mas estampou-se no seu rosto uma expressão de medo assim que ouviu o motor. - O que está a acontecer?
- Não sei!
- Onde estamos?
- A quilómetros de qualquer sítio. O motor voltou a tossir e engasgar-se.
- Talvez tenhamos de aterrar no mar - referiu Karen. - Qual é a nossa altitude?
- Três mil metros.
- O acelerador está todo aberto?
- Sim, eu estava a subir.
- é esse o problema. Coloca-o a meio. Fechou um pouco o acelerador.
Karen disse: - Quando o acelerador está todo aberto, o motor retira ar lá de fora, em vez de dentro do compartimento do motor, por isso fica mais frio: a esta altitude, suficientemente frio para se formar gelo no carburador.
- O que podemos fazer?
- Descer. - Pegou na manche e afastou-a de si. - Ao descermos, a temperatura do ar deveria subir, e fazer derreter o gelo... Espero.
- Se não fizer...
- Procura um navio. Se cairmos perto de um, podemos ser salvos. Harald perscrutou o mar de horizonte a horizonte, mas não viu qualquer navio.
Com o motor a falhar, tinham pouco impulso e perdiam altitude rapidamente. Harald pegou no machado, pronto para executar o seu plano de soltar uma asa para servir de flutuador. Meteu as garrafas de água nos bolsos do casaco. Não sabia se sobreviveriam no mar tempo suficiente para morrerem de sede.
Observou o altímetro., Tinham baixado para trezentos metros, depois para cento e cinquenta. O mar parecia negro e frio. E continuava sem avistar quaisquer navios.
Instalou-se uma estranha calma em Harald. - Acho que vamos morrer - constatou. - Lamento ter-te metido nisto.
- Ainda não estamos arrumados - redarguiu ela. - Vê se consegues dar mais algumas rotações para o embate não ser demasiado forte.
Harald abriu o acelerador. A toada do motor aumentou. Falhou, arrancou e voltou a falhar.
Harald disse: - Não creio...
Depois o motor pareceu pegar.
Trabalhou a um ritmo seguido durante vários segundos, e Harald susteve a respiração; depois voltou a falhar. Por fim pôs-se a trabalhar sucessivamente. O avião começou a subir.
Harald apercebeu-se de que soltavam ambos vivas.
As rotações ascenderam a mil e novecentas sem falhar uma única vez. - O gelo derreteu - exclamou Karen.
Harald beijou-a. Foi bastante difícil. Apesar de estarem ombro a ombro e coxa a coxa na cabina acanhada, era complicado uma pessoa virar-se no banco, especialmente com o cinto de segurança colocado. Mas conseguiu.
- Gostei - disse ela.
- Se sobrevivermos a isto, vou beijar-te todos os dias para o resto da minha vida - afirmou, todo feliz.
- A sério? - inquiriu. - O resto da tua vida pode ser muito tempo.
- Espero bem que sim.
Pareceu satisfeita. Depois disse: - Deveríamos verificar o combustível.
Harald virou-se todo para trás a fim de verificar o indicador entre as costas dos bancos. Foi difícil ler, existindo duas escalas, uma para usar no ar e a outra para quando o avião estava em terra, inclinado.
Só que estavam ambas muito perto de VAZIO.
- Raios, o depósito está quase seco - informou Harald.
- Não se avista terra. - Karen olhou para o relógio. - Estamos no ar há cinco horas e meia, por isso provavelmente ainda nos falta meia hora para vermos terra.
- Não faz mal, eu posso abastecer o depósito. - Soltou o cinto de segurança e virou-se desajeitadamente para se ajoelhar no banco. O bidão do combustível estava na prateleira da bagagem por detrás dos bancos. Ao lado encontrava-se um funil e uma extremidade do bocado de mangueira de jardim. Antes da descolagem, Harald partira a janela e passara a mangueira pelo buraco, enfiando a outra extremidade no orifício de entrada do combustível na parte lateral da fuselagem.
Mas via naquele momento a extremidade da mangueira a agitar-se com a deslocação de ar. Proferiu uma imprecação. Karen perguntou: - O que se passa?
- A mangueira soltou-se durante o voo. Não a atei com força suficiente.
- O que vamos fazer? Temos de reabastecer!
Harald olhou para o bidão do combustível, o funil, a mangueira e a janela. - Tenho de introduzir a mangueira na boca do tubo. E não pode ser feito aqui de dentro.
- Não podes ir lá fora!
- O que sucederá ao avião se eu abrir a porta?
- Meu Deus, é como um travão de ar gigante. Far-nos-á abrandar e virar para a esquerda.
- Consegues aguentar?
- Posso manter a velocidade no ar fazendo baixar o nariz. Acho que conseguiria carregar no pedal do leme direito com o pé esquerdo.
- Vamos experimentar.
Karen obrigou o avião a uma descida suave, depois apoiou o pé esquerdo no pedal do leme direito. - A postos.
Harald abriu a porta. O avião guinou bruscamente para a esquerda. Karen carregou no pedal do leme direito, mas continuaram a virar e a inclinar. Empurrou a manche para a direita e inclinou, mas o avião continuava a virar para a esquerda. - Não consigo aguentá-lo! - exclamou.
Harald fechou a porta. - Se eu partir estas janelas, a área de resistência ao vento reduzir-se-á quase a metade - afirmou. Tirou do bolso a chave de porcas. As janelas eram feitas de uma espécie de celulóide que era mais duro do que o vidro, mas sabia não ser inque-brável, pois partira a janela traseira havia dois dias. Fez recuar o braço direito o mais que pôde, bateu com força na janela, e o celulóide estilhaçou-se. Foi dando pancadas até o material restante sair do caixilho.
- Preparada para tentares de novo?
- Espera um pouco; preciso de mais velocidade no ar. - Debruçou-se e abriu o acelerador, depois empurrou o compensador dois centímetros e meio.
Harald abriu a porta.
Mais uma vez, o avião guinou para a esquerda, só que menos bruscamente, e Karen pareceu conseguir corrigi-lo com o leme.
Ajoelhando-se no banco, Harald enfiou a cabeça pela porta. Conseguia ver a extremidade da mangueira a agitar-se à volta da tampa de acesso ao depósito de combustível. Mantendo a porta aberta com o ombro direito, estendeu o braço do mesmo lado e agarrou a mangueira.
Agora tinha de a introduzir no depósito. Via o painel de acesso aberto, mas não a boca do tubo. Conseguiu posicionar a extremidade da mangueira mais ou menos sobre o painel, mas o pedaço de borracha na sua mão agitava-se constantemente com o movimento do avião, e não o conseguia introduzir no tubo. Era o mesmo que tentar enfiar uma agulha durante um furacão. Experimentou durante diversos minutos, mas foi cada vez mais difícil à medida que a sua mão enregelava.
Karen bateu-lhe no ombro.
Ele meteu a mão para dentro da cabina e fechou a porta.
- Estamos a perder altitude - disse-lhe. - Precisamos de subir. - Puxou a manche para si.
Harald soprou na mão para a aquecer. - Assim não dá - informou-a. - Não sou capaz de introduzir a mangueira no tubo. Preciso de conseguir segurar a outra extremidade.
- Como?
Pensou durante um minuto. - Talvez consiga pôr um pé de fora da porta.
- Ó meu Deus!
- Avisa-me quando tivermos alcançado altitude suficiente. Cerca de dois minutos depois ela disse-lhe: - Já podes, mas prepara-te para fechar a porta assim que eu te bater no ombro.
Virado para trás com o joelho esquerdo no banco, Harald enfiou o pé direito pela porta e até à faixa reforçada na asa. Agarrando o cinto com a mão esquerda por uma questão de segurança, debruçou-se e agarrou a mangueira. Passou a mão a todo o comprimento até segurar a ponta. A seguir debruçou-se mais para introduzir a extremidade no tubo.
O Hornet Moth apanhou um poço de ar. O avião deu um salto no ar. Harald perdeu o equilíbrio e julgou que fosse cair da asa. Agarrou-se simultaneamente com força à mangueira e ao cinto de segurança, para tentar equilibrar-se. A outra extremidade da mangueira, dentro da cabina, soltou-se do cordel que a prendia. Quando tal aconteceu, Harald largou-a involuntariamente. Foi levada pela deslocação de ar.
Tremendo de medo, voltou para dentro da cabina e fechou a porta.
- O que aconteceu? - perguntou-lhe. - Não consegui ver! Por um momento não lhe foi possível responder. Quando recuperou,
explicou-lhe: - Deixei cair a mangueira.
- Oh, não.
Verificou o indicador de combustível. - Está a ficar vazio.
- Não sei que alternativa nos resta!
- Terei de me colocar na asa e deitar o combustível directamente do bidão. Precisarei de ambas as mãos; não consigo segurar um bidão de dezoito litros só com uma mão, é demasiado pesado.
- Mas não conseguirás aguentar-te.
- Terás de me segurar o cinto com a tua mão esquerda. - Karen era forte, mas não sabia ao certo se seria capaz de aguentar o peso dele caso escorregasse. No entanto, não havia outra alternativa.
- Assim não poderei mover a manche.
- Vamos esperar que não necessites de fazê-lo.
- Está bem, mas vamos ganhar mais altitude. Olhou à sua volta. Não se avistava terra.
Karen disse-lhe: - Aquece as mãos. Enfia-as debaixo do meu casaco.
Virou-se, ainda ajoelhado no banco e encostou as mãos à cintura dela. Debaixo do casaco de peles tinha vestida uma camisola leve de Verão.
- Mete-as debaixo da minha camisola. Vá lá, toca-me na pele, não me importo.
Sentiu o calor do corpo dela.
Manteve ali as mãos enquanto subiam. De seguida, o motor falhou. - Acabou-se o combustível - declarou Karen.
O motor pegou de novo, mas sabia que ela tinha razão. - Vamos a isso - disse.
Compensou o avião. Entretanto, Harald desatarraxou a tampa do bidão de dezoito litros, e a minúscula cabina encheu-se do cheiro desagradável a combustível, apesar do vento que entrava pelas janelas partidas.
O motor falhou de novo e começou a ameaçar parar.
Harald levantou o bidão. Karen agarrou-lhe o cinto. - Tenho-te seguro - disse. - Não te preocupes.
Harald levantou o bidão e pôs o pé direito de fora. Transferiu o bidão para o banco, de modo a ficar de pé na asa e debruçado da cabina. Estava absolutamente apavorado.
Levantou o bidão e ficou de pé na asa. Caiu na asneira de olhar pela borda posterior da asa para o mar lá em baixo. O seu estômago agitou-se com náuseas. Por pouco não largou o bidão. Fechou os olhos, engoliu em seco e controlou-se.
Abriu os olhos, decidindo não olhar para baixo. Debruçou-se sobre a entrada do combustível. O cinto cravava-se-lhe no estômago enquanto Karen aguentava a tensão. Inclinou o bidão.
O movimento constante do avião não permitia verter directamente, mas após alguns momentos aprendeu a compensar. Inclinava-se para a frente e para trás, confiando que Karen o mantivesse seguro.
O motor continuou a falhar durante uns segundos, depois voltou ao normal. Estava desesperado por voltar para dentro, mas necessitavam do combustível para alcançarem terra. O combustível parecia fluir com a lentidão do mel. Uma parte foi levada pela circulação do ar, e mais um bocado se derramou na chapa de acesso e desperdiçou, mas a maior parte entrou no tubo.
O bidão ficou finalmente vazio. Largou-o no ar e agarrou-se, grato, à ombreira da porta com a mão esquerda. Voltou para dentro da cabina e fechou a porta.
- Olha - disse Karen, apontando para a frente.
Ao longe, mesmo no horizonte, via-se uma forma escura. Era terra.
- Aleluia - proferiu entre dentes.
- Reza só para que seja a Inglaterra - referiu Karen. - Não sei quanto nos poderemos ter desviado do rumo.
Pareceu demorar imenso, mas por fim a forma escura ficou verde e tornou-se uma paisagem. A seguir alongou-se numa praia, numa cidade com um porto, numa extensão de campos e numa série de colinas.
- Vamos ver mais de perto - disse Karen.
Desceram para os seiscentos metros a fim de examinarem a cidade.
- Não sei dizer se é França ou Inglaterra - referiu Harald.
- Estive em Paris e Londres, mas nenhuma delas se parecia com isto. Harald verificou o indicador de nível do combustível. - De qualquer forma, vamos ter de aterrar em breve.
- Mas precisamos de saber se estamos em território inimigo. Harald olhou pelo tejadilho e viu dois aviões. - Já vamos ficar a saber - disse. - Olha para cima.
Olharam ambos para os dois aviões pequenos que se aproximavam rapidamente de sul. Quando se aproximaram, Harald observou as asas deles, à espera de ver as marcas com maior nitidez. Iriam ser cruzes alemãs? Tudo aquilo fora em vão?
Os aviões aproximaram-se, e Harald reparou que eram Spitfires com as marcas redondas da RAF. Estavam em Inglaterra. Soltou um grito de vitória. - Conseguimos!
Os aviões aproximaram-se mais e voaram de cada lado do Hornet Moth. Harald conseguia ver os pilotos, a olharem para eles. Karen afirmou: - Só espero que não pensem que somos espiões inimigos e nos abatam. Infelizmente, era uma possibilidade a ter em conta. Harald procurou pensar numa forma de avisar a RAF de que eram amigos. - Bandeira de tréguas - disse. Despiu a camisa e enfiou-a pela janela partida. O algodão branco esvoaçou ao vento.
Pareceu resultar. Um dos Spitfires passou para a frente do Hornet Moth e agitou as asas. Karen explicou: - Significa "Sigam-me", creio. Mas não tenho combustível suficiente. Olhou para a paisagem lá em baixo. - Brisa marítima de leste, a avaliar pelo fumo da casa daquela quinta. Vou descer naquele campo. - Baixou o nariz e virou.
Harald olhou ansioso para os Spitfires. Passado um instante, viraram e começaram a descrever círculos, mas mantiveram a altitude, como se atentos ao que iria acontecer de seguida. Talvez tivessem achado que um Hornet Moth não pudesse constituir grande ameaça ao Império Britânico.
Karen desceu para os trezentos metros e deslocou-se ao sabor do vento sobrevoando o campo que escolhera. Não existiam obstruções à vista. Virou para o vento para aterrar. Harald manobrou o leme, ajudando a manter o avião em linha recta.
Quando se encontravam sessenta metros acima da erva, Karen disse: - Fecha por completo o acelerador, por favor. - Harald puxou a alavanca. Quando se lhe afigurou que estavam quase a tocar no solo, continuaram a voar cinquenta metros ou mais. Houve então um solavanco quando as rodas estabeleceram contacto com a terra.
O avião abrandou em escassos segundos. Quando se imobilizou, Harald olhou pela janela partida e viu, apenas a alguns metros, um homem jovem numa bicicleta, a observar de um caminho ao longo do campo, fitando-os boquiaberto.
- Gostava de saber onde estamos - afirmou Karen. Harald gritou ao ciclista: - Viva! - saudou em inglês. - Que lugar é este?
O homem olhou para ele como se tivesse vindo do espaço. - Bem - comentou por fim - , no aeroporto é que não estamos.
Vinte e quatro horas depois de Harald e Karen terem aterrado em Inglaterra, as fotografias que Harald tirara à estação de radar na ilha de Sande tinham sido imprimidas, ampliadas e pregadas na parede de uma sala enorme num edifício grandioso em Westminster. Algumas estavam assinaladas com setas e anotações. Encontravam-se na sala três homens com uniformes da RAF, a examinar as fotografias e a conversar em voz baixa e premente.
Digby Hoare conduziu Harald e Karen à sala, fechou a porta, e os oficiais viraram-se. Um deles, um homem alto com bigode grisalho, saudou: - Olá, Digby.
- Bom dia, Andrew - respondeu Digby. - Este é o vice-marechal do Ar Sir Andrew Hogg. Sir Andrew, dá-me licença de que lhe apresente a Menina Duchwitz e o Sr. Olufsen?
Hogg apertou a mão esquerda de Karen, já que a direita continuava lesionada. - É uma jovem extremamente corajosa - elogiou-a. Falava inglês com uma pronúncia que omitia algumas sílabas e dava a impressão de ter algo dentro da boca, e Harald foi obrigado a fazer um esforço para perceber o que ele dizia. - Um piloto experiente hesitaria em atravessar o Mar do Norte num Hornet Moth - acrescentou Hogg.
- Para ser sincera, quando parti, não imaginei que fosse tão perigoso - admitiu ela.
Hogg virou-se para Harald. - O Digby e eu somos velhos amigos. Ele apresentou-me o relato completo das suas investigações, e sinceramente, nem imagina a importância das informações que nos trouxe. Mas quero que reveja a sua teoria sobre o modo de funcionamento destes três aparelhos em conjunto.
Harald concentrou-se, indo buscar à memória as palavras inglesas de que necessitava. Apontou para a panorâmica que fizera das três estruturas. - A antena grande roda constantemente, como se estivesse sempre a perscrutar os céus. Mas as mais pequenas inclinam-se para cima e para baixo, e pareceu-me que estariam a detectar aviões.
Hogg interrompeu-o para falar com os outros dois oficiais: - Enviei um perito em rádio num voo de reconhecimento sobre a ilha esta manhã ao raiar do dia. Ele detectou ondas com o comprimento de dois vírgula quatro metros, ao que tudo indica provenientes da grande Freya, e também ondas de cinquenta centímetros, supostamente das máquinas mais pequenas, que devem ser Wurtzburgs. - Virou-se para Harald. - Prossiga, por favor.
- Calculei então que a máquina grande emite um aviso de longo alcance da aproximação dos bombardeiros. Das máquinas mais pequenas, uma acompanha um único bombardeiro, e a outra segue o caça enviado para o atacar. Desse modo, um controlador conseguiria orientar um caça para o bombardeiro com enorme precisão.
Hogg virou-se de novo para os colegas: - Creio que ele tem razão. O que lhes parece?
Um deles afirmou: - Mesmo assim, gostaria de saber o significado de himmelbett.
Harald respondeu: - Himmelbett? É o termo alemão para uma daquelas camas...
- Uma cama de dossel, como nós lhe chamamos - disse-lhe Hogg. - Ouvimos dizer que o equipamento de radar opera numa himmelbett, mas não sabemos o que isso significa.
- Oh! - exclamou Harald. - Tenho estado a magicar como é que eles organizam as coisas. Isto explica-o.
Fez-se silêncio na sala. - Explica? - inquiriu Hogg.
- Bem, se o senhor fosse responsável pela defesa aérea alemã, faria sentido dividir as suas fronteiras em blocos de espaço aéreo, digamos, oito quilómetros de largura e trinta e dois de comprimento, e atribuir um conjunto de máquinas a cada bloco... ou himmelbett.
- Você é capaz de ter razão! - concordou Hogg, pensativo. - Assim eles teriam uma defesa quase impenetrável.
- Se os bombardeiros voarem lado a lado, sim - referiu Harald. - Mas se fizer os seus pilotos da RAF voar em linha, e os enviar todos através de uma única himmelbett, a Luftwaffe só conseguiria detectar um bombardeiro, e os outros teriam muito maiores hipóteses de conseguir passar.
Hogg fitou-o demoradamente. A seguir olhou para Digby e para os seus dois colegas, depois novamente para Harald.
- Como uma fila de bombardeiros - afirmou Harald, sem saber se eles compreendiam.
O silêncio prolongou-se. Harald perguntou-se se o problema seria do seu inglês. - Percebe o que eu quero dizer? - indagou.
- Oh, sim - afirmou finalmente Hogg. - Percebo exactamente o que quer dizer.
Na manhã seguinte Digby levou Harald e Karen para fora de Londres, em direcção a nordeste. Ao cabo de três horas chegaram a uma casa de campo que fora requisitada pela força aérea para as instalações dos oficiais. Cada um recebeu um pequeno quarto com uma tarimba; a seguir Digby apresentou-os ao seu irmão, Bartlett.
De tarde, foram todos com Bart até ao posto da RAF ali perto, onde estava instalada a esquadrilha dele. Digby tratara de tudo para poderem ambos assistir à transmissão das informações, esclarecendo o comandante local de que fazia parte de um exercício dos serviços secretos; e ninguém fizera mais perguntas. Ouviram o oficial de comando explicar a nova formação que os pilotos usariam para o ataque aéreo daquela noite - a fila de bombardeiros. O alvo era Hamburgo.
A mesma cena repetiu-se, com diferentes alvos, em aeródromos em toda a costa oriental de Inglaterra. Digby informou Harald de que mais de seiscentos bombardeiros iriam participar na tentativa desesperada daquela noite de obrigar algumas tropas da Luftwaffe a retirar da frente russa.
A lua apareceu alguns minutos depois das seis da tarde, e os motores gémeos dos Wellington começaram a trabalhar às oito. No enorme quadro preto na sala de operações, as horas das descolagens estavam anotadas ao lado da letra de código de cada avião. Bart iria pilotar o G de George.
Ao cair da noite, os operadores de rádio transmitiram informações dos bombardeiros, sendo as suas posições assinaladas numa mesa enorme com um mapa. As marcas iam-se deslocando, ficando cada vez mais próximas de Hamburgo. Digby fumava ansiosamente um cigarro atrás do outro.
O avião da frente, C de Charlie, informou que estava a ser atacado por um caça; depois as suas transmissões cessaram. A de Able aproximava-se da cidade, referindo um forte ataque, e largara bombas incendiárias para iluminar o alvo para os bombardeiros que se seguiam.
Quando começaram a largar as bombas, Harald pensou nos seus primos Goldstein em Hamburgo, e esperou que estivessem a salvo. Como parte do programa escolar do último ano, tivera de ler um romance em inglês, e escolhera War in the Air, de H. G. Wells, que lhe apresentara uma visão de pesadelo de uma cidade a ser atacada do ar.
Sabia tratar-se da única forma de derrotar os nazis, mas, ainda assim, temia pelo que pudesse acontecer a Monika.
Um oficial aproximou-se de Digby e disse em voz baixa que tinham perdido o contacto com o avião de Bart. - Pode ser apenas um problema de rádio - referiu.
Um por um, os bombardeiros comunicaram que iam regressar - todos menos C de Charlie e G de George.
O mesmo oficial veio informar: - O artilheiro da retaguarda de F de Freddie viu um dos nossos ser abatido. Não sabe qual, mas tudo indica que tenha sido G de George.
Digby cobriu o rosto com as mãos.
As fichas que representavam o avião recuaram pelo mapa da Europa em cima da mesa. Apenas C e G permaneciam em Hamburgo.
Digby efectuou um telefonema para Londres, depois disse a Harald: - A fila de bombardeiros resultou. Estimam um nível de perdas inferior ao que registámos durante um ano.
Karen afirmou: - Espero que o Bart esteja bem.
De madrugada, os bombardeiros começaram a regressar. Digby foi lá fora, e Karen e Harald reuniram-se-lhe, vendo o enorme avião pousar na pista e vomitar as suas tripulações, cansadas mas rejubilantes.
Quando a Lua desceu, tinham voltado todos menos Charlie e George.
Bart Hoare nunca chegou a regressar.
Harald sentia-se deprimido quando se despiu e colocou o pijama que Digby lhe emprestara. Deveria estar a rejubilar. Sobrevivera a um voo extremamente perigoso, prestara informações secretas cruciais aos britânicos e vira essas informações salvar as vidas de centenas de aviadores. Mas a perda do avião de Bart, e o pesar no rosto de Digby, recordaram a Harald o irmão, Arne, que dera a vida por aquilo, e Poul Kirke e os outros dinamarqueses que haviam sido presos e quase de certeza executados pela sua participação na vitória; e só conseguiu sentir tristeza.
Espreitou pela janela. A aurora raiava. Correu as cortinas amarelas finas sobre a janela pequena e meteu-se na cama. Ficou ali, sem conseguir dormir, sentindo-se péssimo.
Dali a pouco Karen entrou. Também ela vestia um pijama emprestado, com as mangas e as pernas das calças arregaçadas para ficarem mais curtas. O seu rosto estava solene. Sem dizer nada, meteu-se na cama ao lado dele. Harald abraçou o corpo quente dela. Karen encostou o rosto ao ombro dele e começou a chorar. Não lhe perguntou porquê. Tinha a certeza de que devia estar a pensar o mesmo que ele. Chorou até acabar por adormecer nos braços dele.
Pouco depois adormeceu também. Quando voltou a abrir os olhos, o sol entrava pelas cortinas finas. Olhou maravilhado para a rapariga nos seus braços. Devaneara muitas vezes como seria dormir com ela, mas nunca previra que pudesse ser bem assim.
Sentia os joelhos dela, e uma anca a cravar-se-lhe na coxa, e algo macio no seu peito que julgou poder ser um seio. Observou o rosto dela enquanto dormia, inspeccionando os lábios, o queixo, as pestanas e as sobrancelhas arruivadas dela. Sentiu o seu coração prestes a rebentar de amor.
Ela acabou por abrir os olhos. Sorriu-lhe e disse: - Olá, meu querido. - A seguir beijou-o. Dali a pouco, fizeram amor.
Três dias depois, Hermia Mount apareceu.
Harald e Karen entraram num pub próximo do Palácio de Westminster, à espera de encontrarem Digby, e lá estava ela, sentada a uma mesa com um gin tónico à sua frente.
- Como conseguiu voltar? - perguntou-lhe Harald. - A última vez que nos vimos, estava a bater com a sua mala na cabeça da agente detective Jespersen.
- Havia tanta confusão em Kirstenslot que me consegui escapulir antes que alguém reparasse em mim - referiu Hermia. - Regressei a pé a Copenhaga a coberto do escuro e cheguei à cidade ao nascer do Sol. Depois voltei pelo mesmo caminho: de Copenhaga a Bornholm de ferry, depois uma travessia em barco de pesca até à Suécia, e num avião de Estocolmo.
Karen disse: - Calculo que não tenha sido tão fácil quanto afirma.
Hermia encolheu os ombros. - Não foi nada comparado com o inferno da vossa aventura. Que viagem!
- Estou muito orgulhoso de vocês todos - congratulou-se Digby, apesar de Harald pensar, pela expressão terna no rosto dele, que estava particularmente orgulhoso de Hermia.
Digby viu as horas. - E agora temos um encontro com Winston Churchill.
Soou o aviso de ataque aéreo quando atravessavam Whitehall, de modo que se encontraram com o Primeiro-Ministro no complexo subterrâneo conhecido como as Salas de Guerra do Gabinete. Churchill estava sentado a uma pequena secretária num gabinete apertado. Na parede atrás dele via-se um mapa da Europa em grande escala. Havia uma cama de solteiro coberta com uma manta verde encostada a uma parede. Vestia um fato às riscas finas e despira o casaco, mas estava impecável.
- Afinal é você a moça que atravessou o Mar do Norte num Tiger Moth - dirigiu-se a Karen, apertando-lhe a mão esquerda.
- Um Hornet Moth - corrigiu-o. O Tiger Moth era um avião aberto. - Acho que teríamos morrido gelados num Tiger Moth.
- Ah, sim, claro. - Virou-se para Harald. - E você é o moço que inventou a fila de bombardeiros.
- Uma daquelas ideias que brotou de uma discussão - respondeu, com um certo embaraço.
- Não foi o que me constou, mas fica-lhe bem a modéstia. - Chur-chill dirigiu-se a Hermia. - E a senhora organizou tudo. Digo-lhe que vale por dois homens.
- Obrigado, senhor - afirmou, apesar de Harald perceber pelo seu sorriso de esguelha que não o considerara um grande elogio.
- Com a vossa ajuda, obrigámos Hitler a retirar centenas de caças da frente russa para defender a pátria. E, em parte graças a esse êxito, talvez vos interesse saber que assinei hoje um pacto de co-beligerância com a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas. A Grã-Bretanha já não está sozinha. Temos como aliada uma das maiores potências mundiais. A Rússia pode ter cedido, mas de modo algum foi derrotada.
- Meu Deus - comentou Hermia.
Digby murmurou: - Virá nos jornais de amanhã.
- E o que pensam vocês os dois fazer a seguir? - indagou Churchill.
- Eu gostaria de entrar para a RAF - afirmou Harald de imediato. - Aprender a voar como deve ser. Depois ajudar a libertar o meu país.
Churchill virou-se para Karen. - E você?
- Algo semelhante. Tenho a certeza de que não me deixarão ser piloto, muito embora consiga voar muito melhor do que o Harald. Mas gostaria de entrar para a força aérea feminina, se existir uma.
- Bem - disse o Primeiro-Ministro - , temos uma alternativa a propor-vos.
Harald ficou surpreendido.
Churchill fez um gesto com a cabeça a Hermia, que disse: - Queremos que voltem os dois para a Dinamarca.
Era a única coisa de que Harald não estava à espera. - Voltar?
Hermia prosseguiu. - Primeiro vamos mandá-los frequentar um curso de preparação: bastante longo, seis meses. Aprenderão a operar o rádio, usar códigos, manusear armas de fogo e explosivos, e por aí fora.
Karen inquiriu: - Com que finalidade?
- Desceriam de pára-quedas na Dinamarca, equipados com aparelhos de rádio, armas e documentos falsos. A vossa tarefa seria dar início a um novo movimento de Resistência, para substituir os Guardas-Nocturnos.
O coração de Harald começou a bater mais depressa. Era um trabalho extraordinariamente importante. - Estava decidido a voar - referiu. Mas a nova ideia era ainda mais excitante, conquanto perigosa.
Churchill interveio. - Tenho milhares de jovens que querem voar - declarou bruscamente. - Mas ainda não encontrámos ninguém capaz de fazer o que estamos a pedir a ambos. Vocês são únicos. São dinamarqueses, conhecem o terreno, falam a língua como naturais que são. E deram provas de coragem e desenvoltura extraordinárias. Resumindo e concluindo: se vocês não o fizerem, mais ninguém o fará.
Era difícil resistir à força da vontade de Churchill; e, na realidade, Harald não queria fazê-lo. Estava a ser-lhe proposta a oportunidade de fazer o que ansiara, e a perspectiva deixava-o entusiasmado. Olhou para Karen. - O que te parece?
- Estaríamos juntos - afirmou ela, como se para si fosse o mais importante.
- Nesse caso, aceitam? - indagou Hermia.
- Sim - respondeu Harald.
- Sim - respondeu também Karen.
- Óptimo - disse o Primeiro-Ministro. - Nesse caso, está decidido.
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